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Não é preciso ter idade muito avançada para nos lembrarmos do tempo em que se entoavam
cantigas infantis do gênero “atirei o pau no gato” ou se contavam historietas onde animais,
geralmente lobos, eram representados como astutos inimigos dos homens – sendo que um dos
finais “felizes” possíveis (e muito esperado!) era o lobo caindo em um poço, por conta das
pesadas pedras que o espirituoso herói havia costurado em sua barriga.
O papel do homem como gerente ou lugar-tenente de Deus, que age responsavelmente diante da
criação divina, fica, desta forma, em segundo plano. De outro modo, na antiga Grécia, enquanto
Platão destacou a posição ereta como um signo de distinção humana, Aristóteles, um defensor
ferrenho da escravidão, acreditava que nada na terra fora concebido em vão: as plantas haviam
sido criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens. Com base neste
argumento, os seus sucessores chegaram a sugerir que “o instinto que trazia os peixes ao litoral
em cardumes (...) parece uma sugestão de que eles se destinam ao uso humano”. Da conjunção
entre essas formas de percepção, o homem, sagrado, uma vez que cópia divina, representa a si
como uma espécie de ser anti-natureza, podendo, portanto, lançar mão da criação para benefício
próprio: está lançada a visão utilitarista da natureza e dos animais.
Na conquista do Império Romano, e em face do hábito nefasto de jogar cristãos e todo o tipo de
fera no Coliseu para o divertimento geral, tratava-se, deste modo, de rever o lugar ocupado
pelos usuais lutadores, militares e criminosos, na esfera moral, e não de proibir os jogos com
animais. Afinal, como perguntou desdenhosamente São Paulo, no Novo Testamento:
“Porventura está Deus cuidando dos bois?”. A negativa a esta pergunta destronava em definitivo
os animais de uma remota posição privilegiada, sendo que, na Idade Média, a Igreja Católica
passa a associar animais, como os gatos, às velhas religiões pagãs, considerando-os criaturas das
trevas, sendo que os mesmos figuraram como símbolos de traição, sexualidade ou malevolência.
Surge uma tradição artística de pintar um gato aos pés de Judas na Santa Ceia e, em muitos
quadros de períodos anteriores ao século XVIII, era possível vislumbrar demônios assumindo
formas felinas. Aqueles que cometeram o sacrilégio de venerar a natureza ou os animais nesse
período foram queimados, vide o caso de Giordano Bruno ou mesmo das profanadas bruxas,
que iam para a fogueira junto com os seus bichanos. Neste sentido, pode-se dizer que a
desconsideração dos animais na esfera da moral parecia ser a única saída à ideologia cristã; ou,
de outro modo, como justificar o sofrimento de seres que sequer haviam cometido o pecado
original? Mas a degradação moral dos animais ainda poderia ir mais longe. E foi.
Uma vez que dotados de senciência, isto é, capacidade de sofrer e sentir, os animais deveriam
ser considerados sujeitos-de-uma-vida, pelo seu valor intrínseco, não por quaisquer
considerações indiretas. O grande ponto de virada nesta história surge, portanto, com o
pensamento darwiniano e a sua teoria da evolução. Antes mesmo de publicar a Origem das
espécies (1859), Darwin já havia escrito em seu diário: “O homem, em sua arrogância, acredita
ser uma grande obra, merecedora da intermediação de uma divindade. É mais humilde e, penso
eu, mais verdadeiro considerar que foi criado a partir dos animais”. Darwin foi cauteloso nas
suas revelações e, pode-se dizer, bastante reticente em assumir todas as implicações de sua
teoria. De todo modo, o mais importante já havia sido dito: a intuição, as várias emoções e
faculdades, tais como o amor, memória, atenção, curiosidade, imitação, razão etc, podem ser
encontradas em todos os animais, de modo que as diferenças existentes entre humanos e não-
humanos dizem respeito apenas a graus e não à espécie. De certo modo, o pensamento
darwiniano acabou colocando em xeque qualquer forma de antropocentrismo; pois, no limite,
haveríamos de abandonar a consideração de que somos uma parte especial da criação divina.
Esta mudança de compreensão da relação homem-animal passa a ter, então, o potencial de
retirar-nos da posição central do universo, outrora reclamada, situando-nos em posição
equivalente a de todas as espécies existentes. Neste sentido, os demais seres não só deixam de
existir para fins humanos, como também a descoberta sinaliza para a necessidade de construção
de outro paradigma, embasado em uma visão biocêntrica do universo. Certamente, a sociedade
contemporânea está muito distante dessa utopia, mas, verdade seja dita, depois de Darwin, a
questão animal, que era considerada um tabu no universo acadêmico, passa a ser explorada.
Embora com os avanços, em termos pragmáticos, pode-se dizer que ainda vivemos à sombra do
século XIX, quando a benevolência para com os animais ainda os excluía da comunidade moral.
Como bem ilustrou Gary Francione, na história de Simon o sádico (1), é usual tributarmos o
abuso de animais ao humano perturbado que tortura um cachorro para se divertir, ignorando o
fato de que qualquer pessoa que consome qualquer produto de origem animal também está
praticando um abuso que não difere daquilo que é feito pelo torturador de cachorro. São mais de
50 bilhões de animais mortos todo ano, no mundo inteiro, só para comida. E “não há a menor
dúvida de que os alimentos de origem animal envolvem dor, sofrimento e morte em proporções
gigantescas”. Isto mesmo nas condições de produção o mais “humanitárias” possível – sendo
que humanos tratados da mesma forma seriam considerados vítimas de tortura.
Ilustração da artista inglesa contemporânea Sue Coe. Através de um trabalho de cunho político,
a mesma se utiliza da intensidade para engendrar a crítica ao sistema capitalista, bem como à
crueldade aos animais – um dos seus alvos sendo a pecuária industrial
Deste modo, embora a compreensão atual da relação homem-animal permita inferir o valor
intrínseco dos animais e, portanto, a necessária mudança de paradigma, quem de nós está
disposto a parar com o consumo de carne, ovos e leite? Deixar de lado as peles e acessórios de
couro? Só utilizar produtos cosméticos, de higiene e limpeza que não foram testados em
animais? Ou mesmo, dispensar formas de lazer como a caça, a pesca, o culto aos rodeios, aos
zoológicos ou animais de circo? Da decisão pessoal de cada um, dependerá a direção da
mudança. Neste ponto, ficam evidentes as diferenças entre os reformadores do sistema ou
defensores do bem-estar animal e os verdadeiros arautos do direito dos animais.
Ana Elizabeth Iannini Custódio é zoóloga, professora do Instituto de Biologia da UFU e líder
do Grupo de Pesquisa Zooantropologia do Poder. Email: iannini@inbio.ufu.br
FERRY, L. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal, o homem. São Paulo: Ensaio, 1994.
PAIXÃO, R. L. “Experimentação animal: razões e emoções para uma ética”.189f. Tese de
Doutorado. Fundação Osvaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001.
REGAN, T. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano,
2006.
SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Nota de rodapé:
1. A história de Simon o Sádico foi originalmente contada pelo autor no livro Introduction to
Animal Rights: Your Child or the Dog? (2000)