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Antologia

Semana da Visibilidade Assexual 2020

Contos | Crônicas | Poemas

Outubro 2020
Publicado como E-book pela Kindle Direct Publishing©

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou

reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos autores

ou editores.

Organização

Isabela Marques

Coletivo CakeLovers

Design e Arte da Capa

Ruan Henrick

Aruna Sol

Diagramação

Isabela Marques

Prefácio

Bruna Peres Viana

Revisão

Cleydson Henrique

Evelin Lima

ISBN: 978-65-00-11117-0
Sumário

Prefácio 5

Flamboyant 6

O paraíso caótico da Eva 11

Uma Tarde 21

Mágoa em linhas não ditas 27

Quem Perdoar? 30

Sobre minha infância 31

Contos nunca antes ditos 33

A primeira vez de um assexual 36

Abandono 45

Um pedido de desculpas ao Mar 47

100 pedaços 49

A maré 51

Catando sonhos 52

Tarô 53

Como me convenceram que eu não era linda? 62

Entre piscinas e sonhos 66

— a revolução começa no grito. 69

Crise dos Vinte 70

Poema escuro de uma mente turva 86

O amor é muito complicado 87

Vale a pena lutar? 91

Invocação malsucedida em uma noite de Halloween 92

As três Anas 94

Liberdade 100
Sol 101

Mínimos Detalhes 102

Sobre encontrar quem você é no universo 103

um pouco sobre dor e amor 105

Uma carta para o meu vínculo mais antigo 107

C’est la vie 109

Permita-se sentir 110

Querido Amigo 111

Arrependimento 113

Outra forma de amar 115

Na verdade, eu não queria ser um peixe 117

Pietro e Ramona 121

Pequenos Começos 129

Our Space 145

Agradecimentos 198
Prefácio

Por: Bruna Peres Viana1

A autenticidade e a visibilidade encontradas nas histórias contadas nesse livro

remetem a reflexões e desconstruções pessoais acerca de preconceitos sociais

existentes em relação a orientação sexual Assexual. Flamboyant, o conto inicial, traz a

complexidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade da assexualidade. Carregando em

seu interior contos e narrativas que prendem os/as/es leitores/as ao livro de forma

íntima e sincera.

Escrita por pessoas assexuais, esta obra transcende o egocentrismo e a

heteronormatividade compulsória, revelando diversas formas de amor e de amar ao

próximo. Para quem busca expandir seus conhecimentos sobre diversidade sexual e

de gênero, e principalmente sobre as relações sociais vivenciadas por uma pessoa

assexual, esta criação é profundamente significativa.

Logo, conforme Lewis Carroll em Através do espelho e o que Alice encontrou

por lá,

““Mas se todo mundo obedecesse a essa regra”, disse Alice, sempre pronta para

uma pequena discussão, “e se você só falasse quando lhe falassem, e a outra pessoa

sempre esperasse você começar, veja, ninguém nunca diria nada…””

1
Licenciada em Ciências Biológicas pelo IFSul-CaVG; mestranda pelo programa de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências e Matemática (PPGECM) pela UFPel e cursando especialização pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias na Educação (PPGCITED) no IFSul-CaVG, Bruna Peres Viana
trabalha com diversidade sexual e de gênero desde a graduação.

5
Flamboyant

Escrito por: Mariana Peixoto

“Eu conheci o Gabriel na faculdade, a gente faz História juntos. Ele me convidou

para sair pela primeira vez em abril, me chamou para ir no Edifício Banespa na semana

do feriado, quando a gente não ia ter aula. Eu aceitei, porque estava ansiosa para fazer

amigos, e eu achei que essa era a intenção dele. A gente foi numa exposição que tava

rolando no Farol e depois subimos para o mirante. Quando chegamos lá em cima, ele

pegou na minha cintura, e eu me assustei. Tentei me afastar, mas ele pegou a minha

mão. E eu entendi… E não soube o que fazer, entrei em pânico. Eu nunca tinha beijado

ninguém e nem queria beijar ele. Mas eu não sabia o que fazer. Quando ele me beijou,

eu só… Fiquei lá. Deixei ele fazer o que ele quisesse por alguns minutos. Quando ele

parou, eu peguei o celular, fingi que tinha recebido um telefonema urgente e fugi.”

“Ok, essa é a história do seu primeiro beijo? Mas por que a gente tá falando dela

agora, Lua? Estávamos falando sobre o Pedro.”

“Eu sei. Semana passada eu só sabia falar sobre ele. Por que eu fiquei realmente

muito mal de ter terminado com ele. E aí eu comecei a pensar, e me perguntar, por que

eu terminei com ele? E aí eu comecei a pensar sobre o meu histórico de relações,

tentando achar um padrão. E eu achei que usar esse espaço aqui seria uma boa, e achei

que você poderia me ajudar!”

“Então tudo bem, vamos falar sobre isso! Me parece que você já pensou bastante

sobre, vou deixar você me contar tudo que tiver para contar e a gente continua a partir

daí, ok?”

“Voltando ao Gabriel, eu continuo sendo amiga dele. Até hoje. Ele me beijou

mais algumas vezes, e eu deixei. E fingia que tava tudo bem, porque é o normal, né?

Beijar alguém, ficar com alguém. Ele só parou quando eu comecei a me aproximar do

6
Pedro. Mas antes disso, eu tive mais algumas experiências que eu acho que me fizeram

chegar até aquele episódio.”

“Então você não gostava de estar junto com o Gabriel? Mas fazia mesmo assim?

Isso durou quanto tempo?”

“Foram uns 6 meses. E nesse meio tempo eu decidi que eu só não gostava de

beijar ele, que era um problema por causa daquele primeiro beijo estranho, mas que eu

tinha que tentar com outras pessoas, porque é a coisa certa, o normal, né? E foi o que

eu fiz. Botei na minha cabeça que o problema era que ele é homem. Se eu beijasse uma

menina ia dar tudo certo. Mas eu ainda não sabia o que fazer. E nisso foram-se uns 3

meses, e eu nem pensava nisso mas eu continuava deixando o Gabriel me beijar

quando ele queria, porque eu não queria que ele deixasse de ser meu amigo. Eu não

percebia o quão errado isso era e só fui perceber no dia em que ele queria mais do que

só me beijar… Mas voltando a ideia de beijar outras pessoas…”

“Voltando não, me parece que isso foi algo importante. Ele te machucou?

Aconteceu alguma coisa?”

“Não aconteceu nada, porque pela primeira vez eu consegui dizer não. Eu não

sentia nenhuma vontade de fazer qualquer outra coisa com ele. Nem beijar eu queria.

Ficamos um tempo afastados depois desse dia.”

“Você não se sentia sexualmente atraída por ele? Esse era o problema, e então

talvez você não fosse hétero. Foi onde paramos, certo?”

“Esse termo que você usou, “sexualmente atraída”, isso nunca tinha nem

passado pela minha cabeça. Eu nem chegava a cogitar que existissem realmente

pessoas que pensavam em sexo e que isso era importante. Eu não pensava. Eu pensava

em me apaixonar, em gostar ou não da pessoa e, quem sabe, em beijar ela. Então pensei

que eu poderia não ser hétero, mas não porque eu não me sentia sexualmente atraída

por um homem, e sim por que eu não me sentia confortável beijando ele e por que eu
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não gostava dele do jeito certo. Mas eu parei de pensar nisso. Até que um dia, numa

festa com alguns amigos do Teatro, uma amiga, a Sofia, me chamou para esperar o

Uber com ela do lado de fora da festa. Eu fui. E ela me beijou. Mesma coisa. Eu não

senti nada, deixei acontecer. Ela foi embora, eu voltei para festa e continuei dançando.

Até que um outro amigo meu, o Daniel, veio dançar perto de mim, me pegou pela

cintura e também me beijou. Eu também não soube o que fazer.”

“Dois beijos em uma noite, uma mulher e um homem. E nada. Acho que

estamos chegando em algum lugar… Você já conhecia o Pedro?”

“Eu conheci o Pedro quando eu entrei na faculdade, no mesmo dia que eu

conheci o Gabriel. Ele era meu veterano, e a gente chegou a almoçar junto algumas

vezes nas primeiras semanas de aula. Mas depois eu perdi contato com ele. Então, sim,

eu já conhecia ele esse tempo todo, que foram só uns 6 meses na verdade.”

“Foram seis meses bem intensos! Você nunca falou sobre isso aqui por quê?”

“Eu sempre achei que só estava confusa por causa da faculdade, ou com todas

as mudanças que estavam acontecendo. E que essas coisas iam passar. Eu ia acordar

um dia e sentir atração sexual por alguém, e ia gostar de beijar, e que não era o tipo de

problema que eu precisava conversar com a minha psicóloga. Mas quando eu

finalmente achei que eu tinha achado ‘a pessoa que ia me consertar’ eu descobri que

não tinha nada para ser consertado.”

“Acho que você nunca me contou tudo o que aconteceu. E porque você não

precisa mais ‘ser consertada’? Estou curiosa com o que você descobriu sobre si mesma.

Mas primeiro, me conta sobre o Pedro.”

“Eu reencontrei ele numa festa. E ele tentou me beijar. Eu fiz o que eu sempre

fazia e deixei. Não foi diferente. Eu não gostei. A gente saiu da festa e ficou a

madrugada toda conversando. E ele não me beijou de novo. Isso foi numa sexta-feira,

na segunda, ele me chamou para almoçar com ele, e foi tudo ótimo, a conversa estava
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fluindo super bem, então decidimos sentar numa praça e continuar conversando.

Falamos sobre as árvores que estavam começando a se encher de flores. Foi ele que me

contou o nome da minha árvore favorita naquela praça. Ele não tentou me beijar. E

achei que eu estava gostando dele. Achei que talvez fosse isso, ele não tentou nada, em

nenhum momento, então, talvez, se eu beijasse ele… E eu fiz isso. Beijei ele. Não foi

tão ruim quanto das últimas vezes. Depois disso começamos a sair mais vezes, e eu me

sentia confortável beijando ele. A gente começou um namorinho.”

“Por que vocês terminaram? Você não me explicou isso semana passada,

passamos o tempo todo falando sobre como superar, mas nunca falamos sobre o que

você precisava superar.”

“Tava tudo ok enquanto eram só beijos, andar de mãos dadas e sair por aí

conversando. Mas ele queria mais. E eu não me sentia confortável para isso ainda. Só

que um dia, estávamos na casa dele, conversando e vendo filmes, quando ele começou

a me beijar, e me tocar, e eu sabia onde isso ia acabar. Eu não disse não. Eu deixei. Igual

eu vim fazendo esse tempo todo. Não foi ruim, mas eu também não queria que tivesse

acontecido, não estava tudo bem. Mas eu não disse nada. No dia seguinte eu encontrei

ele, e seguimos nossas vidas como se nada tivesse acontecido. Porque para ele não era

nada. Mas para mim, foi algo que eu não queria que acontecesse mais. Mas eu não

sabia como abordar esse assunto. Ele não fez nada de errado, eu não disse que não

queria. Eu não pedi para ele parar. Isso me atormentou por vários dias, até que eu

parei de pensar sobre. Isso ficou escondido no fundo da minha cabeça, até semana

passada, quando ele queria de novo. Mas dessa vez eu disse não e disse que não via

mais sentido na nossa relação. O que é uma mentira, eu gosto muito dele, eu só não

me sinto confortável e nem tenho interesse em transar com ele. Mas eu terminei.”

“Não tem nada de errado com você e agora você já sabe disso, certo?”

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“Certo. Eu sei que eu só sou assexual. E eu me negava a aceitar isso. Me neguei

por todo esse período em que eu só deixava que as pessoas fizessem o que quisessem

comigo. Quando eu disse ‘não’ para o Pedro eu parei de negar a minha assexualidade

e fiz o que eu queria. E eu me senti tão bem. E na hora eu só consegui associar ele a

uma das pessoas que não quiseram ouvir meu sim, e se contentaram com a ausência

de um não. É por isso que hoje eu já não me sinto tão mal de ter terminado com ele.”

“Acho que você fez a minha parte do trabalho já. E eu fico feliz em te ver se

descobrindo assim!”

“Eu me descobri assexual. Descobri que gosto de beijos e de contato físico. Gosto

de sexo, mas não sinto atração sexual, ou pelo menos não senti até hoje. E tá tudo bem,

eu não sou menos normal por nada disso.”

“E o que você pretende fazer em relação ao Pedro?”

“Eu amo ele e com certeza vou conversar com ele sobre em algum momento,

quando ambos estivermos menos sensíveis com isso tudo. Mas não quero estar em um

relacionamento agora, e não quero estar em um relacionamento com ele. Gosto muito

mais da nossa amizade. Afinal de contas, foi ele que me deu o nome do meu primeiro

conto naquele dia, sentado perto dos flamboyants.”

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O paraíso caótico da Eva

Para aquele que me ajudou a me aceitar e tratar com naturalidade a minha (as)sexualidade,
você sabe que é você, obrigada.

Texto por: Moo

Eva é uma estudante bastante dedicada vinda de uma família comum, que

entrou em um grupo de militância na escola. Nesse momento ela se encontra em uma

reunião sobre alguma manifestação LGBT, como eles ainda chamam por lá. Uma aluna

foi advertida ao dar um selinho em sua namorada na frente da escola.

— Nós iremos fazer um protesto pacífico, como uma parada LGBT, mas

adequada aos padrões da escola, para ninguém ter problema — Eduardo, o presidente

do grupo, inicia. — Nós vamos mostrar que nós existimos e estamos acordados.

Eduardo é o mais velho, repetente do terceiro ano por faltas, ninguém sabe o

que aconteceu com ele. Ele é reservado, ouve e observa a todos e só abre a boca quando

tem certeza sobre a situação é por isso que, dele, só saem boas ideias.

Do lado de Eduardo, Julia registrava tudo na ata, escrevendo cada palavra com

suas mãos hábeis e graciosas. Ela quase nunca fala nas reuniões, mas hoje, ela sentia

que precisava dar sua opinião.

— Com licença — Ela pigarreia e com um tanto de nervosismo solta a bomba:

— Eu não acho que isso seja uma boa ideia. Faz bastante tempo, não vai fazer

diferença — Falou tudo rapidamente e sem esperar a resposta voltou a anotar,

tentando lembrar o que havia dito há segundos atrás. E ela consegue, ela nunca fica

para trás. Se arrependeu profundamente de discordar do garoto. Pelo canto dos olhos,

ela viu as tranças estilo box braids do presidente, que acompanhava seu movimento

inquieto.

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Eduardo, um tanto incomodado e com o ego ferido, gesticula fervorosamente

para si mesmo e depois de se acalmar, no silêncio de todas as mais quatro pessoas

presentes, decide explicar que é melhor do que não fazer nada, que a ideia dele

precisou desse tempo todo para ser planejada minuciosamente e que é o presidente

que julga a melhor ação para ser tomada.

Na última cadeira do auditório praticamente vazio, Ester tirou seus pés da

cadeira a frente, se ajeitou e passando uma certa confiança e segurança disse:

— Eu concordo com a Julia.

— Mas isso é melhor do que não fazer nada, Ester— Allison, a de cabelo

colorido falou dessa vez.

Mas vamos voltar para a Eva, a menina (na verdade, menina é uma palavra

muito forte, mas ela prefere assim) recém assumida assexual e com muita vontade de

mudar a escola. Só que tem um problema: ela faz parte da sigla AP do LGBT e... Não

é tão legal assim.

Para contextualização, há exatos vinte e sete gays, vinte lésbicas, trinta e quatro

bissexuais e cinco trans binários em meio de mais de mil héteros, só no período da

manhã. Como uma assexual estrita panromântica pode sequer ter alguma voz aqui

dentro? E o pior nem foi ser a única no meio de mil, foi ter que informar a sexualidade

no formulário. E tem mais! Como é domingo de manhã no feriado de 7 de setembro,

tinha pouquíssima gente, cinco pessoas para ser mais preciso.

Eva estava só aguardando alguém invalidá-la, já não bastava o Twitter. Os

pensamentos ruins a invadiam e estavam deixando-a mais nervosa e ansiosa do que

normalmente é.

— Foco, Eva. Não é sobre você, tem coisa pior acontecendo. — Ela sussurrou

enquanto respirava fundo fitando intensamente suas mãos e notou que suas unhas

estavam com o esmalte descascado. Eu tenho que tirar isso logo, pensou.
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Nas suas unhas se alternavam as cores da bandeira assexual, preto, cinza,

branco e roxo. Ela tinha pintado na semana passada, numa terça feira, quando se

assumiu assexual (e levou um pé na bunda). É uma história muito engraçada.

—...todo mundo do mesmo gênero se beijar na frente da escola, é uma boa ideia,

o diretor não pode advertir mais de cinquenta alunos de uma vez.

Acho que perdemos muita coisa aqui. Vamos voltar à reunião.

— Essa ideia é péssima. — Ester comentou horrorizada

— Nem, provavelmente vai dar mais gente, o que é melhor ainda — Allison

replicou

— Não, gente— Eduardo, já sentado e estressado leva as mãos à cabeça —

Primeiro que nem um terço do grupo participou da reunião, acho melhor encerrarmos,

cinco pessoas não fazem uma revolução. Outro dia nós retomamos.

Ele se levanta, bate palmas para si mesmo pensando em como era um péssimo

líder, um fracassado e em como não queria voltar para casa.

— Julia, pode encerrar, vamos passar a lista de presença.

Batendo o pé freneticamente no chão, percebeu que tinha que escrever sua

sexualidade, identidade de gênero e pronomes na lista. Ela ficou desesperada, pois foi

a segunda a assinar, todos iriam ver o que ela é. Exceto a Julia, que pensa que ela é

lésbica como ela.

Para Julia, uma das primeiras a ser abertamente lésbica na escola, qualquer

menina é igual a ela. Ela tem isso porque sofre de falta de representatividade, uma

mulher lésbica, muçulmana e marrom. Onde já se viu? Pois é, Julia também não sabe.

Voltando para Eva de novo, pela última vez eu espero.

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Eva é abertamente assexual, mas não é orgulhosa, o jeito que ela “saiu do

aquário” foi bem desagradável, apesar de um pouco engraçado. Em melhores palavras

ela foi sequestrada do aquário. Por gatos fofoqueiros e egocêntricos.

Hoje ela acha engraçado, Eva não é muito de guardar rancor, mas é uma coisa

dela mesmo. Ninguém nunca deveria ser sequestrado de armários ou aquários, ela

nem planejava sequer um dia sair, mas aconteceu.

Há duas semanas, Eva se declarou para uma garota que já gostava há mais de

dez anos, era sua melhor amiga, a Luiza. Como qualquer sáfica, ela era emocionada

em excesso. Passava dias pensando em cafunés naquele cabelo liso e macio, passar as

mãos nas bochechas da amada e conhecer os pais dela, os senhores Kim. Imaginava

sua vida com ela, comendo pizza às quartas e indo para o parque todo fim de semana,

onde poderiam andar de mãos dadas pelo pôr-do-sol.

Imaginava o casamento, que seria na praia, a lua de mel na Coreia do Sul, as

duas na banheira tomando champanhe, uma maquiando a outra para ir em alguma

balada, os dias nos templos. Era tudo (literalmente) um sonho e a Luiza sempre estava

lá. Ela estava, e ainda está, totalmente apaixonada. E nesse momento, nossa Eva se

acalmou só de pensar nela, é o poder que ela tem sobre a garota.

Dois meninos, Lucas e Noah estavam lá na hora, gravando sua lastimável

humilhação e derrota, ao ser recusada por Luiza. As duas meninas estavam no fundo

da escola, supostamente sozinhas. O diálogo foi bem assim:

— O que você queria me falar?

— Ok, então. Não se assuste — disse ela já a assustando— Mas eu meio que

gosto de você.

Luiza ficou meio chocada e sua expressão demonstrava isso muito bem, Eva

queria ter falado que era uma pegadinha, mas adicionou rapidamente, se atropelando

nas palavras:
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— Não fui eu que escolhi isso! Você foi boa demais para mim, você é perfeita e

é exatamente o tipo de garota com quem eu gostaria de passar o resto da vida.

Eva ficou mais animada quando viu a expressão de Luiza ficar mais suave e até

mesmo esboçando um sorriso, então continuou.

— Eu fiz algo para você — e tirou de seu bolso um cartão amarelo com um

poema escrito, que encheu os olhos de Luiza de lágrimas, quando ela o leu.

Eva não queria mostrar para ninguém além de sua amada, então por motivos

de privacidade, os leitores não o poderão ler.

Depois de juras de amor e a felicidade de um amor correspondido, Eva teve seu

primeiro beijo. Ela descreveu como um ato nojento e que nunca iria repetir, mas estava

feliz de ter tido sua primeira experiência com ela.

— Então estamos namorando? – Luiza perguntou, com esperança de que Eva

dissesse que sim, pois todas as suas amigas já namoram e já fizeram sexo.

Nossa amiga aqui é uma romântica sonhadora, com direito a sexo, e todos os

carinhos estranhos nos pés. É uma leitora assídua de romances com cenas quentes e é

basicamente o sonho dela fazer sexo, já que só havia beijado apenas duas mulheres na

vida. Se sentia uma lésbica falsa, queria poder transar para provar a si mesma que era

uma lésbica de verdade.

— Não sei, estamos? — Eva quase gritou de felicidade.

— Acho que...sim?

— Legal — Eva escondeu seu rosto de tanta vergonha e pulou para abraçar a

sua nova namorada, ela sabia que ela gostava de abraços apertados e muitos carinhos,

e desde crianças as duas têm um jeito especial de se abraçarem.

— Então... vamos na minha casa hoje depois da escola? — Ela perguntou

olhando nos olhos de Eva. — Para, você sabe, né, oficializar...


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— Oficializar? Do que você está falando? — Eva perguntou confusa e notou a

vergonha da Luiza que estava corada olhando para baixo.

— Eu sou virgem, Eva. — Luiza disse — Acho que é importante você saber antes

de nós fazermos aquilo.

E então, Eva paralisou. Não tinha contado a melhor amiga e, agora, namorada,

que era assexual, não sentia atração sexual por ninguém.

A descoberta dela foi meio comum e normal demais pois já era familiarizada

com o termo, foi um dia no fundo da piscina, depois de Alicia, sua amiga, ter contado

sua experiência da sua primeira vez.

Foi no verão, nas férias de fim de ano, na verdade. No Mato Grosso sempre é

verão.

Eva se sentiu deslocada, desconfortável e querendo mudar de assunto o tempo

todo. E percebeu, antes de emergir, que sempre foi assim. Ela se apaixonava pelas

pessoas até demais, mas nunca conseguiu entender aquele desejo sexual por alguém,

achava que suas amigas tinham alguma coisa errada ou algo do tipo.

Ela nunca havia pensado nisso, nem sabia se queria fazer sexo um dia. Um flash

de memórias passou pela sua cabeça, e ela e se deu conta que, em 17 anos de vida,

nunca se sentiu sexualmente atraída por ninguém, o que era bem estranho por conta

da puberdade e essas coisas.

E, então, quando Eva respirou fundo, tirou o cabelo de seu rosto e saiu da

piscina, finalmente se sentiu bem.

— Eu meio que não quero fazer isso

— Ué, por que não? Você não me acha atraente?

Meu Deus, deu tudo errado, ela pensou.

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— Não! Quer dizer, sim, eu acho, mas não desse jeito.

— O quê?

— Não de um jeito sexual! E eu não gosto da ideia de fazer sexo. Eu sou

assexual.

E Luiza se sentiu mal, achou que Eva estava mentindo, se sentiu constrangida e

insegura. Como ela iria continuar assim? Precisava encontrar outra pessoa,

urgentemente.

Não pensem que Luiza é uma babaca, ela também tem seus problemas e, no

momento, não se sente confortável compartilhando conosco.

— Então não podemos ficar juntas, como isso pode dar certo? Eu me sinto

atraída sexualmente por você, mas você não se sente por mim. É tão errado quanto um

casal que um usa óculos e outro não.

Eva começou a chorar, ela é bem sensível, e Luiza entrou em pânico e correu.

No fim da tarde, o vídeo havia sido publicado e todos já sabiam da situação.

Inclusive seus pais.

Foi uma conversa bem desconfortável (Eu sei que você já passou por isso e sabe

como é, e se não passou ainda, se prepare), mas no final deu tudo certo. Depois de

passar por todos aqueles olhares estranhos, montagens e comentários na internet e

constrangimento ao ter que explicar toda a vez o que é ser assexual, que nem todo

assexual é igual a ela, que ela pode gostar de uma pessoa e etc, o assunto caiu no

esquecimento.

De qualquer forma, Eva estava voltando para casa depois da reunião, andando

na calçada com seus fones de ouvido no máximo. Seus olhos estavam no chão e ela

estava completamente focada escutando My Chemical Romance quando trombou em

alguém.

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Levantou o olhar e, inalando o cheiro de shampoo de chocolate, percebeu quase

imediatamente que era Luiza.

— Ah, me desculpa. Não vi você aí.

— Oi, Luiza — Eva disse tirando os fones de ouvido.

— Oi, Eva — Ela disse desviando o olhar.

Era uma situação bem esquisita, de longe dava para perceber o clima pesado,

mas, por algum motivo, Eva ainda sente borboletas no estômago quando ela diz seu

nome. Eva já havia superado e estava bem acostumada com esse tipo de rejeição. Mas

é uma história para outros momentos.

— Eu estava indo te ver, soube que você entrou para o grupo — Luiza disse, a

fim de quebrar o gelo.

— Ah. — Eva abaixou a cabeça, envergonhada e olhou para seus pés.

Admite que você ficou feliz dela ter lembrado de você, menina.

— Eu queria me desculpar pelo mês passado, eu fui insensível, eu entendo se

você não quiser mais nada comigo, mas eu precisava te dizer isso.

— Eu te perdoo, já estou acostumada com isso.

— Na verdade, tem mais uma coisa…

Luiza sempre gostou de meninas, teve várias crushes na vida, mas nunca amou

ninguém, até o dia da piscina na casa de Alicia. Quando Eva saiu da piscina, encontrou

Luiza, e elas ficaram deitadas na grama até anoitecer, conversando, brincando… Ela

se sentia segura lá. Agradece às amigas até hoje por terem deixado elas sozinhas. Foi

naquele momento que ela se apaixonou. Sentia uma ligação forte com ela. Foi a

primeira vez que se sentiu assim.

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— Depois daquele dia eu pesquisei mais sobre isso, sobre o que você é e eu

descobri a demissexualidade.

“Quando você me disse que não sentia atração sexual eu me choquei, porque

eu meio que também sou assim, mas de um jeito diferente.

Eu sabia que era lésbica desde o início, mas... nós crescemos e quase todas as

minhas amigas já fizeram sexo com outras mulheres, e eu não. Por causa disso, eu não

me sentia lésbica o suficiente, porque nunca achei ninguém com quem eu sentisse que

queria transar. Nunca senti vontade de me relacionar com ninguém, simplesmente

porque eu não conhecia elas, não conhecia suas essências.

Eu entendi você, de um jeito profundo, me identifiquei e depois de uns dias eu

comecei a, meio que, olhar você de um jeito diferente...? Eu tive uns sonhos quentes e

aí que eu fiquei mais confusa ainda.

Conversei com meu amigo e ele disse que ele também era demissexual e me

mostrou esse mundo. Eu venho te evitando porque eu estava com vergonha de ficar

perto de você e porque eu fui muito idiota com você.”

— Nossa, isso é muito estranho. — Eva fala depois de processar as informações.

— É, eu sei.

— Mas ao mesmo tempo é muito legal! — Eva abraça Luiza — Eu tô muito feliz

que você se descobriu, sério.

— Eu também, obrigada por me ajudar.

Nessa hora Luiza vira seu rosto e seu olhar se encontra com o de Eva. Foram

segundos que pareceram horas, era como se estivessem hipnotizadas uma com a outra.

Suas respirações se misturaram e seus narizes se tocaram.

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Eva sai daquele momento extremamente vergonhoso, já que as duas ainda

estavam estranhas. Ela estende a mão e pega a de Luiza. O toque a deixando sensível

e apreensiva. Elas não sabiam se iam voltar, ou melhor, começar, a namorar de novo.

E se um dia ela quiser transar? Ela vai me deixar? Ela pensou.

— Para onde você estava indo?

Eva não precisava perguntar para saber que ela também não queria falar sobre

essa situação. Conseguiu perceber pelo sorriso torto, quando olhou para ela de relance,

antes de puxar Luiza para que andassem juntas. Ela a conhecia bem demais para saber

também que a menina precisava de um tempo. Ambas precisavam.

— Não precisa me contar. — Disse Eva e parou. Ficou na frente dela, juntou

coragem. — Estou aqui por você.

Luiza sentiu a honestidade nas palavras de Eva e sabia que podia confiar nela,

sempre soube.

E as duas meninas apaixonadas, ainda um pouco inseguras por causa daquela

situação que aconteceu duas semanas atrás, andaram sem rumo. Elas sabem os

conflitos que as esperam, mas decidiram aproveitar a presença reconfortante uma da

outra e decidiram deixar para depois.

E foi assim que começou o paraíso caótico da Eva.

Fim.

20
Uma Tarde

Escrito por: Nícolas Emílio2

É meio dia em ponto e eu já posso sair para meu horário de almoço, mas estou

esperando meu namorado, que aparentemente não chega nunca. Odeio ter que

esperar, sou muito impaciente e já estou ficando irritado. Porém, ao olhar pela vitrine,

vejo seu cabelo castanho por entre as pessoas da rua e assim, toda tensão se dissipa.

Sou apaixonado pelo seu novo corte de cabelo que ficou perfeito para seu

formato de rosto e o mais engraçado é que ele é o único da cidade com esse corte, já

que se inspirou em um ator turco, acho que o nome era Burak alguma coisa. Sua

sobrancelha grossa e seus olhos castanhos esverdeados sempre me surtiram um pouco

de inveja, visto que são perfeitos e mesmo de longe me chamam atenção.

Ele entra na loja e eu nem percebo, pois me distraí pensado na sua fisionomia.

— Oi amor, desculpa a demora. Tudo bem?

Eu me assusto, mas não demonstro e apenas respondo que sim com a cabeça.

— Vamos almoçar ? — Eu pergunto rapidamente, já que estou faminto.

Ele ri e fala — Que apetite, hein? É magro de ruim.

Eu dou um soquinho em seu ombro e depois olho em seus olhos e o beijo.

Seguimos para o restaurante que fica na esquina, a comida de lá é tão gostosa

quanto a da minha avó e eu amo passar esse tempinho das minhas quintas na

companhia dele. Conversamos sobre nossos planos de ir para a praia no fim de

semana, e logo fico animado em sentir a brisa do mar e a areia em meus pés.

2
Insta: @nicolass_emilio

21
Após o almoço, Lucas retorna para o trabalho, e eu percebo que minha bateria

está em 8% e com certeza não vai durar o resto da tarde. Decido, então, dar um pulinho

em casa para pegar meu carregador. No caminho, vejo algo completamente estranho

e fico paralisado, meus olhos começam a lacrimejar e eu entro em pânico. Minha única

reação é sair correndo.

Chego em casa ainda chorando, tentando me concentrar para explicar para

minha mãe que minha irmã estava falando com um menino exatamente igual a mim.

Estou confuso e pela minha cabeça se passam muitos cenários. Será que tenho um

irmão gêmeo? Como puderam esconder isso de mim? Será que minha mãe sabe?

Entro pela porta da frente e vou direto aos quartos, depois sala, cozinha e, por

fim, decido procurar na rua. Finalmente avisto minha mãe na garagem, parada em

frente ao marco da porta que leva até a parte de trás da casa. Corro em sua direção e

antes mesmo de olhar para qualquer lado começo a falar tudo sem omitir detalhes.

Então, percebo que ela simplesmente não ouviu nada do que eu falei e ainda está

parada olhando para algum ponto às minhas costas. Viro e sinto um embrulho no

estômago ao me deparar com o rosto pálido de minha irmã, do outro lado da garagem.

Ao lado dela está uma mulher idêntica à minha mãe, morta no chão. Há muito sangue,

e assim como minha irmã eu também fico sem reação.

Agora, estou mais confuso do que antes, mas consigo de alguma forma pousar

minha mão sobre o ombro de minha mãe e perguntar o que aconteceu. Ao tocá-la, sinto

como se houvesse reativado seu sistema, despertando-a de alguma forma. Nesse

instante ela começa a chorar e pede para que minha irmã se afaste do corpo.

Ainda pálida, minha irmã obedece, vem em minha direção e me abraça. Acho

que por ela ser mais velha pensa que precisa de alguma forma me proteger do mundo.

Eu não falo nada, em outro momento talvez escorregasse do abraço para algum outro

canto, mas agora isso me conforta.

22
Acabei de perceber que fui tão afoito em contar o que vi, que nem percebi que

minha mãe está machucada e suja de sangue. Ela está muito nervosa e inquieta. Peço

então, para que ela nos explique o que aconteceu.

Ela começa dizendo que estava preparando o almoço quando ouviu alguém

chamar seu nome na garagem.

— A voz era igual a minha e quando cheguei lá ela também era... igual a mim.

Fiquei assustada e perguntei o que ela queria, mas ela simplesmente partiu para cima

de mim sem dizer nada. — Após uma pausa, ela continua — Ela estava com essa faca

e tentou me atacar, eu juro, eu não queria, eu só ... só a empurrei e depois acho que

acertei ela com a tesoura de aparar arbustos. Eu juro que não queria matá-la.

Neste momento eu me solto do abraço de minha irmã e tento replicar o gesto

em minha mãe que está trêmula, na esperança de acalmá-la. Ouvimos então o portão

da casa abrindo e várias vozes se aproximando, ficamos preocupados. Só então, eu

percebo que se minha irmã estava em casa, não era ela falando com meu outro eu.

Sendo assim, poderiam ser eles entrando para nos matar. Pensar nisso apenas piora

tudo.

As vozes se espalham pela casa e começamos a ouvir gritos. Tem algo muito

errado acontecendo e não podemos ficar parados aqui. Em segundos vejo o

inconfundível cabelo castanho passando pela porta da cozinha, seu semblante não é o

mesmo de sempre, suas sobrancelhas estão tensas e seus olhos alertas. Ao me ver, ele

dá um sorriso de alívio que some e dá espaço à uma boca semiaberta e inexpressiva.

Acho que ele percebeu o sangue em minha mãe.

Ele logo murmura algo.

— Você é você?

23
Eu estranhamente fico aliviado em saber que ele entende o que está acontecendo

e respondo imediatamente — Sim, eu sou eu.

Antes que ele possa falar qualquer coisa, vejo atrás dele uma silhueta escura que

apresenta o inconfundível corte. Eu grito o mais alto que posso para ele se virar, mas

rapidamente ele é acertado por um golpe em sua nuca e desaba sobre o balcão da

cozinha.

Por sorte, minha mãe havia deixado uma faca de cortar carne exatamente ali e

ele consegue pegá-la para se defender, no entanto, está tonto demais e o Outro acaba

tomando a arma de sua mão após uma tentativa de golpe frustrado. Neste instante eu

vou em sua direção, mas minha irmã segura meu braço. É tarde demais.

O Outro acerta a faca em sua barriga e fica olhando Lucas cair no chão, eu entro

em desespero enquanto sinto todos meus sentidos se esvaindo de mim, a sensação de

impotência toma conta do meu corpo e de meus pensamentos. Eu não sinto meu peso,

meus pés ou qualquer outra parte e eu nem sequer existo naquele instante. Existe

apenas aquela mancha de sangue em sua camiseta e o olhar que me cobre e me toma.

O Outro vem em minha direção com um sorriso de quem ganhou na loteria.

Imediatamente, com o resquício de vida que ainda lhe sobra, Lucas retira a faca de

seus abdômen e com um salto rápido consegue projetar a faca sobre o lado direito do

pescoço de seu sósia. Ambos caem no chão, e eu corro em sua direção.

O sangramento está muito intenso e em suas últimas palavras ele tenta me

reconfortar

— Já consigo até me ver no posto de gasolina do outro lado do mundo com um

esparadrapo na barriga — e, por mais que a morte neste momento não seja algo

opcional para ele, consigo sentir paz.

24
Seus olhos perdem a vida sem que eu possa dizer que o amo, e por mais que eu

tenha dito isso tantas vezes, agora todas elas me parecem ter sido insuficientes. Sinto

uma lágrima escorrer sobre meu rosto.

Mais pessoas apavoradas e, aparentemente, fugindo de suas cópias, começam a

passar correndo pela mesma porta por onde, há pouco, o Lucas havia passado, ainda

em vida. Tudo parece mentira, tudo aconteceu tão rápido. Eu o amei desde o momento

que o vi pela primeira vez na escola, foi meu primeiro amor adolescente. E agora,

olhando ele deitado no chão sem vida, nem parece que nós estávamos organizando

nossa viagem para passar nosso aniversário de namoro, são quatro anos juntos. Ou

foram, eu não sei.

Nosso namoro sempre foi um motivo de piada e incompreensão. Eu sou

assexual e nem todo mundo entende, mas ele entendia. Ele, ele segurava a minha mão

e falava que tudo ia ficar bem, ele sempre me protegeu...

Minha mãe me puxa para trás e me tira daquela realidade, me chamando de

volta ao caos. O medo e a vontade de sobreviver são tão grandes que nos fazem seguir

correndo.

Quando finalmente conseguimos chegar ao fim do terreno, enfrentamos o

obstáculo de pular um muro de 2 metros de altura e, por mais que seja difícil, alguns

conseguem com facilidade, outros, como minha irmã, precisam de ajuda. Eu estou

apavorado, consigo sentir a morte caminhando em nossa direção e não podemos

perder tempo com pequenos erros. Eu vou primeiro, sentando sobre o muro, e estendo

uma de minhas mãos para ela se segurar ao tomar impulso e pular por cima.

Conseguimos chegar ao outro lado sem grandes ferimentos, então escuto vozes

mais desesperadas, e de cima do muro, consigo vê-los chegando em uma marcha de

confiança e soberania.

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Sinto um tremor que me deixa tonto, passei tanto tempo tentando ajudar minha

irmã que acabei perdendo nossa mãe de vista e, então, ao passar o olho ao lado dos

que ainda estão dentro do terreno, eu a avisto, de blusa vermelha, ela está com muito

medo e tenta subir de todo modo. Neste mesmo momento os Outros começam a atirar

nos que estão tentando escapar. Entrego uma pedra para minha irmã e falo para ela

tentar chamar atenção para que eu consiga puxar nossa mãe, e assim o fazemos, eu

corro para um lado e ela para o outro.

Me preparo e vou, é tudo muito rápido e lembro de cair de costas e ficar sem

fôlego por segundos, mas minha mãe está viva. Enquanto estou deitado no chão ainda

tentando respirar, e escuto um som alarmante.

E então, vejo minha irmã cair ao chão.

26
Mágoa em linhas não ditas

Escrito por: Juv

Gritaram na minha cara a minha fraqueza

Eu quis espernear que era mentira

Pois ninguém conhece minhas dores mais do que eu

E doeu no meu orgulho já morto

A ansiedade fica presa em meus ossos

Desgastados pela fragilidade

Dentro de mim eu sinto os vermes se revirando

Do mesmo jeito que estariam em meu túmulo

Meu estômago estala quando lembra da nossa catástrofe

Queria ter feito diferente

Queria ser diferente

Porque eu não existo mais

Parti das memórias

Dos cacos no chão

Apagada das fotos

Acordo e me sinto como um nada

E já não consigo mais fechar os olhos

Minhas personalidades vão girando

Querendo ser alguém

Alguém que não seja justamente eu

Eu acho injusto

O que faço comigo

27
Não merecia

Ou foi devidamente servido?

Tentei milhares de vezes

Ou talvez eu nunca tenha tentado sair do lugar

Vivo fodendo com tudo

Mergulho em puro arrependimento

Sinto ódio

Sinto amor

Sinto falta

De mim

Não me olhe com pena

Me enoja esse reflexo nos seus olhos

Quero que gostem de mim

Quero ser a primeira na fila

Quero ser a melhor amiga

Onde eu vejo é tudo amarelo

Como mostarda

Em grande excesso

É exaustivo

O gosto amargo permanece na boca

Vou engolindo palavras

Poesias inacabadas

É meu veneno que engasga

É cansativo lembrar

Que você é só alguém que eu conhecia

Isso não é sobre a saudade de você


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É de quem eu conseguia ser

Me disseram que eu não estava lutando

Meu ego chorou sangue

Porque ele já não aguentava continuar sem motivos

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Quem Perdoar?

Escrito por: Abroba Lima

“Perdoar não é esquecer” essa é a primeira coisa que me vem na mente sobre o

assunto. A segunda é: “já me perdoei por aquele erro?”

Perdoar pode ser, e geralmente é, muito difícil, porque significa que o assunto

se encerrou, que não se tem mais sentimentos negativos. Perdoar não é esquecer, não

é voltar no tempo, os aprendizados ficam, a situação ou quem a provocou vai. Mas, e

quando a pessoa que errou é você?

Auto perdão é o mais difícil, não existe nenhuma outra pessoa que te conheça

tão bem e que nunca vá te deixar; além de você, qual é a outra pessoa que conhece

todos os seus defeitos e erros? Quem te lembra de cada um deles todo dia? Do que

adianta receber o perdão de alguém se você ainda se culpa?

Por exemplo, se um relacionamento se desfez por uma falha sua, na próxima

vez você tentará não repetir o erro, correto? Mas, se você evita se relacionar porque

tem medo de errar, é necessário que se perdoe. Evitar e corrigir são atitudes práticas a

se tomar, mas pensar sobre e se perdoar são os primeiros passos para melhorar e

crescer.

Quem perdoa, quem consegue perdoar, sobe um degrau na escada imaginária

do amor próprio e do autocuidado, é necessário refletir, se conhecer, por isso digo que

perdoar nunca é fácil, mas sempre é bom.

30
Sobre minha infância

Escrito por: Mari

Em um bairro com nome de santa. Em uma pequena casa amarela de andar

viviam três pessoas. Uma garotinha com grandes cílios e cabelos longos, quase preto,

e ondulados. Uma mulher branca e de olhos cor de mel. E uma senhora baixa e gorda

que sempre preparava refeições com todo amor que poderia dar.

Mari, Lili, e Rosa

Filha, mãe e avó.

Na casa amarela também vivia um cachorro de pelos alvos e enrolados. Por ter

patas curtas ele nunca alcançava o segundo andar. A menina achava engraçado .

O melhor dia do ano era São Cosme e Damião. Os quatro primos de Mari viriam

e Rosa teria todos os seus netos reunidos.

Durante a tarde, as crianças tinham permissão de seus pais para percorrer

algumas quadras e pegarem doces de seus vizinhos católicos.

Andar pelas ruas, descer ladeiras e se equilibrar em calçadas era uma

verdadeira aventura para as mentes infantis de Mari e seus primos.

Ao voltar para casa todos estavam felizes pelos doces que haviam pego durante

o dia. Rosa recebia todos com abraços, beijos, salgados feitos por ela e refrigerante cor-

de-rosa.

Os netos diziam obrigado a avó pelo lanche, então sentavam-se ao topo da

escada e comiam. Esse, com toda certeza, era para eles o melhor lugar da casa, onde,

nos degraus mais altos, eles tinham discussões bobas do porquê as suas respectivas

mães faziam a melhor comida.

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Do alto podiam ver seus pais assistirem televisão e sentir o cheiro de alho e

cebola que vinha da cozinha. Rosa estava preparando o jantar.

À noite as crianças sentavam-se no chão da sala e comiam, enquanto os seus

pais jantavam na mesa.

E no fim do dia, Mari se despedia de seus primos e tios, pois já iriam embora.

Lili acompanhava a filha até o segundo andar. Sentada na cama, Mari tinha seus

cabelos trançados pela mãe. A menina deitava e dormia.

Então, o dia acabava.

32
Contos nunca antes ditos

Escrito por: Sirius

Dizem que tudo pode se contar aos pais

Mas os meus sabem meu nome e nada mais

Há muito que escondo meus medos e vontades

Pânico e desejo

Não sei se quero que sejam realidade.

A solidão e o medo dela, todos sabem

Mas a dor e o desespero que sinto,

Disfarço para que me passem,

E que ignorem o que nunca foi dito.

A insegurança de ser quem sou me tormenta,

A insuficiência me turva a vista como névoas no cais

Queria saber me impor como o sol me orienta,

Só sei meus medos e nada mais.

Nas músicas, escrevo a morte,

Pois nela mais anseio.

Mesmo que eu tenha grande porte,

Me sinto pequeno em juvenis devaneios.

Acaso se pergunte o porquê da música nos fones em altos decibéis,

Respondo com o objetivo

Serviam para abafar os pensamentos cruéis

Formados numa mente de um corpo exaustivo

Apaziguam, então, a dor e o sofrimento

Causados pela mente incessante

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Pois mesmo na paz do mirante

Se ouve o grito no vazio de dentro.

E sonho pela minha liberdade

De poder ser eu mesmo sem medo,

Mas choro no banho com a realidade

Pois todo dia, ainda é cedo.

Digo tudo a todos, sem medo de esconder

E para isto me recordo

Minhas linhas tenho que escrever

Então suspiro e não demoro

"Um dia novo, é o amanhã"

Me digo de noite ao repousar

Mas olho a aranha tecelã

E decido mais um dia lutar.

Me pergunto então

O que posso não ter contado a alguém?

Na busca da resposta, refeito no chão

Então percebo no além

Mais longínquo na memória vigente

A dúvida maior nunca feita a ninguém

Quem sabe algum dia eu ache a resposta

"Quem sou eu?"

Mas não tenho o resultado pra pergunta imposta.

E nos olhos ficam a marca

Do cansaço de viver uma vida autarca.

A realidade.

Ato de maior crueldade.

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Canso só de pensar

No que ainda tenho que enfrentar

Acho que meu problema é esse

Luto e disfarço meus problemas

Sem pra ninguém relatar

E reclamo sem justificativa

Pois meus contos, no meu peito habita

Contos com diversos dilemas

Esquecidos no repousar

Impedidos pelo cansaço da vida

Ouso então não reclamar,

Pois logo chega o amanhã

E como a aranha tecelã

Tenho que continuar.

35
A primeira vez de um assexual

Escrito por: Daniel Borges

A perda da virgindade é um assunto de alta relevância para um adolescente no

ensino médio. Veio-me essa lembrança faz pouco tempo. Hoje, com meus 30 anos,

casado e com um filho, me pergunto: quando o meu filho chegar à idade em que eu

perdi a minha virgindade, ele vai viver a mesma situação que eu vivi? Espero que não.

Depois dessa experiência fiquei um tempo sem me envolver, até encontrar outra

mulher que eu realmente gostasse. Eu tive outros relacionamentos onde tive

experiências sexuais maravilhosas, Mas a primeira ocorreu em meio à descoberta da

minha orientação sexual. Vai ser estranho o que irei relatar, mas... sou assexual. Bom...

Você deve estar se perguntando como um homem assexual é casado e tem um filho

biológico? A sexualidade é muito mais complexa do que imaginamos.

A compreensão da minha orientação teve seu início depois desse

acontecimento. Eu estava no ensino médio, e os assuntos que rolavam nos corredores

da escola eram, majoritariamente, sobre sexo: perda da virgindade, quem transou com

quem, onde transou, com quantos transou...

Eu tenho um grande amigo, nos conhecemos desde a pré-escola. Ao contrário

da minha, sua vida sexual era bastante ativa. Sei disso, porque ele vivia me relatando

seus feitos e também os comprovava por meio de fotos e gravações do seu celular, sim!

Na adolescência ele era daqueles rapazes que gravava escondido, sem o com

consentimento das meninas; só com a promessa de não mostrar para ninguém, mas

acabava mostrando para os amigos depois. Quando não tinha nenhuma menina que

quisesse “dar para ele”, ele tentava encontrar rapazes ou prostitutas. Mas nesses dois

últimos casos ele não gravava e nem mencionava para ninguém, exceto para mim e

mais dois amigos em quem confiava.

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De vez em quando meu amigo me convidava para ir aos puteiros, mas eu

recusava. Às vezes ia em algumas festas ou em encontros combinados com algumas

garotas. Em um determinado momento ele me veio questionar se eu realmente

gostava de mulheres. Falei:

— Gosto! Mas não me vejo transando da mesma forma que você transa com as

garotas.

— E por homens, você sente alguma coisa?

Meu rosto ficou corado com a pergunta por achar que nunca a escutaria.

— Nunca me vi transando com homem.

— Quer experimentar?

— Não!

— Mas você não sabe se gosta ou não.

— Não me vejo fazendo isso.

— Nunca ter se imaginado fazendo, não responde se você vai gostar ou não...

Você só vai saber quando fizer.

Fiquei irritado com tal ideia.

— Nunca me interessei por homens!

Deixei meu amigo conversando sozinho. Quando cheguei em casa, fui direto

para o meu quarto, ainda enfurecido, mas, aos poucos, fui acalmando e refletindo

sobre a questão. De fato nunca me atraí por homens. Eu nunca fui atrás de mulheres,

mesmo sentindo vontade de tocá-las. Nunca...

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Novamente essa questão sexual me perseguindo... Seria tão simples se cada um

vivesse sua sexualidade e a não a alheia... Não entendo essa necessidade de você se

provar para os outros quanto a sua sexualidade.

No dia seguinte, na sexta-feira, fui para escola e não dei muito papo para o meu

amigo. Quando bateu o sinal para o intervalo ele veio falar comigo. Ainda estava

irritado com o ocorrido:

— Tudo certo com você?

— Sim.

— Desculpa pela conversa de ontem. Não queria te deixar incomodado.

— Não quero entrar nesse assunto.

— Certo... Eu saí com uma menina da escola no final de semana e ela quer se

encontrar de novo comigo nesse fim de semana.

— Que bom.

— Ela vai me esperar na casa dela com outra amiga e me perguntou se eu tinha

um amigo para fazer companhia para ela, você topa?

Não estava interessado, mas queria saber como era.

— Topo.

— Certo! Vai ser no sábado. Te pego na sua casa e vamos para lá de noite, pode

ser?

— Pode.

Dormi com certo pesar aquela noite, será que eu realmente queria fazer aquilo?

Um turbilhão de pensamentos me envolveu naquele momento.

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Quando o sol se pôs no horizonte, naquele sábado, dando lugar a um degradê

de tons que chegava ao preto, meu amigo apareceu em casa. No percurso ele me

comentava sobre o último final de semana, e eu mais uma vez escutando já sem muita

animação.

— Vai estar ela e a amiga? E os pais dela?

— Foram viajar.

Chegamos à casa. O meu amigo chamou, e de lá saiu uma menina baixa, ela

estudava na mesma série que a nossa, porém em uma sala diferente. Ela já tinha uma

fama pelos corredores de gostar de se “esfregar” com os garotos em certos cantos da

escola, contudo eu nunca me interessei em saber mais sobre ela, apenas a via por lá.

Atrás dela estava outra menina, olhando pela fresta da porta.

— Olá, gurizis. Vão entrando.

O meu amigo entrou primeiro e lhe deu um selinho, eu fui atrás sem saber bem

o que fazer. Ela olhou, deu um sorriso e me beijou na bochecha. A menina caminhou

na frente, abriu a porta e apresentou sua colega. Era uma menina de outra escola, que

estudava na mesma série que a nossa.

Caminhamos até o sofá e eu e meu amigo nos sentamos enquanto elas iam para

cozinha pegar pipoca e refrigerantes. Entre risadas e comentários engraçados,

assistimos a um filme. Nesse momento o meu amigo e a menina já estavam nos

amassos mais libidinosos. A luz da tv iluminava o ambiente e a pipoca estava pela

metade, assim como o refrigerante.

Num determinado momento os dois se levantaram e foram na direção da

cozinha e depois desapareceram, só alguns segundos depois escutei o barulho de uma

porta fechando. O filme era bem longo e eu e a amiga da anfitriã estávamos sentados

estáticos, olhando para a tv.

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Começamos a escutar uns gemidos na casa. O filme acabou juntamente com o

refrigerante e as pipocas. A menina se levantou e foi retirar o filme, eu estava tenso,

não sabia como agir; ela se sentou no sofá e ficou olhando para seus sapatos. Neste

momento não me aguentei e falei:

— Onde fica o banheiro?

Ela olhou para mim e com a mão fez um gesto na direção da cozinha e disse:

— Logo depois da cozinha, na primeira porta.

Fui até o banheiro, os gemidos ficavam mais altos conforme eu caminhava.

Entrei no banheiro e fiz o que precisava. Nesse momento os gemidos ficaram mais

fortes. Saí de lá e fui até a sala. A tal amiga estava recolhendo os potes de pipoca e as

embalagens de refrigerante. Ela parecia desconfortável, da mesma forma que eu.

Estava assustada e sem saber para onde olhar, a cada gemido seu rosto ficava mais

corado e de vez em quando olhava para mim, nervosa.

— Oi, você não estuda no mesmo... — Ela não me deixou terminar.

— Sou de outra escola.

— Quer que eu... — me interrompeu novamente.

— Não precisa, só vou arrumar aqui e vou sair. — disse, constrangida.

Quando terminou a frase, os gemidos cessaram. O silêncio se apossou do

ambiente. A menina estava inquieta e eu não sabia o que fazer. Alguns minutos depois,

saíram o meu amigo e a outra menina caminhando cansados em direção a cozinha,

talvez para beber água.

Percebendo que nada parecia ter acontecido e observando sua amiga que saía e

entrava da cozinha para arrumar as coisas, ela murmurou algo para meu amigo. Ele

arregalou os olhos e disse algo em resposta, ela reagiu da mesma forma e os dois riram.

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A menina foi até a amiga, a levando para o quarto, e depois nos encaminhou até a

porta da saída. Ela disse algo para o meu amigo e então se despediu.

Quando estávamos indo em direção à minha casa, meu amigo me disse,

balançando a cabeça ora em negação, ora em princípio de riso.

— Não sabia — disse ele.

— Do quê?

— Que a amiga dela também era virgem. — depois que falou isso deu uma

risada e ficou um tempo olhando para o horizonte — Sabe de uma coisa... Essa noite

você irá perder a virgindade!

— O que você está pensando?

— Acabei de ganhar um dinheiro adiantado do pai por consertar alguns carros.

Vamos num puteiro? Eu pago para você.

Fiquei sem saber o que dizer, mas como me encheram tanto o saco sobre esse

assunto estava decidido a perder a minha virgindade naquela noite.

— Vamos!

— Beleza.

O meu amigo pegou o celular, abriu um aplicativo de carona. O veículo chegou

rapidamente e a viagem também não demorou muito. Estávamos muito quietos em

todo o percurso. O carro parou perto de um sobrado na avenida principal da cidade,

onde funcionava um bar e na esquina da rua havia uma porta com um interfone. Meu

amigo apertou em um dos botões e, em alguns minutos, uma voz saiu do aparelho:

— O que desejam?

— Queremos seus serviços. — Meu amigo falou.

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— Qual a idade de vocês?

— Nós dois temos 18 anos, saímos agora pouco do quartel, Clara.

Após alguns instantes e um barulho automático que indicou o destrancar do

portão, entramos e vimos uma escada que dava acesso para outra porta que, enquanto

subíamos, foi aberta por uma mulher magra, baixa e de cabelo curto. Ela nos esperava

com um sorriso social e cansada.

No recinto haviam três sofás verdes e um tapete vermelho. De onde estávamos,

podíamos ver duas portas no fundo da sala. A moça nos cumprimentou e indicou um

dos sofás para sentarmos. Sentamos, e ela perguntou:

— Qual forma de pagamento?

— Dinheiro. — Meu amigo respondeu.

— 30 reais meia hora.

— Certo. — Tirando 60 reais da carteira.

A moça entrou em uma das portas e ficamos esperando.

— Ela é a Clara? — Eu perguntei.

— Sim.

— Por que foi só você falar o nome dela e a porta abriu?

— Esse é o nome verdadeiro dela. Ela geralmente dá o nome de ofício, apesar

de ser a cafetina daqui. É proibido entrar menores de idade, ou seja, a gente, só que eu

sei o nome verdadeiro dela, já que venho aqui há algum tempo, sou de confiança da

casa e não arranjo problemas.

A moça abriu a porta e fez um sinal para que a seguíssemos. Entramos num

outro recinto, que era uma cozinha onde estavam algumas prostitutas fazendo um
42
lanche. Continuamos até outra porta, que se abriu em um quarto com uma uma tv em

cima de uma mesa de cabeceira e uma cama de casal. Entramos no quarto e a moça

disse:

— Vamos apresentar as mulheres aqui e vocês escolhem de acordo com suas

preferências. — E saiu fechando a porta.

O meu amigo sentou na cama e ficou olhando para TV, onde passava um filme

pornô. Eu estava nervoso encostado na parede. A porta foi aberta, era novamente a

moça da recepção, porém atrás dela havia cinco mulheres usando apenas roupas de

baixo. A moça entrou e apresentou as mulheres para a gente, meu amigo virou o rosto

e mirou com o indicador quem ele gostou.

Nesse momento senti uma estranheza que só iria aumentar à medida que o

tempo passasse ali, mas que eu não sabia descrever. O meu amigo deixou o quarto

com a mulher e a moça me olhou com aquele sorriso social e cansado.

— Se não tiver alguma do seu agrado pode esperar que lhe apresento outras. —

A moça disse saindo do quarto junto com as quatro mulheres.

Estava sozinho no recinto. Aquela sensação começou a crescer e eu não sabia o

que era. Estava escolhendo um ser humano como se fosse escolher um pedaço de carne

no açougue?! É uma pessoa como eu! Eu estava lá fazendo isso?! Uma sensação de nojo

começou a se apossar de mim somando-se a minha ansiedade, que no momento só

aumentava.

Escutei duas batidas na porta que, logo em seguida se abriu. Clara entrou junto

com outras mulheres e antes que pudesse apresentá-las, num momento quase

instintivo, falei quem queria. A mulher me olhou surpresa e então suspirou. Eu e a

menina refizemos o caminho anterior até chegarmos à segunda porta da sala.

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Ao entrarmos, havia um corredor de madeira com várias portas e ao fundo, um

banheiro. Direcionei-me para o banheiro, para me lavar, e posteriormente a mulher me

levou para um dos quartos. Ela pediu para que eu esperasse um pouco.

Sentei na cama e no canto tinha outra TV, também passando um filme pornô.

Quando ela retornou, envolta em uma toalha, eu já estava de cueca. Ela me deu uma

leve empurrada em direção à cama e tirou a toalha, parando para pegar a camisinha

em uma gaveta na cômoda onde estava a TV.

Eu estava muito nervoso e era muito difícil ficar excitado, mesmo que a mulher

fosse muito atraente. O que me ajudou foi ver o filme pornô.

Ela colocou a camisinha em mim e começou a fazer o oral. Ainda assim, não

senti nada. A ausência de desejo e a sensação de nojo se intensificaram à medida em

que ia transando com ela. Cavalgada, de quatro, de lado, e eu não sentia nenhum

prazer. O que sentia, é estranho relatar, era um grande nada. Em um determinado

momento ela olhou para um relógio da parede e disse:

— Faltam cinco minutos.

Aquilo foi tão broxante que fingi ter um orgasmo para poder sair dali. Despedi-

me dela. Encontrei com meu amigo que já me esperava na sala junto de Clara. Nos

despedimos e fomos embora.

— E aí? O que achou?

— Muito bom.

— Legal! Esse é só o começo, depois você pega a prática.

Nunca mais retornei.

44
Abandono

Escrito por: Acey G.

Dói

Saber que você me deixou

Mesmo depois de tudo

Dói

Saber que nunca significou nada

Dói

Lembrar de cada momento

De cada vez que ri contigo

Dói

Sentir a tua falta

Apesar de tudo

Dói

Perceber que eu era

E ainda sou dependente

Dói

Saber que nunca foi realmente meu amigo

Dói

Perceber que não te faço a menor falta


45
Mas, acima de tudo

Dói

Não ser eu a ter partido.

46
Um pedido de desculpas ao Mar

Escrito por: Ingrid Rodrigues

Quem já viu mergulhou quem sabe

Quem nadou e procurou, dos mares ganhou]

Barcos pesqueiros sem consciência

das mães sequestram, dos filhotes tiram a vida

Houve aquele que sobreviveu

Ganhou nome de amizade [relações amigáveis]

No mundo do mar ou landia ficou preso

Em paredes de ferro atacado pelos que já tinham sido levados e maltratados

A ganância humana:

Mente

Maltrata

Abusa

Cala

Mente

Maltrata

Abusa

Cala

Ment...

A gaiola é maior mas ainda é prisão

Exibido como divertimento drogado abusado

Espancado trancafiado abandonado

Vivendo com Kasatka de quem levaram o filhote

Kasatka que gritou durante dias]

Vem cientistas para identificar o som

47
[Onde está meu bebê?]

Sem consciência? Não totalmente

Quando precisam de um assassino ele serviu

Quatro mortes

No parque ainda existem filhotes dele

Ferido humilhado e abandonado no fim]

Quem no mar viveria em família

Quem no mar morreria com sete décadas

O corpo servindo de ciclo para o oceano

Presente nas relações amigáveis das águas

Pedimos desculpas ao mar

Perdão, Tilikum.

48
100 pedaços

Escrito por: Tassiane Ramos

Eu sou o que pode ser considerado uma pessoa completa, com um corpo,

espírito e alma, mas tem algo que me agita e me enerva, que aniquila minha calma.

Eu sou um ser complexo. Orgânico, humano. Um indivíduo teoricamente

inteiro, mas sinto como se algo estivesse me faltando.

Passei muito tempo procurando, me desesperava por nunca achar.

Mas como achar o que eu nem sabia o que era? Do que eu precisava? Por onde

começar?

Até que olhei para fora e percebi que o que eu preciso não vem apenas de mim.

Eu sempre me considerei independente, como fui acabar assim?

Como cheguei ao ponto de pensar que precisava de algo de outrem para me

completar?

Acontece que estou aprendendo aos poucos que sozinho você não é, sozinhos

não vamos, sozinhos não dá.

Eu preciso ser eu mesma, mas preciso de algo que vem de fora.

E agora? E AGORA?!?

Eu preciso do amor do outro, eu preciso da compaixão. Eu preciso me sentir

querida, eu preciso da compreensão.

Tudo bem, eu devo me amar primeiro, mas e quando não dá pra ser assim?

Sinto que preciso dos outros – será que tem alguém que precisa de mim?

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Se eu me basto, por que ainda preciso de outros? Por que, quando sozinha, vou

me desencontrando aos poucos?

Eu me achava completa, coitada, ai de mim. Talvez eu esteja em construção.

Talvez eu precise catar umas peças no chão. Talvez eu precise de alguém que

me estenda a mão. Talvez precisar de alguém não seja tão ruim... Mas preciso esfriar a

cabeça, para que eu não enlouqueça.

Que mesmo que esse alguém não apareça... esse não precisa ser o tão temido

fim...

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A maré

Escrito por: Emanuelly Araújo

Eu me sinto num oceano frio e gelado, com água até o pescoço.

Eu sou jogada de um lado para o outro, não podendo abrir a boca sem correr o

risco de ter água entrando por ela.

Ao mesmo tempo que vocês me dizem que vão estar ali para mim, por tudo e

me ouvir, eu tenho medo de contar para vocês quem sou o verdadeiro eu e me afogar.

Em vez de ondas, palavras cortam, não só minha pele mas minha alma, o que

eu sou além de uma marionete? Os momentos felizes e em união valem a pena, claro,

mas nem sempre sou eu me divertindo ali.

Por favor, me escutem e entendam o que eu tenho a dizer, é a única coisa que

eu peço, se vocês me ouvissem tudo poderia ser diferente.

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Catando sonhos

Escrito por: Thalita Caldas

Certa vez li que, ao crescer, adquirimos a habilidade de fechar nossos sonhos

em uma caixa a sete chaves e jogá-los ao rio.

Me lembro muito bem de colecionar diversos sonhos em minha mente colorida

e infantil, me recordo de todas as vezes em que os vivenciei nos meus sonos mais

profundos.

Contudo.

Minha memória mais viva, com certeza, foi quando a realidade os rasgou em

pequenos pedaços diante de mim.

Tenha calma!

Estou bem, pois me agarrei ao único pequeno pedaço que se deixou escapar

pelas beiradas da lixeira dos sonhos.

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Tarô

Escrito por: Lucas Chapéu

Bar do Bruxo, quinta à noite. A maioria das pessoas que aparecem por aqui

nesse horário ou não sabem o que procuram, ou não buscam por nada específico.

Pessoalmente, se fosse me incluir em um grupo, seria no segundo, mas a verdade é

que trabalho especificamente com um terceiro grupo: as pessoas que procuram por

respostas. Estas são fáceis de reconhecer, porque geralmente vêm até a minha mesa e

fazem a mesma pergunta:

— Oi, você que é o Nico que lê baralho?

— Entre outras coisas, mas hoje só trouxe o tarô. E você...?

— Ana, prazer.

Gesticulo para que ela se sente enquanto aceno ao dono do bar com a outra mão.

Então volto às cartas, as embaralhando com praticidade treinada. Observo a mulher

que provavelmente vai ser a última leitura da noite, jovem, tatuagens nos braços e uma

expressão de quem espera que eu comece a falar.

— Você já fez uma leitura de tarô antes?

— Já puxei pela internet, mas acho que não é a mesma coisa. Como funciona?

— Eu vou puxar seis cartas sobre aspectos diferentes da sua vida, explicar cada

uma e como elas se conectam, e no final você pode fazer uma pergunta e puxar mais

uma carta para responder. Salve, Bruxo!

Cumprimento meu grande amigo/garçom/barman/chefe do estabelecimento e

o deixo conversando sobre cervejas com Ana enquanto alcanço uma garrafa térmica

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em minha mochila, despejando o restante do meu chá em um copo americano. Pedidos

feitos, volto ao assunto principal.

— Bem, fale um pouco sobre você antes da gente começar.

— Ah, achei que você fosse fazer aquela parada de adivinho de me falar sobre

a minha vida.

É impressionante a quantidade de pessoas que esperam que cartomantes ajam

como detetives.

— Eu posso fazer uns exercícios de dedução e supor que você saiu recentemente

de um relacionamento e que está juntando dinheiro para uma viagem. Mas isso seria

leitura fria, geralmente usada por charlatões que querem se passar por adivinhos, e eu

posso ter interpretado os sinais errado ou não ter percebido sua preocupação principal,

então prefiro só perguntar.

Achei que ia errar algum chute, mas pela reação dela, acertei tudo.

— Pera, como assim? Que sinais? Alguma amiga minha falou com você?

— Seu anelar direito tem uma marca de anel, então você tirou uma aliança entre

a última vez que tomou sol e agora. E sobre a viagem, você pediu a cerveja mais barata

daqui e tem bandeiras de países tatuadas no braço. Mas você pode ter perdido a aliança

ou algum outro anel parecido, e talvez as tatuagens sejam só estética e a cerveja seja só

preferência, ou às vezes o que você quer saber não tem a ver com nenhuma dessas

coisas, então eu pergunto.

— Ah, uau. Você acertou sim, tudo o que você falou. Eu tô cursando jornalismo,

me mudei para cidade ano retrasado. Terminei um namoro de quatro meses

anteontem, e o próximo país que eu quero conhecer é o Egito. E você, faz isso aqui por

quê?

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— Embaralhe, por favor. — Aproveitei a deixa para trocar o baralho de mãos.

— Sobre o porquê, eu gosto de ler cartas. Sinto que toda leitura me ensina uma coisa

nova, como se o tarô sempre tivesse algo novo para me contar.

— Eita, maneiro. Mas eu quis dizer aqui nesse bar.

— Ah, eu sou amigo do dono. Ganho amendoim de graça em troca de trazer

cliente para ele e não pago para usar o espaço.

— Tendi. Tem que embaralhar até quando?

— Até achar que tá bom.

— Massa.

Pego o baralho de volta, ao mesmo tempo que o Bruxo volta com um copo e

uma long neck para Ana, que dispensa o copo. Não consigo evitar um sorriso ao virar

a primeira carta da leitura, a figura tão familiar ali impressa quase me

cumprimentando como um velho amigo. Nela, um bobo da corte caminha alegremente

na direção de um penhasco, com um cachorro um tanto adorável tentando puxá-lo de

volta pelos calções. Abaixo da figura, seu nome: o Louco.

— Ah, o arcano sem número. Esse é seu momento atual: Um grande quadro em

branco, ainda decidindo que tipo de pintura se tornar. O Louco não é nada, não tem

nada e não sabe nada, e isso na verdade é a sua maior força, porque significa que nada

o prende. Ele tem em si o potencial de ir para onde quiser, aprender o que quiser e se

tornar quem quiser, porque todos os caminhos estão diante dele. Só o que o Louco

precisa fazer é escolher um. Como momento presente, é um ótimo lugar para se estar.

— É exatamente isso, muitos caminhos. Como você soube essa?

— Quem sabe é o tarô, eu só traduzo as cartas. Porém, todo momento tem seus

obstáculos, e o seu é… — Viro mais uma carta, a deixando de lado sobre o Louco, como

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se o cruzando. Nela, um lobo e um cão uivam para a lua à beira de um lago. — A Lua.

Intuição, sonhos, subconsciente, magia. Como obstáculo: ilusão, incerteza,

instabilidade, interpretações erradas. Com tantos caminhos, a escolha entre eles pode

parecer nebulosa, mas você tem todas as ferramentas necessárias para seguir em

frente. Preste atenção nos seus sonhos, confie na sua intuição e não deixe o medo te

impedir de agir. Você tem todas as respostas do universo no seu alcance, é só fazer a

pergunta. Quer amendoim?

Empurro a cumbuca na direção dela.

— Não, obrigada, mas o que foi isso sobre as respostas do universo?

— A Lua traz com ela grandes oportunidades de crescimento espiritual. Todos

os arcanos maiores na verdade, mas ela é especial por potencializar esse lado. É menos

sobre o que você vê e mais sobre o que você sente bem no fundo.

— Tendi… acho. Próxima carta?

— O passado. — E viro a terceira carta, a deixando à esquerda das duas

primeiras. Uma torre de marfim, cuja altura alcança os céus, despedaçada por um raio

de fogo. Pessoas são arremessadas do topo ou se jogam tentando fugir do desastre. —

A Torre. Caos, destruição, mudanças súbitas e intensas que marcam toda uma vida.

Você possuía algo em que acreditava cegamente e tinha como garantido, mas não

existe mais. Está tudo bem?

Não parece tudo bem, mas é como pessoas costumam reagir à Torre.

— Tá, só… uau. Acho que preciso de mais uma cerveja.

— Aê Bruxo! — Chamo a atenção do meu amigo. — Mais uma long neck e um

amendoim, faz favor!

— Cara, isso é impressionante, de verdade. Não tem um erro.

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— Eu tô admirado que até agora só saiu arcano maior, na real.

— Como assim?

— O baralho de tarô tem setenta e oito cartas, com vinte e dois arcanos maiores

e cinquenta e seis arcanos menores. Os menores falam mais de eventos e pessoas do

cotidiano, enquanto os maiores são mais…

— Sérios? Intensos? Duradouros?

— Espirituais. Mas também essas outras coisas, são lições e transformações que

ficam pra vida. Por exemplo, na próxima carta, o futuro.

E viro a quarta carta, a deixando à direita do amálgama Louco-Lua. Nela, um

homem e uma mulher parecem conversar sob a figura de um anjo que os observa dos

céus, e o texto traz seu nome: VI - Os Enamorados.

— Essa também é maior? — Pergunta Ana, de olhos arregalados.

— Sim. — Respondo, também de olhos arregalados.

— É de namoro?

Suspiro. Preciso fazer um esforço consciente para não revirar os olhos.

— Não necessariamente. Ela pode sim significar relacionamentos, mas também

fala muito mais: fala de harmonia, valores e, principalmente, escolhas, que podem ser

sobre companhias, mas também sobre viagens, carreiras, temas de estudo, lugares,

crenças e todo outro tipo de decisão importante. A sua jornada está te levando para

uma encruzilhada extremamente importante, qualquer que seja ela. Opa, valeu.

Bruxo chega com a cerveja de Ana e um pacote de amendoim, que eu abro e

despejo inteiro na cumbuca. Cada um de nós come um punhado antes de continuar.

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— O que você sabe sobre sua situação? — Viro a quinta carta, a deixando acima

do Louco. Nela, um homem observa sete copos, cada um transbordando com algo

diferente, desde riquezas até um dragão. Não sei se fico decepcionado ou aliviado. —

Sete Copas.

— Truco!

— Seis!

Rimos.

— Enfim, esse é um arcano menor.

— Logo a carta que é sobre o que eu sei, bacana. O que significa?

— Oportunidades, desejos, sonhos e visões. Você é capaz de enxergar os muitos

caminhos que estão à sua disposição, e é… intenso. A imaginação consciente é

verdadeiramente mágica, mas você também está ciente do perigo que é se perder

sonhando demais e esquecer de escolher um caminho para trilhar.

— E eu tenho que ser mais pé no chão e perseguir uma opção realista, sim. —

Ela praticamente murcha com a constatação. — Não é a primeira vez que me falam

isso.

— Realista? Quem te disse isso? — Sorrio e aponto para as cartas. — Olha essa

leitura, esse é potencialmente o momento de criação e evolução mais fantástico que

você já viveu. Tem uma folha em branco enorme na sua frente e você tem todas as

cores para preencher ela como quiser, tem certeza que quer desperdiçar essa chance

pensando pequeno? Ouse sonhar! Se qualquer caminho é possível, por que ir pelo mais

simples?

A verdade é que é por esse tipo de momento que eu faço isso. Essas leituras tão

impressionantes, tão impactantes, que as palavras começam a sair sozinhas como se

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também tivessem pressa e curiosidade de ver como tudo termina. Em respeito a elas,

viro a última carta.

— Por fim, o que você não sabe sobre sua situação? — A imagem de um arcanjo

tocando uma trombeta enquanto pessoas se erguem de suas sepulturas adorna a

última carta e todas as minhas expectativas são superadas. Por alguns instantes eu

simplesmente me esqueço de falar, e quando me lembro, só pronuncio uma palavra:

— Eita.

— O Julgamento… tem cara de tenso.

Dou mais um gole de chá quase como reflexo, tomando um tempo para decidir

minhas palavras.

— Bem, é impressionante, para começo de conversa. Reforçando todo o resto

da leitura, é um momento de transformação intensa. Você está no olho do furacão de

um despertar espiritual, uma fase crucial da sua jornada. É tempo de autorreflexão, e

a decisão que te aguarda no futuro vai depender igualmente da sua lógica consciente

e da sua intuição subconsciente. Tudo que aconteceu até agora te transformou em

quem você é. Confie no seu julgamento, saiba o caminho em que está, e se precisar de

algo, as lições da sua vida a guiarão. Novamente, você tem todas as respostas ao seu

alcance, só precisa fazer as perguntas. Tem alguma sobre as cartas que saíram?

O final da fase principal de leitura deve ser marcado por um punhado de

amendoins, e assim é feito. Eu não crio regras, somente respeito.

— Não, na real, foi tudo bem direto. Você é bom nisso, sabia? Parece até que tá

mais animado que eu.

— Obrigado. Eu realmente só traduzo as cartas, a mensagem é por conta delas.

Mas admito que nunca vi nada como esse jogo antes. É como se o tarô estivesse

praticamente gritando para passar uma mensagem, é… uau. Simplesmente uau.

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— Agora tem aquela última pergunta que você falou, né?

— Sim!

Recolho as cartas rapidamente e as embaralho como se fosse a final de um

torneio de pôquer, mas a verdade é que há muito mais em jogo do que fichas e

dinheiro. A pessoa à minha frente está em um momento de transformação espiritual

extremamente único, e a verdade é que sou extremamente abençoado por ser o

responsável por transmitir essa mensagem. Só o que resta é a pergunta final, mas

depois dessa leitura, tenho certeza que qualquer que seja, resultará em aprendizado.

— Belezura então, o que você quer saber?

— Bem… tem algo sobre amor?

— Ah. — Ou ela pode perguntar isso. Todo mundo sempre pergunta isso. —

Quer dizer amor num sentido mais geral, ou…

— Não, não, de relacionamento mesmo. Romance e tal. Tem algo assim nesse

meu caminho?

— Pega aí. — Abro as cartas em um leque e Ana vira uma com a imagem de um

homem deitado com umas espadas ou algo assim que distintamente não responde

nenhuma dúvida sobre caminhos de iluminação espiritual. — Quatro Espadas. Para

questões de amor, essa carta na verdade indica um período de inatividade, em que

você tem que se conectar consigo mesma e recuperar suas energias para estar pronta

quando a pessoa certa aparecer, ou algo do tipo.

— Quer dizer que a pessoa certa vai aparecer?

— Você pode interpretar assim, é. — Ela não pode interpretar assim, mas não

vai fazer diferença. — Bem, é isso.

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— Nossa, foi ótimo! Muito obrigada de verdade! Vou fazer um monte de

propaganda de você!

— Você sabe onde me achar.

Termino meu chá enquanto Ana vai embora, então embaralho minhas cartas

novamente e guardo de volta na mochila, pensando que é uma boa hora de voltar para

casa. O bar está perto de fechar e já me frustrei o suficiente por hoje… Eu já devia ter

aprendido a esperar essa obsessão geral com sexo e romance, mas sempre acredito na

possibilidade de buscarem qualquer outra coisa. Em meio aos meus devaneios, Bruxo

chama a minha atenção quando passo pelo balcão.

— Aê Nico, chega aí!

— Fala, Bruxo.

— Pode fazer essas paradas de ler carta pra mim? Quero saber de uma coisa.

— Sem problema, quer saber o quê?

— Então, eu tô saindo com alguém desses aplicativos de pegação, né...

Suspiro, cansado.

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Como me convenceram que eu não era linda?

Escrito por: Morfeu

Como me convenceram que eu não era linda?

Um dia disseram:

Muito magra

E essas espinhas?

Esse cabelo armado,

Cacheado

Ruim

Outro dia concluíram:

Feia

Com certeza, feia.

Feia e chata

Feia e burra

Feia

Inútil

Feia

Feia

Feia

Me olhei no espelho

Olhei e chorei

Os olhos que eu amava

Grandes e castanhos

A boca bem marcada

O nariz arrebitado

As bochechas cheias, vibrantes

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Rasgaram

Me destroçaram

Peguei esse rosto

Odioso rosto

Arranhei

Xinguei

As sobrancelhas

Malditas sobrancelhas

Se encontravam

As separei

E os olhos?

Pintei, puxei

A boca sufoquei

Bochechas?

Rasguei

O que sobrou então?

Me disse aquela voz

Não importa!

Se sobrou, destruirei.

De tão desfocada

Já nem percebida

E tampouco amada

Com a voz partida

O que sobrou?

Disse aquela voz

O que sobrou?

O que sobrou?

O que sobrou?

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Ecoei desesperada

Peguei minhas mãos

Toquei, marquei

Onde está a boca?

Os olhos

O teu rosto?

E num impulso de coragem

De burrice

De feiúra

Me olhei

O espelho falou do meu nariz

Arrebitado

Da boca pequena e desenhada

Dos olhos brilhantes expressos

Das sobrancelhas que se amavam

Era uma canção

Interna

Latente

Infinita

Voraz

Que me corroía

E me induzia

A tocar e acariciar

Cada recanto daquele rosto

Que de horrível era chamado

Vi

Eu vi

Eu me vi

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E amei

A voz disse

O que sobrou?

A voz era minha

E nada nunca tinha faltado.

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Entre piscinas e sonhos

Escrito por: Sea

O dia estava quente. Era uma tarde qualquer, quase fim de junho. Ao longe,

enquanto eu ainda passava pelo campo de futebol, que ficava logo na entrada do

centro esportivo, era possível ouvir muita água remexendo. Braçadas, pernadas, sons

de apito, gritos de encorajamento ou alguma repreensão por um movimento errado.

Pude enfim avistar as piscinas. Finalmente iria fazer o teste para entrar na turma de

natação.

Aquele lugar, mesmo depois de uma boa reforma, ainda me causava uma

nostalgia imensa e um calor no centro do peito. Estive ali quando era pequena, na

turma infantil de natação. Confesso que não aprendi a nadar naquela época. Um belo

dia decidi que não queria mais ir para as aulas e minha mãe não contestou a decisão.

Depois de quase dez anos, lá estava eu de novo, na borda da mesma piscina.

Uma energia boa percorria meu corpo, estava empolgada, feliz com a ideia de

aprender finalmente a nadar. Isso era maior do que a pequena chama de vergonha que

se acendia em minha mente por ser tão "crescida" e ainda assim não saber nadar,

estando ali em meio aos pequenos.

Haviam crianças muito mais novas do que eu, elas exploravam a piscina com

uma destreza impressionante. Aquilo me tirava vários sorrisos, pois logo estaria

nadando como elas se tudo ocorresse bem.

Enfim chegou a hora de fazer o teste. Comecei a me sentir desajustada no

ambiente, não sabia muito bem o que deveria fazer e como coordenar os movimentos

que o professor pediu.

Depois de uns minutos, consegui me movimentar minimamente na água, e

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nossa, aquela foi a melhor sensação de todas. Pode parecer pouco, ainda havia um

grande caminho a percorrer até que eu realmente pudesse falar "estou nadando!", mas

só ter conseguido me movimentar e ser aceita na turma de natação já foi um ótimo

começo.

Essa é uma das memórias que guardo com mais apreço. Voltei para casa

naquele dia com um sorriso de orelha a orelha, feliz da vida, pois depois de tantos anos

afastada das piscinas e com aquele sonho guardado, iria finalmente aprender a nadar.

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Escrito por: Phoenix

uma amiga minha certa vez disse:

“escrevo como quem grita”

e essa frase martela na minha cabeça desde então, como um mantra

(escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem)

é exatamente isso.

eu escrevo. escrevo quando me falta o ar e a vida parece um beco sem saída. escrevo

quando vozes ecoam na minha mente como um grito de guerra "você está sozinha".

escrevo quando me rasgam a pele, escrevo quando me privam da existência mundana,

escrevo quando os deuses rugem e respirar é austero.

escrevo. porque se eu gritasse faltaria fôlego, porque se eu falasse, o som finito da

minha voz se dissiparia no universo, escrevo porque de outra forma ninguém jamais

me ouviria.

escrevo, porque eu tenho essa mania. de querer tocar pessoas e ter relevância e virar

uma memória infinda mesmo sendo tão ínfima.

escrevo porque talvez esse monólogo medíocre seja a eternidade pelo resto dos meus

dias.

(escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem)

escrevo com as mãos trêmulas, o rosto pálido, olheiras fundas e taquicardia. escrevo

com a voz falha, nós na garganta e três centenas e meia de borboletas no estômago.

o meu ato de coragem é a rouquidão.

porque nesse mundo tão baixo, o barulho da minha escrita silenciosa é

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e n s u r d e c e d o r.

— a revolução começa no grito.

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Crise dos Vinte

Escrito por: Rapha Nascimento

Meia hora para o expediente acabar e ainda não localizei o erro presente no

código. Na mais pífia das hipóteses, talvez tivesse esquecido de fechar alguma chave

quando o sono da tarde pesou em meus olhos e meu tronco se inclinou para frente. Se

não fosse o susto que levei com a pergunta da estagiária ao lado, provavelmente meu

corpo estaria estirado no chão do escritório. As laterais da minha cabeça doíam de

tanto vasculhar aquelas milhares de linhas, maldita fora a hora que o cliente pediu

uma alteração. Porém, como todo ser humano regular ou incompetente, como preferir,

decidi deixar a questão para a semana seguinte, era sexta-feira afinal. Em todos os

outros dias da semana, lá estaria eu a correr freneticamente atrás do único ônibus

naquela região que seguia até a universidade. No entanto, era um semestre com janela

na sexta, a oportunidade perfeita para estudantes se divertirem em bares e festas,

consumirem substâncias e aflorarem suas sexualidades. O tipo de coisa que eu

definitivamente não faria, digo, até gosto desses ambientes, mas não há nada a se

aflorar no meu caso a não ser uma baita arritmia cardíaca pela bebida e falta de

descanso. Seria relevante declarar aqui que sou assexual? E talvez me faltem ainda

mais atrações? Pois bem... Aquela sexta não seria gasta com festividades, meus planos

eram outros.

Peguei o ônibus que seguia para a avenida mais popular da cidade, repleta de

shoppings, centros culturais, lanchonetes e restaurantes. Já tinha avisado a família que

jantaria fora, então desci no ponto em frente a mesma hamburgueria de costume e

entrei no estabelecimento. Fiquei a semana toda com o desejo de comer o lanche

especial triplo cheddar com batata grande e sorvete de baunilha e, obviamente,

também misturar todos os refrigerantes e formar o mega refri com gosto de nada e

açúcar. Após pegar meu pedido, a melhor parte enfim se iniciou: DEGUSTAÇÃO, HA!

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A batata surfava pelo sorvete e então realizava uma curva arriscada direto para minha

boca, que, junto do sanduíche, travava uma disputa pelo primeiro lugar. Os diferentes

tons de doçura da bebida empurravam todo o bolo alimentar para o estômago e me

impediam de engasgar dramaticamente. Respirei fundo e tentei mastigar mais

devagar para apreciar o sabor inigualável do cheddar enquanto olhava em volta.

Vários grupos de pessoas reunidas, conversando e rindo, me trouxeram uma pontada

de angústia. Sou uma falha social inegável. Já vivenciei momentos assim, porém,

sempre foram efêmeros e atualmente, escassos...

Aumentei a velocidade das mordidas na tentativa de afastar os pensamentos. Já

havia determinado que não me importaria mais com isso, não valia a pena e além de

tudo existia algo melhor à minha espera. Apenas aproveitei a refeição até o final e segui

meu caminho ao shopping para concluir a missão da noite. Era evidente a empolgação

e ansiedade presentes em mim, demorara demais para tomar iniciativa e realizar esse

desejo tão íntimo. Muitos fatores foram ponderados no processo, um deles, claro, ser

mal visto pelo senso comum e principalmente pela família. Minha mãe reforçaria a

narrativa de que sou uma alma vagante, sem futuro, sem maturidade, uma vergonha

por assim dizer. Já Amanda, bem, talvez ela risse da minha cara e perdesse o respeito

por mim, se é que ainda o tem. Só precisava aguentar esses julgamentos até me formar,

conseguir um emprego com salário maior e sair de casa, se possível. Obviamente o

senso comum ainda resistiria em me criticar e me enquadrar dentro de algum bloco de

pessoas anormais por aí, mas pagando minhas contas e vivendo minha vida, o que me

interessa?

Perguntava-me se ele ainda estaria ali, tinha guardado o dinheiro necessário

para isso, seria um luto se não estivesse. Percorri os corredores iluminados repletos de

vitrines nas laterais e quiosques no meio, meus pés já sabiam qual direção seguir e

andavam no automático. Era uma loja geek aberta recentemente e me encantei de

primeira assim que o vi ali, afinal quais eram as chances de acontecer? Quando

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cheguei, minha visão rodou por todo o espaço e enfim suspirei de alívio. Lá estava ele,

segurava a máscara robótica verde em uma mão e a outra repousava atrás de sua nuca,

somente uma perna dobrada, o rosto com um leve sorriso e olhar intenso, todo

gravado no tecido simples daquele travesseiro. Gable, minha primeira e única paixão,

ou pelo menos algo parecido com paixão, pois nunca me imaginara em qualquer

relacionamento com ele. Digamos que somente seja meu personagem preferido, minha

fixação, o que me arranca sorrisos quando o vejo aparecer seja em um episódio inteiro,

ou em milésimos de segundos. Tirei uma foto e mandei para Jay com a certeza de que

elu se emocionaria. Peguei o travesseiro e me direcionei ao caixa, meu celular vibrou

insistentemente, o hype tinha começado.

Jay: MINHA NOSSA SAM

Jay: SANTA MÃE DO CÉU VC VAI DORMIR COM O GABLE

Jay: VC NÃO SABE O QUANTO SONHEI COM O DIA QUE EU PUDESSE

DORMIR COM O GABLE

Sam: Vc é cercade de Gables já

Jay: Sim

Jay: Mas na minha cidade não tem nenhum lugar que venda UM

TRAVESSEIRO DO GABLE

Sam: Também não esperava encontrar isso aqui, mas abriu essa nova loja e tudo

mais

Sam: E MEU DEUS ELE É TÃO MARAVILHOSO AAAA

Nesse ponto, vou parar de enrolar, está evidente. Antes de pegar o ônibus para

casa, comprei balas azedas com o travesseiro debaixo do braço. Adoro balas azedas!

Sim, sou esse tipo de gente e essa é uma tediosa história sobre minha não

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conformidade com o que quer que seja a postura de um ser adulto ideal. Eu sei, eu sei,

já que não iria a nenhum bar ou festa, deveria ao menos ter passado a noite a saborear

um bom vinho, assistir novela e fazer sexo rebuscado. Coisas de pessoas adultas, sim,

sim. O problema é: não gosto de nenhum desses itens. É absurdo, mas acontece.

Encontro-me na conhecida “crise dos vinte”, onde olho para trás e vejo o absoluto nada

que realizei durante minha vida. Comparo-me com os sujeitos da minha idade e

enxergo um abismo insuperável. Naquela noite, um jovem esperava seu voo para um

seminário de pesquisa científica onde seria palestrante enquanto eu mergulhava no

décimo quinto capítulo de mais uma fanfic “Ryan x Gable”. No sábado, a orquestra

universitária se apresentava a uma multidão de profissionais da música enquanto eu

dava uma sova nos guerreiros das trevas no segundo jogo lançado da franquia

“Rainbow Craftrons”. No domingo, um casal apaixonado unia-se em matrimônio,

enquanto eu cochilava em cima de Gable. Enfim, segunda-feira, uma estudante recebia

a oferta de efetivação em uma empresa renomada no exterior, enquanto eu caçava

erros em um bando de if, else, while e for.

Como esperado, Amanda riu quando viu o travesseiro e deu de ombros, já

minha mãe passou o fim de semana inteiro em reclamações eternas sobre minhas

aspirações para o futuro. Seu foco maior eram minhas relações sociais, e me ver dormir

com Gable só reforçava seu ponto de que preciso urgentemente namorar. Compreendo

que em outras palavras ela apenas quer me ver casar e sair de casa e bem... Já falei a

ela que meu desejo maior é ter meu próprio teto, no entanto, casamento eram outros

quinhentos! E é aí que ela sempre começa a discutir.

— Não entendo você, Sam. Quer ficar só, numa casa vazia, parece bicho do

mato! Você não pode lutar contra o mundo, tem que se comunicar com as pessoas!

Namorar, casar, cuidar das suas crianças... O humano é um ser social!

“O humano é um ser social”, mas o que tenho a ver? Qual o sentido de dividir

espaço com alguém, dar beijos, transar e ter filhes? Sou completamente indiferente a

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isso e a parte de cuidar de crianças é desvantajosa, consome energia e recursos

financeiros que eu poderia gastar no lançamento de “Rainbow Craftrons 4 – The Knight

of Light”, baita jogo maneiro com batalhas elaboradas e gráficos impecáveis. Não luto

contra o mundo, ele é que não colabora comigo em geral. O maior interesse que

consegui ter por outras pessoas foi de amizade, o que, aliás, busquei por anos na escola.

Fazer amigues! Ah como é difícil...

Não é de hoje essa implicância sobre precisar me apaixonar por alguém, desde

os primórdios de minha juventude essa cobrança batia na porta. Na escola sempre

obtive ótimas notas, mas tinha dificuldade em fazer amizades, conversar e

acompanhar as outras crianças em seus gostos e brincadeiras. Era como se vivêssemos

em mundos diferentes, e por consequência elas me excluíam dos círculos sociais.

Porém, certo dia um milagre ocorreu. No quinto ano do fundamental, alguém

conversou comigo sobre um desenho que nós gostávamos, finalmente uma pessoa

com algo em comum. Esse dia me marcou profundamente, passamos a tarde toda na

escola de um lado para o outro em meio a brincadeiras, conversas e risadas. A pessoa

não chegou a conversar mais comigo, mas ainda me cumprimentava amigavelmente.

Já era o bastante, pelo menos não era mais invisível. E, como em todo bom clichê, nem

toda alegria dura para sempre.

Em uma aula de ciências naturais, nos era explicado sobre a chegada dos

hormônios na puberdade e como isso nos traria novos tipos de sentimentos sobre ês

outres. Então, por alguma razão mirabolante, a professora achou uma ótima ideia

perguntar como nos enxergávamos entre si: amizade ou “algo mais”. Confesso que no

instante não compreendi o que seria “algo mais” e enquanto todo mundo respondia

isso, fui a única criatura a dizer “amizade”. Um grupo de meninas não se convenceu e

teimou que eu mentia, sendo assim, passaram a me perturbar todos os dias para saber

de quem eu gostava na escola. Acabei por descobrir que a professora falava de atração

74
romântica e sexual e isso só me irritou mais. Não sentia nenhuma dessas coisas e, de

bônus, detestava histórias de romance na época.

— Você gosta de alguém sim, todo mundo gosta! Por que tem vergonha disso?

— Não tenho vergonha, só não gosto de ninguém!

— Mentira!

Uma delas começou um discurso irritante sobre ser normal gostar de alguém.

Repousava em um canto discreto quando o grupo me abordou, então tudo o que fiz

foi tapar meus ouvidos e esconder o rosto atrás dos joelhos enquanto cantarolava

“lalalalala”. Minha cota de paciência se esgotava e outra menina resolveu negociar

uma troca: eu contaria de quem gosto e ela faria o mesmo, e assim nós guardaríamos

segredo sobre isso. Insisti em meus reais sentimentos, mas logo cansei. Decidi falar o

nome da pessoa que conversou comigo naquele dia marcante, mesmo que meu único

interesse nela fosse de amizade. De toda forma, o trato era guardar segredo, então

estava tudo bem... Em um universo ideal onde seres humanos cumprem suas

promessas. A notícia se espalhou rápido e as zombarias vieram. A pessoa em questão

parou completamente de me cumprimentar e se afastou. Tinha perdido uma chance

de amizade e tudo por culpa dessa norma social sem nexo.

Se antes da puberdade já era difícil socializar com crianças, imagine a

complicação em tentar uma conversa com adolescentes quando os assuntos giravam

em torno de rolês e paqueras. Encontrava-me mais uma vez incompatível com a minha

idade, pois nessa fase necessitava de atributos obtidos somente na fase anterior. No

caso, amizades para sair de casa e atrações romântica ou sexual para flertar com

alguém, ou sei lá como faz essas coisas. Incapaz de dialogar com esse pessoal, resolvi

me fechar em meus hobbies e gostos. Gastava meu tempo com o consumo de

audiovisual, jogos, músicas, histórias e diversos conteúdos na Internet. Minhas

interações sociais eram precárias até mesmo em ambientes virtuais, todavia, uma

75
simples resposta ou “curtida” já era bastante para me satisfazer. Ver pessoas com

gostos parecidos com os meus em fóruns e redes sociais me alegravam por si só e, na

maioria das vezes, me movi somente até aí.

No ensino médio, a turma competia para ver quem havia beijado mais bocas e

perdido a virgindade primeiro na festa passada, a qual não participei por puro

desinteresse mesmo. Consegui caçar algumas amizades nesse período, pessoas

excluídas e com inclinações parecidas com a minha. Nenhume de nós era convidade

para qualquer evento social da sala e esse fato sozinho já era a principal similaridade.

Nós discutíamos sobre cultura pop e afins, especificamente desenhos e videogames.

Foi nesse tempo que comecei a vibrar com “Rainbow Craftrons”, uma franquia de

quadrinhos, animação, jogos e brinquedos de cenário futurista sobre humanos que, ao

vestirem máscaras, se transformam em seres biônicos de diferentes cores e designs.

Ryan, o heroísmo vermelho, Yu, a força amarela e Blake, a vingança azul, se juntam

para combater um culto maligno capaz de trazer catástrofes ao universo. Conforme os

capítulos passam, várias figuras são introduzidas na trama e uma delas é o temor

verde, Gable. Apesar de ser apresentado como o vilão do segundo arco, após uma luta

épica com Ryan, o guerreiro verde tem sua jornada de redenção e se torna um

grandioso aliado do grupo principal.

Quando percebi, já passava horas em sites e mais sites a observar imagens e ler

informações sobre Gable, meu coração foi conquistado totalmente. Acabei por

descobrir o blog “JustGable” que se dedicava única e exclusivamente à apreciação do

personagem. Nesse local, compartilhavam-se textos, imagens, vídeos, fanarts e

histórias “Reader x Gable” e eu consumia todo esse conteúdo, exceto as fanfics. Digamos

que não me enxergo em qualquer relação com o temor verde, não tenho interesse nele

nesse sentido. No entanto, o único romance que consegui gostar foi de fanfics sobre ele

com Ryan, Yu, Blake ou até Pixel, a cautela roxa. Só não gostava muito da relação Gable

e Orion, o esforço laranja, embora esse casal tenha uma tremenda força na

76
comunidade. Ler e ver Gable era uma emoção peculiar e observar seu

desenvolvimento com os demais personagens era incrível.

O blog também promovia todo ano a “Semana Gable” com temas diferentes em

torno da figura. Em sua segunda edição o assunto principal foi sobre a possibilidade

de o personagem ser assexual, e como não sabia o que significava esse termo, fui

pesquisar. Dessa forma, acidentalmente compreendi minha sexualidade, ou melhor,

minha falta de sexualidade. Mis amigues não levaram muito a sério, elus sabiam da

minha fixação por Gable, então concluíram que eu só tentava imitar o temor verde e

era uma fase. Por meios misteriosos, novamente uma informação sobre mim se

espalhou pela escola e precisei sobreviver às zombarias sobre minha assexualidade.

— Você nunca ficou com ninguém, como pode achar isso?

— Vai para igreja então!

— Se você transar, você morre?

— É só desculpa porque ninguém te quer!

A repercussão veio e se foi rapidamente, porém, foi o bastante para me calar

sobre o assunto por um tempo. Ainda queria acreditar que descobrira quem eu era

apesar de tudo.

Minha família não dispunha de dinheiro o suficiente para me pagar cursos

extracurriculares, por isso não possuía qualquer talento que pudesse focar a carreira

ou no mínimo me orgulhar. O máximo que consegui fazer de diferente na época foi

mexer no código de um blog meu para deixar a interface mais agradável. Pelo menos,

minhas notas permaneceram ótimas desde a infância, mas por essa razão não encarei

o vestibular com a seriedade necessária. E claro, não passei em Engenharia. Consegui

pelo menos entrar na segunda opção de curso: Ciência da Computação, e a partir desse

momento, minha vida só foi ladeira abaixo.

77
Mis amigues não me contactaram mais quando terminamos o ensino médio,

talvez elus não gostassem tanto de mim. Diminuí o consumo de “Rainbow Craftrons”

no período universitário, afinal um turbilhão de experiências novas me atingiu. Era

notável o contraste das dinâmicas estruturais e sociais do meio acadêmico em relação

ao escolar. A começar pelas pessoas que pareciam criaturas de outro universo com seu

linguajar sofisticado e suas vivências intelectuais avançadas. Ter inglês fluente era algo

banal para aqueles seres e muitos engatavam em projetos científicos ou intercâmbios

sem dificuldade. Até mesmo o conhecimento de cultura pop desse pessoal era de uma

profundidade absurda, o tipo de gosto que só é compartilhado entre membros de um

grupo bem específico. Não é complexo adivinhar que mais uma vez me sentia

incompatível, mais especificamente, em um limbo social. Saí de um ambiente onde

minhas notas eram invejáveis e meus gostos diferenciados para entrar em outro no

qual sou apenas medíocre. O lado bom no fim das contas era que a maioria dessas

pessoas basicamente não se importava com quem você era ou o que fazia, então não

existia uma hierarquia consolidada para a realização de bullying na faculdade.

Exclusão social até ocorria, mas agressões explícitas não muito. Todo mundo só

desejava se formar mesmo e, bem, o desenvolvimento de amizades era divergente.

No primeiro semestre, não me aproximei de ninguém da sala, porém, mantinha

uma convivência tranquila com todo mundo. No segundo, a mediocridade me batia

forte toda vez que saía de uma entrevista de emprego. Apenas o nome da universidade

não me dava chances de contratação em nenhum lugar, era preciso conhecimentos

técnicos e de idiomas para além do que aprendi na escola e isso me desesperava. Eram

requisitos sem sentido para uma vaga de estágio. Sim, estágio! Minha autoestima

iniciou sua queda nesse momento, mas planou de leve ao receber a ligação afobada de

uma colega de sala.

— Sam, Sam! O lugar que trabalho precisa de alguém urgente para estágio. Você

ainda tá procurando, né?

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— Hã, sim. O que se-

— Ótimo! Me envia seu currículo e documentos para já fazerem o contrato.

— Sim, mas espe-

— Sua mesa já tá separada aqui do meu lado. Mando mais detalhes no

WhatsApp. Tchau!

— Tchau...?

E dessa forma, arranjei meu primeiro e atual emprego. A princípio meu chefe

me amaldiçoava intensamente por não saber atender telefonemas, mandar e-mails e

lidar com clientes de forma satisfatória, no entanto, ele admitia que eu era razoável em

programar. Nada espetacular, mas eficaz. Com o tempo, aprendi os macetes do serviço

e lidava bem com os pedidos, uma ou outra adversidade trazia dores de cabeça. O

salário era pouco para se ter o próprio teto, então continuei a morar com a família e

ajudar em algumas contas. Junto de alimentação e transporte, não sobrava muito,

porém, tinha planos de guardar essa renda em uma reserva emergencial... Que foi

quase toda consumida pela aparição de um vórtice temporal na minha vida.

No terceiro semestre, de contato em contato, um extrovertido da Engenharia

resolveu me adotar. Ele me botou em diversos grupos de conversa e me convidava

para todo tipo de evento social. A primeira vez que fui a uma festa também foi a

primeira que me embebedei e perdi meu “bv”. Dançava de forma exagerada na

tentativa de executar passos complexos e como resultado, só parecia um boneco

inflável de posto fora de controle. Era motivo de gargalhadas, mas o álcool não

permitia que eu me ofendesse. Alguém no meio da pista me lançava um olhar

estranho, parecia desejar meu óbito. Gelei no momento em que percebi a pessoa se

aproximando e, quando pisquei, ela já estava na minha frente, a centímetros do meu

rosto. Meu corpo estava estático, meus olhos bem abertos, os braços retos junto das

pernas enquanto aquele ser movia os lábios contra minha boca. A pessoa deu uma
79
piscadela e logo sumiu. Passei o resto da noite sem entender o ocorrido e só na manhã

seguinte, quando acordei no sofá do apartamento de algume engenheire, me dei conta

de que fora um beijo.

Foi decepcionante, por assim dizer. Nunca me importei com essas paradas,

porém, todo mundo insistia que era bom e fazia alarde sobre isso. Não é possível que

seja a mesma coisa que chupar um braço! Na festa seguinte, quis confirmar o resultado

do experimento anterior e dessa vez, apareceram duas cobaias. A primeira pessoa foi

rápida e não pude me certificar com precisão, a segunda me esclareceu muitos pontos,

pontos além da conta. Realmente, era apenas um encostar de peles um tanto molhado,

e ainda por cima, agonizante quando os dentes se chocavam. Minhas nádegas eram

apalpadas sem piedade, mas nenhuma sensação além de indiferença emanava de mim.

Uma música extremamente boa começou a tocar e me apressei em encerrar a ação para

correr até o meio da pista. Depois desse dia, adquiri o costume de dispensar qualquer

ume que viesse me beijar.

Entretanto, ir a festas e bares ainda era bacana, não me sentia um ovo antissocial

no meio daqueles grupos, em suas conversas e diversões. Mesmo que o preço fosse me

afundar cada vez mais em bebidas e, posteriormente, drogas. Claro, isso não é uma

regra, nem todo mundo precisa usar substâncias para se sentir incluíde... Mas me

aconteceu! E minha família notou minha mudança de rotina e as vezes em que saía de

noite e voltava apenas no dia seguinte. Apesar de ajudar nas contas de casa, minha

mãe não se satisfez e iniciou uma série de julgamentos sobre meus novos

comportamentos. Disse que não me reconhecia mais e me chamou de irresponsável de

diferentes maneiras. Pensando bem, eram válidas as críticas até. Eu gastava tanto

nesses lugares festivos que não sobrava nem dinheiro para o almoço em alguns dias.

Contudo, não sabia se somente a ignorava ou se nem ao menos tinha tempo de me

preocupar, pois logo teria de trabalhar. Nesse tempo, dispunha de poucos momentos

de ócio e isso implicava que eu não mais acompanhava os gostos e hobbies que cultivei

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durante a vida. Tudo girava em torno de trabalho, faculdade e vida social agitada. Meu

corpo pediu socorro.

Certo dia, no meio do expediente, minha visão ficou turva e senti suor frio por

todos os poros. Parei no atendimento médico do serviço e me dispensaram para

descansar em casa. O que não foi possível, pois meu corpo entrou em pane quando me

deitei no colchão, desencadeando uma série de crises ansiosas. As semanas seguintes

foram um pesadelo, não conseguia sair de casa sem parar em alguma cama hospitalar

e receber fortes medicações para dormir. Depois de vários exames, era óbvio, sofria de

ansiedade. Meu chefe resolveu adiantar os dias de recesso para dar tempo para que

me recuperasse. Recusei muitos convites de festas e, por consequência, ninguém me

chamava para mais nada. Mesmo depois da melhora, não estava confortável em voltar

às festividades de antes, as crises ainda ameaçavam aparecer de vez em quando.

No quinto semestre, novamente sem qualquer vida social, voltei aos antigos

hábitos, ou melhor, desenvolvi uma fixação ainda mais forte por Gable. Minha

vontade era assistir novamente os episódios de “Rainbow Craftrons” onde o temor

verde aparecia, mesmo por alguns minutos. Para isso, tinha de caçar os fragmentos de

temporada em temporada e infelizmente minha paciência não era tanta. Lembrei do

blog “JustGable”, um lugar com tantas imagens e cenas do personagem com certeza

poderia me direcionar para os exatos episódios em que ele aparecia. Portanto, mandei

inbox para quem administrava tudo aquilo. Demorou um mês para Jay, criadore do

blog, me responder. Já fazia a tarefa por conta própria quando meu celular vibrou e me

surpreendi com a mensagem.

JAY: HOWDY! DESCULPA A DEMORA!

JAY: Não presto muita atenção nas minhas conversas, mas sei que é errado

deixar ês outres sem resposta

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JAY: Também vc me pediu um negócio complicado, tem uns episódios que o

Gable quase nem tá direito

JAY: Vc quer realmente tudo tudo? Não vou julgar, também gosto bastante dele

JAY: Sem mais enrolações: A LISTA!

Só queria os números dos episódios mesmo, porém, Jay me fez o favor de

indicar os minutos e segundos também e ainda fazer comentários sobre cada arco.

Agradeci imensamente e iniciei minha apreciação à voz e a imagem de Gable.

Imaginava que Jay fosse muito ocupade com o blog e a própria vida, por conta de sua

demora na resposta. No entanto, para meu espanto, no outro dia recebi uma

mensagem sua.

JAY: HEYA!

JAY: Sam, né? Quais seus pronomes?

Não lembro quando foi que nos tornamos amigues, elu só começou a conversar

comigo, não o tempo todo, mas diariamente. Descobri que Jay morava em uma cidade

do interior a dez horas de distância daqui e fazia faculdade de biblioteconomia.

Conheci sua coleção invejável de figuras de ação, pelúcias, pôsteres, CDs, quadrinhos,

livros, itens comemorativos e alguns raros, tudo sobre Gable. As únicas coisas que elu

não tinha e eu sim, eram os jogos, e agora, o travesseiro. Não só conversávamos sobre

nossos interesses, como sobre literalmente qualquer coisa, Jay só surgia aleatoriamente

durante o dia e mandava algo como:

JAY: NOSSA, HOJE COMI UMA PIZZA HAVAIANA NERVOSA

E então transformávamos isso em algum papo excêntrico sobre quais frutas

eram ou não permitidas em cima da calabresa. Desde então me afastei das pessoas da

faculdade, ou elas se afastaram, e voltei a aproveitar o tempo livre com minhas coisas,

a diferença era que agora tinha Jay para compartilhá-las. Minha família percebeu mais
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uma nova mudança e minha mãe encontrou outras razões para me criticar. É evidente

que ela só me queria fora de casa, porque atingi meus vinte anos e a partir de agora a

vida adulta iria me sacudir como uma caixinha de suco.

No sétimo semestre, parecia que duas décadas haviam se passado e era um

sacrifício terminar uma mísera tarefa da faculdade. Meu contrato de estágio estava

terminando e logo precisaria passar pelo estresse de levar “não” de entrevista em

entrevista. Sentía-me inútil. Não poderia convencer ninguém a me contratar se nem

mesmo aguentava mais as obrigações acadêmicas. O fato é: nunca fui nada demais!

Não tenho grandes atributos, conhecimentos, habilidades ou talentos. Nem ao menos

realizei uma iniciação científica como a maioria das pessoas da minha sala e minha

carreira acadêmica é medíocre em comparação a desse pessoal alienígena. Meu inglês

só era suficiente para entender códigos e por isso não fiz intercâmbio. Tudo o que

trazia da escola eram notas altas, porém, de nada estas valeram, pois não conseguia

terminar uma atividade comum aqui. Minha vida era tediosa e o que me movia era o

consumo de audiovisual, jogos, músicas, histórias e diversos conteúdos na internet, o

mesmo da adolescência com a adição de balas azedas. Benditas sejam as balas azedas!

Talvez eu não seja um adulto ideal. Talvez minha idade tenha congelado no

tempo. Talvez não, também, já que trabalho direitinho, sabe... Afinal, o que é ser

adulto? Abdicar de seus gostos a favor de bom vinho e sexo rebuscado? Falar inglês

fluente e escrever artigos? Tocar violino em uma orquestra e assistir novela? Ou até

mesmo dançar forró e tomar cerveja? Frequentar festas e se casar? Por que não existe

um ser adulto ideal que contemple quem gosta de ler histórias, mesmo feitas por fãs,

bem escritas e se emocionar com episódios animados de seres biônicos? Completar

missões em jogos e apreciar doces? Isso tudo é um saco! As expectativas sobre a

maturidade são um saco! Todes nós sabemos que, se ampliarmos o potencial dos

robôs, chegaremos em um ponto onde nem mesmo trabalhar não será necessário. O

que vão sugerir? Ficarmos desempregades e morrermos de fome? Quando vão admitir

83
que não é vergonhoso se dedicar ao que gosta mesmo que isso não gere renda ou status

social? Por que tudo sempre necessita de todo esse valor?

Só precisava sair de casa e então viveria minha vida de adolescente em paz.

Uma semana antes de meu contrato de estágio finalmente acabar, Jay me avisou que

viria a minha cidade visitar parentes e poderíamos nos encontrar. Só enxergava

amizade em nossa relação, porém, uma ideia borbulhou em minha cabeça em meio ao

desespero sobre o futuro. Comprei folhas de EVA, cola quente, tesouras, latas de tinta

metálica e, por último, tinta de cabelo verde. Adiantei o máximo de trabalho e no dia

da chegada delu, me preparei para botar o plano em prática. Vesti a armadura

“metálica” de EVA e arrepiei meus cabelos, agora verdes. Peguei metrô com o cosplay

de Gable e dei de ombros para as pessoas que não paravam de me olhar. Ao chegar na

rodoviária, vasculhei todos os pontos e dei diversas voltas, não havia ninguém

parecido com elu, mas não houve tempo para que a dúvida se apossasse de mim, pois

uma mão tocou meu ombro e me virei para ver quem era. A figura me olhou de cima

abaixo, com uma expressão curiosa e a encarei por um tempo, antes de me pronunciar.

— ... Jay?

— ... O que é isso, Sam? Hahaha!

Jay começou a rir descontroladamente. Meu sorriso se abriu ao ouvir pela

primeira vez sua voz.

— Se você achou que ao aparecer assim ia me conquistar, achou errado!

Hahaha!

— É claro que não, humf!

Fiquei com vergonha, era essa a ideia de fato. Fazer Jay se apaixonar por mim e

me levar para sua casa.

— Ainda assim, que cosplay fantástico! Foi você que fez?


84
— Ah sim, queria fazer uma surpresa...

— É só pedir para morar comigo e a gente dá um jeito, não precisava disso, tá?

Mas obrigade pela surpresa! Haha!

— Você pega as coisas rápido, hein?

Gargalhamos e seguimos para alguma hamburgueria por ali perto, a fome

pesava. Jay sugeriu juntar nossos trabalhos de conclusão de curso e fazer uma base

de dados sobre o Gable. Estava feliz com mi amigue. Surfamos as batatas no sorvete

de baunilha.

85
Poema escuro de uma mente turva

Escrito por: Guilherme de Almeida Gariglio

O apelido, a piada

Tudo marca

E sua pele dói

Está farta

Ele chora

E não fala nada

Ele pede ajuda

Com a boca calada

E a sociedade julga

"Ignore, não discuta"

E ele chora mais

Pois não tem ajuda nem de seus pais

No fim, se imagina um anjo

E quer aprender a voar

E a família chora,

Pois não sabe como ajudar.

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O amor é muito complicado

Escrito por: L. Amethista

Amor, essa palavra tão rica em definições, mas que às vezes parece não ter

nenhuma. Talvez seja por ter tantos significados e explicações diferentes para esse

termo, que se torne tão confuso e difícil compreendê lo.

“Forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações

sociais” — Amor familiar;

“Afeição baseada em admiração, benevolência ou interesses comuns” — Amor entre

amigues;

“Devoção, adoração; em geral a uma entidade.” — Amor religioso;

“Devoção de uma pessoa ou um grupo de pessoas por um ideal concreto ou

abstrato” — Amor à pátria;

E, finalmente, as definições mais comuns:

“Atração baseada no desejo sexual” e “atração sexual natural entre espécies animais”.

— As que mais me chamam atenção justamente por serem, para mim, uma incógnita.

Para mim o amor é estranho.

Não me sinto contemplada em sua definição mais comum. A que ouço em

filmes e músicas, que leio em livros, e que é repetida por todos ao meu redor desde

sempre.

Se todos ao meu redor o sentem, se é dita uma “atração natural”, por que eu

não sinto?

Será que eu sou incapaz de amar?

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Será que mesmo que eu seja capaz de amar, essa minha forma de amar nunca

será vista como suficiente?

Será que o meu amor está “quebrado”?

Será que eu estou “quebrada”?

Se eu não amo, será que, sequer, sou um ser vivo?

São muitos questionamentos que rondam constantemente minha mente,

exclusivamente por causa dessa única palavra: amor.

Eu amo minha família, amo meus amigos, amo meus animais de estimação, amo

minhas músicas, amo meus livros, amo meus ídolos, amo de todas as formas que se

possa imaginar, mas não amo ninguém especificamente. Pelo menos não nessa

definição do amor.

Não existe alguém a quem eu direcione esse tipo de amor, alguém que desperte

em mim essa forma sexual do amor. Nunca existiu, e provavelmente jamais existirá.

Talvez eu seja “assexual”? Me recordo de ter visto esse termo em uma de

minhas pesquisas em busca de entender esse “amor”. É. Acho que sou isso mesmo,

AssexuAL. Iniciando com “A” de ausência da atração e finalizando com o sufixo “AL”

de sexual. Sou uma pessoa que não sente atração sexual. Assexual estrita.

Apesar de agora compreender essa parte de mim, ainda há algo no amor que

me deixa confusa. Não sinto ele de forma sexual, mas descobri uma nova forma dele,

uma exclusivamente romântica, que pode ser definida por: “atração baseada no desejo

romântico”.

Por um momento, me mantive alegre de saber que a definição anterior não me

contemplava, mas essa poderia me contemplar. Isso significava, para mim, que eu não

era “fria” ou “incapaz de amar”. Isso durou até eu descobrir que também não sinto

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esse amor.

Minha vida é, também, rodeada de perguntas que vêm dos outros:

"Você não quer se casar?"

"Você não quer ter filhos?"

“Você não quer mesmo ter alguém para estar com você?”

"Você não tem medo de ficar senil, doente ou morrer sozinha?"

Eu até já tive minhas paixonites, mas foram todas platônicas e nunca fiz a menor

questão de dar um passo à frente e entrar em um relacionamento romântico. Não havia

nenhuma motivação ou energia em mim que me levasse a isso. Talvez essas paixões

fossem apenas fruto da necessidade de me encaixar e eu mesma tivesse inventado elas

em minha cabeça.

Talvez eu só estivesse desesperadamente cedendo à pressão de corresponder às

expectativas e normas sociais.

Existem momentos em que eu quero alguém para estar ao meu lado, para andar

de mãos dadas, para cuidar e ser cuidada, para me acompanhar ao longo da vida. Mas,

ao mesmo tempo, não sei se faço questão de ter alguém todo dia acordando do meu

lado, de alguém me beijando e, muito menos, de ter a “parte sexual” do amor que

todos cobram.

Eu não gosto disso. Às vezes eu diria até que detesto isso. Essa parte não existe

em mim, não faz parte do meu amor. Não vejo sentido algum.

Por que deveria ser preciso tanto contato físico e compartilhar fluidos corporais

para provar meu amor a alguém?

Porém, felizmente, mesmo em meio a tantos questionamentos, finalmente

descobri que meu amor não é “estranho” ou “incompleto”. É só que, além de Assexual,
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também sou Arromântica. Logo, também não sinto esse tipo de amor definido por

“atração romântica direcionada a outro indivíduo”.

A verdade é que somos nós que complicamos tudo querendo criar definições

universais e normas. Mas está tudo bem não se encontrar em todas, inclusive na mais

“popular”. Se o ser humano é plural em tantos aspectos, porque justamente no amor

ele seria singular?

Afinal, o amor não é complicado, nós é que o fazemos parecer.

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Vale a pena lutar?

Escrito por: Sofia FX

“Do you know what's worth fighting for


When it's not worth dying for?
Does it take your breath away
And you feel yourself suffocating?
Does the pain weigh out the pride?
And you look for a place to hide?
Did someone break your heart inside?
You're in ruins”3

Se tem algo que define decepção para mim, é o começo desta música (21 Guns –

Green Day). Você luta por algo e perde. Se acha o melhor em algo e perde. Levanta e

cai. Volta e fica por último. Qualquer coisa que você faça, não é suficiente. Você está

em ruínas. Claro que o sucesso é relativo, mas vamos falar a verdade, nessa sociedade

capitalista sabemos que o dinheiro define sucesso, e não há problema em admitir que

quer um pouco — ou muito — dele. E também não tem problema se você não quer

nada com o dinheiro. Toda essa baboseira que falei ali em cima será explicada agora:

a decepção não é como você se vê ou como você falhou, mas como as pessoas estão

sempre te observando, como você as deixou para baixo. Geralmente, a falha que vemos

em nós é a falha que os outros colocam. E sempre foi assim — talvez, infelizmente,

sempre será.

Então, quanto à primeira frase da música, “Você sabe pelo que vale a pena lutar?”,

pode ser uma boa reflexão para dizer: você está no seu caminho ou no caminho que

outra pessoa quer para não se sentir decepcionado em decepcionar alguém?

3Tradução: "Você sabe pelo que vale a pena lutar, quando não vale a pena morrer por isso?/Isso te tira
o fôlego e faz você se sentir sufocando?/A dor pesa mais que o orgulho?/E você procura um lugar para
se esconder?/Alguém partiu seu coração?/Você está em ruínas."
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Invocação malsucedida em uma noite de Halloween

Escrito por: Alany Siqueira

em noite de lua nova


ninguém a enxerga como realmente é,
me parece que afinal não somos
seres tão diferentes assim.
junto de minhas vestes brancas
passo por mais esta noite
incompreensível e solitária de outono

alguma música assombrosa


grita dos fundos
olhos e bocas,
dos mais temíveis seres,
dedicam suas vidas mortais e almas eternas
a se deliciarem nesta pequena festa.
e aqui há esse ser endiabrado,
me encara em seu vermelho pálido
como se estivesse vendo um fantasma

chega ao pé dos meus ouvidos


o demônio da luxúria se põe a sussurrar:
"doces ou travessuras?"
acho que não gosto
tanto assim de travessuras...
o que há de tão interessante?
por que todes querem isso?

confusão se junta a festa


e martela na cabeça da peste
teimando com mais perguntas
"tudo bem, o que acha dos doces então?
paçoca ou bala de goma?"
ah! são doces, certo?
as balas de goma são adoráveis,

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paçoca tem um formato-

as presas da fera
tensas em sua boca
se contorcem como cães acorrentados
"não! você entendeu errado!
qual é o mais gostoso?!"
acho que não sei...
gostoso ou saboroso?
o que essas palavras são?
duvido que o mundo saiba

de rabo espetado
o diabólico enche a cara de loucura
"claro que elus saberiam!
está bem?! está quebrado?!
o que te falta é garrafa de vinho ou outras!"
e me amaldiçoa
volta para inferno de onde veio,
eis que retorno também
ao meu velho estado de lua nova.
desapareço. sem rastros.
só mais uma assombração
ou lenda urbana qualquer.

93
As três Anas

Escrito por: Giovanna Bazan

Nossa história começou antes mesmo de eu achar que tinha começado.

Um Girassol e uma Margarida, o Girassol grande, bonito, e a Margarida apenas

branca, sem graça.

Flores diferentes, mas ambas estavam num palco de teatro.

A Margarida se apresentou e o Girassol viu. Depois foi a vez da Margarida ver

o Girassol se apresentar.

A Margarida se apaixonou pelo Girassol, pois mesmo sendo tão diferentes,

tinham algo em comum: o amor pela arte.

A Margarida chorou muito porque não queria amar de novo e tentou de tudo

para impedir isso, mas a beleza do Girassol a encantou. E então ela tentou uma

aproximação, pois o Girassol estava dando a entender que gostava da Margarida, a

[Ana 2].

Foi quando a Margarida perdeu sua primeira pétala, mais precisamente,

quando foi encontrar com o Girassol em um jardim que mal conhecia e o viu beijando

Rosa, a [Ana 1], a quem por acaso já tinha visto no palco, quando pensou que tinha

conhecido o Girassol pela primeira vez, em 2018.

A Margarida sentiu suas outras pétalas quase caírem mas não perdeu as

esperanças, "não foi nada" disse a si mesma, mas não conseguia tirar da cabeça que as

duas flores estavam juntas num mesmo vaso. Foi o que ela confirmou em outro

encontro, no mesmo palco, outro dia, quando viu o Girassol e a Rosa namorando. Ela

murchou, se despedaçou e mal conseguiu manter as pétalas que restaram em pé na

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apresentação que faria na frente dos dois, afinal ela foi naquele jardim para isso, e não

para ter o seu miolo partido ao meio.

A Margarida [Ana 2] desejou tudo de bom para o Girassol e a Rosa, afinal ela

só queria que o Girassol fosse feliz seja com ou sem ela, mas de repente o Girassol

começou a se afastar, bloqueou qualquer contato e tentativa de aproximação da [Ana

2] de todos os jeitos possíveis, colocando muros em volta do seu jardim e de seu vaso

e então, a [Ana 2] começou a desconfiar de que não era o Girassol que estava fazendo

isso e sim a Rosa, a [Ana 1], o que só se confirmou quando eles se separaram e o

Girassol finalmente se reaproximou da Margarida.

O Girassol contou à [Ana 2] que a [Ana 1] era abusiva, que mantinha ele num

vaso tampado sem poder crescer nem ver outras flores, que machucava ele com seus

espinhos, a Rosa, que era vermelha, mas não da cor da paixão e sim da violência, nesse

caso psicológica; então eles se separaram e a Rosa [Ana 1] deixou seu vaso.

A Margarida ainda amava o Girassol, e depois de saber disso eles finalmente

começaram a se aproximar de verdade e depois de um tempo eles se beijaram, suas

pétalas finalmente se encontraram, seus caules se entrelaçaram e as pétalas da

Margarida, que tinham caído, voltaram a crescer com sua esperança, e então ela passou

a ser a [Ana] preferida, a [Ana] que estava com o Girassol e a flor que estava com ele.

Mas depois de três encontros em várias terras, jardins e várias noites regadas a

conversas de horas, depois das pétalas dos dois se encontrando várias vezes, o Girassol

ficou estranho com a Margarida, ele voltou a se afastar, parou de regar a relação e foi

gradualmente deixando a [Ana 2] murchar por completo sem explicação, e conforme

o Girassol se isolava no seu próprio vaso e empurrava a Margarida para fora dele, ela

despedaçava. E não tinha como isso ser culpa da Rosa, a [Ana 1], dessa vez.

A Margarida, [Ana 2], chorou para o Girassol enquanto ele dizia "foi legal ficar

com você, não é você sou eu, eu tô me afastando de todas as flores, quero ficar sozinho no meu

95
vaso, e juro que não enjoei de você" e Margarida, mesmo completamente murcha e sem

cor, acreditou no Girassol e pensou que eles poderiam pelo menos serem vasos

vizinhos do mesmo jardim, sem necessariamente o dividirem, serem apenas amigos,

mas não foi o que aconteceu.

O Girassol se afastou por completo, tanto que a Margarida, [Ana 2], nem sabia

mais como era a cor amarela. Mas se o Girassol estava se afastando de todas as flores,

porque de repente apareceu a [Ana 3] em seu jardim?

A [Ana 3], uma linda Tulipa vermelha, que a Margarida também já tinha visto

naquele mesmo palco fazendo a mesma apresentação junto com o Girassol. Conforme

o tempo foi passando e mais apresentações dos dois aconteceram, estava claro que o

Girassol e a Tulipa, [Ana 3], estavam juntos.

Podia ser só paranoia da Margarida, mas ela começou a ver como o Girassol

tratava a Tulipa pessoalmente e não-pessoalmente. Os elogios, os "eu amo sua cor forte

e vermelha, e o Giras(sol) brilha para você", a forma que os caules deles se uniam... Mas a

[Ana 2] se convenceu que aquilo era só porque o Girassol e a [Ana 3] estavam no

mesmo jardim. Não estavam no mesmo vaso, sendo apenas amigos. Até que um dia

antes do "dia das flores" (12 de junho) a [Ana 3] postou uma foto com o Girassol

dizendo "meu Giras(sol) particular" a Margarida ao ver aquilo se despedaçou por

completo, regou demais o próprio vaso e se afogou nele, ficando fora de si e vomitando

tudo depois. A [Ana 2] viu o seu miolo se desmanchando, bêbada, num ciclo de tristeza

sem fim por se sentir trocada e enganada. No final, acreditou que, na verdade, o

Girassol que tinha espinhos.

Até que de repente, depois dessa foto, o Girassol parou de elogiar a Tulipa, [Ana

3], parou de dizer e demonstrar qualquer coisa por ela, e inclusive deletou a foto deles

um tempo depois.

96
A Margarida começou a refletir que na verdade a [Ana 1], a Rosa, talvez não

fosse a vilã da história, que talvez ela só afastava o Girassol da [Ana 2] ,Margarida, lá

no começo pois o Girassol fazia ela se sentir insegura e traída enquanto eles estavam

no compromisso de estar no mesmo vaso, e percebeu que a [Ana 3] provavelmente

caiu na mesma armadilha e encantos do Girassol com os elogios e suas pétalas bonitas

e por ser uma flor tão grandiosa e atraente.

A [Ana 2] também descobriu, enquanto dividia o mesmo vaso com o Girassol,

antes da Tulipa, que a história dos dois começou bem antes do que pensava. Na verdade, ela

viu o Girassol a primeira vez em 2017, de novo fazendo arte com outras flores, também

num palco, e nesse dia a Margarida, que já estava completamente murcha depois de

tantas outras flores a machucarem, decidiu encerrar sua própria existência e se afogar

de vez, regando seu vaso até o topo, se forçando a sair da terra e arrancando sua raiz

do vaso, pronta pra se estraçalhar por completo e morrer.

Se a [Ana 2] tivesse conseguido morrer aquele dia, o Girassol ia acabar sabendo,

pois o palco era bem perto do seu vaso e de seu jardim, mesmo não sabendo que seu

nome era Giov(anna²), ia acabar descobrindo com todo o jardim pedindo socorro e

tentando fazer a Margarida voltar à vida e replantando ela no vaso, afinal, as flores

que se apresentavam junto com o Girassol naquele dia eram amigas da Margarida. Se

a [Ana 2] tivesse morrido, você, Girassol, ainda estaria com a [Ana 1]? Ou já a teria

trocado pela [Ana 3]? Se a [Ana 2] não se chamasse Giov(anna²), e sim apenas "Ana",

como as outras duas flores, você teria ficado com ela?

No final, a Margarida percebeu que não importava se ela se chamava

Giov(anna²) ou só Ana, se ela teria morrido em 2017 ou não, o Girassol iria trocar ela

pelas outras Anas, porque o Girassol parece gostar muito desse tipo de flor, sempre

vermelhas com o nome de "Ana", tanto que o Girassol só assumiu um compromisso

sério com elas duas, e que só resolveu dividir o mesmo vaso com a Giov(anna²) por

um tempo curto porque, de certa forma, ela ainda tinha "Ana" no nome, mesmo sendo

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um pouco diferente, branca e sem graça. No final todas as flores, as “Anas”, estavam

no mesmo jardim, todas abandonadas por uma flor maior, todas perdendo pétalas por

conta da mesma flor, todas sem ser regadas direito, mal cuidadas, todas murchas,

todas com miolo despedaçado. Todas enganadas.

O Girassol é um colecionador de memórias. Suas relações, dividir o mesmo vaso

e jardim com outras flores, não duram porque o Girassol nunca se entrega de verdade,

só quer experiências para poder contar para os outros Girassóis depois, para poder

pensar na sua existência e concluir: "é eu vivi bem, floresci muito, esfreguei bastante pétalas

com outras flores e peguei diferentes espécies delas" e ter muita coisa para contar que

vivenciou e é só isso, mas eu, Giov(anna²), fico triste por você, porque nada foi

verdadeiro, você nunca sentiu nada por essas flores, só as magoou, arruinando suas

pétalas, seus vasos, as memórias e lembranças que achavam especial, pois você as

iludiu, então tudo que aconteceu não teve uma importância real, porque pra você,

Girassol, não foi nada, mas paras as flores que você conquistou e arrancou da terra,

apenas pelo capricho de tê-las, virou algo doloroso e falso, porque você foi embora

logo depois de guardar aqueles momentos e suas pétalas no seu souvenir de merda,

enterrando no seu jardim como uma conquista, se você as amasse você cuidaria,

regaria e cultivaria, mas como você as queria só para você, para depois descartá-las,

arrancou elas da terra as fazendo morrer.

Giov(anna²) percebeu que na verdade não era uma Margarida, e sim uma Flor

de Lótus e que não cresce na terra e sim na água, assim como não cabia no vaso

trincado, raso, pequeno, mal cuidado e medíocre em que o Girassol vivia. Que

acreditou que precisava, só porque queria viver e se plantar lá, cega por amar o

Girassol sem notar como ele era mentiroso e manipulador. Ela percebeu que não

precisava do Girassol, apenas do [Sol], pois ele sim a fazia crescer, porque a flor de

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lótus durante a noite fecha suas pétalas e submerge, mas com os primeiros raios solares

ela reaparece sobre as águas e se abre novamente.

Ela notou que, mesmo sendo uma flor que emerge das águas sujas e vem da

lama, ainda era forte e bonita, pois ela cresce lá sem se sujar, a raiz está na lama, o caule

na água e a flor no [Sol], Flor de Lótus surge da obscuridade para desabrochar em

plena luz, não precisava do Girassol, ela já tinha o próprio [Sol] dentro de si, e o

Girassol nunca a mereceu, ela tinha a água doce inteira para ficar, não dependia de

mais nenhuma flor de nenhum jardim para crescer, apenas dela mesma.

A Flor de Lótus mesmo murcha, despedaçando, sem as pétalas e com seu miolo

partido, descobriu que sua cor não era branca e sim amarela e vermelha, a cor da Rosa

e da Tulipa, da [Ana 1] e da [Ana 3] e a cor do Girassol, ou seja, Giov(anna²) já tinha

tudo que precisava, não precisava se parecer com a Tulipa ou com a Rosa, muito menos

para agradar uma flor que também só se parecia com o [Sol], mas não era ele de fato.

Ele era uma mentira.

A Flor de Lótus finalmente voltara a florescer.

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Liberdade

Escrito por: Naara

Sempre me disseram para me encaixar, para sempre pertencer ao todo, para não

fugir do normativo e do padrão, para me esconder, para apagar quem eu sou e o que

me torna o que eu sou.

"Pertença sempre ou aos tons pretos ou aos tons brancos", mas o que acontece

se eu disser que me vejo no cinza? Que a minha liberdade está em não pertencer e não

me encaixar?

Habito no ser que eu sou, vivo em cada respiração minha, o meu mundo

ultrapassa qualquer senso comum, meu olhos são treinados para ver além. Nesses

anos todos, aprendi que enquanto tem alguém que aponta o dedo, terão várias pessoas

que te estenderão a mão.

E aquilo que o preconceito da sociedade julga como feio, errado, cinza... Eu

vejo como colorido, libertador e imensamente vasto! Tão vasto que não cabe

qualquer medo ou discriminação dentro.

100
Sol

Escrito por: Sol

Eu estava sentado com vários livros embaixo de mim para que pudesse alcançar

a mesa. Aquele ambiente sempre me fora muito familiar, cresci sendo paparicado por

todos aqueles professores, colegas de minha mãe. Sempre gostei muito de todos,

menos dele.

Toda vez que o via, corria para a segurança que encontrava em minha mãe. Ele

estava sempre brincando comigo e entendo que suas intenções não eram ruins, mas

isso não importa para uma criança de seis anos.

Naquele dia ele veio, com suas boas intenções, e ergueu minha cadeira comigo

ainda sentada. De início, ri, como de costume, para tentar disfarçar o desconforto, mas

daquela vez isso não foi suficiente. Não aguentei mais segurar, chorei. E chorei por

todas as vezes que havia segurado, por todas as gracinhas que um dia me deixaram

sem graça, e também, por não ter sido capaz de segurar.

Me senti mal por muito tempo depois disso, até hoje sinto, por não ter me

segurado, por não ter o parado antes, por tê-lo feito se sentir mal e, principalmente,

por não ter dito antes que não gostava daquelas brincadeiras. Mas ele também nunca

perguntou.

101
Mínimos Detalhes

Escrito por: Eli

"Sinceramente? Eu não sei pelo o que ser grato, grato pelo o quê? Não vem acontecendo

muitas coisas pelas quais eu seria grato."

Era o que eu dizia até pouco tempo atrás. Meus parâmetros de gratidão eram

conturbados, não entendia bem como isso funcionava.

Hoje, eu acredito que a gratidão venha de coisas simples, que de pouco em

pouco nos faz enxergar que a nossa vida não é de todo ruim e temos motivos para

querer viver.

Um exemplo? Eu tenho amigos que me deram suporte para ser quem eu sou

hoje, tenho uma mãe que durante anos soube que eu era diferente, mas me deu tempo

para me entender e no fim me apoiou. São pequenos detalhes que me fizeram entender

que eu tenho motivos pra me sentir, mesmo que minimamente, feliz. Mesmo com

todos os meus problemas e crises, no fim eu nunca estive só.

Notar esse tipo de coisa me dá uma sensação de leveza que é inexplicável, mas

incrível.

Se eu pudesse dar um conselho, lhe diria para se atentar a esses pequenos

detalhes que fazem da sua vida menos sofrida, seja lá quem ou o que for, dê valor

aos mínimos detalhes.

102
Sobre encontrar quem você é no universo

Escrito por: Ceres B.

Eu me lembro da sensação de estar sozinha no mundo. Eu lembro do pânico

quando alguém se interessava por mim e da pressão para que me interessasse

minimamente pela pessoa também.

Eu lembro de ver minhas amigas beijarem e não sentir vontade de fazer aquilo.

Lembro de não entender como algo que parecia tão natural para elas, não vinha com

a mesma facilidade para mim. E lembro de me sentir errada.

"Sou errada. Não quero ser assim. Eu quero ser normal."

Lembro de ter catorze anos e chorar me perguntando o que tinha de errado

comigo. E não me sentir próxima das pessoas porque tinha medo de que se elas

descobrissem, eu seria vista como uma aberração. Lembro-me de falar com Deus e

perguntar por que, de todos, eu nasci dessa maneira. Por que eu não me sentia

verdadeiramente confortável em nenhuma conversa, e por que parecia que só eu

estava fingindo me divertir falando daquelas coisas? Por que eles não estavam

fingindo? Onde estava o meu pessoal? Não eram eles.

Eu não fazia parte de nenhum grupo.

Me agarrei ao rótulo "assexual" com toda a força que pude quando o encontrei.

Para não me perder. Para não me esquecer nunca mais. Eu precisava daquilo. Eu

precisava de uma definição para que eu pudesse entender que eu não fui feita em um

molde defeituoso. E que eu não estava sozinha. Eu encontrei uma comunidade inteira

de pessoas diversas, mas que em essência, eram o mesmo que eu.

E pela primeira vez na vida eu me senti correta.

Faz três anos que eu não me questiono sobre normalidade. Três anos que eu não
103
me sinto de outro mundo por não sentir. Mas quando lembro de todo o caminho até

aqui, as vezes ainda sinto raiva. Raiva pelo mundo ser como é. Por ter me feito

acreditar que eu estava quebrada por não me encaixar no mesmo lugar que eles.

Queria poder falar com meu “eu” de catorze anos, eu iria abraçá-la com força, a olharia

nos olhos e diria:

Não tem nada de errado. Existem outras pessoas como você. O universo é

grande e você nunca esteve sozinha.

104
um pouco sobre dor e amor

Escrito por: Maria Thais

mesmo sem nunca ter me apaixonado, sempre soube que amar era doloroso.

eu não queria dor.

já não bastava o que eu vivia?

não estava a fim de sofrer por uma pessoa.

já tinha gente demais fazendo isso.

já haviam várias pessoas chorando de coração partido.

e já existiam muitas pessoas desesperadas por esse sentimento que as deixam

vulneráveis.

então eu nunca quis amor.

parecia ser impossível encontrar aquela pessoa sem antes passar por uma experiência

quase traumática.

e isso me assustava muito.

apenas quis o que os outros queriam.

eu só queria alguém comigo sem sofrer.

mas foi o que me ensinaram. você deve sofrer para merecer.

até que eu lhe conheci. e quanto mais me aproximava, menos dor parecia vir de você.

de primeira achei estranho e confuso como eu consegui ter um amor como o nosso.

de como você me quis apenas por estar lá.

105
de como eu posso confiar em você sem me machucar.

e que fique estranho, que não faça sentido; mas pelo menos você está aqui e isso para

mim é o suficiente.

ainda estou aprendendo que amar nem sempre significa sofrer, é verdade, mas estou

feliz que você está comigo.

106
Uma carta para o meu vínculo mais antigo

Escrito por: Adhara Ghost

Ei, maninho?

Será que ainda posso te chamar assim? Houve uma época em que eu escrevia

para você toda semana; e agora é a primeira vez em meses, só que ainda sinto que não

deveria.

Pergunto-me se também sente mágoa, se sente nostalgia da nossa época, das

nossas histórias; ou se apenas esqueceu. Nossos tempos são traiçoeiros, queria poder

dividir as poucas coisas boas com você.

Há dias em que revivo os flashes de coisas que você me disse, conversas de anos

atrás, textos que deixou para mim.

Eu não acredito que nossa ligação possa ser rompida, há uma força que sempre

vai nos chamar; nos fazer voltar para casa. Fico à espera desse chamado, fico à espera

de uma mensagem sua. Você aguarda a minha? Acredito que sim.

Eu me lembro daquele personagem olhando para o céu e querendo ser parte da

lua, mas se via apenas como uma estrela distante, que nunca faria parte de algo maior.

Mas você não é uma estrela solitária, queira ou não, você é minha estrela irmã. Ainda

que estrelas não se destaquem no céu como a lua, fazem parte de uma constelação, e

sendo assim, parte de algo "maior", não acha?

Apesar dos desentendimentos e da incompatibilidade, somos da mesma

família, ainda que nosso laço não seja de sangue.

Sabia que eu finalmente me encontrei?

107
Você também pondera se vale a pena recomeçar? Ou está certo de que a

distância é a melhor opção, já que a ideia foi minha?

Tenho infinitas coisas pra contar, sinto falta do A., dos elfos e de todas as suas

histórias e nossos projetos, que não são mais nossos — infelizmente. Admiro seu

mundo, ele é vasto, criativo e vivo, e um dia será aberto a visitas… Tomara que eu seja

uma delas.

Para meu escritor preferido, irmão e amigo

Atenciosamente,

Adhara Ghost

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C’est la vie

Escrito por: Lua Barbier

O que é a vida, afinal? Uma suposta vitória que nos faz experimentar um pouco

do que é sentir algo real. Muitos dizem que a vida é um presente, e sempre que ouvia

isso, eu não concordava. Mas há tanto sofrimento, há tanta dor, por que isso seria um

presente? Foi aí que percebi que não se trata de algo meu, e sim dos outros ao meu

redor. O presente que é a minha vida, é relacionado aos outros. A minha vida tem

valor para eles. Mesmo havendo tanta melancolia, a vida é uma dádiva. Um caldeirão

de sentimentos que nos completam. Afinal, o que seria da felicidade sem a tristeza? Da

mais bela euforia sem o fundo do poço escuro? E, de qualquer forma, eu adotei uma

forma de viver, onde não vivo por mim, mas pelos outros. Passo pela dor, aprendo com

ela e dou suporte a quem irá passar pela mesma coisa. Mantenho minha dádiva pelo

bem dos que estão comigo. Porque eu sei que, da mesma forma que eu me importo

com eles, eles se importam comigo.

Posso dizer que a vida é música. Um ritmo sincronizado com um toque suave,

uma voz que canta calmamente sobre cada espinho que tem dentro de si. Talvez eu

não seja alguém confiável para escrever sobre a vida, logo eu, a que sempre escreve

sobre a escuridão que tem circulado em suas veias. Talvez muitos escritores,

conhecidos ou não, fariam um texto de cair lágrimas. Porém, sou eu aqui. A vida é um

texto, cada um o escreve de uma forma. Nomes aparecem, nomes se vão. A escuridão

pode encontrar a luz em palavras. Cada um escreve sua vida de uma diferente forma,

com diferentes dificuldades. E depois de tudo, eu te pergunto: o que é a vida afinal?

109
Permita-se sentir

Escrito por: Acey G.

Por que

Eu me privaria da vida

Com medo de sentir?

Qual garantia tenho

De que você vai estar aqui?

Não ter a intenção

Nem sempre impede o ato

Me machucou

E foi intencional quando tocou cada canto meu

Me machucou

E não foi intencional quando me rejeitou pela (as)sexualidade

Não teria como eu controlar

O sentir

Porque até aqui

Trancado em meu quarto

Posso sentir o vazio em mim

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Querido Amigo

Escrito por: Thays Garcia

Declaro meu amor por você sempre que possível, mas, às vezes, esqueço de

agradecer.

Agradecer pelas noites em claro na cama, enrolada nas cobertas, com uma

pequena lanterna e as palavras sendo a única luz.

Pelos pesadelos afastados pela magia das palavras, pelo conforto e consolo que

só as histórias conseguiam trazer. Pela compreensão e pelo amor, sempre sinceros e

incondicionais.

Por estar sempre ao meu lado sem pedir nada em troca.

Por salvar minha vida e por multiplicá-la. Por sua causa vivi mil vidas.

Por todos os amigos e amores.

Por todas as viagens, aventuras e batalhas. Por todos os mundos que você

comporta em si.

Um objeto de diferentes tamanhos, na maioria das vezes não muito grande, às

vezes, muito pesado por carregar mundos inteiros dentro de si.

Mundos para os quais fugi quando o meu ficou pesado demais.

Um mundo às vezes tão pesado que me afastou de você, me afastou da fuga da

realidade. Em um mundo que me disse que estaria sozinha, porque minha forma de

amar não era suficiente, eu tinha você para me lembrar que existem muitas formas de

amar, e que nunca estaria sozinha porque tinha você. Podia não ter pessoas, mas tinha

histórias e a companhia das histórias no fim das contas se tornou preferível. As

histórias nunca me abandonaram de forma alguma, mesmo depois de anos, as


111
memórias estavam sempre a um pensamento de distância, sempre na minha mente,

para onde eu podia fugir a qualquer momento do dia, apenas abrindo suas páginas

farfalhantes que sussurravam segredos e as mais belas promessas.

Esqueço de agradecer pelos amigos verdadeiros, no mundo real, que se

tornaram minha família, e que 99% das vezes vieram por causa do amor pelas

histórias, seja aquelas por mim lidas ou escritas.

As palavras são magia, uma magia que vai muito além das páginas.

E é por essa magia e tudo que ela me trouxe, pelo que ela me tornou, pelos

amigos e o consolo que ela me proporcionou, que esqueço de agradecer... Mas como

encontrar palavras que sejam dignas do tamanho do amor para agradecer por coisas

tão grandes? Mas palavras são tudo o que tenho, e podem não ser tão boas quanto as

suas, mas são sinceras, assim como o meu amor.

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Arrependimento

Escrito por: Moo

Sempre que alguém fala em arrependimento me vem uma chuva de memórias

na cabeça, quase que indecifráveis, porque é tanta coisa que nem mesmo eu sei. É

muito estranho quando eu paro para pensar nisso, do que de fato eu me arrependo? O

que teria mudado se eu tivesse feito tal coisa?

“Você faria tudo diferente se pudesse voltar no tempo?”

Para falar a verdade, eu acho que não. Nós sempre vamos nos arrepender de

alguma coisa e por mais que a gente tente, esse sentimento nunca vai passar, sempre

vai surgir outra coisa para se arrepender. Se arrepender de ter falado algo ou não, de

não ter feito alguma coisa para ajudar alguém...

E com isso surge a culpa, a tristeza, o sentimento de não poder fazer nada para

reverter a situação. Vira uma bola de neve.

Mas, pensando por outro lado, o que seria de nós sem sentimentos ruins? Ou

sem as situações que mudaram nossas vidas, situações que surgiram do que

julgávamos como certo, quando na verdade eram o errado?

Com o arrependimento também vem o aprendizado, a experiência – que logo

se tornarão bons conselhos para alguém. De uma maneira saudável, o arrependimento

em si não é algo totalmente ruim.

A maioria das obras de arte e coisas que retratam esse sentimento, pelo menos

as que vi, sempre têm um padrão: a coisa ruim acontece, a personagem toma uma

decisão, surge o arrependimento e uma nova decisão é tomada, anulando as decisões

do passado. E assim, o arrependimento desaparece por completo

E não está totalmente errado, mas essa questão de como lidar e como acabar
113
com o arrependimento é meio suavizada. Nossa vida não é um filme de duas horas ou

um episódio de vinte ou quarenta minutos. O arrependimento fica por muito mais

tempo ou morre com a gente, dependendo da situação. Quando eu realizo uma ação

que supostamente acabaria com o meu arrependimento do passado, ele na verdade

fica mais forte. “Se eu não tivesse feito aquilo ano passado, não teria que fazer isso

hoje”.

O arrependimento é, de fato, algo ruim, mas necessário, assim como a tristeza,

se for de um jeito saudável. Não devemos ser escravos dos nossos arrependimentos,

temos de senti-los, para assim crescermos como pessoas.

114
Outra forma de amar

Escrito por: Ana Letícia

Para aqueles que estiveram ao meu lado e sempre deram um jeitinho de me

apoiar. Tenho orgulho de tê-los não somente como amigos, mas também como uma

família que amo e que me aceitou desde sempre do jeitinho que sou.

Amizade, segundo o dicionário: sentimento de grande afeição, simpatia, apreço

entre pessoas ou entidades.

O tempo todo vemos séries, filmes, livros e muitos outros tipos de mídia falando

sobre amizade, como algo indestrutível e fácil de ser entendido, mas a verdade é que

é muito mais do que isso; é algo estranho que pode surgir dos momentos mais

inusitados e das pessoas mais inesperadas.

Pode durar um dia ou um ano, até mesmo a vida toda, mas, mesmo as que

duraram pouco, tiveram alguma importância. Talvez elas tenham surgido para nos

alegrar em um momento difícil, nos ajudar a aguentar o caminho à nossa frente, e

então, quando não precisamos mais desse apoio, elas simplesmente acabam. Algumas,

devagar e tranquilamente, outras de forma abrupta. Mas, independente disso, cada

uma deixa alguma marca à sua própria maneira.

Quando você percebe, já está amando tanto aquela pessoa que já não se imagina

sem ela em sua vida. Não é um amor como o que se vê em filmes ou em livros, mas

um amor diferente, genuíno, onde depositamos nossa confiança e onde buscamos

apoio. Graças a ele, somos capazes de passar pelos piores momentos e ele seria capaz

de nos fazer dar nossa própria vida, se necessário.

São com os amigos que compartilhamos nossas experiências, segredos e tudo

que se possa imaginar.

115
Não importa o quê, eles sempre estão lá para nos escutar.

Na maioria das vezes, são eles que nos aconselham nos momentos difíceis e nos

mais banais. Às vezes, podem saber mais sobre a gente do que nós mesmos e mesmo

conhecendo cada partezinha nossa, cada coisinha, boa e ruim, ainda assim continuam

lá, sem se importar, apenas nos aceitando como somos.

Muitos dos momentos mais especiais da minha vida foram ao lado dos meus

amigos. Seja numa apresentação da escola ou em uma ida ao parque de diversões, eles

sempre estavam lá, nos momentos tristes e nos felizes.

Mas o momento em que eu fiquei mais feliz em tê-los por perto, foi quando me

descobri assexual. No início, posso ter tido medo de contar, mas quando finalmente

criei coragem me senti finalmente livre e só fui capaz de me entender e aceitar pois

eles estavam ao meu lado, porque eles me aceitaram e, mesmo de longe, me apoiaram.

Eu só sei quem sou pois tive pessoas com quem contar, e são essas pessoas a

quem chamo de amigos. Aqueles que me ajudaram a moldar quem sou hoje, e também,

quem serei no futuro.

116
Na verdade, eu não queria ser um peixe

Escrito por: Anna D.

A luz fluorescente lentamente atinge o palco. No centro, dois corpos sobre um chão de

madeira, equidistantes do centro. O clima é glacial — os corpos estremecem. Um,

perfeitamente vestido num tecido sem cor, com longas garras retorcidas, sorri com lábios

pintados de morte. O outro, vestido sob camadas e camadas, mal consegue respirar. Parece

carregar o peso do mundo sobre os ombros. Os dois corpos se encaram — é como encarar um

raio em plena queda.

Um passo para frente. O raio se vai. O primeiro corpo exerce domínio sobre o segundo,

que não consegue escapar.

Olha só para você. Seus olhos são tão cinzas, mesmo tendo tantas cores por trás

dessas lentes… Quantas nuances você esconde por trás dessa parede de vidro? Por que

você nunca deixa a luz te alcançar? Por que você é tão… Cinza?

Eu mal consigo te olhar. Está tudo tão errado com você. Sinta minhas mãos frias

sobre seu pescoço frágil — sinta a pressão da minha pele sobre a sua pele. Você sente

seu corpo lentamente devorado pelo terror glacial? Você sente medo dessas garras

frias tão perto de você? Por favor, pare de fugir.

Essas garras negras chegam na sua pele e te rasgam — por que você odeia tanto

esse toque? Por favor, eu só quero que você fique bem. Eu quero que você seja

normal… Como eu sou normal.

Olhe para seu corpo — treme tanto e é tão cinza. Por que você não vê como não

é normal o que você sente? Anti-natural.

117
“Por favor eu só quero o seu bem, então pare de ser tão errada!”

Diz a sociedade para a pequena criança cinzenta que observa o mundo através de lentes de mil

tons.

Olhe para mim. Meus olhos são lindos — tem tantos nuances atrás desses

tons

de

cinza.

Eu posso passar horas olhando para mim diante de um espelho de vidro, antes

de o quebrar e assistir os estilhaços formarem vitrais e viver com a dor das minhas

pontas tortas. É muito bom respirar fora desse aquário. Eu olho para minha

E vejo a luz

que atravessa

as portas desse

aquário;

118
Eu vejo com meus olhos cinzentos, de camadas e mais camadas de infinitos,

uma criança que sempre foi deslocada. Pobre dela, presa em ideias erradas — um

quadrado tão perfeito que ninguém poderia reclamar, mas também, ninguém

imaginava que a tempestade por trás daqueles olhos tão cinzas tinha tantos furacões.

Criança errada, que pensava demais, e ao mesmo tempo, percebia de menos as

pessoas ao seu redor e o quanto elas se importavam com algumas coisas das quais ela

não tinha consciência.

Criança incerta, que transformava em palavras toda aquela confusão e formava

caos da própria palavra falada. Criança curiosa, com a mente repleta de magia e

fantasia, sempre tão distante da realidade que insiste em transformá-la.

Não mais criança, ela começa a perceber que as pessoas têm tanta atenção pelas

outras que chega a ser engraçado. É tudo uma grande brincadeira, um perfeito

carrossel — e tocar é divertido, não é? Todo mundo acha...

Mas esses olhos cansados, cobertos por nuvens cinzas, começam a se

desanuviar e veem por trás da brincadeira — na verdade, nunca foi uma piada para

os outros como foi para ela. Quer dizer que as pessoas realmente sentem isso?

E ela, por que nunca sentiu?

É tão desconfortável

assistir esse contato extremo

entre corpos em

ABSOLUTAMENTE

todos os filmes.

Esses olhos cinzentos de tantas camadas e tantos fantasmas dentro de armários,

cada vez mais transparentes, piscam e veem aquela criança-que-não-é-mais-criança

119
brincar com palavras e cores e tons para formar alguma C O E R Ê N C I A do turbilhão

de emoções que perturbam seu pensamento contracorrente.

E, naquelas palavras, que olhos cobertos por lentes veem sem nem piscar, a

criança cinzenta percebe que encontrou um lugar no meio de palavras e pessoas e

algoritmos e gente que vai tão na outra direção quanto ela.

Porque existe força na unidade divergente daquele grupo transparente. Porque

nem todos são como nos filmes de corpos-com-corpos nem de livros-com-descrições-

tão-irritante. Porque existe uma multidão que não cabe em cinquenta tons de cinza.

Porque, do vidro quebrado,

rompido pela força da voz

daquele 1%, um vitral cheio de

nuances se formou — e nele

tem espaço para todas as

crianças cinzentas que

entendiam ou não o que o

mundo esperava delas.

E hoje, um par de olhos multicoloridos observa o vitral e ele RELUZ.

O corpo ferido, por anos e anos de tanto gritar sem ser ouvido, se reclina. Não para seu

algoz desde o nascimento — aquele reflexo de um mundo cheio de normas e garras cruéis —,

mas para todos aqueles que, como ele, vivem, existem e resistem, APESAR DE, para continuar

gritando e se fazendo ouvir, para manter inteiro o vitral.

Que hoje, banhado em suas nuances de cinza, sabe que é um universo.

120
Pietro e Ramona

Escrito por: Maíla Ferreira

Ninguém sabe a história contada por trás dos muros de um castelo. Nós

sabemos hoje como eles eram grandes e belos pelo que nos restou para ver deles. Mas

as histórias que rondavam os grandes corredores de marfim da família Cortês di

Ângelo eram restritas apenas aos trabalhadores do castelo italiano. Os burburinhos

tinham de ficar dentro da torre apenas, afinal era o século XIX e tais calúnias não

deviam ser espalhadas, principalmente quando estas são sobre quem tem poder e

nasce com sangue azul. Mas deixe-me lhes contar o motivo para tantos cochichos.

Conheçam Pietro, mais formalmente, Pietro Enrico Cristoferson Cortês di

Ângelo, mas Pietro já está de bom tamanho. Quarto filho e também candidato ao trono

atrás de seu irmão mais velho Ruben, que era simplesmente uma inspiração para o

jovem Pietro. O que o irmão arriscava em fazer, Pietro tentava também. Arco e flecha?

Lá estava ele acompanhando seu mentor de sangue. Se arriscou no xadrez e não

ganhou, mas quem disse que desistiria tão fácil? A única tarefa que Pietro fazia e não

tinha relação com seu irmão, era bailar. Pietro amava valsar pelo salão, puxara isso de

sua mãe e não tinha vergonha de mostrar seu dote para seu irmão ou os demais.

Só teve uma atividade que Ruben fez e Pietro se sentiu estranho ao tentar copiar,

e esta não envolvia pés bailando em um imenso salão. Em seu aniversário de 16 anos,

o irmão havia levado Pietro ao que o menino imaginou ser uma taberna. Naquela

manhã Ruben dissera:

“Irmão, já está mais do que na hora de aprender a arte da sedução”

Pietro, que não era bobo, sabia que tinha algo a ver com seus encontros às

escondidas com moçoilas pelos corredores do castelo. Não foram raras as vezes em

que viu o príncipe acompanhado de moças que eram serventes do castelo ou até damas

121
da comunidade burguesa, que vinham de visita, e caiam nos braços de seu vigoroso

irmão. Mas ele jamais imaginara o que acontecia ali na casa que entraram. Não era

somente uma taberna, era também um bordel. Soube disso assim que botou os olhos

na mulher que os recebeu, seu busto estava praticamente pulando para fora do corpete.

“Meeeninos que honra, entrem, fiquem a vontade e se sirvam como quiserem,

aqui a companhia não tem limites”

A forma com que ela dizia aquilo, e sacudia seus peitos imensos, intimidava o

menino Pietro mais do que tudo, mas para Ruben parecia tudo tão natural. Ele

cumprimentou a mulher e foi direto para uma mesa mais funda, perto do que parecia

um palco. Não demorou mais que alguns minutos para que duas mulheres surgissem

do nada e se apressassem para sentar bem coladas a Ruben e Pietro. Seu irmão ria e

bebia, em meio a conversas paralelas com outros cavaleiros que vinham comprimentá-

lo. Pietro mal não tirava os olhos da mesa, de vez em quando dando um sorriso contido

para a moça ao seu lado. Em determinado momento Ruben subiu com sua cobiçada

acompanhante, mas não sem antes chamar a moça ao lado de seu irmão e cochichar

algo em seu ouvido. Ela deu uma risadinha e voltou ao lugar que estava, porém agora,

parecia sedenta por algo. A mulher não tirava a boca da orelha do menino e tinha

começado a acariciar seu corpo de forma indiscreta. Pietro já havia praticado a arte de

tocar seu corpo uma vez ou outra, mas ter uma pessoa fazendo isso por ele era no

mínimo estranho e, por incrível que pareça, não lhe causava qualquer ânimo. Ser

tocado por uma qualquer, que nem ao menos fazia isso porque queria, mas sim porque

ele tinha dinheiro para pagá-la, não havia nem afeto no ato.

Subitamente, Pietro se levantou, soltou um tímido “com licença” e saiu daquele

ambiente o mais rápido possível. Pegou a carruagem e Ruben que desse um jeito de

voltar utilizando um de seus truques de sedução. Tudo em que Pietro antes via graça

no irmão, agora já não parecia mais tão divertido. Aquele ato era invasivo e, sem

122
qualquer dúvida, não lhe caia bem. Assim como dança não cabia a Ruben, Pietro não

cabia a… Bem, bordéis.

Bom, agora vocês sabem o motivo dos cochichos pelos corredores do castelo.

Por que cochichavam? Então, acontece que a criadagem era esperta demais para não

perceber que seria a noite em que o irmão mais velho levaria o pequeno Pietro para

um bordel. Naquela noite, o menino de ouro da casa se tornaria “homem”. Mas

quando repararam na chegada inesperada do garoto no castelo, sem seu irmão e tão

cedo... Eles sabiam que os planos falharam.

Três anos se passaram e Pietro não comentou nada com seu irmão, que também

não fez questão de tocar no assunto. O rei? Sabia dos boatos que rondavam o castelo,

de que seu filho era o que, na época, chamavam de “maricas”. O menino também sabia

das palavras dos intrometidos mas não se importava. Pietro também havia concluído

que relações com homens não lhe passavam despercebidas, sendo amor, o menino se

entregaria de bom grado aos braços do coração. Mas, por hora, guardava em seu peito

outras ambições que não eram se deitar com outra pessoa. Isso era um inconveniente

para os outros, para o seu pai por exemplo, que providenciou um encontro sem nem

ao menos o filho saber.

Era noite de inverno, quando em seu quarto entrou uma desconhecida

acompanhada de seu pai, a mulher era notavelmente bonita, mas quais seriam as

intenções daquele momento tão inesperado?

“Filho, eu lhe trouxe uma acompanhante.”

Pietro não podia acreditar em tamanha intrusão. Sua vontade era de gritar,

causar um escândalo, bater o pé e dizer que exigia que aquele cerco acabasse ali

mesmo, mas recuou perante a ameaça do pai de trazer todos os criados e membros da

corte para presenciar o seu defloramento. O rei não seria tolo de fazer tanto alarde por

causa de boatos alheios de criados, mas o jovem não quis arriscar. A ideia de ter o

123
quarto cheio de pessoas para ver aquilo lhe causava náuseas. A porta foi trancada e

ficaram os dois a sós no imenso quarto com cortinas de cetim, que faziam o único som

que se ouvia, devido ao silêncio tão constrangedor. De certo a moça ficou constrangida

com a briga que presenciou, porém não recuou, avançando sobre o príncipe e dizendo:

“E então...?”

O menino apenas levantou a sobrancelha, tentando colocar alguma palavra

para fora de sua boca, quando ela completou.

“Você joga xadrez?” A jovem apontou para o tabuleiro em cima da mesinha de

mogno em frente a lareira.

Pietro, sem palavras, assentiu.

Na primeira noite, Pietro realmente ficara incrédulo com a atitude da moça. Eles

jogaram, jogaram e conversaram um pouco sobre si. Pietro perguntou seu nome e a

moça, que se mostrou uma bela inimiga no xadrez, disse que se chamava Ramona.

Pouco antes de ela ir embora, por precaução e a conselho dela, os dois bagunçaram a

cama e desarrumaram suas vestes. Isso não convenceu o rei. Portanto, o menino

chamou mais uma vez Ramona. E mais outra e mais outra. Os dois se divertiam no

quarto e faziam de tudo, menos o mais esperado e óbvio. Uma noite, para dar o toque

especial, Ramona e Pietro balançaram a cama enquanto Ramona fazia questão de

gritar, os dois tentando abafar o riso enquanto faziam todos pensarem que algo

acontecia naquele quarto. Mas entre as risadas, em alguns momentos, os dois se

percebiam em um nível de intimidade tão mútua que chegavam a cair nos braços um

do outro e falar de coisas mais profundas, como seus sentimentos. Em uma noite,

Ramona confessou a Pietro como seu trabalho lhe era cansativo e como era desgastante

viver de agradar os outros. Pietro nunca teve que agradar, sempre esteve em uma

posição em que os outros tinham de lhe agradavam, mas, por ímpeto do destino,

estava deitado na cama, totalmente vestido e ao lado de uma mulher também vestida,

124
para agradar a seu pai. Ramona disse que nunca tinha aprendido a bailar. Pietro fez

questão de contar seus dotes em um salão de baile e Ramona aceitou, um dia, aprender

alguns passos ao seu lado. Certa vez, a moça também contou como se sentia em relação

ao amor, que não tinha o menor apego pelo sentimento e por isso não se sentia digna

de recebê-lo.

“Isso é absurdo” Pietro acusou. “Todos são dignos de amor”.

Ramona nunca pensou em receber amor e também nunca pensou em dar amor

a alguém, mas, pelo longo minuto em que seus olhos se fixaram nos olhos do rapaz ao

seu lado, ela teve a sensação de que, pela primeira vez, estava recebendo amor e de

que, dentro de seu peito, o mesmo sentimento pulsava. Era abstrato e, ao mesmo

tempo, tão irresistível.

Naquela noite, Pietro e Ramona trocaram um beijo, um beijo tão simples e tão

doce. O primeiro de Pietro e um de muitos de Ramona, mas que soava como o primeiro

pelo tamanho significado que continha.

Na outra noite, Pietro estava ansioso pela visita de sua colega de quarto e

confidente, será que iria ter a oportunidade de beijá-la novamente? Porém, suas

expectativas foram quebradas assim que entrou em seu quarto uma moça totalmente

diferente de quem esperava. Ele sabia que aquilo era trabalho do rei. É lógico que ele

abominava a ideia do filho acabar se apaixonando por uma “mulher da vida.” Há duas

semanas atrás, seu pai e Ruben partiram para uma guerra em ilhas vizinhas, mas nem

mesmo assim o velho lhe dava paz, devia ter deixado alguém sobre o comando disso.

Pois bem, o menino levou fé que veria Ramona na próxima noite. E assim pôde fazer

uma nova amiga, Celeste, um pouco amarga mas ótima ouvinte. Não era boa no

xadrez, mas era ótima em contar histórias bizarras de seu trabalho de modo irônico e

com palavras sujas, que causavam risos em Pietro.

125
Novamente, no outro dia aconteceu o esperado: outra moça. Margarida dessa

vez, radiante e gostava de a todo momento tocar Pietro, tentando atear fogo no corpo

do menino, se é que podemos dizer assim. Mas, como não obteve resultado, mostrou

ao príncipe seu dote com a pintura. As noites se seguiram assim, Pietro esperava

Ramona, mas cada vez era uma moça diferente que adentrava seu quarto. Giovana, já

fizera parte do circo. Madeleine, que sabia de cada segredo dos homens da cidade.

Jorgette, que tinha duas filhas em outro país e estava juntando dinheiro no bordel para

dar uma vida melhor a elas quando voltasse a sua terra natal.

Pietro adorava o fato de poder conversar com aquelas pessoas entre quatro

paredes, e o mais legal é que elas guardavam segredos e trocavam idéias que até

mesmo abriram a mente do garoto para o povo. Mas nada o fazia esquecer sua saudade

por Ramona, e a possibilidade de continuar aquele beijo doce o deixava com um

sorriso de orelha a orelha. Até que, uma noite, o menino tomou providências e foi às

escondidas para a taberna. Não faltaria muito para seu pai retornar da batalha então

ele tinha de agir agora. Chegando lá, ele encontrou todas as suas amigas e perguntou

por Ramona. Com alívio, ele a encontrou bem e pôde dar o abraço mais apertado que

conseguia, ele via em seus olhos que a moça mantinha a mesma saudade por ele.

Naquele quarto escuro, com uma clarabóia no teto, os dois confessaram o que sentiram

na noite do beijo. Os dois, então, se abraçaram e se deitaram na cama, se beijaram sem

se importar com o que os outros iriam pensar, trocaram carinhos entre sorrisos bobos

e adormeceram de mãos dadas e com os narizes colados. Tudo parecia tão límpido e

certo que quase não ouviram quando alguém bateu na porta.

Pietro sentiu um gelo na barriga ao atender e dar de cara com um soldado do

palácio. Se despediu de Ramona, prometendo que voltaria outra noite. Assim que

chegou em casa, viu o quanto o clima estava estranho. Os empregados todos diante do

grande salão em fileira. Ruben estava lá e recebeu seu irmão caçula com um abraço

126
apertado. Não era preciso dizer mais nada, Pietro entendera que não veria mais seu

pai.

O funeral do rei foi um abalo para todos do reino, que foram prestar suas

condolências no portão do castelo. A presença do padre e suas palavras, as estátuas de

santos na parede olhavam para baixo, parecendo querer chorar também. Pietro não

era o filho mais próximo do pai, um rei tem muitos afazeres, e estes deixavam o povo

contente. Seu pai, tão autoritário, havia sido um bom rei. O ocorrido instalou um

sentimento de culpa no peito do jovem príncipe. Agora, quem se achava indigno de

amor era ele que, as custas de seu pai, tinha estado feliz com toda aquela companhia,

enquanto o rei estava em guerra, dando o sangue pelas terras vizinhas.

Passou-se dias, Pietro se fechou em luto e foi Ramona quem o visitou. A moça

estava preocupada e como ninguém a deixava entrar, fez um pequeno amontoado de

cobertores e gravetos e dormiu nas portas do palácio. Logo, Pietro recebeu a notícia de

que havia uma indigente que não arredava o pé dos portões pois precisava falar com

ele. Quando viu a situação da amada, se lamentou por não ter lhe mandado nenhuma

carta e a chamou para entrar e dar uma volta pelos jardins do castelo.

“Lembro-me quando disse que não merecia amor e senti pena de ti, mas não

quero que sinta de mim agora.” Ele desabafou com ela durante a caminhada.

Ramona o abraçou com força e sussurrou em seus ouvidos: “Eu amo você.

Independente do que ache. Seria um insulto achar que não merece o que estou te

oferecendo.”

A resposta foi um “obrigado” carregado de ternura e um beijo na testa. Era

incrível como aquele toque tão singelo despertava um sentimento tão novo e bonito.

Pietro tinha certeza de que deveria deixar sua angústia de lado, afinal, a vida podia ter

muitas angústias e ser amarga, mas amores como este você só encontra uma vez.

127
Agora, os boatos do castelo de marfim eram outros, afinal de contas, os criados

precisavam comentar sobre algo, não? Mas, dessa vez, diziam que o príncipe havia se

apaixonado por uma prostituta. Depois da coroação de Ruben, os dois resolveram

jogar as cartas na mesa e deixar que todos soubessem que aquilo era real. Ramona já

havia ouvido desaforos por uma vida toda e, portanto, não se afetava e Pietro nunca

se importara com as línguas afiadas, não seria agora que iria se importar.

Depois de um tempo, os dois se mudaram para um castelo mais modesto no

reino ao lado. Dessa vez, eles tinham o tabuleiro de xadrez e um salão de festa só para

eles. Ramona agora iria poder aprender a dançar e teria um excelente professor que a

conduziria pela melodia.

128
Pequenos Começos

Escrito por: Led

A luz do sol reluzia forte no rosto de Li. Seus dedos seguravam o lápis 6B,

batendo-o em sua perna, enquanto observava o time de futebol treinando nos campos

sintéticos da Universidade. Se Li fosse ser uma pessoa completamente honesta, teria

dito que o único motivo pelo qual tinha arrastado o seu corpo para os campos quentes

de gramas verdes demais, era o capitão do time. Vitor era alto, loiro e rico, sobrinho

do reitor da Universidade e futuro arquiteto. Mas sua especialidade era fazer com que

o coração de Li desse uma volta sempre que ele aparecia nas aulas de Artes que

dividiam nas terças-feiras.

Li continuou batendo com o lápis na sua perna, sentindo o rímel escorrer pelo

seu rosto coberto de maquiagem, que era atingido pelo calor. Base e corretivo seguindo

o caminho da máscara de cílios, também derretendo por sua face. Era um dos dias mais

quentes até ali, mesmo sendo outono, e Li pensou com amargura que era efeito do

aquecimento global, e sobre como as estações ficariam cada vez mais desreguladas ao

passar dos anos. Era para ser o período mais frio antes do inverno e mesmo assim, aqui

estava Li, suando em sua maquiagem pesada e suas roupas pretas. Vitor gritou alguma

coisa no campo e capturou a atenção de todos ao redor. O rapaz era um dos cinco filhos

do jogador de futebol Riso, que havia sido destaque diversas vezes na Seleção, e que

tinha se formado na mesma Universidade que eles estavam agora.

E como se isso não fosse o suficiente para tornar Vitor e seus irmãos grandes

playboys que se achavam, todos eles tinham herdado a boa aparência do pai: cabelos

grossos, bonitos e escorridos e olhos claros mudando apenas a tonalidade de verde

para azul, dependendo do filho. Li soltou um suspiro observando Vitor. Era uma coisa

que tinha surgido do nada, bastou que um dia o jogador de futebol tivesse entrado na

129
sala, sorrindo como se fosse o dono do lugar, com a metade dos cabelos longos presos

em um coque e os fios ainda úmidos por conta do pós treino, para que Li sentisse como

se o chão tivesse desaparecido dos seus pés. De todos os cinco irmãos, Vitor era o que

mais parecia um rapaz comum, sem a aparência de semi-deus que os outros quatro

carregavam. Li tinha observado com os olhos atentos quando ele sentou do lado

oposto da sala e começou a lutar com o lápis e o giz pastel. Seus olhos tinham

capturado o jeito com que ele tencionava a testa, causando inúmeras rugas no lugar,

marcando a pele e como ele mexia no cabelo, ora amarrando, ora os soltando por

completo, enfiando os dedos longos nos fios, demonstrando frustração. A aula de artes

daquele período era obrigatória para os alunos de Moda e Arquitetura, por isso, Li e

Vitor compartilhavam da mesma turma, mesmo sendo de cursos e de campus opostos.

A Li do presente continuava observando Vitor, assistindo como ele era exibido

com seu irmão, Umberto. Tinham quase a mesma idade e eram a dupla de zagueiros

mais forte do campeonato entre as Universidades. Era como se todos eles fossem uma

afronta para a própria natureza. Bonitos, ricos, bons de futebol, e donos de tudo que

pudessem colocar os olhos.

“Você precisa terminar esse croqui ainda hoje.” Li escutou quando a amiga

sentou-se ao seu lado. Míriam tinha o péssimo hábito de chegar nos lugares do nada,

fazendo o mínimo de barulho e assustando todas as pessoas ao redor. “Sabe, não é

porque você tem talento que pode deixar todos os trabalhos para última hora, Li.” A

moça que tinha acabado de chegar tomou um gole do refrigerante que segurava e

observou os olhos delineados e com sombra colorida de Li. Os cílios postiços haviam

saído alguns momentos atrás quando o suor começou a escorrer pelo seu rosto. “E,

sério, se você não vai falar com ele, por que você fica nesse sol derretendo?” Míriam a

encarou por cima dos óculos, e Li quis bater na amiga.

Míriam era uma futura jornalista baixinha, de cabelos curtos e arrepiados e um

130
sorriso lindíssimo. Por conta da genética da família, os cabelos dela tinham diversas

mechas grossas em grisalho. Ainda no ensino médio, Míriam cobria as mechas com

toneladas de tintas para o cabelo, com vergonha demais dos fios grisalhos por estar

adiantada em envelhecer, ou parecer mais velha. Mas, assim que havia ingressado na

universidade e conhecido mais de si mesma e do mundo ao redor, havia usado as

mechas grisalhas com orgulho, deixando todas as pessoas ao redor com inveja. Li

queria bater nela por duas coisas: pelo quanto ela era bonita e porque ela estava certa

sobre Vitor.

“Eu gosto de assistir ele jogar. Você sabe muito bem que eu nunca falaria com

ele. Vitor é, você sabe, a estrelinha daqui.” Li voltou a sua atenção para o desenho,

sombreando as partes que no croqui de jaqueta que estava terminando. Era uma peça

de vinil, longa, com as abotoaduras inspiradas na estética militar. Li havia nomeado

aquela coleção de The Black Parade, como o álbum do My Chemical Romance que

adorava, assim como suas amigas. “E não é por que eu não tenho autoestima para falar

com Vitor, é só que…”

"É só que você é assexual, não-binarie e acha que Vitor vai te empurrar de uma

escada e te chamar de aberração." Míriam revirou os olhos, tomando mais um pouco

do refrigerante pelo canudo. Li queria rir. Ao mesmo tempo que a amiga era uma das

jornalistas mais ávidas por notícias esquisitas, e uma das melhores escritoras que

conhecia, ela ainda era tão clichê com os óculos na ponta do nariz e sua atitude. “Sério,

Li, você não pode deduzir o que as pessoas vão achar de você só de olhar para elas.

Okay, tem uma cacetada de gente ridícula lá fora? Sim! Mas nem todos são assim. E

Vitor, pelo que eu sei, é bem legal…”

Li continuou olhando para Míriam, que bebia o refrigerante pelo canudo de

metal. A jovem conhecia a família de Vitor há tanto tempo quanto conhecia Li. A

jornalista era filha da babá de um deles e havia crescido rodeada dos cinco irmãos.

131
“Os seus comentários não são imparciais e por isso não serão aceitos.” Li deu

uma risada, trocando o lápis 6B pela caneta preta, desenhando as linhas de fora da

jaqueta. “E eu não teria problema algum em falar com Vitor, só não temos assunto.”

Míriam tomou o restante do refrigerante, fazendo barulho enquanto terminava

o líquido gelado. Ela desviou o olhar de Li para o campo de futebol, onde a partida já

tinha terminado e os jogadores estavam recebendo as últimas ordens do técnico. Vitor

havia soltado o cabelo, deixando a confusão longa e suada de fios loiros claros cair

pelos seus ombros até a metade das costas.

“Bem, que bom que você não tem problemas com falar com ele, porque eu te

indiquei para ajudá-lo na matéria de Artes. Ele vai levar bomba e precisa de ajuda.” O

coração de Li parou e seus olhos foram em direção a Míriam, que havia encolhido os

ombros, sabendo que tinha feito algo de errado. Ela parecia um cachorro acuado, que

tinha sido acusado de rasgar o sofá e fazer xixi no tapete novo da sala. “Que foi? Você

e Tatiana são incríveis nisso, e bem, Tati está viajando com o namorado, então só sobra

você Li…” Míriam lembrou de Tati, e o coração de Li perdeu um compasso. Tati era

uma das suas melhores amigas e ela havia desistido dos anos na Universidade para

acompanhar o namorado que era uma estrela do rock em ascensão pelas estradas. Ela

trabalhava de fotógrafa para a banda e diversas vezes enviava para Li um cartão com

fotos da paisagem de onde estava. Li gostava da bravura que Tati havia tido de entrar

no carro com o namorado e deixar as estradas serem a sua casa.

“E quando ele disse que viria falar comigo? Porque se for hoje, eu fujo para as

colinas, aposto que ainda dá tempo. Ele não sabe como eu sou, nunca vai me achar.”

Li guardou as canetas e o lápis no estojo brilhante preto com formato de asa de

morcego. Tudo que Li tinha era preto, com formatos estranhos de morcego ou lobo e

com estampas das milhares bandas de gótico e emo que gostava.

“Você é um ponto gótico no meio da Universidade. Esses dias eu fiquei sabendo


132
que você tinha aparecido de plumas e vinil em uma das aulas antes mesmo de te ver

só pelos boatos.” Míriam a ajudou a pegar os cadernos de desenho e a mala com tecidos

que havia trazido para serem costurados no laboratório. Li não tinha dinheiro para

comprar uma máquina e nem mesmo espaço, já que dividia o dormitório com mais

três pessoas. “Vitor, querendo ou não, sabe quem você é. Além disso, ele não morde.

É só um rapaz rico.”

“Piorou.” Li fez uma careta. De todas as pessoas do mundo, Vitor deveria ser a

última a fazer seu coração se acelerar. Li esperava sempre que fosse se apaixonar por

alguém quase tão excêntrico quanto ela, que usasse tanto preto e maquiagem, que eles

pudessem compartilhar todas as roupas, mas quanto mais velha Li ficava, mais

percebia que seu coração gostava dos opostos. Sua cabeça lembrou com um pouco de

dor de Danilo, o hippie que tocava bateria na banda do namorado de Tatiana, que

havia sido uma das paixões de Li. Eles não haviam tido um desfecho saudável e Li

sempre se lembrava com pesar do quanto havia se apaixonado pelo rapaz. “Se a

família dele tem tanta grana, por que Vitor não paga alguém para ajudar ele com os

desenhos? E que tipo de arquiteto não sabe desenhar?”

“Li, quando você entrou em Moda também não sabia nem desenhar palitinhos.

Eu que apagava a luz da sua mesa sempre que você dormia em cima de um croqui

porque havia virado a noite fazendo. E Vitor disse que pagaria, e eu não sei se chegou

ao Paraíso dos Tecidos, mas precisamos comer esse mês.” Míriam caminhou ao lado

de Li, a diferença de altura sendo perceptível. Enquanto Li tinha longas pernas e

membros magros, Míriam era baixa e curvilínea. Ela carregava a bolsa com os livros

de jornalismo e ajudava Li com a mala de tecidos. “Vamos lá, Li, vai ser legal, e você

pode mostrar o seu charme ‘Criatura das Trevas’ para ele.” Ela soltou uma risada

nasalada e Li a olhou, o sol batendo diretamente nos cabelos grisalhos e castanhos. A

pele clara sendo abençoada com os raios violetas. Houve um tempo que Li queria ser

como sua amiga. Baixa, bonita e branca. Um tempo onde crianças malvadas falavam

133
das calças curtas de Li, e de como sua aparência era estranha. Mas Li havia aprendido

a se amar de um jeito quase narcisista. Havia aprendido a passar maquiagem de uma

forma que fosse ao mesmo tempo encantadora e apavorante, havia aprendido a se

vestir com as inúmeras combinações de preto, com peças compradas com pouco

dinheiro em lugares de segunda mão. Li havia se descoberto em diversos sentidos e

isso havia feito com que olhasse para Míriam e a beleza dela não afetasse mais a sua.

“Eu não acredito que estou escutando isso.” Li colocou os óculos pretos com

formato de coração no rosto, impedindo a luz do sol forte de bater nos seus olhos. O

batom preto em seus lábios havia craquelado e era possível sentir as inúmeras peles

saindo tingidas. “Vamos fazer assim, se ele me pagar bem, eu prometo pensar na

proposta. Preciso terminar essa coleção até o fim do mês, não tenho tempo para

playboys.”

“Continue falando isso até se convencer, Li.” A risada de Míriam foi o que

seguiu Li até o caminho da sala.

***

Novamente, Li precisava começar a falar a verdade pelo menos dentro da sua

cabeça. Seria uma mentira descarada se elu tivesse negado que seus olhos haviam

ficados grudados na porta, observando se Vitor apareceria com aquele sorriso

estampado em seu rosto, fazendo gracinhas para todas as pessoas da sala. Li odiava

ver aquele sorriso apenas pelo jeito como seu estômago parecia cair em um vácuo sem

fim quando o observava.

“Para de ser idiota.” Sua voz saiu em um suspiro enquanto ainda observava a

porta da sala. Vitor apareceu como um raio. Alto, bonito, com os cabelos loiros

molhados e solto, a barba por fazer cobrindo parte da bochecha. Ele usava uma

camiseta de mangas preta, uma calça jeans de lavagem escura e botas. Estava um calor

134
do inferno lá fora e Vitor havia tido a audácia de usar botas e jeans escuro em um dia

quente. Era um ataque pessoal, Li sabia disso.

“Professora, hoje a gente pode fazer em dupla? Sério, eu preciso de outro par

de mãos para me ajudar com isso.” Ele falou alto, a voz carregada de sarcasmo e riso.

Todos os seus irmãos eram daquele jeito, quase como se fossem raios e trovões em sua

forma física. Li não acharia esquisito se Vitor fosse parte criatura mitológica. Elu

balançou a cabeça, olhando para o desenho que precisava finalizar em vez de

continuar prestando atenção no que Vitor e a professora estavam discutindo.

Li havia pego o lápis que estava usando mais cedo no exato momento que um

nome foi gritado, em alto e bom som. Um nome que não era mais seu, mas que todos

continuavam reproduzindo, incapazes de entender o quanto aquilo machucava. Sua

respiração ficou presa em sua boca, quase como se seu corpo estivesse entrado em

curto. Seus olhos subiram para a professora e para Vitor, que olhava com expectativa,

como se fosse um labrador gigante balançando o rabo esperando por carinho, ou

algum petisco. Teria sido fofo se a cabeça de Li não estivesse girando com o nome que

havia sido falado.

Você não é esse nome. Você não é esse nome. A voz em sua cabeça repetiu, enquanto

Vitor caminhava até a carteira em sua frente, falando algo que seus ouvidos não

captaram por conta da pressão que faziam para se livrar do nome.

“Li? Certo?” A voz de Vitor entrou em seu sistema e foi como se a pressão

angustiante de sua cabeça estivesse se dissipado apenas com ele falando seu nome

certo. “Desculpe por ter feito a professora te chamar, não sabia que seu nome estava

daquele jeito na lista.” Vitor olhava para Li com os olhos verdes curiosos, os cílios

longos batendo apressadamente contra a sua pele, o cheiro de banho tomado e

sabonete de lavanda invadiu todo o espaço entre os corpos.

135
“Está tudo bem.” Não, não está. A voz voltou e Li se concentrou apenas em

observar como a camiseta que Vitor vestia era bem cortada e caía bem nele. De perto,

Vitor ainda era maior do que sua mente havia idealizado. Ele tinha uma cicatriz grande

no lado esquerdo do rosto, logo acima das maçãs saltadas e sua barba rala estava

faltando em diversos lugares. Ele era bonito demais para que Li se concentrasse no que

lhe faltava. Tudo dentro do corpo de Li estava uma confusão. Ao mesmo tempo que

sua cabeça girava seu estômago caia. “A reitoria não aceitou meu pedido de mudança

de nome. Eles dizem que só aceitam com papéis regulamentados e, bem, não existem

papéis regulamentados de fácil acesso para pessoas não-binaries.” A voz de Li caiu

um pouco, e sua mente se pegou questionando porque aquela conversa estava sendo

feita com um rapaz que havia acabado de aprender sobre a existência de Li.

“Vamos fazer assim, você me ajuda com o desenho, e eu peço para o próprio

reitor, que é meu tio, fazer uma carta para a administração com o seu nome social.”

Vitor estendeu a mão e Li ficou olhando. Por um segundo seus olhos maquiados

piscaram com força, tentando assimilar que Vitor havia falado nome social sem toda a

carga que as pessoas colocavam. Que Vitor, um dos príncipes da Universidade havia

lhe escutado falar sobre não-binaridade. “Eu sei que Míriam já falou com você, ela não

consegue manter um segredo por muito tempo, e isso é até bom pois adianta a

conversa entre nós. Eu preciso de aulas, você é excelente nessa matéria, par perfeito.”

Li continuou olhando para Vitor, que estava com a mão estendida esperando

por um aperto, os olhos brilhantes de expectativas.

“Vamos fazer o seguinte, Vitor. Você me passa seus desenhos, eu faço algumas

anotações e você me paga. Não preciso da sua ajuda para conseguir um nome que

deveria ser meu por direito.” A voz de Li saiu mais amarga do que deveria e Vitor

puxou a mão que estava no ar. As pessoas da sala estavam em volta de suas duplas e

se Li tivesse prestado um pouco mais de atenção, teria notado que as duplas só haviam

136
sido possíveis porque Vitor queria fazer um acordo.

“A Universidade não tem políticas para pessoas trans, desculpe te informar.

Somos retrógrados, chatos e motivados por dinheiro. Eu preciso de ajuda e você

também, Li.” Vitor continuava olhando para seus olhos, como se tivesse tentando fazer

ser entendido com apenas a força do seu olhar. Seus olhos não eram tão verdes quanto

Li havia sonhado, tinham mais pontos de castanhos e amarelo do que seu lápis poderia

colocar nos papéis. “Olha, me desculpe se eu estou te atrapalhando, mas eu realmente

preciso passar nessa matéria. Ela tranca metade das outras de Arquitetura do próximo

semestre.”

Li suspirou alto, como se aquela fosse uma guerra que não pudesse ser vencida.

Sua mente poderia ter, pelo menos, um pouco de descanso se Vitor ajudasse com os

papéis do seu nome. Ou, ao menos, faria com que sua cabeça e seu corpo não entrasse

em curto sempre que alguém falasse um nome que não lhe pertencia mais. “Qual o seu

plano?”

Vitor sorriu para Li. E se o sorriso em si não tivesse feito seu peito se encher de

borboletas, ele ter piscado em sua direção o fez. Era como se todas as asas de borboletas

fossem grandes e estivessem sendo batidas com força dentro da sua caixa torácica,

tentando quebrar os ossos de dentro para fora.

“Eu só preciso pegar os conceitos mais difíceis, me viro no básico. Quando o

teste passar, e se eu for bem, eu vou pessoalmente contigo até meu tio pedir para que

a Universidade troque o seu nome nas coisas.” Ele estendeu a mão novamente, agora

com os ombros levantados. Li olhou para o relógio no pulso dele e quase bateu com a

cabeça na mesa por saber o preço de tal coisa. Não era barato. Nada em Vitor era

barato, nem mesmo o jeito que ele estava olhando para Li. Aquilo custava a sanidade

de alguém.

137
“Eu estou em semana de entrega de coleção, então tenho os horários apertados.

Você sabe onde ficam os dormitórios, certo? Tenho que trabalhar até as 20h, mas

depois estou livre. Me busque lá, traga seus desenhos, lápis, papel e por favor,

humildade. Não sei se sua família conhece tal coisa, mas você vai precisar descer do

seu pedestal para aprender.”

Li pegou a mão de Vitor, o contraste dos seus dedos pequenos e magros com os

dele deixaram as suas bochechas vermelhas e Li agradeceu ao fato de ter usado blush

suficiente para que isso não fosse percebido pelo rapaz. Pare com isso, você não é

adolescente. A voz dentro da sua cabeça gritou e Li puxou a mão.

“Nós somos pessoas como todo mundo, não sei porque continuam insistindo

que somos desumildes.” Vitor se levantou, pegando a bolsa. A aula não estava nem

mesmo na metade e ele tinha aval para sair livremente, como se fosse o dono do lugar.

Bem, ele era. Mas ainda assim, deveria sentar em uma cadeira como um aluno comum

e prestar a atenção. “Okay, Ivo se acha um Deus, mas ele é doido e o namorado dele

pior ainda.” Li abriu a boca e Vitor riu. “Vocês realmente não sabem nada da nossa

família.”

Li ficou, pela segunda vez naquele dia, com o fantasma da voz dele na sua

cabeça quando Vitor atravessou pela porta.

***

Li trabalhava no único estabelecimento que aceitava lhe chamar de Li em todo

o campus. A cafeteria. Talvez fosse pelo fato que era um ponto de encontro de todas

as pessoas queer da Universidade? Talvez. Mas Li amava trabalhar com todas as

pessoas que faziam com que o peso do mundo fosse um pouco menor para carregar.

Seu vestido rodado era uma coisa de verão e havia sido elogiado por suas

amigas, Beatriz e Nalu, que haviam passado metade do dia em uma mesa, debatendo

138
Foucault enquanto bebiam café com cheiro de abóbora que só era servido em outubro,

perto do Halloween. Li passou as mãos pela barra do vestido enquanto ria de algo que

Beatriz havia falado antes de sair pela porta, e pensou que as diversas coisas que

haviam acontecido em seu mês haviam feito com que o Halloween fosse esquecido.

Era seu feriado favorito e, mesmo assim, um ataque aos seus pronomes, uma coleção

e um playboy loiro haviam feito com que sua cabeça esquecesse de uma data divertida.

Vitor havia se tornado seu aluno há quase um mês e era um bom ouvinte. Li

havia aprendido que Ivo, seu irmão mais novo, era pan e namorava um cara religioso,

e por isso sua casa era um refúgio seguro para todas as pessoas. Por conta disso, Vitor

sabia mais do que os outros meninos do time sobre pronomes neutros, sexualidade e

identidades. Sempre atento para o que deixaria a pessoa mais confortável.

Ele também havia passado de um rapaz rico que Li achava bonito, para um rapaz

rico que havia entendido uma piada que Li tinha em forma de tatuagem. Sua cabeça

ainda levava sua memória para aquele dia, quando Vitor se sentou com as pernas

esparramadas em seu tapete, o lápis atrás da sua orelha e o cabelo caindo pelos

ombros, observando seu braço magro e perguntando se aquilo que estava desenhado

era uma bactéria.

Elu havia rido e explicado que sim. E só quando seus olhos viram que Vitor não

se conformaria com uma resposta pequena como aquela, explicou que diversas

pessoas haviam enquadrado como assexuado a sua sexualidade, por isso a piada sobre

uma bactéria.

“Porque você é assexual, não assexuado. Mas você usou a palavra como uma

piada.” Vitor continuava olhando para o desenho. “As bactérias fazem bipartição. É

uma tatuagem inteligente.” Li havia olhado para ele com admiração, pensando no que

mais Vitor seria capaz de entender, em como ele não pediu uma explicação sobre a

sexualidade e como Li não teve que recorrer a usar exemplos. Apenas o pensamento
139
de alguém allo não precisar de uma apresentação quando o termo foi usado, fez com

que Li ficasse pensando em Vitor mais do que gostaria.

A porta se abriu e o vento gelado da noite entrou junto com a pessoa no

estabelecimento e Li olhou para trás para dar de cara com Vitor de calça jeans, jaqueta

de couro, cachecol, e as bochechas vermelhas do frio repentino que havia caído. Seu

coração perdeu uma batida e Li baixou os olhos. Seus dedos se torceram um contra o

outro, tentando conter as mãos para que não voassem para o rosto de Vitor, colocando

as palmas em suas bochechas geladas.

“A que devo a honra da sua presença no meu estabelecimento, playboy?” Li

falou com a voz alta, mas todas as pessoas que lhe conheciam podiam perceber o

nervosismo disfarçado de sarcasmo.

“Vim te buscar, Criatura das Trevas.” Vitor se encostou em uma das mesas que

estava vazia e colocou as mãos nos bolsos. “E, claro, comprar um café e um bolo.

Escutei por aí que aqui vende o melhor bolo de floresta negra, e eu tenho uma lista

imensa sobre os melhores bolos da cidade.” Ele sorriu e as pernas de Li queriam se

tornar gelatina, derreter e deixar o corpo que sustentavam se esparramar pelo chão.

“Seu pedido é uma ordem.” O atendente atrás de Li falou e, por um segundo,

sua voz trocou de entonação, indo para algo muito mais sugestivo. “Li também está

saindo, acabou seu horário.” Os olhos de Li focaram no atendente e em Vitor, que

havia sentado e observava o lugar atentamente.

“Dois segundos.” Sua voz saiu apressada enquanto caminhava para a área dos

funcionários. Os dedos magros voaram para o fecho do avental atrás de suas costas e,

um segundo depois, plantou-se em frente a seu armário, pegando sua velha bolsa e

prendendo o cabelo azul curto em um coque. Li tentou respirar, não pensar no que

significava Vitor estar ali sentado em uma mesa esperando, como se fosse comum ele

140
estar ali. Li ainda tinha a sensação de que estava sonhando com Vitor, com ele sendo

seu amigo. Com ele presente em sua vida.

Seus pés deram a volta, e uma risada passou pelo seu corpo. O barulho

estrondoso de Vitor apenas existindo estava por todo o lado, junto com o cheiro de

café e bolo, seus cheiros favoritos. Elu olhou para Vitor que ria com os atendentes,

segurando uma caixa de papelão com dois cafés e seu bolo. Ria com tanta força que Li

tinha certeza que a sala estava sentindo, como se o prédio pudesse rachar com a força

daquela risada.

“Estou aqui, podemos ir.” A voz de Li soou por entre as risadas de Vitor e ele

olhou em sua direção, como se tivesse visto algo que gostou muito, ou algo que gostava

muito. Sua cabeça tentou fazer com que o pensamento fosse embora, tentou fazer com

que aquilo fosse apenas uma coisa que estava inventando. Vitor não poderia olhar em

sua direção como se tivesse visto cor pela primeira vez. Poderia?

“Com licença, crianças, mas temos que ir.” Vitor deu um passo para trás, curvou

o corpo em um cumprimento, olhou para Li ainda sorrindo, e então, estendeu a mão

para que fosse pega. Li engoliu em seco quando estendeu a sua de volta, deixando os

dedos longos dele se encaixarem no seus.

Sua cabeça rodou com a força daquele momento. Vitor estava segurando a sua

mão, saindo de mãos dadas de um café como se aquilo fosse a coisa mais comum no

dia dele, como se o tivesse feito milhares de vezes.

“Sua mão está gelada.” Sua voz foi a única a cortar o silêncio além do vento

forte. Li agradeceu por um momento Vitor ter ido lhe buscar de carro, assim poderia

se aquecer e fugir do vento gelado que tinha descido sobre a cidade de surpresa.

“Está muito frio para andar a pé pelo campus. E eu tenho que te mostrar uma

coisa.” Li caminhou em silêncio ao lado dele até o carro, e deixou Vitor soltar a sua
141
mão para abrir a porta, e depois correr até a sua. A temperatura do carro entrou em

contato com a sua pele fria aquecendo tudo, deixando a sensação de conforto que

lugares quentes tinham.

Vitor lhe entregou a caixa de isopor com furos para os copos que estavam ali e

abriu a caixinha de papelão com o bolo, puxando um pedaço com as pontas dos dedos

enquanto Li olhava para ele.

“Fala logo o que você queria me mostrar.” Li pediu, tamborilando os dedos na

caixa em seu colo. “Ou eu vou cometer um crime de ódio.” Vitor sorriu, lambendo o

bolo dos dedos antes de puxar algo do compartimento de cima do volante, a parte reta

onde ele tinha costume de jogar todas as coisas. Era um papel dobrado, novo e

timbrado com o logo da Universidade. “O que é isso?”

“Se você me deixar falar eu explico.” Vitor pegou um copo, deu um gole e Li

reproduziu seus movimentos, colocando a caixa vazia aos seus pés e segurando o café

quente em suas mãos pequenas e geladas. Vitor fez um barulho com a boca para

indicar que estava satisfeito com a bebida e colocou o copo no compartimento redondo

perto do câmbio. “Meu tio infelizmente vai precisar viajar para a França, logo na

semana de testes e provas e por isso não poderemos conversar com ele pessoalmente.

Mas ele deixou isso.”

O papel foi esticado para Li, que pegou com pressa, abrindo-o. Era uma carta,

assinada e timbrada pelo carimbo do reitor, tio de Vitor, alegando que era obrigação

da instituição mudar o nome morto de Li para o seu nome social. Era um papel que

faria com que o desconforto que Li sentia sempre que seu nome era falado em voz alta

fosse enterrado em sua mente.

“Falei com ele pessoalmente, como prometi.” Vitor tomou outro gole do café e

continuou olhando para Li. “E fiz uma pesquisa.”

142
“Que pesquisa?” Li ainda olhava para o papel, com apenas metade da

concentração em Vitor.

“Sobre assexualidade.” Seus olhos subiram do papel para Vitor em um segundo

tão rápido que sua visão ficou turva. “Sabe, eu entendia a palavra, mas não o conceito.

Eu passei a noite lendo sobre. Não era mais que a minha obrigação já que…”

“Já que o que, Vitor?”

“Olha, Li, conviver com você foi como sair da minha bolha. Eu tinha meu irmão,

que aliás me arrastou para a Parada ano passado, mas não tinha nenhum contato real.

Até porque, não era onde eu deveria estar. Então, você meio que despencou na minha

frente usando preto, me ensinando sobre formas em um desenho e me fazendo descer

do alto do meu pedestal.” Vitor olhou para frente colocando a mão livre em cima do

volante. “Não vou mentir para você, a última vez que eu fiquei deitado com alguém

sem segundas intenções eu deveria ter onze anos. E, no ano seguinte, as segundas

intenções vieram e eu não conhecia outra coisa.” Ele olhou para Li, parada ali com a

boca aberta, segurando um copo de café que estava esfriando. “Você me tirou da

minha bolha. E esse papel, esse pequeno papel, é como eu posso agradecer.”

“Você fez com que o reitor assinasse um documento para a mudança do meu

nome apenas para agradecer?” Li tinha lágrimas nos olhos. “Vitor, não minimiza isso.

É um papel que diz que devem me chamar pelo nome que eu acho certo. Tem um

mundo aí fora que está pronto para me odiar, odiar todas as pequenas coisas que eu

sou, me dizer que quebrei e que sou um erro. Você fez muito mais do que só me dar

um papel.”

“Que bom que gostou dos meus agradecimentos.” Vitor deu uma risada baixa

e continuou, agora olhando para Li, os olhos verdes centrados no rosto maquiado.

“Porque o meu discurso sobre estar apaixonado por você é muito maior.”

143
“VOCÊ O QUÊ?” Li deu um grito e Vitor riu, dando partida no carro.

144
Our Space

Escrito por: Anne Paviland

Setembro

[Nova Mensagem Recebida]

“Caros moradores do prédio C,

O prédio passará por algumas reformas no próximo semestre e, por esse motivo, vocês serão

remanejados em novos dormitórios. Solicito que, no dia anterior a volta às aulas, dirijam-se a

recepção do prédio D para a retirada das chaves dos seus novos quartos.

PS: Vocês terão até a sexta-feira para retirar suas coisas dos antigos dormitórios.

Atenciosamente,

Catherine Pierce

Supervisora de Dormitório”

Era o que dizia o e-mail recebido por todos os estudantes da UCL que moravam

nos dormitórios do prédio C.

O que Kitty, a supervisora de dormitórios, e Declan, o recepcionista do prédio

D, não esperavam era que todos os estudantes iriam no mesmo horário, próximo ao

final da tarde, fazendo com que uma multidão de estudantes irritados por precisarem

se mudar de última hora se acumulasse próximo da entrada.

— Nome do estudante? — Kitty perguntava para cada pessoa que chegava ali

e então conferia na sua lista.

“Karin”, “Tyron”, “Corinna”, “Elijah”, ...

145
— Nome do Estudante? — Kitty perguntou para a próxima da fila. Uma garota

baixa e um pouco acima do peso para os padrões europeus, com um cabelo roxo tão

escuro que só era perceptível quando ela estava no sol.

— Fitz. — A garota respondeu rapidamente.

Kitty conferiu na sua lista e então olhou a garota com dúvida — Fitz?

Fitz soltou um suspiro chateada e então respondeu — Peyton Ryley Fitzpatrick.

— Certo, passe ali com Declan para pegar as chaves do quarto, querida — Kitty

explicou apontando para um rapaz sentado em uma mesa no final da sala, próximo de

um quadro de chaves. — As chaves de Peyton Fitzpatrick — Ela gritou para Declan.

***

Obviamente, Fitz deixou para fazer a sua mudança no último dia, ainda bem

que a sua melhor amiga estava disposta a ajudá-la.

— Fitz, você realmente precisa de tantos livros assim? — Maya reclamou

enquanto carregava uma caixa pesada — E se a sua nova colega de quarto já tiver

tomado conta do quarto inteiro? E se ela tiver tantos livros quanto você?

Maya Rodriguez era a melhor amiga de Fitz desde o primeiro dia na faculdade

há 2 anos atrás, mas elas não podiam ser mais diferentes. Maya cursava história da

arte, enquanto Fitz fazia engenharia. Maya tinha o cabelos cortado com desleixo e com

umas cinco cores diferentes, já Fitz mantinha seu corte reto em um sóbrio tom de roxo

escuro quase preto. Fitz era uma garota de livros, Netflix e algumas taças de vinho,

enquanto Maya era uma explosão de cores e alegria ao som de uma festa de

fraternidade.

146
— Minha nova colega de quarto, com certeza, deve ser melhor que a Jeanine. —

Fitz estremeceu ao se lembrar da antiga colega de quarto. Esse foi um dos motivos pelo

qual ela parecia ser a única pessoa aliviada com a troca.

— O anticristo seria melhor que a Jeanine.

— 1-7-3. Este é o meu quarto. — Fitz falou conferindo o número da chave na

sua mão.

Fitz soltou as malas e largou a caixa que carregava no chão para poder abrir a

porta do quarto, dando umas batidinhas antes de abrir para a avisar que estava

entrando. Ela com certeza imaginou que, a essa altura, sua colega de quarto já estivesse

se sentindo mais à vontade no novo quarto, mas não ao ponto de já estar com um cara

semi nu lá dentro.

Fitz e o rapaz sem camisa ficaram um tempo se encarando até que Maya decidiu

intervir.

— Olá, eu sou a Maya, terceiro ano de história da arte. — Ela se apresentou

depois de largar a caixa de livros no chão — E você é…?

— Quem são vocês? — O rapaz perguntou confuso.

— Eu é que devia te perguntar isso, este é o meu quarto. — Fitz respondeu

ríspida.

— O quê? Não, este é o meu quarto. — O rapaz se defendeu. — Este é o

dormitório masculino.

Maya, que prestava atenção nos dois como quem assiste um jogo de ping-pong,

decidiu se manifestar mais uma vez.

— Hum… eu realmente percebi que havia algo estranho no número do seu

quarto, Fitz, eu só não lembrava o que era — Maya começou a explicar — Quartos

147
femininos terminam em números pares. Matemática nunca foi muito meu forte, mas

tenho quase certeza que 173 é um número ímpar.

— E um número primo. — Fitz completou sem nenhum motivo além da sua

necessidade de falar informações aleatórias às vezes.

— E então? — o garoto insistiu — Quem são vocês?

Fitz olhou para os números gravados no chaveiro e suspirou.

— Olha, provavelmente aconteceu algum mal entendido você se importaria se

eu deixasse minhas coisas aqui enquanto eu vou atrás da Kitty?

— Claro que não — ele respondeu procurando algo em cima de sua cama —

Deixa só eu achar um camiseta e eu acompanho vocês.

Maya, que já havia se sentado em cima da caixa que antes carregava, levantou

os olhos do celular para encarar Fitz.

— Se eu tiver que carregar essa caixa de livros mais uma vez hoje, eu juro que

não respondo pelos meus atos.

— A propósito, meu nome é Kay. — o garoto falou enquanto vestia uma

camiseta. — Você deve ser “Fitz”?

— Isso, pode me chamar de Fitz.

Depois de ajudar as garotas a colocar as coisas para dentro do quarto, Kay

trancou a porta e as acompanhou pelo campus.

Kay, era o apelido para Kaito Lee Baker, um garoto alto que herdou da mãe

vários de seus traços asiáticos. Kay sempre foi um garoto engraçado e muito altruísta,

ele participa de vários tipos de ONGs, desde as que prometem salvar o mundo até as

de adoção de pets, ele também treina os times infantis de uma escola na cidade vizinha

148
todo final de semana. Embora todo mundo alegue que as garotas preferem os bad boys,

Kay não pode reclamar da sua popularidade entre as mulheres na faculdade.

— Então nós estamos procurando uma pessoa chamada “Kitty”? — Kay

perguntou enquanto andavam pelo campus.

— Isso, Kitty era a responsável pelo antigo dormitório da Fitz, e foi a pessoa

responsável pela troca dos quartos. — Maya respondeu.

— Ela deve estar no prédio administrativo. — Fitz apontou para o prédio a

alguns metros deles.

Enquanto esperavam Fitz falar com a recepcionista do prédio, Maya decidiu

conhecer um pouco mais do garoto que estava ao seu lado.

— Então… Que curso você faz?

— Último ano de fisioterapia — Kay respondeu com um certo orgulho.

— Por que você não tentou ser um médico de verdade?

— E por que você não tentou ser uma artista de verdade?

— Touché. — Maya respondeu surpresa.

— E ela? — Kay apontou para Fitz. — Que curso ela faz?

— Fitz está no terceiro ano de engenharia mecânica. — Maya sorriu.

— Uau — Foi tudo o que Kay conseguiu responder.

— Kitty mandou a gente ir até a sala dela — Fitz falou assim que se aproximou

deles.

Kitty não parecia nem um pouco com o que Kay havia imaginado, ela não

parecia fofa e pequena como seu nome sugeria, muito pelo contrário. Catherine Pierce,

149
a Kitty, era uma mulher alta e corpulenta, com ombros largos e fortes como uma

nadadora olímpica ou uma lutadora de luta greco-romana.

— Eu não ligo se você não gosta da sua nova colega de quarto, ou se ela fede ou

se você não fala o mesmo idioma que ela — Kitty começou a falar assim que os três

entraram em sua sala — Você não é a primeira e infelizmente não vai ser a última

pessoa a vir reclamar sobre o novo colega de quarto. Mas não há mais quartos vagos

disponíveis, não tem como trocar ninguém.

— Acredito que você vai querer ouvir o problema dela, senhora — Maya falou.

— Certo — Kitty respirou fundo e olhou para Fitz. — Qual é o seu problema,

querida?

— Bem… Ele é o meu colega de quarto — Fitz apontou na direção de Kay que

acenou um pouco assustado.

— O quê? Mas como isso é possível? — Kitty começou a procurar pelos papéis

espalhados em cima da sua mesa. — Qual é o seu nome, querida?

— Fi… Peyton Ryley Fitzpatrick. — Fitz respondeu.

Kay riu disfarçando com uma tosse quando Maya olhou séria para ele.

Depois de analisar e reanalisar cada um dos papéis Kitty os empurrou contra a

mesa com raiva.

— Eu vou matar o Declan — Kitty sussurrou, então respirou fundo e olhou para

Fitz. — Então, o que aconteceu foi que Declan achou que Peyton Fitzpatrick fosse um

garoto.

— Bem… mas você sabe que a Fitz aqui é uma garota, então é só trocar ela de

quatro e problema resolvido — Maya comemorou e então se lembrou da caixa — Eu

vou lá buscar a caixa de livros, mais uma vez.

150
— Não exatamente. — Kitty respondeu receosa.

— Como assim? — Kay e Fitz perguntaram ao mesmo tempo.

— Como eu disse antes, não há mais quartos disponíveis, nós estamos com um

prédio a menos de dormitórios por causa da reforma.

— E o que eu faço? — Fitz perguntou.

— Eu posso te colocar como prioridade na lista de espera dos quartos femininos,

mas até lá você vai ter que dividir o quarto com este jovem cavalheiro. — Kitty

começou a fazer anotações nos papéis e procurar coisas no seu computador. — E tenho

certeza que a administração não vai se importar de dar alguns descontos para vocês

dois pelo inconveniente enquanto essa situação não se resolve.

Nem Kay nem Fitz estavam em condições de negar descontos nos pagamentos

das mensalidades, então ambos já estavam pensando em como fazer isso funcionar.

Cada um do seu próprio jeito.

Kitty levantou e foi acompanhar os três universitários até a porta da sua sala e

ficou observando enquanto eles saiam para o corredor.

— Sr. Baker — ela chamou e Kay rapidamente se virou para ela — Se você

encostar um dedo na Srta. Fitzpatrick eu vou fazer com que você seja expulso e nunca

mais consiga frequentar nenhuma outra universidade, entendeu?

Kay engoliu seco e concordou.

Ele percebeu que quando Kitty disse que ele não iria frequentar nenhuma outra

universidade ela não se referia ao fato de que ela iria fazer fofoca e manchar sua

reputação.

— O que ela queria? — Fitz perguntou quando ele se aproximou delas

novamente.

151
— Nada não.

***

Naquele dia, Maya ficou até tarde no quarto 173 ajudando Fitz a organizar as

suas coisas e quando ela foi embora Fitz só pensava em duas coisas: tomar um banho

e ir para cama.

Quando Fitz saiu de dentro do banheiro que havia no quarto, ela vestia uma

calça de moletom e uma camiseta larga. Ela andou até o pequeno armário que tinha

do seu lado do quarto e pegou um secador de cabelo. Fitz o ligou na tomada do lado

da sua cama e sentou-se nela para secar o cabelo, mas assim que ela o ligou, Kay, que

estava ocupado jogando alguma coisa no celular, olhou com uma cara confusa para

ela e disse:

— Você realmente precisa fazer isso agora?

— Na verdade, sim, eu não gosto de dormir com o cabelo molhado — Fitz

desligou o secador momentaneamente para responder.

Depois que terminou de secar o seu cabelo ela se levantou da cama para guardar

o secador. Kay aproveitou o momento para largar o telefone na mesa de cabeceira e se

sentar na cama virado na direção de Fitz.

— Fitz — Kay iniciou relutante — Eu acho que a gente devia conversar um

pouco sobre nossos hábitos e rotinas, para podermos nos adaptar e talvez até

estabelecer algumas regras.

— Certo, você tem razão — Fitz sentou-se na sua cama e cruzou as pernas.

— Quais são seus horários de aula? Que horas você costuma acordar? — Kay

começou.

152
— Tenho aulas quase todas as manhãs e algumas tardes — Fitz explicou — Mas

costumo acordar mais cedo para correr.

— Eu também, então isso não será um problema.

— Você costuma sair nas sextas ou aos finais de semana? Acho que devíamos

evitar voltar para o quarto bêbados, ninguém gosta de limpar vômitos. — Fitz falou.

— Raramente vou a festas, e quando saio não volto tão tarde e nem tão bêbado.

— Kay assegurou — Aos finais de semana, na maioria das vezes, eu acordo cedo

porque tenho treino.

— Eu costumo sair algumas vezes com Maya, mas vou tomar cuidado para não

incomodar.

Os dois ficaram em silêncio, provavelmente pensando em mais perguntas ou

colocações para fazer, e quando voltaram a falar, começaram ao mesmo tempo.

— Você pode falar primeiro. — Kay cedeu.

— Ok… Eu acho que nenhum de nós devia trazer pessoas aqui para transar. —

Fitz soltou.

— Ah, certo — Kay respondeu um pouco relutante, isso talvez fosse um

problema para ele.

— Certo — Fitz confirmou, isso com certeza não seria um problema para ela. —

E o que você ia falar?

— Eu só ia pedir para você não usar o secador tão tarde.

***

153
Outubro

Como em quase todos as noites e durante os finais de semana desde que Fitz se

mudou para o quarto 173, Maya estava deitada na cama de Fitz lendo fofocas no seu

celular enquanto Fitz provavelmente estudava sentada na escrivaninha.

Kay, que havia chegado a pouco de um dos seus trabalhos voluntários e entrado

direto no banho, saiu de lá vestindo somente uma calça de moletom.

— Você devia vestir uma blusa. Está frio hoje e você pode se resfriar — Fitz

falou sem tirar os olhos do computador.

Ele não respondeu o comentário, mas andou em direção ao seu armário para

pegar uma camiseta.

— Amiga, você viu que a Lissa e o Theo estão saindo? — Maya falou de repente,

atraindo a atenção de Kay.

— Você precisa mesmo ficar aqui o tempo todo?

— Claro, não confio em você perto da minha amiga — Maya respondeu

indiferente. — Você mal consegue ficar completamente vestido na frente dela.

— Não se preocupe, ela mal olha pra mim, com ou sem camisa. — Kay

respondeu ríspido.

— E isso te incomoda? — Maya provocou.

— Não mude de assunto — Kay falou rapidamente. — Fitz e eu dividimos

quarto a mais de um mês, ela dorme aqui todos os dias… achei que já tínhamos

superado isso.

Fitz suspirou, e girou na cadeira para encarar os dois. Kay e Maya passavam

quase que o tempo todo trocando farpas por causa dela, e ela já estava cansada daquilo.

154
— Kay, Maya só está sendo um pouco superprotetora — Ela explicou para Kay,

e então olhou para Maya — Maya, Kay está certo, você não precisa ficar aqui o tempo

todo, e você, mais do que ninguém, sabe que eu sei me defender.

— Eu sei, querida — Maya usou um tom maternal e então fez um bico como se

estivesse chateada — Mas é que Colette, minha colega de quarto fala francês! Com

quem eu vou conversar?

— Está perdendo uma chance maravilhosa de aprender uma língua nova — Fitz

respondeu.

— Não esqueça da festa de Halloween nesse final de semana. — Maya se

levantou um pouco contrariada e pegou a sua mochila no chão, mas antes de sair olhou

para Kay que agora estava deitado na sua própria cama mexendo no celular.

— Estou de olho em você, garoto — Ela o ameaçou antes de sair batendo a porta

do quarto.

Algumas horas depois que Maya saiu do quarto Fitz se espreguiçou na cadeira

e desligou o computador para poder se arrumar para dormir.

Fitz costumava dormir cedo todos os dias pois acordava muito cedo todos os

dias, às 5:00 para ser exata. Ela não tinha um sono muito pesado, então seu despertador

não precisava fazer muito barulho, e com isso Kay normalmente não precisava se

acordar também.

Mas naquela manhã, enquanto Fitz se arrumava para sair para sua corrida

matinal um outro despertador, muito mais barulhento que o seu, tocou. Ela colocou a

cabeça para fora do banheiro para ver o que estava acontecendo e viu um Kay todo

descabelado e bravo por ter que acordar.

— O que você faz acordado a essa hora? — Fitz perguntou segurando seu cabelo

no alto para prendê-lo em um rabo de cavalo.


155
— Tenho uma prova hoje, preciso estudar. — Kay passou a mão no rosto

tentando se forçar a acordar de verdade. — Você acorda cedo assim todos os dias?

Como pode já estar tão… animada?

— Sim, eu disse que saio para correr.

Fitz terminou de arrumar o seu cabelo e saiu do banheiro para dar espaço para

Kay. Ela realmente parecia alguém que ia sair para se exercitar, com tênis de corrida,

uma legging e uma camiseta larga. Quando Kay passou por ela percebeu que a

camiseta que ela usava tinha o símbolo da Força Aérea Real e tinha o nome Fitzpatrick

bordado.

— Você serviu? — Ele perguntou apontando para a camiseta.

Fitz riu e então respondeu — Não, ainda não, essa camiseta era do meu pai.

— Era… — Kay começou receoso — Quer dizer que ele…

— Ah, não — Fitz o interrompeu — Ele está vivo… servindo na Líbia.

— Que bom — Kay disse — Quer dizer, que bom que ele está vivo, não por ele

estar em…

— Eu realmente preciso ir andando ou vou acabar me atrasando depois — Fitz

o cortou de novo colocando os fones de ouvido e saindo do quarto.

Todos os dias quando Kay acordava no seu horário normal e entrava no

banheiro, ele ainda cheirava a frutas tropicais, que era o cheiro do shampoo da Fitz,

que àquela hora já havia voltado da corrida, tomado banho e saído para aula.

Ele não estava acostumado a acordar antes de Fitz voltar de sua corrida, e não

gostou de entrar no banheiro e não sentir seu cheiro.

***

156
Kay estava tomando banho enquanto Fitz terminava de se arrumar para a festa

de Halloween, ela estava dando os últimos retoques na sua maquiagem quando Maya

bateu na porta a chamando. Mas antes de sair ela escreveu o endereço da festa em um

post-it e colou no quadro que ficava sobre a escrivaninha e bateu na porta do banheiro.

— Kay, eu estou saindo. — Ela falou para a porta fechada — Tem certeza que

não quer ir na festa com a gente?

— Tenho sim, mas obrigado pelo convite — Kay gritou de dentro do banheiro

— Bem, se você mudar de ideia eu deixei um post-it com o endereço da festa ali

perto da escrivaninha.

— Valeu.

Quando Kay saiu do banheiro o quarto estava escuro e silencioso, ele ainda

estava com a toalha sobre a cabeça e secava os cabelos enquanto andava até a

escrivaninha para ver o post-it. Era um post-it rosa, onde o endereço fora escrito com

a letra gordinha e bonita de Fitz usando uma caneta roxa e abaixo do endereço ela

escreveu: “Espero que você mude de ideia <3”

Kay amassou o papel e o jogou no lixo.

Ele tinha muitas coisas para estudar e um trabalho de conclusão para começar,

não seria uma boa ideia ir para uma festa naquele final de semana. Kay passou

algumas horas tentando se concentrar nas suas tarefas, sem muito sucesso e então viu

o post-it rosa jogado no lixo e o pegou.

“Será que ainda dá tempo de ir nessa festa?” Kay pensou “Mas eu nem tenho uma

fantasia.”

Depois de alguns segundos analisando o papel amassado na sua frente, Kay

pegou o seu telefone e ligou para Dylan, seu melhor amigo.

157
— Cara, o que você acha que ir a uma festa comigo agora? — Kay falou assim

que Dylan atendeu o telefone

— Você sabe que já passou da meia noite né? — Dylan respondeu rindo.

— Sim, eu sei, devia ter decidido isso antes… — Kay revirou os olhos, mesmo

sabendo que Dylan não podia vê-lo — Você quer ou não?

— Você sabe que eu nunca dispenso uma festa.

— Valeu, cara — Kay respondeu

— Me manda o endereço por mensagem. — Dylan respondeu e desligou o

telefone.

Kay não tinha uma fantasia, mas ele decidiu que iria na festa mesmo assim.

Dylan mandou uma mensagem avisando que estava esperando na entrada do

dormitório meia hora depois.

O lugar onde a festa acontecia estava lotado, parecia que todos os universitários

da cidade estavam lá e ,aquela altura da festa, já estavam bêbados em todos os estágios.

Tinha um cara de toga dormindo no gramado, uma arlequina beijando um capitão

américa atrás da porta de entrada e um unicórnio que parecia que tinha sido

atropelado passou por eles andando tranquilamente enquanto virava uma garrafa de

tequila..

O plano de Kay era simples, ele iria procurar pelo cabelo colorido de Maya que

parecia que havia sido cortado por um barbeiro bêbado e com os olhos vendados, com

certeza seria fácil achar isso, e ela com certeza estaria junto de Fitz. E essa foi

exatamente a descrição de Maya que Kay deu para Dylan.

Depois de rodar aquela casa duas vezes, eles tinham chegado à conclusão de

que talvez, àquela hora, elas já tivessem ido embora e voltado para os dormitórios, ou

158
talvez para o quarto de outras pessoas. Pensar sobre isso deixou Kay com uma

sensação ruim inesperada.

Quando finalmente desistiram de procurá-las, Dylan avisou que ia na cozinha

buscar bebidas para eles.

Assim que Dylan se afastou, Kay ouviu a risada inconfundível de Maya vindo

de uma das mesas de beer-pong.

Maya estava fantasiada como a “Moça com um brinco de pérola” do quadro de

Vermeer, com os cabelos totalmente escondidos por panos, por isso nenhum deles a

reconheceu.

E como esperando, Fitz estava com ela, parada na lateral da mesa olhando Maya

jogar. Fitz estava perfeita em uma fantasia de princesa, com um vestido longo e

volumoso, com os cabelos escuros presos em um penteado elaborado para que a coroa

se destacasse.

Kay andou até se aproximar de Fitz e parou do seu lado olhando para a mesa

de beer-pong também.

— Olá — Ele falou de repente, chamando atenção de Fitz.

— Kay, você veio! — Ela exclamou surpresa e então o olhou da cabeça aos pés

parecendo um pouco desapontada — E... você está sem fantasia.

— Bem, eu não tinha planejado vir a essa festa então… — Kay tentou se

desculpar.

— Tudo bem, está bonito — Fitz corou um pouco e então bebeu o conteúdo do

seu copo.

— Você está… perfeita. — Kay fez uma pausa para observar a reação de Fitz.

Fitz sorriu.
159
Um silêncio constrangedor se instalou porque nenhum dos dois sabia muito

bem como puxar assunto.

— Então… — Kay começou, tentando iniciar uma conversa — Você é uma

princesa?

— Normalmente. — Fitz respondeu rindo.

— Como assim?

— Bem, eu era um sapo até aquele cara me beijar — Fitz apontou na direção de

um garoto com uma coroa de rei e uma capa vermelha.

Assim que percebeu que Fitz olhava para ele, o garoto sorriu e piscou para ela

que riu mais ainda. Quando ela se virou para olhar para Kay de novo ele não estava

rindo com ela e isso fez com que ela parasse de rir imediatamente.

Kay a encarava como se pensasse no que fazer, calculando seus movimentos.

— E o que aconteceria… — Kay se aproximou de Fitz, seus olhos fixos nos delas

— Se eu te beijasse?

— Acho que só tem um jeito de descobrir… — Fitz levantou as mãos para

colocá-las ao redor do pescoço de Kay mas parou de repente e recuou. — Quer saber…

Eu acho melhor a gente não fazer isso.

— É… Claro, com certeza — Kay falou se afastando de Fitz rapidamente.

— Sabe como é, a gente dorme no mesmo quarto, se vê o tempo todo e talvez

fique um clima estranho depois — Fitz respondeu nervosa colocando algumas mechas

soltas do cabelo para trás da orelha.

— Você tem razão — Kay respondeu em um tom sério.

160
Ele se virou para sair mas acabou mudando de ideia então voltou e se

aproximou de Fitz para sussurrar no ouvido dela.

— Mas você não acha que o clima vai ficar estranho de qualquer jeito, agora que

você sabe que eu quero te beijar?

Fitz ficou estática onde estava, sem conseguir formular uma resposta, mas

mesmo que ela conseguisse falar algo não daria tempo, Kay já havia se afastado e ido

embora.

***

Novembro

As coisas estavam lentamente voltando a normal entre Kay e Fitz. Fitz era boa

em fingir que nada tinha acontecido e era exatamente assim que ela estava agindo.

Em uma noite atípica, Fitz estava muito mais concentrada no seu celular e

passando muito mais tempo em suas redes sociais, normalmente Fitz passava a noite

estudando ou lendo.

Kay havia achado Fitz nas redes sociais, mas ele não tinha tido coragem de

mandar solicitação de amizade. As vezes quando ela saia com Maya para ir a alguma

festa ou algo do tipo, ele gostava de entrar nelas para olhar as fotos novas que Fitz

postava.

Às vezes, Kay podia sentir o olhar de Fitz sobre ele e o clima ficava muito mais

pesado no quarto, com uma tensão quase palpável, principalmente quando ele a

encarava de volta.

Esse era um desses momentos.

161
Que foi interrompido pelo som da porta sendo aberta bruscamente deixando

que uma Maya com chapeuzinho de festa carregando um bolo com velinhas entrasse

animada.

— Feliz Aniversário para a minha pessoa favorita no mundo todo! — Maya

gritou.

— Você trouxe bolo! — Fitz se levantou animada correndo na direção de Maya

— Eu estava quase em uma situação de matar ou morrer por um bolo.

Fitz segurou o bolo com cuidado e o colocou em cima da escrivaninha correndo

para abraçar Maya de volta.

Maya abraçava Fitz com força e a balançava de um lado para o outro.

— Feliz aniversário, garota.

Kay forçou uma tosse para lembrá-las que ainda estava ali, então Maya parou

de balançar Fitz e o encarou com uma expressão séria, sem a soltar do seu abraço.

— Eu não… — Kay começou sem jeito — Eu… Feliz Aniversário, Fitz.

— Obrigada, Kay — Fitz respondeu com uma voz sufocada pelo corpo de Maya

— Você está me sufocando, Maya.

— É sufoco de amor — Maya respondeu antes de apertar mais forte e soltá-la.

— Vamos comer bolo!

— Esse é o melhor bolo que eu já comi na minha vida — Fitz respondeu de boca

cheia.

— Só o melhor para você, querida — Maya respondeu se esticando para deitar

na cama de Fitz. — Como estão indo as coisas com o Sr. Príncipe da festa?

Kay parou de comer para prestar atenção no que elas falavam

162
— Não estão indo, você sabe — Fitz respondeu dando de ombros.

— Ah, claro… verdade — Maya falou como se lembrasse de algo. — Mas vocês

chegaram a se ver depois da festa?

Kay remexia no bolo que estava no seu prato, um pouco desconfortável com a

conversa.

— Não, não iria dar certo — Fitz explicou enquanto cortava outro pedaço de

bolo — Ele nem faz muito o meu tipo.

— Não? Ou você só tem outra pessoa em mente? — Maya levantou uma

sobrancelha sugestivamente, ela conhecia Fitz muito bem.

Fitz não se deu ao trabalho de responder, apenas olhou para o seu bolo e sorriu,

suas bochechas levemente coradas.

— No me digas ... ¿Él? ¡No mames! 4— Maya reclamou em espanhol.

— Disculpame — Fitz respondeu também em espanhol, mas com um sotaque

mais forte que o de Maya — ¿Necesitamos hablar de eso ahora?5

— Será que a gente pode falar em um idioma que eu entendo? — Kay pediu se

sentindo um pouco confuso — Desde quando vocês falam espanhol?

— Ah, Fitz, que desmadre. — Maya olhou para Fitz consternada e então olhou na

direção de Kay com raiva — Cabrón.6

— Eu acho que a Maya não gosta de mim — Kay concluiu, se aproximando de

Fitz ao falar.

4
A tradução pode ser interpretada como algo tipo: “Não me diga… Ele? Fala sério!”
5
“Me desculpa” e “Precisamos falar sobre isso agora?”
6
“Oh, Fitz, que bagunça” e “Idiota”
163
— Você acha? — Maya o respondeu friamente enquanto Fitz apenas ria.

Fitz já estava no seu terceiro pedaço de bolo quando seu computador apitou e

a foto de um homem com o uniforme da Força Aérea Real aparece solicitando uma

chamada de vídeo.

— MEU PAI! — Fitz largou tudo e foi correndo na direção do computador.

— Já vou indo, Fitz — Maya falou se levantando — Vou deixar você aí falando

com seu pai, manda um abraço para ele.

— Feliz Aniversário, princesa — Foi a primeira coisa que o pai de Fitz falou

quando a conexão se estabeleceu.

— Senti tanto a sua falta. — Fitz respondeu.

— Eu também, minha princesa

Kay, que acabou decidindo que aquela era uma boa hora para tomar banho,

acabou passando rapidamente atrás de Fitz para chegar ao banheiro.

— Tem um garoto no seu quarto, Fitz? — O pai de Fitz exclamou assim que o

viu.

Fitz suspirou.

— Desculpa — Kay sussurrou e se trancou no banheiro.

— Tem, mas não é o que você está pensando. — Fitz respondeu revirando os

olhos.

— Não? — seu pai levantou uma sobrancelha em um tom sugestivo.

— Não — Fitz respondeu — É uma longa história, te explico outra hora.

— Tudo bem, princesa.

164
Fitz e o pai ficaram conversando por quase duas horas inteiras, até ele precisar

desligar.

— Mas as coisas já estão se organizando por aqui, acho que volto a Londres em

algumas semanas e então nós vamos poder passar um tempo juntos.

— Estou ansiosa.

— Então você vai poder me contar melhor a história desse rapaz no seu quarto.

— Seu pai riu.

— Pai! — Fitz reclamou envergonhada.

Seu pai deu uma sonora gargalhada.

— Amo você — Fitz falou — E Maya mandou um beijo.

— Manda outro para ela — o pai de Fitz respondeu — Também te amo, minha

princesa, mas agora eu preciso mesmo ir. Boa Noite.

— Boa Noite, pai. — Fitz respondeu já para uma tela escura.

Fitz limpou uma lágrima solitária do rosto e fechou o computador.

— Ei, tá tudo bem? — Kay se aproximou dela — Você quer um abraço?

— Quero — Foi tudo o que Fitz respondeu antes sentir os braços de Kay na sua

volta.

— Feliz aniversário — Kay sussurrou e então beijou o topo da cabeça de Fitz.

***

Dezembro

Mas alguns dias antes do recesso de natal Fitz recebeu uma outra chamada do

seu pai, onde ele pedia desculpas por ainda não ter conseguido voltar para vê-la.

165
— Mas eu prometo que volto antes do ano novo, princesa — Seu pai explicou

— Nós vamos passar o ano novo juntos.

— Tudo bem, pai, eu entendo como o seu trabalho é complicado — Fitz falou

— E você sabe o quanto eu me orgulho do que você faz.

— Eu sei, filha, eu também me orgulho muito de você — o pai de Fitz respondeu

— Preciso desligar agora, mas nunca se esqueça, Fitz, “Através das adversidades para

as estrelas”7.

— “Através das adversidades para as estrelas” — Fitz repetiu — Amo você.

E ela fechou o computador.

Fazia quase um ano que Fitz não via o pai, sua única família e, desde que ela

pode se lembrar, esse foi o maior período que ela já ficou sem vê-lo e cada vez que

falava com ele, mais sentia a sua falta. Kay percebeu isso.

Ele estava no quarto enquanto Fitz falava com o pai, deitado em sua cama lendo

um livro para a faculdade, ele ficou a observando enquanto ela tentava decidir se

choraria ou não. Mas Fitz apenas limpou os olhos e se levantou.

— Eu vou sair para comer alguma coisa — Fitz pegou um moletom e o vestiu.

— Quer ir junto?

— Eu… adoraria — Kay respondeu colocando o marcador de volta no livro e o

fechando.

— Aonde vamos? — Ele perguntou, quando saíram do quarto.

— À cafeteria do campus.

7
“Através das adversidades para as estrelas” é o lema da Força Aérea Real “Per ardua ad astra”
166
Não trocaram muitas palavras durante o caminho. Fitz caminhava determinada

e Kay a observava cautelosamente, ainda pensando em como falar sobre o que

presenciara no quarto. Apesar de agora não demonstrar, ele sabia que Fitz não estava

tão bem.

Era uma noite fria típica de Dezembro, o campus já estava coberto de neve e

enfeitado com luzes de natal, Fitz vestia um casaco que parecia dois números maiores

do que ela precisaria e sua touca e cachecol cobriam quase todo o seu rosto, deixando

apenas seu narizinho vermelho para fora. Mesmo com todo o agasalho, aos olhos de

Kay ela parecia adorável .

Assim que entraram no ambiente quentinho da cafeteria, Kay a ajudou a tirar o

casaco e o pendurou em um dos ganchos perto da porta, junto com o seu.

Fitz andou pelo lugar como se soubesse exatamente onde queria ir e sentou-se

em uma mesa no canto, próximo a janela, e gesticulou para que Kay sentasse a sua

frente.

— Então, você vem sempre aqui? — brincou Kay, observando o

estabelecimento. Seus olhos pousando no balcão no exato momento que o rapaz que

se encontrava lá atrás informou que ele mesmo os atenderia.

— Você por aqui de novo, meu cupcake? — o rapaz falou para Fitz assim que

se aproximou. E acho que Kay obteve a resposta para a sua pergunta.

— Olá, Steven. — Fitz sorriu.

— Dois chocolates quentes? — Kay sugeriu olhando na direção de Fitz.

— Claro, e uma fatia bem grande de bolo, por favor — Ela acrescentou olhando

para o atendente.

— E para você? — Steven olhou para Kay.

167
— Só o chocolate quente.

O atendente voltou rapidamente com os pedidos.

— Dia difícil, docinho? — Steven falou colocando a fatia de bolo na frente de

Fitz.

— Tipo isso — Fitz suspirou e Steven deu um beijinho na sua cabeça.

— Se quiserem mais alguma coisa é só me chamar. — Ele falou antes de se

afastar e voltar para trás do balcão.

— Com que frequência você vem aqui? — Kay tentou soar natural, mas seu tom

denunciou o incômodo que ele sentia.

— Só quando eu estou chateada — Fitz respondeu — E isso tem acontecido com

mais frequência nos últimos meses.

— Seu pai? — Kay perguntou

— É, ele não vai conseguir voltar a tempo para o natal — Fitz remexeu um

pouco o bolo que estava no seu prato.

— O que você vai fazer para o natal? Vai visitar seus avós ou outros parentes?

— Ele a observava brincar com o talher.

— Não, na verdade somos só eu e meu pai — Fitz explicou meio sem jeito —

Sem outros parentes.

Desde criança Fitz foi se habituando a isso, ela entendia que nem sempre seu

pai poderia ir lhe ver nos feriados e datas comemorativas. E isso não significava que

ele não a amava, porque ele sempre achava uma forma de compensar, e sempre era

maravilhosa.

— E Maya? — Kay perguntou — Você não pode passar o natal com ela?

168
— Maya e os pais viajam para o México na época das festas, para visitar os avós

dela.

— Fitz, você não pode passar o natal sozinha! — Kay exclamou. — Você vai

para casa pelo menos?

Fitz deu uma risada nervosa.

— Eu não tenho uma casa, Kay — Ela explicou — Eu sempre estudei em

internatos e escolas militares e meu pai quase sempre está fora do país, nós nunca

precisamos de uma casa.

Era estranho não ter uma casa, uma ideia distante que algum dia possa ter sido

real, mas isso não a incomodava, ela nunca entendeu muito bem a necessidade de ter

um lugar para voltar... Não quando se tem um vasto céu azul para chamar de casa.

Desde sua primeira viagem de avião com seu pai, no mesmo momento em que decidiu

que carreira seguiria, ela sabia, se o céu era o limite, ela também faria dele seu lar.

— Por Deus, Fitz — Kay falou aborrecido enquanto digitava algo no celular. —

Não posso deixar você passar o Natal aqui, sozinha.

— Eu posso ir a um restaurante ou a uma festa — Fitz tentou argumentar

indiferente — Não se preocupe, isso não é um problema.

Aquela não seria a primeira vez que ela passaria um feriado importante

sozinha.

— E o que você acha de ir a Carlisle comigo? — Kay falou após receber uma

mensagem no celular, com uma empolgação genuína na voz, o que a deixava ainda

mais confusa.

***

169
Fitz estava arrumando as malas com mais força que o necessário porque ela

estava irritada. Ela não estava irritada por ter que viajar para Carlisle. Ela estava

irritada com Kay.

— Fitz, o que foi agora? — Kay perguntou quando terminou de fechar a sua

mala.

— Eu não entendo, Kay — Ela jogou o que segurava nas mãos dentro da mala

de qualquer jeito — Porque passar cinco horas dentro de um carro sendo que leva só

uma hora de avião?

— Eu não acredito que você ainda está irritada por causa disso — Kay reclamou

— Carlisle nem tem um aeroporto.

— Tem sim — Fitz afirmou — Um aeroporto pequeno para aviões de carga e

voos turísticos.

— E onde você pretende achar um avião assim?

Fitz sorriu em resposta e terminou de arrumar a sua mala.

Assim que entraram no carro, Fitz deu as instruções do lugar para onde eles

deveriam ir. O endereço levava a um pequeno aeroporto particular nos arredores de

Londres.

— Você pode deixar o seu carro aqui, e então nós alugamos um quando

chegarmos em Carlisle — Fitz sorriu convencida.

Fitz tirou um molho de chaves do casaco e abriu o hangar de número 14,

revelando um belíssimo monomotor cinza e preto.

170
— Kay, conheça o Fitz Force One8 — Fitz abriu os braços apontando para o avião.

— Você não tem uma casa, mas tem um avião? — Kay perguntou incrédulo.

— Prioridades — Fitz deu de ombros.

— Você sabe pilotar isso? — Kay perguntou enquanto eles prendiam as malas

no banco de trás do pequeno avião. — Você tem licença para pilotar isso?

— Sim e sim — Fitz respondeu animada — Sobe logo.

— Eu vou mandar uma mensagem para minha mãe — Kay avisou assim que se

sentou no banco ao lado de Fitz — Para avisar que a gente vai chegar um pouco mais

cedo que o previsto.

— O quê? — Fitz congelou segurando os fones perto da cabeça e olhou na

direção de Kay.

— Nós vamos passar o natal na casa da minha mãe — Kay falou como se fosse

óbvio — Isso é um problema?

— Não, claro que não — Fitz respondeu nervosa e então ajeitou os fones na

cabeça — É melhor você avisar agora mesmo, porque você vai precisar desligar o

celular.

Assim que Fitz ligou o avião e estava andando com ele pela pista, Kay ficou

nervoso e achou que iria vomitar. Até ele olhar para Fitz e ver o quanto ela parecia

confiante, calma e… Feliz.

O vôo foi mais rápido do que Kay esperava, e ele quase quis que ele pudesse

durar mais tempo, Fitz nunca pareceu tão feliz quanto agora, ela nunca pareceu tão…

8
“Fitz Force One” é uma piada em referência ao “Air Force One” e o “Eddie Force One”, o avião do
presidente dos Estados Unidos e o avião do Iron Maiden, respectivamente
171
ela mesma. Mas quando ele percebeu, Fitz já estava falando com a torre de controle do

aeroporto de carlisle esperando permissão para pousar.

Fitz já havia solicitado um carro alugado que estava os esperando na saída do

aeroporto. Logo que Kay sentou no banco do motorista ele decidiu dar algumas

explicações sobre a sua família.

— Então… Eu esperava falar sobre isso com você durante as cinco horas de

viagem de carro e por isso eu vou ter que resumir — Kay começou — Minha mãe é

um doce e a melhor cozinheira do mundo, meus irmãos são bem agitados e

inconvenientes e minha avó… ela é uma mulher de personalidade forte.

— Uau, é bem mais gente do que eu to acostumada — Fitz exclamou — Mas

eles todos parecem adoráveis.

Kay soltou uma risada nervosa e arrancou com o carro.

— Mãe, eu cheguei — Kay falou assim que abriu a porta de casa.

— Estamos na cozinha, querido — Uma voz respondeu lá de dentro.

Kay ajudou Fitz com as malas e o casaco que ela usava, a casa toda cheirava a

nozes, canela e… Natal.

— … Todo ano esse garoto volta sozinho… — Kay ouviu sua avó reclamando

— Ele foi para a faculdade fazer o que? Na idade dele eu…

— Oi vó. — Kay falou fazendo com que sua avó olhasse para ele e Fitz.

— Olá — Fitz falou timidamente saindo de trás de Kay.

— Akemi — a avó de Kay sussurrou próximo da mãe dele — Kay trouxe uma

garota.

— É mãe, eu sei — ela respondeu.

172
— Esta é Fitz minha… amiga — Kay fez uma pausa pensando em como

exatamente ele deveria apresentar Fitz. Colega de quarto?

— Venha, querida — Akemi puxou Fitz pelo braço — Você parece com frio, está

mais quente aqui perto do forno, estou assando biscoitos.

A mãe de Kay parecia tão jovem e alegre, ela tinha traços asiáticos mais

marcantes que o dele, e um adorável cabelo rosa algodão-doce. Kay havia explicado

durante o curto trajeto do aeroporto até ali que ela era professora na escola primária.

— Você quer beber alguma coisa? Um chá, talvez — Ela sugeriu.

— Um chá seria perfeito — Fitz respondeu sentando-se na mesa de frente para

a avó de Kay.

E se os traços asiáticos da mãe de Kay já eram mais evidentes que os dele, sua

avó, então, não havia nem perdido o sotaque forte de alguém que cresceu falando

japonês, embora já fizessem algumas décadas que ela estivesse na inglaterra. Seus

cabelos brancos estavam penteados para trás e sua pele, marcada pela idade, parecia

reluzir, ou talvez fossem seus olhos, que entregavam sua felicidade ao ver o neto.

— Como você chegou aqui tão rápido? — a avó de Kay usou um tom acusador

— Você mentiu para a sua mãe, Kaito? A uma hora atrás você disse que ainda estava

em Londres.

— Avião, vovó — Kay respondeu simplesmente.

— Que avião o quê, menino? Nem tem aeroporto nesta cidade. — Ela

resmungou.

Fitz, que estava aquecendo as mãos na xícara de chá, riu lembrando da reação

de Kay quando ela sugeriu que eles fosse de avião. Kay apenas suspirou e revirou os

olhos.

173
Nesse momento duas crianças que pareciam ter por volta 8 anos entraram

correndo e gritando o nome de Kay.

Kay se abaixou para abraçar as duas crianças.

— Fitz, este é meu irmão, Haruki — Ele apontou para um garoto com mais ou

menos uns 7 anos — E está é minha irmã, Akane — Ele apontou para a garota que já

devia ter 10 anos, mas parecia muito menor.

— Olá — Fitz respondeu um pouco sem jeito — Eu não sei muito bem como

interagir com crianças, Kay, eu acho que não falo com uma criança desde… Bem, desde

que eu deixei de ser criança.

— Vamos trabalhar nisso — Kay afirmou e então disse para seus irmãos irem

para a sala ligar o video game e esperar por ele. — Eu vou ali na sala com os meus

irmãos, você quer ir junto ou vai ficar por aqui mesmo?

— Vou ficar por aqui, parece que logo vamos ter biscoitos quentinhos — Fitz

respondeu animada segurando a caneca de chá com as duas mãos como uma criança.

— Pode ir Kaito, nós vamos cuidar bem da sua namorada — A avó de Kay riu

— Ah, nós não… — Os dois começaram a falar ao mesmo tempo.

— Kay, vem logo — Uma das crianças gritou da sala.

— Anda Kaito, sai logo daqui e vai brincar com seus irmãos — Akemi falou —

Fitz vai ficar bem aqui te esperando.

Assim que Kay se afastou, Fitz sentiu seu celular vibrar com uma mensagem

dele.

“Me desculpa por isso”

***

174
A viagem de Natal com Kay foi muito mais legal do que Fitz esperava, e embora

a avó dele tivesse insistido várias vezes que eles deveriam dormir no quarto dela com

a grande cama de casal, a mãe de Kay, que sabia que eles não eram namorados, insistiu

para que eles dormissem em quartos diferentes.

***

Janeiro

Como prometido, o pai de Fitz chegou em solo britânico a tempo de passar o

ano novo com ela, e com tempo suficiente para ficar durante o resto do recesso de final

de ano da filha.

Na noite anterior à sua volta à base aérea, ele a levou para jantar.

— E então… — O pai de Fitz começou a falar enquanto cortava algo no seu

prato — Quando é que você pretende me falar sobre o garoto no seu quarto?

— Na verdade, eu esperava que você já tivesse esquecido disso — Fitz sorriu.

— Você sabe que eu não me esqueceria.

Fitz explicou tudo desde o início, sobre a mudança de quartos e sobre como ela

acabou indo parar em um quarto no dormitório masculino.

— Acho que eu te devo um pedido de desculpas por isso — ele falou quando

fitz terminou a história — Sua mãe e eu devíamos ter pensado melhor no seu nome.

— Não… Peyton é um bom nome — Fitz deu de ombros.

— Tem certeza, Fitz? — Ele a chamou, dando ênfase no apelido pelo qual todo

mundo a conhecia e ela riu.

175
Durante o resto do jantar eles conversaram sobre a faculdade e os planos dela

para o próximo ano já que ele não podia falar muito sobre o próprio trabalho. Quando

acabaram, ele a levou de volta ao Campus. Precisaria sair bastante cedo no outro dia.

— Eu prometo que vou tentar voltar com mais frequência, princesa — Seu pai

falou antes dela sair do carro — E eu acho que você deveria dar uma chance para o

rapaz, já faz muito tempo desde a última vez e se ele não entender ou te aceitar do

jeitinho que você é… Lembre a ele que seu pai é do exército há quase 25 anos.

— Obrigada — Fitz riu — Mas acho que eu dou conta sozinha, meu pai me

ensinou algumas coisa.

Fitz desceu do carro e quando estava chegando na porta do prédio deu de cara

com Maya.

— Olá, eu estava indo para o seu quarto agora mesmo — Ela falou e então viu

que o pai de Fitz ainda estava com o carro parado, a esperando entrar no prédio.

— Boa noite, Comodoro — Maya prestou continência.

— Boa Noite, Maya, já disse para me chamar de Tom — ele riu — E você prestou

continência com a mão errada.

Depois que ele viu que Fitz estava segura com Maya ele saiu com o carro.

— Por que você estava indo para o quarto a esta hora? — Fitz perguntou assim

que passaram pelo rapaz da recepção e entraram no elevador.

— Colette levou uma garota para o nosso quarto — Maya começou a explicar

— E eu acho que elas não são só amigas, não gosto de me sentir uma vela e não queria

atrapalhar.

***

176
— Kay, o rapaz da portaria pediu para eu entregar esse pacote para você — Fitz

falou quando entrou no quarto no final da tarde — Alguém chamado Lee Noriko lhe

enviou essa caixa.

— Minha avó — Kay falou pegando o pacote das mãos de Fitz — Meu

aniversário é só daqui a 4 dias, mas ela sempre tem medo que o presente não chegue

a tempo.

— Sua avó é muito fofa — Fitz respondeu enquanto tirava o casaco e as botas,

indo se sentar na escrivaninha.

— Eu não acredito que ela fez isso — Kay falava enquanto tirava algumas

roupas de lã de dentro da caixa.

— Que foi? — Fitz girou na cadeira para olhar para ele.

— É que… minha avó mandou um presente para você também. — Kay falou

envergonhado.

— O quê? — Fitz levantou-se, correndo na direção dele.

Kay entregou para ela um pacote transparente. Dentro dele havia um cachecol

rosa e roxo, feito à mão.

— Fitz, eu… Me desculpa pela minha avó, ela é... Quando ela tinha minha idade

ela já era casada e já tinha um filho então… — Kay tentou explicar meio sem jeito.

— Tudo bem, Kay, o cachecol é adorável — Fitz o tirou do pacote para analisar

melhor — Mas você precisa contar a verdade para ela logo, quanto tempo mais vai

fingir que somos namorados?

— Não muito, minha avó já tem quase 90 anos, mesmo.

— Kay! — Fitz bateu no braço dele e os dois começaram a rir.

177
— Eu vou contar a verdade para ela, logo, prometo. — Ele respondeu assim que

parou de rir.

***

Fitz havia torcido o tornozelo enquanto corria naquela manhã, então ela

demorou mais que o planejado para voltar para o dormitório e foi bem difícil tomar

banho também. Ela sabia que não iria conseguir ir a aula daquele jeito, então colocou

um pijama e estava se preparando para mancar até a cama quando Kay entrou no

quarto.

— Fitz o que você faz aqui uma hora dessas? E de pijamas ainda — Kay tirou o

casaco e pendurou e então viu que Fitz estava mancando. — Fitz, o que houve?

— Eu torci o tornozelo enquanto corria, mas já tá tudo bem — Ela andou

lentamente até a cama e se sentou — Amanhã eu já vou estar melhor.Você também

não está atrasado para aula?

— Deixa eu dar uma olhada — Kay se aproximou dela sério.

— Não é nada demais, Kay, não quero que você se atrase.

— Eu posso ajudar, Fitz, eu sou fisoterapeuta, lembra? — Kay se abaixou do

lado da cama dela.

Ele levantou levemente a calça do pijama de Fitz para ver melhor seu tornozelo,

que parecia bem ruim. Ele tentou mexer nele algumas vezes, mas Fitz sempre

reclamava, então ele andou até uma bolsa jogada no seu canto do quarto e voltou de

lá com um creme.

— Eu vou aplicar esse creme no local e então fazer uma massagem, talvez você

sinta um leve desconforto, mas eu prometo que já vai passar — Kay explicou como se

estivesse falando com um dos seus pacientes.

178
— Tá frio! — Fitz reclamou assim que o creme encostou na sua pele.

— E daqui a pouco vai ficar quente — Kay riu e começou a massagear.

Quando ele começou a aplicar força no local, Fitz achou que iria morrer, mas

aos poucos a dor foi passando, sendo substituída pelo leve ardor ocasionado pelo

creme.

— Realmente, agora está quente — Fitz soltou uma risadinha.

Kay parecia bastante concentrado no que fazia em sua perna e, ali, olhando para

ele, ela não conseguia evitar pensar no no quão adorável ele parecia e em como ela

queria passar as mãos seus cabelos lisos.

— Você não estava no quarto quando eu acordei essa manhã — Fitz começou a

falar depois que se acostumou com a sensação da massagem. — Você estava aqui na

hora que eu fui dormir, mas não estava quando eu acordei.

— Eu… — Kay ficou pensando se devia falar — Eu fui ver uma garota.

— Ah, claro — Fitz falou envergonhada — Em uma terça-feira?

— Você sabe como é… — Ele começou a falar sem jeito — Ela me mandou

mensagem e já fazia um tempo então…

— Não, eu não sei como é — Fitz resmungou baixinho

— O que você disse?

— Nada — Ela respondeu rapidamente — Eu já estou me sentindo melhor

agora, se você correr consegue chegar a tempo para a segunda aula.

***

179
Era sexta-feira e Maya decidiu que iria passar um tempo no quarto de Fitz já

que fazia semanas que ela não fazia isso. Ela estava deitada na cama de Fitz enquanto

deslizava o dedo pelo telefone

— … Ok, e o que você acha do Tyron do curso de química? — Ela sugeriu para

Fitz quando parou em uma foto do aplicativo.

Fitz parou o que estava fazendo e pensou.

— Ele é bonitinho… Eu fiz algumas disciplinas com ele, ele é muito inteligente

também — ela respondeu por fim.

— Não, próximo. — Maya respondeu voltando a deslizar o dedo pelo telefone.

— E o Adam de Literatura comparativa?

— Ele é um pouco intenso e romântico demais, mas é um cara legal — Fitz

respondeu.

— Porque você está pedindo a opinião da Fitz sobre caras? — Kay perguntou

para Maya.

— Porque é para ela. — Maya respondeu como se fosse óbvio. — Talvez o Liam

da medicina?

— Ele é um cavalheiro, eu poderia sair com ele — Fitz girou na cadeira e encarou

Maya.

— Isso não faz sentido, você não reclamou ou criticou nenhum dos caras que

Maya citou, e já fazem horas que ela tá aqui. — Kay falou para Fitz.

Fitz apenas deu de ombros e se virou para o computador novamente.

— É por isso que o meu trabalho é tão importante — Maya explicou — Fitz não

tem muitos filtros, ela sai com qualquer rapaz que chama ela para sair.

180
Kay não conseguiu disfarçar uma cara surpresa e Maya atirou um travesseiro

na cabeça dele.

— Não desse jeito, seu pervertido. — Maya exclamou — Fitz é uma garota

romântica, ela gosta de jantares e cinema.

Eles ficaram um tempo em silêncio e então Maya voltou para a lista.

— Talvez o Connor da Medicina....

E antes que Fitz pudesse pensar em uma resposta Kay falou.

— Quando você diz que sai com qualquer rapaz que a convidar — Kay começou

— Isso me inclui?

Fitz ficou pensativa.

— Claro que não, seu fracassado — Maya atirou outro travesseiro na direção de

Kay e se levantou. — Fitz prefere sair com médicos de verdade.

— Quem é você para falar alguma coisa sobre isso — Kay rebateu, também se

levantando para encarar Maya. Depois, apontou para o cabelo dela — Parece que você

lutou contra o cortador de grama e ele venceu.

— Cabrón, Hijo de… — Maya levantou a voz.

— Eu aceitaria sim — Fitz respondeu interrompendo Maya.

— O quê? — Maya e Kay falaram ao mesmo tempo, surpresos.

— Eu aceitaria sair com você, caso você me convidasse. — Fitz corou.

Kay pegou o seu celular e começou a digitar e então olhou sério para Maya.

— Será que você pode ir embora?

— Ora seu… — Maya levantou o rosto para encarar Kay.

181
— É sexta-feira, eu tenho várias coisas para organizar ainda porque parece que

eu tenho um encontro essa noite, será que você pode sair? — Kay explicou

calmamente.

— Hoje? — Fitz exclamou surpresa.

— Não quero que você repense essa escolha e mude de ideia.

Fitz sorriu discretamente enquanto Maya revirou os olhos e saiu irritada do

quarto.

Os dois ficaram em silêncio no quarto por um tempo, Fitz porque estava

nervosa e Kay porque estava muito concentrado fazendo algo no celular.

— Certo — Kay falou guardando o celular no bolso e pegando o casaco perto

da porta — Eu vou descer para pegar algumas coisas e você pode ficar aqui e trocar de

roupa se quiser, ou não… porque você está perfeita.

— Eu estou de pijama, Kay — Fitz riu.

— Como eu disse… Perfeita — Kay respondeu antes de sair e fechar a porta.

Quando Kay voltou Fitz ainda não havia decidido que roupa colocar porque ela

não fazia ideia de para onde eles iriam, e ele a encontrou encarando o armário com

uma cara séria.

— Qual é o problema, Fitz? — Kay perguntou largando algumas sacolas em

cima da escrivaninha.

— Eu não sei que roupa colocar porque eu não sei o que nós vamos fazer — Fitz

respondeu frustrada.

— Mas eu disse que a sua roupa era perfeita. — Kay riu largando uma caixa de

pizza em cima da sua cama. — Tudo o que eu planejei para essa noite foi pizza, vários

tipos de doces diferentes, porque eu sei que você ama, e Netflix.


182
— É perfeito — Fitz sorriu.

— Eu sei. — Kay respondeu em um tom convencido.

Fitz se sentou ao lado de Kay na cama dele, enquanto eles comiam a pizza e

decidiam o que iriam assistir. Assim que eles escolheram uma série para assistir, Kay

se levantou para guardar a pizza e pegar os doces que ele havia deixado em cima da

escrivaninha. Ela estava deitada na cama de Kay no canto próximo a parede mexendo

nas configurações de áudio e legendas da série que eles iriam assistir quando ele voltou

e os deixou no espaço que sobrava da cama de solteiro.

Os dois se arrumaram na cama para poder deixar o notebook no meio onde os

dois conseguiriam enxergar.

— Ei, Fitz — Kay chamou antes que ela pudesse apertar o play e ela olhou na

direção dele.

E então Kay deu um beijo rápido nela.

— Quê? — Fitz falou atônita.

— Você me pareceu o tipo de garota que fica nervosa com primeiros beijos em

um encontro — Kay explicou e então apertou o play — Agora não precisa mais se

preocupar com isso, já foi.

Fitz riu.

Aquele definitivamente foi um dos melhores encontros da vida dos dois, eles

ficaram horas assistindo série e fazendo algumas observações engraçadas às vezes.

— Kay, eu preciso ir dormir, já está bem tarde — Fitz falou assim que acabou

mais um episódio e apertou para interromper a contagem regressiva do próximo

episódio.

Kay continuou meio deitado onde ele estava, sem se mexer.


183
— Você precisa levantar para que eu possa sair — Fitz o cutucou.

Ele negou com a cabeça.

— Eu vou passar por cima de você então — Ela falou fechando o computador e

passando uma das pernas por cima de dele.

Quando ela estava totalmente em cima dele, Kay a segurou pela cintura por um

momento, os rostos deles tão próximos, seus hálitos cheirando a bala de framboesa. E

então eles se beijaram.

Kay terminou o beijo dando um beijinho no nariz de Fitz e ela sorriu.

— Ok, eu realmente preciso ir dormir agora — Ela falou saindo de cima dele e

andando até a cama dela. — E você também, você acorda cedo aos sábados para fazer

sabe-se lá o que.

— Eu sou treinador de um time de futebol infantil. — Kay explicou, mas Fitz já

estava deitada na sua cama pronta para dormir. — Por que você precisa ser sempre

tão responsável assim?

— Boa Noite, Kay.

***

No sábado a tarde, quando Kay voltou do treino das crianças ele encontrou Fitz

muito concentrada enquanto jogava algo no seu computador.

— Sério, Fitz? Até os seus jogos de video game são sobre aviões? — Ele fala

quando para atrás de Fitz e vê o que ela está jogando.

— É Tom Clancy's HAWX — Ela pausa o jogo — Eu acho bem terapêutico.

184
— Garota estranha — Kay beija a cabeça de Fitz e começa a andar na direção do

banheiro para tomar banho — Então... o que você acha da gente sair para jantar da

próxima vez? Abriu um restaurante novo ali no…

— Não tem uma próxima vez, Kay — Fitz suspirou e girou na cadeira para olhar

na direção dele — Eu normalmente não saio mais de uma vez com o mesmo garoto.

— Ok, claro…. certo — Kay começou a falar meio sem jeito.

— Não foi isso que eu quis dizer — Fitz interrompe em um tom frustrado. —

Eu gosto de você.

— O encontro foi tão ruim assim?

— Não, Kay, o encontro foi ótimo, o problema não é você… é complicado pra

mim — Fitz para, procurando nas paredes do quarto palavras que a ajudassem a

explicar como se sente e detestando ter que fazer isso mais uma vez, principalmente

com ele. — É complicado ter mais de um encontro com o mesmo garoto.

— Você não me avisou que havia essa condição. — Ele reclamou em um tom

chateado.

— Então, se você soubesse disso antes… ainda assim teria me convidado para

sair? — Fitz baixou a cabeça, tão chateada quanto Kay e girou a cadeira de frente para

o computador de novo, colocando os fones antes mesmo de ouvir a resposta dele.

— Teria sim, mas teria feito melhor — Ele respondeu baixo e fechou a porta do

banheiro.

***

Fevereiro

Era sexta feira a noite e, como vinha acontecendo todos os finais de semana

desde que Fitz havia dito que não queria sair com o Kay de novo, ele havia saído com
185
Dylan, seu melhor amigo, para passar o tempo, jogar, beber… não ter que ficar

olhando para Fitz no quarto.

É, ele a estava evitando.

Mas aquela sexta feira a noite em especial estava com um gosto muito mais

amargo, era dia dos namorados e Kay não estava com vontade alguma de saber se Fitz

iria sair com alguém. Kay sempre foi o tipo de cara que as garotas se interessavam, e

ele sempre tentou ao máximo agradar elas, fazer com que ele fosse notado, sempre

tentando impressionar ou fazer elas rirem. Fitz foi a primeira garota que fez ele se

sentir como se realmente se importasse, a primeira garota que ele queria de fato que

gostasse dele. Mas ela foi, também, a primeira garota a não fazer isso.

Então naquela sexta feira, dia dos namorados, Kay estava em um bar, bebendo

com o seu melhor amigo e tentando ficar invisível. Esse porém não era o plano de

Dylan que estava lá justamente para conseguir alguém, o que não demorou muito para

acontecer. Quando Kay percebeu que estava apenas atrapalhando, foi embora.

***

Fitz odiava o dia dos namorados.

Ela odiava tudo o que ele representava, e evitava qualquer aproximação do sexo

masculino nessa época, ela só queria ficar sozinha em seu quarto, bebendo e talvez

assistindo alguma comédia romântica boba para fingir que ainda acreditava no amor.

Maya havia marcado um encontro com um garoto de outra universidade, e Kay

nem havia voltado para o quarto desde que as aulas daquele dia terminaram, então

Fitz havia suposto que ele também tinha arrumado alguém para passar a noite.

Pensar nisso a incomodava mais do que ela esperava.

186
Então Fitz estava lá com sua meia garrafa de vinho tentando escolher algo para

assistir na Netflix quando Kay entrou no quarto.

— Achei que você teria saído com alguém hoje — Kay falou com um certo

ressentimento na voz.

— Não costumo sair no dia dos namorados, não gosto muito da vibe — Fitz

respondeu desviando os olhos do computador. — E você? Não tem planos para hoje?

— Não, também não estou no clima. — Ele resmungou indo deitar na cama

dele.

— Você quer um pouco de vinho? Álcool às vezes ajuda a lidar com essas coisa.

— Fitz ofereceu — E eu tenho outra garrafa guardada.

— Claro.

— Eu ainda não comecei o filme, quer assistir junto — Ela perguntou depois de

servir um copo para Kay.

— Achei que você não saísse mais de uma vez com o mesmo garoto — Kay

debochou.

— Não é um encontro, Kay — Fitz argumentou — Eu só perguntei por

educação.

— Obrigado, mas acho que não tô no clima para comédias românticas. — Ele

respondeu e então começou a jogar algo no celular.

Em algum momento da noite, enquanto eles estavam na metade da segunda

garrafa Kay se levantou de sua cama para pegar o carregador do telefone que havia

ficado no bolso do casaco.

— Arrumou alguém para passar a noite com você? — Fitz falou com um certo

desprezo na voz quando viu Kay andando na direção do casaco.


187
— Não Fitz, eu não arrumei ninguém, eu não quero passar a noite com ninguém

— Kay respondeu irritado e então mostrou o carregador para ela — Eu só preciso do

meu carregador.

Fitz ficou um pouco envergonhada pela maneira como havia falado com Kay,

não era da conta dela se ele tivesse outra pessoa ou não. Achou que o vinho já estava

começando a fazer efeito.

— Você sabe que provavelmente não precisaríamos passar o dia dos namorados

nesse clima se você simplesmente aceitasse sair comigo mais uma vez — Kay atacou

— Foi tão ruim assim aquele encontro?

— Por que você continua achando que tudo gira em torno de você? — Fitz

pausou o filme e se levantou para encarar Kay. — Eu tenho meus próprios motivos

para não querer sair com você de novo.

— Imagino, devem ser ótimos motivos mesmo — Kay revirou os olhos e riu.

Fitz já estava irritada com aquela discussão boba, e talvez ela quisesse culpar o

vinho por tudo aquilo.

— Eu sou assexual, Kay — Fitz explodiu — É por isso que eu não saio mais de

uma vez com a mesma pessoa, sair mais vezes implica que em algum momento ele vai

querer transar comigo.

Kay não estava esperando aquela reação de Fitz, e tudo o que ele conseguiu

fazer foi ficar encarando ela, surpreso.

— Feliz agora que você sabe? — Fitz continuou com um tom de raiva, mas agora

segurando o choro. — Agora que você sabe que não é você, e que o problema sou eu…

aliás, isso nem é um problema de verdade.

188
— Por Deus, Fitz eu… — Kay se aproximou dela para abraçá-la mas ela se

afastou.

— Eu tento ao máximo evitar isso... — Fitz fungou e limpou as lágrimas que

insistiam em cair — Eu tento evitar me expor a essa situação.

— Que situação, Fitz? — Kay tentou se aproximar de novo para limpar as

lágrimas dela e dessa vez ela não se afastou.

— A de gostar de um garoto que talvez vá me largar no momento que souber

que não tenho interesse em transar com ele.

— Ah, Fitz… — Kay a abraçou e beijou o topo da sua cabeça. E, sem saber o que

dizer, lá permaneceu, abraçado nela, esperando as palavras corretas saírem de sua

boca.

— Eu… Eu odeio que tenham feito você se sentir assim — Ele começou a falar

e então segurou o rosto de Fitz com as duas mãos para que ela o olhasse — Odeio

quem quer que tenha sido o idiota que fez você acreditar nisso.

— São vários idiotas — Fitz riu sem jeito.

Kay aproximou o seu rosto lentamente em direção a Fitz, estudando a reação

dela a isso, mas ela simplesmente fechou os olhos e deixou que ele a beijasse.

— Vem, deita aqui comigo — Kay sussurrou assim que terminou o beijo. Ele

segurou na mão de Fitz e a puxou em direção a sua cama. — Nós não precisamos

passar o dia dos namorados sozinhos.

— Mas, Kay eu… — Fitz começou um pouco receosa.

— Nós não vamos fazer nada, eu só quero a sua companhia — Ele explicou e

Fitz pôde perceber a sinceridade na voz dele, ou talvez fosse o álcool falando por ele

— Não quero dormir sozinho.

189
Fitz concordou com a cabeça e acompanhou Kay até a cama dele. Ela se deitou

do lado da parede igual no dia em que eles saíram pela primeira vez, mas dessa vez

quando Kay se deitou ao lado dela ele a abraçou.

E eles rapidamente caíram no sono.

***

Assim que o despertador de Kay tocou no sábado de manhã, Fitz se levantou

rapidamente por causa do susto e se arrependeu imediatamente, pois sua cabeça

parecia que ia explodir. Kay se mexeu ao lado dela na cama resmungando alguma

coisa. Ela olhou na direção dele e percebeu que havia dormido na cama dele.

Então se lembrou de tudo o que havia acontecido na noite anterior e sentiu suas

bochechas corarem.

— Kay, você precisa levantar — Fitz mexeu nele — As crianças vão ficar

bastante chateadas se você não for.

Ainda de olhos fechados, ele murmurou algo que Fitz não conseguiu entender

e a puxou para deitar com ele de novo.

— Eu sei… — Ele sussurrou contra o cabelo dela. Kay adorava o cheiro do

shampoo de Fitz, então ele ficou parado ali, respirando profundamente o cheiro do

cabelo dela — Quer ir comigo? Acho que a gente tem algumas coisas para conversar,

se você não se importar.

— Certo… — Fitz concordou quando Kay se levantou e estendeu a mão para

ajudar ela a sair da cama.

Alguns minutos depois os dois já estavam prontos, Kay estava parado próximo

da porta segurando uma mochila enquanto esperava Fitz terminar de prender o

cabelo.

190
— Quando a gente chegar atrasado eu vou colocar toda a culpa em você. — Kay

falou abrindo a porta do quarto.

— Foi você quem me convidou — Fitz correu para alcançar ele.

Eles passaram o trajeto todo em silêncio, nenhum dos dois sabia muito bem

como puxar o assunto sobre a noite passada.

Assim que eles chegaram na escola várias crianças acompanhadas dos pais

aguardavam Kay animadas. Ele levou todas elas para a quadra e disse que Fitz poderia

sentar no banco que ficava na lateral.

— Aqui, você devia beber bastante água hoje — Ele mexeu em uma caixa de

isopor do lado do banco onde Fitz estava sentada e entregou uma garrafa para ela.

Quando ele correu de volta para o meio do campo para dar as primeiras

instruções para as crianças, uma menina, que devia ter uns 11 anos, se aproximou de

Kay.

— Muito legal o cabelo roxo da sua namorada — Ela falou baixinho.

— Ela não… — Kay começou a falar por força do hábito mas então parou e

olhou na direção de Fitz que sorriu e acenou para ele mesmo sem saber sobre o que ele

conversava com a menina — Pois é, eu também acho muito legal o cabelo dela.

Depois que as crianças terminaram de se dividir em dois times e Kay apitou

para o jogo começar ele foi se sentar ao lado de Fitz no banco.

— Então… — Ele começou assim que se sentou.

— Então…? — Fitz repetiu.

— Bem, eu sei mais ou menos como funciona essa questão da assexualidade —

Kay começou um pouco relutante, sem saber muito bem como abordar o assunto sem

soar rude. — Eu sei que é um pouco diferente e pessoal para cada um…
191
— Sim — Fitz concordou.

— Mas eu não posso dizer que entendo completamente — Kay continuou —

Então me ajuda a entender como funciona para você, pelo menos.

Fitz não conseguiu conter um sorriso, aquela talvez tenha sido a coisa mais fofa

que alguém já tenha dito para ela.

— Eu nunca senti atração sexual — Fitz começou — Eu não faço a mínima ideia

de como isso deveria funcionar, ou como funciona para pessoas que não são assexuais.

— Certo… — Kay respondeu, ele não conseguiu pensar em uma maneira

melhor de perguntar isso — Mas você já…?

— Já — Fitz corou e respondeu rapidamente, antes que ele pudesse terminar a

pergunta — Eu já fiz isso.

— Eu realmente gostaria de entender como isso funciona para você — Kay falou

e então se aproximou seu rosto um pouco do pescoço dela — Porque, para mim, da

mesma forma que eu quero te beijar enquanto a gente fica assistindo Netflix e contar

para todo mundo que você é minha garota, eu quero poder tocar você, poder…

Fitz, que estava muito vermelha com a declaração de Kay, soltou uma risada

nervosa e ele se afastou.

— Não, não é isso Fitz, eu… Me desculpa — Kay começou a falar sem jeito —

Isso deve ter soado horrível para você.

— Não, tá tudo bem, eu entendo… Eu acho — Ela falou.

Kay estava certo de que havia estragado tudo com Fitz, que ele deve ter soado

só como mais um desses idiotas que vai largar ela porque eles não vão transar.

192
— Sabe… — Fitz começou um pouco pensativa — Para mim… eu sinto como

se todos os garotos fossem bolinhos, alguns são bolinhos mais bonitos que os outros

mas…

— Mas você adora bolinhos — Kay a interrompeu rindo e ela deu um tapa no

braço dele.

— É uma metáfora, Kay, me deixa terminar — Fitz riu — Mas sim, eu adoro

bolinhos, principalmente os bolinhos bonitos.

Agora foi a vez de Kay corar, mas ele não a interrompeu.

— E é como se eu tivesse todos os tipos de bolinhos na minha frente, mas eu

não tenho fome — Fitz concluiu — Eu não quero comer nenhum bolinho, talvez só

olhar e guardar os bolinhos bonitos só pra mim.

— Acho que estou começando a entender — Kay riu, mas antes que eles

pudessem concluir o assunto uma das crianças caiu e se machucou e ele foi lá ajudá-

la.

Quando ele voltou eles não falaram mais sobre isso. Mas o desconforto havia

sumido.

***

As coisas entre Kay e Fitz começaram a acontecer de forma lenta e natural, um

beijo roubado às vezes, algumas noite assistindo Netflix, eles até dormiram juntos mais

algumas vezes.

Mas eles nunca haviam de fato conversado sobre o relacionamento deles, até

um dia quando Fitz estava em um chamada de vídeo com o pai.

193
— E como estão as coisas com o garoto no seu quarto, Kyle? — o pai de Fitz

perguntou e isso chamou atenção de Kay que estava sentado na sua cama lendo um

livro para a faculdade.

— É Kay — Fitz respondeu um pouco sem jeito.

— Esse mesmo, e então?

— Ah, a gente meio que … — Fitz parou a frase no meio porque ela não sabia

muito bem como explicar para o pai, então olhou para Kay que sorriu e acenou com a

cabeça. — Acho que gente meio que tá... namorando?

Kay deu um dos sorrisos mais lindos que ela já havia visto na vida e concordou

mais uma vez com a cabeça.

— É... A gente tá namorando — Fitz sorriu e voltou a olhar para o seu pai na

tela do computador.

O pai de Fitz ficou muito feliz em saber disso, ele sempre quis que Fitz pudesse

ser feliz e aceita do jeitinho que ela é. Mas ele sabia que Kay estava ouvindo.

— Bem, então parece que eu vou ter que falar com esse garoto da próxima vez

que eu estiver em Londres — Ele falou em um tom sério, mas Fitz, que havia visto ele

sorrindo, sabia que ele só estava brincando.

Kay se levantou rápido da cama e parou atrás de Fitz para falar com o pai dela

também.

— Ah, é… Claro, Sr. Fitzpatrick — Kay começou todo sem jeito. Fitz segurava

uma risada enquanto seu pai continuava fingindo um ar de seriedade.

— É Comodoro Fitzpatrick para você, garoto. — Ele respondeu sério.

— Sim, claro, eu me esqueci… Me desculpe, Comodoro — Kay estava

completamente apavorado.
194
E então Fitz e o pai explodiram em gargalhadas.

— Eu adorei este garoto, Fitz — Seu pai falou enquanto ria.

— Você tinha que ver a sua cara — Fitz falou olhando para Kay, ainda rindo,

sem conseguir parar.

— Você pode me chamar de Tom, garoto — o pai de Fitz falou assim que parou

de rir.

Kay respirou fundo antes de responder.

— Certo… Tom.— Ele respondeu o pai de Fitz e então olhou para ela — Eu acho

que preciso beber alguma coisa, quando você terminar aí eu vou estar esperando na

cafeteria.

— Até — Fitz respondeu e Kay deu um beijo na cabeça dela e saiu.

Depois de terminar de falar com o pai, Fitz correu até a cafeteria para encontrar

Kay que estava sentado na sua mesa com uma xícara de chá. Fitz acenou para Steven

que estava atrás do balcão e pediu um chá também.

— Sem bolo hoje? — Kay perguntou assim que ela se sentou na frente dele.

— Sem bolo, só chá.

— Maya sabe sobre a gente? — Kay perguntou depois que o chá de Fitz chegou.

— Não exatamente — Fitz falou pensativa — Eu acho que ela desconfia, mas

ainda não tocamos nesse assunto.

— Você devia contar para ela logo, a garota me odeia.

— Maya odeia qualquer garoto que ela achar que pode me machucar. — Fitz

deu de ombros — Eu vou falar com ela, prometo.

195
Eles voltaram para o dormitório de mão dadas enquanto conversavam sobre

coisas aleatórias. Assim que Kay destrancou a porta do quarto Fitz passou os braços

ao redor do pescoço dele e o beijou.

Depois que eles passam pela porta, Fitz a fechou e trancou. Ela tirou o casaco e

se aproximou de Kay mais uma vez o puxando pela camiseta para colar seus lábios.

Mas esse beijo era diferente, ele era mais agressivo, mais intenso.

— Fitz, calma — Kay se afastou um pouco de Fitz e respirou fundo — Me deixa

respirar um pouco.

Fitz sorriu e mordeu o lábio inferior de Kay, que soltou um gemido contido.

— Fitz… — Kay começou a falar enquanto ela descia a boca pelo seu pescoço,

ele respirou fundo mais uma vez antes de falar — Talvez eu precise de um tempo

sozinho no banheiro se você continuar com isso.

Fitz riu e então sussurrou no ouvido dele

— Acho que eu posso te ajudar com isso.

— Fitz, a gente não precisa… Você não precisa... — Kay tentou argumentar.

Mas Fitz o beijou mais uma vez impedindo que ele continuasse falando e o

puxou na direção da sua cama.

— Não é porque eu não sinto fome que eu não possa comer um bolinho muito

bonito às vezes — Ela falou enquanto puxava a camiseta de Kay para cima.

Ele riu e a ajudou a tirar a própria blusa. Fitz para por um momento, estendendo

a mão direita e envolvendo a bochecha de Kay, de forma com que ele tivesse que

encará-la.

— Eu amo você — Ela falou olhando-o nos olhos.

196
— Eu também amo você — Kay respondeu depositando um beijo calmo na testa

dela e então começou a distribuir beijos por seu rosto e pescoço em direção a barriga.

— Você tem certeza, Fitz? A gente realmente não precisa… Se você não quiser…

— Está tudo bem, Kay, eu quero fazer isso. — Ela sorriu. — Com você.

FIM

197
Agradecimentos

Fico feliz que você tenha chegado até aqui, espero que tenha aproveitado a

leitura e até mesmo aprendido e/ou compreendido algo.

Existem inúmeras pessoas que devem ser reconhecidas por esse trabalho, mas

eu vou começar pelo grupo de pessoas onde essa ideia surgiu, as pessoas do grupo

cACEtinho (eu sei, é um ótimo trocadilho para um grupo de assexuais do RS, obrigada

Gunz). Vou chamar todo mundo aqui pelo apelido ou pelo nome como eu chamo vocês

na minha cabeça: Daniel, Flavs, Gunz, Laís, Pawllo, Calebe, Heron e Nick. Me

desculpem se eu esqueci de alguém, mas acho que essas eram as pessoas mais ativas

no grupo na época que essa ideia surgiu, mas se você faz parte do cACEtinho, sinta-se

agradecido.

Não poderia deixar de agradecer ao pessoal do CakeLovers, principalmente o

Guto que teve que me aguentar incomodando ele por meses com isso e ainda serviu

de leitor beta! Se esse livro hoje está chegando até você é graças aos esforços do Guto

e de todo o pessoal do CakeLovers.

Vou agradecer a Mariana Peixoto também, seu conto Flamboyant teve

exatamento tom que eu queria dar pra essa antologia e espero que você me perdoe por

usar um Flamboyant na capa, mas eu realmente achei simbólico. E, como a palavra

“antologia” vem do grego e significa “coleção de flores” achei que seria de bom tom

usar uma árvore na capa. Então, obrigada Ruan e Aruna por tornar real a capa e dar

uma identidade para esta antologia, ficou muito melhor que qualquer coisa que eu

pudesse imaginar.

Meu muito obrigada, por todo o trabalho de revisão e organização desse e-book,

ao Cley e a Evys, obrigada por não desistirem de mim, amo vocês. Vale ressaltar que,

embora não sejam assexuais, Evy e Cley são a melhor equipe de revisão/edição que eu

198
conheço e fizeram toda a revisão desse livro em pouquíssimos dias, então, por favor,

perdoem eles por qualquer erro que passou despercebido.

E Tayne, obrigada por ter voltado a falar comigo, e ter servido como uma ponte

de comunicação entre mim e a Bruna Viana, o trabalho dela com diversidade é incrível

e espero que esse livro possa ajudar ela tanto quando o prefácio dela ajudou ao

apresentar a proposta da antologia (e na sinopse!).

Eu tomei o cuidado de escrever o sobrenome da Bruna Viana porque existe

outra Bruna que deve ser agradecida. Bruna Alves, esta mulher importante na política

LGBT+ do país; eu sei que sempre recuso os teus convites de ser uma voz assexual na

política, mas é porque política realmente não é a minha área, espero que esse livro te

ajude na divulgação de políticas assexuais.

Obrigada também as pessoas que aceitaram a tarefa quase impossível de betar

esse livro em poucos dias: Guto, Led, Maximus e Clara, vocês ajudaram um monte no

trabalho da revisão.

Como este livro nasceu e cresceu no twitter eu vou listar aqui vários dos @'s

envolvidos na concepção dele: @cakeacelovers, @Ruano_Ruanudo, @ahaskenna,

@cultstyless, @kipossunshine, @KusokiLockser, @babykirisharkk, @vtr_mari,

@Lorde_Peralta, @aceywrld, @shorthighschool, @theaceane, @ImTiredAfff,

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@gariglio_, @LAmethista, @sofiafx25, @alanytsunami, @piggyxback, @NaahdeNaah,

@helxace, @gon_jin_, @spierrvs, @imsweetpie, @mxndfrt, @barbiwr, @floatautumnleaf,

@Twelve_ALC, @itsirious, @StylorRajaram, @morewhorethan e @insannep. Espero

não ter esquecido de ninguém.

E se você se identificou com algo como o que foi descrito nessas estórias, ou só

quer aprender um pouco mais sobre assexualidade, procure os coletivos assexuais

199
(como CakeLovers, Aroaceiros ou AbraACE), converse com outros assexuais e, se você

decidir se assumir assexual, seja muito bem-vinde.

Espero te ver em uma próxima antologia,

talvez no ano que vem.

Com amor,

Zab (@heyisinha)

200

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