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Outubro 2020
Publicado como E-book pela Kindle Direct Publishing©
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos autores
ou editores.
Organização
Isabela Marques
Coletivo CakeLovers
Ruan Henrick
Aruna Sol
Diagramação
Isabela Marques
Prefácio
Revisão
Cleydson Henrique
Evelin Lima
ISBN: 978-65-00-11117-0
Sumário
Prefácio 5
Flamboyant 6
Uma Tarde 21
Quem Perdoar? 30
Abandono 45
100 pedaços 49
A maré 51
Catando sonhos 52
Tarô 53
As três Anas 94
Liberdade 100
Sol 101
Arrependimento 113
Agradecimentos 198
Prefácio
seu interior contos e narrativas que prendem os/as/es leitores/as ao livro de forma
íntima e sincera.
próximo. Para quem busca expandir seus conhecimentos sobre diversidade sexual e
por lá,
““Mas se todo mundo obedecesse a essa regra”, disse Alice, sempre pronta para
uma pequena discussão, “e se você só falasse quando lhe falassem, e a outra pessoa
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Licenciada em Ciências Biológicas pelo IFSul-CaVG; mestranda pelo programa de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências e Matemática (PPGECM) pela UFPel e cursando especialização pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias na Educação (PPGCITED) no IFSul-CaVG, Bruna Peres Viana
trabalha com diversidade sexual e de gênero desde a graduação.
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Flamboyant
“Eu conheci o Gabriel na faculdade, a gente faz História juntos. Ele me convidou
para sair pela primeira vez em abril, me chamou para ir no Edifício Banespa na semana
do feriado, quando a gente não ia ter aula. Eu aceitei, porque estava ansiosa para fazer
amigos, e eu achei que essa era a intenção dele. A gente foi numa exposição que tava
rolando no Farol e depois subimos para o mirante. Quando chegamos lá em cima, ele
pegou na minha cintura, e eu me assustei. Tentei me afastar, mas ele pegou a minha
mão. E eu entendi… E não soube o que fazer, entrei em pânico. Eu nunca tinha beijado
ninguém e nem queria beijar ele. Mas eu não sabia o que fazer. Quando ele me beijou,
eu só… Fiquei lá. Deixei ele fazer o que ele quisesse por alguns minutos. Quando ele
parou, eu peguei o celular, fingi que tinha recebido um telefonema urgente e fugi.”
“Ok, essa é a história do seu primeiro beijo? Mas por que a gente tá falando dela
“Eu sei. Semana passada eu só sabia falar sobre ele. Por que eu fiquei realmente
muito mal de ter terminado com ele. E aí eu comecei a pensar, e me perguntar, por que
tentando achar um padrão. E eu achei que usar esse espaço aqui seria uma boa, e achei
“Então tudo bem, vamos falar sobre isso! Me parece que você já pensou bastante
sobre, vou deixar você me contar tudo que tiver para contar e a gente continua a partir
daí, ok?”
“Voltando ao Gabriel, eu continuo sendo amiga dele. Até hoje. Ele me beijou
mais algumas vezes, e eu deixei. E fingia que tava tudo bem, porque é o normal, né?
Beijar alguém, ficar com alguém. Ele só parou quando eu comecei a me aproximar do
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Pedro. Mas antes disso, eu tive mais algumas experiências que eu acho que me fizeram
“Então você não gostava de estar junto com o Gabriel? Mas fazia mesmo assim?
“Foram uns 6 meses. E nesse meio tempo eu decidi que eu só não gostava de
beijar ele, que era um problema por causa daquele primeiro beijo estranho, mas que eu
tinha que tentar com outras pessoas, porque é a coisa certa, o normal, né? E foi o que
eu fiz. Botei na minha cabeça que o problema era que ele é homem. Se eu beijasse uma
menina ia dar tudo certo. Mas eu ainda não sabia o que fazer. E nisso foram-se uns 3
quando ele queria, porque eu não queria que ele deixasse de ser meu amigo. Eu não
percebia o quão errado isso era e só fui perceber no dia em que ele queria mais do que
“Voltando não, me parece que isso foi algo importante. Ele te machucou?
“Não aconteceu nada, porque pela primeira vez eu consegui dizer não. Eu não
sentia nenhuma vontade de fazer qualquer outra coisa com ele. Nem beijar eu queria.
“Você não se sentia sexualmente atraída por ele? Esse era o problema, e então
“Esse termo que você usou, “sexualmente atraída”, isso nunca tinha nem
passado pela minha cabeça. Eu nem chegava a cogitar que existissem realmente
pessoas que pensavam em sexo e que isso era importante. Eu não pensava. Eu pensava
em me apaixonar, em gostar ou não da pessoa e, quem sabe, em beijar ela. Então pensei
que eu poderia não ser hétero, mas não porque eu não me sentia sexualmente atraída
por um homem, e sim por que eu não me sentia confortável beijando ele e por que eu
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não gostava dele do jeito certo. Mas eu parei de pensar nisso. Até que um dia, numa
festa com alguns amigos do Teatro, uma amiga, a Sofia, me chamou para esperar o
Uber com ela do lado de fora da festa. Eu fui. E ela me beijou. Mesma coisa. Eu não
senti nada, deixei acontecer. Ela foi embora, eu voltei para festa e continuei dançando.
Até que um outro amigo meu, o Daniel, veio dançar perto de mim, me pegou pela
“Dois beijos em uma noite, uma mulher e um homem. E nada. Acho que
conheci o Gabriel. Ele era meu veterano, e a gente chegou a almoçar junto algumas
vezes nas primeiras semanas de aula. Mas depois eu perdi contato com ele. Então, sim,
eu já conhecia ele esse tempo todo, que foram só uns 6 meses na verdade.”
“Foram seis meses bem intensos! Você nunca falou sobre isso aqui por quê?”
“Eu sempre achei que só estava confusa por causa da faculdade, ou com todas
as mudanças que estavam acontecendo. E que essas coisas iam passar. Eu ia acordar
um dia e sentir atração sexual por alguém, e ia gostar de beijar, e que não era o tipo de
finalmente achei que eu tinha achado ‘a pessoa que ia me consertar’ eu descobri que
“Acho que você nunca me contou tudo o que aconteceu. E porque você não
precisa mais ‘ser consertada’? Estou curiosa com o que você descobriu sobre si mesma.
“Eu reencontrei ele numa festa. E ele tentou me beijar. Eu fiz o que eu sempre
fazia e deixei. Não foi diferente. Eu não gostei. A gente saiu da festa e ficou a
madrugada toda conversando. E ele não me beijou de novo. Isso foi numa sexta-feira,
na segunda, ele me chamou para almoçar com ele, e foi tudo ótimo, a conversa estava
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fluindo super bem, então decidimos sentar numa praça e continuar conversando.
Falamos sobre as árvores que estavam começando a se encher de flores. Foi ele que me
contou o nome da minha árvore favorita naquela praça. Ele não tentou me beijar. E
achei que eu estava gostando dele. Achei que talvez fosse isso, ele não tentou nada, em
nenhum momento, então, talvez, se eu beijasse ele… E eu fiz isso. Beijei ele. Não foi
tão ruim quanto das últimas vezes. Depois disso começamos a sair mais vezes, e eu me
“Por que vocês terminaram? Você não me explicou isso semana passada,
passamos o tempo todo falando sobre como superar, mas nunca falamos sobre o que
“Tava tudo ok enquanto eram só beijos, andar de mãos dadas e sair por aí
conversando. Mas ele queria mais. E eu não me sentia confortável para isso ainda. Só
que um dia, estávamos na casa dele, conversando e vendo filmes, quando ele começou
a me beijar, e me tocar, e eu sabia onde isso ia acabar. Eu não disse não. Eu deixei. Igual
eu vim fazendo esse tempo todo. Não foi ruim, mas eu também não queria que tivesse
acontecido, não estava tudo bem. Mas eu não disse nada. No dia seguinte eu encontrei
ele, e seguimos nossas vidas como se nada tivesse acontecido. Porque para ele não era
nada. Mas para mim, foi algo que eu não queria que acontecesse mais. Mas eu não
sabia como abordar esse assunto. Ele não fez nada de errado, eu não disse que não
queria. Eu não pedi para ele parar. Isso me atormentou por vários dias, até que eu
parei de pensar sobre. Isso ficou escondido no fundo da minha cabeça, até semana
passada, quando ele queria de novo. Mas dessa vez eu disse não e disse que não via
mais sentido na nossa relação. O que é uma mentira, eu gosto muito dele, eu só não
me sinto confortável e nem tenho interesse em transar com ele. Mas eu terminei.”
“Não tem nada de errado com você e agora você já sabe disso, certo?”
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“Certo. Eu sei que eu só sou assexual. E eu me negava a aceitar isso. Me neguei
por todo esse período em que eu só deixava que as pessoas fizessem o que quisessem
comigo. Quando eu disse ‘não’ para o Pedro eu parei de negar a minha assexualidade
e fiz o que eu queria. E eu me senti tão bem. E na hora eu só consegui associar ele a
uma das pessoas que não quiseram ouvir meu sim, e se contentaram com a ausência
de um não. É por isso que hoje eu já não me sinto tão mal de ter terminado com ele.”
“Acho que você fez a minha parte do trabalho já. E eu fico feliz em te ver se
descobrindo assim!”
“Eu me descobri assexual. Descobri que gosto de beijos e de contato físico. Gosto
de sexo, mas não sinto atração sexual, ou pelo menos não senti até hoje. E tá tudo bem,
“Eu amo ele e com certeza vou conversar com ele sobre em algum momento,
quando ambos estivermos menos sensíveis com isso tudo. Mas não quero estar em um
relacionamento agora, e não quero estar em um relacionamento com ele. Gosto muito
mais da nossa amizade. Afinal de contas, foi ele que me deu o nome do meu primeiro
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O paraíso caótico da Eva
Para aquele que me ajudou a me aceitar e tratar com naturalidade a minha (as)sexualidade,
você sabe que é você, obrigada.
Eva é uma estudante bastante dedicada vinda de uma família comum, que
reunião sobre alguma manifestação LGBT, como eles ainda chamam por lá. Uma aluna
— Nós iremos fazer um protesto pacífico, como uma parada LGBT, mas
adequada aos padrões da escola, para ninguém ter problema — Eduardo, o presidente
do grupo, inicia. — Nós vamos mostrar que nós existimos e estamos acordados.
Eduardo é o mais velho, repetente do terceiro ano por faltas, ninguém sabe o
que aconteceu com ele. Ele é reservado, ouve e observa a todos e só abre a boca quando
tem certeza sobre a situação é por isso que, dele, só saem boas ideias.
Do lado de Eduardo, Julia registrava tudo na ata, escrevendo cada palavra com
suas mãos hábeis e graciosas. Ela quase nunca fala nas reuniões, mas hoje, ela sentia
— Eu não acho que isso seja uma boa ideia. Faz bastante tempo, não vai fazer
tentando lembrar o que havia dito há segundos atrás. E ela consegue, ela nunca fica
para trás. Se arrependeu profundamente de discordar do garoto. Pelo canto dos olhos,
ela viu as tranças estilo box braids do presidente, que acompanhava seu movimento
inquieto.
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Eduardo, um tanto incomodado e com o ego ferido, gesticula fervorosamente
presentes, decide explicar que é melhor do que não fazer nada, que a ideia dele
precisou desse tempo todo para ser planejada minuciosamente e que é o presidente
— Mas isso é melhor do que não fazer nada, Ester— Allison, a de cabelo
Mas vamos voltar para a Eva, a menina (na verdade, menina é uma palavra
muito forte, mas ela prefere assim) recém assumida assexual e com muita vontade de
mudar a escola. Só que tem um problema: ela faz parte da sigla AP do LGBT e... Não
Para contextualização, há exatos vinte e sete gays, vinte lésbicas, trinta e quatro
manhã. Como uma assexual estrita panromântica pode sequer ter alguma voz aqui
dentro? E o pior nem foi ser a única no meio de mil, foi ter que informar a sexualidade
normalmente é.
— Foco, Eva. Não é sobre você, tem coisa pior acontecendo. — Ela sussurrou
enquanto respirava fundo fitando intensamente suas mãos e notou que suas unhas
estavam com o esmalte descascado. Eu tenho que tirar isso logo, pensou.
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Nas suas unhas se alternavam as cores da bandeira assexual, preto, cinza,
branco e roxo. Ela tinha pintado na semana passada, numa terça feira, quando se
—...todo mundo do mesmo gênero se beijar na frente da escola, é uma boa ideia,
— Nem, provavelmente vai dar mais gente, o que é melhor ainda — Allison
replicou
Primeiro que nem um terço do grupo participou da reunião, acho melhor encerrarmos,
cinco pessoas não fazem uma revolução. Outro dia nós retomamos.
Ele se levanta, bate palmas para si mesmo pensando em como era um péssimo
sexualidade, identidade de gênero e pronomes na lista. Ela ficou desesperada, pois foi
a segunda a assinar, todos iriam ver o que ela é. Exceto a Julia, que pensa que ela é
Para Julia, uma das primeiras a ser abertamente lésbica na escola, qualquer
menina é igual a ela. Ela tem isso porque sofre de falta de representatividade, uma
mulher lésbica, muçulmana e marrom. Onde já se viu? Pois é, Julia também não sabe.
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Eva é abertamente assexual, mas não é orgulhosa, o jeito que ela “saiu do
Hoje ela acha engraçado, Eva não é muito de guardar rancor, mas é uma coisa
dela mesmo. Ninguém nunca deveria ser sequestrado de armários ou aquários, ela
Há duas semanas, Eva se declarou para uma garota que já gostava há mais de
dez anos, era sua melhor amiga, a Luiza. Como qualquer sáfica, ela era emocionada
em excesso. Passava dias pensando em cafunés naquele cabelo liso e macio, passar as
mãos nas bochechas da amada e conhecer os pais dela, os senhores Kim. Imaginava
sua vida com ela, comendo pizza às quartas e indo para o parque todo fim de semana,
balada, os dias nos templos. Era tudo (literalmente) um sonho e a Luiza sempre estava
lá. Ela estava, e ainda está, totalmente apaixonada. E nesse momento, nossa Eva se
humilhação e derrota, ao ser recusada por Luiza. As duas meninas estavam no fundo
— Ok, então. Não se assuste — disse ela já a assustando— Mas eu meio que
gosto de você.
Luiza ficou meio chocada e sua expressão demonstrava isso muito bem, Eva
queria ter falado que era uma pegadinha, mas adicionou rapidamente, se atropelando
nas palavras:
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— Não fui eu que escolhi isso! Você foi boa demais para mim, você é perfeita e
Eva ficou mais animada quando viu a expressão de Luiza ficar mais suave e até
— Eu fiz algo para você — e tirou de seu bolso um cartão amarelo com um
poema escrito, que encheu os olhos de Luiza de lágrimas, quando ela o leu.
Eva não queria mostrar para ninguém além de sua amada, então por motivos
primeiro beijo. Ela descreveu como um ato nojento e que nunca iria repetir, mas estava
dissesse que sim, pois todas as suas amigas já namoram e já fizeram sexo.
Nossa amiga aqui é uma romântica sonhadora, com direito a sexo, e todos os
carinhos estranhos nos pés. É uma leitora assídua de romances com cenas quentes e é
basicamente o sonho dela fazer sexo, já que só havia beijado apenas duas mulheres na
vida. Se sentia uma lésbica falsa, queria poder transar para provar a si mesma que era
— Acho que...sim?
— Legal — Eva escondeu seu rosto de tanta vergonha e pulou para abraçar a
sua nova namorada, ela sabia que ela gostava de abraços apertados e muitos carinhos,
— Eu sou virgem, Eva. — Luiza disse — Acho que é importante você saber antes
E então, Eva paralisou. Não tinha contado a melhor amiga e, agora, namorada,
A descoberta dela foi meio comum e normal demais pois já era familiarizada
com o termo, foi um dia no fundo da piscina, depois de Alicia, sua amiga, ter contado
Foi no verão, nas férias de fim de ano, na verdade. No Mato Grosso sempre é
verão.
todo. E percebeu, antes de emergir, que sempre foi assim. Ela se apaixonava pelas
pessoas até demais, mas nunca conseguiu entender aquele desejo sexual por alguém,
achava que suas amigas tinham alguma coisa errada ou algo do tipo.
Ela nunca havia pensado nisso, nem sabia se queria fazer sexo um dia. Um flash
de memórias passou pela sua cabeça, e ela e se deu conta que, em 17 anos de vida,
nunca se sentiu sexualmente atraída por ninguém, o que era bem estranho por conta
E, então, quando Eva respirou fundo, tirou o cabelo de seu rosto e saiu da
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— Não! Quer dizer, sim, eu acho, mas não desse jeito.
— O quê?
assexual.
E Luiza se sentiu mal, achou que Eva estava mentindo, se sentiu constrangida e
insegura. Como ela iria continuar assim? Precisava encontrar outra pessoa,
urgentemente.
Não pensem que Luiza é uma babaca, ela também tem seus problemas e, no
— Então não podemos ficar juntas, como isso pode dar certo? Eu me sinto
atraída sexualmente por você, mas você não se sente por mim. É tão errado quanto um
Eva começou a chorar, ela é bem sensível, e Luiza entrou em pânico e correu.
Foi uma conversa bem desconfortável (Eu sei que você já passou por isso e sabe
como é, e se não passou ainda, se prepare), mas no final deu tudo certo. Depois de
constrangimento ao ter que explicar toda a vez o que é ser assexual, que nem todo
assexual é igual a ela, que ela pode gostar de uma pessoa e etc, o assunto caiu no
esquecimento.
De qualquer forma, Eva estava voltando para casa depois da reunião, andando
na calçada com seus fones de ouvido no máximo. Seus olhos estavam no chão e ela
alguém.
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Levantou o olhar e, inalando o cheiro de shampoo de chocolate, percebeu quase
Era uma situação bem esquisita, de longe dava para perceber o clima pesado,
mas, por algum motivo, Eva ainda sente borboletas no estômago quando ela diz seu
nome. Eva já havia superado e estava bem acostumada com esse tipo de rejeição. Mas
— Eu estava indo te ver, soube que você entrou para o grupo — Luiza disse, a
Admite que você ficou feliz dela ter lembrado de você, menina.
você não quiser mais nada comigo, mas eu precisava te dizer isso.
Luiza sempre gostou de meninas, teve várias crushes na vida, mas nunca amou
ninguém, até o dia da piscina na casa de Alicia. Quando Eva saiu da piscina, encontrou
Luiza, e elas ficaram deitadas na grama até anoitecer, conversando, brincando… Ela
se sentia segura lá. Agradece às amigas até hoje por terem deixado elas sozinhas. Foi
naquele momento que ela se apaixonou. Sentia uma ligação forte com ela. Foi a
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— Depois daquele dia eu pesquisei mais sobre isso, sobre o que você é e eu
descobri a demissexualidade.
“Quando você me disse que não sentia atração sexual eu me choquei, porque
Eu sabia que era lésbica desde o início, mas... nós crescemos e quase todas as
minhas amigas já fizeram sexo com outras mulheres, e eu não. Por causa disso, eu não
me sentia lésbica o suficiente, porque nunca achei ninguém com quem eu sentisse que
comecei a, meio que, olhar você de um jeito diferente...? Eu tive uns sonhos quentes e
Conversei com meu amigo e ele disse que ele também era demissexual e me
mostrou esse mundo. Eu venho te evitando porque eu estava com vergonha de ficar
— É, eu sei.
— Mas ao mesmo tempo é muito legal! — Eva abraça Luiza — Eu tô muito feliz
Nessa hora Luiza vira seu rosto e seu olhar se encontra com o de Eva. Foram
segundos que pareceram horas, era como se estivessem hipnotizadas uma com a outra.
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Eva sai daquele momento extremamente vergonhoso, já que as duas ainda
estavam estranhas. Ela estende a mão e pega a de Luiza. O toque a deixando sensível
e apreensiva. Elas não sabiam se iam voltar, ou melhor, começar, a namorar de novo.
Eva não precisava perguntar para saber que ela também não queria falar sobre
essa situação. Conseguiu perceber pelo sorriso torto, quando olhou para ela de relance,
antes de puxar Luiza para que andassem juntas. Ela a conhecia bem demais para saber
— Não precisa me contar. — Disse Eva e parou. Ficou na frente dela, juntou
Luiza sentiu a honestidade nas palavras de Eva e sabia que podia confiar nela,
sempre soube.
situação que aconteceu duas semanas atrás, andaram sem rumo. Elas sabem os
Fim.
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Uma Tarde
É meio dia em ponto e eu já posso sair para meu horário de almoço, mas estou
esperando meu namorado, que aparentemente não chega nunca. Odeio ter que
esperar, sou muito impaciente e já estou ficando irritado. Porém, ao olhar pela vitrine,
vejo seu cabelo castanho por entre as pessoas da rua e assim, toda tensão se dissipa.
Sou apaixonado pelo seu novo corte de cabelo que ficou perfeito para seu
formato de rosto e o mais engraçado é que ele é o único da cidade com esse corte, já
que se inspirou em um ator turco, acho que o nome era Burak alguma coisa. Sua
Ele entra na loja e eu nem percebo, pois me distraí pensado na sua fisionomia.
Eu me assusto, mas não demonstro e apenas respondo que sim com a cabeça.
quanto a da minha avó e eu amo passar esse tempinho das minhas quintas na
semana, e logo fico animado em sentir a brisa do mar e a areia em meus pés.
2
Insta: @nicolass_emilio
21
Após o almoço, Lucas retorna para o trabalho, e eu percebo que minha bateria
está em 8% e com certeza não vai durar o resto da tarde. Decido, então, dar um pulinho
em casa para pegar meu carregador. No caminho, vejo algo completamente estranho
e fico paralisado, meus olhos começam a lacrimejar e eu entro em pânico. Minha única
minha mãe que minha irmã estava falando com um menino exatamente igual a mim.
Estou confuso e pela minha cabeça se passam muitos cenários. Será que tenho um
irmão gêmeo? Como puderam esconder isso de mim? Será que minha mãe sabe?
Entro pela porta da frente e vou direto aos quartos, depois sala, cozinha e, por
fim, decido procurar na rua. Finalmente avisto minha mãe na garagem, parada em
frente ao marco da porta que leva até a parte de trás da casa. Corro em sua direção e
antes mesmo de olhar para qualquer lado começo a falar tudo sem omitir detalhes.
Então, percebo que ela simplesmente não ouviu nada do que eu falei e ainda está
parada olhando para algum ponto às minhas costas. Viro e sinto um embrulho no
estômago ao me deparar com o rosto pálido de minha irmã, do outro lado da garagem.
Ao lado dela está uma mulher idêntica à minha mãe, morta no chão. Há muito sangue,
Agora, estou mais confuso do que antes, mas consigo de alguma forma pousar
minha mão sobre o ombro de minha mãe e perguntar o que aconteceu. Ao tocá-la, sinto
instante ela começa a chorar e pede para que minha irmã se afaste do corpo.
Ainda pálida, minha irmã obedece, vem em minha direção e me abraça. Acho
que por ela ser mais velha pensa que precisa de alguma forma me proteger do mundo.
Eu não falo nada, em outro momento talvez escorregasse do abraço para algum outro
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Acabei de perceber que fui tão afoito em contar o que vi, que nem percebi que
minha mãe está machucada e suja de sangue. Ela está muito nervosa e inquieta. Peço
Ela começa dizendo que estava preparando o almoço quando ouviu alguém
— A voz era igual a minha e quando cheguei lá ela também era... igual a mim.
Fiquei assustada e perguntei o que ela queria, mas ela simplesmente partiu para cima
de mim sem dizer nada. — Após uma pausa, ela continua — Ela estava com essa faca
e tentou me atacar, eu juro, eu não queria, eu só ... só a empurrei e depois acho que
acertei ela com a tesoura de aparar arbustos. Eu juro que não queria matá-la.
em minha mãe que está trêmula, na esperança de acalmá-la. Ouvimos então o portão
percebo que se minha irmã estava em casa, não era ela falando com meu outro eu.
Sendo assim, poderiam ser eles entrando para nos matar. Pensar nisso apenas piora
tudo.
As vozes se espalham pela casa e começamos a ouvir gritos. Tem algo muito
inconfundível cabelo castanho passando pela porta da cozinha, seu semblante não é o
mesmo de sempre, suas sobrancelhas estão tensas e seus olhos alertas. Ao me ver, ele
— Você é você?
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Eu estranhamente fico aliviado em saber que ele entende o que está acontecendo
Antes que ele possa falar qualquer coisa, vejo atrás dele uma silhueta escura que
apresenta o inconfundível corte. Eu grito o mais alto que posso para ele se virar, mas
rapidamente ele é acertado por um golpe em sua nuca e desaba sobre o balcão da
cozinha.
Por sorte, minha mãe havia deixado uma faca de cortar carne exatamente ali e
ele consegue pegá-la para se defender, no entanto, está tonto demais e o Outro acaba
tomando a arma de sua mão após uma tentativa de golpe frustrado. Neste instante eu
vou em sua direção, mas minha irmã segura meu braço. É tarde demais.
O Outro acerta a faca em sua barriga e fica olhando Lucas cair no chão, eu entro
impotência toma conta do meu corpo e de meus pensamentos. Eu não sinto meu peso,
meus pés ou qualquer outra parte e eu nem sequer existo naquele instante. Existe
apenas aquela mancha de sangue em sua camiseta e o olhar que me cobre e me toma.
Imediatamente, com o resquício de vida que ainda lhe sobra, Lucas retira a faca de
seus abdômen e com um salto rápido consegue projetar a faca sobre o lado direito do
reconfortar
esparadrapo na barriga — e, por mais que a morte neste momento não seja algo
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Seus olhos perdem a vida sem que eu possa dizer que o amo, e por mais que eu
tenha dito isso tantas vezes, agora todas elas me parecem ter sido insuficientes. Sinto
passar correndo pela mesma porta por onde, há pouco, o Lucas havia passado, ainda
em vida. Tudo parece mentira, tudo aconteceu tão rápido. Eu o amei desde o momento
que o vi pela primeira vez na escola, foi meu primeiro amor adolescente. E agora,
olhando ele deitado no chão sem vida, nem parece que nós estávamos organizando
nossa viagem para passar nosso aniversário de namoro, são quatro anos juntos. Ou
assexual e nem todo mundo entende, mas ele entendia. Ele, ele segurava a minha mão
volta ao caos. O medo e a vontade de sobreviver são tão grandes que nos fazem seguir
correndo.
obstáculo de pular um muro de 2 metros de altura e, por mais que seja difícil, alguns
conseguem com facilidade, outros, como minha irmã, precisam de ajuda. Eu estou
perder tempo com pequenos erros. Eu vou primeiro, sentando sobre o muro, e estendo
uma de minhas mãos para ela se segurar ao tomar impulso e pular por cima.
Conseguimos chegar ao outro lado sem grandes ferimentos, então escuto vozes
confiança e soberania.
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Sinto um tremor que me deixa tonto, passei tanto tempo tentando ajudar minha
irmã que acabei perdendo nossa mãe de vista e, então, ao passar o olho ao lado dos
que ainda estão dentro do terreno, eu a avisto, de blusa vermelha, ela está com muito
medo e tenta subir de todo modo. Neste mesmo momento os Outros começam a atirar
nos que estão tentando escapar. Entrego uma pedra para minha irmã e falo para ela
tentar chamar atenção para que eu consiga puxar nossa mãe, e assim o fazemos, eu
Me preparo e vou, é tudo muito rápido e lembro de cair de costas e ficar sem
fôlego por segundos, mas minha mãe está viva. Enquanto estou deitado no chão ainda
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Mágoa em linhas não ditas
Eu acho injusto
27
Não merecia
Sinto ódio
Sinto amor
Sinto falta
De mim
Como mostarda
Em grande excesso
É exaustivo
Poesias inacabadas
É cansativo lembrar
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Quem Perdoar?
“Perdoar não é esquecer” essa é a primeira coisa que me vem na mente sobre o
Perdoar pode ser, e geralmente é, muito difícil, porque significa que o assunto
se encerrou, que não se tem mais sentimentos negativos. Perdoar não é esquecer, não
Auto perdão é o mais difícil, não existe nenhuma outra pessoa que te conheça
tão bem e que nunca vá te deixar; além de você, qual é a outra pessoa que conhece
todos os seus defeitos e erros? Quem te lembra de cada um deles todo dia? Do que
vez você tentará não repetir o erro, correto? Mas, se você evita se relacionar porque
tem medo de errar, é necessário que se perdoe. Evitar e corrigir são atitudes práticas a
se tomar, mas pensar sobre e se perdoar são os primeiros passos para melhorar e
crescer.
do amor próprio e do autocuidado, é necessário refletir, se conhecer, por isso digo que
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Sobre minha infância
viviam três pessoas. Uma garotinha com grandes cílios e cabelos longos, quase preto,
e ondulados. Uma mulher branca e de olhos cor de mel. E uma senhora baixa e gorda
que sempre preparava refeições com todo amor que poderia dar.
Na casa amarela também vivia um cachorro de pelos alvos e enrolados. Por ter
patas curtas ele nunca alcançava o segundo andar. A menina achava engraçado .
O melhor dia do ano era São Cosme e Damião. Os quatro primos de Mari viriam
Ao voltar para casa todos estavam felizes pelos doces que haviam pego durante
o dia. Rosa recebia todos com abraços, beijos, salgados feitos por ela e refrigerante cor-
de-rosa.
escada e comiam. Esse, com toda certeza, era para eles o melhor lugar da casa, onde,
nos degraus mais altos, eles tinham discussões bobas do porquê as suas respectivas
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Do alto podiam ver seus pais assistirem televisão e sentir o cheiro de alho e
E no fim do dia, Mari se despedia de seus primos e tios, pois já iriam embora.
Lili acompanhava a filha até o segundo andar. Sentada na cama, Mari tinha seus
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Contos nunca antes ditos
Pânico e desejo
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Pois mesmo na paz do mirante
Me pergunto então
A realidade.
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Canso só de pensar
Esquecidos no repousar
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A primeira vez de um assexual
ensino médio. Veio-me essa lembrança faz pouco tempo. Hoje, com meus 30 anos,
casado e com um filho, me pergunto: quando o meu filho chegar à idade em que eu
perdi a minha virgindade, ele vai viver a mesma situação que eu vivi? Espero que não.
Depois dessa experiência fiquei um tempo sem me envolver, até encontrar outra
minha orientação sexual. Vai ser estranho o que irei relatar, mas... sou assexual. Bom...
Você deve estar se perguntando como um homem assexual é casado e tem um filho
da escola eram, majoritariamente, sobre sexo: perda da virgindade, quem transou com
da minha, sua vida sexual era bastante ativa. Sei disso, porque ele vivia me relatando
seus feitos e também os comprovava por meio de fotos e gravações do seu celular, sim!
Na adolescência ele era daqueles rapazes que gravava escondido, sem o com
consentimento das meninas; só com a promessa de não mostrar para ninguém, mas
acabava mostrando para os amigos depois. Quando não tinha nenhuma menina que
quisesse “dar para ele”, ele tentava encontrar rapazes ou prostitutas. Mas nesses dois
últimos casos ele não gravava e nem mencionava para ninguém, exceto para mim e
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De vez em quando meu amigo me convidava para ir aos puteiros, mas eu
— Gosto! Mas não me vejo transando da mesma forma que você transa com as
garotas.
Meu rosto ficou corado com a pergunta por achar que nunca a escutaria.
— Quer experimentar?
— Não!
— Nunca ter se imaginado fazendo, não responde se você vai gostar ou não...
Deixei meu amigo conversando sozinho. Quando cheguei em casa, fui direto
para o meu quarto, ainda enfurecido, mas, aos poucos, fui acalmando e refletindo
sobre a questão. De fato nunca me atraí por homens. Eu nunca fui atrás de mulheres,
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Novamente essa questão sexual me perseguindo... Seria tão simples se cada um
vivesse sua sexualidade e a não a alheia... Não entendo essa necessidade de você se
No dia seguinte, na sexta-feira, fui para escola e não dei muito papo para o meu
amigo. Quando bateu o sinal para o intervalo ele veio falar comigo. Ainda estava
— Sim.
— Certo... Eu saí com uma menina da escola no final de semana e ela quer se
— Que bom.
— Ela vai me esperar na casa dela com outra amiga e me perguntou se eu tinha
— Topo.
— Certo! Vai ser no sábado. Te pego na sua casa e vamos para lá de noite, pode
ser?
— Pode.
Dormi com certo pesar aquela noite, será que eu realmente queria fazer aquilo?
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Quando o sol se pôs no horizonte, naquele sábado, dando lugar a um degradê
de tons que chegava ao preto, meu amigo apareceu em casa. No percurso ele me
comentava sobre o último final de semana, e eu mais uma vez escutando já sem muita
animação.
— Foram viajar.
Chegamos à casa. O meu amigo chamou, e de lá saiu uma menina baixa, ela
estudava na mesma série que a nossa, porém em uma sala diferente. Ela já tinha uma
escola, contudo eu nunca me interessei em saber mais sobre ela, apenas a via por lá.
O meu amigo entrou primeiro e lhe deu um selinho, eu fui atrás sem saber bem
o que fazer. Ela olhou, deu um sorriso e me beijou na bochecha. A menina caminhou
na frente, abriu a porta e apresentou sua colega. Era uma menina de outra escola, que
Caminhamos até o sofá e eu e meu amigo nos sentamos enquanto elas iam para
porta fechando. O filme era bem longo e eu e a amiga da anfitriã estávamos sentados
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Começamos a escutar uns gemidos na casa. O filme acabou juntamente com o
não sabia como agir; ela se sentou no sofá e ficou olhando para seus sapatos. Neste
Ela olhou para mim e com a mão fez um gesto na direção da cozinha e disse:
Entrei no banheiro e fiz o que precisava. Nesse momento os gemidos ficaram mais
fortes. Saí de lá e fui até a sala. A tal amiga estava recolhendo os potes de pipoca e as
Estava assustada e sem saber para onde olhar, a cada gemido seu rosto ficava mais
ambiente. A menina estava inquieta e eu não sabia o que fazer. Alguns minutos depois,
Percebendo que nada parecia ter acontecido e observando sua amiga que saía e
entrava da cozinha para arrumar as coisas, ela murmurou algo para meu amigo. Ele
arregalou os olhos e disse algo em resposta, ela reagiu da mesma forma e os dois riram.
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A menina foi até a amiga, a levando para o quarto, e depois nos encaminhou até a
porta da saída. Ela disse algo para o meu amigo e então se despediu.
— Do quê?
— Que a amiga dela também era virgem. — depois que falou isso deu uma
risada e ficou um tempo olhando para o horizonte — Sabe de uma coisa... Essa noite
Fiquei sem saber o que dizer, mas como me encheram tanto o saco sobre esse
— Vamos!
— Beleza.
onde funcionava um bar e na esquina da rua havia uma porta com um interfone. Meu
amigo apertou em um dos botões e, em alguns minutos, uma voz saiu do aparelho:
— O que desejam?
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— Qual a idade de vocês?
portão, entramos e vimos uma escada que dava acesso para outra porta que, enquanto
subíamos, foi aberta por uma mulher magra, baixa e de cabelo curto. Ela nos esperava
podíamos ver duas portas no fundo da sala. A moça nos cumprimentou e indicou um
— Sim.
de ser a cafetina daqui. É proibido entrar menores de idade, ou seja, a gente, só que eu
sei o nome verdadeiro dela, já que venho aqui há algum tempo, sou de confiança da
A moça abriu a porta e fez um sinal para que a seguíssemos. Entramos num
outro recinto, que era uma cozinha onde estavam algumas prostitutas fazendo um
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lanche. Continuamos até outra porta, que se abriu em um quarto com uma uma tv em
cima de uma mesa de cabeceira e uma cama de casal. Entramos no quarto e a moça
disse:
O meu amigo sentou na cama e ficou olhando para TV, onde passava um filme
pornô. Eu estava nervoso encostado na parede. A porta foi aberta, era novamente a
moça da recepção, porém atrás dela havia cinco mulheres usando apenas roupas de
baixo. A moça entrou e apresentou as mulheres para a gente, meu amigo virou o rosto
Nesse momento senti uma estranheza que só iria aumentar à medida que o
tempo passasse ali, mas que eu não sabia descrever. O meu amigo deixou o quarto
— Se não tiver alguma do seu agrado pode esperar que lhe apresento outras. —
que era. Estava escolhendo um ser humano como se fosse escolher um pedaço de carne
no açougue?! É uma pessoa como eu! Eu estava lá fazendo isso?! Uma sensação de nojo
aumentava.
Escutei duas batidas na porta que, logo em seguida se abriu. Clara entrou junto
com outras mulheres e antes que pudesse apresentá-las, num momento quase
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Ao entrarmos, havia um corredor de madeira com várias portas e ao fundo, um
levou para um dos quartos. Ela pediu para que eu esperasse um pouco.
Sentei na cama e no canto tinha outra TV, também passando um filme pornô.
Quando ela retornou, envolta em uma toalha, eu já estava de cueca. Ela me deu uma
leve empurrada em direção à cama e tirou a toalha, parando para pegar a camisinha
Eu estava muito nervoso e era muito difícil ficar excitado, mesmo que a mulher
Ela colocou a camisinha em mim e começou a fazer o oral. Ainda assim, não
que ia transando com ela. Cavalgada, de quatro, de lado, e eu não sentia nenhum
Aquilo foi tão broxante que fingi ter um orgasmo para poder sair dali. Despedi-
me dela. Encontrei com meu amigo que já me esperava na sala junto de Clara. Nos
— Muito bom.
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Abandono
Dói
Dói
Dói
Dói
Apesar de tudo
Dói
Dói
Dói
Dói
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Um pedido de desculpas ao Mar
A ganância humana:
Mente
Maltrata
Abusa
Cala
Mente
Maltrata
Abusa
Cala
Ment...
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[Onde está meu bebê?]
Quatro mortes
Perdão, Tilikum.
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100 pedaços
Eu sou o que pode ser considerado uma pessoa completa, com um corpo,
espírito e alma, mas tem algo que me agita e me enerva, que aniquila minha calma.
Mas como achar o que eu nem sabia o que era? Do que eu precisava? Por onde
começar?
Até que olhei para fora e percebi que o que eu preciso não vem apenas de mim.
completar?
Acontece que estou aprendendo aos poucos que sozinho você não é, sozinhos
E agora? E AGORA?!?
Tudo bem, eu devo me amar primeiro, mas e quando não dá pra ser assim?
Sinto que preciso dos outros – será que tem alguém que precisa de mim?
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Se eu me basto, por que ainda preciso de outros? Por que, quando sozinha, vou
Talvez eu precise catar umas peças no chão. Talvez eu precise de alguém que
me estenda a mão. Talvez precisar de alguém não seja tão ruim... Mas preciso esfriar a
Que mesmo que esse alguém não apareça... esse não precisa ser o tão temido
fim...
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A maré
Eu sou jogada de um lado para o outro, não podendo abrir a boca sem correr o
Ao mesmo tempo que vocês me dizem que vão estar ali para mim, por tudo e
me ouvir, eu tenho medo de contar para vocês quem sou o verdadeiro eu e me afogar.
Em vez de ondas, palavras cortam, não só minha pele mas minha alma, o que
eu sou além de uma marionete? Os momentos felizes e em união valem a pena, claro,
Por favor, me escutem e entendam o que eu tenho a dizer, é a única coisa que
51
Catando sonhos
e infantil, me recordo de todas as vezes em que os vivenciei nos meus sonos mais
profundos.
Contudo.
Minha memória mais viva, com certeza, foi quando a realidade os rasgou em
Tenha calma!
Estou bem, pois me agarrei ao único pequeno pedaço que se deixou escapar
52
Tarô
Bar do Bruxo, quinta à noite. A maioria das pessoas que aparecem por aqui
nesse horário ou não sabem o que procuram, ou não buscam por nada específico.
que trabalho especificamente com um terceiro grupo: as pessoas que procuram por
respostas. Estas são fáceis de reconhecer, porque geralmente vêm até a minha mesa e
— Ana, prazer.
Gesticulo para que ela se sente enquanto aceno ao dono do bar com a outra mão.
que provavelmente vai ser a última leitura da noite, jovem, tatuagens nos braços e uma
— Já puxei pela internet, mas acho que não é a mesma coisa. Como funciona?
— Eu vou puxar seis cartas sobre aspectos diferentes da sua vida, explicar cada
uma e como elas se conectam, e no final você pode fazer uma pergunta e puxar mais
o deixo conversando sobre cervejas com Ana enquanto alcanço uma garrafa térmica
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em minha mochila, despejando o restante do meu chá em um copo americano. Pedidos
— Ah, achei que você fosse fazer aquela parada de adivinho de me falar sobre
a minha vida.
como detetives.
— Eu posso fazer uns exercícios de dedução e supor que você saiu recentemente
de um relacionamento e que está juntando dinheiro para uma viagem. Mas isso seria
leitura fria, geralmente usada por charlatões que querem se passar por adivinhos, e eu
posso ter interpretado os sinais errado ou não ter percebido sua preocupação principal,
Achei que ia errar algum chute, mas pela reação dela, acertei tudo.
— Pera, como assim? Que sinais? Alguma amiga minha falou com você?
— Seu anelar direito tem uma marca de anel, então você tirou uma aliança entre
a última vez que tomou sol e agora. E sobre a viagem, você pediu a cerveja mais barata
daqui e tem bandeiras de países tatuadas no braço. Mas você pode ter perdido a aliança
ou algum outro anel parecido, e talvez as tatuagens sejam só estética e a cerveja seja só
preferência, ou às vezes o que você quer saber não tem a ver com nenhuma dessas
— Ah, uau. Você acertou sim, tudo o que você falou. Eu tô cursando jornalismo,
anteontem, e o próximo país que eu quero conhecer é o Egito. E você, faz isso aqui por
quê?
54
— Embaralhe, por favor. — Aproveitei a deixa para trocar o baralho de mãos.
— Sobre o porquê, eu gosto de ler cartas. Sinto que toda leitura me ensina uma coisa
— Massa.
Pego o baralho de volta, ao mesmo tempo que o Bruxo volta com um copo e
uma long neck para Ana, que dispensa o copo. Não consigo evitar um sorriso ao virar
— Ah, o arcano sem número. Esse é seu momento atual: Um grande quadro em
branco, ainda decidindo que tipo de pintura se tornar. O Louco não é nada, não tem
nada e não sabe nada, e isso na verdade é a sua maior força, porque significa que nada
o prende. Ele tem em si o potencial de ir para onde quiser, aprender o que quiser e se
tornar quem quiser, porque todos os caminhos estão diante dele. Só o que o Louco
precisa fazer é escolher um. Como momento presente, é um ótimo lugar para se estar.
— Quem sabe é o tarô, eu só traduzo as cartas. Porém, todo momento tem seus
obstáculos, e o seu é… — Viro mais uma carta, a deixando de lado sobre o Louco, como
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se o cruzando. Nela, um lobo e um cão uivam para a lua à beira de um lago. — A Lua.
instabilidade, interpretações erradas. Com tantos caminhos, a escolha entre eles pode
parecer nebulosa, mas você tem todas as ferramentas necessárias para seguir em
frente. Preste atenção nos seus sonhos, confie na sua intuição e não deixe o medo te
impedir de agir. Você tem todas as respostas do universo no seu alcance, é só fazer a
os arcanos maiores na verdade, mas ela é especial por potencializar esse lado. É menos
sobre o que você vê e mais sobre o que você sente bem no fundo.
primeiras. Uma torre de marfim, cuja altura alcança os céus, despedaçada por um raio
A Torre. Caos, destruição, mudanças súbitas e intensas que marcam toda uma vida.
Você possuía algo em que acreditava cegamente e tinha como garantido, mas não
Não parece tudo bem, mas é como pessoas costumam reagir à Torre.
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— Eu tô admirado que até agora só saiu arcano maior, na real.
— Como assim?
— O baralho de tarô tem setenta e oito cartas, com vinte e dois arcanos maiores
— Espirituais. Mas também essas outras coisas, são lições e transformações que
homem e uma mulher parecem conversar sob a figura de um anjo que os observa dos
— É de namoro?
fala muito mais: fala de harmonia, valores e, principalmente, escolhas, que podem ser
sobre companhias, mas também sobre viagens, carreiras, temas de estudo, lugares,
crenças e todo outro tipo de decisão importante. A sua jornada está te levando para
uma encruzilhada extremamente importante, qualquer que seja ela. Opa, valeu.
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— O que você sabe sobre sua situação? — Viro a quinta carta, a deixando acima
do Louco. Nela, um homem observa sete copos, cada um transbordando com algo
diferente, desde riquezas até um dragão. Não sei se fico decepcionado ou aliviado. —
Sete Copas.
— Truco!
— Seis!
Rimos.
verdadeiramente mágica, mas você também está ciente do perigo que é se perder
— E eu tenho que ser mais pé no chão e perseguir uma opção realista, sim. —
Ela praticamente murcha com a constatação. — Não é a primeira vez que me falam
isso.
— Realista? Quem te disse isso? — Sorrio e aponto para as cartas. — Olha essa
você já viveu. Tem uma folha em branco enorme na sua frente e você tem todas as
cores para preencher ela como quiser, tem certeza que quer desperdiçar essa chance
pensando pequeno? Ouse sonhar! Se qualquer caminho é possível, por que ir pelo mais
simples?
A verdade é que é por esse tipo de momento que eu faço isso. Essas leituras tão
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também tivessem pressa e curiosidade de ver como tudo termina. Em respeito a elas,
— Por fim, o que você não sabe sobre sua situação? — A imagem de um arcanjo
última carta e todas as minhas expectativas são superadas. Por alguns instantes eu
— Eita.
Dou mais um gole de chá quase como reflexo, tomando um tempo para decidir
minhas palavras.
a decisão que te aguarda no futuro vai depender igualmente da sua lógica consciente
quem você é. Confie no seu julgamento, saiba o caminho em que está, e se precisar de
algo, as lições da sua vida a guiarão. Novamente, você tem todas as respostas ao seu
alcance, só precisa fazer as perguntas. Tem alguma sobre as cartas que saíram?
— Não, na real, foi tudo bem direto. Você é bom nisso, sabia? Parece até que tá
Mas admito que nunca vi nada como esse jogo antes. É como se o tarô estivesse
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— Agora tem aquela última pergunta que você falou, né?
— Sim!
torneio de pôquer, mas a verdade é que há muito mais em jogo do que fichas e
responsável por transmitir essa mensagem. Só o que resta é a pergunta final, mas
depois dessa leitura, tenho certeza que qualquer que seja, resultará em aprendizado.
— Ah. — Ou ela pode perguntar isso. Todo mundo sempre pergunta isso. —
— Não, não, de relacionamento mesmo. Romance e tal. Tem algo assim nesse
meu caminho?
— Pega aí. — Abro as cartas em um leque e Ana vira uma com a imagem de um
homem deitado com umas espadas ou algo assim que distintamente não responde
você tem que se conectar consigo mesma e recuperar suas energias para estar pronta
— Você pode interpretar assim, é. — Ela não pode interpretar assim, mas não
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— Nossa, foi ótimo! Muito obrigada de verdade! Vou fazer um monte de
propaganda de você!
Termino meu chá enquanto Ana vai embora, então embaralho minhas cartas
novamente e guardo de volta na mochila, pensando que é uma boa hora de voltar para
casa. O bar está perto de fechar e já me frustrei o suficiente por hoje… Eu já devia ter
aprendido a esperar essa obsessão geral com sexo e romance, mas sempre acredito na
possibilidade de buscarem qualquer outra coisa. Em meio aos meus devaneios, Bruxo
— Fala, Bruxo.
— Pode fazer essas paradas de ler carta pra mim? Quero saber de uma coisa.
Suspiro, cansado.
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Como me convenceram que eu não era linda?
Um dia disseram:
Muito magra
E essas espinhas?
Cacheado
Ruim
Feia
Feia e chata
Feia e burra
Feia
Inútil
Feia
Feia
Feia
Me olhei no espelho
Olhei e chorei
Grandes e castanhos
O nariz arrebitado
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Rasgaram
Me destroçaram
Odioso rosto
Arranhei
Xinguei
As sobrancelhas
Malditas sobrancelhas
Se encontravam
As separei
E os olhos?
Pintei, puxei
A boca sufoquei
Bochechas?
Rasguei
Não importa!
Se sobrou, destruirei.
De tão desfocada
Já nem percebida
E tampouco amada
O que sobrou?
O que sobrou?
O que sobrou?
O que sobrou?
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Ecoei desesperada
Toquei, marquei
Os olhos
O teu rosto?
De burrice
De feiúra
Me olhei
Arrebitado
Interna
Latente
Infinita
Voraz
Que me corroía
E me induzia
A tocar e acariciar
Vi
Eu vi
Eu me vi
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E amei
A voz disse
O que sobrou?
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Entre piscinas e sonhos
O dia estava quente. Era uma tarde qualquer, quase fim de junho. Ao longe,
enquanto eu ainda passava pelo campo de futebol, que ficava logo na entrada do
centro esportivo, era possível ouvir muita água remexendo. Braçadas, pernadas, sons
Pude enfim avistar as piscinas. Finalmente iria fazer o teste para entrar na turma de
natação.
Aquele lugar, mesmo depois de uma boa reforma, ainda me causava uma
nostalgia imensa e um calor no centro do peito. Estive ali quando era pequena, na
turma infantil de natação. Confesso que não aprendi a nadar naquela época. Um belo
dia decidi que não queria mais ir para as aulas e minha mãe não contestou a decisão.
Uma energia boa percorria meu corpo, estava empolgada, feliz com a ideia de
aprender finalmente a nadar. Isso era maior do que a pequena chama de vergonha que
se acendia em minha mente por ser tão "crescida" e ainda assim não saber nadar,
Haviam crianças muito mais novas do que eu, elas exploravam a piscina com
uma destreza impressionante. Aquilo me tirava vários sorrisos, pois logo estaria
ambiente, não sabia muito bem o que deveria fazer e como coordenar os movimentos
66
nossa, aquela foi a melhor sensação de todas. Pode parecer pouco, ainda havia um
grande caminho a percorrer até que eu realmente pudesse falar "estou nadando!", mas
começo.
Essa é uma das memórias que guardo com mais apreço. Voltei para casa
naquele dia com um sorriso de orelha a orelha, feliz da vida, pois depois de tantos anos
afastada das piscinas e com aquele sonho guardado, iria finalmente aprender a nadar.
67
Escrito por: Phoenix
(escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem)
é exatamente isso.
eu escrevo. escrevo quando me falta o ar e a vida parece um beco sem saída. escrevo
quando vozes ecoam na minha mente como um grito de guerra "você está sozinha".
minha voz se dissiparia no universo, escrevo porque de outra forma ninguém jamais
me ouviria.
escrevo, porque eu tenho essa mania. de querer tocar pessoas e ter relevância e virar
escrevo porque talvez esse monólogo medíocre seja a eternidade pelo resto dos meus
dias.
(escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem grita escrevo como quem)
escrevo com as mãos trêmulas, o rosto pálido, olheiras fundas e taquicardia. escrevo
com a voz falha, nós na garganta e três centenas e meia de borboletas no estômago.
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e n s u r d e c e d o r.
69
Crise dos Vinte
Meia hora para o expediente acabar e ainda não localizei o erro presente no
código. Na mais pífia das hipóteses, talvez tivesse esquecido de fechar alguma chave
quando o sono da tarde pesou em meus olhos e meu tronco se inclinou para frente. Se
não fosse o susto que levei com a pergunta da estagiária ao lado, provavelmente meu
tanto vasculhar aquelas milhares de linhas, maldita fora a hora que o cliente pediu
uma alteração. Porém, como todo ser humano regular ou incompetente, como preferir,
decidi deixar a questão para a semana seguinte, era sexta-feira afinal. Em todos os
naquela região que seguia até a universidade. No entanto, era um semestre com janela
definitivamente não faria, digo, até gosto desses ambientes, mas não há nada a se
aflorar no meu caso a não ser uma baita arritmia cardíaca pela bebida e falta de
descanso. Seria relevante declarar aqui que sou assexual? E talvez me faltem ainda
mais atrações? Pois bem... Aquela sexta não seria gasta com festividades, meus planos
eram outros.
Peguei o ônibus que seguia para a avenida mais popular da cidade, repleta de
também misturar todos os refrigerantes e formar o mega refri com gosto de nada e
açúcar. Após pegar meu pedido, a melhor parte enfim se iniciou: DEGUSTAÇÃO, HA!
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A batata surfava pelo sorvete e então realizava uma curva arriscada direto para minha
boca, que, junto do sanduíche, travava uma disputa pelo primeiro lugar. Os diferentes
de angústia. Sou uma falha social inegável. Já vivenciei momentos assim, porém,
havia determinado que não me importaria mais com isso, não valia a pena e além de
tudo existia algo melhor à minha espera. Apenas aproveitei a refeição até o final e segui
meu caminho ao shopping para concluir a missão da noite. Era evidente a empolgação
e ansiedade presentes em mim, demorara demais para tomar iniciativa e realizar esse
desejo tão íntimo. Muitos fatores foram ponderados no processo, um deles, claro, ser
mal visto pelo senso comum e principalmente pela família. Minha mãe reforçaria a
narrativa de que sou uma alma vagante, sem futuro, sem maturidade, uma vergonha
por assim dizer. Já Amanda, bem, talvez ela risse da minha cara e perdesse o respeito
por mim, se é que ainda o tem. Só precisava aguentar esses julgamentos até me formar,
pessoas anormais por aí, mas pagando minhas contas e vivendo minha vida, o que me
interessa?
para isso, seria um luto se não estivesse. Percorri os corredores iluminados repletos de
vitrines nas laterais e quiosques no meio, meus pés já sabiam qual direção seguir e
primeira assim que o vi ali, afinal quais eram as chances de acontecer? Quando
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cheguei, minha visão rodou por todo o espaço e enfim suspirei de alívio. Lá estava ele,
segurava a máscara robótica verde em uma mão e a outra repousava atrás de sua nuca,
somente uma perna dobrada, o rosto com um leve sorriso e olhar intenso, todo
gravado no tecido simples daquele travesseiro. Gable, minha primeira e única paixão,
ou pelo menos algo parecido com paixão, pois nunca me imaginara em qualquer
relacionamento com ele. Digamos que somente seja meu personagem preferido, minha
fixação, o que me arranca sorrisos quando o vejo aparecer seja em um episódio inteiro,
ou em milésimos de segundos. Tirei uma foto e mandei para Jay com a certeza de que
Jay: Sim
Jay: Mas na minha cidade não tem nenhum lugar que venda UM
TRAVESSEIRO DO GABLE
Sam: Também não esperava encontrar isso aqui, mas abriu essa nova loja e tudo
mais
Nesse ponto, vou parar de enrolar, está evidente. Antes de pegar o ônibus para
casa, comprei balas azedas com o travesseiro debaixo do braço. Adoro balas azedas!
Sim, sou esse tipo de gente e essa é uma tediosa história sobre minha não
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conformidade com o que quer que seja a postura de um ser adulto ideal. Eu sei, eu sei,
já que não iria a nenhum bar ou festa, deveria ao menos ter passado a noite a saborear
um bom vinho, assistir novela e fazer sexo rebuscado. Coisas de pessoas adultas, sim,
sim. O problema é: não gosto de nenhum desses itens. É absurdo, mas acontece.
Encontro-me na conhecida “crise dos vinte”, onde olho para trás e vejo o absoluto nada
que realizei durante minha vida. Comparo-me com os sujeitos da minha idade e
enxergo um abismo insuperável. Naquela noite, um jovem esperava seu voo para um
décimo quinto capítulo de mais uma fanfic “Ryan x Gable”. No sábado, a orquestra
dava uma sova nos guerreiros das trevas no segundo jogo lançado da franquia
minha mãe passou o fim de semana inteiro em reclamações eternas sobre minhas
aspirações para o futuro. Seu foco maior eram minhas relações sociais, e me ver dormir
com Gable só reforçava seu ponto de que preciso urgentemente namorar. Compreendo
que em outras palavras ela apenas quer me ver casar e sair de casa e bem... Já falei a
ela que meu desejo maior é ter meu próprio teto, no entanto, casamento eram outros
— Não entendo você, Sam. Quer ficar só, numa casa vazia, parece bicho do
mato! Você não pode lutar contra o mundo, tem que se comunicar com as pessoas!
“O humano é um ser social”, mas o que tenho a ver? Qual o sentido de dividir
espaço com alguém, dar beijos, transar e ter filhes? Sou completamente indiferente a
73
isso e a parte de cuidar de crianças é desvantajosa, consome energia e recursos
of Light”, baita jogo maneiro com batalhas elaboradas e gráficos impecáveis. Não luto
contra o mundo, ele é que não colabora comigo em geral. O maior interesse que
consegui ter por outras pessoas foi de amizade, o que, aliás, busquei por anos na escola.
Não é de hoje essa implicância sobre precisar me apaixonar por alguém, desde
conversou comigo sobre um desenho que nós gostávamos, finalmente uma pessoa
com algo em comum. Esse dia me marcou profundamente, passamos a tarde toda na
Já era o bastante, pelo menos não era mais invisível. E, como em todo bom clichê, nem
Em uma aula de ciências naturais, nos era explicado sobre a chegada dos
hormônios na puberdade e como isso nos traria novos tipos de sentimentos sobre ês
outres. Então, por alguma razão mirabolante, a professora achou uma ótima ideia
perguntar como nos enxergávamos entre si: amizade ou “algo mais”. Confesso que no
instante não compreendi o que seria “algo mais” e enquanto todo mundo respondia
isso, fui a única criatura a dizer “amizade”. Um grupo de meninas não se convenceu e
teimou que eu mentia, sendo assim, passaram a me perturbar todos os dias para saber
de quem eu gostava na escola. Acabei por descobrir que a professora falava de atração
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romântica e sexual e isso só me irritou mais. Não sentia nenhuma dessas coisas e, de
— Você gosta de alguém sim, todo mundo gosta! Por que tem vergonha disso?
— Mentira!
Uma delas começou um discurso irritante sobre ser normal gostar de alguém.
Repousava em um canto discreto quando o grupo me abordou, então tudo o que fiz
foi tapar meus ouvidos e esconder o rosto atrás dos joelhos enquanto cantarolava
uma troca: eu contaria de quem gosto e ela faria o mesmo, e assim nós guardaríamos
segredo sobre isso. Insisti em meus reais sentimentos, mas logo cansei. Decidi falar o
nome da pessoa que conversou comigo naquele dia marcante, mesmo que meu único
interesse nela fosse de amizade. De toda forma, o trato era guardar segredo, então
estava tudo bem... Em um universo ideal onde seres humanos cumprem suas
em torno de rolês e paqueras. Encontrava-me mais uma vez incompatível com a minha
idade, pois nessa fase necessitava de atributos obtidos somente na fase anterior. No
caso, amizades para sair de casa e atrações romântica ou sexual para flertar com
alguém, ou sei lá como faz essas coisas. Incapaz de dialogar com esse pessoal, resolvi
interações sociais eram precárias até mesmo em ambientes virtuais, todavia, uma
75
simples resposta ou “curtida” já era bastante para me satisfazer. Ver pessoas com
No ensino médio, a turma competia para ver quem havia beijado mais bocas e
perdido a virgindade primeiro na festa passada, a qual não participei por puro
excluídas e com inclinações parecidas com a minha. Nenhume de nós era convidade
para qualquer evento social da sala e esse fato sozinho já era a principal similaridade.
Foi nesse tempo que comecei a vibrar com “Rainbow Craftrons”, uma franquia de
Ryan, o heroísmo vermelho, Yu, a força amarela e Blake, a vingança azul, se juntam
capítulos passam, várias figuras são introduzidas na trama e uma delas é o temor
verde, Gable. Apesar de ser apresentado como o vilão do segundo arco, após uma luta
épica com Ryan, o guerreiro verde tem sua jornada de redenção e se torna um
Quando percebi, já passava horas em sites e mais sites a observar imagens e ler
informações sobre Gable, meu coração foi conquistado totalmente. Acabei por
histórias “Reader x Gable” e eu consumia todo esse conteúdo, exceto as fanfics. Digamos
que não me enxergo em qualquer relação com o temor verde, não tenho interesse nele
nesse sentido. No entanto, o único romance que consegui gostar foi de fanfics sobre ele
com Ryan, Yu, Blake ou até Pixel, a cautela roxa. Só não gostava muito da relação Gable
e Orion, o esforço laranja, embora esse casal tenha uma tremenda força na
76
comunidade. Ler e ver Gable era uma emoção peculiar e observar seu
O blog também promovia todo ano a “Semana Gable” com temas diferentes em
torno da figura. Em sua segunda edição o assunto principal foi sobre a possibilidade
de o personagem ser assexual, e como não sabia o que significava esse termo, fui
minha falta de sexualidade. Mis amigues não levaram muito a sério, elus sabiam da
minha fixação por Gable, então concluíram que eu só tentava imitar o temor verde e
era uma fase. Por meios misteriosos, novamente uma informação sobre mim se
sobre o assunto por um tempo. Ainda queria acreditar que descobrira quem eu era
apesar de tudo.
extracurriculares, por isso não possuía qualquer talento que pudesse focar a carreira
mexer no código de um blog meu para deixar a interface mais agradável. Pelo menos,
minhas notas permaneceram ótimas desde a infância, mas por essa razão não encarei
pelo menos entrar na segunda opção de curso: Ciência da Computação, e a partir desse
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Mis amigues não me contactaram mais quando terminamos o ensino médio,
talvez elus não gostassem tanto de mim. Diminuí o consumo de “Rainbow Craftrons”
ao escolar. A começar pelas pessoas que pareciam criaturas de outro universo com seu
linguajar sofisticado e suas vivências intelectuais avançadas. Ter inglês fluente era algo
sem dificuldade. Até mesmo o conhecimento de cultura pop desse pessoal era de uma
grupo bem específico. Não é complexo adivinhar que mais uma vez me sentia
minhas notas eram invejáveis e meus gostos diferenciados para entrar em outro no
qual sou apenas medíocre. O lado bom no fim das contas era que a maioria dessas
pessoas basicamente não se importava com quem você era ou o que fazia, então não
Exclusão social até ocorria, mas agressões explícitas não muito. Todo mundo só
forte toda vez que saía de uma entrevista de emprego. Apenas o nome da universidade
técnicos e de idiomas para além do que aprendi na escola e isso me desesperava. Eram
requisitos sem sentido para uma vaga de estágio. Sim, estágio! Minha autoestima
iniciou sua queda nesse momento, mas planou de leve ao receber a ligação afobada de
— Sam, Sam! O lugar que trabalho precisa de alguém urgente para estágio. Você
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— Hã, sim. O que se-
WhatsApp. Tchau!
— Tchau...?
E dessa forma, arranjei meu primeiro e atual emprego. A princípio meu chefe
lidar com clientes de forma satisfatória, no entanto, ele admitia que eu era razoável em
programar. Nada espetacular, mas eficaz. Com o tempo, aprendi os macetes do serviço
e lidava bem com os pedidos, uma ou outra adversidade trazia dores de cabeça. O
salário era pouco para se ter o próprio teto, então continuei a morar com a família e
porém, tinha planos de guardar essa renda em uma reserva emergencial... Que foi
para todo tipo de evento social. A primeira vez que fui a uma festa também foi a
inflável de posto fora de controle. Era motivo de gargalhadas, mas o álcool não
estranho, parecia desejar meu óbito. Gelei no momento em que percebi a pessoa se
rosto. Meu corpo estava estático, meus olhos bem abertos, os braços retos junto das
pernas enquanto aquele ser movia os lábios contra minha boca. A pessoa deu uma
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piscadela e logo sumiu. Passei o resto da noite sem entender o ocorrido e só na manhã
Foi decepcionante, por assim dizer. Nunca me importei com essas paradas,
porém, todo mundo insistia que era bom e fazia alarde sobre isso. Não é possível que
seja a mesma coisa que chupar um braço! Na festa seguinte, quis confirmar o resultado
do experimento anterior e dessa vez, apareceram duas cobaias. A primeira pessoa foi
rápida e não pude me certificar com precisão, a segunda me esclareceu muitos pontos,
pontos além da conta. Realmente, era apenas um encostar de peles um tanto molhado,
e ainda por cima, agonizante quando os dentes se chocavam. Minhas nádegas eram
apalpadas sem piedade, mas nenhuma sensação além de indiferença emanava de mim.
Uma música extremamente boa começou a tocar e me apressei em encerrar a ação para
correr até o meio da pista. Depois desse dia, adquiri o costume de dispensar qualquer
Entretanto, ir a festas e bares ainda era bacana, não me sentia um ovo antissocial
no meio daqueles grupos, em suas conversas e diversões. Mesmo que o preço fosse me
afundar cada vez mais em bebidas e, posteriormente, drogas. Claro, isso não é uma
regra, nem todo mundo precisa usar substâncias para se sentir incluíde... Mas me
aconteceu! E minha família notou minha mudança de rotina e as vezes em que saía de
noite e voltava apenas no dia seguinte. Apesar de ajudar nas contas de casa, minha
mãe não se satisfez e iniciou uma série de julgamentos sobre meus novos
diferentes maneiras. Pensando bem, eram válidas as críticas até. Eu gastava tanto
nesses lugares festivos que não sobrava nem dinheiro para o almoço em alguns dias.
preocupar, pois logo teria de trabalhar. Nesse tempo, dispunha de poucos momentos
de ócio e isso implicava que eu não mais acompanhava os gostos e hobbies que cultivei
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durante a vida. Tudo girava em torno de trabalho, faculdade e vida social agitada. Meu
Certo dia, no meio do expediente, minha visão ficou turva e senti suor frio por
descansar em casa. O que não foi possível, pois meu corpo entrou em pane quando me
foram um pesadelo, não conseguia sair de casa sem parar em alguma cama hospitalar
e receber fortes medicações para dormir. Depois de vários exames, era óbvio, sofria de
ansiedade. Meu chefe resolveu adiantar os dias de recesso para dar tempo para que
chamava para mais nada. Mesmo depois da melhora, não estava confortável em voltar
No quinto semestre, novamente sem qualquer vida social, voltei aos antigos
hábitos, ou melhor, desenvolvi uma fixação ainda mais forte por Gable. Minha
verde aparecia, mesmo por alguns minutos. Para isso, tinha de caçar os fragmentos de
blog “JustGable”, um lugar com tantas imagens e cenas do personagem com certeza
poderia me direcionar para os exatos episódios em que ele aparecia. Portanto, mandei
inbox para quem administrava tudo aquilo. Demorou um mês para Jay, criadore do
blog, me responder. Já fazia a tarefa por conta própria quando meu celular vibrou e me
JAY: Não presto muita atenção nas minhas conversas, mas sei que é errado
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JAY: Também vc me pediu um negócio complicado, tem uns episódios que o
JAY: Vc quer realmente tudo tudo? Não vou julgar, também gosto bastante dele
indicar os minutos e segundos também e ainda fazer comentários sobre cada arco.
Imaginava que Jay fosse muito ocupade com o blog e a própria vida, por conta de sua
demora na resposta. No entanto, para meu espanto, no outro dia recebi uma
mensagem sua.
JAY: HEYA!
Não lembro quando foi que nos tornamos amigues, elu só começou a conversar
comigo, não o tempo todo, mas diariamente. Descobri que Jay morava em uma cidade
Conheci sua coleção invejável de figuras de ação, pelúcias, pôsteres, CDs, quadrinhos,
livros, itens comemorativos e alguns raros, tudo sobre Gable. As únicas coisas que elu
não tinha e eu sim, eram os jogos, e agora, o travesseiro. Não só conversávamos sobre
nossos interesses, como sobre literalmente qualquer coisa, Jay só surgia aleatoriamente
eram ou não permitidas em cima da calabresa. Desde então me afastei das pessoas da
faculdade, ou elas se afastaram, e voltei a aproveitar o tempo livre com minhas coisas,
a diferença era que agora tinha Jay para compartilhá-las. Minha família percebeu mais
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uma nova mudança e minha mãe encontrou outras razões para me criticar. É evidente
que ela só me queria fora de casa, porque atingi meus vinte anos e a partir de agora a
sacrifício terminar uma mísera tarefa da faculdade. Meu contrato de estágio estava
mesmo aguentava mais as obrigações acadêmicas. O fato é: nunca fui nada demais!
realizei uma iniciação científica como a maioria das pessoas da minha sala e minha
só era suficiente para entender códigos e por isso não fiz intercâmbio. Tudo o que
trazia da escola eram notas altas, porém, de nada estas valeram, pois não conseguia
terminar uma atividade comum aqui. Minha vida era tediosa e o que me movia era o
mesmo da adolescência com a adição de balas azedas. Benditas sejam as balas azedas!
Talvez eu não seja um adulto ideal. Talvez minha idade tenha congelado no
tempo. Talvez não, também, já que trabalho direitinho, sabe... Afinal, o que é ser
adulto? Abdicar de seus gostos a favor de bom vinho e sexo rebuscado? Falar inglês
fluente e escrever artigos? Tocar violino em uma orquestra e assistir novela? Ou até
mesmo dançar forró e tomar cerveja? Frequentar festas e se casar? Por que não existe
um ser adulto ideal que contemple quem gosta de ler histórias, mesmo feitas por fãs,
maturidade são um saco! Todes nós sabemos que, se ampliarmos o potencial dos
robôs, chegaremos em um ponto onde nem mesmo trabalhar não será necessário. O
que vão sugerir? Ficarmos desempregades e morrermos de fome? Quando vão admitir
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que não é vergonhoso se dedicar ao que gosta mesmo que isso não gere renda ou status
Uma semana antes de meu contrato de estágio finalmente acabar, Jay me avisou que
amizade em nossa relação, porém, uma ideia borbulhou em minha cabeça em meio ao
desespero sobre o futuro. Comprei folhas de EVA, cola quente, tesouras, latas de tinta
metálica e, por último, tinta de cabelo verde. Adiantei o máximo de trabalho e no dia
“metálica” de EVA e arrepiei meus cabelos, agora verdes. Peguei metrô com o cosplay
de Gable e dei de ombros para as pessoas que não paravam de me olhar. Ao chegar na
rodoviária, vasculhei todos os pontos e dei diversas voltas, não havia ninguém
parecido com elu, mas não houve tempo para que a dúvida se apossasse de mim, pois
uma mão tocou meu ombro e me virei para ver quem era. A figura me olhou de cima
abaixo, com uma expressão curiosa e a encarei por um tempo, antes de me pronunciar.
— ... Jay?
Hahaha!
Fiquei com vergonha, era essa a ideia de fato. Fazer Jay se apaixonar por mim e
— É só pedir para morar comigo e a gente dá um jeito, não precisava disso, tá?
pesava. Jay sugeriu juntar nossos trabalhos de conclusão de curso e fazer uma base
de dados sobre o Gable. Estava feliz com mi amigue. Surfamos as batatas no sorvete
de baunilha.
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Poema escuro de uma mente turva
O apelido, a piada
Tudo marca
Está farta
Ele chora
E a sociedade julga
E a família chora,
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O amor é muito complicado
Amor, essa palavra tão rica em definições, mas que às vezes parece não ter
nenhuma. Talvez seja por ter tantos significados e explicações diferentes para esse
amigues;
“Atração baseada no desejo sexual” e “atração sexual natural entre espécies animais”.
— As que mais me chamam atenção justamente por serem, para mim, uma incógnita.
filmes e músicas, que leio em livros, e que é repetida por todos ao meu redor desde
sempre.
Se todos ao meu redor o sentem, se é dita uma “atração natural”, por que eu
não sinto?
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Será que mesmo que eu seja capaz de amar, essa minha forma de amar nunca
Eu amo minha família, amo meus amigos, amo meus animais de estimação, amo
minhas músicas, amo meus livros, amo meus ídolos, amo de todas as formas que se
possa imaginar, mas não amo ninguém especificamente. Pelo menos não nessa
definição do amor.
Não existe alguém a quem eu direcione esse tipo de amor, alguém que desperte
em mim essa forma sexual do amor. Nunca existiu, e provavelmente jamais existirá.
minhas pesquisas em busca de entender esse “amor”. É. Acho que sou isso mesmo,
AssexuAL. Iniciando com “A” de ausência da atração e finalizando com o sufixo “AL”
de sexual. Sou uma pessoa que não sente atração sexual. Assexual estrita.
Apesar de agora compreender essa parte de mim, ainda há algo no amor que
me deixa confusa. Não sinto ele de forma sexual, mas descobri uma nova forma dele,
uma exclusivamente romântica, que pode ser definida por: “atração baseada no desejo
romântico”.
contemplava, mas essa poderia me contemplar. Isso significava, para mim, que eu não
era “fria” ou “incapaz de amar”. Isso durou até eu descobrir que também não sinto
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esse amor.
“Você não quer mesmo ter alguém para estar com você?”
Eu até já tive minhas paixonites, mas foram todas platônicas e nunca fiz a menor
nenhuma motivação ou energia em mim que me levasse a isso. Talvez essas paixões
em minha cabeça.
Existem momentos em que eu quero alguém para estar ao meu lado, para andar
de mãos dadas, para cuidar e ser cuidada, para me acompanhar ao longo da vida. Mas,
ao mesmo tempo, não sei se faço questão de ter alguém todo dia acordando do meu
lado, de alguém me beijando e, muito menos, de ter a “parte sexual” do amor que
todos cobram.
Eu não gosto disso. Às vezes eu diria até que detesto isso. Essa parte não existe
em mim, não faz parte do meu amor. Não vejo sentido algum.
Por que deveria ser preciso tanto contato físico e compartilhar fluidos corporais
descobri que meu amor não é “estranho” ou “incompleto”. É só que, além de Assexual,
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também sou Arromântica. Logo, também não sinto esse tipo de amor definido por
A verdade é que somos nós que complicamos tudo querendo criar definições
universais e normas. Mas está tudo bem não se encontrar em todas, inclusive na mais
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Vale a pena lutar?
Se tem algo que define decepção para mim, é o começo desta música (21 Guns –
Green Day). Você luta por algo e perde. Se acha o melhor em algo e perde. Levanta e
cai. Volta e fica por último. Qualquer coisa que você faça, não é suficiente. Você está
em ruínas. Claro que o sucesso é relativo, mas vamos falar a verdade, nessa sociedade
capitalista sabemos que o dinheiro define sucesso, e não há problema em admitir que
quer um pouco — ou muito — dele. E também não tem problema se você não quer
nada com o dinheiro. Toda essa baboseira que falei ali em cima será explicada agora:
a decepção não é como você se vê ou como você falhou, mas como as pessoas estão
sempre te observando, como você as deixou para baixo. Geralmente, a falha que vemos
em nós é a falha que os outros colocam. E sempre foi assim — talvez, infelizmente,
sempre será.
Então, quanto à primeira frase da música, “Você sabe pelo que vale a pena lutar?”,
pode ser uma boa reflexão para dizer: você está no seu caminho ou no caminho que
3Tradução: "Você sabe pelo que vale a pena lutar, quando não vale a pena morrer por isso?/Isso te tira
o fôlego e faz você se sentir sufocando?/A dor pesa mais que o orgulho?/E você procura um lugar para
se esconder?/Alguém partiu seu coração?/Você está em ruínas."
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Invocação malsucedida em uma noite de Halloween
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paçoca tem um formato-
as presas da fera
tensas em sua boca
se contorcem como cães acorrentados
"não! você entendeu errado!
qual é o mais gostoso?!"
acho que não sei...
gostoso ou saboroso?
o que essas palavras são?
duvido que o mundo saiba
de rabo espetado
o diabólico enche a cara de loucura
"claro que elus saberiam!
está bem?! está quebrado?!
o que te falta é garrafa de vinho ou outras!"
e me amaldiçoa
volta para inferno de onde veio,
eis que retorno também
ao meu velho estado de lua nova.
desapareço. sem rastros.
só mais uma assombração
ou lenda urbana qualquer.
93
As três Anas
o Girassol se apresentar.
A Margarida chorou muito porque não queria amar de novo e tentou de tudo
para impedir isso, mas a beleza do Girassol a encantou. E então ela tentou uma
[Ana 2].
quando foi encontrar com o Girassol em um jardim que mal conhecia e o viu beijando
Rosa, a [Ana 1], a quem por acaso já tinha visto no palco, quando pensou que tinha
A Margarida sentiu suas outras pétalas quase caírem mas não perdeu as
esperanças, "não foi nada" disse a si mesma, mas não conseguia tirar da cabeça que as
duas flores estavam juntas num mesmo vaso. Foi o que ela confirmou em outro
encontro, no mesmo palco, outro dia, quando viu o Girassol e a Rosa namorando. Ela
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apresentação que faria na frente dos dois, afinal ela foi naquele jardim para isso, e não
A Margarida [Ana 2] desejou tudo de bom para o Girassol e a Rosa, afinal ela
só queria que o Girassol fosse feliz seja com ou sem ela, mas de repente o Girassol
2] de todos os jeitos possíveis, colocando muros em volta do seu jardim e de seu vaso
e então, a [Ana 2] começou a desconfiar de que não era o Girassol que estava fazendo
isso e sim a Rosa, a [Ana 1], o que só se confirmou quando eles se separaram e o
O Girassol contou à [Ana 2] que a [Ana 1] era abusiva, que mantinha ele num
vaso tampado sem poder crescer nem ver outras flores, que machucava ele com seus
espinhos, a Rosa, que era vermelha, mas não da cor da paixão e sim da violência, nesse
caso psicológica; então eles se separaram e a Rosa [Ana 1] deixou seu vaso.
Margarida, que tinham caído, voltaram a crescer com sua esperança, e então ela passou
a ser a [Ana] preferida, a [Ana] que estava com o Girassol e a flor que estava com ele.
Mas depois de três encontros em várias terras, jardins e várias noites regadas a
conversas de horas, depois das pétalas dos dois se encontrando várias vezes, o Girassol
ficou estranho com a Margarida, ele voltou a se afastar, parou de regar a relação e foi
o Girassol se isolava no seu próprio vaso e empurrava a Margarida para fora dele, ela
despedaçava. E não tinha como isso ser culpa da Rosa, a [Ana 1], dessa vez.
A Margarida, [Ana 2], chorou para o Girassol enquanto ele dizia "foi legal ficar
com você, não é você sou eu, eu tô me afastando de todas as flores, quero ficar sozinho no meu
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vaso, e juro que não enjoei de você" e Margarida, mesmo completamente murcha e sem
cor, acreditou no Girassol e pensou que eles poderiam pelo menos serem vasos
O Girassol se afastou por completo, tanto que a Margarida, [Ana 2], nem sabia
mais como era a cor amarela. Mas se o Girassol estava se afastando de todas as flores,
A [Ana 3], uma linda Tulipa vermelha, que a Margarida também já tinha visto
naquele mesmo palco fazendo a mesma apresentação junto com o Girassol. Conforme
o tempo foi passando e mais apresentações dos dois aconteceram, estava claro que o
Podia ser só paranoia da Margarida, mas ela começou a ver como o Girassol
tratava a Tulipa pessoalmente e não-pessoalmente. Os elogios, os "eu amo sua cor forte
e vermelha, e o Giras(sol) brilha para você", a forma que os caules deles se uniam... Mas a
mesmo jardim. Não estavam no mesmo vaso, sendo apenas amigos. Até que um dia
antes do "dia das flores" (12 de junho) a [Ana 3] postou uma foto com o Girassol
completo, regou demais o próprio vaso e se afogou nele, ficando fora de si e vomitando
tudo depois. A [Ana 2] viu o seu miolo se desmanchando, bêbada, num ciclo de tristeza
sem fim por se sentir trocada e enganada. No final, acreditou que, na verdade, o
Até que de repente, depois dessa foto, o Girassol parou de elogiar a Tulipa, [Ana
3], parou de dizer e demonstrar qualquer coisa por ela, e inclusive deletou a foto deles
um tempo depois.
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A Margarida começou a refletir que na verdade a [Ana 1], a Rosa, talvez não
fosse a vilã da história, que talvez ela só afastava o Girassol da [Ana 2] ,Margarida, lá
no começo pois o Girassol fazia ela se sentir insegura e traída enquanto eles estavam
caiu na mesma armadilha e encantos do Girassol com os elogios e suas pétalas bonitas
antes da Tulipa, que a história dos dois começou bem antes do que pensava. Na verdade, ela
viu o Girassol a primeira vez em 2017, de novo fazendo arte com outras flores, também
num palco, e nesse dia a Margarida, que já estava completamente murcha depois de
tantas outras flores a machucarem, decidiu encerrar sua própria existência e se afogar
de vez, regando seu vaso até o topo, se forçando a sair da terra e arrancando sua raiz
pois o palco era bem perto do seu vaso e de seu jardim, mesmo não sabendo que seu
nome era Giov(anna²), ia acabar descobrindo com todo o jardim pedindo socorro e
tentando fazer a Margarida voltar à vida e replantando ela no vaso, afinal, as flores
que se apresentavam junto com o Girassol naquele dia eram amigas da Margarida. Se
a [Ana 2] tivesse morrido, você, Girassol, ainda estaria com a [Ana 1]? Ou já a teria
trocado pela [Ana 3]? Se a [Ana 2] não se chamasse Giov(anna²), e sim apenas "Ana",
Giov(anna²) ou só Ana, se ela teria morrido em 2017 ou não, o Girassol iria trocar ela
pelas outras Anas, porque o Girassol parece gostar muito desse tipo de flor, sempre
sério com elas duas, e que só resolveu dividir o mesmo vaso com a Giov(anna²) por
um tempo curto porque, de certa forma, ela ainda tinha "Ana" no nome, mesmo sendo
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um pouco diferente, branca e sem graça. No final todas as flores, as “Anas”, estavam
no mesmo jardim, todas abandonadas por uma flor maior, todas perdendo pétalas por
conta da mesma flor, todas sem ser regadas direito, mal cuidadas, todas murchas,
e jardim com outras flores, não duram porque o Girassol nunca se entrega de verdade,
só quer experiências para poder contar para os outros Girassóis depois, para poder
pensar na sua existência e concluir: "é eu vivi bem, floresci muito, esfreguei bastante pétalas
com outras flores e peguei diferentes espécies delas" e ter muita coisa para contar que
vivenciou e é só isso, mas eu, Giov(anna²), fico triste por você, porque nada foi
verdadeiro, você nunca sentiu nada por essas flores, só as magoou, arruinando suas
pétalas, seus vasos, as memórias e lembranças que achavam especial, pois você as
iludiu, então tudo que aconteceu não teve uma importância real, porque pra você,
Girassol, não foi nada, mas paras as flores que você conquistou e arrancou da terra,
apenas pelo capricho de tê-las, virou algo doloroso e falso, porque você foi embora
logo depois de guardar aqueles momentos e suas pétalas no seu souvenir de merda,
enterrando no seu jardim como uma conquista, se você as amasse você cuidaria,
regaria e cultivaria, mas como você as queria só para você, para depois descartá-las,
Giov(anna²) percebeu que na verdade não era uma Margarida, e sim uma Flor
de Lótus e que não cresce na terra e sim na água, assim como não cabia no vaso
trincado, raso, pequeno, mal cuidado e medíocre em que o Girassol vivia. Que
acreditou que precisava, só porque queria viver e se plantar lá, cega por amar o
Girassol sem notar como ele era mentiroso e manipulador. Ela percebeu que não
precisava do Girassol, apenas do [Sol], pois ele sim a fazia crescer, porque a flor de
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lótus durante a noite fecha suas pétalas e submerge, mas com os primeiros raios solares
Ela notou que, mesmo sendo uma flor que emerge das águas sujas e vem da
lama, ainda era forte e bonita, pois ela cresce lá sem se sujar, a raiz está na lama, o caule
plena luz, não precisava do Girassol, ela já tinha o próprio [Sol] dentro de si, e o
Girassol nunca a mereceu, ela tinha a água doce inteira para ficar, não dependia de
mais nenhuma flor de nenhum jardim para crescer, apenas dela mesma.
A Flor de Lótus mesmo murcha, despedaçando, sem as pétalas e com seu miolo
partido, descobriu que sua cor não era branca e sim amarela e vermelha, a cor da Rosa
tudo que precisava, não precisava se parecer com a Tulipa ou com a Rosa, muito menos
para agradar uma flor que também só se parecia com o [Sol], mas não era ele de fato.
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Liberdade
Sempre me disseram para me encaixar, para sempre pertencer ao todo, para não
fugir do normativo e do padrão, para me esconder, para apagar quem eu sou e o que
"Pertença sempre ou aos tons pretos ou aos tons brancos", mas o que acontece
se eu disser que me vejo no cinza? Que a minha liberdade está em não pertencer e não
me encaixar?
Habito no ser que eu sou, vivo em cada respiração minha, o meu mundo
ultrapassa qualquer senso comum, meu olhos são treinados para ver além. Nesses
anos todos, aprendi que enquanto tem alguém que aponta o dedo, terão várias pessoas
vejo como colorido, libertador e imensamente vasto! Tão vasto que não cabe
100
Sol
Eu estava sentado com vários livros embaixo de mim para que pudesse alcançar
a mesa. Aquele ambiente sempre me fora muito familiar, cresci sendo paparicado por
todos aqueles professores, colegas de minha mãe. Sempre gostei muito de todos,
menos dele.
Toda vez que o via, corria para a segurança que encontrava em minha mãe. Ele
estava sempre brincando comigo e entendo que suas intenções não eram ruins, mas
Naquele dia ele veio, com suas boas intenções, e ergueu minha cadeira comigo
ainda sentada. De início, ri, como de costume, para tentar disfarçar o desconforto, mas
daquela vez isso não foi suficiente. Não aguentei mais segurar, chorei. E chorei por
todas as vezes que havia segurado, por todas as gracinhas que um dia me deixaram
Me senti mal por muito tempo depois disso, até hoje sinto, por não ter me
segurado, por não ter o parado antes, por tê-lo feito se sentir mal e, principalmente,
por não ter dito antes que não gostava daquelas brincadeiras. Mas ele também nunca
perguntou.
101
Mínimos Detalhes
"Sinceramente? Eu não sei pelo o que ser grato, grato pelo o quê? Não vem acontecendo
Era o que eu dizia até pouco tempo atrás. Meus parâmetros de gratidão eram
pouco nos faz enxergar que a nossa vida não é de todo ruim e temos motivos para
querer viver.
Um exemplo? Eu tenho amigos que me deram suporte para ser quem eu sou
hoje, tenho uma mãe que durante anos soube que eu era diferente, mas me deu tempo
para me entender e no fim me apoiou. São pequenos detalhes que me fizeram entender
que eu tenho motivos pra me sentir, mesmo que minimamente, feliz. Mesmo com
Notar esse tipo de coisa me dá uma sensação de leveza que é inexplicável, mas
incrível.
detalhes que fazem da sua vida menos sofrida, seja lá quem ou o que for, dê valor
102
Sobre encontrar quem você é no universo
Eu lembro de ver minhas amigas beijarem e não sentir vontade de fazer aquilo.
Lembro de não entender como algo que parecia tão natural para elas, não vinha com
comigo. E não me sentir próxima das pessoas porque tinha medo de que se elas
descobrissem, eu seria vista como uma aberração. Lembro-me de falar com Deus e
perguntar por que, de todos, eu nasci dessa maneira. Por que eu não me sentia
estava fingindo me divertir falando daquelas coisas? Por que eles não estavam
Me agarrei ao rótulo "assexual" com toda a força que pude quando o encontrei.
Para não me perder. Para não me esquecer nunca mais. Eu precisava daquilo. Eu
precisava de uma definição para que eu pudesse entender que eu não fui feita em um
molde defeituoso. E que eu não estava sozinha. Eu encontrei uma comunidade inteira
Faz três anos que eu não me questiono sobre normalidade. Três anos que eu não
103
me sinto de outro mundo por não sentir. Mas quando lembro de todo o caminho até
aqui, as vezes ainda sinto raiva. Raiva pelo mundo ser como é. Por ter me feito
acreditar que eu estava quebrada por não me encaixar no mesmo lugar que eles.
Queria poder falar com meu “eu” de catorze anos, eu iria abraçá-la com força, a olharia
Não tem nada de errado. Existem outras pessoas como você. O universo é
104
um pouco sobre dor e amor
mesmo sem nunca ter me apaixonado, sempre soube que amar era doloroso.
vulneráveis.
parecia ser impossível encontrar aquela pessoa sem antes passar por uma experiência
quase traumática.
até que eu lhe conheci. e quanto mais me aproximava, menos dor parecia vir de você.
de primeira achei estranho e confuso como eu consegui ter um amor como o nosso.
105
de como eu posso confiar em você sem me machucar.
e que fique estranho, que não faça sentido; mas pelo menos você está aqui e isso para
mim é o suficiente.
ainda estou aprendendo que amar nem sempre significa sofrer, é verdade, mas estou
106
Uma carta para o meu vínculo mais antigo
Ei, maninho?
Será que ainda posso te chamar assim? Houve uma época em que eu escrevia
para você toda semana; e agora é a primeira vez em meses, só que ainda sinto que não
deveria.
nossas histórias; ou se apenas esqueceu. Nossos tempos são traiçoeiros, queria poder
Há dias em que revivo os flashes de coisas que você me disse, conversas de anos
Eu não acredito que nossa ligação possa ser rompida, há uma força que sempre
vai nos chamar; nos fazer voltar para casa. Fico à espera desse chamado, fico à espera
lua, mas se via apenas como uma estrela distante, que nunca faria parte de algo maior.
Mas você não é uma estrela solitária, queira ou não, você é minha estrela irmã. Ainda
que estrelas não se destaquem no céu como a lua, fazem parte de uma constelação, e
107
Você também pondera se vale a pena recomeçar? Ou está certo de que a
Tenho infinitas coisas pra contar, sinto falta do A., dos elfos e de todas as suas
histórias e nossos projetos, que não são mais nossos — infelizmente. Admiro seu
mundo, ele é vasto, criativo e vivo, e um dia será aberto a visitas… Tomara que eu seja
uma delas.
Atenciosamente,
Adhara Ghost
108
C’est la vie
O que é a vida, afinal? Uma suposta vitória que nos faz experimentar um pouco
do que é sentir algo real. Muitos dizem que a vida é um presente, e sempre que ouvia
isso, eu não concordava. Mas há tanto sofrimento, há tanta dor, por que isso seria um
presente? Foi aí que percebi que não se trata de algo meu, e sim dos outros ao meu
redor. O presente que é a minha vida, é relacionado aos outros. A minha vida tem
valor para eles. Mesmo havendo tanta melancolia, a vida é uma dádiva. Um caldeirão
de sentimentos que nos completam. Afinal, o que seria da felicidade sem a tristeza? Da
mais bela euforia sem o fundo do poço escuro? E, de qualquer forma, eu adotei uma
forma de viver, onde não vivo por mim, mas pelos outros. Passo pela dor, aprendo com
ela e dou suporte a quem irá passar pela mesma coisa. Mantenho minha dádiva pelo
bem dos que estão comigo. Porque eu sei que, da mesma forma que eu me importo
Posso dizer que a vida é música. Um ritmo sincronizado com um toque suave,
uma voz que canta calmamente sobre cada espinho que tem dentro de si. Talvez eu
não seja alguém confiável para escrever sobre a vida, logo eu, a que sempre escreve
sobre a escuridão que tem circulado em suas veias. Talvez muitos escritores,
conhecidos ou não, fariam um texto de cair lágrimas. Porém, sou eu aqui. A vida é um
texto, cada um o escreve de uma forma. Nomes aparecem, nomes se vão. A escuridão
pode encontrar a luz em palavras. Cada um escreve sua vida de uma diferente forma,
109
Permita-se sentir
Por que
Eu me privaria da vida
Me machucou
Me machucou
O sentir
110
Querido Amigo
Declaro meu amor por você sempre que possível, mas, às vezes, esqueço de
agradecer.
Agradecer pelas noites em claro na cama, enrolada nas cobertas, com uma
Pelos pesadelos afastados pela magia das palavras, pelo conforto e consolo que
incondicionais.
Por salvar minha vida e por multiplicá-la. Por sua causa vivi mil vidas.
Por todas as viagens, aventuras e batalhas. Por todos os mundos que você
comporta em si.
realidade. Em um mundo que me disse que estaria sozinha, porque minha forma de
amar não era suficiente, eu tinha você para me lembrar que existem muitas formas de
amar, e que nunca estaria sozinha porque tinha você. Podia não ter pessoas, mas tinha
para onde eu podia fugir a qualquer momento do dia, apenas abrindo suas páginas
tornaram minha família, e que 99% das vezes vieram por causa do amor pelas
As palavras são magia, uma magia que vai muito além das páginas.
E é por essa magia e tudo que ela me trouxe, pelo que ela me tornou, pelos
amigos e o consolo que ela me proporcionou, que esqueço de agradecer... Mas como
encontrar palavras que sejam dignas do tamanho do amor para agradecer por coisas
tão grandes? Mas palavras são tudo o que tenho, e podem não ser tão boas quanto as
112
Arrependimento
na cabeça, quase que indecifráveis, porque é tanta coisa que nem mesmo eu sei. É
muito estranho quando eu paro para pensar nisso, do que de fato eu me arrependo? O
Para falar a verdade, eu acho que não. Nós sempre vamos nos arrepender de
alguma coisa e por mais que a gente tente, esse sentimento nunca vai passar, sempre
vai surgir outra coisa para se arrepender. Se arrepender de ter falado algo ou não, de
E com isso surge a culpa, a tristeza, o sentimento de não poder fazer nada para
Mas, pensando por outro lado, o que seria de nós sem sentimentos ruins? Ou
sem as situações que mudaram nossas vidas, situações que surgiram do que
A maioria das obras de arte e coisas que retratam esse sentimento, pelo menos
as que vi, sempre têm um padrão: a coisa ruim acontece, a personagem toma uma
E não está totalmente errado, mas essa questão de como lidar e como acabar
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com o arrependimento é meio suavizada. Nossa vida não é um filme de duas horas ou
tempo ou morre com a gente, dependendo da situação. Quando eu realizo uma ação
fica mais forte. “Se eu não tivesse feito aquilo ano passado, não teria que fazer isso
hoje”.
se for de um jeito saudável. Não devemos ser escravos dos nossos arrependimentos,
114
Outra forma de amar
apoiar. Tenho orgulho de tê-los não somente como amigos, mas também como uma
família que amo e que me aceitou desde sempre do jeitinho que sou.
O tempo todo vemos séries, filmes, livros e muitos outros tipos de mídia falando
sobre amizade, como algo indestrutível e fácil de ser entendido, mas a verdade é que
é muito mais do que isso; é algo estranho que pode surgir dos momentos mais
Pode durar um dia ou um ano, até mesmo a vida toda, mas, mesmo as que
duraram pouco, tiveram alguma importância. Talvez elas tenham surgido para nos
então, quando não precisamos mais desse apoio, elas simplesmente acabam. Algumas,
Quando você percebe, já está amando tanto aquela pessoa que já não se imagina
sem ela em sua vida. Não é um amor como o que se vê em filmes ou em livros, mas
apoio. Graças a ele, somos capazes de passar pelos piores momentos e ele seria capaz
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Não importa o quê, eles sempre estão lá para nos escutar.
Na maioria das vezes, são eles que nos aconselham nos momentos difíceis e nos
mais banais. Às vezes, podem saber mais sobre a gente do que nós mesmos e mesmo
conhecendo cada partezinha nossa, cada coisinha, boa e ruim, ainda assim continuam
Muitos dos momentos mais especiais da minha vida foram ao lado dos meus
amigos. Seja numa apresentação da escola ou em uma ida ao parque de diversões, eles
Mas o momento em que eu fiquei mais feliz em tê-los por perto, foi quando me
descobri assexual. No início, posso ter tido medo de contar, mas quando finalmente
criei coragem me senti finalmente livre e só fui capaz de me entender e aceitar pois
eles estavam ao meu lado, porque eles me aceitaram e, mesmo de longe, me apoiaram.
Eu só sei quem sou pois tive pessoas com quem contar, e são essas pessoas a
quem chamo de amigos. Aqueles que me ajudaram a moldar quem sou hoje, e também,
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Na verdade, eu não queria ser um peixe
A luz fluorescente lentamente atinge o palco. No centro, dois corpos sobre um chão de
perfeitamente vestido num tecido sem cor, com longas garras retorcidas, sorri com lábios
pintados de morte. O outro, vestido sob camadas e camadas, mal consegue respirar. Parece
carregar o peso do mundo sobre os ombros. Os dois corpos se encaram — é como encarar um
Um passo para frente. O raio se vai. O primeiro corpo exerce domínio sobre o segundo,
Olha só para você. Seus olhos são tão cinzas, mesmo tendo tantas cores por trás
dessas lentes… Quantas nuances você esconde por trás dessa parede de vidro? Por que
você nunca deixa a luz te alcançar? Por que você é tão… Cinza?
Eu mal consigo te olhar. Está tudo tão errado com você. Sinta minhas mãos frias
sobre seu pescoço frágil — sinta a pressão da minha pele sobre a sua pele. Você sente
seu corpo lentamente devorado pelo terror glacial? Você sente medo dessas garras
Essas garras negras chegam na sua pele e te rasgam — por que você odeia tanto
esse toque? Por favor, eu só quero que você fique bem. Eu quero que você seja
Olhe para seu corpo — treme tanto e é tão cinza. Por que você não vê como não
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“Por favor eu só quero o seu bem, então pare de ser tão errada!”
Diz a sociedade para a pequena criança cinzenta que observa o mundo através de lentes de mil
tons.
Olhe para mim. Meus olhos são lindos — tem tantos nuances atrás desses
tons
de
cinza.
Eu posso passar horas olhando para mim diante de um espelho de vidro, antes
de o quebrar e assistir os estilhaços formarem vitrais e viver com a dor das minhas
pontas tortas. É muito bom respirar fora desse aquário. Eu olho para minha
E vejo a luz
que atravessa
as portas desse
aquário;
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Eu vejo com meus olhos cinzentos, de camadas e mais camadas de infinitos,
uma criança que sempre foi deslocada. Pobre dela, presa em ideias erradas — um
quadrado tão perfeito que ninguém poderia reclamar, mas também, ninguém
imaginava que a tempestade por trás daqueles olhos tão cinzas tinha tantos furacões.
pessoas ao seu redor e o quanto elas se importavam com algumas coisas das quais ela
caos da própria palavra falada. Criança curiosa, com a mente repleta de magia e
Não mais criança, ela começa a perceber que as pessoas têm tanta atenção pelas
outras que chega a ser engraçado. É tudo uma grande brincadeira, um perfeito
desanuviar e veem por trás da brincadeira — na verdade, nunca foi uma piada para
os outros como foi para ela. Quer dizer que as pessoas realmente sentem isso?
É tão desconfortável
entre corpos em
ABSOLUTAMENTE
todos os filmes.
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brincar com palavras e cores e tons para formar alguma C O E R Ê N C I A do turbilhão
E, naquelas palavras, que olhos cobertos por lentes veem sem nem piscar, a
tão-irritante. Porque existe uma multidão que não cabe em cinquenta tons de cinza.
O corpo ferido, por anos e anos de tanto gritar sem ser ouvido, se reclina. Não para seu
algoz desde o nascimento — aquele reflexo de um mundo cheio de normas e garras cruéis —,
mas para todos aqueles que, como ele, vivem, existem e resistem, APESAR DE, para continuar
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Pietro e Ramona
Ninguém sabe a história contada por trás dos muros de um castelo. Nós
sabemos hoje como eles eram grandes e belos pelo que nos restou para ver deles. Mas
tinham de ficar dentro da torre apenas, afinal era o século XIX e tais calúnias não
deviam ser espalhadas, principalmente quando estas são sobre quem tem poder e
nasce com sangue azul. Mas deixe-me lhes contar o motivo para tantos cochichos.
Ângelo, mas Pietro já está de bom tamanho. Quarto filho e também candidato ao trono
atrás de seu irmão mais velho Ruben, que era simplesmente uma inspiração para o
jovem Pietro. O que o irmão arriscava em fazer, Pietro tentava também. Arco e flecha?
ganhou, mas quem disse que desistiria tão fácil? A única tarefa que Pietro fazia e não
tinha relação com seu irmão, era bailar. Pietro amava valsar pelo salão, puxara isso de
sua mãe e não tinha vergonha de mostrar seu dote para seu irmão ou os demais.
Só teve uma atividade que Ruben fez e Pietro se sentiu estranho ao tentar copiar,
e esta não envolvia pés bailando em um imenso salão. Em seu aniversário de 16 anos,
o irmão havia levado Pietro ao que o menino imaginou ser uma taberna. Naquela
Pietro, que não era bobo, sabia que tinha algo a ver com seus encontros às
escondidas com moçoilas pelos corredores do castelo. Não foram raras as vezes em
que viu o príncipe acompanhado de moças que eram serventes do castelo ou até damas
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da comunidade burguesa, que vinham de visita, e caiam nos braços de seu vigoroso
irmão. Mas ele jamais imaginara o que acontecia ali na casa que entraram. Não era
somente uma taberna, era também um bordel. Soube disso assim que botou os olhos
na mulher que os recebeu, seu busto estava praticamente pulando para fora do corpete.
A forma com que ela dizia aquilo, e sacudia seus peitos imensos, intimidava o
menino Pietro mais do que tudo, mas para Ruben parecia tudo tão natural. Ele
cumprimentou a mulher e foi direto para uma mesa mais funda, perto do que parecia
um palco. Não demorou mais que alguns minutos para que duas mulheres surgissem
do nada e se apressassem para sentar bem coladas a Ruben e Pietro. Seu irmão ria e
bebia, em meio a conversas paralelas com outros cavaleiros que vinham comprimentá-
lo. Pietro mal não tirava os olhos da mesa, de vez em quando dando um sorriso contido
para a moça ao seu lado. Em determinado momento Ruben subiu com sua cobiçada
acompanhante, mas não sem antes chamar a moça ao lado de seu irmão e cochichar
algo em seu ouvido. Ela deu uma risadinha e voltou ao lugar que estava, porém agora,
parecia sedenta por algo. A mulher não tirava a boca da orelha do menino e tinha
começado a acariciar seu corpo de forma indiscreta. Pietro já havia praticado a arte de
tocar seu corpo uma vez ou outra, mas ter uma pessoa fazendo isso por ele era no
mínimo estranho e, por incrível que pareça, não lhe causava qualquer ânimo. Ser
tocado por uma qualquer, que nem ao menos fazia isso porque queria, mas sim porque
ele tinha dinheiro para pagá-la, não havia nem afeto no ato.
ambiente o mais rápido possível. Pegou a carruagem e Ruben que desse um jeito de
voltar utilizando um de seus truques de sedução. Tudo em que Pietro antes via graça
no irmão, agora já não parecia mais tão divertido. Aquele ato era invasivo e, sem
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qualquer dúvida, não lhe caia bem. Assim como dança não cabia a Ruben, Pietro não
Bom, agora vocês sabem o motivo dos cochichos pelos corredores do castelo.
Por que cochichavam? Então, acontece que a criadagem era esperta demais para não
perceber que seria a noite em que o irmão mais velho levaria o pequeno Pietro para
quando repararam na chegada inesperada do garoto no castelo, sem seu irmão e tão
Três anos se passaram e Pietro não comentou nada com seu irmão, que também
não fez questão de tocar no assunto. O rei? Sabia dos boatos que rondavam o castelo,
de que seu filho era o que, na época, chamavam de “maricas”. O menino também sabia
das palavras dos intrometidos mas não se importava. Pietro também havia concluído
que relações com homens não lhe passavam despercebidas, sendo amor, o menino se
entregaria de bom grado aos braços do coração. Mas, por hora, guardava em seu peito
outras ambições que não eram se deitar com outra pessoa. Isso era um inconveniente
para os outros, para o seu pai por exemplo, que providenciou um encontro sem nem
acompanhada de seu pai, a mulher era notavelmente bonita, mas quais seriam as
Pietro não podia acreditar em tamanha intrusão. Sua vontade era de gritar,
causar um escândalo, bater o pé e dizer que exigia que aquele cerco acabasse ali
mesmo, mas recuou perante a ameaça do pai de trazer todos os criados e membros da
corte para presenciar o seu defloramento. O rei não seria tolo de fazer tanto alarde por
causa de boatos alheios de criados, mas o jovem não quis arriscar. A ideia de ter o
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quarto cheio de pessoas para ver aquilo lhe causava náuseas. A porta foi trancada e
ficaram os dois a sós no imenso quarto com cortinas de cetim, que faziam o único som
que se ouvia, devido ao silêncio tão constrangedor. De certo a moça ficou constrangida
com a briga que presenciou, porém não recuou, avançando sobre o príncipe e dizendo:
“E então...?”
Na primeira noite, Pietro realmente ficara incrédulo com a atitude da moça. Eles
jogaram, jogaram e conversaram um pouco sobre si. Pietro perguntou seu nome e a
moça, que se mostrou uma bela inimiga no xadrez, disse que se chamava Ramona.
Pouco antes de ela ir embora, por precaução e a conselho dela, os dois bagunçaram a
cama e desarrumaram suas vestes. Isso não convenceu o rei. Portanto, o menino
chamou mais uma vez Ramona. E mais outra e mais outra. Os dois se divertiam no
quarto e faziam de tudo, menos o mais esperado e óbvio. Uma noite, para dar o toque
gritar, os dois tentando abafar o riso enquanto faziam todos pensarem que algo
percebiam em um nível de intimidade tão mútua que chegavam a cair nos braços um
do outro e falar de coisas mais profundas, como seus sentimentos. Em uma noite,
Ramona confessou a Pietro como seu trabalho lhe era cansativo e como era desgastante
viver de agradar os outros. Pietro nunca teve que agradar, sempre esteve em uma
posição em que os outros tinham de lhe agradavam, mas, por ímpeto do destino,
estava deitado na cama, totalmente vestido e ao lado de uma mulher também vestida,
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para agradar a seu pai. Ramona disse que nunca tinha aprendido a bailar. Pietro fez
questão de contar seus dotes em um salão de baile e Ramona aceitou, um dia, aprender
alguns passos ao seu lado. Certa vez, a moça também contou como se sentia em relação
ao amor, que não tinha o menor apego pelo sentimento e por isso não se sentia digna
de recebê-lo.
Ramona nunca pensou em receber amor e também nunca pensou em dar amor
a alguém, mas, pelo longo minuto em que seus olhos se fixaram nos olhos do rapaz ao
seu lado, ela teve a sensação de que, pela primeira vez, estava recebendo amor e de
que, dentro de seu peito, o mesmo sentimento pulsava. Era abstrato e, ao mesmo
Naquela noite, Pietro e Ramona trocaram um beijo, um beijo tão simples e tão
doce. O primeiro de Pietro e um de muitos de Ramona, mas que soava como o primeiro
Na outra noite, Pietro estava ansioso pela visita de sua colega de quarto e
confidente, será que iria ter a oportunidade de beijá-la novamente? Porém, suas
expectativas foram quebradas assim que entrou em seu quarto uma moça totalmente
diferente de quem esperava. Ele sabia que aquilo era trabalho do rei. É lógico que ele
abominava a ideia do filho acabar se apaixonando por uma “mulher da vida.” Há duas
semanas atrás, seu pai e Ruben partiram para uma guerra em ilhas vizinhas, mas nem
mesmo assim o velho lhe dava paz, devia ter deixado alguém sobre o comando disso.
Pois bem, o menino levou fé que veria Ramona na próxima noite. E assim pôde fazer
uma nova amiga, Celeste, um pouco amarga mas ótima ouvinte. Não era boa no
xadrez, mas era ótima em contar histórias bizarras de seu trabalho de modo irônico e
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Novamente, no outro dia aconteceu o esperado: outra moça. Margarida dessa
vez, radiante e gostava de a todo momento tocar Pietro, tentando atear fogo no corpo
do menino, se é que podemos dizer assim. Mas, como não obteve resultado, mostrou
ao príncipe seu dote com a pintura. As noites se seguiram assim, Pietro esperava
Ramona, mas cada vez era uma moça diferente que adentrava seu quarto. Giovana, já
fizera parte do circo. Madeleine, que sabia de cada segredo dos homens da cidade.
Jorgette, que tinha duas filhas em outro país e estava juntando dinheiro no bordel para
dar uma vida melhor a elas quando voltasse a sua terra natal.
Pietro adorava o fato de poder conversar com aquelas pessoas entre quatro
paredes, e o mais legal é que elas guardavam segredos e trocavam idéias que até
mesmo abriram a mente do garoto para o povo. Mas nada o fazia esquecer sua saudade
sorriso de orelha a orelha. Até que, uma noite, o menino tomou providências e foi às
escondidas para a taberna. Não faltaria muito para seu pai retornar da batalha então
ele tinha de agir agora. Chegando lá, ele encontrou todas as suas amigas e perguntou
por Ramona. Com alívio, ele a encontrou bem e pôde dar o abraço mais apertado que
conseguia, ele via em seus olhos que a moça mantinha a mesma saudade por ele.
Naquele quarto escuro, com uma clarabóia no teto, os dois confessaram o que sentiram
se importar com o que os outros iriam pensar, trocaram carinhos entre sorrisos bobos
e adormeceram de mãos dadas e com os narizes colados. Tudo parecia tão límpido e
palácio. Se despediu de Ramona, prometendo que voltaria outra noite. Assim que
chegou em casa, viu o quanto o clima estava estranho. Os empregados todos diante do
grande salão em fileira. Ruben estava lá e recebeu seu irmão caçula com um abraço
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apertado. Não era preciso dizer mais nada, Pietro entendera que não veria mais seu
pai.
O funeral do rei foi um abalo para todos do reino, que foram prestar suas
santos na parede olhavam para baixo, parecendo querer chorar também. Pietro não
era o filho mais próximo do pai, um rei tem muitos afazeres, e estes deixavam o povo
contente. Seu pai, tão autoritário, havia sido um bom rei. O ocorrido instalou um
amor era ele que, as custas de seu pai, tinha estado feliz com toda aquela companhia,
Passou-se dias, Pietro se fechou em luto e foi Ramona quem o visitou. A moça
cobertores e gravetos e dormiu nas portas do palácio. Logo, Pietro recebeu a notícia de
que havia uma indigente que não arredava o pé dos portões pois precisava falar com
ele. Quando viu a situação da amada, se lamentou por não ter lhe mandado nenhuma
carta e a chamou para entrar e dar uma volta pelos jardins do castelo.
“Lembro-me quando disse que não merecia amor e senti pena de ti, mas não
quero que sinta de mim agora.” Ele desabafou com ela durante a caminhada.
Ramona o abraçou com força e sussurrou em seus ouvidos: “Eu amo você.
Independente do que ache. Seria um insulto achar que não merece o que estou te
oferecendo.”
incrível como aquele toque tão singelo despertava um sentimento tão novo e bonito.
Pietro tinha certeza de que deveria deixar sua angústia de lado, afinal, a vida podia ter
muitas angústias e ser amarga, mas amores como este você só encontra uma vez.
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Agora, os boatos do castelo de marfim eram outros, afinal de contas, os criados
precisavam comentar sobre algo, não? Mas, dessa vez, diziam que o príncipe havia se
jogar as cartas na mesa e deixar que todos soubessem que aquilo era real. Ramona já
havia ouvido desaforos por uma vida toda e, portanto, não se afetava e Pietro nunca
se importara com as línguas afiadas, não seria agora que iria se importar.
reino ao lado. Dessa vez, eles tinham o tabuleiro de xadrez e um salão de festa só para
eles. Ramona agora iria poder aprender a dançar e teria um excelente professor que a
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Pequenos Começos
A luz do sol reluzia forte no rosto de Li. Seus dedos seguravam o lápis 6B,
batendo-o em sua perna, enquanto observava o time de futebol treinando nos campos
dito que o único motivo pelo qual tinha arrastado o seu corpo para os campos quentes
de gramas verdes demais, era o capitão do time. Vitor era alto, loiro e rico, sobrinho
do reitor da Universidade e futuro arquiteto. Mas sua especialidade era fazer com que
o coração de Li desse uma volta sempre que ele aparecia nas aulas de Artes que
Li continuou batendo com o lápis na sua perna, sentindo o rímel escorrer pelo
seu rosto coberto de maquiagem, que era atingido pelo calor. Base e corretivo seguindo
o caminho da máscara de cílios, também derretendo por sua face. Era um dos dias mais
quentes até ali, mesmo sendo outono, e Li pensou com amargura que era efeito do
aquecimento global, e sobre como as estações ficariam cada vez mais desreguladas ao
passar dos anos. Era para ser o período mais frio antes do inverno e mesmo assim, aqui
estava Li, suando em sua maquiagem pesada e suas roupas pretas. Vitor gritou alguma
coisa no campo e capturou a atenção de todos ao redor. O rapaz era um dos cinco filhos
do jogador de futebol Riso, que havia sido destaque diversas vezes na Seleção, e que
E como se isso não fosse o suficiente para tornar Vitor e seus irmãos grandes
playboys que se achavam, todos eles tinham herdado a boa aparência do pai: cabelos
para azul, dependendo do filho. Li soltou um suspiro observando Vitor. Era uma coisa
que tinha surgido do nada, bastou que um dia o jogador de futebol tivesse entrado na
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sala, sorrindo como se fosse o dono do lugar, com a metade dos cabelos longos presos
em um coque e os fios ainda úmidos por conta do pós treino, para que Li sentisse como
se o chão tivesse desaparecido dos seus pés. De todos os cinco irmãos, Vitor era o que
mais parecia um rapaz comum, sem a aparência de semi-deus que os outros quatro
carregavam. Li tinha observado com os olhos atentos quando ele sentou do lado
oposto da sala e começou a lutar com o lápis e o giz pastel. Seus olhos tinham
capturado o jeito com que ele tencionava a testa, causando inúmeras rugas no lugar,
marcando a pele e como ele mexia no cabelo, ora amarrando, ora os soltando por
completo, enfiando os dedos longos nos fios, demonstrando frustração. A aula de artes
daquele período era obrigatória para os alunos de Moda e Arquitetura, por isso, Li e
com seu irmão, Umberto. Tinham quase a mesma idade e eram a dupla de zagueiros
mais forte do campeonato entre as Universidades. Era como se todos eles fossem uma
afronta para a própria natureza. Bonitos, ricos, bons de futebol, e donos de tudo que
“Você precisa terminar esse croqui ainda hoje.” Li escutou quando a amiga
sentou-se ao seu lado. Míriam tinha o péssimo hábito de chegar nos lugares do nada,
porque você tem talento que pode deixar todos os trabalhos para última hora, Li.” A
moça que tinha acabado de chegar tomou um gole do refrigerante que segurava e
observou os olhos delineados e com sombra colorida de Li. Os cílios postiços haviam
saído alguns momentos atrás quando o suor começou a escorrer pelo seu rosto. “E,
sério, se você não vai falar com ele, por que você fica nesse sol derretendo?” Míriam a
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sorriso lindíssimo. Por conta da genética da família, os cabelos dela tinham diversas
mechas grossas em grisalho. Ainda no ensino médio, Míriam cobria as mechas com
toneladas de tintas para o cabelo, com vergonha demais dos fios grisalhos por estar
adiantada em envelhecer, ou parecer mais velha. Mas, assim que havia ingressado na
mechas grisalhas com orgulho, deixando todas as pessoas ao redor com inveja. Li
queria bater nela por duas coisas: pelo quanto ela era bonita e porque ela estava certa
sobre Vitor.
“Eu gosto de assistir ele jogar. Você sabe muito bem que eu nunca falaria com
ele. Vitor é, você sabe, a estrelinha daqui.” Li voltou a sua atenção para o desenho,
sombreando as partes que no croqui de jaqueta que estava terminando. Era uma peça
aquela coleção de The Black Parade, como o álbum do My Chemical Romance que
adorava, assim como suas amigas. “E não é por que eu não tenho autoestima para falar
"É só que você é assexual, não-binarie e acha que Vitor vai te empurrar de uma
do refrigerante pelo canudo. Li queria rir. Ao mesmo tempo que a amiga era uma das
jornalistas mais ávidas por notícias esquisitas, e uma das melhores escritoras que
conhecia, ela ainda era tão clichê com os óculos na ponta do nariz e sua atitude. “Sério,
Li, você não pode deduzir o que as pessoas vão achar de você só de olhar para elas.
Okay, tem uma cacetada de gente ridícula lá fora? Sim! Mas nem todos são assim. E
metal. A jovem conhecia a família de Vitor há tanto tempo quanto conhecia Li. A
jornalista era filha da babá de um deles e havia crescido rodeada dos cinco irmãos.
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“Os seus comentários não são imparciais e por isso não serão aceitos.” Li deu
uma risada, trocando o lápis 6B pela caneta preta, desenhando as linhas de fora da
jaqueta. “E eu não teria problema algum em falar com Vitor, só não temos assunto.”
o líquido gelado. Ela desviou o olhar de Li para o campo de futebol, onde a partida já
havia soltado o cabelo, deixando a confusão longa e suada de fios loiros claros cair
“Bem, que bom que você não tem problemas com falar com ele, porque eu te
indiquei para ajudá-lo na matéria de Artes. Ele vai levar bomba e precisa de ajuda.” O
coração de Li parou e seus olhos foram em direção a Míriam, que havia encolhido os
ombros, sabendo que tinha feito algo de errado. Ela parecia um cachorro acuado, que
tinha sido acusado de rasgar o sofá e fazer xixi no tapete novo da sala. “Que foi? Você
e Tatiana são incríveis nisso, e bem, Tati está viajando com o namorado, então só sobra
você Li…” Míriam lembrou de Tati, e o coração de Li perdeu um compasso. Tati era
uma das suas melhores amigas e ela havia desistido dos anos na Universidade para
acompanhar o namorado que era uma estrela do rock em ascensão pelas estradas. Ela
trabalhava de fotógrafa para a banda e diversas vezes enviava para Li um cartão com
fotos da paisagem de onde estava. Li gostava da bravura que Tati havia tido de entrar
“E quando ele disse que viria falar comigo? Porque se for hoje, eu fujo para as
colinas, aposto que ainda dá tempo. Ele não sabe como eu sou, nunca vai me achar.”
morcego. Tudo que Li tinha era preto, com formatos estranhos de morcego ou lobo e
só pelos boatos.” Míriam a ajudou a pegar os cadernos de desenho e a mala com tecidos
que havia trazido para serem costurados no laboratório. Li não tinha dinheiro para
comprar uma máquina e nem mesmo espaço, já que dividia o dormitório com mais
três pessoas. “Vitor, querendo ou não, sabe quem você é. Além disso, ele não morde.
É só um rapaz rico.”
“Piorou.” Li fez uma careta. De todas as pessoas do mundo, Vitor deveria ser a
última a fazer seu coração se acelerar. Li esperava sempre que fosse se apaixonar por
alguém quase tão excêntrico quanto ela, que usasse tanto preto e maquiagem, que eles
pudessem compartilhar todas as roupas, mas quanto mais velha Li ficava, mais
percebia que seu coração gostava dos opostos. Sua cabeça lembrou com um pouco de
dor de Danilo, o hippie que tocava bateria na banda do namorado de Tatiana, que
havia sido uma das paixões de Li. Eles não haviam tido um desfecho saudável e Li
sempre se lembrava com pesar do quanto havia se apaixonado pelo rapaz. “Se a
família dele tem tanta grana, por que Vitor não paga alguém para ajudar ele com os
“Li, quando você entrou em Moda também não sabia nem desenhar palitinhos.
Eu que apagava a luz da sua mesa sempre que você dormia em cima de um croqui
porque havia virado a noite fazendo. E Vitor disse que pagaria, e eu não sei se chegou
ao Paraíso dos Tecidos, mas precisamos comer esse mês.” Míriam caminhou ao lado
membros magros, Míriam era baixa e curvilínea. Ela carregava a bolsa com os livros
de jornalismo e ajudava Li com a mala de tecidos. “Vamos lá, Li, vai ser legal, e você
pode mostrar o seu charme ‘Criatura das Trevas’ para ele.” Ela soltou uma risada
pele clara sendo abençoada com os raios violetas. Houve um tempo que Li queria ser
como sua amiga. Baixa, bonita e branca. Um tempo onde crianças malvadas falavam
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das calças curtas de Li, e de como sua aparência era estranha. Mas Li havia aprendido
vestir com as inúmeras combinações de preto, com peças compradas com pouco
isso havia feito com que olhasse para Míriam e a beleza dela não afetasse mais a sua.
“Eu não acredito que estou escutando isso.” Li colocou os óculos pretos com
formato de coração no rosto, impedindo a luz do sol forte de bater nos seus olhos. O
batom preto em seus lábios havia craquelado e era possível sentir as inúmeras peles
saindo tingidas. “Vamos fazer assim, se ele me pagar bem, eu prometo pensar na
proposta. Preciso terminar essa coleção até o fim do mês, não tenho tempo para
playboys.”
“Continue falando isso até se convencer, Li.” A risada de Míriam foi o que
***
cabeça. Seria uma mentira descarada se elu tivesse negado que seus olhos haviam
estampado em seu rosto, fazendo gracinhas para todas as pessoas da sala. Li odiava
ver aquele sorriso apenas pelo jeito como seu estômago parecia cair em um vácuo sem
“Para de ser idiota.” Sua voz saiu em um suspiro enquanto ainda observava a
porta da sala. Vitor apareceu como um raio. Alto, bonito, com os cabelos loiros
molhados e solto, a barba por fazer cobrindo parte da bochecha. Ele usava uma
camiseta de mangas preta, uma calça jeans de lavagem escura e botas. Estava um calor
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do inferno lá fora e Vitor havia tido a audácia de usar botas e jeans escuro em um dia
“Professora, hoje a gente pode fazer em dupla? Sério, eu preciso de outro par
de mãos para me ajudar com isso.” Ele falou alto, a voz carregada de sarcasmo e riso.
Todos os seus irmãos eram daquele jeito, quase como se fossem raios e trovões em sua
forma física. Li não acharia esquisito se Vitor fosse parte criatura mitológica. Elu
Li havia pego o lápis que estava usando mais cedo no exato momento que um
nome foi gritado, em alto e bom som. Um nome que não era mais seu, mas que todos
respiração ficou presa em sua boca, quase como se seu corpo estivesse entrado em
curto. Seus olhos subiram para a professora e para Vitor, que olhava com expectativa,
algum petisco. Teria sido fofo se a cabeça de Li não estivesse girando com o nome que
Você não é esse nome. Você não é esse nome. A voz em sua cabeça repetiu, enquanto
Vitor caminhava até a carteira em sua frente, falando algo que seus ouvidos não
“Li? Certo?” A voz de Vitor entrou em seu sistema e foi como se a pressão
angustiante de sua cabeça estivesse se dissipado apenas com ele falando seu nome
certo. “Desculpe por ter feito a professora te chamar, não sabia que seu nome estava
daquele jeito na lista.” Vitor olhava para Li com os olhos verdes curiosos, os cílios
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“Está tudo bem.” Não, não está. A voz voltou e Li se concentrou apenas em
observar como a camiseta que Vitor vestia era bem cortada e caía bem nele. De perto,
Vitor ainda era maior do que sua mente havia idealizado. Ele tinha uma cicatriz grande
no lado esquerdo do rosto, logo acima das maçãs saltadas e sua barba rala estava
faltando em diversos lugares. Ele era bonito demais para que Li se concentrasse no que
lhe faltava. Tudo dentro do corpo de Li estava uma confusão. Ao mesmo tempo que
sua cabeça girava seu estômago caia. “A reitoria não aceitou meu pedido de mudança
de nome. Eles dizem que só aceitam com papéis regulamentados e, bem, não existem
um pouco, e sua mente se pegou questionando porque aquela conversa estava sendo
feita com um rapaz que havia acabado de aprender sobre a existência de Li.
“Vamos fazer assim, você me ajuda com o desenho, e eu peço para o próprio
reitor, que é meu tio, fazer uma carta para a administração com o seu nome social.”
Vitor estendeu a mão e Li ficou olhando. Por um segundo seus olhos maquiados
piscaram com força, tentando assimilar que Vitor havia falado nome social sem toda a
carga que as pessoas colocavam. Que Vitor, um dos príncipes da Universidade havia
lhe escutado falar sobre não-binaridade. “Eu sei que Míriam já falou com você, ela não
consegue manter um segredo por muito tempo, e isso é até bom pois adianta a
conversa entre nós. Eu preciso de aulas, você é excelente nessa matéria, par perfeito.”
Li continuou olhando para Vitor, que estava com a mão estendida esperando
“Vamos fazer o seguinte, Vitor. Você me passa seus desenhos, eu faço algumas
anotações e você me paga. Não preciso da sua ajuda para conseguir um nome que
deveria ser meu por direito.” A voz de Li saiu mais amarga do que deveria e Vitor
puxou a mão que estava no ar. As pessoas da sala estavam em volta de suas duplas e
se Li tivesse prestado um pouco mais de atenção, teria notado que as duplas só haviam
136
sido possíveis porque Vitor queria fazer um acordo.
também, Li.” Vitor continuava olhando para seus olhos, como se tivesse tentando fazer
ser entendido com apenas a força do seu olhar. Seus olhos não eram tão verdes quanto
Li havia sonhado, tinham mais pontos de castanhos e amarelo do que seu lápis poderia
preciso passar nessa matéria. Ela tranca metade das outras de Arquitetura do próximo
semestre.”
Li suspirou alto, como se aquela fosse uma guerra que não pudesse ser vencida.
Sua mente poderia ter, pelo menos, um pouco de descanso se Vitor ajudasse com os
papéis do seu nome. Ou, ao menos, faria com que sua cabeça e seu corpo não entrasse
em curto sempre que alguém falasse um nome que não lhe pertencia mais. “Qual o seu
plano?”
Vitor sorriu para Li. E se o sorriso em si não tivesse feito seu peito se encher de
borboletas, ele ter piscado em sua direção o fez. Era como se todas as asas de borboletas
fossem grandes e estivessem sendo batidas com força dentro da sua caixa torácica,
teste passar, e se eu for bem, eu vou pessoalmente contigo até meu tio pedir para que
a Universidade troque o seu nome nas coisas.” Ele estendeu a mão novamente, agora
com os ombros levantados. Li olhou para o relógio no pulso dele e quase bateu com a
cabeça na mesa por saber o preço de tal coisa. Não era barato. Nada em Vitor era
barato, nem mesmo o jeito que ele estava olhando para Li. Aquilo custava a sanidade
de alguém.
137
“Eu estou em semana de entrega de coleção, então tenho os horários apertados.
Você sabe onde ficam os dormitórios, certo? Tenho que trabalhar até as 20h, mas
depois estou livre. Me busque lá, traga seus desenhos, lápis, papel e por favor,
humildade. Não sei se sua família conhece tal coisa, mas você vai precisar descer do
Li pegou a mão de Vitor, o contraste dos seus dedos pequenos e magros com os
dele deixaram as suas bochechas vermelhas e Li agradeceu ao fato de ter usado blush
suficiente para que isso não fosse percebido pelo rapaz. Pare com isso, você não é
“Nós somos pessoas como todo mundo, não sei porque continuam insistindo
que somos desumildes.” Vitor se levantou, pegando a bolsa. A aula não estava nem
mesmo na metade e ele tinha aval para sair livremente, como se fosse o dono do lugar.
Bem, ele era. Mas ainda assim, deveria sentar em uma cadeira como um aluno comum
e prestar a atenção. “Okay, Ivo se acha um Deus, mas ele é doido e o namorado dele
pior ainda.” Li abriu a boca e Vitor riu. “Vocês realmente não sabem nada da nossa
família.”
Li ficou, pela segunda vez naquele dia, com o fantasma da voz dele na sua
***
o campus. A cafeteria. Talvez fosse pelo fato que era um ponto de encontro de todas
pessoas que faziam com que o peso do mundo fosse um pouco menor para carregar.
Seu vestido rodado era uma coisa de verão e havia sido elogiado por suas
amigas, Beatriz e Nalu, que haviam passado metade do dia em uma mesa, debatendo
138
Foucault enquanto bebiam café com cheiro de abóbora que só era servido em outubro,
perto do Halloween. Li passou as mãos pela barra do vestido enquanto ria de algo que
Beatriz havia falado antes de sair pela porta, e pensou que as diversas coisas que
haviam acontecido em seu mês haviam feito com que o Halloween fosse esquecido.
Era seu feriado favorito e, mesmo assim, um ataque aos seus pronomes, uma coleção
e um playboy loiro haviam feito com que sua cabeça esquecesse de uma data divertida.
Vitor havia se tornado seu aluno há quase um mês e era um bom ouvinte. Li
havia aprendido que Ivo, seu irmão mais novo, era pan e namorava um cara religioso,
e por isso sua casa era um refúgio seguro para todas as pessoas. Por conta disso, Vitor
sabia mais do que os outros meninos do time sobre pronomes neutros, sexualidade e
Ele também havia passado de um rapaz rico que Li achava bonito, para um rapaz
rico que havia entendido uma piada que Li tinha em forma de tatuagem. Sua cabeça
ainda levava sua memória para aquele dia, quando Vitor se sentou com as pernas
esparramadas em seu tapete, o lápis atrás da sua orelha e o cabelo caindo pelos
ombros, observando seu braço magro e perguntando se aquilo que estava desenhado
Elu havia rido e explicado que sim. E só quando seus olhos viram que Vitor não
se conformaria com uma resposta pequena como aquela, explicou que diversas
pessoas haviam enquadrado como assexuado a sua sexualidade, por isso a piada sobre
uma bactéria.
“Porque você é assexual, não assexuado. Mas você usou a palavra como uma
piada.” Vitor continuava olhando para o desenho. “As bactérias fazem bipartição. É
uma tatuagem inteligente.” Li havia olhado para ele com admiração, pensando no que
mais Vitor seria capaz de entender, em como ele não pediu uma explicação sobre a
sexualidade e como Li não teve que recorrer a usar exemplos. Apenas o pensamento
139
de alguém allo não precisar de uma apresentação quando o termo foi usado, fez com
estabelecimento e Li olhou para trás para dar de cara com Vitor de calça jeans, jaqueta
de couro, cachecol, e as bochechas vermelhas do frio repentino que havia caído. Seu
coração perdeu uma batida e Li baixou os olhos. Seus dedos se torceram um contra o
outro, tentando conter as mãos para que não voassem para o rosto de Vitor, colocando
falou com a voz alta, mas todas as pessoas que lhe conheciam podiam perceber o
“Vim te buscar, Criatura das Trevas.” Vitor se encostou em uma das mesas que
estava vazia e colocou as mãos nos bolsos. “E, claro, comprar um café e um bolo.
Escutei por aí que aqui vende o melhor bolo de floresta negra, e eu tenho uma lista
tornar gelatina, derreter e deixar o corpo que sustentavam se esparramar pelo chão.
sua voz trocou de entonação, indo para algo muito mais sugestivo. “Li também está
“Dois segundos.” Sua voz saiu apressada enquanto caminhava para a área dos
funcionários. Os dedos magros voaram para o fecho do avental atrás de suas costas e,
um segundo depois, plantou-se em frente a seu armário, pegando sua velha bolsa e
prendendo o cabelo azul curto em um coque. Li tentou respirar, não pensar no que
significava Vitor estar ali sentado em uma mesa esperando, como se fosse comum ele
140
estar ali. Li ainda tinha a sensação de que estava sonhando com Vitor, com ele sendo
Seus pés deram a volta, e uma risada passou pelo seu corpo. O barulho
estrondoso de Vitor apenas existindo estava por todo o lado, junto com o cheiro de
café e bolo, seus cheiros favoritos. Elu olhou para Vitor que ria com os atendentes,
segurando uma caixa de papelão com dois cafés e seu bolo. Ria com tanta força que Li
tinha certeza que a sala estava sentindo, como se o prédio pudesse rachar com a força
daquela risada.
“Estou aqui, podemos ir.” A voz de Li soou por entre as risadas de Vitor e ele
olhou em sua direção, como se tivesse visto algo que gostou muito, ou algo que gostava
muito. Sua cabeça tentou fazer com que o pensamento fosse embora, tentou fazer com
que aquilo fosse apenas uma coisa que estava inventando. Vitor não poderia olhar em
sua direção como se tivesse visto cor pela primeira vez. Poderia?
“Com licença, crianças, mas temos que ir.” Vitor deu um passo para trás, curvou
para que fosse pega. Li engoliu em seco quando estendeu a sua de volta, deixando os
Sua cabeça rodou com a força daquele momento. Vitor estava segurando a sua
mão, saindo de mãos dadas de um café como se aquilo fosse a coisa mais comum no
“Sua mão está gelada.” Sua voz foi a única a cortar o silêncio além do vento
forte. Li agradeceu por um momento Vitor ter ido lhe buscar de carro, assim poderia
se aquecer e fugir do vento gelado que tinha descido sobre a cidade de surpresa.
“Está muito frio para andar a pé pelo campus. E eu tenho que te mostrar uma
coisa.” Li caminhou em silêncio ao lado dele até o carro, e deixou Vitor soltar a sua
141
mão para abrir a porta, e depois correr até a sua. A temperatura do carro entrou em
contato com a sua pele fria aquecendo tudo, deixando a sensação de conforto que
Vitor lhe entregou a caixa de isopor com furos para os copos que estavam ali e
abriu a caixinha de papelão com o bolo, puxando um pedaço com as pontas dos dedos
caixa em seu colo. “Ou eu vou cometer um crime de ódio.” Vitor sorriu, lambendo o
bolo dos dedos antes de puxar algo do compartimento de cima do volante, a parte reta
onde ele tinha costume de jogar todas as coisas. Era um papel dobrado, novo e
“Se você me deixar falar eu explico.” Vitor pegou um copo, deu um gole e Li
reproduziu seus movimentos, colocando a caixa vazia aos seus pés e segurando o café
quente em suas mãos pequenas e geladas. Vitor fez um barulho com a boca para
indicar que estava satisfeito com a bebida e colocou o copo no compartimento redondo
perto do câmbio. “Meu tio infelizmente vai precisar viajar para a França, logo na
semana de testes e provas e por isso não poderemos conversar com ele pessoalmente.
O papel foi esticado para Li, que pegou com pressa, abrindo-o. Era uma carta,
assinada e timbrada pelo carimbo do reitor, tio de Vitor, alegando que era obrigação
da instituição mudar o nome morto de Li para o seu nome social. Era um papel que
faria com que o desconforto que Li sentia sempre que seu nome era falado em voz alta
“Falei com ele pessoalmente, como prometi.” Vitor tomou outro gole do café e
142
“Que pesquisa?” Li ainda olhava para o papel, com apenas metade da
concentração em Vitor.
tão rápido que sua visão ficou turva. “Sabe, eu entendia a palavra, mas não o conceito.
Eu passei a noite lendo sobre. Não era mais que a minha obrigação já que…”
“Olha, Li, conviver com você foi como sair da minha bolha. Eu tinha meu irmão,
que aliás me arrastou para a Parada ano passado, mas não tinha nenhum contato real.
Até porque, não era onde eu deveria estar. Então, você meio que despencou na minha
do alto do meu pedestal.” Vitor olhou para frente colocando a mão livre em cima do
volante. “Não vou mentir para você, a última vez que eu fiquei deitado com alguém
sem segundas intenções eu deveria ter onze anos. E, no ano seguinte, as segundas
intenções vieram e eu não conhecia outra coisa.” Ele olhou para Li, parada ali com a
boca aberta, segurando um copo de café que estava esfriando. “Você me tirou da
minha bolha. E esse papel, esse pequeno papel, é como eu posso agradecer.”
“Você fez com que o reitor assinasse um documento para a mudança do meu
nome apenas para agradecer?” Li tinha lágrimas nos olhos. “Vitor, não minimiza isso.
É um papel que diz que devem me chamar pelo nome que eu acho certo. Tem um
mundo aí fora que está pronto para me odiar, odiar todas as pequenas coisas que eu
sou, me dizer que quebrei e que sou um erro. Você fez muito mais do que só me dar
um papel.”
“Que bom que gostou dos meus agradecimentos.” Vitor deu uma risada baixa
e continuou, agora olhando para Li, os olhos verdes centrados no rosto maquiado.
“Porque o meu discurso sobre estar apaixonado por você é muito maior.”
143
“VOCÊ O QUÊ?” Li deu um grito e Vitor riu, dando partida no carro.
144
Our Space
Setembro
O prédio passará por algumas reformas no próximo semestre e, por esse motivo, vocês serão
remanejados em novos dormitórios. Solicito que, no dia anterior a volta às aulas, dirijam-se a
recepção do prédio D para a retirada das chaves dos seus novos quartos.
PS: Vocês terão até a sexta-feira para retirar suas coisas dos antigos dormitórios.
Atenciosamente,
Catherine Pierce
Supervisora de Dormitório”
Era o que dizia o e-mail recebido por todos os estudantes da UCL que moravam
D, não esperavam era que todos os estudantes iriam no mesmo horário, próximo ao
final da tarde, fazendo com que uma multidão de estudantes irritados por precisarem
— Nome do estudante? — Kitty perguntava para cada pessoa que chegava ali
145
— Nome do Estudante? — Kitty perguntou para a próxima da fila. Uma garota
baixa e um pouco acima do peso para os padrões europeus, com um cabelo roxo tão
Kitty conferiu na sua lista e então olhou a garota com dúvida — Fitz?
— Certo, passe ali com Declan para pegar as chaves do quarto, querida — Kitty
explicou apontando para um rapaz sentado em uma mesa no final da sala, próximo de
***
Obviamente, Fitz deixou para fazer a sua mudança no último dia, ainda bem
enquanto carregava uma caixa pesada — E se a sua nova colega de quarto já tiver
tomado conta do quarto inteiro? E se ela tiver tantos livros quanto você?
Maya Rodriguez era a melhor amiga de Fitz desde o primeiro dia na faculdade
há 2 anos atrás, mas elas não podiam ser mais diferentes. Maya cursava história da
arte, enquanto Fitz fazia engenharia. Maya tinha o cabelos cortado com desleixo e com
umas cinco cores diferentes, já Fitz mantinha seu corte reto em um sóbrio tom de roxo
escuro quase preto. Fitz era uma garota de livros, Netflix e algumas taças de vinho,
enquanto Maya era uma explosão de cores e alegria ao som de uma festa de
fraternidade.
146
— Minha nova colega de quarto, com certeza, deve ser melhor que a Jeanine. —
Fitz estremeceu ao se lembrar da antiga colega de quarto. Esse foi um dos motivos pelo
sua mão.
Fitz soltou as malas e largou a caixa que carregava no chão para poder abrir a
porta do quarto, dando umas batidinhas antes de abrir para a avisar que estava
entrando. Ela com certeza imaginou que, a essa altura, sua colega de quarto já estivesse
se sentindo mais à vontade no novo quarto, mas não ao ponto de já estar com um cara
semi nu lá dentro.
Fitz e o rapaz sem camisa ficaram um tempo se encarando até que Maya decidiu
intervir.
ríspida.
dormitório masculino.
Maya, que prestava atenção nos dois como quem assiste um jogo de ping-pong,
quarto, Fitz, eu só não lembrava o que era — Maya começou a explicar — Quartos
147
femininos terminam em números pares. Matemática nunca foi muito meu forte, mas
— Claro que não — ele respondeu procurando algo em cima de sua cama —
Maya, que já havia se sentado em cima da caixa que antes carregava, levantou
— Se eu tiver que carregar essa caixa de livros mais uma vez hoje, eu juro que
Kay, era o apelido para Kaito Lee Baker, um garoto alto que herdou da mãe
vários de seus traços asiáticos. Kay sempre foi um garoto engraçado e muito altruísta,
ele participa de vários tipos de ONGs, desde as que prometem salvar o mundo até as
de adoção de pets, ele também treina os times infantis de uma escola na cidade vizinha
148
todo final de semana. Embora todo mundo alegue que as garotas preferem os bad boys,
— Isso, Kitty era a responsável pelo antigo dormitório da Fitz, e foi a pessoa
— Kitty mandou a gente ir até a sala dela — Fitz falou assim que se aproximou
deles.
Kitty não parecia nem um pouco com o que Kay havia imaginado, ela não
parecia fofa e pequena como seu nome sugeria, muito pelo contrário. Catherine Pierce,
149
a Kitty, era uma mulher alta e corpulenta, com ombros largos e fortes como uma
— Eu não ligo se você não gosta da sua nova colega de quarto, ou se ela fede ou
se você não fala o mesmo idioma que ela — Kitty começou a falar assim que os três
entraram em sua sala — Você não é a primeira e infelizmente não vai ser a última
pessoa a vir reclamar sobre o novo colega de quarto. Mas não há mais quartos vagos
— Acredito que você vai querer ouvir o problema dela, senhora — Maya falou.
— Certo — Kitty respirou fundo e olhou para Fitz. — Qual é o seu problema,
querida?
— Bem… Ele é o meu colega de quarto — Fitz apontou na direção de Kay que
— O quê? Mas como isso é possível? — Kitty começou a procurar pelos papéis
Kay riu disfarçando com uma tosse quando Maya olhou séria para ele.
— Eu vou matar o Declan — Kitty sussurrou, então respirou fundo e olhou para
Fitz. — Então, o que aconteceu foi que Declan achou que Peyton Fitzpatrick fosse um
garoto.
— Bem… mas você sabe que a Fitz aqui é uma garota, então é só trocar ela de
150
— Não exatamente. — Kitty respondeu receosa.
— Como eu disse antes, não há mais quartos disponíveis, nós estamos com um
mas até lá você vai ter que dividir o quarto com este jovem cavalheiro. — Kitty
começou a fazer anotações nos papéis e procurar coisas no seu computador. — E tenho
certeza que a administração não vai se importar de dar alguns descontos para vocês
Nem Kay nem Fitz estavam em condições de negar descontos nos pagamentos
das mensalidades, então ambos já estavam pensando em como fazer isso funcionar.
Kitty levantou e foi acompanhar os três universitários até a porta da sua sala e
— Sr. Baker — ela chamou e Kay rapidamente se virou para ela — Se você
encostar um dedo na Srta. Fitzpatrick eu vou fazer com que você seja expulso e nunca
Ele percebeu que quando Kitty disse que ele não iria frequentar nenhuma outra
universidade ela não se referia ao fato de que ela iria fazer fofoca e manchar sua
reputação.
novamente.
151
— Nada não.
***
Naquele dia, Maya ficou até tarde no quarto 173 ajudando Fitz a organizar as
suas coisas e quando ela foi embora Fitz só pensava em duas coisas: tomar um banho
e ir para cama.
Quando Fitz saiu de dentro do banheiro que havia no quarto, ela vestia uma
calça de moletom e uma camiseta larga. Ela andou até o pequeno armário que tinha
do seu lado do quarto e pegou um secador de cabelo. Fitz o ligou na tomada do lado
da sua cama e sentou-se nela para secar o cabelo, mas assim que ela o ligou, Kay, que
estava ocupado jogando alguma coisa no celular, olhou com uma cara confusa para
ela e disse:
Depois que terminou de secar o seu cabelo ela se levantou da cama para guardar
pouco sobre nossos hábitos e rotinas, para podermos nos adaptar e talvez até
— Certo, você tem razão — Fitz sentou-se na sua cama e cruzou as pernas.
— Quais são seus horários de aula? Que horas você costuma acordar? — Kay
começou.
152
— Tenho aulas quase todas as manhãs e algumas tardes — Fitz explicou — Mas
— Você costuma sair nas sextas ou aos finais de semana? Acho que devíamos
evitar voltar para o quarto bêbados, ninguém gosta de limpar vômitos. — Fitz falou.
— Raramente vou a festas, e quando saio não volto tão tarde e nem tão bêbado.
— Kay assegurou — Aos finais de semana, na maioria das vezes, eu acordo cedo
— Eu costumo sair algumas vezes com Maya, mas vou tomar cuidado para não
incomodar.
— Ok… Eu acho que nenhum de nós devia trazer pessoas aqui para transar. —
Fitz soltou.
— Certo — Fitz confirmou, isso com certeza não seria um problema para ela. —
***
153
Outubro
Como em quase todos as noites e durante os finais de semana desde que Fitz se
mudou para o quarto 173, Maya estava deitada na cama de Fitz lendo fofocas no seu
Kay, que havia chegado a pouco de um dos seus trabalhos voluntários e entrado
— Você devia vestir uma blusa. Está frio hoje e você pode se resfriar — Fitz
Ele não respondeu o comentário, mas andou em direção ao seu armário para
— Amiga, você viu que a Lissa e o Theo estão saindo? — Maya falou de repente,
— Não se preocupe, ela mal olha pra mim, com ou sem camisa. — Kay
respondeu ríspido.
quarto a mais de um mês, ela dorme aqui todos os dias… achei que já tínhamos
superado isso.
Fitz suspirou, e girou na cadeira para encarar os dois. Kay e Maya passavam
quase que o tempo todo trocando farpas por causa dela, e ela já estava cansada daquilo.
154
— Kay, Maya só está sendo um pouco superprotetora — Ela explicou para Kay,
e então olhou para Maya — Maya, Kay está certo, você não precisa ficar aqui o tempo
— Eu sei, querida — Maya usou um tom maternal e então fez um bico como se
estivesse chateada — Mas é que Colette, minha colega de quarto fala francês! Com
— Está perdendo uma chance maravilhosa de aprender uma língua nova — Fitz
respondeu.
levantou um pouco contrariada e pegou a sua mochila no chão, mas antes de sair olhou
para Kay que agora estava deitado na sua própria cama mexendo no celular.
— Estou de olho em você, garoto — Ela o ameaçou antes de sair batendo a porta
do quarto.
Algumas horas depois que Maya saiu do quarto Fitz se espreguiçou na cadeira
Fitz costumava dormir cedo todos os dias pois acordava muito cedo todos os
dias, às 5:00 para ser exata. Ela não tinha um sono muito pesado, então seu despertador
não precisava fazer muito barulho, e com isso Kay normalmente não precisava se
acordar também.
Mas naquela manhã, enquanto Fitz se arrumava para sair para sua corrida
matinal um outro despertador, muito mais barulhento que o seu, tocou. Ela colocou a
cabeça para fora do banheiro para ver o que estava acontecendo e viu um Kay todo
— O que você faz acordado a essa hora? — Fitz perguntou segurando seu cabelo
tentando se forçar a acordar de verdade. — Você acorda cedo assim todos os dias?
Fitz terminou de arrumar o seu cabelo e saiu do banheiro para dar espaço para
Kay. Ela realmente parecia alguém que ia sair para se exercitar, com tênis de corrida,
uma legging e uma camiseta larga. Quando Kay passou por ela percebeu que a
camiseta que ela usava tinha o símbolo da Força Aérea Real e tinha o nome Fitzpatrick
bordado.
Fitz riu e então respondeu — Não, ainda não, essa camiseta era do meu pai.
— Que bom — Kay disse — Quer dizer, que bom que ele está vivo, não por ele
estar em…
banheiro, ele ainda cheirava a frutas tropicais, que era o cheiro do shampoo da Fitz,
que àquela hora já havia voltado da corrida, tomado banho e saído para aula.
Ele não estava acostumado a acordar antes de Fitz voltar de sua corrida, e não
***
156
Kay estava tomando banho enquanto Fitz terminava de se arrumar para a festa
de Halloween, ela estava dando os últimos retoques na sua maquiagem quando Maya
bateu na porta a chamando. Mas antes de sair ela escreveu o endereço da festa em um
post-it e colou no quadro que ficava sobre a escrivaninha e bateu na porta do banheiro.
— Kay, eu estou saindo. — Ela falou para a porta fechada — Tem certeza que
— Tenho sim, mas obrigado pelo convite — Kay gritou de dentro do banheiro
— Bem, se você mudar de ideia eu deixei um post-it com o endereço da festa ali
perto da escrivaninha.
— Valeu.
Quando Kay saiu do banheiro o quarto estava escuro e silencioso, ele ainda
estava com a toalha sobre a cabeça e secava os cabelos enquanto andava até a
escrivaninha para ver o post-it. Era um post-it rosa, onde o endereço fora escrito com
a letra gordinha e bonita de Fitz usando uma caneta roxa e abaixo do endereço ela
Ele tinha muitas coisas para estudar e um trabalho de conclusão para começar,
não seria uma boa ideia ir para uma festa naquele final de semana. Kay passou
algumas horas tentando se concentrar nas suas tarefas, sem muito sucesso e então viu
“Será que ainda dá tempo de ir nessa festa?” Kay pensou “Mas eu nem tenho uma
fantasia.”
157
— Cara, o que você acha que ir a uma festa comigo agora? — Kay falou assim
— Você sabe que já passou da meia noite né? — Dylan respondeu rindo.
— Sim, eu sei, devia ter decidido isso antes… — Kay revirou os olhos, mesmo
telefone.
Kay não tinha uma fantasia, mas ele decidiu que iria na festa mesmo assim.
O lugar onde a festa acontecia estava lotado, parecia que todos os universitários
américa atrás da porta de entrada e um unicórnio que parecia que tinha sido
atropelado passou por eles andando tranquilamente enquanto virava uma garrafa de
tequila..
O plano de Kay era simples, ele iria procurar pelo cabelo colorido de Maya que
parecia que havia sido cortado por um barbeiro bêbado e com os olhos vendados, com
certeza seria fácil achar isso, e ela com certeza estaria junto de Fitz. E essa foi
Depois de rodar aquela casa duas vezes, eles tinham chegado à conclusão de
que talvez, àquela hora, elas já tivessem ido embora e voltado para os dormitórios, ou
158
talvez para o quarto de outras pessoas. Pensar sobre isso deixou Kay com uma
Assim que Dylan se afastou, Kay ouviu a risada inconfundível de Maya vindo
Vermeer, com os cabelos totalmente escondidos por panos, por isso nenhum deles a
reconheceu.
E como esperando, Fitz estava com ela, parada na lateral da mesa olhando Maya
jogar. Fitz estava perfeita em uma fantasia de princesa, com um vestido longo e
volumoso, com os cabelos escuros presos em um penteado elaborado para que a coroa
se destacasse.
Kay andou até se aproximar de Fitz e parou do seu lado olhando para a mesa
de beer-pong também.
— Kay, você veio! — Ela exclamou surpresa e então o olhou da cabeça aos pés
— Bem, eu não tinha planejado vir a essa festa então… — Kay tentou se
desculpar.
— Tudo bem, está bonito — Fitz corou um pouco e então bebeu o conteúdo do
seu copo.
— Você está… perfeita. — Kay fez uma pausa para observar a reação de Fitz.
Fitz sorriu.
159
Um silêncio constrangedor se instalou porque nenhum dos dois sabia muito
princesa?
— Como assim?
— Bem, eu era um sapo até aquele cara me beijar — Fitz apontou na direção de
Assim que percebeu que Fitz olhava para ele, o garoto sorriu e piscou para ela
que riu mais ainda. Quando ela se virou para olhar para Kay de novo ele não estava
rindo com ela e isso fez com que ela parasse de rir imediatamente.
— E o que aconteceria… — Kay se aproximou de Fitz, seus olhos fixos nos delas
— Se eu te beijasse?
colocá-las ao redor do pescoço de Kay mas parou de repente e recuou. — Quer saber…
fique um clima estranho depois — Fitz respondeu nervosa colocando algumas mechas
160
Ele se virou para sair mas acabou mudando de ideia então voltou e se
— Mas você não acha que o clima vai ficar estranho de qualquer jeito, agora que
Fitz ficou estática onde estava, sem conseguir formular uma resposta, mas
mesmo que ela conseguisse falar algo não daria tempo, Kay já havia se afastado e ido
embora.
***
Novembro
As coisas estavam lentamente voltando a normal entre Kay e Fitz. Fitz era boa
em fingir que nada tinha acontecido e era exatamente assim que ela estava agindo.
Em uma noite atípica, Fitz estava muito mais concentrada no seu celular e
passando muito mais tempo em suas redes sociais, normalmente Fitz passava a noite
estudando ou lendo.
Kay havia achado Fitz nas redes sociais, mas ele não tinha tido coragem de
mandar solicitação de amizade. As vezes quando ela saia com Maya para ir a alguma
festa ou algo do tipo, ele gostava de entrar nelas para olhar as fotos novas que Fitz
postava.
Às vezes, Kay podia sentir o olhar de Fitz sobre ele e o clima ficava muito mais
pesado no quarto, com uma tensão quase palpável, principalmente quando ele a
encarava de volta.
161
Que foi interrompido pelo som da porta sendo aberta bruscamente deixando
que uma Maya com chapeuzinho de festa carregando um bolo com velinhas entrasse
animada.
gritou.
Kay forçou uma tosse para lembrá-las que ainda estava ali, então Maya parou
de balançar Fitz e o encarou com uma expressão séria, sem a soltar do seu abraço.
— Obrigada, Kay — Fitz respondeu com uma voz sufocada pelo corpo de Maya
— Esse é o melhor bolo que eu já comi na minha vida — Fitz respondeu de boca
cheia.
na cama de Fitz. — Como estão indo as coisas com o Sr. Príncipe da festa?
162
— Não estão indo, você sabe — Fitz respondeu dando de ombros.
— Ah, claro… verdade — Maya falou como se lembrasse de algo. — Mas vocês
Kay remexia no bolo que estava no seu prato, um pouco desconfortável com a
conversa.
— Não, não iria dar certo — Fitz explicou enquanto cortava outro pedaço de
Fitz não se deu ao trabalho de responder, apenas olhou para o seu bolo e sorriu,
— Será que a gente pode falar em um idioma que eu entendo? — Kay pediu se
— Ah, Fitz, que desmadre. — Maya olhou para Fitz consternada e então olhou na
Fitz ao falar.
4
A tradução pode ser interpretada como algo tipo: “Não me diga… Ele? Fala sério!”
5
“Me desculpa” e “Precisamos falar sobre isso agora?”
6
“Oh, Fitz, que bagunça” e “Idiota”
163
— Você acha? — Maya o respondeu friamente enquanto Fitz apenas ria.
Fitz já estava no seu terceiro pedaço de bolo quando seu computador apitou e
a foto de um homem com o uniforme da Força Aérea Real aparece solicitando uma
chamada de vídeo.
— Já vou indo, Fitz — Maya falou se levantando — Vou deixar você aí falando
— Feliz Aniversário, princesa — Foi a primeira coisa que o pai de Fitz falou
Kay, que acabou decidindo que aquela era uma boa hora para tomar banho,
— Tem um garoto no seu quarto, Fitz? — O pai de Fitz exclamou assim que o
viu.
Fitz suspirou.
— Tem, mas não é o que você está pensando. — Fitz respondeu revirando os
olhos.
164
Fitz e o pai ficaram conversando por quase duas horas inteiras, até ele precisar
desligar.
— Mas as coisas já estão se organizando por aqui, acho que volto a Londres em
— Estou ansiosa.
— Então você vai poder me contar melhor a história desse rapaz no seu quarto.
— Manda outro para ela — o pai de Fitz respondeu — Também te amo, minha
— Quero — Foi tudo o que Fitz respondeu antes sentir os braços de Kay na sua
volta.
***
Dezembro
Mas alguns dias antes do recesso de natal Fitz recebeu uma outra chamada do
seu pai, onde ele pedia desculpas por ainda não ter conseguido voltar para vê-la.
165
— Mas eu prometo que volto antes do ano novo, princesa — Seu pai explicou
— Tudo bem, pai, eu entendo como o seu trabalho é complicado — Fitz falou
— Preciso desligar agora, mas nunca se esqueça, Fitz, “Através das adversidades para
as estrelas”7.
Fazia quase um ano que Fitz não via o pai, sua única família e, desde que ela
pode se lembrar, esse foi o maior período que ela já ficou sem vê-lo e cada vez que
falava com ele, mais sentia a sua falta. Kay percebeu isso.
Ele estava no quarto enquanto Fitz falava com o pai, deitado em sua cama lendo
um livro para a faculdade, ele ficou a observando enquanto ela tentava decidir se
— Eu vou sair para comer alguma coisa — Fitz pegou um moletom e o vestiu.
— Quer ir junto?
fechando.
— À cafeteria do campus.
7
“Através das adversidades para as estrelas” é o lema da Força Aérea Real “Per ardua ad astra”
166
Não trocaram muitas palavras durante o caminho. Fitz caminhava determinada
presenciara no quarto. Apesar de agora não demonstrar, ele sabia que Fitz não estava
tão bem.
Era uma noite fria típica de Dezembro, o campus já estava coberto de neve e
enfeitado com luzes de natal, Fitz vestia um casaco que parecia dois números maiores
do que ela precisaria e sua touca e cachecol cobriam quase todo o seu rosto, deixando
apenas seu narizinho vermelho para fora. Mesmo com todo o agasalho, aos olhos de
Fitz andou pelo lugar como se soubesse exatamente onde queria ir e sentou-se
em uma mesa no canto, próximo a janela, e gesticulou para que Kay sentasse a sua
frente.
estabelecimento. Seus olhos pousando no balcão no exato momento que o rapaz que
— Você por aqui de novo, meu cupcake? — o rapaz falou para Fitz assim que
— Claro, e uma fatia bem grande de bolo, por favor — Ela acrescentou olhando
para o atendente.
167
— Só o chocolate quente.
Fitz.
— Com que frequência você vem aqui? — Kay tentou soar natural, mas seu tom
— É, ele não vai conseguir voltar a tempo para o natal — Fitz remexeu um
— O que você vai fazer para o natal? Vai visitar seus avós ou outros parentes?
— Não, na verdade somos só eu e meu pai — Fitz explicou meio sem jeito —
Desde criança Fitz foi se habituando a isso, ela entendia que nem sempre seu
pai poderia ir lhe ver nos feriados e datas comemorativas. E isso não significava que
ele não a amava, porque ele sempre achava uma forma de compensar, e sempre era
maravilhosa.
— E Maya? — Kay perguntou — Você não pode passar o natal com ela?
168
— Maya e os pais viajam para o México na época das festas, para visitar os avós
dela.
— Fitz, você não pode passar o natal sozinha! — Kay exclamou. — Você vai
internatos e escolas militares e meu pai quase sempre está fora do país, nós nunca
Era estranho não ter uma casa, uma ideia distante que algum dia possa ter sido
real, mas isso não a incomodava, ela nunca entendeu muito bem a necessidade de ter
um lugar para voltar... Não quando se tem um vasto céu azul para chamar de casa.
Desde sua primeira viagem de avião com seu pai, no mesmo momento em que decidiu
que carreira seguiria, ela sabia, se o céu era o limite, ela também faria dele seu lar.
— Por Deus, Fitz — Kay falou aborrecido enquanto digitava algo no celular. —
Aquela não seria a primeira vez que ela passaria um feriado importante
sozinha.
— E o que você acha de ir a Carlisle comigo? — Kay falou após receber uma
mensagem no celular, com uma empolgação genuína na voz, o que a deixava ainda
mais confusa.
***
169
Fitz estava arrumando as malas com mais força que o necessário porque ela
estava irritada. Ela não estava irritada por ter que viajar para Carlisle. Ela estava
— Fitz, o que foi agora? — Kay perguntou quando terminou de fechar a sua
mala.
— Eu não entendo, Kay — Ela jogou o que segurava nas mãos dentro da mala
de qualquer jeito — Porque passar cinco horas dentro de um carro sendo que leva só
— Eu não acredito que você ainda está irritada por causa disso — Kay reclamou
voos turísticos.
Assim que entraram no carro, Fitz deu as instruções do lugar para onde eles
Londres.
— Você pode deixar o seu carro aqui, e então nós alugamos um quando
170
— Kay, conheça o Fitz Force One8 — Fitz abriu os braços apontando para o avião.
— Você não tem uma casa, mas tem um avião? — Kay perguntou incrédulo.
— Você sabe pilotar isso? — Kay perguntou enquanto eles prendiam as malas
no banco de trás do pequeno avião. — Você tem licença para pilotar isso?
— Eu vou mandar uma mensagem para minha mãe — Kay avisou assim que se
sentou no banco ao lado de Fitz — Para avisar que a gente vai chegar um pouco mais
direção de Kay.
— Nós vamos passar o natal na casa da minha mãe — Kay falou como se fosse
— Não, claro que não — Fitz respondeu nervosa e então ajeitou os fones na
cabeça — É melhor você avisar agora mesmo, porque você vai precisar desligar o
celular.
Assim que Fitz ligou o avião e estava andando com ele pela pista, Kay ficou
nervoso e achou que iria vomitar. Até ele olhar para Fitz e ver o quanto ela parecia
O vôo foi mais rápido do que Kay esperava, e ele quase quis que ele pudesse
durar mais tempo, Fitz nunca pareceu tão feliz quanto agora, ela nunca pareceu tão…
8
“Fitz Force One” é uma piada em referência ao “Air Force One” e o “Eddie Force One”, o avião do
presidente dos Estados Unidos e o avião do Iron Maiden, respectivamente
171
ela mesma. Mas quando ele percebeu, Fitz já estava falando com a torre de controle do
aeroporto. Logo que Kay sentou no banco do motorista ele decidiu dar algumas
— Então… Eu esperava falar sobre isso com você durante as cinco horas de
viagem de carro e por isso eu vou ter que resumir — Kay começou — Minha mãe é
Kay ajudou Fitz com as malas e o casaco que ela usava, a casa toda cheirava a
— … Todo ano esse garoto volta sozinho… — Kay ouviu sua avó reclamando
— Oi vó. — Kay falou fazendo com que sua avó olhasse para ele e Fitz.
— Akemi — a avó de Kay sussurrou próximo da mãe dele — Kay trouxe uma
garota.
172
— Esta é Fitz minha… amiga — Kay fez uma pausa pensando em como
— Venha, querida — Akemi puxou Fitz pelo braço — Você parece com frio, está
A mãe de Kay parecia tão jovem e alegre, ela tinha traços asiáticos mais
marcantes que o dele, e um adorável cabelo rosa algodão-doce. Kay havia explicado
durante o curto trajeto do aeroporto até ali que ela era professora na escola primária.
a avó de Kay.
E se os traços asiáticos da mãe de Kay já eram mais evidentes que os dele, sua
avó, então, não havia nem perdido o sotaque forte de alguém que cresceu falando
japonês, embora já fizessem algumas décadas que ela estivesse na inglaterra. Seus
cabelos brancos estavam penteados para trás e sua pele, marcada pela idade, parecia
reluzir, ou talvez fossem seus olhos, que entregavam sua felicidade ao ver o neto.
— Como você chegou aqui tão rápido? — a avó de Kay usou um tom acusador
— Você mentiu para a sua mãe, Kaito? A uma hora atrás você disse que ainda estava
em Londres.
— Que avião o quê, menino? Nem tem aeroporto nesta cidade. — Ela
resmungou.
Fitz, que estava aquecendo as mãos na xícara de chá, riu lembrando da reação
de Kay quando ela sugeriu que eles fosse de avião. Kay apenas suspirou e revirou os
olhos.
173
Nesse momento duas crianças que pareciam ter por volta 8 anos entraram
— Fitz, este é meu irmão, Haruki — Ele apontou para um garoto com mais ou
menos uns 7 anos — E está é minha irmã, Akane — Ele apontou para a garota que já
— Olá — Fitz respondeu um pouco sem jeito — Eu não sei muito bem como
interagir com crianças, Kay, eu acho que não falo com uma criança desde… Bem, desde
— Vamos trabalhar nisso — Kay afirmou e então disse para seus irmãos irem
para a sala ligar o video game e esperar por ele. — Eu vou ali na sala com os meus
— Vou ficar por aqui, parece que logo vamos ter biscoitos quentinhos — Fitz
respondeu animada segurando a caneca de chá com as duas mãos como uma criança.
— Pode ir Kaito, nós vamos cuidar bem da sua namorada — A avó de Kay riu
— Anda Kaito, sai logo daqui e vai brincar com seus irmãos — Akemi falou —
Assim que Kay se afastou, Fitz sentiu seu celular vibrar com uma mensagem
dele.
***
174
A viagem de Natal com Kay foi muito mais legal do que Fitz esperava, e embora
a avó dele tivesse insistido várias vezes que eles deveriam dormir no quarto dela com
a grande cama de casal, a mãe de Kay, que sabia que eles não eram namorados, insistiu
***
Janeiro
ano novo com ela, e com tempo suficiente para ficar durante o resto do recesso de final
de ano da filha.
Na noite anterior à sua volta à base aérea, ele a levou para jantar.
prato — Quando é que você pretende me falar sobre o garoto no seu quarto?
Fitz explicou tudo desde o início, sobre a mudança de quartos e sobre como ela
— Acho que eu te devo um pedido de desculpas por isso — ele falou quando
fitz terminou a história — Sua mãe e eu devíamos ter pensado melhor no seu nome.
— Tem certeza, Fitz? — Ele a chamou, dando ênfase no apelido pelo qual todo
175
Durante o resto do jantar eles conversaram sobre a faculdade e os planos dela
para o próximo ano já que ele não podia falar muito sobre o próprio trabalho. Quando
acabaram, ele a levou de volta ao Campus. Precisaria sair bastante cedo no outro dia.
— Eu prometo que vou tentar voltar com mais frequência, princesa — Seu pai
falou antes dela sair do carro — E eu acho que você deveria dar uma chance para o
rapaz, já faz muito tempo desde a última vez e se ele não entender ou te aceitar do
jeitinho que você é… Lembre a ele que seu pai é do exército há quase 25 anos.
— Obrigada — Fitz riu — Mas acho que eu dou conta sozinha, meu pai me
Fitz desceu do carro e quando estava chegando na porta do prédio deu de cara
com Maya.
— Olá, eu estava indo para o seu quarto agora mesmo — Ela falou e então viu
que o pai de Fitz ainda estava com o carro parado, a esperando entrar no prédio.
— Boa Noite, Maya, já disse para me chamar de Tom — ele riu — E você prestou
Depois que ele viu que Fitz estava segura com Maya ele saiu com o carro.
— Por que você estava indo para o quarto a esta hora? — Fitz perguntou assim
— Colette levou uma garota para o nosso quarto — Maya começou a explicar
— E eu acho que elas não são só amigas, não gosto de me sentir uma vela e não queria
atrapalhar.
***
176
— Kay, o rapaz da portaria pediu para eu entregar esse pacote para você — Fitz
falou quando entrou no quarto no final da tarde — Alguém chamado Lee Noriko lhe
— Minha avó — Kay falou pegando o pacote das mãos de Fitz — Meu
aniversário é só daqui a 4 dias, mas ela sempre tem medo que o presente não chegue
a tempo.
— Sua avó é muito fofa — Fitz respondeu enquanto tirava o casaco e as botas,
— Eu não acredito que ela fez isso — Kay falava enquanto tirava algumas
— É que… minha avó mandou um presente para você também. — Kay falou
envergonhado.
Kay entregou para ela um pacote transparente. Dentro dele havia um cachecol
— Fitz, eu… Me desculpa pela minha avó, ela é... Quando ela tinha minha idade
ela já era casada e já tinha um filho então… — Kay tentou explicar meio sem jeito.
— Tudo bem, Kay, o cachecol é adorável — Fitz o tirou do pacote para analisar
melhor — Mas você precisa contar a verdade para ela logo, quanto tempo mais vai
177
— Eu vou contar a verdade para ela, logo, prometo. — Ele respondeu assim que
parou de rir.
***
Fitz havia torcido o tornozelo enquanto corria naquela manhã, então ela
demorou mais que o planejado para voltar para o dormitório e foi bem difícil tomar
banho também. Ela sabia que não iria conseguir ir a aula daquele jeito, então colocou
um pijama e estava se preparando para mancar até a cama quando Kay entrou no
quarto.
— Fitz o que você faz aqui uma hora dessas? E de pijamas ainda — Kay tirou o
casaco e pendurou e então viu que Fitz estava mancando. — Fitz, o que houve?
Ele levantou levemente a calça do pijama de Fitz para ver melhor seu tornozelo,
que parecia bem ruim. Ele tentou mexer nele algumas vezes, mas Fitz sempre
reclamava, então ele andou até uma bolsa jogada no seu canto do quarto e voltou de
lá com um creme.
— Eu vou aplicar esse creme no local e então fazer uma massagem, talvez você
sinta um leve desconforto, mas eu prometo que já vai passar — Kay explicou como se
178
— Tá frio! — Fitz reclamou assim que o creme encostou na sua pele.
Quando ele começou a aplicar força no local, Fitz achou que iria morrer, mas
aos poucos a dor foi passando, sendo substituída pelo leve ardor ocasionado pelo
creme.
Kay parecia bastante concentrado no que fazia em sua perna e, ali, olhando para
ele, ela não conseguia evitar pensar no no quão adorável ele parecia e em como ela
— Você não estava no quarto quando eu acordei essa manhã — Fitz começou a
falar depois que se acostumou com a sensação da massagem. — Você estava aqui na
— Eu… — Kay ficou pensando se devia falar — Eu fui ver uma garota.
— Você sabe como é… — Ele começou a falar sem jeito — Ela me mandou
***
179
Era sexta-feira e Maya decidiu que iria passar um tempo no quarto de Fitz já
que fazia semanas que ela não fazia isso. Ela estava deitada na cama de Fitz enquanto
— … Ok, e o que você acha do Tyron do curso de química? — Ela sugeriu para
— Ele é bonitinho… Eu fiz algumas disciplinas com ele, ele é muito inteligente
respondeu.
— Porque você está pedindo a opinião da Fitz sobre caras? — Kay perguntou
para Maya.
— Porque é para ela. — Maya respondeu como se fosse óbvio. — Talvez o Liam
da medicina?
— Ele é um cavalheiro, eu poderia sair com ele — Fitz girou na cadeira e encarou
Maya.
— Isso não faz sentido, você não reclamou ou criticou nenhum dos caras que
Maya citou, e já fazem horas que ela tá aqui. — Kay falou para Fitz.
— É por isso que o meu trabalho é tão importante — Maya explicou — Fitz não
tem muitos filtros, ela sai com qualquer rapaz que chama ela para sair.
180
Kay não conseguiu disfarçar uma cara surpresa e Maya atirou um travesseiro
na cabeça dele.
— Não desse jeito, seu pervertido. — Maya exclamou — Fitz é uma garota
— Quando você diz que sai com qualquer rapaz que a convidar — Kay começou
— Isso me inclui?
— Claro que não, seu fracassado — Maya atirou outro travesseiro na direção de
— Quem é você para falar alguma coisa sobre isso — Kay rebateu, também se
levantando para encarar Maya. Depois, apontou para o cabelo dela — Parece que você
Kay pegou o seu celular e começou a digitar e então olhou sério para Maya.
181
— É sexta-feira, eu tenho várias coisas para organizar ainda porque parece que
eu tenho um encontro essa noite, será que você pode sair? — Kay explicou
calmamente.
quarto.
da porta — Eu vou descer para pegar algumas coisas e você pode ficar aqui e trocar de
Quando Kay voltou Fitz ainda não havia decidido que roupa colocar porque ela
não fazia ideia de para onde eles iriam, e ele a encontrou encarando o armário com
cima da escrivaninha.
— Eu não sei que roupa colocar porque eu não sei o que nós vamos fazer — Fitz
respondeu frustrada.
— Mas eu disse que a sua roupa era perfeita. — Kay riu largando uma caixa de
pizza em cima da sua cama. — Tudo o que eu planejei para essa noite foi pizza, vários
Fitz se sentou ao lado de Kay na cama dele, enquanto eles comiam a pizza e
decidiam o que iriam assistir. Assim que eles escolheram uma série para assistir, Kay
se levantou para guardar a pizza e pegar os doces que ele havia deixado em cima da
escrivaninha. Ela estava deitada na cama de Kay no canto próximo a parede mexendo
nas configurações de áudio e legendas da série que eles iriam assistir quando ele voltou
— Ei, Fitz — Kay chamou antes que ela pudesse apertar o play e ela olhou na
direção dele.
— Você me pareceu o tipo de garota que fica nervosa com primeiros beijos em
um encontro — Kay explicou e então apertou o play — Agora não precisa mais se
Fitz riu.
Aquele definitivamente foi um dos melhores encontros da vida dos dois, eles
— Kay, eu preciso ir dormir, já está bem tarde — Fitz falou assim que acabou
episódio.
— Eu vou passar por cima de você então — Ela falou fechando o computador e
Quando ela estava totalmente em cima dele, Kay a segurou pela cintura por um
momento, os rostos deles tão próximos, seus hálitos cheirando a bala de framboesa. E
— Ok, eu realmente preciso ir dormir agora — Ela falou saindo de cima dele e
andando até a cama dela. — E você também, você acorda cedo aos sábados para fazer
sabe-se lá o que.
estava deitada na sua cama pronta para dormir. — Por que você precisa ser sempre
***
No sábado a tarde, quando Kay voltou do treino das crianças ele encontrou Fitz
— Sério, Fitz? Até os seus jogos de video game são sobre aviões? — Ele fala
184
— Garota estranha — Kay beija a cabeça de Fitz e começa a andar na direção do
banheiro para tomar banho — Então... o que você acha da gente sair para jantar da
— Não tem uma próxima vez, Kay — Fitz suspirou e girou na cadeira para olhar
na direção dele — Eu normalmente não saio mais de uma vez com o mesmo garoto.
— Não foi isso que eu quis dizer — Fitz interrompe em um tom frustrado. —
Eu gosto de você.
— Não, Kay, o encontro foi ótimo, o problema não é você… é complicado pra
mim — Fitz para, procurando nas paredes do quarto palavras que a ajudassem a
explicar como se sente e detestando ter que fazer isso mais uma vez, principalmente
— Você não me avisou que havia essa condição. — Ele reclamou em um tom
chateado.
— Então, se você soubesse disso antes… ainda assim teria me convidado para
sair? — Fitz baixou a cabeça, tão chateada quanto Kay e girou a cadeira de frente para
— Teria sim, mas teria feito melhor — Ele respondeu baixo e fechou a porta do
banheiro.
***
Fevereiro
Era sexta feira a noite e, como vinha acontecendo todos os finais de semana
desde que Fitz havia dito que não queria sair com o Kay de novo, ele havia saído com
185
Dylan, seu melhor amigo, para passar o tempo, jogar, beber… não ter que ficar
Mas aquela sexta feira a noite em especial estava com um gosto muito mais
amargo, era dia dos namorados e Kay não estava com vontade alguma de saber se Fitz
iria sair com alguém. Kay sempre foi o tipo de cara que as garotas se interessavam, e
ele sempre tentou ao máximo agradar elas, fazer com que ele fosse notado, sempre
tentando impressionar ou fazer elas rirem. Fitz foi a primeira garota que fez ele se
sentir como se realmente se importasse, a primeira garota que ele queria de fato que
gostasse dele. Mas ela foi, também, a primeira garota a não fazer isso.
Então naquela sexta feira, dia dos namorados, Kay estava em um bar, bebendo
com o seu melhor amigo e tentando ficar invisível. Esse porém não era o plano de
Dylan que estava lá justamente para conseguir alguém, o que não demorou muito para
acontecer. Quando Kay percebeu que estava apenas atrapalhando, foi embora.
***
Ela odiava tudo o que ele representava, e evitava qualquer aproximação do sexo
masculino nessa época, ela só queria ficar sozinha em seu quarto, bebendo e talvez
assistindo alguma comédia romântica boba para fingir que ainda acreditava no amor.
nem havia voltado para o quarto desde que as aulas daquele dia terminaram, então
Fitz havia suposto que ele também tinha arrumado alguém para passar a noite.
186
Então Fitz estava lá com sua meia garrafa de vinho tentando escolher algo para
— Achei que você teria saído com alguém hoje — Kay falou com um certo
ressentimento na voz.
— Não costumo sair no dia dos namorados, não gosto muito da vibe — Fitz
respondeu desviando os olhos do computador. — E você? Não tem planos para hoje?
— Não, também não estou no clima. — Ele resmungou indo deitar na cama
dele.
— Você quer um pouco de vinho? Álcool às vezes ajuda a lidar com essas coisa.
— Claro.
— Eu ainda não comecei o filme, quer assistir junto — Ela perguntou depois de
— Achei que você não saísse mais de uma vez com o mesmo garoto — Kay
debochou.
educação.
— Obrigado, mas acho que não tô no clima para comédias românticas. — Ele
garrafa Kay se levantou de sua cama para pegar o carregador do telefone que havia
— Arrumou alguém para passar a noite com você? — Fitz falou com um certo
meu carregador.
Fitz ficou um pouco envergonhada pela maneira como havia falado com Kay,
não era da conta dela se ele tivesse outra pessoa ou não. Achou que o vinho já estava
— Você sabe que provavelmente não precisaríamos passar o dia dos namorados
nesse clima se você simplesmente aceitasse sair comigo mais uma vez — Kay atacou
— Por que você continua achando que tudo gira em torno de você? — Fitz
pausou o filme e se levantou para encarar Kay. — Eu tenho meus próprios motivos
— Imagino, devem ser ótimos motivos mesmo — Kay revirou os olhos e riu.
Fitz já estava irritada com aquela discussão boba, e talvez ela quisesse culpar o
— Eu sou assexual, Kay — Fitz explodiu — É por isso que eu não saio mais de
uma vez com a mesma pessoa, sair mais vezes implica que em algum momento ele vai
Kay não estava esperando aquela reação de Fitz, e tudo o que ele conseguiu
— Feliz agora que você sabe? — Fitz continuou com um tom de raiva, mas agora
segurando o choro. — Agora que você sabe que não é você, e que o problema sou eu…
188
— Por Deus, Fitz eu… — Kay se aproximou dela para abraçá-la mas ela se
afastou.
— Ah, Fitz… — Kay a abraçou e beijou o topo da sua cabeça. E, sem saber o que
boca.
— Eu… Eu odeio que tenham feito você se sentir assim — Ele começou a falar
e então segurou o rosto de Fitz com as duas mãos para que ela o olhasse — Odeio
quem quer que tenha sido o idiota que fez você acreditar nisso.
dela a isso, mas ela simplesmente fechou os olhos e deixou que ele a beijasse.
— Vem, deita aqui comigo — Kay sussurrou assim que terminou o beijo. Ele
segurou na mão de Fitz e a puxou em direção a sua cama. — Nós não precisamos
— Nós não vamos fazer nada, eu só quero a sua companhia — Ele explicou e
Fitz pôde perceber a sinceridade na voz dele, ou talvez fosse o álcool falando por ele
189
Fitz concordou com a cabeça e acompanhou Kay até a cama dele. Ela se deitou
do lado da parede igual no dia em que eles saíram pela primeira vez, mas dessa vez
***
parecia que ia explodir. Kay se mexeu ao lado dela na cama resmungando alguma
coisa. Ela olhou na direção dele e percebeu que havia dormido na cama dele.
Então se lembrou de tudo o que havia acontecido na noite anterior e sentiu suas
bochechas corarem.
— Kay, você precisa levantar — Fitz mexeu nele — As crianças vão ficar
Ainda de olhos fechados, ele murmurou algo que Fitz não conseguiu entender
shampoo de Fitz, então ele ficou parado ali, respirando profundamente o cheiro do
cabelo dela — Quer ir comigo? Acho que a gente tem algumas coisas para conversar,
Alguns minutos depois os dois já estavam prontos, Kay estava parado próximo
cabelo.
190
— Quando a gente chegar atrasado eu vou colocar toda a culpa em você. — Kay
Eles passaram o trajeto todo em silêncio, nenhum dos dois sabia muito bem
Assim que eles chegaram na escola várias crianças acompanhadas dos pais
aguardavam Kay animadas. Ele levou todas elas para a quadra e disse que Fitz poderia
— Aqui, você devia beber bastante água hoje — Ele mexeu em uma caixa de
isopor do lado do banco onde Fitz estava sentada e entregou uma garrafa para ela.
Quando ele correu de volta para o meio do campo para dar as primeiras
instruções para as crianças, uma menina, que devia ter uns 11 anos, se aproximou de
Kay.
— Ela não… — Kay começou a falar por força do hábito mas então parou e
olhou na direção de Fitz que sorriu e acenou para ele mesmo sem saber sobre o que ele
conversava com a menina — Pois é, eu também acho muito legal o cabelo dela.
Kay começou um pouco relutante, sem saber muito bem como abordar o assunto sem
soar rude. — Eu sei que é um pouco diferente e pessoal para cada um…
191
— Sim — Fitz concordou.
Fitz não conseguiu conter um sorriso, aquela talvez tenha sido a coisa mais fofa
— Eu nunca senti atração sexual — Fitz começou — Eu não faço a mínima ideia
de como isso deveria funcionar, ou como funciona para pessoas que não são assexuais.
— Eu realmente gostaria de entender como isso funciona para você — Kay falou
e então se aproximou seu rosto um pouco do pescoço dela — Porque, para mim, da
mesma forma que eu quero te beijar enquanto a gente fica assistindo Netflix e contar
para todo mundo que você é minha garota, eu quero poder tocar você, poder…
Fitz, que estava muito vermelha com a declaração de Kay, soltou uma risada
— Não, não é isso Fitz, eu… Me desculpa — Kay começou a falar sem jeito —
Kay estava certo de que havia estragado tudo com Fitz, que ele deve ter soado
só como mais um desses idiotas que vai largar ela porque eles não vão transar.
192
— Sabe… — Fitz começou um pouco pensativa — Para mim… eu sinto como
se todos os garotos fossem bolinhos, alguns são bolinhos mais bonitos que os outros
mas…
— Mas você adora bolinhos — Kay a interrompeu rindo e ela deu um tapa no
braço dele.
— É uma metáfora, Kay, me deixa terminar — Fitz riu — Mas sim, eu adoro
não tenho fome — Fitz concluiu — Eu não quero comer nenhum bolinho, talvez só
— Acho que estou começando a entender — Kay riu, mas antes que eles
pudessem concluir o assunto uma das crianças caiu e se machucou e ele foi lá ajudá-
la.
Quando ele voltou eles não falaram mais sobre isso. Mas o desconforto havia
sumido.
***
beijo roubado às vezes, algumas noite assistindo Netflix, eles até dormiram juntos mais
algumas vezes.
Mas eles nunca haviam de fato conversado sobre o relacionamento deles, até
193
— E como estão as coisas com o garoto no seu quarto, Kyle? — o pai de Fitz
perguntou e isso chamou atenção de Kay que estava sentado na sua cama lendo um
— Ah, a gente meio que … — Fitz parou a frase no meio porque ela não sabia
muito bem como explicar para o pai, então olhou para Kay que sorriu e acenou com a
Kay deu um dos sorrisos mais lindos que ela já havia visto na vida e concordou
— É... A gente tá namorando — Fitz sorriu e voltou a olhar para o seu pai na
tela do computador.
O pai de Fitz ficou muito feliz em saber disso, ele sempre quis que Fitz pudesse
ser feliz e aceita do jeitinho que ela é. Mas ele sabia que Kay estava ouvindo.
— Bem, então parece que eu vou ter que falar com esse garoto da próxima vez
que eu estiver em Londres — Ele falou em um tom sério, mas Fitz, que havia visto ele
Kay se levantou rápido da cama e parou atrás de Fitz para falar com o pai dela
também.
— Ah, é… Claro, Sr. Fitzpatrick — Kay começou todo sem jeito. Fitz segurava
completamente apavorado.
194
E então Fitz e o pai explodiram em gargalhadas.
— Você tinha que ver a sua cara — Fitz falou olhando para Kay, ainda rindo,
— Você pode me chamar de Tom, garoto — o pai de Fitz falou assim que parou
de rir.
— Certo… Tom.— Ele respondeu o pai de Fitz e então olhou para ela — Eu acho
que preciso beber alguma coisa, quando você terminar aí eu vou estar esperando na
cafeteria.
Depois de terminar de falar com o pai, Fitz correu até a cafeteria para encontrar
Kay que estava sentado na sua mesa com uma xícara de chá. Fitz acenou para Steven
— Sem bolo hoje? — Kay perguntou assim que ela se sentou na frente dele.
— Maya sabe sobre a gente? — Kay perguntou depois que o chá de Fitz chegou.
— Não exatamente — Fitz falou pensativa — Eu acho que ela desconfia, mas
— Maya odeia qualquer garoto que ela achar que pode me machucar. — Fitz
195
Eles voltaram para o dormitório de mão dadas enquanto conversavam sobre
coisas aleatórias. Assim que Kay destrancou a porta do quarto Fitz passou os braços
Depois que eles passam pela porta, Fitz a fechou e trancou. Ela tirou o casaco e
se aproximou de Kay mais uma vez o puxando pela camiseta para colar seus lábios.
Mas esse beijo era diferente, ele era mais agressivo, mais intenso.
respirar um pouco.
Fitz sorriu e mordeu o lábio inferior de Kay, que soltou um gemido contido.
— Fitz… — Kay começou a falar enquanto ela descia a boca pelo seu pescoço,
ele respirou fundo mais uma vez antes de falar — Talvez eu precise de um tempo
— Fitz, a gente não precisa… Você não precisa... — Kay tentou argumentar.
Mas Fitz o beijou mais uma vez impedindo que ele continuasse falando e o
— Não é porque eu não sinto fome que eu não possa comer um bolinho muito
bonito às vezes — Ela falou enquanto puxava a camiseta de Kay para cima.
Ele riu e a ajudou a tirar a própria blusa. Fitz para por um momento, estendendo
a mão direita e envolvendo a bochecha de Kay, de forma com que ele tivesse que
encará-la.
196
— Eu também amo você — Kay respondeu depositando um beijo calmo na testa
dela e então começou a distribuir beijos por seu rosto e pescoço em direção a barriga.
— Você tem certeza, Fitz? A gente realmente não precisa… Se você não quiser…
— Está tudo bem, Kay, eu quero fazer isso. — Ela sorriu. — Com você.
FIM
197
Agradecimentos
Fico feliz que você tenha chegado até aqui, espero que tenha aproveitado a
Existem inúmeras pessoas que devem ser reconhecidas por esse trabalho, mas
eu vou começar pelo grupo de pessoas onde essa ideia surgiu, as pessoas do grupo
cACEtinho (eu sei, é um ótimo trocadilho para um grupo de assexuais do RS, obrigada
Gunz). Vou chamar todo mundo aqui pelo apelido ou pelo nome como eu chamo vocês
na minha cabeça: Daniel, Flavs, Gunz, Laís, Pawllo, Calebe, Heron e Nick. Me
desculpem se eu esqueci de alguém, mas acho que essas eram as pessoas mais ativas
no grupo na época que essa ideia surgiu, mas se você faz parte do cACEtinho, sinta-se
agradecido.
Guto que teve que me aguentar incomodando ele por meses com isso e ainda serviu
de leitor beta! Se esse livro hoje está chegando até você é graças aos esforços do Guto
exatamento tom que eu queria dar pra essa antologia e espero que você me perdoe por
“antologia” vem do grego e significa “coleção de flores” achei que seria de bom tom
usar uma árvore na capa. Então, obrigada Ruan e Aruna por tornar real a capa e dar
uma identidade para esta antologia, ficou muito melhor que qualquer coisa que eu
pudesse imaginar.
Meu muito obrigada, por todo o trabalho de revisão e organização desse e-book,
ao Cley e a Evys, obrigada por não desistirem de mim, amo vocês. Vale ressaltar que,
embora não sejam assexuais, Evy e Cley são a melhor equipe de revisão/edição que eu
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conheço e fizeram toda a revisão desse livro em pouquíssimos dias, então, por favor,
E Tayne, obrigada por ter voltado a falar comigo, e ter servido como uma ponte
de comunicação entre mim e a Bruna Viana, o trabalho dela com diversidade é incrível
e espero que esse livro possa ajudar ela tanto quando o prefácio dela ajudou ao
outra Bruna que deve ser agradecida. Bruna Alves, esta mulher importante na política
LGBT+ do país; eu sei que sempre recuso os teus convites de ser uma voz assexual na
política, mas é porque política realmente não é a minha área, espero que esse livro te
esse livro em poucos dias: Guto, Led, Maximus e Clara, vocês ajudaram um monte no
trabalho da revisão.
Como este livro nasceu e cresceu no twitter eu vou listar aqui vários dos @'s
E se você se identificou com algo como o que foi descrito nessas estórias, ou só
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(como CakeLovers, Aroaceiros ou AbraACE), converse com outros assexuais e, se você
Com amor,
Zab (@heyisinha)
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