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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

15º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo


ECA/USP – São Paulo – Novembro de 2017
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A perspectiva dos animais no jornalismo: análise da reportagem


“Pense na lagosta”

Daniela Caniçali Martins Pinto1

Resumo: A partir da análise da reportagem “Pense na lagosta”, veiculada na revista piauí em


setembro de 2012, propõe-se uma reflexão sobre os caminhos possíveis para um discurso não
hegemônico nos textos jornalísticos contemporâneos. O objetivo é identificar, recorrendo à me-
todologia da análise do discurso, como os interesses dos animais são considerados na narrativa.
A análise está fundamentada em uma perspectiva teórica que questiona os paradigmas antropo-
cêntricos e especistas, os quais excluem os animais de nossa esfera de consideração moral. Ob-
serva-se que a reportagem descontrói esses paradigmas ao colocar no “centro do acontecimento”
um animal e, mais ainda, um animal muito diferente do humano e com o qual não temos, cultu-
ralmente, nenhuma relação de afeto e compaixão.

Palavras-chave: análise de discurso; animais; especismo; jornalismo; reportagem.

1. Introdução
Em setembro de 2012, a revista piauí publicou, em sua 72ª edição, a reporta-
gem "Pense na lagosta", do jornalista e escritor norte-americano David Foster Wallace.
O texto, inédito em língua portuguesa, saiu na revista por ocasião do lançamento, no
Brasil, da obra "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo", que reúne
esse e outros ensaios do autor. "Pense na lagosta" foi publicada originalmente em agos-
to de 2004, na revista Gourmet2. David Foster Wallace havia recebido a incumbência de
cobrir o tradicional "Festival de Lagostas do Maine", mas acabou apresentando um tex-
to pouco convencional, sobretudo para uma publicação de gastronomia.

1
Universidade Federal da Santa Catarina
2
Com o título "Consider the lobster", a reportagem original em inglês está disponível em:
http://www.gourmet.com/magazine/2000s/2004/08/consider_the_lobster.html.

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Como informa o título, Wallace nos conduz, de fato, a "pensar sobre a lagosta".
E pensar não em termos gustativos, não no contexto da arte e ciência de sabore-
ar alimentos. Mas pensar, sobretudo, nas implicações éticas e morais que envolvem o
ato de consumir lagostas (e, por consequência, outros animais). Esse "convite a pen-
sar" não é feito de forma repentina, logo nos primeiros parágrafos. É algo que
se constrói, vagarosamente e sutilmente, ao longo da narrativa. Estabelece-se, progres-
sivamente, um contexto propício à abordagem singular que o autor propõe:

[...] me parece improvável que muitos leitores de Gourmet queiram pensar


sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade dos seus hábitos ali-
mentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta defi-
nida para este artigo é descrever como foi participar do FLM [Festival de
Lagostas do Maine] de 2003, e por causa disso passar vários dias em meio a
uma grande massa de americanos comendo lagostas, e consequentemente
ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experi-
ência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira hones-
ta de evitar certas questões morais (WALLACE, 2012, p. 68-69).

Ao longo de sete páginas e quase 50 mil caracteres, Wallace apresenta diversas


perspectivas que indagam o que aparentemente está dado, o que é considerado “natural”
e “óbvio”. Nos últimos parágrafos, ele acrescenta ainda novos questionamentos, dessa
vez expressamente direcionados ao público da revista, descerrando-lhes novos horizon-
tes a se pensar:

Perguntas aos leitores de Gourmet que apreciam refeições bem-feitas e bem-


apresentadas envolvendo carne de vaca, vitela, cordeiro, porco, frango, la-
gosta etc.: Vocês pensam muito sobre a (possível) condição moral e o (pro-
vável) sofrimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicções éti-
cas desenvolveram para se permitir não apenas comer, mas também saborear
e desfrutar de iguarias à base de carnes de animais (pois o desfrute refinado,
em contraste com a mera ingestão, é naturalmente a razão de ser da gastro-
nomia)? Se, por outro lado, vocês não dão a menor bola para confusões ou
convicções [...], o que em seu íntimo faz vocês sentirem que não existe real-
mente problema algum em desconsiderar de forma peremptória toda essa
questão? Isto é, a recusa em pensar nessas coisas seria o produto de um raci-
ocínio ou na verdade vocês apenas não querem pensar sobre o assunto? E se
for isso mesmo, por que não? Vocês chegam a pensar, mesmo à toa, sobre as
possíveis razões dessa relutância em pensar no assunto? Não estou tentando
importunar ninguém – minha curiosidade é genuína. Afinal de contas, ser
muito consciente, atencioso e cuidadoso a respeito do que se come e de todo
o contexto englobante não é parte do que distingue um verdadeiro gourmet?
Ou toda a atenção e a sensibilidade extraordinárias do gourmet devem se li-
mitar ao sensorial? (WALLACE, 2012, p. 70)

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Quando foi publicado, o texto gerou controvérsia. Conforme se recorda a editora


que recebeu a matéria em primeira mão, Jocelyn Zuckerman, em entrevista concedida
em 2008 ao site Observer3, o tom da narrativa a surpreendeu:

[...] o artigo que recebeu de Mr. Wallace após seu retorno do Maine – uma
inquirição rigorosa e melancólica sobre por que tantas pessoas pensam que é
ok ferver lagostas vivas – era diferente de qualquer coisa que a Gourmet ha-
via publicado até então. [...] era pesado e confrontador de uma forma que os
leitores da revista não estavam acostumados.4

Por seu caráter inusitado, justifica-se, assim, a escolha da reportagem que será
analisada aqui. A proposta desse artigo é, portanto, identificar como são considerados os
interesses do animais no texto “Pense na lagosta”. Esse ponto de partida está inserido
em um contexto mais amplo, que envolve a seguinte questão: os textos jornalísticos
contemporâneos podem contribuir para a disseminação de discursos não hegemônicos,
que questionam e contestam ideologias e preconceitos arraigados na sociedade? A pers-
pectiva teórica que fundamentará essa reflexão será apresentada a seguir.

2. A perspectiva teórica animalista

Utilizo o termo “animalista” para designar toda a perspectiva teórica não antro-
pocêntrica e não especista, que inclui os animais em nossa esfera de consideração mo-
ral. O antropocentrismo, como se sabe, refere-se à ideia, amplamente difundida, de que
o ser humano é o centro do universo e todas as outras formas de vida existem com o
objetivo de lhe servir. O paradigma antropocêntrico está fundamentado, justificado e

3
NEYFAKH, Leon. “Jocelyn Zuckerman remembers editing DFW’s ‘Consider the Lobster’ for Gour-
met”. 19 set. 2008. Disponível em: http://observer.com/2008/09/jocelyn-zuckerman-remembers-editing-
dfws-consider-the-lobster-for-igourmeti/. Acesso em julho/2017.
4
Tradução da autora. Original em inglês: “The piece she received from Mr. Wallace upon his return from
Maine — a rigorous, heavy-hearted inquiry into why so many people think it’s okay to boil lobsters alive
— was unlike anything Gourmet had ever published before. [...] it was dark and confrontational in a way
that the magazine’s readers were not used to.”

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reforçado no sistema filosófico ocidental – sobretudo nas teorias desenvolvidas pelo


francês René Descartes5 – e também nas escrituras religiosas:

A Bíblia nos diz que Deus fez o homem à Sua própria imagem. [...] essa con-
cepção confere aos humanos uma posição especial no universo, como seres
que, únicos entre todas as coisas vivas, são semelhantes a Deus. Além disso,
afirma-se, explicitamente, que Deus deu ao homem o domínio sobre todas as
coisas viventes” (SINGER, 2010, p. 272).

A interpretação corrente da passagem bíblica que conclama o “homem” a dominar


“os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os rép-
teis que rastejam sobre a terra” (Genesis, 1:26) é a de que “todos os seres vivos” estari-
am à mercê do ser humano. Como observa o filósofo Naconecy (2014, p. 65) “o Juda-
ísmo, o Cristianismo e o Islamismo outorgam aos humanos um lugar especial na nature-
za. Inclusive os não crentes vivem sob o legado dessas tradições, as quais exercem uma
profunda influência em nossa cultura”.
O termo especismo foi criado em 1970, pelo psicólogo inglês Richard D. Ryder,
para designar a exploração e preconceito contra membros de outras espécies, em favor
da espécie humana. Como todas as outras formas de discriminação, o especismo se ba-
seia em critérios arbitrários e inconsistentes. Desde então, a expressão passou a ser ado-
tada por autores que se dedicam à questão animal:

No fim, a única diferença entre eles e nós é a espécie, e a espécie, apenas, não
é um critério moralmente relevante para excluir os animais da comunidade
moral, assim como a raça não é uma justificação para a escravidão humana,
ou o sexo uma justificação para fazer das mulheres a propriedade de seus ma-
ridos. Usar a espécie para justificar a condição de propriedade dos animais é
especismo, assim como usar a raça ou o sexo para justificar a condição de
propriedade de humanos é racismo ou sexismo (FRANCIONE, 2013, p. 32-
33).

Embora esse conceito tenha sido instituído e disseminado apenas nas últimas dé-
cadas – e quase exclusivamente entre teóricos e ativistas animalistas –, desde a Antigui-
dade Clássica há registros de vozes que questionaram a exclusão das demais espécies de

5
“Segundo Descartes, os animais são meras máquinas, autômatos. Não sentem prazer nem dor, nem nada.
[...] São governados pelos mesmos princípios de um relógio [...]” (SINGER, 2010, p. 291).

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nossa esfera de consideração moral. Pitágoras (570-500 a. C.) é provavelmente o mais


antigo filósofo a apresentar argumentos pró-animais: “Até 1847 [...], a palavra mais
comum para designar aqueles que não comiam animais era ‘pitagórico’” (ADAMS,
2012, p. 125). Ovídio (43 a. C. - 18 d. C.) fez referência ao pensamento de Pitágoras na
obra “Metamorfoses”; Plutarco (46-120) expressou consideração pelos animais em di-
versos ensaios, como “Sobre o consumo de carne”; Porfírio (232-304) publicou, em
quatro volumes, a obra “Sobre a abstinência do alimento animal”, defendendo um tra-
tamento justo aos animais. E mais tarde, no século XV, Leonardo da Vinci (1432-1519)
foi um grande defensor das demais espécies:

O historiador Edward MacCurdy relata que “a mera ideia de permitir a exis-


tência de sofrimento desnecessário, ainda mais do que tirar uma vida, era de-
testável para ele [Leonardo da Vinci]”. Desde os primeiros anos de vida, se-
gundo todos os relatos, ele adotou uma dieta vegetariana, por razões éticas
(REGAN, 2004, p. 22-23).6

As personagens citadas são uma breve amostra dos diversos indivíduos, famosos
ou não, que já questionaram o que estava “predeterminado”. Entretanto, todas as contes-
tações às ideologias antropocêntricas e especistas ao longo da história nunca tiveram
amplo alcance, de forma que ainda habitamos um tempo e espaço onde essas ideias
permanecem hegemônicas. A exploração animal segue vigente para os mais diversos
fins: alimentação, vestuário, experimentação científica etc. O australiano Peter Singer
(2010, p. 271), filósofo contemporâneo que se dedica à questão animal, considera que,
embora haja hoje “uma visão mais esclarecida de nossas relações com os animais, quan-
to a certos aspectos básicos, ainda não rompemos com as atitudes aceitas de maneira
inquestionável na Europa até o século XVIII”.
Talvez, uma das explicações seja justamente o fato de essas vozes terem estado
sempre à sombra do antropocentrismo e especismo, nunca alcançando maior difusão
entre o público mais amplo. Uma das formas possíveis de tornar perspectivas não he-
gemônicas conhecidas pela população em geral, para além da esfera dos especialistas, é
justamente sua difusão pelos meios de comunicação e, mais especificamente, pelos veí-

6
Tradução da autora. Original em inglês: “The historian Edward MacCurdy writes that "the mere idea
of permitting the existence of unnecessary suffering, still more that of taking life, was abhorrent to
him". Early in life, by all accounts, he adopted a vegetarian diet, for ethical reasons.”

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culos jornalísticos. A possibilidade de propagar ideias contestatórias – que permitiriam


a abertura de novos horizontes, novas formas de ver e se comportar no mundo –, é o que
consolida o potencial emancipatório do jornalismo. Entretanto, a efetivação desse po-
tencial, como se verá, depende de muitas variáveis.

3. O discurso jornalístico

Diversos teóricos do jornalismo o compreendem como um processo de constru-


ção da realidade social com características próprias, por suas amplas possibilidades de
manter, questionar ou subverter o status quo. Sua tendência é a de manter as ordens
hegemônicas, tanto pelas limitações que são impostas à atividade jornalística – sobretu-
do pelas próprias empresas de comunicação –, como também pelas limitações dos pró-
prios profissionais e sua (in)capacidade de ver além. Conforme afirma Rodrigo Alsina
(2009, p. 13), “[...] mesmo que um jornalista tenha a percepção do fato, ele sempre irá
interpretar a realidade de acordo com a sua enciclopédia”.
A “enciclopédia” dos jornalistas, como a de qualquer indivíduo, não tem alcance
infinito – ninguém tem o poder da onisciência. Além disso, como estão inseridos em
determinada sociedade, cuja cultura e tradição podem parecer imutáveis, geralmente
veem os acontecimentos do mundo por esses filtros sociais. A sociedade pode estar re-
presentada na mídia. Entretanto, “nessa representação nem todos os agentes sociais re-
cebem o mesmo tratamento jornalístico em quantidade e qualidade” (RODRIGO AL-
SINA, 2009, p. 65). As vozes não hegemônicas, portanto, saem prejudicadas.
É nesse sentido que a reportagem “Pense na lagosta” chama a atenção e suscita
uma análise pormenorizada. Como é possível notar nos dois trechos citados, o repórter
em questão sai de sua zona de conforto e questiona. Questiona a si mesmo, aos frequen-
tadores do festival, aos leitores da revista. Questiona a “cultura”, a “tradição”, as “re-
gras sociais”. Para tentar compreender como “Pense na lagosta” promove esses diversos
questionamentos, a análise da reportagem será guiada pelos procedimentos metodológi-
cos da análise do discurso, conforme propostos por Erni Orlandi (2013) e Márcia Benet-
ti (2007).

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Orlandi (2013, p. 38) ressalta que o jornalismo, enquanto gênero discursivo,


apresenta um “dizer ideologicamente marcado”. Para a autora, “o discurso torna possí-
vel tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2013, p. 15). Nesse contexto, “a
análise de discurso visa compreender como um objeto simbólico produz sentidos” (OR-
LANDI, 2013, p. 66), sendo um método adequado a trabalhos que pretendem explicitar
não “o que esse texto quer dizer?”, mas sim “como esse texto significa?” (ORLANDI,
2013, p. 17). Isto é, “a questão a ser respondida não é o ‘o que’, mas o ‘como’” (OR-
LANDI, 2013, p. 18).

4. Pense na lagosta

A reportagem “Pense na Lagosta” é bastante descritiva. Wallace descreve tudo o


que vê e tudo o que pesquisou sobre o que viu. Ao longo do texto, ele discorre sobre a
constituição física e biológica da lagosta7; a gênese linguística do nome “lagosta”8; o
“status culinário” da lagosta ao longo da história9; as muitas e diferentes formas de co-
zinhá-la10; entre diversos outros aspectos relacionados ao animal “lagosta”. O autor de-
monstra, desde as primeiras linhas, o quanto é possível complexificar e problematizar
um tema aparentemente banal e corriqueiro: “Para fins práticos, todo mundo sabe o que
é uma lagosta. Como de costume, todavia, existe muito mais para saber do que a maio-
ria de nós se importa em descobrir – é tudo uma questão de interesses pessoais” (WAL-
LACE, 2012, p. 64).

7
“Em termos taxonômicos, uma lagosta é um crustáceo marinho da família homaridae, caracterizado por
cinco pares de patas articuladas dos quais o primeiro termina em grandes garras semelhantes a pinças,
utilizadas para subjugar presas [...]” (WALLACE, 2012, p. 64).
8
“A palavra inglesa lobster vem do inglês antigo loppestre, supostamente uma corruptela de locusta, a
palavra latina para gafanhoto que também é a raiz de “lagosta”, combinada com o inglês antigo loppe, que
significa aranha” (WALLACE, 2012, p. 64).
9
“Até certa altura do século XIX, todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consu-
mido apenas pelos pobres e encarcerados. Até mesmo no rude ambiente penal dos primórdios da histó-
ria americana algumas das colônias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentação dos detentos a
uma única vez por semana, porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a
comerem ratos” (WALLACE, 2012, p. 66).
10
“Como prato principal à la carte, a lagosta pode ser assada, grelhada, cozida ao vapor, refogada, salte-
ada, feita em wok ou no micro-ondas. Mas o método mais comum é a fervura” (WALLACE, 2012, p. 67).

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Sua narrativa é extensa e densa, características que permitiriam uma ampla e rica
gama de abordagens, análises e interpretações. Este trabalho, entretanto, detém-se na
tentativa de encontrar respostas à questão: como são considerados os interesses dos
animais na reportagem “Pense na lagosta”? Após sucessivas e criteriosas leituras, foram
selecionados 60 diferentes trechos do texto, que atenderiam ao objetivo proposto. Em
cada um desses trechos – denominados Sequências Discursivas (SD), conforme empre-
ga-se na metodologia de análise de discurso –, foram identificados os sentidos predomi-
nantes e sua recorrência – determinando assim as seguintes Formações Discursivas
(FD):
FD 1: “A lagosta, assim como outros animais, são seres sencientes, que sentem
dor e sofrem – e têm o legítimo interesse em evitar a dor e o sofrimento.”
FD 2: “O ato de comer animais envolve questões éticas e morais sobre as quais
devemos pensar.”
FD 3: “O Festival de Lagostas do Maine é um ambiente de mau gosto, descon-
fortável, ridículo e repleto de exageros.”
FD 4: “O ser humano pode ser egoísta, insensível e cruel em sua relação com os
outros animais.”
Os sentidos expressos na FD 1 e na FD 2 foram os mais recorrentes, aparecendo
29 e 26 vezes, respectivamente. A FD 3 foi registrada 10 vezes e a FD 4, 16 vezes. Co-
mo se observa, todas as FDs estão relacionadas entre si, sendo que as três últimas corro-
boram a ideia central expressa na primeira. A ideia de que os animais, portanto, são se-
res sencientes11 e seu interesse em não sofrer deve ser considerado, é constantemente
explicitado e reforçado a cada parágrafo. Seguem algumas das SDs em que foram iden-
tificadas a FD1:

Diante do fogão, vendo a tampa bater freneticamente ou as patas do bicho


enganchadas de forma patética na beira da panela, é difícil negar que aquilo
seja uma criatura viva tentando fugir da dor.

11
“Ser senciente significa ser o tipo de ser que tem experiências subjetivas de dor (e prazer) e interesse
em não experienciar essa dor (ou em experienciar prazer). É inquestionável que a maioria dos animais que
usamos para comida, experimentos, entretenimento e vestuário tem essas experiências subjetivas. E são
essas experiências subjetivas que distinguem os animais – humanos e não humanos – das rochas e das
plantas, e que fazem dos animais não humanos um objeto de nossa preocupação moral” (FRANCIONE,
2013, p. 42).

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Quando é despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, às vezes a


lagosta tenta se segurar nas bordas do recipiente ou até mesmo engan-
char as garras na beira do tacho como uma pessoa dependurada de um
telhado, tentando não cair.

Mesmo que o sujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente é possível


ouvir a tampa chacoalhando e rangendo enquanto a lagosta tenta em-
purrá-la. Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tacho
enquanto se debate.

[...] a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com o que eu


ou você apresentaríamos se fôssemos atirados em água fervente [...]. Para
falar de modo ainda mais direto, a lagosta age como se sentisse dores terrí-
veis, fazendo com que algumas pessoas abandonem a cozinha levando
consigo um daqueles cronômetros de plástico para esperar em outro cômodo
até o processo inteiro chegar ao fim.

[...] é necessária uma boa dose de ginástica intelectual e detalhismo behavio-


rista para não ver as ações de lutar, se debater e fazer tilintar tampas de
panela como comportamentos associados à dor.

[...] lagostas fervidas aos poucos muitas vezes demonstram todo um con-
junto adicional de reações pavorosas e convulsivas que normalmente não
são registradas na fervura comum.

[...] as lagostas possuem um tato muito refinado, auxiliado por centenas


de milhares de pelos minúsculos que se projetam através da carapaça.

[...] embora envolta pelo que parece uma armadura sólida e impenetrável, a
lagosta é capaz de receber estímulos e sensações do mundo exterior tão
prontamente quanto se possuísse uma pele macia e delicada. E as lagostas
possuem nociceptores, bem como versões invertebradas de prostaglandinas e
neurotransmissores importantes através dos quais nossos próprios cérebros
registram a dor.

[...] as lagostas talvez sejam ainda mais vulneráveis à dor, pois não contam
com a analgesia embutida nos sistemas nervosos dos mamíferos.

Diante do fogão é difícil negar de qualquer modo que aquilo seja uma cria-
tura viva sentindo dor e tentando evitar/escapar dessa experiência dolo-
rosa.

Para minha mente leiga, o comportamento da lagosta no tacho parece ser


uma expressão de preferência; e é bem possível que uma habilidade para
formar preferências seja o critério decisivo para o sofrimento real.
As lagostas [...] manifestam preferências. Experimentos demonstraram que
elas são capazes de detectar mudanças de apenas 1 ou 2 graus na tempe-
ratura da água.

[...] observando as lagostas recém-pescadas se amontoando umas sobre as ou-


tras, sacudindo impotentes as garras amarradas, se escondendo nos can-
tos mais escuros ou se afastando inquietas do vidro quando alguém se
aproxima, é difícil não sentir que estão infelizes, ou assustadas [...]

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Concomitantemente a essas tantas evidências – científicas e empíricas – de que


as lagostas sofrem, assim como nós, humanos, sofremos, são apresentadas também as
implicações morais e éticas que envolvem o ato de comer animais – isto é, de infligir
dor e sofrimento a seres sencientes. Seguem algumas das SDs onde se destaca a FD2:

Então aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitável diante da
Maior Panela para Lagostas do Mundo e pode vir à tona em cozinhas espa-
lhadas por todos os Estados Unidos: é certo ferver viva uma criatu-
ra senciente para nosso mero prazer gustativo?

Para começar, não existe só o problema de que as lagostas são fervidas vi-
vas, mas também o de que quem faz isso é você – ou pelo menos isso é feito
especificamente para você, in loco.

Por causa, no mínimo, do modo como são comercializadas e embaladas, co-


memos essas carnes sem ter de pensar que um dia já foram criaturas sen-
cientes e dotadas de consciência às quais foram feitas coisas horríveis.

[...] estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos per-


turbadores que vêm à tona em meio às risadas, à animação e ao orgulho co-
munitário do Festival da Lagosta do Maine.

A verdade é que, se comparecendo ao festival o sujeito se permitir cogitar


que as lagostas podem sofrer e que prefeririam que isso não acontecesse,
o FLM começa a ficar parecido com um circo romano ou um festival de
torturas medievais.

[...] é possível que as gerações futuras considerem as práticas de agronegó-


cio e alimentares contemporâneas da mesma maneira como hoje enxer-
gamos os espetáculos de Nero ou os experimentos de Mengele?

Vocês pensam muito sobre a (possível) condição moral e o (provável) so-


frimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicções éticas de-
senvolveram para se permitir não apenas comer, mas também saborear
e desfrutar de iguarias à base de carnes de animais?
Até mesmo o “carnófilo” mais teimoso reconheceria que é possível viver e
comer bem sem consumir animais.

Wallace questiona o comportamento do ser humano a partir de algo que lhe é ro-
tineiro: alimentar-se de animais. Ele transforma o ordinário em extraordinário, confe-
rindo perplexidade e surpresa a uma atividade habitual, sobre a qual (quase) ninguém
pensa. O teórico Rodrigo Alsina (2009, p. 114) afirma que “o sujeito observador é que
lhe confere sentido ao acontecimento. Ou seja, os acontecimentos estariam formados
por aqueles elementos externos ao sujeito, a partir dos quais, ele mesmo reconhecerá e
construirá o acontecimento”. Pode-se dizer, portanto, que Wallace reconhece – e reporta

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– um “acontecimento” a partir do que seria, para a maior parte de seus leitores, trivial.
Ele avisa: o que, para nós, é comida, é, antes disso, um animal que sente. E pergunta: é
correto fazer o que fazemos com os animais? É possível ferver uma criatura viva sem
ser egoísta? Suas palavras apontam para um fato bastante desconfortável (como ele
mesmo adjetiva), que está explicitado na FD 4: o ser humano realmente pode ser egoís-
ta, insensível e cruel em sua relação com os outros animais. Seguem algumas das SDs
onde verifica-se a FD 4:

[...] toda a questão da crueldade com os animais e da moralidade de comê-


los não é apenas complexa, mas também desconfortável. Ou pelo menos é
desconfortável para mim, e para praticamente todos os meus conhecidos
que apreciam uma ampla gama de alimentos e ao mesmo tempo não querem
se enxergar como cruéis ou insensíveis.

[...] percebam, contudo, o eufemismo semiconsciente “preparada”, que no ca-


so das lagostas significa na verdade matá-las bem no meio das nossas cozi-
nhas.

[...] covardia envolvida no ato de jogar uma criatura em água fervente e em


seguida abandonar o recinto.

[...] as únicas virtudes confirmadas dos métodos de lobotomia caseira e fervu-


ra lenta são comparativas, pois há quem prepare lagostas de formas ainda
piores, mais cruéis.

Não há espaço para expor aqui todas as SDs e as recorrências de cada uma das
FDs, por isso foram selecionadas algumas consideradas representativas do todo. Em sua
linha argumentativa, o texto de Wallace é consistente não apenas pela quantidade de
informações que se descortinam a cada parágrafo, mas também por sua postura de ques-
tionar, conferir e confirmar tudo a que tem acesso. Ao destacar o texto que o Conselho
de Fomento à Lagosta do Maine divulga sobre “lagostas e dor” – “O sistema nervoso da
lagosta é muito simples, e na verdade é muito semelhante ao sistema nervoso do gafa-
nhoto. É descentralizado, sem um cérebro. Não há um córtex cerebral, que nos huma-
nos é a área do cérebro que proporciona a experiência da dor” – ele contesta essa tese,
afirmando “estar incorreta por uns onze motivos diferentes”:

Embora soe mais sofisticado, boa parte do embasamento neurológico desta


afirmação ainda é falsa ou imprecisa. O córtex cerebral humano é a parte
do cérebro que lida com as faculdades superiores, como a razão, a auto-
consciência metafísica, a linguagem etc. Sabemos que os receptores da dor

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fazem parte de um sistema muito mais antigo e primitivo de nociceptores e


prostaglandinas administrados pelo tronco encefálico e o tálamo. Por exem-
plo, a experiência corriqueira de encostar a mão sem querer em um forno
quente e retirá-la bruscamente antes mesmo de notar que há algo de errado se
explica pelo fato de muitos dos processos através dos quais detectamos e
evitamos os estímulos dolorosos não envolverem o córtex. [...]

Em sua narrativa, portanto, também está presente o contraditório, o “outro lado”.


Mas este se revela extremamente frágil e inconsistente diante da solidez das objeções
que expõe sobre o consumo de animais. Para além de uma apuração extremamente mi-
nuciosa e exaustiva, seu estilo literário também está em sintonia com a abordagem que
desenvolve. No trecho a seguir, por exemplo, a repetição proposital da palavra “lagos-
ta”, corrobora os “exageros” do festival (expressos na FD 3):

[...] são oferecidos sanduíches de lagosta, folhados de lagosta, lagosta salte-


ada, salada de lagosta Down East, sopa creme de lagosta, ravióli de lagosta
e bolinhos fritos de lagosta.

Há camisetas de lagostas, bonecos articulados de lagostas, lagostas infláveis


para piscinas e chapéus acopláveis de lagosta com enormes garras escarlates
que chacoalham em molas.

Se “ao lidar essencialmente com o que é inesperado, incomum ou perigoso, o


jornalismo acaba indicando o que seria socialmente desejável, normal ou adequado”
(BENETTI, 2007, p. 110); o que Wallace faz é reverter essa lógica, apresentando algo
consensualmente reconhecido como “normal” – o comportamento do público em um
festival gastronômico; o ato de ferver um animal vivo etc – como “anormal”, “inespera-
do”. Ao propor uma perspectiva inusitada – deslocando o ponto de vista do leitor, per-
mitindo uma abertura para “outra realidade”, “outra verdade” –, suas palavras suscitam
a reflexão.
Retomando a noção de acontecimento, Rodrigo Alsina destaca seu caráter antro-
pocêntrico: “O ser humano é o centro do acontecimento, mas não só é o personagem
mais importante, [...] mas a pessoa anônima cujas circunstâncias possam ser utilizadas
pela imprensa para construir o acontecimento” (2009, p. 124). Wallace descontrói esse
paradigma quando coloca no “centro do acontecimento” um animal e, mais ainda, um

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animal muito diferente do humano, e com o qual não temos, culturalmente, nenhuma
relação de afeto e compaixão – como é o caso dos mamíferos.

5. Considerações finais

A perspectiva apresentada no texto “Pense na lagosta” causou algum desconfor-


to nos leitores de Gourmet (e de piauí) provavelmente por estes não refletirem, habitu-
almente, sobre as implicações éticas que envolvem a objetificação dos animais que são
considerados apenas como “comida”. O que é tão somente “alimento” se revela então
como um ser vivente – que é sensível, autoconsciente, e deseja preservar sua vida.
Wallace esforça-se para considerar o ponto de vista da lagosta, desvendando sua
fisiologia, seus interesses e sensações. Este é um movimento pouco comum em textos
jornalísticos, tanto pelos obstáculos inerentes à argumentação pró-animais em veículos
hegemônicos, como pela própria disposição de um jornalista – especialmente um não
ativista, não vegetariano, e que jamais tivesse advogado pelos direitos animais – se em-
penhar nessa direção. Trata-se, no entanto, de um questionamento muito simples, sobre
o ato corriqueiro e aparentemente “natural” de comermos animais. Se “a exploração dos
animais nos condiciona a aceitar a brutalidade como um fato cotidiano normal e razoá-
vel” (ADAMS, 2012, p. 45), o que Wallace faz é descondicionar essa aceitação automá-
tica e irreflexiva.
Apesar de sua qualidade, a aprovação da reportagem para publicação enfrentou
obstáculos. A editora Jocelyn Zuckerman, já mencionada, relata que a editora-chefe de
Gourmet fez diversas objeções ao conteúdo da narrativa:

Achei o texto brilhante. [...] Mas não sabia o que Ruth [Reichl, editora-chefe
da Gourmet] iria achar. Quando Ms. Reichl leu, seu veredicto foi que seria
publicado, desde que o tom hostil de algumas passagens fosse suavizado, e o
que lhe parecia um retrato agradável da [ONG] PETA [Pessoas pelo Trata-
mento Ético dos Animais] fosse removido.12

12
NEYFAKH, Leon. “Jocelyn Zuckerman remembers editing DFW’s ‘Consider the Lobster’ for Gour-
met”. 19 set. 2008. Disponível em: http://observer.com/2008/09/jocelyn-zuckerman-remembers-editing-
dfws-consider-the-lobster-for-igourmeti/. Acesso em julho/2017.
Tradução da autora. Original em inglês: “I thought it was brilliant [...] But I didn’t know what Ruth [Rei-
chl, Gourmet‘s editor-in-chief] was going to think. [...] When Ms. Reichl did read the piece, the verdict

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A própria Ruth Reichl confirma essa versão. Em entrevista ao site The Awl, ela
diz que realmente achou que Wallace estava tomando partido da PETA e solicitou que
essas partes fossem removidas – o que acabou acontecendo, após longas negociações.
Outro empecilho foi em relação aos anunciantes: “Ninguém queria colocar seu anúncio
junto àquela reportagem. Decidi publicar assim mesmo, mas existe realmente uma pres-
são para não publicarmos reportagens sérias porque a maioria dos anunciantes vão pre-
ferir não estar na revista.”13
Observa-se que os discursos não hegemônicos, que contestam a ordem vigente,
ainda sofrem preconceitos e precisam vencer muitos desafios para serem mais ampla-
mente difundidos. Dentre esses discursos, a narrativa pró-animais talvez seja uma das
mais emblemáticas, pelo caráter fortemente antropocêntrico e especista da sociedade
contemporânea. Como afirma Adams (2012, p. 36). “[...] é uma tarefa árdua argumentar
contra as crenças dominantes sobre carne quando elas têm sido reforçadas por um pra-
zer pessoal de comer carne e são carregadas de muito simbolismo”. Por isso também, “o
movimento pelos direitos animais enfrenta uma oposição enorme e violenta” (ADAMS,
2012, p. 47).
Embora registrem-se alguns avanços, o contexto cultural permanece pouco re-
ceptivo em relação ao paradigma não especista e, muitas vezes, “[...] até um especialista
cuidadoso se cala sobre aquilo que o ponto de vista dominante não pode incorporar”
(ADAMS, 2012, p. 308). Nesse sentido, é louvável o esforço de Wallace para apresentar
um texto que faz pensar. Já que “os matadouros são estruturas enclausuradas; não ve-
mos nem ouvimos o que acontece ali” (ADAMS, 2012, p. 90), suas palavras conseguem
quebrar as barreiras dessas estruturas, expondo, sem pudores, “o que acontece ali”.
Rodrigo Alsina (2009, p. 115) afirma que “[...] cada sistema cultural vai concre-
tizar quais são os fenômenos que merecem ser considerados como acontecimentos e
quais passam despercebidos”. Se, em nosso sistema cultural, o ato de ferver uma lagosta

was that it could run provided the hostile tone of some of the passages was softened, and what looked to
her like a flattering portrayal of PETA [People for the Ethical Treatment of Animals] removed.”
13
SICHA, Choire. Ruth Reichl On David Foster Wallace’s “Consider The Lobster”: “He Argued
Over Every Edit”. The Awl. 7 maio 2014. Disponível em: https://theawl.com/ruth-reichl-on-david-foster-
wallaces-consider-the-lobster-he-argued-over-every-edit-9d03f1f9aea. Acesso em julho/2017.

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viva tem passado despercebido, reportagens como a de Wallace podem mostrar ao leitor
o que ele não consegue ver a olho nu – não por um limite físico, mas sim ideológico,
cultural.

Referências

ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância


masculina. São Paulo: Alaúde editorial, 2012.

BENETTI, M. Análise do Discurso em jornalismo: estudo de vozes e sentidos. In: LAGO, C.;
BENETTI, M. (org). Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. p.
107-122.

BÍLIA, A. T. Gênesis. Português. In: BÍBLIA SAGRADA: edição pastoral. São Paulo: Edições
Paulinas, 1992. p. 15.

FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? Campinas:
Editora da Unicamp, 2013.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas (SP): Pontes


Editores, 2013.

REGAN, Tom. Empty cages: facing the challenge of animal rights. Laham, Mayland: Rowman
and Littlefield Publishers, 2004.

RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Tradução de Jacob A. Pierce. Petrópo-


lis, RJ: Vozes, 2009.

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

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