Você está na página 1de 1525

24/06/2021 As técnicas do corpo | Enciclopédia de Antropologia

ENCICLOPÉDIA DE ANTROPOLOGIA
OBRA

As técnicas do corpo
Em As técnicas do corpo (1934), comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia, o antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950)
trata de um domínio até então nublado pela noção tradicional de tecnologia, entendida como instrumento envolvido no ato de
manipulação. Às técnicas dos instrumentos, Mauss opõe um conjunto de técnicas do corpo, ao qual confere um papel preliminar: o
corpo é o primeiro instrumento do homem, e ainda, o primeiro objeto e meio técnico do homem. Atribuindo à noção de técnica o que
chama de ato tradicional eficaz, Mauss afirma não existir técnica nem transmissão se não houver tradição. Técnicas do corpo referem-se
então aos modos pelos quais as pessoas sabem servir-se de seus corpos de maneira tradicional, o que varia de uma sociedade a outra.

Ao analista, segundo ele, caberia partir do estudo e descrição detalhada das técnicas do corpo em diferentes contextos, de modo a
alcançar o conceito abstrato e constituir uma teoria da técnica do corpo. De modo a localizar o caráter específico de cada técnica
corporal, ele parte da observação das mudanças presenciadas por sua geração, por exemplo, nas técnicas de nado, e nos seus modos de
ensino e aprendizagem: enquanto em um momento aprendia-se, primeiro, a nadar e depois a mergulhar, posteriormente ensina-se,
antes, a mergulhar e a familiarizar-se com a água para, depois disso, nadar. Este e outros exemplos amparam a afirmação feita pelo
autor de que cada sociedade possui hábitos próprios, que são de natureza social, variando não apenas de um indivíduo a outro, mas com
as formas de educação e convenções sociais. Neste sentido Mauss prefere o termo habitus (em latim) a hábito, pois ele expressaria
melhor a “exis” [hexis], denotando o que é adquirido e sublinhando não existir maneira natural nos atos corporais de um adulto. Ao
afirmar a predominância da educação sobre os atos corporais, o autor defende que para analisar tais atos é preciso levar em conta os
pontos de vista biológicos, sociológicos e psicológicos, de modo a realizar o estudo do que chama de “homem total”.

Mauss sugere quatro princípios para classificar o conjunto das técnicas do corpo: a divisão das técnicas entre os sexos; sua variação de
acordo com as idades; também em relação aos rendimentos e ordem de eficácia; e ainda em termos de sua transmissão, levando em
consideração as tradições que os impõem. Outra forma de classificação sugerida é a enumeração das técnicas em função do
acompanhamento do trajeto de um indivíduo no decorrer da sua vida, observando por exemplo: (1) técnicas do nascimento e da
obstetrícia: formas de parto e reconhecimento da criança; (2) técnicas da infância: modos de carregar o bebê, de mamar e desmamar;
https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo 1/2
24/06/2021
p ç ;As( técnicas
) do corpo | Enciclopédia de Antropologia
g , ;

(3) técnicas da adolescência: contextos de iniciação dos jovens; (4) técnicas da idade adulta: modos de dormir e de repouso; técnicas de
atividade e movimento: dança, corrida, salto, escalada, descida, nado; técnicas de cuidados do corpo: esfregar, lavar, ensaboar; técnicas
de consumo: modos de comer e beber; técnicas da reprodução: posições sexuais; e técnicas de medicação.

Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em sua Introdução à obra de Marcel Mauss (1950), aponta o caráter programático da análise de
maussiana sobre as técnicas do corpo, que reverbera em toda a antropologia posterior. Ao contrário do que sugeriam certas concepções
racistas que viam no homem o produto do seu corpo, o inventário e a descrição das técnicas corporais propostos por Mauss, destaca
Lévi-Strauss, demonstram que o homem, sempre e em toda parte, soube fazer de seu corpo o resultado de suas técnicas e de suas
representações. Destacando fenômenos que colocam em relação aspectos fisiológicos e sociais, e mostrando o rendimento teórico de
uma análise que sublinha as relações entre os indivíduos e os grupos sociais, Mauss aproxima ainda a etnologia da psicanálise,
estendendo a influência de suas teses para outras disciplinas. Por fazer do corpo um objeto de reflexão da análise social e cultural, o
ensaio tornou-se uma referência incontornável para os debates posteriores sobre o tema, nos mais diversos domínios.

Como citar este verbete:


HAIBARA, Alice & SANTOS, Valéria Oliveira. 2016. "As técnicas do corpo". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade

T
de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/técnicas-do-corpo>

DATA DE PUBLICAÇÃO
02/05/2016

AUTORIA
Alice Haibara e Valéria Oliveira Santos

PALAVRAS-CHAVE
antropologia francesa, ciências sociais francesas, comparação, corpo, tecnologia.

BIBLIOGRAFIA
LÉVI-STRAUSS, Claude, “Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss” In: Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, Les Presses
universitaires de France, Quatrième édition, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003)

MAUSS, Marcel, “Les techniques du corps”, Journal de Psychologie, XXXII, ne, 3-4, 15 mars - 15 avril 1936. (Trad. Bras. Paulo Neves.
São Paulo, Cosac Naify, 2003)

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social | Departamento de Antropologia | FFLCH - USP


Avenida Professor Luciano Gualberto, 315, sala 1062 | Cidade Universitária | São Paulo - SP | CEP: 05508-010 | Caixa-postal: 72042
Telefones: +55 11 3091.2347 | + 55 11 3091.3755 (Contato durante a pandemia da COVID-19 somente por e-mail)
E-mail: encicloantropo@usp.br​​
Facebook: @eafflch | Twitter: @EA_Antropo​​
ISSN: 2676-038X (online)

https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo 2/2
DISCURSOS DO RACISMO
EM PORTUGAL:

ESSENCIALISMO E INFERIORIZAÇÃO
NAS TROCAS COLOQUIAIS SOBRE
CATEGORIAS MINORITÁRIAS

EDITE ROSÁRIO
TIAGO SANTOS
SÍLVIA LIMA
Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação

ROSÁRIO, Edite, e outros


Discursos do racismo em Portugal: essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais
sobre categorias minoritárias/Edite Rosário, Tiago Santos, Sílvia Lima. - (Estudos OI; 44)
ISBN 978-989-685-009-8
I – SANTOS, Tiago, 1973-
II – LIMA, Sílvia
CDU 316
314

PROMOTOR
OBSERVATÓRIO DA IMIGRAÇÃO
www.oi.acidi.gov.p t

COORDEN ADOR OI
ROBERTO CARNEIRO

AUTORES
EDITE ROSÁRIO
TIAGO SANTOS
SÍLVIA LIMA

EDIÇÃO
ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAÇÃO
E DIÁLOGO INTERCULTURAL (ACIDI, I.P.)
RUA ÁLVARO COUTINHO, 14, 1150-025 LIS BOA
TELEFONE: (00351) 21 810 61 00 FAX: (00351) 21 810 61 17
E-MAIL: acidi@acidi.gov.p t

EXECUÇÃO GRÁFICA
PROS - PROMOÇÕES E SERVIÇOS PUBLICITÁRIOS, LDA.

PRIMEIRA EDIÇÃO
750 EXEMPLARES

ISBN
978-989-685-009-8

DEPÓSITO LEG AL
324065/11

LISBOA, MARÇO 2011

(2) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
ÍNDICE GERAL
NOTA DE ABERTURA 7
NOTA DO COORDENADOR 9

DISCURSOS DO RACISMO EM PORTUGAL:


ESSENCIALISMO E INFERIORIZAÇÃO NAS TROCAS COLOQUIAIS
SOBRE CATEGORIAS MINORITÁRIAS
AGRADECIMENTOS 17

INTRODUÇÃO 19

CAP.1. BREVE HISTÓRIA DO RACISMO NO OCIDENTE 25


1. DE PRÁTICA ATÁVICA A CONCEITO ILUMINISTA 25
2. O PENSAMENTO ILUMINISTA 26
3. O RACISMO CIENTÍFICO 27
4. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, MUDANÇAS NO QUADRO DA TERMINOLOGIA “RÁCICA” 30
5. NOVOS RACISMOS 32

CAP.2. DELIMITAÇÃO DO CONCEITO/OPÇÕES DO ESTUDO 35

CAP.3. CONTEXTO NACIONAL 39


1. IMPERIALISMO, ESTADO NOVO E LUSO-TROPICALISMO 39
2. HISTORIAL MIGRATÓRIO 52
3. OS CIGANOS 56
4. DISCURSOS EM TORNO DAS MINORIAS 63

CAP.4. ENQUADRAMENTO POLÍTICO-LEGAL 70


1. LEGISLAÇÃO ANTI-RACISTA 70
2. APLICAÇÃO DAS NORMAS ANTI-RACISTAS: DENÚNCIAS E SANÇÕES 80

CAP.5. ESTADO DA ARTE 92

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (3)
CAP.6. METODOLOGIA 95
1. AMOSTRA E RECRUTAMENTO 95
2. SALA E EQUIPAMENTO 101
3. GUIÃO E MODERAÇÃO 102
4. ANÁLISE DE DISCURSO 108

CAP.7. ANÁLISE GRUPO A GRUPO 109


1. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTRATO SOCIAL MÉDIO-ALTO 109
1.1. Identificação das categorias percebidas como outros 109
1.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas 109
1.3. Representações sobre integração 113
1.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias 115
1.5. Aspetos positivos e negativos da imigração 122
1.6. Portugal, país de brandos costumes 127
1.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação 127
1.8. Conclusões gerais 132

2. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES JOVENS DE ESTATUTO SOCIAL MÉDIO-MÉDIO 132


2.1. Identificação das categorias percebidas como outros 132
2.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas 133
2.3. Representações sobre integração 137
2.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias 139
2.5. Aspetos positivos e negativos da imigração 144
2.6. Portugal, país de brandos costumes 146
2.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação 147
2.8. Conclusões gerais 157

3. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTRATO SOCIAL MÉDIO-MÉDIO 158


3.1. Identificação de grupos percebidos como outros 158
3.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas 159

(4) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.3. Representações sobre integração 162
3.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias 163
3.5. Aspetos positivos e negativos da imigração 170
3.6. Portugal, país de brandos costumes 171
3.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação 171
3.8. Conclusões gerais 176

4. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTATUTO SOCIAL MÉDIO-BAIXO 176


4.1. Identificação das categorias percebidas como outros 176
4.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas 177
4.3. Representações sobre integração 181
4.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias 183
4.5. Aspetos positivos e negativos da imigração 189
4.6. Portugal, país de brandos costumes 191
4.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação 192
4.8. Conclusões gerais 194

CAP.8. ANÁLISE COMPARATIVA 196


1. CONCLUSÕES GERAIS 196
2. QUADROS SÍNTESE 200
2.1. Comparação de grupos 200
2.2. Racionalização dos discursos produzidos 201

RECOMENDAÇÕES PARA POLÍTICA PÚBLICA 205

BIBLIOGRAFIA E FONTES 208

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (5)
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Denúncias à CICDR 84

Tabela 2. Crimes de discriminação (totais UAVIDRE) 88

Tabela 3. Crimes de discriminação racial apurados pela APAV (totais nacionais) 89

Tabela 4. Atributos dos participantes de estatuto social médio-alto 98

Tabela 5. Atributos dos participantes jovens de estatuto social médio-médio 99

Tabela 6. Atributos dos participantes de estatuto social médio-médio 100

Tabela 7. Atributos dos participantes de estatuto social médio-baixo 101

(6) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
NOTA DE ABERTURA
O preconceito está no olhar

O ACIDI tem por missão a integração dos imigrantes e das minorias étnicas, bem como a promo-
ção da diversidade cultural e do combate à discriminação racial e religiosa em Portugal.

É nesse contexto que o ACIDI tem entre as suas múltiplas atribuições a presidência da Comissão
para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), e o respetivo acompanhamento jurídico
das queixas que esta comissão acolhe (mais em www.cicdr.pt). Em 2010 foram 89 as queixas
recebidas por esta Comissão.

Entre 2008 e 2010, o ACIDI participou no projeto europeu Living Together – European Citizenship
Against Racism and Xenophobia,1 juntamente com outros cinco Estados-Membros e um consórcio
de 13 instituições, que teve como principal objetivo monitorizar o discurso das sociedades euro-
peias em torno da tolerância e da discriminação. Da identificação de alguns “ideais tipo” de dis-
cursos do racismo, o projeto teve como ambição – muito à filosofia do Observatório da Imigração
de desconstruir mitos com factos científicos de forma a “conhecer mais para agir melhor” – a
definição de um corolário de argumentos baseados em factos que pudessem contrariar alguns dos
mitos e estereótipos que estão subjacentes a muitos dos discursos identificados um pouco por
todas as sociedades europeias e que conduzem, em alguns casos, a práticas de discriminação.

Na sequência deste projeto europeu, coordenado em Portugal pelo ACIDI, desafiámos os autores
deste livro a identificarem e analisarem alguns dos discursos do racismo em Portugal, com o
intuito de ter uma ferramenta importante de trabalho para as ações da CICDR.

Em rigor, nenhum país pode afirmar que está imune ao racismo e Portugal não é exceção. Se
bem que este é sempre um problema de escala e, nesse senti-
1 Projeto co-financiado pelo programa de
do, não seremos dos países mais preocupantes face aos ventos ação Fundamental Rights and citizenship,
na prioridade do combate ao racismo e à
xenofobia (mais em http://livingtogether.
oberaxe.es).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (7)
que vamos sentindo nalguns países europeus. Estes fenómenos vão sendo agravados pela crise
internacional, o desemprego, os riscos de deflação e a correspondente tentação do protecionismo
económico em prejuízo dos trabalhadores migrantes.

Olhar os outros sem ver as pessoas e a sua inalienável dignidade humana, mas as imagens e
estereótipos que gravamos na nossa mente fruto de mitos e preconceitos, acumulados muitas
vezes por anos de ignorância, constitui a principal causa da discriminação.

Todo o caminho que percorrermos para a educação para a interculturalidade é igualmente um


caminho de construção de uma sociedade mais plural e coesa.

O conhecimento é por isso fundamental no combate ao preconceito e, por essa via, no combate
à discriminação.

É por isso que agradeço aos autores deste livro, Edite Rosário, Tiago Santos e Sílvia Lima, o co-
nhecimento que nos proporcionam, mostrando que embora de uma forma mais subtil, o racismo
existe em Portugal.

Termino por citar o universal Fernando Pessoa quando escrevia não ser do tamanho da sua altura
mas do tamanho daquilo que via. Saibamos, pois, educar o nosso olhar e libertá-lo da escravidão
que impede a verdadeira interculturalidade.

Acima de tudo, não podemos esquecer a máxima de Karl Popper: Nunca sabemos o suficiente
para sermos intolerantes.

ROSÁRIO FARMHOUSE
ALTA CO M I S S Á R I A PA R A A I M IGRAÇÃO E DIÁLOGO INTERCULTURAL E
PR E S I D E N T E DA CO M I S S ÃO PARA A IGUALDADE E CONTRA A DISCRIMIN AÇÃO RACIAL

(8) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
NOTA DO COORDENADOR

No presente volume da coleção Estudos do Observatório da Imigração temos o especial gosto de


publicar a investigação “Discursos do Racismo em Portugal: Essencialismo e inferiorização nas
trocas coloquiais sobre categorias minoritárias”.

A publicação agora divulgada representa um facto singular no nosso país: trata-se de um estudo
científico sobre o racismo produzido por um centro de investigação, o qual conhece a luz do dia
através de um Observatório da Imigração (OI) que se preocupa igualmente com o diálogo inter-
-cultural, na justa e exata medida em que funciona no âmbito do ACIDI, Alto Comissariado para
a Imigração e Diálogo Intercultural. Lembramos ainda que esta investigação foi desenvolvida sob
os auspícios do OI/ACIDI e enquadrada num projeto europeu (Living Together: Citizenship against
Racism and Xenophobia, financiado pelo programa Direitos Fundamentais e Cidadania [referência
JLS/2007/FRC/036]).

Esta extensa e bem documentada análise foi levada a cabo por Edite Rosário, Tiago Santos e
Sílvia Lima, no quadro da Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas,
e visa responder com elevado valor acrescentado à relativa escassez de trabalhos que versem
especificamente sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitismo, a islamofobia e práticas conexas
em Portugal.

Com lúcida objetividade, o estudo denuncia o mito dos “brandos costumes” e a tese conexa de
uma proverbial facilidade de relacionamento dos portugueses com o “outro diferente”. Estamos,
assim, em presença de uma pesquisa corajosa que é produzida a contra-corrente do pensamento
“politicamente correto” que é alimentado por uma certa elite nacional.

Na verdade, o estudo evidencia que a evolução das crenças racistas em Portugal não é diferente
daquela que ocorre nos demais países da Europa Ocidental. Por analogia, na sociedade portugue-
sa a norma anti-racista não evita o alastramento do racismo subtil, uma espécie de icebergue do

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (9)
qual só se descortina uma pequena parcela sem se lobrigar a maior parte da extensa volumetria
que se encontra submersa.

A União Europeia encontra-se ferida de contradições insanáveis. Sendo lesta na crítica a terceiros
sempre que considera postos em causa direitos fundamentais no caso de países como o Irão ou
a Coreia do Norte, ela raramente consegue o consenso para se afirmar como um exemplo para o
mundo de integração inter-étnica ou de convivência com diferentes.

O recente e deplorável incidente da expulsão maciça de ciganos romenos, europeus, do seio de


outro país europeu, não é senão a expressão preocupante de um racismo em crescendo que recai
sobre o elo mais vulnerável das comunidades minoritárias. Ele apela aos sentimentos preconceitu-
osos de segmentos populacionais facilmente atraídos por discursos xenófobos, que demagógica e
habilmente exploram o período de crise económica aprofundada em que vivemos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 (ou seja, há apenas
62 anos), enuncia um vasto conjunto de direitos fundamentais da pessoa humana. É oportuno
lembrar algumas passagens dessa histórica Declaração que foi elaborada e aprovada no termo de
um vasto conflito mundial em cujas raízes grassavam o estereótipo e o patológico desejo de uma
“limpeza étnica”.

Artigo 1°
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão
e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de
religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento
ou de qualquer outra situação.

(10) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou in-
ternacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território
independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

Artigo 13°
1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior
de um Estado.
2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o
direito de regressar ao seu país.

Artigo 25°
1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família
a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento,
à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à
segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos
de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças,
nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.

Artigo 26°
1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a corres-
pondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino
técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar
aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direi-
tos humanos e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância
e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o
desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (11)
Num contexto de acentuada contradição e de perigosa deriva extremista, importa proceder, como é
o caso, ao diagnóstico sereno das condições históricas em que o racismo velado e subterrâneo vem
alastrando a sua venenosa infiltração junto das representações, atitudes e preferências do cidadão
comum. Dado ser um fenómeno global, os autores quiseram integrar o contexto português numa
abordagem de horizonte vasto da temática, descrevendo designadamente o cenário ocidental.

O estudo que agora se divulga recorre a metodologias qualitativas de trabalho de campo vul-
garmente denominadas “grupos de discussão” ou “grupos focais”. Embora esses métodos se
encontrem totalmente consagrados no entendimento das comunidades científicas não quiseram
os autores abster-se de as discutir com objetividade e rigor.

Os autores concluem com uma extensa análise comparativa dos resultados dos quatro grupos de
discussão. Nela se conclui que “os negros, brasileiros e ciganos são as categorias mais visadas
pelos discursos racistas”(p.200) sendo que “os brandos costumes do passado vão desaparecendo
sob o atrito da pressão migratória” (p.199) evidenciando-se a emergência de estereótipos já que
“a diferença é cada vez mais sentida como uma ameaça, tanto em termos de integridade física
(negros, ciganos, brasileiros) como de decência (mulheres brasileiras) ou valores fundamentais
(muçulmanos)” (p.200). Acresce que “em todos os estratos a imigração é consensualmente as-
sociada à violência e criminalidade”, que “a opinião em geral é a de que os ciganos são parasitas
da sociedade e nada fazem para não ser alvo de discriminação” (p. 198), tornando-se claro que “a
relação entre imigrantes e portugueses é percecionada nos estratos sociais inferiores como sendo
fundamentalmente uma competição por recursos escassos” (p.199).

A circunstanciada investigação de Edite Rosário, Tiago Santos e Sílvia Lima reveste-se de grande
oportunidade.

Agradecemos aos três autores, e à Númena, a lucidez colocada na sua conceção e a coragem tida
na perscrutação intensa a que procederam do pulsar profundo nacional em matéria tão sensível
e delicada.

(12) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Resta-nos esperar que esta obra tenha a leitura alargada que merece e que seja o detonador de
um debate aberto e rigoroso sobre a temática, debate imprescindível na medida em que, sem
a sua oportuna condução, dificilmente se exorcizarão os fantasmas racistas e xenófobos a que,
infelizmente, os portugueses não são imunes.

ROBERTO CARNEIRO
CO O R D E N A D O R D O O B S E R VATÓRIO DA IMIGRAÇÃO

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (13)
(14) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
DISCURSOS DO RACISMO EM PORTUGAL:
ESSENCIALISMO E INFERIORIZAÇÃO
NAS TROCAS COLOQUIAIS SOBRE CATEGORIAS
MINORITÁRIAS

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (15)
(16) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
AGRADECIMENTOS

Agradecemos, antes de mais, a todos os que na Númena de alguma forma contribuíram para
a realização deste estudo sem contudo dele virem a ser autores, a saber: Ana Isabel Guerreiro,
Ana Oliveira, Bruno Dias, Carmen Ponte, Inês Possante, Mónica Catarino, Mónica Frechaut, Nuno
Medeiros, Pedro Soares, Roopanjali Roy, Susana Varatojo e Verónica Metello.

A nossa gratidão visa ainda todos os peritos que sobre este estudo opinaram quando ele era ainda
um trabalho em curso, nomeadamente: Assunção Sousa (Apoio ao Estudante Africano), Catarina
Reis de Oliveira (ACIDI), Duarte Miranda Mendes (ACIDI), Gustavo Behr (Casa do Brasil), João
Filipe Marques (Universidade do Algarve), João Paiva (Comissão para a Igualdade de Género),
João Pereira (Comissão para a Igualdade de Género), João Silva (Olho Vivo), Jorge Vala (Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), José Falcão (SOS Racismo), Maria Helena Oliveira
(representante do Parlamento na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial),
Roberto Carneiro (Observatório da Imigração), Rosa Cabecinhas (Universidade do Minho), Rosário
Farmhouse (ACIDI), Teresa Tito Morais (Conselho Português para os Refugiados), Vanda Cruz
(UGT) e Vasco Malta (ACIDI).

A Beatriz Capaz (GfK) e a Joana Azevedo (CIES) não desperdiçaram a oportunidade de confirma-
rem amplamente a justeza da estima e apreço que lhes dedicamos, facultando-nos contactos e
informações particularmente úteis e pertinentes para o desenvolvimento deste estudo.

Agradecemos ao Gonçalo Moita a grande cortesia com que articulou connosco o arranque deste
projeto, que acompanhou na sua então condição de colaborador do ACIDI.

É também de notar o trabalho em prol do projeto desenvolvido por representantes de organizações


a que adquirimos serviços no contexto desta investigação. São elas: João Cunha (ISCTE), João
Meira (Intercampus) e Rita Sousa (Intercampus).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (17)
Tendo reservado o melhor para o fim, resta-nos ainda agradecer à Cristina Silva da Representação
em Portugal da Comissão Europeia o uso, a título gracioso e conseguido com curtíssimo aviso
prévio, de uma sala para a primeira reunião de um grupo de discussão e ao Hugo Alves e à Teresa
Garcia Marques, ambos do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, a generosidade profissional
de nos terem facultado, também a título gracioso, o usufruto do laboratório de Psicologia desta
instituição para a realização de grupos de discussão.

(18) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
INTRODUÇÃO

“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza,


temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”
Boaventura de Sousa Santos

Já não orgulhosamente sós, os portugueses assistiram no final do século XX e início do século


XXI a uma crescente integração do país em fluxos transnacionais de capitais, informação e pes-
soas através dos quais este se foi inserindo num contexto de globalização, do qual havia vivido
alheado durante o período final do Estado Novo. O fim deste alheamento foi fundamentalmente
ditado por dois eventos políticos: a revolução democratizante de 25 de abril de 1974 e a adesão à
então Comunidade Económica Europeia a 12 de junho de 1985. Uma das muitas consequências
destes acontecimentos foi a mudança do regime migratório português, sendo este, desde logo,
lançado em paroxismo pela descolonização e, ao correr do tempo, condicionado na sua evolução
pela combinação de desenvolvimento económico e facilitação de mobilidade para os cidadãos
comunitários.

Nestas condições, Portugal tornou-se simultaneamente país de emigração – fenómeno que terá
sofrido um eclipse mas de modo algum desaparecido enquanto tendência plurissecular (Peixoto,
2007: 452) – e de imigração, sobretudo de nacionais de países terceiros, ou seja, não pertencentes
à União Europeia. Um resultado líquido destes processos tem sido o aumento da diversidade da
população residente e da perceção dessa diversidade pela opinião pública, uma vez que até à dé-
cada de 80 do século XX, para além da presença dos ciganos e de uma comunidade cabo-verdiana
pouco expressiva, Portugal era um país etnicamente muito homogéneo (Marques, 2004: 79).

Ao tornar-se também um país de imigração – e de imigração percebida como tal, não de “ex-
-patriados” ou de “estrangeiros” que, em função da sua origem geográfica, diferença cultural,

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (19)
diferença fenotípica ou classe conseguem escapar a tal rótulo –, Portugal adquiriu o potencial
para ser palco de fenómenos racistas e xenófobos similares aos registados no conjunto dos países
industrializados. Aliás, vários desses países são – por uma ironia que não deixa de ser aprovei-
tada pelo movimento anti-racista – destinos tradicionais da emigração portuguesa, onde os seus
protagonistas por vezes enfrentam reações xenófobas. Tal foi o caso no recente episódio dos “em-
pregos britânicos para trabalhadores britânicos”, lema que figurava em cartazes empunhados por
trabalhadores petroquímicos britânicos no contexto de uma greve que em janeiro de 2009 servia
de protesto face à pressão para a baixa de salários resultante do recrutamento pelas refinarias de
cidadãos de outros países da União Europeia, nomeadamente italianos e portugueses.

Nesta nova conjuntura, em que Portugal se torna também país de imigração, o Estado sentiu a
necessidade de fazer evoluir tanto o aparato de controlo como o de integração de imigrantes, o
que veio a dar origem ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e ao Alto Comissariado para
a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) tal como os conhecemos hoje. Alinhando-se com o
paradigma comunitário de exercício tecnocrático do mandato público sobre o tema da imigração
(Boswell, 2008), ambas as organizações têm vindo a produzir conhecimento que capacita ou legi-
tima as respetivas atuações. O ACIDI procedeu em 2002 à criação do Observatório da Imigração
(OI), que pretende ser uma rede de colaboração entre centros de investigação sob cuja chancela
este instituto público empreende, entre outras atividades, a encomenda de estudos e respetiva
edição e a manutenção de um sítio de atualidade científica sobre as áreas que cabem no seu
portefólio. Por sua vez, o SEF, a par dos relatórios que anualmente sistematizam a informação
sobre imigração e asilo em Portugal, veio desde 2002 a desenvolver, em crescendo, a atividade no
contexto da Rede Europeia das Migrações, atividade essa que compreende não apenas a elabora-
ção de relatórios estatísticos, mas também a de relatórios sobre políticas e de estudos temáticos
sobre as áreas de imigração e asilo.

Ao mesmo tempo, começaram a surgir na academia estudos sobre o racismo na sociedade


portuguesa. Contudo, estes formam uma linha de investigação paralela ao que têm sido os es-
tudos promovidos pelos institutos públicos. Organismos como o ACIDI ou o SEF têm-se interes-

(20) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
sado, antes de mais, por questões de integração, de quantificação de impactos na sociedade de
acolhimento e de evolução da ordem jurídica. Veja-se a propósito o conjunto dos 43 estudos já
promovidos e editados pelo OI à data de redação deste texto, pois embora alguns destes incidam
em matérias conexas com o racismo e a xenofobia, como por exemplo, as representações –
aferidas quer através de fontes documentais, quer através de inquéritos (Cunha et al., 2004 e
2006; Cunha e Santos, 2008; Lages e Policarpo, 2003; Lages et al., 2006) –, o presente volume
constitui a primeira ocorrência de um estudo expressamente sobre o racismo produzido por um
centro de investigação a pedido de um instituto público. Esta relativa escassez de trabalhos que
versem especificamente sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitismo, a islamofobia e práticas
conexas, é provavelmente devida às condições que enformam os interesses públicos, políticos e
académicos e, eventualmente, resultado da fraca visibilidade que as manifestações racistas têm
tido na sociedade portuguesa. Embora durante a década de 1990 alguns episódios de índole
racista – o mais emblemático dos quais ocorreu em 1995, quando um grupo de skinheads atacou
doze pessoas negras no Bairro Alto, uma das quais, Alcindo Monteiro, morreu em consequência
das agressões – tenham provocado acesos debates na sociedade civil e no contexto político, resul-
tando então numa grande exposição mediática do assunto, esta foi a exceção mais do que a regra
e, na ausência de factos com grande potencial mediático que promovessem o seu agendamento,
o tema tem vindo a ser relegado para segundo plano. O próprio aparelho jurídico responsável pela
monitorização de atos discriminatórios, representado pela Comissão para a Igualdade e Contra
a Discriminação Racial (CICDR), regista, como veremos adiante, um número de queixas e de
subsequentes sanções muito baixo.

Situando o panorama nacional no que se refere às manifestações de racismo em relação ao con-


texto europeu, temos por base os trabalhos desenvolvidos no âmbito da Rede RAXEN – European
Racism and Xenophobia Network. Esta rede, promovida pela Agência para os Direitos Fundamentais
(FRA), visa recolher e disseminar informação sobre racismo, xenofobia, anti-semitismo e islamofo-
bia em cada Estado Membro em cinco áreas institucionais: Emprego, Educação, Violência Racial,
Saúde e Legislação. Os trabalhos desenvolvidos pelo ponto focal nacional desta rede apontam,
igualmente, para a fraca expressividade pública do fenómeno em Portugal. O relatório da FRA

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (21)
que sistematiza as tendências e os desenvolvimentos a nível do combate à discriminação étnica e
racial e à promoção da igualdade na União Europeia entre 1997 e 2005 (FRA, 2007) refere uma
série de acontecimentos que levaram à exacerbação dos debates em torno de questões como a ex-
clusão, a discriminação, a islamofobia ou o anti-semitismo à escala europeia. São exemplo destes
acontecimentos os motins contra os imigrantes marroquinos em Espanha, em 2000; o impacto
dos ataques de 11 de Setembro de 2001 na Europa, os ataques terroristas em Madrid, em 2004,
e em Londres, em 2005; a morte do realizador de cinema Theo van Gogh em Amesterdão, em
2004, a controvérsia sobre os cartoons de Maomé, na Dinamarca, em 2005 e os distúrbios em
bairros de residência maioritária de imigrantes em França, em 2005. Apesar de todos estes even-
tos terem originado o debate na sociedade portuguesa, não são conhecidos atos discriminatórios
ou racistas em sua consequência.

Os dados do último Eurobarómetro sobre Discriminação na UE, publicados em 2009, reforçam a


ideia de que a discriminação étnica é sentida pelos portugueses como sendo menos comum do
que nos restantes Estados Membros. Em comparação com a média dos europeus, os inquiridos
portugueses têm mais tendência para considerar que a discriminação devido à orientação sexual
é a mais comum em Portugal (58%), seguida daquela por motivos de origem étnica e deficiência
(ambas com 57%) e idade (53%). No conjunto da União Europeia, 61% dos inquiridos apontam a
origem étnica como fator comum de discriminação, seguindo-se a idade (58%), deficiência (53%),
orientação sexual (47%), sexo (40%) e religião ou crenças (39%) (Comissão Europeia, 2009).

Esta ideia, de que Portugal é um país de “brandos costumes”, confere inclusive um “traço distin-
tivo da nossa identidade nacional” (Vala, Brito e Lopes, 1999: 2) e resulta – pelo menos no que
concerne ao trato com o Outro – de uma sobrevivência muito atual da ideologia luso-tropicalista
fabricada por intelectuais ao serviço do Estado Novo como forma de legitimar a sobrevivência do
colonialismo português num contexto em que a opinião pública internacional viera a condenar
essa modalidade de exploração (Castelo, 1998). Mas, não obstante a ausência de atos recorrentes
de violência racista e a imagem difundida de país tolerante (Alexandre, 1999), não se pode afirmar
que a sociedade portuguesa seja imune ao racismo. Em termos históricos, a evolução das crenças

(22) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
racistas em Portugal não é diferente daquela que ocorre no resto dos países da Europa Ocidental.
Na sociedade portuguesa, tal como no conjunto das sociedades europeias contemporâneas em
que vigora a norma anti-racista, o racismo explícito é por esta inibido, mas não o racismo subtil
(Vala, Brito e Lopes, 1999a: 55).

O aumento da diversidade da população presente no país e da perceção pública e institucional


dessa mesma diversidade levaram ao agendamento de um conjunto de reflexões sobre a imigra-
ção que, de outro modo, poderiam não ter tido lugar quando tiveram ou não ter tido a receção
que efetivamente têm vindo a ter. No que se refere à reflexão sobre o racismo, ao iniciar-se a atual
conjuntura de crise económica, poderiam perspetivar-se, “grosso modo”, dois cenários. Por um
lado, a retração da imigração, em consequência da crise diminuir as probabilidades de encontrar
um trabalho comparativamente bem remunerado. Por outro lado, na ausência dessa retração
da imigração, a crise criaria condições para que as categorias sociais mais excluídas, entre elas
os imigrantes, se tornassem os seus bodes expiatórios. A verificar-se o primeiro destes cenários,
os temas do racismo e da xenofobia não se afiguram como prioritários; a verificar-se o segundo,
poucas linhas de investigação adquiririam maior pertinência ou mesmo urgência. Uma vez que
os resultados da mais recente ronda de eleições europeias mostram a extrema-direita a ganhar
peso político em toda a Europa, uma vez que os números da evolução da população estrangeira
em Portugal para 2009 publicados pelo SEF revelam uma taxa de crescimento anual de 3,16%
(SEFSTAT), uma vez que no Verão de 2010, ao escrever destas linhas, a França tem em curso um
processo polémico de extradição de cidadãos comunitários, parece que a situação pode evoluir no
sentido do segundo cenário apresentado.

Os trabalhos que em Portugal se centram no tema do racismo ou, pelo menos, o tratam em
passagem têm por base metodologias tão diversas como as tarefas experimentais (Vala e Lima,
2002; Cabecinhas e Amâncio, 2004a e 2004b), o inquérito por questionário (Vala, Brito e Lopes,
1999b; Lages et al., 2006; Santos et al., 2009), a análise documental (Cunha, 1994; Cunha et al.,
2004 e 2006) e a entrevista em profundidade (Machado, 2001; Marques, 2004). Fernando Luís
Machado (2001) faz a apologia desta última abordagem apontando que “ao contrário das sonda-

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (23)
gens de opinião e dos inquéritos conduzidos junto da população em geral em que a verbalização
de atitudes explícitas de racismo só existe como exceção (…) e em, que, mesmo os portadores
de preconceitos têm uma contenção verbal no sentido da sua negação ou subvalorização” (2001:
56), em contexto de entrevistas o discurso surge espontâneo e fácil. No presente estudo, procu-
rámos exatamente usar uma metodologia baseada no discurso direto em contexto de interação,
que permite uma abordagem mais focada na forma como as representações sociais e discursos
relacionados com racismo e xenofobia são atualizados nas interações quotidianas: os grupos de
discussão.

Esta é uma metodologia que, como veremos no capítulo 6, pretende reproduzir o contexto de
interações quotidianas entre as pessoas e promove uma análise da dinâmica de grupo patente no
fluir de argumentos e representações sociais que vão sendo mobilizados pelos participantes no
encenar da sua relação. Os grupos de discussão revelam em que medida a interação do grupo
constrange ou permite, limita ou exacerba, censura ou potencia os discursos sobre racismo, ou
seja, como é que racismo e norma anti-racista são operacionalizados e se expressam em contexto.

Sendo esta investigação um labor fundamentalmente pragmático e empírico, desenvolvido sob


os auspícios do ACIDI e enquadrado num projeto europeu (Living Together: Citizenship against
Racism and Xenophobia, financiado pelo programa Direitos Fundamentais e Cidadania [referência
JLS/2007/FRC/036]), quisemos explicitar alguma reflexão sobre o tema nos capítulos 1, 2, 3, 4
e 5.

(24) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 1.
BREVE HISTÓRIA DO RACISMO NO OCIDENTE
1. DE PRÁTICA ATÁVICA A CONCEITO ILUMINISTA

Ainda que o conceito de racismo tenha emergido na era moderna, os fenómenos que hoje classifi-
camos sob esta designação precedem-no (Wieviorka, 2002: 19): a perseguição dos judeus, a caça
às bruxas, a escravatura, as cruzadas e outras formas de discriminação ou exploração presentes
ao longo da história, embora não derivassem de uma “consciência de espécie” (Fredrickson,
2004: 14) ou de doutrinas racistas, são manifestações de um “racismo sem raça” (d’Appollonia,
1998: 13), uma vez que aparecem geralmente associadas à crença na superioridade de determi-
nadas categorias em relação a outras.

De acordo com Raymond Williams (1983: 248), o termo raça era já utilizado no século XIV, época
em que se verifica o alargamento do contacto entre populações de origens diversas, embora com o
sentido de linhagem. Só no século XVII o termo aparece já na aceção que tem por base uma repre-
sentação do Outro que opõe uma raça superior (brancos) a uma raça inferior (africanos, asiáticos,
índios da América, habitualmente chamados de selvagens). As diferenças entre a “raça superior”
e a “raça inferior”, que legitimavam diversas formas de discriminação – exploração, escravatura,
colonização –, eram entendidas como resultantes de aspetos culturais, do meio ambiente, do grau
de civilização ou da religião.

O colonialismo, o imperialismo e os nacionalismos europeus concorreram para a ideologização de


classificações raciais (Arendt, 1989), e o desenvolvimento da ciência moderna nos séculos XVIII e
XIX viria a servir de base às conceções “científicas” de raça.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (25)
2. O PENSAMENTO ILUMINISTA

O pensamento científico do Iluminismo foi uma condição prévia para o crescimento do racismo
baseado numa tipologia física (Fredrickson, 2004: 51; Cabecinhas, 2008: 166), desenvolvendo-
-se durante esse período teorias várias de classificação racial. A primeira tentativa de classificar
cientificamente os tipos humanos foi da autoria do naturalista sueco Carlos Lineu, que em 1735
publicou Systema Naturae, a obra fundadora da taxonomia científica moderna. Lineu inclui os
humanos na sua taxonomia dos seres vivos como sendo uma espécie, integrada no género prima-
tas, que divide em quatro diferentes categorias geograficamente definidas: europeus, americanos,
asiáticos e africanos. Lineu descreveu os europeus como “brancos, vivos, inventivos, claros, go-
vernados por leis”; os americanos como “vermelhos, tenazes, alegres, coléricos e governados por
hábitos”; os asiáticos como “amarelos, austeros, avaros, altivos e governados por opiniões”; e os
africanos como “indolentes, fleumáticos e governados por caprichos” (Lineu em Cohen, 1980:
7). A descrição de Lineu das diferentes raças é elucidativa da latente hierarquização de atributos
associada a cada uma delas.

Blumenbach, considerado o pai da antropologia física e da craniologia, publicou em 1776 De


Generis Humani Varietate Nativa (sobre as variedades naturais da humanidade), obra na qual
propôs uma classificação que invocava cinco raças: os caucasianos, os mongóis, os malaios, os
etíopes e os americanos. Defendeu o monogenismo, ou seja, a ideia que todas as raças humanas
tinham uma origem comum, avançando a hipótese que os caucasianos eram a raça humana
original a partir da qual as outras tinham degenerado. Cunhou o termo caucasiano, derivando-o do
Monte Cáucaso que, a seu ver, produzia a mais bela raça de homens: os georgianos. Sublinhou
sempre o fator beleza como distintivo das diferentes raças e associou a forma do crânio à clas-
sificação racial, considerando que “os mais bonitos e elegantes” tinham a “mais bela forma de
crânio” (Fredrickson, 2004: 52). Blumenbach sugeriu que as diferenças das formas cranianas, da
cor de pele ou de outros traços eram causadas pelo ambiente.

Também Buffon – naturalista francês que publicou, entre 1749 e 1804, uma Histoire Naturelle

(26) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
em 44 volumes – defendeu a ideia de que o meio ambiente, o clima e outras condições físicas
seriam responsáveis pela diferença entre as espécies humanas. Assim, justificava que a pretensa
superioridade dos europeus sobre os africanos se deveria a fatores relacionados com as condições
naturais de origem como, por exemplo, as terras áridas onde habitam os primeiros dificultarem
a subsistência e exigirem dos seus habitantes maior inteligência e capacidade de fazer face a
obstáculos, enquanto os africanos, vivendo num meio generoso, tenderiam a tornar-se “grandes,
gordos e bem feitos mas… simples e estúpidos” (Fredrickson, 2004: 53).

As tipologias raciais estabeleciam diversas categorias nem sempre coincidentes em número e


terminologia, no entanto, destacavam-se nas diferentes classificações das três raças principais:
brancos (caucasoide), amarelos (mongoloide) e negros (negroide), seguindo uma lógica de hierar-
quização em que os brancos recorrentemente surgiam como raça superior.

3. O RACISMO CIENTÍFICO

A herança das classificações raciais serviu de base às teorias do chamado “racismo científico”
que se desenvolveram durante o século XIX. Os trabalhos de Gobineau – diplomata, escritor e
sociólogo francês que publicou em 1853 um Essai sur l’inégalité des races humaines –, nos quais
atribuiu a uma suposta “raça ariana” uma pretensa superioridade sobre as demais supostas
raças, revelam que este considerava que a mistura de raças era causa de degeneração mas, pa-
radoxalmente, inevitável. Enquanto embaixador de França no Brasil, deixou alguns escritos sobre
as suas experiências que deixam claro o que sentia face às misturas raciais: “Uma população
toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo… Nenhum brasileiro é de
sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se
a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e
nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto” (Gobineau in Raeders, 1988: 90).

Outro pilar da história do ”racismo científico” foi Francis Galton, antropólogo, matemático e es-

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (27)
tatístico que em 1869 publicou Hereditary Genius e é apontado como o fundador da eugenia.
Galton criou uma escala gradativa onde situou as diferentes raças em função do seu grau de
inteligência. De acordo com essa escala, os atenienses seriam os mais inteligentes, seguidos dos
cidadãos britânicos. Os africanos e os aborígenes australianos apareciam no final da escala de in-
teligência. Os conceitos de superioridade racial de Galton tornaram-se muito populares na Europa
e nos Estados Unidos e, nestes últimos, chegaram mesmo a fundamentar políticas de restrição
à imigração (Cohen, 1980: 7). A sua teoria de aperfeiçoamento da espécie humana defendia,
através da seleção artificial, a eugenia positiva – selecionar os indivíduos mais aptos e incentivá-los
a reproduzir-se de forma a melhorar a espécie humana nas gerações seguintes – e a eugenia
negativa – proibição de casamentos “inter-raciais” e esterilização dos indivíduos considerados
indesejáveis. Anos depois, as práticas decorrentes da ideologia nazi durante a Segunda Guerra
Mundial – o genocídio de pessoas com necessidades especiais, judeus, ciganos, homossexuais,
comunistas e testemunhas de Jeová – forneceram ao mundo exemplos de processos de eugenia
negativa.

Até ao pós-guerra, a propagação das doutrinas raciais assumiu um caráter transnacional e as


suas ideias estavam disseminadas na Europa e nos Estados Unidos (Wieviorka, 2002: 25). A ideia
de superioridade de umas raças sobre as outras estava implementada em praticamente todas
as áreas da ciência moderna: da biologia à antropologia, passando pela psicologia, anatomia e
demografia, desenvolvia-se um conjunto de trabalhos e métodos científicos (como a medição de
crânios, a análise de grupos sanguíneos, estudo do índice esquelético, testes de inteligência) que
procuravam credibilizar as teorias raciais hierarquizadoras. Fossem quais fossem os métodos e
os critérios usados, os brancos eram sempre considerados a raça superior e, na base da escala
apareciam os negros, seguidos de perto pelos amarelos (Cabecinhas, 2008: 167).

O termo “raça”, que marcou o discurso científico de então, generalizou-se ao pensamento do


senso comum e, ainda hoje, é frequente ouvi-lo em conversas do quotidiano. A título de exemplo,
aproveitamos para referir que na análise das transcrições dos grupos de discussão realizados
no âmbito do presente trabalho, o termo “raça” apareceu espontaneamente no discurso dos

(28) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
participantes 81 vezes – 7 vezes por participantes de estatuto social médio-alto, 27 vezes por
participantes de estatuto social médio-médio, 12 vezes por participantes de estatuto social médio-
baixo e 35 vezes por participantes jovens de estatuto social médio-médio –, a maioria das quais
associada aos negros e, em menor número, aos ciganos. A associação do termo raça aos negros
e aos ciganos está, provavelmente, relacionada com a representação que os participantes têm
destas categorias, que descrevem com atributos mais deterministas do que as restantes – mais
presente do que o determinismo biológico surgem descrições relativas a um determinismo cultural
– e resulta, eventualmente, da cristalização de crenças que outrora encontraram uma justificação
científica.

A crença na diferença e inferioridade do Outro, oferece uma base racional para tornar a relação
estabelecida desigualitária, “para que possamos usar a nossa vantagem em termos de poder para
tratar o Outro etno-racial de maneiras que consideraríamos cruéis ou injustas se fossem aplicadas
a membros do nosso próprio grupo” (Fredrickson, 2004: 16). Em termos coletivos, as ações
decorrentes dessa crença, podem levar à discriminação social, a formas de segregação, opressão
colonial e escravização, entre outras. É nesse sentido que alguns autores apontam para um apro-
veitamento dos argumentos produzidos no âmbito do “racismo científico” para fundamentar as
políticas coloniais europeias na África, Ásia e Pacífico (Fredrickson, 2004: 87; Cabecinhas, 2008:
169). “Do ponto de vista estritamente científico poder-se-ia dizer que tais leituras são simples-
mente ingénuas, na medida em que se apoiam em elementos de parca importância. Podemos
de facto aceitar a existência de uma ingenuidade científica que só a anatomia dos séculos XIX
e XX conseguirá enfim resolver, mas ela é mais perversa do que ingénua, na medida em que a
sua grelha do saber tem como objectivo reforçar as condições de dominação, negando qualquer
qualidade ao africano colonizado. Não se trata apenas de lhe recusar a possibilidade de algum
dia poder integrar os valores civilizacionais do branco, mas antes de provar a sua selvajaria”
(Henriques, 2004: 20).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (29)
4. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, MUDANÇAS NO QUADRO DA
TERMINOLOGIA “RÁCICA”

Somente após a Segunda Guerra Mundial é que a tese das hierarquias raciais começou a ser
desconstruída. O extermínio de judeus, ciganos e outras minorias perpetrado pelo regime nazi em
nome da pureza racial levou à problematização do conceito de raça e, a nível científico e político,
desenharam-se então as bases para a igualdade entre todos os seres humanos (Cabecinhas,
2008: 170). Neste aspeto, assumiram particular relevância a divulgação da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, e de
documentos oficiais publicados por especialistas em estudos raciais, promovidos pela UNESCO.

Dos trabalhos lançados pela UNESCO, resultou a proclamação de quatro Declarações que procu-
raram sustentar a ideia de igualdade entre seres humanos e erradicar o racismo motivado por teo-
rias pretensamente científicas acerca da superioridade de uns povos sobre os outros. A Declaração
sobre a Raça, de 1950, afirma que todos os seres humanos pertencem a uma mesma espécie
– Homo sapiens – e defende a necessidade de substituir o termo “raça” pela expressão “grupos
étnicos”: “Os erros graves decorrentes da utilização da palavra «raça» na linguagem corrente,
tornam desejável que se abandone completamente o termo quando aplicado aos seres humanos
e que se adote a expressão «grupos étnicos». (…) É necessário que se distinga entre «raça», facto
biológico, e o «mito da raça». Na realidade, a «raça» é menos um fenómeno biológico que um
mito social. Este mito provocou um mal imenso nos planos social e moral e, ainda recentemente,
custou inumeráveis vidas e causou sofrimentos incalculáveis” (UNESCO, 1973: 362-364).

Esta Declaração não reuniu consensos dentro da comunidade científica (na origem da dissensão
esteve a linguagem usada pelo campo da biologia e da antropologia), o que levou a UNESCO
a organizar uma outra reunião de peritos da qual resultou a Declaração sobre a Natureza da
Raça e das Diferenças Raciais, de 1951. Ambas as Declarações defendem, no entanto, conteúdos
idênticos: rejeitam a equivalência dos conceitos de “raça” e “cultura”, desvalorizam a ideia de
determinismos biológicos ou genéticos associados às diferenças culturais e asseguram que as

(30) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
classificações raciais devem considerar exclusivamente características físicas e não psicológicas,
culturais ou intelectuais.

Em 1964 surge a Declaração sobre Aspetos Biológicos da Raça, que afirma que as desigualdades
que se observam no mundo de hoje não são o resultado de diferenças genéticas entre os homens
(Rex, 1968: 4): “Os povos da terra parecem dispor hoje de potencialidades biológicas iguais para
aceder a qualquer nível de civilização. As diferenças entre as realizações dos diversos povos pare-
cem dever explicar-se inteiramente pela sua história cultural” (UNESCO, 1973: 377).

Em 1967 veio a lume a Declaração sobre a Raça e sobre os Preconceitos Raciais, que identifica
causas económicas e sociais para o racismo e indica algumas medidas de combate ao problema,
tais como a sensibilização no domínio público em meios como a escola, a implementação de
legislação de combate ao racismo, a responsabilização dos cientistas no uso dos produtos das
suas investigações sobre a temática, entre outros (UNESCO, 1973: 374-385).

Os documentos da UNESCO foram os primeiros a sugerir o abandono do termo “raça”. Contudo,


essa decisão não é pacífica, até porque confronta diversas áreas da ciência. Francisco Salzano,
um geneticista que participou na elaboração da terceira Declaração da UNESCO, conta a esse
propósito: “Discussões sobre o conceito de raça, inicialmente proposto para aplicação na espécie
humana por George Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), continuam sem sinal de arrefecimento.
Recordo-me muito bem do drama que foi a redação final do documento de quatro páginas adotado
oficialmente pela Unesco sobre os aspectos biológicos da raça, e aprovado em 18 de Agosto de
1964. Eu fazia parte de um grupo selecionado de 22 especialistas de todos os continentes, reu-
nidos em Moscou para a tarefa. E asseguro que alcançar a unanimidade requerida não foi fácil,
mesmo depois de sete dias e meio de exaustivas discussões formais e informais (…). O problema
todo é que há um conceito biológico e um conceito social de raça” (Salzano, 2005: 225).

Ainda assim, o documento revelou-se eficaz, uma vez que, de facto, desde então o termo “raça”
passou a ser substituído por “grupo étnico”, categoria essa que, como veremos de seguida, é hoje
igualmente questionada quanto à sua utilização.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (31)
5. NOVOS RACISMOS

Os esforços encetados no período pós-guerra com vista à eliminação do estatuto científico do


conceito de “raça” e das hierarquizações raciais não levaram ao desaparecimento do racismo mas
à sua transformação. O combate científico e político ao conceito de “raça” e à ideia de diferencia-
ção baseada em características biológicas, deu lugar à ênfase nas diferenças culturais enquanto
legitimadoras da desigualdade entre categorias de pessoas (Machado, 2000: 12; Marques, 2000:
36; Fredrickson, 2004: 120; Wieviorka, 2002: 40; Cabecinhas, 2008: 170).

O racismo assume, pois, hoje novos contornos: aspetos como a hereditariedade, a genética e os
traços fenotípicos deixam de fundamentar o discurso sobre o Outro sociológico, dando lugar a
referências como os modos de viver e de pensar, a cultura, os costumes ou os traços identitários.

No contexto de afirmação da norma social da indesejabilidade do racismo, o discurso dominante


acompanhou a deslocação do termo “raça” (embora o mesmo seja ainda, como veremos, usado
no discurso quotidiano) para outros que o substituem, como “grupo étnico” ou “etnia”. Contudo,
a mudança é mais cosmética do que conceptual, uma vez que a aplicação dos termos reflete
uma lógica de essencialização das diferenças culturais. Ou seja, à semelhança do que acontecia
nos discursos relativos às diferenças biológicas, as práticas culturais são muitas vezes entendidas
como rígidas, imutáveis e “naturalmente” intrínsecas aos indivíduos pertencentes a uma mesma
categoria social. A um processo de construção do Outro sociológico com base na raça, pode
estar a suceder-se um processo similar mas baseado na etnia (Vala, Lopes e Brito, 1999: 161):
“A perspetiva entitativista e não processual subjacente ao pensamento do senso comum sobre as
diferenças entre povos, tribos, etnias, culturas, etc., mobiliza o mesmo tipo de princípios que estão
presentes na categorização racial – a inalterabilidade daquelas categorias, a sua mútua exclusivi-
dade, o seu elevado potencial indutivo – sobretudo quando são aplicadas à descrição do outro e
esse outro é um grupo dominado” (Vala, Lopes e Brito, 1999: 166-167).

(32) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A emergência de uma nova doutrina racista na Europa ocorre em paralelo com o aumento da
imigração em alguns países – sobretudo na Grã-Bretanha e em França – durante as décadas de
1960 e 1970. A diversidade crescente impele a direita conservadora a veicular discursos políticos
acerca das ameaças à homogeneidade e identidade nacionais. Este racismo renovado ou “novo
racismo”, como lhe chamou Barker (1981), procura legitimar-se “menos pela invocação de uma
desigualdade das «raças» que pela ideia da irredutibilidade e da incompatibilidade de certas espe-
cificidades culturais, nacionais, religiosas ou outras” (Wieviorka, 2002: 38).

Tanto ao nível do discurso doutrinário como do popular, a cor de pele ou o termo “raça” deixam de
constituir de forma assumida o denominador comum da diferença. Os Outros aparecem descritos
em função da forma como é representada a sua adesão a valores sociais considerados fundamen-
tais, como a ética do trabalho, a auto-disciplina, a responsabilidade, entre outros. Por exemplo:
os ciganos não causam repulsa por causa da cor da pele, mas por não quererem assimilar os
valores da sociedade maioritária. Este processo de distinção cultural reproduz de forma idêntica
aquilo que era considerado o olhar estanque sobre “raças diferentes”: “O não reconhecimento das
classificações socioculturais e étnicas como construções sociais, a sua naturalização difusa, e a
cegueira em torno da sua eficácia como forma de dominação torna-as, funcionalmente, equivalen-
tes das classificações raciais. (…) Diferenças raciais e (…) diferenças culturais (…) têm o mesmo
tipo de consequências sobre a discriminação” (Vala, Lopes e Brito, 1999: 147-148).

É interessante notar que estas novas roupagens do racismo – onde o argumento das diferenças
culturais ou “civilizacionais” (Huntington, 1993 e 1996) surge como reduto de diferenças que se
pretendem dizer, afinal, raciais – parecem cristalizar-se nas atitudes islamofóbicas que os ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001 (Nova Iorque), 11 de março de 2004 (Madrid) e 7 de julho
de 2005 (Londres) despertaram no designado “mundo Ocidental”. Com o pano de fundo da
imigração, a islamofobia do período pós-ataques terroristas de inícios do século XXI não é mais do
que a expressão de classificações raciais em que aqui o Outro é também ele um estrangeiro, cultu-
ralmente diferente, marcado fisicamente por traços estereotipados (e facilmente caricaturáveis…).
Assentes em “teses culturalistas em que a religião ou a cultura aparecem como a causa directa

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (33)
dos atentados”, as crenças islamofóbicas do pós-11 de setembro associam ao Islão “ideias como
«cultura de morte» ou «ódio ao Ocidente», em que o reforço da pertença a uma suposta cultura
ocidental é feito através do estereótipo do outro religioso e cultural, neste caso o muçulmano”
(Peixe et al., 2008: 5).

No mesmo trabalho, em que se procurou estudar a situação do racismo e da xenofobia em Portugal


no pós-11 de setembro (Peixe et al., 2008), pôde concluir-se que muito embora não tenha havido
em Portugal um reforço significativo da islamofobia de 2001 em diante, verificaram-se: “algumas
transformações significativas no panorama político e social, que não deixaram de ter reflexos nos
modos como são percebidos e tratados os imigrantes e aqueles que são percebidos como «outros»
culturais ou raciais” (Peixe et al., 2008: 6).

Apesar de tudo, por força da irrelevância da islamofobia percecionada, ou por ausência de um


interesse em escrutiná-la, faltam ainda estudos aprofundados sobre as atitudes anti-islâmicas em
Portugal (Peixe et al., 2008: 19-20). Não será, no entanto, de escamotear o que emerge dos vários
discursos surgidos nos grupos de discussão no âmbito do presente estudo. Tal como poderemos
ver adiante, em quase todos os grupos surgiram opiniões que corroboram a ideia da existência
de uma essencialização e categorização de um Outro muçulmano, cujos contornos em muito
coincidem com as crenças que sustentam a discriminação anti-islâmica no resto da Europa e nos
Estados Unidos da América.

Note-se, todavia, que estas são as grandes linhas de uma tendência histórica que conhece ex-
ceções notáveis, senão mesmo infames, como é o caso das declarações que James D. Watson
– sumidade científica galardoada com o Nobel pela co-descoberta do ADN – prestou ao Sunday
Times em 2007 acerca da existência de um diferencial de inteligência entre brancos e negros.
Por outro lado, embora a narrativa da emergência de novos racismos seja a ortodoxia vigente no
campo dos estudos sobre este fenómeno, há vozes que a contestam, sustentando existir maior
continuidade histórica no racismo do que a ideia de novos racismos permite considerar (Leach,
2005).

(34) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 2.
DELIMITAÇÃO DO CONCEITO/OPÇÕES DO ESTUDO

Na literatura sobre esta transição encontra-se uma profusão de classificações: racismo moderno
(McConahay, 1986; Pederson e Walker, 1997), racismo simbólico (Sears e Kinder, 1971), neo
racismo (Barker, 1981), racismo aversivo (Gaertner e Dovidio, 1986), racismo ambivalente (Katz e
Hass, 1988), racismo subtil (Pettigrew e Meertens, 1995), racismo cordial (Turra e Venturi, 1995),
entre outras. Apesar da nomenclatura e das especificidades que marcam as diferenças entre tais
teorias, um aspeto comum a todas elas é a substituição de expressões do racismo mais primárias
por “formas altamente eufemizadas” (Bourdieu, 2003: 278), ou seja, a ideia de que o racismo
tem vindo a assumir uma forma velada em substituição das suas expressões tradicionais mais
flagrantes (Lima e Vala, 2004: 408).

Mas será ainda racismo? As novas teorias que procuram isolar o racismo baseado em diferenças
biológicas daquele que se cinge às diferenças culturais suscitam a discussão da delimitação do
conceito de racismo. A confusão entre a utilização do termo e a de outros conceitos como racia-
lização, heterofobia, etnocentrismo, etnicização, etnicismo, desigualdade social ou discriminação
étnica é questionada por diversos autores (Miles, 1989; Essed, 1991; Dijk, 1993; Memmi, 1993;
Cabral, 1998; Vala, Brito e Lopes, 1999b; Fenton, 1999; Burguière e Grew, 2001). A este propósi-
to, Taguieff (1997), entre outros, critica a banalização da palavra racismo. Alerta, no entanto, para
os efeitos indesejáveis de uma utilização restrita à doutrina científica da desigualdade entre raças
humanas, desvalorizando as formulações atuais mais veladas e subtis (Cabecinhas, 2008: 175),
manifestações estas particularmente desafiantes no que respeita à sua identificação e combate
(Lima e Vala, 2004).

Há, pois, grande hesitação entre inflacionar e esvaziar o conceito. Em nosso entender, tal pode ser,
em última análise, atribuído ao seu uso não apenas em diferentes campos científicos – o que já de
si minaria a sua univocidade – mas também no campo do ativismo. Justifica-se por isso perguntar

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (35)
“o que é o racismo, afinal?” A esta questão, que foi o título provocador de um encontro realizado
a 8 e 9 de março de 2010 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL),
poderíamos responder que o racismo é, cada vez mais, uma metonímia. Há um conjunto de pro-
cessos de categorização-desigualdade que tem o seu pior exemplo no levar do racismo científico às
consequências finais pelos Nazis, reduzindo-o não ao absurdo mas ao horror. O fascínio, o trauma
foram tamanhos que acabámos chamando racismo a tudo. Não dizemos “o horror à espreita nas
identidades coletivas, seja qual for o acidente com base no qual estas são imaginadas”, dizemos
“racismo” e ganhamos em concisão o que perdemos em precisão. Tomamos o todo pela parte, o
que é a marca da variante da metonímia à qual por vezes se chama sinédoque. O termo tal como é
comummente utilizado é simultaneamente demasiado lato para ter utilidade analítica e demasiado
relevante, em termos de lastro histórico e utilidade (leverage) social, para ser descartado.

A ciência é, entre outras coisas, reducionismo impenitente. Um cientista que, enquanto tal, tivesse
a frieza de apenas se preocupar com o que diz estritamente respeito ao seu portefólio usaria o ter-
mo racismo para designar fenómenos relacionados com a crença na pretensa validade científica
da existência de raças humanas e trataria os fenómenos conexos sob outros rótulos, cunhando
eventualmente uma designação mais englobante que a todos cobrisse sem desvirtuar. Mas tal
cientista não é mais do que um tipo ideal de um certo positivismo ingénuo e o que temos na
prática é um número de propostas de terceiras vias. Fernando Luís Machado (2000), por exemplo,
propõe uma visão equilibrada entre as diferentes formas de expressão, como a defendida por
Collette Guillaumin, que combina na definição de racismo comum, o somático e o simbólico, o
biológico e o cultural (2000: 22). A solução a adotarmos deverá levar em conta esta preocupação
de inclusividade, ainda que, como se verá na análise dos dados, o racismo biológico puro e duro
se tenha manifestado em todos os contextos sociais que viemos a auscultar.

Infelizmente, as ambiguidades do racismo não se esgotam na especificidade e abrangência dos


critérios de categorização dos seres humanos em que o fenómeno se baseia. Ou seja, uma vez
que tenhamos estabelecido quem é objeto de racismo, teremos também de estabelecer o que é
a coisa que vitima essas pessoas. Ao enveredarmos por aí na nossa reflexão, rapidamente nos

(36) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
deparamos com uma série de opções clássicas nas ciências sociais: teoria ou prática, estrutura
ou ação, etc. Philomena Essed distingue três níveis conceptuais nos quais podemos falar de
racismo: o ideológico, o estrutural e o processual (1991: 43-44). Seria tentador dizer que, dada a
natureza da recolha empírica na qual nos estamos a basear nesta investigação, nomeadamente
transcrições de discussões de grupo, seria este último o nível que nos iria interessar. Contudo, a
análise de discurso presta-se tanto a perceber como são encenadas as estruturas e objetivadas as
ideologias como, pelo contrário, a compreender como estas são reproduzidas ao nível da interação
quotidiana. Ou seja, a ferramenta utilizada é, neste sentido em particular, neutra. Temos, pois, de
procurar outra base para a escolha que importa fazer.

Neste sentido, parece-nos persuasivo o argumento desenvolvido por Wetherell e Potter em favor da
circunscrição das ambições de teorização ao discurso racista, prescindindo de teorizar o racismo
como um todo (1992: 59), e do desenvolvimento de uma perspetiva sobre o discurso que o trata
enquanto elemento de construção da realidade social. Passando em revista a literatura existente
sobre o tema, estes autores concluem que a explicação do discurso requer que o coloquemos
em relação com um qualquer contexto. Grosso modo, esse contexto pode ser a “realidade”, a
“sociedade” ou a “identidade”. O contraste entre discurso e realidade baseia-se na assunção de
uma clara dicotomia entre estes relatos verdadeiros e falsos e versa sobretudo a correspondência
entre facto e representação. A ancoragem do discurso na sociedade remete para uma análise
do tipo “as ideias dominantes são as ideias das classes dominantes”, ou seja, a interrogação é,
sobretudo, quem beneficia? A abordagem pela identidade trata o discurso como sintomático de
dimensões subjetivas (1992: 6-7). O discurso racista pode assim ser uma simples falsidade, uma
ideologia, uma patologia, uma limitação do entendimento ou uma fatalidade da condição humana,
conforme o referente seja a realidade, a sociedade, a identidade segundo a teoria da personalidade
autoritária, a identidade segundo o cognitivismo ou a teoria da identidade social (de Tajfel, por
exemplo), respetivamente. Insatisfeitos com tais abordagens, Wetherell e Potter (1992) optam por
não tratar o discurso como reflexo ou indício seja do que for nem postular qualquer dualismo entre
relações discursivas e relações materiais. Ao invés de procurarem ver de onde o discurso racista
vem, procuram ver onde vai dar. Aliás, para eles o discurso não é qualificável como racista em fun-

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (37)
ção da sua origem ou propriedades formais mas sim das consequências que acarreta (1992: 70).
O seu objetivo é procurar ver como é operada a construção retórica e ideológica das categorias
sociais (1992: 9). Quanto ao discurso racista, este é identificável não pela sua proveniência, forma
ou conteúdo, mas por ter como efeito o estabelecimento, sustentação e reforço de relações de
poder opressivas entre as categorias sociais que constrói (1992: 70). Determinado discurso pode
ser racista nas suas consequências, sem que estas tenham sido desejadas ou sequer previstas,
no que, aliás, Wetherell e Potter (1992) são secundados por Wellman (1993). Sob esta definição o
discurso racista revela-se em situações e locutores insuspeitos, produzindo resultados interessan-
tes e surpreendentes. Mas talvez mais importante ainda é o facto de com a proposta teórica de
Wetherell e Potter deixar de fazer sentido a questão de saber se determinado indivíduo é ou não
racista, que afinal não passa ela própria de essencialismo e rotulagem.

(38) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 3.
CONTEXTO NACIONAL

1. IMPERIALISMO, ESTADO NOVO E LUSO-TROPICALISMO

A ideologia que orientou a política colonial portuguesa fez, a seu tempo, amplo uso do racismo
científico. Durante a primeira metade do século XX, a doutrina política dominante baseava-se
numa visão etnocêntrica e desigualitária que justificava “o papel de Portugal no Ultramar, como
portador dos valores universais da civilização face aos povos primitivos” (Alexandre, 1999: 140).
A pretensa função civilizadora da colonização, entendida como missão, decorria das teorias que
advogavam uma rígida hierarquia racial, com os arianos no topo e “condenando irremediavel-
mente as supostas raças inferiores, nomeadamente os Negros, à subalternidade, quando não ao
extermínio” (Alexandre, 1996: 201).

A discussão política acerca do regime de exploração das colónias e da atribuição aos indígenas de
algum grau de cidadania que atravessou o período colonial levou à tomada de posição de diversos
políticos e intelectuais sobre a matéria. Entre estes conta-se, por exemplo, o eminente historiador
e político Oliveira Martins, que afirmava ser absurda a aplicação da Carta Constitucional do Código
Civil e Lei Eleitoral à “pretaria de Angola” (Martins, 1888, citado em Alexandre, 1996: 200).
Segundo o autor em questão, o destino das colónias portuguesas dependia da capacidade de ex-
ploração das mesmas, pelo que se tornava necessário capitalizá-las, descobrindo: “… um meio de
tornar forçado o trabalho do negro, sem cair no velho tipo condenado da escravidão. Poderíamos
talvez assim explorar em proveito nosso o trabalho de uns milhões de braços, enriquecendo-nos à
custa deles. De tal modo se fez o Brasil” (Martins, citado em Alexandre, 1996: 201).

Outro exemplo da centralidade da questão do trabalho na relação entre metrópole e colónias


são as palavras de António Ennes, administrador colonial português: “E todas estas reflexões e
todos estes confrontos persuadiram-nos de que o Estado, não só como soberano de populações

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (39)
semibárbaras, mas também como depositário do poder social, não deve ter escrúpulo de obrigar
e, sendo preciso, de forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo
trabalho meios de existência mais feliz, a civilizarem-se trabalhando, esses rudes negros da África,
esses ignaros párias da Ásia, esses meios selvagens da Oceânia, a que o mesmo Estado impõe
também, até com pena de extermínio, tantas outras obrigações que lhes aproveitam bem menos e
nem sempre são legitimadas pelos interesses da civilização” (Ennes, citado em Henriques, 2004:
295).

Tais posições de Oliveira Martins e António Ennes, surgiam em reação às pressões exercidas
pelas sociedades antiesclavagistas que no final do século XIX protestavam contra a expansão da
influência portuguesa na África Austral e denunciavam a prática da escravatura nas colónias. Os
governantes procuravam, assim, legitimar a colonização como sendo uma missão civilizadora,
mostrando em simultâneo que a abolição da escravatura não significava o direito de não trabalhar.
Na realidade, o Decreto de Abolição da Escravatura de 1836 e a posterior extinção do trabalho
servil nas colónias revelaram-se “inoperantes” (Torres, 1990), uma vez que o trabalho escravo ou
semiescravo esteve presente nos territórios ultramarinos ainda durante o século XIX e princípios
do século XX.

O sistema colonial não poderia ter persistido sem a contribuição do trabalho escravo, apesar
das pressões internacionais de que era alvo. Para contornar essas mesmas pressões, o Estado
português encontrou vias astuciosas para organizar o trabalho do africano (Jerónimo, 2010). Para
o efeito criou a figura legal do “indígena”, também esta descrita através de um conjunto de
marcadores de inferiorização baseados no determinismo biológico e com uma argumentação jus-
tificativa de uma ferocíssima imposição do trabalho (Henriques, 2004: 287-288): “O trabalho foi
o instrumento civilizador fundamental mobilizado pelas autoridades portuguesas nas suas posses-
sões coloniais, forma estruturadora das relações quotidianas entre o colonialismo português e as
populações colonizadas. Só pelo trabalho poderiam as populações indígenas aspirar a entrar no
«grémio da civilização», expressão recorrentemente utilizada por políticos, publicistas ou pensado-
res comprometidos com a causa colonial. A colonização das almas assentava na colonização dos

(40) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
corpos. Os estereótipos raciais e civilizacionais, herança antiga refinada pela articulação histórica
do positivismo com o evolucionismo e com o racismo dito científico, reforçaram e justificaram
modelos de recrutamento e utilização de mão-de-obra africana. Não foram, porém, a sua causa.
Funcionaram, pelo contrário, como eficazes recursos de legitimação, tanto da persistência da
escravatura como da necessidade e da justeza da expansão e consolidação colonial” (Jerónimo e
Domingos, 2007).

Para além do argumentário legitimador dos trabalhos forçados e da ocupação territorial, os estere-
ótipos raciais serviam ainda de base à contestação da miscigenação. Este processo era entendido
ora como estratégia para reforçar a presença humana nas colónias, ora como indesejável pelo
consequente resultado de “impureza racial” a ele associado.

Francisco Silva Telles, principal organizador do I Congresso Colonial realizado em 1901, defendia
que o povoamento e a fixação de populações nas colónias era o único meio que restava aos
portugueses para salvarem os territórios das cobiças dos ingleses e dos alemães. Segundo o mé-
dico antropólogo, os portugueses, sobretudo os do Sul, tinham facilidade em se adaptar aos climas
tropicais devido ao seu fundo étnico já formado pela miscigenação. Este processo de “colonização
mista”, em que “a raça invasora funde-se com a indígena a diversos graus, mas conserva grupos
de famílias na maior pureza de sangue” visava capitalizar a multiplicação proporcionada pela
mestiçagem e salvaguardar a hegemonia portuguesa (Ramos, 2000: 143).

Já Paiva Couceiro e Norton de Matos,2 ambos governadores de Angola e referências oraculares


do pensamento colonial português durante a primeira metade do século XX (Ramos, 2000: 144),
fortemente adeptos do povoamento do território como garantia do domínio colonial português, en-
tendiam que devia haver limitações à mistura de raças: “A ideia, a política, os objectivos a prosse-
guir em Angola visariam – segundo nós – a tornar a possessão ultramarina numa grande província
portuguesa, falando a nossa língua, seguindo os nossos usos,
mantendo as nossas tradições – prolongando, enfim, através 2 Paiva Couceiro foi Governador de Angola
entre 1907 e 1909 e forte referência da
das ilhas atlânticas, a própria Pátria-Mãe” (Paiva Couceiro, 1910, direita monárquica. Norton de Matos
citado em Ramos, 2000: 144). governou entre 1912 e 1915 e entre 1921
e 1923, posicionando-se como referência
da esquerda republicana.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (41)
“… prolongamento da nacionalidade, brilhante receptáculo da nossa língua, campo vastís-
simo à expansão da nossa civilização (…) abençoada pelos povos primitivos que a História
nos entregou para os elevarmos até nós” (Norton de Matos, 1926, citado em Alexandre,
1999: 139-140).

Embora defensores da assimilação dos negros numa grande província portuguesa, através da
partilha da língua e dos costumes, ambos os governadores entendiam que nos primeiros tempos
de ocupação era necessário evitar a mestiçagem. A separação racial ia permitir, por um lado, o
desenvolvimento gradual dos negros – uma vez que estavam muito atrasados em relação aos
brancos – e, por outro lado, que os colonos portugueses preservassem o seu estado puro e esti-
vessem, por isso, em melhores condições de resistir aos influxos estrangeiros. A fusão das raças
só faria sentido uma vez estabelecida a hegemonia da civilização nacional (Alexandre, 1999: 140;
Ramos, 2000: 145).

O Estado Novo promoveu a valorização das colónias enquanto elemento fundamental de capital
simbólico associado ao regime fascista vigente desde 1926. O espírito de “missão civilizadora”
das “raças inferiores” foi reforçado durante este período e integrava os discursos oficiais e políticos
que procuravam marcar a determinação do regime na preservação do império colonial – “É da
essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar do-
mínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo
também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente” (Constituição Política da
República Portuguesa & Acto Colonial, 1933).

Segundo Oliveira Salazar, instituidor do Estado Novo e presidente do Conselho de Ministros entre
1932 e 1968, “devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das raças
inferiores cujo chamamento à nossa civilização cristã é uma das conceções mais arrojadas e das
mais altas obras da civilização portuguesa” (Salazar, citado em Torgal e Homem, 1982: 1451).

As representações raciais dominantes durante o Estado Novo aparecem bem patentes nos diver-
sos congressos coloniais onde cientistas, académicos, políticos, militares e religiosos discutiam

(42) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
a “missão civilizadora” de Portugal. Numa altura em que na maioria dos países europeus e nos
Estados Unidos da América, a antropologia física era já seriamente contestada (Cabecinhas e
Cunha, 2003: 166-169). No palco do Congresso do Mundo Português, realizado em 1940, tiveram
lugar comunicações sobre a mestiçagem, grupos sanguíneos, pigmentação, pureza bioquímica,
entre outras. As teses apresentadas procuravam refutar as teorias de cientistas europeus acerca
do nível intelectual de diversos grupos raciais que desvalorizavam os portugueses face a outras
nacionalidades. É curioso notar que o esforço é posto em negociar uma posição mais favorável
aos lusitanos dentro da “hierarquia das raças” e não em questionar a validade deste tipo de
constructo.

O teor das comunicações é brevemente ilustrado pelos trechos seguintes: “Não é exacto o que
sobre a pretensa decadência de Portugal afirma Henri Decugis no seu livro «Le Destin des Races
Blanches». Essa decadência seria devida, segundo aquele autor, à infecundidade das famílias
dirigentes, à pululação de elementos inferiores, a um abastardamento da raça pelo mestiçamento
intenso com gente de cor, ao abaixamento do nível intelectual da população, à escassez de indi-
víduos de escol, que de há três séculos a esta parte quási não permitiria a Portugal participar no
prodigioso movimento intelectual da Europa. (…) Limitar-nos-emos a registar com desvanecimento
que a simples realização deste Congresso é um protesto contra a asserção dos que nos dizem
decadentes, na mais lamentável ignorância do nosso brilhante movimento intelectual do século
XVIII, da nossa acção no Brasil colonial, dos nossos modernos esforços para a valorização das co-
lónias, do labor de alguns dos nossos institutos científicos, do verdadeiro milagre de ressurgimento
operado sob a direcção firme e esclarecida de Salazar” (Mendes Corrêa, 1940a: XIV-XV).

Eusébio Tamagnini, numa comunicação intitulada “Os grupos sanguíneos dos portugueses”, afir-
ma, “por muito que custe ao espírito liberal e aos internacionalistas”, a “desigualdade natural dos
homens, mas também dos povos e nações” existe. O cientista, principal dirigente da escola de
Antropologia de Coimbra e Ministro da Instrução Pública e Belas Artes, entende que a essa desi-
gualdade humana está subjacente uma hierarquia a que necessariamente “se têm de subordinar
todos os inferiores, quer no que toca aos indivíduos, quer no que afecta os agregados populacio-

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (43)
nais”. E continua: “Pode todavia afirmar-se, sem receio de contestação, que os europeus, no seu
conjunto, ocupam o primeiro lugar entre os povos progressivos, tendo marcado sempre a sua
nítida superioridade seja qual for o aspecto sob que os comparemos com os outros povos existen-
tes. Sabe-se porém que a construtura étnica um povo, duma nação, está em contínua evolução.
(…) A importância do facto apreende-se imediatamente se, considerando a nossa posição de povo
colonizador, pensamos um pouco nas enormes facilidades de mestiçagem que concedem os
múltiplos e prolongados contactos com elementos étnicos inferiores em regime de subordinação
política e social. Ora, precisamente, é-nos feita a acusação de termos absorvido em demasia
quantidade considerável de sangue negro, em consequência de mestiçagem intensa com escravos
negros importados da África. (…) Parece-nos, pois, que neste Congresso, que se realiza para fes-
tejar a data histórica da nossa origem como nação europeia, e a da nossa definitiva consolidação
nacional como povo ibérico independente, não será descabida a prova da inexatidão da tese dos
«portugueses negróides». Limitar-me-ei à consideração dos grupos sanguíneos, embora se possa
chegar à mesma conclusão pelo estudo de outros aspectos da questão” (Tamagnini, 1940: 4-5).

Defende que embora alguns portugueses estejam já afetados por sangue negro, em virtude de
processos de miscigenação, o povo tem conseguido manter a pureza racial própria dos povos
superiores – “Como se verifica, os portugueses ficam bem enquadrados no âmbito das popu-
lações europeias. A frequência do grupo A manifesta-se inferior à dos suecos, mas é superior à
dos dinamarqueses; concomitantemente, a frequência do grupo O, mais alta que nos suecos, é
sensivelmente inferior à dos dinamarqueses. Quanto ao grupo B, os portugueses manifestam uma
frequência inferior quer à dos suecos quer à dos dinamarqueses. (…) Verifica-se que, não obstante
certos desvairos, temos conseguido manter a pureza étnica relativa da massa populacional, e, se
é certo que as origens do tipo nórdico se têm de rebuscar num conjunto de mutações dum ante-
passado dolicocéfalo moreno, nós portugueses, como representantes desse antepassado comum,
não poderemos ser acusados de termos abastardado a família” (Tamagnini, 1940: 20-22).

Também Ayres de Azevedo, cientista que esteve na vanguarda dos estudos eugénicos em Portugal
e que, em meados da década de 1940, viria a trabalhar na Alemanha em colaboração com os

(44) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
cientistas que deram corpo à política racial do nazismo (Castanheira, 2010), na sua comunicação
sobre “A pureza bioquímica do Povo Português”, procura demonstrar que a contaminação pos-
sível da raça portuguesa em resultado dos contactos coloniais é praticamente nula e que o povo
português se encontra num estado de pureza bioquímica semelhante ao dos povos da Europa do
Norte – “O índice biológico racial europeu eleva-se muito nos pontos relativamente isolados, de
difícil acesso: a segregação é sempre acompanhada dum aumento da pureza racial. Em Portugal
verifica-se que a percentagem de B cresce de norte para sul, acréscimo que traduz a infiltração,
geograficamente mais fácil e historicamente bem conhecida, da raça Árabe no sul do país, en-
quanto que o norte esteve exposto às invasões dos povos nórdicos. (…) Analisando no quadro I
as percentagens da distribuição do nosso povo pelos diferentes grupos sanguíneos e o número
de indivíduos classificados, vemos que do estudo de 3 757 portugueses foi possível calcular para
índice bioquímico o valor de 4,3. (…) É este que, incluído na lista dos índices de Hirszfeld (quadro
2), mostra o alto lugar que o nosso povo ocupa entre os povos de tipo europeu. (…) Classificações
recentes dos ingleses estabeleceram para este povo um índice inferior ao dos franceses, ficando
portanto os portugueses na situação do povo mais europeu, como dizem Prates e Fraga, sob este
ponto de vista” (Azevedo, 1940: 557-559).

O médico defendia que “a estrutura bioquímica do sangue é um elemento do mais alto valor que
nunca deverá ser dispensado na definição e estudo duma raça” e que a “infiltração das raças
coloniais” poderia contribuir para a impureza do povo português: “Ora, verifica-se que tal não
sucede, continuando o povo português, a despeito da intensa e persistente actividade coloniza-
dora prosseguida durante cinco séculos, a manter-se num estado de grande pureza, maior que
a quási totalidade dos povos da Europa. (…) É muito grande a pureza bioquímica da população
portuguesa, o que coloca o nosso povo, sob este aspecto, no mais alto lugar da lista das raças de
tipo europeu (Classificação de Ottenberg). (…) A influência das raças coloniais (nomeadamente
Hindu e Negra) na pureza bioquímica do povo português, é praticamente nula” (Azevedo, 1940:
560-563).

Mendes Corrêa, antropólogo português, presidiu enquanto Presidente da Câmara Municipal do

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (45)
Porto ao Congresso do Mundo Português, onde apresentou comunicações intituladas “Factores
degenerativos na população portuguesa e seu combate” e “O mestiçamento nas colónias
portuguesas”. Resistindo tanto a qualquer tentativa de incentivar a miscigenação como estratégia
para a manutenção e crescimento do poderio colonial como à defesa da capacidade dos portu-
gueses se cruzarem harmonicamente com outros povos do mundo, Corrêa alega que “a pureza
do sangue português metropolitano é uma condição essencial da continuidade histórica e moral
da Nação”. Não obstante verificar-se no Brasil e nas colónias “um mestiçamento relativamente
intenso de portugueses com raças exóticas, no Portugal metropolitano, nos últimos decénios,
o fenómeno é felizmente mais raro, tendo-se eliminado muitos antigos elementos alienígenas”
(Mendes Corrêa, 1940b: 587).

Considera o cientista que, embora não se conheçam estudos conclusivos acerca da inferioridade
decorrente da mestiçagem, o otimismo acerca do processo “constitui uma perigosa utopia” e
não pode, de todo, “constituir a base de uma política colonial subordinada a um princípio de
continuidade histórica da nação”, sob pena do desaparecimento “da superfície do globo o povo
português, ainda que este nome sobrevivesse, mesmo aplicado a muito mais vasta massa endé-
mica” (Mendes Corrêa, 1940c: 133). E faz o alerta: “É intuitivo que, quanto mais intenso e variado
for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa,
mais rápida e fortemente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o
que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multissecu-
lar, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa” (Mendes Corrêa, 1940c: 130-131).

Extremadas as comparações, Mendes Corrêa alerta para o risco da miscigenação produzir seres
idênticos aos rafeiros, em palavras que ilustram a aversão que sente relativamente ao processo
biológico: “Dificilmente se encontrarão hoje grupos raciais homogéneos. Mas o mestiçamento
generalizado e sem restrições só poderá conduzir a um confuso melting pot de que sairá uma
humanidade biologicamente comparável, no seu profuso polimorfismo individual, na sua varieda-
de caprichosa e incongruente, na infiltração germinal de todos os factores degenerativos – senão
letais – e de todas as insuficiências individuais, aos atípicos e lazarentos «cães da rua» (…)

(46) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Leclainche considera a manutenção de barreiras de raça como «geradora de cataclismos de que
a humanidade acabará por se cansar». Não resultará igual ou maior cataclismo da abolição total
dessas barreiras? Não sucederiam a alguns conflitos inter-raciais miríades de conflitos endémicos
entre indivíduos e até de dramáticos conflitos interiores em cada indivíduo?” (Mendes Corrêa,
1940c:122).

Mendes Corrêa reconhece, no entanto, o aspeto utilitário do “mestiçamento em circunstâncias


especiais”, como “a escassez de colonos portugueses vindos da metrópole, dificuldade de aclima-
ção dos europeus”, e entende até que os mestiços, “como cooperadores da nossa ação colonial
e como seres humanos”, tenham direito “à nossa simpatia e apoio”, mas sempre considerando
que: “O seu papel político não deve ultrapassar o âmbito da vida local, nunca eles deverão, como
não devem os estrangeiros naturalizados, exercer postos superiores da política geral do país, salvo
porventura em casos de demonstrada e completa identificação connosco, no temperamento, na
vontade, no sentir, nos ideais, casos esses, aliás, muito excepcionais e improváveis” (Mendes
Corrêa, 1940c: 132).

Verificamos assim que, antes da Segunda Guerra Mundial, na ideologia dominante do Estado
português, subsistem imagens do negro como “inferior”, “selvagem”, “subalterno”, que vigoram
em paralelo com as teorias pseudo-científicas promovidas para justificar a dominação colonial. As
imagens inversas, em que ao negro aparecem associados traços positivos, são geralmente as de-
correntes da influência civilizadora do Homem Branco: a transformação de um negro “selvagem”
num negro “civilizado”, isto é, “assimilado” (Cunha, 1994: 27-28).

No final da Segunda Guerra Mundial, o enfraquecimento da Europa levou ao fortalecimento e à


independência de alguns países colonizados em África e na Ásia e, sobretudo a partir de meados
da década de 1950, Portugal tornou-se cada vez mais alvo de pressões internacionais anticolo-
nialistas. Foi nesse contexto que as teses luso-tropicalistas do sociólogo Gilberto Freyre ganharam
particular notoriedade e foram politicamente aproveitadas por Salazar, como forma de “legitimar
a permanência portuguesa numa África independente e minimizar os efeitos da guerra colonial”

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (47)
(Henriques, 2004: 305). Essas teses assentavam na ideia de que os portugueses tinham uma
especial aptidão para lidar com os povos dos trópicos e essa vocação conferia uma especificidade
ao colonialismo português distinguindo-o das restantes potências colonizadoras.

Narrativas que hoje quase podemos apelidar de “românticas” descreviam a relação entre coloni-
zados e portugueses com recurso a termos como “família, irmãos, fraternidade humana, comuni-
dade, fusão, multiracialismo”, enfim, configurações de uma “cultura portuguesa igualitária e as-
similadora” (Siegfried, 1951, citado em Santos, 1966: 234). Descrições relativas à “amplitude do
ânimo melanistamente democrático dos portugueses” apareciam por oposição à colonização de
outras potências europeias, “tão cruelmente desdenhosa, até há pouco, das populações de cor”
(Freyre, citado em Santos, 1966: 214) – “Sendo assim, como se admitir como justa a campanha
que se vem fazendo nos últimos dois anos, metodicamente, tecnicamente, e dispendiosamente
contra Portugal, em livros, em jornais e em revistas de vários países – até em revistas como o
excelente The New Leader, de Nova Iorque – e com repercussão no próprio Brasil, sob a alegação
de que as chamadas províncias de Portugal no Oriente e na África são colónias do mesmo tipo das
até há pouco colónias inglesas, holandesas, francesas, belgas; ou das que restam a esses poderes
europeus, hoje impérios em dissolução, no Oriente, na África e na própria América? Como dizer-se
que nessas províncias se humilham populações de cor e se conservam as suas culturas à parte
ou à distância das europeias, com o mesmo rigor sistemático com que os ingleses, holandeses,
belgas e mesmo franceses vinham praticando nos trópicos sua política como que profilática de
minorias europeias intransigentemente «superiores», em suas atitudes e em seu procedimento, a
maioria de gentes de cor consideradas «inferiores»?” (Freyre, citado em Santos, 1966: 215).

Estrategicamente nos discursos políticos foi progressivamente desaparecendo a referência ao


binómio “raças superiores” e “raças inferiores”. Em 1951 foram abolidas as designações de
“império colonial” e de “colónias”, passando os textos oficiais a substituí-las por “ultramar” e
“províncias ultramarinas” (Cabecinhas e Cunha, 2003: 173).

Em 1954 foram introduzidas alterações à Lei Orgânica do Ultramar e a aplicação dos princípios

(48) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
da Constituição Política previu, através do Decreto-Lei n.º 39666, de 20 de maio, a possibilidade
de extinção da condição de indígena e da aquisição da cidadania. Assim, os indígenas, “indivíduos
de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não
possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplica-
ção do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (Art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 39666,
Boletim Oficial de Angola, 1954: 374) puderam, a partir de então, perder essa condição e adquirir
a cidadania, desde que provando satisfazer cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Ter mais de 18 anos;

b) Falar correctamente a língua portuguesa;

c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento
próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo
fim;

d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a


integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses;

e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor
(Art.º 56.º do Decreto-Lei n.º 39666, Boletim Oficial de Angola, 1954: 377).

Em 1961, através de um processo acelerado de reformas, Adriano Moreira, Ministro do Ultramar,


aboliu o estatuto do indígena, as culturas forçadas e o trabalho obrigatório,3 mudanças estas
que correspondem à adoção do luso-tropicalismo como doutrina oficial do regime. Note-se, no
entanto, que a teoria formulada pelo sociólogo Gilberto Freyre era já conhecida em Portugal nos
anos 1930, embora na altura a ideologia dominante – que se fundava na oposição entre povos
“civilizados” e povos “primitivos” ou “selvagens” – recusasse a
apologia da mestiçagem e a noção de integração ou fusão cul-
3 A este propósito, leia-se a entrevista de
tural dos povos, conforme ilustram, aliás, as anteriores citações Adriano Moreira ao jornal Público de dia
22 de abril de 1995. Acessível a partir
de http://www.espoliadosultramar.com/
n9.html.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (49)
de Mendes Corrêa. O governo português procurou apagar da legislação os indícios mais evidentes
da discriminação racial e a retórica do regime passou a dar ênfase à formação de “sociedades
multiraciais” no Ultramar (Alexandre, 1999, 142-143): “É sempre difícil a um português tratar
problemas raciais perante um auditório estrangeiro, porque na realidade tal problema não existe
em Portugal. A antinomia Schwarz und Weiss4 (preto e branco) não faz sentido para nós, a não ser,
em pequeníssima escala, nas regiões onde o convívio com vizinhos estrangeiros exerce alguma
influência nas nossas populações. O que sucede é, muitas vezes, dar-se uma certa coincidência
entre cor e nível social, podendo, à primeira vista, parecer, ao olhar desprevenido de um estranho,
que se trata de diferenciação racial. (…) O rápido desenvolvimento económico e industrial, que
se está a operar na nossa terra, deve ter a sua repercussão no convívio dos homens, e é possível
que haja por vezes nele certa tendência – aliás natural – para que as classes sociais tendam a
coincidir um pouco com diferenças de cor. Mais grave é talvez o exemplo dado por outros povos
que tende a exercer uma certa acção nos cidadãos recém-chegados, sobretudo nos mais simples
e menos cultos, que podem ser tentados a sentirem-se superiores pelo facto de serem brancos.
É tão agradável a gente sentir-se superior, que nos serve até um mito! Mas dada a nossa tradição
e a orientação dos governantes é de esperar que isso seja passageiro” (Dias, citado em Santos,
1966: 204-210).

No plano ideológico, académico e político, tornaram-se bem visíveis as fundamentações contra


as acusações internacionais de que Portugal se tornou alvo, baseadas no “sentido humano do
pluri-racialismo português”, título de um artigo de Soares Barata, de onde destacamos o trecho
seguinte: “Os que tais ataques nos dirigem fazem simplesmente tábua rasa dos ensinamentos
que decorrem de uma experiência plurissecular de harmonia racial e de que é testemunho muito
eloquente uma das maiores nações do mundo moderno. Os que assim procedem, inspirados
em práticas que, se foram as dos outros povos nunca foram as nossas, esquecem que muito
antes de outros europeus terem começado a instalar-se fora
4 Tradução portuguesa de uma
comunicação proferida por Jorge Dias, da Europa, já o ideal cristão da igualdade de todos os homens
“Convívio entre pretos e brancos nas
Províncias Ultramarinas Portuguesas”,
independentemente da raça ou da cor da pele era o elemento
apresentada em alemão numa reunião inspirador da maneira de ser dos portugueses no Ultramar. (…)
internacional realizada em Frankfurt, em
junho de 1958.

(50) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Face ao racismo branco, ao racismo negro, ao racismo amarelo, os portugueses de todas as cores
afirmaram-se assim dispostos a manter o seu convívio, a continuar o seu labor, a unir-se num
comum esforço de progresso e de aumento do bem-estar. Trata-se bem no seu sentido plurirracial,
em face dos ódios que separam os povos, de continuar uma tradição que tende a constituir de
algum modo uma nova humanidade. Tendo no passado contribuído para dar «novos mundos
ao mundo» parece caber aos portugueses de todas as cores unir-se para dar novos homens ao
homem” (Barata, citado em Santos, 1966: 230-233).

Porém, a representação do negro e das “relações raciais” “mudou mais à superfície que em
profundidade, tendo permanecido o paternalismo, que devia continuar a ser exercido sobre os
povos das províncias ultramarinas” (Cunha, 1994: 22), como aliás nos exemplificam as palavras
de Freyre que não resistimos a citar: “Certa vez fui recebido com a melhor das hospitalidades pelo
já velho patriarca de uma pequena fazenda do interior da Angola que me informou, dando sinais
de profundamente triste, ter a mão direita um tanto intumescida: precisara na manhã daquele dia,
disciplinar um jovem servo africano, seu afilhado. Disse-me o nome do jovem – algum António ou
Manuel – pois o português ou o descendente ou continuador de português patriarcal, na África ou
no Oriente, não trata nunca um nativo, simples e impessoalmente, como boy, à maneira inglesa
e de outros europeus; e sim, afectuosamente, cristãmente, pelo nome de cada um. Imaginei o
assombro de um dos meus colegas de universidade dos Estados Unidos – o professor Melville
Herskovits, africanologista ilustre, por exemplo – em face de uma confissão daquela espécie: a
de um português branco da Angola que não hesitava em informar a um estranho ter castigado
com vigorosos golpes um dos seus jovens servos africanos. Eu, porém, lembrei-me imediatamente
dos meus dias de menino: dos castigos físicos que eu próprio recebera de um pai patriarcal às
vezes severo com os filhos; dos castigos que vi serem aplicados pelos velhos da casa ao jovem
Severino, preto afilhado de minha Mãe e companheiro de brinquedos do meu irmão mais velho.
Patriarcalismo. Familismo” (Freyre, citado em Santos, 1966: 217).

A revolução democratizante de abril de 1974 induziu o processo de descolonização, e as nego-


ciações para o reconhecimento da autonomia e independência dos territórios ultramarinos foram

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (51)
tendo lugar sequencialmente, entre 1974 e 1975.5 Segundo Alexandre, a perda das ex-colónias e
a queda do Império não levaram à dissipação do luso-tropicalismo. Os seus temas continuaram
a circular de forma difusa, herança dos aparelhos ideológicos do Estado Novo – em particular da
escola – que reivindicou um modo de estar no mundo específico dos portugueses, mas também
de um nacionalismo português que incorporou essa especificidade no quadro de valores próprios
da identidade nacional imaginada e construída (Alexandre, 1999:143). A imagem do país de “bran-
dos costumes” tornou-se um lugar comum na sociedade portuguesa e constitui um elemento do
seu imaginário coletivo. A perda das colónias não feriu a imagem nacional (Miranda, 2001, referido
em Cabecinhas e Cunha, 2003:182). Aliás, segundo Eduardo Lourenço, “cultivamos, oniricamen-
te, um Império de quinhentos anos como se nunca de lá tivéssemos saído. (…) O Quinto Império
está em nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente na feira dos mitos extintos” (Lourenço,
1999: 67- 86).

Através da análise dos discursos do quotidiano que nos propusemos fazer neste trabalho, procu-
raremos perceber em que medida persistem no senso comum perceções do Outro baseadas num
imaginário com raízes históricas, bem como imagens dos portugueses associadas a uma maneira
particular de estar no mundo, imagens essas ideologicamente veiculadas no país desde há cerca
de três ou quatro décadas.

2. HISTORIAL MIGRATÓRIO

A par de um passado imperial, Portugal é tradicionalmente um país de emigração. Enquanto economia


periférica do Sul da Europa, tem uma longa história de fornecimento de mão-de-obra não qualificada
a países mais desenvolvidos. Estima-se que cerca de 5.500.000 portugueses e seus descendentes
– cerca de metade da atual população residente – vivam no estran-
5 A independência da Guiné Bissau em geiro (Lopes, 1999). Há uma considerável notoriedade pública des-
setembro de 1974, a soberania indiana de
Goa, Damão e Diu em outubro de 1974, a se facto que, na nossa experiência, tende a surgir como argumento
independência de Moçambique em junho
de 1975, de Cabo Verde e de São Tomé e a favor da hospitalidade em debates sobre a imigração.
Príncipe em setembro de 1975 e de Angola
em novembro de 1975.

(52) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
As primeiras décadas do século XX foram marcadas pela saída de um grande número de pessoas
do país. Os destinos de eleição nesse período foram o Brasil, a Venezuela, o Canadá e os Estados
Unidos da América. A partir dos anos 1960, a emigração transatlântica foi cada vez mais substi-
tuída pela emigração para a Europa Ocidental. O crescimento das economias europeias e a sua
proximidade geográfica levaram a uma mudança na direção dos fluxos migratórios portugueses.
Embora a tradicional migração transatlântica não tenha desaparecido por completo, assistimos a
um novo ciclo na história da emigração portuguesa. França passou a ser o destino principal dos
portugueses que se mudavam para outro país. Seguiram-se fluxos de população (correspondendo
a cerca de um terço da população laboral) para países como a Alemanha, Bélgica, Suíça, Holanda,
Inglaterra e Luxemburgo. O fluxo de emigração para a Europa entre 1960 e 1974 é estimado em
1.500.000 pessoas, o que equivale a cerca de 100.000 emigrantes por ano (Ferrão, 1996).

No entanto, o primeiro choque petrolífero teve efeitos imediatos e duradouros sobre os padrões
migratórios. As medidas de controlo foram apertadas e as fronteiras fechadas, principalmente na
Europa. A maior parte dos países impôs restrições a novos contingentes de imigrantes e encorajou
o regresso de residentes estrangeiros aos seus países de origem. Neste período, os tradicionais
destinos não-europeus – nomeadamente os Estados Unidos da América, o Canadá, a Venezuela e
a Austrália – foram os que mostraram maior permeabilidade à imigração portuguesa.

Ao mesmo tempo que na economia mundial se encerra o ciclo dos trinta gloriosos anos de cres-
cimento do pós-guerra, em Portugal dá-se um golpe militar que põe fim ao Estado Novo (28 de
maio de 1926 – 25 de abril de 1974) e conduz a uma mudança de regime no sentido de uma de-
mocracia parlamentar de pendor semi-presidencialista, realizando-se as primeiras eleições livres
exatamente um ano depois do golpe militar. Esta situação levou ao regresso dos exilados políticos
e abriu caminho para uma série de mudanças sociais que ajudaram a estancar a saída de po-
pulação do país. Na sequência da descolonização, em 1975, muitos portugueses que viviam nas
ex-colónias regressaram a Portugal. Estima-se, com base no recenseamento de 1981, que cerca
de meio milhão de portugueses tenham sido repatriados, o que constitui o maior movimento de
população na história portuguesa moderna (Pires, 2003). Podemos considerar que 1986 marca o

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (53)
fim deste período de turbulência, com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia
(CEE) a conduzir a um declínio inequívoco na emigração.

A conjuntura que emergiu após 1986 foi palco não apenas numa redução da emigração mas
também num aumento da imigração. Foi principalmente no final dos anos 1980 e inícios dos anos
1990 que a imigração para Portugal se tornou um fenómeno importante. Para além do aumento
no número de imigrantes, pudemos ainda assistir a uma diversificação na origem dos fluxos. Essa
diversificação resulta principalmente de um abrandamento da imigração oriunda das ex-colónias
africanas – que decorria desde os anos 1960, compensando a escassez de mão-de-obra derivada
do recrutamento militar de população autóctone para as guerras coloniais, dos exílios políticos
e da emigração económica –, de um ligeiro crescimento nos números de imigrantes indianos e
chineses e de um aumento significativo dos imigrantes oriundos do Brasil. Esta primeira vaga de
imigrantes brasileiros chegou a Portugal para trabalhar em ocupações altamente especializadas,
como a medicina dentária, o marketing, a publicidade, entre outras.

Mas foi em 2000 que o panorama geral da imigração portuguesa se alterou significativamente.
O número de imigrantes tinha vindo a aumentar, mas registaram-se mudanças qualitativas e
quantitativas nos fluxos migratórios que, até então, tinham permanecido relativamente constantes.
Um súbito influxo em massa de ucranianos fez deles, nos meados da década, uma das cinco
nacionalidades de imigrantes mais numerosas, a par dos brasileiros, cabo-verdianos, angolanos e
guineenses. Em 2007, os grupos mais representativos da imigração em Portugal eram, segundo
dados do SEF os brasileiros (66.354), os cabo-verdianos (63.925), os ucranianos (39.480), os
angolanos (32.728) e os guineenses (23.733) (SEF, 2007: 18). Correlativamente, o perfil dos imi-
grantes registou algumas alterações e assistiu-se a um marcado aumento do nível de qualificações
académicas e profissionais dos imigrantes em geral e da sua respetiva integração ocupacional.
Este efeito só foi mitigado pelo facto da segunda vaga de imigrantes brasileiros, que também se
manifestou por esta altura, ter sido composta na sua maioria por trabalhadores pouco qualificados
que ocuparam posições no setor dos serviços (hotéis, restaurantes e comércio). Mas, embora
os imigrantes da Europa de Leste que começavam a entrar em Portugal tivessem, regra geral,
qualificações superiores à maioria dos imigrantes que já se encontravam no país, a verdade é que

(54) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
se integraram em setores do mercado que precisavam, principalmente, de grandes quantidades
de trabalho não qualificado. É também de referir o facto de, por essa altura, terem começado a
emergir novos padrões de dispersão geográfica em correlação com oportunidades de emprego
em mercados de trabalho locais. Até meados dos anos 1990, a distribuição geográfica dos imi-
grantes estava relativamente concentrada na área da Grande Lisboa (essencialmente africanos),
com alguma presença no Algarve (europeus, na sua maioria) e no Litoral Norte (brasileiros, contra-
-fluxo resultante de emigração prévia para o Brasil). Esta distribuição refletia a concentração de
oportunidades de emprego nas principais áreas metropolitanas do país e a importância das redes
migratórias para a fixação de recém-chegados. No entanto, por volta do ano 2000, emergiu um no-
vo padrão, com a dispersão dos imigrantes por todo o território nacional. Isto deveu-se à dinâmica
de desenvolvimento regional e à necessidade de remediar a escassez de mão-de-obra em algumas
das regiões mais despovoadas do país (como o interior), bem como a investimentos públicos e pri-
vados em infra-estruturas e instalações (a barragem do Alqueva, o desenvolvimento da rede viária,
os estádios para o Euro 2004, etc.). Os imigrantes da Europa de Leste, no entanto, evidenciaram
uma dispersão geográfica mais ampla do que os brasileiros e os dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa.

Na viragem do milénio, Portugal tinha, assim, invertido a sua posição no sistema migratório in-
ternacional. Até aos anos 1970, a emigração foi predominante, mas desde então registou um
abrandamento significativo e, em particular desde os anos 1990, a imigração tornou-se uma força
muito mais significativa. Ainda assim, Portugal está, quando comparado com o resto da Europa,
longe de ser um dos países europeus com maior percentagem de imigrantes, e é mesmo um
dos países com menor afluxo anual. Num recente relatório do Eurostat (2010: 1-2), o peso médio
dos cidadãos de nacionalidade estrangeira no conjunto da população da União era em 2009 de
6,4%, linha média que Estados-membros como o Luxemburgo (43,5%), a Letónia (17,9%), o Chipre
(16,1%), a Estónia (16%), a Espanha (12,3%), a Irlanda (11,3%) e a Áustria (10,3%) ultrapassaram
em larga medida. Em Portugal, a percentagem média de população de nacionalidade estrangeira
não foi além de 4,2%, significativamente abaixo da média europeia e muito aquém dos pesos
médios dos Estados-membros referidos.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (55)
Contudo, as mudanças na conjuntura nacional e internacional podem estar a devolver a Portugal
o seu antigo papel de país predominantemente emissor. Uma análise aprofundada dos dados do
Eurostat mostra, por exemplo, que o número de imigrantes portugueses permanentes a chegar
aos países do Eurostat que facilitam estes dados é agora superior ao número de imigrantes que
chega a Portugal. Se os tradicionais destinos não-europeus da emigração portuguesa também
fossem tidos em conta, esta clivagem seria ainda mais acentuada.

3. OS CIGANOS

O presente estudo versa as questões do racismo, cuja abordagem não pode circunscrever-se às
suas conexões com a questão da imigração. Portanto, é apropriado contemplar na descrição do
contexto nacional uma breve resenha sobre os ciganos, que embora sendo portugueses, são,
de acordo com um inquérito recente às perceções subjetivas de racismo aplicado a amostras
representativas dos cabo-verdianos, guineenses, brasileiros, ucranianos e ciganos residentes em
Portugal, uma das minorias que mais se sente discriminada e alvo de racismo em Portugal (Santos
et al., 2009).

Para contextualizar a reflexão sobre os ciganos, importa conhecer algumas das condicionantes
históricas que têm marcado a diferenciação da comunidade cigana, procurar entender em que
medida a sua integração na sociedade portuguesa tem sido enquadrada e como é produzida e
reproduzida a estigmatização, os estereótipos e as representações sobre o Outro (Magano, 2007).

Julga-se que a presença dos ciganos em Portugal remonta ao século XV com uma primeira re-
ferência documental do início do século XVI (1510), no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Durante o reinado de D. João III, o alvará de 13 de Março de 1526, que se refere à recusa de
entrada e expulsão dos ciganos em território português, é o diploma legislativo mais antigo que
se conhece em Portugal relativo à presença dos ciganos (Costa, 1995, citado em Cortesão et al.,
2005: 17). As primeiras fontes documentais são, então, acerca de medidas persecutórias e da

(56) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
hostilidade da população portuguesa para com o povo cigano, então nómada (Magano, 2007).
De facto, a legislação produzida sobre os ciganos ao longo dos séculos evidencia a perseguição a
que estes estiveram sujeitos desde longa data, tanto em Portugal como no resto da Europa (Tong,
1989, citado em Magano, 2007). Correia (2007: 13-15) faz uma compilação das leis, regulamen-
tos e deliberações administrativas iniciadoras de práticas persecutórias sobre os ciganos que vão
desde a interdição para entrar e expulsão, sob pena de açoites públicos e degredo para as galés
(D. João III em 1538 e 1557, respetivamente) à execução com a pena de morte “sem apelação
nem agravo”, àqueles que se recusarem a abandonar o território nacional (D. Filipe I, 1592). Em
1614 Filipe II exclui a pena de morte mas mantém medidas duras para os ciganos que entrem no
Reino. D. João IV promulga alvarás que mandam retirar os filhos aos ciganos a partir dos 9 anos
de idade (1647), e aplica penas de 3 anos de degredo para Castro Marim ou África às pessoas que
acolherem ou alugarem casas aos ciganos (1649). A partir da Lei 1686, Portugal passa a tolerar a
presença de ciganos naturais, filhos e netos de portugueses, desde que com residência fixa. Pedro
II, na segunda metade do século XVI, retoma a pena de morte aos ciganos que entrem no reino.
Em 1800 D. Maria reforça as proibições de nomadismo já vigentes no século XVII. A Constituição
da República de 1822 e a Carta Constitucional eliminam a desigualdade em função da raça e reco-
nhecem a cidadania aos ciganos nascidos em território nacional. A perseguição aos ciganos passa
a ser permitida, tal como aos outros cidadãos, unicamente aos que cometem crimes. No Código
Penal de 1852 ser cigano já não constitui crime. Não obstante, os ciganos continuam a ser alvo
de medidas administrativas e de “vigilância especial”, conforme se lê no Regulamento da GNR de
1920 e, ainda mais tarde, no de 1985 (IGAI, 1998: 20-21). Em termos institucionais e administra-
tivos, outros episódios marcaram o século XX, como a ordenação da Câmara Municipal de Ponte
de Lima aos “indivíduos de etnia cigana (…) que abandonassem o Concelho no prazo de oito dias
e que de futuro apenas permanecessem 48 horas”, de 10 de Maio de 1993. Esta medida veio a
ser impedida por reação do procurador da República e do Provedor de Justiça (Correia, 2007: 15).

As relações entre os ciganos e a restante população portuguesa, o fechamento e/ou ostracização


dos primeiros, os modos de vida diferenciados e pouco comunicantes, levam a um desconheci-
mento recíproco entre a população maioritária e minoritária. A escassez da informação disponível,

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (57)
a multiplicidade de recolha de dados, a dispersão dos registos e a falta de sistematização de
elementos fiáveis de caracterização dos ciganos portugueses constituem, todos eles, elementos de
incerteza sobre esta comunidade (Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura, s.d.: 12).

A literatura existente é relativamente consensual quanto à escassez de informação sobre os ci-


ganos no país (Mendes, 2005: 19; Cabecinhas, 2002: 103; Bastos e Bastos, 1999: 140), tanto
no que diz respeito aos números como à realidade social e ao conhecimento científico desta
população: “A pesquisa bibliográfica sobre a etnia cigana e a sua presença em Portugal revela
uma falta de interesse sobre este povo que não surpreenderá se tomarmos este desinteresse por
parte da comunidade científica e literária portuguesa como algo que está em perfeita consonância
com a atitude generalizadora de indiferença para com os ciganos” (Machado, 1994, citado em
GTIIC, 1998: 15).

Quanto ao número de ciganos, as estimativas variam consoante a fonte: 20.000 (Nunes, 1981),
50.000 (Vasconcelos, 1998) 30.000 a 92.000 (Mendes, 1998), 50.000 a 100.000 (Machiels,
2002). De acordo com o Relatório do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos
(GTIIC), de 1998, existiam à data cerca de 40.000 cidadãos portugueses suscetíveis de serem
considerados como ciganos.

Como razões para a escassez de informação sobre os ciganos são apontadas o facto de as es-
tatísticas portuguesas não integrarem registo quanto à etnia, dificultando o conhecimento mais
aprofundado dos números e condições de vida desta população; o desconhecimento mútuo entre
ciganos e não ciganos, que gera dinâmicas simbólicas que contribuem para a generalização de re-
presentações sociais negativas; e ainda as reações defensivas de fechamento dos próprios ciganos
(Dias et al., 2006: 11; Mendes, 2005: 38; Casa-Nova, 2006: 165; Vasconcelos, 1998: 37).

Nos últimos anos o ACIDI tentou colmatar esse desconhecimento e, através do Projeto Ciga-nos,6
tem vindo a promover, entre outras atividades, a produção e divulgação de estudos sobre os
ciganos, como aqueles que integram a Coleção Olhares.

6 Acessível a partir de
http://www.ciga-nos.pt/Home.aspx.

(58) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os trabalhos sobre ciganos, especialmente do foro académico, incidem sobretudo nas temáticas
da exclusão social, racismo, etnicidade e representações sociais. Convergem numa caracterização
desta população – fortemente associada a situações de marginalização social, taxas de analfa-
betismo elevadas, abandono escolar precoce, qualificações profissionais baixas, dificuldades de
inserção no mercado de trabalho formal – de onde surgem as dificuldades de relacionamento com
as instituições e as limitações no acesso a recursos sociais disponíveis, nomeadamente em ma-
téria de segurança social, emprego, habitação, saúde, educação, entre outras (Dias et al., 2006;
Casa-Nova, 2003; Correia et al., 2001; Pinto, 2000; Mendes, 1998; Vasconcelos, 1998). Trata-se
sobretudo de estudos de caso, ou seja, trabalhos de campo efetuados em zonas localizadas como
bairros de habitação social ou bairros de barracas, e trabalhos com públicos específicos de as-
sociações, Organizações Não Governamentais e projetos de intervenção social (Dias et al., 2006;
Silva, 2005; Mendes, 2005; Duarte et al., 2005). Daqui resulta que o conhecimento existente não
permita uma abordagem nacional efetiva, mas apenas a extrapolação de análises regionais ou resi-
denciais, que constatam a repetição de padrões de vida, sobretudo em situações de precariedade.

Contudo, de entre a literatura existente contam-se alguns trabalhos que se empreenderam no


esforço de uma caracterização geral tentando um mapeamento e distribuição da população cigana
residente em Portugal e respetivas condições de vida: em 1997 o GTIIC enviou um inquérito à
situação das famílias ciganas a todas as freguesias do país, 4.221. Responderam apenas 1.097,
e, destas, 770 devolveram o inquérito em branco. Os resultados apuraram a existência de 12.535
famílias, integradas por 38.997 pessoas. A fraca taxa de resposta ao inquérito é reveladora da
falta de fiabilidade destes dados (Bastos e Bastos, 1999). Em 2001, o SOS Racismo usou uma
metodologia idêntica, enviando às 307 Câmaras Municipais do país um questionário inquirindo
acerca do número de ciganos, do tipo de relacionamento e interação entre ciganos e a população
maioritária e das medidas empregues pelas autarquias locais com vista à integração desta mino-
ria. Responderam 206 câmaras, cerca de dois terços do total, sendo o número de ciganos apurado
de 21.831 pessoas. Estes valores são francamente baixos e o SOS Racismo faz uma análise dos
dados complementando-os com informações referentes a comunidades ciganas em situação pre-
cária do projeto Dignidade (Obra Nacional Pastoral dos Ciganos, 2000), com dados de um estudo

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (59)
levado a cabo pela Obra Pastoral dos Ciganos (Comunidade Cigana na Diocese de Lisboa) e com
uma comunicação de Manuel Xarepe relativa à concentração de ciganos na área do Alentejo. Da
análise destes resultados pôde concluir-se que a população cigana se encontra concentrada nas
regiões do litoral mais densamente povoadas e nas zonas fronteiriças (SOS Racismo, 2001: 22).

Outro tipo de estudos são os que abordam a frequência de crianças ciganas no sistema escolar
português. A existência de uma base de dados gerida pelo Entreculturas,7 que permite a “clas-
sificação” dos alunos por “grupo cultural”, possibilitando a sua análise e o conhecimento do
percurso escolar das crianças ciganas, confere fiabilidade aos dados dos estudos nesta temática.
Sustentados nesta fonte de informação, alguns autores aferem sobre a distribuição regional dos
ciganos (Bastos e Bastos, 1999) e muitos têm sido os trabalhos que focam sobretudo a proble-
mática da educação das crianças ciganas (Cortesão et al., 2005; Casa-Nova, 2004b; Liégeois,
2001; Montenegro, 1999), e a caracterização dos seus percursos escolares onde, em média, se
destacam as grandes taxas de insucesso, o absentismo e o abandono escolar precoce: “[Para o
cigano] O trabalho não é um valor ou um aspecto da vida em que se pode obter realização pessoal,
mas uma condição indispensável à sobrevivência quotidiana” (Mendes, 2005: 123).

As baixas qualificações escolares que conduzem à falta de com-


7 O Secretariado Coordenador dos
Programas de Educação Multicultural foi petências socioprofissionais, assim como a uma ausência de
criado em 1991 e era então tutelado pelo
Ministério da Educação. Foi integrado adaptação a perfis profissionais inseríveis no mercado regular
no então Alto Comissariado para a
Imigração e Minorias Étnicas em 2004, de trabalho; a ausência de uma tradição de trabalho assala-
enquanto Secretariado Entreculturas. riado; a noção de trabalho que se desenvolve no contexto da
As suas competências consistem num
conhecimento e diagnóstico da realidade vida do grupo familiar, que se desenrola sem horários rígidos,
multicultural nas escolas, Investigação
e ações de intervenção nas escolas e patrões e é marcada por atividades de itinerância,8 são fatores
Colaboração na produção e disseminação
de linhas de orientação sobre educação que contribuem para uma maior vulnerabilidade económica e
intercultural. Para mais informação, veja-se
http://www.acidi.gov.pt/modules.php?nam
social (Gonçalves, Garcia e Barreto, 2006: 35; Silva, 2005: 16;
e=Contentepa=showpageepid=150. Pinto, 2000: 90; GTIIC, 1998: 17) geradora de mecanismos de
8 A variada gama de ocupações
tradicionais dos ciganos reduziu-se empobrecimento, marginalização e guetização e de um estatu-
sobretudo à venda ambulante, às feiras
que se intercalam pelo país inteiro, e aos to marginal e/ou dependente dos benefícios do Estado como
trabalhos sazonais, normalmente em
atividades rurais.

(60) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
a segurança social (Mendes, 2005: 17). A situação dos ciganos, do ponto de vista da noção de
exclusão social, reside na dificuldade adicional de pensarmos em emprego ou proteção social
para indivíduos que sustentam a sua identidade pessoal e social em bases bem distintas das
do cidadão das sociedades onde vigora o modelo de sociedade salarial (Dias et al., 2006: 35). A
realização de trabalho sem a respetiva prestação pecuniária para a segurança social vulnerabiliza
os indivíduos ciganos no acesso ao subsídio de desemprego ou à obtenção de reforma, o que
é muitas vezes atenuado pelas redes de solidariedade familiar e comunitária e pelo recurso ao
Rendimento Social de Inserção9 ou à Pensão de Velhice (Casa-Nova, 2003: 256). A relação com
o trabalho e a “dependência” de subsídios do regime não contributivo da segurança social da po-
pulação cigana são aspetos frequentemente focados pelos participantes dos grupos de discussão,
conforme poderemos ver adiante.

A maior parte dos estudos de caso sobre comunidades ciganas testemunha a incidência desta
população em atividades económicas excluídas do mercado formal de trabalho (a grande maioria
é vendedora ambulante) e desvinculadas da segurança social, e a sua dependência de subsídios
de assistência social (Dias et al., 2006: 64; Mendes, 2005:122; GTIIC, 1998: 24). A literatura
existente sublinha ainda que as dificuldades se têm vindo a acentuar devido à mudança econó-
mica que afeta o comércio ambulante e a atividade de “feirante”10, e ao papel central da escola
e formação no mercado de trabalho (Gonçalves, Garcia e Barreto, 2006: 72; GTIIC, 1998: 26),
urgindo assim uma intervenção concertada, nomeadamente nas
áreas de educação, emprego, formação profissional, habitação e
9 Foi instituído em 1996 – então
segurança social (Vasconcelos, 1998: 37). Por parte da socieda- denominado Rendimento Mínimo Garantido
– com o objetivo de contribuir para o
de dominante, as políticas de formação profissional e de empre- combate à pobreza e exclusão social.
Trata-se da atribuição de um subsídio
go não têm contribuído para o sucesso da inserção profissional pecuniário acompanhado por medidas
complementares, como programas de
pela sua falta de adaptação às especificidades da cultura cigana inserção profissional e escolar, iniciativas
(Silva, 2005: 17). no âmbito da saúde (como vacinação
e planeamento familiar) e qualificação
profissional. Acessível a partir de
http://www1.seg-social.pt/left.asp?03.06.06.
Os ciganos, em Portugal, estão dispersos em grupos de maior 10 As grandes superfícies comerciais vão
ou menor dimensão, na sua grande maioria sedentarizados. afastando as feiras dos centros urbanos e
os espaços existentes para a venda nesses
mercados vão diminuindo.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (61)
Embora muitos deles tenham um modo de vida “semi-itinerante” – marcado por frequente procura
de trabalho, deslocações a feiras e festas, visitas a familiares, ou encontros de família alargada
– isso não exclui a sedentarização entendida como local de referência a que se regressa e com
a qual se identifica a residência (Silva, 2005: 34). A problemática da habitação é muitas vezes
focada em estudos de caso (em bairros de habitação social, zonas de barracas ou acampamen-
tos), mas o desconhecimento da realidade social dos ciganos emerge novamente quanto aos seus
bairros de concentração ao longo do país (Bastos e Bastos, 1999: 156).

Num trabalho sobre as minorias étnicas pobres em Lisboa (Costa e Pimenta, 1991), no que refere
às condições de habitabilidade dos alojamentos, os ciganos apareciam em último lugar em todos
os indicadores, a uma muito grande distância de todas as restantes minorias étnicas (Bastos e
Bastos, 1999: 150). Estima-se que cerca de 31% vivam em situação de habitação precária, em
condições particularmente graves nos distritos de Viana do Castelo, Castelo Branco, Coimbra e
Évora (SOS Racismo, 2001: 22). A intervenção para a resolução de problemas habitacionais é
claramente a que mais motiva as autarquias portuguesas que realizam processos de realojamento
e apoiam a recuperação de casas ou a criação de infra-estruturas nos bairros de residência destas
comunidades (ao abrigo do Programa Especial de Realojamento,11 de protocolos com instituições
do Estado12 ou de outras medidas dos planos nacionais de luta contra a pobreza). Esta intervenção
não se planifica exclusivamente para a comunidade cigana, é sim abrangente às franjas da po-
pulação que vivem em condições de habitabilidade degradadas, não havendo, portanto, medidas
diferenciadas das restantes categorias socialmente vulneráveis.

11 O Programa Especial de Realojamento,


iniciado em 1993, teve como objetivo a
A literatura não relata tanto questões relacionadas com o acesso
erradicação de barracas e “bairros de à habitação pública, mas sim com a precariedade das condições
lata” e a passagem das populações aí
residentes para bairros de habitação social. de vida de alguns ciganos. Esta não se confina ao alojamento
Embora não haja dados exatos, sabe-se
que muitas famílias ciganas beneficiaram em bairros de barracas,13 mas encontra-se também em bairros
deste programa.
12 Como o Instituto Nacional de
de habitação social. O realojamento, por vezes, não tem em
Habitação, por exemplo.
13 Geralmente construções ilegais, feitas
com materiais diversos, com piso de terra
batida, sem janelas, sem divisões, sem
chaminé e sem instalações sanitárias.

(62) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
conta especificidades culturais das diversas etnias14 e não promove a convivência intercultural,
dando origem a situações de conflito e rejeição dentro do próprio bairro. Outro dos problemas é o
da integração inadequada dos bairros no tecido urbano, relegando-os, muitas vezes, para zonas
afastadas dos centros urbanos e produzindo formas de guetização. Para além disso, alguns destes
bairros sofreram uma rápida degradação das construções sem que se proceda à sua reabilitação,
carecendo também de infra-estruturas nas áreas de educação, lazer, acessibilidades entre outras.

Na sequência destas constatações, o Relatório do GTIIC aponta como prioridades, na área da habi-
tação, garantir o acesso dos ciganos à habitação social sem qualquer discriminação relativamente
aos restantes cidadãos, evitar a concentração de ciganos no mesmo prédio ou no mesmo bairro,
como aliás é insistentemente pedido pelos ciganos que desejam viver lado a lado com cidadãos
não ciganos, e sensibilizar os técnicos para o problema dos casais ciganos que por falta de meios
se vêem obrigados a partilhar o mesmo apartamento com a família mais alargada, nomeadamente
com outros casais (1998: 27).

Sobre a temática da saúde, a bibliografia remete-nos para uma relação mútua de desconfiança
entre os ciganos e os técnicos das instituições sanitárias, motivada, geralmente, pela falta de
informação e pelas diferentes representações sociais de saúde e doença (Silva, 2005; Duarte et
al., 2005).

Em suma, todas estas condições – relação com as instituições, inserção no mercado de trabalho,
acesso à habitação, à educação e aos serviços de saúde – marcam um modo de vida que, no
plano social da sua relação com a sociedade maioritária, contribui para a reprodução de represen-
tações que tendem a considerar os ciganos como Outros mais distantes.

14 Para colmatar esta situação foi criado


4. DISCURSOS EM TORNO DAS MINORIAS o Decreto-Lei n.º 73/96, que veio permitir
na construção de habitação a custos
controlados e nos casos de realojamento
apoiados pelo governo uma maior
Ainda que os imigrantes não sejam os únicos alvos de atitudes flexibilidade em todas as situações em
discriminatórias ou discursos racistas, o acentuado incremento que hábitos diferenciados das populações
requerem conceções distintas das
tradicionais.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (63)
da população imigrante no início do século XXI e o relativo crescimento nos anos seguintes, moti-
vou a realização de estudos acerca dos discursos sobre as minorias, nomeadamente os veiculados
nos media (Cádima e Figueiredo, 2003; Cunha et al. 2004; Cunha et al., 2006; Ferin e Santos,
2008; ERC, 2009), as representações do Outro (Lages e Policarpo, 2003; Lages et al., 2006) e
experiências de discriminação e racismo percecionadas pelas minorias (Santos et al., 2009).

Os media, em particular, têm um papel fundamental na formação da opinião pública, pelo que
se revela de extrema importância perceber de que forma os conteúdos veiculados podem ser
portadores de estereótipos e mensagens que contribuem para sentimentos racistas e atitudes
discriminatórias (Peixe et al., 2008: 44). Mecanismos capazes de monitorizar de que forma os
assuntos relacionados com estas temáticas são relatados nos meios de comunicação podem
contribuir para a perceção das atitudes da sociedade de acolhimento face à imigração (Entzinger,
2003: 37) e para a análise dos discursos produzidos em torno das minorias.

O primeiro dos trabalhos efetuados sobre esta matéria (Cádima e Figueiredo, 2003) teve como
principal objeto de estudo a análise da imagem da imigração, imigrantes e minorias, transmitida
e configurada pela imprensa portuguesa. O universo do estudo incidiu sobre notícias publicadas
em jornais e revistas de distribuição nacional e regional, entre o período de 1 de Janeiro de 2001
e 31 de Março de 2002. Esse período coincidiu com dois momentos principais na imigração
portuguesa, por um lado a entrada de um grande contingente de imigrantes da Europa do Leste,
que viria a reconfigurar as características geográficas e socioprofissionais da imigração portu-
guesa, por outro, a introdução do novo regime legal de autorizações de permanência (entretanto
extintas), com entrada em vigor em 2001. A influência destes fatores fez-se também sentir sobre
a agenda dos media (Cádima e Figueiredo, 2003: 32). A metodologia de análise do estudo em
questão consistiu no uso de técnicas quantitativas da análise de conteúdo.

Da análise da informação sobre imigração, imigrantes e minorias, as principais conclusões re-


metem para um protagonismo de notícias sobre imigrantes da Europa do Leste. Esta visibilidade
explica-se pelo contexto migratório do período em apreço. Entre 2000 e 2001, o número de imi-

(64) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
grantes dos principais países de proveniência do antigo Bloco de Leste (Ucrânia, Moldávia, Rússia
e Roménia) aumentou de 1.629 para 68.641. Só durante o ano 2001 foram atribuídas 66.700
autorizações de permanência a imigrantes dessas origens (Oliveira, Rosário e Santos, 2007: 83).

Das fontes de informação mais referidas nas notícias analisadas ressaltam as institucionais e/
ou oficiais, sobretudo da Sociedade Civil e as Instituições Privadas seguidas das associadas
aos Poderes do Estado e das Instituições Públicas. Os temas que aparecem mais associados à
Imigração e Minorias Étnicas apresentam distribuições diferentes na imprensa nacional e regional.
No cômputo global o tema dos Delitos (unidades de texto que relacionam imigração, imigrantes ou
minorias com atos judiciais e delitos) surge como a temática mais tratada pela imprensa, seguida
pela temática do Acolhimento (as ações humanitárias, como atos de solidariedade, e medidas
de acolhimento desenvolvidas, tanto pela sociedade civil como pelo Estado, para a promoção da
integração dos imigrantes). De seguida, em igual proporção, aparece o tratamento de temas sobre
Convivência (iniciativas sociais e públicas que favorecem a convivência multiracial e multicultural)
e Exploração de Máfias (a exploração, o abuso e atos de criminalidade e delinquência infligidos
aos imigrantes). As temáticas tratadas pela imprensa nacional têm um forte peso sobre esta
distribuição e apresentam a mesma tendência. Já a imprensa regional parece focar-se numa visão
mais positiva. A maior parte dos conteúdos sobre imigração é relacionada com o Acolhimento e
o ensino de cursos de português. Os autores do trabalho analisam ainda a agregação dos temas
constantes nas peças em quatro fatores fundamentais de tematização – Avanços na integração
dos imigrantes (agregação dos descritores que configuram, tendencialmente, referências a situa-
ções de maior dificuldade na integração dos imigrantes e minorias, bem como situações de pro-
cessos irregulares associados à imigração: e.g. imigração irregular, exploração e máfias, delitos,
etc.); Dificuldades na integração dos imigrantes (situações de maior dificuldade na integração dos
imigrantes e minorias, bem como situações de processos irregulares associados à imigração: e.g.
imigração irregular, exploração e máfias, delitos, etc.); Acidentes de Trabalho (relacionados com
habitação, realojamento e más condições de vida, dificuldades no acesso a serviços de saúde
e legislação); e Debate sobre a imigração, imigrantes e minorias (agregando os descritores que
promovem a discussão sobre esta temática: dados e informação; multiculturalismo, cidadania e

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (65)
direitos humanos; delinquência e segurança; Lei da Imigração/legislação; diferenças culturais,
étnicas e racismo; mercado e condições de trabalho; condições de vida, habitação e realojamento;
redes ilegais, exploração e escravatura). Daqui concluem que a imprensa de distribuição nacio-
nal e regional seguem tendências diametralmente opostas no que diz respeito à incidência de
temas sobre imigração. Na primeira destacam-se as notícias relacionadas com as Dificuldades
na integração dos imigrantes, seguidas daquelas sobre Avanços na integração dos imigrantes. Ao
invés, a imprensa de distribuição regional é a que mais veicula notícias no sentido de apresentar
os Avanços na integração de imigrantes. Os resultados obtidos sobre o total da amostra derivam
numa distribuição de cerca de quarenta e três por cento para notícias relacionadas com Avanços,
quarenta e um por cento sobre Dificuldades, dezasseis por centos sobre Debate e um valor bas-
tante residual sobre outros temas. Os resultados do cruzamento entre as temáticas cobertas pela
imprensa e os imigrantes mostram que os da Europa do Leste e os imigrantes em geral são
os protagonistas da generalidade dos conteúdos, no entanto há algumas exceções. Os temas
relacionados com Delitos, apesar de encabeçados pelos imigrantes do Leste, aparecem também
muito associados aos imigrantes africanos. O mesmo acontece com as questões relacionadas com
habitação, más condições de vida e dificuldade de convivência. O tema do Racismo e Xenofobia é
sobretudo protagonizado pelos africanos.

Nas conclusões deste trabalho são levantadas duas questões que nos parecem fundamentais
acerca do papel dos media na formação da opinião pública. A primeira é sobre a importância de
redirecionar o seu papel para o levantamento de novas questões relacionadas com a problemática
da imigração, em vez de reforçar a estereotipização da diferença. A outra é sobre a importância
de se refletir se deve ou não existir um código deontológico jornalístico, no sentido não só de
promover a integração, como de não acentuar a diferença entre “minoria” e “maioria” (Cádima e
Figueiredo, 2003: 59).

Outros trabalhos sobre Media, Imigração e Minorias Étnicas (Cunha, et al., 2004; Cunha, et
al.,2006; Ferin et al., 2008), também eles publicados pelo Observatório da Imigração (OI), incidem
sobre a análise de dados da Imprensa e Televisão e têm como período de referência quatro mo-

(66) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
mentos diferentes: 2003, 2004, 2005 e 2006. Numa análise comparativa, os autores concluem
que ao longo dos anos analisados, se registaram alterações no formato de cobertura ao tema da
imigração e minorias. Em 2003 e 2004, as referências preponderantes foram sobre a temática do
Crime, os Atores Institucionais as Vozes que davam corpo a essas notícias e, as Fontes citadas,
as Oficiais. Em 2005 e 2006, apesar de se manter a temática do Crime, há uma distinção entre
o autor e a vítima do crime e há um crescente recurso a Fontes provenientes da sociedade civil e
aos imigrantes. Também o Tom e a Argumentação da informação registaram mudanças no padrão
de cobertura dos temas: em 2003 e 2004 a Imprensa e a Televisão recorriam mais a um Tom
negativo, a uma Argumentação predominantemente securitária e a um Enquadramento policial
e, nos anos seguintes, o Tom usado é predominantemente neutro, a Argumentação assertiva e o
Enquadramento factual.

No período em análise, entre 2003 e 2006, nota-se um aumento da presença da comunidade


chinesa e descida das referências aos imigrantes da Europa do Leste. Os brasileiros são os nacio-
nais mais focados nas peças analisadas.

A perda de protagonismo dos imigrantes da Europa do Leste, observada no estudo que teve como
referência os anos de 2001 e 2002 (Cádima e Figueiredo, 2003), em prol de um papel de maior
relevo assumido pelos brasileiros, entende-se em virtude do contexto migratório (os nacionais
do Brasil, vieram, desde então, a ocupar posições de liderança no ranking dos imigrantes em
Portugal) e da própria agenda da imprensa e da televisão, que durante o ano 2003 incluiu vários
acontecimentos ligados à comunidade brasileira: o chamado Movimento das Mães de Bragança
– organizado por mulheres de Bragança contra a proliferação da prostituição na zona; as cidadãs
brasileiras apareceram frequentemente visadas em notícias sobre esta temática –, e a visita ofi-
cial do Presidente do Brasil, Lula da Silva, a Portugal e consequente abertura de um período de
legalização destinado exclusivamente a imigrantes brasileiros em situação irregular. Outros temas
marcaram a disseminação de notícias sobre imigração, imigrantes e minorias, designadamente
o caso do “arrastão de Carcavelos”, em 2005, e a discussão da Lei da Nacionalidade, em 2006.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (67)
Os autores constatam que a identificação da nacionalidade ou etnia, aparece mais frequentemente
quando o tema das notícias se relaciona com o Crime, do que, de uma maneira geral, na totalidade
das peças.

Estas conclusões vão de encontro a um estudo de 2008 sobre o tratamento da imigração e da


diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural na imprensa e na televisão em Portugal (ERC,
2009) que constatou, na análise das peças jornalísticas difundidas na televisão, que a menção da
minoria, nacionalidade ou país de origem surgiu como indicativa ou explicativa da informação e
por vezes com sentido discriminatório (ERC, 2009: 92). Apesar de na generalidade se cumprirem
os dispositivos legais que proclamam a não discriminação das pessoas, como os que constam
no Estatuto dos Jornalistas, na Lei da Imprensa, na Lei da Televisão e na própria Constituição, o
estudo coordenado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social verificou que os mesmos
foram infringidos em determinados acontecimentos em que estiveram envolvidos imigrantes e
minorias, nomeadamente nas peças cuja temática foi o “crime” (ERC, 2009: 125). O mesmo
trabalho concluiu ainda que nos blocos noticiosos de todos os canais “há uma tendência para en-
fatizar as ‘bad news’ da Imigração, diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural”, além de se
constatar uma ausência de tratamento noticioso de alguns grupos de imigrantes e minorias – por
contraste ao “sobre-tratamento” de outros – e a omissão de temáticas de interesse público nestas
matérias como nas que são relativas ao racismo (ERC, 2009: 127). Apesar da comparação dos
resultados dos estudos feitos entre diferentes momentos apontar para uma tendência para a ate-
nuação das mensagens passadas nos media no que diz respeito ao estereótipo racial, os trabalhos
sobre a matéria revelam que a imigração e as minorias aparecem frequentemente associadas na
imprensa e na televisão a fatores negativos e até potencialmente geradores de insegurança (e.g.
crime, delitos, exploração de máfias, desemprego, trabalho não qualificado, prostituição). O refor-
ço da esteriotipização da diferença (Cádima e Figueiredo, 2003) na opinião pública confere aos
imigrantes e minorias uma visibilidade e uma perceção pública que tende a reforçar sentimentos
de rejeição e xenofobia (Peixe et al., 2008: 44) e a repercutir-se nos discursos sobre o Outro. O
caso mais flagrante a destacar na Imprensa portuguesa nos últimos anos, indissociável da questão
do estereótipo racial nos media, é o do Pseudo Arrastão de Carcavelos. A jornalista Diana Andringa

(68) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
e o ACIDI (então ACIME) tiveram um papel fundamental na elucidação dos acontecimentos. Uma
compilação de documentos, publicada pelo ACIME, assim como pesquisa complementar, serviram
de base ao esclarecimento factual desse caso.15

A aliviar a conotação negativa aos imigrantes e minorias, os trabalhos sobre os media constatam
a introdução de temáticas como a integração, a interculturalidade, os benefícios económicos e de-
mográficos da imigração, entre outros. Para tal, contribuiram certamente a divulgação de estudos
aprofundados sobre estas matérias (e.g. Corrêa d’Almeida e Silva, 2003; Valente Rosa, Santos e
Seabra, 2004) e uma maior sensibilização dos jornalistas para novas leituras sobre o fenómeno
migratório. O aumento do número de jornalistas especializados na área das migrações é disso
exemplo. Sobre este aspeto atente-se o papel do ACIDI que, para além das iniciativas desenvolvi-
das no âmbito do Observatório para a Imigração, promoveu o Prémio Imigração e Minorias Étnicas
– Jornalismo pela Tolerância.16

Aliás, uma das conclusões do trabalho comparativo da análise de conteúdos dos media entre
2003 e 2006, refere que as mudanças relativas ocorridas no padrão de cobertura noticiosa sobre
imigração e minorias devem ser contextualizadas tendo em conta os mecanismos de regulação
internos e externos às redações e aos meios de comunicação (Ferin e Santos, 2008a: 4).

Investigações desta natureza, sobre os conteúdos veiculados nos media, podem contribuir para
um melhor enquadramento dos discursos sobre racismo como aqueles que serão abordados nos
capítulos 7 e 8 do presente trabalho.

15 Para melhor enquadramento da


questão, sugere-se a consulta de: http://
www.acidi.gov.pt/docs/Publicacoes/
ARRASTAO.pdf (consultado em 11 de
fevereiro de 2011).
16 Esta iniciativa visa premiar
profissionais da comunicação social
(Rádio, Televisão e Imprensa) cujos
trabalhos contribuam para a promoção da
tolerância e da integração, para o combate
a formas de racismo e discriminação,
ou para a compreensão das diferenças
culturais, religiosas e étnicas.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (69)
CAPÍTULO 4
ENQUADRAMENTO POLÍTICO-LEGAL

1. LEGISLAÇÃO ANTI-RACISTA17

A par da crescente diversidade na composição da população presente em território nacional, mas


não necessariamente em resultado da mesma, tem havido também um crescendo no desenvol-
vimento de legislação anti-racista. Peixe et al. (2008: 11) concluem ter-se precipitado, de 2000
em diante, uma rápida mutação na ordem jurídica nacional concernente ao combate ao racismo.
Tal é, segundo os mesmos autores, uma consequência direta da transposição de legislação co-
munitária, nomeadamente das Diretivas do Conselho Europeu 2000/43/CE, de 29 de junho,
dita “Diretiva Raça” e 2000/78/CE, de 27 de novembro, dita “Diretiva Emprego”. A primeira foi
transposta para a ordem jurídica nacional por via da Lei n.º 18/2004, de 11 de maio, e a segunda
pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o Código do Trabalho.18

A montante de todos os desenvolvimentos mais recentes encontramos a Constituição da República


Portuguesa, de 2 de abril de 1976, que no seu artigo 13.º consagra o princípio da igualdade de to-
dos os cidadãos, independentemente da sua ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
Por sua vez, o artigo 15.º consagra, com a exceção de direitos políticos e do acesso a funções
públicas, a igualdade de direitos entre nacionais e estrangeiros presentes em território nacional.
Constata-se pela comparação da lei constitucional de 1976 com a sua VII revisão, datada de 12 de
agosto de 2005, que foi entretanto alargada, em determinados casos e mediante reciprocidade, a
capacidade eleitoral ativa e passiva a cidadãos de outros países
17 Os diplomas analisados ao longo desta que não os de língua portuguesa, únicos previstos em 1976,
secção estão devidamente referenciados
na bibliografia, incluindo hiperligações para
nomeadamente para as eleições autárquicas.
consulta online dos documentos.
18 A Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto,
foi entretanto revogada pela Lei n.º
7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou a
revisão do Código do Trabalho.

(70) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os princípios da igualdade e da equiparação de direitos e deveres estão inscritos em outras nor-
mas constitucionais, como as que consagram o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
(artigo 20.º), os “outros” direitos pessoais, para além do direito à vida e à integridade pessoal,
como sejam “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade
civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da
vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” (artigo 26.º),
a proteção contra a utilização da informática para tratamento de dados referentes a “convicções
filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica”
(artigo 35.º/3), a proibição de organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista (artigo
46.º/4), e um conjunto de direitos no trabalho, sem distinção de “idade, sexo, raça, cidadania,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas” (artigo 59.º/1).

As normas anti-racistas, que visam prevenir ou proibir a discriminação com base na “raça”, origem
étnica ou nacional, estão também inscritas num conjunto alargado de outros diplomas legais
importantes e anteriores às “Diretivas de 2000”. Embora a transposição destes instrumentos
possa ser considerada um marco no reforço do quadro legal português em matéria de combate à
discriminação, este é um desenvolvimento que não pode deixar de ser remetido para a integração
do país, pós-revolução, nos sistemas jurídicos internacional e comunitário. A concretização de
discursos como os da igualdade ou dos direitos humanos na ordem jurídica interna, e que vemos
refletidos nos exemplos que aqui iremos elencar em relação à proibição da discriminação, derivam
em boa medida de desenvolvimentos internacionais onde agora, findo o período “imperial” e
mudado o paradigma de relações com o mundo, Portugal participa inteiramente. Assim, e antes
mesmo das Diretivas referidas atrás, podemos encontrar normas anti-discriminação em diplomas
como:

- A Lei dos Partidos Políticos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro: no seu
artigo 7.º, al. a), estipula que a organização interna de cada partido deve satisfazer, entre outras,

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (71)
a condição de “não poder ser negada a admissão ou fazer-se exclusão por motivo de raça ou de
sexo”;19

- O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83,
de 25 de fevereiro: o artigo 5.º/2, determina que os beneficiários das IPSS “devem ser respeitados
na sua dignidade e na intimidade da vida privada, e não podem sofrer discriminações fundadas em
critérios ideológicos, políticos, confessionais ou raciais”;

- O Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro, com as altera-
ções introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 6/95, de 17 de janeiro, pelo
19 O Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de
Decreto-Lei n.º 61/97 de 25 de março, pela Lei n.º 31-A/98, de
novembro, foi revogado pela Lei Orgânica 14 de julho, e pelo Decreto-Lei 275/98, de 9 de setembro, defen-
n.º 2/2003, de 22 de agosto. Neste novo
diploma a disposição relativa à liberdade de no artigo 7.º que: 1 - É proibida a publicidade que, pela sua
de filiação alargou os fundamentos da
proibição de discriminação: “A ninguém forma, objecto ou fim, ofenda os valores, princípios e instituições
pode ser negada a filiação em qualquer
partido político ou determinada a
fundamentais constitucionalmente consagrados; 2 - É proibida, no-
expulsão, em razão de ascendência, meadamente, a publicidade que: a) Se socorra, depreciativamente,
sexo, raça, língua, território de origem,
religião, instrução, situação económica ou de instituições, símbolos nacionais ou religiosos ou personagens
condição social.” (artigo 20.º/2). Ainda
no mesmo artigo são consagrados direitos históricas; b) Estimule ou faça apelo à violência, bem como a qual-
de participação a estrangeiros e apátridas
legalmente residentes em Portugal em
quer actividade ilegal ou criminosa; c) Atente contra a dignidade da
compatibilidade com o estatuto de direitos pessoa humana; d) Contenha qualquer discriminação em relação à
políticos que lhes for reconhecido (artigo
20.º/4). Na Lei Orgânica n.º 2/2008, raça, língua, território de origem, religião ou sexo.”;20
de 14 de maio, que constituiu a primeira
alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, o
artigo 20.º, agora artigo 19.º, manteve a - O Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-
redação anterior.
20 O Código da Publicidade foi
Lei n.º 442/91, de 15 de novembro: o artigo 5.º/1 dispõe que “nas
posteriormente alterado pelo Decreto-Lei suas relações com os particulares, a Administração Pública deve
n.º 51/2001, de 15 de fevereiro, Decreto-
Lei n.º 332/2001, de 24 de dezembro, Lei reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, bene-
n.º 32/2003, de 22 de agosto, Decreto-Lei
n.º 224/2004, de 4 de dezembro, Lei n.º ficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer
37/2007, de 14 de agosto, e Decreto-Lei
n.º 57/2008, de 26 de Março.
dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça,
21 O Código do Procedimento língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológi-
Administrativo foi alterado pelo Decreto-Lei
n.º 6/96 de 31 de janeiro, e parcialmente cas, instrução, situação económica ou condição social”;21
revogado pelas Lei n.º 18/2008 de 29 de
janeiro e Lei n.º 30/2008, de 10 de julho.

(72) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
- A Lei do Asilo, Lei n.º 70/93, de 29 de setembro, que no seu artigo 2.º/2 reconhece o direito
de asilo a “estrangeiros e os apátridas que, receando com razão ser perseguidos em virtude da
sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não
possam ou, em virtude desse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da
sua residência habitual;”22

- Ou a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Lei n.º 144/99 de 31 de


agosto: estipula, no seu artigo 6.º, um conjunto de requisitos gerais negativos da cooperação in-
ternacional, sendo lícita a recusa de um pedido de cooperação quando, entre outros, “b) Houver
fundadas razões para crer que a cooperação é solicitada com o fim de perseguir ou punir uma
pessoa em virtude da sua raça, religião, sexo, nacionalidade,
língua, das suas convicções políticas ou ideológicas ou da
22 O mesmo princípio, com redação
sua pertença a um grupo social determinado; c) Existir risco praticamente idêntica, manteve-se nos
sucessivos diplomas que regularam as
de agravamento da situação processual de uma pessoa por matérias de asilo, refugiados e proteção
subsidiária, nomeadamente: no artigo
qualquer das razões indicadas na alínea anterior”. Adiante (nr.º 1.º/2 da Lei n.º 15/98, de 15 de março e
3), o artigo dispõe ainda que “para efeitos de apreciação da no artigo 3.º/2 da Lei n.º 27/2008, de 30
de junho, que acrescentou ainda no n.º 4
suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do número do mesmo artigo que “para efeitos do n.º
2, é irrelevante que o requerente possua
anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da le- efectivamente a característica associada à
raça, religião, nacionalidade, grupo social
gislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de ou político que induz a perseguição, desde
que tal característica lhe seja atribuída pelo
não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa agente da perseguição”.
reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como 23 A Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, foi
alterada pela Lei n.º 104/2001, de 25 de
a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou me- agosto, Lei n.º 48/2003, de 22 de agosto,
Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto e Lei n.º
dida análoga, previstos na legislação do Estado requerente.”23 115/2009, de 12 de outubro.
24 A Lei n.º 38/98, de 4 de agosto,
foi revogada pela Lei n.º 16/2004, de
É possível ainda elencar uma série de outros diplomas, regu- 11 de maio, que mantém os mesmos
lamentadores de importantes dimensões da vida pública, que princípios relativos à prevenção e
proibição de manifestações de violência,
dispõem no seu articulado de princípios anti-racistas. É o caso nomeadamente de índole racista e
xenófoba (artigos 11.º/1 alínea c) e
da Lei n.º 38/98, de 4 de agosto,24 que estabelece medidas pre- 18.º/6). Adoptando o regime jurídico
de combate à violência, ao racismo, à
ventivas e punitivas em caso de manifestações de violência asso- xenofobia e à intolerância nos espetáculos
desportivos, a Lei n.º 39/2009, de 30 de
julho, revogou o diploma anterior.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (73)
ciadas ao desporto (vejam-se os artigos 6.º/3 e 21.º alínea f)), da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro,
conhecida por “Lei da Proteção de Dados Pessoais” (ver, por exemplo, o artigo 7.º), do Despacho
do Ministro da Administração Interna n.º 8684/99 (2.ª série), que aprova o Regulamento das
Condições Materiais de Detenção em Estabelecimentos Policiais (ver o ponto 10.2 que estabelece
o princípio do tratamento humano, digno e não discriminatório da pessoa detida),25 e de um
importante estatuto profissional, o dos jornalistas, aprovado pela
25 Três anos depois, o Código
Deontológico do Serviço Policial, Lei n.º 1/99 de 13 de janeiro (veja-se o artigo 14.º, que define
aprovado pela Resolução do Conselho
de Ministros n.º 37/2002, de 28 de
os deveres do jornalista).
fevereiro, veio dispor no seu artigo 3.º
que “No cumprimento do seu dever,
os membros das Forças de Segurança
Em matéria de direito penal, o Código Penal português tipifica
promovem, respeitam e protegem a crimes de índole racista ou xenófoba. Na sua primeira versão,26
dignidade humana, o direito à vida, à
liberdade, à segurança e demais direitos de 1982, definia como homicídio qualificado também o que pu-
fundamentais de toda a pessoa, qualquer
que seja a sua nacionalidade ou origem, desse ser determinado por ódio racial ou religioso, revestindo por
a sua condição social, as suas convicções
políticas, religiosas ou filosóficas…”. Ainda isso especial censurabilidade ou perversidade (artigo 132.º/1 e
no seu artigo 7.º o diploma estipula que
“Os membros das Forças de Segurança
2, al. d)), e previa ainda o crime de genocídio e discriminação
devem comportar-se de maneira a racial (artigo 189.º).
preservar a confiança, a consideração
e o prestígio inerentes à função policial,
tratando com cortesia e correção todos Muito embora, na sua versão atual, o Código Penal não conte-
os cidadãos, nacionais, estrangeiros ou
apátridas, promovendo a convivencialidade nha já disposições relativas ao genocídio, permanece previsto
e prestando todo o auxílio, informação ou
esclarecimento que lhes for solicitado, no o crime de homicídio qualificado, especialmente censurável e
domínio das suas competências”.
26 O Código Penal foi aprovado pelo
perverso se motivado por ódio racial, religioso, político ou gerado
Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação
setembro, e foi sucessivamente alterado,
sendo a última versão a que resultou sexual da vítima (artigo 132.º/1 e 2, al. f)), e o crime de discri-
da sua vigésima terceira alteração e
que foi aprovada pela Lei n.º 59/2007, minação racial, religiosa ou sexual (artigo 240.º), tendo-se alar-
de 4 de setembro. A Assembleia da
República aprovou, a 22 de abril de gado também a este respeito as motivações (incluindo causas
2010, a vigésima quarta alteração ao fundadas na raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo
Código Penal, ainda não publicada em
Diário da República, mas as alterações ou orientação sexual), as formas e os meios que determinam a
introduzidas não relevam para as matérias
em apreço (http://www.parlamento. prática deste crime.
pt/ActividadeParlamentar/Paginas/
DetalheIniciativa.aspx?BID=35212,
informação consultada a 19 de maio de
2010).

(74) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Assim, de acordo com o artigo 240.º, incorre num crime de discriminação racial, religiosa ou se-
xual quem constituir uma organização ou desenvolver ou encorajar atividades de propaganda que
incitem ou encorajem a discriminação, o ódio ou a violência contra pessoa ou categoria de pessoas
– ou nelas participar ou prestar assistência –, por causa da sua raça, cor, origem étnica, religião,
sexo ou orientação sexual, e quem provocar atos de violência, difamar ou injuriar e ameaçar uma
pessoa ou categoria de pessoas – em reunião pública, por escrito com fins de divulgação ou atra-
vés de meios de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação – por causa
da sua raça, cor, origem étnica, religião, sexo ou orientação sexual. Para efeitos de condenação
no quadro deste crime, o diploma prevê que possam ser responsabilizadas as pessoas coletivas
e entidades equiparadas, outras pessoas coletivas públicas, que não o Estado, e organizações
internacionais de direito público, no termos dispostos nos artigos 11.º e 12.º.

Numa figura menos grave prevista pelo atual Código Penal, a ofensa à integridade física qualificada
é também enquadrável nas motivações de discriminação racial quando se dispõe (artigo 145.º/2)
que há especial censurabilidade ou perversidade do agente quando as ofensas são praticadas nas
circunstâncias previstas no artigo 132.º/2. Noutra vertente das normas criminais que enquadram
a discriminação racial, nomeadamente na suspensão de direitos políticos a quem praticou tais
crimes, o Código Penal estipula ainda que quem tiver sido condenado pelo crime de discriminação
racial, religiosa ou sexual, entre outros, pode perder, ainda que por um período determinado entre
dois e dez anos, a capacidade eleitoral ativa e/ou passiva (artigo 246.º).

As disposições atrás enunciadas não constituem, no entanto, uma norma autónoma que permita
a consideração da motivação racista como circunstância agravante em todos os crimes tipificados
pelo Código Penal. Assim sendo, e excluindo as normas enunciadas, caberá aos tribunais conside-
rar ou não esta agravante, nomeadamente em aplicação do artigo 71.º/2, al. c): “Na determinação
concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de
crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: (…) c) Os
sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (75)
A introdução de uma norma geral deste tipo é, aliás, uma das recomendações feitas pela Comissão
Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), no seu terceiro relatório sobre Portugal, e que
assume especial relevância dada a pouca aplicação das disposições dos artigos 132.º, 145.º e
240.º do Código Penal, conforme constata o mesmo documento (2007: 9-10).

Resta ainda acrescentar que no âmbito destes crimes, a Lei n.º 20/96, de 6 de julho, introduziu
a possibilidade de se constituírem como assistentes em processo penal as comunidades de imi-
grantes e demais associações de defesa dos interesses em causa, como sejam as associações de
imigrantes, anti-racistas e de defesa dos direitos humanos, salvaguardada a recusa expressa por
parte do ofendido.

No que concerne à aprovação de diplomas legais com o intuito de prevenir, proibir e sancionar a
discriminação racial e xenófoba, e ainda previamente à adoção e transposição das diretivas comu-
nitárias de 2000, cabe assinalar a aprovação, em 1999, da Lei n.º 134/99, de 28 de agosto, que
proíbe as discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade
ou origem étnica, e a respetiva regulamentação pelo Decreto-Lei n.º 111/2000, de 4 de julho. No
âmbito da Lei n.º 134/99, aplicável a pessoas singulares e coletivas, públicas ou privadas (artigo
2.º), é definido o conceito de discriminação racial (artigo 3.º), são elencadas as práticas discrimi-
natórias puníveis no âmbito da lei (artigo 4.º) e o regime sancionatório aplicável (artigos 9.º a 12.º
e os artigos 3.º e 4.º do diploma regulamentador, que especificam, nomeadamente, o conjunto de
sanções acessórias aplicáveis). Para acompanhamento da aplicação deste diploma foi criada, jun-
to do organismo governamental competente em matéria de imigração e minorias étnicas, no caso
o/a Alto/a Comissário/a para a Imigração e as Minorias Étnicas (atual Alto/a Comissário/a para
a Imigração e Diálogo Intercultural), a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial
(CICDR) (artigo 5.º). Cabe a esta Comissão o registo e a organização dos dados das entidades
a quem foram aplicadas coimas e sanções acessórias (artigo 10.º do diploma regulamentador).

Conforme estipula o Decreto-Lei n.º 111/2000, que regulamenta a mencionada lei anti-discrimi-
nação, qualquer pessoa singular ou coletiva que tenha conhecimento de uma situação que possa

(76) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
constituir uma contra-ordenação deve comunicá-la ao membro do governo responsável pela área
da Igualdade, ao ACIDI, à CICDR ou à inspeção-geral competente. Caberá a esta última a instrução
do processo, que posteriormente é enviado à CICDR, cabendo ao Alto(a) Comissário(a) a definição
da medida da contra-ordenação e a aplicação da coima e das sanções acessórias, após consulta
à comissão permanente da CICDR (artigos 6.º, 7.º e 8.º).

De referir ainda que em 1995 havia já sido criada a figura do/a Alto/a Comissário/a para a
Imigração e as Minorias Étnicas, nomeado e exonerado pelo Primeiro-Ministro, cujas competências
passariam, entre outras, por “contribuir para que todos os cidadãos legalmente residentes em
Portugal gozem de dignidade e oportunidades idênticas, de forma a eliminar as discriminações e
a combater o racismo e a xenofobia”, conforme estipula o artigo 2.º/2, al. b) do Decreto-Lei n.º
3-A/96, de 26 de janeiro, que conferiu enquadramento normativo à figura criada pela Lei Orgânica
do Governo de 1995.27 Hoje sob a forma de Alto-Comissariado para o Diálogo Intercultural e a
Imigração, I.P. (ACIDI, I.P.), por força do Decreto-Lei n.º 167/2007 de 3 de maio, a estrutura
mantém o essencial da organização e das atribuições originárias, nomeadamente as adquiridas
aquando da sua transformação em Alto-Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas, na
sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 251/2002 de 22 de novembro, e as que lhe foram
atribuídas no quadro da transposição da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, conforme se fará
referência adiante.

Muito embora, decorrente do seu papel de Estado-membro da União Europeia e de fazedor, di-
reto ou indireto, de instrumentos legais mais ou menos vinculativos, Portugal já tenha aderido
previamente a normas de proibição da discriminação racial e xenófoba (tais como as previstas no
Tratado de Amesterdão,28 na Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia,29 e na Resolução sobre a Luta Contra o 27 Veja-se o nr.º 7 do artigo 6.º do
Decreto-Lei n.º 296-A/95.
Racismo e a Xenofobia na União Europeia), a verdade é que
30
28 Assinado em 2 de outubro de 1997
e que entrou em vigor em 1 de maio de
só em 2000, por força das já mencionadas “Diretiva Raça” e 1999.
“Diretiva Emprego”, se transpuseram para a ordem jurídica 29 Aprovada em dezembro de 2000 pelo
Conselho, pelo Parlamento Europeu e pela
Comissão.
30 Aprovada pelo Parlamento Europeu a
16 de março de 2010.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (77)
interna normas tipificadoras e sancionadoras daquele tipo de discriminação, reforçando assim o
quadro jurídico vigente sobre a matéria.31

Assim, a Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 15 de dezem-


31 Refira-se que a produção normativa bro, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as
em Portugal, tal como dantes, continuou a
consagrar princípios de não-discriminação pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica, e tem por
em diplomas reguladores das mais
diversas atividades e setores da vida social. objetivo estabelecer um quadro jurídico para o combate à dis-
No entanto, o contexto político-legal dos
primeiros anos de 2000 era o de uma
criminação baseada em motivos de origem racial ou étnica, e a
definição mais apurada dos fundamentos Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro, que es-
em que a proibição da discriminação
deveria assentar e dos domínios e tabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no empre-
entidades vinculados por essas normas.
Mencionou-se atrás a revisão, introduzida go e na atividade profissional, foram parcialmente transpostas
pela Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de
agosto, dos princípios da liberdade de para o direito interno, em 2003 e 2004, pela Lei n.º 99/2003,
filiação em partidos políticos e da proibição
de discriminação. A título de exemplo
de 27 de agosto,32 e pela Lei n.º 18/2004, de 11 de maio.
veja-se também a Lei da Televisão, que na
sua versão de 1998 colocava como limites No primeiro diploma ficaram consagradas, sobretudo, as
à liberdade de programação os direitos,
liberdades e garantias fundamentais e normas que defendem o princípio da igualdade no acesso ao
a dignidade humana, proibindo ainda
o incitamento ao ódio (artigo 21.º/1 da emprego e no trabalho e proíbem a discriminação, direta ou in-
Lei n.º 31-A/98, de 14 de julho); e já na
versão de 2003, que revoga a anterior Lei, direta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo,
os limites à liberdade de programação
são colocados do seguinte modo: “Todos
orientação sexual, estado civil, situação familiar, património ge-
os elementos dos serviços de programas nético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença
devem respeitar, no que se refere à
sua apresentação e ao seu conteúdo, a crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políti-
dignidade da pessoa humana, os direitos
fundamentais e a livre formação da cas ou ideológicas e filiação sindical (artigos 22.º/2 e 23.º/133).
personalidade das crianças e adolescentes,
não devendo, em caso algum, conter Relativamente às práticas discriminatórias, cabe a quem alega
pornografia em serviço de acesso não
condicionado, violência gratuita ou incitar
a discriminação fundamentá-la e ao empregador provar que as
ao ódio, ao racismo e à xenofobia” (artigo diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum
24.º/1 da Lei n.º 32/2003, de 22 de
agosto). dos fatores enunciados pela lei (artigo 23.º/334). Reforçando ain-
32 A Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto,
foi entretanto revogada pela Lei n.º da a igualdade de tratamento devida, no contexto do mercado
7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou a
revisão do Código do Trabalho.
de trabalho, a todos os trabalhadores independentemente da
33 Atuais artigos 24.º/1 e 25.º/1. sua nacionalidade, o artigo 87.º 35 estipula que “o trabalhador
34 Atual artigo 25.º/5.
35 Atual artigo 4.º.

(78) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
estrangeiro que esteja autorizado a exercer uma atividade profissional subordinada em território
português goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres do trabalhador com
nacionalidade portuguesa”.

As discriminações raciais ou étnicas que possam ocorrer nas restantes esferas da vida social,
nomeadamente no acesso à segurança social, à saúde, aos benefícios sociais, à educação e
no acesso ao fornecimento de bens e serviços, como a habitação, ficaram consagradas na Lei
n.º 18/2004, que, como foi referido, transpôs parcialmente a Diretiva 2000/43/CE. No artigo
2.º/1 são abrangidos aqueles domínios e as entidades públicas e privadas que possam tutelar
ou fornecer tais bens ou serviços, e no artigo 3.º/2 são definidas e elencadas as práticas dis-
criminatórias. De notar a introdução de conceitos inovadores nesta matéria, como a distinção
entre discriminação direta e indireta (artigo 3.º/3), o assédio (artigo 3.º/4), a inversão do ónus
da prova (artigo 6.º, introduzido também no Código do Trabalho, nos termos referidos atrás) e a
designação de um órgão especializado, no caso português o então ACIME, para a promoção da
igualdade de tratamento entre todas as pessoas, a recomendação de medidas legislativas, regu-
lamentares e administrativas que considere adequadas para prevenir práticas discriminatórias e
a prestação “às vítimas de discriminação [d]o apoio e [d]a informação necessários para a defesa
dos seus direitos” (artigo 8.º). Nos termos da Diretiva comunitária, e da Lei n.º 18/2004, cabe
ao/à Alto/a Comissário/a para a Imigração e Diálogo Intercultural a definição e a aplicação das
contra-ordenações e das sanções acessórias (artigo 13.º). Quanto à tramitação das denúncias,
o legislador nacional adotou na transposição da Diretiva as mesmas disposições que a Lei n.º
134/99 e o Decreto-Lei n.º 111/200 já haviam estipulado.

Para concluir este ponto, é de referir que no enquadramento jurídico anti-racista em Portugal
devem também ser incluídos os vários instrumentos legais resultantes da adesão portuguesa a
convenções, protocolos e outros textos internacionais sobre a matéria (onde também se incluem,
tacitamente, os instrumentos legais sobre os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana,
mas que não cabem aqui referir), no âmbito da sua participação em organizações internacionais
e europeias.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (79)
É o caso da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial, incluindo o mecanismo previsto no seu artigo 14.º, a que Portugal aderiu em 2001,36 da
Convenção n.º 97 da OIT relativa aos Trabalhadores Migrantes, da Convenção n.º 111 da OIT sobre
Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, a Convenção da UNESCO relativa à luta contra
a Discriminação no Campo do Ensino e o Protocolo Adicional à Convenção do Conselho da Europa
sobre a Cibercriminalidade e relativo à criminalização de atos de natureza racista e xenófoba
através dos sistemas informáticos (ratificado em 24 de março de 2010).

Saliente-se ainda que outros instrumentos legais internacionais existentes – que reforçariam o
quadro normativo do combate à discriminação racial e étnica e conforme recomendações da
ECRI sobre Portugal (2007) –, se encontram ainda por assinar e/ou ratificar, designadamente o
Protocolo n.º 12 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que visa tomar novas medidas
para promover a igualdade de todas as pessoas através da implementação coletiva de uma inter-
dição geral de discriminação prevista na Convenção (assinado em 2000, mas não ratificado), e os
textos não assinados nem ratificados da Carta Europeia das Línguas Minoritárias e Regionais, da
Convenção sobre a Participação de Estrangeiros na Vida Pública a Nível Local37 e da Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das
suas Famílias.
36 A declaração de adesão foi publicada
no Aviso n.º 95/2001, onde se pode
ler: O Governo de Portugal reconhece a
competência do Comité, estabelecida no
artigo 14.º da Convenção Internacional
2. Aplicação das normas anti-racistas:
sobre a Eliminação de Todas as Formas denúncias e sanções
de Discriminação Racial, para receber
e examinar comunicações emanadas
de pessoas ou de grupos de pessoas
submetidas à sua jurisdição que se Conforme acaba de se expor, os diversos dispositivos legais
queixem de ser vítimas de violação, por
parte do Estado Português, de qualquer adotados em finais dos anos 1990 e inícios de 2000 – desig-
dos direitos consagrados na Convenção.
O então ACIME foi o órgão designado para
nadamente a Lei n.º 134/99, de 28 de agosto, e o diploma
receber e examinar as queixas de pessoas regulamentador, Decreto-Lei n.º 111/2000, de 4 de julho, a Lei
ou de grupos de pessoas que aleguem ter
sido vítimas de violação de qualquer dos n.º 99/2003, de 27 de agosto, e a Lei n.º 18/2004, de 11 de
direitos consagrados na Convenção.
37 Acessível a partir de http://con- maio – introduziram não só normas de prevenção e proibição
ventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/
Html/144.htm.

(80) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
da discriminação com base em fatores raciais, de origem étnica ou nacional, como estabeleceram
mecanismos para a denúncia de atos discriminatórios e respetivos regimes sancionatórios – para
além dos previstos no Código Penal e que se regem por normas de direito penal.

Enquanto que no quadro da Lei n.º 99/2003 (atual Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), que aprova o
Código do Trabalho, o regime sancionatório aplicável à violação dos princípios da igualdade e da não
discriminação (artigo 23.º/1, atual artigo 24.º/5) é o contra-ordenacional previsto no diploma e no re-
gime geral das contra-ordenações, sob a competência da Inspeção Geral do Trabalho (o artigo 642.º
estipula que a violação do disposto naquele artigo constitui uma contra- -ordenação muito grave), as
Leis n.º 134/99 e 18/2004, preveem um regime específico, embora também contra-ordenacional,
em que outras entidades são intervenientes.

Assim, na Lei n.º 134/99 estabelece-se que a já mencionada CICDR, instituição criada junto do ACIDI
e presidida pelo/a Alto/a Comissário/a, é o órgão competente para acompanhar a aplicação das
normas anti-discriminatórias inscritas naquele diploma, além de lhe competir igualmente a recolha
de “toda a informação relativa à prática de actos discriminatórios e à aplicação das respectivas
sanções”, a recomendação de “medidas legislativas, regulamentares e administrativas que considere
adequadas para prevenir a prática de discriminações por motivos baseados na raça, cor, naciona-
lidade ou origem étnica”, a promoção de estudos e trabalhos de investigação sobre a matéria, a
publicitação de casos de violação daquela lei e a elaboração e divulgação de “um relatório anual
sobre a situação da igualdade e da discriminação racial em Portugal” (artigo 5.º/2, al. b) a f)).

As práticas discriminatórias definidas por aquela Lei estão sujeitas a contra-ordenação punível com
coimas de valor variável, trate-se o perpetrador de pessoa singular ou coletiva, e não prejudicando a
eventual responsabilidade civil ou a aplicação de qualquer outra coima. As penas acessórias estão
também previstas – como a publicidade da decisão ou a advertência ou censura públicas dos autores
da prática discriminatória (artigo 10.º), além de outras definidas no diploma regulamentador (artigo
4.º do Decreto-Lei n.º 111/2000) –, e em caso de a infração ser simultaneamente um ilícito penal e
uma contra-ordenação, o agente é sempre punido a título penal.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (81)
Em todo o caso, a instrução do processo cabe à inspeção-geral competente na matéria que é objeto
da infração – após a denúncia efetuada por pessoa singular ou coletiva –, que depois de concluído é
enviado à CICDR para a sua Comissão Permanente emitir parecer. Com base no relatório daquela e do
parecer desta, cabe à/ao Alto/a Comissário/a para a Imigração e Diálogo Intercultural a definição da
medida das sanções e a aplicação das coimas e medidas acessórias (artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º
111/2000).

De notar que a denúncia poderá ser feita por pessoa singular ou coletiva que tenha conhecimento de
uma prática discriminatória, podendo dirigir essa queixa ao membro do Governo responsável pela área
da igualdade, o ACIDI, a CICDR e a inspeção-geral competente na matéria. As três primeiras entidades,
tomando conhecimento de uma contra-ordenação nos termos desta legislação, deverão encaminhar o
processo para a inspeção-geral competente, que fará a instrução do processo (artigo 5.º do Decreto-Lei
n.º 111/2000).

A Lei n.º 18/2004 introduziu ainda um dever de comunicação por parte de todas as entidades públicas,
de qualquer situação de que tomem conhecimento e que constitua discriminação, direta ou indireta, em
razão da origem racial ou étnica. Essa informação, nos termos do artigo 9.º daquela lei, deve ser feita à
CICDR. No que diz respeito ao quadro sancionatório e aos trâmites para a denúncia e a definição/apli-
cação das coimas, a Lei n.º 18/2004 segue os mesmos parâmetros do diploma citado anteriormente.

Previsto na legislação, tal como se acaba de referir, a CICDR, para além de tomar conhecimento das
denúncias que vão sendo instruídas pelas inspeções-gerais competentes, congrega toda a informação
sobre as práticas discriminatórias denunciadas e sobre as sanções aplicadas. Neste sentido, cabe,
portanto, analisar os dados disponibilizados pela CICDR para uma
38 A UAVIDRE foi criada em 2005 pela
perspetiva sobre a aplicação efetiva das normas anti-racistas em
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima Portugal – não esquecendo, no entanto, que outras instâncias co-
(APAV), em protocolo com o ACIDI, de
forma a dar apoio específico a imigrantes mo o Provedor de Justiça, as autoridades policiais, ou a Unidade
e vítimas de discriminação. Nesta unidade,
os cidadãos podem informar-se acerca de Apoio à Vítima Imigrante e de Discriminação Racial ou Étnica
dos seus direitos e a forma de os exercer,
ter apoio psicológico, emocional e social,
(UAVIDRE)38 acolhem igualmente denúncias dos cidadãos nesta
e receber apoio na elaboração de queixas matéria, dados que serão também considerados.
e outros documentos legais, de forma
gratuita e confidencial.

(82) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
À perceção – confirmada por vários estudos e trabalhos académicos (Araújo, 2007; Carrilho,
2007; Marques, 2007; Cabecinhas, 2002, 2007; Machado, 2008; Santos et al., 2009, entre
outros) – de que as atitudes e práticas discriminatórias são uma realidade em Portugal, que se
enquadra, sobretudo mas não só, numa matriz que combina, por um lado, fluxos migratórios e
presença de população imigrante em território nacional e, por outro, a história colonial portugue-
sa, deveria corresponder um volume significativo de queixas e processos contra-ordenacionais e
judiciais relacionados com a discriminação racial.

O número de denúncias e sanções aplicadas encontra-se, porém, muito aquém deste racismo
percecionado e experienciado. Entre 2005 e 2010, a CICDR recebeu na sua totalidade 399 queixas
de discriminação racial, das quais apenas 114 deram origem a processos de contra-ordenação
(ver Tabela 1), o que corresponde a cerca de 29% de contra-ordenações no conjunto das queixas
formalizadas naquele período. Um número muito aproximado de queixas foi remetido para outras
entidades, na maioria para a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para abertura de
processos de contra-ordenação em matéria laboral. No período em questão, o ano de 2007 foi o
que apresentou o número mais elevado de queixas à CICDR e, concomitantemente, o que registou
maior percentagem de processos de contra-ordenação abertos por aquele organismo. No ano
seguinte, as queixas diminuíram substancialmente, para aumentarem ligeiramente em 2009 e
2010, anos em que se verificou um acréscimo de queixas reenviadas à ACT.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (83)
Tabela 1. Denúncias à CICDR

2010 2009 2008 2007 2006/2005


Queixas 79 77 74 84 85
Pedidos de informação 10 0 12 0 0
Total de encaminhamentos 421 89 77 86 84 85

Processos de contra-ordenação 114 22 23 21 31 17


Reenvio para outras entidades 107 28 26 20 7 26
das quais para
ACT 74 24 19 15 5 11
Autoridades criminais 29 1 7 5 2 14
Outras 4 3 0 0 0 1
Sem fundamento 27 5 11 4 1 6
Mediação 23 0 1 6 8 8
Incompletas/Aguarda esclarecimentos 70 19 13 4 18 16
Outros 58 5 3 19 19 12
Total de queixas 399 79 77 74 84 85

Fonte: CICDR/ACIDI, IP. Para 2005 e 2006 apenas estão disponíveis dados agregados para os dois anos. Os processos incompletos e/ou
que aguardam esclarecimentos constituem apuramentos efetuados em janeiro seguinte ao ano de referência.

Um dos processos da CICDR, aberto em 2008, que resultou recentemente numa condenação pelo
Tribunal Judicial de Santarém foi o de uma queixa apresentada por uma encarregada de educação
contra um professor que se dirigiu de forma imprópria a um aluno negro. No entanto, o Tribunal
não condenou o professor por um crime de xenofobia ou racismo, por se tratar, no seu entender,
de uma situação pontual. Configurando a expressão usada pelo professor (“Entra lá, ó preto”) um
crime de injúrias, o professor foi condenado pelo Tribunal a pagar uma coima de 1.000 euros e
as custas judiciais.39
39 Artigo do jornal Público, acessível
a partir de http://www.publico.pt/ No caso acima, as testemunhas, colegas do aluno, parecem ter
Educa%C3%A7%C3%A3o/professor-
condenado-a-multa-por-chamar-preto-a- sido fundamentais para a apreciação do Tribunal, mas a difícil
aluno_1438441# (consultado em 24 de
maio de 2010).

(84) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
apresentação de provas e testemunhos num caso de discriminação poderá constituir um obstácu-
lo à formalização de denúncias, contribuindo para a descredibilização – para lá do eventual desco-
nhecimento – pública deste mecanismo. Tal como refere a ECRI, para além de todo o processo ser
demorado, envolver uma série de entidades (o que propicia frequentes conflitos de competências),
que nem sempre, no caso das inspeções-gerais, têm formação adequada à instrução de processos
de discriminação racial, as denúncias feitas à CICDR são muitas vezes arquivadas por falta de
provas (2007: 14-15). Em processos penais e ações em que cabe aos Tribunais a averiguação dos
factos, o princípio do ónus da prova não é aplicado, nos termos da Lei, o que contribui grandemen-
te para a ineficácia dos processos de discriminação racial. Acresce a isto o facto da CICDR, na sua
qualidade de órgão presidido pelo/a Alto/a Comissário/a, não ser uma instituição independente
nem ter poderes próprios de investigação (ECRI, 2007: 15).

No que diz respeito ao Provedor de Justiça, instituição também competente para receber queixas
relativas à discriminação racial, étnica, nacional ou outra, tem-se constatado o pouco recurso a esta
instância, apesar do papel determinante que a sua intervenção pode assumir na modificação de
uma dada medida legislativa ou prática administrativa ilegal ou injusta. De facto, em 2007, 2008 e
2009 a grande maioria das queixas submetidas ao Provedor de Justiça coube no âmbito dos atra-
sos nos processos de atribuição da nacionalidade e de concessão de visto ou título de residência,
visando a Conservatória dos Registos Centrais, o SEF e os consulados portugueses no estrangeiro.

Sendo as matérias referentes à nacionalidade e ao direito dos estrangeiros enquadráveis em duas


áreas distintas – a dos assuntos judiciários, defesa nacional, segurança interna e trânsito, registos
e notariado (área 5) e a dos assuntos político-constitucionais, direitos, liberdades e garantias, as-
suntos penitenciários, estrangeiros e nacionalidade, educação,
40 As matérias abrangidas por estas
cultura e ciência, comunicação social, desporto e saúde (área duas áreas de intervenção do Provedor
6)40 – verificou-se que grande parte do aumento de queixas em de Justiça variaram ligeiramente ao longo
do período analisado. Uma vez que os
razão da nacionalidade registado em 2007 se deveu à exposição assuntos que relevavam para a análise se
mantiveram nestas áreas, optou-se por
de queixas naquela primeira área, protagonizadas por cidadãos referir de ora em diante, e de maneira a
facilitar a enunciação, “área 5” e “área 6”.
originários do antigo Estado Português da Índia. Só nesse ano As variações de assuntos tratados podem
ser consultadas nos relatórios devidamente
referenciados ao longo do texto.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (85)
foram apresentadas 674 queixas contra a Conservatória dos Registos Centrais e o SEF, no âmbito
de atrasos na aquisição da nacionalidade, e 21 queixas contra aquele organismo e os consulados
portugueses no estrangeiro, no âmbito de atrasos na concessão de vistos (Provedoria de Justiça,
2008: 716). Já na área 6 enquadraram-se 164 queixas, sendo que 116 estiveram relacionadas
com demoras nos processos de concessão ou renovação de títulos de residência (Provedoria de
Justiça, 2008: 732). Ainda no relatório anual de 2007, o Provedor de Justiça chamou a atenção
para um potencial foco de conflito na questão de concessão de atestados de residência pelas
juntas de freguesia, que nuns casos pareciam confundir esta certificação com a verificação da
regularidade da permanência em território nacional, e em outros diferenciavam taxas consoan-
te a nacionalidade para a atribuição dos referidos atestados (Provedoria de Justiça, 2008: 743-
744). Em duas situações específicas, uma na Junta de Freguesia da Ericeira e outra na Junta
de Freguesia do Coração de Jesus em Viseu, o Provedor de Justiça interveio recomendando a
correção das práticas em vigor, o que foi acatado.

Em 2008, o direito de estrangeiros e a nacionalidade corresponderam a 77% das queixas na área


5, sendo que um pouco mais de metade das queixas disseram respeito a atrasos nas transcri-
ções de nascimentos no antigo Estado Português da Índia. As restantes queixas foram relativas
a atrasos na decisão de pedidos de autorização de residência pelo SEF e emissão de vistos nos
consulados portugueses no estrangeiro (Provedoria de Justiça, 2009: 596-598). Na área 6 um
pequeno conjunto de queixas apresentadas no âmbito dos temas abrangidos por esta área de
intervenção esteve relacionado com a discriminação em razão da nacionalidade, da origem étnica
ou racial, dando origem a algumas recomendações e pareceres do Provedor de Justiça. Foram
os casos, por exemplo, de uma queixa apresentada por um encarregado de educação por dificul-
dades de acesso da sua educanda, de nacionalidade brasileira, ao programa e.escola; de uma
queixa contra um programa humorístico de um canal de televisão privado por situação de humor
de caráter racista e xenófobo; ou de uma exposição por uma associação de imigrantes, alegando
a violação do princípio da igualdade na definição de cidadãos elegíveis para a obtenção da tarifa
de residente no âmbito dos serviços aéreos regulares entre o continente e as regiões autónomas
(Provedoria de Justiça, 2009: 644-646).

(86) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
O relatório de 2009 registou tendências semelhantes às dos anos anteriores, apesar de terem
diminuído as queixas relativas à nacionalidade no âmbito da já mencionada questão da transcrição
dos nascimentos no antigo Estado Português da Índia. No contexto global das queixas apresen-
tadas ao Provedor de Justiça, as que se relacionaram com o direito da nacionalidade e o direito
de estrangeiros – enquadradas na área 5 – referiram-se a atrasos na concessão de vistos, na
maioria para efeitos de reagrupamento familiar e relativamente à Secção Consular da Embaixada
Portuguesa em Bissau, a atrasos na concessão de autorizações de residência e na aquisição da
nacionalidade (Provedoria de Justiça, 2010: 60-65). No relatório de 2009 não foi referida qualquer
situação de discriminação racial.

Por seu turno, a UAVIDRE, gabinete de apoio de uma organização amplamente difundida pelo
público e cuja missão e número de representações aproxima mais facilmente os cidadãos que se
consideram vítimas de algum crime abarcado pelas atividades da APAV, deveria, teoricamente,
acolher um número mais significativo de queixas no âmbito da discriminação racial e étnica.

Na verdade, a UAVIDRE registou 1.429 processos de apoio41 entre 2005 e 2009, constituindo a
sua maioria situações de crime. No entanto, como revelam os dados que adiante se referem, a
esmagadora maioria das queixas apresentadas só muito indiretamente se relaciona com situações
de discriminação racial, étnica ou nacional, apesar do gabinete se direcionar para o atendimento
de vítimas imigrantes e de discriminação racial ou étnica.

Segundo o relatório da APAV sobre a atividade da UAVIDRE para 2005-2009, em termos de tipolo-
gia de crimes apurados, registou-se, para o ano de 2005, um total de 277 crimes, estando cerca
de oitenta por cento tipificado na categoria de violência doméstica, como os maus-tratos físicos e
psíquicos, as ameaças/coação e a difamação/injúrias (APAV, 2010a). Nos crimes contra as pes-
soas e a humanidade (ver Tabela 2), com expressão muito mais reduzida no conjunto dos crimes
registados (cerca de dezanove por cento), apuraram-se apenas
13 casos de discriminação, enquanto o número de crimes de
41 No período 2005 a 2009, segundo
ofensa à integridade física e de ameaça/coação variaram entre dados do Relatório da APAV sobre a
UAVIDRE (APAV, 2010a), foram abertos os
seguintes processos de apoio: 131; 249;
300; 372; e 377.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (87)
os 11 e os 10 casos, respetivamente. Em 2006, para um total de 675 crimes, destacaram-se
igualmente, e em proporções idênticas às do ano anterior, os crimes que constituem violência
doméstica. No conjunto, menos significativo, dos crimes contra as pessoas e a humanidade,
registou-se um ligeiro aumento dos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça/coação
e uma significativa redução da discriminação no conjunto dos crimes desse ano (ver Tabela 1).

Tabela 2. Crimes de discriminação (totais UAVIDRE)

Tipologias de crime apuradas nos processos de apoio

Crimes contra as pessoas e a humanidade


% crimes
Ofensas à Total
Ano Discriminação Ameaças/Coação discriminação
integridade física
2005 13 11 10 277 4,7
2006 11 45 38 675 1,6
2007 51 42 29 793 6,4
2008 42 48 28 759 5,5
2009 26 38 26 715 3,6

Fonte: APAV (2010a).

Em 2007, ao contrário dos anos anteriores, o peso dos tipos de crime que configuram a violên-
cia doméstica sofreu uma diminuição, ao mesmo tempo que a proporção dos crimes contra as
pessoas e a humanidade aumentou significativamente. A confirmar esta tendência, os crimes de
discriminação registaram nesse ano um incremento substancial – foram os mais representativos
na tipologia dos crimes contra as pessoas e a humanidade –, para nos anos seguintes voltarem
a decrescer. Assim, à exceção do ano 2007, que no período analisado se destacou pelo aumento
deste tipo de crimes, o peso relativo da discriminação no conjunto dos crimes apurados pela
UAVIDRE é bastante reduzido, representando, em média, cerca de 4% do total (APAV, 2010a).

(88) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Em suma, os dados revelam-nos que apesar de vocacionada para o apoio de vítimas imigrantes e
de discriminação racial ou étnica, a UAVIDRE tem vindo a gerir sobretudo processos de apoio que,
sendo na sua grande maioria de vítimas de nacionalidade estrangeira, se enquadram em situações
de crimes de violência doméstica.

De referir ainda que, em termos globais, a APAV apurou em todos os seus gabinetes de apoio, no
âmbito dos crimes contra as pessoas e a humanidade, um número muito reduzido de crimes de
discriminação racial (ver Tabela 3).

Tabela 3. Crimes de discriminação racial apurados pela APAV (totais nacionais)

Tipologias de crime apuradas nos processos de apoio

Ano Total crimes N crimes discriminação racial % crimes discriminação


2005 14371 17 0,1
2006 15758 12 0,1
2007 16667 72 0,4
2008 18669 54 0,3
2009 17628 35 0,2
2010 19032 12 0,1

Fonte: APAV (2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011).

Em termos de peso relativo destes crimes na totalidade apurada no âmbito dos processos de apoio
abertos pela APAV, a discriminação racial variou, no período de 2005 a 2010, entre os 0,1% e os
0,4%, percentagem máxima alcançada em 2007.

Assim, quer nos atendimentos da UAVIDRE, quer nos processos abertos em todos os gabinetes
da APAV, as vítimas apresentaram sobretudo situações de crimes de violência doméstica e só
residualmente expuseram situações de discriminação em função da cor da pele, origem étnica
ou nacional.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (89)
Já no que diz respeito aos dados das autoridades policiais, registaram-se igualmente números bas-
tante residuais de crimes de discriminação racial: em dez anos, de 2000 a 2009, as autoridades
policiais identificaram apenas 59 crimes de discriminação racial ou religiosa.42

Neste cenário de diminuto recurso aos mecanismos de defesa anti-discriminação, como a apre-
sentação de denúncia ou queixa à CICDR, ao Provedor de Justiça, à UAVIDRE ou às autoridades
policiais, o número de processos de racismo ou xenofobia conduzidos para os tribunais é, como
seria de esperar, igualmente reduzido.

Entre os mais mediatizados processos, encontra-se o que foi aberto na sequência de atos de
violência racista na noite lisboeta, em 1995, de que resultou o assassinato de um jovem negro,
Alcindo Monteiro. Os dezanove arguidos constituídos, todos de um grupo de cabeças-rapadas,
foram acusados dos crimes de genocídio, homicídio e ofensas corporais – tratou-se da primeira
vez em Portugal que alguém foi acusado do crime de genocídio, muito embora não tenha havido
uma condenação por esta figura penal. Mário Machado, um dos condenados neste processo,
dirigente da Frente Nacional e líder do movimento Hammerskin Nation em Portugal foi, no início
de 2010, condenado a oito meses de prisão efetiva por difamação agravada contra a magistrada
Cândida Vilar, que havia conduzido as investigações no âmbito de um processo inédito de discri-
minação racial, em 2007-2008.43 Neste processo iniciado em sequência da investigação efetuada
pela Polícia Judiciária, 36 indivíduos pertencentes àquele movimento foram acusados de crimes
como a prática continuada de discriminação racial, a difusão de mensagens – através da Internet,
em concertos e outras concentrações – de racismo, xenofobia e anti-semitismo, com incitação ao
ódio e à violência (Peixe et al., 2008: 18). A decisão judicial que
42 Dados do Sistema de Informação de resultou deste processo acabou por condenar os acusados a
Estatísticas da Justiça, da Direção-Geral de
Política da Justiça, acessíveis a partir de penas de prisão efetivas.
http://www.siej.dgpj.mj.pt/webeis/index.
jsp?username=PublicoepgmWindowNam
e=pgmWindow_633918141195530467 Poucos outros casos chegaram aos tribunais e, sobretudo, resul-
(consultado em 2 de junho de 2010).
taram em condenações por discriminação racial, muito embora
43 Artigo do jornal Público, acessível a
partir de http://www.publico.pt/Socieda- nos meios de comunicação social nacionais surjam, periodica-
de/sos-racismo-satisfeita-com-condenacao-
de-mario-machado_1423568 (consultado
em 24 de maio de 2010).

(90) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
mente, relatos de discriminação vivida no trabalho, no acesso à habitação, nas instituições de
ensino, nos estabelecimentos comerciais,44 confirmada também por estudos e trabalhos de inves-
tigação, tal como referimos inicialmente.

Dada a existência do fenómeno, por um lado, e o reduzido recurso aos mecanismos existentes e
correspondentes resultados, por outro, cabe questionar a extensão da sua divulgação pelo público
e, acima de tudo, a sua adequação à especificidade das situa-
ções de discriminação e a eficácia das molduras legais e dos 44 Sem preocupações de representa-
tividade ou exaustividade, vejam-se os
procedimentos implementados. seguintes exemplos: artigo de 3 de abril
de 2006 do jornal Diário de Notícias sobre
situação de discriminação racial vivida por
estudante negra num estabelecimento
comercial (http://dn.sapo.pt/inicio/
interior.aspx?content_id=638499); artigo
de 8 de maio de 2006 da TSF online
sobre o caso das declarações racistas e
xenófobas do presidente do Sindicato dos
Profissionais da Polícia (http://tsf.sapo.
pt/paginainicial/interior.aspx?content_
id=877097); artigo de 21 de março de
2007 do semanário Sol sobre várias
situações de racismo vividas por negros na
Área Metropolitana de Lisboa (http://sol.
sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.
aspx?content_id=26338); artigo de 22 de
setembro de 2008 do semanário Sol sobre
discriminação contra brasileiros e negros
no arrendamento de quartos (http://sol.
sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.
aspx?content_id=110249); artigo de 30
de julho de 2008 do Jornal de Notícias
sobre alegada discriminação racial sentida
por funcionária de uma junta de freguesia
(http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Interior.
aspx?content_id=973414); artigo de 17 de
março de 2009 do jornal Público sobre si-
tuação de discriminação contra ciganos de
uma Escola Básica (http://www.publico.
pt/Educa%C3%A7%C3%A3o/pais-acusam-
escola-de-discriminar-ciganos_1369539);
artigo de 21 de abril de 2010 do Jornal
de Notícias sobre a venda de casas,
exclusivamente a cidadãos nacionais,
por uma câmara municipal (http://
jn.sapo.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.
aspx?content_id=1549323).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (91)
CAPÍTULO 5.
ESTADO DA ARTE

A mais recente bibliografia sobre imigração e minorias étnicas (Machado, Azevedo e Matias,
2009) integra várias listas temáticas de relevo sobre esta matéria. Entre estas há uma dedicada
ao tema: coexistência e representações interétnicas, e racismo. O acervo bibliográfico aí listado
consiste em 88 títulos, de livros científicos, capítulos de livros, artigos, documentos de trabalho,
atas de encontros científicos, teses académicas, relatórios, documentos institucionais e livros de
testemunhos ou de opinião, produzidos ou publicados entre os anos 2000 e 2008. Este quanti-
tativo de trabalhos sobre racismo e xenofobia, representações do Outro e coexistência étnica tem
ganho particular destaque nas últimas décadas. Até meados da década de 1990 eram escassos
os estudos sobre a problemática da imigração e do racismo em Portugal (Machado, 1992:134;
Cabecinhas, 2002:104). À exceção da minoria cigana e de alguns cabo-verdianos, Portugal era,
até então, muito homogéneo. É sobretudo a partir dessa época, quando se torna também um país
de imigração, que a evidência de uma real convivência multiétnica (Marques, 2007: 15) mobiliza
um conjunto de interesses, académicos e políticos, e favorece as condições institucionais para a
realização de estudos sobre estas temáticas (Machado, Azevedo e Matias, 2009: 3).

A maioria de trabalhos sobre racismo em Portugal aborda, na tentativa de desconstrução, a ideia de


que, aliado à sua tradição colonizadora e apologista da miscigenação, Portugal é um país de bran-
dos costumes (Vala, Brito e Lopes, 1999a; Machado, 2001; Cabecinhas, 2002; Marques, 2007;
Araújo, 2008). Herança do luso-tropicalismo que, segundo alguns autores, serviu ao Estado Novo
como teoria legitimadora da colonização (Castelo, 1998, p.55; Alexandre, 1999: 143; Marques,
2007: 27) e que acabou por prevalecer, mesmo após a queda do Império Colonial em 1975,
como uma crença e um mito associado ao modo especificamente português de estar no mundo
(Marques, 2007: 32; Ferro, 1994; Lourenço, 1994). Que tal conceção é um mito – e que por detrás
da construção ideológica de uma coexistência pacífica entre categorias raciais diferentes existia
uma situação de subordinação racial, associada tanto a inferiorização cultural como a exploração

(92) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
económica severa – foi demonstrado por historiadores e outros cientistas sociais (Boxer, 1977;
Almeida, 2000). Mas a sua permanência acaba por ter um duplo efeito: por um lado, é facilitador
da perpetuação de preconceitos e sentimentos paternalistas e de superioridade em relação aos
negros (Stoer e Cortesão, 1999) e da difusão de um racismo subtil (Vala, Brito e Lopes, 1999a),
por outro, é limitativo da apropriação política de discursos racistas ou anti-imigração (Wieviorka,
1994; Stoer e Magalhães, 1998).

Nestes termos, estudar o racismo “em sociedades formalmente anti-racistas, implica saber des-
cortinar as manifestações mais civilizadas deste fenómeno, aquelas que não questionam a autoi-
magem anti-racista” (Vala, 1999: 3), procurando saber se “as expressões dos racismos, abertas
ou veladas, em Portugal, correspondem a configurações de crenças, atitudes e predisposições
comportamentais discriminatórias semelhantes àquelas que têm sido identificadas noutros países
europeus” (Vala, 1999: 3).

Na mais extensiva análise realizada em Portugal acerca das perceções e atitudes dos portugueses
brancos face aos negros que residem em Portugal, os resultados obtidos foram semelhantes aos
encontrados noutros países europeus. A norma anti-racista vigente na sociedade impede os inqui-
ridos de exprimirem formas de discriminação flagrante (isto é, rejeição e perceção do exogrupo
como ameaça e recusa de relações íntimas com os seus membros). As suas respostas apontam,
no entanto, para formas de discriminação subtis (ou seja, acentuação de diferenças culturais entre
o exogrupo e o endogrupo e dificuldade em exprimir emoções positivas para com os membros do
exogrupo). Tal como noutros países europeus, a norma anti-racista bloqueia o racismo flagrante
mas é permeável ao racismo subtil (Vala, Brito e Lopes, 1999a).

No entanto, outros trabalhos evidenciam que as atitudes dos portugueses face a certas catego-
rias, nomeadamente os ciganos, se pautam pela existência de um racismo flagrante (Correia et
al., 2001) ou diferencialista. O racismo diferencialista é entendido quando o grupo racizado é
percebido como uma ameaça endógena que urge afastar, não lhe sendo admitido qualquer lugar
no sistema social. Pelo contrário, a esta forma de racismo corresponde um desejo de rejeição,

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (93)
de exclusão, de distanciamento e, nas situações extremas, de expulsão ou destruição. Trata-se de
uma forma de racismo que, para além de acentuar os particularismos culturais, sublinha funda-
mentalmente a sua irredutibilidade (Marques, 2004: 81).

De acordo com Fernando Luís Machado (2001), a expressão do racismo depende dos contrastes
e continuidades, sociais e culturais, da minoria ou minorias em questão com a sociedade envol-
vente. Maiores contrastes favorecem o aumento de racismo, mais continuidades favorecem a sua
redução. O facto de os ciganos serem uma das minorias que mais contrastes – sociais e culturais
– acumula com a sociedade envolvente, poderá estar na base de uma maior manifestação de
racismo face a esta categoria social, como aliás sugerem os resultados de vários trabalhos (Correia
et al., 2001; Silva e Silva, 2002; GTIIC, 1998; Bastos, Correia e Rodrigues, 2006; Faísca e Jesuíno,
2006) e das discussões de grupo organizadas no âmbito do presente estudo.

Num trabalho sobre a perceção das próprias minorias acerca das experiências de racismo e dis-
criminação em diversos contextos, entre cinco minorias residentes em Portugal – cabo-verdianos,
guineenses, brasileiros, ucranianos e ciganos – são precisamente estes últimos, única minoria
nacional, que mais se sentem alvo de racismo e discriminação (Santos et al., 2009).

Importa, no entanto, frisar que os resultados encontrados nos trabalhos desenvolvidos não res-
pondem diretamente à questão “Os portugueses são racistas?” ou “Portugal é um país racista?”.
Colocar as questões nestes termos corresponde a essencializar um povo e os seus atributos, uma
falácia também ela racista (Vala, 1999: 3; Marques, 2007: 15).

(94) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 6.
METODOLOGIA

Atendendo a que o estudo teve por objetivo mapear o discurso racista que surge espontanea-
mente nas conversas quotidianas, optámos em termos metodológicos pela utilização de grupos
de discussão, uma metodologia de investigação qualitativa cuja genealogia passa notavelmente
por Ernest Dichter – discípulo de Paul Lazarsfed que foi o mais famoso pioneiro na transição da
psicologia clínica para os estudos de mercado (Stewart, Shamdasani e Rook, 2006: 6) – e que
consiste na promoção de uma discussão informal sobre determinado tópico no seio de um grupo
de participantes, geralmente entre 8 e 12. A discussão é guiada por um moderador qualificado
que, procurando não influenciar o resultado, garante que todas as temáticas são discutidas pelo
grupo e que as perspetivas dos participantes são tão clarificadas quanto possível.

1. AMOSTRA E RECRUTAMENTO

A realização deste estudo decorreu do apoio que a equipa de investigação prestou ao ACIDI para o
projeto Living Together: European Citizenship Against Racism and Xenophobia.45 O mesmo projeto
previa a realização de três grupos de discussão com 24 participantes com características diferen-
ciadas a nível social, profissional, educacional e de género. Para efeitos de elaboração do presente
trabalho, alargámos o número de participantes em grupos de discussão visando uma maior diver-
sificação da amostra e um acréscimo dos discursos analisados.
45 Projeto europeu co-financiado pelo
A análise aqui apresentada resulta, portanto, dos discursos pro- Programa Direitos Fundamentais e
duzidos em quatro grupos de discussão, homogéneos entre si, Cidadania. Em Portugal, foi levado a
cabo pelo ACIDI e decorreu em parceria
que contaram com o total de 33 participantes. com instituições de outros quatro países:
Finlândia, Suécia, Irlanda, Espanha. Teve
como principais objetivos identificar e
O desenho original da amostra resultou de uma amostra inten- caracterizar discursos racistas expressos
por adultos e jovens da população
cional – um tipo de amostra não probabilística, isto é, sem repre- maioritária; e identificar modelos de
coexistência e estratégias que possam ser
consideradas boas práticas no combate
contra o racismo e a xenofobia.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (95)
sentatividade estatística, muito utilizado em estudos qualitativos, caracterizado por a seleção dos
indivíduos participantes ser feita com base em determinadas características definidas à partida
como sendo desejáveis no contexto do estudo.

Sendo este estudo acerca de eventuais manifestações de racismo nos discursos do quotidiano
e sobre as representações do Outro, a característica fundamental a garantir seria visar a parti-
cipação de pessoas pertencentes à maioria da população portuguesa, tanto em termos fenotípi-
cos como culturais,46 distribuídas equitativamente pelos dois géneros. Em termos demográficos,
importou ainda contemplar a variável idade, integrando nos grupos de discussão a participação
de jovens (dos 18 aos 25 anos) e adultos (dos 35 aos 55 anos). As outras variáveis escolhidas
aparecem geralmente testadas como preditores do racismo (Pettigrew referido em Vala, Brito e
Lopes, 1999b; Lages et al., 2006) e foram: estatuto social – aferido pelo nível de educação e
situação na profissão –, dimensão do habitat (centro urbano, periferias das áreas metropolitanas e
zonas urbanas degradadas) e a relação com imigrantes e “minorias étnicas” (moderada ou direta).

Para efeitos do presente estudo, havia interesse em trabalhar com grupos de discussão homogéne-
os entre si: por um lado facilitam a identificação entre os presentes – propiciando uma discussão
mais participada –, por outro, permitem resultados comparáveis entre estratos sociais, fases do
ciclo de vida e gerações diferentes.

As especificações que orientaram a organização dos grupos de discussão foram as seguintes:

1. O primeiro grupo de discussão composto por pessoas pertencentes a um estatuto social


qualificado de médio-alto (profissionais independentes ou trabalhadores por conta de outrem
com grande autonomia e formação superior), com idades entre os 35 e os 55 anos, algumas
das quais teriam alguma relação direta com imigrantes ou “minorias étnicas” e que residi-
riam em zonas sortidas de centros urbanos;

2. O segundo grupo de discussão formado por pessoas com idades compreendidas entre os
18 e os 25 anos, pertencentes a um estatuto social designado
46 Note-se que, no presente contexto, o
“Outro” é, quase por definição, minoritário.

(96) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
de médio-médio (algumas empregadas com qualificação média e outras estudantes a tempo
integral ou parcial), que residissem em zonas sortidas das periferias das áreas metropolitanas
e tivessem contacto moderado com imigrantes no emprego ou vizinhança;

3. O terceiro grupo de discussão constituído por pessoas com um intervalo etário dos 35 aos
55 anos, pertencendo a um estatuto social dito médio-baixo (trabalhadores precários ou de-
sempregados com baixa qualificação) que, residindo em zonas urbanas degradadas sortidas,
tivessem grande contacto com imigrantes no emprego ou vizinhança;

4. O quarto grupo de discussão composto por pessoas com idades entre os 35 e os 55 anos,
empregadas com qualificação média, que residiam em zonas sortidas das periferias das áre-
as metropolitanas e tinham contacto moderado com imigrantes no emprego ou vizinhança.

Na medida em que – ao contrário do que se passa com o segundo grupo de discussão descrito
– o posicionamento no ciclo de vida dos participantes neste grupo de discussão não varia face
aos participantes nos grupos de estatuto social inferior e superior, este quarto grupo de discussão
permite uma melhor comparação em termos de estratificação social com os grupos de discussão
de adultos de estatutos médio-alto e médio-baixo.

As formas de recrutamento variaram de grupo de discussão para grupo de discussão, em função


da facilidade ou dificuldade no estabelecimento de contactos.

Dada a relativa facilidade com que a equipa de pesquisa foi capaz de recrutar participantes de
estatuto social médio-alto com idades entre os 35 e os 55 anos através das suas próprias redes so-
ciais – tendo o cuidado de selecionar apenas candidatos relativamente ingénuos face às ciências
sociais e, desse modo, evitar que a amostra espelhasse os posicionamentos de quem a coligiu –,
esse foi o primeiro dos quatro grupos de discussão a ter condições para se realizar.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (97)
Tabela 4. Atributos dos participantes de estatuto social médio-alto

Relação com
Género Idade Profissão Situação na profissão Área de residência categorias
minoritárias
Feminino 47 Empresária Por conta própria Lisboa Profissional
Feminino 41 Consultora Por conta própria Oeiras Profissional
Feminino 38 Investigadora Por conta própria Paço de Arcos Profissional
Feminino 38 Tradutora-intérprete Por conta de outrem Carnaxide Sem relação
Masculino 47 Dirigente Por conta de outrem Lisboa Sem relação
Masculino 44 Engenheiro Por conta de outrem Odivelas Vizinhança
Masculino 37 Diretor Por conta de outrem Paço de Arcos Sem relação
Masculino 40 Analista de Qualidade Por conta de outrem Arroios Pessoal

Também os jovens provaram poder ser, pelo menos em parte, recrutados desta forma. A aborda-
gem ao recrutamento de participantes de estatuto social dito médio-médio e com idades compre-
endidas entre os 18 e os 25 anos baseou-se em contactos diretos, em contactos com organizações
que lidam com este público e na publicação de um anúncio na Internet, mais especificamente
no Facebook, uma rede social popular entre as pessoas jovens. A equipa de pesquisa usou as
suas redes sociais para chegar ao contacto de pessoas com as características desejadas e que
ficassem, pelo menos, a dois graus de separação dos investigadores. Por exemplo, perguntámos
a jovens conhecidos por contactos de pares seus com os quais não tivéssemos relação e, partindo
daí, prosseguimos sucessivamente, utilizando a abordagem conhecida na teoria da amostragem
por “bola de neve”. Neste processo tivemos sempre o cuidado de assegurar a inexistência de
conhecimento prévio entre os jovens selecionados e de, dentro da homogeneidade imposta pela
amostra intencional, garantir a maior heterogeneidade possível no que respeita a outros traços.
Este foi indubitavelmente o método de recrutamento que deu melhores resultados. Os contactos
institucionais revelaram-se particularmente ineficazes, uma vez que decorreram durante o período
de férias, o que limitou o acesso tanto aos técnicos que poderiam intermediar os contactos como
aos próprios jovens. Por fim, a colocação de um anúncio no Facebook provou ser uma tática

(98) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
interessante, sobretudo porque as definições do software permitem que o anúncio seja apenas
visualizado por pessoas que pertencem ao escalão etário desejado.47 Ainda assim, a maior parte
das pessoas que se candidataram revelou-se inelegível por ser sobrequalificada ou por ter uma
nacionalidade, fenótipo ou cultura que a colocariam fora da amostra intencional desenhada para
este estudo. Acabámos, assim, por recrutar 11 jovens com o perfil desejado. Contudo, registaram-
-se duas faltas de comparência, pelo que o grupo de discussão acabou por ser composto por 9
pessoas.

Tabela 5. Atributos dos participantes jovens de estatuto social médio-médio

Género Idade Ocupação Área de residência Relação com categorias


minoritárias
Feminino 18 Estudante Cacém Vizinhança e escola
Feminino 20 Trabalhadora-estudante Alameda Vizinhança e escola
Feminino 21 Estudante Queluz Vizinhança e escola
Feminino 22 Estudante Alvalade Vizinhança e escola
Feminino 24 Estudante Mem Martins Vizinhança e escola
Masculino 19 Trabalhador Cacém Vizinhança
Masculino 23 Estudante Costa da Caparica Vizinhança e escola
Masculino 20 Trabalhador-estudante Telheiras Escola e trabalho
Masculino 22 Estudante Corroios Vizinhança e ecola

Tendo feito um esforço continuado por recrutar de igual forma nos demais estatutos sociais, a
equipa de pesquisa viu-se finalmente confrontada com o facto de os resultados estarem a levar
demasiado tempo a materializar-se. Optámos então por realizar uma aquisição de serviços externa
no que respeitava ao recrutamento de participantes. Contratámos para esse efeito uma empresa
de estudos de mercado que dispõe de uma extensa base de dados com os contactos de pessoas
de todos os quadrantes da sociedade que se manifestaram disponíveis para participar em grupos
de discussão. Tendo trabalhado com esta companhia noutras
47 O anúncio esteve online durante dois
dias, período durante o qual ocorreram
371 visionamentos do mesmo.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (99)
ocasiões, sabemos que têm o cuidado de filtrar pessoas que pudessem ter por ambição fazer da
participação neste tipo de investigação um modo de vida, isto porque neste tipo de metodologia é
comum os participantes receberam incentivos. No presente caso estes assumiram a forma de va-
les – redimíveis em lojas FNAC ou, em alternativa, do grupo Sonae – e do custear de transportes.
No seu conjunto, estas componentes perfizeram o valor de trinta euros.

Tabela 6. Atributos dos participantes de estatuto social médio-médio

Situação na Relação com


Género Idade Profissão profissão Área de residência categorias
minoritárias
Feminino 48 Bancária Por conta de outrem Vale Mourão Pessoal

Feminino 55 Dona de casa Santo António dos Pessoal


Cavaleiros

Feminino 40 Empregada de Por conta de outrem Madre de Deus Profissional


escritório

Feminino 46 Cozinheira Por conta de outrem Sacavém Sem relação

Masculino 48 Vendedor Por conta de outrem Prior Velho Pessoal

Masculino 47 Informático Por conta de outrem Terrugem Profissional

Masculino 41 Polícia Por conta de outrem Corroios Vizinhança

Masculino 42 Correeiro Por conta de outrem Amora Sem relação

O recrutamento para o grupo de discussão com pessoas de estatuto social médio-baixo seguiu
as mesmas linhas que o realizado para o grupo de discussão com pessoas de estatuto social
médio-médio.

(100) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Tabela 7. Atributos dos participantes de estatuto social médio-baixo

Situação na Relação com


Género Idade Profissão profissão Área de residência categorias
minoritárias
Feminino 42 Empregada de Desempregada Vialonga Sem relação
escritório

Masculino 35 Desenhador Por conta de outrem Barreja Pessoal

Masculino 35 Padeiro Por conta de outrem Rinchoa Sem relação

Feminino 46 Lojista Desempregada Zona J Pessoal

Feminino 43 Mulher-a-dias Desempregada Olivais Vizinhança

Masculino 55 Empregado de Por conta de outrem S.ª Iria da Azóia Profissional


escritório

Feminino 44 Vendedora Desempregada Rio de Mouro Profissional

Masculino 41 Polícia Por conta de outrem Almada Profissional

Dado tratar-se de um trabalho sobre racismo e não querendo enviesar os resultados que iríamos
obter, divulgámos o tema como sendo as representações dos imigrantes e demais minorias e
discursos sobre os mesmos que existem em diversos setores da sociedade de acolhimento.

2. SALA E EQUIPAMENTO

O autor de um dos mais citados manuais sobre grupos de discussão explica que as salas próprias
se assemelham a laboratórios de dinâmica de grupo confortavelmente mobilados, com microfones
embutidos, câmaras de vídeo e uma sala de visualização por detrás de um espelho de uma só via
(Morgan, 1997: 54-55). Os autores de um outro manual, mais recente mas também muito citado,
concordam que o mais comum é os grupos de discussão serem realizados em salas próprias
com espelhos unidirecionais por detrás dos quais é possível observar a discussão em progresso
sem interferir com a mesma (Stewart, Shamdasani e Rook, 2006: 37). Contudo, estes aspetos

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (101)
assumem maior importância no contexto de outros trabalhos, como estudos de mercado, por
exemplo, em que o cliente que contrata o estudo pretende assistir à discussão dinamizada por
técnicos especializados sem interferir ou enviesar os resultados simplesmente por estar presente.

Tivemos contudo a felicidade de, para os grupos de discussão com participantes adultos de esta-
tuto social médio-médio e médio-baixo, conseguirmos assegurar o uso do laboratório de psicologia
do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) e, desse modo, beneficiar de condições ideais.
Atendendo a que geralmente não é aconselhável identificar a organização ou o título dos observa-
dores, ou a razão por que o fazem, na medida em que tal pode revelar demasiado acerca da natu-
reza da discussão e, desse modo, enviesar as respostas dos participantes (Stewart, Shamdasani
e Rook, 2006: 93), foi assim possível ao então responsável pelo acompanhamento do estudo no
ACIDI observar as reuniões em curso sem que isso interferisse nos resultados.

A dinamização dos restantes dois grupos de discussão – com adultos de estatuto social médio-alto
e com os jovens de estatuto social médio-médio – decorreu em salas diferentes, ambas num con-
texto neutro, sem qualquer tipo de conotação que porventura pudesse influenciar os resultados: a
primeira teve lugar numa sala de reuniões da representação da Comissão Europeia em Portugal e
a segunda numa sala de aula do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).
Ambas as salas reuniram as condições essenciais à realização dos grupos de discussão: neutras,
credíveis e centrais, bem como ofereceram a privacidade e o silêncio necessários.

Em todas as reuniões foi servida comida e bebidas, com vista a manter os níveis de açúcar no
sangue dos participantes e propiciar um ambiente informal e descontraído.

3. GUIÃO E MODERAÇÃO

Os três grupos de discussão com adultos foram moderados por uma profissional, com mais de dez
anos de experiência nesta área, que procurou criar um ambiente recetivo à participação de todos,
assegurando que o uso da palavra seria partilhado, que não haveria lugar a excursos e que todos

(102) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
os diversos pontos do guião seriam focados. O grupo de discussão com jovens foi moderado pelos
autores do presente estudo.

A existência de um guião nos grupos de discussão visa sobretudo a orientação das conversas para
temas que importam abordar, procurando o moderador fazê-lo de uma forma fluida e não imposta.

A elaboração do guião teve por base a escolha de tópicos relativos à temática do racismo, abordan-
do questões que aparecem frequentemente a ele associados, seja nos discursos do senso comum,
seja nos trabalhos académicos ou mesmo nos discursos políticos (imigração, relacionamento com
imigrantes e/ou pessoas de outras etnias, integração, privação relativa, entre outros). O guião
seguido foi, então, o seguinte:

Breve explicação da reunião

Nós trabalhamos para a Númena, que é um Centro de Investigação em Ciências Sociais e


Humanas. Estamos a fazer um trabalho sobre imigração e minorias étnicas em Portugal, em
geral, e em Lisboa, em particular, e é sobre esse tema que hoje vos pediremos para falar. A vossa
colaboração é fundamental, pelo que desde já agradecemos a vossa presença.

A ideia de reunir e conversar com um conjunto de pessoas permite perceber diversos pontos de
vista sobre algumas questões e, por isso, é muito importante que TODOS participem, ok? Aqui
não há respostas certas nem erradas, trata-se apenas de partilhar opiniões, falar sobre assuntos
relacionados com o nosso dia-a-dia e debater as experiências de cada um de nós.

É importante que saibam que a vossa participação é totalmente anónima, ou seja, a vossa identida-
de não figurará em qualquer resultado do projeto. Vamos pedir-vos – se ninguém se opuser – para
gravar a reunião para podermos trabalhar sobre o que foi dito, e não termos que estar sempre a tirar
notas. Serve apenas para facilitar o trabalho e não haverá qualquer tipo de divulgação identificada.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (103)
Por isso pedimo-vos que fale um de cada vez. Se houver muitas vozes a falar ao mesmo tempo não
vamos conseguir perceber a gravação. (Aproveito ainda para vos pedir que desliguem os telemóveis,
ou os coloquem em silêncio, para não causar interferências na gravação).

Se tiverem alguma dúvida podem colocá-la agora ou interromper a qualquer momento, se sentirem
necessidade disso (sintam-se à vontade porque vamos ter tempo para conversar).

Vamos então falar sobre imigração e minorias étnicas em Portugal.

Apresentação individual (10’)

Para começar, gostaria que cada um de vós fizesse uma pequena apresentação, para nos ficarmos
a conhecer um pouco melhor. O vosso nome, idade, de onde são, onde moram, em que trabalham
ou estudam, o que gostam de fazer nos vossos tempos livres, enfim… o que entenderem. Peço-vos
ainda que coloquem o vosso nome nos papelinhos que se encontram diante de vós para facilitar
tratarmo-nos pelo nome.

Eu posso dar o mote, começando por fazer uma breve apresentação minha.


Relações com pessoas de outras etnias (10’)

Diga-nos, por favor, o que vos ocorre quando pensam em pessoas com outra religião, outra cor de
pele ou que nasceram noutros sítios?

[Pedir às pessoas para escrever num papel os grupos que as-


sociam de imediato a “outros”. No final do exercício, pedir para
48 O flip chart é um instrumento
fundamental na dinamização de um focus mostrar as folhas, ler todas as respostas em voz alta. Comparar
group. Para além de registar as opiniões
dos participantes, fazendo com que os e perceber qual(is) o(s) grupo(s) que se repete(m) mais e se
mesmos sintam que são válidas e queiram
ver exposta a sua intervenção, serve de
suporte à condução da reunião.

(104) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
manifesta(m) como mais presente(s) nas vivências das diferentes pessoas. Fazer uma síntese dos
resultados no flip chart.48 No final deste exercício, devemos induzir o máximo de diversidade. Ou
seja, se os participantes não se referirem a um número alargado de grupos, devemos nós alargar
o leque]

Costuma relacionar-se com estas pessoas? Em que contextos?

[Explorar - escola, trabalho, vizinhança, transportes, relações de amizade, relações amorosas, etc.]

Dos conjuntos de pessoas que identificaram, quais aqueles com os quais sentem maior empatia?

[Em função das respostas, explorar com base na Escala de Bogardus, os seguintes graus de
eventual afinidade:]

Aceitaria que uma pessoa pertencente a um destes grupos fosse sua amiga?

[Na sequência das respostas positivas ou negativas, questionar:]

Considera improvável ser amigo de uma pessoa pertencente a algum destes grupos em particular?

Aceitaria que uma pessoa pertencente a um destes grupos casasse com um filho seu?

Representações acerca da integração (15’)

De entre estas diversas pessoas/grupos (de que falámos anteriormente) quais consideram que se
estão a sair melhor em Portugal? E porquê?

E os outros que não se estão a sair assim tão bem, quais são? E porquê?

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (105)
Discursos sobre caracterização/atributos dos diferentes grupos (15’)

É comum comparar-se os portugueses a outros povos e dizermos que uns são “mais isto ou mais
aquilo”. Na medida em que achem que faz sentido fazer este tipo de comparação, quais são as
características/atributos que vocês diriam que distinguem os portugueses?

[Deixar discurso espontâneo. Ao longo do exercício vamos anotando os atributos associados aos
portugueses no flip chart]

Recordando agora os grupos que temos aqui [usar como referência os grupos listados na questão
2 no flip chart], pedíamo-vos agora que fizessem o que acabaram de fazer para os portugueses.
Isto é, digam-nos os atributos que associam a cada um destes grupos.

Aspetos positivos e negativos da imigração (15’)

[Explorar a opinião dos participantes sobre os aspetos positivos e negativos da imigração em


Portugal]

Acham que a relação dos portugueses com os imigrantes é mais de competição ou de coope-
ração? Vocês, ou alguém que conheçam, já viveram alguma situação em que competissem ou
cooperassem com imigrantes?

[Se necessário, dinamizar a conversa com exemplos habitualmente apontados como favoráveis e
desfavoráveis à imigração, para perceber o lado para o qual os participantes pendem. Exemplo: às
vezes em Portugal ouvimos na televisão pessoas que se queixam de que os imigrantes lhes ficam
com o trabalho, etc. Por outro lado, há quem diga que os imigrantes vêm só fazer os trabalhos que
não interessam aos portugueses por serem demasiados árduos e mal pagos, como é o caso das
limpezas ou da construção civil, etc.]

(106) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Portugal, país de brandos costumes (15’)

Há quem diga que os portugueses sempre tiveram, ao longo dos séculos, uma forma muito própria
de lidar com os povos dos países por onde iam passando, caracterizada por ser relativamente
benévola e pacífica, levando a trocas comerciais e culturais e à mistura de gentes. Acham que há
alguma verdade nesta ideia, ou que somos iguais a outros povos que tiveram histórias semelhan-
tes, nomeadamente ao nível da expansão marítima, como os ingleses ou os espanhóis?

Valorização de atributos (20’)

Exercício final:

Pegando agora nesta lista de atributos [questões 6 e 7] que vocês criaram, vamos tentar hierarqui-
zá-los de acordo com as três características que vocês valorizam mais numa pessoa.

Vamos assim, em conjunto, tentar chegar a um consenso e escolher a primeira característica mais
importante.

[Seguir os mesmos procedimentos para a segunda e a terceira]

E vocês acham que há racismo em Portugal? Se sim, em relação a que grupos?

[Se não surgirem espontaneamente referência a estes grupos, perguntar explicitamente por agru-
pamentos como africanos, ciganos, islâmicos, judeus, etc.]

Que tipo de argumentos que costuma ouvir considera serem racistas?

De onde vem esse discurso, ou seja, em quem se origina? E quem o repete?

Considera que os ciganos em Portugal têm as mesmas oportunidades que as outras pessoas?
Porquê?

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (107)
Discutir frases (10’ cada)

- A cor da pele é de grande importância para a convivência.

- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas recebem mais do que contribuem para este país.

- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas devem manter a sua identidade e cultura de
origem.

4. ANÁLISE DE DISCURSO

A análise das transcrições dos grupos de discussão foi feita de forma exaustiva, no sentido de
termos procurado assinalar todos os matizes de posicionamento dos diversos participantes, sem
nada omitir. O guião seguido na moderação dos grupos de discussão, que apresentámos na sec-
ção imediatamente precedente, tinha já por base uma estrutura temática que facilitou o arrumar
dos discursos mas que não tratámos como monolítica nos casos em que nos apercebemos de
que a conjunção de enunciados produzidos em secções diferentes poderia contribuir para a com-
preensão da dinâmica do discurso.

Os tópicos propostos para orientar a discussão resultaram da exploração da literatura existente


sobre o tema, que apresentámos numa secção precedente, e tinham como fim permitir entrever
as representações sociais do Outro mobilizadas pelos participantes em contexto de discussão. O
estudo é, pois, sobre estas representações, sobre como as pessoas olham o Outro e se perce-
cionam a si próprias nessa forma de olhar. Daí que ao longo das discussões surjam, a espaços,
tiradas reflexivas, auto-justificatórias ou não, quando os participantes sentem, às vezes para sua
surpresa, estar a pisar o risco da norma anti-racista.

(108) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 7.
ANÁLISE GRUPO A GRUPO
1. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTRATO SOCIAL
MÉDIO-ALTO

1.1. Identificação das categorias percebidas como outros

Depois de feitas as apresentações, quando foi perguntado aos participantes de estrato médio-alto
o que associam espontaneamente à noção de pessoas de outras religiões, origens étnicas, cores
da pele ou naturalidades, as duas primeiras palavras por eles proferidas foram “diferenças” e
“conflitos”. Ambos os conceitos expressam uma demarcação forte do exogrupo, quer no que se
refere à não identificação entre os elementos (são pessoas “diferentes”), quer à associação a
sentimentos negativos (“conflitos”). Note-se que, por esta altura da discussão, não tinha ainda sido
identificada qualquer categoria de pessoas característica da alteridade previamente referida, pelo
que este posicionamento espontâneo decorreu exclusivamente da categoria abstrata os Outros.

De resto, a tendência geral dos participantes foi identificar pessoas tendo por base diferentes proveni-
ências geográficas, cores de pele, etnias e religiões. As categorias assinaladas foram: muçulmanos,
negros, asiáticos, budistas, ciganos, indianos, brasileiros, chineses e europeus de Leste.

1.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas

Os graus de contacto com imigrantes e outras categorias minoritárias variam consoante os par-
ticipantes do grupo de discussão. Esses contactos ocorrem em menor escala no contexto de
vizinhança e a nível pessoal, sendo referidos apenas por dois indivíduos:

Alguns vizinhos meus.

Sou casado com uma pessoa mestiça, europeia e asiática.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (109)
E no contexto profissional, havendo aqui uma maior referência aos contactos com pessoas de
outras origens:

Eu trabalho numa empresa multinacional e estou constantemente a contactar com pessoas


de todos os sítios. Já estive em países como a Mongólia, países em África, portanto, grupos
diversos.

De resto, tenho experiência de ter estado no estrangeiro, com pessoas de todas as


nacionalidades.

Estive envolvida em projetos internacionais, de modo que envolvia gente de todos os lados,
etnias, religiões. Por isso estou habituada a lidar, isto é, a trabalhar com estas pessoas.

O teor destas declarações parece refletir o lugar-comum de que os participantes de estatuto social
superior são mais cosmopolitas. Contudo, estas afirmações evidenciam um maior contacto com
estrangeiros no plano laboral fora de Portugal. Das relações tidas em contexto profissional em
território nacional, foram referidas as seguintes situações:

O Instituto onde trabalho tem pessoas do Oriente, chineses. Anteriormente também vivi nou-
tros países e o campo da investigação era muito mais internacional do que aqui em Portugal.

A nível profissional [relaciono-me] com uma negra.

Três participantes de estatuto social médio-alto afirmaram que, de uma forma geral, não têm qual-
quer contacto com pessoas de outras religiões, antecedentes culturais, cores da pele ou de outros
países. É interessante referir que uma dessas participantes trabalha para a Comissão Europeia,
ocupando um cargo que envolve viagens semanais ao estrangeiro e o contacto frequente com
pessoas de todos os 27 Estados-membros e com nacionais de países terceiros que se relacionam
com a Comissão. A sua própria perceção – de não ter contacto com pessoas vistas como Outras –
parece apontar para uma visão do Outro como alguém que tem uma condição de classe diferente
da sua. Este é, segundo Machado, o elemento principal de contraste social (2002: 446). Quanto

(110) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
maior for o contraste – a nível das condições socioeconómicas, por exemplo – maior será a perce-
ção das diferenças étnicas ou culturais.

A importância do estatuto social na perceção da alteridade foi também visível quando o moderador
pediu aos participantes que indicassem, de entre as pessoas de origem diferente que haviam
previamente referido,49 aquelas com as quais tendem a sentir mais empatia.

Eu acho que a questão é mais complexa, porque eu acho que isso tem a ver com valores, com
posturas que cada pessoa, independentemente da religião e da origem étnica, tem. Portanto,
podemos empatizar, mais ou menos, em função do estatuto, no sentido do que é que essas
pessoas têm. Portanto, eu, à partida, não descarto nenhuma dessas possibilidades, também
não quero entrar naquele cliché “ah, é preto, é de África, é atrasado”, não faz sentido no
mundo atual (…). Mas, eu acho que essa empatia que se forma, tem a ver com o estatuto
económico, com o estatuto social, tem a ver com educação e portanto é transversal a tudo.

Eu acho que não tem a ver com o grupo, eu não tinha problema nenhum em me dar com toda
a gente que está aí, depende de…

Eu conheço uma série de pessoas muçulmanas que vivem no prédio onde eu vivo, com as
quais eu me dou muito bem. Apesar de ter esta opinião do muçulmano extremista. (…) Eu
tenho no meu prédio pessoas que trabalham na Embaixada com embaixadores, negros, que
têm um nível completamente diferente. (…) É completamente diferente de outro tipo de negro
que a gente encontra aí na rua.

No que respeita a sentimentos de simpatia, os participantes evitam optar por uma categoria em
detrimento de outra, defendendo geralmente que o estabele-
cimento de relações depende das pessoas e da existência de
49 Nesta fase da discussão, os mode-
interesses partilhados. radores apontaram aos participantes,
no flip chart, as categorias relativas a
pessoas de outras origens que estes
haviam identificado no início da discussão:
muçulmanos, negros, asiáticos, budistas,
ciganos, indianos, brasileiros, chineses e
europeus de Leste.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (111)
Penso que ficou mais ou menos claro, todas as pessoas concordam mais ou menos, é que, de
facto, nós damo-nos com toda a gente em função dos interesses, enfim, como nos identificamos
com essas pessoas.

Ainda assim, é evidente nos seus discursos que alguns aspetos são referidos como obstáculos ao es-
tabelecimento de uma relação mais profunda. Aqueles geralmente assinalados como mais distintivos
nas práticas da vida quotidiana, são os aspetos religiosos:

Tem mais a ver com o afastamento que a gente tem com a nossa maneira social em relação
como essas pessoas vivem no seu ambiente social. Há uns com um choque maior, outros não.
Por exemplo, eu teria muita dificuldade em conseguir adaptar a minha vida e o meu dia-a-dia e a
minha maneira de ser a alguém que fosse budista, porque eu acho que é totalmente extremista
em relação aos princípios que eu tenho. (…) O meu problema não era adaptar-me às pessoas,
era adaptar-me ao meio dele e ele adaptar-se ao meu para termos um meio-termo e vivermos em
sociedade os dois. Porque é totalmente díspar.

Se calhar, eu teria mais dificuldade em conviver com aquele muçulmano extremista, que anda
todo escondido ou obriga a mulher a fazer certas coisas que já não fazem sentido nenhum, coisas
assim.

A igualdade de género, eu creio que marca bastante uma definição do afastamento, não é? As
religiões, nós estamos abertos a diversas religiões ou a hábitos culturais e assim, pelo menos falo
do meu caso, a igualdade de género para mim, transcende-me um bocado. Ou seja, não haver
igualdade, para pegar na questão dos muçulmanos.

Sim, mas nós estamos aqui, não é? E combina-se: “Olhe, vamos tomar café”. Se calhar, com
pessoas como muçulmanos extremistas ou budistas ou ortodoxos, provavelmente, entre nós e es-
sas pessoas nunca haveria uma ponte, uma ligação, uma afinidade que permitisse essa ligação.

As posições assumidas pelos participantes relativamente às diferentes categorias foram, de modo


geral, associadas a diferenças culturais:

(112) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A questão da simpatia, acho que é complicado. Eu, por exemplo, [penso que a] dificuldade de
comunicação não é só na língua, é nos costumes. Os costumes são completamente diferen-
tes. Já trabalhei com pessoas da Indonésia, japoneses, chineses (…).

Em termos de pensar nesses grupos, eu gosto da variedade, eu gosto de trabalhar num


ambiente com pessoas de muitas nacionalidades, de religiões diferentes. Embora, claro que
também concorde que depende da pessoa, mas assim generalizando os grupos, há aí de-
terminados grupos com quem eu não consigo trabalhar muito bem. (…) Os chineses. É no
âmbito de concursos de doutoramento. Muitas vezes, vêm depois do doutoramento. Para
já, trabalham todos os dias. Nós trabalhamos 5 dias, eles trabalham 7 e não são obrigados.
Depois, isto não é só uma ideia minha, porque nós já falámos com outras pessoas, por
exemplo, eles fazem as coisas como querem, há um protocolo para fazer uma coisa, mas
eles fazem como lhes apetece.

Eu tenho algumas dificuldades de comunicação com africanos. (…) [Esta dificuldade tem que
ver] com a falta de instrução do outro lado. Com a falta de instrução. (…) É difícil particularizar
isto.

[Com os africanos] (…) a realidade mesmo a nível do trabalho e da dinâmica é completamen-


te diferente. O tempo para eles é uma coisa muito fluida.

1.3. Representações sobre integração

Depois da primeira abordagem, acerca da identificação e dos eventuais laços emocionais com pes-
soas pertencentes a diferentes categorias, o moderador perguntou aos participantes quais aqueles
que se estão a sair melhor ou pior em Portugal. Foi opinião consensual do grupo de discussão
de estrato médio-alto que os europeus de Leste conseguem integrar-se melhor do que os outros
grupos de nacionalidades imigrantes em Portugal:

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (113)
(…) as pessoas de Leste que também tentam e conseguem, de facto, se integrarem e con-
seguem por elas próprias, chegando aqui sem quaisquer afinidades culturais, linguísticas
e etc., e conseguem se integrar. Temos exemplo de pessoas que começaram nas obras e
conseguiram ficar muito bem.

Bem, quando estamos a falar de integração é Leste. Acho que o pessoal de Leste se integrou
muito bem.

No extremo oposto do espectro, os ciganos, apesar de serem portugueses, são vistos como forte-
mente não-integrados.

Enquanto a comunidade cigana que vive aqui há centenas de anos, está completamente
desintegrada e, provavelmente se formos a ver, até a nível de diplomas académicos e etc.,
está muito atrás de todos outros.

O objetivo não é a integração, eles não se querem integrar.

As únicas categorias evocadas pelos participantes a respeito da integração foram os imigrantes


europeus de Leste, os brasileiros e os ciganos.

No seu discurso, os participantes não distinguem os imigrantes originários dos vários países da
antiga União Soviética,50 estes são considerados como um todo, e há uma atitude positiva a seu
respeito: são percecionados como fazendo um esforço para se integrarem na sociedade e existe
uma ideia geral de que são pessoas mais qualificadas do que os outros imigrantes. Quando se fala
sobre brasileiros, é possível identificar uma atitude de desaprovação relativa ao facto de “não faze-
rem um esforço para se adaptarem à sociedade”, geralmente associado à sua “falta de vontade de
trabalhar”. A experiência da equipa de investigação noutros projetos (e na vida quotidiana) indica
que a atitude de “insatisfação” relativa aos ciganos é comum, tida como socialmente aceitável e
assumida com facilidade.
50 O que, aliás, se verifica em todos os
grupos de discussão, como poderemos
ver no Capítulo 8, relativo à análise
comparativa.

(114) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Estes resultados corroboram alguns estudos sobre racismo que revelam que a norma anti-racista
em vigor na sociedade impede os participantes de expressar formas de discriminação flagrante
– isto é, a rejeição e perceção dos exogrupos como uma ameaça e a recusa de um relaciona-
mento íntimo com os seus membros – embora as suas respostas apontem para formas subtis de
discriminação.

1.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias

Quando o moderador perguntou aos participantes do grupo de discussão de estrato médio-alto


quais os atributos que associam espontaneamente às pessoas que integram as categorias que
identificaram no início da discussão, pudemos verificar que a dinâmica do grupo funciona por
contaminação, isto é, as respostas tendem a surgir agregadas por atributos negativos ou positivos.
Um participante começa a dizer o que pensa sobre uma qualquer categoria minoritária e os outros
participantes tendem a seguir o seu discurso, recorrendo a adjetivos com conotações semelhan-
tes. Quando alguém interrompe a tendência e usa um atributo com uma conotação diferente, o
grupo de discussão tende a seguir a “nova imagem” acabada de surgir.

1.4.1. Portugueses
A enunciação dos atributos associados aos portugueses evidencia bem a tendência incutida pela
dinâmica de grupo. Há uma afetação inicial de atributos negativos ao endogrupo, que se esbate à
medida que um dos participantes enuncia aspetos positivos:

Quando eu fui viver mesmo para fora, a ideia com que fiquei é que o pessoal em Portugal
é mesmo muito pequenino, não consigo explicar. (…) Não sei bem, mas com falta de visão
geral. Tipo, aparece uma pessoa no autocarro de cabelo cor de laranja e toda a gente olha.
Em Inglaterra um cabelo laranja é normalíssimo.

Racistas, xenófobos.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (115)
Tacanhos.

Tradicionais, pouco abertos à mudança.

Queixosos. Sempre a queixar-se.

Fado.

Flexíveis.

Hospitaleiros, afáveis, com uma grande capacidade de improvisação.

Capacidade de desenrasque. É verdade! Nós fazemos coisas numa semana, chegamos aos
alemães e eles ficam pasmados “que output é aquele, já cá estamos há 3 meses e foi preciso
muita planificação…”.

1.4.2. Muçulmanos
Os atributos e emoções acerca dos muçulmanos são geralmente neutros ou negativos e palavras
como religião ou tolerância são frequentemente verbalizadas quando os participantes se referem
a eles.

Não comem carne de porco.

Só trabalham partes do dia, por causa do Ramadão.

(…) acho que somos muito influenciados pelos media. Os muçulmanos não têm nada a ver
com aquilo que a gente vê na televisão. Aliás, nós é que fizemos as cruzadas.

Tolerância, mas eu estava a pensar mais no aspeto da religião. Eu vejo numa perspetiva mais
comparativa com as outras religiões, mas acho que esta é mais interessante. Eu fui educada
como católica, mas não sou. Eu acho que eles são mais tolerantes porque aceitaram integrar
os outros, apesar de cobrarem coisas, mas gosto mais do espírito.

(116) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os muçulmanos fazem-me sentir:

Abaixo de cão.

Nada de especial, os que eu conheço não me fazem sentir nada de especial.

Em termos de valores fazem-me valorizar a evolução da sociedade ocidental, em relação aos


valores do indivíduo, da razão, da liberdade de expressão. Fazem-me valorizar o percurso
positivo e um certo percurso também de uma certa cisão entre a religião e a evolução social.
Essa cisão que se verificou, não é? A razão, a valorização do indivíduo enquanto ser humano,
valores individuais, liberdade. Democratização.

Fazem-me sentir pena.

1.4.3. Negros
Tal como acontecera antes relativamente aos imigrantes da Europa de Leste, os participantes não
diferenciaram os negros segundo a sua proveniência, descrevendo-os como um todo. Estes são
alvo de uma caracterização que se relaciona particularmente com a sua expressividade e exotismo.
Os atributos específicos que os participantes lhes associam são semelhantes aos encontrados e
expressos em diversos estudos distintos sobre a perceção que os portugueses têm dos negros.
Nesses estudos, os portugueses não atribuem muitas características negativas aos negros, embo-
ra lhes tenham negado alguns atributos valorizados nas sociedades ocidentais, como a autonomia,
a responsabilidade e a competência. Tendem a ver os negros como desempenhando um papel
mais decorativo e lúdico, caracterizando-os, por exemplo, como “cheios de ritmo”, musicais e
sensuais (Cabecinhas, 2002; Lima e Vala, 2004). Neste grupo de discussão, as características
associadas às pessoas negras foram:

Lentidão.

Têm ritmo no corpo.

Alegria de viver.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (117)
Por acaso, eu acho-os honestos. Todas as pessoas com quem lido, tanto cá como em Angola,
África do Sul e tudo mais, acho-os honestos.

Os negros fazem-me sentir:

Fazem-me confusão quando se misturam com a raça branca. Entre eles não faz, mas se vir
um casal, um negro e um branco faz-me confusão. A mim faz-me confusão.

Eu acho que são combinações lindíssimas.

Acho que dão crianças lindíssimas.

1.4.4. Ciganos
Segundo a perceção do grupo de discussão de estrato médio-alto, os ciganos são, definitivamente,
a minoria que reúne mais atributos negativos e que cria um maior impacto emocional negativo. No
entanto, são também caracterizados com atributos “leves” e exóticos. Os ciganos são perceciona-
dos com base em sinais físicos externos diferenciadores (reais ou imaginados), e esses atributos
são depois reformulados em termos de uma marca cultural intrínseca.
Problemáticos.

Violentos.

Feira.

Música. Desonestidade.

Festa.

Casamentos são sempre três dias.

Insubmissão, no sentido de não estarem interessados, ou pelo menos, não tentarem entrar
dentro do padrão social.

Entre eles, é a coesão.

(118) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Espírito de grupo.

Ser cigano é família.

Código de honra.

Clã.

Os ciganos fazem-me sentir:

Inseguros.

1.4.5. Indianos
Os atributos associados aos indianos são muito dispersos e, de uma forma geral, neutros.
Curiosamente aparecem associados ao conhecimento e as alusões feitas sobre indianos durante
a discussão, mesmo sem uma referência explícita, remetem para um referencial da Índia como
economia emergente e competitiva fortemente associada às tecnologias de informação.

Informática.

Matemática.

Muitas línguas.

Muitas religiões.

Caril.

Tradição. História.

Os indianos fazem-me sentir:

Distante, no sentido de pequeno. No sentido profissional.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (119)
1.4.6. Chineses
O discurso espontâneo associado aos chineses evidencia um certo distanciamento, em parte
justificado pelos participantes pela reserva e dificuldade de comunicação com os mesmos.

Ameaça.

Dificuldades de comunicação.

O nosso maior problema com os chineses é a comunicação.

Os chineses são muito esquemáticos, têm tendência para fazerem como acham que deve ser
feito e não como foi imposto naquele caso particular.

Reserva, no sentido em que não são pessoas muito abertas no que dizem, ou a própria
expressão corporal e facial muitas vezes não é tão adequada ao que nós estamos habituados,
aos sinais que lemos nos outros.

Linguagem corporal.

É um pouco escravidão, para eles trabalhar 24 horas seguidas sem descanso, é normal.
Persistência.

Competitividade.

Os chineses fazem-me sentir:

(…) pequeno.

Invadida.

1.4.7. Brasileiros
Os atributos expressos pelo grupo de discussão de estrato médio-alto são, de uma forma geral,
pouco favoráveis aos brasileiros:

(120) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Cansativos.

Indisciplina.

Biliões.

A gente vai à praia e é só brasileiros.

Frivolidade.

Matreiros.

Sacanice.

Alegria, vivacidade.

Samba.

Ressentimentos relativamente a nós, enquanto país colonizador. Mesmo crianças adultas.

Os brasileiros fazem-me sentir:

Depende das alturas, às vezes, alegre, quando há festa, mas, se for por outras coisas…

Acho que nós somos muito paternalistas com os brasileiros e eles detestam isso.

A descrição dos negros e dos brasileiros feita pelos participantes neste grupo de discussão, mostra
o legado dos aspetos históricos na perceção das categorias sociais. É curioso aqui encontrar ex-
pressões como “crianças adultas” (a respeito dos brasileiros) que coincidem com aquelas usadas
nas teorias do darwinismo social e da antropologia física, veiculadas por Oliveira Martins, e que
serviam de argumentário à política esclavagista do domínio colonial no Portugal de 1870: “Sempre
o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A precocidade, a mobilidade, a
agudeza próprias das crianças não lhes faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam
em faculdades intelectuais superiores” (citado em Alexandre, 1999: 136).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (121)
Há, contudo, manifestações mais óbvias da crença num determinismo biológico semelhante à
expressão “está-lhes no sangue” que se vulgarizou no quotidiano a propósito da descrição de
terceiros, designadamente sobre os brasileiros:

(…) lá está, os valores são diferentes. Matam assim como quem bebe um copo de água e é
do feitio deles…

1.5. Aspetos positivos e negativos da imigração

O moderador explora o impacto negativo e positivo da imigração na perspetiva pessoal dos parti-
cipantes de estrato médio-alto. De uma forma geral, os aspetos positivos expressos pelo grupo de
discussão suplantam os negativos.

Os aspetos positivos da imigração, segundo os participantes, são o multiculturalismo e as oportu-


nidades que esta representa para o país aos níveis económico, demográfico e cultural:

Resposta às necessidades do mercado.

(…) o trabalho que desenvolvem quando chegam, na primeira geração pelo menos, maiori-
tariamente é um trabalho não qualificado, que nós não queremos e isto também poderia ter,
mas não tem, o aspeto positivo de nos catapultar para os trabalhos mais qualificados.

Acho que há um aspeto positivo para a economia, que é mal aproveitado pelos sucessivos
governos, que é não legalizar as pessoas, não permitindo por esse motivo que os benefícios
dos mesmos sejam em benefício do nosso país e dos restantes portugueses. Isso transforma
e vai sendo uma bola de neve para a situação se deteriorar em lugar de se ver o contrário.

Positivo é cultural. Aprendemos com eles muitas coisas.

(…) a multiculturalidade, a culinária, coisas novas com que nos deparamos no dia-a-dia. Na
simpatia, de agradar o próximo, porque acho que há um cuidado e uma atenção das pessoas
imigrantes de agradar.

(122) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
(…) sendo que a taxa de natalidade de um país como Portugal só pode crescer por aí e esse
é um aspeto positivo. No aspeto negativo, nós não conseguimos integrar as crianças que vão
nascendo.

Um único participante referiu, como aspeto negativo, o aumento de criminalidade:

Alguns aspetos relacionados com a insegurança e a criminalidade. Eventualmente, não tanto


na quantidade e sem prejuízo de 99% das pessoas que provavelmente querem ganhar a vida,
há manifestamente formas de criminalidade mais violenta que essas pessoas nos trazem.
São pessoas que vêm de sociedades onde a tolerância à criminalidade e a ignorância não tem
comparação com os nossos padrões. Isto é um ponto importante, tanto a de Leste quanto a
do Brasil.

Embora alguns participantes tenham classificado os portugueses como racistas e xenófobos quan-
do lhes perguntam que perceção têm da recetividade aos imigrantes em Portugal, todos tendem a
concordar que a sociedade portuguesa é relativamente aberta, em particular as novas gerações,
nas quais se incluem.

Pelos mais jovens, eu acho que sim. Eu acho que quem tem contacto com o exterior. Agora,
das pessoas que não tiveram tanto contacto e para quem Portugal está tão mais fechado e
tudo mais, acho que é muito mais difícil. Eu vejo pelas gerações passadas, em comparação
à minha…

Eu acho que na geração dos meus pais, eles são menos tolerantes mas mais indiferentes. Ou
seja, para eles ser negro ou asiático é tudo igual, está tudo no mesmo saco e aquilo não os
afeta muito. Esta é a minha leitura, as gerações mais novas, algumas e a grande maioria, e eu
concordo, somos, de forma geral, mais tolerantes. Temos, de facto, gerações mais novas com
uma postura muito mais tolerante, há muitos mais casamentos mistos, (…) está a mudar. O
problema que eu vejo também, é que os casos de intolerância, nas gerações mais novas, são
mais graves e mais extremistas do que naquelas gerações mais velhas que não querem saber
muito disto. Eu acho que disse a palavra certa, indiferença. Eu acho que, se calhar, o que eu

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (123)
tenho visto de intolerância são meia dúzia de miúdos de gerações mais novas. Eu acho que
é isso, há uma indiferença face ao desconhecido nas gerações mais velhas, eventualmente
poderá haver manifestações de tipo racista, agora…

A minha mãe já tem mais de 60 anos. Foi preciso arranjar-lhe uma empregada e eu é que fui
tratar disso. E ela disse: “Vê lá na empresa que não sejam nem brasileiras, nem lá de Leste,
nem não sei o quê”. E a minha mãe é uma pessoa com curso superior e, portanto, é pela
idade, só pode ser. Mas, ela queria uma branca e portuguesa.

Acho que Portugal é uma sociedade tolerante. A mim não me parece que em Portugal ha-
ja fenómenos de racismo, quando o fenómeno de racismo mais presente é um cartaz no
Marquês de Pombal,51 está tudo dito. Eu estive em Viena há uns anos, onde sistematicamente
havia cartazes nas campanhas políticas a dizer “Viena não é
51 Em março de 2007, o Partido Nacional Istambul”. Milhares. Temos ataques violentíssimos, temos movi-
Renovador, ou PNR (um partido populista
de extrema-direita sem representação mentos constituídos na Europa contra judeus, contra africanos,
parlamentar), colocou um outdoor com contra não sei o quê. Portugal obviamente não é a sociedade
uma mensagem anti-imigração numa
das principais praças de Lisboa. O cartaz perfeita, obviamente que eventualmente marginaliza, discrimina,
continha a frase “Basta de Imigração –
Nacionalismo é a solução”, e ainda “boa mas é uma sociedade, nesse aspeto, tolerante e pacífica.
viagem” no regresso a casa, ao lado de
uma fotografia de um avião em voo. Em
outubro de 2009, outro outdoor com uma Relativamente à perceção sobre a forma como os imigrantes
mensagem do mesmo cariz foi colocado
noutra praça central da cidade. Este são recebidos em Portugal, apenas dois participantes emitiram
cartaz exibia uma ovelha negra e várias
ovelhas brancas – identificada com rótulos
opiniões menos otimistas, embora não tenham contestado os
como “desemprego”, “salários baixos”, argumentos levantados contra a sua perspetiva.
“multiculturalismo”, “fronteiras abertas”
e “criminalidade”; nele estava escrito
“Imigração? Nós dizemos não!”. Ambos Mas tem havido casos graves. Como o daquele rapaz que foi
os outdoors foram muito controversos e
deram origem a um enorme debate sobre morto no Bairro Alto por ser negro.52
a inconstitucionalidade deste tipo de
propaganda.
52 Alcindo Monteiro era um jovem negro, Eu não menosprezo, só acho que são casos pontuais, não tem
português, assassinado em 1995 no Bairro
Alto (o Bairro Alto é o coração da vida
nada a ver com o que se passa nos outros países da Europa.
noturna e da cultura juvenil lisboetas). O
seu assassinato levou à condenação de 15 A imigração é sempre um problema.
skinheads conforme ficou já exposto na
secção 3.5.

(124) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
No âmbito do impacto da imigração na sociedade portuguesa e nas vidas quotidianas dos par-
ticipantes, o moderador introduz uma questão sobre a natureza do relacionamento entre os
portugueses e os imigrantes: competição ou cooperação?

Em geral, as ideias expressas pelo grupo de discussão levam mais em conta a competição do que
a cooperação.

Competição, depende do patamar a que estamos a falar, mas é competição.

Eu acho que globalmente, é mais de competição do que de cooperação. Embora a coope-


ração seja imposta por estarmos dentro da Comunidade Económica, mas isso ao mesmo
tempo também leva a competição a aumentar.

No meio profissional onde nós nos movemos, a participação de estrangeiros é marginal e,


portanto, não constitui uma ameaça. Mas, se formos para empregos desqualificados, às
tantas, os que vêm de fora podem ser uma ameaça para os portugueses desqualificados.

Começam a surgir ameaças ou riscos, desafios ao nível da competição, ao nível mais qualifi-
cado. Nomeadamente na questão dos indianos.

Ainda assim, é curioso que a questão sobre cooperação ou competição tenha levado à enunciação
de assuntos como a integração de imigrantes.

Socialmente, eu acho que é de indiferença. Estamos a tentar uma generalização absoluta, eu


penso que geralmente a sociedade portuguesa é indiferente à imigração. Só não é indiferente
à imigração porque precisa de uma empregada ou “ai, houve um preto que assaltou aqui a
vizinha, ai a imigração só trouxe disto”. Mas, eu acho que os portugueses normalmente não
se questionam sobre a imigração. Também não me parecem ter uma atitude positiva, se
calhar também não têm negativa, na integração, ao contrário de casos como o Canadá, onde
a comunidade tem uma atitude muito positiva de integração. Não me parece que a sociedade
civil tenha um papel ativo na integração. Eu diria que há uma atitude indiferente. Também não

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (125)
sei se estamos a acolher os que temos poder de acolher, se não.

No caso de uma colega minha, vive num sítio onde no prédio dela e noutros, integraram várias
pessoas de vários sítios diferentes, negros e… e ela, ao princípio, estava muito satisfeita. Ela
pensava: “assim é que é”, porque não devia haver os tais guetos e não sei o quê. Agora,
passado uns anos que vive ali, diz: “bolas para a integração”. E já está farta, porque depois
em termos práticos, o que está a acontecer é tem música até às não sei quantas da manhã,
kizomba e não sei quê, não consegue dormir e tem imensos casos que ela vai contando. Lá
está o lado mau da integração.

Os meus pais vivem aqui perto de Lisboa numa zona mais recatada, uma zona mais rural já,
com alguma história. (…) Agora, começaram a chegar lá os primeiros imigrantes de Leste,
os primeiros brasileiros, que alugam as casas que estavam vazias e que se integraram na
comunidade, mais ou menos bem, a fazer algum trabalho que as pessoas não faziam, (…)
os nativos, a comunidade de lá, a vários níveis, social, monetário. Eu não sei se houve uma
integração também porque é um meio mais pequeno. Eu não sei se eles estão integrados, eu
sei que as pessoas cooperam, não sei se os integram.

[Em relação à existência de imigrantes no prédio] eu também gosto de ter a minha zona de
conforto. Não tenho nada contra os imigrantes, nem contra a maior parte das raças, mas
também gosto de… Já me basta quando vou a Angola, ou quando vou à Ásia estar integrado
nas suas sociedades. Cá gosto de ter pessoas com quem mais facilmente me dou, não tenho
de ter o medo de alguém me por o pé na porta, como já me aconteceu.

A ideia de integração parece estar ligada à cooperação com os imigrantes. Enquanto processo,
todavia, a integração tende a ser conjugada na terceira pessoa e de modo unilateral, ou seja, os
respondentes tendem a dizer que os imigrantes devem fazer ou não fazer algo para se integrar,
mais do que a enunciar o papel da sociedade portuguesa no processo.

(126) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
1.6. Portugal, país de brandos costumes

Depois das perguntas sobre as representações e relações entre Portugal e os seus imigrantes, o
moderador procurou elucidar se os participantes acreditam na imagem mítica de Portugal como
país de brandos costumes, e se acham que o racismo existe ou não em Portugal.

Os dos brandos costumes? Os dos brandos costumes de antigamente fizeram a inquisição,


das mais violentas na Europa. Dos brandos costumes, somos dos que têm maior taxa de
violência doméstica, portanto, eu acho que nos vendem muito essa ideia dos brandos costu-
mes. Os dos brandos costumes são os que temos aqui, os guetos que não deixamos mostrar.
Temos uma cidade, hoje em dia, e eu tenho pena, que a cidade de Lisboa esteja cada vez
mais repartida em sítios onde já não entra mais ninguém sem serem os ciganos, os sítios
onde não entra mais ninguém a não ser os chineses, etc., etc.

1.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação

Os participantes do grupo de discussão de estrato médio-alto referem como alvo de mais discrimi-
nação em Portugal os negros. Os participantes não só o deram como facto assente como também
procuraram racionalizar sobre o assunto:

Normalmente são os que fazem mais estragos conhecidos.

Foi o único grupo de imigração que tivemos nos últimos 30 anos. Só na última década é que
se abriu a imigração a outros grupos, não é?

Eu vivo numa zona extremamente calma, onde até há pouco tempo não havia problemas, e
agora a polícia anda constantemente com problemas com os negros. Porque eles resolveram
que aquilo era um sítio porreiro para ir buscar as coisas para levar, depois arranjam proble-
mas aos miúdos nas escolas, causam problemas na rua, causam problemas à noite, criou-se
um clima de insegurança que não é controlável. E também não vamos começar a matar os

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (127)
negros que lá aparecem, não é? Porque também não é a solução. Mas, eu vivo ali há 8 anos, e
há 4 anos aquilo era um paraíso. Atualmente é um desatino. E não é só ali, eu falo com colegas
meus e é um pouco generalizado.

(…) em Lisboa e à volta de Lisboa, e não sei se têm conhecimento disso, mas há escolas
onde noventa e muito por cento da escola é exclusivamente constituída por miúdos africanos,
exclusivamente. E isso, não é nada positivo em nenhum aspeto. (…) Não há escolas só com
os miúdos de Leste, escolas só com miúdos brasileiros e com africanos é muito complicado.

(…) quem tem miúdos não africanos, evita ao máximo pô-los nessas escolas, e por isso, são
cada vez menos os não-africanos e depois os professores não querem ir dar aulas para aí.

Outra categoria percecionada como vítima de racismo é a dos imigrantes brasileiros:

Eu acho que os brasileiros são, de alguma forma, discriminados de uma forma mais surda.

Apesar de serem uma praga.

Os brasileiros. Vou explicar. Os brasileiros é o primeiro grupo a dizer que é muito discriminado
e não sei o quê, mas um exemplo do nosso dia-a-dia: nós tivemos aqui aquela miúda Alexandra
e tivemos uma reação da comunidade. Eu nunca vi uma reação da comunidade brasileira, que
é muito alargada e muito expressiva cá, afirmando-se relativamente a nada do que se passa.
Inclusivamente, eventos muito maus que se passam com a comunidade brasileira. Eu acho
que nesse sentido, a comunidade brasileira, enquanto comunidade, não faz o esforço de dizer
“alto, nós estamos aqui, nós somos uma comunidade séria”.

Os brasileiros, de maneira geral, como é que vou dizer isto, os brasileiros têm uma postura que
não é muito a portuguesa.

Nos restaurantes, os empregados são todos brasileiros e as pessoas comentam “só brasileiros”.

Os brasileiros estão em todo lado.

(128) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
No cômputo geral, o grupo de discussão não relata muitas manifestações significativas de racismo
na vida quotidiana. Refere insultos e provocações ouvidas ocasionalmente em locais públicos e
apenas um dos elementos se lembra da existência de um partido político que manifesta com
frequência opiniões contra os imigrantes. Esta ideia foi imediatamente contrariada por outro parti-
cipante, que disse que, hoje em dia, há demasiado “politicamente correto” e que, quando se fala
sobre minorias, temos sempre de tentar medir as nossas palavras, sob pena de sermos acusados
de desrespeito para com os valores de outras pessoas.

(…) hoje em dia, se houver qualquer diferenciação que atinja uma pessoa imigrante, seja
negro ou o que for, isso é evitado, é erodido, eliminado dos discursos. Voltando ao que dizia,
é uma coisa absolutamente herética, alguém defender que a civilização ocidental é superior
às outras. Isto é herético.

À medida que a discussão avançou, tornou-se evidente que embora o grupo de discussão tenha
adotado, de início, um tom mais controlado e cuidadoso, evitando prudentemente quaisquer co-
mentários que pudessem ser interpretados como racistas, quando a discussão “aqueceu”, emer-
giram intervenções mais espontâneas que acabaram por contradizer opiniões expressas anterior-
mente. Aproveitando-se deste desenvolvimento, o moderador passou a fazer perguntas diretas
que, embora mantendo a viabilidade da discussão, fizeram com que os participantes assumissem
posições inequívocas.

- Os ciganos portugueses têm as mesmas oportunidades que as outras pessoas? A resposta do


grupo de discussão é unânime: claro que não. A opinião geral, porém, é que a responsabilidade
pela segregação dos ciganos é, pelo menos, tanto deles próprios quanto da sociedade dominante.

Os ciganos são discriminados por não terem as mesmas oportunidades.

É mais estrutural da cultura deles. Não tem a ver connosco.

A sociedade discrimina-os e eles discriminam a sociedade e há ali uma fronteira.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (129)
E até há ciganos políticos, mas não são aceites.

- Deverão existir quotas no mercado de trabalho para colmatar as desigualdades de acesso para
os ciganos? Embora o grupo de discussão concorde que os ciganos não possuem as mesmas
oportunidades do que os restantes portugueses, rejeita unanimemente as quotas argumentando
que elas são uma forma de discriminação.

Porque eu acho que a obrigação não resolve o problema, mascara.

As quotas são discriminatórias.

Quota é a pior coisa que se pode fazer e é um mecanismo que há.

- A imigração é uma ameaça aos valores culturais portugueses? A opinião é de que essa ameaça
não existe, de que os valores estão sempre a mudar e a imigração pode mesmo enriquecer esses
valores culturais.

- “A cor da pele não me interessa”. Concorda? Quando foi pedido ao grupo de discussão que
comentasse esta frase, a maioria dos seus elementos defendeu que a cor da pele não interessa.
Colocando a questão de uma forma mais pragmática, o moderador perguntou então se os par-
ticipantes veriam como problemático o casamento de um(a) filho(a) com alguém de outra cor
de pele. Só um dos participantes referiu que não gostaria que tal acontecesse, alegando fatores
relacionados com mistura de raças, e o resto do grupo de discussão reagiu com comentários
paralelos, surpresa e gargalhadas.

Não evitava, mas importava-me muito. (…) Eu não considero racismo este tipo de coisa. O
facto de eu achar que as raças não se devem misturar a nível físico. Eu não considero isso
racismo. Eu dou-me muito bem com os pretos e não tenho problema rigorosamente nenhum.
Agora, a nível humano, o convívio em si, a criação de algo que é a mistura de duas raças,
faz-me confusão.

(130) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Outro participante procurou confirmar o teor desta afirmação perguntando: “a um nível biológi-
co?”, ao que o primeiro participante respondeu: “sim, a um nível biológico”.

Nas sociedades formalmente anti-racistas é politicamente incorreto assumir este género de posi-
ção, o que explica a reação do resto do grupo de discussão a um tipo de discurso que configura a
manifestação do racismo: a rejeição da intimidade e a imagem do exogrupo como geneticamente
inferior são características do chamado racismo flagrante. Note-se que, nos dias de hoje, a for-
ma de racismo mais frequentemente encontrada é a subtil, tal como evidenciam investigações
realizadas em Portugal e noutros países da Europa. As novas formas de racismo são geralmente
encapotadas e indiretas. Caracterizam-se pela intenção de não violar o padrão de igualdade e de
não ameaçar o auto-conceito de pessoa igualitária (Lima e Vala, 2004), pelo que assumir posições
mais radicais entra na esfera anti-normativa e causa um maior impacto em contextos como este,
do grupo de discussão.

- Os muçulmanos são fundamentalistas? O grupo de discussão considera unanimemente que


eles não são fundamentalistas, embora ache que, hoje em dia, a palavra fundamentalista suge-
re imediatamente o terrorismo. No que concerne aos muçulmanos, os conceitos absorvem-se
mutuamente.

- Seria problemático para si se a sua filha se convertesse ao Judaísmo ou ao Islão?

Aí, é que eu digo: depende. Se entender religião como uma seita completamente radical (…)
no que respeita à liberdade da mulher.

Se estamos a falar do Islamismo de uma pessoa do Paquistão, que tem uma mentalidade
terrorista, se calhar … Se estivéssemos a falar de uma pessoa do Tibete, ou de uma coisa
totalmente diferente, se calhar já não fazia.

Se ela aderisse ao islamismo e aceitasse ser mulher com outras todas do mesmo homem, se
calhar, isso chocaria, um bocado, com os nossos valores, não é?

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (131)
1.8. Conclusões gerais

Em termos globais podemos apontar já algumas observações relativas ao grupo de discussão de


estrato médio-alto.

• A questão do esforço surge repetidamente na acusação de que algumas minorias não que-
rem trabalhar ou integrar-se na sociedade portuguesa;

• Embora algumas minorias sejam vistas como potenciais fontes de ameaça física (sobretudo
os negros e os ciganos), um conjunto completamente diferente de categorias é encarado pe-
los participantes de estatuto médio-alto como constituindo uma ameaça económica (indianos
e chineses);

• Apesar de neste estrato social, detentor de elevadas habilitações académicas, ser expectável
uma maior subtileza, pudemos aqui encontrar um discurso de racismo flagrante;

• Foi expressa uma crítica que denuncia ressentimento em relação ao politicamente correto e
ao multiculturalismo;

• A dinâmica de grupo afetou claramente as intervenções verbais dos participantes em todos


os momentos da discussão, e observou-se um efeito óbvio de emulação.

2. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES JOVENS DE ESTATUTO


SOCIAL MÉDIO-MÉDIO
2.1. Identificação das categorias percebidas como outros

Feitas as apresentações e aberta a discussão, a moderadora pediu aos participantes que referis-
sem quais as pessoas que lhes ocorrem quando pensam sobre outras etnicidades, religiões, cores
da pele e locais de origem. O grupo de discussão mencionou as seguintes categorias: negros,
africanos, chineses, indianos, asiáticos em geral, brasileiros e europeus de Leste.

(132) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Aparentemente, a compreensão da questão, apesar de colocada de modo bastante lato, concen-
trou-se na origem migratória. Apenas numa fase mais adiantada da discussão os participantes se
referiram aos muçulmanos e aos ciganos.

Nas suas respostas espontâneas, os participantes referiram os africanos e os europeus de Leste


como categorias monolíticas, sem subdivisões de nacionalidades. Por outro lado, mencionaram
os indianos e os chineses como agrupamentos distintos de nacionalidade, para além da categoria
mais abrangente dos asiáticos.

2.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas

Quando questionados sobre as relações quotidianas com pessoas das categorias enunciadas,
a maioria dos participantes mencionou ter colegas – na escola, no local de trabalho ou em ou-
tros contextos (por exemplo, numa equipa de basquetebol) – de origem minoritária, geralmente
africana.

A título de contactos com pessoas de outras origens foram ainda referidos outros exemplos:

Os meus pais tiveram uma empregada de Leste durante muito tempo.

A minha namorada é brasileira.

Eu tenho, sei lá, amigos chineses, uns três ou quatro (…) e o rapaz por acaso até é um grande
amigo.

Tal como aconteceu no grupo de discussão de estatuto social mais elevado, os jovens afirmaram
que a pertença a uma ou outra categoria de indivíduos não é condição moldadora do estabe-
lecimento de relações pessoais, uma vez que o que aproxima as pessoas são fatores como a
educação e os interesses partilhados.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (133)
[Sobre a amizade] Isso já tem a ver com a educação que lhes é dada em casa também, parte
muito das escolas, parte da educação familiar.

Eu posso ser amiga de qualquer pessoa (…) eu, para mim, o racismo é social, não tem a ver
com a cor ou de onde é que vêm, é o social.

A discriminação é mais a nível social… no sentido de educação, é isso.

Embora o discurso revele uma abertura ao estabelecimento de relações pessoais com pessoas
de outras etnicidades, quase todos os participantes mencionaram fatores que levantam entraves
a esta hipótese. Se, por um lado, afirmam que os interesses partilhados são mais importantes do
que o fenótipo e as diferenças culturais e religiosas, por outro, indicam que ter uma etnicidade
ou “cultura” diferente faz com que as pessoas tenham mais dificuldade em encontrar pontos de
contacto em termos dos interesses e maneiras de ser. Para o exemplificarmos, salientamos o
recurso frequente a casos de jovens de ascendência africana que nasceram em Portugal e têm
nacionalidade portuguesa:

Acho que essa diferença vai-se esbatendo, mas acho que acaba por se manter um bocadinho
porque os pais vieram de fora e mantêm as mesmas culturas.

Não sei, eu acho que aquilo que falava ainda há bocado dos filhos dos que vieram para cá,
torna-se, não generalizando, um problema da adaptação, porque eles não são de lá, porque
muitos deles nunca foram à terra, ao país de origem, ouvem os pais a falar de como é que
era a vida lá em África e como é que era e… [outro participante conclui o pensamento]. Mas
não o viveram.

(…) não se sentem bem em lado nenhum. E além de terem nascido cá, acho que cresceram
com o estigma de serem diferentes, porque apesar de tudo são vistos como diferentes, por-
que apesar de tudo estão num sítio que é o deles, mas ao mesmo tempo não é.

Inadaptados, exatamente, não se sentem bem em lado nenhum.

(134) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Este foi o único dos quatro grupos de discussão em que os participantes levantaram a questão da
identidade da chamada “segunda geração” de uma forma significativa. Provavelmente, tal deve-se
ao facto de, em resultado do seu escalão etário, terem um maior contacto e proximidade com os
indivíduos que compõem essa geração.

Os jovens centraram por completo a discussão sobre graus de afinidade com pessoas de outras
origens nos negros. Ao reparar nesse facto, a moderadora perguntou por que razão isso acontecia.

[São as pessoas] que causam mais impacto.

Se calhar em Portugal é, mas noutro país pode ser outra comunidade qualquer, por exemplo
em França, nós os portugueses éramos muito estereotipados, havia muita xenofobia, em
relação aos portugueses em França, na altura Bidonville e não sei quê… a gente fomos…

(…) a comunidade africana tá na nossa história por causa da guerra colonial e isso e acho que
a gente olha um bocado de lado por causa disso.

Eu falei mais na raça negra, porque é com quem eu tenho ligações e amizades e etc., de
resto não tenho…

Porque aparece [os negros] mais no nosso dia-a-dia basicamente…

Quando questionados sobre a possibilidade de um hipotético filho seu casar com alguém de outra
etnia, nacionalidade ou religião, os participantes responderam muito prontamente que, hoje em
dia, isso não coloca qualquer problema, tudo depende do caráter da pessoa em questão e não
dessas características.

Acho que a pergunta assim é estar mesmo a pôr um rótulo nessas pessoas, porque é a
mesma coisa que se me perguntassem, deixavas um branco casar com um filho teu dizia
depende, depende da pessoa, tal como com essa pergunta, depende da pessoa em questão.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (135)
Não me importava desde que eu como pessoa, visse ele como uma pessoa decente, não
havia problema nenhum. Decente, pronto…

Estas respostas são muito semelhantes às dadas pelos participantes de estatuto social mais
elevado. A semelhança vai ao ponto dos participantes mencionarem os mesmos aspetos como
possíveis obstáculos a um casamento inter-étnico dos seus hipotéticos filhos:

Em relação a filhos casarem com pessoas de culturas diferentes, eu por mim só tenho
um problema que é aquele problema de ser mulher, ter uma filha mulher casada com um
muçulmano, levar lá para o meio do Afeganistão e que tenha aqueles filmes todos, ou que
case com alguém de raça cigana e que tenha exatamente os mesmos problemas, era… a
liberdade…

Mas quando os costumes da outra raça entram em conflito com os nossos costumes, aí acho
que poderá haver problemas.

Simultaneamente, e dada a insistência dos participantes na ideia de que, há algumas gerações,


um casamento desse tipo enfrentaria uma oposição muito maior, a moderadora perguntou qual
seria a reação dos pais dos participantes se eles se casassem com alguém de outra etnicidade.
Três raparigas admitiram que isso seria problemático:

Eu é mais pelo lado da minha tia, a minha tia é racista e ela assume-se mesmo como racista.
Tudo o que seja diferente, ela não gosta, que é uma coisa que em pequenina me fazia muita
impressão. Agora acho que ela tá melhor, mas é um assunto em que eu não posso falar com
ela porque senão, há discussão. Mas é, por exemplo, estavam a construir um bairro novo ao
pé da casa dela e ela tava em pânico porque iam para lá ciganos e pretos e… e tia, qual é o
mal? Tipo, se se souberem comportar e forem como deve ser, qual é o mal? Ela assim: “Era só
o que me faltava, não me vais dizer agora a seguir que vais namorar com um preto”. Seria um
problema, por isso! E até mesmo a minha mãe, já uma vez me disse: “ai, por favor, netinhos
escurinhos é que não, cabritinhos não”, já me saiu com essa, cabritinhos não.

(136) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Foi só nesta altura do debate que os participantes fizeram as primeiras referências aos ciganos
e aos muçulmanos, categorias que tinham sido esquecidas aquando da enumeração inicial.
Questionados diretamente sobre a sua afinidade com pessoas dessas minorias, o grupo de dis-
cussão assumiu uma postura de relativa indiferença para com os muçulmanos e de hostilidade
perante os ciganos. Tal como nos restantes grupos de discussão, esta relação – ou a sua ausência
– com os ciganos é justificada como consequência direta da postura dessa minoria, e não assu-
mida como uma rejeição pessoal do Outro.

Na minha experiência pessoal eu não gosto muito deles, mas eu sei que não são todos, por
isso não vou generalizar, tive más experiências com eles quando era mais pequeno, ainda ho-
je não gosto da maior parte deles, mas sei que deve haver ali alguém que é bom, de certeza.

Não se trata de ter dificuldade em relacionar-me com eles, acho que eles é que têm dificulda-
de, alguns deles, em relacionar-se com as outras pessoas, eles têm uma cultura muito forte,
eles têm costumes muito fortes mesmo.

2.3. Representações sobre integração

Após a abordagem inicial à identificação de pessoas de outras etnicidades, aos laços emocionais
e afinidades dos participantes para com essas minorias, a moderadora introduziu a questão da
integração das minorias na sociedade dominante. Começou por perguntar qual das categorias já
mencionadas se estava a sair melhor em Portugal.

Os participantes mencionaram de imediato os chineses, em grande medida devido às atividades


económicas por eles concretizadas em Portugal (lojas de venda a retalho e restaurantes).

Economicamente, os chineses.

Eu acho é que os chineses também vêm muito para cá com uma perspetiva comercial, eles
vêm para cá fazer comércio, é mais esse o objetivo deles, enquanto que se calhar nas outras

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (137)
raças, vá, vêm para cá numa outra perspetiva, se calhar que é mais de carreira, criar qualquer
coisa, mas não necessariamente a nível comercial, de comércio, e os chineses é muito mais
para essa vertente, acho que há aí uma diferença.

Os participantes percecionam a integração dos chineses de um ponto de vista económico. Ao


fazerem-no repetem o padrão observado nas discussões com participantes de estatuto social mé-
dio-médio e médio-baixo, conforme poderemos confirmar adiante. No entanto, os jovens chegam
também à conclusão de que, se usarem outros critérios para avaliarem a integração, os chineses
não são uma das minorias melhor integrada

Economicamente, os chineses. (…) Mas em termos de integração, se calhar não.

Eu acho que ainda só vi chineses mesmo na loja dos chineses, acho que nunca vi chineses
a passear na rua.

Desvalorizando a perspetiva estritamente económica, o grupo de discussão parece concluir de


forma consensual que os europeus de Leste estão melhor integrados.

Eu acho é que em termos de integração, se calhar os grupos que vêm da Europa de Leste,
são os que se estão a conseguir integrar melhor. Na minha opinião eles vêm de países muito
pobres e viviam muito mal, e então quando chegam aqui, encaram isto como uma mudança
de vida, uma oportunidade. Exatamente, são os miúdos que vão para a escola e ao fim de
três meses aprendem a falar português, que os pais, tipo, eram médicos na terra deles, mas
que vêm para cá, dispostos a fazerem qualquer coisa nem que seja limpar o chão mas que
mesmo assim não desistem, se calhar, de se tentar integrar de forma a conseguirem exercer a
profissão deles cá. Eu acho que em termos de integração são os que se estão a safar melhor.

Um dos participantes mencionou os ciganos. Embora isso tenha sido dito em tom irónico, corres-
ponde a uma ideia que surgiu no grupo de discussão com pessoas de estatuto social mais baixo.

(138) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
É assim, os ciganos também vivem bem, andam de feira em feira, se calhar, se formos a ver,
têm brutos Mercedes e Volvo, e em termos económicos também estão muito bem, se calhar
melhor do que muitos de nós em termos financeiros…

2.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias

A moderadora perguntou então aos participantes se achavam possível associar diferentes atribu-
tos aos portugueses etnicamente maioritários e às várias minorias e nacionalidades estrangeiras
mencionadas até então, e, em caso afirmativo, quais as características que atribuiriam a cada
categoria.

2.4.1. Brasileiros
Embora fosse pedido para caracterizar os portugueses em primeiro lugar, o início da discussão foi
marcado pelos atributos associados aos brasileiros. Esta categoria reuniu mais atributos negativos
do que positivos.

Eu acho que, só uma opinião, eu acho que nós estamos a falar dos brasileiros, mas se calhar,
acho que é por haver muitos, porque, não sei, da maneira como nós estamos a falar dos ou-
tros por serem diferentes e assim, e os brasileiros não são assim tão diferentes. É um bocado
como se… Vão muitos portugueses com cursos superiores para o estrangeiro, vêm para cá
muitos brasileiros, acho que por exemplo (…), não sei, acho que os brasileiros se calhar são
um bocado um pouco à parte em relação aos outros.

Eu não concordo muito, porque normalmente quando dizem brasileiros, e não leves a mal
por ter uma namorada brasileira, mas normalmente, até porque há brasileiros e brasileiros, lá
está, é o nível social, eu, para mim, o racismo é social, não tem a ver com a cor ou de onde
é que vêm, é o social. Mas normalmente quando dizem assim “ah não sei quê, é brasileiro
ou brasileira” … as brasileiras associo-as logo, como é que eu hei-de explicar [risos], posso
falar assim um bocado mais à-vontade? São assim, muito oferecidas, pelo menos, e eles são

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (139)
muito malandrecos, percebes? Metem-se muito, são muito comunicativos, é o social deles,
eles dão-se todos muito bem uns com os outros e aquilo é tudo um “forró”.

É uma mentalidade mais aberta.

Tal e qual, é uma mentalidade mais aberta e acho que é um bocado por isso que estão ali os
brasileiros, é, tem a ver com esses brasileiros.

Se calhar eu diria também calculistas.

Eu acho que os brasileiros são amigáveis.

Aquilo que eu já ouvi dizer, muitas vezes, em relação a eles é que eles são falsos.

Exato, sim.

Pois [falsos], (…) eles fazem-se assim muito amigos, muito, vamos ser todos amigos e depois
vão a outro lado e já falam mal de ti e coisas assim do género.

Encontrei outra, interesseiros.

E oportunistas.

2.4.2. Chineses

Com base nas categorias identificadas pelos participantes assinaladas no flip chart, estes optaram
por seguir a discussão com uma abordagem sumária aos atributos associados aos chineses.
Também este género de caracterização evidencia algum distanciamento face a esta minoria:

Trabalhadores.

Comerciantes.

Eh, pá, não sei, eu…

Eu considero os chineses fechados.

(140) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
2.4.3. Africanos

Entretanto, os participantes começaram a falar sobre os africanos. A moderadora procurou clari-


ficar se os atributos agora mencionados podiam ser aplicados aos africanos de todas as proveni-
ências ou se os elementos do grupo de discussão diferenciavam entre países de origem. Um dos
participantes mencionou os cabo-verdianos e os angolanos como sendo bastante diferentes, mas
a maioria do grupo de discussão manteve a opinião de que os africanos ou negros podem ser
considerados como um todo.

Os africanos, barulhentos, eles gostam de falar alto (…) eles juntam-se em grupo e falam
muito, estejam onde estiverem.

Estrilhosos mesmo.

Eu tinha uma palavra associada – “grupos” – raça negra, é “grupos”, completamente.

Festivos.

Festivos, sim, era isso que eu ia dizer, eles são muito alegres, e os brasileiros também, nesse
aspeto, também são pessoas muito alegres, muito para a festa.

Às vezes, ouve-se falar da raça negra que são um bocado… preguiçosos (risos). (…) Eu, por
exemplo acho isso, porque farto-me de ouvir as pessoas dizerem isso.

Isso tem muito a ver, lá está, com a cultura das pessoas. Por exemplo, a raça negra, muitos
dos países africanos têm um calor insuportável. É impossível eles terem o mesmo empenho
a nível… não é, se calhar… como é que hei-de explicar… é impossível uma pessoa que esteja
em África com 40 graus conseguir fazer o mesmo que uma que está com muito… muito me-
lhores condições cá em Portugal, ou noutro sítio qualquer. Portanto, acho que isso também
tem a ver com… com outras características e com a envolvência.

(…) Simplesmente não têm hábitos de trabalho… porque lá não há trabalho.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (141)
Os participantes dos outros grupos de discussão também atribuíram aos negros uma propensão
para atividades festivas e para a formação de grupos numerosos. O grupo de discussão de estatuto
social médio-alto atribuiu também aos negros uma tendência para a preguiça associada à sua
origem geográfica.

2.4.3. Muçulmanos

Os jovens não dedicaram muito tempo à “descrição” dos muçulmanos e todas as referências so-
bre esta categoria relacionaram-se com o aspeto religioso. Os outros grupos de discussão também
fizeram essas associações, embora tenham sido de cariz mais negativo do que as aqui analisadas,
que provêm de um escalão etário diferente.

Os muçulmanos… é mais a nível de religião.

Bastante religiosos.

Religiosos, acaba por ser também um bocado fechados por causa disso, nós não somos uma
boa influência para eles.

2.4.4. Portugueses

Por esta altura, um dos participantes sugeriu que retomassem a questão dos atributos associados
aos portugueses, que até então só tinham sido caracterizados pelo seu desembaraço.

Preguiçosos.

Descontentes também, nunca nada está bem.

Os estrangeiros dizem que somos simpáticos e…

Os grupos de discussão de estatuto social médio-alto e médio-médio também mencionaram este


descontentamento e, com base nesse atributo, falaram sobre o Fado, o pessimismo e os eternos
queixumes. No entanto, os jovens introduzem, de facto, um elemento de novidade ao atribuírem a

(142) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
preguiça aos portugueses. É também de referir que os participantes não associam quase nenhu-
ma característica positiva ao endogrupo, e que a única exceção é apresentada não como um auto
atributo mas como uma perceção por parte de pessoas estrangeiras.

2.4.5. Ciganos

Entretanto, os participantes começaram a falar sobre os ciganos, sempre com algum grau de
distanciamento, quase como se os ciganos não fossem “verdadeiros” cidadãos portugueses:

Quer dizer, se considerarmos que a raça cigana vem da Roménia, acho que podemos distin-
guir [os imigrantes de Leste].

Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam… tipo, se pensarmos nos africanos, em
África eles estão no sítio deles. Pronto… enquanto os ciganos, não têm o sítio deles… ou seja,
são sempre estranhos onde quer que estejam.

Sim, até porque eles têm o grupo deles a defender, os ciganos, normalmente não se pode…
por exemplo, uma cigana não pode casar com um português.

Os jovens atribuem aos ciganos traços que também foram associados a esta minoria por partici-
pantes dos outros grupos de discussão, particularmente no que concerne à sua atividade mercan-
til, à desonestidade e ao forte sentido de clã com que são percecionados.

Os ciganos estão sempre a tentar passar a perna.

Bons negociantes.

Eu acho que os ciganos são muito a nível familiar, acho que em relação a “grupos” acho que
os ciganos, ainda são mais, têm laços mais fortes.

Porque senão qualquer dia a raça deles deixa de existir e há uma coisa a manter, e então,
minha querida, tens catorze anos vais casar aqui com o Lelo, que é para isto não acabar, eles
têm muito essa coisa.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (143)
(…) aos sábados à tarde, grandes festas à porta das prisões, vão visitar as famílias.

E hospitais também, a família vai sempre toda, todos juntos.

Eu associo aos ciganos barulho, porque eles são muito barulhentos, muito intensos nas coi-
sas, se estão chateados gritam, se estão a chorar, choram baba e ranho.

Associo um bocado também com pedintes, quando andam as mães com as crianças todas
e há aquelas histórias que as crianças que são alugadas e passadas de mão em mão e não
sei quê, para andar a pedir.

2.4.6. Europeus de Leste

À semelhança do grupo de discussão de estrato médio-alto (bem como dos outros grupos de
discussão, conforme o leitor terá oportunidade de verificar nas análises das restantes discussões),
os jovens caracterizam os europeus de Leste como muito trabalhadores. São a única categoria em
relação à qual os participantes insistem na ideia de sacrifício pessoal na esfera do trabalho. Isto
pode ser fruto da ideia muito difundida segundo a qual os europeus de Leste são sobrequalificados
para os cargos que ocupam em Portugal.

Eu acho que até os da Europa de Leste, concretamente, são os mais humildes, são mais
sujeitados.

Sacrificados.

Por experiência pessoal, diria que as pessoas da Europa de Leste são, se calhar um bocado
oportunistas, mas não queria estar a generalizar muito, porque foi uma experiência particular,
específica.

2.5. Aspetos positivos e negativos da imigração

Entretanto, introduzindo o assunto da imigração de acordo com o estabelecido no guião de en-


trevista, a moderadora perguntou aos participantes se a relação entre a população maioritária

(144) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
portuguesa e as minorias em questão é de cooperação ou de competição. Resumindo as inter-
venções daí resultantes, a ideia principal é a de que há mais competição do que cooperação.
Para estes jovens, os migrantes chegam principalmente para ocupar postos de trabalho que não
interessam aos portugueses.

Eu concordo com essa ideia que fazem muitos trabalhos que os portugueses simplesmente
não aceitam e recusam esse tipo de trabalhos.

(…) fala-se muito na mão-de-obra que é mais barata e não sei quê, eu acho que isso também
é um fator importante, eu acho que não podemos dizer que os portugueses não aceitam
esses trabalhos, porque grande parte dos construtores e isso, vão buscar os imigrantes de
Leste, que são baratos em termos de salários.

Sujeitam-se a determinadas coisas que nós não.

Por exemplo, em termos das brasileiras, eu ouço muito a trabalhar nas lojas dos centros
comerciais e assim, acho que isso também se deve um bocado, tudo bem que elas se calhar
não têm formação para fazer outros trabalhos, mas muitas vezes não têm, são raparigas
novas que não têm família cá, por isso sujeitam-se àquele tipo de horários, trabalhar aos
domingos, aos sábados, à noite, se calhar também não têm aquela casa com família para
onde ir, têm o dinheiro para mandar ao fim do mês, para casa, para os irmãos mais novos,
muitas vezes.

Face a tais afirmações, a moderadora insistiu numa resposta clara: é a competição ou a coopera-
ção que melhor descreve a relação entre os portugueses e os imigrantes?

Competimos [grande número dos participantes].

Depende dos setores, também. (…) Sim, acho que num setor mais primário, como construção
civil e isso, trabalhos sujos, como se pode dizer, acho que aí há uma competição, porque
como sabem as taxas de desemprego também são bastante elevadas, e acho que há uma es-
tagnação nesse setor e (…) há uma competitividade grande e talvez uma colaboração depois

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (145)
mais tarde a um setor mais elevado, de empresas e assim.

Eu acho que eles [imigrantes] são um bocado ignorados, acho que ficam com os restos e
acho que nós andamos, ainda os criticamos por causa disso.

Mas ao criticar, lá está, é a competição.

Eu digo que não é competir, porque nós reclamamos muito deles, mas se calhar eles estão
com trabalhos que nós não aceitaríamos, ou seja, eu digo que não é competir por causa
disso, não nos estão a tirar trabalho a nós, penso eu.

Estão sem trabalho, pelo menos uma parte deles, porque o Estado dá um forte apoio, dá ren-
dimentos suficientes. (…) Há aqueles que não se sujeitam ao trabalho que nós não fazemos
e há aqueles que se sujeitam, e há aqueles que não se sujeitam e preferem viver um bocado
à custa do contribuinte.

Só um dos participantes expressou esta ideia de privação relativa. Nas restantes discussões essa
ideia emergiu entre os participantes de estatuto social médio-baixo. Por outro lado, a ideia de que
os imigrantes não competem, limitando-se a ficar com os trabalhos dos níveis inferiores do merca-
do laboral, foi previamente expressa pelos participantes de estatuto social médio-alto.

2.6. Portugal, país de brandos costumes

Na sequência da relação de competição ou cooperação entre a população maioritária e as mi-


norias, os jovens foram questionados se a ideia de Portugal ser um país de brandos costumes
tem um substrato real e é, de facto, algo que nos caracteriza ou que nos tenha caracterizado no
passado, ou se é um discurso sem correspondência com a realidade.

Pelo menos acho que é isso que somos levados a acreditar na escola, nas aulas de História.
Como não podemos voltar atrás no tempo e ver se isso era mesmo verdade, acho que é aquilo
que nos levam a acreditar.

(146) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Nessa época, se calhar, provavelmente foi assim, hoje em dia não se nota tanto essa diferen-
ça. Acho que não somos assim tão diferentes dos ingleses em relação a outras raças, porque
há muita mistura de raças em todos os países, não há um país que nós possamos dizer que
aqui não há uma diferença enorme de raças desde africanos, chineses, da lista toda, acho
que há um pouco de tudo em todo o lado.

(…) estava a falar da época da expansão, dos descobrimentos dos portugueses. Acho que,
pelo contrário, acho que foram os outros povos que tentaram aprender alguma coisa connos-
co. Nessa altura, pelo menos, nós criámos bastantes colónias, nós fomos até ao outro lado
do mundo, acho que, se alguém aprendeu, não fomos nós, foram os ingleses, acho que os
ingleses eram assim mais bárbaros, acho talvez, ou os franceses.

Eu acho que não houve uma preocupação tão grande de Portugal, como houve, por exemplo
com os ingleses e com os franceses, pronto, e as colónias deles, nós respeitámos até bas-
tante, as culturas dos sítios onde chegámos, por exemplo, se pensarmos que os espanhóis
chegaram ao México e deram cabo daquelas pessoas que viviam ali e os Aztecas e os Maias
que já não existe nada hoje em dia, porque eles exterminaram tudo, acho que nós até nem
fomos assim…

2.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação

Os aspetos enunciados pelos jovens relativamente aos brandos costumes são todos eles focados
no passado colonial. A situação presente foi abordada quando a moderadora perguntou aos jovens
se consideram que há pessoas discriminadas em Portugal, e se sim, quais.

A maioria dos jovens começa por referir os negros como os mais discriminados em Portugal. Ao
tentarem perceber as razões, evocam fatores como a sua expressão na sociedade portuguesa,
seja em termos numéricos, seja no que se refere à sua maior visibilidade. Apesar de o número de
nacionais de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa que se encontram entre os imigrantes

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (147)
mais representativos em Portugal em 200853 ser inferior ao número de brasileiros, por exemplo, a
perceção dos jovens é de que há mais africanos. Este aspeto encontra, provavelmente, explicação
no facto de os jovens residirem na Área Metropolitana de Lisboa, que coincide com a região de
maior concentração de imigrantes oriundos do continente africano.

Raça negra. Maioritariamente, porque também são os que há em mais quantidade.

São os que há mais. É a comunidade maioritária.

Se calhar há mais. Também pode ser daí.

Quando estava em Coimbra acho que as pessoas da Europa de Leste eram em maioria. Não há
assim tantos negros como isso. E por isso sentia que eles é que eram os marginalizados. Eles é
que eram a minoria. “Ah… foi um ucraniano”, visto como racismo. Enquanto que, se calhar, em
Lisboa as pessoas de raça negra são muito mais e, por isso, são essas que são mais apontados.

Estão cá há mais tempo e são o que há em mais quantidade, acho eu.

É um bocado isso. Dão mais nas vistas.

Os jovens referem ainda como causa de discriminação dos negros o facto de estes serem aqueles
que “arranjam mais problemas”. Note-se que este aspeto foi também sugerido pelos participantes
do grupo de discussão de estrato médio-alto. Ambos os grupos de discussão encontram uma justifi-
cação intrínseca ao exogrupo para a sua própria discriminação, isto é, a responsabilidade é atribuída
à vítima.

Se calhar os mais problemáticos. Também são os que arranjam


53 Em 2008 os nacionais de Cabo Verde,
mais problemas.
Angola e Guiné-Bissau, que integram as
seis nacionalidades de imigrantes mais Porque se calhar há mais (…) como são mais, sentem-se mais
representadas em Portugal somavam
103.362 indivíduos. No mesmo ano, seguros.
106.961 brasileiros residiam em Portugal.
Veja-se o Relatório de Actividades do Eles são super problemáticos. Estão sempre a arranjar confusão
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras 2008.
Consultado em 8 de junho de 2010, a e não são assim tantos.
partir de: http://sefstat.sef.pt/Docs/
Rifa_2008.pdf.

(148) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
É curioso notar que este argumento, de culpabilidade do discriminado, aparece em paralelo com
a importância dos media na difusão de imagens associadas ao Outro. A esse propósito os jovens
fazem notar que em Portugal os muçulmanos não são alvo de muita discriminação por haver
poucos, porque a imagem que a televisão passa deles não é nada positiva.

Há muito poucos (…), e os poucos que há não se metem com ninguém.

Aí, se calhar entra um bocado os media, não é? Aquilo que eles nos transmitem. O racismo
que poderá haver, eu falo por mim, dos indianos e dos muçulmanos, das outras pessoas, é
aquilo que vêem na televisão, daquilo que eles fazem nos outros países… e não cá. É essa a
razão maioritária que a gente tem para dizer seja o que for deles.

Mas se houver um dia em que dois muçulmanos vão para um banco e sequestrem as pesso-
as que lá estão, acho que se calhar a partir desse dia… a atenção para eles…

O mesmo acontece com os imigrantes do Leste da Europa e com os africanos:

A Europa de Leste e os de raça negra, também. Acho que estamos a ser constantemente
bombardeados com notícias com eles, como os maus da fita.

Quando até nós fazemos coisas piores, às vezes.

Há uma data de assaltos por Portugal inteiro associados a pessoas, a grupos de Leste, à
máfia de Leste e essas coisas…

Eu vivo na zona da Costa da Caparica e é onde está, maioritariamente, a comunidade


brasileira. Se calhar, não sei se é esse o motivo ou não, mas, por exemplo, no ano passado
houve durante um mês, houve para aí uma série de seis assaltos a restaurantes e, por vezes,
a restaurantes brasileiros, curiosamente. Mas feitos por pessoas brasileiras. Depois foram
presos e verificou-se isso.

Basicamente, é em função de onde cada um de nós vem que tem a sua opinião em termos

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (149)
de qual é a raça que é crucificada, entre aspas.

Mas assim em termos gerais… é a raça negra.

Filmes, séries e isso tudo. Se calhar, sempre que… acho que é aquilo que é mais universal, é
o racismo mais universal, se calhar é o dos brancos contra os negros.

É a diferença mais latente.

Se calhar, também os negros são os mais inadaptados, digamos assim, à nossa cultura.

Entretanto, questionados acercas dos discursos racistas que costumam presenciar no quotidiano,
os jovens referiram estar normalmente associados a aspetos relacionados com a criminalidade e
a desordem pública:

Criminalidades.

Sim, normalmente dizem: “Só fazem cá porcaria, que vão mas é para a terra deles”. Eu, pelo
menos, é o que eu ouço mais: “Ah, pois, já andaram aí a bater não sei em quem, assaltaram
isto, eles que vão mas é fazer porcaria para a terra delas”. Há muito essa coisa de que se é
para fazerem porcaria que façam na vossa terra. Deixem a minha sossegadinha. Há muito
essa ideia.

É só mesmo dos assaltos. Que eles vem para cá para roubar as coisas… tipo que os nossos
pais têm trabalho em ganhar. Que fazem esforços para nos dar e eles vêm e roubam.

É um bocado isso: “vão para a vossa terra fazer a porcaria que quiserem que aqui não” (…).
O que eu ouço mais é mesmo isso, a criminalidade e de não quererem a criminalidade cá
em Portugal.

Também se referiram a discursos racistas que têm por base a privação relativa, acerca dos benefí-
cios sociais e o desequilíbrio entre aquilo que os imigrantes dão ao país e que recebem em troca:

[Ouvimos dizer] que eles estão cá a viver às nossas custas.

E que não fazem nada…

(150) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
[Alguém disse que os imigrantes vêm para cá para trabalhar, e que não se podem dar ao luxo
de ser preguiçosos. Mas há esse discurso de que eles vêm para cá viver à nossa custa…]. Os
da raça negra acho que sim (…), porque nós damos casas, damos tudo e eles não nos dão
nada, entre aspas. Não dão nada positivo para o país.

Acho que há muita facilidade.

São eles que nos constroem as nossas casas, quer dizer, eu acordo todos os dias à 6 da
manhã e vejo um prédio em construção. É só raça negra que trabalha predominantemente.

Não, eu tou a dizer o que se diz.

Acho que têm algumas facilidades sociais, também. Também isso favorece um bocado a
indisciplina dos imigrantes (…). Mais do que, por exemplo, os nacionais. Basta olhar para a
faculdade: o imigrante paga metade das propinas que o nacional paga. Têm mais facilidades
e nem sempre as aproveitam.

Sim, e há muitos acordos com os PALOP (…) que precisam de 10 para entrar na faculdade…
em qualquer curso não mas na minha faculdade entram com 10, 11 e as outras pessoas
entram com 14, 15, 16.

Portanto, há muitas facilidades e na maior parte das vezes não as aproveitam.

É um contingente especial.

E, por último, a prostituição.

Também ouvimos muito, normalmente às pessoas com mais idade: “Ah, essas brasileiras
são umas ordinárias.”

Eu acho que também [se deve] é um bocado à comunicação, que é aquela coisa das boites e
das brasileiras que roubam os maridos.

É a nossa programação televisiva, por assim dizer.

Muito sensacionalista. Acho que também os media não são muito bons, neste momento (…). Há

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (151)
muito sensacionalismo, na televisão. Acho que já se perdeu um pouco a objetividade.

Nesta fase da discussão os participantes jovens de estrato médio-médio concentraram muito a ideia
de discursos racistas sobre a população imigrante. À medida que iam apresentando as suas ideias
iam defendendo que não se trata daquilo que pensam, mas daquilo que costumam ouvir. No caso
particular da privação relativa, e do acesso dos imigrantes à universidade, o discurso apareceu mais
na primeira pessoa.

A moderadora avançou então para as questões diretas, procurando a opinião dos próprios participan-
tes sobre diversos assuntos.

- Os ciganos portugueses têm as mesmas oportunidades que a população maioritária? A opinião


geral do grupo de discussão, à semelhança do que aconteceu com o de estrato médio-alto, é que os
ciganos não têm as mesmas oportunidades que as outras pessoas. Consideram, no entanto, que
isso é, em grande medida, devido a uma opção destes. O discurso denota uma forte demarcação
cultural dos ciganos, um modus vivendi completamente diferente do resto da sociedade portuguesa,
o que aliás se traduz em diferentes objetivos de vida e oportunidades.

[Sobre os ciganos arranjarem emprego] Mas isso depende. Depende, se calhar, aliás nós todos
ligamos os ciganos vestidos de preto, cabelo comprido, chapéu. E assim não podem ir concorrer
a um cargo, sei lá, de chefia, com um chapéu.

Claro, claro. Sim, mas até pela cor de pele. Eu tenho a cor de pele, acho eu, de um cigano
[risos]. Sou meio escurinho, não é bem escuro mas pronto… e, às vezes, se calhar sinto-me um
bocado discriminado em relação a isso. Já ouvi professoras minhas a chamarem-me cigano,
quando não sou, não é. A sério, são vivências. E não tenho nada a ver com os ciganos. Só se
for por falar alto [risos].

Eu andei com vários deles na escola e a minha opinião é a mesma da dele. Eles fazem as
oportunidades deles. Eles estão na escola enquanto é preciso. E depois vão à vida deles. Eles
próprios não estão interessados, na sua maioria, nas mesmas oportunidades que nós estamos.

(152) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Eles, como crianças, não são levados a ter objetivos. Objetivo no nosso entender de objetivos.

Os objetivos deles, da cultura deles, não se inserem nos nossos e não passam por ter o
género do emprego que estamos a falar, por ir para a universidade, tirar um curso superior,
não passam por aí.

Nem sequer vão a entrevistas de emprego.

Pois, eles não se dão ao trabalho de se inserir na sociedade, muitos deles.

Além disso, o discurso dos participantes do grupo de discussão composto por jovens remete ainda
para a “não portugalidade” dos ciganos. Esta expressão de alteridade surgiu também noutros
grupos de discussão.

Mas, por exemplo, se nós formos a ver, se eles, deixa cá ver, se eles forem concorrer a um
emprego, numa empresa. Claro não chegam lá, se calhar. Não chegam lá. Não conseguem
ter os estudos para isso. Mas se eles fossem concorrer, eu tenho quase a certeza absoluta
que se eles tivessem entre, não vou dizer um português normal, não é assim que se deve
dizer, e um cigano, eles iam escolher o português normal. Quase de certeza.

Mas eu acho que o que acontece com os ciganos é que eles são, digamos, estrangeiros em
qualquer sítio onde estejam. Ou seja, eles não têm o espaço deles, eles estão num mundo
à parte.

Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam, tipo, se pensarmos nos africanos, em
África eles estão no sítio deles. Pronto, enquanto os ciganos, não têm o sítio deles, ou seja,
são sempre estranhos onde quer que estejam.

Destes todos, são os únicos que não têm país.

Neste contexto surgiu a questão da discriminação de que os ciganos são alvo. À semelhança do
que verificámos anteriormente relativamente à perceção dos jovens sobre os negros, a responsa-
bilidade da discriminação é atribuída aos ciganos. Esta visão, de que os indivíduos desta minoria

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (153)
são vítimas de racismo porque merecem, ou porque não se esforçam por não ser, é comum a
todos os grupos de discussão.

Sobre os ciganos, os jovens referiram ainda um aspeto interessante que, do ponto de vista da
formação de estereótipos é de extrema importância, designadamente a forma como a cultura
popular incute na sociedade o medo dos ciganos:

Eu acho que as pessoas associam aos ciganos um bocado, o medo. Desde pequeninos que,
por exemplo os nossos pais, havia muito aquela coisa: “Ah, se não comes, olha que eu chamo
o cigano” [risos]. Mas era, os meus avós faziam muito isso mas, por exemplo, a minha avó
fazia isso ao meu pai e resultava. O meu pai comia tudo. (…) Mas as pessoas continuam a
associar muito o medo aos ciganos.

Eu lembro-me de andar na escola e dizerem-me: “Ah, não faças nada àquele que ele é cigano
depois até vem a avó com a bengala”.

No que concerne ao combate à discriminação e ao racismo, é importante assegurar uma forma


de educação cívica que exclua a reprodução de histórias sobre o Outro, infantis ou não, propensas
à formação de estereótipos. É, ainda, comum encontrar dicionários de língua portuguesa que
remetem para o significado de cigano para formas depreciativas como burlão, impostor, etc.54

- A cor da pele é de grande importância para a convivência. O que é que acham? O grupo de
discussão foi unânime na resposta que, para eles, a cor de pele não é uma condição para estabe-
lecer relações de convivência. Contudo, admitem que existe discriminação e racismo em função
da mesma e que, por exemplo, em situações de entrevistas de emprego esta pode ter o seu peso.

- Tanto os imigrantes, como as minorias étnicas, recebem mais do que contribuem para este país.
As opiniões dos jovens sobre esta matéria foram muito divididas: cerca de cinco pareceram con-
cordar com a afirmação, dando vários exemplos dos benefícios
54 A esse propósito, veja-se, por que os imigrantes recebem em detrimento dos portugueses, e
exemplo, a definição de cigano, no
dicionário Priberam online. Consultado
os quatro restantes elementos mostraram ter muitas dúvidas em
em 12 de julho de 2010, a partir de: relação a isso, tentando apresentar argumentos contra a ideia.
http://www.priberam.pt/DLPO/default.
aspx?pal=cigano.

(154) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Eu acho que todos os casos de que já falámos, das casas que recebem, os casos da facilidade
que têm na Universidade, acho que em tudo fica, não sei, acho que são postos à parte e dão-
-lhe vantagens, muitas vezes. Tudo bem que também dão coisas ao país, só que dão coisas
boas, mas também dão coisas más.

Grande parte das vezes, acabam por se acomodar à qualidade a que têm direito, e depois
quanto mais tiverem, quanto maior for o agregado familiar, mais direitos têm à casa, mais
recebem e acabam por se acomodar, em vez de produzir. (…) Os portugueses, mesmo ha-
vendo estes apoios à natalidade, os portugueses não é por aí, por ter mais um filho ou dois
que vai entrar mais dinheiro em casa. Acho que não é tanto por aí. (…) Os imigrantes pensam
mais no dinheiro que concretamente no seu agregado familiar. Criam um filho durante 2 ou
3 anos e depois entregam-no à vida. O português tem mais consciência que um filho é para
toda a vida.

Concordo com ele. Acho que é mesmo isso.

Acho que estou dividida. Porque o que é que querem dizer com recebem? É monetário ou é
outra coisa? É porque não sei o que eles recebem. Não faço ideia do que é que eles recebem.
Se recebem ajudas, se recebem em relação ao resto, se eles trabalham, então estão a contri-
buir para alguma coisa no país e, nesse caso, então têm direito, também têm direito. Agora,
não sei até que ponto é que as coisas que eles recebem, se é igual àquilo que eles fazem,
porque não faço ideia daquilo que eles recebem.

Há portugueses que não têm casa. Quer dizer, acho que, nesse caso, então, há racismo entre
nós. Se estão a dar prioridade aos imigrantes, em relação a cá, então acho que…

Pois infelizmente acho que sim. Por exemplo, uma casa, por exemplo. Se for um português,
ficará sempre para trás de, por exemplo um cigano. Um cigano é capaz de ter aquele poder de
persuadir a assistente social, por exemplo, e consegue ter casa. O português não consegue.
É um facto.

Sim, eu acho que há uma data de ajudas que recebem e os portugueses não tanto.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (155)
Eu não concordo muito com a afirmação. Mas eu acho que a partir do momento em que eles
dão alguma coisa, têm o direito de receber algo em troca.

O problema é que lhes é dado, sem eles darem nada em troca.

Só que se assim fosse (…) também não havia tanta gente, tantos imigrantes brasileiros, e da
Europa de Leste a viverem nas ruas. Essas ajudas podem existir, e de certeza que existem,
mas não são assim ajudas tão significativas para fazer deles o melhor.

Mas eles têm um prazo para estarem cá. Do género: “Estás cá, mas se não te der emprego,
e se tu não contribuíres em nada para a sociedade vais-te embora.”

Então e quem é que os vai pôr fora?

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, da imigração, sei lá.

E essas pessoas, se calhar, que estão na rua são pessoas que não estão cá legalizadas e, por
isso, não recebem essas ajudas.

Não sei e também acho, por exemplo nas igrejas (…) quando começaram a vir imigrantes
europeus, da Europa de Leste (eu volto a falar de Coimbra porque era onde eu vivia e assisti
a isso), quando eles chegaram, começou a haver nas igrejas, criaram mesmo um instituto
à parte, construíram de novo para as pessoas irem lá doar roupas e para eles terem aulas
de português. Apareceram aulas de português para os imigrantes de Leste, por todo o lado,
gratuitas e depois (…) aquilo era para dar roupa aos imigrantes. Então e os portugueses que
não tinham? Para dar comida aos imigrantes. E os portugueses que não tinham? Onde é que
iam buscar? Não sei, começámos a focalizar demasiado nos que vêm de fora e esquecemos
as pessoas que cá estão.

Por acaso não concordo. Eu acho que existe muita gente, muitos portugueses com dificulda-
des e etc. Mas quer dizer, os estrangeiros vêm para cá, vêm tentar e vêm esforçar-se. E os
portugueses também têm que se esforçar, as coisas também não caem do céu, não é? E, se
por um lado, são criadas condições ou são dadas condições especiais para os estrangeiros,
também existem cá coisas para os portugueses, como as casas, essas coisas todas.

(156) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Quando questionados acerca das minorias a quem se aplica o desequilíbrio entre “dar e receber”
algo à sociedade, os jovens que concordam com essa visão optaram por excluir os chineses, assu-
mindo que estes não são dos imigrantes que se “aproveitam” de benefícios sociais sem trabalhar.

- A imigração é uma coisa positiva ou negativa, cá em Portugal? Na generalidade os jovens concor-


daram que a imigração é positiva, mas “devia ser mais filtrada”, uma vez que “quase toda a gente
que quer vir para Portugal consegue vir para Portugal e depois não há um acompanhamento das
pessoas quando entram para ver o que é que elas vêm cá fazer”. Não especificam exatamente
o “filtro”, mas o seu discurso aponta para um controlo de entradas e permanência no território
nacional mais selecionado: “as fronteiras abertas, abriram muita coisa. Entraram muitas coisas…”.

- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas devem manter a sua identidade e cultura de origem.
Qual a vossa opinião? A ideia unanimemente defendida pelos jovens foi que todas as pessoas
devem manter a sua cultura original, fazendo, no entanto, esforços para que esta não interfira na
convivência com as outras pessoas. Assim, no caso dos imigrantes, deve haver uma adaptação dos
hábitos culturais ao país de acolhimento. Esta questão levou a uma acesa discussão sobre o uso
da burca das mulheres muçulmanas em países como Portugal. As opiniões foram muito díspares:
alguns jovens mostraram-se favoráveis à sua proibição – por ver na burca uma limitação à liberdade
feminina – outros optaram por uma visão de maior relativismo cultural defendendo que, não pode-
mos, à luz dos nossos valores, impor normas que interferem com as crenças de outras pessoas.

2.8. Conclusões gerais

A título de conclusão, destacam-se da discussão de grupo com os jovens de estrato médio-médio,


os seguintes aspetos:

• No discurso espontâneo, a referência ao Outro, aparece frequentemente focada nos africanos,


em particular nos jovens de descendência africana, chamados de “segunda geração”.
Eventualmente, esta atenção resulta do cluster social que os participantes integram;

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (157)
• De acordo com o discurso dos jovens, a educação e o status social são fatores mais impor-
tantes na constituição de relações com terceiros do que os traços fenotípicos;

• Nota-se uma tendência para a recusa de generalizações acerca do Outro a favor de um


discurso sobre características pessoais;

• A integração das minorias é vista em função da sua inserção no mercado de trabalho e, em


simultâneo, da sua capacidade de adaptação cultural;

• A ética do trabalho aparece como um elemento marcante na valorização (chineses) ou des-


valorização (africanos, brasileiros, ciganos) do Outro;

• Forte distanciamento social e cultural dos ciganos.

3. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTRATO SOCIAL


MÉDIO-MÉDIO

3.1. Identificação de grupos percebidos como outros

A discussão teve início com a apresentação dos participantes. De seguida, o moderador apresen-
tou o exercício em que pedia aos participantes que apontassem as pessoas que lhes ocorriam
imediatamente ao pensarem em pessoas de diferentes nacionalidades, etnias, culturas, religiões,
na sociedade portuguesa. As primeiras menções foram os africanos e os brasileiros. Para além
destas categorias, foram ainda mencionados os europeus de Leste, indianos, ciganos, chineses,
ucranianos, romenos e russos.

À semelhança do que havíamos já verificado nos grupos de discussão anteriores há uma refe-
rência aos africanos sem particularização da sua origem. Já no caso dos europeus de Leste,
este grupo de discussão refere-os em bloco, mas em simultâneo individualiza as categorias de
ucranianos, russos e romenos.

(158) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas

No que se refere à socialização com pessoas de origem minoritária, as respostas dos participantes
de estatuto médio-médio, permitem concluir que a maioria dos elementos tem alguma relação
com minorias, quer num contexto profissional, quer num contexto de vizinhança.

Todos os dias.

Em relação a mim, na minha casa (…). No meu prédio, tenho vizinhos brasileiros. Comunidade
brasileira.

No local de trabalho. (…) Eu trabalho na área de recursos humanos, entrevistas de emprego,


inscrições de emprego, não há discriminação e então falamos com toda gente.

Nos transportes públicos. Ciganos, pretos, indianos, brasileiros, ucranianos, de tudo um


pouco.

No local de trabalho e ao fim-de-semana quando passeio, sobretudo brasileiros.

No meu bairro, no Prior Velho, quando ando no comboio, na Linha de Sintra (…). São mais
negros.

Eu também vejo mais negros, na linha de Sintra, em Massamá. E tenho amigos brasileiros.

Tenho [relações pessoais] com brasileiros.

Eu trabalho com uma pessoa negra, africana, tem filhos negros. É cabo-verdiana.

Mulatos. Eu, por acaso, aliás, não é por acaso, mas tenho irmãos que são mulatos. Tenho
uma relação, foram criados pequenos e, portanto, não podia deixar de falar neles.

Apenas dois dos participantes, um fabricante de selas e um cozinheiro, alegaram não ter quais-
quer relações com imigrantes ou outras minorias.

Quando lhes foi perguntado com quais das pessoas previamente referidas simpatizam mais ou
menos, os participantes deram respostas bastante diversas. Ainda assim, a conclusão geral que

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (159)
nos é permitido tirar indica que os negros são o agrupamento que suscita menos simpatia, estan-
do relacionado, na mente dos participantes, com a criminalidade e a violência, um conjunto de
associações que também se verifica no caso dos ciganos, acusados de não fazer qualquer esforço
de integração.

Eu vivo há 48 anos no Prior Velho. Havia o primeiro grupo de ciganos, só viviam ciganos no
Prior Velho. Se calhar havia 2000 ou 3000 ciganos, hoje existe 1 ou 2. Criavam-nos proble-
mas nos cafés, então se bebiam ou qualquer coisa… Não assaltavam as pessoas porque
eram fixos, viviam lá, estudavam, andavam nas escolas. Agora, vimo-nos livres dos ciganos
quando foi feita a Expo, foram feitas obras, deram-lhes casa noutros sítios, aliviaram nesse
período. Entretanto, entrou a raça negra que, para mim, é duas vezes pior. Até agora nunca
me criaram problemas, mas dentro do bairro têm criado sérios problemas. São assaltos
constantes, desordens todos os dias, não há hipótese. Emprego zero, são assaltos constan-
tes. (…) Está a tornar-se muito difícil viver no bairro. Não são aqueles mais velhos, esses não
criam problemas, são os mais novos, é a juventude. É um grupo que falta ao respeito a toda
a gente, até aos próprios da raça deles. Eles reuniram, há poucos dias, connosco também, no
pavilhão, também foi o Presidente da Câmara de Loures lá e o próprio presidente sentiu que
os próprios da raça deles já não estão a aceitar aquela juventude.

Em relação aos negros, eu vivo e trabalho muito próximo da antiga Quinta do Mocho. Eles
estavam a dar muitos problemas ali.

Eu não tenho nada contra ninguém. Diria que, às vezes, como não gosto de conflitos, fico com
uma pequena dúvida ao nível dos ciganos, embora não tenha…

Para mim, os ciganos é a pior raça. São os parasitas da sociedade, não fazem nada. 90% de-
les ganham aqueles subsídios que dão agora e muitos deles com bom cabedal para trabalhar.

Não gosto muito de negros. O meu filho também já foi assaltado no Campo Pequeno, só
não foi de arrasto, porque não calhou. Não conseguiu identificá-los porque eram dois. Ele ia
ao telemóvel, eles vinham com um pau, deram-lhe um abanão e foi assaltado. Desde esse
momento…

(160) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Na primeira declaração podemos encontrar contradições muito frequentes no discurso do senso
comum. O participante refere-se à “raça negra” como sendo “duas vezes pior” do que os ciganos,
de quem se conseguiram “ver livres”. Generaliza os aspetos negativos à “raça”, sublinhando os
problemas que têm causado no bairro. Contudo, conclui a exposição da sua ideia destacando a
particularidade de os distúrbios serem causados exclusivamente pelos jovens que desrespeitam
e envergonham “até os da raça deles”. Aquilo que é descrito com características idênticas a situ-
ações de delinquência juvenil – processos independentes da origem étnica dos jovens – aparece
como motivo de antipatia para com os negros em geral.

Para alguns participantes, os brasileiros surgem como a categoria mais atraente, enquanto
que, para outros, como a que causa mais aversão. Apesar desta polarização, ou talvez por
causa dela, foi esta a categoria mais discutida.

Os que simpatizo mais são os brasileiros, porque acho que são um povo muito alegre e
divertido. Deve haver bons e maus, como tudo, mas parecem ser um tipo de pessoas alegre.

Eu, ao contrário, acho que os brasileiros não gostam de trabalhar. Independentemente não
conheço, mas acho que os brasileiros quando estão em grupo agem de forma diferente do
que individualmente. Se nós conhecermos um casal, podemos dar-nos perfeitamente bem
com eles, sejam brasileiros, negros ou de outra raça, mas quando estão em grupo são uma
massa diferente.

A convivência que eu tenho com os brasileiros, com alguns brasileiros, é boa e o comporta-
mento deles é completamente diferente.

Eu concordo que são fingidos.

Ainda no contexto das manifestações de empatia, os participantes referiram-se aos chineses e aos
muçulmanos.

Os que eu gosto mais são os chineses. Não dão problemas nenhuns. Eles só trabalham,
trabalham e não levantam problemas a ninguém.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (161)
Os participantes concebem os muçulmanos como uma comunidade distante e fechada. Alguns
dos comentários, porém, foram explicitamente hostis para com esta categoria.

Nunca tive convivência com nenhum, mas a forma como eles reagem é diferente de tudo.

Como o Bin Laden, os terroristas todos.

Acho-os extravagantes, com turbantes e não sei o quê.

São indiferentes, nem nunca tive curiosidade em entrar na mesquita, para conhecer. Eles têm
os Deuses deles, nunca tive curiosidade de lá entrar.

Para mim e para eles deve haver uma parede. Só vejo notícias, não tenho nenhum diálogo
com eles.

Também pela religião deles, não é? Acho que foi o bispo de Lisboa que disse alguma coisa em
relação à sociedade deles e deve ter algum conhecimento de causa para ter dito o que disse.
(…) Disse que era complicado na sociedade deles quando uma mulher portuguesa se casava
com um muçulmano. Eu concordo perfeitamente que eles são esquisitos, têm uma sociedade
esquisita e daí a minha indiferença para com eles.

3.3. Representações sobre integração

No que respeita a esta dimensão, tentámos elucidar quais as minorias que, para os participantes,
aparecem como melhor ou pior integradas.

A resposta quase unânime é que os chineses são a minoria que alcançou um melhor nível de
integração, principalmente devido à atividade económica em que estão envolvidos e ao poder de
compra que, aos olhos dos participantes, os chineses possuem. Os participantes também referem
os europeus de Leste como estando relativamente bem integrados, possuindo algum poder de
compra e um maior acesso ao alojamento.

Os chineses a nível de se vingarem na vida, são trabalhadores. Acho que realmente têm

(162) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
casas, casas mais sobre casas, porque, realmente, eles podem trabalhar ao fim-de-semana.
Trabalham aos fins-de-semana, feriados…

Concordo. Eu não tenho muita informação sobre isso, mas por aquilo que eu tenho ouvido, os
chineses para se implementarem no comércio do nosso país recebem subsídios do governo
deles.

Acho que são os ucranianos, digamos assim. Os pretos já cá estavam, os ucranianos vêm lá
de fora e conseguem falar muito melhor português do que os pretos, que já cá estavam. Eles
conseguem falar melhor, a gente entende-os bem.

Os participantes percecionam os brasileiros e os ciganos como as categorias menos integradas,


embora alguns deles refiram também os romenos, os negros e os muçulmanos.

Eu acho que são os ciganos. São os que estão há mais tempo no nosso país e nunca se
integraram.

Sim, são os ciganos.

Para mim, brasileiros e ciganos.

Por exemplo, as brasileiras, eu acho que não se esforçam, eu não encaixo as brasileiras…

Porque quando os negros quando vêm para cá, têm cá um familiar ou um primo e é um
quarto para 5 ou 6. Com a falta de emprego ou arranjam trabalho nas obras ou perdem o
visto. Também é difícil, se calhar não têm dinheiro ao fim do mês. Não estão integrados, não
conseguem arranjar casa, não conseguem fazer nada. Portanto, eu penso que são, neste
ponto, os piores.

3.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias

Entretanto, foi pedido aos participantes que referissem os atributos que lhes vêm à cabeça quando
pensam nos portugueses e em pessoas das diferentes categorias que foram enunciando.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (163)
3.4.1. Portugueses
Nota-se uma discriminação de classe, evidenciada pela valorização dos portugueses que fazem
parte do “povo” – trabalhadores, honestos – em detrimento dos que estão no poder – esperta-
lhões, desonestos. De resto, em termos gerais surgem atributos também referidos pelos outros
grupos de discussão, como os relacionados com o fado e a hospitalidade.

Coitadinhos.
Vigaristas.
Somos hospitaleiros, desenrascados.
Já fomos mais alegres.
Pessimistas.

3.4.2. Brasileiros
De seguida, os participantes de estatuto médio-médio esboçaram um retrato dos brasileiros. A
maioria dos atributos, negativos ou positivos, aparecem relacionados com a ideia de festividade.
De início referiram a festa, a música e a dança; contudo, o seu discurso assumiu rapidamente
uma conotação negativa, com menções à embriaguez e ao volume elevado da música a horas
tardias da noite.

Festa.
Dança, música.
Bebedeiras, cerveja.
Dos que cá temos, diria que é tudo fatela. Muito pobre.
Convivem muito uns com os outros, há qualquer coisa e vai a família toda. É muito como a
raça negra.

(164) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Acho que não se conseguem integrar muito bem na sociedade. Já estive nessa situação, lá
no prédio. Começou por vir 1 depois 2 e 3, 4, 5, 6 e não respeitam ninguém. É música aos
altos berros durante a noite e acho que não se integram bem na sociedade, não respeitam.
Não estão habituados às nossas regras.

3.4.3. Negros
Quanto aos negros, os retratos foram claramente negativos. As principais características referidas
foram que estes são racistas e desconfiados. Para além disso, os participantes também associam,
de modo quase direto, os negros à violência e à criminalidade.

Para mim, os de 40 e 50 e poucos anos da raça negra são muito diferentes dos jovens de
hoje, que têm 20 anos. Esses são uma desgraça completa, comportam-se mal, não estudam.
Portanto, vai ser muito difícil. De há 20 anos para cá, mudaram muito…
Eles próprios são racistas em relação aos brancos. Nós podemos ser, mas eles também são.
São muito desconfiados.
Assaltos. Feridos. Violações.

3.4.4. Indianos
Tal como os negros, também os indianos são considerados desconfiados pelos participantes. A
sensação de distanciamento em relação a esta categoria é evidente no facto dos participantes
referirem que os indianos se isolam e se fecham. E, embora os participantes não façam qualquer
referência negativa explícita – afirmando, por exemplo, que os indianos não se metem em sari-
lhos –, a alegação de que os membros desta categoria não se dão ao trabalho de usar a língua
portuguesa parece denunciar algum ressentimento.

Desconfiados.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (165)
Se uma pessoa não compra alguma coisa, ficam lá na língua deles…

A falar mal na língua deles para a gente.

É um povo que não cria problemas. Moram ali na Portela de Sacavém, dominam ali bastante.
Nunca ouvi ninguém falar deles assaltarem ou fazerem isto ou aquilo. Isolam-se.

(…) têm a comunidade deles e são muito fechados.

No Centro Comercial de Santo António, o primeiro andar é tudo deles. São lojas, DVDs, biju-
terias, telemóveis, produtos para a casa.

3.4.5. Chineses
Relativamente aos chineses, os participantes encaram-nos como muito trabalhadores, pouco
sociáveis, desconfiados e algo isolados. Esta é possivelmente a categoria a que são atribuídas
características mais neutras. O distanciamento que os participantes demonstram em relação aos
chineses não põe em questão as suas relações quotidianas com esta minoria.

Trabalhadores.

Têm uma grande cabeça, sabem os preços de tudo o que têm na loja.

Pouco sociáveis.

São muito desconfiados.

(…) são desconfiados.

É raro vê-los na rua.

Eu estou a vê-los no restaurante, encontro-os nas lojas de roupa e isso.

(166) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.4.6. Ciganos
O retrato dos ciganos não é consensual. Uma primeira vaga de atributos continha epítetos como:
descontentes, charlatães, traficantes de droga e desordeiros. No entanto, uma segunda vaga de
observações, baseada em experiências pessoais, contraria a tendência estabelecida pelos primei-
ros comentários. Podemos assim concluir que, ao contrário do que aconteceu com as representa-
ções dos participantes sobre as restantes minorias, o retrato dos ciganos é subtilmente moldado
pela experiência pessoal.

Não pagam transportes públicos. Em Santo António dos Cavaleiros, ninguém paga transpor-
tes públicos.

São um bocado refilões.

Há muitos fatores, ocupam as casas.

Bons candidatos ao rendimento mínimo. São vendedores de droga.

Drogas e compram boas carrinhas Mercedes.

Têm vivendas com TV Cabo.

Também há uma zona [?], vivem lá ciganos e não há problema nenhum com eles. Não há ne-
nhum problema. Falam, convivem com a gente (…). Não há problema nenhum. Mas, naquela
parte mais em cima, ao pé da Junta…

Há ali alguns, realmente, que também vejo que não há problemas.

Temos de ver que estão isolados. Estando divididos, não há problema, quando estão em
grupo é que são terríveis. Estou a falar de Macedo dos Cavaleiros, estou a falar de Sacavém,
sei lá, em muitos sítios, quando fizeram aquelas casas ali, as pessoas tiveram de sair daquela
zona do bairro. Eles estão espalhados por aí. Eles próprios corriam as pessoas que lá viviam.
Eles próprios também não os queriam lá. Tiveram de sair dali e eles próprios corriam os sítios,
porque são desordeiros, eles próprios criam o conflito.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (167)
3.4.7. Ucranianos
No que respeita às representações dos participantes sobre os ucranianos, podem ser considera-
das as mais positivas entre todas as categorias sobre as quais incidiu a discussão. São descritos
como muito trabalhadores, esforçados e de fácil relacionamento:

Trabalhadores nas obras.

Aqueles que eu conheço esforçam-se muito em termos de linguagem, acaba por ser difícil,
alguns têm um nível cultural um bocadinho superior. Aqueles que eu tive lá a trabalhar eram
todos licenciados.

São fáceis de relacionamento. O único problema é que ao final do dia, com o problema do ál-
cool, aquelas Vodkas e Red Bulls e não sei o quê para aquecer, mas tirando isso, são calmos.

Não conheço nenhum, o que eu conheço é do que eu ouço falar. O que ouço falar é que são,
de facto, trabalhadores. Vêm para cá e aceitam qualquer trabalho.

Mas, também há aqui uma coisa que têm de ter em consideração, é que muitos deles não
pagavam impostos. Os portugueses pagam.

Ao fim de 5 anos, mudam de nome e não pagam impostos durante 5 anos. Ao fim dos 5
anos, chegavam aos sócios e era “agora vais ter de ter mais um nome”. De 5 em 5 anos, eles
acrescentam um nome. Como não estão cá, não pagam impostos há 5 anos. Ou seja, eles só
ficavam cá 5 anos com o mesmo nome.

E trabalham muito mais barato do que os brancos. Em Sacavém, eles para fazerem os muros
da Junta de Freguesia levavam 3 euros à hora ou assim, os portugueses era 6.

O leitor poderá reparar que um dos participantes nega aos ucranianos o acesso ao estatuto de
“branco”. Embora possa causar alguma perplexidade, isso pode ser interpretado como uma estra-
tégica de fechamento social baseada na assimilação dos imigrantes aos não-brancos.

(168) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.4.8. Romenos
Quanto aos romenos, os participantes consideram-nos a minoria menos integrada e aquela com
que sentem menos empatia. São considerados traiçoeiros, mendigos e inspiradores de sentimen-
tos de piedade. Observa-se ainda alguma associação desta categoria aos ciganos que, como vimos
anteriormente, suscitam uma resposta ambígua.

Traidores. Muito traidores.

As senhoras que estão nos semáforos, com bebés ao colo, a lavar os vidros, a pedir e a gente
tem de ter troco se não…

Pedinchões.

Eu sinto pena.

Eu também sinto pena.

Acho que é uma descendência dos ciganos. É uma ramificação dos ciganos.

Não são mendigos, que é o caso dos romenos. As raças podem vir todas para cá, vêm
trabalhar, vêm seguir as regras normais do país, tudo bem que sejam bem aceites, mas
depois também se têm de comportar como tal. Tudo o que vem para cá para estar nos sítios
a dormir, a viver nos carros, a causar problemas, cheios de piolhos, para ver como a gente os
vê a entrar nos comboios, completamente… romenos. Eles andam ali às carradas porque eles
dormem ali nos descampados, no Areeiro. Aquilo é terrível. Porque é que essa raça veio para
cá? Fez esses quilómetros todos e veio para este país? Para criar mais miséria.

3.4.9. Muçulmanos
Quando questionados sobre os muçulmanos, os participantes mostraram alguma indiferença e
distanciamento. Ainda assim, a imagem formada à distância é claramente negativa. Os participan-
tes consideram os muçulmanos fanáticos e associam-nos ao terrorismo.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (169)
Não concordo com os ideais deles. São muito fanáticos.

Não tenho relacionamento nenhum com eles, não tenho nenhuma ideia. Ao pensar neles
vem-me uma má imagem.

3.5. Aspetos positivos e negativos da imigração

Nesta secção, tentámos compreender as perceções dos participantes em relação à imigração.


Para tal, perguntámos aos participantes quais os aspetos do fenómeno que consideram positivos
e negativos, e porquê. A maior parte das opiniões consistiu em aspetos negativos. Na verdade, a
única contribuição positiva – a ideia de que os imigrantes contribuem para a mão-de-obra neces-
sária para grandes obras públicas – foi sugerida quase como uma reflexão a posteriori.

O desenvolvimento em certas áreas da construção, éramos capazes de não nos termos de-
senvolvido tanto. O baixo custo de mão-de-obra fez com que muitos empreiteiros construís-
sem coisas que, se calhar, na altura não fariam porque eram preços muito elevados. Acho
que é bom por esse aspeto.

Os negros são um povo muito forte, têm muita resistência, o cabedal deles, acho que são
muito fortes. A maioria das construções, acho que é tudo negros.

Por outro lado, o consenso acerca de uma imagem negativa global da imigração é esmagador. Um
dos participantes chegou mesmo a referir que as suas consequências são “terríveis”. O argumento
principal para justificar essa opinião é o facto de os imigrantes competirem diretamente com os
nacionais no mercado de trabalho e conduzirem a taxas de desemprego mais elevadas na popula-
ção autóctone, para além da associação direta à criminalidade e à violência.

Em princípio, tiram muitos empregos, principalmente aos jovens. Porque lá está, foi o que
eu disse há bocado, eles sujeitam-se a ordenados mais baixos e eles chegam e dizem: “Meu
senhor, eu procuro trabalho, por menos 100 euros, faço esse trabalho”.

Antes a imigração valia a pena, havia muitas obras públicas para fazer, a maior parte que

(170) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
imigrava era para a construção civil. Agora, como não há emprego, toda a gente que vem para
cá, o mais certo é vir para roubar.

Desta forma, quando foi perguntado aos participantes se a relação entre os portugueses e os
imigrantes é melhor caracterizada pelo termo cooperação ou competição, a resposta não foi
surpreendente:

Há alguns dias, ouvimos falar que fechou uma fábrica, fechou outra, já é para nós difícil
manter os nossos empregos. Eu, pessoalmente, penso assim, vêm aqueles agora e o pouco
que já há, já vêm tirar.

3.6. Portugal, país de brandos costumes

Acerca da ideia de Portugal ser um país de brandos costumes, a maioria dos participantes de
estatuto médio-médio afirmou que sim, independentemente do significado conferido ao termo:

Mesmo as leis para os imigrantes são de brandos costumes. Quando um imigrante pratica
um crime qualquer grave, é notificado para ir para o país dele, é notificado, mas ele nem
sequer lá aparece. Muda de casa, vai para outro lado qualquer, continua a fazer os mesmos
crimes e o pessoal não o manda embora. Continua a ser um país de brandos costumes.

3.7. Valorização dos atributos e sentimentos de discriminação

De entre os atributos associados às diferentes categorias, o moderador pediu ao grupo que in-
dicasse quais os que valoriza mais numa pessoa. Destacaram-se aqueles relacionados com a
honestidade, o trabalho e o respeito pela cultura dos outros.

O moderador perguntou então aos participantes se crêem que em Portugal algumas pessoas
são vítimas de racismo. As respostas foram unanimemente afirmativas. As pessoas consideradas
mais vítimas de racismo são, na opinião dos participantes, os ciganos, os negros e os brasileiros.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (171)
Relativamente a estes últimos as opiniões dividiram-se:

Os brasileiros não, porque os brasileiros também são brancos. Os negros é que são…

No caso dos ciganos, à semelhança do que aconteceu nos grupos de discussão compostos de
adultos de estatuto médio-alto e de jovens de estatuto médio-médio, a responsabilidade da discri-
minação é dos próprios.

Os ciganos, depois os brasileiros. Se calhar porque merecem, os ciganos.

Acerca do discurso racista na sociedade portuguesa, os comentários que os participantes referi-


ram costumar ouvir foram alguns também previamente enunciados pelos elementos dos outros
grupos de discussão:

Vai para a tua terra.

Vai trabalhar, malandro.

Eles vêm para cá, é para roubar.

O moderador introduziu na discussão algumas frases para serem comentadas.

- A cor da pele é importante na avaliação de uma pessoa? As respostas foram unanimemente


negativas, contudo acabaram por conduzir a outra questão direta que o moderador ia aplicar,
nomeadamente se os participantes aceitariam que um dos seus filhos fizesse parte de um casal
misto. Quando o cenário implica uma convivência mais próxima com pessoas com uma cor de
pele diferente da dos participantes, o discurso de repulsa é bem mais explícito:

Eu importava-me. Com a raça negra. Os brasileiros…

Mas, se o filho quisesse uma negra, já importava a cor de pele. Se calhar ia tentar evitar o
casamento. (…) Se calhar, não gostava por causa dos filhos deles. (…) De manhã, tomam
banhinho, mas depois transpiram e ficam com um cheiro…

(172) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Agora que há um cheiro da raça, há!

Eu estive em África em pequenina, dos 3 aos 8 anos, não apanhei o 25 de abril. Via e lembro-
me bem, pelas coisas que eu via, eles são porcos. Pelas coisas que eu via, comem com as
mãos, pronto, uma pessoa fica sempre com aquela ideia, no fundo, deles. Mas, eu lembro-me
de um miúdo escuro fazer queixa à minha mãe: “Ela chamou-me preto”. E a minha mãe:
“Não chames preto ao preto, coitado”. Já desde pequena que não tinha aquelas…

Era-me indiferente. Até porque uma grande amiga é de raça negra, está casada com um
branco e não me faz diferença.

Eu nunca me misturei com nenhuma mulher negra.

Não me fazia diferença. Eu tenho uma afilhada escura e gosto muito dela. Se os meus filhos
decidissem arranjar uma pessoa de raça negra, porque não? Desde que gostassem. Se fosse
brasileiro, já pensava duas vezes, mas era a escolha deles, eu aceitava na mesma.

Nunca pensei realmente no assunto. Aos ciganos não achava muita piada. Agora passo por
brancas acompanhadas por pretos, que já se vêem tanto, antigamente era ao contrário. Por
acaso, tenho dois irmãos, já falei deles há bocado, porque eles eram pequenos quando fica-
ram sem mãe e foi a minha mãe que os criou. Portanto, aí realmente eu ter… Tenho um certo
receio à raça negra quando os vejo em grupo, porque vejo muita coisa na televisão. Mas, se
eu tivesse algum contratempo, também lidava com pretos.

Não via com bons olhos, de facto. Já convivi mais do que convivo hoje. Quando andei no liceu
convivia com rapazes de raça negra, principalmente com 2, cheguei a ir a festas de música
africana, em Cascais, sempre bem recebido, mas isto foi há 30 anos. Hoje, tornei-me mais ra-
cista. De facto, há problemas que surgem ao meu lado e eu não posso ficar indiferente a eles.

Para mim, isso não é racismo. Na minha ideia, eu não me junto com um preto, porque depen-
de da atitude dele. A mesma coisa que eu faço a um português, quando não gosto da atitude
dele, também não me junto com ele… Portanto, eu acho que isso não é racismo.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (173)
Era um atentado suicida. Era um bombista. Ainda levavam o meu filho lá para um sítio de
bombas… Não [em relação aos muçulmanos].

Os ciganos. Muçulmanos também não. As ideias que eles têm, não encaixavam bem comigo.

Eu partilho a ideia dele, ciganos e muçulmanos não. Pretos… hum.

Esta última observação conduz-nos às respostas dadas pelos participantes quando lhes foi pergun-
tado se aceitariam que um dos seus filhos se convertesse ao Judaísmo ou ao Islão. As respostas
demonstraram que, para os participantes, isso seria um motivo de grande preocupação. Para
alguns, seria alegadamente o pior que podia acontecer, e equivaleria à perda de um filho.

Perdia um filho.

Acho que sim [fazia diferença], são muito fanáticos. É uma religião muito fanática.

De fazer notar que, à semelhança dos restantes grupos de discussão, também junto destes parti-
cipantes se destaca a total invisibilidade do judaísmo ao longo da discussão. Os participantes não
se referiram aos judeus em momento algum e, mesmo na questão direta induzida pelo moderador
relativamente à religião, as respostas centram-se todas na aversão ao Islamismo.

- Os ciganos têm as mesmas oportunidades em Portugal do que as restantes pessoas? Os partici-


pantes reconheceram que não, considerando, também, que a responsabilidade dessa desigualda-
de é dos próprios ciganos. Como argumento, referem que os ciganos não estariam interessados
nesse tipo de oportunidades.

Acho que não.

Será que eles as querem?

Às vezes, dão-lhes oportunidades e eles não as aproveitam.

Também foi perguntado aos participantes o que achavam do recurso a medidas proativas, no-
meadamente através de quotas no mercado de trabalho, para promover a integração da minoria

(174) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
cigana. Os participantes rejeitaram esta ideia de imediato e justificaram essa opção com a alegada
indiferença dos ciganos para com a integração.

Eles próprios se afastam da nossa cultura. Ao afastarem-se da nossa cultura, também não
são capazes de ter os mesmos hábitos que nós temos. Logo a partir daí e pelas coisas que
praticam, nem são capazes de serem rejeitados. Agora essa ideia de haver uma vaga de
trabalho para o cigano, acho que era uma vaga que nunca seria preenchida.

Eles trabalham para eles, com eles, por eles, é deles, é tudo para eles. Não se vê ciganos
a trabalhar numa loja ou num restaurante que não seja deles. É a cultura deles, é mesmo
assim.

O moderador perguntou ainda aos participantes se, na perspetiva deles, os ciganos são mais ou
menos discriminados do que os homossexuais. Os participantes disseram que os ciganos são
claramente a minoria mais discriminada devido à relativa facilidade com que um homossexual
pode passar despercebido, enquanto que uma pessoa cigana é sempre identificada como tal.

Olha-se para um homem ou para uma mulher e não está lá escrito. Mas olha-se para um
cigano e é um cigano.

- Consideram que a imigração é uma ameaça para os valores culturais?

É. Para a nossa cultura é.

Maus hábitos, pois.

Queremos sair à noite…

Não se pode andar a passear, dar uma volta.

[Ameaça relativamente a] família. Estou a pensar nos brasileiros e nas brasileiras.

Essa das brasileiras…

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (175)
3.8. Conclusões gerais

A título conclusivo, destacam-se algumas observações relativas à análise do grupo de discussão


composto por participantes de estatuto social médio-médio:

• A categorização de imigrantes e minorias étnicas com atributos generalistas é relativamente


fluida;

• Este grupo de discussão tende a revelar maior desconfiança e menor abertura à imigração.
Embora os participantes considerem que a contribuição da mão-de-obra imigrante é ne-
cessária para as grandes obras públicas, focaram essencialmente os aspetos negativos da
imigração, que identificaram como sendo: a competição dos imigrantes com os nacionais
por postos de trabalho, o consequente aumento do desemprego para a população autóctone,
a criminalidade e a violência;

• Os ciganos e os negros são as categorias pelas quais os participantes do estrato social mé-
dio-médio nutrem menos simpatia. Ambos aparecem associados à insegurança e ao crime;

• Os chineses e os ucranianos são vistos como as minorias que se estão a sair melhor em
Portugal. Os chineses por causa da sua forte incorporação no mercado nacional e os
ucranianos devido à sua perseverança na aprendizagem da língua e no esforço para se
integrarem.

4. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTATUTO SOCIAL


MÉDIO-BAIXO

4.1. Identificação de categorias percebidas como outros

Quando questionados acerca do que lhes ocorre quando pensam em pessoas de outras nacio-
nalidades, etnias, religiões, as categorias referidas pelos participantes do grupo de discussão de

(176) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
estatuto médio-baixo foram: pessoas de cor, ciganos, chineses, brasileiros, romenos, moldavos,
indianos, africanos, PALOP e angolanos. Os muçulmanos não foram espontaneamente referidos
nesta fase, mas acabam por ser abordados ao longo da discussão. Relativamente aos outros
grupos de discussão, destaca-se a referência a pessoas de cor, PALOP e angolanos, categorias que
não tinham sido previamente enunciadas na identificação do Outro.

4.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas

Este grupo de discussão evidencia níveis distintos de relacionamento com as minorias. Quando
lhes foi perguntado que tipos de relação estabelecem com as minorias previamente identificadas,
começaram por referir contactos que revelam algum distanciamento:

No autocarro, no metro. Transportes públicos.

Vejo bastantes pessoas de cor.

Na minha zona também há bastantes.

Na margem sul não faltam.

Nos transportes há muitos realmente.

Ciganas também. No prédio onde moro, vivem alguns ciganos.

Entretanto, a moderadora insiste na questão relativa aos graus de proximidade com pessoas de
outras nacionalidades, etnias, religiões, etc., e os participantes vão referindo relações de vizinhan-
ça, de intimidade e de parentesco.

Tenho o meu marido que é mulato.

Eu nasci no meio deles, por isso (…). No meio da etnia cigana. Graças a Deus, não tenho
nenhuma razão de queixa deles.

Na minha vida profissional relaciono-me com as etnias todas. No sítio em que trabalho, é uma

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (177)
mais-valia relacionada.

Namorei com uma cigana.

Tenho primas que são mulatas, também.

Conheci pessoas também da minha profissão.

O sítio que frequento, aquilo é quase uma família e há muitas pessoas a trabalhar nas obras
que são ucranianos. Não são relações íntimas, mas prontos, vai-se falando, eles falam tam-
bém da terra deles. Até porque ciganos e pretos convivo pouco, como moro mais cá em cima,
na parte da Coxôa, também há ali, mas são poucos.

Tive um moldavo a trabalhar comigo. Era uma pessoa impecável.

Entretanto, a moderadora perguntou aos participantes se sentem maior empatia com algumas
das pessoas que atrás referiram. À semelhança do que aconteceu em todos os outros grupos de
discussão, há uma tendência inicial para não revelar simpatias por uma ou outra categoria:

Eu não sei dizer. Para mim, qualquer um, logo que não me falte ao respeito, dou-me bem com
eles todos. Eu gosto de fazer amizades, gosto de conversar com toda a gente. Só é preciso é
que não me faltem ao respeito, se faltar ao respeito…

Contudo, com o desenrolar da discussão, as revelações foram-se tornando mais profundas, mercê
da dinâmica de grupo e da exploração da moderadora, resultando em afirmações de desagrado
pessoal em relação a certas categorias. Embora estes resultados não surjam de forma muito defi-
nida, os chineses e os ciganos parecem, numa primeira análise, ser as minorias menos estimadas.

Eu dou-me muito bem com os africanos e dou-me muito mal, entre aspas, com os ciganos
(…). Porque os ciganos são muito falsos.

Eu acho que os indianos, para mim, são pessoas que eu não era capaz nem sequer de tomar
[um café/ uma bebida]… Não tenho nada contra, mas não têm nada a ver. Sou capaz de me
dar bem com os ucranianos, com os pretos também, com os brasileiros, até com os ciganos.

(178) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Mas, é muito mais fácil para mim falar com um cigano ou com uma cigana, nem todos, não
é? (…) Não sei. É interior. (…) [ainda relativamente aos indianos] Não sei se é por causa da
religião, que são diferentes de nós, é possível.

Sou sincera, não gosto muito desses muçulmanos. Gosto muito dos indianos, adoro os
indianos. (…) Não gosto, não sei. Lá a religião deles, aquela coisa das torres gémeas. São
bombistas, associo-os a terrorismo, não gosto.

Eu não simpatizo com os ciganos nem com os romenos.

Os chineses… há qualquer coisa neles que não me atrai.

Eu não simpatizo com os ciganos nem com os romenos. Porque o romeno é um bocado
cigano e o cigano um bocado romeno. Para mim, vai dar tudo à mesma coisa. Os romenos ou
os ciganos (…). O feitio de não trabalhar, viver à custa da sociedade, enganarem as pessoas.

Embora não possamos controlar se foi efeito da moderação ou dos participantes, esta acabou por
ser a discussão em que a simpatia ou antipatia sentida em relação a pessoas de outras origens
foi mais referida. Houve inclusive participantes que foram muito exaustivos na descrição dos seus
sentimentos e mostraram, na generalidade, grande afastamento em relação ao exogrupo, fosse
este qual fosse:

Pretos. A noção de africanos, há pessoas com quem me dou extremamente bem, mas por
outro lado, acho que são um pouco arrogantes, acho que é esse o termo. No sítio onde moro,
por exemplo, eles estão na passadeira, estamos a tentar ir trabalhar e temos de esperar que
eles passem, a olharem e parece que pensam: “Agora, esperas! Eu faço como entender”.
Esse género de superioridade, de arrogância, é uma característica dos africanos. Não são
todos, mas eu sinto muito isso. Com os ciganos, também fico sempre de pé atrás, porque são
pessoas muito misteriosas, conflituosas. Também, há o outro lado, há quem seja acessível,
simpático e fácil de lidar. Mas, acho que também têm esse lado. Em relação aos brasileiros,
também acho que há um pouco essa parte da superioridade, de chegar e… É um sentimento
assim de superioridade. Os chineses, eles são um povo muito fechado, realmente não há mui-

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (179)
to a dizer, porque, pronto, tirando a parte de ir às lojas, mas também não simpatizo nem deixo
de simpatizar, porque são muito fechados. Sempre no mundo deles, na língua deles. A vida
deles é o trabalho, e são, realmente, muito fechados. Isso, eu sinto. No lado dos romenos,
também me sinto distante.

Em relação aos africanos, não simpatizo muito, mas não posso generalizar, porque alguns são
bons. Em relação aos ciganos, acho que são uma comunidade que podem ser muito bons
quando estão sozinhos, mas quando estão em grupo tornam-se maus. Eles sozinhos não
fazem mal a uma mosca, quando se juntam em grupo são os maiores de todos. Talvez, aí são,
de facto, eles. Também não simpatizo muito com os moldavos, há uns bons outros não, como
em todas as raças, acho que há um bocadinho de tudo, há uma mistura do bom e do mau.

Tal como ilustram estes fragmentos, estas expressões de desagrado são pouco articuladas, apa-
recendo geralmente misturadas com a ressalva que há pessoas boas e más em “todas as raças”,
mas “esse lado”, geralmente o mau, é facilmente generalizado.

Registam-se algumas referências ao 11 de setembro e à alegada arrogância e distanciamento


intencional das próprias minorias. Isto parece sugerir que a hostilidade se alimenta da, ou procura
legitimação na, hostilidade percecionada.

Para além disso, é bastante interessante o facto de uma das participantes ser casada com uma
pessoa de origem mista que, apesar dessa relação de intimidade pessoal, ela perceciona com um
certo grau de alteridade.

Não tenho, nesse aspeto, uma imagem, desde que… Claro nota-se uma diferença, até mes-
mo na raça do meu marido. Noto que ali há uma pequena diferença, mas dou-me bem
com a família, com amigos e conheço muita gente. Até porque lá está, também já trabalhei
com ciganos numa loja, há muitos anos, era eu uma miúda, no meu primeiro emprego. (…)
Sempre me dei bem. Até porque eu tive um problema, numa firma onde estava, com ciganos.
Na altura, telefonei para eles para Carcavelos e pedi para eles me virem ajudar porque eu
estava a ser completamente ameaçada. Eles vieram falar com estes ciganos e até hoje nunca

(180) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
tive problemas. Com brasileiros, também tive colegas a trabalhar comigo, nunca tive proble-
mas, até os ajudei. É conforme, tal como há brasileiros, há portugueses, há de tudo bom e
mau. Há de tudo.

4.3. Representações sobre integração

No que concerne à integração, a moderadora colocou aos participantes a questão de quais as


minorias que parecem estar a adaptar-se melhor – e pior – à sociedade portuguesa dominante. As
respostas a esta pergunta revelam que os chineses e os brasileiros tendem a ser considerados as
minorias mais bem sucedidas, principalmente a nível económico.

Os chineses são os que se estão a sair melhor.

Os chineses e os brasileiros.

Os brasileiros nas restaurações, porque eles trabalham muito.

Os ucranianos e outros europeus de Leste são referidos como a minoria menos bem sucedida e
a que aufere piores salários. Para interpretarmos estes resultados, devemo-nos lembrar que os
participantes se referiam principalmente à dimensão económica.

Os dos países de Leste, acho que não se estão a sair bem.

Os ucranianos recebem menos.

Os moldavos são muito baratos.

Por seu turno, os negros são vistos como uma minoria que usufrui de uma crescente aceitação por
parte da sociedade dominante. Embora um dos participantes tenha expressado a opinião de que
esta minoria era uma das menos integradas, esta ideia foi contrariada pelo resto dos participantes,
que argumentaram que, hoje em dia, os negros são muito mais aceites do que no passado.

Não. Conheço pessoal a pedir trabalho e dizem: “Não lhe dou trabalho, por ele ser preto”.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (181)
Acho isso mal.

Acho que hoje em dia, pelo menos é a ideia que eu tenho, já não é assim.

Mas, também existe ainda.

Os romenos, a par dos ciganos, são mencionados com uma das minorias menos integradas.
Os ciganos, em particular, são vistos como rejeitando a integração e desperdiçando generosas
oportunidades que lhes são concedidas pelo Estado. Quando lhes foi perguntado se os ciganos
gozam das mesmas oportunidades do que alguém que pertence à faixa maioritária da população
portuguesa, os participantes sugerem que os ciganos não só gozam das mesmas oportunidades
como até usufruem de privilégios e oportunidades que são recusados aos restantes cidadãos
portugueses.

Os romenos, acho que não têm interesse em sair-se bem.

Os piores, os ciganos já cá estão há muito tempo…

Este constructo é facilmente discernível nos comentários dos participantes, especialmente quando
lhes foi perguntado se concordam com o estabelecimento de quotas no mercado de trabalho para
a minoria cigana. Os participantes dizem que não se oporiam a essa medida, mas que as quotas
seriam inúteis tendo em conta que esta minoria não tem qualquer desejo de integração.

O discurso em redor dos privilégios da segurança social e da indiferença para com a integração
também emerge a respeito dos homossexuais, que alguns participantes referem como mais discri-
minados do que os ciganos, embora façam um esforço claro e visível no sentido da integração. De
uma forma geral, são os próprios ciganos que, para os participantes, são culpados do seu défice
de integração.

No que se refere à discriminação dos ciganos, a culpabilidade da vítima foi uma constante em
todos os grupos de discussão, independentemente da idade, género ou estatuto dos participantes.

(182) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
4.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias

Quando lhes foi pedido que caracterizassem espontaneamente algumas minorias culturais e re-
ligiosas que residem em Portugal, os resultados para cada categoria foram muito homogéneos,
eventualmente devido à dinâmica de grupo.

Na sua globalidade, as representações são negativas. O que aliás tivemos oportunidade de referir
quando os participantes revelaram a simpatia ou antipatia sentida por pessoas de origens nacio-
nais, culturais, religiosas ou étnicas diferentes das suas.

4.4.1. Portugueses
A moderadora lançou a discussão sobre atributos, solicitando aos participantes que referissem o
que lhes vem à cabeça quando pensam nos portugueses. Os primeiros atributos são positivos,
mas a partir do momento em que um dos elementos do grupo lança um atributo negativo, estes
ganham maior expressividade.

Simpático. Acolhedor.

Humano.

Amigo do seu amigo.

Foi a primeira palavra que me veio à cabeça, mas tenho vergonha…

Charlatães. Aqui estou a falar de políticos, também são portugueses.

Corruptos.

Não pensa no outro. Egoísta (…). Sim, mais agora, com estas coisas do trabalho, mais agora.

Em todos os grupos, foi atribuída aos portugueses a característica de hospitaleiros ou acolhedores.


À semelhança do que aconteceu no grupo de estatuto médio-médio, também os participantes de
estatuto médio-baixo manifestaram uma certa “discriminação de classe”, apelidando os políticos

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (183)
e as pessoas envolvidas em lugares de poder de corruptos.

4.4.2. Ucranianos
Os ucranianos não suscitaram muita conversa por parte dos participantes.

Não gosto dessa gente. (…) São frios. Não têm sentimentos, nem expressão sequer.

Porém, os ucranianos também são considerados:

Trabalhadores.

4.4.3. Moldavos
Isto parece ser uma representação generalista que também abrange várias outras nacionalidades
europeias de Leste como, por exemplo, os moldavos. Estes últimos constituem a minoria mais po-
sitivamente valorizada, embora os participantes pareçam ter tendência para não fazer julgamentos
se não tiverem algo negativo para dizer.

Eu digo trabalhadores e sinceros.

Tudo o que seja de Leste, acho todos muito parecidos (…). Os moldavos, já os deixo ir entran-
do, com uma certa precaução.

É quase como a relação dos ucranianos (…). Os moldavos conseguem ser mais simpáticos
do que os ucranianos.

4.4.4. Indianos
A caracterização negativa dos exogrupos é igualmente manifestada quando a moderadora pergun-
ta aos participantes do grupo o que pensam de imediato relativamente aos indianos.

(184) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os pretos ainda falam o português, não é? Agora os indianos… Uma pessoa entra numa loja
de telemóveis, eles estão sempre ao telefone e bem podem estar a combinar um assassinato
para mim, que eu não percebo nada. Aliás, acho que é falta de respeito. Vêm para cá, têm
de falar a língua.

Mais uma vez, a autoexclusão e o caráter reservado da categoria em apreço são invocados como
justificação para a suspeita e para a hostilidade:

Um país muito fechado. São uma raça muito fechada.

4.4.5. Muçulmanos
À semelhança do que aconteceu nos restantes grupos de discussão, e como tivemos oportunidade
de referir numa secção anterior, também entre os participantes do grupo de estatuto médio-baixo
houve associação entre muçulmanos e terrorismo. Nesta fase da discussão, as expressões revela-
ram algum distanciamento face a esta minoria.

Fechados.

Só agora há meia dúzia de dias, um vizinho disse-me “eu sou muçulmano”. E eu fiquei parva
porque já falava há muito tempo com ele, mas lá está, eu nem sabia. Ele contou-me uma
história porque a família é também muçulmana, que dizia que escondia. E eu fiquei, “mas,
é muçulmano?”

Há muitos moçambicanos que são muçulmanos.

Mas não mostram o que são.

4.4.6. Chineses
Os participantes tendem a apresentar uma visão mais positiva dos chineses. As piores caracterís-
ticas atribuídas aos chineses são, pelo menos, mais neutras do que as usadas para descrever as

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (185)
outras minorias:

É um povo fechado. Comunidade fechada.

Língua complicada.

Desconfiados. Ui, muito desconfiados.

Por outro lado, os chineses são vistos como pessoas muito trabalhadoras, embora pareça que,
para os participantes deste grupo de discussão, esse zelo se possa tornar excessivo:

Trabalhadores. Só pensam em trabalho.

Trabalham 24 por 24.

Isso aí há qualquer coisa. Também depende, porque as lojas não fecham. Tem muita coisa.
Eles próprios vivem dentro das lojas. Eles habitam lá…

Por fim, talvez o traço mais positivo atribuído a uma minoria neste grupo de discussão tenha sido
referido a propósito dos chineses:

Educados.

4.4.7. Negros
Quando questionados especificamente sobre os negros, os principais atributos negativos men-
cionados denotam uma imagem em que o fechamento e o racismo são diagnosticados, embora
pareçam coexistir paradoxalmente com epítetos característicos de sociabilidade como “vistosos”,
“vaidosos” ou “exibicionistas”.

São muito racistas. São muito racistas entre eles e em relação a nós. São mais racistas
connosco do que nós com eles.
Também são muito fechados no seu próprio grupo. Apesar de se darem mais connosco (…)

(186) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
nota-se que há ali… Não nos podemos fiar. Acho que somos muito mais abertos e puros em
relação a eles.
Não gostam de trabalhar. Estou a falar no geral.
Vaidosos. Exibicionistas.
Gostam de dar nas vistas. Eles vão sempre às marcas.
No meu modo de ver, acho que eles gostavam mais de ser brancos do que ser pretos. É o que
eu tenho na minha ideia.

4.4.8. Brasileiros
De uma forma geral, as características atribuídas aos brasileiros são idênticas às expressas pelos
outros grupos de discussão. Os participantes dos três grupos realizados anteriormente caracteri-
zam os brasileiros como sendo alegres, calculistas e traiçoeiros.

Falsos.

Traidores.

Mentirosos.

São muito chupistas, só querem tirar as coisas às outras pessoas.

Mas, no fundo, eles também parecem ser sempre alegres.

São um povo muito alegre.

Festa é festa. Onde houver festa.

À semelhança do que aconteceu com os participantes dos grupos de discussão de jovens e adultos
de estatuto médio-médio, foram feitas referências relativamente às mulheres brasileiras como
sendo exuberantes e sedutoras.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (187)
Elas, cuidado com os maridos. É verdade.

Sedutoras.

Cuidado com os maridos e tudo. Onde elas virem um cifrão, atacam.

4.4.9. Ciganos
Na generalidade, os participantes têm uma perceção negativa da minoria cigana:

Porque os ciganos são muito falsos.

Temos de estar sempre de pé atrás com eles.

Gostam de viver à custa dos outros.

Os ciganos? Por acaso não tenho essa ideia…

Mentirosos.

Embora de forma menos exaustiva que os participantes nos outros grupos de discussão, atribuem
igualmente uma valoração positiva àquilo que é percecionado como o sentido de clã ou a solida-
riedade intraétnica dos ciganos:

Gostam muito da ligação que as pessoas têm.

A sua dedicação ao comércio também é sublinhada, embora não seja elogiada:

São comerciantes, mais do que todos os outros.

No entanto, estas características não compensam os aspetos negativos encontrados nos ciganos.
A representação global dos participantes a respeito dos ciganos torna-se bastante clara à luz de
um comentário que descreve os romenos como sendo:

Ainda conseguem ser piores do que os ciganos.

(188) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os participantes consideram os romenos com uma minoria irredimível. Os atributos que lhes
aparecem associados são todos negativos e mesmo a língua materna é alvo de criticismo por parte
de um dos participantes.

Os romenos são como os ciganos.

Parasitas da sociedade.

Porque eles vivem à custa da sociedade. Agredindo, roubando, burlando. Não fazem nada.

Tudo o que é ali daquela zona… porque eles até se lixam a si próprios, para ganhar dinheiro.

Os romenos são iguais aos ciganos. A fisionomia. A língua dos ciganos é que é diferente.

A língua romena é pior.

Em função da análise dos atributos associados às pessoas das minorias previamente identificadas
pelos participantes dos diferentes grupos de discussão, apercebemo-nos que é entre estes, de
estatuto médio-baixo, que existe uma maior carga negativa face ao Outro. No discurso dos parti-
cipantes as minorias são alvo de duras críticas e há mais manifestações de antipatia para com o
Outro do que nos restantes grupos. Esta especificidade é acompanhada por uma menor abertura
à imigração, fator que analisamos de seguida.

4.5. Aspetos positivos e negativos da imigração

Esta dimensão diz respeito às perceções positivas e negativas dos participantes em relação às con-
sequências da imigração. Os aspetos positivos tendem a agrupar-se em torno do aumento da mão-
-de-obra e do intercâmbio cultural que emerge do estabelecimento destas pessoas em Portugal:

Mais mão-de-obra.

A troca de culturas é importante. Nós ficamos aqui fechados. Também vem tanta gente traba-
lhar, não sei porque é que o nosso país está neste estado. Não há lugar para nós, nós temos

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (189)
que sair, eles estão a ocupar tudo e trabalham tanto, isto devia estar uma maravilha.

Por outro lado, uma sensação de ameaça e competição económica – porque os imigrantes estão
alegadamente dispostos a trabalhar por salários mais baixos – é o aspeto negativo mais notório:

Muito sinceramente, eu não gosto de rodeios, eu gosto de ser muito sincera. E devia mesmo,
se fosse possível, dizer ao nosso primeiro-ministro que as fronteiras foram abertas, muito para
este povo todo. Vieram sufocar o nosso país, Portugal é muito pequenino.

Ao trabalhar estão a tirar o lugar aos portugueses.

Não há trabalho é para o português.

Pois, os ordenados são baixíssimos, com esta mão-de-obra, não sei porque é que não está
bem o país…

A muita mão-de-obra estrangeira que vem para Portugal, vem baixar os vencimentos dos
portugueses.

Neste mesmo contexto, da competição económica, surge uma série de referências ao acesso dos
imigrantes a regalias sociais marcadas por manifestações de privação relativa. Os participantes
sentem-se “discriminados” e atribuem responsabilidades ao Estado pela situação:

Os patrões não passam recibos, a mão-de-obra é mais barata e eles vão buscar. O mal cá
está, é Estado.

Mas, é que o Estado dá-lhes subsídios e tudo. Já passei por uma fase em que não tinha
dinheiro para pagar a renda, fui à segurança social e disseram-me para ir às Câmaras que
podia ser que conseguisse uma habitação. Eu não queria subsídio, eu queria uma casa mais
barata. Não consegui arranjar uma casa para alugar, não havia. É tudo “vendo”. Queria uma
casa mais pequena, nem que fosse fora do sítio onde eu estava habituada a viver, não me
importava nada, mas não havia nada. Queria uma casa mais pequena, mas queria meter os
meus filhos lá dentro. Então, fui à Câmara de Oeiras. Fui lá, a senhora: “Neste momento,

(190) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
só estamos a dar ajuda para essas casas às pessoas que vêm de África”. Quer dizer, disse:
“Não há casas, neste momento, e eu não sei”. Nem me encaminharam, nem para aqui, nem:
“Olhe, só se for noutra freguesia”.

As casas mais baratas, são só eles que lá estão. Têm leite da Agros, têm apoios, têm tudo. As
pessoas que estão cá deviam estar à frente das que vêm de fora. Mesmo que as pessoas não
queiram, acabam por se sentir discriminadas e acabam por discriminar também. Chegamos
a ser discriminados, racistas. Primeiro devia haver para quem está cá.

Enquanto eles pagam uma renda baixa num bairro social, nós não, somos obrigados a pagar
a renda normal.

Nós somos discriminados. Nós, portugueses, somos discriminados.

Desta forma, algumas das complexidades da equação racista tornam-se percetíveis: a questão
identitária, a sensação de ameaça ontológica, entre outros, vêem os seus efeitos exacerbados pelo
ressentimento desta classe subordinada para com o status quo.

Seguindo a estrutura do guião de entrevista, a moderadora perguntou então aos participantes se a


relação entre os imigrantes e os portugueses é melhor descrita como sendo de cooperação ou de
competição. Os participantes optaram de forma esmagadora pela segunda:

Se calhar já foi de cooperação, mas agora é de competição.

Competição, a nível de empregos, a nível de regalias.

A nível de tudo, é de competição.

4.6. Portugal, país de brandos costumes


A reação à afirmação de que Portugal é um país de brandos costumes não mereceu muitos
comentários. Os dois participantes que interferiram, referiram que os portugueses são pacatos e
isso contribui para a ideia de país de brandos costumes:

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (191)
Somos aqueles cães que ladram muito mas não mordem. Depois fazem-nos uma festinha e
a pessoa fica ali…

Quando os elementos do grupo foram diretamente questionados se, na sua opinião, em Portugal
há racismo, a resposta foi praticamente unânime: o sentimento de privação relativa tende a au-
mentar atitudes discriminatórias e racistas:

Acho que vamos ter tendência a ser mais racistas.


Por causa do que vai sendo uma multidão muito grande. Quanto mais etnias houver, mais
povos houver aqui, mais racismo vai haver. (…) Mais competição.

A exceção foi um participante que disse que o racismo é, em grande medida, uma questão familiar
e não pode ser generalizado como um atributo da sociedade:

Eu não concordo. Hoje em dia não há racismo. Os racistas que há é porque os pais eram.

4.7. Valorização dos atributos e sentimentos de discriminação


Os participantes do grupo de estatuto médio-baixo não chegam a um acordo quanto às pessoas
que lhes parecem ser mais discriminadas em razão da pertença a uma etnia diferente. Tanto
se referem aos negros, como aos ciganos, como aos brasileiros. Em todo o caso, o tom de pele
parece ser, na sua opinião, o denominador comum da discriminação.

É tudo, são os pretos, também são os brasileiros; também há brasileiros de cor.

À semelhança do que aconteceu nas restantes discussões, o moderador introduziu na discussão


algumas frases para serem comentadas.

- Como reagiria se um dos seus filhos manifestasse a intenção de casar com alguém que per-
tence a uma minoria? Todos os participantes afirmaram que se importariam com esta situação.
Espontaneamente falaram de imediato da hipótese de os filhos casarem com alguém de ascen-
dência africana, “por causa da cor”, justificam.

(192) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Houve uma vez que o meu filho teve uma namorada preta, eu não permiti e disse: “Que foi?
Queres ter filhos mulatos e não sei o quê…”. É estupidez, não é? Se fosse eu, custava que
não me aceitassem. E a rapariga era impecável, mas pronto. (…) Eu tive medo, eu não quis…

É assim, eu acho que ninguém nota que o meu filho é mulato. Mas, se ele aparecesse em
casa com uma mulata, se calhar, era um bocado um choque. E eu casei com um mulato,
não é? Mas acho que se aparecesse assim mesmo um preto, aquele mesmo “rebimba”, os
da Guiné são mesmo rebimba, pronto. Eu ia de reagir “mas…”, mas depois também pensava
“que estupidez”. Mas, se calhar, até ia reagir assim. Porque nós dizemos que não somos
racistas, mas depois cá dentro toca um bocadinho.

De resto, mostram ainda pouca aceitação face a um hipotético casamento entre um filho e alguém
de etnia cigana.

- A cor de pele tem alguma importância para a maioria dos participantes do grupo de discussão
de estatuto médio-baixo. Mesmo uma única participante que refere que “assim à partida, nós
dizemos logo que não”, acaba por aceitar que é um fator importante no estabelecimento de
relações com o Outro.

À questão - Os ciganos em Portugal têm as mesmas oportunidades do que as outras pessoas? os


participantes responderam que não. Todos afirmaram que os ciganos “têm mais oportunidades e
mais regalias”. Na sequência dessa reação, à pergunta sobre a eventual existência de quotas no
mercado de trabalho para a população cigana, o grupo toma uma posição consonante:

Eles não querem. Eles não iam. Estão em casa, têm subsídios. Têm casa e subsídio, vai
trabalhar para quê? Dar cabo do corpo. Ficam em casa com os subsídios.

Retomando o tema da imigração, através de questão direta, o moderador pergunta aos elementos
do grupo se esta constitui uma ameaça aos valores culturais de um país. As opiniões dividem-
-se entre os fatores maléficos da “mistura” e da perda de identidade, e a riqueza que as trocas
culturais podem originar:

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (193)
Eu acho que é prejudicial [a mistura] porque destrói tudo o que nós tínhamos. Mesmo na
comida…

Já não é aquele português, português.

Eu acho que é benéfica [a mistura].

Por último, o moderador pede que os participantes se posicionem face à questão – Em Portugal
é pior ser pobre ou pertencer a uma minoria étnica? Em termos gerais, a resposta tendeu para
a pobreza como fator preferencial à pertença minoritária, por motivos relacionados com a discri-
minação. A questão da privação relativa de regalias sociais emerge novamente neste contexto
relativamente aos ciganos:

Há muitas minorias étnicas que têm mais regalias do que uma pessoa pobre. Os ciganos são
uma minoria, não é? Têm mais regalias do que os pobres. A nível de subsídios, habitação.

O benefício de direitos sociais aparece assim associado à pertença étnica e não à condição de
quem os recebe. No caso dos ciganos, o discurso aponta para que estes tenham certas “regalias”
em função da sua pertença étnica e não de eventuais situações de pobreza.

4.8 Conclusões gerais


As principais conclusões a retirar da análise da discussão do grupo composto por participantes de
estrato social médio-baixo são:

• A categorização de imigrantes e minorias étnicas com atributos generalistas é comum;

• O discurso “politicamente correto” não é frequente. Pelo contrário, nota-se uma exacerbação
no que concerne a manifestações de simpatia ou antipatia face ao Outro, através de expres-
sões como “gosto muito dos…”, “adoro os…”, “uma raça que eu não gosto são os…”, “de
quem não gosto mesmo é dos…”, “não gosto nada dos…”;

(194) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
• Todas as minorias, sem exceção, foram alvo de atributos negativos, fator que se destacou
fortemente ao longo da discussão;

• A perceção de integração do Outro aparece ligada à sua participação no mercado de traba-


lho. É, portanto, valorizada uma dimensão económica da integração que coloca os chineses
e os brasileiros entre os mais bem integrados na sociedade portuguesa, não obstante os
últimos aparecerem também enumerados entre os mais discriminados e problemáticos;

• A imigração aparece associada à competição por postos de trabalho, ao aumento da crimi-


nalidade e da violência;

• Sentimentos de privação relativa face às minorias, sobretudo no que concerne ao benefício


de direitos sociais, surgem amplamente associados a um défice de rigor do Estado na capaci-
dade distributiva. Os portugueses – do discurso depreende-se que os ciganos não aparecem
contemplados nesta categoria – deveriam aceder a certas “regalias” em primeiro lugar e, só
então, as mesmas deveriam ser distribuídas aos imigrantes.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (195)
CAPÍTULO 8.
ANÁLISE COMPARATIVA

1. CONCLUSÕES GERAIS

A tendência geral dos participantes dos grupos de discussão foi enunciar categorias de pesso-
as percebidas como Outras tendo principalmente por base diferentes proveniências geográficas,
cores de pele e etnias. As categorias nomeadas espontaneamente pelos participantes em todos
os grupos de discussão foram as seguintes: negros, africanos, “pretos”; brasileiros; chineses;
indianos; europeus de Leste, ucranianos. Os ciganos foram referidos espontaneamente pelos três
grupos de discussão compostos por adultos, mas não pelo dos jovens. Ao longo das conversas
com os participantes das diferentes discussões tornou-se bastante claro no seu discurso que
a maioria não distingue os imigrantes originários dos vários países da antiga União Soviética
e usa, geralmente, a designação lata “imigrantes de Leste”. Contudo, a presença destes em
Portugal é, em termos quantitativos, bastante diferenciada (ver SEF, 2010: 27-29). Provavelmente
devido à maior visibilidade dos nacionais da Ucrânia, nos grupos de discussão apercebemo-nos
também que os termos “imigrantes de Leste” e “ucranianos”, são usados sistematicamente de
forma alternada, quase como sinónimos. Da mesma forma, os participantes não diferenciaram os
africanos segundo a sua proveniência, não obstante a presença destes em Portugal – resultante
essencialmente da imigração de países africanos de língua portuguesa – apresentar também
quantitativos significativamente diferentes em função do país de origem (ver SEF, 2010: 28). A
categoria “asiáticos” aparece também referenciada pelos participantes de estatuto social médio-
alto e pelos jovens de estatuto médio-médio, normalmente sempre na sequência da referência aos
chineses. Contudo, estes últimos apareceram como uma categoria autonomizada em todos os
grupos de discussão. Nesta fase inicial, de identificação do Outro, só no grupo de estatuto social
médio-alto houve referência a pessoas categorizadas com base na religião, designadamente os
muçulmanos e os budistas. Os judeus não foram mencionados em nenhum dos grupos, o que
pode estar relacionado com a fraca visibilidade destes na sociedade portuguesa ou com o facto

(196) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
dos sujeitos não os percecionarem como Outros. Os muçulmanos são a categoria com a qual
os participantes parecem encontrar-se menos familiarizados e face à qual parece haver maior
distância social, não havendo contacto ou curiosidade. Esta quase invisibilidade social é similar
à registada a propósito dos judeus, embora menor em grau. Contudo, ainda que os participantes
assumam conhecer pouco os muçulmanos, estes aparecem geralmente associados ao fanatismo,
fundamentalismo e terrorismo.

Quanto às relações sociais com indivíduos categorizados como Outros, pudemos identificar a
existência de níveis de contacto pessoal distintos (até porque a nossa amostra intencional assim
o pressupunha): inexistente, moderado e mais direto. Os diversos contextos de sociabilidade em
que ocorre o contacto com pessoas de origem diferente são as relações casuais do quotidiano;
laborais; de amizade e de parentesco. Das relações estabelecidas ao nível da comunidade local,
houve em todos os grupos de discussão participantes que referiram ter contacto com pessoas de
pertença minoritária em contexto de vizinhança ou nos transportes públicos, sendo que aqui se
constata uma maior proximidade nos adultos do estrato médio-médio e médio-baixo. No grupo de
discussão de estrato médio-alto a maioria dos participantes afirmou não ter, na sua esfera de so-
ciabilidades, relações próximas com pessoas de outras origens étnicas. Já na esfera ocupacional,
o contacto com as categorias percecionadas como Outros foi relatado principalmente neste grupo.
Note-se, porém, que as afirmações decorrentes desses relatos evidenciam um maior contacto
com estrangeiros no plano laboral fora de Portugal, resultando pois diretamente de uma maior
mobilidade internacional deste estrato social, tanto ao nível do turismo como dos negócios. Deve
ser referido que houve menção a relações íntimas ou de parentesco com minorias em todos os três
estratos sociais: no grupo de estrato médio-baixo há dois participantes com familiares “mulatos”
(irmãos e marido), no grupo de estrato médio-alto um dos elementos é casado com uma “pessoa
mestiça, europeia e asiática” e no grupo dos jovens um participante tem uma namorada brasileira.

Numa primeira abordagem a sentimentos de simpatia por pessoas de origem diferente, em to-
das as discussões houve participantes que responderam que depende das pessoas e não da
sua pertença étnica. Não obstante, acabam por fazer associações de atributos mais positivos ou

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (197)
negativos de uma forma generalista. Os participantes de estatuto social médio-alto revelam uma
maior abertura face à imigração e têm contacto profissional frequente com pessoas pertencentes
a categorias minoritárias que partilham do mesmo estatuto social. Os participantes de estatuto
social médio-médio e médio-baixo revelam menor abertura e maior desconfiança. No seu discurso
repisam aspetos negativos que associam à imigração, tais como o aumento do desemprego e da
criminalidade. O estatuto social e a educação, enquanto elementos de contraste moldadores de
interesses e afinidades com o Outro, foram referidos unicamente por participantes dos grupos de
adultos de estatuto médio-alto e de jovens de estatuto médio-médio.

Na generalidade, o aspeto positivo associado à imigração é o económico, embora os participantes


também mencionem a interculturalidade como representando uma oportunidade para o país. Na
perspetiva dos participantes de estatuto social médio-alto, os europeus de Leste são a categoria
que tem realizado maior progresso na senda da integração, não apenas pela disponibilidade para
trabalhar que lhes imputam, mas também pela capacidade que lhes reconhecem de aprender
a língua portuguesa de modo a se integrarem. Por outro lado, para os participantes de estatuto
social médio-médio e médio-baixo são os chineses a categoria que se salienta pela positiva, uma
vez que os participantes percecionam esta categoria como estando a prosperar em termos econó-
micos no mercado nacional. A partilha da língua com os negros provenientes dos Países Africanos
de Língua Oficial Portuguesa e com os brasileiros cria, por um lado, maior simpatia e identificação
mas, por outro, conduz a expetativas assimilacionistas hipertrofiadas que, ao serem goradas,
dão origem a um mal-estar que se insinua. Os participantes não apenas negam que a sociedade
portuguesa exclua os ciganos como dizem sentir-se eles próprios postos à parte pelos ciganos e
atraiçoados pelo Estado, que acusam de discriminação positiva em prol desta categoria, no seu
entender arredia e irredimível. A opinião em geral é a de que os ciganos são parasitas da sociedade
e nada fazem para não se integrar.

Entre os participantes grassa a convicção de que o racismo tem vindo a aumentar de forma legí-
tima face ao aumento da criminalidade em geral e das ofensas mais sérias em particular (sendo
as últimas tendencialmente atribuídas aos brasileiros), face ao aumento do desemprego e face à

(198) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
perceção de que os imigrantes recebem mais apoios sociais do que os portugueses. Esta última
ligação é sobretudo avançada pelos participantes de estatuto social médio-médio e médio-baixo,
que partilham ainda noções como a de que a imigração levou a uma contração dos salários
para os portugueses autóctones; de que os imigrantes recebem mais apoio do Estado do que
os cidadãos portugueses; ou de que o Estado serve mal os interesses dos cidadãos ao permitir
que imigrantes como os romenos entrem no país sem quaisquer condições de contribuir para o
desenvolvimento socioeconómico do país. Tais cognições levam a sentimentos de estarem a ser
traídos pelas elites políticas e de privação relativa face aos próprios imigrantes, o que por sua vez
constitui um caldo de cultura que fomenta o racismo. A relação entre imigrantes e portugueses é
percecionada nos estratos sociais inferiores como sendo fundamentalmente uma competição por
recursos escassos. Ainda assim, os participantes de estatuto social médio-baixo consideram que é
melhor ser pobre do que pertencer a uma categoria minoritária.

Em todos os grupos os termos “racista” e “hospitaleiro” surgiram simultaneamente como atri-


butos para caracterizar os portugueses. Ao contrário de investigações que apontam para uma
tendencial supervalorização do endogrupo em detrimento do exogrupo (Tajfel, 1983; Vala, Brito
e Lopes, 1999a), em todos os grupos, se observou uma maior tendência para um empolamento
dos atributos negativos dos portugueses e uma maior timidez na enumeração de características
geralmente aceites como positivas. Os participantes jovens de estatuto social médio-médio consi-
deram que os media têm uma grande responsabilidade na propagação de imagens negativas dos
imigrantes e minorias, indo pois de encontro às conclusões dos trabalhos apresentados sobre os
discursos veiculados sobre as minorias nos meios de comunicação social e suas repercussões na
opinião pública, apresentados no ponto 4.4. deste estudo (Cádima e Figueiredo, 2003, Cunha et
al. 2004, Cunha et al. 2006 e Ferin et al., 2008). A ideologia luso-tropicalista, ainda que desafiada
por um participante no grupo de estatuto social médio-alto, é assumida como uma descrição
válida da realidade histórica do pretérito império colonial português. Mas, de acordo com muitos
participantes, os brandos costumes do passado vão desaparecendo sob o atrito da pressão mi-
gratória à qual o país terá estado sujeito nos últimos anos. A diferença é, no entendimento dos
participantes, cada vez mais sentida como uma ameaça, tanto em termos de integridade física

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (199)
(negros, ciganos, brasileiros) como de decência (mulheres brasileiras) ou valores fundamentais
(muçulmanos). Em todos os estratos a imigração é consensualmente associada à violência e cri-
minalidade. As categorias mais associadas com estes aspetos são os negros, a quem é apontada
responsabilidade por delitos menores, e os brasileiros, aos quais é imputada a criminalidade mais
violenta. Os ucranianos também são mencionados a este propósito, embora menos frequente-
mente. Neste contexto, os participantes vêm ainda a classe política como facilitadora da entrada
de imigrantes e, por conseguinte, principal responsável pela insegurança que sentem. Os negros,
brasileiros e ciganos são as categorias mais visadas pelos discursos racistas que fomos capazes
de escrutinar com esta metodologia. O racismo face aos ciganos escapa à norma anti-racista,
sendo facilmente assumido.

2. QUADROS SÍNTESE
2.1. Comparação dos grupos
Estatuto médio-alto Estatuto médio-médio Estatuto médio-baixo Estatuto médio-médio
[35,55] [35,55] [35,55] [18,25]
Negação do papel do Os obstáculos à Os obstáculos à Negação do papel do
fenótipo e afirmação do convivialidade são convivialidade são fenótipo e afirmação do
papel da educação ou definidos em termos definidos em termos papel da educação ou
estatuto social. comportamentais. comportamentais. estatuto social.

Recusa generalizar e Aceitam generalizar e Aceitam generalizar e Recusa generalizar e


reformula em termos de criticam comportamentos criticam comportamentos reformula em termos de
qualidades pessoais grupais. grupais. qualidades pessoais

Percebem a integração Percebem a integração, Percebem a integração, Percebem a integração,


como esforço e progresso antes de mais, em termos antes de mais, em termos antes de mais, em termos
e elegem os europeus de económicos e elegem os económicos e elegem os económicos e elegem os
Leste. chineses. chineses. chineses.

Hostilidade para com a Hostilidade para com a Hostilidade para com a Hostilidade para com a
perceção de hostilidade perceção de hostilidade perceção de hostilidade perceção de hostilidade
da parte dos ciganos. da parte dos ciganos. da parte dos ciganos. da parte dos ciganos.

(200) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A sistematização dos resultados permite entender similitudes entre os participantes dos grupos
de estatuto médio-alto e jovens de estatuto médio-médio. Ambos os grupos tendem a produzir dis-
cursos menos essencialistas e a valorizar as afinidades sociais enquanto elementos fundamentais
para a convivialidade. Em termos gerais, a grande diferença centra-se na valorização de dimensões
divergentes do processo de integração de imigrantes.

Também entre os participantes de estatuto médio-médio e médio-baixo se encontram afinidades


ao nível dos discursos, sobretudo na expressão de atributos do exogrupo e na tendência para a
generalização de aspetos comportamentais. A condição de classe parece marcar posições face ao
Outro, sobretudo no que se refere a sentimentos de privação relativa. Há, nos grupos de estatuto
social subordinado, uma valorização da dimensão económica da integração de imigrantes, o que
os leva a eleger os chineses como os imigrantes mais bem integrados na sociedade portuguesa
não obstante as referências ao fechamento destes e falta de contacto com a população maioritária.

Um aspeto comum a todos os grupos é a hostilidade aos ciganos argumentada como reação à
própria hostilidade destes para com a população maioritária.

2.2. Racionalização dos discursos produzidos

Com base na análise dos discursos dos participantes nos grupos de discussão, procurámos apurar
quais os principais argumentos racistas, no sentido de terem como efeito o estabelecimento,
sustentação e reforço de relações de poder opressivas entre as categorias sociais que constroem
(Wetherell e Potter, 1992: 70). Classificámos os discursos produzidos de acordo com a lógica
de argumentação em diferentes categorias: Parasitismo; Indolência; Normatividade territorial;
Criminalidade; Privação relativa; Culpabilização da vítima; Discriminação dupla; Efeitos de classe;
Fanatismo e Competição económica. A sistematização da argumentação é, desta feita, esquema-
tizada e ilustrada com declarações típicas de cada um dos argumentos usados:

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (201)
Argumento Discurso dos participantes

Para mim, os ciganos é a pior raça. São os parasitas da sociedade, não fazem nada.
90% deles ganham aqueles subsídios que dão agora e muitos deles com bom cabedal
Parasitismo: para trabalhar.
O ponto deste argumento é
que as minorias gostam de
viver à custa da população Muitos deles estão cá a viver às nossas custas [imigrantes].
maioritária
Os da raça negra acho que sim (…). Porque nós damos casas, damos tudo e eles não
nos dão nada, entre aspas. Não dão nada positivo para o país.

Argumento Discurso dos participantes

Para mim, vai dar tudo à mesma coisa. Os romenos ou os ciganos (…). O feitio de não
trabalhar, viver à custa da sociedade, enganarem as pessoas.
Indolência:
O ponto deste argumento é
que algumas minorias não Acho que os brasileiros não gostam de trabalhar.
gostam de trabalhar
Não gostam de trabalhar. Estou a falar no geral [Africanos].

Argumento Discurso dos participantes

Normatividade Porque é que essa raça veio para cá? Fez esses quilómetros todos e veio para este
territorial: país? [Romenos]
O ponto deste argumento é
que todos viveriam melhor Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam… tipo se pensarmos nos
se ninguém deixasse o seu africanos, em África eles estão no sítio deles. Pronto… enquanto os ciganos, não têm
país de origem o sítio deles… ou seja, são sempre estranhos onde quer que estejam.

(202) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Argumento Discurso dos participantes

Matam assim como quem bebe um copo de água e é do feitio deles… [dos brasileiros]

Há manifestamente formas de criminalidade mais violenta que essas pessoas nos


Criminalidade: trazem. São pessoas que vêm de sociedades onde a tolerância à criminalidade e a
O ponto deste argumento é ignorância não tem comparação com os nossos padrões. Isto é um ponto importante,
que as minorias têm uma tanto a de Leste quanto a do Brasil.
maior propensão para o
crime Problemas com os negros. Porque eles resolveram que aquilo era um sítio porreiro
para ir buscar as coisas para levar, depois arranjam problemas aos miúdos nas
escolas, causam problemas na rua, causam problemas à noite, criou-se um clima de
insegurança, que não é controlável. E também não vamos começar a matar os negros
que lá aparecem, não é?

Argumento Discurso dos participantes

As casas mais baratas, são só eles que lá estão. Têm leite da Agros, têm apoios, têm
tudo. As pessoas que estão cá deviam estar à frente das que vêm de fora. Mesmo
que as pessoas não queiram, acabam por se sentir discriminadas e acabam por
discriminar também. Chegamos a ser discriminados, racistas. Primeiro devia haver
Privação Relativa: para quem está cá [Imigrantes].
O ponto deste argumento
é que as minorias Há portugueses que não têm casa. Quer dizer, acho que, nesse caso, então, há
recebem, regra geral, mais racismo entre nós. Se estão a dar prioridade aos imigrantes, em relação a cá, então
privilégios que a população acho que…
maioritária
Se for um português, ficará sempre para trás de, por exemplo um cigano. Um cigano
é capaz de ter aquele poder de persuadir a assistente social, por exemplo, e consegue
ter casa. O português não consegue. É um facto.

Argumento Discurso dos participantes

São muito racistas. São muito racistas entre eles e em relação a nós. São mais
Culpabilização da racistas connosco do que nós com eles [Negros].
vítima:
O ponto deste argumento Os ciganos? São [discriminados], mas também muitos deles fazem por isso.
é que as minorias
são, de alguma forma,
responsáveis pela sua Não se trata de ter dificuldade em relacionar-me com eles, acho que eles é que têm
discriminação dificuldade, alguns deles, em relacionar-se com as outras pessoas, eles têm uma
cultura muito forte, eles têm costumes muito fortes mesmo [Ciganos].

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (203)
Argumento Discurso dos participantes

Discriminação dupla: Isso é muito relativo. Eu tenho no meu prédio pessoas que trabalham na Embaixada
efeitos de classe com embaixadores, negros, que têm um nível completamente diferente. (…) É
O ponto deste argumento completamente diferente de outro tipo de negro que a gente encontra aí na rua.
é que a discriminação não
é orientada pelos traços Isso já tem a ver com a educação que lhes é dada em casa também, parte muito das
fenotípicos ou pela cultura, escolas, parte da educação familiar [em relação às minorias].
no sentido antropológico
do termo, mas antes
por outras propriedades [A dificuldade em comunicar com os africanos prende-se] Com a falta de instrução do
sociais, tais como a outro lado. Com a falta de instrução.
educação

Argumento Discurso dos participantes

Por exemplo, eu teria muita dificuldade em conseguir adaptar a minha vida e o meu
dia-a-dia e a minha maneira de ser a alguém que fosse budista, porque eu acho que
é totalmente extremista em relação aos princípios que eu tenho. (…) O meu problema
não era adaptar-me às pessoas, era adaptar-me ao meio dele e ele adaptar-se ao meu
para termos um meio-termo e vivermos em sociedade os dois. Porque é totalmente
Fanatismo: díspar.
O ponto deste argumento
é que as minorias de Se calhar, com pessoas como muçulmanos extremistas ou budistas ou ortodoxos,
determinadas religiões são provavelmente, ente nós e essas pessoas nunca haveria uma ponte, uma ligação,
fundamentalistas uma afinidade que permitisse essa ligação.

Sou sincera, não gosto muito desses muçulmanos (…). Não gosto, não sei. Lá
a religião deles, aquela coisa das torres gémeas. São bombistas, associo-os a
terrorismo, não gosto.

Argumento Discurso dos participantes

Em princípio, tiram muitos empregos, principalmente aos jovens. Porque lá está, foi o que
eu disse há bocado, eles sujeitam-se a ordenados mais baixos e eles chegam e dizem:
“Meu senhor, eu procuro trabalho, por menos 100 euros, faço esse trabalho” [Imigrantes].
Competição económica:
O ponto deste argumento Há alguns dias, ouvimos falar que fechou uma fábrica, fechou outra, já é para nós
é que as minorias tiram difícil manter os nossos empregos. Eu, pessoalmente, penso assim, vêm aqueles
o emprego/provocam agora e o pouco que já há, já vêm tirar.
a descida de salários à
população maioritária
E devia mesmo, se fosse possível, dizer ao nosso primeiro-ministro que as fronteiras
foram abertas, muito para este povo todo. Vieram sufocar o nosso país, Portugal é
muito pequenino [em relação aos imigrantes].

(204) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
RECOMENDAÇÕES PARA POLÍTICA PÚBLICA

Nos últimos anos Portugal tem assistido a uma aumento de meios e medidas de combate ao racis-
mo e xenofobia. O ACIDI inventariou as boas práticas existentes em matéria de combate à discri-
minação e ao racismo no Technical Report on Identifying Best Practices to Combat Discrimination
(Frechaut e Rosário, 2009) que produziu no âmbito do Projeto Europeu Living Together: European
Citizenship against Racism and Xenophobia.55 Não obstante, as conclusões deste trabalho apon-
tam para a persistência de discursos racistas na sociedade portuguesa, independentemente da
pertença de género, escalão etário, estatuto sócio-económico ou nível de educação das pessoas
que vão atualizando esses discursos.

Dado não estarmos a trabalhar com base na oposição convencional entre discurso e prática, mas
sim a considerar o discurso como prática social de pleno direito, não se nos coloca a questão de
saber se o discurso tem tradução prática. Sendo pois certo que à igualdade de jure que vigora
em Portugal não corresponde sempre uma igualdade de fato, importa todavia saber que aperfei-
çoamentos poderão ser introduzidos a nível legal, ainda que estejamos conscientes de antemão
que estes não bastam, por si só, para produzir resultados. Relatórios de nível europeu, como os
da ECRI ou da Rede Europeia de Peritos Legais em Matéria de Anti-discriminação,56 alertam para
a pertinência de constituir a discriminação racial como circunstância agravante geral de todas as
infrações, nomeadamente dos crimes previstos no Código Penal, e ratificar instrumentos legais
internacionais em matéria de anti-discriminação.
55 Acessível em: http://livingtogether.
oberaxe.es/livingtogether/.
De forma conexa, e atendendo a que a discriminação racial, 56 No âmbito desta rede fundada pela
étnica, religiosa, linguística e outras são pouco frequentemente Comissão Europeia em 2004, consulte-se,
para uma revisão das medidas anti-
operacionalizadas em processos administrativos ou judiciais em discriminatórias em Portugal, o relatório
de 2008 referente a este país (acessível
Portugal, é ainda pertinente evitar quaisquer perdas que possam em: http://www.non-discrimination.net/
content/media/2008-PT-Country%20
ocorrer já na própria máquina judicial, nomeadamente sensibi- Report%20final.pdf) e, para uma perspetiva
lizando os seus agentes para a discriminação racial mediante comunitária, o estudo comparativo dos 27
Estados-membros (acessível em: http://
www.non-discrimination.net/content/
media/Comparitive%20EN.pdf).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (205)
ações de formação orientadas especificamente para polícias, procuradores e juízes.

Importa também sensibilizar os jovens sobre a temática da discriminação, racismo e xenofobia


através não apenas da introdução obrigatória da matéria nos curricula do sistema educativo – pro-
curando desse modo educar para a diferença, para o conhecimento do Outro –, mas também da
generalização de debates em contexto escolar como os que são promovidos pelo SOS Racismo.
Dado o funcionamento da atribuição das escolas às crianças, combater a segregação espacial é
também uma forma de promover a diversidade sociocultural nas escolas.

Dada a dupla hostilidade detetada para com os imigrantes, fundada na perceção de uma privação
relativa, e para com as elites políticas, vistas como abrindo mão de controlar os influxos, seria
também pertinente o Estado tornar-se proativo no evidenciar da universalidade dos apoios sociais,
nomeadamente junto dos estratos sociais subordinados. Ainda que um eventual aumento dos
candidatos e, por conseguinte, das prestações possa provocar alguma tensão financeira, tal é
certamente preferível à alternativa.

Também o público em geral carece de disseminação das normas e mecanismos anti-racismo. Tal
pode passar por ações diretas como a circulação de brochuras como Imigração – Mitos e Factos,
publicada pelo ACIDI, junto de escolas, institutos públicos, serviços de saúde e outros com um
público alargado. Ainda na mesma lógica de ataque direto à questão, é também possível pensar
na promoção de campanhas publicitárias alusivas à temática (por exemplo, o que seria da seleção
nacional de futebol sem Eusébio ou da literatura universal sem Dumas?). Contudo, parece-nos
também interessante considerar ações mais subtis, como a concertação com os media para colo-
cação de conteúdos em ficção popular, integrando a luta contra o racismo nas próprias narrativas
(telenovelas, séries juvenis), ou, no caso da televisão pública, a passagem de séries documentais
como City Folk57 ou 6 Millards d’Autres58 em horário nobre.

Como observámos, em Portugal parece não existir ainda um corpo consolidado de estudos ou,
sequer, uma área de investigação relativamente autónoma.
57 Veja-se http://www.ebu.ch/en/
eurovisiontv/documentary/city_folk.php.
58 Veja-se www.6milliardsdautres.org.

(206) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Importa, por isso, encetar análises objetivas acerca, por exemplo, das práticas e do comporta-
mento de senhorios e empregadores quando a um mesmo anúncio respondem candidatos com
perfis semelhantes e fenótipos diferentes, à semelhança do que se faz há décadas num conjunto
significativo de países e se designa convencionalmente por metodologia da OIT.

Finalmente, é possível argumentar que a possibilidade de realizar investigação que produza o


conhecimento científico necessário para combater eficazmente as atitudes racistas em Portugal
é severamente manietada pela inexistência de dados oficiais que permitam analisar de forma
completa e coerente a situação económico-social dos grupos minoritários e a extensão do racismo
e da discriminação racial ou étnica. Contudo, atendendo ao uso que foi feito dos dados dos censos
alemães de 1933 e 1939 pelo regime Nazi, esta dificuldade é claramente um mal menor (ver,
por exemplo, Aly e Roth, 2004) e a recolha de informação pode sempre prosseguir na base de
inquéritos por amostragem, que embora possam parecer caros acartam riscos inerentes conside-
ravelmente menores… A Constituição da República Portuguesa, ao proibir explicitamente a recolha
de tais dados, é nesse particular o mais sábio dos textos.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (207)
BIBLIOGRAFIA E FONTES
BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, V. (1996), “Questão nacional e questão colonial em Oliveira Martins”, in Análise


Social, vol.31, n.º135, pp. 183-201.

ALEXANDRE, V. (1999), “O Império e a ideia de raça (séculos XIX e XX)”, in VALA, J. (org.), Novos
Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora, pp. 133-144.

ALMEIDA, M. V. (2000), Um Mar Cor de Terra: Raça, cultura e política da identidade, Oeiras: Celta
Editora.

ALY, G. e ROTH, K. H. (2004), The Nazi Census. Identification and Control in the Third Reich,
Filadélfia: Temple University Press.

ARAÚJO, M. (2007), “O silêncio do racismo em Portugal: o caso do abuso verbal racista na


escola”, in GOMES, N. L. (org.), Um Olhar Além das Fronteiras. Educação e relações raciais, Belo
Horizonte: Autêntica Editora, pp. 77-94.

ARAÚJO, M. (2008), “Racismo.pt”, in CUNHA, T. e SILVESTRE, S. (orgs.), Somos Diferentes,


Somos Iguais: Diversidade, cidadania e educação, Santa Maria da Feira: Acção para a Justiça e
Paz, pp. 25-49.

ARENDT, H. (1989 [1951]), Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo,


São Paulo: Companhia das Letras.

AZEVEDO, A. (1940), “A pureza bioquímica do Povo Português, in COMISSÃO EXECUTIVA DOS


CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 8, Tomo 1.º. Actas, memórias
e comunicações do Congresso Nacional de População, Porto: Imprensa Portuguesa, pp. 551-563.

(208) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
BARKER, M. (1981), The New Racism: Conservatives and the ideology of the tribe, Londres:
Junction Books.

BASTOS, J. G. P., e BASTOS, S. P. (1999), Portugal Multicultural. Situação e estratégias identitárias


das minorias étnicas, Lisboa: Fim de Século.

BASTOS, J. G. P., CORREIA, A. C., e RODRIGUES, E. (2006), Sintrenses Ciganos: uma abordagem
estrutural-dinâmica, Sintra: Câmara Municipal de Sintra.

BOURDIEU, P. (2003), “O racismo da inteligência”, in Questões de Sociologia, Lisboa: Fim de


Século, pp. 277-281.

BOSWELL, C. (2008), “The political functions of expert knowledge: knowledge and legitimation in
European Union immigration policy”, in Journal of European Public Policy, n. º15, pp. 471-488.

BOXER, C. R. (1977), Relações Raciais no Império Colonial Português 1415-1825, Porto:


Afrontamento.

BURGUIÈRE, A., e GREW, R. (orgs.) (2001), The construction of minorities: Cases for comparison
across time and around the world, Michigan: University of Michigan Press.

CABECINHAS, R. (2002), Racismo e Etnicidade em Portugal: uma análise psicossociológica da


homogeneização das minorias, Dissertação de Doutoramento, Braga: Universidade do Minho.

CABECINHAS, R. (2007), Preto e Branco: A naturalização da discriminação racial, Porto: Campo


das Letras.

CABECINHAS, R. (2008), Racismo e xenofobia: a actualidade de uma velha questão”, in


Comunicación e Cidadania, n.º2, pp. 163-182 (disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.
pt/bitstream/1822/9639/1/Cabecinhas_ComunicationCidadania_2008_vol2.pdf).

CABECINHAS, R., e AMÂNCIO, L. (2004a), “Dominação e exclusão: representações sociais

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (209)
sobre minorias raciais e étnicas”, in Actas do V Congresso Português de Sociologia – Sociedades
Contemporâneas: Reflexividade e acção, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de maio de 2004.

CABECINHAS, R., e AMÂNCIO, L. (2004b), “Estereótipos sociais e assimetria simbólica: três


estudos com jovens angolanos e portugueses”, in Actas do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de
Ciências Sociais, Coimbra, 16-18 de setembro de 2004
(disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/rosacabecinhas.pdf).

CABECINHAS, R., e CUNHA, L. (2003), “Colonialismo, identidade nacional e representações do


«negro», in Estudos do Século XX, n.º3, pp. 157-184.

CABRAL, J. P. (1998), “Racismo ou etnocentrismo?”, in ARAÚJO, H.G., SANTOS, P.M. e SEIXAS, P.


C. (coords.), Nós e os Outros: a exclusão em Portugal e na Europa, Porto: Sociedade Portuguesa
de Antropologia e Etnologia, pp. 19-26.

CÁDIMA, R., e FIGUEIREDO, A. (2003), Representações (Imagens) dos Imigrantes e das Minorias
Étnicas nos Media, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.

CARRILHO, M. J., e FIGUEIREDO, M. C. (2007), “Medidas de discriminação étnica em Portugal:


uma análise exploratória”, in Revista de Estudos Demográficos, n.º41, pp. 53-71.

CASA-NOVA, M. J. (2003), “Ciganos, escola e mercado de trabalho”, in Revista Galego-Portuguesa


de Psicoloxia e Educación, vol.8, n.º10, pp. 252-269.

CASA-NOVA, M. J. (2004a), “Políticas sociais e educativas públicas, direitos humanos e diferença


cultural2, in Actas do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra, 16-18 de
setembro de 2004
(Disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel54/MariaJoseCasaNova.pdf).

CASA-NOVA, M. J. (2004b), “Etnicidade e educação familiar: o caso dos ciganos”, in Actas dos
Ateliers do V Congresso Português de Sociologia – Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e

(210) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Acção. Atelier: Famílias, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de maio de 2004
(Disponível em: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628d0520279d_1).

CASA-NOVA, M. J. (2006), “A relação dos ciganos com a escola pública: contributos para a
compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional”, in Interacções, n.º2, pp.
155-182 (Disponível em: http://nonio.eses.pt/interaccoes/artigos/B7.pdf).

CASTANHEIRA, J. P. (2010), Um Cientista Português no Coração da Alemanha Nazi, Coimbra:


Tenacitas.

CASTELO, C. (1998), O Modo Português de Estar no Mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia


colonial portuguesa (1933-1961), Porto: Afrontamento.

COHEN, W. (1980), Français et africain, Paris: Gallimard.

CORRÊA D’ALMEIDA, A. e SILVA, P. (2003), Impacto da Imigração em Portugal nas Contas do


Estado, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.

CORREIA, A. (2007), «Filhos da estrada e do vento… e da miséria. Porque estas terras são todas
deles». Danos de um relacionamento desigual de longa data, ECT: ISCTE
(disponível em: http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=216&cf=3).

CORREIA, I., BRITO, R., VALA, J., e PEREZ, J. A. (2001), Normes antiracistes et persistance du
racisme flagrant: analyse comparative des attitudes face aux tziganes et face aux noirs au Portugal.
Working Paper 1/01, Lisboa: Centro de Investigação e de Intervenção Social.

CORTESÃO, L., STOER, S., CASA-NOVA, M. J, e TRINDADE, R. (2005), Pontes para Outras Viagens.
Escola e comunidade cigana: Representações recíprocas, Lisboa: ACIME e FCT.

COSTA, A. B., e PIMENTA, M. (coord.) (1991), Minorias Étnicas Pobres em Lisboa, Lisboa: Centro
de Reflexão Cristã.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (211)
CUNHA, I. F., SANTOS, C. A., SILVEIRINHA, M. J., e PEIXINHO, A. T. (2004), Media, Imigração e
Minorias Étnicas, Lisboa: ACIME.

CUNHA, I. F., SANTOS, C. A., VALDIGEM, C., e FILHO, W. S. (2006), Media, Imigração e Minorias
Étnicas II, Lisboa: ACIME/ Observatório da Imigração.

CUNHA, L. (1994), A Imagem do Negro na Banda Desenhada do Estado Novo, Relatório de aula
teórico-prática – Provas de Aptidão Pedagógica, Braga: Universidade do Minho.

D’APPOLLONIA, A. C. (1998), Les racismes ordinaires, Paris: Les Presses de Sciences Po.

DECUGIS, H. (1935), Le destin des races blanches, Paris: Librairie de France.

DIAS, E. C., ALVES, I., VALENTE, N., e AIRES, S. (2006), Comunidades Ciganas. Representações
e dinâmicas de exclusão/integração, Coleção Olhares n.º 6, Lisboa: ACIME
(Disponível em: http://www.ciga-nos.pt/UserFiles/Files/ciganos6.pdf).

DIJK, T. (1993), Elite Discourse and Racism, Londres: Sage Publications.

DUARTE, I., CASTRO, A., AFONSO, J., SOUSA, M., ANTUNES, M. S., e ANTUNES, M. J. L. (2005),
Coexistência Inter-Étnica, Espaços e Representações Sociais: os ciganos vistos pelos outros,
Coleção Olhares, n.º 4, Lisboa: ACIME.

ENTZINGER, H. e BIEZEVELD, R. (2003), Benchmarking in Immigrant Integration, Roterdão:


European Research Centre on Migration and Ethnic Relations.

ESSED, P. (1991), Understanding Everyday Racism. An interdisciplinary theory, Newbury Park,


Londres e Nova Deli: Sage.

ESTEVES, M. C. (Org.) (1991), Portugal, País de Imigração, Lisboa: Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento.

(212) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
FAÍSCA, L., e JESUÍNO, J. C. (2006), Representações Sociais da Comunidade Cigana na Sociedade
Portuguesa, Lisboa: ACIME.

FENTON, S. (1999), Ethnicity: Racism, class and culture, Hong Kong: Rowman e Littlefield

FERIN, I., e SANTOS, C. A. (2008), Media, Imigração e Minorias Étnicas 2005-2006, Lisboa:
ACIDI/ Observatório da Imigração.

FERIN, I., e SANTOS, C. A. (2008a), Resumo do Estudo: Media, Imigração e Minorias Étnicas
2005-2006. Lisboa: ACIDI/ Observatório da Imigração
(Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Estudos_OI/Resumo_Estudo_OI28_.pdf).

FERRÃO, J. (1996), “Três décadas de consolidação do Portugal demográfico moderno”, in


BARRETO, António (org.), A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Lisboa: Instituto de Ciências
Sociais, pp. 165-190.

FERRO, M. (1994), Histoire des colonisations. Des conquêtes aux indépendances – XIIIe-XXe
siècles, Paris: Seuil.

FREDRICKSON, G. M. (2004 [2002]), Racismo. Uma breve história, Porto: Campo das Letras.

GAERTNER, S. L., e DOVIDIO, J. F. (1986), “The aversive form of racism”, in DOVIDIO, J.F. e
GAERTNER, S.L. (orgs.) Prejudice, discrimination, and racism, Orlando: Academic Press, pp.
61-89.

GONÇALVES, A., GARCIA, O., e BARRETO, P. (2006), Tradição e Prospectiva nos Meandros da
Economia Cigana. Circuitos peri-económicos na Grande Lisboa, Coleção Olhares, n.º5, Lisboa:
ACIME.

HENRIQUES, I. C. (2004), Os Pilares da Diferença: Relações Portugal-África, séculos XV-XIX,


Lisboa: Caleidoscópio.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (213)
HUNTINGTON, S. P. (1993), “The clash of civilizations?”, in Foreign Affairs, vol. 3, n.º72, pp.
22-49.

HUNTINGTON, S. P. (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Nova
Iorque: Simon & Schuster.

JERÓNIMO, M. (2010), Livros Brancos, Almas Negras. A «missão civilizadora» do colonialismo


português, c. 1870-1930, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

JERÓNIMO, M., e DOMINGOS, N. (2007), “O «grémio da civilização»: do indígena ao migrante”, in


Le Monde Diplomatique, 7 de março de 2007, n.º1-2.
(Disponível em: http://pt.mondediplo.com/spip.php?auteur204).

KATZ, I., e HASS, R. G. (1988), „Racial ambivalence and American value conflict: Correlational
and priming studies of dual cognitive structures”, in Journal of Personality and Social Psychology,
n.º55, pp.893-905.

LAGES, M., e POLICARPO, V. (2003), Atitudes e Valores perante a Imigração, Lisboa: ACIME/
Observatório da Imigração.

LAGES, M., POLICARPO, V., MARQUES, J. C., MATOS, P. L., e ANTÓNIO, J. (2006) Os Imigrantes e
a População Portuguesa. Imagens recíprocas. Lisboa: ACIME/ Observatório da Imigração.

LEACH, C. W. (2005), “Against the notion of a «New Racism»”, in Journal of Community & Applied
Social Psychology, n.º15, pp. 432-445.

LIÉGEOIS, J-P. (2001), Minorias e Escolarização: o rumo cigano, Lisboa: Centre de Recherches
Tsiganes/Secretariado Entreculturas.

LIMA, M. E. O., e VALA, J. (2004), “As novas formas de expressão do preconceito e do racismo”,
in Estudos de Psicologia, vol. 9, n.º3, pp. 401-411.

(214) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
LOPES, P. (1999), Portugal: Holograma da mobilidade humana, Lisboa: Rei dos Livros.

LOURENÇO, E. (1994), A Europa e Nós ou as Duas Razões, Lisboa: INCM.

LOURENÇO, E. (1999), Portugal como Destino; Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa: Gradiva.

MACHADO, F. L. (1992), “Etnicidade em Portugal. Contrastes e politização”, in Sociologia,


Problemas e Práticas, n.º12, pp. 123-136.

MACHADO, F. L. (2000), “Os novos nomes do racismo: especificação ou inflação conceptual?”, in


Sociologia, Problemas e Práticas, n.º33, pp. 9-44.

MACHADO, F. L. (2001), “Contextos e percepções de racismo no quotidiano”, Sociologia,


Problemas e Práticas, n.º36, pp.53-80.

MACHADO, F. L. (2002), Contrastes e Continuidades. Migração, Etnicidade e Integração dos


Guineenses em Portugal, Oeiras: Celta Editora.

MACHADO, F. L. (2008), “Filhos de imigrantes africanos no mercado de trabalho: acessos, perfis


e trajectos”, in PEIXOTO, J. (org), Revista Migrações – Número Temático Imigração e Mercado de
Trabalho, n.º2, Lisboa: ACIDI, pp.121-158.

MACHADO, F. L., AZEVEDO, J., e MATIAS, A. R. (2009), Bibliografia e Filmografia sobre Imigração
e Minorias Étnicas em Portugal (2000/2008), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

MCCONAHAY, J. B. (1986), “Modern racism, ambivalence, and the modern racism scale”, in
DOVIDIO, J. F. e GAERTNER, S. L. (orgs.), Prejudice, discrimination and racism, Nova Iorque:
Academic Press, pp. 91-125.

MAGANO, O. (2007), “A reprodução das desigualdades sociais dos ciganos em Portugal”, in Actas
da Conferência First International Conference of Young Urban Researchers (Ficyurb), Lisboa, 11-12
de Junho 2007 (Disponível em: http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=166&cf=3)

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (215)
MARQUES, J. F. (2000), “O neo-racismo europeu e as responsabilidades da Antropologia”, in
Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º56, pp.35-60.

MARQUES, J. F. (2004), “Os dois racismos dos portugueses”, in Actas dos Ateliers do V Congresso
Português de Sociologia – Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção. Atelier: Migrações
e Etnicidades, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de Maio de 2004
(Disponível em: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628e42e3f7b8_1.pdf).

MARQUES, J. F. (2007), Do «Não Racismo» Português aos Dois Racismos dos Portugueses,
Lisboa: ACIDI/ Observatório da Imigração.

MACHIELS, T. (2002), Garder la distance ou saisir les chances. Roms et gens du voyage en Europe
occidentale, Bruxelles: Réseau Européen contre le Racisme.

MEMMI, A. (1993), O Racismo, Lisboa: Editorial Caminho.

MENDES, M. M. (1998), Etnicidade cigana, exclusão social e racismos, in Sociologia – Revista da


Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º8, pp. 207-246.

MENDES, M. M. (2005), Nós, os Ciganos e os Outros: Etnicidade e exclusão social, Lisboa: Livros
Horizonte.

MENDES CORRÊA, A. A. (1940a), “Sessão inaugural: Discurso do presidente do Congresso”, in


COMISSÃO EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações:
Vol. 8, Tomo 1.º. Actas, memórias e comunicações do Congresso Nacional de População, Porto:
Imprensa Portuguesa, pp. iv-xxiv.

MENDES CORRÊA, A. A. (1940b), “Factores degenerativos na população portuguesa, in COMISSÃO


EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 8, Tomo
1.º. Actas, memórias e comunicações do Congresso Nacional de População, Porto: Imprensa
Portuguesa, pp. 577-589.

(216) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
MENDES CORRÊA, A. A. (1940c), “O mestiçamento nas Colónias Portuguesas”, in COMISSÃO
EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 14, Tomo
1.º, Secção I. Memórias e comunicações apresentadas ao Congresso Colonial (IX Congresso),
Porto: Imprensa Portuguesa, pp. 113-133.

MILES, R. (1989). Racism, Londres: Routledge.

MONTENEGRO, M. (org.) (1999), Ciganos e Educação, Cadernos Instituto das Comunidades


Educativas, n.º5, Lisboa: Instituto das Comunidades Educativas.

MORGAN, D. L. (1997), Focus Groups as Qualitative Research, Thousand Oaks, Londres e Nova
Deli: Sage.

NOGUEIRA, F. (1985), Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1964-1970), Porto: Livraria Civilização.

NUNES, O. (1981), O Povo Cigano, Porto: Livraria do Apostolado da Imprensa.

OLIVEIRA, C. R. (2005), Empresários de Origem Imigrante: Estratégias de inserção económica em


Portugal, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.

OLIVEIRA, C., ROSÁRIO, E. e SANTOS, T. (2007), Indicadores de Integração de Imigrantes, Lisboa:


ACIME.

PEDERSEN, A., e WALKER, I. (1997), “Prejudice against Australian Aborigines: Old-fashioned and
modern forms”, in The European Journal of Social Psychology, n.º27, pp. 561-587.

PEIXE, B., ROSÁRIO, E., SILVA, E., SOARES, P., KUMAR, R., RALHA, T., e SANTOS, T. (2008), O
Racismo e a Xenofobia em Portugal (2001-2007), Oeiras: Númena
(Disponível em: http://www.amnistia-internacional.pt/dmdocuments/Estudo_Racismo_Portugal.pdf).

PEIXOTO, J. (2007), “Dinâmicas e regimes migratórios: o caso das migrações internacionais em


Portugal”, in Análise Social, vol. XLII, n.º183, pp. 445-469.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (217)
PETTIGREW, T. F., e MEERTENS, R. W. (1995), “Subtle and blatant prejudice in Western Europe”,
European Journal of Social Psychology, n.º25, pp. 57-75.

PINTO, M. F. (2000), A Cigarra e a Formiga: Contributos para a reflexão sobre o entrosamento da


minoria étnica cigana na sociedade portuguesa, Cadernos REAPN, n.º5, Porto: REAPN
(Disponível em: http://www.reapn.org/publicacoes_visualizar.php?ID=23).

PIRES, R. P. (2003), Migrações e Integração. Teoria e aplicações à sociedade portuguesa, Oeiras:


Celta Editora.

RAEDERS, G. (1988), O Conde de Gobineau no Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

RAMOS, R. (2000), “Um novo Brasil de um novo Portugal. A história do Brasil e a ideia de
colonização em Portugal nos séculos XIX e XX”, in Penélope, n.º23, pp.129-152
(Disponível em: http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_23/23_10_RRamos.pdf).

REX, J., e MOORE, R. (1967), Race, Community and Conflict: a study of Sparkbrook, Londres e
Nova Iorque: Oxford University Press.

ROSA, M. J., SEABRA, H., e SANTOS, T. (2004), Contributos dos Imigrantes na Demografia
Portuguesa, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.

ROSÁRIO, E., di SCIULLO, L., ABRANCHES, M., e SANTOS, T. (2008), Medir a Integração: o caso
de Portugal. Indicadores regionais de inserção socioeconómica dos nacionais de países terceiros,
Lisboa: OIM.

SALIM, I. C. (2008), Os Meios de Comunicação Étnicos em Portugal. Dinâmica organizacional dos


media das comunidades imigrantes, Lisboa: ACIDI/Observatório da Imigração.

SALZANO, F. M. (2005), “Raça, racismo e direitos humanos”, Horizontes Antropológicos, n.º 23,
pp.225-227 (Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/a15v1123.pdf)

(218) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
SANTOS, A. M. (1966), Mitificação da Cor. Perspectivas de psicologia social, Lisboa: LIAM.

SANTOS, E. (coord.) (2004), Combate ao Racismo. Sistema jurídico, Lisboa: ACIME.

SANTOS, T., OLIVEIRA, C. R., ROSÁRIO, E., KUMAR, R., e BRIGADEIRO, E. (2009), Research
Survey on Migrants’ Experiences of Racism and Discrimination in Portugal. Oeiras: Númena.

SEARS, D. O., e KINDER, D. R. (1971), “Racial tensions and voting in Los Angeles”, in HIRSCH,
W. Z. (org.), Los Angeles: viability and prospects for metropolitan leadership, Nova Iorque: Praeger,
pp. 51-88.

SILVA, L. F. (2005), Saúde/Doença é uma Questão de Cultura. Atitudes e comportamentos de


saúde materna das mulheres ciganas em Portugal, Coleção Olhares, n.º2, Lisboa: ACIME/FCT
(disponível em: http://www.ciga-nos.pt/UserFiles/Files/ciganos2.pdf).

SILVA, M. C., e SILVA, S. (2002), “Práticas e representações sociais face aos ciganos. O caso
de Vila Verde”, in Sociedade Portuguesa. Passados Recentes, Futuros Próximos. Actas do IV
Congresso Português de Sociologia, Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia.

SOS RACISMO (2001), Ciganos: Números, abordagens e realidades, Lisboa: SOS Racismo.

STEWART, D. W., SHAMDASANI, P. N., e ROOK, D. W. (2006), Focus Groups. Theory and practice,
Londres: Sage.

STOER, S. R., e MAGALHÃES, A. (1998), Orgulhosamente Filhos de Rousseau, Porto: Profedições.

STOER, S. R., e CORTESÃO, L. (1999), Levantando a Pedra. Da pedagogia inter/multicultural às


políticas educativas numa época de transnacionalização, Porto: Afrontamento.

TAJFEL, H. (1983), Grupos humanos e categorias sociais: estudos em psicologia social II, Lisboa:
Livros Horizonte.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (219)
TAMAGNINI, E. (1940), “Os grupos sanguíneos dos portugueses, in COMISSÃO EXECUTIVA
DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 8, Tomo 1.º. Actas,
memórias e comunicações do Congresso Nacional de População, Porto: Imprensa Portuguesa,
pp. 3-27.

TAGUIEFF, P. A. (1997), Le racisme. Un exposé pour comprendre. Un essai pour réfléchir, Paris:
Flammarion.

TORGAL, L. R., e HOMEM, A. C. (1982), “Ideologia salazarista e «cultura popular»: análise da


biblioteca de uma casa do povo”, in Análise Social, vol.18, n.º72-73-74, pp. 1437-1464.

TONG, D. (1998), Contos Populares Ciganos, Lisboa: Editoral Teorema

TORRES, A. (1990), “As colónias: da perda do Brasil à luta contra a escravatura”, in Portugal
contemporâneo, Vol. I, Lisboa: Alfa, pp. 137-150.

TURRA, C. e VENTURI, G, (1995), Racismo cordial: a mais completa análise sobre preconceito de
cor no Brasil, São Paulo: Ática.

VALA, J. (org.) (1999), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora.

VALA, J., BRITO, R., e LOPES, D. (1999a), “O racismo subtil e o racismo flagrante em Portugal”,
in.VALA, J. (org.), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora, pp. 31-59.

VALA, J., BRITO, R., e LOPES, D. (1999b), Expressões dos racismos em Portugal: Perspectivas
psicossociológicas, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.

VALA, J., e LIMA, M. (2002), “Individualismo meritocrático, diferenciação cultural e racismo”, in


Análise Social, n.º 27, pp. 181-207
(disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218731833U2nZL3bs7Ty61AL3.pdf).

VALA, J., LOPES, D., e BRITO, R. (1999), “A construção social da diferença. Racialização e
etnicização das minorias”, in VALA, J. (org.), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras:

(220) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Celta Editora, pp. 145-167.

VALENTE ROSA, M., SANTOS, T. e SEABRA, H. (2004), Contributos dos “imigrantes” na Demografia
Portuguesa: o papel das populações de nacionalidade estrangeira, Lisboa: ACIME/ Observatório
da Imigração.

VASCONCELOS, P. B. (1998), “Racismo e xenofobia: a comunidade cigana em Portugal”, in


Araújo,H. G., Santos, P. M.e Seixas, P.C. (coords.), Nós e os Outros: a exclusão em Portugal e na
Europa, Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, pp. 35-38.

WELLMAN, D. (1993), Portraits of White Racism, Nova Iorque: Cambridge University Press.

WETHERELL, M., e POTTER, J. (1992), Mapping the Language of Racism: Discourse and the
legitimation of exploitation, Nova Iorque: Columbia University Press.

WIEVIORKA, M. (dir.) (1994), Racisme et xénophobie en Europe: une comparaison internationale,


Paris: La Découverte.

WIEVIORKA, M. (2002 [1998]), O Racismo. Uma introdução, Lisboa: Fenda.

WILLIAMS, R. (1983 [1976]), Keywords: a vocabulary of culture and society, Nova Iorque: Oxford
University Press.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (221)
LEGISLAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO OFICIAL

ACIDI (s/d), Imigração - Mitos e Factos, Lisboa: ACIDI


(disponível em: http://www.acidi.gov.pt/docs/Publicacoes/Mitos_e_Factos_2009.pdf).

Additional Protocol to the Convention on cybercrime, concerning the criminalisation of acts of a


racist and xenophobic nature committed through computer systems, 28 janeiro 2003, Estrasburgo:
Conselho da Europa (disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/189.htm).

AGÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA (FRA) (2007). Trends and
Developments 1997-2005 – Combating Ethnic and Racial Discrimination and Promoting Equality
in the European Union, Viena: FRA
(disponível em: http://fra.europa.eu/fraWebsite/attachments/Trends_en.pdf).

APAV (2006), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2005, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/totais_nacionais_2005.pdf).

APAV, (2007), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2006, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/totais_nacionais_2006.pdf).

APAV, (2008), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2007, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/APAV_Totais_Nacionais_2007.pdf).

APAV, (2009), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2008, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/APAV_Totais_Nacionais_2008.pdf).

APAV (2010), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2009, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/estatisticas_apav_2009.pdf).

APAV (2010a), Estatísticas da APAV: Unidade de Apoio à Vítima Imigrante e de Discriminação

(222) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Racial ou Étnica [UAVIDRE], 2005/2009, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV (disponível em:
http://www.apav.pt/portal/pdf/Estatisticas_UAVIDRE_2005-2009.pdf).

APAV (2011), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2010, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/Estatisticas_APAV_2010.pdf)

“Aviso n.º 95/2001”, in Diário da República, n.º 196, Lisboa: Imprensa Nacional, p. 5440.
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2001/08/196A00/54405440.pdf).

“Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01)”, in Jornal Oficial
das Comunidades Europeias, n.º C 364, 18 de dezembro de 2000, Luxemburgo: Serviço das
Publicações da União Europeia, pp. 1-22
(disponível em: http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf).

COMISSÃO PARLAMENTAR DE ÉTICA, SOCIEDADE E CULTURA. SUBCOMISSÃO PARA A


IGUALDADE DE OPORTUNIDADES E FAMÍLIA (s.d.), Relatório das Audições efectuadas sobre
Portugueses Ciganos no âmbito do Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, Lisboa: Assembleia
da República.

COMISSÃO EUROPEIA – DIREÇÃO-GERAL DA JUSTIÇA, DA LIBERDADE E DA SEGURANÇA (s.d.),


Fundamental Rights and Citizenship (FRC) Programme. Projects Co-Funded Under The 2007-1
Call For Proposals
(disponível em: http://ec.europa.eu/justice_home/funding/rights/doc/ag_grants_2007_en.pdf).

COMISSÃO EUROPEIA CONTRA O RACISMO E A INTOLERÂNCIA [ECRI] (2007), Terceiro relatório


sobre Portugal. Estrasburgo: Conselho da Europa. (disponível em:
http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/ecri/Country-by-country/Portugal/PRT-CbC-III-2007-4-PRT.pdf).

COMISSÃO EUROPEIA (2009), Eurobarómetro 71.2. Resultados para Portugal. (disponível em:
http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_317_fact_pt_pt1.pdf)

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (223)
Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976. VII Revisão Constitucional. (2005).
(disponível em: http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.
aspx.)

Constituição Política da República Portuguesa & Acto Colonial, 1945, Edição Oficial: Lisboa.

Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura relativa à
luta contra a discriminação no campo do ensino, 14 dezembro 1960. (disponível em: http://
www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-cdiscriminacao-
ensino.html).

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 21


dezembro 1965 (disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/
tidhuniversais/pd-eliminacao-discrimina-racial.html).

Convenção n.º 97 da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalhadores migrantes


(revista), 1 de julho de 1949 (disponível em:
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/emp-conv-oit-97.html).

Convenção n.º 111 da Organização Internacional do Trabalho sobre a discriminação em matéria de


emprego e profissão, 25 junho de 1958 (disponível em:
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-oit-111.html).

Convention on the Participation of Foreigners in Public Life at Local Level, 5 de fevereiro 1992,
Estrasburgo: Conselho da Europa
(disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/144.htm).

Decreto de Abolição da Escravatura de 1836


(disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/vsb_abolicaoescravatura.html).

Decreto-Lei n.º 3-A/96 de 26 de Janeiro” in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 22, Lisboa: Imprensa
Nacional, p. 142-(2) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1996/01/022A01/00020002.pdf).

(224) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Decreto-Lei n.º 111/2000 de 4 de Julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 152, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 2885-2887
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2000/07/152A00/28852887.pdf).

Decreto-Lei n.º 119/83 de 25 de fevereiro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 46, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 643-656 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1983/02/04600/06430656.pdf).

Decreto-Lei n.º 167/2007 de 3 de maio, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 85, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2950-2954 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2007/05/08500/29502954.pdf).

Decreto-Lei n.º 296-A/95 de 17 de novembro, in.Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 266, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 7084-(2)-(7)
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1995/11/266A01/00020007.pdf).

Decreto-Lei n.º 251/2002 de 22 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 270, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 7328-7331
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2002/11/270A00/73287331.pdf).

Decreto-Lei n.º 330/90 de 23 de outubro.


(disponível em: http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=390&tabela=leis).

Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 221, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 3006-(2)-(64) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1982/09/22101/00020064.pdf).

Decreto-Lei n.º 442/91 de 15 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 263, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5852-5871 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1991/11/263A00/58525871.pdf).

Decreto-Lei n.º 595/74 de 7 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 259, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 1344-1346. (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1974/11/25900/13441346.pdf).

Decreto-Lei n.º 39666 de 20 de maio de 1954, in Boletim Oficial de Angola, 1.ª série, n.º 22,
Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 374-378.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (225)
Despacho do Ministério da Administração Interna n.º 8684/99 (2.ª Série) de 20 de abril, in Diário
da República, 2.ª Série, n.º 102/99, Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 6520-6522. (disponível em:
http://dre.pt/pdfgratis2s/1999/05/2S102A0000S00.pdf).

Diretiva do Conselho Europeu n.º 2000/43/CE de 29 de junho de 2000, in Jornal Oficial das
Comunidades Europeias, n.º L 180, 19 de julho de 2000, Luxemburgo: Serviço das Publicações
da União Europeia, pp. 22-26
(disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32000L0043:PT:HTML).

Diretiva do Conselho n.º 2000/78/CE de 27 de novembro de 2000, in Jornal Oficial das


Comunidades Europeias, n.º L 303, 2 de dezembro de 2000, Luxemburgo: Serviço das Publicações
da União Europeia, pp. 16-22
(disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32000L0078:PT:HTML).

ERC (2009), Imigração, diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural na imprensa e na


televisão: 2008, Lisboa: ERC (disponível em: http://www.erc.pt/documentos/LivroImigracao.pdf).

European Charter for Regional or Minority Languages, 5 novembro 1992, Estrasburgo: Conselho
da Europa. (disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/148.htm).

EUROSTAT (2010), “Foreigners living in the EU are diverse and largely younger than the nationals
of the EU Member States”, in Statistics in Focus, 45/2010 (disponível em:
http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_OFFPUB/KS-SF-10-045/EN/KS-SF-10-045-EN.PDF).

FRECHAUT, M. e ROSÁRIO, E. (2009), Technical report on identifying best practices to combat


discrimination, Relatório desenvolvido no âmbito do Projecto “Living Together: European Citizenship
against Racism and Xenophobia”, Lisboa: ACIDI (disponível em: http://livingtogether.oberaxe.es/
upload/documentos.13.ficfichero.Final%20Report%20Portugal%20-%20Good%20Practices.doc.

GRUPO DE TRABALHO PARA A IGUALDADE E INSERÇÃO DOS CIGANOS (GTIIC) (1998), Relatório
do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, Lisboa: ACIME.

(226) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
GRUPO DE TRABALHO PARA A IGUALDADE E INSERÇÃO DOS CIGANOS (GTIIC) (2000), Relatório
do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, Lisboa: ACIME.

INSPEÇÃO GERAL DE ADMINISTRAÇÃO INTERNA (IGAI) (1998), Controlo Externo da Actividade


Policial, Lisboa: IGAI (disponível em: http://www.igai.pt/publicdocs/Liv_CEAP.pdf).

International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of
Their Families, 18 dezembro 1990.
(disponível em: http://www2.ohchr.org/english/law/cmw.htm).

Lei n.º 1/99 de 13 de janeiro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 10, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 198-201 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/01/010A00/01980201.pdf).

Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 30, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 926-1029 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2009/02/03000/0092601029.pdf).

Lei n.º 15/98 de 26 de março, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 72, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 1328-1335 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/03/072A00/13281335.pdf).

Lei n.º 16/2004 de 11 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 110, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 2962-2971 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2004/05/110A00/29622971.pdf).

Lei n.º 18/2004 de 11 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 110, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2971-2974 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2004/05/110A00/29712974.pdf).

Lei n.º 20/96 de 6 de julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 155, Lisboa: Imprensa Nacional,
p. 1754 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1996/07/155A00/17541754.pdf).

Lei n.º 27/2008 de 30 de junho, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 124, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 4003-4018 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2008/06/12400/0400304018.pdf).

Lei n.º 31-A/98 de 14 de julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 160, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 3384(2)-(13) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/07/160A01/00020013.pdf).

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (227)
Lei n.º 32/2003 de 22 de agosto, in Em Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 193, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5329-5344 (disponível em:: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/193A00/53295344.pdf).

Lei n.º 38/98 de 4 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 178, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 3731-3737 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/08/178A00/37313737.pdf).

Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 146, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 4876-4886 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2009/07/14600/0487604886.pdf).

Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 170, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 6181-6258 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2007/09/17000/0618106258.pdf).

Lei n.º 67/98 de 26 de outubro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 247, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 5536-5546 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/10/247A00/55365546.pdf).

Lei n.º 70/93 de 29 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 229, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5448-5453 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1993/09/229A00/54485453.pdf).

Lei n.º 99/2003 de 27 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 197, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5558-5656 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/197A00/55585656.pdf).

Lei n.º 134/99 de 28 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 201, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 5945-5947 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/08/201A00/59455947.pdf).

Lei n.º 144/99 de 31 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 203, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 6012-6040 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/08/203A00/60126040.pdf).

Lei Orgânica n.º 2/2003 de 22 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 193, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 5306-5310
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/193A00/53065310.pdf).

Lei Orgânica n.º 2/2008 de 14 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 93, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2633-2637
(disponível em: http://www.dre.pt/pdf1sdip/2008/05/09300/0263302637.pdf).

(228) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
OBRA NACIONAL DA PASTORAL DOS CIGANOS (2000), Projecto Dignidade. Relatório, Lisboa:
Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos [Texto policopiado].

Protocol No. 12 to the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms,
4 novembro 2000, Roma: Conselho da Europa
(disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/177.htm).

PROVEDORIA DE JUSTIÇA. (2008), Provedor de Justiça: Relatório à Assembleia da República –


2007. Vol. II, Lisboa: Provedoria da Justiça/Divisão de Documentação
(disponível em: http://www.provedor-jus.pt/restrito/pub_ficheiros/Relatorio2007_vol_II.pdf).

PROVEDORIA DE JUSTIÇA. (2009), Provedor de Justiça: Relatório à Assembleia da República –


2008, Lisboa: Provedoria da Justiça/Divisão de Documentação (disponível em:
http://www.provedor-jus.pt/restrito/pub_ficheiros/Relatorio_Assembleia_2008.pdf).

PROVEDORIA DE JUSTIÇA. (2010), Provedor de Justiça: Relatório à Assembleia da República –


2009, Lisboa: Provedoria da Justiça/Divisão de Documentação
(disponível em: http://www.provedor-jus.pt/restrito/pub_ficheiros/Relatorio_ar_2009.pdf).

Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, in Diário da República, 1.ª Série-B, n.º 50,
Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 1669-1671
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2002/02/050B00/16691671.pdf).

Resolução do Parlamento Europeu sobre a luta contra o racismo e a xenofobia na União


Europeia, de 16 de março de 2000 (disponível em: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.
do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P5-TA-2000-0122+0+DOC+XML+V0//PT).

SEFSTAT. (disponível em: http://sefstat.sef.pt/).

SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (s.d.), Relatório Anual sobre Estatísticas do Asilo e


Migração em Portugal 2007, Oeiras: SEF.

Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (229)
SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (2007), Relatório de Actividades 2007. Imigração,
fronteiras e asilo, Lisboa: SEF (disponível em: http://www.sef.pt/documentos/56/RA%202007_.
pdf#1).

SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (2008), Relatório Estatístico Anual da Rede Europeia


de Migrações sobre Asilo e Migração em 2006: Portugal, Lisboa: SEF.

SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (2010), Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo


2009, Oeiras: SEF (disponível em: http://sefstat.sef.pt/Docs/Rifa_2009.pdf).

Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça (disponível em: http://www.siej.dgpj.mj.pt/


webeis/index.jsp?username=PublicoepgmWindowName=pgmWindow_633918141195530467).

TNS OPINION & SOCIAL (2009), Special Eurobarometer 317. Discrimination in the EU in 2009,
Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia
(disponível em: http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_317_en.pdf).

Tratado de Amesterdão. Versão Consolidada, in Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n.º C
340, 10 de novembro de 1997, Luxemburgo: Serviço de Publicações da União Europeia, pp. 145-
172 (disponível em: http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/dat/11997D/htm/11997D.html).

UNESCO (1973), Le Racisme Devant la Science


(disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0000/000055/005546fo.pdf).

(230) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Ecología y género en diálogo interdisciplinar
ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR

Alicia H. Puleo (ed.)


Este libro ha contado con la ayuda del proyecto La Igualdad de Género en la cultura de la sostenibi-
lidad: Valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario (FEM2010-15599) del Plan Nacional
I+D+I del Ministerio de Ciencia e Innovación y el Ministerio de Economía y Competitividad.

Directores de la colección Moral, Ciencia y Sociedad (MCS) en la Europa del Siglo XXI: Roberto R.
Aramayo, Txetxu Ausín y Concha Roldán.

Primera edición: 2015

© Alicia H. Puleo, 2015


© Plaza y Valdés Editores, 2015

Esta obra se publica bajo una licencia libre Creative Commons Reconocimiento-NoComercial-
CompartirIgual 2.0. Se permite la copia, distribución, reproducción, préstamo y modificación
total o parcial de la misma por cualquier medio, siempre y cuando sea sin ánimo de lucro, se acre-
dite la autoría original y la obra resultante se distribuya bajo los términos de una licencia idéntica
a esta. Para usos comerciales, se requiere la autorización del editor.

Plaza y Valdés, S. L.
Murcia, 2. Colonia de los Ángeles.
28223, Pozuelo de Alarcón.
Madrid (España).
(34) 918126315
madrid@plazayvaldes.com
www.plazayvaldes.es

Plaza y Valdés, S. A. de C. V.
Manuel María Contreras, 73. Colonia San Rafael.
06470, México, D. F. (México).
(52) 5550972070
editorial@plazayvaldes.com
www.plazayvaldes.com.mx

Imagen de portada: Verónica Perales Blanco


Edición: Carlos Javier González Serrano

ISBN: 978-84-16032-43-3
e-ISBN: 978-84-16032-62-4
DOI: 10.5211/9788416032624
D. L.: M-23696-2014
ÍNDICE

Introducción de Alicia H. Puleo ....................................................................... 9

I. CUERPOS

1. Sesgos de género en medio ambiente y salud, Carme Valls-Llobet ............ 21

2. De lo anatómico a lo simbólico: el cuerpo femenino en el diván psicoa-


nalítico, Pilar Errázuriz Vidal ............................................................................ 37

3. Las otras víctimas de la moda, Lucile Desblache ................................... 51

4. Cuerpo e identidad de género en la sociedad de la información, Iván


Sambade Baquerín y Laura Torres San Miguel .......................................... 65

5. Reflexiones de una retratista de gorilas, Verónica Perales Blanco ......... 81

6. La filosofía de Anne Finch Conway: bases metafísicas y éticas para la


sostenibilidad, Concha Roldán ................................................................... 101

7. Los cuerpos colonizados: las religiones contra las mujeres, Margarita


Mª Pintos de Cea-Naharro y Juan José Tamayo Acosta ............................. 125

II. TERRITORIOS

8. Cuatro tesis sobre la asimetría de género en la percepción y en las acti-


tudes ante los problemas ecológicos, Isabel Balza Múgica y Francisco Ga-
rrido Peña ........................................................................................................ 145

9. Cuidado y responsabilidad, Teresa López de la Vieja .................................. 157

10. Una lectura ecofeminista de la novela de anticipación actual, Eva Antón ... 171
8 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

11. Utopías feministas: las dualidades rotas, Ángela Sierra González ............ 187

12. Patagonia argentina, relatos sobre naturaleza y humanidad, Paula Ga-


briela Núñez ...................................................................................................... 205

13. Problemáticas urbano-ambientales: un análisis desde el ecofeminismo,


Micaela Anzoátegui y María Luisa Femenías ................................................... 219

14. Tejer y narrar en la plástica española contemporánea, Mª Teresa Alario


Trigueros ............................................................................................................ 241

III. RESISTENCIAS

15. Aportaciones de las mujeres indígenas al diálogo entre filosofía y eco-


logía, Georgina Aimé Tapia González .............................................................. 263

16. Una mirada ecofeminista sobre las luchas por la sostenibilidad en el


mundo rural, Emma Siliprandi ......................................................................... 279

17. La Ecocrítica, vanguardia de la crítica literaria. Una aproximación a


través de la ecoética de Marguerite Yourcenar, Teo Sanz ............................... 291

18. Ecocrítica y ecofeminismo: diálogo entre la filosofía y la crítica literaria,


Carmen Flys Junquera ....................................................................................... 307

19. Por una genealogía de contra-subjetividades alternativas, Carmen Gar-


cía Colmenares ................................................................................................... 321

20. Más allá del mecanicismo: heroínas ecológicas del imaginario actual,
Angélica Velasco Sesma .................................................................................. 341

21. Del patriarcado como sistema alquímico a la alternativa: el imaginario


del don, Kaarina Kailo ....................................................................................... 359

22. Ecofeminismos materialistas. Política de la vida y política del tiempo


en Mary Mellor, María José Guerra Palmero ................................................... 375

23. El ecofeminismo y sus compañeros de ruta. Cinco claves para una re-
lación positiva con el ecologismo, el ecosocialismo y el decrecimiento, Ali-
cia H. Puleo ...................................................................................................... 387

Sobre autoras y autores ..................................................................................... 407


Introducción

E
cología y Ecologismo designan un campo de saber y un movimiento social
de redefinición de la realidad que cobran impulso a finales del siglo XX y
principios del XXI al constatarse la insostenibilidad del modelo de desarrollo
vigente. Hoy remiten a una temática de vanguardia que está cada vez más presente
en el centro del debate público. La progresiva irrupción de la ecología y el ecolo-
gismo en la conciencia humana requiere transformaciones del modelo social y po-
lítico, económico y cultural. Para hacer frente a los problemas medioambientales y
limitar los daños del cambio climático que se anuncia, no basta con la búsqueda de
nuevas tecnologías. Indudablemente, estas son indispensables para alcanzar una
gestión energética más eficaz, pero la renovación tecnológica ha de ser acompañada
del despliegue de una cultura de la sostenibilidad en sus múltiples dimensiones: fi-
losófica, artística, científica… en las que las humanidades y las ciencias sociales co-
bran un papel esencial.
¿Por qué relacionar ecología y género? Varias son las razones. La igualdad efec-
tiva entre hombres y mujeres, así como la construcción de una cultura de la soste-
nibilidad y de un modelo de desarrollo realmente sostenible ocupan un lugar central
entre los retos pendientes del siglo XXI. Así lo reconocía su inclusión entre los Ob-
jetivos del Milenio. Por otro lado, como ya en 1995 señalaba la Declaración final
de la Conferencia de la Mujer de Pekín, la degradación del medio ambiente y los
desastres «naturales» asociados a ella repercuten negativamente en toda la pobla-
ción pero especialmente en las niñas y mujeres ya que aumentan la cantidad de tra-
bajo no remunerado que realizan, un trabajo imprescindible para la supervivencia
de la comunidad. La crisis ecológica dificulta y multiplica las tareas que recaen
sobre las mujeres, dada la tradicional división sexual del trabajo.
La vinculación de ecología y género no se limita a su inclusión conjunta en torno
a problemas específicos sin resolver en documentos internacionales de la importancia
de los señalados. Tiene motivaciones de orden epistemológico, ético y político que
animaron el inicio del Proyecto de Investigación Fundamental no orientada La igual-
dad de género en la cultura de la sostenibilidad: Valores y buenas prácticas para el
10 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

desarrollo solidario1 que he dirigido y que da origen a este libro. La idea rectora
que lo preside es que los instrumentos conceptuales desarrollados en la Ética eco-
lógica y en los Estudios Feministas, de las Mujeres y de Género pueden potenciarse
mutuamente. Así, hemos buscado combinar la fuerza analítica de las nociones de
ambos campos para realizar un análisis crítico de la desigualdad de género y de las
formas destructivas de relación con la naturaleza que están vinculadas a ella. Du-
rante siglos, la mayor parte de las culturas conocidas han identificado a las mujeres
con la Naturaleza y han establecido un orden jerarquizado por sexos en el que el
colectivo femenino quedaba, salvo raras excepciones, excluido de las instancias de
decisión políticas, económicas y religiosas, así como de los ámbitos de la filosofía,
la ciencia y el arte. Esta marginación, además de ser injusta con la mitad de los seres
humanos, estableció una rígida polarización por la que ciertos papeles, trabajos,
aptitudes y actitudes emocionales fueron considerados masculinos y superiores
mientras que los concebidos como femeninos eran vistos como subsidiarios e infe-
riores. Esta clasificación jerarquizada, en ocasiones explícita, y, en todo caso, siem-
pre presente, se convirtió en hegemónica a pesar de que, sin las devaluadas labores
y atenciones afectivas adscritas a lo femenino, las tareas consagradas como mascu-
linas, y hasta la vida humana misma, habrían sido imposibles.
Independientemente de los intensos debates aún no clausurados que generaron
las tesis de las éticas del cuidado y a pesar de sus graves problemas y deficiencias,
es posible afirmar que abrieron un amplio campo de comprensión con respecto a
ciertas prácticas tradicionalmente femeninas que, en el marco contemporáneo, pue-
den ser vinculadas a la preocupación medioambiental y universalizadas como po-
tencialidades propias de todo ser humano. A partir de esta hipótesis, nuestras
investigaciones se han orientado a cuatro objetivos fundamentales: El primero de
ellos consiste en realizar un análisis crítico de los aspectos sexistas y androcéntricos
del pensamiento y la cultura que sean negativos para las personas e incompatibles
con una ética ecológica a la altura de nuestro tiempo; el segundo, en contrastar los
elementos analizados con producciones culturales alternativas y buenas prácticas
orientadas a la sostenibilidad, en especial con las que provengan de mujeres, bus-
cando visibilizar a estas últimas como sujetos de cambio; el tercero, en integrar la
dimensión intercultural en la búsqueda de soluciones a los retos ecológicos y so-
ciales del presente y del futuro próximo, atendiendo a las visiones del mundo de
los pueblos originarios. La finalidad última de nuestra tarea consistía en avanzar
hacia un marco teórico generador de prácticas orientadas a la igualdad real entre
mujeres y hombres, el desarrollo humano, la educación en valores, la sostenibilidad
ambiental y el respeto a la Naturaleza no humana.

1
FEM2010-15599, concedido por el Ministerio de Ciencia e Innovación en el marco del VI Plan Na-
cional I+D+I.
INTRODUCCIÓN 11

Este libro recoge los últimos trabajos realizados por el equipo del proyecto, así
como otros provenientes de especialistas que colaboraron puntualmente como in-
vitados/as a las reuniones científicas organizadas por el mismo. No expresa, por lo
tanto, un único punto de vista que sería representativo de la totalidad de partici-
pantes, sino que, por el contrario, presenta una diversidad de planteamientos que
corresponden a los debates y a las diferencias de posicionamiento que han tenido
lugar a lo largo de los tres años de trabajo. Se divide en tres grandes partes: Cuerpos,
Territorios y Resistencias. Las dos primeras aluden a los espacios en los que Natu-
raleza y Cultura mantienen complejas relaciones que, desgraciadamente, tienden a
ser de dominio, explotación y saqueo por la conjunción de antiguos paradigmas
dualistas de fuerte signo patriarcal y nuevos modelos de globalización neoliberal
que se han construido sobre ellos. La tercera reúne estudios sobre algunas formas
de resistencia frente a la destrucción de la Naturaleza, un proceso que amenaza las
bases de la vida en la Tierra.
Cuerpos se inicia con el ineludible tema de la incidencia de la contaminación
ambiental en la salud humana. La endocrinóloga Carme Valls-Llobet («Sesgos de
género en medioambiente y salud») ilustra, con datos de estudios médicos recientes,
la peligrosa acción de los disruptores endocrinos en el cuerpo de las mujeres, acción
que va desde la alteración del ciclo menstrual, la prevalencia de la pubertad precoz,
el síndrome de ovario poliquístico y la mastopatía fibroquística hasta el inquietante
aumento del cáncer de mama de los últimos años. Ante este panorama, recuerda la
necesidad tanto de realizar cambios en las políticas sanitarias y medioambientales,
como de introducir una formación docente actualizada, libre de sesgos de género
y atenta a la relación entre medio ambiente y salud.
Con respecto al sesgo androcéntrico de la cultura y su interpretación del cuerpo
femenino, la psicoanalista Pilar Errázuriz («De lo anatómico a lo simbólico: el
cuerpo femenino en el diván psicoanalítico») muestra el salto epistemológico pro-
ducido en la teoría psicoanalítica a partir de Lacan, quien sustituye el concepto de
pene por el de falo (significante referencial del sistema sexo-género), lo cual facilitaría
la comprensión de los procesos psíquicos como parte de un contexto civilizatorio y
cultural en el cual se ha instalado la Ley del Padre. Observa que la teoría lacaniana,
quizás a su pesar, da cuenta de un recorrido de la especie a dos vías —psíquica y po-
lítica— articuladas por la dialéctica naturaleza/cultura.
Cómo vestimos nuestros cuerpos despojando a otros seres vivos de los suyos es
el tema tratado por Lucile Desblache («Las otras víctimas de la moda»). Su estudio
parte de datos empíricos que revelan la importancia acordada por las mujeres a la
moda y subraya la paradoja de que el colectivo de género que se muestra más sen-
sible a la crueldad hacia los animales manifieste tan poca preocupación hacia el ori-
gen siniestro de muchos de los productos de cosmética, ropa y accesorios que le
ofrece el mercado globalizado. Su reflexión se cierra con una llamada a renovar «el
12 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

sistema de la moda» a partir de las nuevas filosofías de la materialidad propias del


siglo XXI de las que destaca el concepto de «materias vibrantes» de Jane Bennett.
Desde los estudios filosóficos sobre el género, Laura Torres San Miguel e Iván
Sambade («Cuerpo e identidad de género en la sociedad de la información») cen-
tran su atención en las nuevas formas de control y disciplinamiento social de hom-
bres y mujeres a través de los medios de comunicación de masas y en las redes
sociales. Examinan cómo los viejos dualismos razón/emoción, cultura/naturaleza
y mente/cuerpo continúan forjando las subjetividades, haciéndolo ahora a través
de la producción de deseos facilitada por las nuevas tecnologías. Consumo de es-
teroides anabolizantes androgénicos y represión de la afectividad en los varones,
refuerzo de los estereotipos de género, nuevas formas de control sobre las mujeres,
o de violencia como el sexting, hipersexualización del cuerpo femenino, aceptación
de su objetualización en fenómenos como el versus y el zing, son algunas de las for-
mas por las que, observan, el imaginario patriarcal se reproduce en la sociedad de
la información.
La relación de la imagen del cuerpo con la concesión de individualidad, así como
el papel del arte como agente empatizante para con los animales no humanos arti-
cula «Reflexiones de una retratista de gorilas». La artista hipermedia Verónica Pe-
rales se acerca al tema del sufrimiento animal desde la perspectiva del proceso
creativo y el desarrollo de la obra Grandes Simios en Femenino, un trabajo realizado
por la autora entre 2009 y 2011. Este proyecto, de marcado carácter ecofeminista,
utiliza el dibujo como herramienta de individuación y hace emerger cuestiones
como la unicidad de los miembros de cada familia y especie, el carácter mecanicista
de la relación que tenemos con los demás animales y el paralelismo entre la invisi-
bilidad de las hembras no humanas y las humanas a lo largo de la Historia.
Con «La filosofía de Anne Finch Conway: bases metafísicas y éticas para la
sostenibilidad», Concha Roldán demuestra el carácter excepcional y la originalidad
de una pensadora de los orígenes de la Modernidad que, superando los prejuicios
excluyentes que impedían a las mujeres acceder al conocimiento, fue capaz de
plantear una solución monista vitalista al problema de la relación mente-cuerpo,
anticipando la mónada leibniziana y la idea de interdependencia y comunicación
de todos los seres, principio que hoy nos resulta tan familiar gracias a la irrupción
de la Ecología en el panorama de las ciencias y el desarrollo de la ética ambiental.
La contextualización en el marco filosófico y biográfico que realiza C. Roldán
permite comprender mejor la compleja ontología de la conectividad con la que la
filósofa intentó explicar el sufrimiento como una forma de perfeccionamiento
espiritual de todas las criaturas.
Esta primera parte del libro se cierra con la aportación de los teólogos Margarita
Pintos y Juan José Tamayo («Los cuerpos colonizados: las religiones contra las
mujeres») que denuncian que el cuerpo, en especial el cuerpo femenino entendido
INTRODUCCIÓN 13

como naturaleza pecaminosa, ha sido y sigue siendo dominado y controlado por


las grandes religiones. Las normas morales que encerraron secularmente a las
mujeres en el hogar, su exclusión del sacerdocio y la oposición fundamentalista al
reconocimiento de los derechos sexuales y reproductivos son muestras del carácter
patriarcal de las religiones. Sin embargo, señalan, en su seno se está produciendo
una auténtica rebelión de las mujeres que da lugar a una teología feminista y
ecofeminista.
La segunda parte de este volumen colectivo reúne bajo el título de Territorios
las reflexiones sobre diferentes espacios generizados reales e imaginarios de la
preocupación y el cuidado por el medio ambiente y la naturaleza. Se abre con un
estudio de título elocuente: «Cuatro tesis sobre la asimetría de género en la
percepción y actitudes ante los problemas ecológicos». En él, Isabel Balza Múgica
y Francisco Garrido Peña exponen los resultados de su investigación sobre las
diferencias existentes entre mujeres y hombres en la detección del deterioro
medioambiental. Consideran que estas diferencias son resultado de la contingencia
histórica y no propiedades ontológicas de los sexos y finalizan su exposición con
observaciones sobre las oportunidades ecofeministas para el impulso del ecologismo
en general y la ecología política en particular.
A partir de normas jurídicas actuales sobre la protección de los animales utili-
zados en la experimentación, Teresa López de la Vieja («Cuidado y responsabili-
dad») examina ciertos matices relevantes a la hora de referirse al cuidado del
mundo natural. Propone distinguir entre cuidado y responsabilidad, teniendo en
cuenta la escala de aplicación del cuidado y la diferencia entre buenas prácticas y
políticas públicas. Llevar el principio del cuidado, inspirado en el ámbito domés-
tico y en la experiencia de la maternidad, al ámbito público, requeriría transitar
de lo concreto y particular a lo general, de las motivaciones a los derechos y las
obligaciones. Por eso, sostiene, convendría hablar más de «responsabilidad com-
partida» que de «cuidado».
La construcción de un territorio y un tiempo futuro en la literatura es objeto de
análisis de dos autoras: Eva Antón y Ángela Sierra. La primera («Una lectura eco-
feminista de la novela de anticipación actual») parte de las claves conceptuales de
la teoría ecofeminista de mi libro Ecofeminismo para otro mundo posible (2011)
para realizar un análisis comparativo de cuatro novelas distópicas recientes de dos
escritores (Michel Houellebecq y Emilio Bueso) y dos escritoras (Rosa Montero y
Elia Barceló). El resultado es una sugestiva exploración de coincidencias y diferen-
cias apreciables entre los mundos futuros que unos y otras conciben. La segunda
reflexiona sobre el género literario de la utopía y, en particular, de las utopías femi-
nistas elaboradas por Úrsula K. Le Guin y Marge Piercy en el último tercio del siglo
XX. Observa que estas utopías feministas son práctica política en cuanto ofrecen
una crítica de la sociedad y de su relación con el medio natural, creando nuevos
14 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

paradigmas de relaciones sociales que superan los dualismos opresivos implicados


en las clasificaciones de género y en la instrumentalización de la naturaleza.
La relación entre los espacios urbanos y los de naturaleza «salvaje» se encuentra
marcada por el signo generizado del dominio, la denegación y la ocupación. Así lo
muestran el estudio de Paula Núñez («Patagonia argentina, relatos sobre naturaleza
y humanidad») y el de María Luisa Femenías y Micaela Anzoátegui («Problemáticas
urbano-ambientales: un análisis desde el ecofeminismo»). Desde el pensamiento
decolonial, el primero muestra que la población rural misma ha sido asimilada a
una naturaleza que supuestamente debe ser dominada para poder convertirse en
útil. Examina el procedimiento metafórico feminizante propio de los discursos del
dominio sobre el territorio y sus habitantes y finaliza con un esperanzador apunte
sobre el incipiente empoderamiento de las mujeres rurales a través de proyectos de
desarrollo alternativos orientados a la sostenibilidad y hacia un comercio más justo
y potenciador de la autonomía. El segundo parte del caso concreto de las trágicas
inundaciones sufridas en la ciudad de La Plata (Argentina) en el año 2013 (uno más
de los fenómenos meteorológicos extremos propios del cambio climático) para ini-
ciar una reflexión sobre los supuestos modernos que subyacen al desarrollo de las
grandes urbes y sus nefastas consecuencias. Aplicando conceptos de la filosofía eco-
feminista, observan que la ciudad, concebida como Cultura, Desarrollo y Razón,
«devora» los espacios naturales porque no se considera que estos posean valor in-
herente, ni siquiera se recuerda que prestan servicios ambientales y que tienen gran
incidencia en la salud de la población urbana; son concebidos solo como «materia
prima» y «espacio «vacío» útil para la especulación inmobiliaria, la producción in-
dustrial, el devastador monocultivo de soja, la destructora megaminería a cielo
abierto, el venenoso fracking, o el vertedero contaminante.
En ese territorio largo tiempo vedado a las mujeres que es el Arte, se adentra
María Teresa Alario («Tejer y narrar en la plástica española contemporánea») para
descubrir las formas en que las creadoras actuales se valen de una antigua labor fe-
menina —el tejido— para comunicar ideas, construir un mundo orgánico, denun-
ciar la destrucción medioambiental o la violencia de género. Esta reivindicación del
tejido no ha sido muy frecuente entre las artistas del Estado español de los setenta,
quizás, apunta Alario, debido a la proximidad de la etapa franquista con su énfasis
en «las labores femeninas» como rasgo adscriptivo de género. Consciente de la ne-
cesidad de colmar cierta ausencia de trabajos críticos sobre el tema, examina las
«xarpelleres» de Magda Bolumar, los «lienzos cruzados» de Teresa Lanceta y los
gobelinos y las instalaciones de Andrea Milde. El laberinto univiario de esta última,
con su tejido creciente que busca generar la conciencia colectiva sobre las relaciones
entre la subjetividad y la naturaleza, nos lleva a la tercera parte de este libro.
Con Resistencias se cierra nuestro recorrido. Esta última parte reúne reflexiones
sobre algunas de las formas en que la teoría, el imaginario y la praxis alientan y es-
INTRODUCCIÓN 15

bozan alternativas al modelo de dominio y explotación patriarcales. Con «Aporta-


ciones de las mujeres indígenas al diálogo entre filosofía y ecología» inicia esta an-
dadura Georgina Aimé Tapia quien busca demostrar la gran importancia que tiene
para los estudios de género y la ética ecológica conocer la experiencia actual de las
indígenas que protagonizan movimientos en defensa del territorio y de los derechos
de las mujeres. Sostiene que algunas mujeres pobres, inspiradas en la cosmovisión
de las culturas indígenas, pueden ser consideradas ecofeministas ya que reclaman
igualdad, reciprocidad y respeto en las relaciones entre los sexos y entre los huma-
nos y las formas de vida no humana. Ilustra la aparición de estas reivindicaciones a
través de la historia de vida de una sanadora nahua, feminista y zapatista.
Agroecología y Soberanía Alimentaria son hoy nombres clave del paradigma de
sostenibilidad y justicia. Emma Siliprandi («Una mirada ecofeminista sobre las lu-
chas por la sostenibilidad en el mundo rural») aborda las relaciones teóricas y po-
líticas existentes entre los movimientos agroecológicos y feministas. Desde una
perspectiva ecofeminista y a partir del caso de Brasil, muestra que la participación
de esas mujeres en las experiencias agroecológicas les ayudó a salir del lugar político
tradicionalmente designado para las mujeres rurales, al mismo tiempo que les per-
mitió avanzar en luchas colectivas que han desembocado en la demanda de sobe-
ranía alimentaria. Su estudio finaliza mostrando a los movimientos de mujeres
rurales como artífices de un diálogo enriquecedor aunque no exento de tensiones
entre Agroecología, Vía Campesina y Feminismo.
Como ya hemos visto con respecto a las novelas que presentan utopías feministas,
la Literatura no es ajena a la preocupación ecológica. La crítica literaria ha detectado
y seguido este interés desarrollando en los últimos años una perspectiva ecológica
específica actualmente en auge que ha recibido el nombre de «ecocrítica». Dos es-
tudios le están dedicados en este libro. Con «La Ecocrítica, vanguardia de la crítica
literaria. Una aproximación a través de la ecoética de Marguerite Yourcenar», Teo
Sanz realiza una introducción a la Ecocrítica, nuevo enfoque de la crítica literaria,
resumiendo las ideas principales de esta aproximación a los textos y ofreciendo un
ejemplo clarificador a partir de su análisis de la obra de Marguerite Yourcenar. Sos-
tiene que, en gran parte de sus creaciones, encontramos un compromiso de la autora
con respecto a la Naturaleza y a los seres vivos, animales humanos y no humanos
que la habitan. En ese sentido, defiende que, dados los importantes elementos de
ecoética presentes en su obra, Yourcenar merecería un reconocimiento mayor dentro
de la Ecocrítica como pionera en la defensa del planeta a través tanto de su escritura
ficcional como factual. Tras un panorama del surgimiento y de las bases de la Eco-
crítica, Carmen Flys («Ecocrítica y ecofeminismo: diálogo entre la filosofía y la crítica
literaria») aplica conceptos del ecofeminismo de Karen Warren y Val Plumwood a
diferentes ejemplos literarios (de Ann Pancake, Octavia Butler, Aurora Levins Mo-
rales, Linda Hogan, Ursula Le Guin, entre otros). De esta manera, muestra que
16 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

puede existir un diálogo fructífero entre la filosofía ecofeminista y la ecocrítica y que


tanto estos textos literarios como la crítica que los comenta contribuyen a una mejor
comprensión y divulgación del ecofeminismo y sus valores.
En «Por una genealogía de contra-subjetividades alternativas», Carmen García
Colmenares también analiza ejemplos literarios pero lo hace con el objeto de refle-
xionar sobre el poder que tienen las figuras de la monstruosidad ficcional para ge-
nerar planteamientos feministas disruptores y vindicativos. Liberarse de los modelos
identitarios femeninos pasivos, asimétricos y subordinados y del confinamiento en
el espacio doméstico ha supuesto, a menudo, para las mujeres cierta expulsión de
lo humano. Figuras míticas como Lilith y Melusina expresarían ese destino trágico.
Sin embargo, afirma, esas figuras monstruosas pueden convertirse en contra-sub-
jetividades alternativas que inspiren la construcción de identidades emergentes del
siglo XXI desde los filtros rojos del compromiso político, los verdes del ecologismo
y los ultravioletas del feminismo.
La importancia del imaginario dominante en la organización social y económica
y la posibilidad de transformación a través de paradigmas culturales diferentes es
el eje de dos estudios de esta tercera parte. El primero, de Angélica Velasco Sesma
(«Más allá del mecanicismo: heroínas ecológicas del imaginario actual»), se interesa
por la emergencia, en la cultura de masas de las dos últimas décadas, de personajes
femeninos que encarnan valores ecológicos y visiones holísticas de los pueblos ori-
ginarios. Estas nuevas heroínas luchan por defender la Naturaleza frente al «mal
desarrollo» del paradigma mecanicista de la Modernidad y la búsqueda insaciable
de ganancias. A través del análisis de tres largometrajes de gran difusión —Ferngully
(1992), Pocahontas (1995) y Avatar (2009)—, A. Velasco se pregunta por las po-
tencialidades emancipatorias de estas narrativas pero también sobre sus límites. En
el segundo («Del patriarcado como sistema alquímico al imaginario del don»), Kaa-
rina Kailo parte de una caracterización del imaginario dominante, buscando sus raíces
psico-sociopolíticas, económicas y sexuales y poniéndolas en relación con la célebre
idea de Schumpeter de la «creación por la destrucción». Transformar una civiliza-
ción mundializada que destruye su base material y condena a la humanidad, así, a
un trágico final, requiere, para K. Kailo, comprender las bases patriarcales del ca-
pitalismo y refutar su naturalización. Frente al imaginario autodestructivo del do-
minio, apela a la cosmovisión de los pueblos finoúgricos antiguos de su Finlandia
natal, similar a los de otras culturas indígenas tradicionales, que veían a los huma-
nos, los animales y el mundo natural en un continuo interdependiente y practicaban
una economía del don propia, a su juicio, de una era matriarcal que posteriormente
habría sido olvidada.
Volvemos a encontrar, desde otras claves, la crítica al mito del homo economicus
en la exposición de la teoría ecofeminista de la británica Mary Mellor realizada por
María José Guerra Palmero («Ecofeminismos materialistas. Política de la vida y po-
INTRODUCCIÓN 17

lítica del tiempo en Mary Mellor»). Mellor ha mostrado la inadecuación de este


mito (neo)liberal con respecto a una caracterización antropológica que asuma la
existencia biológica/ecológica de los seres humanos. La filosofía ecofeminista de la
inmanencia, que pone el énfasis en la corporalidad, permite entender la incómoda
situación de las mujeres que han de asumir, en la cotidianeidad, los costes de una
definición inadecuada de lo humano que ignora el trabajo de reproducción de la
vida. Tanto los trabajos del cuidado como los servicios de la naturaleza son consi-
derados meras externalidades por la economía capitalista global.
Ya en el final de este libro, mi propia aportación («El ecofeminismo y sus com-
pañeros de ruta. Cinco claves para una relación positiva con el Ecologismo, el Eco-
socialismo y el Decrecimiento») busca mejorar el entendimiento y la colaboración
con los movimientos nombrados en su título, destacando las contribuciones de la
teoría feminista y de las mujeres y preservando sus legítimos intereses, tan a menudo
ignorados. Tras un breve recordatorio histórico de las experiencias frustrantes del
feminismo en su relación con otros movimientos emancipatorios, examino las coin-
cidencias del ecofeminismo con diversas formas del ecologismo y diferencio cinco
zonas opacas de los nuevos paradigmas ecológicos que el (eco)feminismo habrá de
saber detectar si no queremos volver a sufrir antiguas decepciones: mujeres invisi-
bles, emancipación en diferido, Ilustración olvidada, multiculturalismo beato y viejo
hombre nuevo.
Quiero cerrar este prólogo expresando mi agradecimiento a todas las personas
que, como miembros del equipo del proyecto o como especialistas invitadas, han
aportado su tiempo y su saber a esta empresa colectiva interdisciplinar. Espero que
las distintas investigaciones aquí reunidas inspiren y ayuden a desarrollar más estu-
dios integradores de las perspectivas feminista y ecológica y sugieran prácticas y
políticas que no instrumentalicen ni marginen a las mujeres debido a intereses par-
ticulares o en nombre de la ecología y del bien común. Las mujeres han de ser re-
conocidas como nuevos sujetos emergentes que reclaman el cumplimiento efectivo
de las llamadas tres generaciones de derechos humanos y que aportan formas de
pensamiento y de praxis innovadoras y valiosas para una cultura de la sostenibilidad
y la igualdad.

ALICIA H. PULEO
I. CUERPOS
1. Sesgos de género en medio ambiente y salud
Carme VALLS-LLOBET
Programa de Mujeres, Salud y Calidad de Vida de Barcelona

L
a relación del medio ambiente con la salud de los seres humanos que pobla-
mos el planeta Tierra es un ejemplo concreto de la interdisciplinariedad que
debería impregnar la Ecología cuando analiza los problemas en relación a
las Ciencias de la Salud. El medio ambiente puede afectar a la salud a través de la
toxicidad de determinadas sustancias químicas o minerales que se introducen en el
cuerpo a través de la piel, del agua y de los alimentos, o de partículas en suspensión
en el aire que se introducen a través de la respiración. También las radiaciones ioni-
zantes (Rayos X, radiactividad), o no ionizantes (electromagnetismo, telefonía móvil,
antenas) afectan al cuerpo humano por el efecto directo en los tejidos.
Se calcula que, actualmente, el desarrollo industrial ha introducido en la vida
cotidiana de la población unas 80 000 sustancias químicas, de las que entre 4 000
y 8 000 están bajo sospecha de toxicidad, y se conjetura que hasta un 45 % de los
alimentos que consumimos contienen residuos tóxicos, en especial, pesticidas. Y
lo que es más alarmante, no se conoce la toxicidad del 85 % de los 3 000 productos
químicos que utilizamos en mayor cantidad.
La constatación de que algo extraño estaba pasando con los seres humanos se
empezó a conocer gracias al libro de Rachel Carson La primavera silenciosa (1962).
La divulgadora y conservacionista norteamericana padeció cáncer de mama y murió
después de enfrentarse a él y denunciar el papel de los productos químicos en la
presencia de esta enfermedad. Señaló que la suya era la primera generación de seres
humanos nacida en un medio ambiente repleto de contaminantes químicos desde
la cuna: «Por primera vez en la historia del mundo, todo ser humano está ahora su-
jeto al contacto con peligrosos productos químicos desde su nacimiento hasta su
muerte» (Carson, 2005: 15)
Durante la década de 1970 se empezó a constatar la creciente feminización de
peces y cocodrilos en el agua de los grandes lagos contaminados por vertidos tóxi-
cos. No se desarrollaban los caracteres del macho y se producía atrofia del pene y
22 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

disminución de la fertilidad. En las rías y en la desembocadura de ríos contaminados


también se encontraron moluscos macho con atrofia de sus genitales.
En Seveso (Italia), explotó en 1976 una fábrica de herbicidas y lanzó al aire una
gran cantidad de un subproducto denominado dioxinas, estableciéndose por pri-
mera vez desde entonces, de una forma clara, la relación de estos contaminantes
con la salud de la población. El efecto a corto plazo fue la presencia de cloracné en
gran número de personas de los pueblos de alrededor de la fábrica; sin embargo,
la mayor sorpresa la deparó el efecto a largo plazo: el año siguiente a la explosión
no nacieron niños en Seveso, sino solo niñas. La alteración endocrina y genotóxica
fue tan clara que, aunque nunca antes se había comprobado esta relación, pudo es-
tablecerse con toda evidencia. Que solo nazcan niñas, o que nazcan más niñas que
niños, es una distorsión de la naturaleza tan perniciosa para la salud y la convivencia
humana como el hecho de que falten 100 millones de niñas en China y el sur de
Asia por el feminicidio que supone abortar a niñas durante el embarazo, algo que
hoy se facilita al conocer el sexo mediante la ecografía. Dos agresiones, una al medio
ambiente y otra de discriminación de las mujeres, que distorsionan el natural cre-
cimiento de niñas y niños.

LA RELACIÓN DEL MEDIO AMBIENTE CON LA SALUD HUMANA

Los efectos de algunos agentes químicos en la salud —como los pesticidas, disol-
ventes, gases anestésicos, derivados de los ftalatos, dioxinas, bifenilos policlorados
y productos derivados de la combustión de la gasolina— se han ido conociendo a
través de los múltiples trabajos de investigación que se han publicado en los últimos
treinta años. La salud ambiental es una ciencia muy reciente todavía y que tiene
grandes dificultades —supone investigaciones costosas— para demostrar las rela-
ciones del medio ambiente con la salud por la complejidad de las puertas de entrada
en el cuerpo humano de las sustancias tóxicas y por la diversidad de productos y
radiaciones que pueden afectar a la salud. Asimismo, hay que tener en cuenta que
cada tóxico ambiental puede tener efectos sinérgicos con otros, potenciándose mu-
tuamente cuando actúan en conjunto sobre los seres humanos.
Los efectos sobre la salud humana se producen en varios momentos del desa-
rrollo y con distinta intensidad y duración según el sexo. Ante una misma exposi-
ción tóxica, mujeres y hombres pueden padecer efectos diferentes, siendo la edad
además un factor de riesgo. Efectos como la afectación a la carga genética de óvulos
y espermatozoides, para empezar. Desde el momento de la concepción y durante el
desarrollo fetal, el medio ambiente en que están inmersos los padres y madres puede
influir en el sexo del embrión, en el peso y desarrollo cerebral de la criatura, y puede
llegar a tener incluso efectos teratógenos, causando malformaciones congénitas.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 23

Muchos de los productos tóxicos químicos actúan como disruptores endocrinos


que alteran la cantidad de hormonas circulantes y sus ritmos de producción. En las
mujeres, alteran la armonía del ciclo menstrual y producen modificaciones en su
salud reproductiva. Las alteraciones hormonales pueden producirse en todas las
glándulas endocrinas, aunque las más graves para la salud son las que se producen
en la zona hipotalámica del cerebro, con hipersecreción de la hormona de creci-
miento y tumores hipofisarios. Por otro lado, hay que señalar que, según la Human
Fertilisation & Embryology Authority (HFEA), los hombres presentan actualmente
más problemas de fertilidad que las mujeres y se estima que el problema de la es-
terilidad humana está aumentando, por lo que uno de cada cuatro nacimientos se
produce hoy por inseminación artificial. De seguir la misma tendencia, si no toma-
mos medidas de prevención en la contaminación, esto podría suponer que en 50
años los hombres fuesen incapaces de reproducirse de forma natural.
A corto y a largo plazo, las sustancias tóxicas están produciendo efectos carci-
nogénicos. La creciente sensación que tiene parte de la población, por su experien-
cia personal y familiar, de que hay más casos de cáncer, viene avalada por la mayor
incidencia de cáncer infantil y de cáncer en la vida adulta. Está claramente estable-
cido que el cáncer de mama se incrementa en las sociedades industrializadas desde
1945. Muchos pesticidas tienen un efecto tóxico para el sistema nervioso central y
periférico, y este efecto neurotóxico puede causarlo también el exceso de plomo y
mercurio. El potente efecto distorsionador del equilibrio endocrino afecta asimismo
al sistema inmunitario de los seres humanos, y estas alteraciones de la inmunidad
favorecen una mayor presencia de enfermedades autoinmunes, que están incremen-
tándose en la sociedad industrializada. Nuevas enfermedades emergentes se han
relacionado, asimismo, con la exposición laboral y ambiental, como la sensibilidad
química múltiple, la fatiga crónica y la fibromialgia.
La vulnerabilidad de los seres humanos ante los contaminantes depende de la
edad y del sexo. De la edad, porque el sistema nervioso central es más vulnerable
durante su formación, en el desarrollo embrionario del feto y durante la primera
infancia, y también durante la decadencia del sistema nervioso en las personas ma-
yores a partir de los 65 años. La influencia del sexo se debe al mayor porcentaje de
materia grasa en el cuerpo de las mujeres —un 15 % más que en los hombres—, lo
que las convierte en bioacumuladores químicos de las sustancias liposolubles; pero,
además, los productos que afectan al sistema nervioso central tienen facilitada su
entrada por hormonas y neurotransmisores del propio cuerpo, entre ellos los es-
trógenos, por lo que el cerebro de las mujeres se ve más afectado que el de los hom-
bres aunque estén expuestas a la misma cantidad de sustancias químicas. Además,
la carencia de reservas de hierro, de predominio femenino por la menstruación en
edad reproductiva, hace más vulnerable el cerebro de las mujeres a minerales y quí-
micos ambientales. Existen también diferencias en las condiciones de trabajo y en
24 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

la división de tareas, que hacen que las mujeres estén más expuestas que los hom-
bres a agentes químicos potencialmente tóxicos, porque realizan más tareas de lim-
pieza o de proximidad con exposición a pesticidas, como en el caso de la jardinería.

LA SALUD DE LAS MUJERES HA PADECIDO SESGOS DE GÉNERO

La salud diferenciada de las mujeres ha sido invisible en muchos aspectos para


la medicina hasta hace pocos años (Valls-Llobet, 2006). El principal sesgo de gé-
nero ha sido que no habían sido tenidas en cuenta en los trabajos de investigación
que se han hecho fundamentalmente solo con cohortes masculinas. Pero uno de
los aspectos que hasta la actualidad ha permanecido y permanece más oculto ha
sido la relación de causalidad entre los problemas de salud de las mujeres y los
diversos contaminantes ambientales. A título de ejemplo voy a referirme a aspec-
tos de la salud ginecológica de las mujeres de los que actualmente tenemos evi-
dencias científicas.
Una de las primeras diferencias biológicas entre mujeres y hombres aparece a
partir de la pubertad con la menstruación, un fenómeno hormonal cíclico que se
presenta aproximadamente cada 28 días, siguiendo un ciclo lunar, y que puede
verse afectado por los niveles hormonales ambientales y por las radiaciones ioni-
zantes y no ionizantes.
La presencia en el medio ambiente de sustancias químicas que actúan como dis-
ruptores endocrinos puede influir directamente en la armonía del ciclo menstrual.
Una prueba es que, en las sociedades industrializadas, no solo ha aumentado la in-
cidencia de cáncer de mama, sino también los desequilibrios del ciclo menstrual,
con alteraciones tanto de la longitud del ciclo, que puede durar unos siete días más
o menos, como de la cantidad de sangre perdida en cada menstruación. De hecho,
los trastornos de la menstruación pueden ser un indicador de los desequilibrios
hormonales del medio ambiente. La exposición laboral a sustancias químicas, ondas
electromagnéticas, radiaciones ionizantes, exceso de ruido, calor o frío, o a insecti-
cidas organoclorados u organofosforados, puede originar alteraciones del ciclo in-
cluso años después de la contaminación.
Además de producir estas alteraciones, los disruptores hormonales pueden in-
terferir en la fertilidad, dificultando quedarse embarazada o, incluso, poniendo en
riesgo la viabilidad del feto. Existen muchos abortos prematuros antes de los tres
meses de embarazo debido a una afectación ambiental o por las condiciones de
vida y trabajo. También es frecuente que los disruptores endocrinos afecten a la
función de otras glándulas endocrinas y a la armonía de las funciones hipotalámica
e hipofisaria. Una de las glándulas más vulnerable es la tiroidea, que puede ver al-
terada su producción hormonal o los mecanismos de su transporte.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 25

Una excelente revisión publicada en 2006 por Reini R.W. Breetveld y colabora-
dores —del Departamento de Epidemiología y Bioestadística de la Radboud Uni-
versity Nijmegen Medical Centre en Holanda—, demuestra el efecto de la
exposición a pesticidas en las alteraciones del sistema reproductivo de las mujeres
(Bretveld, Thomas, Scheepers, Zielhuis, Roeleveld, 2006). Este mismo grupo de in-
vestigación señala los altos niveles de pesticidas hallados en empleadas que trabajan
en jardinerías y que, al tocar las plantas o plantarlas, acaban inhalando o captando
a través de la piel su contenido en pesticidas (Bretveld, Zielhuis, Roeleveld, 2006).
En España, el investigador Nicolás Olea (Botella, Crespo, Rivas, Cerrillo, Olea-Se-
rrano, Olea, 2004) coordinó un estudió en 2003 en el que se midieron los niveles
de pesticidas en la sangre y tejido adiposo de 200 mujeres de Andalucía, y en ellas
encontró niveles elevados de metabolitos de DDT (DDE) y aldrín, dieldrín, endrín,
lindano, metoxicloro y endosulfán.
La disrupción puede presentarse en todas las fases de la regulación hormonal:
en la síntesis, cuando las hormonas se forman en el interior de las células; en la li-
beración de las hormonas desde las células a la sangre; en el almacenamiento de di-
chas hormonas en el interior de las glándulas endocrinas; en el transporte de las
hormonas cuando circulan en la sangre unidas a unas proteínas; en el reconoci-
miento de la hormona y su receptor celular que es el modo como realiza su función
en las células del cuerpo; y también pueden interferir en la activación hormonal ce-
lular después de que se haya activado el receptor.
Los efectos en la salud de las mujeres que se han podido evaluar, en relación a
productos que están en el medio ambiente, han sido el incremento de los siguientes
trastornos o enfermedades:

- Pubertad precoz.
- Metrorragias y alteración del ciclo menstrual con déficit de fase luteínica.
- Síndrome de ovario poliquístico, entre el 4 y el 8 % de la población femenina.
- Endometriosis, entre el 5 y el 8 % de la población femenina, y con una inci-
dencia que no cesa de aumentar.
- Fibromas uterinos.
- Trastornos de implantación del feto: abortos, placenta previa, madurez de la
placenta.
- Mama fibroquística por exposición en la vida adulta y también por exposición
fetal.

Hay además un problema que se está generalizando en la población de los países


industrializados y que tiene relación con la exposición ambiental generalizada a dis-
ruptores endocrinos: la edad de la pubertad en que se inician los cambios sexuales
en niñas y niños se está adelantando.
26 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

PUBERTAD PRECOZ

El inicio de la pubertad se caracteriza por la aparición del botón mamario en las


niñas, y por la aparición de vello en el pubis y en las axilas en ambos sexos. Estas
manifestaciones están relacionadas con la presencia de emisiones pulsátiles de hor-
monas desde los ovarios (estradiol) o los testículos (testosterona). Después de la
aparición de estos cambios, al cabo de dos o tres años, se presenta la menstruación
en las mujeres (que se denomina menarquia en Medicina) y en el varón el desarrollo
de los genitales externos y el crecimiento del pene.
Desde hace unas décadas, la edad media de la menarquia ha sido de 13 años,
aunque hace 200 años se presentaba alrededor de los 17 años de media, y este
avance no puede explicarse por razones genéticas ni por la mayor obesidad (Aks-
glaede, Olse, Sorensen, Juul, 2008), sino por razones ambientales. La investigadora
Lise Aksglaede —coordinadora de estos estudios realizados en Dinamarca— ha
demostrado que la edad de inicio del desarrollo del botón mamario —el principio
de la pubertad— ha disminuido un año en los últimos quince años. Si en 1991 las
niñas empezaban la pubertad de media casi hacia los once años (10,88 años), en
2006 la media era antes de los diez años (9,86 años). Los autores de los estudios se-
ñalaban su sorpresa ante tal adelanto de la pubertad en tan poco tiempo (Aksglaede,
Sorensen, Petersen, Skakkebaek, Juul, 2009). En España, los especialistas en en-
docrinología y pediatría han advertido también la presencia de una pubertad precoz
en niñas de 8 y 9 años, y en algunas zonas se ha advertido la presencia de botón
mamario hacia los 7 años.
Se ha valorado si este adelanto de la pubertad podía relacionarse con el peso
(por aumento de la obesidad en las niñas), pero no se observó ninguna relación.
También se ha investigado si existían incrementos de estrógenos circulantes, sin re-
sultado positivo. Por ello, este adelanto de la pubertad se ha relacionado con la pre-
sencia de contaminantes químicos en el medio ambiente que producen disrupción
endocrina en el cuerpo de niñas y niños (Mouritsen, Aksglaede, Sorensen, Mogen-
sen, Leffers, Main, Frederiksen, Andersson, Skakkebaek, Juul, 2010). La pubertad
precoz femenina se ha asociado a la exposición a bisfenoles policlorados, dioxinas,
éteres polibromados, DDT/DDE, plaguicidas, metales pesados, alquilfenoles, bisfe-
nol A, parabenes, ftalatos y fitoestrógenos (Kortenkamp; Martin, Faust, Evans, Mc-
Kinlay, Orton, Rosivatz, 2012).
El adelanto de la menarquia es, además, un factor de riesgo bien establecido
para el cáncer de mama, ya que las mamas de una mujer estarán durante más años
bañadas por altos niveles de estrógenos. El adelanto puberal también se ha relacio-
nado con un incremento de obesidad, síndrome metabólico y diabetes en la vida
adulta, en especial en las niñas y niños que nacieron prematuros o con un peso al
nacer inferior a 2,5 kg.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 27

METRORRAGIAS Y CICLOS MENSTRUALES CORTOS

El ciclo de una menstruación dura de 26 a 32 días, coincidiendo aproximadamente


con el ciclo lunar, que es de 28 días, con un día de fuerte pérdida y dos o tres días
con pérdidas menores. La pérdida máxima debería ser de unos 100 cc. (o ml.), o lo
que es lo mismo, la cantidad que cabe en una copa de vino, aunque es difícil apre-
ciar la pérdida de forma objetiva porque muchas mujeres comparan la intensidad
mayor o menor de su menstruación con las pérdidas de su madre, hermanas o ami-
gas. La menstruación no debe producir dolor o, en todo caso, una ligera molestia.
No debe ser precedida de síntomas corporales ni de alteraciones en el estado de
ánimo. La menstruación es un hecho fisiológico que prepara cada mes el cuerpo
para la concepción y el anidamiento —no es una maldición bíblica—, y sus moles-
tias no se han de vivir en silencio porque, en realidad, cuando la menstruación se
presenta fuera de los parámetros normales, con características anómalas, es un in-
dicador de problemas de salud, de nutrición, de estrés físico y mental o de exposi-
ción a tóxicos ambientales (Valls-Llobet, 1994).
El ciclo menstrual normal implica variaciones en diversos niveles hormonales, a
veces sutiles y otras veces manifiestos, porque durante la edad reproductiva (desde
aproximadamente los 13 hasta los 50 años) estos niveles hormonales cambian en
función del momento del ciclo menstrual.
Para que haya menstruación, deben existir estrógenos a niveles adecuados para
producir un crecimiento endometrial. Y para que la hemorragia no sea excesiva, a
partir del día catorce del ciclo ovárico se inicia la producción de progesterona, que
impide que el tejido del endometrio crezca de forma exponencial y lo prepara para
el anidamiento si hubiera una concepción.
En la segunda fase del ciclo, y sobre todo entre los días 17 a 23 del ciclo, se in-
crementa la secreción de varias hormonas implicadas en el metabolismo de agua
corporal (renina, angiotensina, aldosterona) y se retiene líquido. En condiciones
normales, esta retención debería ser imperceptible, pero cuando hay exceso de es-
trógenos por condiciones de estrés o por su proliferación en el medio ambiente, o
cuando disminuye la secreción de progesterona por las mismas causas, esta reten-
ción puede ser intensa y provocar un aumento de unos dos o tres kilos de peso
antes de la menstruación.
En las mujeres se ha observado que la exposición a disruptores endocrinos —como
algunos compuestos tóxicos persistentes, trihalometanos y pesticidas como el DDT—
ocasiona ciclos menstruales más cortos, con disminución de la producción de pro-
gesterona durante la fase luteínica (causando un déficit de esta hormona) y exceso
de estrógenos. Sin embargo, las mujeres que han estado expuestas a pesticidas hor-
monalmente activos —etilenglicol y algunos bifenilos policlorados— presentan ciclos
28 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

alargados, sangrado intermenstrual y pérdida de algunas menstruaciones (oligome-


norrea) (Farr, Cooper, Cai, Savitz, Sandler, 2004).
Aunque algunos efectos de los organoclorados sobre el ciclo menstrual se habían
relacionado con causas genéticas —si bien ya se había demostrado que los derivados
del DDT actuaban directamente en las células del ovario (Younglai, Kwan, Lobb,
Foster, 2004)—, un estudio realizado en Canadá demostró que otros pesticidas
como la kepona y el metoxicloro también pueden actuar directamente en el ovario
al incrementar el calcio iónico de las células del ovario y estimular directamente las
células de la granulosa del ovario que pueden producir estrógenos y progesterona.
Los efectos de los disruptores endocrinos sobre el ciclo pueden ser a veces con-
tradictorios, según el producto analizado, ya que el ciclo puede verse alargado por
exposición a dioxinas, por exposición a bifenilos policlorados o en trabajadoras de
plantas de semiconductores. Y, en cambio, se han observado ciclos cortos en tra-
bajadoras expuestas a DDT, plomo o clorodibromometano.
La OMS —en la excelente revisión sobre el estado de la ciencia de los disruptores
endocrinos (Kortenkamp, Martin, Faust, Evans, McKinlay, Orton, Rosivatz, 2012)
presentado en 2012— revisa muchos de los aspectos que afectan a la salud de mu-
jeres y hombres, una lectura que recomiendo a todas las personas que deseen am-
pliar sus conocimientos.
Las alteraciones del ciclo no solo ocurren por el efecto directo de pesticidas y
otros disruptores endocrinos sobre las hormonas del ciclo menstrual y el sistema
inhibina-activina del ovario, sino porque también alteran la función tiroidea, lo que
influye de forma directa en el ciclo menstrual.

SÍNDROME DE OVARIO POLIQUÍSTICO

El síndrome de ovario poliquístico se considera una alteración endocrina frecuente


en mujeres en edad reproductiva —de un 4 a un 8 % de las mujeres lo padecen—
y es una de las primeras causas de esterilidad. Las mujeres que padecen este sín-
drome pueden presentar exceso de vello en la barba, en la línea media del cuerpo
en tórax y abdomen, alrededor de las areolas mamarias y en la parte superior de
los glúteos, aunque no siempre se presenten en todos los lugares citados a la vez.
Pueden presentar pubarquia prematura (crecimiento de vello púbico prematuro
antes de los 9 años). El síndrome de ovario poliquístico se acompaña también desde
la adolescencia de un incremento de resistencia a la insulina, lo que produce au-
mento de apetito e incremento de obesidad abdominal. En etapas posteriores,
puede incrementar la esterilidad por problemas de ovulación y, a largo plazo, pro-
mover la aparición de diabetes y cáncer endometrial (Crain et al., 2008). Aunque
el ovario poliquístico está relacionado con alteraciones enzimáticas en la glándula
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 29

suprarrenal —por déficit de la enzima 21-hidroxilasa, o por polimorfismo genético


de la enzima aromatasa o de la proteína transportadora de las hormonas sexuales—
que conducen a un exceso de andrógenos en sangre, en estudios con animales se
ha podido comprobar que un exceso de testosterona ambiental o de testosterona
durante el embarazo conduce a la presencia de ovario poliquístico en la vida adulta,
en especial si ese exceso se da durante el período crítico en que se forma el folículo
ovárico durante la vida fetal (Mendola, Buck, 2010). Este efecto de la exposición
intrauterina explicaría por qué en hermanas con el mismo genotipo (los mismos
genes) las expresiones externas (fenotipos) del ovario poliquístico (acné, vello o al-
teraciones del ciclo) pueden ser totalmente diferentes y muy heterogéneas (Dia-
manti- Kandaraki, Piperi, Spina, Argyrakopoulou, Papanastasiou, Bergiele, Panidis,
2006). Aunque hay una base genética en el síndrome de ovario poliquístico, la he-
terogeneidad de sus manifestaciones dentro de la misma familia sugiere que el am-
biente vivido durante el embarazo y los estilos de vida mantenidos durante la
adolescencia son de mucha importancia (Norman, Dewailly, Legro, Hickey, 2007).
El ovario poliquístico se ha asociado también a la presencia de bisfenol A. Este
compuesto orgánico puede pasar al líquido amniótico y tiene una concentración
cinco veces más alta que otros fluidos en el período de las 15 a 18 semanas de ges-
tación. Y existe un incremento significativo de los niveles de bisfenol A en mujeres
con síndrome de ovario poliquístico (Kandaraki, Chatzigeorgiou, Livadas, Palioura
et al., 2011). Aunque algunos autores habían defendido que los elevados niveles de
bisfenol A eran debidos a los elevados niveles de andrógenos de las mujeres con
ovario poliquístico que hacían más persistentes los niveles de bisfenol A que llega-
ban al cuerpo del agua o los alimentos, estudios posteriores en animales de experi-
mentación han confirmado el papel del bisfenol A en la causa de formación del
ovario poliquístico en roedores (Fernández, Bourguignon, Lux-Lantos, Libertun,
2010). Como el síndrome de ovario poliquístico está aumentando en la población
femenina, la OMS ha recomendado investigar este síndrome en relación con los dis-
ruptores endocrinos.

ENDOMETRIOSIS

En los últimos 20 años, se ha comprobado un incremento de la endometriosis, una


enfermedad que se produce cuando el tejido del endometrio —la mucosa que re-
cubre el interior del útero— excede esta cavidad, se extiende por la cavidad abdo-
minal y se encuentra al lado de los ovarios —por lo que se menstrúa también dentro
de la cavidad abdominal, con dolores muy intensos— o incluso se implanta más
allá, en otras partes del cuerpo, como el tórax y, en algunos casos, el cerebro (Giu-
30 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

dice, 2010). El estrógeno en exceso es necesario para la progresión de la endome-


triosis pero unido a alteraciones inmunológicas.
La incidencia de la endometriosis varía según los estudios, y aunque algunos in-
vestigadores habían propuesto que afectaba a entre un 10 y un 15 % de las mujeres
en edad reproductiva (Leibson, Hass et al., 2004), estos porcentajes pueden ser in-
cluso bajos por las dificultades que tiene el diagnóstico. Es una de las patologías
que más se tarda en reconocer en el diagnóstico desde que la paciente empieza a
sufrir dolores intensos durante la menstruación hasta que se llega al diagnóstico.
Un estudio realizado en Estados Unidos en un grupo de mujeres halló que, mientras
por resonancia magnética se detectaban un 11 % de casos, ese porcentaje ascendía
a un 34 % a través de la cirugía y la anatomía patológica. Por lo tanto la incidencia
de endometriosis se puede haber subestimado.
Varios estudios con primates seguidos durante 15 años han demostrado un au-
mento de la severidad e incidencia de la endometriosis conforme más elevada es la
exposición a dioxinas (Rier, Turner, Martin et al., 2001). En otro estudio efectuado
en monos alimentados durante un año con dosis altas de dioxina (TCDD), se vieron
también implantes de endometriosis en la cavidad pélvica (Yang, Agarwall, Foster,
2000). Existe una creciente evidencia de que los cambios epigenéticos (patrones de
expresión de los genes que no están condicionados por la secuencia genética) están
implicados en la endometriosis y que estos cambios se producen por la exposición
en el útero a exógenos químicos (Guo, 2009). Algunas investigaciones sugieren que
no solo la exposición a disruptores en la vida adulta puede causar endometriosis,
sino que esta puede ser más virulenta si ha habido previamente una exposición fetal
de las mujeres (Cakmak, Taylor, 2010). Las hijas de las madres que habían tomado
el fármaco DES (dietilestilbestrol, utilizado para disminuir el riesgo de aborto) te-
nían, por ejemplo, un 80 % más de riesgo de desarrollar endometriosis (Missmer,
Hankinson, Spiegelman et al., 2004), lo que confirma que el riesgo ambiental es
superior al genético. Varios estudios han encontrado relación entre endometriosis
y exposición a bifenilos policlorados (Porpora, Ingelido et al., 2006), ftalatos (Tra-
bert, De Roos, Schwartz, Peters, Scholes, Barr, Holt, 2010) y cadmio (Jackson,
Zullo et al., 2008) (Jackson, Zullo, Foster, 2008), así como con alquilfenoles, bis-
fenol A y parabenes (productos farmacéuticos que contienen o imitan a los estró-
genos y fitoestrógenos).

FIBROMAS UTERINOS

Los fibromas uterinos o leiomiomas se forman en el endometrio y son tumoraciones


locales benignas que ocurren con mucha frecuencia. Pueden desarrollarlos entre
un 25 y un 50 % de las mujeres en edad reproductiva, y como factores de riesgo se
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 31

han mencionado la obesidad, la edad temprana de la menarquia y niveles excesivos


de estrógenos, pero el hecho es que el tejido fibroide tiene mucha mayor concen-
tración de receptores estrogénicos que el tejido uterino normal. La exposición a
disruptores endocrinos en animales de experimentación ha demostrado que, cuanto
más pronta en la vida de los animales es la exposición a organoclorados o a DES,
antes se desarrollan los miomas en las ratas del tipo 17 crain (modelo de rata para
estudiar disruptores). La exposición a los pesticidas keponas, endosulfán, dieldrín
y metoxicloro produce en las ratas proliferación de las células de leiomiomas (Hod-
ges, Bergerson, Hunter, Walker, 2000). En mujeres se ha podido demostrar una
clara relación entre disruptores endocrinos y fibromas (Mendola, Messer, Rappazzo,
2008), y la exposición a ftalatos se ha vinculado, en un amplio estudio desarrollado
en Estados Unidos, con la presencia de fibromas uterinos (Weuve, Hauser, Calafat,
Missmer, Wise, 2010).

MAMA FIBROQUÍSTICA

A medio plazo, el exceso de estrógenos (hiperestrogenismo) se manifiesta por la


presencia de quistes en las mamas, o mamas fibroquísticas, a veces con dolores in-
tensos premenstruales y tensión mamaria, y por un incremento, sobre todo, de mio-
mas uterinos en las mujeres mayores de 40 años, cuando ya declina la secreción de
progesterona, aunque la proliferación de sustancias que imitan a los estrógenos en
el medio ambiente ha hecho aparecer las lesiones fibroquísticas en edades cada vez
más tempranas.
El desarrollo de las glándulas mamarias empieza en el feto y continúa hasta la
menopausia, con tres fases claras: en la vida fetal se establece la arquitectura de las
glándulas mamarias; en la pubertad proliferan el epitelio y el estroma; y en el em-
barazo es cuando se diferencian las células productoras de leche. Los estudios han
mostrado que los disruptores endocrinos —como bisfenol A y DES (dietilestilbes-
trol)— tienen que ver con una proliferación anticipada de las células mamarias.

CONSIDERACIONES DE LA UNIÓN EUROPEA

Aunque el Plan de Acción sobre Medio Ambiente y Salud 2004-2010 que la Unión
Europea puso en marcha —de obligado cumplimiento para todos los estados miem-
bros— no se ha cumplido en la mayoría de sus propuestas, ha servido para que se
constaten al menos de forma fehaciente las relaciones de los contaminantes am-
bientales con la salud puestas en duda anteriormente. La revisión intermedia del
Plan hace las siguientes consideraciones:
32 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

- Las enfermedades respiratorias son la segunda causa de mortalidad, incidencia,


prevalencia y gasto en la Unión Europea, y siguen aumentando a causa de la
contaminación atmosférica exterior e interior.
- Las conferencias ministeriales de la OMS de 2004 y 2007 han señalado la com-
pleja influencia combinada de los contaminantes químicos y algunas enferme-
dades crónicas.
- Cada vez existen más evidencias científicas que permiten afirmar que muchos
tipos de cáncer —como el de huesos, vejiga urinaria, pulmón, piel, mama, pán-
creas y ganglios linfáticos— son producidos al menos en parte por factores am-
bientales (tóxicos químicos, partículas en el aire, radiaciones, etc.).
- En los últimos años han aparecido nuevas enfermedades o síndromes de los
que existen fuertes sospechas de factores etiológicos ambientales, como la sen-
sibilidad química múltiple, el síndrome de las amalgamas dentales, la sensibilidad
a los campos magnéticos y el déficit de atención con hiperactividad.
- Consideran que el principio de precaución, incluido en el Tratado Europeo
desde 1992, y que exige evitar la utilización de determinados productos o téc-
nicas si se sospecha que pueden afectar la salud humana, es fundamental en la
política de protección del medio ambiente y la salud.
- Destacan la importancia del control biológico humano (análisis de la contami-
nación interna por medio de análisis de sangre) como instrumento de evaluación
del nivel de exposición de la población a los efectos de la contaminación.
- Reclaman la conveniencia de un registro epidemiológico, a nivel europeo, de
personas con enfermedades vinculadas de alguna manera a factores ambientales.
- Recomiendan que se promocione en todos los estados de la Unión Europea la
enseñanza de la medicina ambiental entre los profesionales de la salud y, yo añado,
que esta enseñanza tenga en cuenta las diferencias y vulnerabilidades diferenciales
entre mujeres y hombres y que se introduzca la docencia libre de sesgos de género
en las ciencias de la salud. En una palabra, acabar con la invisibilidad de la salud
de las mujeres y sus causas ambientales en las ciencias de la salud.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKSGLAEDE, L., OLSE L. W., SORENSEN, T. I. A., JUUL, A. (2008): «Forty years trends
in timing of pubertal growth spurt un 157 000 Danish school childre», PluS One,
3(7).
—, SORENSEN, K., PETERSEN J. H., SKAKKEBAEK, N. E., Juul, A. (2009): «Recent
decline in age at breast development. The Copenhagen puberty study», Pediatrics,
123(5), pp. 932-939.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 33

BRETVELD, R., THOMAS, C., SCHEEPERS, P., ZIELHUIS, G., y ROELEVELD, N. (2006):
«Pesticide exposure: the hormonal function of the females reproductive system
disrupted», Reproductive Biology and Endocrinology 4, pp. 30-57.
—, ZIELHUIS, G. A. y ROELEVELD, N. (2006): «Time to pregnancy among female
greenhouse workers», Scand J Work Environ Health, 32(5), pp. 359-367.
BOTELLA, B., CRESPO, J., RIVAS, A., CERRILLO, I., OLEA-SERRANO, M. F., OLEA, N.
(2004): Exposure of women to organochlorine pesticides in Southern Spain, En-
vironmental Research 96, 1, pp. 34-40.
CAKMAK, H., TAYLOR, H. S. (2010): «Molecular mechanism of treatment resistance
in endometriosis: the role of progesterone-hox gene interactions». Seminars in
Reproductive Medicine, 28(1), pp. 69-74.
CARSON, Rachel (2005): Primavera silenciosa, edición y traducción Joandomènec
Ros, Barcelona, Crítica.
CRAIN, A. et al. (2008): «Female reproductive disorders; the roles of endocrine-dis-
rupting compounds and developmental timing», FertilSteril, 90(4), pp. 911-940.
DIAMANTI-KANDARAKIS, E., PIPERI, C., SPINA, J., ARGYRAKOPOULOU, G., PAPANAS-
TASIOU, L., BERGIELE, A., PANIDIS, D. (2006): «Polycystic ovary syndrome: the in-
fluence of environmental and genetic factors», Hormones (Athens), 5(1), pp.
17-34.
FARR, S.L., COOPER, G. S., CAI J., SAVITZ, D. A., SANDLER D. P. (2004): «Pesticide use
and menstrual cycle characteristics among premenopausal women in the Agricul-
tural Health Study», American Journal of Epidemiology, 160(12), pp. 1194-1204.
KORTENKAMP, A., MARTIN, O., FAUST, M., EVANS, R., MCKINLAY, R., ORTON, F.,
ROSIVATZ, E. (2012): «State of the Science of Endocrine Disrupting Chemicals»,
Final report, OMS.
FERNÁNDEZ, M. O., BOURGUIGNON, N., LUX-LANTOS, V., LIBERTUN, C. (2010):
«Neonatal exposure to bisphenol A and reproductive and endocrine alterations
resembling the polycystic ovarian syndrome in adult rats», Environmental Health
Perspectives, Sep., 118(9), pp. 1217-1222.
GIUDICE, L.C. (2010): «Endometriosis», New England Journal of Medicine,
362(25): pp. 389-2398.
GUO, S.W. (2009): «Epigenetics of Endometriosis», Molecular Human Reproduc-
tion, 15(10), pp. 587-607.
HODGES HODGES, L. C., BERGERSON, J. S., HUNTER, D. S., WALKER, C. L. (2000):
«Estrogeniceffects of organochlorine pesticides on uterine leiomyoma cells in
vitro», Toxicological Sciences, 54(2): pp. 355-364.
JACKSON, L. W., ZULLO, M. D. et al. (2008) «The association between heavy metals,
endometriosis and uterine myom as among premenopausal women», National
Health and Nutrition Examination Survey 1999-2002, Human Reproduction,
23(3): pp. 679-687.
34 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

—, ZULLO, M. D., FOSTER, D. L. (2008): «Sexual differentiation of the external ge-


nitalia and the timing of puberty in the presence of an antiandrogen in sheep». En-
docrinology, 149(8), pp. 4200-4208.
KANDARAKI, E., CHATZIGEORGIOU, A., LIVADAS, S., PALIOURA, E. et al. (2011): «En-
docrine disruptor and polycystic ovary syndrome (PCOS): Elevated serum levels
of bisphenol A in women with PCOS», Journal of Clinical Endocrinology and Me-
tabolism, 96(3), p. E 480.
LEIBSON, C. L., GOOD, A. E., HASS, S. L. et al. (2004): «Incidence and characteri-
zation of diagnosed endometriosis in a geographically defined population», Fer-
tility and Sterility, 82(2), pp. 314-321.
MENDOLA, P., BUCK LOUIS, G. M. (2010): «Environmental contaminants females
reproductive health and fertility». Environmental Impacts on Reproductive
Health and Fertility, Cambridge University Press.
MENDOLA, P., MESSER, L. C., Rappazzo, K. (2008): «Science linking environmental
contaminant exposures with fertility and reproductive health impacts in the adult
female». Fertility and Sterility, 89(2) (suppl.), pp. 81-94.
MISSMER, S. A., HANKINSON, S. E., SPIEGELMAN, D. et al. (2004): «In utero expo-
sures and the incidence of endometriosis», Fertility and Sterility, Dec. 82(6), pp.
1501-1508.
MOURITSEN, A., AKSGLAEDE, L., SORENSEN, K., MOGENSEN, S., LEFFERS, H., MAIN,
K. M., FREDERIKSEN, H., ANDERSSON, A. M., SKAKKEBAEK, N. E., JUUL, A. (2010)
«Hypothesis: exposure to endocrino-disrupting chemicals may interfere with ti-
ming of puberty», International Journal of Andrology, 33(2), pp. 346-359.
NORMAN, R. J., DEWAILLY, D., LEGRO, R. S., HICKEY, T. E. (2007): «Polycystic ovary
syndrome», Lancet 370(9588), pp. 685-697.
PORPORA, M. G., INGELIDO, A. M. et al. (2006): «Increased levels of polychloro-
biphenyls in Italian women with endometriosis», Chemosphere, 63 (8), pp. 1361-
1367.
RIER, S. E., TURNER, W. E., MARTIN, D. C. et al. (2001): «Serum levels of TCDD and
dioxin-like chemicals in Rhesus monkeys chronically exposed to dioxin: correla-
tion of increased serum PCB levels with endometriosis», Toxicological Sciences,
59(1), pp. 147-159.
TRABERT, B., DE ROOS, A. J., SCHWARTZ, S. M., PETERS, U., SCHOLES, D., BARR, D. B.,
HOLT, V. L. (2010): «Non-dioxin-like-polychlorinated biphenyls and risk of en-
dometriosis», Environmental Health Perspectives, Sept. 118(9), pp. 1280-1285.
VALLS-LLOBET, C. (1994): Mujeres y Hombres. Salud y diferencias, Editorial Folio.
— (2006): Mujeres Invisibles, Barcelona, De Bolsillo, Plaza y Janés.
WEUVE J., HAUSER, R., CALAFAT, A. M., MISSMER, S. A., WISE, L. A. (2010): «Asso-
ciation of exposure to phtalates with endometriosis and uterine leiomyoma: findings
from NHANES, 1999-2004», Environmental Health Perspective, 118(6), p. 825.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 35

YANG, J. Z., AGARWALL, S. K., FOSTER, W. G. (2000): «Subchronic exposure to 2,


3, 7, 8-tetrachlorodibenzo-p-dioxin modulates the pathophysiology of endome-
triosis in the cynomolgus monkey», Toxicology Sciences, 56(2), pp. 374-381.
YOUNGLAI, E. V., KWAN, T. K., KWAN, C. Y., LOBB, D. K y FOSTER, W. G. (2004):
«Dichlorodiphenylchloroethylene elevates cytosolic calcium concentrations and
oscillations in primary cultures of human granulosa-lutein cells», Biology of Re-
production, 70, pp. 1693-1700.
KORTENKAMP, A., MARTIN, O., FAUST, M., EVANS, R., MCKINLAY, R., ORTON, F.,
ROSIVATZ, E. (2012): State of the Science of Endocrine Disrupting Chemicals.
Final report, OMS.
2. De lo anatómico a lo simbólico: el cuerpo
femenino en el diván psicoanalítico
Pilar ERRÁZURIZ VIDAL
Centro de Género y Cultura en América Latina (CEGECAL)
Universidad Nacional de Chile

P
ensar el cuerpo humano desde disciplinas tales como la filosofía, el psicoa-
nálisis, la psicología, el feminismo, la ecología y los estudios de género remite
inevitablemente al viejo conflicto entre naturaleza y cultura, en otras palabras,
a la construcción discursiva e imaginaria que ha efectuado el sistema sexo-género
con los datos biológicos/anatómicos, conformando lo que hoy entendemos como
cuerpos sexuados. De manera que, hablar de cuerpos desde una perspectiva psico-
analítica de género, precisa delimitar los órdenes que vamos a abordar: el orden de
lo dado biológica/anatómicamente, y aquellos definidos por la trilogía lacaniana
R. S. I.: lo Real,1 lo Simbólico, lo Imaginario,2 órdenes inseparables para la teoría
psicoanalítica en lo que se refiere a la constitución del sujeto, la construcción del
inconsciente y del psiquismo.
Es necesario detenerse en este punto. Desde el momento en que la reflexión de
Lacan sitúa explícitamente el orden simbólico en el registro de la Ley del Padre, es
decir, en un ordenamiento patriarcal secular, nos encontramos reducidas a la her-
menéutica hegemónica de un discurso dominante por la cual la diferencia de los
sexos se jerarquiza y lo masculino pasa a ser el referente por excelencia del Uno
universal. El mérito de la teoría lacaniana consiste en sutilizar los preceptos freu-
dianos más próximos a las diferencias anatómicas entre los sexos, insertando a estas
últimas explícitamente en el orden simbólico.

1
En este texto consideramos lo Real como lo no simbolizado, es decir aquello del ámbito de la
psicosis, por eso lo distinguimos de lo bio-anatómico.
2
Jacques Lacan teoriza sobre este tema hasta llegar a una concepción de entrelazamiento entre tres
elementos: lo real, lo simbólico y lo imaginario para dar cuenta del funcionamiento psíquico. Lo real
es aquello que escapa a la simbolización, el lugar de la locura que desafía los otros órdenes. Lo simbólico
es definido como el lugar del significante y de la función paterna. El imaginario, conjunto de represen-
taciones inconscientes, constituye el lugar de las ilusiones del Yo (Roudinesco y Plon, 2000).
38 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

LO IMAGINARIO DE LO ANATÓMICO

Sigmund Schlomo Freud, a lo largo de toda su obra, da cuenta de cómo el sistema


sexo-género organiza las subjetividades de hombres y mujeres, ordenando lugares
para los cuerpos según su bio-anatomía. El androcentrismo es asumido como con-
natural a la organización humana, si no explícitamente, de manera implícita e indi-
recta, y aparece como una constante incuestionada e incuestionable. No hay duda
de que el creador del psicoanálisis da por sentada la legitimidad del sistema sexo-
género que valora la masculinidad y sus oropeles por encima de la feminidad y sus
atributos, sin cuestionarse la tautología del argumento. No solo no tuvo perspectiva
crítica frente a esto, sino que contribuyó a reforzar los valores patriarcales en un
momento histórico en el cual, gracias al advenimiento de la democracia, las mujeres
reclamaban sus derechos de equidad con los varones. Por último, incursionando
en terreno ajeno, Freud elaboró una ficción histórica, mito fundante del sistema
patriarcal para su justificación (Freud, 1912-13/1981), confirmando con ella la no
equivalencia congénita entre los sexos desde los albores de la civilización (Errázuriz,
2012). Si bien su texto Tótem y Tabú no fue bien recibido por la comunidad cien-
tífica de la época, se relaciona con otros que pretendieron justificar la dominación
masculina construyendo mitos fundacionales, ficciones diversas por las cuales el
colectivo de hombres merecía el protagonismo desde los inicios, como principio
ordenador frente a la distorsión causada por el colectivo de mujeres (Rodríguez,
Serrano, 2005).
Como nos muestra Thomas Laqueur en su estudio sobre la construcción del
sexo desde la Antigüedad hasta la aparición del psicoanálisis (Laqueur, 1994), la
biología y anatomía diferencial entre hombres y mujeres fue interpretada en detri-
mento de estas últimas como una versión inferior de la de los varones. Esta pseudo-
ciencia pretendió, durante siglos, proporcionar una coartada para justificar la
dominación masculina y construyó un imaginario social acerca de la superioridad
del cuerpo masculino. Esta supuesta verdad se instituyó, en tanto discurso hege-
mónico, en un sistema simbólico que definió la diferencia sexual atribuyendo su-
premacía a lo masculino e inferioridad a lo femenino. De este modo, se negó la
historia no escrita de la humanidad que por siglos se rigió por referentes femeninos
relacionados con la maternidad y la capacidad de crianza,3 y si acaso ello fue reco-
nocido por algunos estudiosos, se recurrió a la interpretación de un ordenamiento

3
Numerosos estudios arqueológicos que se remontan siglos antes de la era cristiana, en particular
antes de la aparición de la escritura, remiten a hallazgos que dejan suponer otro orden simbólico,
aquel de un referente femenino, entre el año 7 000 A.C. hasta el 500 a. C. a partir de cuando desaparece
todo vestigio. Incluso autores sugieren que dicho orden dataría desde el Paleolítico Superior, 25 000
años a. C. (Stone, 1993; Lerner, 1990).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 39

civilizatorio por parte de los dominantes sobre las dominadas poco aptas, según
aquellos, para compartir la conducción política y social de una comunidad (Bacho-
fen, 1861; Harrison, 1927; Graves, 1968; Lerner, 1990; Stone, 1993; Rodríguez, Se-
rrano, 2005). Uno de los principales argumentos a los que se recurrió para justificar
la dominación del colectivo masculino sobre el femenino se basó en la teoría de la
cercanía mayor de la mujer con la naturaleza versus aquella del varón con la cultura,
la que, por definición, ordena y subyuga a la primera.
La Modernidad Occidental, provista ya de todos los datos de las diferencias bio-
lógicas, anatómicas y funcionales entre los sexos que contradijeron la distorsión
con respecto al sexo de la mujer, se vio en la obligación de aceptar el dualismo se-
xual, reemplazando al monismo histórico que primó en el discurso médico y filo-
sófico hasta el siglo XVII: un sexo único con diferentes grados de perfección, siendo
el varón el modelo acabado con excelencia. Sin embargo, el sistema sexo-género
con su capacidad de metaestabilización,4 no dudó en construir nuevos argumentos
a favor de la superioridad del colectivo de varones sobre aquel de las mujeres. Los
nuevos argumentos siguieron el mismo patrón jerarquizante, tal como hemos com-
probado en nuestra investigación sobre la misoginia decimonónica, en todas las dis-
ciplinas, desde la Medicina hasta el arte y en especial el estudio de las subjetividades
con la psicología y el psicoanálisis (Errázuriz, 2012).
La teoría psicoanalítica de la mano de Freud y discípulos coadyuvó con entu-
siasmo a explicar la diferencia sexual de una manera subjetiva: retomó el monismo
sexual, no ya en clave anatómica sino psíquica. El ser humano, sujeto incipiente,
hombre o mujer, se encuentra poseedor/a de una libido igual para ambos, caracte-
rizada como activa, masculina, o en el mejor de los casos, indeterminada.5 Según
su teoría, desde este origen psíquico común e idéntico se construirá una diferencia
sexual en las subjetividades de hombres y mujeres como consecuencia de la per-
cepción de una diferencia anatómica previamente calificada: tener pene, siendo lo
óptimo; no tenerlo, lo adverso. Solo se necesitó una metáfora para designar la dife-
rencia entre los cuerpos: la castración. Esta aparente y falsa castración del cuerpo
femenino fue el último eslabón de la misoginia decimonónica en tanto coartada
para seguir perpetuando la dominación masculina, así justificada.

4
«El patriarcado es el conjunto metaestable de pactos, asimismo metaestables entre los varones»
(Amorós, 1992: 52), pactos explícitos o implícitos para perpetuar el sistema androcéntrico material y
simbólico. «El patriarcado es un sistema milenario que va adaptándose a cada nueva estructura eco-
nómica y política» (Puleo, 1998: 41).
5
Libido significa deseo en latín y fue re-conceptualizado por Freud como manifestación de la
pulsión sexual en la vida psíquica y, por extensión, en la sexualidad humana en general (Roudinesco
y Plon, 2000).
40 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

La imagen de un cuerpo mutilado,6 inferior, deforme, no tardaría en homoge-


neizarse con la antigua representación de un cuerpo imperfecto como se había de-
finido por siglos en la teoría del monismo sexual. Freud dio estatus fundacional de
las subjetividades al mito secular de la supuesta imperfección del cuerpo sexuado
de la mujer en clave milenaria, obviando cualquier conocimiento científico. Se reedita
el argumento circular que se explica a sí mismo: se valora el colectivo masculino por-
que posee pene; se valora el pene porque lo posee el colectivo masculino.
En 1923, en su teorización acerca del Yo y el Ello, Freud afirmaba que «el yo
es, ante todo, un ser corpóreo»7 (Freud, 1923/1981: 2709). Asimismo, nos enseñó
que «donde el ello era, el yo adviene» (Freud, 1932/1981: 3146), siendo el ello el
lugar de las pulsiones, el yo un lugar de transformación de aquellas según el prin-
cipio de realidad y el sistema percepción-conciencia que lo produce. Además, el yo
albergará también las normativas e ideales interiorizados, dando lugar al superyó,
que relacionará el «ser corpóreo» con las instituciones de lo simbólico y sus man-
datos de género, valores y designaciones.
En 1925 Freud describía lo siguiente: la niña «advierte el pene de un hermano
o de un compañero de juegos, llamativamente visible y de grandes proporciones,
lo reconoce al punto como símil superior de su propio órgano pequeño e incons-
picuo8 y desde ese momento cae víctima de la envidia fálica». (Freud, 1925/1981:
2899). Estamos frente a lo que el autor considera la decodificación de un dato ana-
tómico por el orden imaginario, interpretación errónea, por cierto, pero justificada
según la teoría, porque la niña no tiene percepción consciente de su vagina y, en
aras de un espontáneo mimetismo e ignorancia científica, confundiría su clítoris
con el órgano viril.
¿Se trata, acaso, de un error de la niña pensar que pene y clítoris son lo mismo,
solo que este último, el suyo, es inferior? 9¿O se trata de un error del interpretador?
Para nuestro asombro, leemos en «Las Teorías Sexuales Infantiles» (1908) que «la
anatomía ha reconocido en el clítoris femenino el órgano homólogo al pene, y la fi-
siología de los procesos sexuales ha añadido que este pene incipiente y no suscep-

6
El término de mutilación fue usado por Karl Abraham, discípulo y amigo de Freud, para des-
cribir la falta de pene en la niña, añadiendo incluso una suerte de confirmación de ella, a posteriori,
en el momento de la menarquia, resignificando la supuesta mutilación original (Mitchell, 1981).
7
La segunda tópica de la teoría freudiana sobre la conformación del aparato psíquico designa dos
lugares: el Ello primigenio, concebido como un conjunto de naturaleza pulsional, y el Yo, que aparece
como lugar de apoyo para la autoconservación, como posible objeto de amor para el sujeto y como
asiento de la instancia moral que se denomina el Superyó (Roudinesco y Plon, 2000).
8
El Maestro se refiere al clítoris.
9
Durante mi práctica clínica con niños desde 1979 en adelante, nunca pude constatar semejante
fantasía en niñas. Aparecieron, en cambio, representaciones de inequidad producto de normas de gé-
nero y de rebeldía proyectadas o incluso explicitadas sobre tratamiento desigual con sus coetáneos
varones por parte de las instituciones (familia, escuela…).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 41

tible de mayor desarrollo se conduce en la infancia de la mujer como un verdadero


pene» (Freud, 1908/1981: 1266). Cuesta pensar que el Maestro, todo un médico
neurólogo, ignorara que la ciencia ya había reconocido el clítoris como un órgano
per se con una única función, el placer sexual y no como el homólogo del pene, el
cual es conducto de orina y semen, además de sede de placer. Lo único que homo-
loga el clítoris con el pene, si es que se quiere insistir en ello, es que ambos son
asientos del placer sexual y desde ese punto de vista podemos pensar que, en la
masturbación infantil, un adulto puede interpretar la simetría como homología.
Pero el clítoris, como propio de las mujeres, ha sido conocido desde la Antigüedad;
en griego, kleitoris, que significa «divino, famoso, propio de las diosas» (Walker,
1983: 170), fue no solo recogido por la tradición, sino también por la Medicina.
De manera que la información que entrega Freud respecto del clítoris es, cuando
menos, sesgada por el sexismo que intenta probar de manera pseudocientífica una
suerte de monismo sexual ya obsoleto. Lo denuncia Luce Irigaray (Irigaray, 1974)
en Ese sexo que no es solo uno, es decir, ella denuncia el uso de la episteme de lo
mismo, por la cual toda medida de la realidad de los sujetos parte de una perspectiva
única: lo masculino. A la vez, la psicoanalista da cuenta de la complejidad del aparato
sexual femenino y del correlato múltiple en lo psíquico acerca de su sexualidad.
En otras palabras, de acuerdo a la teoría fundacional psicoanalítica, el aparato
sexual humano tiene como referente el del hombre para la construcción de la se-
xualidad, sin tener en cuenta que los órganos sexuales de la mujer y su sexualidad
difieren, por presentar varios puntos erógenos y no solo uno: el clítoris, la vulva,
los labios, la vagina, con un necesario corolario psíquico ya sea en la representación
o en el imaginario. Insistir hoy en día sobre el monismo sexual, aunque se haya re-alo-
jado en el ámbito psíquico, y seguir interpretando la protesta femenina acerca de
inequidad de género con la «envidia del pene», interpretación habitual en la prác-
tica psicoanalítica, resulta un arcaísmo poco procedente. De acuerdo con la cons-
trucción del inconsciente en clave de un sistema sexo-género falocéntrico, se
justifica esta hermenéutica psicoanalítica, pero ignorar una perspectiva crítica sobre
la misma solo perpetúa, desde el supuesto saber, el discurso sexista secular.
Volviendo a 1925, Freud nos informa que «Cuando el varoncito descubre por
primera vez la región genital de la niña, no ve nada o repudia su percepción, la ate-
núa o busca excusas para hacerla concordar con lo que espera ver». ¿Qué esperaba
ver el varoncito? Ya nos advertía el Maestro en 1908 que «la teoría sexual infantil
[es] que la mujer posee, como el hombre, un pene» (Freud, 1908/1981: 1266).
Añade: «solo más tarde cuando una amenaza de castración ha llegado a influir sobre
él [el niño varón], dicha observación se le vuelve importante y significativa: su re-
cuerdo o su repetición le despierta […] una terrible convulsión emocional y le im-
pone la creencia en la realidad de una amenaza [la de castración o pérdida del
órgano al igual que supuestamente le sucediera a la niña] […]. Surgirán dos reac-
42 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

ciones […] que determinarán permanentemente sus relaciones con la mujer: el ho-
rror ante esa criatura mutilada, o bien el triunfante desprecio de la misma» (Freud,
1925/1981: 2899).10
Estamos aún en la etapa de la interpretación desde el orden de lo imaginario de
un dato anatómico que en este caso es un «no órgano» o la ausencia de un supuesto
órgano universal. Cabe enriquecer el pensamiento freudiano con una cita de Judith
Butler: «… un perfil corporal vacila entre la materialidad y lo imaginario y, en reali-
dad, es esa vacilación misma» (Butler, 2002: 40). Lo que sostiene Butler se relaciona
con lo que señalaba Laqueur en cuanto a que se percibe lo que ya se representa
desde un imaginario colectivo y se afirma desde el discurso: las primeras experien-
cias de disección de cadáveres en las escuelas europeas de Medicina, en los siglos
XVI y XVII, aportaban pruebas de la existencia de órganos diferentes en las mujeres,
sin embargo, estas evidencias eran negadas y los científicos creían percibir lo hasta
entonces pregonado, o sea, la mismidad sexual con dos categorías, cuerpo mascu-
lino desarrollado versus cuerpo femenino inmaduro. La percepción influida a tal
punto por el discurso hegemónico encegueció a los anatomistas por más de un siglo.
Se resistieron a las novedades que presentaba el aparato reproductor y sexual fe-
meninos (trompas, vulva, útero, vagina…) y que algunos médicos quisieron dar a
conocer. Las reacciones fueron variadas y tuvieron un espectro expresivo desde la
cólera a la burla entre científicos. ¿Será solo en lo anatómico, real e imaginario el
registro en el cual se juega la jerarquización entre los sexos?

INSCRIPCIÓN EN EL ORDEN SIMBÓLICO

No tardará el Maestro en responder esta interrogante, con un veredicto condenatorio


final para el cuerpo femenino: ocupa un lugar secundario en la significación de lo
instituido, es decir, en el orden simbólico del sistema sexo-género. En la célebre lec-
ción de La Feminidad de 1933, Freud expresa: «También el complejo de castración
de la niña es iniciado por la visión del genital del otro sexo. La niña advierte en se-
guida la diferencia y —preciso es confesarlo— también su significación.11 Se siente

10
La cursiva es mía para subrayar el concepto de creencia. Sería una creencia, es decir, tener por
cierto algo que no se sabe si lo es. Esta creencia constituiría la base del andamiaje del desprecio por
parte de los hombres hacia las mujeres, empezando por la madre cuando se le desprecia por su su-
puesta castración. Es decir, esta creencia sobre la inferioridad de quien no tiene pene apela a la creencia
complementaria, la superioridad de quien tiene pene. ¿Sobre esta conjetura que data de la infancia se
afirma el sistema patriarcal?
11
La cursiva es mía para subrayar el subtexto implícito en estas frases: la niña advierte la signifi-
cación de la diferencia que es, en el orden simbólico, una jerarquía en virtud de la cual la feminidad
(la mujer) está en situación de inferioridad. Este hecho, añade Freud, «es preciso confesarlo». O sea,
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 43

en grave situación de inferioridad». Esta significación del no-pene refiere al orden


simbólico patriarcal, es decir, a una construcción ideológica que atribuye superiori-
dad a la posesión de un determinado órgano en el orden de lo bio-anatómico por
representar al colectivo dominante. La frase «es preciso confesar» nos hace pensar
que hasta aquí esta «verdad» se habría encubierto. Para consolarnos a las féminas e
ilustrar a los patriarcas, al final de su conferencia, el Maestro asegura que «es preciso
tener en cuenta que la mujer integra también lo generalmente humano» (Freud,
1933/1981: 3172). Esta afirmación nos deja la sospecha de que, implícitamente, se
considera «humano» un cuerpo con pene, en principio y por definición. Aquel que
no lo posee es un cuerpo inferior; sin embargo, cuesta mucho exiliarlo de la especie
y hay que admitir que también «integra lo generalmente humano».
Resulta fácil entonces comprender la pirueta lacaniana para determinar que el
significante por excelencia de la falta lo constituye el falo. En este momento del de-
sarrollo de la teoría freudiana, parecería que la humanidad está dividida en quien
tiene y en quien no tiene pene. A continuación, Lacan resolverá la diferencia sexual
con otra pirueta, esto es, el recurso a la antropología y a la construcción del sistema
de parentesco teorizada por Lévi-Strauss, y nos instruirá sobre posiciones y no sobre
cuerpos como lo hiciera Freud: posición masculina (sujeto de intercambio), posi-
ción femenina (objeto intercambiado) independiente del destino bio-anatómico.
Volviendo al creador del psicoanálisis, y para nuestro desconcierto como estu-
diosas del mismo, al final de sus días, y para coronar sus propósitos, Freud dejó un
legado inquietante acerca del destino del psicoanálisis y de la materialidad del
cuerpo: «con frecuencia tenemos la impresión de que con el deseo de un pene [por
parte de las mujeres] y la protesta masculina [angustia ante la castración por parte
de los hombres] hemos penetrado a través de todos los estratos psicológicos y
hemos llegado a la roca viva y que por tanto nuestras actividades han llegado a su
fin. […] Para el campo psíquico el territorio biológico desempeña en realidad la
parte de la roca viva subyacente. El repudio a la feminidad [que es lo que tienen en
común hombres y mujeres] puede no ser otra cosa que un hecho biológico, una
parte del gran enigma de la sexualidad» (Freud, 1937/1981: 3364). ¿Podríamos
pensar que, con esta afirmación, Freud alinea su teoría más con la naturaleza que
con la construcción cultural? ¿O, quizás, sin explicitarlo, indicaría que la feminidad,
o cualquier colectivo que la asuma y represente, es repudiable porque el sistema
simbólico la considera subalterna?

ha llegado la hora de la verdad, hay que confesar que la significación de no tener pene es sinónimo de
inferioridad. Si hay que confesar dicha «verdad» es porque se mantenía oculta. ¿Qué es lo que el Maestro
mantenía oculto y por qué un repliegue culposo?: solo se confiesan las faltas y pecados… Esto nos
confirma que el Maestro está muy al corriente de que el sistema patriarcal ha construido un discurso
en detrimento de lo femenino. Y ¿por qué se culparía («es preciso confesarlo») a no ser que conside-
rara esta jerarquización como arbitraria?
44 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

En otras palabras, lo que hombres y mujeres repudian es «ser castrado» (Soler,


2006: 39), es decir, ellas por no pertenecer al colectivo valorado en el sistema falo-
céntrico patriarcal, y ellos por el miedo a perder tal valoración. Para Freud, por lo
tanto, la diferencia entre los cuerpos leída desde la anatomía, pene/no pene, apun-
taría a justificar, per se, la existencia de un sistema falocéntrico valorado tanto por
hombres como por mujeres, y no la ecuación inversa, es decir, la significación de la
anatomía interpretada por un sistema ideológico masculinista que hace de la femi-
nidad un signo de inferioridad, temida y repudiada por hombres y mujeres.
Sin embargo, a Lacan no le convence que la roca final del análisis sea la roca de
la castración en tanto materialidad y nos remite al orden simbólico de la Ley del
Padre o sistema sexo-género patriarcal: es «… una relación del sujeto con el falo
que se establece independientemente de la diferencia anatómica de los sexos y que
es, por ello, una interpretación especialmente espinosa en la mujer y con relación a
la mujer» (Lacan, 1985: 666, en Ravinovich, 1995/2009: 19).
El salto epistemológico del órgano pene al significante falo en el lacanismo ate-
núa un tanto la lectura sexista basada en creencias infantiles. Siendo el falo, para
Lacan, el significante de la falta, una vez más se refiere a la diferencia sexual pero
en otro registro: no ya en lo real o imaginario, sino en su significación en el orden
simbólico. Como expresa la psicoanalista Diana Ravinovich, «la privación está rela-
cionada con la posición femenina, en la medida en que la mujer aparece privada del
falo, pero no castrada en sentido estricto, dado que no podría hablarse de una cas-
tración en lo real de la mujer, a la cual, en ese nivel, nada le falta, sino de una priva-
ción de algo inscripto en el orden de lo simbólico» (Ravinovich, 1995/2009: 18).
Agregaría a la afirmación de Ravinovich, «una privación de algo inscripto en» el
milenario orden simbólico patriarcal construido históricamente y que aún subsiste
(remito a la nota a pie de página nº 3 del presente trabajo).
Aquí debemos hacer una salvedad importante: Freud siempre se refirió a la re-
lación con la castración como coetánea del complejo de Edipo.12 Sería entonces
cuando la percepción de la ausencia de pene en la mujer significaría lo femenino
no inscripto en el orden simbólico del sistema sexo-género androcéntrico y orga-
nizaría la diferencia sexual. En otras palabras, si el psicoanálisis escogió la lectura
infantil de fálico/castrado fruto de una creencia del pene como constitutivo uni-
versal del ser humano, no fue casual. Si esta creencia infantil realmente está inscripta
en la psiquis, sería fruto de una herencia filomemética13 por siglos de dominación

12
Lo cual sucede en el tercer año de vida y como consecuencia de la prohibición del incesto, con-
sistente para el infans en renunciar a su objeto sexual adulto (padre/madre), correlativo del complejo
de castración y del establecimiento de la diferencia sexual (Roudinesco y Plon, 2000: 757).
13
«Meme» sería el correlato cultural del «gen» (gene) perpetuado por imitación de generación
en generación, lo que sería «filomemético» en contrapartida con lo «filogenético» (Chavalarias y Coin-
tet (2013).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 45

masculina la que habría construido, a su guisa, el sistema simbólico y lo que este


inscribiría como referente.
Es precisamente el psicoanálisis freudiano el que dará cuenta de este proceso,
sin explicitarlo o criticarlo, sin embargo. Cuando la Modernidad del siglo XIX ame-
naza con la feminización, luego del derrocamiento del derecho divino absoluto y
masculinista, Freud se ocupa de reforzar el sistema patriarcal en un momento his-
tórico en que la diferencia sexual se vuelve claramente un asunto político, como
bien señala Geneviève Fraisse. La nomenclatura que utiliza la teoría psicoanalítica
daría cuenta de una operación psíquica que se habría vuelto política a lo largo de
la historia y por la cual el colectivo dominante estableció un linaje único, masculino,
para la procreación, inscribiendo en el sistema simbólico tan solo el nombre del
padre, expulsando el orden previo de inscripciones de la feminidad y de la figura
materna.
Por su parte, tejiendo su teoría con hilo freudiano, Lacan instituye el concepto
de falo como significante simbólico por excelencia de la falta, sinónimo de ausencia.
¿A qué apunta este significante? ¿Acaso apunta al mismo orden anatómico que su
Maestro? El concepto de falo de Lacan es bicéfalo y se refiere a dos momentos de
la construcción del sujeto. Lo interesante del planteamiento de Lacan es que apo-
yándose en el psicoanálisis fundacional multiplica el espectro de la castración, ya
no sucede la aparición de ella en el momento del Edipo, sino mucho antes, en la
entrada en el lenguaje, lo que tiene que ver con esta característica especial de todo
humano por la cual toda necesidad que se articula en demanda ha de pasar por el
desfiladero de la palabra, lo que deja un resto imposible de expresar.
¿Por qué Lacan representó este fenómeno, sin duda universal, con la metáfora
de la castración? ¿Tan solo por necesidad de pertenencia a la escuela freudiana?
Pensamos que no es inocente la asimilación de la falta primigenia con la percepción
de la falta de pene en las mujeres. La atribución de castrado al cuerpo femenino en
el momento del Edipo propia de la intervención de un orden simbólico falocéntrico
vendría a resignificar una angustia primigenia, permitiéndole al sujeto una repre-
sentación en el imaginario más fácil de manejar, siendo la castración simbólica de
todo sujeto ($ o sujeto tachado, sujet barré, sujeto del inconsciente atravesado por
la falta) la verdad más amenazante.
Nos preguntamos si el supuesto imaginario infantil freudiano que espera encon-
trar también un pene en el cuerpo de mujer no traduciría algo de otro orden, aquel
de lo irreductible a la simbolización, aquel de lo real, ese resto confuso y añorado
del primer cuerpo con que el infans se vinculó estrechamente y que se buscaría en
una alucinación de completitud, siendo el propio niño o niña el «órgano» faltante
a la madre. Al recurrir al significante falo, ¿no estaría Lacan dando cuenta de un
malabarismo psíquico defensivo de sustitución de aquello imposible de nombrar
por la imagen del no «órgano» de la madre, que daría cuenta de la separación de
46 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

dos entidades, cuerpo materno e infans, imaginado como cuerpo materno y pene?
Sería la castración primigenia que no puede ser ni imaginada ni simbolizada, resig-
nificada por la diferencia sexual (castración edípica) gracias a un recubrimiento de
lo imaginario sobre lo real: es el Yo quien toma el relevo de la angustia del «Je»,
para gran alivio del sujeto, puesto que el Yo puede jugar sus señuelos ilusorios de
completitud y de satisfacción total del deseo.14 Este malabarismo solo es posible
gracias al sostén simbólico que le provee el orden androcéntrico: la pérdida de algo
del cuerpo de la madre/mujer significada como castración (¿pérdida de un supuesto
pene o pérdida de su producto, el hijo/a? ) y, por lo tanto, como falta, como imper-
fección, toma el relevo de una pérdida más difusa y profunda que se confunde entre
una nostalgia posiblemente cenestésica (Anzieu, 1998) y el corsé de frustración que
pone el lenguaje a toda demanda acerca de un retorno imposible al no deseo (Au-
lagnier, 1975). Todo ello en un confuso intento proyectivo a la vez que especular
para explicarse el displacer de la falta.

CONCLUSIÓN. ¿ANDROCENTRISMO COMO NEGACIÓN DE LA FALTA?

El orden simbólico androcéntrico proveería entonces la posibilidad de negación de


la pérdida, transformando la falta en un señuelo imaginario y la posesión de un fe-
tiche (la masculinidad representada por el pene y que puede desplazarse en otros
objetos) como un signo de poder y valoración según el discurso de la Ley del Padre
y de su linaje. La angustia (de castración) y la melancolía de la pérdida, subsumidas
en una y traducida como la primera, marcarían al sujeto, obligándolo a seguir su des-
tino filomemético, estructurando el deseo según el orden del parentesco sujeto/ob-
jeto; en otras palabras, con la posición masculina y femenina respectivamente.
Podríamos pensar que, en el caso de los varones que describe Freud, se niega la
pérdida y la melancolía se transforma en su contrario asociándola a una mutilación
anatómica (desprecio y horror de la supuesta castración femenina), legitimada esta
escena en la que se confunde la alucinación con la imagen, por la apología simbólica
de la virilidad y su emblema, el pene. En el caso de las mujeres que define el Maes-
tro, emergería una suerte de desconcierto al carecer en el sistema androcéntrico de
un señuelo que les permita salir de la melancolía, y podrían optar por permanecer
en ella, o adoptar la posición femenina que les devuelve un símil de subjetividad

14
En francés, existen dos términos para designar el Yo. Yo como ser sujeto = Je, y la instancia
imaginaria del lugar por excelencia del Yo = Moi, con sus fenómenos de ilusión y de señuelo (Roudi-
nesco y Plon, 2000: 500). El Moi lacaniano correspondería al Yo freudiano, y para traducir el Je re-
curriremos al sí mismo sin la intención de que se lea este término en su traducción inglesa de self,
propio de la teoría psicoanalítica de Winnicott.
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 47

activa en la maternidad, o, por último, protestar frente al sistema que no proveyó para
ellas el sostén simbólico para constituirse en sujeto sustantivo (Freud, 1931/1981).
Esto último es denominado elegantemente por la teoría psicoanalítica como la envidia
de pene.
Desde esta interpretación podríamos incursionar en terrenos arcaicos más con-
trovertidos, como por ejemplo la sustitución por dioses masculinos, eventualmente
un dios único, de las deidades femeninas que ordenaron por siglos el sistema sim-
bólico, como exhaustivamente lo demuestra el estudio de Merlin Stone, Cuando
Dios fue una mujer (Stone, 1993). Podemos pensar que el andamiaje del sistema
sexo-género androcéntrico ha sido una maniobra defensiva psicopolítica útil para
sostener el deseo y correr detrás del señuelo. El deseo (libido) en ambos sexos parte
de una pérdida primigenia que es común a todo humano. Como expresa Soler, «la
paridad [entre los sexos] en la falta resulta restablecida» (Soler, 2006: 42). Pero no
es suficiente para debilitar el andamiaje que transforma esta pérdida simbólica en
imaginaria, basado en una creencia de un órgano universal que unos conservan y
otras pierden. Y si esta conceptualización en términos de tener/no tener, fálico/cas-
trado, remite, como señala Ravinovich, a una «privación de algo inscripto en el
orden simbólico», ya está todo develado. Retomamos la cita de Lacan ya mencio-
nada acerca de que la castración es «…una relación del sujeto con el falo que se es-
tablece independientemente de la diferencia anatómica de los sexos y que es, por
ello, una interpretación especialmente espinosa en la mujer y con relación a la
mujer» (Lacan, 1985: 666, en Ravinovich, 1995/2009: 19), y pensamos que lo espi-
noso no solo es la falsa interpretación de una mutilación de un supuesto pene fe-
menino, sino que más bien lo espinoso es el exilio de lo femenino del orden
simbólico. El ejemplo por excelencia lo constituye el mito del nacimiento de Atenea
de la cabeza de Zeus sin mediación de un cuerpo de mujer, cuerpo que a su vez
había sido devorado por el mismo Zeus. Robert Graves sugiere que este mito re-
presenta cómo el culto a los Olímpicos y a Zeus sustituyó el antiguo culto a la diosa,
en este caso Metis, que quedó incorporada dentro de Zeus, cuyo producto, Atenea,
es propiedad solo del dios en clara subordinación (Graves, n. d.).15
Lo que la teoría psicoanalítica denuncia, a pesar suyo, es la construcción imagi-
naria de un sistema de valoración sexo-genérica que durante siglos ensalzó la pose-
sión de un órgano con el fin de delimitar dos colectivos, uno dominante y otro

15
Jane Ellen Harrison (1850-1928), académica e investigadora de la mitología griega en Cam-
bridge, considera que el mito del nacimiento de Atenea de la cabeza de Zeus fue un modo de subor-
dinar la figura de la diosa de Atenas a un dios varón superior. Atenea era la representante de la
sabiduría y el conocimiento perteneciente al culto de los Titanes (Metis, la inmortal, estaría en el
origen de la existencia de la diosa). Fue despojada de parte de sus cualidades cuando dicho culto fue
suprimido por los aqueos, quienes impusieron la veneración de Zeus, en tanto el dios más poderoso.
48 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

subordinado. Dicha dominación habría servido de modelo para otras dominaciones


(clase, raza, etnia) (Scott, 1990) y habría traído beneficios políticos, sociales y eco-
nómicos a partir de una extrapolación de un imaginario que cree en el binomio «fá-
lico/castrado» y lo traduce en «tener/no tener» un determinado atributo. En otras
palabras, lo que construye la teoría es la legitimación de un señuelo: la castración,
ya sea real, imaginaria o simbólica, reverbera en una producción de sentido que
tiene por objeto escamotear el sesgo sexista y político del discurso sobre las subje-
tividades. Un intento de naturalizar la jerarquía de los sexos con apariencia de des-
naturalización: un malabarismo que, en miles de divanes a lo ancho del planeta,
está vigente hasta hoy.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORÓS, Celia (1992): «Notas para una teoría nominalista del patriarcado», en As-
parkía, Universitat Jaume I, Castellón, pp. 41-58.
ANZIEU, Didier (1998): El yo piel, Madrid, Biblioteca Nueva.
AULAGNIER, Piera (1975): La violence de l’Interprétation, Paris, PUF.
BACHOFEN, Johan Jacob (1861): Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gy-
naikokratie der alten Welt nach ihrer religiösen und rechtlichen Natur, Stuttgart.
BUTLER, Judith (2002): Cuerpos que importan, Buenos Aires, Paidós.
CHAVALARIAS, David, COINTET, Jean-Philippe (2013): «Phylomemetic patterns in science
evolution. The rise and fall of scientific fields», Plos.One, February 11, 2013, DOI:
10.1371/journal.pone.0054847http://www.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1
371%2Fjournal.pone.0054847 (consultado el 17 de diciembre de 2013).
ERRÁZURIZ, Pilar (2012): Misoginia romántica, psicoanálisis y Subjetividad feme-
nina, Zaragoza, Prensas Universitarias.
FREUD, Sigmund (1912-1913): Tótem y Tabú, Obras Completas (1981), Madrid,
Biblioteca Nueva.
— (1931): Sobre la sexualidad femenina, Obras Completas (1981), Madrid, Biblio-
teca Nueva.
— (1933): La feminidad, Obras Completas (1981), Madrid, Biblioteca Nueva.
GRAVES, Robert (1968): Greek Myths and Legends, Londres, Cassell.
HARRISON, Jane Ellis (1927/2010): Themis: A Study of the Social Origins of Greek
Religion, New York, Cambridge University Press.
IRIGARAY, Luce (1974): Ce sexe qui n’en est pas un, Paris, Minuit.
LACAN, Jacques (1985): «La Significación del falo», Escritos, tomo II, Buenos Aires,
Siglo XXI.
LERNER, Gerda (1990): La creación del patriarcado, Barcelona, Crítica.
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 49

MITCHELL, Juliet (1981): «Introduction», en Feminine Sexuality, London, Macmi-


llan, en Tubert, Silvia (1988): La sexualidad femenina y su construcción imagina-
ria, Madrid, El Arquero, p. 47.
PULEO, Alicia (1998): «Patriarcado», en Amorós, Celia (dir.): Diez palabras clave
sobre mujer, Pamplona, Verbo Divino.
RAVINOVICH, Diana (1995/2009): Lectura de «La significación del Falo», Buenos
Aires, Manantial.
RODRÍGUEZ HERRANZ, R. y SERRANO MUÑOZ, L. (sept./dic., 7/2, 2005): «El concepto del
matriarcado: una revisión crítica», Dpto. Prehistoria, UCM. http://222.ucm.es/info/ar-
queoweb (consultado el 3 de diciembre de 2013).
ROUDINESCO, Elisabeth y PLON, Michel (2000): Dictionnaire de la Psychanalyse,
Paris, Fayard.
SCOTT, Joan (1990): «El género, una categoría útil para el análisis histórico», en
Amelang, James, Nash Mary (eds.): Historia y género: las mujeres en la Europa
moderna y contemporánea, Valencia, Alfons el Magnànim.
SOLER, Colette (2006): Lo que Lacan dijo de las mujeres, 2006, Buenos Aires, Paidós.
STONE, Merlin (1993): When God was a woman, New York, Barnes & Noble Books.
WALKER, Barbara (1983): The Woman’s Enclyclopedia of Myths and Secrets», New
York, Harpers Collins Books.
3. Las otras víctimas de la moda
Lucile DESbLaChE
Centre for Research in Translation and Transcultural Studies
Roehampton University

E
l carácter intrínsecamente efímero de la moda, limitado al ámbito de la ropa
o más allá de él, facilita la adaptación a las mutaciones constantes de las cul-
turas contemporáneas y es muy apreciado por las sociedades de mercado.
Este fenómeno consumista otorga a los individuos, y particularmente a las mujeres
cuya expresión identitaria se halla más fuertemente ligada a la moda, el sentimiento
de estar en una transformación perpetua. Sugiere la posibilidad de infinitas meta-
morfosis, de modelos de crecimiento económico a esos seres en devenir que somos,
los humanos que «deseamos sin fin» (Vaneigem, 1996). Si bien el impacto de la vo-
rágine de la moda es cada vez más visible, esta valoración de lo nuevo y de lo mo-
mentáneo está creciendo desde la implantación de la moda industrial en los países
occidentales. Gilles Lipovetsky ha trazado un retrato completo de ello desde 1987.
No obstante, si esta moda hoy omnipresente es muy estudiada como fenómeno de
sociedad, ha sido poco conceptualizada, en particular con respecto a lo que su pro-
ducción implica. hasta ahora, la inmensa mayoría de los productos de maquillaje
y de toilette son experimentados en animales1 y muchos de ellos contienen ingre-
dientes de origen animal. además, un gran porcentaje de la vestimenta utiliza pro-
ductos extraídos de animales vivos o a los que se ha dado muerte para ese uso, de
la lana a la seda, de la piel a las plumas y los duvets.
Querría considerar aquí a la moda en ese contexto particularmente «no pensado»
de lo que Roland barthes habría podido llamar el triángulo «combinatorio»2 de la
moda, las mujeres y los animales, centrándome esencialmente en el caso de la Fran-

1
El Reglamento (CE) nº 1223/2009 del Parlamento Europeo y del Consejo de 30 de noviembre
de 2009 sobre los productos cosméticos prohíbe en Europa, a partir del 11 de julio de 2013, toda
venta de productos cosméticos que hayan sido experimentados en animales.
2
Puede encontrarse a lo largo de todo su Système de la mode (1967) la idea de que el sistema de la
moda, como una lengua, está ligado por una combinatoria de signos. Ver en particular las páginas 93,
203 y 206.
52 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

cia de hoy en día. No nos puede sorprender que los animales no sean tenidos en
cuenta en la óptica de la corriente dominante de la moda, mercantilizada y masifi-
cada. Sin embargo, en el siglo xxi, numerosos movimientos alternativos tratan de
pensar la moda como plataforma ética, como metamorfosis social que desafía a la
producción de masas. Cuando estos movimientos están vinculados a la ecología o
al desarrollo sostenible, a perspectivas feministas o a filosofías que preconizan un
retorno a una mejor calidad de vida, como el movimiento lento (slow), por no citar
más que uno, cualesquiera sean las orientaciones de sus miradas, resulta aún más
sorprendente que la reflexión sobre los animales —que contribuyen de manera tan
fundamental en la vestimenta, los accesorios y el maquillaje, y que son tan frecuen-
temente víctimas de esta aportación— esté prácticamente ausente.
Mi objetivo será, pues, reflexionar sobre esta ausencia desde el contexto del
triángulo «combinatorio» mencionado anteriormente. al haber elegido explorar
la paradoja de la negación de los animales, principalmente entre las mujeres, mi
objetivo, ciertamente, no es esencializar la diferencia de los sexos en lo que con-
cierne a sus actitudes con respecto a los animales. hombres y/o mujeres pueden
apoyarlos, explotarlos o ser indiferentes a su suerte. además, la moda, si bien sigue
siendo altamente «generizada» y puede constituir casi una obsesión para algunas
mujeres, interesa cada vez más a los hombres. Traduce un deseo de «estética de
un nuevo comienzo» (baudrillard, 1976) y de aceptación social para ambos sexos
que es inherente a las sociedades occidentales actuales. No obstante, histórica y
culturalmente, las mujeres mantienen a la vez relaciones estrechas con la moda
—sus maneras de vestir, de peinarse y el hecho de maquillarse responden, en
efecto, a ciertas tendencias, presiones o códigos sociales que forman parte de sus
hábitos— y con los animales, que se han incorporado siempre a su vida cotidiana
de manera quizás más sistemática que en la de los hombres, como señalaré en el
siguiente apartado. Esta paradoja, que les lleva en la mayor parte de los casos a ig-
norar la explotación animal sobre la que se funda la moda, a no reflexionar sobre
esta última, es, pues, reveladora de una ambigüedad silenciada y que es necesario
examinar.

MUjERES y aNiMaLES

Numerosos estudios universitarios han documentado que, social y culturalmente lle-


vadas a desinteresarse de su propia persona más a menudo que los hombres por las
relaciones que mantienen con sus hijos y con los otros en general, las mujeres man-
tienen una relación privilegiada de empatía con los animales. han influido también
la etología con formas de pensar y observar a los animales que han favorecido siste-
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 53

máticamente la escucha de otros lenguajes y dado la palabra a los animales.3 El pri-


mer movimiento anti-vivisección fue asimismo organizado mayoritariamente por
mujeres victorianas hacia 1875. Como nos recuerda Emily Gaarder, las mujeres com-
prometidas en el apoyo a los animales «vieron relaciones simbólicas entre la condi-
ción de las mujeres y la de los animales en la sociedad, e identificaron también
experiencias personales que consideraban similares a las de los animales, en parti-
cular las de la violencia, impotencia, mutismo y ser tratadas como objetos».4 Citaré
algunas cifras de distintos ámbitos que confirman estas relaciones privilegiadas en
la Francia actual. Un sondeo efectuado en diciembre de 2012 para la revista Elle
muestra que el 86,8 % de las francesas están contra el uso de las pieles.5 Según un
sondeo Sofres efectuado en 1997, mientras que el 60 % de los franceses (sin distin-
ción de sexo) están contra la caza y el 36 % a favor de la misma, entre las francesas
el porcentaje del rechazo se eleva al 68 %, 18 % están a favor y el 14 % no sabe, no
contesta. observemos que Francia es el país que ocupa el primer puesto europeo
de la caza y que el 98 % de los cazadores son varones.6 En lo que respecta a la ex-
perimentación animal, entre los europeos en 2010, el 49 % de los hombres se pro-
nunciaba a favor, en contraste con el 39 % de las mujeres.7 Si bien a las francesas no
les agrada más que a los hombres ocuparse de las tareas domésticas, a las que con-

3
Para un listado de artículos universitarios que señalan la tendencia de las mujeres a sentirse más
concernidas que los hombres por la crueldad hacia los animales, ver Kruse (1999), en particular la
página 180. Puede consultarse online. En lo que se refiere al impacto femenino en el estudio científico
de los animales, nos referiremos en concreto a la obra de Donna haraway, a una plétora de trabajos
de primatólogas de las que jane Goodall ha sido la más célebre; y a las publicaciones de Vinciane
Despret. Esta última resume los rasgos esenciales de ese impacto de las mujeres en el capítulo «Les
animaux rendent les hommes intelligents», en Karine Lou Matignon, a l’écoute du monde sauvage.
Pour réinventer notre avenir, Paris, albin Michel, pp. 149-169. También puede consultarse las obras
de Val Plumwood y Carol adam; en particular, el libro de Carol adams y josephine Donovan animals
and Women.
4
«They [women supporting the animal rights movement] saw symbolic connections between
the status of women and animals in society, but also identified personal experiences they considered
to be similar to those of animals, including violence, disempowerment, lack of voice and treatment
as objects». (Gaarder, 2011: 149).
5
Sobre temas controvertidos, los porcentajes varían según la página de que se trate. En las corres-
pondientes a simpatizantes de los animales, como « Mes opinions », un sondeo sobre las pieles recoge
un 99 % de votos contra el uso de pieles de un total de 19 576 participantes, hombres y mujeres. En
un portal más neutro, como 1001-votes.com, el resultado del sondeo de 2006 « Êtes-vous pour ou
contre l’usage de la fourrure» dio los siguientes resultados : 87, 1 % contrarios, 12,9 a favor. Ver
http://www.1001-votes.com/vote/sondage__pour_ou_contre_la_fourrure__21948.html (consultado
el 5 de mayo de 2013).
6
Ver la página de la liga RoC: http://www.roc.asso.fr/non-chasseur/sondage-chasse-femme.html
(consultado el 5 de mayo de 2013).
7
Sondeo efectuado por la Comisión Europea: http://ec.europa.eu/public_opinion/archi-
ves/ebs/ebs_340_en.pdf (consultado el 5 de mayo de 2013).
54 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

sagran, por cierto, una hora y cuarenta minutos más que ellos de media por día, los
momentos que más aprecian de esas tareas, después de ocuparse del jardín, son los
consagrados a los cuidados a los animales (igual que el tiempo que pasan con los
niños).8 además, a nivel mundial, las veterinarias son más numerosas que los hom-
bres y en algunos países como Estados Unidos y Francia esta tendencia se ha incre-
mentado en veinte años, con un 75 % de mujeres en los colegios veterinarios en la
actualidad.9 Podría continuar exponiendo este palmarés de afinidades de las mujeres
con los animales pero estos pocos ejemplos bastan para ilustrar la tendencia general.
Sin embargo, el mercado textil y cosmético es inseparable de un uso abusivo de
los animales. Del conejo de angora al gusano de seda, del mutón a la cabra, de los
avestruces a los jabalíes, de los zorros a las gamuzas, de la foca a la llama, la mayor
parte de los mamíferos no humanos y ciertos no mamíferos son cazados o criados
y matados para obtener su piel u otra sustancia. La moda, tanto de la ropa como
de la cosmética, es uno de los sectores de la industria más floreciente, y uno de los
que más explotan a los animales. ¿Por qué se da la prioridad al objeto en vez de
dársela al ser vivo? ¿Por qué se aceptan objetos obtenidos a través de un proceso
cruel a menudo condenado por las consumidoras?

TRaDiCioNES CaMPESiNaS E iNDUSTRiaLES. EL PoDER DEL hábiTo

algunas respuestas a estas preguntas tienen orígenes históricos y culturales. Las ac-
titudes francesas con respecto a los animales siguen siendo mayoritariamente las de
una población católica «campesina» en la que el papel de los animales es servir a los
seres humanos. Como muestra Catherine Paysan en una de sus obras autobiográficas
(Paysan, 1997), el ochenta por ciento de los franceses proviene del pequeño campe-
sinado, de ahí que existan más actitudes ecológicas que animalistas en la mayor parte
de los franceses para quienes, tradicionalmente, los animales eran, antes que nada,
instrumentos de subsistencia que formaban parte del medio de subsistencia. Cuando
la vida es difícil para los humanos, lo es aún más para los animales, a quienes se
otorga un estatus inferior: un animal (y sus productos) es algo que se transforma en
dinero, que se utiliza como auxiliar de trabajo o se come. Quizás esto explique el
hecho de que, según ciertos sociólogos, «la tradición francesa se caracteriza por una
ruptura más acentuada entre la vida biológica y la vida social»10 (Despret, 2009: 74).

8
insee, Enquête emploi du temps 2010, «Les moments agréables de la vie quotidienne»
http://insee.fr/fr/themes/document.asp?reg_id=0&ref_id=ip1378 (consultado el 5 de mayo de 2013).
9
Esta tendencia es mundial. En Francia, se constata que «la tasa de mujeres admitidas en el con-
curso de entrada a los colegios veterinarios ha pasado del 60 % al 75 % entre 2000 y 2008» (Langford,
2010) (consultado el 5 de mayo de 2013).
10
La autora retoma aquí una idea de Gilles Le Pape (1993).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 55

Tradicionalmente, las mujeres del pequeño campesinado francés —que ha consti-


tuido la capa social más extensa hasta la segunda mitad del siglo xx— se ocupaban
de los animales. alimentaban a las gallinas, ordeñaban a las vacas, cuidaban de las
cabras, pero también retorcían el cuello de los conejos y de las gallinas destinadas a
la mesa sin ningún sentimiento de pena. Los animales de las y los campesinos eran,
eminentemente, recursos con patas y, si bien, en la actualidad, Francia ya no es un
país rural puesto que queda menos de un millón de agricultores y agricultoras,11 las
actitudes culturales ampliamente transmitidas por las mujeres, evolucionan más len-
tamente que la economía. Las fronteras entre lo humano y lo no humano, a menudo
borradas por los habitantes de las ciudades de hoy en día, aún permanecen marcadas
y la huella de una época en la que era importante distinguirse de los animales para
obtener el respeto de los humanos se percibe todavía.
En la Francia pre-industrial, las mujeres pasan el invierno hilando la lana, el lino
y el cáñamo, nos recuerda jean-antoine Chaptal en su célebre estudio De l’industrie
française12 (1819). Si bien en el conjunto, son los hombres quienes tejen las telas, la
entrada más visible de las mujeres en el mundo del trabajo se produce en la industria
textil, escapando así de los confines de la esfera doméstica. Las obreras de la seda
se convierten en las primeras en reivindicar un trabajo especializado al mismo título
que los hombres y son las pioneras de la industria textil, del vestido y del cuero, en
los mismos ámbitos en que hoy son mayoritarias (iNSEE, 2005).
En lo que concierne al mundo de la moda, podemos decir, pues, que las mujeres
son tanto productoras como consumidoras de larga data. Los materiales de lujo
como la seda o las pieles, asociadas a un estatus social elevado, han suscitado du-
rante largo tiempo la envidia de las menos pudientes. Por una parte, utilizar sus-
tancias animales daba acceso, para algunas, a una plataforma de emancipación. Por
otra parte, llevar vestimentas o accesorios fabricados a partir de animales revelaba
una pertenencia social deseable. En la era pre-industrial o al comienzo de la indus-
trial, el interés de las mujeres las llevaba a considerar a los animales como objetos
que permitían mejorar la existencia humana al favorecer una evolución social que,
en el caso de las mujeres de condición modesta, solo era accesible por medio del
matrimonio.
igualmente, se ha establecido y transmitido una tradición femenina de repre-
sentación de sí en la sociedad a través de una genealogía femenina. Para cambiar
un hábito o dependencia, es necesario tener apoyo del medio. Pensemos, por ejem-

11
«agricultura Quedan menos de un millón de agricultores en Francia. Según el último censo
agrícola, en diez años, una de cada cuatro explotaciones ha desaparecido», France-Soir, 15 de sep-
tiembre de 2011.
http://www.francesoir.fr/actualite/societe/agriculture-il-reste-moins-d-un-million-d-agriculteurs-
en-france-137428.html (consultado el 5 de mayo de 2013).
12
Ver especialmente el capítulo V del primer tomo: «Du lin et du chanvre», p. 208.
56 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

plo, en la asistencia médica y familiar necesaria para una persona que quiere dejar
de fumar. ahora bien, si las costumbres de las abuelas o de las madres de las jóvenes
consumidoras proponen modelos en que los animales son meros recursos naturales
considerados como propios, todo en la sociedad refuerza esa actitud. Se anima a
las mujeres a seguir las corrientes de la moda, a «consumir» tendencias sin plantearse
preguntas sobre lo que la compone. algunos llegan a decir que ellas se pliegan a
una «dictadura de la apariencia» según la cual estar «bien» vestida genera respeto
y «si es verdad que estar maquillada da más confianza en una misma, parecería que
los otros tengan también más confianza en nosotras con un toque de rubor o un
poco de maquillaje» (Schneider, 2012). aunque la moda actual ofrece un amplio
abanico de posibilidades de elección, el «32 % (de las francesas) consideran la be-
lleza o cuidarse como un deber, una obligación social y necesaria en su relación con
los demás» (berger, 2012). Un sondeo británico de 2012 revela que el 70 % de las
mujeres tendría miedo de ir a trabajar sin maquillaje (Stevens, 2012).13 Más allá del
deseo de sentirse bien y de agradar a los demás, parece presente la presión del con-
formismo social. además, como para otros productos, numerosas mujeres perma-
necen fieles a su marca, en particular con los perfumes. En lo que concierne a la
ropa, a excepción de las pieles, pocas son las que rechazan los productos fabricados
a partir de animales (zapatos de cuero, americanas de lana…), a lo que hay que aña-
dir que, a menudo, las alternativas de calidad son costosas y se encuentran con di-
ficultad. Si bien las mujeres, según un sondeo europeo de octubre de 2012,14 leen
las etiquetas de composición de los artículos más sistemáticamente que los hombres,
no parecen querer informarse más que ellos sobre el proceso que ha llevado a la fa-
bricación del producto terminado. Como escribía Marguerite yourcenar, amante
de los animales y siempre un poco misógina, las mujeres no tienen al respecto nin-
gún «trapo como excusa» (yourcenar, 1991: 333).

URbaNizaCióN, DESCoNExióN DEL MUNDo NaTURaL E iLUSióN DE ELEGiR Lo CoN-


SUMiDo

aunque ciertas huellas de actitudes heredadas de la época pre-industrial persisten a


lo largo del siglo xx, los comportamientos evolucionan visiblemente al hilo de la ur-
banización exponencial que ha transformado y continúa transformando Francia. En

13
Este sondeo ha sido realizado a 3 000 mujeres para Vitality Show, un salón de belleza británico.
14
« There […] is a very clear trend for women to check the ingredients or composition of products
before buying them more than men. Women are particularly likely to check the following products
more than men: cosmetics and beauty products, clothes, food, toys, cleaning products and furniture
». http://ec.europa.eu/public_opinion/flash/fl_361_en.pdf (consultado el 6 de mayo de 2013).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 57

lo que se refiere a la ropa y otros accesorios, los animales continúan siendo objetiva-
dos, pero de una manera distinta. Mientras que la gran mayoría de las mujeres estaba
implicada en ciertos procesos de elaboración necesarios al vestido y a la perfumería
(trabajaban la lana, el cuero o la seda, recogían y cardaban el lino y el cáñamo, u
otros vegetales) ahora son en su mayor parte, desde hace unos cien años, únicamente
consumidoras de estos productos. De ahí deriva una indiferencia generalizada con
respecto al proceso de fabricación de lo que se lleva. Los criterios esenciales son la
disponibilidad, el confort, el precio, la estética y el prestigio.
Por tomar el ejemplo de los textiles, ¿quién conoce ahora la diferencia entre fi-
bras sintéticas y artificiales?15 ¿Quién puede pretender cultivar esas fibras o incluso
conocer su proceso de fabricación, sin hablar del origen vegetal de las telas que se
llevan? Una creciente diversificación de los materiales, ligada a la ignorancia del
público en lo que se refiere a los productos naturales, contribuye a cierta confusión
entre consumidores y consumidoras, que ya no saben muy bien lo que compran.
En un número especial consagrado a las fibras naturales, L’écologiste16 propone
un artículo de fondo sobre la seda. ahora bien, este artículo, rico en informaciones
históricas sobre la manufactura de la seda, no dice nada sobre los procedimientos
utilizados para confeccionarla ni de los animales vivos que constituyen su materia
prima. Una escisión semejante parece existir entre las mujeres interesadas por el
producto terminado de la moda, que lo consumen sin preguntar, y las que trabajan
en la industria del vestido, del textil y de los cosméticos, en la mayor parte de los
casos como obreras.17
Esta indiferencia y esta falta de toma de conciencia con respecto al mundo na-
tural es más visible y sorprendente en el caso de los animales. Evidentemente, por
poner un ejemplo, todo el mundo ha visto una vaca, pero la asociación de esa vaca
con el cuero del que provienen los zapatos y los bolsos es, aunque real, distante,
percibida como vagamente inevitable y, por lo tanto, no cuestionada. En lo que
concierne a las pieles, cuyo uso es condenado por la mayor parte de las francesas,
su integración en la ropa es a menudo insidiosa. así, en el caso de ciertos animales
como los zorros, tanto salvajes como de criadero, el 90 % de la piel utilizada está,

15
Las fibras artificiales, como la viscosa, son fabricadas a partir de materias primas naturales, mien-
tras que las fibras sintéticas son el producto de reacciones químicas (polyester, acrílico, nylon…).
16
«La soie d’hier à aujourd’hui», L’écologiste n° 29, julio de 2009 (pp. 29-39).
17
Para más precisiones, ver el siguiente informe del iNSEE : « Las mujeres son muy mayoritarias
en el vestido y el cuero, en menor medida en la farmacia, perfumería y productos de limpieza, y ocupan
casi la mitad de los empleos en la industria textil. [...] En dos de los tres sectores más feminizados,
vestido y cuero, y en menor medida, la industria textil, las mujeres son muy frecuentemente obreras ».
Le 4 pages des statistiques industrielles, n° 200, enero de 2005, «L’emploi des femmes dans l’industrie.
La qualité plutôt que la quantité», http://www.insee.fr/sessi/4pages/pdf/4p200.pdf (Consultado el 6
de mayo de 2013).
58 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

de hecho, actualmente consagrada a accesorios agregados a los artículos de moda


de manera poco visible. El consumo de pieles aumenta ciertamente gracias a los
nuevos mercados asiáticos pero también en Europa, más subrepticiamente, sin que
el público consumidor tenga plena conciencia de una utilización abusiva de los ani-
males. Deseosos de no abrir controversias éticas indeseables y potencialmente per-
judiciales para sus cifras de negocios, los fabricantes han encontrado una manera
discreta de promover las pieles. aunque el movimiento ecológico presta cierta aten-
ción a la moda, proponiendo una corriente ética de algodón ecológico, materiales
reciclados y otras innovaciones, nadie parece cuestionarse este desinterés y solo al-
gunos movimientos que tratan de promover el bienestar animal plantean algunas
cuestiones con el objetivo de restablecer una toma de conciencia de las relaciones
entre el producto y el ser del que proviene. Las asociaciones de protección animal
proponen páginas con numerosos datos pero buscarlas implica al comienzo cierto
deseo de compromiso, en una época saturada de información.
Esta indiferencia postmoderna está acompañada de la ilusión de la elección. El
consumismo occidental del siglo xxi es atractivo por el abanico de productos que se
ofrecen: frambuesas en el mes de febrero, lana de alpaca de Perú y vinos de áfrica
del Sur en Europa, steak de canguro en ciertas cadenas de restaurantes… Se condi-
ciona a consumidores y consumidoras a poder comprar todo en todo momento. Se
trata, por supuesto, de una ilusión, por una parte porque las frambuesas del mes de
febrero no tienen el mismo gusto que las del mes de junio y, por otra, porque solo
aparecen en el mercado los productos transportables, almacenables o de fácil imita-
ción. El reemplazo del consumo de animales salvajes por animales de criadero o de
clonaje en la alimentación y la moda (en particular en la peletería) es presentado y
asumido como una solución aceptable por un público a menudo éticamente bien in-
tencionado. Sin embargo, además de los sufrimientos que implica para los animales,
plantea problemas cada vez más insolubles por la contaminación que genera, el control
de enfermedades que implica y el aprovisionamiento de animales que exige. Moda,
ropa, perfumería: los fabricantes y revendedores han tomado la costumbre de consi-
derar a los animales como materias primas fácil y gratuitamente utilizables, como pro-
ductos desechables, productos que se matan, transforman y venden. La idea según la
cual la cría permite preservar la biodiversidad perpetúa así la peligrosa noción de que
los seres humanos pueden construir y otorgarse a sí mismos un ser vivo controlado
en paralelo al universo salvaje existente, y que, en ese vivero, todo está permitido.

EL PLaCER DE Lo EFíMERo

En su esencia, la moda pertenece al dominio de lo efímero y del cambio. Según


Desmond Morris, «la moda concierne esencialmente lo nuevo. Somos una especie
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 59

neófila y no se puede ser una especie innovadora sin disfrutar de la excitación de


los nuevos descubrimientos […] así, el mundo de la moda (la ropa, el maquillaje,
la música pop, el baile…) nos expone a nuevas ideas y al adoptarlas, nos sentimos
bien porque eso corresponde a las características de nuestra especie»18 (Morris,
2011). Si la moda pertenece al mundo del placer del cambio, entonces se trata de
un mundo de impulsos en que se compra, espontáneamente, sin reflexionar. al fin
y al cabo, esa es la prerrogativa del placer. En la era de los escándalos del consumo
ligados a la carne de caballo, se habla mucho de trazabilidad, del derecho a conocer
el origen de los productos que se compran. No obstante, los consumidores y con-
sumidoras se interesan mucho por conocer el origen geográfico de esos productos,
u otro origen insustancial, pero no quieren saber y se instalan en un cómodo olvido.
«De hecho», recuerda François Collart Dutilleul con respecto a la alimentación,
«se olvida que las materias primas agrícolas y los alimentos procesados son necesa-
rios para la vida de toda persona, Estos productos no deberían en ningún momento
ser tratados como mercancías ordinarias» (Collart Dutilleul, 2013: 16). Este olvido
semi-deliberado es un olvido de resignación con respecto a la alimentación necesaria
(«¡algo hay que comer!»). Pero la moda, más allá del conformismo social evocado
anteriormente y del que hemos dicho que era superficialmente menos fuerte pero
no menos presente, es un placer individual inevitablemente asociado a cierto ego-
ísmo y que lleva a un cómodo olvido («¡yo me lo merezco!»), tanto más puesto
que se compra a menudo por compensación, para «levantarse la moral». Tanto si
es por placer como si es por compensación, el yo pasa por delante del otro, parti-
cularmente cuando la compra se hace por un impulso. Como Ron broglio ha argu-
mentado, los animales, desprovistos de interioridad humana, viven en la superficie
de las cosas (broglio, 2011). Los humanos se apropian de esta «superficie», en par-
ticular en la moda, inventándose nuevas pieles, apropiándose de las identidades
originarias a través de esas alteridades tan a menudo animales.
La moda contemporánea, escribe la novelista Cécile Guilbert (2011a), está más
asociada «al deseo de ser finalmente uno mismo» que de ser definido o reconocido
por el otro. El dictado de las firmas de ropa está a la baja. Se trata, por tanto, de
dejarse llevar por el deseo rápido de cambio, consumiendo de manera pasajera,
identificándose temporalmente con los productos que se compra, pues aunque las
francesas no son más que las quintas consumidoras mundiales de moda en el plano
presupuestario, el 70 % de ellas «reconocen ponerse menos de la mitad de la ropa

18
«Fashion is essentially concerned with novelty. We are a neophilic species and you can’t be se-
riously innovative as a species without enjoying the thrill of the new discoveries. […] So the fashion
world (clothing, make-up, pop songs, dances, etc.) constantly throws new ideas at us and adopting
these makes us feel good because it suits the character of our species». (Morris, 2011)
60 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

que poseen».19 Puesto que la ropa y los cosméticos no son más que accesorios efí-
meros y reemplazables, comprados bajo un impulso y a menudo inmediatamente
relegados al armario, es comprensible que pocas consumidoras quieran investigar
a partir de qué son fabricados o se pregunten sobre el proceso de fabricación y sus
consecuencias. ahora bien, contrariamente a lo que podría pensarse, en Francia las
mujeres gastan, de promedio, menos en ropa que los hombres.20 Estas estadísticas
pueden sorprender y sugerir que las francesas no son ni las víctimas sistemáticas
de la moda (Emer, 2006) descritas por tantos sociólogos, ni las consumidoras exa-
geradas y narcisistas cuya imagen estereotipada dibujan los media.
Efectivamente, el sector comercial de la ropa y la cosmética está interesado en
perpetuar esa imagen. En lo que respecta a la moda de los cosméticos (maquillaje,
mantenimiento…), lo que está en juego es particularmente importante para Francia.
La industria de los cosméticos es el tercer exportador neto (después de la aeronáu-
tica y las bebidas).21 incluso en Francia, aunque los países emergentes son mejores
consumidores, un gigante de la cosmética como L’oréal ha continuado su creci-
miento en período de crisis (Vulser, 2013). El sub-sector del maquillaje, en parti-
cular, no ha mostrado ningún signo de estancamiento y se desarrolla en valor y
volumen. a pocos meses de la prohibición europea de experimentación animal
sobre productos cosméticos,22 todas las grandes compañías de cosméticos, incluso
las que apoyan la abolición de la experimentación animal como L’occitane,23 se en-
cuentran presionadas para aceptar las exigencias chinas de experimentar sus pro-
ductos con animales a fin de abrirse a los mercados emergentes. Si las mujeres son
las consumidoras deseosas de informarse y preocupadas por el bienestar animal
que las encuestas públicas revelan, es difícil aceptar que sus elecciones estén deter-
minadas por impulsos hiperconsumidores y que no sean éticas más frecuentemente.

19
Cifras del institut Français de la Mode citadas en «Les Françaises élégantes mais avec peu de
vêtements», 20minutes.fr, 31 de agosto de 2011. http://www.20minutes.fr/article/778670/francaises-
elegantes-peu-vetements (consultado el 6 de mayo de 2013).
20
«y entre 25 y 30 años, consumen incluso más que las mujeres y son más fieles a las marcas».
«Mode: les hommes achètent autant que les femmes», TF1 News, 23 de junio de 2010.
http://lci.tf1.fr/economie/consommation/2010-06/mode-les-hommes-achetent-autant-que-les-
femmes-5897026.html (consultado el 4 de mayo de 2013).
21
Cifras del portal del Ministère du Redressement Productif, marzo de 2013.
http://www.redressement-productif.gouv.fr/semaine-industrie/activites-industrielles/beaute-cos-
metique
22
Ver nota 1.
23
a pesar de las informaciones controvertidas según las cuales el certificado humane Cosmetics
Standard que garantiza la ausencia de experimentación con animales le habría sido retirado, L’oc-
citane mantiene su compromiso a no experimentar sus productos con animales. Ver: http://au.loc-
citane.com/l’occitane’s-position-on-animal-testing,23,1,4230,250580.htm (consultado el 4 de mayo
de 2013).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 61

¿DESobjETiVaR EL objETo?

En la lógica del mercado propia de las sociedades contemporáneas de la globaliza-


ción, todo ser viviente o materia prima útil al mercado son necesariamente reduci-
dos al estado de objeto controlado o controlable. Esta lógica domina igualmente el
mundo de la moda, un mundo en el que las mujeres mismas son reducidas al estado
de instrumentos estéticos deseables y poseíbles. Las modelos desfilan, silenciosas,
distantes, felinas en sus «catwalk shows», puestas en escena para promover las nue-
vas tendencias y destacar los nuevos objetos en venta. Signos idealizados para des-
cifrar y consumir, son reducidas a siluetas animales atractivas. En los desfiles, como
en numerosas imágenes publicitarias, se las asocia a fieras salvajes, acentuando la
animalidad de su identidad femenina. En la Edad Media y durante el Renacimiento,
la presa perseguida durante la caza, a menudo una cierva, era símbolo de la mujer
deseada, perseguida y, eventualmente, consumida. En nuestra época, la identifica-
ción de un animal salvaje, a menudo vulnerable, siempre estéticamente atractivo,
con una mujer está ligada a otra forma de consumo: el consumo mercantil. Un con-
sumo cuyo proceso implica la transformación de seres vivos en objetos desechables
que contribuyen a halagar nuestro cuerpo o nuestro ego, a aumentar nuestro atrac-
tivo. En este proceso, toda idea de contrato interespecies entre un animal del que
se toma algo, incluso quizás la vida, pero al que se da igualmente otra cosa, a veces
expresada en relación a la cría, es imposible. No hay lugar para el intercambio.
Esta reificación de la sociedad, teorizada por numerosos pensadores del siglo
xx, de barthes (1967) a baudrillard (1970), es reconceptualizada en el siglo xxi de
manera innovadora por un amplio espectro de pensadores a través de una filosofía
de la materialidad, de Ron broglio a jane bennett, de bill brown a bruno Latour.
Estos autores proponen una noción de lo vivo que rechaza las articulaciones dua-
listas entre objetos inanimados pasivos, inertes y seres vivos sensibles, activos, al
otorgar a toda cosa y a todo ser un papel de agente. Si, a la hora actual, la tendencia
es hacia la reificación de lo vivo, si todo puede ser reducido al estado de objeto, lo
esencial es quizás no ver al objeto como muerto y despreciable, sino considerar que
lo vivo le es inherente. Michel Serres lo recuerda en Statues: «Existimos como hom-
bres desde la aurora por algo distinto que la palabra, por la cosa, justamente irre-
ductible al verbo. El sujeto nace del objeto» 24 (Serres, 1993: 208). En efecto, la
estética de la moda occidental que hemos heredado defiende una visión consumible
y cuantitativa del objeto. Walter benjamin avanzaba en 1935 que la moda desvita-
lizaba el cuerpo y defendía «los derechos del cadáver» (1989: 40), sostenida por
«el fetichismo que está así sujeto al sex-appeal de lo inorgánico, (y) es su nervio
vital» (1991: 297). Es fácil llegar a un callejón sin salida buscando el nervio vital de

24
La última frase de la cita es recogida como epígrafe en brown (2001).
62 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

lo inorgánico. Pero quizás benjamin presentaba, de manera visionaria, una forma


de concebir lo inorgánico que lo incluye en la categoría de viviente evolutivo. En
su «thing theory», bill brown, siguiendo a bruno Latour, subraya que «la moder-
nidad ha establecido una distinción ontológica artificial entre los objetos inanima-
dos y los sujetos humanos, cuando, en realidad, el mundo está poblado de
cuasi-objetos y de cuasi-sujetos»25 (brown, 2001: 12).
De esta manera, la moda podría ser pensada como una oportunidad de celebrar
un abanico de «materias vibrantes» para retomar el término de la filósofa jane ben-
nett (2010), en diálogo imaginativo con lo vivo, sea o no animado. El principio mer-
cantil que la prescribe como un sistema de cohesión social elitista y como martilleo
de propaganda es un sistema muy primitivo que asocia género, naturaleza y muerte
de forma imperturbable (Puleo, 2011). Como indica Cécile Guilbert, las mujeres
contemporáneas ya no se dejan engañar por «la aceleración insensata de los acce-
sorios» (Guilbert, 2011b) que el mercado trata de imponer como «moda», pues lo
que las mujeres desean es renovarse a través de una creatividad estética de lo coti-
diano que destaque su vitalidad y su individualidad. Falta pensar, pues, un «sistema
de la moda» que no sea ni un discurso que permita descifrar una pertenencia social
humana, ni el envoltorio desvitalizado de una naturaleza sistemáticamente explo-
tada o torturada puesta al servicio de la sociedad de mercado. Un sistema de la
moda en el que ya no desearíamos objetos que no son más que marcas de prestigio
social. Un sistema de la moda en el que los animales no fueran reducidos a objetos
de lujo, a instrumentos masacrados y brutalmente apropiados. Un sistema de la
moda en el que ellos serían fuentes de inspiración, de ideas creadoras que nos re-
cuerden que todos esos otros que acompañan nuestras vidas humanas también for-
man parte de nosotros y son la clave de la renovación de nuestras identidades.

Traducción del francés de alicia h. Puleo

REFERENCiaS bibLioGRáFiCaS

aDaMS, Carol, DoNoVaN, josephine (1995): animals and Women, Durham, NC,
Duke University Press.
baUDRiLLaRD, jean (1978): Le Système des objets [1er ed. 1968], Paris, Gallimard.
— (1970): La Société de consommation, Paris, Gallimard.
baRThES, Roland (1967): Système de la mode, Paris, Seuil.

25
« […] modernity artificially made an ontological distinction between inanimate objects and
human subjects, whereas in fact the world is full of «quasi-objects «and “quasi-subjects”» (brown,
2001: 12).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 63

bENNETT, jane (2010): Vibrant Matter. a Political Ecology of Things, Durham, NC,
Duke University Press.
bENjaMiN, Walter (1989): Paris, Capitale du xixe siècle. Le Livre des Passages
[1935], traduction jean Lacoste, Paris, Editions du Cerf.
— (1991): écrits français, Paris, Gallimard.
bERGER, Stéphanie (2012): «Female beauties, observatoire des Femmes CSP+ et
de leur rapport à la beauté», 30 de noviembre de 2012, Express Roulata Services.
http://www.expressroulartaservices.fr/2012/11/female-beauties-observatoire-des-
femmes-csp-et-de-leur-rapport-a-la-beaute-2/ (consultado el 30 de mayo de 2013)
bRoGLio, Ron (2011): Surface Encounters, Thinking with animals and art, Min-
neapolis, University of Minnesota Press.
bRoWN, bill (2001): «Thing theory», Critical inquiry 28 (autumn 2001), pp. 2-16.
jEaN-aNToiNE ChaPTaL, jean-antoine (1819): De l’industrie française (1819),
online, Source gallica.bnf.fr / bibliothèque nationale de France, http://ga-
llica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k437500.r=jean-antoine+chaptal+De+l%27in-
dustrie.langFR (consultado el 6 de mayo de 2013).
CoLLaRD DUTiLLEUL, François (2013, 17/18 de febrero): «indigeste viande de che-
val», Le Monde, p. 16.
DESPRET, Vinciane (2012): «Les animaux rendent les hommes intelligents», en
Matignon, Karine Lou, Cyrulnik , boris (eds.) (2012): a l’écoute du monde
sauvage. Pour réinventer notre avenir, Paris, albin Michel, pp. 149-169.
— (2009): Penser comme un rat, Versailles, éditions Quae.
ERNER, Guillaume (2006): Victimes de la mode. Comment on la crée, pourquoi on
la suit, Paris, Editions de La Découverte.
GaaRDER, Emily (2011): Women and the animal Rights Movement, Chapel hill, N.C.,
Rutgers University Press, Guilbert, Cécile (2011a): «Le Désir d’être enfin soi», Les
Femmes et la mode, France, Europe, 2011, Cahier études femmes, pp. 7-10.
GUiLbERT, Cécile (2011b): «Cécile Guilbert en entretien. Les Femmes et la mode»,
institut Français de la Mode, http://www.youtube.com/watch?v=zPbE-Tkxe-0
(consultado el 4 de mayo de 2013). http://issuu.com/ifm-paris/docs/cahieretu-
defemmesParis, institut Français de la Mode.
KRUSE, Corwin (1999) «Gender, views of nature and support for animal rights», en
Society and animals, vol. 7, n° 3, pp. 179-198. http://www.animalsandsociety.net/as-
sets/library/399_s731.pdf
iNSEE (2005) : «L’Emploi des femmes dans l’industrie», en Le 4 pages des statisti-
ques industrielles, janvier 2005, http://www.insee.fr/sessi/4pages/pdf/4p200.pdf
(consultado el 6 de mayo de 2013).
LaNGFoRD, alexandra, (2010): origines, motivations et souhaits d’orientation pro-
fessionnelle des étudiants vétérinaires, Thèse d’exercice vétérinaire, Université
de Toulouse. http://oatao.univ-toulouse.fr/4228/1/hartmann_4228.pdf, (consul-
64 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR

tado el 5 de mayo de 2013). «La soie d’hier à aujourd’hui», L’écologiste n° 29,


juillet 2009, pp. 29-39.
LE PaPE, Gilles (1993): «L’ontogenèse des comportements d’un pays à l’autre», en
Lilian bodson (dir.), L’histoire de la connaissance du comportement animal,
Liège, Presse Universitaires de Lièges, pp. 431-444.
MoRRiS, Desmond (2011): «interview with Desmond Morris by alexsandro Pa-
lombo. The Future of humanity?», en humor Chic, 22 de noviembre de 2011.
http://humorchic.blogspot.fr/2011/11/humor-chic-exclusive-interview-with.html
(consultado el 6 de mayo de 2013).
PaySaN, Catherine (1997): Le Passage du SS, Paris, albin Michel.
PULEo, alicia h. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
SChNEiDER, Claire (2012): « Se maquiller rendrait plus compétente au travail », Marie
Claire, http://www.marieclaire.fr/,lien-maquillage-competences,20123,435131.asp
(consultado el 6 de mayo de 2013).
SERRES, Michel (1993): Statues, Paris, Flammarion, collection Champs.
STEVENS, john (2012, 9 de marzo) «Going make-up free is more stressful than a job
interview», Mail online. http://www.dailymail.co.uk/femail/article-2116980/Going-
make-free-stressful-job-interview.html (consultado el 6 de mayo de 2013).
VULSER, Nicole (2013, 13 de febrero): «L’oréal à l’assaut des pays émergents pour
continuer sur sa lancée», Le Monde, p. 13.
yoURCENaR, Marguerite (1991): «bêtes à fourrure», en Le Temps, ce grand sculp-
teur, Essais et Mémoires, Paris, Gallimard, La Pléïade.
4. Cuerpo e identidad de género en la sociedad
de la información
Iván SAMBADE BAQUERÍN y Laura TORRES SAN MIGUEL
Cátedra de Estudios de Género
Universidad de Valladolid

L
as representaciones audiovisuales, omnipresentes en los medios de comuni-
cación de masas y de la sociedad de la información, constituyen el principal
mecanismo de normalización y de legitimación de las prácticas masculinas
de sujeción de las mujeres. El discurso fragmentado y esquemático que proyectan
los diversos mecanismos informacionales produce una apariencia de naturalidad
en aquellas identidades que representa, más aún cuando estas se construyen me-
diante estereotipos y prejuicios tradicionales, como es el caso de la femineidad y la
masculinidad. Ambas identidades se representan conforme a los cambios sociales
y las dinámicas socioeconómicas del capitalismo global. Así, nos encontramos con
imágenes de masculinidad y de femineidad que representan a sujetos de éxito social
y laboral bajo las ficciones de la igualdad y la meritocracia. Es decir, a mujeres y
hombres que triunfan en sociedades donde aparentemente existe igualdad entre
los sexos y donde cada persona tiene lo que le corresponde en función de sus pro-
pios méritos. Ahora bien, el éxito social representado por los media se caracteriza
por ubicaciones asimétricas y desiguales en relación con el género: mientras que
los hombres se encuentran posicionados en la esfera social pública y representados
como agentes sociales y/o protectores heroicos de la sociedad y de las mujeres (es
decir, como sujetos de poder); estas son ubicadas en la esfera social privada y obje-
tualizadas desde la mirada y el deseo masculinos. Por lo tanto, este escenario genera
una apariencia de igualdad, bajo la cual el patriarcado juega a reinventarse, desvir-
tuando a menudo las consignas de la libertad sexual.
A través de la construcción de este imaginario virtual y mediático no solo se re-
producen los estereotipos e identidades de género hegemónicas, sino que se induce
el deseo de mujeres y hombres de emularlos mediante la re-articulación de los cá-
nones de belleza de femineidad y masculinidad (Puleo, 1995). De esta forma, el
66 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

control social se traslada a nuestra forma de percibir e interpretar la realidad, para


encarnarse finalmente en nuestros cuerpos. Y, en la medida en que la construcción
social de los cuerpos responde a la estructura de un modelo social androcéntrico,
éstos se han convertido en el reflejo de la fragmentada y oculta estructura de dis-
criminación de las mujeres de nuestra sociedad (López y Gauli, 2000).
Por último, es necesario explorar el protagonismo que han adquirido las redes
sociales para adolescentes y jóvenes en la actualidad, con el objetivo de explicitar
cómo vuelven a reproducirse los modelos hegemónicos de identidad sexuada en
estos nuevos espacios de relación, información y entretenimiento.
En definitiva, a través de este análisis de las representaciones de mujeres y hom-
bres en la sociedad de la información, queremos denunciar las nuevas prácticas de
producción de deseos como subjetivación. Solo así podremos estimular nuestra mi-
rada crítica y convertir las nuevas tecnologías en un escenario privilegiado para la
transformación social y la igualdad.

CUERPO Y MASCULINIDAD EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN

Robert W. Connell (1997) ha definido la masculinidad hegemónica como aquella


configuración práctica que ocupa la posición de primacía en un modelo concreto
e histórico de relaciones de género, una posición que está siempre sujeta a disputa.
Esta configuración encarna la respuesta convencional respecto de la legitimidad
del patriarcado y suele estar respaldada, de manera explícita o implícita, por la vio-
lencia. Esta violencia masculina sigue dos patrones: 1) La violencia que ejercen al-
gunos hombres para sostener su dominación concreta sobre las mujeres; 2) la
violencia entre hombres como política de confirmación de la masculinidad.
Connell apunta que los conflictos y las fracturas sociales de un periodo histórico
quedan estructurados en la masculinidad hegemónica en forma de contradicciones
internas. De este modo, encuentra una relación de causalidad entre la violencia
masculina contra las mujeres y las tendencias de crisis del actual sistema patriarcal
de poder: si se incrementa la violencia de los hombres contra las mujeres es preci-
samente porque su masculinidad se está desarrollando dentro de un conflicto de
estrategias de legitimación.
La reproducción de los desiguales e injustos modelos de género en las modernas
sociedades democráticas, sociedades también regidas por el capitalismo informa-
cional (Castells, 2006), han ocasionado la transformación de la masculinidad hege-
mónica en un modelo problemático y contradictorio que es fuente de incongruencia
e inestabilidad para los hombres occidentales (Sambade, 2008). Estos son, de una
parte, cognitivamente educados en los valores ilustrados de Libertad, Igualdad y
Solidaridad, valores que son considerados derechos naturales e inalienables de
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 67

todos los seres humanos y que sostienen el imperativo moral (e incluso legal) de es-
tablecer relaciones justas e igualitarias entre las personas. Mientras que, de otra,
son estimulados e inducidos a confirmar su identidad de género, autodesignándose
como sujetos de poder de las modernas sociedades capitalistas en base a la estruc-
tura social de discriminación de las mujeres.
Esta hipótesis explica la realidad existencial de la gran mayoría de los hom-
bres occidentales, admitiendo la diversidad de la interiorización del modelo he-
gemónico de masculinidad en función de otros ejes de identificación como la
clase social, la etnia y la cultura, reconociendo, por lo tanto, la pluralidad de
masculinidades existentes.
Entendemos que la forma fundamental a través de la cual los hombres han sub-
jetivado el modelo hegemónico de masculinidad a lo largo de la historia de la cultura
occidental es la pragmática masculina del control (Sambade, 2010). Este concepto
refiere a un conjunto de prácticas de gobierno de sí mismo, legitimadas por los dis-
cursos hegemónicos de cada época histórica, a partir de las cuales los hombres ad-
quieren la disposición y la aptitud para permanecer ubicados en la esfera social
pública.
La pragmática del control se ha desarrollado dentro del paradigma mecanicista,
la asociación de los dualismos jerarquizados Cultura/Naturaleza y Hombre/Mujer
y los procesos de racionalización de las modernas sociedades occidentales (Sam-
bade, 2012). Esta lógica androcéntrica legitimó la dominación sobre las mujeres a
partir de la su identificación con la Naturaleza, relacionando a los hombres con la
Razón y la Civilización (Beauvoir, 1998). Ahora bien, el cuerpo y la emotividad de
los hombres también fueron definidos como parte de la Naturaleza, por lo que la
masculinidad hegemónica pasó a tener que ser constituida a través del disciplina-
miento del primero y el autocontrol de la segunda. En síntesis, la socialización mas-
culina en la pragmática del control dispone y prepara al hombre para desarrollar
distintas formas de control/dominación de las mujeres, siempre bajo el objetivo ex-
plícito de su definición como agente social y con la condición previa de la instru-
mentalización de su propia subjetividad.
Si ahora observamos los atributos tradicionales de la masculinidad, podemos
comprobar que algunos como la dureza emocional, la templanza y la objetividad
confirman la identificación del hombre hegemónico con la Razón, mientras que otros
como la independencia, la valentía y la iniciativa le inducen hacia la acción adecuada
para sus fines. Es decir, los primeros legitiman su posición en la esfera social pública
y su autoridad en la privada, mientras que los segundos disponen el recurso de la
violencia siempre que se considere necesario. En todo caso, estos atributos requieren
sin excepción un proceso de disciplinamiento del cuerpo y de represión de la emo-
tividad que se producen en la socialización patriarcal del varón: el hombre fuerte es
aquel que desprecia sus sentimientos de dolor físico y emocional.
68 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Esta mística de la masculinidad articula toda una cultura del riesgo y de la vio-
lencia. Para ser un hombre verdadero hay que ser duro física y emocionalmente,
competitivo, valiente, autoritario, prestigioso, el sostén económico de la familia,
una máquina sexual… A diferencia de la racionalidad, la masculinidad de un hom-
bre se encuentra siempre cuestionada. Todas estas normas culturales se concretan
en una serie de conductas de autoexposición física y de disposición hacia la violencia
que conllevan que los hombres tengan menor esperanza y calidad de vida que las
mujeres (Clare, 2002). Pero, además, los hombres también ejercen la violencia que
constituye uno de los primeros factores de mortandad de las mujeres.
En la actualidad, la violencia de género y el sexismo en general son considerados
políticamente incorrectos por la opinión pública de las sociedades occidentales.
Pero la violencia no ha desaparecido de la cultura hegemónica de la masculinidad.
Se mantiene subyacente como reverso dialéctico del autocontrol, de modo que
cuando las prácticas de gobierno de sí mismo no constituyen medios efectivos para
la consecución de los fines sociales deseados, las frustraciones ocasionadas por la
represión emocional se canalizarán mediante el recurso de la violencia.
En la sociedad de la información, los hombres son socializados en un sistema
que bajo la apariencia formal de igualdad, reproduce veladamente los valores de la
supremacía masculina. Los modelos tradicionales de la masculinidad hegemónica
están siendo masivamente reproducidos por los medios de comunicación de masas,
lo que induce el deseo de identificación con los mismos entre los hombres. Esto se
debe a que los media constituyen un discurso fragmentado, plural y aparentemente
neutral en el que se combina información, entretenimiento y publicidad. Así, los
media proyectan la idea de que la igualdad entre los sexos es un hecho y mantienen
un discurso políticamente correcto en el que no tiene cabida la afirmación explícita
de la supremacía masculina, al mismo tiempo que reproducen los desiguales e in-
justos modelos de género, adaptados de acuerdo a las tendencias sociales del pre-
sente. De este modo, nos encontramos con toda una pluralidad de modelos de
masculinidad que pueden llegar a ser incluso contradictorios entre sí. Ahora bien,
todos ellos tienen una característica en común: todos son sujetos de éxito social o,
en el peor de los casos, siguen siendo los sujetos del relato.
Los modelos actuales de masculinidad han sido redefinidos desde la significación
que el cuerpo y sus cánones de belleza han alcanzado en la sociedad de consumo
(López y Gauli, 2000). En general, podemos clasificar las representaciones de la
masculinidad en relación con el cuerpo en dos tendencias fundamentales: 1) el hom-
bre de cuerpo inexistente; 2) el hombre de cuerpo bello: los modelos del metrose-
xual y del übersexual.
El primer modelo encuentra sus raíces en el pensamiento Ilustrado de filiación
judeo-cristiana, de modo que la negación del cuerpo se corresponde con la plena
identificación de Razón y masculinidad. En este sentido, nos encontramos con es-
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 69

tereotipos como el del experto, representado mediante una voz en ausencia del
cuerpo. Pero la masculinidad hegemónica vigente se caracteriza fundamentalmente
por la representación del cuerpo conforme a los nuevos cánones de belleza.
El canon de belleza masculina remite al hombre de morfotipo atlético originado
en la Antigüedad grecolatina y difundido, actualmente, por la práctica deportiva y
los media, a través tanto de los prototipos cinematográficos del héroe masculino,
como de la explotación de la imagen de deportistas profesionales en el discurso pu-
blicitario.
El héroe masculino es un hombre de honor que exhibe un obsceno uso de la
violencia para conseguir sus fines, los cuales están justificados ya sea en función de
su bien o su justicia. En consecuencia, el héroe se caracteriza por su dureza. No es
empático con las personas que le rodean, pues actúa por puro deber, y no se siente
emocionalmente ligado a nada. Esto le haría vulnerable. Ensalza, por lo tanto, el
mito de la independencia masculina (incluso el héroe romántico). Así, la dureza
emocional dispone al héroe hacia el ejercicio de la violencia en el caso en que esta
sea necesaria. Se hace patente, por lo tanto, la vinculación entre la masculinidad y
la violencia, asociación que encuentra su origen en uno de los juegos de honor más
básicos y primarios: la guerra; juego en el que se pone de manifiesto que el honor
es el principio de reproducción social del poder masculino (Bourdieu, 2000).
La representación de héroes masculinos por parte de culturistas profesionales
como Arnold Schwarzenegger normalizó el modelo atlético hipertrófico en la so-
ciedad occidental como modelo de belleza basado en la hipervirilidad. Este modelo
ha producido la generalización de la práctica del bodybuilding entre los hombres
occidentales en tales proporciones que hacen de este hecho un fenómeno social de
gran envergadura. La propia noción de bodybuilding implica la presencia de un
sujeto que, significado como ser racional, concibe su cuerpo como materia natural
que dominar y conformar estéticamente conforme a la consecución de los objetivos
de la belleza y el éxito social. Esta práctica puede conllevar diversas y graves con-
secuencias para la salud de los hombres cuando estos se obsesionan por alcanzar la
perfección del modelo. Así, los bodybuilders pueden padecer trastornos obsesivo-
compulsivos como la vigorexia e incluso exponer su integridad física mediante el
consumo de Esteroides Anabolizantes Androgénicos. Esta predisposición hacia el
peligro es parte de una cultura del riesgo que, inducida en la subjetividad masculina
por la socialización de género, se ve potenciada por los efectos secundarios psico-
lógicos de los EAA (Parkinson y Evans, 2006).
El otro icono de la representación de la mística de la masculinidad lo encontra-
mos en la explotación publicitaria de la imagen de deportistas profesionales. De
hecho, los deportes competitivos de equipo se han convertido en un símbolo de la
guerra en el que se han proyectado sus valores (Elías y Dunning, 1992). Así, pode-
mos observar cómo estos deportes alimentan ideologías y conflictos nacionalistas,
70 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

en los que algunos profesionales del deporte, ostentando una posición mediática
de prestigio, se erigen como los nuevos protectores de la nación, sus intereses y los
suyos. Pero, además, el deporte de equipo es un espacio de socialización de los
hombres en el disciplinamiento del cuerpo y el autocontrol de los sentimientos de
miedo y dolor. Por ejemplo, es fácil observar cómo incluso en la iniciación de niños
de seis a ocho años en los deportes de equipo como el fútbol (hegemónico en nues-
tra cultura), sus entrenadores les inculcan la idea de que deben soportar el dolor y
reprimir sus emociones si quieren jugar como «verdaderos hombres y no como
niñas». Todo esto sin aún considerar que, en muchos de estos deportes, el uso vio-
lento del cuerpo frente al contrario es un medio instrumental racionalizado para
los fines dispuestos.
En síntesis, no existe un espacio en el discurso mediático en el que los hombres
puedan concebir su propia debilidad. La omnipresencia de un modelo de mascu-
linidad caracterizado por el control racional del cuerpo y de la emotividad como
condición sine qua non del éxito social pone de manifiesto que la pragmática mas-
culina del control sigue profundamente inscrita en la socialización de los hombres
occidentales del presente.
Existe otro aspecto de la masculinidad que parece estar presente tanto en sus
modelos «positivos» como en sus modelos negativos o antisociales. Me refiero a la
idea de que los hombres son personas libidinosas, sin control de su sexualidad, que
utilizan a las mujeres para su satisfacción sexual, sin establecer ningún vínculo emo-
cional con ellas. Este modelo es un constructo correlativo al modelo hipersexualizado
de femineidad y, de acuerdo con los nuevos cambios sociales, no tendría tanto la
función de culpabilizar a las mujeres de las conductas sexuales de los hombres como
de normalizar estas últimas, banalizando la violencia sexual en general y la explota-
ción sexual de las mujeres en particular. De hecho, el hogar marital es, junto con las
calles y los locales donde las mujeres son prostituidas, el lugar donde más violaciones
no denunciadas se producen (Walter, 2010). El hecho de que tanto los modelos como
los contra-modelos de masculinidad entrañen esta característica pone de manifiesto
la dialéctica constitutiva de la pragmática masculina del control: autocontrol para
los fines sociales e instrumentalización y violencia para los personales.
Por último, si analizamos el uso y la autorrepresentación que los hombres hacen
de sí mismos en las redes sociales, podemos comprobar que tanto los adolescentes
como los hombres jóvenes ya tienen una previa socialización en la pragmática del
control.
En este caso, los hombres jóvenes no muestran prácticamente sus cuerpos en
las redes, o bien, si lo hacen, es para representarse afines a los modelos de belleza
mediante su auto-fotografía. De nuevo, aparecen aquí los dos modelos mencionados
(la inexistencia del cuerpo masculino o el cuerpo masculino bello) en relación con
el autocontrol de las emociones y el disciplinamiento del cuerpo. Esto concuerda
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 71

con el uso general que los hombres hacen de las redes: un uso controlado e instru-
mental (Estébanez y Vázquez, 2013).
El control de las emociones se observa en que los chicos no suelen expresar sus
estados expresivos, a no ser que sean de enfado, ni suelen subir fotos o auto-fotos
y etiquetarse. También es frecuente encontrarse con contenidos de índole deportiva
en sus cuentas, lo que confirma una vez más la función socializadora del deporte
competitivo en la masculinidad.
Correlativamente, los chicos muestran también un uso instrumental del cuerpo
de las mujeres, así como diferentes conductas de control de las mismas a través de
Internet. En el primer caso, es fácil observar la gran circulación de pornografía que
realizan los hombres a través de las redes sociales, o el hecho común de que para
establecer relaciones con ellas suelen pedir fotografías que, llegado el momento,
podrían tener connotaciones sexuales. En el segundo, es frecuente el uso de la men-
sajería instantánea en las redes o del WhatsApp con el objetivo de controlar el
tiempo y las relaciones de sus parejas, hasta el punto de que soliciten conocer sus
contraseñas ejerciendo diversas formas de chantaje emocional. Pero, lo más defini-
tivo en este caso, es que, tal y como acontece en la vida real, el acoso y la violencia
en las redes sociales los suelen ejercer los hombres. Así el grooming, el sexting y la
sextorsión son nuevos fenómenos sociales básicamente masculinos con consecuen-
cias nada novedosas: el abuso y la discriminación de las mujeres.
En conclusión, el uso que los hombres hacen de las redes sociales muestra una
socialización previa en la masculinidad hegemónica que resulta exacerbada y este-
reotipada por las características del medio, generando nuevas formas de discrimi-
nación y violencia de género en relación con el mismo.
Finalmente, es importante señalar que, como identidad pragmática, la masculi-
nidad es el correlato simbólico de un conjunto de prácticas de autodesignación en
serie de los hombres que estos realizan (consciente o inconscientemente) como
grupo social que mantiene una situación estructural de discriminación de otro
grupo concreto: las mujeres (Amorós, 2005). Estas prácticas están regladas por pac-
tos patriarcales, de entre los cuales el primero es valorar la masculinidad, lo que,
junto con la presión ejercida por el grupo de iguales, incitará a los hombres a iden-
tificarse con el arquetipo de masculinidad. Asimismo, las prácticas de autodesig-
nación masculinas tienen un reverso complementario: la heterodesignación de las
mujeres. Dado que el colectivo masculino es un conjunto práctico, precisa de una
unidad ontológica para obtener su ilusión de identidad natural: la mujer; objeto de
negación y desmarque. Y, en la medida en que la mujer es el ámbito transaccional
de los pactos patriarcales (Amorós, 2005), las mujeres en particular son heterode-
signadas como los objetos de las prácticas de control y sujeción de los hombres.
72 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

IDENTIDAD DE GÉNERO FEMENINA Y CORPOREIDAD: LA OBJETUALIZACIÓN E HIPERSE-


XUALIZACIÓN DE LOS CUERPOS DE LAS MUJERES EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN

En la actualidad, la identidad ha dejado de ser considerada como una categoría


esencialista y absoluta, para complejizarse y ser entendida como un proceso multi-
dimensional (Hernando, 2003), en el que las características que definen la femini-
dad se consideran fundamentalmente como culturales y aprendidas. Existen por lo
tanto diversas formas de «ser mujer», como primera atribución genérica sobre la
que se conjugan otros elementos identitarios y categorías de opresión (clase social,
raza, etnia, orientación sexual, etc.). Pero aceptar que no existe una identidad ce-
rrada no es incompatible, sin embargo, con la afirmación de que existe un modelo
de identidad hegemónica, en este caso femenina, que se ha impuesto en el mundo
occidental a lo largo de la historia, y que sigue estando muy presente tanto en la so-
ciedad de la información postmoderna como en las nuevas dinámicas de consumo.
Ese modelo de feminidad es el que vamos a explorar a continuación.
Hemos explicado en el apartado anterior, que la identidad sexuada de los hom-
bres se construye en torno a un proceso de autodisciplinamiento racional y físico
denominado pragmática del control masculina, por la que se les legitima social-
mente como sujetos de poder. Las mujeres, en cambio, son socializadas en lo que
Almudena Hernando (2003) denomina «el yo en relación», que las sitúa en una po-
sición de dependencia en la organización social, en una posición de objetos.
Desde la infancia, se invita a las mujeres a crear y mantener afiliaciones y re-
laciones con otras personas, de forma que la satisfacción de las necesidades de
apego emocional se convierte en un aspecto central de su identidad de género
(Levinton, 2000). En consecuencia, la autoestima femenina depende en gran me-
dida de la aprobación externa, y no es extraño que las mujeres antepongan los
intereses de otras personas a los suyos propios para evitar cualquier tipo de con-
frontación, o que decidan posponer indefinidamente su proceso de individuación
personal, por la soledad que conlleva. Como sostiene Nora Levinton (2000: 166):
«Estos rasgos contenidos en el formato de feminidad remiten a la abnegación, a
ponerse al servicio de los otros, a la capacidad de entrega, a la postergación y re-
nuncia de los deseos y proyectos personales, a la sobrevaloración de la pareja y la
familia…».
Dado que el ejercicio del poder exige conocer y dar prioridad a los propios de-
seos y objetivos sobre los de otras personas, es decir, implica cierto grado de indi-
viduación; a través de esta vía se impone a las mujeres una renuncia tácita al poder
(Hernando, 2003).
En resumen, a través de la socialización diferencial y mediante los imperativos
del género, se define un modelo de feminidad hegemónica que, invocando el deseo
de reconocimiento masculino derivado del mandato de heterosexualidad obligato-
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 73

ria y la centralidad de la vida afectiva, pone en peligro la propia subjetividad de las


mujeres (Benjamin, 1996).
Simone de Beauvoir ya nos había advertido de esta problemática en El Segundo
Sexo, apelando en su caso a claves éticas y ontológicas. Para Beauvoir las mujeres
habían sido condenadas culturalmente a una «existencia vehicular» en relación a
los varones (Molina, 1994), a quienes se reservaba la historicidad y el acceso al Ser
como proyecto propio de lo auténticamente humano. Su recorrido intelectual por
discursos religiosos, científicos y literarios le permitía concluir que la Mujer había
sido definida a lo largo de la historia «por» y «para los varones»: la Mujer era «Al-
teridad Absoluta sin reciprocidad» (Beauvoir, 1998: 227). Es decir, al impedir que
las mujeres asumieran su libertad, más allá del limitado juego de proyecciones mas-
culinas, se las había relegado a una posición de objeto. Este análisis filosófico-exis-
tencialista le permite a Beauvoir denunciar que se había asociado a la Mujer con la
Naturaleza, la Alteridad y el cuerpo, y al Hombre con la Cultura, la Mismidad y el
pensamiento. Más tarde, el ecofeminismo partirá de sus observaciones para rechazar
el dominio sobre las mujeres y la Naturaleza.
En este sentido, Alicia Puleo (2011) afirma que la tríada Mujer- Sexualidad-Na-
turaleza no ha sido desterrada de la cultura contemporánea y analiza los compo-
nentes patriarcales del actual discurso de la transgresión desde sus orígenes en Sade
y Bataille. Nos recuerda que en la teoría del erotismo de George Bataille, la Mujer
es identificada una vez más con la Naturaleza, con lo pasivo, lo inerte… para ser
erigida, finalmente, en la representación misma de la Sexualidad humana y ser «ele-
vada» por el filósofo del erotismo, al rango de objeto sexual por antonomasia.
De nuevo, la tensión dialéctica de la sexualidad tiene su contrapartida en la fi-
gura masculina, porque mientras que Bataille legitima la objetualización sexual de
las mujeres, el individuo soberano que nos propone en su discurso teórico se ca-
racteriza por la absolutización de la Voluntad de Dominio, la violencia y el poder,
valores, sin duda, de índole androcéntrica.
Celia Amorós (2005) ya nos había prevenido de que el patriarcado es metaesta-
ble: una entidad «gelatinosa» que se adapta y se reinventa, empleando nuevas for-
mas de opresión que aseguren su operatividad. A través de este giro, vuelven a
instaurarse los viejos fantasmas patriarcales. Porque, como veremos a continuación,
los medios de comunicación se sirven a menudo de la moral de la transgresión para
distorsionar las consignas de la libertad sexual del feminismo de los sesenta y con-
vencernos de las «bondades» de la hipersexualización y objetualización de los cuer-
pos femeninos.
Las representaciones audiovisuales constituyen uno de los mecanismos más po-
tentes de control, ya que a través de la producción de deseos como subjetivación
se consigue que las personas interioricen los sistemas de disciplinamiento social.
John Berger, por ejemplo, sostiene que las mujeres en el arte y la publicidad se con-
74 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

vierten en «objeto de la mirada masculina», «porque se supone que el espectador


ideal es varón y la imagen de la mujer está destinada a adularle» (2000: 74). Y aclara:
«los hombres actúan, las mujeres se contemplan a sí mismas mientras son miradas.
Esto determina no solo la mayoría de las relaciones entre hombres y mujeres sino
también la relación de las mujeres consigo mismas. El supervisor que lleva la mujer
dentro de sí es masculino, la supervisada es femenina» (2000: 55).
Es decir, a través del poder simbólico de las imágenes, los varones se arrogan
el papel de «observador objetivante» (Femenías, 2008: 74), que se apropia de algún
modo de lo representado, mientras que las mujeres se convierten en «objeto» y
solo son «confirmadas» psicológicamente en la medida en que se adecuan a las
proyecciones o expectativas masculinas. Las representaciones visuales de las mu-
jeres que aparecen en los medios de comunicación y la sociedad de la información
refuerzan así el modelo hegemónico de identidad femenina, basado en la necesidad
de aprobación.
Una de las expresiones más radicales de la objetualización de las mujeres es la
fragmentación de la anatomía femenina en la publicidad. En el anuncio, se muestran
solo las partes más erotizadas del cuerpo femenino y se prescinde del rostro, que
se sitúa fuera del encuadre. Mediante esta operación se convierte a la mujer en una
especie de «mercancía sexual», porque se la despoja de su singularidad como indi-
viduo. Esta fragmentación, generalizada cuando se trata de mujeres, es excepcional
en el caso de los varones, ya que en los anuncios con desnudos masculinos, suelen
emplearse como encuadres el plano entero y el plano americano, en los que sí apa-
rece la cabeza (Yrache, 2007).
También es habitual que el cuerpo de la modelo se mimetice con el producto
publicitado (Yrache, 2007), o que la despersonalización se lleve al extremo, y las
mujeres se transformen en muñecas. Este «proceso de muñequización» tiene nu-
merosos precedentes en la historia del arte, la literatura y el cine, basta pensar en
los maniquíes articulados de la serie Muñecas (1934) de Hans Belmer, la película
Tamaño natural de Berlanga (1973), o la novela La Eva futura de Villiers de l’Isle-
Adam (Bernárdez, 2009). Por esta razón, Asunción Bernárdez (2009) considera que
su lectura semiótica no puede desvincularse de la definición androcéntrica de la fe-
minidad en nuestra cultura. Desde esta perspectiva, las mujeres artificiales, iconos
de la postmodernidad, se caracterizan por responder a las fantasías masculinas, por
su pasividad y su sexualidad: «Suelen estar desprovistas de defectos, no envejecen
y son dóciles a los deseos de los demás» (Bernárdez, 2009: 278). Sus cuerpos carecen
de arrugas, de poros, de pelo… son cuerpos cercanos a la materialidad de lo inerte.
Estas características nos remiten a la interpretación que realiza Alicia Puleo del ero-
tismo de Bataille (Puleo, 2011).
Por último, es necesario hacer referencia a las «mujeres fálicas» como nuevo
modelo de feminidad más transgresor y violento, pero también marcadamente se-
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 75

xual, que podemos encontrar en las TIC. En realidad, estas nuevas heroínas ciber-
néticas no hacen sino emular los valores androcéntricos que se han impuesto en
nuestra sociedad. Su agresividad no es una amenaza para el imaginario patriarcal,
porque se relaciona, una vez más, con esa sexualidad instrumentalizada que ha sido
definida por y para los hombres (Ruthven, 2010).
Pero ¿cómo se traslada todo este imaginario a los cuerpos de las mujeres? El poder
simbólico se incorpora en la subjetividad, para convertirse en un ideal que modela el
deseo y se encarna en el propio cuerpo a través de tres vías: la actitud natural hacia
las diferencias sexuales, la objetualización y la fragmentación (Pastor, 2004).
Como vimos al principio, se socializa a las niñas desde su nacimiento en ese «yo
en relación» que se internaliza como algo natural en la definición de su identidad.
Son educadas para ser princesas, lo que significa gustar, agradar al otro, ser queri-
das... En este contexto, las empresas no dudan en recurrir a modernas técnicas de
marketing para dar un paso más y convencer a las menores de las ventajas de con-
vertirse en réplicas vivientes de sus muñecas (Walter, 2010). Disfraces, complemen-
tos, videojuegos… contribuyen a que la identificación física se lleve al extremo.
Además, esas muñecas que pretenden imitar se caracterizan sobre todo por la hi-
persexualización de sus cuerpos: con grandes pechos, cuerpos esbeltos, maqui-
llaje… Proponen un modelo de feminidad artificial y exagerada, que se caracteriza
por el atractivo sexual, el cuidado obsesivo de la imagen y las compras compulsivas;
valores y actitudes que se hallan en la base de la sociedad de mercado y la industria
del sexo (Walter, 2010).
Las mujeres proyectan sus energías en asemejarse a ese cuerpo imposible que
transmiten los medios, como referente ideal de comparación. La anatomía se con-
vierte entonces, en una fatalidad heredada que es necesario someter mediante la
depilación, las dietas, la cirugía... Para Naomi Wolf (1991), estas exigencias consti-
tuyen una nueva «Doncella de Hierro», una bella cárcel, que bloquea el legado del
feminismo y aprisiona a las mujeres, obstaculizando el desarrollo de su propio pro-
yecto de vida.
Nos hemos referido también a la fragmentación como estrategia de control in-
cardinada en el cuerpo (Pastor, 2004). Las mujeres se someten a una serie de rutinas
de cuidado corporal, que implican su segmentación en elementos mínimos. Por
ejemplo, el maquillaje del rostro exige dividir la cara en distintas zonas: ojos, meji-
llas, boca… Estas rutinas les impiden tomar conciencia del propio cuerpo como
un todo (Bernárdez, 2009).
Por lo que respecta a la objetualización, hemos aludido anteriormente al proceso
por el que las mujeres se convierten en «objeto de la mirada masculina». Las mujeres
se acostumbran a ver su cuerpo como un objeto social, susceptible de ser evaluado
por otras personas. Bajo este prisma, su valía como seres humanos parece depender
estrictamente del valor conferido a su apariencia física. No es extraño, entonces, que
76 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

intenten distanciarse de su cuerpo, para comprobar si este se adecua o no a los cá-


nones normativos de belleza. Se produce un proceso de «extrañamiento corporal»,
que implica experimentar la propia corporalidad como si se tratara de algo ajeno
(Pastor, 2004). El cuerpo se vive, así, como un objeto que debe ser manipulado más
allá de sus límites para lograr el ansiado reconocimiento y éxito sociales.
El sistema social «premia» a las mujeres que se someten a este proceso de auto-
objetivación, ya que les permite anticiparse al juicio sobre su imagen y conseguir
mejores evaluaciones, con las correspondientes recompensas sociales y laborales.
Pero los costes que implica para la propia autovaloración son mucho más altos,
como, por ejemplo, grandes dosis de ansiedad y la vivencia del cuerpo como una
fuente de insatisfacción y de conflictos (Pastor, 2004).
En la actualidad, las adolescentes desarrollan comportamientos de exhibición
de sus cuerpos en las redes sociales que no son ajenas a las dinámicas de objetuali-
zación e hipersexualización de los cuerpos que hemos desarrollado en estos párra-
fos, sino que constituyen una expresión más de la desigualdad estructural de la
sociedad (Antón y Torres, 2006). Internet se ha convertido en el «espacio propio»
de la nueva «generación interactiva» (Cabello y Fernández, 2010). Un «universo
paralelo» repleto de oportunidades, en el que comunicarse, compartir información,
relacionarse… pero también un gran escaparate, en el que adolescentes y jóvenes
exponen su intimidad y sus cuerpos sin ser muy conscientes de los riesgos que esto
implica. Especialmente las chicas, que han interiorizado el modelo de feminidad
hegemónica tradicional y la consiguiente necesidad de aprobación (Estébanez y
Vázquez, 2013). Por ejemplo, es habitual que se hagan autofotos mostrándose se-
midesnudas o en poses eróticas, ya sea como un guiño a sus parejas o simplemente
para mostrarse atractivas y lograr el deseado reconocimiento social. También en-
contramos fenómenos como el «versus», por el que generalmente dos chicas se so-
meten a una competición sobre su físico, invitando a sus contactos a que les voten
(Estébanez y Vázquez, 2013: 47). Esta práctica se traduce en la desaprobación y ri-
diculización pública de aquella que no resulta elegida. O por último, corresponde
mencionar dinámicas como el «zing», en el que las chicas aceptan fotografiarse en
una pose sexual y con el nombre de un chico escrito en una parte de su cuerpo,
para ser aceptadas en su blog, aunque eso implique que se las exponga como «tro-
feos» en ese espacio virtual.
Todas estas prácticas sitúan a las chicas en una posición de vulnerabilidad a la
hora de sufrir las nuevas formas de violencia de género en la red, y tienen, en todo
caso, un peligroso coste para su autoestima. En primer lugar, porque normalizan
esa objetualización deshumanizadora y violenta que caracteriza en general a la so-
ciedad de información. Y en segundo lugar, porque pueden ser víctimas de burlas
y descalificaciones generalizadas en un momento de sus vidas en el que la aceptación
por el grupo de iguales es prioritaria.
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 77

Esta realidad nos lleva a cuestionar el «espejismo de la igualdad» (Valcárcel,


2008: 200-203) entre mujeres y hombres en el que vivimos y nos obliga a adoptar
una actitud crítica ante estos modelos de identidad hegemónica y de poder simbó-
lico, que tanto coartan nuestra libertad y autonomía.

CONCLUSIONES

En la sociedad de la información, el cuerpo de las mujeres es objeto de un obs-


ceno consumo social que pone de manifiesto la reproducción de las lógicas an-
drocéntricas de poder. Este hecho se confirma aún más cuando observamos que
la sexualización del cuerpo masculino tiene una significación jerárquicamente
opuesta: el varón representado es el hombre duro y racional, aquel que instru-
mentaliza su cuerpo para convertirse en agente social sobre la base del control
del Otro; fundamentalmente del Otro-mujer. En síntesis, el imaginario actual no
es sino el resultado de los desiguales esquemas de poder que informan el sistema
patriarcal, el cual se ha reestructurado mediante la incorporación de las tecnolo-
gías de la información.
En la actualidad, los hombres siguen siendo legitimados socialmente como Su-
jetos de poder, mientras que las mujeres continúan siendo «preinterpretadas» como
lugar común de desmarque del colectivo masculino «serializado». Es decir, sus pro-
yectos de vida vienen significados por parte de los hombres y, en este sentido, de-
vienen una y otra vez Objetos: de dependencia, de la mirada, de control corporal…
A lo largo de nuestro análisis hemos intentado explicitar cómo se repite recurren-
temente este mensaje en la historia del pensamiento, en las representaciones icono-
gráficas de los mass media, en los nuevos espacios virtuales… para inscribirse
finalmente en nuestros cuerpos y modelar nuestros deseos. También hemos explo-
rado cómo la sociedad neoliberal refuerza esta dinámica, al convertir a las mujeres
en objetos sexuales de consumo a través de la muñequización y la fragmentación
de sus cuerpos.
Partiendo de estas premisas, no resulta extraño que las adolescentes busquen
ser confirmadas por la «mirada objetivante» del varón, exponiendo sus cuerpos y
su intimidad en las redes sociales. Buscan popularidad y aceptación. Naturalizan
esa máxima de objetualización que les ha impuesto la sociedad, y entienden que es
la vía normal para lograr el éxito. Sin embargo, esa necesidad de aprobación les im-
pide investigar cuáles son sus verdaderos deseos más allá de las limitadas proyec-
ciones masculinas. La heterodesignación se convierte así en una forma larvada de
violencia, que opera a través del poder simbólico.
Por el contrario, los jóvenes y los adolescentes se entregan al juego social del
poder, asumiendo las máximas del disciplinamiento del cuerpo y de la represión
78 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

de la emotividad como condiciones sine qua non de su identificación con el modelo


hegemónico de masculinidad. De este modo, tanto la autoconstrucción de su iden-
tidad virtual (su autodesignación) como su ejecución de conductas de control y ob-
jetualización sexual de las mujeres, se encuentran estructurados por la lógica
androcéntrica que reproduce la discriminación social de las mujeres. Pero si bien
el juego social del poder les facilita la oportunidad de disfrutar de los privilegios
patriarcales, simultáneamente les socializa en un modelo de masculinidad que no
solo es injusto para las mujeres, sino también frustrante y deshumanizante para ellos
mismos.
El ecofeminismo crítico de Alicia Puleo nos ofrece numerosas claves para rom-
per con esta lógica de dominación y control. En primer lugar, porque muestra las
conexiones existentes entre la instrumentalización de la Naturaleza y la bipolaridad
de las identidades de sexo-género como subtexto ideológico del elogio actual de la
transgresión.
En segundo lugar, porque defiende la idea radical de que las mujeres son perso-
nas, son sujetos. Y solo desde esta posición, las mujeres pueden asumir su libertad.
Abandonar las dinámicas de objetualización se vuelve imprescindible para que las
mujeres puedan reconciliarse con sus cuerpos, ya que identidad y cuerpo conforman
un todo que no debería fragmentarse.
Y en tercer y último lugar, porque el ecofeminismo crítico propone la univer-
salización de la ética del cuidado como medio y fin para la consecución de una
sociedad que integre armónicamente justicia social y justicia ecológica. Esta pro-
puesta es especialmente significativa para el cambio de los hombres hacia formas
igualitarias de masculinidad porque implica un ejercicio ético de libertad que, al
mismo tiempo que se ejerce como un bien hacia el Otro-igualmente-dependiente,
genera justicia social y promueve el desarrollo humano de los mismos varones.
Es, por lo tanto, una propuesta ética que aúna los valores de la justicia, el bien y
la autorrealización.
Sabemos que consumir es un ejercicio de fidelidad a un determinado estilo de
vida. Es necesario que mujeres y hombres activemos nuestro compromiso crítico
con el mundo en el que vivimos y renunciemos a nuestras complicidades con un
sistema que convierte a las mujeres en mercancías sexuales, manipulando impune-
mente los deseos de las personas. En este sentido, no podemos olvidar que los dis-
positivos informacionales no solo funcionan como transmisores de mandatos
opresores, sino que posibilitan también nuevas formas de ciberactivismo emanci-
padoras y solidarias. Se trata de definir otra sociedad, de plantearnos un horizonte
normativo en el que la igualdad y la ecojusticia sean posibles.
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 79

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORÓS, Celia (2005): La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las
luchas de las mujeres, Madrid, Cátedra.
ANTÓN, Eva y TORRES, Laura (2006): Lo que Vd. Debe saber sobre: violencia de
género, León, Obra Social de Caja España.
BEAUVOIR, Simone de (1998): El segundo sexo. Vol I. Los hechos y los mitos, Ma-
drid, Cátedra.
BENJAMIN, Jessica (1996): Los lazos del amor. Psicoanálisis, feminismo y el problema
de la dominación, trad. Jorge Piatigorsky, Barcelona, Paidós.
BERGER, John (2000): Modos de ver, Barcelona, Gustavo Gili.
BERNÁRDEZ, Asunción (2009): «Representaciones de «lo femenino» en la publici-
dad. Muñecas y mujeres entre la materia artificial y la carne», CIC: Cuadernos de
información y comunicación, 14, Ejemplar dedicado a corrientes de investigación
en Comunicación Interpersonal, pp. 269-284.
BERNÁRDEZ, Asunción, n. d.: «Cuerpos imaginarios de lo visible y lo invisible del cuerpo
de las mujeres en la publicidad», http://pendientedemigracion.ucm.es/info/per3/pro-
fesores/abernardez/pdfs/Cuerpos_imaginarios.pdf (consultado el 17 de enero de
2014).
BOURDIEU, Pierre (2000): La dominación masculina, trad. Joaquín Jordá, Barcelona,
Anagrama.
CABELLO, Patricio y FERNÁNDEZ, Icíar (2010): La tecnología en la preadolescencia y
adolescencia: Usos, riesgos y propuestas desde los y las protagonistas, Save The
Children, http://www.deaquinopasas.org/docs/estudio_riesgos_internet.pdf (con-
sultado el 10 de enero de 2014)
CASTELLS, Manuel (2006): La sociedad red, Alianza Editorial.
CLARE, Anthony (2002): La masculinidad en crisis, trad. Irene Cifuentes, Madrid,
Taurus.
CONNELL, Robert W. (1997): «La organización social de la masculinidad», trad.
Oriana Jiménez, en Valdés, Teresa y José Olavarría (eds.), Masculinidad/es:
poder y crisis, Santiago de Chile, ISIS-FLACSO: Ediciones de las Mujeres Nº 24,
pp. 31-48.
DE MIGUEL, Ana (2012): «La prostitución de mujeres, una escuela de desigualdad
humana», Revista europea de derechos fundamentales, 19, pp. 49-74.
ELÍAS, N. y DUNNING, E. (1992): Deporte y ocio en el proceso de la civilización,
Madrid, Fondo de cultura económica.
ESTÉBANEZ, Ianire y VÁZQUEZ, Norma (2013): La desigualdad de género y el se-
xismo en las redes sociales, Donostia-San Sebastian, Vitoria-Gasteiz, Eusko Jauur-
laritzaren Argitalpen Zerbitzu Nagusia, Servicio central de publicaciones del
Gobierno Vasco.
80 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

FEMENÍAS, María Luisa (2008): «Violencia de sexo-género. El espesor de la trama»


en Laurenzo, Patricia; Maqueda, María Luisa; Rubio, Ana (eds.), Género, vio-
lencia y derecho, Valencia, Tirant lo Blanch, Alternativa, pp. 61-88.
HERNANDO, Almudena (2003): «Poder, individualidad e identidad de género fe-
menina», en Hernando, Almudena (coord.), ¿Desean las mujeres el poder?: cinco
reflexiones en torno a un deseo conflictivo, Madrid, Minerva, pp. 71-136.
LEVINTON, Nora (2000): El superyó femenino. La moral en las mujeres, Madrid,
Biblioteca Nueva.
LÓPEZ F. CAO, Marian y GAULI Pérez, Juan Carlos (2000): «El cuerpo imaginado»,
Madrid, Revista Complutense de Educación, 11- 2, pp. 43-57.
MOLINA Petit, Cristina (1994): Dialéctica feminista de la Ilustración, Barcelona,
Anthropos.
PARKINSON, A. B. y EVANS, N. A. (2006): «Anabolic androgenic steroids: a survey
of 500 users», Medicine & science in sports & exercise, 38(4), pp. 644-651.
PASTOR, Rosa (2004): «Cuerpo y género: representación e imagen corporal» en Bar-
berá, Esther y Martínez Benlloch, Isabel (eds.), Psicología y género, Madrid, Pe-
arson. Prentice Hall, pp. 217-240.
PULEO, Alicia H. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra,
Col. Feminismos.
— (1995): «Patriarcado», en Amorós, Celia (dir.), 10 palabras clave sobre Mujer,
Estela, Verbo Divino, pp. 21-54.
RUTHVEN, Andrea (2010): «La violencia sexuada en los cómics. ¿Quién salvará el
mundo?», en Martín Lucas, Belén (ed.), Violencias (in)visibles, Icaria, Barcelona,
pp. 161-176.
SAMBADE, Iván (2008): «Medios de comunicación, democracia y subjetividad mas-
culina», en Puleo, Alicia H. (ed.), El reto de la Igualdad de Género, Madrid, Bi-
blioteca Nueva, pp. 344-360.
— (2010): «La pragmática masculina del control: del gobierno de sí mismo hacia
la violencia contra las mujeres», Nomadías, 11, pp. 42-68.
— (2012): «Medios de comunicación, corporeidad masculina y desigualdad de gé-
nero en las democracias occidentales», en Pérez Sedeño, Eulalia e Ibáñez Martín,
Rebeca (eds.), Cuerpos y diferencias, Madrid, Plaza y Valdés, pp. 271-291.
VALCÁRCEL, Amelia (2008): Feminismo en el mundo global, Cátedra, Madrid.
WALTER, Natasha (2010): Muñecas vivientes. El regreso del sexismo, trad. María
Álvarez Rilla, Madrid, Ed. Turner.
WOLF, Naomi (1991): El mito de la belleza. Trad. Lucrecia Moreno. Barcelona,
Emecé editores.
YRACHE JIMÉNEZ, Luis (2007): «Imagen de la mujer y el hombre en publicidad»,
en Plaza, Juan y Delgado, Carmen (eds.), Género y comunicación, Madrid, Fun-
damentos, pp. 101-128.
5. Reflexiones de una retratista de Gorilas
Verónica PERalES Blanco
Facultad de Bellas artes, Universidad de Murcia

U
na de las afirmaciones más citadas de Paul Klee es aquella de que el arte
hace visible lo invisible, o en sus propias palabras, el arte «no reproduce lo
visible; vuelve visible» (2007: 35). El arte nos permite mirar a través de otros
ojos, y esto sin lugar a dudas nos descubre elementos o fenómenos que antes no
habíamos visto. lo que me gustaría mostrar a través de esta exposición textual es
que la práctica artística es en sí una estrategia de exploración, una herramienta en
la aventura fenomenológica de la vida, un útil de visión y percepción que va más
allá de lo visual. El dibujo es, tal y como aquí se concibe, un agente de empatía.
El arte es una suerte de escritura y de entre todas las técnicas utilizadas en las
prácticas artísticas, el dibujo posiblemente sea la que se sitúa más próxima a la gra-
fía, al acto de escribir. El filósofo Jacques Derrida, que estudió pormenorizadamente
el sentido de la escritura, afirmó en una entrevista realizada dos años antes de su
muerte: «diga lo que diga, aquí y ahora, tan brevemente y con esta escenografía un
poco extraña y artificial, será selectivo, finito, y en consecuencia, tan marcado por
la exclusión, por el silencio, por lo no dicho, como por lo que diré».1 Derrida des-
taca en esta afirmación una cuestión clave en el acto voluntario de escribir: el texto
está compuesto por lo que está (ahí, explícito) pero también por lo que no está
(aquello que excluimos o callamos). Defendió la imposibilidad de una biografía,
pero afirmó a su vez la escritura como búsqueda de identidad;2 escribir nos define,
podríamos entender, a sabiendas de que esta empresa toma la forma de una bús-
queda interminable. El dibujo también nos define: por lo que enfatizamos, por lo
que solo insinuamos y también por lo que decidimos omitir. Donde la escritura
ayuda a pensar(nos), el dibujo ayuda a ver(nos) y mostrar(nos).

1
«Quoi que je dise, ici et maintenant, si brièvement et dans une scénographie étrange et artificielle,
ça sera sélectif, fini et par conséquent autant marqué par l’exclusion, par le silence, par le non-dit que
par ce que je dirais». Extracto del film D’ailleurs Derrida (2000), dirigido por Safaa Fathy.
2
«Je peux donc, dans un contexte bien déterminé dire que j’écrivais pour rechercher une identité»
(idem).
82 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

GRanDES SiMioS En FEMEnino

a finales de 2009 empecé a trabajar en una serie de dibujos en torno a una imagen
utópica, la de la reconciliación de las nuevas generaciones con flora y animales no
humanos. coincidió con un momento especial en mi vida personal, tras el naci-
miento de mi hija Kotodama un año y medio antes; necesitaba encontrar un espacio
para la meditación, espacio que había perdido con su llegada. Mientras realizaba
un dibujo en el que hibridaba la imagen de una cría gorila con la de mi propia hija,
me sobrevino la evidencia: ¿es acaso más importante mi felicidad que la de la madre
de esta cría? ¿Mi existencia más importante que la suya? ¿Mi sentimiento materno
más fuerte que el de ella? Una de las cosas que aprendí al ser madre es la dimensión
del amor que mi madre siente por mí. ahora sé lo que es el amor materno, qué es
amamantar a una cría, el estado de alerta permanente y la «animalidad» de la pul-
sión de protección. cuando oigo al activista Gary Yourofsky decir que el sonido
más terrible que ha oído nunca es el de una vaca cuando le arrebatan a su ternero,3
no tengo ni la menor duda de que dice la verdad. la vaca desgarrada en sus mugi-
dos es una realidad diaria; ninguna madre puede cuestionar este sufrimiento.
En 2008, trabajé dentro del colectivo transnational temps4 —del que soy parte
fundadora— en el proyecto Simiomobile5 y me había percatado de la falta de re-
presentación de las hembras en la construcción de la imagen de la especie Gorilla-
Gorilla. cuando uno busca imágenes de gorilas en internet, casi la totalidad del
material gráfico que encuentra corresponde a fotografías de machos de esta especie.
Este fenómeno es aún más frecuente en las especies en las que el macho es física-
mente más voluminoso que la hembra. además, las hembras aparecen, la mayor
parte de las veces, representadas al lado de sus crías y, de manera excepcional, solas.
Esta cuestión es notable, ya que las hembras pasan por períodos no vinculados a la
reproducción o al cuidado de las crías y desarrollan otras tareas importantes para
la supervivencia del grupo. Su representación se construye, como en el caso de las
mujeres, a partir y en torno a la maternidad. Esta especie de muralla visual eclipsa
cualquier otro mérito. El macho, representante de la virilidad, tiene su propia iden-

3
Gary Yourofsky es un activista por los derechos de los animales en américa. Ha sido arrestado
en numerosas ocasiones por acciones reivindicativas y ha estado en una prisión de máxima seguridad
en canadá en 1997, después de asaltar una granja de pieles y liberar a más de 1 500 visones preparados
para ser sacrificados por la industria peletera. Puede accederse a una de sus célebres conferencias en:
https://www.youtube.com/watch?v=ZzvK5ulu7F0 (consultado el 15 de febrero de 2014).
4
http://transnationaltemps.net/
5
http://simiomobile.com/. Simiomobile es un proyecto artístico que evidencia los vínculos entre
la producción de elementos de alta tecnología (teléfonos móviles principalmente, aunque también
otros dispositivos tecnológicos que implican la miniaturización de sus partes) y la desaparición de los
últimos gorilas de montaña en la República Democrática del congo.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 83

tidad —enteramente suya— y la visibilidad de sus logros es plena. la familia para


el macho —desde el punto de vista de la representación del individuo— es un anexo
más, mientras que para la hembra es parte constitutiva.
la ausencia de la mitad de la especie en la representación se convirtió en hilo
vertebral significativo de mi trabajo, guiando el deseo primero de enfatizar el ca-
rácter individual e irrepetible de cada animal. así es como surgió el planteamiento
de la obra Grandes Simios en Femenino, que se resumía en hacer retratos de todas
las hembras Gorilla-Gorilla residentes en zoos españoles.
las cuestiones fundamentales que el proyecto pretendía hacer emerger son las
siguientes: el extremo estado de peligro en el que se encuentran los grandes simios
(con los que, no olvidemos, mantenemos una notable proximidad genética y bioló-
gica); la relación opresiva que mantenemos con esta y otras especies de animales,
resultado de una visión mecanicista que arrastramos desde la época de Descartes
(hoy sabemos con certeza que este paradigma no es sostenible); el paralelismo entre
la ausencia de las hembras Gorilla-Gorilla en la representación de su género y la
invisibilidad (o falta de reconocimiento) de la mujer a lo largo de la historia. Este
último punto determina de forma clara el enfoque ecofeminista de la propuesta.
El retrato ha sido desde sus orígenes, y a lo largo de la historia, un distintivo
propio de personalidades destacadas. no se hace un retrato —y aún menos de gran
formato— de alguien irrelevante. Por otro lado, los retratos en el proyecto están
dibujados, no son pinturas. El dibujo es, por antonomasia, una herramienta de aco-
tación precisa; hay, por tanto, una clara intención de marcar en detalle rasgos de-
terminantes. El dibujo es un medio hábil, un lugar de encuentro.

lo QUE no VEía

El proyecto se extendió durante dos años, tenía que encontrar el hueco para poder
hacer los viajes a los diferentes zoos y una vez allí me quedaba dos o tres días para
establecer con las gorilas una relación más allá de la del disparo de un aparato fo-
tográfico. tomaba apuntes en mi cuaderno; apuntes sobre detalles diferenciadores
entre ellas (cicatrices, lesiones en sus dígitos, distribución del vello, particularidades
en las orejas…), notas sobre sus comportamientos y cualquier dato que me ayudase
a definir a cada una de ellas potenciando sus diferencias. Solicité hablar con los cui-
dadores de los primates en cada zoo, me interesé por las experiencias relevantes de
cada gorila hembra (si habían nacido en ese mismo zoo, quiénes eran sus progeni-
tores, sus hermanos de sangre, crías vivas, crías fallecidas…). no siempre tuve
suerte, en algunos de ellos, como el del Zoo aquarium de Madrid, nunca tuve res-
puesta; en otros, como el Parque de cabárceno, la acogida fue muy cálida; las cui-
dadoras estaban realmente implicadas con los animales y dispuestas a colaborar en
84 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

el proyecto. Una vez de vuelta en el estudio, analizaba las tomas y trabajaba la com-
posición enfatizando los rasgos característicos de cada una de las gorilas. Me des-
cubrí dibujando los ojos de las gorilas, para que pudiesen verme y acercarse, tal y
como ocurría en las visitas a los zoos. cuando lo hacían, era emocionante, estába-
mos allí, unidas por las pupilas. Dos años más tarde, recibí numerosas felicitaciones
al exponer los dibujos. Yo los miraba y sentía que lo más importante ya había pa-
sado, mostraban muy a duras penas la experiencia que yo había vivido.

Verónica Perales Blanco «coco. Stud#:1351 (Born in the wild), Zoo de Madrid» (2011).
Pierre noire sobre madera tratada, 150x105cm.

Hay ciertas cuestiones que «no veía» cuando empecé el proyecto y otras a las
que había decidido no mirar. Sabía que encontraría muchas barreras si convertía el
proyecto en una crítica hacia los zoos y otros lugares de encerramiento. De esta
cuestión hablé largo y tendido con Pedro Pozas, director del Proyecto Gran Simio
en España. Pedro Pozas aprobó y apoyó el proyecto desde su inicio (ya contábamos
con su ayuda para el proyecto Simiomobile), pero siempre dejó constancia de que
el Proyecto Gran Simio estaba en contra de cualquier tipo de cautiverio de primates,
a menos que fuesen santuarios donde no estuviesen exhibidos ante el público y pu-
diesen llevar una vida similar a la que tienen en libertad. El Great ape Project es
un movimiento internacional creado en 1994, a partir de las ideas desarrolladas en
un libro que lleva el mismo nombre y cuyos autores son los filósofos Paola cavalieri
y Peter Singer. El objetivo principal del movimiento es garantizar tres derechos bá-
sicos para los grandes primates no humanos (chimpancés, gorilas, orangutanes y
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 85

bonobos), parientes más próximos del ser humano. Estos tres derechos básicos, re-
servados hasta ahora exclusivamente a individuos de nuestra especie, son: el dere-
cho básico a la vida, derecho a la libertad individual y a no ser torturados.6
Una constante que percibí en mis visitas a los zoos es que los gorilas (como el
resto de los animales allí encerrados) están acostumbrados a «ver pasar manchas»
detrás de los cristales, manchas que gritan, que hacen burla o que incluso, golpean
violentamente la superficie para llamar su atención; pero manchas pasajeras o fu-
gaces al fin y al cabo. cuando te conviertes en una «mancha permanente», entonces
devienes sospechoso. Había leído el famoso libro de Dian Fossey —Gorilas en la
niebla—, y seguía las pautas de comportamiento que ella explica en él: no situarse
de frente (ya que podrían traducirlo como un reto o desafío), encogerse y cubrirse
la cabeza si un macho dominante se acerca, no mirar nunca fijamente a los ojos…
Pero pronto descubrí que para estos gorilas el hecho de que me comportase de esta
forma, «más respetuosa» podríamos decir, me convertía en doblemente sospechosa.
Busqué un punto intermedio en mis movimientos y opté por seguir uno de los con-
sejos de Fossey en el libro, la estimulación de la curiosidad de los gorilas (1985: 12).
Sacaba objetos que llevaba en mi bolso para llamar su atención y también me des-
calzaba. comprobé que los gorilas sienten bastante curiosidad por vernos los pies.
Frecuentemente, las que se acercaban antes eran las hembras, pero también tuve la
respuesta positiva de algún macho, como el apuesto Malabo que se sentó detrás de
mí, espalda contra espalda en postura de tres cuartos. con algunas de las gorilas,
como mi querida Dorle, la relación fue entrañable. le gustaba acercarse lentamente,
tranquila, como en busca de un intercambio simple de calor. Dorle comunicaba
mucho con los visitantes, tanto o más que con los otros gorilas, lanzaba besos y
hacía burlas para provocar las risas; transmitía una calma excepcional. Dorle no
tuvo ninguna cría, murió con 38 años «por causas desconocidas»7 mientras yo ter-
minaba su retrato. también murió Virunga, una de las hijas de Snowflake (el famoso
gorila albino del Zoo de Barcelona) con un año menos, por disentería bacteriana
aguda. En el Zoo de Barcelona las enfermedades intestinales han sido muy frecuen-
tes, dato que constatamos al revisar el historial; shigellosis, infecciones intestinales,
casos agudos de disentería… aparecen como causa de muerte de los gorilas de
forma reiterada. En estos últimos tres años, Banga, que estaba en el Zoo de Madrid,
ha sido trasladada al Romagne Zoo en la Vallee, Francia. Parque de cabárceno ha

6
El GaP tiene representaciones en varios países y continentes; en España, Pedro Pozas fue el res-
ponsable de la presentación en 2006 del proyecto ante el congreso, en el año 2008 el congreso Español
aprobó una Proposición no de ley para otorgar algunos derechos fundamentales a los Grandes Simios.
Para saber más sobre dicha proposición, mirar: http://www.proyectogransimio.org/noticias/ultimas-
noticias/los-grandes-simios-en-el-congreso
7
Según la base de datos creada y actualizada por James R. Davis desde 2004: http://www.dewar-
wildlife.org/jrdavis-gorilla-studbook/ (consultado el 25 de abril de 2013).
86 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

importado a una hembra de Praga llamada Moja. Un año más tarde de la muerte
de Wima, madre de chelewa (tenía solo 11 años, no se detalla la causa de la muerte).
Madrid Zoo ha traído a Yangu de Zúrich, de la que ha nacido Yuba. El Bioparc de
Valencia importó a ali, del Ramat Gan Zoo de tel aviv, algo más de un año después
de la muerte de Dorle. En el Zoo de Barcelona ha nacido una nueva hembra, hija
de Batanga. las gorilas son desplazadas siguiendo acuerdos entre diferentes zoos a
nivel mundial. la cuestión clave en estos intercambios, a veces temporales, es el
aumento de la reproducción; la convivialidad entre los diferentes miembros de un
grupo es también importante y por ello se aplican períodos de adaptación. Según
María teresa abelló, conservadora del Zoo de Barcelona, lo que procura la felicidad
de una gorila es tener una familia, un buen macho y descendientes8 (al margen de
que al menos los dos primeros le sean impuestos, como lo es en las situaciones de
cautiverio).
Un dato que llamó mi atención desde que inicié la exploración de la base de datos
de J. R. Davis9 es que las y los gorilas nacidos en libertad son mucho más longevos
que los nacidos en cautiverio, incluso cuando los gorilas nacidos en libertad fueron
alimentados a mano en los zoos desde edad temprana. la prueba está en que, ac-
tualmente, los gorilas de mayor edad son gorilas nacidos en libertad (nos referimos,
evidentemente, a la edad de los gorilas recluidos en zoos). El primer gorila registrado
en una base de datos se remonta a 1930. Si analizamos los listados que contienen los
individuos descubrimos que aquellos de fecha de nacimiento más antigua son gorilas
de los que se desconocen los progenitores, gorilas que una vez estuvieron en libertad.
El gorila más viejo del continente europeo (insisto, cautivo en zoo) es una hembra
llamada Fatou (1957) que se encuentra en el zoo de Berlín. igualmente en alemania,
aunque en el zoo de Francfort, encontramos a Jule (1964), hembra nacida igualmente
en libertad. la mayor de las gorilas en España es Kim (1969), una hembra que se
encuentra en el Bioparc de Fuengirola. En Francia, las gorilas más mayores se en-
cuentran en el zoo de Saint Martin la Plaine, se trata de tres hembras: Hyasmina
(1979), Pamela (1978) y Fatou10 (1977), todas ellas nacidas en libertad. Parece por
tanto que el período de gestación es muy relevante para su salud y probablemente
también lo sean las defensas naturales que la madre transmite a su cría. Podríamos
preguntarnos si las limitaciones del medio en el que viven los gorilas cautivos afectan
significativamente su capacidad de respuesta inmunológica.

8
«Virunga, la conmovedora vida íntima de una gorila del zoo de Barcelona», en El País, 6 de fe-
brero de 2012. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/02/06/catalunya/1328485155_063565.html (ccon-
sultado el 26 de abril de 2013)
9
http://www.dewarwildlife.org/jrdavis-gorilla-studbook/ (consultado 26 de abril de 2013)
10
Encontramos dos Fatou registradas: Fatou (Stud #: 0720) en St. Martin la Plaine; Fatou (Stud
#: 0082) en el Zoo de Berlín.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 87

El comportamiento social de Dorle era bastante excepcional, era más frecuente


ver cómo los gorilas —hembras y machos—, buscaban huecos oscuros donde re-
fugiarse de las miradas. no siempre era posible. En el prefacio de su libro, Dian
Fossey dice que para el gorila recluso es de capital importancia tener «nichos oscu-
ros donde poder ocultarse, si lo desea, no solo de la gente, sino también de sus con-
géneres, como es costumbre de la especie en la naturaleza» (1985: xiii). igualmente
han de tener acceso a espacios abiertos, disfrutan tomando el sol y necesitan mo-
verse más allá de unos pocos metros. todos los zoos que visité —excepto uno—,
cuentan con espacios anexos en los que los gorilas pueden desplazarse con mayor
libertad. Pero el acceso a estos espacios tiene limitaciones horarias (muchas veces
permanecen cerrados durante las horas soleadas). los espacios acristalados en los
que pasan la mayor parte del día no solo tienen el inconveniente de la corta dimen-
sión, existe también la presión acústica y la derivada del diseño arquitectónico. los
pasajes cubiertos, que protegen a los visitantes de las inclemencias climáticas, pro-
ducen una reverberación acústica que se proyecta contra el cristal y afecta a los pri-
mates. Durante las muchas horas que pasé en estos lugares pude percatarme de la
tortura que debe suponer para los que están al otro lado. otros aspectos son más
difíciles de percibir, son detalles arquitectónicos. los gorilas se sienten mucho más
cómodos cuando el nivel del suelo de su estancia está por encima del nuestro. Esto
les proporciona cierta supremacía, son más «grandes». la tendencia del gorila es
«subir», ya sea a los árboles, a la montaña o cualquier superficie en altura. los es-

Verónica Perales Blanco «Muni. Stud#:1560, Zoo de Barcelona» (2011). Pierre noire
sobre madera tratada (detalle), 150x105cm.
88 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

pacios abiertos han de estar en montante, de otro modo, solo los visitarán cuando
están a solas y por espacios cortos de tiempo. Bajar es colocarse en una posición de
desventaja, algunas instalaciones no tienen en cuenta este detalle.
lo pernicioso del encierro es obvio, el gorila en libertad puede «escapar» de las
situaciones que le violentan, puede huir, respuesta instintiva en todos los seres vivos;
en cautiverio los espacios son terriblemente limitados y están tremendamente ex-
puestos, al público y también a los otros miembros de su grupo. En el Zoo de Bar-
celona, Muni hubiese huido lejos del macho dominante con el que compartía
espacio, antes de reducir su alimentación (anorexia) y Fossey tal vez se hubiese li-
brado del ataque de uno de los machos si el espacio de su «celda» hubiese sido
mayor. los gorilas en libertad se desplazan varios kilómetros por día. los enfren-
tamientos, represalias, disputas… también existen, pero las acotaciones de los zoos
convierten el espacio cotidiano en un ring: no exit access.
El zoo es la privación, pero supone también la imposición. los comportamientos
derivados del estrés al que están sometidos se ven reflejados con claridad en un es-
tudio reciente de los antropólogos lucy P. Birket y nicholas E. newton-Fisher, de
la Escuela de antropología y conservación de la Universidad de Kent en Gran Bre-
taña.11 Encontramos un largo listado de acciones significativas, como repetir com-
pulsivamente un movimiento sin razón aparente, golpearse reiteradamente, morder
partes de su cuerpo, dejar de comer o reducir drásticamente la ingestión de comida,
beber su propia orina, la coprofagia (ingestión de heces propias o ajenas) y arrancar
su propio pelo, entre otras. Estas dos últimas las he visto —personalmente— en
gorilas de los zoos españoles. Dian Fossey menciona en su libro la coprofagia como
un fenómeno que se da en gorilas en libertad al término de los prolongados perío-
dos de reposo diarios propios de la estación lluviosa, época en se reduce el tiempo
dedicado a viajar y alimentarse (1985: 52). Pero la repetición compulsiva de este
fenómeno es claramente patológica, acaba extendiéndose dentro de los grupos,
donde los más pequeños imitan los movimientos de los mayores. Es el caso de la
coprofagia en el Zoo de Barcelona. Wima arrancaba el pelo de sus antebrazos y el
del rostro hasta las sienes; su hija chelewa, aunque no tenía calvicies tan pronun-
ciadas, imitaba esta estereotipia materna convirtiéndola en propia. algunas gorilas
presentaban varios síntomas listados en el estudio de Birket y newton-Fisher, como
Banga del Zoo aquarium de Madrid.
Sabrina Krief, profesora asistente en la Unidad de Eco-antropología y Etnobio-
logía del Museo nacional de Historia natural de Francia, ha estudiado el comporta-
miento de los chimpancés durante años, desde el uso de utensilios a la búsqueda de
alimentos-medicina para curarse (Mankoto, 2006). Explica cómo los chimpancés des-

11
Esta investigación está accesible online: http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/jour-
nal.pone.0020101 (consultado el 10 de febrero de 2014).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 89

cubren el potencial «químico» del medio en el que viven y utilizan estos recursos en
la cotidianeidad de sus vidas.12 De forma concreta, Krief ha investigado la manera en
que los grupos de chimpancés en libertad curan enfermedades mortales para otros
de su misma especie y en estado de cautiverio. En el capítulo titulado «Du congo à
l’ouganda: découverte de la pharmacopée des chimpanzés», publicado en el libro
ilustrado por François Desbordes Primates, Krief detalla sus experiencias. cuenta
cómo los primates descubrieron sofisticadas técnicas del uso de las plantas, tanto
desde el punto de vista químico como físico y supone que, además, estos primates
son capaces de transmitir dichos avances entre ellos. Por ejemplo, los chimpancés
que tenían parásitos plegaban cuidadosamente un determinado tipo de hojas que al
pasar por el intestino arrastraban los gusanos, pegados a su superficie. Este y otros
descubrimientos sorprendentes —entre ellos un medicamento contra el paludismo—,
pueden llevarnos a una aproximación de la relación de estos primates con el medio
en el que viven. Entonces surge la pregunta: ¿con qué riqueza natural cuenta el chim-
pancé que vive recluido en un zoo? ¿Qué potencial de descubrimiento tiene ese
medio? Pensemos en esos centros que incluyen «mobiliario tropical en cartón piedra»,
acompañado de sonidos de selva que «van a juego». no es de extrañar que muchos
animales desarrollen conductas patológicas cuando su vida se limita a no hacer nada.

Verónica Perales Blanco «chelewa. Stud#:1856, cabárceno nature Park (cantabria)»


(2011). Pierre noire sobre madera tratada, 95x105cm.

12
En la conferencia: Médecine naturelle chez les grands singes en afrique, impartida el martes 4
de octubre de 2011. accesible en la web dentro del ciclo de conferencias Habiter la forêt de la cité
des Sciences et de l’industrie, la Villette, París.
90 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

FoRMaS DE REtRataR

Durante las horas de visita en los zoos hablé con muchas personas interesantes, no
solo los cuidadores y el personal de los zoos, sino también personas que acudían
de manera asidua a ver a los gorilas. Estos grandes primates son capaces de suscitar
vínculos muy fuertes con seres humanos que terminan por visitarlos como el que
pasa de vez en cuando a hablar con un buen amigo. Me sorprendió cuando leí en
un texto del científico Yves coppens que siempre ha tenido la impresión de que
«podríamos dividir a los humanos en dos categorías, aquellos que adoran a los pri-
mates, y los que, por las mismas razones, los detestan»13 (coppens, 2010: 10).
la razón por la que decidí retratar gorilas y no miembros de otra familia tiene
que ver con esta facilidad para suscitar empatía. Dentro del ámbito de la ética ani-
mal hay ciertos especialistas que dan prioridad a especies que además de ser sensi-
bles tienen ciertas capacidades cognitivas, frecuentemente los grandes primates y
otras como elefantes y delfines. Jeangène Vilmer, filósofo y especialista en Derecho
internacional, dice que detrás de esta selección puede haber una intención estraté-
gica. los grandes simios dice, son como un «caballo de troya»,14 podrían ejercer
como cuña para desintegrar la frontera entre el hombre «sacro-santo» dice, y el
otro saco donde metemos a todos los seres vivos, «desde el bonobo hasta la es-
ponja».15 Si conseguimos derribar la barrera, aunque en un principio solo sea para
con los grandes simios, se producirá un efecto de bola de nieve, afirma Vilmer. la
mirada de los grandes simios puede ser una puerta, la puerta a una nueva forma de
mirar el mundo, la clave para adoptar una perspectiva que nos lleve al equilibrio.
la fotógrafa y filósofa chris Herzfeld publicó hace relativamente poco Petite
Histoire des Grands Singes, obra en la que hace una revisión de cómo han sido
percibidos y tratados los grandes primates en el mundo occidental. Mundialmente
conocida por los retratos fotográficos realizados a grandes simios, años antes, había
participado en la obra colectiva les Grands Singes. l’humanité au fond des yeux.
En esta, dedica un capítulo16 a Victoria, una gorila que encontró en el Zoo d’anvers.

los primeros retratos de Victoria me incitaron a continuar fotografiándola. Me permitían


dar testimonio de su existencia, desvelar una ínfima parte de lo que ella era, honrarla.
He querido hacer lo mismo con otros primates antropoides que he frecuentado en los

13
Mi traducción.
14
Mi traducción. Jean-Baptiste Jeangène Vilmer: éthique animale: les animaux ont-ils des droits?
Mercredi, 23 de mayo de 2012, cycle de conférences les bêtes et nous, conférences du collège, cité
des Sciences, la Villette, Paris.
15
idem.
16
chris Herzfeld ilustra además la obra completa, que es una muestra de fotografías realizadas
entre 1996 y 2004 en diferentes países.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 91

zoológicos: gorilas, bonobos, chimpancés u orangutanes... a fin de contar cuán particular


y distinto de los demás era cada uno de ellos, contar mi emoción frente a su personalidad
siempre singular, decir hasta qué punto cada encuentro es importante (2005: 16).

la obra de chris Herzfeld ha sido mostrada en numerosas exposiciones a nivel


internacional. El impacto de sus imágenes, esa «humanidad» que se desprende de
los retratados, tiene un enorme valor y posiblemente haya conseguido desintegrar
las fronteras que muchas personas habían construido entre sí mismas y los otros, o
lo otro animal.
El proyecto Grandes Simios en Femenino tiene similitudes y diferencias con el
planteamiento de retrato fotográfico de chris Herzfeld. En ambas reposa la idea
de enfatizar la unicidad y el intento de transmitir la intensidad de la relación man-
tenida con el o la modelo, buscando un efecto de sensibilización (empatía) en quien
mira la obra. Básicamente, subrayaría dos diferencias fundamentales: el enfoque
ecofeminista y el uso del dibujo como herramienta de aprehensión. En cuanto a la
primera, la obra de Herzfeld (fotográfica) no muestra una manifestación explícita
de ideas ecofeministas, su propuesta de retrato fotográfico no tiene un posiciona-
miento claro en este sentido. no obstante, la artista aborda el tema del rol femenino
en las sociedades de simios en un capítulo titulado «Des femmes et des singes. Sexe,
genre et primatologie» en su obra Petite Histoire des Grands Singes. En el texto
subraya cómo la imagen o representación de primatólogas en los medios puede in-
terpretarse como una estrategia que no nos conduce, precisamente, al reconoci-
miento de la igualdad en competencias. la imagen de primatólogas por todos
conocidas (Jane Godall, Diane Fossey, Biruté Galdikas) muestra a las mujeres como
buenas observadoras, dotadas de aptitudes para un trabajo duro y una dedicación
completa pero, ¿ha sido verdaderamente reconocida su labor como científicas?,
esta cuestión es diferente y Herzfeld responde a ella en su obra. Destaca también
la existencia de investigación por parte de primatólogas antes de la aparición de
louise leaky —que es siempre tratado como el «creador» de esos «ángeles de
leaky» (Herzfeld, 2012: 169)—. Son particularmente interesantes los pasajes en
que Herzfeld estudia la influencia de los prejuicios vinculados al binomio sexual la
observación primatológica, en sus resultados y en la divulgación de los mismos. Se-
ñala: «el mundo natural ha sido instrumentalizado para justificar diversos prejuicios
sexistas y para legitimar las orientaciones socioculturales y políticas de las socieda-
des humanas»17(183). En cuanto a la segunda diferencia fundamental entre Grandes
Simios en Femenino y la obra fotográfica de Herzfeld, en mi trabajo, la alusión a
cuestiones de género es parte constitutiva de la obra, aparece en la concepción
misma. los retratos son únicamente de hembras; no hay retratos de machos en el

17
Mi traducción.
92 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

proyecto. Por otro lado, aunque usé la fotografía como documentación, la considero
únicamente parte procesual. Berger sostiene que la imagen fotográfica se vincula
con la conservación, mientras que «la imagen dibujada contiene la experiencia de
mirar» (2011: 55). El dibujo es la herramienta principal en Grandes Simios en Fe-
menino; es, más allá de las connotaciones plásticas, vehículo de la obra.

Verónica Perales Blanco «nadia. Stud#:0787 (Born in the wild), cabárceno nature Park
(cantabria)» (2011). Pierre noire sobre madera tratada, 150x105cm.

todo aquel que haya dibujado un animal, incluso cuando con él tiene una re-
lación muy estrecha, se habrá dado cuenta de que no es tan fácil como parece. la
imagen del modelo aparece como impronta en nuestra memoria, pero cuando en-
tramos en detalles —distancia entre los ojos y las orejas, altura de las orejas, de las
cejas…— nos damos cuenta de que nos faltan muchos datos, de que nuestro re-
gistro es muy fugaz y difuso. Para poder dibujar a alguien es necesario interiori-
zarlo, conocer profundamente su volumen, la dinámica de sus movimientos, el
gesto, todo aquello que no parece estar en las partes, pero que existe en la globa-
lidad… Este aspecto analítico en el acto de dibujar, que me interesaba particular-
mente, conduce al conocimiento pormenorizado del modelo. El primatólogo
Sabater Pi (1922-2009), famoso por descubrir a copito de nieve —el mundial-
mente conocido gorila albino del Zoo de Barcelona—, afirmaba que el dibujo era
la mejor técnica para captar a los primates. Sabater fue un gran dibujante y algunos
de los numerosos dibujos de primates que realizó pueden ser vistos en el centro
de documentación del Zoo de Barcelona. creo que tal vez el dibujo no es la mejor
de las herramientas para representar a un animal, pero no hay la menor duda de
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 93

que es una buena técnica para conocer. Dibujar es, por otro parte, una manera de
«sintonizar». En el prefacio a la segunda edición del tao de la física, Fritjof capra
afirma que, en algunas ocasiones durante la escritura del libro, sintió que era úni-
camente un transcriptor: «sentí que el libro estaba siendo escrito a través de mí,
más que por mí» (1997: 11).18 Durante el desarrollo del proyecto Grandes Simios
en Femenino me sumergía en esta sensación de «no estar», solo ser.19 «Ser el di-
bujo», ser en la confluencia del dibujado y el que dibuja, ser en un punto, ser en
la vacuidad y la plenitud del todo.
cuando Derrida dice «l’animal nous regarde et nous sommes nus devant lui»
(2006: 50), habla de la falta de vestimenta, de la «vergüenza original» de ese estar
desprovisto de lo que nos cubre «las vergüenzas». Delante de las gorilas en el zoo,
tomando notas, asombrada ante muchos de sus comportamientos… y delante de
las gorilas cuando las dibujaba, sentía otro tipo de vergüenza; la de la actitud hu-
mana para con los no humanos, sentía una desnudez que no se refiere a la apariencia
de nuestro cuerpo, sino a lo que no se ve, o que llevamos dentro. Me avergüenza
terriblemente el egocentrismo cruel de nuestra especie, que nos recorta la capacidad
de ver, que nos impide ponernos en el lugar del otro, de sentir compasión.20 ¿cómo
esconderse de nuestra propia evidencia? la estampa revela que no hemos entendido
lo que Bruno latour expresó de forma muy sintética «sin no humano, no hay hu-
mano»21 (2004: 135).
lucile Desblache ha escrito varias obras sobre la presencia y la representación
de los animales en la literatura. Es, creo, una forma de dibujar también. Muchos
de los animales que aparecen en literatura y en el cine también nos miran, aunque
lo hagan desde la ficción. El tigre Richard Parker de life of Pi (Yann Martel, 2002)
o el gorila de ishmael (Daniel Quinn, 1992) por citar algunos, nos miran fijamente.
Estos animales, según Desblache, «son más que nunca, portadores de sabiduría,
porque hacen saltar nuestros propios límites, nos hacen conscientes de la estrechez
y los peligros de una visión piramidal de los seres en la que el ser humano se en-
cuentra en la cima» (2011: 51). Estos dibujos animalistas son líneas que escriben

18
corresponde a la página en la primera edición del libro en español, por Editorial Sirio, tal y
como aparece en la bibliografía.
19
cuando realizaba el retrato de Banga, en la tercera sesión de dibujo anoté: «de repente una
energía fractal se desencadena y salgo corriendo a decir a Fred: Banga est venu me voir! Y he enten-
dido en ese mismo instante por qué yo buscaba sus ojos con mi lápiz en la superficie blanca; necesitaba
que ella me viera, tenía que verme para acercarse, tal y como ocurría en el zoo». inicié este proyecto
de dibujo después de llevar diez años sin tocar un lápiz. El dibujo surge de una conexión profunda;
más que un «saber hacer» consciente dibujar es un dejarse llevar. Eso sí, con el conocimiento apren-
dido de que si la apertura es buena, el dibujo vendrá. Dibujamos con la cabeza, y con el corazón.
20
En el sentido búdico del término; sentir compasión por otro es diluir la frontera entre uno y él,
tener en cuenta las condiciones que afectan a cada uno.
21
Mi traducción.
94 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

nuestro paso, líneas que como dice Marián lópez Fdez. cao, definen el mundo a
la vez que nos definen (2011: 82).
En 2010 se estrenó el film né-
nette, del realizador nicolas Phili-
bert, un «retrato» de la orangután
estrella de la Ménagerie, el zoo
del Jardin des Plantes de París.
todas mis proyecciones sobre el
mismo resbalaron sobre su super-
ficie de hielo. ¿cómo es posible re-
tratar a alguien sin ponerse en su
lugar? cómo perfilar una sombra
proyectada en un cristal, fotogra-
fiar un reflejo, escuchar un eco…
sin preocuparse del lugar donde
surgió. la estrategia de Philibert
es radical, extremadamente indi-
recta. Podemos plantear diferentes
formas de suscitar una conversa-
ción, la más utilizada posiblemente
sea la de exponer datos relevantes
que conducen a un diálogo poste-
rior. Quizá podríamos asociarlo a
lo que en España se llama «poner
Verónica Perales Blanco «Virunga. Stud#:0696, Zoo de las cartas sobre la mesa». Pero de-
Barcelona» (2011), Pierre noire sobre madera tratada bemos valorar también que la omi-
(detalle), 150x105cm. sión forzada de una cuestión —un
tema evidente en un contexto determinado— es, asimismo, una forma de inducir
o provocar su aparición. Sin lugar a dudas, la segunda estrategia será menos certera
que la «española», corremos el riesgo de que los datos relevantes no salgan a la luz
y también de que el conjunto sea valorado de una forma superficial, pero la eficacia
de una u otra queda pendiente de pruebas. En el film de Philibert, la disyunción
entre imagen y sonido, los planos de los orangutanes acompañados de los comen-
tarios —a menudo insustanciales— de los visitantes, favorece la reflexión, es como
si los sonidos de los animales estuvieran, por momentos, doblemente silenciados: a
través de su inexistencia y mediante el ruido (en tanto que información no relevante)
del factor humano. nenette interpela justamente por lo que no dice, permitiendo
que veamos lo que no está en el film. En el 2012 Philibert retoma la Ménagerie du
Jardin des Plantes para hacer un nuevo film, más corto que el anterior, un docu-
mental provocativamente corto podríamos decir. la nuit tombe sur la ménagerie;
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 95

la noche nos alumbra y nos muestra claramente lo que está omitido en las dos obras:
la voz animal, la voz de ese «continente negro»22 ocupa entonces el cielo de París.
Philibert no mira en ningún momento desde los ojos de nénette, se sitúa siempre al
otro lado del cristal, no hay rastro de empatía alguna en la realización cinematográ-
fica. El cristal parece más bien un muro de contención; no separa animales y visi-
tantes, sino humanos y no humanos. la aproximación de este realizador parte de la
distinción y separación radical, como la existencia misma de los zoos.23 Desde mi
lectura de las obras, el retrato que subyace en estas dos películas de Philibert es el
nuestro propio, el de un grupo de animales que miran algo sin llegar a comprenderlo
enteramente, demasiado limitados como para imaginarse en el lugar del otro e in-
tentar experimentar desde ese que no es él. El reconocido primatólogo Frans de
Waal afirma que somos capaces de empatizar cuando «vemos directamente»24 (2009:
221), pero debemos entender que no es únicamente una cuestión visual. no basta
con imaginar ser un animal u otro, es necesario ponerse en su lugar y sentir, dice la
psicóloga y ecologista americana Gay Bradshaw25 que ha explorado los paralelismos
entre animales humanos y no humanos desde el ámbito de la neuropsicología.
las relaciones que se pueden establecer, no únicamente de paralelismo sino tam-
bién de reciprocidad entre animales humanos y no humanos nos revelan datos que
con frecuencia no queremos oír. Esto sale a relucir abruptamente en la controvertida
obra de la artista Samantha Sweeting.26 En la obra in came the lamb (2009), Swee-
ting muestra imágenes fotográficas de ella misma amamantando a un pequeño cor-
dero. Su obra produce un impacto directo en el público, interpelando sobre la
reciprocidad y también sobre la empatía; parece nivelar en la escena lo que de ma-
nera profunda tenemos inscrito como dos tipos de existencia. la filósofa Florence
Burgat aborda en Une autre existence. la condition animale las diferentes aproxi-
maciones al concepto de existencia, las diferencias entre simplemente vivir o existir.

22
«la mujer… ese continente oscuro» es una célebre expresión de Freud. la frase completa es : «la
vie génitale de la femme adulte restera longtemps un “dark continent” pour notre psychologie». Sigmund
Freud, la question de l’analyse profane (1926), Œuvres complètes xViii, Paris, PUF, 2002, p. 22.
23
Sobre este tema, es recomendable escuchar la emisión «Que se passe-t-il dans les jardins zoolo-
giques?» con Jean Estebanez, profesor en l’ école normale Supérieure. Emisión disponible en el sitio
web de France culture. canal «Planète terre» del 11 de julio de 2012. accesible en: http://www.fran-
ceculture.fr/emission-planete-terre-que-se-passe-t-il-dans-les-jardins-zoologiques-2012-07-11 (consul-
tado el 26 de abril 2013).
24
Mi traducción.
25
Gay Bradshaw, «Pas de deux» en antennae, issue 22, otoño 2012, p.49. accesible en:
http://www.antennae.org.uk/antEnnaE%20iSSUE%2022.docx.pdf (consultado 26/04/2013).
Gay Bradshaw es autora del libro Elephants on the Edge: What animals teach Us about Humanity
,Yale University Press, 2009. Se puede consultar más información sobre esta autora en: http://www.ga-
bradshaw.com (consultado 26/04/2013).
26
Sitio web de Samantha Sweeting, http://samanthasweeting.com (consultado el 26 de abril de 2013).
96 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

afirmar que los animales existen puede ser una fuerte provocación para todos aque-
llos que se niegan a ver la «multiplicidad de formas de vida y de comportamientos
y no una única existencia tallada a la medida del hombre»27 (2012: 338). Sin lugar
a dudas, y esto podría abrir un extenso diálogo, hay muchos intereses materiales y
económicos detrás de la objetualización de los animales no humanos (una gran parte
de los animales «han desaparecido» (2011: 143), reducidos a lo más bajo de sim-
plemente vivir: ser carne). aun así, no podemos perder de vista que formamos parte
del mundo por estar integrados a través de nuestro cuerpo, no de nuestro pensa-
miento, y que tal y como escribe Burgat citando a Merleau-Ponty «la comunicación
con el mundo más antigua que el pensamiento»28 (339) no es exclusivamente hu-
mana sino también —o más bien—, de los animales no humanos.
El porvenir de los animales no humanos, digamos porvenir y no futuro pensando
en la significación particular de cada uno de estos términos según Derrida (el futuro
es predecible, mientras que el porvenir es incierto), depende en gran parte de los
animales humanos. Es inexorable «pensar» de nuevo lo humano dentro del reino
de lo animal, «no tanto para atentar contra su dignidad, sino para abrir su huma-
nidad» (PicQ, 2008: 15).

la conciEncia EcolóGica, DESEaR

la perspectiva que ofrece capra cuando publica en 1975 the tao of Physics es
fundamental para entender las conexiones entre las teorías científicas más relevantes
del siglo pasado y las ideas básicas de las tradiciones místicas orientales,29 en general
de marcado carácter holístico. En su obra las fronteras entre los diferentes modos
de conocer se hacen porosas. En Sabiduría insólita, el libro que siguió al tao de la
Física, capra cita una de las numerosas frases que tejen la inspiradora visión de uno
de los pensadores más importantes del siglo pasado, a saber, Gregory Bateson: «la
metáfora está en la propia raíz de la vida» (1994: 87). la metáfora es sin duda una
de las herramientas más potentes de comunicación y transmisión de conocimiento:
la vía más rápida —posiblemente la más certera—, una vía indirecta que traza el
trayecto más corto, «autopista sin peaje, luz sin impuestos, como el sol».30 la me-
táfora, que como describe amalia Quevedo «insinúa sin presentar, sugiere sin ex-

27
Mi traducción.
28
Mi traducción.
29
cuando habla de misticismo oriental capra se refiere a hinduísmo, budismo y taoísmo.
30
Extracto de la voz en off del vídeo Biometrics (2003) de transnational temps (http://transna-
tionaltemps.net/ehes/biometrics/movie.html).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 97

plicitar, evoca sin nombrar, alude sin decir; la metáfora habla en forma oblicua,
apela a connotaciones laterales».31
la población está demasiado aturdida con el incesante torrente de mensajes que
dictan la realidad que nos venden, «lo que tú debes ser, lo que tú debes tener, lo
que tú debes parecer… lo que tú eres»; condicionados por estos mensajes surgen
nuestros deseos. Deseos reales en busca de elementos de una ficción. compramos
una realidad, y prescindimos de la que ya tenemos. autores como Debord y Bau-
drillard han reflexionado sobradamente sobre el poder hipnótico y colonizador de
la ficción mediática. inyectar un nuevo mensaje de tono imperativo en este perverso
canal dudosamente se traducirá en un cambio de conciencia, un cambio en la ma-
nera de pensar(se), pensar(nos) en el mundo. Es necesario buscar medios hábiles
que operen de forma alternativa, medios que actúen de manera indirecta, metafó-
rica; lo que necesitamos (el deseo) no es un asentimiento más (comparable a una
nueva forma consumo sistemático, del tipo eco-chic),32 sino un cambio significativo,
clave, una disrupción. Es el momento de concebir nuevas herramientas; o tal vez,
de retomar, hibridar y repensar algunas antiguas. Es, creo, el caso del dibujo. Di-
bujar nos interpela, nos obliga a conocer y cuando conocemos, nos desplazamos
(en el caso de Grandes Simios en Femenino de lo que somos hacia lo otro). las he-
rramientas han de procurarnos un ver mejor, oír mejor, conectar mejor… con ese
mundo «más antiguo que el pensamiento» de Ponty. Deberían permitirnos dibujar
lo que no vemos; lo que hay detrás del cristal (el del techo y tantos otros que rodean
nuestra experiencia de lo que es la vida).
En Sabiduría insólita, capra afirma que la sensibilización ecológica es, en su
nivel más profundo, la concienciación intuitiva de la unicidad de toda la vida, de la
interdependencia de sus manifestaciones múltiples y de sus ciclos de cambio y trans-
formación. cito sus propias palabras: «el concienciamiento ecológico, en su esencia
más profunda, es espiritual» (1994: 126). El crecimiento del que adolecemos, el
crecimiento que nos debemos, es interior. tendríamos por tanto, que producir agen-
tes que cuestionen nuestro nivel de evolución y desarrollo interior, así como poner
en valor aptitudes y saberes vinculados al crecimiento interno más que al producto
interior bruto. los avances tecnológicos son primordiales, es incuestionable; pero
no a costa de una conciencia ecológica paupérrima. capra lo muestra claramente
en su obra, existen múltiples accesos al conocimiento desde el descubrimiento in-
terior. Somos el conocimiento.

31
En De Foucault a Derrida. Pasando fugazmente por Deleuze y Guattari, lyotard, Baudrillard. Edi-
ciones Universidad de navarra, navarra, 2001. Edición digital de Derrida en castellano (http://www.jac-
quesderrida.com.ar/comentarios/quevedo_2.htm)
32
El mercado deforma iniciativas ecológicas en manifestaciones «eco-fashion». El Green-Glamour
o Eco-chic es un nuevo estilo de vida que demarca un estrato social económicamente pudiente.
98 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

tal como ya he expresado en otro lugar: «desde mi sentimiento y posición como


artista, entiendo que el arte ha de hacer patentes las fracturas del sistema en su
conjunto, en un intento por desvirtuar prácticas y relaciones consolidadas por la
tradición que han de ser revisadas. En este sentido y desde una perspectiva me-
dioambiental, parece necesario reflexionar sobre el grado de implicación que las
prácticas artísticas contemporáneas tienen, en tanto que portavoz social». (Perales,
2010: 1). Desde el punto de vista del género, el trabajo de las mujeres activistas en
el campo de la ecología está siendo clave, pero tal y como indica la filósofa alicia
Puleo, «son muy numerosas las mujeres que participan como activistas en los grupos
ecologistas y en los partidos verdes. Pero la conocida pirámide de género de em-
presas e instituciones —con la base feminizada y la cúspide ocupada por varones-
también se reproduce en muchos grupos ecologistas—. a menudo, la militancia de
base está mayoritariamente compuesta por mujeres y, sin embargo, predominan los
hombres como dirigentes» (2011: 12). En el mundo del arte, la estadística se repite.
la escandalosa desigualdad en el ámbito cultural se mantiene. lo hace en el ámbito
artístico, académico y en general cultural, a pesar de los esfuerzos de las organiza-
ciones feministas.33 Es primordial ayudar a la visibilización del trabajo de mujeres
comprometidas con la biosfera y con la defensa de los derechos. como afirmó
Donna Haraway, el feminismo es «en parte, un proyecto para la reconstrucción de
la vida pública y de los significados públicos [...] una búsqueda de nuevas historias
y de un lenguaje que nombre una nueva visión de posibilidades y de límites» (1995:
134). Durante la mayor parte de la historia de la Humanidad, dice María teresa
alario, las mujeres que se dedicaron a la práctica artística «intentaron o bien que
sus obras no evidenciaran su condición de mujeres, pues se consideraba un ele-
mento de minusvalorización que la creadora fuera de sexo femenino, o bien se so-
metieron a los condicionantes socio-artísticos que marcaban lo que debía definir
las creaciones artísticas» (2008: 11); es fundamental desactivar por completo esa
opresión.
como artista, activista, ecologista y feminista, entiendo que hay dos tareas im-
prescindibles para posibilitar el giro: poner el acento sobre las palabras que no están
y desplazar el punto de fuga. Poner el acento sobre las palabras que no están su-
pone, no solo valorizar aquello que no ha sido considerado en su justa medida. im-

33
Mujeres en las artes Visuales (MaV), por ejemplo, ha realizado numerosos informes que reflejan
la enorme desproporción que existe entre la presencia femenina y la masculina en museos, galerías,
pero también, congresos, grupos editoriales y un largo etcétera. Estos informes son herramientas va-
liosas que ponen números nítidos a una imagen pretendidamente turbia. Marian lópez Fdez.cao ha
realizado una importante labor de difusión a este respecto, remarcando la relación que establecemos
entre memoria y museos y el reflejo que tiene sobre las mujeres. Véase: http://ujiapps.uji.es/com/noti-
cies/2014/04/1q/congres-genere/, Más información sobre MaV puede verse en: http://www.mav.org.es/
(consultados el 26 de abril de 2013).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 99

plica también valorar la ausencia, porque tenemos una marcada tendencia a analizar
lo que vemos, pero no lo que no vemos; lo que está, pero no lo que no está. la au-
sencia cuenta, y entiendo por ausencia los nombres, los logros, el capital humano
y no humano. Desplazar el punto de fuga es cuestionar el antropocentrismo y an-
drocentrismo imperantes, presentes no solo en los textos y las imágenes, sino en el
prisma mismo a través del cual miramos el mundo, «we have seen the world too
long through the eyes of men» (1988: xi), dice collard. Esta frase debería leerse
como lo que es: una certeza, y no una amenaza; la lectura que todos conocemos se
hace desde la visión androcéntica y eurocéntrica patriarcal. Esta visión deformada,
gravemente disminuida, que nos ha guiado hasta ahora, debería ser afrontada clara
y llanamente como una enorme pérdida que podemos corregir.

REFEREnciaS BiBlioGRáFicaS

alaRio, María teresa (2008): arte y Feminismo, San Sebastián, Ed. nerea.
BERGER, John (2001): Mirar, traducción de Pilar Vázquez, Barcelona, Ed. Gustavo
Gili.
BERGER, John (2011): Sobre el dibujo, traducción de Pilar Vázquez, Barcelona, Ed.
Gustavo Gili.
BRaDSHaW, Gay (2012): «Pas de deux», en antennae, otoño de 2012, 22, pp. 44-52.
BURGat, Florence (2011): «la disparition», en la question animale. Entre science,
literature et philosophie, Rennes, Pur éditions.
BURGat, Florence (2012): Une autre existence. la condition animale. Entre science,
literature et philosophie, Paris, albin Michel.
caPRa, Fritjof (1990): Sabiduría insólita, Barcelona, Ediciones Kairós.
— (1997): El tao de la Física, Málaga, Ediciones Sirio.
collaRD, andrée (with Joyce contrucci) (1988): Rape of the Wild. Man’s violence
against animals and the Earth. indiana, University Press.
coPPEnS, Yves (2010): «Préface» dans Primates, Petter, Jean-Jacques; coppens,
Yves (2010): Primates, Paris, nathan.
DERRiDa, Jacques (2006): l’animal que donc je suis, Paris, éditions Galilée.
DESBlacHE, lucile (2011): la Plume des Bêtes. les animaux dans le roman, Paris,
l’Harmattan.
EStEBan, Mari luz (2011): crítica del pensamiento amoroso, Barcelona, Ediciones
Bellaterra.
FoSSEY, Dian (1985): Gorilas en la niebla. trece años viviendo entre los gorilas.
Barcelona, Editorial científica Salvat.
HaRaWaY, Donna J. (1995): ciencia, cyborgs y mujeres. la reinvención de la natu-
raleza, traducción de Manuel talens, Madrid, Ediciones cátedra.
100 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR

HERZFElD, chris (2012): Petite Histoire des grands singes, Paris, Seuil.
KlEE, Paul (2007), teoría del arte moderno, Buenos aires, Editorial cactus, serie
Perenne.
latoUR, Bruno (2004): Politiques de la nature. comment faire entrer les sciences
en démocratie, Paris, éditions la Découverte.
lóPEZ FERnánDEZ, Marián (2011): Memoria, ausencia e identidad. El arte como
terapia. Madrid, Eneida.
ManKoto, Mambaele (2006): «Sabrina Krief: are humans just another Great ape?
dans. a World of SciEncE, Vol. 4, nº 1, January-March 2006, pp. 13-15.
PEttER, Jean-Jacques; coppens, Yves (2010): Primates, París, nathan
PicQ, Pascal; lestel, Dominique; Despret, Vinciane; Herzfeld, chris (2005): les
Grands Singes. l’humanité au fond des yeux, París, odile Jacob.
— (2008): nueva Historia del hombre, Barcelona, Ediciones destino.
PERalES Blanco, Verónica (2010): «Práctica artística y ecofeminismo». creatividad
y Sociedad. 15.
PUlEo, alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, cátedra.
VilMER, Jeangène J. B. (2006): «De l’anti-animalisme primaire» le Devoir, 30 mars
2006, p. a7.

b) Recursos electrónicos

cycle de confèrences les bêtes et nous, dans Universcience, conférences du col-


lège, cité des Sciences, Villette: http://www.cite-sciences.fr/fr/conferences-du-
college/programme/c/1248126431940/-/p/1239022827697/ (consultado el 10 de
febrero de 2014)
6. La filosofía de Anne Finch Conway: bases
metafísicas y éticas para la sostenibilidad
Concha ROLdáN
Instituto de Filosofía
Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC)

A Rocío Orsi

INTROduCCIóN. EL CONTExTO SOCIOHISTóRICO dE LAdy CONWAy

A
nne Finch, conocida por «Lady Conway» desde su matrimonio a los
diecinueve años de edad con el vizconde Edward Conway, es un ejemplo
paradigmático de «excepcionalidad» en el ejercicio de la filosofía y de la
ciencia en los orígenes de la modernidad como he escrito ya en otros lugares,2 el
saber estaba relegado «de pleno derecho» a los varones de clases acomodadas,
pudiendo acceder a él solo aquellas mujeres de la aristocracia —excepción dentro
de la excepción— que tenían padres, hermanos o esposos permisivos, generalmente
ellos mismos dedicados al cultivo del conocimiento y de la ciencia, esto es, quienes
hoy calificaríamos como «pertenecientes al mundo de la cultura».
Esto es algo que choca con los presupuestos mismos de la modernidad en sus
orígenes, sobre todo en el campo de la historia de las ideas y de la reflexión
filosófica. Si hemos de creer sus alegatos contra el escolasticismo, la filosofía
moderna que culminaría en el movimiento ilustrado se alza contra los prejuicios de
todo tipo, enarbolando la emancipación del género humano.3 Sin embargo, en la
práctica la modernidad en su conjunto se olvidó de aplicar sus consignas al colectivo

1
Este trabajo se ha realizado en el marco de los proyectos de investigación «Enlightenment and
Global History» (ENGLOBE: Marie Curie Inicial Training Network: FP7-PEOPLE-2007-1-1-ITN),
«Leibniz en español II» (FFI2010-15914) y «Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS:
FFI2013-42935-P).
2
Cf. sobre todo los artículos dedicados a Anna Maria van Schurman y Marie Winckelmann von
Kirch, C. Roldán (1993), (1994), (1997), (2001). Cf. también C. Roldán (2008ª) y (2008 b).
3
No otro sentido es el del «Sapere aude!» que entona Kant en su ensayo Respuesta a la pregunta:
Qué es la Ilustración (1784, Ak. VIII 33-42: versión cast. de R. R. Aramayo en loc. cit. nota 2).
102 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

de las mujeres —a la mitad de la humanidad—, porque a los varones les costaba


renunciar al más arraigado de sus prejuicios, convertido en convicción teórica
acrítica y sustentado en una concepción patriarcal de la historia,4 de la «natural»
inferioridad femenina (Femenías, 1996), por la que quedaban excluidas las mujeres
del mundo de la cultura, reservado a los varones, y se perpetraban, además, estos
prejuicios en las leyes cívicas. Las contradicciones en las que se encuentran
sumidos la mayoría de los pensadores modernos —y que se hicieron patentemente
visibles en el siglo de las luces—5 se deben, sin duda, a esa inercia conservadora
característica de los animales humanos. A muy pocos varones se les ocurrió
contravenir el orden establecido, sino que, más bien al contrario, lo defendieron e
hicieron suyo, sin atender a la «razón crítica» que tanto reivindicaban. Ciertamente,
en este contexto histórico, los mayores «enemigos de las mujeres» fueron los
pedagogos que sentaron las bases de una educación diferenciada para los niños y
las niñas, abogando por perpetrar unas leyes que inhabilitaban a las mujeres para
cualquier desempeño de «ministerios públicos»,6 relegándolas a las tareas
domésticas —durante siglos conocidas como «sus labores»—. Estamos hablando
de una época en la que la educación aún tiene lugar en los hogares de los más
favorecidos, aunque la burguesía creciente impulsa la creación de escuelas e
institutos de formación superior, de la mano de los pietistas y siempre en
instituciones «separadas» para niños y niñas.7 No voy a entrar aquí ahora en la
contradicción añadida que supone el que las madres fueran las encargadas de
educar y civilizar a los niños varones desde su más temprana edad, preparándolos
para su entrada posterior en las instituciones y en la sociedad.
No perdamos de vista que la modernidad se caracteriza en sus orígenes por una
emancipación creciente de los saberes de su tutela teológica, considerándose una de
las metas más claras del saber moderno la consecución de una ciencia universal
(Rossi, 1997: 293 ss.) que le llevara al dominio de la naturaleza, por lo que la
exclusión de las mujeres de esta sublime tarea de liberación, dejándolas inmersas en
el determinismo natural (procreación), resulta aún más llamativa. Así, la dominación
patriarcal cobra nueva savia en los orígenes de la modernidad, hundiendo sus raíces

4
Como ha puesto Celia Amorós de manifiesto en sus escritos; cf. Tiempo de feminismo (1997),
cap. II.
5
Como botón de muestra de escritos en los que aparecen desarrolladas estas cuestiones, cf. sobre
todo: ángeles Jiménez Perona (1992), Alicia Puleo (1993) o (1995) y (2013b).
6
Leyes que se remontan al Edicto de ulpiano (aprox. año 192): Edictum de adtemptata pudicitia,
heredero ya de edictos anteriores, datados en el siglo III a. C., según Plauto.
7
Los pietistas Francke y Spener apostaron a finales del siglo xVII por las escuelas públicas para
niños (y en la misma medida también para niñas, aunque para estas se reservaban tareas propias de
su sexo). No olvidemos que Rousseau incluirá en su famoso libro sobre la educación, Emilio, un ca-
pítulo especial dedicado a la educación también «especial» de Sofía. Cf. Cobo (1995).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 103

en la división de tareas, en la polaridad sexual, que se justifica como «natural»: los


varones están llamados a las nobles tareas de desarrollar la ciencia y los saberes, a
participar de la política y la cultura; las mujeres deberán desarrollar las tareas del
hogar, «propias» de su sexo y solo saldrán de casa acompañadas. Política y saber se
dan, en efecto, la mano en el espíritu moderno; los hombres de letras del siglo xVII
se sentían como «ciudadanos de un estado ideal» —de una «república universal de
las letras»—,8 que superaba las fronteras de los estados y las iglesias, pero en el que
a su vez se operaba una especie de transposición a una «república ideal» —integrada
por una «élite ilustrada»— que poseía sus propias redes de comunicaciones,
intercambiando en fluidas correspondencias epistolares9 informaciones, reflexiones
y descubrimientos, y preocupados por la difusión de sus ideas, que ejercían su
influencia al margen de las iglesias y las universidades. En este sentido, podríamos
ver el proceso político que conduce a los nacionalismos como responsable del inicio
de la especialización de los saberes, truncando la pretensión científica de
universalización —internacionalización— de los conocimientos que ahora volvemos
a propugnar como superior.
Ahora bien, por otra parte, el creciente movimiento burgués hace que cada vez
un mayor número de varones —la «sociedad»— exijan su parte de ese pastel del
conocimiento que se exhibe como néctar de los dioses. Así, bajo esta demanda, la
difusión, accesibilidad y popularización de los saberes se presentará como la otra
cara de la moneda del intento de consecución de una ciencia universal.10 Con todo,
durante siglos asistiremos a un «público» elitista y fundamentalmente masculino.11

8
He desarrollado estos aspectos en C. Roldán (2002) y (2009). Cf. también C. Roldán (2008a) y
(2013a).
9
Cf. P. dibon, «échanges épistolaires dans l’Europe savante du xVIIe siècle», en Revue de Syn-
thèse, janvier-juin 1976, 31-50. A comienzos del siglo xVII el intercambio intelectual y epistolar era
sumamente especializado y se realizaba en latín, con lo que la influencia en un público no-científico
era prácticamente imposible. Tras una fase de transición, caracterizada por los intercambios epistolares
semipúblicos —recordemos el papel del padre Mersenne como «cartero intelectual de Europa», esto
comenzó a cambiar con la aparición de libros en idiomas nacionales (descartes, Vico, Wolff), con la
traducción de las versiones latinas (Newton) y, sobre todo, con el surgimiento de publicaciones cien-
tíficas (Acta Eruditorum, Miscellanea Berolinensia, Journal de sçavants, Journal de Trévoux, Monatlicher
Auszug, etc.), que también dan fe de la evolución del latín hacia los idiomas nacionales.
10
Será en este contexto en el que tanto G. W. Leibniz como W. von Humboldt —los últimos ge-
nios universales entre los eruditos de la época, propugnaron la fundación de academias y sociedades
científicas por una parte y, por otra, la construcción de grandes bibliotecas como vehículos para fa-
vorecer en primera instancia el intercambio de pensamientos e informaciones de los especialistas,
pero sin olvidar su extensión a un público interesado más amplio.
11
Las mujeres científicas o filósofas fueron toleradas, e incluso admiradas, por sus coetáneos como
excepciones (que no engendraban peligro si no constituían norma) calificadas de «milagro de la na-
turaleza» o de «espíritus masculinos en cuerpos femeninos», a quienes solo les faltaba la barba para
restablecer el equilibrio y armonía naturales, ya que habían osado robar los saberes que los dioses ha-
104 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

Pero, a su vez, descubrimos un viento favorable en este movimiento creciente de


intercambio público de conocimientos, que fue aprovechado por las mujeres de la
época para ir introduciendo su presencia y una reivindicación subrepticia de dere-
cho a la emancipación y a la igualdad; me estoy refiriendo a la organización de reu-
niones intelectuales en las cortes y, posteriormente, en los salones de la aristocracia
y de la burguesía emergente urbana, esos espacios fronterizos12 entre lo público y
lo privado donde las mujeres —organizadoras de esos encuentros— podían parti-
cipar en las discusiones científicas, filosóficas o literarias de las que eran excluidas
en los lugares institucionales del saber (Gougy-François, 1965). Por otra parte,
gracias a las reuniones laicas en los salones, la querelle des femmes entre defensores
y detractores de la igualdad de las mujeres dejará de ser privativa de teólogos y
moralistas, para pasar a ser un tema de opinión pública. Sin embargo, tampoco
debemos olvidar que este movimiento de popularización trajo de la mano una pro-
liferación de escritos dirigidos a las mujeres, que en su afán por «adaptar el conoci-
miento» contribuyeron a afianzar la idea de su incapacidad natural para acceder por
sí mismas a los saberes; me refiero a las denominadas «filosofías para damas» o «fi-
losofías en el tocador», que ya iniciara Fontenelle en el xVII con su famoso Entretien
sur la pluralité des mondes, y que cobrará más auge a finales del xVIII —sobre todo
en Alemania y en Italia al presentarse como «filosofía popular»—; movimiento junto
al que encontrará su lugar la proliferación de las publicaciones periódicas o «se-
manarios morales», que también harán un flaco favor a la verdadera consecución
de la igualdad,13 como observamos ahora también en las llamadas «revistas feme-
ninas»: el patriarcado vuelve y vuelve siempre con sus consignas, más o menos ex-
plícitas pero siempre con una pregnante viscosidad, como un «Alien» que se resiste
a ser aniquilado.
Las historias, también las historias de la filosofía de las que las mujeres son las
grandes ausentes, nos muestran cómo la consecución de ciencia y conocimiento en
general supuso una ardua lucha para el género femenino, que accedió al saber como
a un «nido robado», por utilizar la expresión de Alma Mahler, haciendo caso omiso

bían entregado a los varones para su custodia. En este sentido se refirió Kant —conocido como el
«padre de la ética moderna»— a Madame de Châtelet; cf. Observaciones sobre el sentimiento de lo
bello y lo sublime: «a una mujer con la cabeza llena de griego, como la señora dacier, o que sostiene
sobre mecánica discusiones fundamentales, como la marquesa de Châtelet, parece que no le hace falta
más que una buena barba» (AA II, 229). Cf. C. Roldán, «un gineceo en el Reino de los fines» (1995),
«La escritura robada» (2008b) y «Ni virtuosas ni ciudadanas» (2013b).
12
Tomo la expresión de Oliva Blanco (1992: 77).
13
En este contexto, surgirán en Inglaterra el Spectator de Addison, y en Alemania die vernünftige
Tadlerinnen (dirigido expresamente a un público femenino) o der Biedermann de Gottsched. Cf.
C. Roldán 2008ª (apartado 2: «Filosofía popular y filosofía para damas»), donde disiento de la tesis
«galante» de u. P. Jauch (1990) y hago un comentario crítico de las tesis de Jean école (1983) y Werner
Schneiders (1991). Cf. también C. Roldán (2007).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 105

de las «filosofías para damas» que los galantes intelectuales de la época escribían
para ellas como un intento más de que permanecieran en su minoría de edad. La
ausencia de las mujeres de las historias «oficiales», que Celia Amorós ha caracteri-
zado de «razones de los olvidos de la razón», se sustentan en una concepción pa-
triarcal de la historia (Amorós, 1997: cap. II), de forma que solo fragmentariamente
(y tras ardua indagación bibliográfica) podemos tener conocimiento de que exis-
tieron unas pensadoras llamadas Anna Maria van Schurman, Anne Finch Conway,
Marie Winckelmann von Kirch o Emilie du Châtelet, que tuvieron una extraordi-
naria producción literaria, filosófica o científica, de la que solo una pequeña muestra
ha llegado a nuestras manos, pues el resto desapareció borrado como las huellas en
la arena de la playa (O’Neil, 1998). Pero no olvidemos, que es también durante el
siglo xVII cuando surgen los primeros escritos «feministas» reivindicando la igual-
dad entre los sexos y defendiendo las aptitudes intelectuales de las mujeres para
poder dedicarse al estudio de las ciencias;14 «filosofías de mujeres», que reaccionan
frente a las «filosofías para damas».
Cada vez fueron más los pensadores varones que, en los albores de la moderni-
dad, se sumaron a la corriente creciente de «defensores de las mujeres», para apoyar
la incipiente «querelle des femmes»,15 que defendía la idea de igualdad para com-
batir la inferioridad tradicional de las mujeres y que no hacía de la diferencia sexual
un motivo de exclusión de las más elevadas tareas de la humanidad, entre las que
sin duda se encontraban la aproximación a la ciencia y al pensamiento. General-
mente se trata de los pensadores varones que constituyeron esa «otra» Ilustración
(Puleo, 1993, 2ª ed. 2011; Seoane, 1998), heterodoxa y lamentablemente olvidada,
que poco antes de la precipitación posmoderna dimos también en llamar Ilustración
«inacabada» o «insatisfecha» y que desde el feminismo ha sido reivindicada por
muchas pensadoras como la verdadera seña de identidad de la igualdad emancipa-
toria, algo que Amelia Valcárcel convierte en lema poniéndolo en boca de Mme.
de Stäel: «las luces solo se curan con más luces».16
Entre los defensores o amigos de las mujeres en los albores de la modernidad
hay que contar, sin duda, a Poullain de la Barre (Poullain de la Barre, 1674; Amorós,
1992b), que inicia una corriente argumentativa que se apoya en el dualismo
cartesiano para demostrar que —frente a la extensión de la materia— «el
pensamiento no tiene sexo», algo que empleará profusamente Anna Maria van
Schurmann en sus escritos (Roldán, 1997, 2001, 2008b). Aunque son menos

14
Podemos citar como escritos paradigmáticos el de la francesa Marie de Gournay Egalité des
hommes et des femmes (1622) y el de la alemana afincada en Holanda Anna Maria van Schurmann
de capacitate ingenii mulieris ad scientias (1638).
15
He desarrollado estos aspectos en C. Roldán (2008a) y (2013a). Sobre la querelle des femmes
en Europa, cf. Oliva Blanco (1992) y G. Bock y M. Zimmermann, (1997).
16
Cf. A. Valcárcel (1997). Recordermos las polémicas de fin de siglo xx: Habermas, Foucault…
106 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

conocidos, también fueron defensores de las mujeres a comienzos del siglo xVII
otros pensadores de raíces neoplatónicas y con clara vocación de superar el
dualismo cartesiano, defendiendo la unidad de los individuos a partir de principios
tanto materialistas (atomistas) como espiritualistas (vitalistas); entre ellos, podemos
contar a Henry More, Ralph Cudworth —padre de lady Mashams—, Mercurius
van Helmont, Jakob Thomasius —padre de Christian— o el propio Leibniz, con
quienes se relacionó Anne Finch Conway.

PEINANdO LA VIdA A CONTRAPELO: EL LABORATORIO FILOSóFICO dE ANNE FINCH


CONWAy

No es mi interés hacer aquí un análisis exhaustivo de la vida y la obra de nuestra


autora (Roldán, 1993),17 sino solo señalar aquellos aspectos más importantes para
el esclarecimiento y apoyo de la tesis que aquí se quiere defender. Anne Finch
(1631-1679) tuvo un origen nobiliario. Nació en Londres en 1631, como hija
póstuma de Sir Heneage Finch, diputado de la Cámara de los Lores, y su segunda
esposa Elizabeth Cradock, viuda de Sir John Bennet, y se crió en la casa de la familia
Finch, que ahora se conoce como Palacio de Kensington, siendo la hija menor de una
familia numerosa. No sabemos muchos detalles de su infancia, salvo que estaba
especialmente unida a su hermanastro John Finch —cinco años mayor que ella—,
quien jugó un papel importante en su educación, primero alimentando con libros
prestados la formación autodidacta de su mente superdotada, y, después —acaso lo
decisivo para su formación filosófica, al facilitarle el contacto con Henry More, uno
de sus maestros en el Christ’s College, donde John ingresará en 1645 para continuar
su formación.
de acuerdo con los usos de la época que hemos presentado en el apartado anterior,
John disfrutaría de un preceptor particular durante su infancia y adolescencia, en
cuyas clases se colaría silenciosa más de una vez la hermana menor, aprendiendo
así desde muy pequeña francés y latín, más tarde griego y hebreo. Al parecer, John
no solo le pasaba a Anne sus lecturas, sino que gustaba de apropiarse juntos de
nuevos conocimientos y conversar sobre ellos, obteniendo un gran provecho de la
ventaja intelectual de su hermana; sin duda, a John le parecía injusto que su
hermana no tuviera derecho a la misma educación que él, teniendo sin duda muchas
más aptitudes. Por eso, viendo el gran interés con que Anne devoraba todos los
tratados filosóficos que caían en sus manos y el provecho que de ello sacaba para
sus discusiones, John hizo a su hermana el mejor regalo que pudo hacerle, al ponerle
en contacto con su maestro Henry More, quien obsequió a la quinceañera Anne un

17
Cf. entre otros Hagengruber (1998), Hutton (2004), Nicolson (1930) y Orio (2004).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 107

ejemplar de sus poesías filosóficas y comenzó a visitarla en Kensington House, cada


vez más a menudo y con creciente entusiasmo al descubrir la gran capacidad
filosófica de su joven pupila, a quien introdujo en la filosofía de Aristóteles, Plotino,
en la escolástica y en el humanismo inglés, así como en la filosofía cartesiana —que
More había descubierto y estudiaba por aquella época, y que pronto empezó a
criticar desde sus presupuestos platónicos, aunque nunca llegara a renunciar a sus
presupuestos dualistas, como sí hará su discípula Anne—. del intercambio
intelectual surgió una amistad que les acompañaría durante el resto de la no tan larga
vida de Anne Finch y que dio lugar a una rica correspondencia (Marjorie, 1930;
Gabbey, 1977), donde se recoge la complejidad de sus discusiones y que es una de
las pocas fuentes de que disponemos para acercarnos a la filosofía de Anne Finch
Conway —junto con el único tratado de la condesa que se ha conservado, Principios
de la más antigua y moderna filosofía, al que nos referiremos enseguida.
Henry More (1614-1687) pertenecía al círculo de pensadores ingleses
denominados «platónicos de Cambridge» por su reivindicación expresa de las
filosofías de Platón y Plotino, círculo al que también perteneció Ralph Cudworth
(1617-1688), padre de Lady Masham y profesor junto con More en el Christ’s
College de la universidad de Cambridge.18 Ahora bien, no conviene perder de vista
que esos pensadores —y por lo que aquí nos interesa, que es su influencia en Anne
Finch— eran también buenos conocedores de Aristóteles y del estoicismo y que,
frente al escolasticismo, valoraban mucho los nuevos desarrollos en la filosofía y la
ciencia —estudiando tanto a descartes (parece que Cudworth fue uno de los
primeros ingleses que lo leyeron), Hobbes y Spinoza, como a Bacon y Boyle—19
siempre en el marco de la «filosofía perenne» (philosophia perennis) que había sido
propuesta originalmente por los filósofos renacentistas italianos, como Marsilio
Ficino, y que luego fuera reivindicada también por Gottfried Wilhelm Leibniz. Por
lo tanto, forman parte de la revolución filosófica del siglo xVII, buscando una base
filosófica alternativa al aristotelismo en las reflexiones de Hobbes y descartes, pero
sin dejar de compartir con el humanismo renacentista su interés por la filosofía
clásica, defendiendo su relevancia para la vida contemporánea de la época y haciendo
que esto incline su balanza en la famosa «disputa de los Antiguos y los Modernos».

18
En honor de la verdad, hay que decir que Anne Conway aparece casi siempre mencionada en las
Enciclopedias más populares entre los seguidores más jóvenes de la escuela platónica de Cambridge,
junto a George Rust (m. 1670), y John Norris (1657-1711); cf. por ej. de Filosofía: http://plato.stan-
ford.edu/entries/conway/
19
Boyle formaba parte de lo que por aquel entonces se denominaba «Nueva Filosofía» o «Filosofía
Experimental», participando de unas reuniones filosóficas semanales en Londres, en lo que él
denominaba «Colegio Invisible» (o «Colegio Filosófico»), que tuvieron lugar desde 1645 y que en 1661
dieron lugar a la constitución «oficial» de la Royal Society, a la que años después también pertenecerían
pensadores y científicos destacados como Wallis, Leibniz, Newton y darwin, entre otros.
108 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

Por último, una de las características más relevantes de este grupo de pensadores
de Cambridge será el trasfondo teológico de sus reflexiones, convencidos de la
compatibilidad de la razón y la fe, y de la filosofía como preocupación legítima de
los teólogos, que otorgan a la razón humana un papel preeminente, algo que
caracterizara el «racionalismo inglés».20 Así, preocupados del tratamiento filosófico
de las cuestiones religiosas —como la defensa de la existencia de dios y la
inmortalidad del alma, uno de los principales objetivos de su pensamiento fue la
formulación de una ética práctica, que sirviera de fundamento a la conducta
cristiana, para lo que defendieron la existencia eterna (innata) tanto de los
principios de la razón (verdades) como de la moral, a los que la mente humana
tiene la capacidad de acceder—. de esto se deducía su visión optimista de la
naturaleza humana, poniendo su énfasis en la libertad de la voluntad y en un anti-
determinismo que les lleva a proponer argumentos para la autonomía humana,
repudiando la filosofía natural mecanicista a favor de la opinión de que el espíritu
es el principio causal fundamental en las operaciones de la naturaleza; sin embargo,
frente a la opción monista original de Conway —anticipadora en esto de Leibniz,
siempre se mantuvieron dualistas, defendiendo que la mente (espíritu) es
ontológicamente anterior a la materia.
En 165121 se casó Anne con Edward Conway, tercer vizconde Conway, heredero
de Warwickshire —cerca de Alcester, donde estaba la residencia principal de los
Conway, Ragley Hill— y también del condado de Antrim en Irlanda, y cuya familia
poseía una de las mejores bibliotecas privadas de la época, algo que fascinó a la joven
filósofa y le hizo más llevadera la entrada en su nuevo estado,22 junto con el hecho
de que su marido no la hiciera desistir de su interés por el estudio, sino que la
animara a cultivar sus intereses intelectuales. Aquejada de unas frecuentes e intensas
migrañas, que la sometían a ataques periódicos y que se hicieron más agudas y más
frecuentes con los años, los libros habían sido los mejores aliados de Anne Finch
durante su infancia y adolescencia, y también se convirtieron en el refugio de la joven
Lady Conway tras la pérdida de su único hijo, Heneage, que nació en 1658 y murió

20
Tampoco debemos olvidar que fueron los primeros filósofos que defendieron y practicaron la
publicación de sus escritos en la lengua vernácula (inglés). Cf. la obra de R. Cudworth, True Intellec-
tual System of the univers (London, 1678), que tanto impacto produjo en Leibniz en su primera lec-
tura en 1689, y en cuyo ejemplar anotara una referencia a las «mónadas» pitagóricas. Cf. Wilson 1990:
39, donde refiere al manuscrito leibniziano: LH Phil II, 3c.
21
del 5 de mayo de este año data una carta de More a Conway, donde este señala la necesidad de
mantener correspondencia durante su ausencia para paliar en la medida de lo posible la imposibilidad
de sus ricas conversaciones; esta carta no fue editada por Nicolson: cf. Gabbey (1977) y Hutton (1980).
22
de la posterior correspondencia que Anne mantuvo con su suegro Lord Conway, sabemos que
ya antes de relacionarse con Henry More y de «entrar en la familia» Conway, Anne conocía a Copér-
nico, Pitágoras y Herodoto, y que había empezado a reflexionar sobre la «disputa entre antiguos y
modernos». Cf. al respecto Nicolson (1930: 16-17 y 31-32); cf. también Orio (2004: 11).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 109

de viruela en 1660, de forma que el dolor psíquico vino a sumarse al de su


enfermedad, acompañándola durante toda su vida y jugando sin duda un papel
importante en sus reflexiones filosóficas, sobre lo que volveré después. Para sacarla
de su depresión, se le propuso un cambio de aires y en julio de 1662, tras la
coronación de Carlos II, la familia marcha a Irlanda —a su residencia de Portmore—
durante algo más de dos años; More no pudo acompañarla en el viaje —sí lo hizo su
discípulo y gran amigo George Rust—, por lo que su correspondencia se intensifica
hasta su regreso a Ragley en septiembre de 1664.
No se sabe a ciencia cierta en qué consistía la extraña enfermedad de Anne Finch
Conway, que fue considerada un extraño caso clínico (Owen, 1937) al que los
médicos no encontraban remedio. El médico de cabecera de sus primeros años fue
el ya anciano William Harvey y después de él una legión de físicos, anatomistas y
curanderos la visitaron —en Kensington primero y luego en Ragley— para intentar
buscar la causa de su mal y dar alivio a su dolor; todo en vano. Como un último
intento para aliviar la presión craneal en el cerebro Thomas Willis le recomendó la
trepanación, a la que fue a someterse en París a mediados de marzo de 1656.23 Pero
no había solución a su desconocido mal que deberá sobrellevar con resignación
hasta que casi quince años después entró en contacto con el médico y filósofo
flamenco Francis Mercury van Helmont, hijo del yatroquímico Jan Baptiste van
Helmont, quien si no curación le transmitirá «amor al dolor» como resultado de
su teoría de la «simpatía universal», a la que volveremos en los siguientes apartados.
El joven van Helmont había viajado a Inglaterra en 1670, con la intención de
permanecer allí solo durante un mes —para reclamar del Gobierno inglés una pensión
vitalicia para Elisabeth von der Pfalz, pero después de conocer a Lady Conway, se
convirtió en su huésped y permaneció a su lado como imantado durante la última
década de su vida—. El intercambio intelectual con van Helmont será muy relevante
para Anne Conway, ya que de su mano no solo se introdujo en el pensamiento
cabalístico (Orio de Miguel, 2002, 2004, 2009), sino que también se acercó a la
secta de los cuáqueros: el estudio de la Cábala judía contribuyó a su ruptura decisiva
con el cartesianismo de su educación filosófica y el encuentro con los amigos
cuáqueros de van Helmont condujo a su conversión al cuaquerismo, un año después
de la conversión de su amigo Mercurius y poco antes de morir. En la Cábala
descubrió los principios metafísicos que la llevaron a desarrollar su intuición de un
monismo sustancial y con los cuáqueros encontró la inspiración —la «luz»— para
dar un sentido en su filosofía al dolor en el mundo, además de aprender de ellos
un trato de igualdad para hombres y mujeres.24 desde la soledad de sus aposentos,

23
Pero al parecer solo llegaron a abrirle las yugulares; cf. Nicolson (1930: 116) y Orio (2004: 13).
24
El movimiento cuáquero se introdujo en Inglaterra a comienzos de 1650 y las mujeres fueron
pioneras activas. Sobre la importancia de los cuáqueros en el pensamiento político de esta época y el
110 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

Anne había descubierto el significado de la «simpatía universal» que le transmitiera


van Helmont y exhaló su último suspiro junto al «Cristo interior» que predicaban
los cuáqueros el 23 de febrero de 1679, mientras su esposo se encontraba de viaje,
por lo que van Helmont la embalsamó con «espíritu de vino» depositándola en una
urna de cristal recubierta de madera hasta que él regresó para celebrar unos
modestos funerales —como ella había deseado- y enterrar sus restos en la iglesia
de Arrow, en cuya lápida de plomo puede leerse «Quaker Lady» (Nicolson, 1930:
452; Orio, 2004: 19).
En sus últimos años de vida (1671-1679), Anne Finch Conway organizó múlti-
ples reuniones filosóficas en la biblioteca de su residencia25 y se dedicó a escribir el
mencionado tratado, que recoge su pensamiento y que ha sido calificado como
«uno de los documentos filosóficos más originales escritos nunca por una mujer»
(Nicolson [1930: 459].26 Lo redactó en inglés, pero fue publicado anónimamente
en ámsterdam en 1690 en una traducción latina realizada probablemente por van
Helmont con el título Principia philosophiae antiquissimae et recentissimae y, des-
pués, traducido de nuevo al inglés27 e impreso en Londres en 1692 bajo el título
The Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy, haciéndose constar
su autoría. Su primera publicación anónima hizo que inicialmente fuera adjudicada
la obra a su recopilador,28 Mercurius van Helmont, quien se ocupó de combatir
este error y hacer que el nombre de la autora apareciera en la siguiente publicación
inglesa, precedida de un prólogo laudatorio a «aquella incomparable persona», que
había sido escrito por More, pero que firma van Helmont (Ward, 1710: 208ss).29
Aunque la brevedad de la obra y el hecho de haber sido escrita por una mujer
le impidieran entrar a formar parte de las historias de la filosofía, no cabe duda de
que la originalidad revolucionaria de sus tesis la hace merecedora de ocupar un es-
pacio privilegiado entre los grandes de la época. Los Principia constan de nueve

papel jugado por las mujeres en su seno, cf. Broad y Green (2009), cap. 7 «Quaker women», pp. 162-
179. desde 1675, los cuáqueros, ilustrados y cultos, empezaron a frecuentar Ragley y a entrar al ser-
vicio de Lady Conway.
25
Sobre el clima intelectual de Ragley Hill y las discusiones mantenidas por Lady Conway con More,
van Helmot y Rosenroth, sobre la divinidad y la emanación de los espíritus, cf. Orio (2002: 57-87).
26
En Orio (2004, 20) podemos encontrar un amplio comentario de Nicolson.
27
Javier Echeverría aventura a decir en su edición de los Nuevos Ensayos de Leibiz (1992, I, 1,
nota 19) que el traductor al inglés de los Principia en 1692 (J. C.) fue J. Crull —Jodocus Crull, químico
de origen alemán, traductor de Puffendorf en 1695 y miembro de la Royal Society—, mientras Nicolson
(1930, 453) y Orio (2004, 24) la atribuyen a John Clark, discípulo y admirador de van Helmont.
28
El texto latino de Conway formó primero parte de un volumen colectivo anónimo que contenía
otras dos obras: Philosophia Vulgaris Refutata y los Problemata de Revolutione Animarum Humano-
rum —esta última del propio van Helmont. Cf. Orio (2004, 23).
29
El texto inglés del prefacio de More puede leerse en Loptson (1982, 240ss), Coudert-Corse
(1996, 3-6) y Orio (2004, 103ss); trad. castellana en Orio (2004, 99-102).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 111

capítulos, de los que solo el primero recibió un título específico («Sobre dios y sus
propiedades divinas») junto a la descripción de su contenido; los demás solo están
precedidos de un exhaustivo índice, ordenados por parágrafos los distintos aspectos
metafísicos a tratar. y en el último capítulo se ocupa de diferenciar su filosofía de la
de descartes, Hobbes y Spinoza,30 facilitando una especie de resumen de sus tesis
principales. No es difícil adivinar que parte de la precisión terminológica original
de la autora se habrá perdido entre tanta traducción y retraducción —por lo que es
de lamentar que nadie conservara el manuscrito original—, pero lo que todos los
testimonios transmiten es que a pesar de las manipulaciones31 el libro que se publicó
recogía las tesis originales de Lady Conway, siguiendo un potente hilo argumental
desde el primero al último capítulo: aportar una nueva solución (monismo vitalista)
al problema de la relación mente-cuerpo, superando el dualismo cartesiano y apar-
tándose del materialismo de Spinoza —cuya propuesta, también monista, conduciría
al ateísmo, para compatibilizar su teoría con las fundamentales verdades cristianas.

dEL VITALISMO A LA METAFíSICA MONAdOLóGICA: CONWAy y LEIBNIZ

Anne Finch Conway pretende conciliar en su obra —como se desprende del mismo
título— dos fuerzas en principio contrarias: la doctrina de la emanación y el vita-
lismo de los antiguos (sobre todo de los griegos, de los cabalistas y de Filón de Ale-
jandría), de un lado, con el mecanicismo de la cosmovisión moderna, de otro, y a su
vez hacer compatibles ambos con la teología cristiana, muy en la órbita de los plató-
nicos de Cambridge. Por ello, al comienzo de su obra acepta la existencia de dios
como evidente (sin prueba de demostración) y subraya el papel de Cristo como «me-
diador» entre dios y las criaturas en el proceso de emanación y creación. Sin embargo,
y aquí radica su originalidad frente a sus maestros —a quienes hace una crítica velada32
en su obra (PR PH Ix, 2, 214)—, propugna una ontología del espíritu, derivada de
los atributos de dios, que se establece en oposición a las interpretaciones filosóficas

30
En 1982, Loptson publicó una edición bilingüe (latín-inglés) y disponemos de una tradución
castellana a cargo de (2004), acompañada de la versión latina. Para más detalles sobre la historia y vi-
cisitudes sufridas por el manuscrito, puede consultarse Hutton (2004), Anne Conway, pp. 5-6, y La
filosofía de lady Anne Conway, un proto-Leibniz (2004, 21 y ss).
31
Orio (2004, 22) sostiene que van Helmont dio forma al libro de Conway, introduciendo algunas
citas en las «Anotaciones cabalísticas» que aparecen como apéndice del capítulo I de los PR PH, pero
sin que ello suponga merma en la originalidad.
32
«Este grave error debe imputárseles también a quienes sostienen que cuerpo y espíritu son cosas
contrarias, mutuamente inconvertibles entre sí, al decir esto, privan al cuerpo de toda vida y percep-
ción, lo que es radicalmente contrario a los fundamentos de nuestra Filosofía». Crítica que aparece
también en PR PH VII, 4, y que va dirigida contra More y Cudworth. Cf. Orio (2004: 53ss y notas
143-145 de la trad.).
112 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

de More, descartes, Hobbes y Spinoza,33 mediante la introducción de su concepto


de «mónada», que está en deuda con la Cábala y se anticipa a la propuesta de Leibniz.
de esta manera, una de las grandes riquezas añadidas del libro de Anne Conway
será la presentación de su sistema como una respuesta a los problemas planteados
por la relación cuerpo-mente, frente a las filosofías dominantes de su tiempo. En
este sentido, varios capítulos de su breve tratado se dedican a una refutación del
dualismo de Henry More, y descartes, aunque hace afirmación expresa de su ad-
miración por la física de descartes. También muestra su desacuerdo con Hobbes y
Spinoza, acusando a este último de panteísmo material, por confundir a dios con
las sustancias creadas.
Frente al dualismo mecanicista imperante —al que tampoco había renunciado
Henry More, a pesar de su crítica a descartes, Anne Conway propone una inter-
pretación monista de las sustancias en el universo creado: la unidad de materia y
espíritu—. Pues, a su entender, el error fundamental del mecanicismo cartesiano
sería el haber olvidado que alma y cuerpo tienen un origen esencial común. de ma-
nera que, en su opinión, aunque descartes haga valiosas aportaciones en la expli-
cación de los movimientos naturales, nunca considera que los cuerpos tienen en sí
mismos su propio fundamento del movimiento, tratándose de «cuerpos vivos con
capacidad de percepción» (PR PH, VIII, 3; Ix, 9), una definición en la que sin
duda encontramos un «aire de familia» con la metafísica leibniziana.
Mucho se ha especulado sobre la posible influencia del pensamiento de Lady
Conway en Leibniz, sobre todo en su acuñación del concepto de mónada.34 Sabe-
mos que el pensador alemán era dueño de una copia del libro de Anne Conway,
probablemente un regalo de su amigo común, van Helmont, en su visita —preci-
samente en 1696— a Hannover, donde se quedó varios meses, teniendo la oportu-
nidad de relatarle a Leibniz en sus encuentros matutinos diarios muchas cosas de
la vida y la obra de esa «extraordinaria mujer que fue la Countess of Kennaway»,35
lo que hizo que el pensador de Leipzig valorara su trabajo muy favorablemente, lle-
gando a escribir a Thomas Burnett en 1697: «Mis puntos de vista filosóficos se apro-
ximan mucho a los de la condesa de Conway, y mantienen una posición intermedia
entre Platón y demócrito, porque sostengo que todas las cosas se llevan a cabo me-

33
El título completo de su tratado era Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy
concerning God, Christ, and Creation, that is, concerning the Nature of Spirit and Matter, thanks to
which all the Problems can be resolved which could not be resolved by Scholastic Philosophy nor by
Modern Philosophy in general, whether Cartesian, Hobbesian, or Spinozian.
34
un clásico al respecto es el artículo de 1979 escrito por Carolyn Merchant bajo el sugerente
título «The Vitalism of Anne Conway: Its Impact on Leibniz’s Concepto f the Monad», donde intenta
poner de manifiesto la original aportación de también duran (1989) y (1994).
35
Cf. Carta de Leibniz a Sofía, septiembre de 1696, en Correspondance de Leibniz avec l’Electrice
Sophie de Brunswicke-Lunebourg, ed. O. Klopp (Hannover, 1974), vol. 2, p. 8. Cf. GP III, 176, 180.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 113

cánicamente como demócrito y descartes, en contra de las opiniones de Henry


More y sus seguidores, y mantengo también, sin embargo, que todo sucede de
acuerdo con el principio de la vida y de acuerdo con las causas finales —todas las
cosas están llenas de vida y de conciencia, contrariamente a las opiniones de los
atomistas (GP III: 217)—. Leibniz volverá a tener palabras de alabanza para Con-
way, van Helmont y More en los Nuevos Ensayos (1697, I, 1), por haber sabido ex-
plicar la doctrina del vitalismo mejor que sus predecesores renacentistas.
Ciertamente, Leibniz no emplea el término «mónada» en su sistema hasta me-
diados de los años 90 —en concreto en una carta a Fardella de septiembre de 1696
(Stein, 1890: 209), manejando con anterioridad el de «sustancia»—. Pero también
es verdad que el concepto de «mónada» tampoco es originario de Lady Conway,
sino que ella lo toma de la tradición cabalística (Orio de Miguel, 2002 y 2004), con
la que Leibniz mismo estaba familiarizado —al menos con la Kabbala denudata—
desde antes.36 El concepto de sustancia de Anne Conway debe mucho, en efecto,
al platonismo y la Cábala —que, en la versión que conoció a través de van Helmont,
estaba profundamente platonizada—. Su pensamiento también muestra el impacto
de las enseñanzas del teólogo cristiano heterodoxo, Orígenes, que fue muy admi-
rado por su maestro Henry More, y su sistema se anticipa —como una especie de
«proto-Leibniz», en denominación de Loptson (1982) que adopta Orio de Miguel
como título de su libro, que incluye la traducción de Conway— a la filosofía del
alemán, diseñando sin embargo su propia teodicea y monadología.
En cualquier caso, como muy bien ha señalado Orio de Miguel en sus trabajos,
aunque Leibniz comparta con Anne Conway y con van Helmont la intuición monista
y vitalista, que hace surgir la vida misma de un principio interno a cada «mónada
espiritual», ninguno llegará a alcanzar la complejidad de las disquisiciones leibnizia-
nas —como son su teoría de la analogía y la expresión— en el desarrollo de una
«fuerza activa interna» que fundará su dinámica, para dar razón de los fenómenos
naturales explicables mediante ecuaciones matemáticas —pero cuyo origen no es
matemático—, y su sistema de la «armonía universal». Con todo, la propuesta de
Lady Conway es bastante más elaborada que la de los helmontianos que solo vis-
lumbran el mundo de los cuerpos-espíritus y las semillas que segregan su envoltura
corporal, como había enseñado Juan Bautista van Helmont, padre de Mercurius.
La metafísica monadológica de Anne Conway, por el contrario, analiza y describe
una visión contingentista de un mundo37 en el que no hay una diferencia esencial
entre cuerpo y espíritu, sino que los dos son «interconvertibles», siendo los cuerpos
«espíritus condensados» y los espíritus «cuerpos sutiles volátiles» y argumentando

36
En 1688 visitó Leibniz a Knorr von Rosenroth en Sulzbach. Cf. A. Foucher de Careil (1861),
Leibniz, la philosophie juive et la cabale, Auguste durand, Paris, 56-59. Cf. (2002) y (2009).
37
En (1982: 48-50) ve un anticipo de la filosofía de Hume e incluso de Wittgenstein.
114 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

contra descartes que la materia inerte no puede existir. Frente a otro gran monista,
Spinoza, que presenta un sistema basado en un absolutismo determinista, donde
dios y la naturaleza se identifican —deus sive natura—, Conway empieza en su
obra por distinguir entre dios (intemporal e inmutable, PR PH I, 1-6) y «la Cria-
tura» o esencia creada,38 compuesta por el conjunto de las cosas y con un único
atributo definitorio, la mutabilidad (PR PH, VI, 1), sosteniendo a su vez que «todo
individuo creado permanece inalterable en su individuación, a fin de que se man-
tenga el orden divino inteligible» (PR PH, VI, 3-4). Con otras palabras, nos encon-
tramos ante un nominalismo metafísico en el que el «ser» o propiedad esencial de
cada cosa «se define» por su esencial mutabilidad que, sin embargo, mantiene inal-
terable su individuación, de manera que no hay ontológicamente especies distintas,
sino que cada ser es una naturaleza singular, un existente mutable individual, esto
es, «una mónada» (Loptson, 17-18, 23; Orio, 27-28) que puede adoptar diversos
grados de «corporalización» o «espiritualización»; y como el conjunto de todos los
individuos constituye una única «Criatura» o Esencia —esentia mundi— unos y
otros están comunicados entre sí —sin perder su individuación— y «se emiten con-
tinuamente partículas sutiles, imágenes o emanaciones aun a la máxima distancia»
(PR PH, III, 10). Esto es lo que significa para Conway precisamente la creación,
«dar la esencia a la Criatura aportando la Voluntad a la Idea» (PR PH, 1, 7, p. 114);39
frente a la idea de una «creatio ex nihilo», Conway defiende, pues, una especie de
emanación en una modalidad de panenteísmo con el que pretende salvar la conti-
nuidad y a la vez la distinción entre dios y la Criatura, recurriendo a la figura del
«Cristo-Medio» en quien todas las cosas subsisten, ensamblando todos los eslabo-
nes de la cadena del ser, y que es lo que introduce mayor dificultad a su doctrina
(Orio 2004, p. 28).
No voy a entrar ahora en disquisiciones metafísicas, sino concluir este punto
con la idea fundamental de la ontología de Conway que me interesa para dar el
paso a la perspectiva ética y a un posible fundamento de los principios de la ecología
actual. Me refiero a la idea de «convertibilidad», con la que Conway hace «un bri-
llante rechazo del materialismo» (Popkin, 111), distinguiendo entre espíritus-cuer-
pos más densos o más volátiles, y que —lo más genial de todo— se encuentran en
continua mutabilidad, de manera que todos «podemos adoptar todas las formas,
salvo la de dios o Cristo (V. PR PH, IV y V), espiritualizándonos o corporeizándo-
nos, pero manteniendo nuestra identidad»; algo que Conway explica con su famoso

38
En la que puede rastrearse la noción de «Adam Kadmon» de la Cábala. Cf. Orio de Miguel
(2004: 2).
39
En este punto aporta Conway una interpretación de la Trinidad, que deberían poder aceptar
judíos y turcos, y que es un alegato de tolerancia. Cf. Hutton 2011, con carta inédita de John Finch a
su hermana.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 115

ejemplo: «yO no puedo convertirme en ESE caballo, pero puedo convertirME en


caballo» (PR PH VI, 6). Esto es lo que Orio ha denominado el «principio de sutiliza-
ción recursiva asintótica» de Conway (2004, p. 47), que es un principio de continuidad
metafísica según el cual todo espíritu creado puede ascender y descender gradual-
mente en la escala de la sutilización y densificación, sin llegar nunca al grado infinito
de sutileza —que solo le compete a dios— ni al grado cero de sutileza —o infinito en
densidad— que tampoco existe, ya que de la materia muerta o no-ser no hay ejemplar
infinito, pues solo hay razón para el ser (PR PH III, 9; VII, 1 y 4; VIII, 5).
En esta mayor razón para el ser que para el no-ser coincidirá Leibniz plenamente
con Conway, haciendo de ello su «principio de armonía de las cosas» (A VI, 3, 472,
n. 60). Sin embargo, su mayor divergencia se encuentra en el estatuto ontológico
de la materia y en la noción de espíritu, esto es, en la concepción misma de las mó-
nadas, que para Leibniz serán unidades metafísicas radicalmente inextensas, mien-
tras que Conway, siguiendo la tradición cabalística, entiende los espíritus como algo
extenso.

dE LA METAFíSICA A LA éTICA: EL LuGAR dEL dOLOR EN Su SISTEMA

En este punto vamos a centrarnos en mostrar cómo el principio de continuidad


metafísica o sutilización-condensación del sistema de Conway tiene también una
vertiente ética como principio de perfectibilidad,40 en tanto que toda criatura fa-
brica su propia imagen o forma —envoltura o cuerpo— de acuerdo con el grado
moral de su actividad, de manera que el ascenso o descenso en el estado de corpo-
reidad-espiritualidad mide a su vez la rectitud moral del mismo (PR PH VI, 7-9).
Así, cada ser creado es un reflejo de la naturaleza divina, un punto de vista de la re-
lación de dios con la creación, a la vez que encuentra en la actividad interna misma
de cada espíritu-cuerpo y en su «relación» —un concepto también muy leibni-
ziano— con los demás el fundamento del movimiento mecánico y local y de la ex-
tensión material. y a la vez, cada individuo se define por su «situs perceptivo» o
«modus vitalis» (PR PH Ix, 9) que es la base de las relaciones intencionales que
expresan la «emisión de imágenes de unas criaturas a otras» (PR PH III, 10) y que
le permiten afirmar que «todo cuerpo es un espíritu sentiente» (PR PH VIII, 3)
con un determinado grado de espiritualización (PR PH VI, 11; Ix, 2).
En este contexto, descubrimos que en la filosofía de Conway —como no puede
ser menos desde su propia experiencia— ocupa un lugar central el sufrimiento, que
se convierte en la llave para alcanzar un perfeccionamiento tanto moral como gno-
seológico. Así, la filosofía que Anne Conway desarrolla en sus Principia cristaliza

40
Sobre «perfeccionamiento moral», cf. White 2008, parte I.
116 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

en un perfeccionismo espiritual que tiene una doble vertiente metafísica y moral: a


la vez que las sustancias crecen en espiritualidad, son capaces de mayor bondad.
En este sentido, Conway explica el mal como un alejamiento de la perfección de
dios, y entiende el sufrimiento como parte de un proceso a largo plazo de la recu-
peración espiritual, justificando la existencia del dolor y del sufrimiento como pu-
rificadores, con el objetivo final de restaurar en las criaturas la perfección moral y
metafísica.41 Por lo tanto, el sistema de Anne Conway no es solo una ontología, sino
también una teodicea.
Conway retoma la idea cristiana de que el orden moral del mundo de dios pa-
rece requerir el sufrimiento y la convierte en una pieza central de su filosofía: como
Cristo, los seres humanos sufren en la vida y como él, lo hacen por el bien del
mundo. Pero Conway va más allá que el cristianismo en la aplicación de esta norma
de perfectibilidad, haciéndola extensiva a todas las criaturas: tanto los minerales,
como las plantas y animales sufren por el bien de los buenos, construyendo así una
estrecha conexión entre el Cristo histórico (emanación del logos) y todas las cria-
turas (PR PH V, 6). En el sufrimiento, las criaturas aumentan en vitalidad y en la
conectividad o relación de «armonía comprensiva» con todos los demás, pues dios
ha implantado una cierta simpatía universal (PR PH, III, 10) y el amor mutuo entre
sus criaturas para que sean —por así decirlo— todos los miembros de un solo
cuerpo (PR PH VI, 4).
La simpatía entre las criaturas es importante por dos razones. En primer lugar,
porque las criaturas se benefician moralmente del sufrimiento de otras criaturas,
en tanto que el sufrimiento de una criatura aumenta la bondad de todas las demás
criaturas. Pero también porque las criaturas se benefician de una manera metafísica
sencilla, haciendo a la víctima más vital y, por tanto, metafísicamente mejor: «todo
el dolor y el tormento estimula la vida o el espíritu que existe en todo lo que sufre»
(PR PH, VII, 1).
de esta manera, mediante el sufrimiento, el mundo está en continuo progreso
hacia la perfección e incluso las criaturas más burdas e inmorales eventualmente
alcanzan la bondad moral a través del sufrimiento: «las más perversas criaturas, y
hasta los temibles demonios, tras muchos y prolongados suplicios y castigos, vol-
verán por fin de nuevo a la bondad» (PR PH VII, sumario 1, 177). La justicia divina
funciona de tal manera que los pecadores deben pagar por sus pecados, pero el
pago o el castigo ha de contribuir a promover el perfeccionamiento moral: «si todos
los castigos infligidos por dios a sus criaturas conservan alguna proporción con sus
pecados, sin embargo también todos ellos, aún los peores, sin excepción, están pre-
vistos para su bien y restauración, y por eso son medicinales, a fin de que con ellos

41
Sin embargo, Conway negará la eternidad del infierno, ya que le parece que sería muy injusto
por parte de dios castigar pecados finitos de manera infinita y eterna.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 117

se curen las criaturas enfermas y sean restablecidas a un estado mejor que el que
antes tenían» (PR PH VI, 10, 170). Por último, Conway sugiere que a medida que
las criaturas se vuelven metafísicamente mejores, también aumenta el grado de su
conocimiento, entendiendo progresivamente más sobre la unidad de las cosas y
sobre su justicia. Como criaturas, se vuelven más vitales y más conscientes de la
unidad entre ellos y el resto de las criaturas; y a medida que se vuelven más cons-
cientes de esta unidad, comienzan a comprender la justicia en el mundo: «la justicia
de dios se muestra admirablemente en todo su esplendor en la transformación de
las cosas de una especie en otra» (PR PH VI, sumario 7, p. 155). En efecto, somos
capaces de captar el «principio de la verdadera justicia», porque «dios dotó al hom-
bre con el instinto por la justicia…» (PR PH VI, 7).
Leibniz estará de acuerdo con Conway en que se obtienen beneficios morales y
cognitivos del sufrimiento —al verlo como parte del orden racional del mundo cre-
ado por dios—. Pero, a diferencia de la pensadora inglesa, no cree que tales bene-
ficios provengan del sufrimiento mismo; por sí misma, la pasión no puede tener
ningún beneficio moral o cognitivo: cualquier beneficio que derivaría de una pasión
debe venir de lo que se aprende en la transición de un estado de sufrimiento a uno
de no-sufrimiento. Esta transición puede ofrecer tres tipos de beneficios. El bene-
ficio más básico derivado de dicha transición es el placer de alivio, en tanto que el
movimiento del sufrimiento al no-sufrimiento conduce así a una mayor apreciación
de la ausencia de dolor, de forma que «una disonancia dota de mayor relieve a la
armonía» (Teodicea § 12). un segundo beneficio producido por la transición del
sufrimiento al no-sufrimiento se produce cuando hay un sentido de «victoria» sobre
la pasión; esto sucede cuando la víctima se ha negado a ceder ante el dolor o la ten-
tación de la pasión y se siente la fuerza de haberlo conseguido; Leibniz sugiere que
los beneficios morales siguen estas pequeñas victorias: se obtiene sentido de la
fuerza y el deseo de adquirir más (Teodicea § 329). y en tercer lugar, cuando con-
tribuye a una mayor perfección del que sufre (Teodicea § 23); cuando alguien ha
reunido la «fuerza de la mente» para superar las pasiones, ha dado un paso hacia
el perfeccionamiento moral y puede comprender la armonía y justicia universales.
Leibniz no piensa que el sufrimiento sea por sí mismo suficiente para obtener
un perfeccionamiento moral, aunque sin sufrimiento tampoco puede haber una
transición del sufrimiento al no-sufrimiento y, sin transición, no habrá una verda-
dera toma de conciencia de la armonía del mundo de dios. Por lo tanto, el sufri-
miento es una condición necesaria para dicha comprensión, por lo que en la
Teodicea afirma que todos los seres humanos —sin importar la religión— pueden
encontrar un camino hacia dios; pueden hacerlo porque todos ellos sufren y, por
lo tanto, todos tienen la oportunidad de aprender acerca de la justicia y la armonía
del mundo de dios. Cuando se pasa de un estado de sufrimiento a no sufrir, no
solo se siente el placer por no sufrir más, sino que también se está motivado para
118 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

reflexionar sobre el orden y la justicia de reflexión es el primer paso para vislumbrar


su profunda armonía y belleza, y en esto sí coincide con Conway.

A MOdO dE CONCLuSIóN: LA «CONVERTIBILIdAd» y «SIMPATíA» uNIVERSALES dE


CONWAy, uN FuNdAMENTO METAFíSICO PARA LA SOSTENIBILIdAd

Conway, Leibniz y muchos otros pensadores modernos tempranos comparten la


idea de una armonía comprensiva, que podemos calificar como una «interpretación
vitalista-energetista-unitaria del mundo», según la cual «todo tiene que ver con
todo» y «todo repercute en todo», aunque se encuentre situado a una gran distan-
cia. Anne Finch Conway, siguiendo la tradición neoplatónica, concibe la naturaleza
como un organismo vivo y unitario en el que, como en cualquier organismo, no hay
vacío, y se establecen relaciones intencionales de unas partes a otras aún a la máxima
distancia. Los helmontianos o «filósofos químicos» completaron la especulación
neoplatónica con el estudio de los fenómenos orgánicos, aportando cosas como el
poder curativo de las plantas, la noción de enfermedad como desequilibrio, la cu-
ración por la simpatía, la explicación de la comunicación entre sustancias por la
emisión de imágenes, etc. y en Conway confluyen ambas tradiciones en su monismo
sustancial y perceptivo de los cuerpos-espíritus; si todos los espíritus creados com-
ponen una misma Criatura —dirá Conway— aun distantes «físicamente», habrán
de mantener entre ellos «relaciones intencionales»: los cuerpos-espíritus emiten
ciertas sutiles partículas de unos a otros y «mantienen constantemente una real uni-
dad y simpatía» (PR PH VII, 4, 194); pero esta emisión no debe entenderse como
un traslado físico de la imagen a través de un espacio vacío que deba recorrer, y
para mejor explicarlo, Conway utiliza varios ejemplos, como el de hacernos imagi-
nar una viga de madera de inmensa longitud desde el Boreal al Austral, que haría
que se transmitiera una acción de un extremo al otro, sin ninguna emisión de par-
tículas, pues la viga misma sirve de transmisión, lo que con mayor motivo ocurrirá
en el «movimiento vital», desde el momento en que la sustancia creada es ella misma
medio de comunicación entre sus partes (PR PH Ix, 9). Leibniz utiliza también
ejemplos y metáforas —como el «gran vaso del mundo» o «el océano» para explicar
el mismo fenómeno.42
Leibniz defendió también en su concepción armónica del universo una «cadena
continua de los seres» pero, como para él cada mónada refleja en sí todo el universo,
no tuvo que ir tan lejos como Conway en la idea de «una convertibilidad metafísica
y moral» que nos permita «percibirnos» como semejantes al resto de los seres na-

42
Cf. Carta a Sofía del 28 de octubre de 1696 (A I, 13, 83-93) o Teodicea I &9. Cf. también Orio
(2004, 52-53) y Fernández (1998).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 119

turales —sean minerales, animales o plantas—, cuya «forma o imagen» podríamos


adoptar con el mero cambio en nuestra relación de proporción de la sutilidad-den-
sidad de nuestro cuerpo-espíritu. No hay, por tanto, «seres superiores» y «seres in-
feriores», sino que todos juegan un papel importante en la teoría de la «simpatía
universal» de Anne Finch Conway, contribuyendo cada uno, además, mediante la
«compensación»43 (PR PH Ix, 9), al equilibrio o desequilibrio universal, del que
cada uno de los seres es responsable.
Lo bueno es que está en el poder de los humanos —no sabemos en qué medida
de los demás seres— «comprender» esta relación compensatoria universal y, apli-
cando el principio ético de perfectibilidad, introducir «intencionalmente» una co-
rriente de mejora en el universo de las criaturas, que no es diferente del aumento
en la bondad universal: aunque la relación no es recíproca (es decir, que no con-
trolamos a quién afecta, mejor dicho favorece, nuestra «simpatía»). de forma que
en la teoría del conocimiento tanto de la correspondencia universal de las criaturas,
como de la interacción mutua en cada una de ellas, más que el mantenimiento del
universo tal y como lo hemos recibido (sostenibilidad), estamos llamados a perfec-
cionarlo, transformando el sufrimiento en conocimiento y virtud: «cuando la cria-
tura llega a una especie de grado de vida más noble, recibe una mayor potencia y
actividad para moverse a sí misma y transmitir sus movimientos vitales a la máxima
distancia» (PR PH Ix, 9). El perfeccionamiento de una sola criatura aumenta la
bondad del universo en su conjunto.

REFERENCIAS BIBLIOGRáFICAS

AMORóS, Celia (coord.): Feminismo e Ilustración 1988-1992. Actas del Seminario


permanente, univ. Complutense de Madrid, Instituto de Investigaciones Femi-
nistas.
— (1992 b): «Cartesianismo y feminismo. Olvidos de la razón, razones de los olvi-
dos», en C. Amorós, pp. 95-104.
— (1997): Tiempo de feminismo. Sobre feminismo, proyecto ilustrado y postmo-
dernidad, Cátedra, Madrid.
BLANCO, Oliva (1992): «La “querelle féministe” en el siglo xVII. La ambigüedad de
un término: del elogio al vituperio», en C. Amorós, pp. 73-84.

43
Sobre la idea de compensación en el Renacimiento y los inicios de la Modernidad es interesante
consultar Th. Leinkauf: «’diversitas identitate compensata’. Ein Grundtheorem in Leibniz’s denken
und Seine Voraussetzungen in der frühen Neuzeit», St. Leibnitiana 28, 1, 1996, 58-83, y 29, 1, 1997,
81-102.
120 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

BOCK, Gisele, y ZIMMERMANN, Margarete (1997): «die Querelle des Femmes in Eu-
ropa. Eine Begriffs- und Forschungsgeschichtiliche Einführung», en Querelles,
Jahrbuch für Frauenforschung, 2 vols., pp. 9-38.
BROAd, Jacqueline (2002): Women Philosophers of the Seventeenth Century, Cam-
bridge Cambridge university Press.
BROWN, Stuart (1990): «Leibniz and Henry More’s», en S. Hutton (ed.), Henry More
(1614-1687): Tercentenary Studies. dordrecht: Kluwer Academic Publishers.
COBO, Rosa (1995): Fundamentos del patriarcado moderno: J. J.Rousseau, Cátedra,
Madrid.
CONWAy, Anne Finch (1690), The principles of the most Ancient and Modern Phi-
losophy. Eds.: Loptson, P. (The Hague, 1982) y A. Coudert and T. Corse (Cam-
bridge Texts, Cambridge uP, 1996). Trad. cast. de (2004, pp. 97-334), por la que
citaré como PR PH.
COudERT, Allison (1998): The Impact of the Kabbalah in the Seventeenth Century.
The Life and Work of Francis Mercury van Helmont, 1614-1698: Brill.
duRAN, Jane (1989): «Anne Viscountess Conway: A Seventeenth Century Ratio-
nalist», Hypatia 4 (1), pp. 64-79.
ÈCOLE, Jean (1983): «A propos du projet de Wolff d’écrire une Philosophie des
dames», Studia Leibnitiana xV/1, pp. 46-57.
ENGEL, F., HASSAuER, B., RANG, H. Wunder (eds.) (2004) : Geschlechterstreit am
Beginn der europäischen Moderne. die Querelle des Femmes, u. Helmer Verlag,
Königstein/Taunus.
FEMENíAS, María Luisa (1996): Inferioridad y exclusión, Buenos Aires, Nuevohacer.
FERNáNdEZ, Francisco José (1998): Leibniz, el filósofo del océano, Iralka, Irún.
GABBEy, Alan (1977): «Anne Conway et Henry More: Lettres sur descartes (1650-
1651)», Archives de Philosophie 40, pp. 379-388.
GOuRNAy, Marie de (1641), Escritos sobre la igualdad y en defensa de las mujeres
(ed. de Montserrat Cabré), Clásicos del Pensamiento, CSIC, 2014.
GOuGy-FRANçOIS, Marie (1965): Les grands salons féminis, ed. debresse, Paris.
HAGENGRuBER, Ruth (1998): Klassische philosophische Texte von Frauen, dtv,
München.
HuTTON, Sarah (1995): «Anne Conway critique de Henry More: l’esprit et la na-
ture», Archives de Philosophie, 58, pp. 371-384.
— (2004): Anne Conway. A Woman Philosopher: Cambridge university Press.
— (2011): «Sir John Finch and Religious Toleration: an unpublished letter to Anne
Conway», in del dubbio. un Progetto di Antonio Rotondo, Luisa Simonutti and
Camilla Hernanin (eds.), 2 vols., Florence: Olschki, pp. 287-304.
JAuCH, ursula Pia (1990): damenphilosophie und Männermoral, Passagen Verlag,
Wien. Trad. cast. de (1995): Filosofía de damas y moral masculina, Alianza univ.,
Madrid.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 121

JIMéNEZ PERONA, ángeles (1992): «Sobre incoherencias ilustradas: una fisura sin-
tomática en la universalidad», en C. Amorós (1992a), pp. 237-246.
JOLLEy, Nicholas (1998) «The Relation between Theology and Philosophy», in:
daniel Garber / Michael Ayers (eds.), Cambridge History of Seventeenth Century
Philosophy, pp. 363-92.
LASCANO, Marcy P. (2013): «Anne Conway: Bodies in the Spiritual World», Phi-
losophy Compass 8 (4), pp. 327-336.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm (1923-), Sämtliche Schriften und Briefe, ed. Citado
como A, por serie, volumen y página.
— (1875-1890) die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Ed.
por C. I. Gerhardt. Berlin. 7 vols. Citado como GP, por volumen y página.
LEINKAuF, Thomas: «“diversitas identitate compensata”. Ein Grundtheorem in
Leibniz’s denken und Seine Voraussetzungen in der frühen Neuzeit», Studia Leib-
nitiana 28, 1, 1996, pp. 58-83, y Studia Leibnitiana 29, 1, 1997, pp. 81-102.
MARTíN-GAMERO, Amalia (1975): Antología del feminismo, Alianza, Madrid.
MCROBERT, Jennifer (2000): «Anne Conway’s Vitalism and Her Critique of
descartes», International Philosophical Quarterly 40 (1), pp. 21-35.
MERCHANT, Carolin (1979): «The vitalism of Anne Conway: its impact on Leibniz’s
concept of Monad», in Journal of Historiy of Philosophy 17, pp. 255-269.
MERCER, Christia (2012): «Platonism in Early Modern Natural Philosophy: The
Case of Leibniz and Conway,» Ch. Horn-J. Wilberding (eds.), Neoplatonic Nat-
ural Philosophy.
NICOLSON, Marjorie H. (1930): Letters. The correspondence of Anne, Viscountess
of Conway, Henry More and their friends: 1642-1684. Oxford. u. P. (-& Hutton,
Sarah, Ibid., 1980, Clarendon Press).
ORIO dE MIGuEL, Bernardino (2002): Leibniz y el Hermetismo, Ed. de Ad. de la
universidad Politécnica de Valencia (uPV), Valencia, 2 vols.
— (2004): La filosofía de Lady Anne Conway, un proto-Leibniz, Colección Leib-
nizius Politechnicus nº 11, Editorial de la uPV, Valencia.
— (2009) «Leibniz y la tradición hermética», en Thémata, 42, pp. 107-22.
OWEN, Gilbert Roy (1937): «The Famous case of Lady Anne Conway», Annals of
Medical History 9, pp. 567-71.
POPKIN, R. H., 1990, «The Spiritualistic Cosmologies of Henry More and Anne
Conway», in S. Hutton (ed.), Henry More (1614-1687): Tercentenary Studies:
Kluwer, pp. 98-113.
POuLLAIN dE LA BARRE, Francois (1674): de l’egalité des deux sexes. discours phy-
sique où l’on voit l’importance de se défaire des Préjuguez, Paris (Nachdr. 1984).
POSAdA KuBISSA, Luisa (1992): «Cuando la razón práctica no es tan pura (Aporta-
ciones e implicaciones de la hermenéutica feminista actual. A propósito de Kant)»,
en Isegoría. Revista de Filosofía moral y política 6, noviembre 1992, pp. 17-36.
122 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR

PuLEO, Alicia (1992): «La radical universalización de los derechos del hombre y
del ciudadano»: Olympe de Gouges», en C. Amorós (1992a), pp. 217-222.
— (1993): La Ilustración olvidada. La polémica de los sexos en el siglo xVIII, Ma-
drid, Anthropos.
O’NEILL, Eileen (1998): «disappearing Ink. Early Modern Women Philosophers
and their Fate in History», in J. A. Kourany (ed.) Philosophy in a Feminist Voice:
Critiques and Reconstructions, Princeton: Press.
REyNIER, Gustave (1929): La femme au xVIIe siècle, Paris.
RILEy, Patrick (2006), Leibniz’ universal Jurisprudence: Justice as the Charity of
the Wise, Cambridge, MA: Harvard university Press.
ROLdáN, Concha (1994): «Anne Finch Conway», en Meyer, u. I. y Bennent-Vahle,
H. (ed.), Philosophinnen Lexikon, ein-FACH-verlag, Aachen (1996, Reclam,
Leipzig), pp. 131-134.
— (1993): «Marie Winckelmann von Kirch: un agujero negro en la historia de la
astronomía», Actas del I Congreso de la Sociedad de Lógica, Metodología y Fi-
losofía de la ciencia en España., uNEd, Madrid, pp. 506-509.
— (1995): «El reino de los fines y su gineceo: las limitaciones del universalismo
kantiano a la luz de sus concepciones antropológicas», en El individuo y de la he-
rencia moderna, ed. de R.R. Aramayo, J. Muguerza y , Paidós, Barcelona, Buenos
Aires, México, pp. 171-185.
— (1997): «Crimen y castigo: la aniquilación del saber robado (El caso de Anna
Maria van Schurman», en Theoría (Revista del Colegio de Filosofía, Fac de Fil. y
Letras de Autónoma de México), nº 5, dic., pp. 49-59.
— (1999): «El sujeto se hizo verbo», en Mariflor Aguilar (coord), Límites de la sub-
jetividad, Fontamara, México, pp. 207-220.
— (2001): «Ana Maria van Schurmann: heteronomía y autodestrucción», en Ciencia
y Género, E. Pérez Sedeño y P. Alcalá (coord.), Philosophica Complutensia, Edi-
torial Complutense, Madrid, pp. 213-222.
— (2002): «El ideal del sabio en la construcción de moderna», en Ciencia, tecno-
logía y bien común: la actualidad de Leibniz (, J. Echeverría y C. Roldán, eds.),
uPV, Valencia, pp. 378-388.
— (2007): «damenphilosophie und europäische Querelle des Femmes zur Zeit
Wolffs», en Christian Wolff und die europäische Aufklärung (hrsg. von J. Stol-
zenberg und O-P Rudolph), Georg Olms Verlag, pp. 145-161.
— (2008a): «Transmisión y exclusión del conocimiento en : Filosofía para damas y
Querelle des femmes», ARBOR. Ciencia, Pensamiento y Cultura nº 731, mayo-
junio, pp. 82-94.
— (2008 b): «Mujer y razón práctica en alemana», en El reto de la igualdad de gé-
nero: nuevas perspectivas en ética y filosofía política (comp. Alicia H. Puleo), Bi-
blioteca Nueva, pp. 219 -237.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 123

— (2008 c) «La escritura robada: literatura filosófica contra las “malas costum-
bres”», en La mujer de letras o la letraherida. Textos y representaciones del dis-
curso médico-social y cultural sobre la mujer de letras en el siglo xIx, dirección y
edición de Pura Fernández y Marie-Linda Ortega, Madrid-Toulouse, Servicio de
Publicaciones del CSIC-université de Toulouse de Mirail, pp. 51-72.
— (2009): «La difusión de los conocimientos en la república de las letras», en Thé-
mata. Revista de Filosofía Vol. 42, pp. 183-193.
— (2013a): «Philosophy for Ladies: diffusion or exclusion of knowledge in Enlight-
enment. The exclusion of women from institutionalised knowledge and the role
of the salons in the dissemination of learning», en Images of/from Enlightenment,
dariusz dolański, Anna Janczys (eds.), Zielona Góra, 117-135.
— (2013b): «Ni virtuosas ni ciudadanas: inconsistencias prácticas en la teoría de
Kant», en Ideas y valores. Revista colombiana de filosofía, LxII, Suplemento 1,
pp. 185-203.
ROSSI, Paolo (1997) : die Geburt der Moderne Wissenschaft in Europa, Beck, Mün-
chen.
RuLLMANN, Marit (1998): Philosophinnen, 2 vols. Suhrkamp, Memmingen.
RuTHERFORd, donald (1995), Leibniz and the Rational Order of Nature, New york.
SCHNEIdERS, Werner (1991): «das philosophische Frauenzimmer», en: Tradition
und Emanzipation, ed. por Claude Weber y Frank Grunert, Münster, pp. 50-94.
SCHROEdER, Steven (2007): «Anne Conway’s Place: A Map of Leibniz», The Plu-
ralist 2 (3), pp. 77-99.
STEIN, Ludwig (1890), Leibniz und Spinoza, Georg Reimer, Berlin.
VALCáRCEL, Amelia (1991): Sexo y filosofía, Horas y Horas (reed. 2014).
— (1997): La política de las mujeres, Cátedra, Madrid (3ª ed. 2004).
WARd, Richard (1710): The Life of the Learned and Pious dr. Henry More, Late
Felow of Christ’s College in Cambridge, London.
WOLLSTONECRAFT, Mary (1792), A Vindication of the Rights of Women, edited by
Sylvana Tomaselli, university Press, Cambrigde, 1995. Versión cast. de Elisa Ve-
lasco en debate, 1998.
WHITE, Carol Wayne (2008), The Legacy of Anne Conway (1631-1679): Reverber-
ations from a Mystical Naturalism, Albany Ny.
WILSON, Catherine / Clarke, desmond (eds.) (2011), The Handbook of Philosophy
in Early Modern Europe.
7. Los cuerpos colonizados: las religiones con-
tra las mujeres
Margarita Mª Pintos de Cea-naharro
asociación para el diálogo interreligioso en Madrid (adiM)
Juan José taMayo-aCosta
Cátedra de teología y Ciencias de las religiones
Universidad Carlos iii de Madrid

L
as religiones son uno de los últimos, más resistentes e influyentes bastiones
legitimadores del patriarcado en las diferentes sociedades del planeta. y den-
tro de ellas las corrientes fundamentalistas son las más beligerantes defenso-
ras del protagonismo de masculinidad hegemónica. se trata de un fenómeno de
especial significación y relevancia al que el pensamiento feminista y los estudios de
género no pueden ser ajenos y del que han de ocuparse tanto en su agenda de in-
vestigaciones como en sus propuestas alternativas. dicho fenómeno tiene repercu-
siones negativas en diferentes ámbitos.
el primero es el de las propias religiones que siguen ejerciendo una gran influen-
cia en la conformación de la conciencia de no pocas personas, grupos humanos y
sociedades enteras. tres cuartas partes de la humanidad están vinculadas, de una u
otra forma, a diferentes sistemas de creencias que predican mensajes androcéntri-
cos, exigen creer en doctrinas elaboradas por los varones, justifican comportamien-
tos machistas, legitiman prácticas patriarcales, fomentan actitudes misóginas, incitan
a la violencia contra las mujeres y proclaman textos discriminatorios de las mujeres.
el segundo ámbito donde se deja sentir la influencia negativa —muchas veces
perniciosa— de las religiones en la esfera social y política, es en los países de religión
única o privilegiada por la identificación entre los códigos morales religiosos y la
moral cívica, la mayoría de las veces represiva contra las mujeres y permisiva con
los varones. Pero influyen también en no pocos países no confesionales —en es-
paña, especialmente—, cuyos legisladores, gobernantes y jueces son rehenes de la
religión dominante. en definitiva, el patriarcado religioso legitima, refuerza y pro-
longa al patriarcado social y político en todas las esferas de la vida, empezando por
el lenguaje, siguiendo por la familia, las relaciones humanas, la legislación, las rela-
ciones humanas, etc. y llegando hasta la vida cotidiana.
126 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

Las religiones o, mejor dicho, los dirigentes religiosos han declarado la guerra
— a veces incluso no solo metafóricamente, sino de forma cruenta— al feminismo,
al que se refieren despectivamente no como teoría de género, sino como «ideología
de género», a la que responsabilizan del avance en la autonomía y la libertad de las
mujeres y se muestran insensibles hacia la violencia de género contra ellas.
en el catolicismo, por ejemplo, son numerosos los documentos papales y epis-
copales contra el aborto, al que consideran un asesinato, contra el divorcio, al que
acusan de destruir la familia, contra los métodos anticonceptivos, a los que respon-
sabilizan de la obstrucción a la vida y del descenso del control de la natalidad, contra
las relaciones prematrimoniales, la píldora del día después, la fecundación in vitro,
los derechos sexuales y reproductivos, etc. y muestran su oposición no solo en do-
cumentos, sino también participando en manifestaciones junto a los sectores más
conservadores de la sociedad. no se prodigan tanto o, mejor, nada, en documentos
contra la violencia de género, el patriarcado, el sexismo, el androcentrismo, etc.
Uno de los campos de análisis de las investigaciones feministas es el del discurso
androcéntrico y de la organización patriarcal de las religiones. es por eso que con-
sideramos necesaria la elaboración de una teoría crítica feminista de las religiones,
cuyas líneas queremos trazar a continuación.
en contra de lo que intenta mostrar la cultura patriarcal y las religiones, las mu-
jeres no son víctimas indefensas y silenciosas, sino que tienen una larga historia de
lucha y de resistencia frente al patriarcado, que está radicalizándose en nuestro
tiempo.

Las MUJeres son Las grandes oLvidadas y Perdedoras de Las reLigiones

a) Las mujeres en las religiones no son reconocidas como sujetos morales: se las
considera menores de edad que necesitan guías espirituales varones que les con-
duzcan por la senda de la moralidad, les digan lo que es bueno y lo que es malo,
lo que pueden y no pueden hacer, sobre todo en materia de sexualidad, de re-
laciones de pareja y en la educación de sus hijos. Las normas morales a cumplir
por las mujeres —alejadas, cuando no contrarias, la mayoría de las veces, a las
orientaciones igualitarias de los fundadores y fundadoras— son dictadas por los
varones, que se las imponen como de obligado cumplimiento.
en el imaginario patriarcal religioso, influido por los clérigos, imames, rabinos,
lamas, gurús, pastores y maestros espirituales, las mujeres son consideradas ten-
tadoras, ligeras de conducta, amorales, etc. esa imagen se ha elaborado a partir
de determinados textos de algunos libros sagrados escritos en lenguaje patriarcal,
considerados válidos en todo tiempo y lugar y leídos con ojos fundamentalistas
y mentalidad misógina.
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 127

b) Las mujeres casi nunca son reconocidas como sujetos religiosos. en no pocas
religiones, la divinidad suele ser masculina y tiende a ser representada solo por
varones. de lo que Mary daly deduce que si dios es hombre, el hombre es dios
(daly, 1985: 69-97). así, los varones se sienten legitimados divinamente para im-
poner su omnímoda voluntad a las mujeres y el patriarcado religioso —dios, en
definitiva— legitima el patriarcado en la sociedad. Precisamente porque solo
los varones pueden representar a dios, solo los varones pueden acceder al ám-
bito de lo sagrado, al mundo divino, entrar en el sancta sanctorum; subir al altar,
ofrecer el sacrificio, dirigir la oración comunitaria en la mezquita, presidir el ser-
vicio religioso en las sinagogas (con algunas excepciones).
solo los varones pueden ser sacerdotes en la iglesia Católica, imames en el
islam y rabinos en el judaísmo ortodoxo, sin que haya texto sagrado alguno que
excluya a las mujeres. en la iglesia católica la ordenación sacerdotal de mujeres
es considerada delito grave al mismo nivel que la pederastia, la herejía, la apos-
tasía y se castiga de manera más severa que la pederastia: con la excomunión.
La oración comunitaria de los viernes presidida por mujeres es calificada de pro-
fanación de lo sagrado. en la iglesia católica las mujeres pueden consagrar su
vida a dios, pero, en razón de su sexo, no pueden representar a dios. en las
mezquitas, las mujeres suelen estar separadas de los hombres —¿para no con-
taminar?—, son colocadas en la parte superior tras una celosía, e incluso a veces
tienen que entrar por una puerta distinta de la de los hombres.
c) Las mujeres difícilmente son reconocidas como sujetos teológicos. Las insti-
tuciones religiosas suelen poner a las mujeres todo tipo de trabas para el estudio
y la docencia de la teología, para la interpretación de los textos sagrados, para
la reflexión sobre la fe, etc. y cuando deciden u osan pensar la fe y hacer teología
desde sus experiencias de sufrimiento y de lucha, e interpretar los textos de sus
respectivas religiones desde la propia subjetividad, desde sus experiencias vitales,
suelen ser acusadas de entrar en un terreno que no les corresponde y de caer en
el subjetivismo. ¡Como si los varones no lo fueran en sus lecturas e interpreta-
ciones! en la mayoría de las religiones, la teología está escrita con caracteres
masculinos.
d) La organización de las religiones se configura, la mayoría de las veces, patriar-
calmente: todos los sacerdotes católicos y todos los imames son varones; el dalai
Lama es varón; la mayoría de los rabinos y de los lamas son hombres. Por ello,
las religiones bien pueden definirse como perfectas patriarquías. hay, con todo,
honrosas excepciones en las iglesias de tradición protestante, que ordenan pas-
toras, sacerdotisas y obispas a las mujeres. Práctica que debería generalizarse para
terminar con la discriminación de género en el acceso a los ministerios ordenados.
e) Las mujeres acceden con dificultad a puestos de responsabilidad en las co-
munidades religiosas. el poder suele ser detentado por varones. a las mujeres
128 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

les corresponde acatar las órdenes; lo que tiende a justificarse por el discurso
androcéntrico de las religiones apelando a la voluntad divina: es dios quien en-
comienda el poder y la autoridad a los varones. en el caso del cristianismo, se
apela a Jesús para cerrar el paso a la ordenación sacerdotal de las mujeres. Lo
afirmaba el papa Benedicto Xvi en el libro-entrevista con el periodista Peter
seewald: «La formulación de Juan Pablo ii es muy importante: la iglesia no tiene
“en modo alguno” la facultad de ordenar a mujeres. no es que, digamos, nos
guste o no nos guste, sino que no podemos. el señor dio a la iglesia una figura
con los doce, y después, en sucesión de ellos, con los obispos y los presbíteros
(los sacerdotes). esta figura de la iglesia no la hemos hecho nosotros, sino que
es constitutiva desde él» (Benedicto Xvi, 2010: 158-159). en otras palabras,
que solo ordenó sacerdotes a hombres. ¡Machismo duro y puro y lectura andro-
céntrica de la Biblia para legitimar la organización patriarcal de la iglesia!
nosotros nos preguntamos: ¿las iglesias cristianas, cada vez más numerosas,
que ordenan a mujeres y les reconocen funciones sacerdotales y episcopales,
están transgrediendo el mandato de Cristo o aplican en sus comunidades el prin-
cipio evangélico y democrático de igualdad entre hombres y mujeres?
Con la Biblia cristiana en la mano y desde una hermenéutica de género hay
que decir dos cosas: a) que lo que pone en marcha Jesús de nazaret no es una
iglesia jerárquico-patriarcal como la actual, sino un movimiento igualitario de
hombres y mujeres; b) que Jesús de nazaret no ordenó sacerdotes ni a hombres
ni a mujeres. todo lo contrario: excluyó directa y expresamente de la nueva re-
ligión el sacerdocio y eliminó el templo como lugar de culto proponiendo como
alternativa la adoración «en espíritu y en verdad». el cristianismo, como dijera
lúcidamente díez-alegría, es una religión ético profética, no ontológico-cultural.
Con la historia de la iglesia en la mano y las investigaciones arqueológicas puede
afirmarse que, durante varios siglos, las mujeres ejercieron funciones sacerdotales
y episcopales. ¿no es la historia, para la iglesia, «maestra de la vida»?
f) Las religiones legitiman de múltiples formas la exclusión de las mujeres de la
esfera pública, de la vida política, de la actividad intelectual, del campo cientí-
fico; y limitan sus funciones al ámbito doméstico, a la esfera de lo privado, a la
educación de los hijos e hijas, a la atención al marido, al cuidado de los enfermos,
personas mayores, etc. Cualquier tipo de presencia de las mujeres en la actividad
política o social es considerado ajeno a la «identidad femenina» (¿?) y un aban-
dono de su verdadero campo de operaciones, que es el hogar, con la consiguiente
culpabilización. a lo sumo defienden que la mujer pueda realizarse en el hogar
y en el trabajo, lo que no se aplica a los hombres.
h) La mayoría de las religiones niegan a las mujeres el reconocimiento y el ejer-
cicio de los derechos reproductivos y sexuales:
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 129

- Las mujeres no son dueñas de su propio cuerpo, que es controlado por los
confesores, directores espirituales, esposos, etc.
- a las mujeres no se les permite planificar la familia: deben tener los hijos y
las hijas que dios quiera, los que dios les mande, no los que ellas libremente
decidan.
- no pueden ejercer la sexualidad fuera de los límites impuestos por la reli-
gión (matrimonio, heterosexualidad). La práctica de la sexualidad fuera del
matrimonio o con personas del mismo sexo es prohibida y condenada ex-
presamente.
- son consideradas impuras por la menstruación.
- si deciden interrumpir el embarazo, incluso ateniéndose a la ley, son acu-
sadas de pecadoras y criminales y se pide para ellas incluso penas de cárcel.
en la condena y criminalización del aborto coinciden los líderes religiosos,
por ejemplo, del catolicismo y del islam.
- Las mujeres no pueden utilizar métodos anticonceptivos, porque eso im-
plica poner obstáculos a la vida.

Los CUerPos de Las MUJeres CoLonizados

La norma masculina y la norma humana se confunden hasta hacerse idénticas, en


vez de reconocer que la masculinidad es solamente una de las facetas de la expe-
riencia humana. Lo expresa muy bien simone de Beauvoir:

a veces me ha irritado, en el transcurso de discusiones abstractas, escuchar que los hom-


bres me decían: «Usted piensa tal cosa porque es una mujer», pero yo sabía que mi única
defensa era contestar: «Lo pienso porque es verdad», eliminando así mi subjetividad:
no se trataba de contestar: «y usted piensa lo contrario porque es hombre», pues se en-
tiende que el hecho de ser hombre no constituye una singularidad; un hombre está en
su derecho de ser hombre; quien está equivocada es la mujer. en la práctica, así como
para los antiguos había una vertical absoluta con respecto a la cual se definía la oblicua,
hay un tipo humano absoluto que es el tipo masculino. La mujer tiene ovarios y un útero,
y estas condiciones singulares la encierran en su subjetividad. de ellas se dice gustosa-
mente que piensan con las glándulas. el hombre olvida, en su soberbia, que su anatomía
también incluye hormonas y testículos. Percibe su cuerpo como una relación directa y
normal con el mundo, al cual cree aprehender en su objetividad, mientras considera que
el cuerpo de la mujer se encuentra como entorpecido por cuando lo especifica: un obs-
táculo, una prisión. (Beauvoir, 1957: 10-11)

el cuerpo sexuado es el factor determinante en la socialización humana y motivo


de discriminación estructural. Los estereotipos corporales se construyen desde la
130 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

diferencia en función de lo que se considera normativo. La creencia de que una


mujer debe pertenecer a un hombre, es incompatible con ser autónoma y dueña de
su cuerpo.
el cuerpo de las mujeres está colonizado por las funciones que se le atribuyen.
enumeremos algunas: maternidad y crianza; objeto de deseo; productor de trabajo
doméstico gratuito (si lo realiza un hombre es trabajo asalariado); objeto de venta y
consumo (trata-prostitución); dirime causas de honor; es botín de guerra; es violada
por los enemigos para deshonrar a una familia o pueblo; los cuerpos femeninos como
campos de batalla: Bosnia 50 000 violadas; ruanda más de 300 000; 60 millones de
niñas son sexualmente agredidas al ir a la escuela (recordemos el caso de Malala);
cuerpo sobre el que se ejerce cualquier tipo de violencia porque es propiedad del
que la ejerce; etc. en tokio, Japón, desde 2007 hay vagones solo para mujeres en el
metro por la violencia que sufren. La publicidad nos enseña a tener un cuerpo fe-
menino ideal, como si fuera una superficie ornamental: maquillaje, depilación, pei-
nado, diferentes cremas para modelar las imperfecciones del cuerpo. si no lo
consigues, las agresiones de todo tipo están permitidas, o al menos justificadas.
La lucha de los movimientos feministas en este terreno (Conferencias de México,
Copenhague, nairobi, Beijing) sobre los derechos humanos de las mujeres y las
niñas, está haciendo visible la colonización de los cuerpos de las mujeres y la nece-
sidad de luchar contra dicha colonización.
Las religiones también se han apoderado del cuerpo de las mujeres. según usen
su sexualidad, serán dignas de alcanzar la salvación o no. exigen un cuerpo feme-
nino dócil, potenciando gestos, movimientos y vestidos que desarrollan la sumisión.
nos presentan una iconografía que nos ayuda a mantener ese cuerpo: evas, Mag-
dalenas, Judiths, reinas...
Utilizan el lenguaje masculino genérico como si este fuera inclusivo, pero este
lenguaje solo funcionara en una sociedad donde no hubiera roles sexuales explíci-
tos. Por eso, es necesario nombrar a las mujeres per se sobre todo en la historia de
las religiones, ya que, en muchas tradiciones, los hombres son presentados como
sujetos religiosos, capaces de nombrar la realidad, mientras las mujeres se presentan
solo en relación a los varones mencionados, esto es, como objetos nombrados por
ellos y solo desde su punto de vista. «no codicies la casa de tu prójimo, no codicies
su esposa, ni su esclavo, ni su esclava, ni su buey, ni su burro, ni nada que le perte-
nezca» (éxodo, 20, 17). La mujer es una propiedad más.

Las MUJeres, redUCidas a oBJeto

Un día, sin planificarlo, nos damos cuenta de que unos se apropian del trabajo, del
cuerpo, de los sueños de unas personas, del ecosistema planetario, de los espacios
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 131

legales y democráticos, de los altares, de… aparece un pensamiento dicotómico


enfrentando a hombres y mujeres, una división de roles sexuales que infravalora lo
femenino y la naturaleza para poder dominar y controlar a ambas.
esta lógica jerárquica y sexualizada da lugar a un imaginario mundial que tiene
un discurso único y que podría formularse en estos términos:

- amamantar vale menos que producir alimentos en una granja


- producir alimentos en una granja vale menos que construir tractores para tra-
bajar las tierras de la granja
- producir tractores vale menos que fabricar armas para proteger a los dueños
de los tractores de la granja

y si los dueños están protegidos, nosotras también y podremos seguir amaman-


tando a nuestros hijos, aunque valga menos que… este poder sobre otras/os se
considera inevitable y apropiado para la «paz social».
simone de Beauvoir sostiene que la manera más dura del patriarcado en el trato
con las mujeres es reducirlas a objetos, y esta observación es complementada por
Mary hunt cuando diserta sobre «cómo se arrebató a las mujeres su poder de dar
nombre» (hunt, 2009).
si las mujeres son reducidas a «objetos», y se nos arrebata el poder de «nom-
brar» lo que existe, es decir, si se nos priva del logos, concluiremos que el poder
sobre nuestros cuerpos es un derecho patriarcal que se ejerce socialmente y en el
interior de las tradiciones religiosas (negando a las mujeres el rabinato, la predica-
ción, la ordenación sacerdotal o el ejercicio del imamato).

reCorrido Por eL CUerPo de Las MUJeres desde Las tradiCiones reLigiosas

Como afirma la teóloga Mary hunt: «los cuerpos no mienten» (2009). Las mujeres
con sus cuerpos dañados, los niños y niñas subsaharianos muertos abrazados a sus
madres en la ruta hacia europa, los ecocidios que vemos cada día nos reclaman ac-
ciones. Parece que la aportación desde las religiones en algunos campos es insufi-
ciente, y en el de la sexualidad es coercitivo y opresor.
Cuando reclamamos derechos sexuales y reproductivos, hablamos de un estado
general de bienestar que afecta a todos los individuos. excede al mero hecho de
tener acceso a métodos anticonceptivos o a servicios de planificación familiar, que
son un elemento clave para el empoderamiento de las mujeres. Por eso, sería mejor
utilizar el término «justicia procreativa», que abarca el antes (si tener hijos o no,
cuándo, cómo…) y el después.
132 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

sin embargo las jerarquías de muchas tradiciones religiosas, siempre tan empe-
ñadas en cuestiones de fe, se carnalizan cuando se trata de hablar de las mujeres.
Mientras la pureza de los hombres se manifiesta en los hechos, la de las mujeres se
sitúa en el himen. ya desde el helenismo tardío existe un vínculo entre virginidad
y espiritualidad. en el judaísmo se valoraba por encima de todo la fecundidad y
morir virgen era una desgracia (María aparecerá como la engendradora de lo divino,
es la pureza premiada).
Llegar virgen al matrimonio ha sido y sigue siendo en muchas personas y países
un valor imprescindible. en muchos casos equivale a un documento de propiedad
privada y exclusiva. si una mujer no ha descubierto el placer, el hombre no tiene
miedo a ser comparado con otro y pierde la angustia ante la posibilidad de no poder
satisfacer los deseos de su cónyuge. así, la mujer pensará que todos son iguales,
creerá que el horizonte sexual es lo que su marido le ofrece y la ignorancia sexual
de las esposas asegura su fidelidad. Las religiones son el soporte ideológico de estos
principios patriarcales.
en este mundo en el que todo se compra y se vende, también la reconstrucción
del himen es una realidad y, aunque parezca novedosa, ya la encontramos en La
Celestina («cosía virgos»). hoy se compra por internet el llamado «kit de la virgi-
nidad» de fabricación china (cuyo uso es condenado con pena de muerte en países
como arabia saudí). o lo reconstruye el cirujano plástico.
en algunas culturas, la violación se castiga muy duramente, incluso con la pena
de muerte, pero siempre y cuando la víctima fuese virgen. Las relaciones extrama-
trimoniales son objeto de lapidación o asesinato, etc. Con estas imposiciones, ¿se
pretende proteger a las mujeres? Claramente no. es el honor del padre o del esposo,
o la preservación del linaje y la certeza de la paternidad, los objetivos determinantes
en el castigo de este tipo de delitos. en cualquier caso, la mujer como ser humano
vejado y humillado, no tiene demasiada importancia. es más, su prestigio y valor
social se reduce a cero después de sufrir una violación. esta baja estima de la mujer
violada se ha mantenido a través de los tiempos a causa de esa mitificación de la
virginidad.
tradición, religión e historia han exigido a la mujer la defensa de su honestidad
hasta la muerte si fuera necesario. Un ejemplo lo encontramos en el proceso de
beatificación de María goretti, en el que Pío Xii (1939-1958) argumentaba y des-
cribía en sus páginas la violación, no como un ataque brutal que en buena lógica
repugnaba a María, una niña de doce años, sino como ejemplo del camino a la san-
tidad que «le hizo renunciar a un atractivo placer» por defender su honestidad.
según esta interpretación, lo esperado de la agresión era la producción de placer:
solo la resistencia de la víctima explicable porque atentaba contra su virginidad,
convierte dicha agresión en especialmente indeseable.
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 133

además, la segregación de las mujeres del ámbito sagrado está casi siempre re-
lacionada con la sangre. La sangre de las mujeres las hace impuras, mientras que la
sangre masculina está repleta de valor, entrega y servicio y se celebran rituales en
su honor. durante el tiempo de la menstruación, y también después del parto, las
mujeres son consideradas impuras y contaminantes. aunque en la actualidad nadie
se atrevería a usar este argumento para apartar a las mujeres de determinados ser-
vicios en las organizaciones religiosas, no hay duda de que esta convicción perma-
nece en el inconsciente colectivo como freno invisible pero real que impide el acceso
de las mujeres a la esfera de lo sagrado (en las mezquitas las mujeres menstruantes
se separan ellas mismas de las demás y en la tradición católica los ministerios orde-
nados están reservados solo a los varones).
otro asunto son los límites del derecho al aborto, que están directamente rela-
cionados con las creencias religiosas y no solo con razones culturales o motivaciones
socio-económicas. todas las religiones establecen el principio general del respeto a
la vida y en la iglesia católica, el aborto, siempre es un crimen y la mujer es automá-
ticamente excomulgada. el feto es persona desde el mismo momento de la concep-
ción, por tanto se mata a una persona.
en resumen, si la mujer no cumple con el papel que las jerarquías le han asig-
nado, estará cometiendo un acto de rebeldía contra la voluntad divina y su cuerpo
se convertirá en obstáculo definitivo para su salvación.

en Las reLigiones iMPera La MasCULinidad hegeMóniCa

en la mayoría de las religiones, los varones detentan y ejercen el poder institucional


en exclusiva porque se consideran representantes de dios y creen que son su ver-
dadera imagen en la tierra apelando a la común masculinidad de ambos en alianza
contra las mujeres.
ensalzan la virilidad, a la que vinculan con la paternidad y la autoridad. el libro
Cásate y da la vida por ella (2013) de la periodista italiana Constanza Miriano, pu-
blicado en castellano por la editorial nuevo inicio, del arzobispado de granada,
llama la atención sobre la desorientación de los varones en su propia casa y asevera:
«Le corresponde a la mujer llevar al hombre al encuentro de su virilidad, de su pa-
ternidad y del ejercicio de la autoridad. este papel del hombre, digámoslo así, anda
un poco extraviado» (Miriano, 2013: 37). no es solo que se ensalce la virilidad vin-
culada con la paternidad y la autoridad como elemento constitutivo del hombre,
sino que se encarga a la mujer hacerle tomar conciencia de ello para salir de su de-
sorientación y encontrarse consigo mismo.
asimismo, a los varones se les reconoce la autoridad, como únicos intérpretes,
para leer los textos considerados «sagrados», alegando rigor, objetividad y repre-
134 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

sentación de la divinidad, mientras que a las mujeres se les niega el derecho a la in-
terpretación de dichos textos alegando subjetividad y arbitrariedad, incluso se les
ordena silencio mientras se proclaman.
Las religiones siguen considerando a los varones como pater familias conforme
a los viejos códigos domésticos que les reconocen superioridad y autoridad sobre
el resto de los miembros de la familia: esposa, hijos, hijas, etc. Citaremos tres ejem-
plos: la incorporación de los códigos domésticos romanos en los textos de las Cartas
Pastorales de la Biblia cristiana; el repudio en el judaísmo por esterilidad de la
mujer; el repudio y poligamia en el islam en algunas tradiciones musulmanas. Las
religiones legitiman la familia patriarcal.
hay una conexión, que el patriarcado considera intrínseca y necesaria, entre
masculinidad y violencia. a su vez, la búsqueda de formas de gestionar pacífica-
mente los conflictos consiste con frecuencia en aplicar buena parte de las enseñan-
zas de las mujeres en lo privado.
La redefinición del papel de las mujeres debería provocar un efecto «rebote»
en la re-definición del papel de los hombres en las religiones.

Las reLigiones han eJerCido históriCaMente —y sigUen eJerCiendo hoy—


distintos tiPos de vioLenCia Contra Las MUJeres: físiCa, siMBóLiCa y reLigiosa

Los textos sagrados dejan constancia de ello. Justifican pegar a las mujeres, lapi-
darlas, ofrecerlas en sacrificio para cumplir una promesa y para aplacar la ira de los
dioses, dejarlas encerradas en casa hasta que mueran, imponerles silencio, no reco-
nocerles autoridad, no valorar su testimonio en igualdad de condiciones que a los
varones, etc. Las prácticas religiosas vienen a ratificarlo. a las mujeres no se les re-
conoce la presunción de inocencia, sino que se las presume culpables mientras no
se demuestre lo contrario. son ellas las que caen en la tentación y tientan a los va-
rones, y por eso merecen castigo.
algunos Padres de la iglesia las consideran «la puerta de satanás» y la «causa
de todos los males». Para un teólogo tan influyente en el cristianismo como agustín
de hipona, la inferioridad de la mujer pertenece al orden natural. otro teólogo tan
decisivo en la teología cristiana como tomás de aquino define a la mujer como
«varón imperfecto». Lutero habla de las mujeres como inferiores de mente y cuerpo
por haber caído en la tentación y afirma que las mujeres han sido creadas sin otro
propósito que el de servir a los hombres y ser sus ayudantes.
La violencia de los hombres de iglesia contra las mujeres, incluidos los santos
como agustín de hipona, es descrita con toda su crudeza y realismo en una escena
de la novela de Jostein gaarder vita brevis, en la que floria emilia le recuerda a
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 135

aurelio agustín, con quien había vivido en concubinato doce años, su comporta-
miento violento con ella:

Una tarde, cuando habíamos compartido de nuevo los regalos de venus, te volviste de
pronto airado hacia mí y me golpeaste. ¿recuerdas que me golpeaste? ¡tú, precisamente
tú que antaño fuiste un respetable profesor de retórica, me pegaste brutalmente porque
te habías dejado tentar por mi ternura! sobre mí recayó la culpa de tu deseo... obispo,
pegaste y gritaste porque me había convertido de nuevo en una amenaza para la salvación
de tu alma. Cogiste una vara y me golpeaste de nuevo. Pensé que querías acabar con mi
vida porque eso hubiera sido para mí lo mismo que castrarte. Pero yo no temía por mi
vida, solo estaba destrozada, tan decepcionada y avergonzada de ti que recuerdo
claramente que deseé que me mataras de una vez. (gaarder, 1997: 112-113)

tras relatar la agresión, floria comenta que no fue a ella a quien golpeó agustín,
sino a eva, a la Mujer, y le recuerda, citando a Publio sirio, que quien se comporta
injustamente con una persona, amenaza a muchas personas. al final de la carta le
confiesa al obispo de hipona con justificado dramatismo: «siento escalofríos
porque temo que lleguen tiempos en los que las mujeres sean asesinadas por
hombres de la iglesia de roma» (gaarder, 1997: 126). y sigue planteando una
pregunta escalofriante: «Pero, ¿por qué se las habría de matar, honorable obispo?
Porque os recuerdan que habéis renegado de vuestra propia alma y atributos,
pensáis. ¿y en favor de quién? en favor de un dios, decís, en favor de él que ha
creado el firmamento que os cubre y la tierra sobre la que viven las mujeres que os
dan a luz» (gaarder, 1997: 126-127).
La antigua compañera de agustín dice a los hombres de iglesia que, si dios
existe, los juzgará por los placeres a los que han dado la espalda y por negar el amor
entre hombre y mujer. floria aurelia termina la carta comunicando al obispo que
si fue él quien se ocupó de hacerle llegar sus Confesiones para que se bautizara, no
le va a dar esa satisfacción.
veamos otro ejemplo, este, actual. Mohamed Kamal Mustafa, imán de la
mezquita sohail de fuengirola, que se presentaba como teólogo musulmán y
experto en la materia, escribió en 1997 el libro La mujer en el islam, de distribución
gratuita. en el capítulo titulado «Cuestiones dudosas», el autor se pregunta: «¿tiene
el hombre derecho a pegar a su mujer?». La respuesta es todo un ejemplo de
apología de malos tratos contra las mujeres, que dice justificarse en diferentes textos
del Corán, entre los cuales está el siguiente:

Los hombres tienen autoridad sobre las mujeres en virtud de las preferencias que dios
ha dado a unos más que a otros y de los bienes que gastan. Las mujeres virtuosas son
devotas. y cuidan, en ausencia de sus maridos, de lo que dios manda que cuiden.
136 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

¡amonestad a aquellas que temáis que se rebelen, dejadlas solas en la cama. ¡Pegadles!
si os obedecen, no os metáis con ellas. (Kamal, 1997: 35)

el imán Mohamed Kamal Mustafa ofrece detalles sobre las «limitaciones a la


hora de recurrir al castigo físico»:

nunca se debe pegar en una situación de furia exacerbada y ciega para evitar males
mayores. no se debe golpear las partes sensibles del cuerpo (la cara, el pecho, el vientre,
la cabeza, etc.). Los golpes se han de administrar a unas partes concretas del cuerpo
como los pies y las manos, debiendo utilizarse una vara no demasiado gruesa, es decir,
que ha de ser fina y ligera para que no deje cicatrices o hematomas en el cuerpo. Los
golpes no han de ser fuertes y duros, porque la finalidad es hacer sufrir psicológicamente
y no humillar y maltratar físicamente. (Kamal, 1997: 87)

el libro y el autor fueron denunciados por un centenar de asociaciones de


mujeres, varias de ellas musulmanas. el imán fue juzgado en diciembre de 2013 en
la audiencia de Barcelona. La sentencia se dictó el 14 de enero de 2004. en ella se
califica el libro de «machismo obsoleto», que «vulnera abiertamente» el principio
de igualdad entre hombres y mujeres y «hiere la sensibilidad social en un momento
álgido de violencia de género». el autor fue condenado por el delito de provocación
a la violencia por razón de sexo a 15 meses de prisión, inhabilitación especial para
ejercer el derecho al sufragio pasivo durante el tiempo de la condena, multa de
nueve euros diarios durante ocho meses, pagar las costas procesales. se decomisaron
los ejemplares del libro y los utensilios empleados para su edición. Un año después
ingresó en la prisión de alhaurín de la torre (Málaga), donde permaneció solo tres
semanas.

sin eMBargo, Las MUJeres sUeLen ser Las Más fieLes segUidoras de Las reLigiones

hay quienes consideran que la orientación femenina hacia la religión es innata, más
aún, genética, que las mujeres son por naturaleza más crédulas y, por eso, son más
asiduas a las actividades religiosas. ninguna investigación genética lo demuestra.
se trata de un estereotipo cuyo objetivo es someter a la mujer a las restrictivas y re-
presivas orientaciones religiosas establecidas por los varones. Quienes así piensan,
se olvidan de que tradicionalmente ha sido a las mujeres a quienes más se ha incul-
cado el sentimiento religioso. se trata, por tanto, de un proceso inducido que res-
ponde a una determinada educación y aprendizaje.
Con frecuencia, bajo la presión del poder religioso patriarcal, las mujeres son
las mejores transmisoras de las enseñanzas religiosas a sus hijos en la familia y a los
niños y niñas en los espacios religiosos a través de la educación religiosa. ellas son
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 137

también las que mejor reproducen la organización patriarcal y la ideología andro-


céntrica y las que más practican las religiones.
hay casos en los que son las mismas mujeres las que se auto-imponen las acti-
tudes de sumisión que fundamentan en los textos sagrados leídos de manera fun-
damentalista y sin tener en cuenta el contexto en que fueron escritos. Un ejemplo
es la periodista italiana de la rai Constanza Miriano, ya citada, quien en su libro
Cásate y sé sumisa, defiende la maternidad como identidad de la mujer, la natura-
lización del matrimonio homosexual y su individualidad y la sumisión de la mujer
al marido:

solo hay una manera de limar aristas. tendrás que aprender a ser sumisa, como dice san
Pablo. o sea, ponerte debajo, porque tú serás la base de vuestra familia. tú serás los ci-
mientos. tú sostendrás a todos, a tu marido, y a tus hijos adaptándote, aceptando, de-
jando pasar las cosas, dirigiendo con dulzura. Quien sostiene el mundo es el que está
debajo, no el que se pone por encima de los demás. (Miriano, 2013:35)

Para la periodista italiana, el éxito del matrimonio radica en la sumisión de la


mujer, que debe aceptar las críticas sin rechistar y no debe criticar lo que le parece
mal del esposo, ya que, dice, «con quien tienes que habértelas es con dios». y apela
para ello a la autoridad de san Pablo «Cuando san Pablo les dice a las mujeres que
estén debajo, no piensa ni mucho menos que sean inferiores. La sumisión de que
habla san Pablo es un regalo, libre como todo regalo, porque, si no, sería una im-
posición» (Miriano, 2013: 37). Pero lo hace con una lectura fundamentalista, sin
recurrir a la hermenéutica, sin tener en cuenta el contexto, e incluso sin verificar la
autoría paulina del texto que cita. de esa forma pierde toda fuerza la fundamenta-
ción teológica de la sumisión. veámoslo.
el texto supuestamente paulino al que se refiere Constanza Miriano pertenece
a la Carta a los efesios 5, 21-33:

someteos unos a otros en atención al Mesías. Las mujeres a los maridos como al señor,
pues el marido es cabeza de la mujer como el Mesías es cabeza de la iglesia, él que es el
salvador del cuerpo. Pues como la iglesia se somete al Mesías, así las mujeres a los ma-
ridos en todo. Maridos, amad a vuestras mujeres, como el Mesías amó a la iglesia y se
entregó por ella, para limpiarla con el baño del agua y la palabra, y consagrarla... así
tienen los maridos que amar a sus mujeres, como a su cuerpo... ame cada uno a su mujer
como a sí mismo y la mujer respete a su marido.

en la Biblia del Peregrino Luis alonso schökel comenta:

estas expresiones del apóstol quizás puedan causar perplejidad e irritación en el lector
—y especialmente en la lectora de hoy— que solo se contente con una lectura superficial
138 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

del texto. Parece como si las exhortaciones no pusieran a ambos esposos en pie de igual-
dad. al hombre se le pide «amor» y a la mujer «sometimiento», palabra que repugna a
nuestra sensibilidad y, si se trata del sometimiento de la mujer, todavía más. Para la Biblia
del Peregrino, los condicionamientos culturales de la época del autor, que son también
los suyos, no pueden ser «palabra de dios». si el autor hubiera vivido hoy, hubiera de-
fendido los derechos de la mujer y no hubiera hablado de «sometimiento. (schökel,
2011: 1884)

veamos ahora el contexto de la Carta a los efesios. éfeso, en tiempos de Pablo:


capital de la provincia romana en asia, donde había un templo a artemis, diosa
asiática de la fecundidad. éfeso, antioquía y alejandría eran las ciudades romanas
más importantes del Mediterráneo oriental. Pablo de tarso vivió en éfeso tres años
y obtuvo muy buena acogida, pero se encontró también con no pocas dificultades.
La Carta a los efesios no pertenece al género epistolar, ya que no utiliza un tono
personal ni hay referencias a situaciones concretas. el género literario es el panegí-
rico o de celebración. no parece que el autor sea Pablo de tarso, ya que a) no se
conoce a los destinatarios; b) el estilo poco tiene que ver con las cartas de autoría
paulina; c) la doctrina es diferente de la de dichas cartas. esto hace pensar que el
autor es un discípulo del apóstol que se dirige a paganos convertidos de la segunda
generación, es decir, entre los años 70 y 90. La atribución a Pablo es una estrategia
literaria para dar al texto una autoridad de la que hubiera carecido si la autoría no
se vinculara con él. otro dato importante a tener en cuenta: el texto incorpora los
códigos domésticos romanos a la doctrina y moral cristianas.

reBeLión de Las MUJeres

en las últimas décadas, asistimos a una auténtica rebelión de las mujeres en el ám-
bito de las religiones, tanto a nivel personal como colectivo, tanto en el interior de
las religiones como en la sociedad.

a) a nivel personal, transgrediendo conscientemente las normas y orientaciones


en materia de sexualidad, relaciones de pareja, planificación familiar, opciones
políticas, etc.
b) en el interior de las religiones, creando movimientos y asociaciones de muje-
res que ejercen su libertad de organización y funcionan autónomamente, al mar-
gen de los varones e incluso enfrentadas con las autoridades religiosas.
c) en la sociedad, participando activamente en los movimientos feministas y en
las organizaciones sociales como expresión de la convergencia en las luchas por
la emancipación de las mujeres y como forma de comprometerse con los sectores
más vulnerables de la sociedad.
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 139

d) La rebelión de las mujeres dentro de las religiones constituye uno de los he-
chos mayores, de más profunda significación en la historia del fenómeno reli-
gioso, y de importantes repercusiones políticas y sociales. supone un avance en
la lucha por la emancipación de las mujeres y por la liberación de los marginados
y excluidos. Por eso, la rebelión feminista de las mujeres creyentes debe ser apo-
yada no solo por los colectivos y las personas religiosas, sino por todos los ciu-
dadanos y ciudadanas comprometidos en la lucha por la emancipación de los
pueblos sometidos a las distintas formas de opresión.

teoLogía feMinista

fruto de esta rebelión ha surgido una nueva manera de vivir y de pensar la fe reli-
giosa desde la propia subjetividad de las mujeres en las diferentes religiones, sobre
todo cultivada por mujeres: la teología feminista, que:

a) Parte de las experiencias de sufrimiento, de lucha y de resistencia de las mu-


jeres contra el patriarcado y sus diferentes manifestaciones.
b) recupera la memoria de las antepasadas que trabajaron por avanzar la historia
hacia la libertad de los oprimidos y por la emancipación de las mujeres contra
todo tipo de discriminación.
c) reescribe la historia de las religiones desde la perspectiva de género de-cons-
truyendo las figuras, prácticas y masculinidades patriarcales, y dando voz y pro-
tagonismo (empoderamiento) a las mujeres silenciadas por el patriarcado
religioso ya en los propios «textos sagrados».
d) a la luz de la redefinición de la identidad, el papel y las funciones de las mu-
jeres en las religiones, redefine la identidad y las funciones de los varones, que
dejan de ser considerados patriarcas, intérpretes únicos de los textos sagrados,
referentes de moralidad, garantes del cumplimiento de las tradiciones, costum-
bres, normas y códigos morales y, con frecuencia, legítimos detentadores de la
violencia.
e) Utiliza las categorías de la teoría de género y de la ciudadanía inclusiva para
analizar críticamente las estructuras patriarcales y los discursos androcéntricos
de las religiones: autonomía, género, patriarcado, pacto entre mujeres, subjeti-
vidad, violencia de género, inclusividad, igualdad, diferencia, feminismos, divi-
sión sexual del trabajo, acción positiva, pacto ente mujeres, crítica de la
masculinidad, maternaje, democracia paritaria, corresponsabilidad, empodera-
miento, descolonización.
f) hace una deconstrucción de la moral sexual que emana de las cúpulas de las
tradiciones, para hacer de nuestros cuerpos, como mujeres, el lugar teológico
por excelencia. es necesario descubrir que disfrutar del placer que él nos pro-
140 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

porciona produce nuestro empoderamiento, y este empoderamiento, la solida-


ridad con todas las personas empeñadas en contribuir a la transformación de
las conciencias, y de todo lo que existe. Por esto hay que recuperar lo que ya
han aportado nuestras antepasadas en este camino, que ni empieza ni termina
con nosotras.

desde eva, los cuerpos de las mujeres han sido controlados, colonizados por rí-
gidos comportamientos sexuales. se insiste en las fronteras que no se deben tras-
pasar, en las decisiones que no es lícito tomar, en las tendencias ocultas que no se
pueden revelar. esta moral sexual restrictiva es el reflejo de cómo se ignoran las ex-
periencias y reflexiones de las mujeres. a las mujeres las cuentan, pero no cuentan.
de ellas se dice que, si algo aportan, son problemas. así queda de manifiesto la ri-
gidez institucional. Podemos decir que las jerarquías de las tradiciones religiosas
han perdido la credibilidad para las mujeres.
tenemos que seguir aprendiendo a escuchar nuestro cuerpo, descubrir las zonas
colonizadas que todavía tenemos, para liberar los miedos que le encadenan. nece-
sitamos seguir pensando y creando nuevos modelos antropológicos, teológicos y
espirituales para que no se establezcan mecanismos sociales que subordinen en fun-
ción del sexo y de su utilización. es más fácil ofrecer teologías que un condón, y
desarrollar pedagogías que ofrecer atención infantil pública y gratuita.
el poder sobre un trozo de pan para convertirlo en cuerpo de Cristo en el cato-
licismo les ha sido negado a las mujeres, porque el poder sobre los cuerpos es una
prerrogativa patriarcal. Cuando el control de los recursos esté en manos femeninas
las mujeres también tendrán el poder sobre sus cuerpos y acabaremos con la vio-
lencia contra ellas.
Practicar conductas significativas que comuniquen el paradigma del ecofemi-
nismo desde donde adelantar la reconciliación de todo lo que existe es una manera
de situarnos y de interpretar todo lo que vive en el amplio universo que nos rodea
y que puede cambiar nuestras conductas en los grupos que nos movemos. es, ante
todo, una experiencia corporal, comunitaria, local, nacional y planetaria. es situar-
nos desde nuestro yo individual en el gran útero del universo y respetar, alentar y
animar todo lo que sea fuente de vida. ¡necesitamos coraje, no licencias, ni permisos
ni leyes restrictivas!

Las MUJeres, Mayoría resistente y ContrahegeMóniCa

Las mujeres no son minoría silenciosa y silenciada, sino mayoría resistente y con-
trahegemónica. es necesario poner en valor sus luchas por la emancipación de los
oprimidos y su capacidad de innovación política en los diferentes escenarios donde
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 141

se plantean hoy las diferentes alternativas al capitalismo, al imperialismo y al pa-


triarcado. he aquí algunas de las más significativas:

- el protagonismo de las mujeres en las movilizaciones populares del mundo


árabe.
- su papel fundamental en la lucha contra el saqueo de tierras en la india.
- La acción política de las mujeres líderes de municipios en pequeñas ciudades
africanas.
- La lucha constante y cargada de riesgos por el castigo de criminales que llevan
a cabo las madres de las jóvenes asesinadas en Ciudad Juárez (México).
- Las conquistas de las mujeres indígenas en la defensa del derecho a la diversi-
dad y a las diferencias culturales.
- Las luchas de las mujeres musulmanas contra el patriarcado de la religión oficial
y por la transformación, desde dentro, de sus culturas misóginas.
- Las prácticas innovadoras de las mujeres kenianas de otros países africanos en
la defensa de la agricultura familiar y las semillas tradicionales.
- su presencia en los movimientos anti-mineros de diferentes países de américa
Latina y sus luchas por el reconocimiento de los «bienes comunes» de la natu-
raleza y de la humanidad.

ConCLUsión

en el siglo XiX las religiones perdieron a la clase obrera porque se colocaron del
lado de los patronos que la explotaban y condenaron las revoluciones sociales que
luchaban por una sociedad más justa, igualitaria y solidaria. Los trabajadores dieron
la espalda a las religiones porque se sintieron traicionados por ellas, alejándose, la
mayoría de las veces, del mensaje igualitario y solidario de sus fundadores en los
orígenes.
en el siglo XX, las religiones perdieron a los jóvenes y a los intelectuales por sus
posiciones filosóficas y culturales integristas, alejadas de los nuevos climas de la
modernidad.
si continúan por la senda patriarcal por la que ahora caminan, en el siglo XXi las
religiones perderán a las mujeres, hasta ahora sus mejores y más fieles seguidoras.
sin la clase trabajadora, sin los jóvenes, sin los intelectuales y sin las mujeres, las
religiones habrán llegado a su fin. y no podrán echar la culpa de su fracaso a nadie.
ellas mismas se habrán hecho el harakiri.
escribe eduardo galeano: «La iglesia dice: el cuerpo es una culpa. La ciencia
dice: el cuerpo es una máquina. La publicidad dice: el cuerpo es un negocio. el
cuerpo dice: yo soy una fiesta» (galeano, 1993: 138).
142 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar

el día en que los dirigentes religiosos, confesores, predicadores, rabinos, cléri-


gos, imames, gurús, lamas, etc., dejen de considerar el cuerpo como obstáculo para
la salvación y vivan su propio cuerpo como una fiesta, contribuirán a la felicidad
de los seres humanos. Mientras lo consideren como pecado, hasta dios se dará de
baja de las religiones. y con razón.

referenCias BiBLiográfiCas

aLonso sChöKeL (2011): Luis, Biblia del Peregrino, ediciones Mensajero, Bilbao.
BeaUvoir, simone de (1957): el segundo sexo. Los hechos y los mitos, Buenos
aires.
BenediCto Xvi (2010): Luz del Mundo. el Papa, la iglesia y los signos de los tiem-
pos. Una conversación con Peter seewald, herder, Barcelona.
daLy, Mary (1985): Beyond god the father. toward a Philosophy of Women’s Lib-
eration, Beacon Press, Boston, 1985).
gaarder, Jostein (1997): vita brevis. La carta de floria emilia a aurelio agustín,
siruela, Madrid.
hUnt, Mary (2009): «Los cuerpos no mienten». Conferencia pronunciada en el iii
foro Mundial de teología y Liberación, celebrado en Belem de Pará (Brasil) en
enero de 2009: http://www.wftl.org/default.php?lang=pt—brö&t=padrao&p=pos-
forum01&m=padrao
MUstafa, Mohamed (2000): La mujer en el islam, Casa del Libro árabe, Barcelona,
2ª ed.
Miriano, Constanza (2013): Cásate y sé sumisa. experiencia radical para mujeres
sin miedo, nuevo inicio, granada.
II. TerrITorIos
8. Cuatro tesis sobre la asimetría de género en
la percepción y actitudes ante los problemas
ecológicos
Isabel Balza MúgICa y Francisco garrIdo Peña
Universidad de Jaén

l
a teoría feminista y los estudios de género han abierto un enorme campo de
análisis y de trabajos empíricos sobre fenómenos sociales que aparecían como
ajenos a la división sexual. estos nuevos campos no solo nos han mostrado
la presencia del sesgo de género, sino que nos han ayudado a comprender de ma-
nera más amplia y compleja el fenómeno mismo. de esta forma, podemos entender
que las investigaciones realizadas desde la perspectiva de género nos han permitido
hacer visible la invisible división sexual de los hechos sociales, mejorando además
la calidad científica de estas investigaciones.
Un ejemplo de esto son las investigaciones sobre la asimetría de género en las
opiniones y actitudes ante los problemas ambientales. la novedad y la gravedad de
la crisis ecológica han escondido durante demasiado tiempo las diferencias y con-
flictos que atraviesan cualquier percepción y conducta de los actores sociales. la
poderosa y atractiva contradicción humanidad/naturaleza ha ocultado otras con-
tradicciones como las de clase, étnicas o de género. Pareciera que la responsabilidad
de la destrucción de los equilibrios ambientales se repartiera por igual entre todos
los miembros de la especie sin valorar su estatus social, territorial o sexual.
Pero han sido los estudios empíricos los que han deshecho el hechizo de la ase-
xualidad de los estudios ambientales. los datos nos dicen que hombres y mujeres
enfrentados ante un conjunto común de problemas y de actitudes ambientales tie-
nen una respuesta distinta y desigual. estas diferencias de género empíricamente
son consistentes con los presupuestos teóricos de la teoría feminista sobre la natu-
raleza constitutiva del género en la percepción y la acción individual y social en so-
ciedades sometidas a la dominación masculina y a la división sexual del trabajo. No
hay excepciones ni campos neutrales para las diferencias de género. esta consis-
tencia entre los resultados de las investigaciones empíricas y los enunciados teóricos
146 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar

muestran que la teoría feminista goza de un razonable y saludable equilibrio refle-


xivo del que carecen por completo alguno de sus más conspicuos detractores.
la aparición del ecofeminismo ha supuesto un avance en esta línea de interre-
lación entre los estudios de género y los estudios ambientales. el ecofeminismo no
solo ha desvelado la presencia de la marca de género en el conflicto ecológico sino
que ha propuesto también nuevos abordajes a la superación del conflicto ontológico
y metabólico entre naturaleza y humanidad, que desde el ecologismo andrógino
nunca se hubieran enunciado. en este trabajo vamos a indagar estas diferencias de
género en las investigaciones ambientales a partir de dos estudios sobre medio am-
biente y opinión pública realizados por el CIs en los años 2007 y 2010. Todos los
datos que usamos en este trabajo provienen de estos dos estudios del CIs, siendo
las tablas y gráficos de elaboración propia.
las mujeres y los hombres perciben, opinan y se comportan de forma diferen-
ciada ante los problemas ambientales. entenderemos pues por asimetría de gé-
nero la percepción, opinión y actitudes distintas, que hombres y mujeres tienen
con respecto a los problemas y las conductas ante la crisis ecológica y el medio
ambiente.

PrIMera TesIs. las FUeNTes y el volUMeN de INForMaCIóN aMBIeNTal soN dIs-


TINTos eN hoMBres y MUJeres

las mujeres y los hombres afirman tener un volumen de información y conoci-


miento sobre el medio ambiente desigual. las mujeres, en general, dicen tener
menos información sobre el medio ambiente y conocer menos las causas y las solu-
ciones para los problemas ambientales que los hombres. esta disparidad, amén de
estar justificada por desigualdades estructurales de género relativas a la educación
y el acceso a la información entre hombres y mujeres o a la distribución desigual en
los usos del tiempo, es comprensible en el plano del alejamiento sobre problemas
y causas excesivamente abstractas y sobre las que se produce un acercamiento es-
trictamente científico, técnico o político-institucional. la información ambiental
(causas, alternativas, conflictos) se genera en una «ágora pública» fuertemente mas-
culinizada, donde la escala de preferencias es todavía construida por valores pa-
triarcales que ignoran y excluyen la perspectiva de género. en este sentido, el
discurso ecológico ha sido uno de los discursos públicos más racionalizados y cien-
tíficos que han aparecido en los últimos tiempos.
a su vez, las mujeres reciben la información sobre los problemas ambientales
por medios distintos que los hombres. las mujeres tienen acceso a la información
sobre los problemas ecológicos más frecuentemente por canales informales (grupos
ecologistas, boca a boca o medios de comunicación generalistas) que por los medios
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 147

institucionales (estado, partidos políticos, científicos, empresas) manejados por los


hombres, para quienes los canales formales tienen más peso.

Fuente: estudios de opinión CIs (2007 y 2010). elaboración propia.


148 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar

segUNda TesIs. valoraCIóN dIFereNTe eN la esCala (MaCro y MICro) de IMPor-


TaNCIa de los ProBleMas aMBIeNTales

Mientras que, para los hombres, los grandes problemas ambientales son más valo-
rados en la escala de importancia, para las mujeres son otros los problemas más va-
lorados, como aquellos que tienen que ver con la escala local y cotidiana o con la
salud y con el bienestar de las generaciones futuras. la orientación de género inclina
a las mujeres a percibir y a valorar más los problemas relacionados con la escala
micro (local, cotidianeidad, salud) y a los hombres a valorar y percibir más los pro-
blemas asociados con la escala macro (grandes cambios mundiales, problemas pla-
netarios o de fuerte significación política o social, grandes catástrofes como los
incendios forestales, desbordamiento de ríos).

¿en qué medida cree que el estado del medio ambiente perjudica su salud?

Problemas medioambientales que más le afectan.

¿a quién le corresponde mayor responsabilidad?


CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 149

¿Cómo evitar el cambio climático?

TerCera TesIs. Peso desIgUal eN el eqUIlIBrIo eNTre oPINIoNes (valoraCIóN)


y aCTITUdes (CoNdUCTas). FUeNTes y volUMeN de INForMaCIóN dIsTINTos

de las tres asimetrías mostradas, esta es la más significativa: los hombres tienen más
opiniones proambientales y las mujeres más actitudes y conductas proambientales.
las prácticas más sostenibles son realizadas en mayor medida por mujeres. de seis
indicadores de prácticas cotidianas sostenibles, en cinco de ellas (reciclaje, ruido,
uso de la bicicleta, uso del transporte público y agua) las mujeres tienen actitudes
más sostenibles que los hombres, mientras que solo en un indicador (energía) los
hombres mejoran a las mujeres.
las mujeres tienen menos información, reciben la información por canales apa-
rentemente menos fiables, confían más en las instancias micro (locales y sociales),
y opinan menos; pero así y todo, hacen más por la sostenibilidad. las prácticas co-
tidianas de las mujeres generan menos impactos ambientales que la vida y la con-
ducta de los hombres.

¿Cuál es la explicación para estos resultados tan paradójicos? quizás, tal como
ha apuntado la teoría feminista, se trate de descolonizar los marcos cognitivos pa-
triarcales dominantes que han definido conceptos duales como sociedad/política,
ciencia/experiencia, razón/emoción, público/privado, universal/local, opinión/ac-
ción, teoría/práctica o naturaleza/cultura (haraway, 1995). Como en la crítica de
Carol gilligan a la escala del desarrollo moral de Kohlberg, posiblemente estos re-
sultados paradójicos sean el producto de una «falsa medida» inserta en esos pares
de conceptos dicotómicos (gilligan, 1982). Una mirada diferente a una voz dife-
rente nos arrojaría una conceptualización de la política, del espacio público, de la
150 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar

ciencia o de la racionalidad, distintos desde la perspectiva de género de las mujeres


(Fox Keller, 2002).

CUarTa TesIs. éTICa del CUIdado y esTraTegIas eFICIeNTes. oPorTUNIdades Para


el eCoFeMINIsMo de la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN de los CoNFlIC-
Tos aMBIeNTales

es cierto que esta asimetría de género en la percepción de los problemas ambientales


que describe a las mujeres como más sensibles a lo micro, a lo local, a la práctica,
que a lo macro, global o abstracto, puede ser también interpretada como el resultado
de la dominación patriarcal. la dominación masculina ha relegado a la mujer al es-
pacio privado, personal, emocional, práctico, excluida no solo de los centros de de-
cisión, sino de la idea misma de ciudadanía, más cercana a la naturaleza animal que
a la racionalidad humana, como decía hegel (amorós, 1985). el producto de esta
asimetría de género (cercanía, vivencialidad, practicidad, etc.) no serían virtudes,
sino limitaciones alienantes impuestas por la exclusión patriarcal, cuyo mejor destino
sería la superación y no la reivindicación como virtudes de género.
entendemos que esta crítica de los potenciales peligros de la reivindicación de
estas virtudes de género no está exenta de fundamento, en cuanto advierte de los
riesgos de una construcción estática del género que entroniza lo real y lo dado, ol-
vidando que lo real en medio de un contexto de opresión patriarcal es el producto
de esas condiciones de dominación. estas mismas críticas son las que recibió en su
momento, a principios de los años ochenta del siglo pasado, la propuesta de Carol
gilligan sobre la ética del cuidado como una ética singularmente femenina. Judith
Butler ha insistido también, en los últimos tiempos, en la desconfianza crítica hacia
un concepto clausurado de género (Butler, 2007).
¿Cómo podemos, entonces, entender esta asimetría de género? ¿Como el resul-
tado de una respuesta autónoma y alternativa de las mujeres ante la asociación entre
patriarcado y crisis ecológica? ¿o, por el contrario, interpretamos la asimetría como
el producto de la adecuación de las actitudes de las mujeres a las condiciones alie-
nantes de exclusión social impuestas por la dominación masculina? entendemos
que una visión dialéctica y dinámica de la condición de género, como la propuesta
por simone de Beauvoir, y tal como la comprende la interpretación ecofeminista
que nos propone alicia Puleo, permite afirmar que las asimetrías de género son a
la vez el efecto de la exclusión y las condiciones para la emancipación, un espacio
de autonomía a partir de unas condiciones de alienación (Puleo, 2011). Beauvoir
introduce de forma radical en el pensamiento feminista la idea marxista de que la
emancipación está inscrita ya en las mismas condiciones de explotación contra las
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 151

que esta se alza. solo así es posible entender la emancipación como superación dia-
léctica de las condiciones preexistentes dadas (Beauvoir, 1998).
esta ambivalencia de la asimetría de género que los estudios de opinión delatan
con respecto a los problemas ambientales tiene su nudo gordiano en la divergencia
entre opinión y práctica. si la asimetría de género describiera exclusivamente unas
condiciones de marginación de la mujer, ¿cómo es posible que estas condiciones
motiven con mayor fuerza prácticas y conductas de cambio hacia la sostenibilidad
más potentes y autónomas que aquellas que motivan a los hombres? Creemos que
la explicación a estas paradojas y ambivalencias de la asimetría de género, junto con
la inserción en una teoría dialéctica de la emancipación, pueden ser comprendidas
en función de tres marcos teóricos, como son: la ética del cuidado de Carol gilligan;
la teoría de la voz y la salida de albert hirschman; y la teoría de la aversión al riesgo
como estrategia conservadora de optimización de las oportunidades en contexto
adversos y de gran incertidumbre (gilligan, 1982; hirschman, 1977; Jianakoplos y
Bernasek, 1998).
la asimetría de género en asuntos ecológicos no es una excepción en las con-
ductas, actitudes y valores más frecuente, descritos desde los análisis provenientes
de la perspectiva de género. los datos que la asimetría de género arroja son cohe-
rentes con las actitudes, valores y perspectivas que la ética del cuidado describe
(gilligan, 2013). en este sentido, hay un equilibrio reflexivo entre estos datos y las
hipótesis feministas amparadas por el marco teórico de la ética del cuidado. la
orientación hacia lo micro, hacia la informalidad de las redes horizontales de co-
municación y colaboración social; el peso de la vida y de la salud en las decisiones;
la consideración proactiva y práctica de los valores son, entre otras, características
descritas en la ética del cuidado, que los datos de los estudios de opinión sobre la
percepción de los problemas ambientales corroboran. Por tanto, las opiniones, ac-
titudes y conductas que resultan de las diferencias de percepción de los conflictos
ecológicos por motivos de género son comprensibles en el marco teórico (explica-
tivo) y axiológico (valores) de la ética del cuidado.
la aversión al riesgo es un concepto proveniente de la psicología financiera y
nos indica la propensión negativa que tienen determinados agentes a tomar deci-
siones (inversiones) en contextos de mucha incertidumbre y de alto riesgo (Isaac y
James, 2000). en la abundante literatura científica que existe sobre esta conducta,
hay un rasgo que llama la atención y es la unanimidad, empíricamente contrastada,
sobre una mayor y significativa prevalencia de la aversión al riesgo en las mujeres
frente a los hombres (Jianakoplos y Bernasek, 1998). esta brecha de género solo se
ve reducida hasta niveles insignificantes a partir de grupos de edad comprendidos
entre 55 y 75 años (ruiz-Tagle y Tapia, 2012). las tesis primera y segunda encuen-
tran una explicación si son vistas como conductas orientadas hacia la minimización
de costes y riesgos (en este caso los costes son de malgasto de tiempo y de esfuerzos)
152 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar

en un contexto de información (como el del mundo ambientalista) y de toma de


decisiones masculinizado y, por tanto, delata incertidumbre para las mujeres. la
sobrecarga de trabajo y el uso intensivo del tiempo, que las mujeres han de afrontar
al asumir tanto el trabajo externo asalariado como el trabajo invisible doméstico,
aumenta los costes de la adquisición de información o de la acción colectiva (Ca-
rrasco, 2009). esto hace que la aversión al riesgo concretada en elecciones conser-
vadoras, que pretenden más evitar riesgos que maximizar beneficios, sea una
conducta eficiente en el marco de la dominación patriarcal de los discursos y los
saberes convencionales sobre el medio ambiente. la opción por lo micro, lo cer-
cano, las redes informales, que la asimetría de género nos muestra, es también co-
herente con la prevalencia general de la aversión al riesgo que las mujeres muestran
reiteradamente en sus conductas.
Por último, la tesis tercera es consistente desde la perspectiva teórica que for-
mula hirschman, al diferenciar entre estrategias basadas en la voz y estrategias ba-
sadas en la salida. ante una situación de descontento en el espacio político, social
o económico, un individuo puede optar por participar activamente a través de la
voz y cambiar globalmente dicha situación o por abandonar ese espacio en beneficio
de otro alternativo (otro país, otra empresa, otra práctica) (hirschman, 1977). la
propensión a la práctica que la asimetría de género manifiesta sería una estrategia
de acción (salida) racional y eficiente ante la exclusión y la dificultad de participar
en los discursos oficiales dominantes (voz) y de cambiar institucionalmente sus con-
diciones. la divergencia entre el peso de las mujeres en el discurso y las instituciones
ambientales y en las conductas y prácticas sostenibles debería ser vista como la di-
ferencia entre una estrategia basada en la voz (opinión y reivindicación) y otra ba-
sada en la salida (práctica). esta opción preferente por la salida no implica que se
renuncie a la reivindicación, sino que se formula por otras vías estratégicas más efi-
cientes dado el contexto de exclusión patriarcal.
«las actitudes y valores de las mujeres son el producto de la convergencia entre
actitudes que responden a tendencias evolutivas y valores propios de la identidad
de género. ejemplo de estas actitudes son la aversión al riesgo o la prevalencia de
las estrategias basadas en la salida frente a la voz: son respuestas eficientes contra
el patriarcado, no propiedades ontológicas de una naturaleza femenina eterna». es
en este sentido en que Carol gilligan define políticamente la ética del cuidado
cuando dice:

en un contexto patriarcal, el cuidado es una ética femenina. Cuidar es lo que hacen las
mujeres buenas, y las personas que cuidan realizan una labor femenina; están consagra-
das al prójimo, pendientes de sus deseos y necesidades, atentas a sus preocupaciones;
son abnegadas. en un contexto democrático, el cuidado es una ética humana. Cuidar es
lo que hacen los seres humanos; cuidar de uno mismo y de los demás es una capacidad
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 153

humana natural. la diferencia no estaba entre el cuidado y la justicia, entre las mujeres
y los hombres, sino entre la democracia y el patriarcado. (gilligan, 2013: 50-51)

la asimetría de género en la percepción de los problemas ecológicos tampoco


describe una actitud innata entre los sexos y la naturaleza, sino que describe posi-
ciones estratégicas en virtud del estatus que los géneros tienen en el conflicto social
(gil garcía, 2004).
la lectura que de la ética del cuidado hace el ecofeminismo constructivista, y
que en este texto hemos utilizado, nos permite comprender, sin incurrir por ello en
el esencialismo, el vínculo fuerte que existe entre género y sostenibilidad (Puleo,
2011). la asimetría de género que se deduce de los estudios de opinión usados en
este trabajo, confirman empíricamente ese vínculo fuerte entre género y sostenibi-
lidad que el ecofeminismo constructivista postula. las estrategias que las mujeres
adoptan ante la crisis ecológica, y que la asimetría de género trasluce, son un re-
frendo de las oportunidades que el ecofeminismo aporta al ecologismo en general
y a la ecología política en particular.
en síntesis, podemos identificar tres rangos de oportunidades ecofeministas que
se ven confirmadas en los datos que se deducen de la asimetría de género:

1. Una motivación integral para la acción basada no solo en opiniones o refle-


xiones racionales, sino en impulsos emocionales, vivenciales y prácticos. de
esta forma, el ecofeminismo puede ayudar a suturar el déficit de emociona-
lidad y cotidianeidad que el ecologismo ha tenido, henchido de teorías y de
discursos científicos globales. Un nuevo populismo al modo en que habla
Martínez alier y otros puede verse favorecido a partir de este modelo de mo-
tivación de la acción individual y colectiva (Martínez alier, 1992).
2. Una subjetivización emancipadora de la objetividad de la naturaleza y los fac-
tores medioambientales. la necesaria deriva antihumanista del ecologismo ha
tenido efectos perversos en la desocialización de las experiencias y discursos
de la crisis ecológica. la biosfera, los ecosistemas, la biodiversidad, la eficacia
energética, no tenían un relato subjetivizador que permitiera unir experiencias
individuales y colectivas con un discurso. quien ha pagado ese coste ha sido
la escisión entre conciencia y acción ambiental. esto explicaría en parte que
el aumento de la información sobre la crisis ecológica no conlleve un aumento
equivalente en las acciones de cambio. la ecología era, y es, algo que queda
demasiado lejos y que resulta demasiado frío. las estrategias ecofeministas
que se visualizan en la asimetría de género posibilitan una subjetivización
emancipadora cuando la naturaleza y el ambiente biofísico están pasados por
el filtro de la experiencia social e individual. Un efecto similar lo podemos ob-
servar en la proximidad contrastada entre mujeres y animalismo.
154 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar

3. Una mayor sensibilidad ante los descuentos intertemporales de los costes am-
bientales futuros. Uno de los grandes problemas que tiene la promoción de
la conciencia y la acción ecologista es el hecho de que los costes de la acción
ambiental son inmediatos y personales (no usar el automóvil, por ejemplo)
mientras que los beneficios son futuros y difusos (disminución de las emisio-
nes de Co2, ahorro de energía). Pearce (1990) (2003). al fijar los daños di-
fusos y futuros en objetos cercanos e inmediatos y emocionalmente muy
valorados frente a aquellos costes ambientales que los discursos científico y
político describen como remotos, futuros e inconmensurables, el proceso de
subjetivización de la crisis ecológica favorece una sensibilidad directa y per-
sonalizada y en un tiempo cotidiano e inmediato.
desde esta comprensión política y social de las asimetrías de género en la
percepción de los problemas ambientales que la teoría feminista y ecofemi-
nista nos aporta, podemos valorar, en una dimensión más adecuada, la fun-
ción no complementaria sino central que el ecofeminismo cumple para la
superación de los bloqueos que el ecologismo social y la ecología política
arrastran. el ecofeminismo no es un ecologismo de o para mujeres sino que
como ocurre con el feminismo, lleva en su adN, como ningún otro discurso,
la semilla de la universalidad; y deviene, así, ecologismo a escala humana.
esta humanización, que no es sino socialización y, como socialización, natu-
ralización, al resituar el conflicto ecológico en una escala personal y cotidiana,
favorece el compromiso individual y social en el cambio ecológico sistémico.

reFereNCIas BIBlIográFICas

aMorós, Celia (1985): hacia una crítica de la razón patriarcal, Barcelona, anthropos.
BeaUvoIr, simone (1998): el segundo sexo, Madrid, Cátedra.
BUTler, Judith (2007): el género en disputa. el feminismo y la subversión de la
identidad, Barcelona, Paidós.
CarrasCo, Cristina (2009): «Tiempos y trabajo desde la experiencia femenina», Pa-
peles de relaciones ecosociales y cambio global, 108, pp. 45-54.
CIs (2010): «estudio 2837. Medio ambiente (II)», Madrid.
CIs (2007): «estudio 2682. ecología y Medio ambiente (III)», Madrid.
Fox Keller, evelyn (2002): Making sense of life: explaining Biological development
with Models, Metaphors, and Machines, Cambridge, harvard University Press.
gIl garCía, eugenia (2004): la percepción social de los problemas ambientales
en andalucía. límites y oportunidades de la educación ambiental, sevilla, Con-
sejería de Medio ambiente, Junta de andalucía.
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 155

gIllIgaN, Carol (1982): In a different voice: Psychological Theory and Women’s


development, Cambridge, harvard University Press.
— (2013): la ética del cuidado, Barcelona, Cuadernos de la Fundació víctor grífols
i lucas, 30.
haraWay, donna (1995): Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la natura-
leza, Madrid, Cátedra.
hIrsChMaN, albert o. (1977): salida, voz y lealtad: respuestas al deterioro de em-
presas, organizaciones y estados, México, FCe.
IsaaC, r. Mark y JaMes, duncan (2000): «Just Who are you Calling risk averse?»,
en Journal of risk and Uncertainty, 20 (2), pp. 177-187.
JIaNaKoPlos, Nancy ammon y BerNaseK, alexandra (1998): «are women more
risk averse?», economic Inquiry, 36 (4), pp. 620-630.
MarTíNez alIer, Joan (1992): de la economía ecológica al ecologismo popular,
Barcelona, Icaria.
PearCe, d. y TUrNer, r. K. (1990): economics of Natural resources and the en-
vironment, harvester Weats leaf, hertfordshire.
PearCe, d. W., grooM, C., hePBUrN y KoUNdoUrI, P. (2003): «valuing the Future.
recent advances in social discounting», World economics, 4 (2), pp. 121-139.
PUleo, alicia h. (2011): ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cáte-
dra.
rUIz-Tagle, Jaime y TaPIa, Pablo (2012): Brechas por género en aversión al riesgo,
santiago de Chile, documentos de Trabajo del departamento de economía de
la Universidad de Chile.
9. Cuidado y responsabilidad
Mª Teresa LÓPEZ DE LA VIEJA
Universidad de Salamanca

INTRODUCCIÓN

¿Q
ué significa «cuidar de lo natural» o «cuidar la naturaleza»? Estas ex-
presiones, ¿se refieren a prácticas bien definidas y en contextos espe-
cíficos o a algo distinto? Este capítulo analiza el significado del cuidado
en su aplicación a los no humanos y al medio ambiente, tomando en cuenta tres as-
pectos: (1) la escala o nivel de aplicación son relevantes, por eso el cuidado tiene
ciertos límites; (2) los agentes comprometidos con la protección de especies, los re-
cursos y el medio natural encuentran limitaciones para generalizar las buenas prác-
ticas, debido a que estas no son lo mismo que las políticas públicas. Por eso,
convendría hablar más de «responsabilidad» que de «cuidado»; (3) para extender
el cuidado —de lo concreto a lo general— habría que contar, entonces, con la di-
mensión institucional, pública, de las actuaciones, ya que «lo natural es político».
El Decreto del año 2013 tiene por objetivo la protección de los no humanos, re-
gulando su uso con fines de experimentación:

1. El objeto del presente real decreto es establecer las normas aplicables para la protec-
ción de los animales utilizados, criados o suministrados con fines de experimentación y
otros fines científicos, incluyendo la educación y docencia.
Para ello, regula lo siguiente:
El reemplazo y reducción de la utilización de animales en procedimientos y el refi-
namiento de la cría, el alojamiento, los cuidados y la utilización de animales en tales pro-
cedimientos
(Real Decreto 53/2013, de 1 de febrero, por el que se establecen las normas básicas
aplicables para la protección de los animales utilizados en experimentación y otros fines
científicos, incluyendo la docencia, art.1)
158 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

La norma incorpora tres principios básicos y define los cuidados necesarios en


la investigación y la docencia con animales. Los principios están bien asentados en
este ámbito —reemplazo, reducción y refinamiento—, siendo fundamentales a la
hora de valorar la calidad de estudios, proyectos y experimentos de ese tipo. La
norma pretende ajustarse a las pautas marcadas con anterioridad por la Directiva
2010/63 de la Unión Europea, para la protección de aquellos animales que vayan a
ser utilizados para la investigación. Desde 1997, estaba ya el Protocolo adicional al
Tratado de Ámsterdam sobre bienestar animal. Por tal motivo, el Decreto del año
2013 amplía la anterior legislación nacional sobre el tema, el Real Decreto
1201/2005. En ambos decretos y, sobre todo, en el segundo de ellos, ahora vigente,
el capítulo de los cuidados merece especial atención, al contemplar tanto el aloja-
miento como la salud, la alimentación, la movilidad, el transporte e incluso el ma-
nejo de los animales, siempre por parte de personas con la capacitación adecuada.
En general, puede discutirse el sentido de la investigación científica y los ensayos
con no humanos, por una cuestión de principios; a la vez, hay que considerar los
cambios introducidos por el marco normativo, nacional e internacional, con crite-
rios y medidas específicas, con objeto de que la investigación esté justificada y cum-
pla con todos los requisitos.
Resulta evidente que todavía queda mucho por hacer en materia de bienestar
animal, sobre todo en otros espacios menos regulados —como el transporte o la
tenencia de animales— o incluso en aquellos que están desprovistos de pautas para
actividades con los no humanos y con fines diversos, no científicos. En cierto modo,
los avances en la protección de especies empleadas en investigación y docencia son
algo así como una isla rodeada de un mar de prácticas en las que el cuidado no es
el objetivo, todo lo contrario. Por eso tiene sentido preguntarse si, aun siendo por-
menorizada, la lista de las medidas sobre bienestar animal valdría para proteger a
las especies en cualquier otro espacio. ¿Qué significa «cuidar» de los no humanos?
Es más, algunas expresiones habituales como «cuidar de los animales», «cuidar de
lo natural» o «cuidar la naturaleza» son demasiado generales; es posible que, debido
a ello, inmejorables intenciones no se traduzcan luego en actuaciones efectivas para
la protección de especies y de recursos ambientales. Tal vez esas formas de hablar
no sean tan claras ni performativas como se supone. ¿Qué quieren decir? ¿Se re-
fieren a prácticas bien definidas y en contextos específicos o a algo distinto? En la
hipótesis de que las dimensiones o los espacios del cuidado son relevantes, en las
páginas siguientes se analiza el posible significado del «cuidado de lo natural».

(1) La escala o nivel de aplicación del cuidado enmarca posibilidades y, a la vez,


impone límites. Como principio, ha estado orientado hacia la consideración de
agentes y necesidades concretas. Como práctica, las medidas en favor del bie-
nestar animal se han concentrado en el campo de la investigación, en parte en
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 159

los animales domésticos, menos en «la naturaleza». Por todo ello, cuidar en ge-
neral, como actitud, y las prácticas de cuidado, en concreto, requieren interven-
ciones diferentes y, tal vez, otro tipo de instancias.
(2) Los agentes comprometidos con la protección de especies, recursos y con el
medio natural en sentido amplio, suelen encontrar limitaciones importantes a
la hora de aplicar medidas específicas para resolver problemas de largo alcance.
Normas como el Real Decreto del año 2013, sobre protección de animales em-
pleados en investigación, ejemplifican este estado de cosas, con medidas en favor
del bienestar animal, vigentes para un área, la investigación, pero solo para tal
área. Por lo común, no es fácil que las buenas prácticas se generalicen y funcio-
nen de forma correcta a otros niveles. Al final, estas prácticas, individuales o de
grupo, no son lo mismo que las políticas públicas, en lo ambiental como en cual-
quier ámbito. Por eso, convendría hablar más bien de actuaciones que respon-
den a las necesidades y tienen en cuenta posibles consecuencias. Es decir, sería
mejor hablar de «responsabilidad» que de «cuidado» a este nivel, con el com-
promiso de agentes sociales, grupos e instituciones, a fin de garantizar la pro-
tección de bienes públicos.
(3) De ser cierto que las prácticas del cuidado deben ir más allá de lo cercano y lo
concreto, a fin de tener resultados eficaces, si tales prácticas han de extenderse
a la protección o al bienestar de otras especies y, en general, a la preservación
del medio natural, si los planes de intervención han de estar a la altura de los
riesgos, muy elevados, si las actuaciones han de tener, al fin, una dimensión ins-
titucional, pública, entonces la conclusión sería clara. Habrá que asumir, a todos
los efectos, que «lo natural» es «político».

EL CUIDADO. LO CONCRETO

Cuidado y alojamiento
1. Los Estados miembros velarán, en lo que se refiere al cuidado y al alojamiento de
los animales, por lo siguiente:
a) a todos los animales se les proporcionará alojamiento, un entorno, alimentos, agua
y cuidados adecuados a su salud y bienestar.
(Directiva 2010/63/UE del Parlamento Europeo y del Consejo de 22 de septiembre
de 2010 relativa a la protección de los animales utilizados para fines científicos, art. 33)

¿Quién será responsable de los cuidados? La Directiva europea sobre uso de no


humanos en la investigación ha sido muy explícita al respecto, los Estados tienen
un papel crucial para que se respeten las condiciones sobre alojamiento y cuidados
de animales empleados en proyectos. La dimensión institucional aparece, por tanto,
160 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

de forma clara en la normativa europea sobre la materia. Es significativo que el


principio general, el cuidado, pueda aplicarse de esta forma y en esta área, el bie-
nestar animal, y no solo en el área de la salud de los humanos. En este campo, hace
tiempo que cuentan el principio, las necesidades de los pacientes, las prácticas y
los agentes que cuidan; ejemplo de ello sería la Declaración de Charlottetown sobre
derecho al cuidado, un documento del año 2001. Se nota también que el principio
y sus diferentes usos ponen al descubierto los límites de las ideas tradicionales sobre
cuidados y cuidadores; el análisis de su significado y alcance está en la literatura es-
pecializada, al menos desde los años setenta del siglo XX, con las aportaciones y crí-
ticas introducidas por la «ética del cuidado» (Gilligan, 1982: 19-33). Entre otros
aspectos, la propuesta hecha por C. Gilligan tenía muy presente la experiencia atri-
buida a las mujeres, de atención a las necesidades de los demás, las necesidades
concretas. De ahí surgió la valoración positiva del principio de cuidado:

(1º) A diferencia del modelo basado en el principio de justicia —como en la teoría


del desarrollo de L. Kohlberg—, el modelo del cuidado rescataba experiencias
e itinerarios alternativos de la moralidad. La tesis era que la conciencia y el juicio
moral pueden seguir otra vía o pueden expresarse con «otra voz» (Gilligan,
1977). ¿Por qué razón? En la experiencia femenina, la atención a las relaciones,
los contextos, ciclos vitales y, en fin, el equilibrio entre el yo y los otros son fun-
damentales (Gilligan, 1983); por eso mismo, requieren un enfoque distinto, no
universalizable, como sucede con el principio de justicia. Las relaciones con los
demás, la voluntad de no dañar a otros, la responsabilidad y la interdependencia
tendrían, entonces, prioridad sobre soluciones basadas tan solo en principios
generales. La ética del cuidado representaba, pues, un avance, ya que hacía vi-
sible un modo paralelo de solucionar dilemas morales, reales y no hipotéticos.
Sin embargo, una interpretación convencional del cuidado sería un riesgo, tal
como advertía ya C. Gilligan, al distinguir la forma «feminista» de la forma «fe-
menina» del principio (Gilligan, 1995). La validez del cuidado dependerá en
gran medida de ello, de una definición postconvencional, no tradicional y sen-
sible a cuestiones de género; es decir, atender las necesidades de otros, hacerse
responsable de su cuidado no tiene por qué implicar sacrificio o violencia hacia
sí misma. Por lo tanto, sería mejor hablar del «buen cuidado», en términos nor-
mativos (López de la Vieja, 2013: 123-136; 2004: 28-32)
(2º) Por un lado, la ética del cuidado se ha hecho eco de tradiciones, formas de
vida y experiencias que tienen su origen en relaciones como la amistad y la ma-
ternidad. Por otro, la validez del principio estaría más allá de su posible origen
y de situaciones concretas. El motivo para insistir sobre esto es claro, la visión
tradicional o convencional puede reforzar o justificar relaciones desiguales, for-
mas de explotación y sumisión, tal como sucede en las sociedades patriarcales
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 161

—todas las sociedades—, en las cuales la relación entre mujeres y hombres es


asimétrica. Por eso, la tesis de que el cuidado es positivo y, por tanto, debe am-
pliarse a otros ámbitos ha de ser asumida con algunos matices. En primer lugar,
se trataría de distinguir las formas de cuidar, ya que no será lo mismo la atención
a alguien o alguna necesidad en concreto (caring for) que el compromiso general
con algo o con alguien (caring about) (Tronto, 1998). Esto es, el objeto y, ante
todo, las dimensiones de cuidado modificarán la relación entre los agentes y los
resultados de dicha relación. En segundo lugar y a la vista de la posibilidades
del cuidado, habría que añadir que el objetivo de extenderlo al ámbito público
—con instituciones que llegaran a ser «cuidadoras» (Tronto, 2010)— necesitaría
cambios radicales.
(3º) ¿Qué tipo de cambios? Para pasar de la esfera privada al ámbito institucional
convendría dejar atrás el modelo tradicional —cuidados tan solo dentro de la
familia o grupo cercano— y, a la vez, habría que pensar si el mercado o solo cui-
dados profesionales serían la mejor alternativa. Desde la perspectiva de género,
los riesgos de un modelo convencional, solo «familiar» o «familista», son muy
evidentes, nada hipotéticos; sin embargo, un modelo puro de mercado para los
cuidados plantea numerosas y serias dudas. Algunos precedentes, malos prece-
dentes, son bastante aleccionadores, pues los destinatarios de los cuidados son
siempre agentes en situación de enfermedad, desventaja, necesidad o dependen-
cia. ¿Se ha de construir un modelo mixto, de cuidados informales y formales?
Quizás habría que trabajar más en esta dirección. Por ahora, existen motivos
suficientes para sopesar con atención ventajas e inconvenientes del cuidado, en
lo privado y en lo público. Quedan muchas preguntas pendientes como, por
ejemplo, cómo ha de ser la distribución de los cuidados y quiénes son las perso-
nas que cuidan, por qué hay siempre y en todos los lugares más cuidadoras que
cuidadores; se trata, al fin, de cuestiones de justicia e igualdad en la atención de
las necesidades (López de la Vieja, 2008a).

Según esto, es más que razonable el propósito de extender el principio y las


prácticas de cuidado a otros espacios, como la protección de especies y del medio
ambiente. Sin embargo, esto sería solo el comienzo, ya que «cuidar» no es exacta-
mente lo mismo que otras actividades tan valiosas como, por ejemplo, reconocer
los valores propios de lo natural, ampliar la consideración moral y sus objetivos
(Callicot, 2005), comprometerse con la conservación del entorno y de las especies,
mantenerse activos en la protección de la naturaleza, tener o cambiar actitudes en
pro de los seres vivos y del medio natural, velar por el bienestar animal, tener sen-
sibilidad ambiental, tomar conciencia de problemas ecológicos, etc. El registro es
amplio, así ha de ser, amplio y plural. Desde el punto de vista teórico, la noción
simple de «cuidado» no significa lo mismo que el «principio de cuidado» ni que
162 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

«ética del cuidado». A su vez, el principio general puede tener una interpretación
tanto convencional como no convencional, pudiendo aplicarse a distinta escala y a
distintos objetivos. Por lo tanto, las propuestas sobre cómo cuidar el ambiente, las
especies y lo natural tienen sentido, cada vez más; ganarían quizás en precisión in-
tegrando los resultados del largo debate sobre el cuidado, la ética del cuidado, la
justicia en el cuidado, la perspectiva de género (Puleo, 2008), también o sobre todo
en lo que concierne a la atención de las necesidades y de la salud y, en fin, las di-
mensiones social y política del cuidado. Además, estaría pendiente la posible tra-
ducción del principio a planes, programas, medidas, actuaciones, políticas destinadas
a proteger especies y medio ambiente.
¿Quién ha de cuidar? ¿Cómo lo hará? ¿Dónde? ¿Por cuánto tiempo? ¿Con qué
recursos? ¿Para quién, quiénes serán los destinatarios? ¿Quién tendrá la última res-
ponsabilidad? De nuevo, convendría transitar entre lo general y lo concreto; por
eso, la Directiva europea del año 2010 se refería tanto a cuidados específicos —ali-
mentación, alojamiento, entorno, alimentos, agua, salud, etc.— como a la responsa-
bilidad de los Estados en la protección de los no humanos en actividades científicas.
Esto es, cuidar en general, como actitud, y las prácticas de cuidado requieren inter-
venciones diferentes y, casi siempre, otro tipo de instancias y agentes.

RESPONSABILIDAD. LO GENERAL

La utilización de animales en los procedimientos solo podrá tener lugar cuando persiga
alguno de los siguientes fines:
a) Investigación fundamental.
b) Investigación traslacional o aplicada, y los métodos científicos con cualquiera de
las finalidades siguientes:
1º. La prevención, profilaxis, diagnóstico o tratamiento de enfermedades, mala salud
u otras anomalías o sus efectos en los seres humanos, los animales o las plantas.
(Real Decreto 53/2013, de 1 de febrero, por el que se establecen las normas básicas
aplicables para la protección de los animales utilizados en experimentación y otros fines
científicos, incluyendo la docencia, art. 5)

La normativa vigente sobre empleo de no humanos en investigación muestra las


ventajas y, a la vez, las limitaciones del cuidado entendido como un conjunto de
prácticas definidas. Por un lado, el Real decreto de 2013 representa un avance en
lo que se refiere a condiciones y estándares imprescindibles para que se autorice la
experimentación con otras especies. En particular, los objetivos de este tipo de en-
sayos han de estar claros: diagnóstico y tratamiento de enfermedades. Por otro, el
decreto solo es, solo puede ser, válido en este campo. ¿Qué ocurre en otras situa-
ciones y con otros usos de los no humanos? La legislación nacional e internacional
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 163

no está desarrollada de la misma manera para otras actividades con seres vivos y
con recursos naturales; prueba de ello serían las leyes sobre transporte, tenencia de
animales peligrosos y animales en explotaciones ganaderas. A día de hoy, los avances
se han concentrado en la protección de los no humanos —en determinadas áreas—,
menos en la protección del medio natural. Esto indica no solo que la investigación
científica es todavía una isla en cuanto a protección de derechos (López de la Vieja,
2013: 161-182) sino que, además, existen límites importantes para la extensión de
los cuidados. Tampoco los modelos enfocados hacia lo natural, biocéntricos y no
antropocéntricos, han logrado romper las barreras que aún persisten para extender
la atención a las necesidades más allá de la esfera propia. Por todo ello, vale la pena
preguntarse, una vez más, ¿qué quiere decir «cuidar» de lo natural?
(a) Algunas contribuciones en favor de la extensión de los cuidados —como la
de D. Curtin (1991)— abogan por otro tipo de conexión entre humanos y no hu-
manos, a la vez que rechazan la universalización del principio. El cuidado es enten-
dido ahí como una actividad contextual, ligada a la experiencia, relacional, alejada
también del formalismo de los derechos, con todo lo que esto puede significar. Por
razones similares, el rechazo de la dominación sobre otros seres —paralela a la do-
minación que tanto ha marcado la existencia de las mujeres— llevaría a prestar
mayor atención y asumir el cuidado de los no humanos (Donovan, Adams, 2007:
1-15). En tal sentido, la liberación animal no sería considerada como una cuestión
de justicia sino como resultado de algunos de los cambios producidos en la relación
entre humanos y otras especies (Luke, 2007). En otras propuestas análogas, se in-
siste en la necesidad de fomentar actitudes de simpatía (Donovan, 2007a), compasión
(Adams, 2007) o empatía (Gruen, 2007). Según esto, el cuidado sería muy positivo
pero no sería generalizable, sería difícilmente regulable, dependería de la voluntad,
la buena voluntad de los agentes. Esto es, no llegaría a ser una obligación, en sentido
estricto.
(b) Las ventajas de este enfoque del cuidado, entendido como atención a seres
y necesidades concretas, se convierten en limitaciones si se repara en su posible ex-
tensión y en la obligatoriedad. Atender a las necesidades es una práctica muy exi-
gente, requiere considerable tiempo, muchas energías, recursos, además de buena
disposición y, sin duda, tiene elevados costes personales. ¿Quién está dispuesto a
pagarlos? ¿Por qué motivo lo haría? ¿Es una decisión personal o un deber? Cuidar
siempre y a otra escala puede ser una decisión valiosa, meritoria, heroica y, por
tanto, nunca será obligatoria. Al mismo tiempo, como práctica o conjunto de prác-
ticas, el cuidado es del todo imprescindible para el mantenimiento de grupos y so-
ciedades, puesto que está orientado a los demás, a su bienestar. ¿Ha de convertirse
en obligación? La pregunta es si esa atención, respeto, interés genuino, relación in-
terpersonal, consideración hacia otros, etc., ha de quedar a criterio individual, según
sean las actitudes personales y la disponibilidad de cada persona. Las actitudes de
164 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

cuidado siempre son positivas, merecen reconocimiento y apoyo, sin duda alguna.
Ahora bien, conviene examinar la cuestión desde el otro ángulo. De no ser un
«deber» (Engster, 2005), de no ser algo a demandar, algo exigible en mayor o menor
medida, si no hubiera criterios conocidos y equitativos para distribuir el cuidado,
¿qué podrían esperar aquellas personas y aquellos seres que requieren atención o
asistencia? Esto vale para seres humanos en situación de necesidad o dependencia,
al igual que para los no humanos, sujetos a preferencias y decisiones de los huma-
nos, en una relación muy desigual (Engster, 2006). Los límites del cuidado aparecen
entonces, al intentar ampliarlo para ir más allá de la esfera de las relaciones inter-
personales y más allá de las actividades voluntarias. Las consecuencias serían poco
alentadoras.
(c) El cuidado de los animales plantea, además, dilemas específicos, nada simples.
En situaciones de escasez, urgencia o necesidad, ¿quién tendrá preferencia? ¿Estará
antes una persona cercana, un ser humano, o un no humano? ¿Quién va primero,
mi perro o mi hija? (Slicer, 2009). Muchas de las respuestas son bastante previsibles.
Pero hay más, el interés y cuidado de especies ¿se refiere a animales domésticos o a
todos los animales? ¿Incluye a las especies salvajes? (Clement, 2007) ¿Qué decir o
qué hacer con insectos o con aquellas especies que provocan temor o aversión? Re-
conocer el valor intrínseco de los seres vivos sería un paso fundamental; no obstante,
dejaría abierta la cuestión de la jerarquía entre las especies y, en consecuencia, la je-
rarquía del valor intrínseco, ¿cuál tiene prioridad? Es decir, el cuidado no obligado,
voluntario, estaría sujeto a distintas condiciones, grados y espacios. Será difícil ex-
tenderlo más allá del radio de acción de cada agente. Por último, es muy significativo
que la actitud y las prácticas del cuidado se concentren, por lo general, en la atención
o la mejora del bienestar de los no humanos; el Decreto del año 2013 —derechos y
obligaciones— sobre investigación y docencia con animales es una muestra de ello:
la finalidad ha de ser el diagnóstico o el tratamiento de enfermedades en los seres
humanos, los animales o las plantas, en este orden (art. 5). Si esto es así, ¿qué decir
del cuidado del los recursos, el medio ambiente, el medio natural, la naturaleza?
¿Qué queremos decir cuando hablamos de cuidar «lo natural»?
En la práctica, los temas ambientales son insoslayables, hacen falta medidas y
soluciones que no deberían aplazarse mucho más tiempo, en interés de otras espe-
cies y de la misma especie humana. Está en juego el futuro, nada menos que un fu-
turo mejor (Puleo, 2004). Por eso mismo, es posible preguntarse si, al hablar del
cuidado de los seres vivos y del medio ambiente, en realidad no estamos intentando
decir eso mismo, hace falta, es urgente «dar respuestas» ante los riesgos para la su-
pervivencia. Responder, actuar poniendo atención y cuidado, tener presentes las
posibles consecuencias de las acciones y, en fin, ser responsables o conducirse con
«responsabilidad» es algo diferente al cuidado. Lo es, sobre todo si se hace hincapié
en el enfoque social y político del principio. Es decir, se trataría de mostrar que los
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 165

agentes responsables no solo dan cuenta de su conducta individual, asumiendo los


efectos o la posible penalización por un daño causado con anterioridad. El modelo
social de responsabilidad se fija menos en el papel del individuo en hechos ya su-
cedidos, se fija más bien en lo que queda por delante y en procesos compartidos
(Young, 2007: 159-186).
¿Por qué razón? No se trata únicamente de rendir cuentas o de pagar por lo ya
hecho sino de algo diferente: poner fin a problemas estructurales. Para ello, habría
que asumir que la interacción social es un proceso con relativa autonomía con res-
pecto a los individuos y a sus intenciones personales. La interacción social genera
estructuras, papeles e instituciones con funcionamiento propio. En consecuencia, la
responsabilidad compartida —social, política, no atomizada ni individualista— no
debe entrar demasiado en el juego de los reproches, las culpas y los castigos por
algo que ya sucedió, en el pasado (Young, 2011: 3-41). El objetivo ha de ser otro,
los planes de futuro. Los agentes responsables se fijarán en aquellos resultados in-
justos, negativos, dañinos, que siguen siendo una amenaza y que, además, no tienen
un solo culpable sino muchos, difusos. Por esto y debido a que los perjuicios y
daños siguen existiendo, debido a que hay estructuras y relaciones que los propician
o los permiten, de forma más o menos explícita, porque la culpabilidad será com-
partida y estará muy desdibujada, por todo eso la responsabilidad se dirimirá más
allá del sistema judicial. Será común y solidaria y, como responsabilidad social y
política, tendrá en cuenta las reglas de actuación y los papeles que cada agente haya
desempeñado en la difusión de las injusticias o de los daños. El objetivo será que
esto no vuelva a ocurrir. Es decir, se trata de obtener compromisos en firme más
que de imponer sanciones o castigos.
En el caso de la protección de especies y del medio ambiente, las actitudes de
cuidado son positivas, pero no suficientes. Hacen falta prácticas, buenas prácticas.
A su vez, tales prácticas son fundamentales, pero no resulta sencillo extenderlas o
generalizarlas, tampoco funcionan de la misma forma en otros espacios. Entonces
¿qué hacer? La conclusión sería que hablamos de «cuidado» de lo natural y, tal vez,
estamos pensando en compromiso y responsabilidad. Son necesarias las prácticas
de cuidado, las actuaciones y programas a medida de los riesgos, importantes, a
gran escala, por eso hace falta mucho más. En fin, las actitudes de cuidado y las
prácticas —buenas prácticas— no son lo mismo que las políticas públicas, sea su
objetivo la salud, la educación o las cuestiones ambientales. Entonces ¿quién ha de
responder? ¿Cómo hacerlo? El principio de responsabilidad introduce un enfoque
más general y, a la vez, tiene una clara dimensión práctica, ya que pide respuesta a
los problemas. ¿A quién hay que pedirla? La buena voluntad individual debería
tener continuidad en instituciones con capacidad real para ofrecer respuestas com-
partidas, acordadas, y con obligación de darlas.
166 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

LO NATURAL ES POLÍTICO

El cuidado es un principio general, conocido y definido con bastante precisión en


ética, sobre todo después de las aportaciones de la ética del cuidado a la psicología
del desarrollo y a la filosofía práctica. Gracias al trabajo de C. Gilligan y al de varias
autoras más —como J. Tronto, S. Benhabib y I. M. Young, entre otras—, el análisis
del significado, tipología y posibles aplicaciones del principio forma ya parte del
debate teórico en filosofía, psicología, ciencias sociales y ciencias de la salud. Por
su parte, los estudios de género tienen muy en cuenta la dimensión crítica y no con-
vencional del principio. El concepto y sus usos han sido y son fundamentales en el
campo sanitario, puesto que la atención a las necesidades tiene especial impacto en
todo lo que se refiere a la salud y la enfermedad. En bioética, la literatura especia-
lizada se ha hecho eco —con algún retraso, todo hay que decirlo— del papel del
cuidado entre los principios básicos de autonomía, justicia, beneficencia y no ma-
leficencia. La integración del cuidado en disciplinas y áreas de conocimiento no ha
acabado todavía, como sucede con la apuesta por llevar el principio al análisis de
las cuestiones ambientales. El «cuidado» de especies y del entorno natural formaría
parte de las actividades de quienes son conscientes de los riesgos de no emprender
nada o de hacer muy poco para proteger y conservar el planeta, la tierra, la biosfera,
el medio ambiente, los seres vivos, los recursos ambientales, la vida, lo natural o la
naturaleza. La manera de decirlo puede cambiar, el propósito es común.
Sin embargo, el largo recorrido hasta incorporar el principio de cuidado al aná-
lisis teórico, con resultados destacables, permite ver que el objetivo general —cuidar
lo natural o la naturaleza— requiere mayor precisión conceptual para ser llevado
con éxito a la práctica. Por ejemplo, el principio normativo indica lo que debe ser
o debería hacerse, como guía de actuación. Como norma, no es ni funciona lo
mismo que la actitud individual de cuidado, siempre positiva pero ligada a un con-
texto y, ante todo, a decisiones personales. Las intenciones, motivaciones y reac-
ciones favorables al cuidado del medio ambiente serán valiosas y meritorias, nunca
obligaciones y, por tanto, no serán un «derecho» a reclamar o a defender en cual-
quier contexto. Además, el cuidado tendría que ser algo más que una disposición,
actitud o motivación, ya que una práctica requiere tener el propósito y, luego,
mucho más. Hacen falta tiempo, dedicación y energías, sobre todo si se trata de
una buena práctica. Por eso, hay preguntas que vale la pena hacer o repetir: ¿qué
significa, en realidad, «cuidar»?
Las ventajas del principio y de las prácticas están en su potencial para atender
necesidades, en concreto. Pero ahí están también sus límites, siendo difícil su ex-
tensión a más objetivos y a otros niveles, más amplios. ¿Quién cuida? ¿Quién se
beneficiará de los cuidados? El interés por preservar el medio natural es un buen
ejemplo de la valoración positiva, pero difusa del cuidado; este interés ha estado
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 167

centrado en el bienestar animal y, en particular, el de aquellos no humanos que


están más directamente en contacto con los humanos. En definitiva, no solo hay
que conocer bastantes datos sobre quién cuida, cuándo, dónde, cómo y con qué
costes, sino que además estaría bien tener objetivos definidos con precisión. ¿Qué
significa «cuidar la naturaleza»?
Los problemas ambientales necesitan medidas y actuaciones bien definidas. Los
retos han alcanzado dimensiones tales que desbordan la capacidad individual para
dar respuestas a la medida. La idea es que las buenas prácticas se extiendan más
allá del propio radio de acción, que los resultados lleguen a otras especies y al medio
natural, ahora y en lo sucesivo. Se trata, entonces, de «responsabilidad» más que
de cuidado y, además, de responsabilidad compartida. Esta ha de tener una dimen-
sión institucional, pública. La conclusión sería que la inquietud por cuestiones am-
bientales y el compromiso en favor de la sostenibilidad tendrían que estar muy
presentes en la agenda política y, luego, en las políticas públicas. Al igual que hay
razones de peso para que lo personal esté cada vez más en el debate público, cabe
decir también que «lo natural» es «político»·

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADAMS, Carol (2007): «The War on Compassion», Donovan, J., Adams, C.: The
Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press,
pp. 21-36.
CALLICOT, J. Baird (2005): «The Pragmatic Power and Promise of Theoretical En-
vironmental Ethics», Galston, A., Peppard, Ch.: Expanding Horizons in
Bioethics, Dordrecht, Springer, pp. 185-208.
CLEMENT, Grace (2007): «The Ethics of Care and the Problem of Wild Animals»,
Donovan, J., Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New
York, Columbia University Press, pp. 2301-2315.
CURTIN, Deane (2007): «Towards an Ecological Ethics of Care», Donovan, J.,
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 87-104.
— (1991): «Towards an Ecological Ethics of Care», Hypatia, 6, pp. 60-74.
DONOVAN, Josephine (2007): «Animal Rights and Feminist Theory», Donovan, J.,
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 58-86.
— (2007a): «Attention to Suffering», Donovan, Josephine, Adams, Carol: The Fem-
inist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press, pp.
174-197.
168 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

—y ADAMS, Carol (2007): The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York,
Columbia University Press.
—y ADAMS, Carol (2007): «Introduction», Donovan, J., Adams, C.: The Feminist
Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press, pp. 1-15.
ENGSTER, Daniel (2006): «Care Ethics and Animal Welfare», Journal of Social Phi-
losophy, 37, pp. 521-536.
— (2005): «Rethinking Care Theory: The Practice of Caring and the Obligation to
Care», Hypatia, 20, pp. 50-74.
FRASER, David (2001): «The “New Perception” of Animal Agriculture: Legless
Cows, Featherless Chicken, and a Need for Genuine Analysis, Journal of Animal
Science, 79, pp. 634-641.
— (1999): «Animal Ethics and Animal Welfare Science. Bridging the Two Cul-
tures», Applied Animal Behavior Science, 65, pp. 171-189.
GILLIGAN, Carol (1995): «Hearing the Difference: Theorizing Connection», Hypa-
tia, 10, pp. 120-127.
— (1987): «Moral Orientation and Moral Development», Kittay, D., Meyers, D.:
Women and Moral Theory, New York, Rowman and Littlefield, pp. 19-33.
— (1982): In a Different Voice, Cambridge, Harvard University Press.
— (1977): «In a Different Voice: Women´s Conception of Self and of Morality»,
Harvard Educational Review, 17, pp. 481-517.
GRUEN, Lori (2007): «Empathy and Vegetarianism», Donovan, Josephine, Adams,
Carol: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia Uni-
versity Press, pp. 333-343.
LÓPEZ DE LA VIEJA, Mª Teresa (2013): «Investigación con no humanos», Bioética y
literatura, Madrid, Plaza y Valdés, pp. 161-182.
— (2008): «Los «derechos» de los animales», Bioética y ciudadanía, Madrid, Bi-
blioteca Nueva, pp. 211-236.
— (2008a): «Justicia y cuidado», Puleo, A.: El reto de la igualdad de género, Ma-
drid, Biblioteca Nueva, pp. 238-257.
— (2007): «Lo ambiental es político», García Gómez-Heras, J. M., Velayos, C.: Res-
ponsabilidad política y medio ambiente, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 77-105.
— (2004): La mitad del mundo. Ética y Critica feminista, Salamanca, Universidad
de Salamanca.
LUKE, Brian (2007): «Justice, Caring, and Animal Liberation», en Donovan, J. y
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 125-152.
NUSSBAUM, Martha (2004): «Beyond «Compassion and Humanity»», Sunstein, C.,
Nussbaum, M.: Animal Rights, (pp. 299-320) New York, Oxford University Press.
PULEO, Alicia (2008): «Introducción. El concepto de género en la Filosofía», El
reto de la igualdad de género, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 15-42.
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 169

— (2004): «Genero, naturaleza y ética», García Gómez-Heras, José María, Velayos,


Carmen: Tomarse en serio la naturaleza, (pp.103-120), Madrid, Biblioteca Nueva.
SLICER, Deborah (2007): «Your Daughter or Your Dog?», Donovan, J., Adams, C.:
The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, (pp. 105-124), New York, Colum-
bia University Press.
TRONTO, Joan (2010): «Creating Caring Institutions: Politics, Plurality, and Pur-
pose», Ethics and Social Welfare, 4, pp. 158-171.
— (1999): «Care Ethics: Moving Forward», Hypatia, 14, pp. 111-119.
— (1988): «What Can Feminism Learn about Morality from Caring?», Sterba, J.:
Ethics: The Big Questions, Oxford, Blackwell, pp. 346-356.
YOUNG, Iris Marion (2011): Responsibility for Justice, New York, Oxford Univer-
sity Press.
— (2007): Global Challenges, Cambridge, Polity Press.
The Charlottetown Declaration on the Right to Care (2001).
Directiva 2010/63/UE del Parlamento Europeo y del Consejo de 22 de septiembre
de 2010 relativa a la protección de los animales utilizados para fines científicos.
Real Decreto 53/2013, de 1 de febrero, por el que se establecen las normas básicas
aplicables para la protección de los animales utilizados en experimentación y otros
fines científicos, incluyendo la docencia.
Real Decreto, 1201/ 2005, de 10 de octubre, sobre protección de los animales uti-
lizados para experimentación y otros fines científicos.
Real Decreto 287/2002, de 22 de marzo, por el que se desarrolla la Ley 50/1999,
de 23 de diciembre, sobre el régimen jurídico de la tenencia de animales poten-
cialmente peligrosos.
Real Decreto 1041/1997, de 27 de junio, por el que se establecen las normas rela-
tivas a la protección de los animales durante su transporte, BOE, 9 Julio, 1997.
Real Decreto 348/2000 de 10 de marzo, por el que se incorpora al ordenamiento
jurídico la Directiva 98/58/CE, relativa a la protección de los animales en las ex-
plotaciones ganaderas
Treaty of Amsterdam, Protocol annexed to the Treaty of the European Community-
Protocol on protection and welfare of animals, Official Journal C340,10/11/1997,
P.0110.
10. Una lectura ecofeminista de la novela de
anticipación actual
Eva Antón FErnándEz
Cátedra de Estudios de Género
Universidad de Valladolid

Es hora de ecofeminismo para que otro mundo sea posible, un mundo que no esté ba-
sado en la explotación y la opresión. Esta sociedad del futuro se vislumbra ya en la lucha
contra todas las denominaciones, las antiguas y las nuevas, las de los antiguos patriarca-
dos de coerción y las del patriarcado de consentimiento que impone sus mandatos en la
desmesura neoliberal. transformar el modelo androcéntrico de desarrollo, conquista y
explotación destructivos implica tanto asumir una mirada empática sobre la naturaleza
como un análisis crítico de las relaciones de poder.

AliCiA H. PUlEo

¿C
ómo imaginamos la sociedad del futuro? la literatura distópica, al pre-
sentar ese «lugar malo por venir», ofrece puntos de reflexión sobre ame-
nazas y creencias que cada autor o autora percibe y expresa del mundo
en crisis en el que vive.
Partiendo de las claves conceptuales que ofrece el ecofeminismo crítico soste-
nido por Alicia H. Puleo (2011), y tomando como base el análisis comparativo de
cuatro novelas distópicas recientes, exploraré coincidencias y diferencias aprecia-
bles entre los mundos futuros concebidos por autoras y autores, buscando desvelar
si se vislumbran las habituales posiciones hegemónicas de androcentrismo, antro-
pocentrismo y especismo que conforman la base de una ideología patriarcal y ne-
oliberal, o, si por el contrario, se advierten enfoques críticos que manifiestan una
ética ecológica, animalista, igualitaria e inclusiva, que integra la justicia social y de
género.
El ecofeminismo crítico de herencia ilustrada formulado por Alicia H. Puleo
demuestra que la teoría y la praxis analítica feminista pueden contribuir central-
mente a configurar una «crítica ecológica de la igualdad». Pone en conexión la pro-
bada capacidad adaptativa del patriarcado con las temáticas y conceptualizaciones
integradas en el debate sobre los límites del ecosistema en relación al modelo eco-
172 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

nómico de la globalización neoliberal que oprime y explota a la naturaleza y a seres


connotados por su pertenencia o cercanía a ella, a la vez que conlleva un análisis
crítico de las relaciones de poder entre los géneros.
Para una revisión crítica ecofeminista de la percepción de la naturaleza externa
y de la relación con ella que muestran las distopías literarias que voy a examinar
aquí, partiré de una interrogante germinal que coloca nuestra relación con la na-
turaleza en el núcleo del debate «sobre nuestro porvenir como especie, sobre nues-
tras relaciones con el medio ambiente, con los animales, con nuestros cuerpos y
con nosotros mismos como organismos vivos con necesidades y límites de los que
no somos totalmente conscientes» (Puleo, 2011: 88). las interpelaciones que plan-
tea implican la búsqueda de un compromiso ecológico adoptado desde una dimen-
sión ética que garantice derechos y justicia sin discriminaciones de género, de clase,
o de especie, entre otras, y superando la desigualdad norte-sur.
A los mundos posibles, ficticios, que proyectan sociedades indeseables les deno-
minamos distopías, anti-utopías o utopías en negativo, etimológicamente «lugar malo
por venir». Frente al sueño de perfección social que representan las utopías, las dis-
topías literarias se manifiestan como una «literatura política» que revela la pérdida
de la fe en el progreso humano y en el uso de la ciencia (lópez Keller, 1991). El gé-
nero distópico, ciencia ficción con características propias, encuentra un desarrollo
especial en literatura, cine y cómic en el siglo xx, lo que demuestra su conexión con
la cultura de masas (Galdón, 2011) y, por tanto, refleja preguntas y temores del ima-
ginario social. Estas sociedades futuras llaman la atención sobre aspectos negativos
contemporáneos percibidos como amenazas, augurando pérdidas irreversibles o in-
voluciones en valores, principios éticos, derechos o formas de vida para una huma-
nidad y un planeta en riesgo. Como se señala desde la ecocrítica,

... la distopía novelada del siglo xx es la afirmación de un mundo en crisis: gobierno to-
talitario global (o desgobierno), anarquía institucional, corrupción política y adminis-
trativa, individualismo, segregación, neutralización de la subjetividad y la alteridad,
contaminación ambiental, sociedad de control, tecnificación y desarrollo a gran escala
de tecnología y ciencia al servicio de la economía y no del ser humano, represión y limi-
tación de las libertades individuales y societarias, globalización, dominio absoluto de los
mass media, incomunicación, urbanocentrismo, elites invisibles e impalpables, fragmen-
tación social política y cultural, mercenarismo, agotamiento de los bienes naturales (agua,
combustible, tierras de cultivo), pérdida de la cultura letrada a causa de la implantación
del soporte multimedial, tribalización y fanatismo, abolición de la democracia, manipu-
lación genética del hombre, entre otras. (Araya Grandón, 2010: 32)

Esta enumeración de marcas distópicas «olvida» un componente estructurador


transversal: un sistema patriarcal extraordinariamente longevo y metaestable que
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 173

se adapta y refuerza tanto en lo material como en lo simbólico (Millet, 1970; Amo-


rós, 1997), en sus versiones de consentimiento y de coerción (Puleo, 1995, 2011).
En las líneas que siguen, voy a realizar, desde la perspectiva ecofeminista crítica,
un análisis de cuatro novelas distópicas actuales. la posibilidad de una isla (2005),
de Michel Houellebecq, se inserta en una tradición de ciencia ficción que desarrolla
la aspiración humana a la inmortalidad, materializada en este caso mediante una
clonación humana sucesiva hasta lograr alumbrar una nueva especie neohumana
de «máquinas pensantes». El mundo de yarek (1994), de Elia Barceló, plantea los
límites entre animales y humanos y el derecho de dominar a la naturaleza no hu-
mana en nombre de la ciencia. lágrimas en la lluvia (2011), de rosa Montero,
apunta un futuro de degradación medioambiental y acrecentamiento de las desi-
gualdades sociales en una sociedad plural e inclusiva en la que conviven seres hu-
manos, replicantes y otros seres sintientes.1 Por último, Cenital (2012), de Emilio
Bueso, ofrece las consecuencias ecológicas y sociales del cumplimiento de la teoría
del cenit del petróleo y dibuja una apuesta por la vuelta a lo local, materializada en
una ecoaldea selectiva y armada.
Me parece de interés explorar las reelaboraciones diferenciales sobre la oposi-
ción naturaleza/Cultura que presentan estas ficciones distópicas, indagación a que
convoca el enfoque ecofeminista en el orden de lo general: «se trata de preguntar-
nos si nuestra mirada sobre la naturaleza tiene género. ¿Existen conexiones entre
la instrumentalización extrema de la naturaleza y la bipolarización de las identida-
des de sexo-género?» (Puleo, 2011: 18). la bipolarización jerarquizada y aplicada
a los géneros, de largo recorrido en el imaginario patriarcal a través de discursos fi-
losóficos, religiosos, económicos, culturales y artísticos, ha asentado en el pensa-
miento occidental hegemónico el dualismo Varón/Mujer como correlato de
Cultura/naturaleza, correspondiendo al genérico Mujer ser la expresión de la na-
turaleza por cuanto su cuerpo ha sido explicado desde el determinismo biológico
como dominado por procesos metabólicos que no requieren actividad consciente
(Puleo, 1992, 2000). la premisa de la superioridad de la Cultura (consciencia, con-
trol) sobre la naturaleza (inconsciencia, descontrol) proporciona una cobertura de
legitimidad al dominio patriarcal. las mujeres aparecen en el relato patriarcal como
más cercanas a la naturaleza, por su emotividad e inconsciencia, por la animalidad
implícita (en base a su sexualidad o a su potencial reproductor, lo que simone de
Beauvoir denominó «destino biológico»), o bien como figura mediadora, que suele
mostrarse de dos formas: mediando hacia el bien, interpretando su cercanía a lo
natural como esperanza de salida de un mundo en desplome, o hacia el mal, dada
su «naturaleza» sexual, seductora y perversa (Puleo, 1992).

1
El adjetivo «sintiente» es utilizado actualmente en la Filosofía Moral para referirse a la capacidad
de sufrir de los animales no humanos y reclamar consideración moral hacia ellos.
174 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

las anticipaciones sugeridas en la novela de Michel Houellebecq, las partículas


elementales (1998), respecto a una sociedad futura de neo-humanos tendrán su
plasmación en su novela distópica, la posibilidad de una isla.2 Ambientada en gran
parte en un futuro, tras cambios planetarios determinantes, presenta el mundo bajo
el dominio de unos seres más evolucionados, neohumanos que residen en colmenas
tecnológicas, en tanto «fuera», en la superficie terrestre, vagabundean grupos hu-
manos «salvajes» entre cavernas y carreteras devastadas. Emerge una visión de la
naturaleza desértica o, en su versión urbana, con los residuos de la civilización oxi-
dados en las cunetas, el «anti-paisaje», «la acuarela urbana devastada como repre-
sentación de la distopía, el paisaje que no quisiéramos ver nunca» (Araya Grandón,
2010: 40).
la reducción estereotípica del varón a ser racional encuentra su cumbre en los
protagonistas neo-humanos de la posibilidad; una vigésima edición clónica del daniel
originario asegura ser la expresión perfeccionada de un linaje de «máquinas pensan-
tes»,3 en una versión de la perfectibilidad humana ligada al dominio y control tecno-
lógico sobre la naturaleza. Por eso, los neohumanos están despojados de servidumbres
ligadas a la corporalidad, a lo «natural», como alimentarse, reproducirse, incluso morir.
Un daniel clónico salva las aportaciones tecnocientíficas, destacando «lo mejor que
había tenido la humanidad: su ingenio tecnológico» (Houellebecq, 2005: 412).
En El mundo de yarek,4 Elia Barceló escenifica la tendencia explotadora hacia
la naturaleza de una humanidad que se expande a otros planetas. El científico
yarek, que catalogó como colonizable al paradisíaco planeta Viento, habitado por
buitres y otras especies animales, al no apreciar «vida inteligente», cuando los bui-
tres se suicidaron en masa fue condenado a veinte años de exilio en un planeta
yermo. Este arranque desvela la aspiración humana a disponer de una naturaleza
paradisíaca. Aunque parece que el planeta del exilio carece de vida natural, una vez
pasan los meses, renace: arbolillos florecidos, pajarillos, praderas... Además, yarek
encuentra una bella y pacífica especie humanoide. Piensa en recuperar el estatus
perdido, informando del vergel, considerando las posibilidades de aprovechamiento
colonial del planeta, que considera suyo (fruto de la acrítica perspectiva antropo-
céntrica). sin embargo, más adelante, la convivencia y el afecto con una humanoide
(o las comodidades domésticas en su nuevo reino patriarcal) y la hija en común, le
harán cuestionarse la explotación humana de este ecosistema.5 imagina este nuevo

2
En adelante, la posibilidad.
3
«la conciencia de un determinismo integral era sin duda lo que más claramente nos diferenciaba
de nuestros antepasados humanos. Como ellos, no éramos sino máquinas pensantes; pero a diferencia
de ellos, teníamos conciencia de ser tan solo máquinas» (Houellebecq, 2005: 425).
4
En adelante, El mundo.
5
«imaginó por un instante que sus informes llegaban a hacerse conocidos y alguien decidía que
ianus era accesible a la colonización humana. El pensamiento le dio náuseas. los hermosos iloi lavados,
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 175

mundo convertido en un lugar de ocio para millonarios que invadirían los bosques
y lagos, dominando a la especie humanoide como criaturas subalternas reducidas a
objetos de placer, creando reservas para las otras especies... Esa visión le produce
una gran amargura. En veinte años, cuando regresasen a por él, sería catalogado
como «planeta colonizable» (Barceló, 1994: 98). y cree que solo él puede hacer algo
por detenerlo, ahora. «Ahora que aún era el dueño absoluto de su mundo» (Barceló,
1994: 98).
rosa Montero muestra en lágrimas en la lluvia6 su preocupación por la justicia
medioambiental, denunciando en su narrativa futurista que las consecuencias de la
crisis ecológica las sufren acusadamente los grupos más desfavorecidos (Prádanos,
2012). lágrimas, que se sitúa en el Madrid del 2109, escenifica la degradación am-
biental, apuntando la responsabilidad humana, especialmente de los gobiernos, tras
un siglo xxi que sufrió fenómenos planetarios como el calentamiento global, sus
derivaciones en cambios climáticos extremos, deshielos polares e inundaciones
junto a desórdenes, conflictos y migraciones económicas y ecológicas, todo conca-
tenado.7 situación que ha empujado a una humanidad que convive con otros seres
(tecnohumanos, replicantes o reps, y los «otros», alienígenas o «bichos»), a buscar
planetas habitables y a producir plataformas siderales. En la tierra, el sistema neo-
liberal ha agrandado las desigualdades sociales, continuando la explotación ilimi-
tada de la naturaleza. Elementos básicos para la supervivencia como el aire y el
agua se han privatizado. la tarjeta para acceder al agua purificada se compra en el
supermercado. las zonas de aire purificado son un recurso al alcance solo de grupos
privilegiados, mientras en las «zonas de Aire Cero», derredores urbanos «hiper-
contaminados y marginales», habitan los excluidos sociales. Esta privatización su-
cedió durante el siglo xxi: «diversos países empezaron a implantar el cobro del aire
y los ciudadanos con menos recursos se vieron obligados a emigrar en masa a las
zonas más contaminadas» (Montero, 2011: 128). reaccionando demasiado tarde,
el gobierno por fin ha entendido la relación entre el consumo masivo de carne a
partir de las explotaciones industriales de animales y la emisión de Co2, y lo de-
sincentiva tímidamente, «obligando a sacar una carísima licencia para comer carne»
(Montero, 2011: 69). las compañías petrolíferas se sirven de operaciones publici-
tarias para ofrecer «soluciones» a problemas que han generado ellas mismas, finan-

perfumados y bien vestidos, se convertirían en animales de lujo, en muñecos vivientes para ricos ciu-
dadanos ociosos, con la ventaja, además, de que su corta vida les haría enormemente deseables. ni
los más aburridos de sus conciudadanos podrían cansarse de un nuevo juguete que dura apenas unos
meses» (Barceló, 1994: 97).
6
En adelante, lágrimas.
7
«Aunque el calentamiento global comenzó a deshacer los casquetes polares ya en el siglo xx y el
nivel del mar había ido subiendo de forma progresiva durante varias décadas, lo cierto es que sus de-
vastadores efectos sociales parecieron estallar súbitamente en torno a 2040» (Montero, 2011: 226).
176 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

ciando espacios de oxigenación, como los parques-pulmones, compuestos de ár-


boles artificiales (Montero, 2011: 73). dada la extensión de la contaminación am-
biental, surgen «inmigrantes ambientales» (Prádanos, 2012: 82), los «polillas», que
entran ilegalmente en las zonas de aire purificado por miedo a las consecuencias
del aire tóxico para la salud (Montero, 2011: 209).
En Cenital, que Emilio Bueso ambienta en 2014, ya ha sucedido el desplome
energético, tras la crisis del capitalismo neoliberal agravada por el agotamiento de
los combustibles fósiles. la novela muestra una ecoaldea amurallada, fundada por
destral, joven visionario que anticipó la crisis y se preparó para sobrevivir, liderando
a un grupo de personas marginadas por el sistema a quienes reclutó por internet.
ya no existen Estados de derecho, ni Administraciones, infraestructuras, ciudades,
gobiernos, hospitales... solo pequeñas comunidades autosuficientes, bandas de sal-
teadores que esclavizan a quienes atrapan (especialmente a mujeres, estigmatizadas
por el imaginario patriarcal como seres débiles) e individuos solitarios armados que
sobreviven entre ruinas, mediante un trueque rudimentario.
Abunda la descripción del colapso energético, sus causas y consecuencias, y se
apunta la vuelta a una economía real basada en la reducción. respecto a las causas,
el título de la novela anuncia el posicionamiento: la teoría del cenit del petróleo.
Encabezan los capítulos una selección ecléctica de citas que corroboran esta teoría
desde distintas voces (todas masculinas) y enfoques, convergiendo en sobreseman-
tizar la sensación de catástrofe anunciada. Así, se suceden afirmaciones sobre el de-
sabastecimiento de alimentos y agua, causantes de hambre y sed en dimensiones
planetarias, además del apagón energético; el problema de superpoblación mundial;
el año 2008 como el momento en que tanto el mercado como la «Madre natura-
leza» señalaron la imposibilidad del crecimiento ilimitado; la reclusión de la pobla-
ción mundial en «oasis» agrícolas, dejando desiertas las metrópolis; la lucha por la
supervivencia y el escenario apocalíptico resultante: guerras, violencia, desabaste-
cimiento y pobreza... tal acumulación descriptiva se intensifica narrativamente, de
forma explícita, mediante las «soflamas» o entradas en el blog, del personaje fun-
dador, destral, y de forma implícita, a través de las historias vitales de los escasos
personajes individualizados.
En cuanto a las relaciones con la naturaleza animal no humana, en la posibili-
dad, no hay visibilidad animal salvo en el perro Fox, verdadera compañía del soli-
tario daniel y los danieles clónicos, un perro compañero que en cada paso clónico
experimenta una muerte a manos humanas. En realidad, el perro Fox, que simboliza
para daniel «el amor incondicional», entró en su vida a través de una de sus parejas,
isabelle, quien lo recogió de una cuneta. tampoco hay visibilidad animal en Cenital,
salvo esporádicas referencias a los animales como fuente de alimentación humana
o como objeto de caza. Ambas obras revelan un antropocentrismo fuerte, frente a
las de Elia Barceló y rosa Montero, que reflejan un antropocentrismo moderado
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 177

que tiene en cuenta el sufrimiento animal. Además, las de Barceló y Montero re-
crean sociedades futuras en que se han extendido derechos a seres no humanos; en
El mundo a otras especies inteligentes, en lágrimas a «seres sintientes»:

Ante la necesidad de acuñar un término que definiera a los nuevos compañeros del Uni-
verso y nos identificara con ellos, se aceptó la expresión seres sintientes, proveniente de
la tradición budista. los sintientes […] conforman un nuevo escalón en la taxonomía
de los seres vivos. si el ser humano pertenecía hasta ahora al reino Animalia, al Phylum
Chordata, a la clase Mammalia, al orden Primates, a la Familia Hominidae, al género
Homo y a la especie Homo sapiens, a partir de los Acuerdos se ha añadido un nuevo
rango, la línea sintiente, situada entre la clase y el orden, porque, curiosamente, todos
los extraterrestres parecen ser mamíferos y poseer pelo de una manera u otra. (Montero,
2011: 55)

En lágrimas aparecen otros dos animales iconos en la alerta ecológica y anima-


lista: los cerdos, símbolos de la cruel explotación y muerte de los animales por la
industria humana, y que se referencia a partir del avance en la reglamentación para
sacrificarlos con métodos indoloros, y de la reducción del número de mataderos
autorizados, debido, en parte, a la «sensibilidad animalista» (Montero, 2011: 68-
69). y los osos polares, que personifican los peligros ecológicos extremos del cam-
bio climático (también se mencionan, ya extintos, en El mundo). Esta distopía de
rosa Montero relata la desaparición agónica del último oso polar, una osa a la que
no se rescató a pesar de la denuncia animalista porque el gobierno prefirió financiar
una guerra. su muerte fue televisada en directo, y de ella se hacen copias clónicas
que se exponen en el Pabellón del oso del Madrid del siglo xxii.
la devaluación de la naturaleza instalada en buena parte del discurso cientifista
de los últimos siglos se transfiere a los seres previamente connotados por su cercanía
a lo natural o heterodesignados como tales por los imaginarios imperantes: las mu-
jeres y los animales, principalmente, de manera transversal, y también, en el devenir
histórico, determinados pueblos y razas (Puleo, 2011). Como muestra de esta trans-
ferencia devaluativa, se puede observar que el personaje houellebecquiano de da-
niel siente nostalgia de la domesticidad animal de las mujeres,8 una fantasía
patriarcal que se materializa para yarek en El mundo. El proceso de animalización
de seres humanos como estrategia de degradación y dominación es más frecuente
en el caso de las mujeres, a quienes se percibe como animales por su presunta se-
xualidad desenfrenada y, como los animales, son reducidas a «carne». Esa sexuali-
dad inmanente les hace ser presentadas como «hembras», seres ahistóricos de
destino unidimensional ligado a la sexualidad y a la reproducción, según la norma-

8
«Puede que en una época anterior las mujeres se encontrasen en una situación comparable: se-
mejante a la de un animal doméstico» (Houellebecq, 2005: 11).
178 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

tivización heterosexual patriarcal. y en base a esa cercanía, cuando no identifica-


ción, son mediadoras excepcionales para el retorno del «hombre» civilizado a la
naturaleza. Un ejemplo narrativo lo ofrece El mundo, que introduce algunos dile-
mas de ética ecológica y animalista: ¿el respeto a la vida, integridad, y autonomía
de las especies debe determinarse por su capacidad de generar cultura o de comu-
nicarse? ¿y las de sentir, sufrir, cuidarse...? la profesión de yarek, científico xenó-
logo, invita a cuestionar la supremacía humana que se edifica en torno al derecho
a dominar vidas animales y que establece las líneas rojas de respeto a la vida autó-
noma y con derechos en la «vida inteligente».9 Un prejuicio antropocéntrico que
resurge al «descubrir» a los iloi,10 a los que yarek considera animales aunque queda
subyugado por su belleza. interpreta los encuentros sexuales de los iloi como una
«exigencia reproductora» animal (Barceló, 1994: 63), pero despiertan su deseo,
porque, cómo diferenciar (desde el metarrelato patriarcal) a una humanoide de una
humana en una nueva visión de las idénticas, las cuales, de acuerdo a la conceptua-
lización de «idénticas» en la obra de Celia Amorós, en tanto subordinadas, no al-
canzan la individualización (Amorós, 1997: 87-110):

Viendo a las iloi, con sus cabellos de cobre y sus largos cuerpos blancos que ningún sol
parecía ser capaz de broncear, todas las mujeres de su vida se confundían en una sola,
una única forma femenina sin nombre y sin rostro que ponía un ahogo en su pecho»
[…] (y recuerda) «todas las veces en que un cuerpo de mujer le había hecho feliz» (Bar-
celó, 1994: 63-64)

reducidas las mujeres (humanas) a su dimensión de cuerpo, indiferenciadas, se


facilita la identificación con las «hembras» iloi, de morfología humana y especial
adscripción al canon de belleza occidental. Entre el asco y el deseo (el atemporal
imaginario misógino), comienza a considerar la posibilidad de un contacto sexual
con una iloi; asoma su autopercepción de superioridad masculina, tiene claro que
él vencería en la competición verbal de los machos. sabe que ese aprovechamiento
sexual sería condenado socialmente y duda sobre si es objeto de una maquinación
(evidenciando una doble moral, le preocupa más que el hecho trascienda a la opi-
nión pública que el hecho en sí). Pero vence el «instinto», esa creencia que propor-

9
«Vida animal. Vida inteligente. ¿Con qué criterios? ¿Con qué derechos podía decidirse? se había
dado cuenta demasiado tarde» (Barceló, 1994: 10).
10
yarek denomina iloi a la especie humanoide, «en un vago homenaje a un oscuro escritor del
siglo xix» (Barceló, 1994: 54), tributo a la obra futurista de H. G. Wells, la máquina del tiempo
(1895). interpreta que carecen de inteligencia («“son cretinos totales», pensó yarek», p. 57), aunque
destacan por su capacidad de cuidarse entre sí y cuidar a otros seres. Es evidente el sesgo conceptual
de yarek en lo que entiende por «inteligencia», frente a otras dimensiones de la inteligencia (emocio-
nal, social...), despreciando la interdependencia y cuidado mutuo de los iloi.
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 179

ciona coartada a los agresores para eludir el consentimiento de la destinataria y ex-


culparse, según la ideología patriarcal. yarek se deja dominar fácilmente por el
deseo y por la impunidad... En cuanto al derecho a decidir de la hembra iloi, ni se
lo plantea, es «suya por derecho».11 tras el asalto sexual volverá la espalda al grupo
iloi, aislándose en su refugio tecnológico.
Con la llegada del otoño, el buen tiempo y la explosión natural desaparecen,
pero ahora percibe la biodiversidad que oculta el planeta. los iloi se han ido, apenas
quedan supervivientes, entre ellos, la hembra iloi que conoció, embarazada y casi
muerta de hambre y frío, pero yarek no la socorre. se da a sí mismo razones «cien-
tíficas» para abandonarla: «la no interferencia en el equilibrio natural de las espe-
cies era una de las máximas fundamentales de todo trabajo de campo» (Barceló,
1994: 78). Esta ausencia de compasión y sentimiento empático hacia el objeto de
estudio es un nuevo rasgo de masculinidad con que se construye el arquetipo del
investigador, superior en esa capacidad de objetividad, control y autocontrol a la
emotividad presupuesta en las mujeres (Fox Keller, 1991).
Pero la joven iloi se ha recobrado y le sigue a distancia, así que considera las ven-
tajas de conservarla a su lado; necesita compañía, y ¿quién mejor «podría servirle»?
le «permite» entrar al refugio; la hembra humanoide (a la que llama Jara) ingresa
en el ámbito doméstico. Bella, joven, fértil, callada, obediente, sumisa. ¡El ideal (pa-
triarcal)!12 surge cierto apego hacia el vástago en camino, que quiere modelar a su
semejanza, consciente de la importancia de la socialización diferencial primaria.13
Finalmente nace una niña. Proyecta una interpretación mítica de su unión con la
joven iloi, una versión proveniente de la mitología (patriarcal), reservándose el papel
de dios (aunque sea un dios caído).14 En su otra paternidad, nunca sintió un vínculo
con su hijo, del que obtuvo su custodia tras un largo litigio con su exesposa. En cam-
bio, esta nueva criatura le llena de dicha. «la llamaría nova y sería su hija. solo

11
«Echó atrás la cabeza y gritó: un alarido largo, profundo, poderoso, casi un rugido de fiera. los
machos agacharon la cabeza y se alejaron sin contestarle. En la oscuridad, yarek dio los pasos finales
hacia la hembra que sería suya por derecho, apretó los brazos en torno a su cuerpo, cerró los ojos, y
el mínimo rastro de mente civilizada que aún parpadeaba débilmente en su consciencia se apagó como
una luz» (Barceló, 1994: 68).
12
«yarek se acostumbró a su figura inmóvil junto a la ventana [...]. y se acostumbró a hablar con
ella sin esperar respuesta. En las noches, cada vez más oscuras y más frías, se instalaba en la cama
junto al cuerpo cálido y oloroso de Jara y le contaba su vida [...]. y ella callaba, se arrebujaba contra
él, que a veces sentía en la espalda el movimiento del cachorro que llevaba en su vientre...» (Barceló,
1994: 80).
13
«tenía grandes esperanzas en ese niño. nacido fuera del grupo, sin nadie a quien imitar más
que a él, quizá fuera posible convertirle en un ser civilizado» (Barceló, 1994: 81).
14
«En la historia jamás escrita de los iloi no debía haber existido nunca un caso igual, digno de fi-
gurar en la categoría de mito: un poderoso dios caído del cielo que se une a la elegida y engendra una
hija en ella antes de volver a su reino en las estrellas» (Barceló, 1994: 82).
180 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

suya»15 (Barceló, 1994: 84), es decir, no tendría que compartirla con una madre con
derechos. Pero la realidad de una convivencia desigual rompe el espejismo de familia
perfecta. A los llantos de la niña, yarek responde con gritos y manotazos, y ellas
(madre e hija iloi) se ovillan en una esquina, espantadas. la relación asimétrica de
género ha traspasado las fronteras especistas, la violencia de género también.
yarek vive la felicidad doméstica, si no fuera por su condición de ser racional,
que se interpone constantemente...16 Porque los iloi eran animales, sí, pero en el sen-
tido en que lo pueden ser los pueblos naturales, primitivos, como deben ser los seres
angelicales en el Paraíso (Barceló, 1994: 97). Entonces se da cuenta; si son animales,
están en peligro. Muestra repulsa porque ahora tiene un vínculo con ellos, a través
de sus «hembras» (su hija nova y su compañera Jara). yarek elige una vida pre-ci-
vilizada en compañía del grupo de humanoides, decisión en la que resulta funda-
mental el papel mediador con la naturaleza otorgado a las mujeres de ese grupo
(«hembras» iloi, metáforas del rol social predeterminado genéricamente, al repre-
sentar la sexualidad, la maternidad, la compañía domesticada, sumisa y callada).
Aún subsiste su identificación con la civilización, que sigue considerando supe-
rior: mantiene el estatus del dios (científico). Busca una salida y la encuentra. se
trata de «construir la civilización iloi… un trabajo de demiurgo» (Barceló, 1994:
100), que bosqueja en su delirio mesiánico y proteccionista: «En toda la historia de
la humanidad era la primera vez que un hombre, un solo hombre, fuera del mito y
la literatura, iba a construir un mundo. El mundo de yarek» (Barceló, 1994: 100).
El mundo del científico que mantiene el poder sobre la naturaleza, tanto para ex-
plotarla como para preservarla.
Cambia el escenario narrativo. sobre una pantalla, las juezas y jueces integrantes
del tribunal supremo ven la realidad tecnoinducida del mundo virtual de yarek.17

15
la elección del nombre (nova), remite a un clásico de la ciencia ficción distópica, El planeta de
los simios (1963), novela del escritor francés Pierre Boulle llevada al cine con éxito en varias ocasiones.
desde una lectura crítica animalista deja entrever la explotación y violencia que conlleva el especismo,
por la vía de transferir a los simios comportamientos usuales de los humanos hacia los animales: vio-
lencia, maltrato, encierro, explotación, o negación a los otros de capacidades consideradas exclusivas
de su especie. inspirada en ella, la película El origen de los simios (rupert Wyatt, 2011, EE UU) revela
de manera explícita el componente especista, aunque no el de género.
16
«se sentía tan feliz que casi lamentaba ser humano y que su raciocinio se interpusiera constan-
temente entre sus sensaciones y sus sentimientos» (Barceló, 1994: 91).
17
Una imagen de intertextualidad múltiple de diversos clásicos de la ciencia ficción: «En un tanque
cilíndrico de cinco metros de altura cruzado en todas direcciones por un sutil entramado de finísimos
cables casi transparentes que terminaban en cada milímetro de su piel, el cuerpo desnudo de yarek
vibraba imperceptiblemente [...] todo su mundo estaba contenido allí: la primavera paradisíaca, el
invierno interminable, los iloi, los sherta, Jara, nova. y todo su mundo, interior y exterior, era ince-
santemente recogido e interpretado por sistemas como n. o. para ser entregado a sus jueces...» (Bar-
celó, 1994: 111-112).
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 181

lo que el científico cree ser su vida en el destierro en el redescubierto planeta es,


en realidad, una existencia virtual a la que ha sido inducido por la maquinaria tec-
nológica experimental del gobierno. En ese escenario de control gubernamental
extremo, el tribunal muestra una inusual compasión.18 Es una sociedad futura en
la que se mantienen (y aún se han extendido) los derechos (Humanos). Finalmente,
se materializa la decisión del científico, que elige la convivencia con la comunidad
iloi.19 El Alto tribunal opta por una sentencia compasiva: mantenerle atado al tan-
que, para que pueda vivir esa vida virtual, tal como ha elegido, en una personal
combinatoria naturaleza/civilización.20 se desdibujan los límites entre lo real y lo
virtual, entre naturaleza y civilización, entre animales y humanos... En este territorio
fronterizo, los únicos límites que no se trastocan son las asignaciones de género.
En Cenital, la novela de Emilio Bueso, se produce un reforzamiento del lide-
razgo caudillista encarnado por un joven ingeniero que entra de becario en una
agencia estatal. Este personaje conservará durante todo el relato, pese a su proce-
dencia gubernamental, el nombre en clave «destral», que le adjudican cuando le
sitúan al mando de un satélite espía, apodo que, pese a su procedencia guberna-
mental, conservará durante todo el relato. Es una versión del hombre (joven) y la
máquina, mientras la voz narradora (el propio destral, en focalización interna, aun-
que en tercera persona) le presenta como un ángel tecnológico.21 destral es solo un
becario, pero sabe que «es un becario a los mandos del coche de su padre» (Bueso,
2012: 12). Ahora, en el «presente» del relato, el poder ha llegado y ya es el jefe de
una ecoaldea, Cenital, de la que solo emergen individualizados unos pocos habi-
tantes, referidos por su nickname («apodo» en la red). y en ella destral es el nuevo
«mesías postcenital».22 Es un «hombre fuerte»; su aspecto e indumentaria lo dibujan
como un guerrero armado alternativo, capaz de llevar a la vez el pelo en rastas y un
cinturón de herramientas. Fue él quien ideó la ecoaldea, quien la ubicó, quien re-

18
«... el derecho a la salvaguarda de la propia percepción de la realidad estaba tan anclado en sus
mentes y sus corazones después de casi quinientos años de haber sido incluido en la declaración de
derechos Humanos que todos sentían la monstruosidad de lo que estaban contemplando y la repul-
sión de participar en ello de algún modo» (Barceló, 1994: 112).
19
«yarek ha desactivado el localizador, renunciando con ello a ocupar de nuevo un puesto en
nuestra sociedad. A todos los efectos, yarek ha muerto para la Federación de Mundos Humanos»
(Barceló, 1994: 116).
20
«yarek ha elegido. Está construyendo su propio mundo. Vive en la naturaleza una parte del
año, en la civilización la otra. tiene un campo inacabable para desarrollar sus actividades profesionales,
tiene compañía, tiene todo lo que puede desear» (Barceló, 114: 118).
21
«…desde su atalaya privilegiada [...] destral se daba unos paseos alucinantes por la superficie
terrestre, aquella máquina le hacía sentirse como un ángel» (Bueso, 2012: 11).
22
«le gustaba su nueva vida social. Que le palmearan la espalda, lo recibieran todos los días como
un mesías postcenital y le sonrieran junto al río cada amanecer. sumergirse en el baño matutino sa-
biendo que le querían. Que lo necesitaban» (Bueso, 2012: 25).
182 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

clutó a sus habitantes, quien instó a defenderla con las armas y sin piedad. Es el
que selecciona a quien entra y el único con libertad para salir del recinto amura-
llado. Quiere ser «un líder tribal distinto» y se cree ungido para fundar una «nueva
humanidad» (Bueso, 2012: 270). Verónica, una de sus captoras, es la única que le
discute su condición de líder,23 a lo que responde con desprecio misógino. Al salir
triunfante tras el combate con Máximo y demás captores, como botín de guerra se
llevará a Verónica, «arrastrándola por los pelos» (Bueso, 2012: 277-278).
Esa «nueva humanidad» que aspira a construir en una «ecoaldea alternativa»
está, sin embargo, cimentada sobre la vieja división sexual del trabajo, como muestra
el repertorio de personajes individualizados en la nueva sociedad, que son, entre
otros: M1gue1, el alfarero; Marko, el herrero, sapote, el médico, teo, el religioso y
maestro, Agro, el ingeniero agrónomo; el interventor; dispo, el francotirador…
resulta paradójico que en la nueva sociedad de la ecoaldea se apueste por una edu-
cación religiosa. Así, en el reparto de tareas, destral encarga de la educación al
único religioso, a quien «confiaron el cuidado de los hijos. la educación. Que él
los modelizara, para algo era el hombre más bueno del poblado» (Bueso, 2012:
168). será quien efectivamente los modele, instalando en ellos el culto al líder pro-
pio de las dictaduras.
¿y las mujeres? Aparecen individualizadas tres: iriña, la recicladora; Crestas, la
cocinera; y Braqui, la discapacitada que sobrevive tras haber sufrido un salvaje ata-
que sexual (del que la salva destral). no aparecen en la superficie del relato más
mujeres, aunque es de suponer que en esa sociedad que en la narración aparece tan
masculinizada sí que haya más mujeres, porque la superpoblación supone un pro-
blema, aunque no tanto como para que los líderes prioricen la obtención de méto-
dos de anticoncepción. incluso se menciona la «contraconcepción» como un
producto de consumo más de la sociedad capitalista y contaminada que ya no im-
portaba,24 lo que refleja unos valores sin duda no consensuados con las mujeres.

En ConClUsión

Es posible establecer convergencias en las obras de los dos autores (Michel Houe-
llebecq y Emilio Bueso), que presentan de forma más acusada los sesgos androcén-
trico y antropocéntrico (fuerte) y rearman el imaginario patriarcal. la posibilidad

23
«tú lo que eres es un iconoclasta provocador al que las circunstancias han encumbrado» (Bueso,
2012: 229).
24
«Había muchas cosas que ya no importaban. Que habían sido dejadas atrás, como los empleos,
los relojes de pulsera, las cuentas bancarias, la publicidad, la contraconcepción, los fines de semana y
las alergias» (Bueso, 2012: 24).
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 183

ofrece una sociedad de máquinas pensantes, deshumanizada, que expresa el triunfo


de la tecnología sobre la naturaleza, consiguiendo con ello la desertificación pla-
netaria y la vuelta a las cavernas de una humanidad violenta y el afianzamiento de
un patriarcado de coerción. Cenital muestra microsociedades que no han integrado
ni la justicia social, ni la igualdad de género, ni una ética animalista, sino todo lo con-
trario: se han reinstalado en la barbarie, la insolidaridad, la explotación de animales
y humanos, invisibilizando el trabajo de reproducción social. En ambas distopías se
minimizan el protagonismo, la visibilidad, las aportaciones y las experiencias de las
mujeres y no se tienen en cuenta sus aspiraciones igualitarias.
En cambio, los relatos futuristas de las autoras (Elia Barceló, rosa Montero)
ofrecen unas sociedades menos violentas, con Estados democráticos que han ex-
tendido los derechos a seres no humanos, con soluciones compasivas hacia los ani-
males y otros seres, reconociendo la interdependencia mutua y la vulnerabilidad
propia y ajena. El potencial del cuidado que las mujeres, estadísticamente, han in-
teriorizado fruto de la socialización diferencial, se dirige no solo a sus semejantes,
como impone el mandato genérico, sino a otros seres más débiles, a menudo acom-
pañantes en el ámbito doméstico, maltratados, en peligro, o necesitados de ese cui-
dado para la supervivencia, estableciendo fisuras en los vínculos, límites y espacios
patriarcales prefijados. Alicia H. Puleo denomina «huelga de celo al patriarcado»
a este torrente afectivo y empático de muchas mujeres, que hiperrealizan el mandato
de género del cuidado al canalizarlo hacia un sujeto no previsto por el sistema pa-
triarcal: los animales no humanos (Puleo, 2011: 400).
lágrimas presenta a una protagonista no humana (replicante), cuidadosa con
los seres sintientes y con el medio natural, en una sociedad en la que los sexos pa-
recen disponer de oportunidades políticas y sociales semejantes, aunque subsista
un sexismo sutil, y aunque la heterosexualidad ya no sea la norma e incluso tengan
cabida personajes no catalogables en la clasificación binaria de los géneros, el estatus
de género continúa inamovible. Por su parte, El mundo cuestiona la dominación
sobre las especies animales, y, en cuanto a los roles, mujeres y hombres comparten
profesiones y ámbitos de poder, papeles sociales de prestigio y reconocimiento,
aunque la convivencia que establece yarek con la joven humanoide iloi y la hija en
común reproduce la jerarquía de género habitual en una familia nuclear con el
padre como proveedor económico y la madre doméstica. sin embargo, es signifi-
cativo que el doble desenlace de la novela se resuelva con una mirada compasiva.
Por un lado, en la final decisión de yarek, optando por el cuidado, por la preser-
vación paternalista de la vida natural. Por otro lado, el Gran tribunal opta por una
condena compasiva, al permitirle que pueda «vivir» en ese planeta conforme a su
elección.
En resumen, una mirada desde el ecofeminismo crítico hacia esta narrativa dis-
tópica ofrece motivos para la reflexión, para la preocupación y para la esperanza.
184 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr

Esta narrativa alerta de las consecuencias interrelacionadas de un modelo econó-


mico y político que, sostenido en la desmesura neoliberal y vertebrado en la adap-
tabilidad patriarcal, conduce a la destrucción sin retorno de la naturaleza, mientras
se mantiene intensificando las diversas formas de opresión y explotación. El análisis
revela que la denuncia ecológica distópica no siempre conlleva posiciones éticas
animalistas y feministas. sin pretensión de generalizaciones abusivas, resulta inte-
resante observar que los dos autores varones analizados se muestran ciegos a estas
preocupaciones, manifiestan indiferencia hacia la pérdida del estatus de emancipa-
ción de las mujeres, y fantasean con un rearme del patriarcado. Como el antropo-
centrismo fuerte y el patriarcado de coerción se alimentan mutuamente, estas
distopías apenas visibilizan residualmente a mujeres y animales. En cambio, las fic-
ciones distópicas de las dos autoras estudiadas, anticipan cierto resquebrajamiento
de las lógicas del dominio patriarcal. Vislumbran sociedades en las que el protago-
nismo social de mujeres y hombres tiende a ser equiparable, mediante una igualdad
formal que pone límites a un resistente patriarcado de consentimiento. En sus no-
velas emerge una preocupación afectiva y empática por el mundo natural que co-
necta indisolublemente el horizonte emancipatorio de las mujeres con la
preocupación ética por las condiciones de vida autónoma de otros seres subalternos
u oprimidos, lo que permite imaginar que otro mundo es posible.

rEFErEnCiAs BiBlioGráFiCAs

A) Fuentes literarias

BArCEló, Elia (1994): El mundo de yarek. Madrid: lengua de trapo. Edición re-
visada de 2005.
BUEso, Emilio (2012): Cenital. Madrid: salto de Página.
HoUEllEBECQ, Michel (2005): la posibilidad de una isla. Madrid: Alfaguara. tra-
ducción de Encarna Castejón. Edición original, la possibilité d’une île, librairie
Arthème Fayard, 2005.
MontEro, rosa (2011): lágrimas en la lluvia. Barcelona: Ediciones seix Barral.

B) otras obras citadas

AMorós, Celia (1997): la gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las
luchas de las mujeres, Madrid, Cátedra.
ArAyA Grandón, Juan Gabriel (2010): «distopía y devastación ecológica en 2010:
Chile en llamas (1998) de darío oses», Acta literaria (40), pp. 29-44.
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 185

Fox KEllEr, Evelyn (1991): reflexiones sobre género y ciencia, Valencia, Alfons
el Magnànim.
GAldón rodríGUEz, ángel (2011): «Aparición y desarrollo del género distópico
en la literatura inglesa. Análisis de las principales antiutopías». En Prometeica -
revista de Filosofía y Ciencias. Año ii, 4. http://www.prometeica.com.ar (con-
sultado el 20 de diciembre de 2013).
lóPEz KEllEr, Estella (1991): «distopía: otro final de la utopía», en reis, 55/91,
pp. 7-23.
MillEt, Kate (1975): Política sexual. México: Aguilar. traducción de Ana Mª Bravo
García. Edición original de 1969.
PrádAnos, luis i. (2012): «decrecimiento o barbarie: ecocrítica y capitalismo glo-
bal en la novela futurista española reciente», Ecozona, (3), pp. 71-92.
PUlEo, Alicia H. (1992): dialéctica de la sexualidad. Género y sexo en la filosofía
contemporánea. Madrid, Cátedra, Colección Feminismos.
— (1995): «Patriarcado», en AMorós, Celia (dir.) (1995): diez palabras clave sobre
mujer, Estella (navarra), Editorial Verbo divino, pp. 21-54.
— (2000): Filosofía, género y pensamiento crítico. Valladolid, Universidad de Va-
lladolid, servicio de Publicaciones.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible. Madrid, Cátedra, Colección
Feminismos.
11. Utopías feministas: las dualidades rotas
Ángela SIERRA GONZÁLEZ
Universidad de La Laguna

E
s un lugar común decir que vivimos «en una sociedad post-utópica», así que
reflexionar sobre el carácter utópico de ciertos discursos feministas parece
un contrasentido, habida cuenta de que la reflexión filosófica últimamente
más que versar sobre la utopía, lo ha hecho sobre la distopía.1 De hecho, los análisis
contemporáneos de las utopías giran sobre la idea de que, con independencia de la
bondad de sus propósitos, toda utopía desemboca en una distopía. Sin embargo,
la reaparición en las últimas décadas de paradigmas utópicos, representativos de
una ética ecológica, como instrumento de creación de un orden social que hace po-
sible un «buen vivir» y una «sociedad buena» en conexión con la naturaleza con-
fieren cierto interés a la cuestión. Particularmente, tienen interés ciertos relatos de
mujeres, como sucede con las visiones utópicas de Marge Piercy2 y de Ursula K. Le

1
La utopía del siglo XX ha sido fundamentalmente negativa. Se la ha llamado contrautopía, antiu-
topía o distopía, distintos nombres para referirse a lo mismo. La distopía es una manera figurada de
no creer en un futuro mejor. Como tales, se han de considerar El talón de hierro (1907) de Jack Lon-
don, Nosotros (1920) de Yevgeni Ivánovich Zamiatin, Un mundo feliz (1932) de Aldous Huxley, 1984
(1949) de H. G. Orwell, La naranja mecánica (1962) de Anthony Burgess, Incordie a Jack Barron
(1969) de Norman Spinrad, Congreso Futurología (1971) de Stanislav Lem o La carretera (2006) de
Cormac McCarthy, La posibilidad de una isla (2005) de Michel Houellebecq, Tokio ya no nos quiere
(2008) de Ray Loriga, entre otras. Estas ficciones tienen en común un carácter pesimista. El futuro de
la sociedad aparece marcado por el exterminio violento, el desastre ecológico, la destrucción de cul-
turas, el consumismo devastador, en definitiva, la pérdida de los valores morales.
2
Marge Piercy, nacida en Detroit (Michigan), ha publicado varias novelas representativas de pa-
radigmas utópicos, tales como Él, Ella y Ello (1991), La mujer al borde del tiempo (1976). En Él, Ella
y Ello describe un mundo arruinado y un medio ambiente dominado por extensas y destructivas me-
galópolis. Ha participado en algunas de las principales batallas progresistas de nuestro tiempo, como
la guerra contra Vietnam y el movimiento de mujeres. Más recientemente ha participado, activamente,
en la resistencia a las guerras en Irak y Afganistán libradas por Estados Unidos.
188 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Guin,3 ambas escritoras, fundamentalmente, de ciencia ficción, aunque también


han abordado otros géneros narrativos e, incluso, el ensayo. En estos relatos se con-
figura un entorno que mide a las personas, no por lo que tienen, sino por lo que
pueden hacer y por cómo se relacionan con otros seres humanos, pero también ha-
blan sobre las mujeres y el papel que juegan en las sociedades futuras.
El territorio de la ciencia ficción ha sido vinculado a la edición comercial y tal
circunstancia ha generado un injusto menosprecio de este género narrativo, pero,
en el caso de estas dos autoras, si bien, al principio, ha dificultado el reconocimiento
de sus obras, no ha impedido que se las haya identificado como espléndidos relatos
sobre la condición humana.
En sus narraciones no hay utopía sin una topía. No hay posibilidad de proyec-
tarse hacia el futuro, sin vivir, sin percibir el presente y sin tener la voluntad de su-
perarlo. De ir más lejos. De ahí que sus protagonistas ejemplifiquen la lealtad, el
amor por la vida y las cosas vivas. El retorno a la naturaleza. Hay una voluntad de
descubrir, de un modo u otro, qué es lo fundamental de la naturaleza humana. Qué
queda de ella cuando se suprimen las dualidades. Para comprender el carácter utó-
pico de estos relatos parece necesario empezar por abordar qué es la utopía y qué
significado tiene el término.

LA UTOPÍA Y SUS LÍMITES

El concepto de utopía es extremadamente complejo. Y su complejidad proviene


de un hecho, a saber: que la utopía tiene una historia cuyo recorrido es largo y si-
nuoso.4 La utopía, como género, trata a menudo las mismas cuestiones que la teoría
social más convencional, por ello los términos utopía y utopismo son históricamente
polisémicos. Todo análisis del pensamiento utópico ha de superar ineludiblemente
una dificultad, a saber: definir los límites de este. Generalmente, una definición de
utopía ha de despejar la confusión que se suscita en aquel que ha de responder a la
pregunta: ¿qué es propiamente una utopía? Podría responderse diciendo simple-
mente que la utopía es un género de literatura más próximo a la novela que a cual-
quier otro género literario. Pero la simplicidad puede dar lugar a la arbitrariedad,
dado que —si hemos de creer a Frank E. Manuel:

3
Ursula K. Le Guin, nacida en Berkeley (California) el 21 de octubre de 1929, ha publicado fun-
damentalmente obras de ciencia ficción. Sus obras más celebradas han sido La mano izquierda de la
oscuridad (1969) y Los desposeídos: una utopía ambigua (1974).
4
Para algunos, pueden calificarse de utopías las del mundo antiguo como la de Hipodamo de Mi-
leto, que Aristóteles transmite en el libro II de la Política, y la República de Platón. Tal vez también
las Leyes y la narración de la Atlántida en el Timeo y en el Critias. En sentido estricto, la utopía tiene
una fecha precisa de nacimiento, 1516, y un padre, Tomás Moro. Él descubrió la tierra de utopía, y
su libro fue el primero en denominarla y describirla como un lugar más allá de los límites de lo real.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 189

... el concepto de utopía abarca viajes extraordinarios, informes de viajeros a la luna,


descripciones de islas perdidas, constituciones ideales, consejos de príncipes sobre el
gobierno más perfecto, novelas construidas en torno a la vida de una sociedad utópica,
obras de escritores como Owen, Saint-Simon y Fourier —quienes seguramente habrían
rechazado tal epíteto de utópico que Karl Marx, en las exequias de Louis Reybaud lanzó
contra ellos—, y también obras del propio Marx, el cual trató tan enérgicamente de di-
ferenciar su visión de aquellos; y, por último, un grupo de biólogos y psicólogos moder-
nos, que serían ambivalentes respecto del término, así como a un cierto número de
filósofos de la historia contemporánea que se han aventurado a especular sobre la natu-
raleza futura del hombre.5

La conceptualización de utopía formulada por Frank E. Manuel en este párrafo


no despeja el interrogante de si el término sirve para distinguir un género literario,
político o geográfico, dado que si se toma en cuenta, únicamente, la forma como
instrumento para fijar los límites del concepto no cabría considerar propiamente
utopía sino a las narraciones, más o menos noveladas, que nos dan noticia de un
orden social arquetípico engendrador de la felicidad y la justicia. En este supuesto
se le daría un significado restrictivo al término utopía, que excluiría a muchas obras
que, tradicionalmente, se han considerado como expresiones del pensamiento utó-
pico. Delimitar, pues, las fronteras del término utopía, con precisión y coherencia,
desde el punto de vista de la forma, puede resultar imposible; de ahí la noción ex-
tensiva de Frank E. Manuel que descansa sobre el contenido del discurso, lo que
permite que expresiones formales heterogéneas puedan ser incluidas dentro de un
mismo ámbito conceptual. Por otro lado, las utopías políticas tienden a ser utopías
doctrinales y expresan una particular concepción antropológica de la «vida buena»
y pretenden, por lo general, realizarla sirviéndose de la maquinaria del Estado.6
Estos relatos utópicos han sido profusamente criticados y han generado una
creciente suspicacia hacia todos los paradigmas de Estados o comunidades ideales
basados en una idea de «bien común». ¿Qué es el «bien común»? Se le ha defi-
nido en la historia moderna como la expresión de lo que nos concierne a todos y
todos estamos concernidos por ella. Trasciende pues a la consecución de los bie-
nes particulares. La felicidad de la comunidad política se pretende que debe ser
superior de la felicidad de los individuos, particulares y concretos. Precisamente,
la capacidad de trascender lo particular y lo concreto es lo que caracteriza, según
Platón, al «bien común».7 Esta capacidad de trascender es la razón de ser de la
autoridad política. Pero es, también, la causa del recelo que han engendrado las

5
Manuel, Frank E. (1982): Utopías y pensamiento utópico. Espasa Calpe, Madrid, p. 104.
6
Los individuos han sido víctimas de grandes proyectos colectivos que han violado sus derechos
individuales apelando a futuros beneficios colectivos.
7
Platón: República, IV.
190 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

utopías y que ha permitido a toda una corriente de pensamiento liberal una ca-
racterización indiscriminada de la utopía como una amenaza para la democracia.
Es decir, presentan a la utopía como expresión de una sociedad totalitaria,8 en la
medida que está inspirada, a su juicio, en principios universalistas, que ignoran
los «particularismos» sociales. La idea de un concepto de «bien común» general
es considerada por algunos teóricos liberales como contraria al pluralismo. Desde
su punto de vista, tanto la justicia, como el reconocimiento de bienes sociales y
virtudes no es posible sin la previa posesión de una idea del bien, pero esta no
puede universalizarse,9 pues, el conjunto de la sociedad no tiene la misma idea
de bien. Un caso de invalidación del universalismo lo constituye el particularismo
culturalista10 y el comunitarismo.11 Pero no son los únicos. Para algunos sujetos
colectivos o «grupos de interés»12 de las sociedades occidentales no está ni si-
quiera claro que, en el seno de las estructuras democráticas, exista una organiza-
ción social compatible con todas y cada una de las culturas y sus pueblos, menos
aún con un paradigma social construido en torno a un concepto único de «bien
común», así que un paradigma social fundamentado en un concepto universalista
de «bien común» sería atentatorio para las libertades, a juicio de sus críticos más
representativos, como Popper,13 Hayek,14 Talmon,15 Cioran16 y Berneri,17 entre
otros. En términos generales, para estos, la libertad individual no puede conci-
liarse con la supremacía de un solo objetivo al que toda la sociedad se subordine
de forma permanente.

8
Ciertas tendencias del liberalismo vinculan el socialismo utópico con las formas del autoritarismo
y, más precisamente, con el fascismo —socialismo y fascismo son agrupados en una misma categoría.
9
La idea de bien únicamente se genera e internaliza en la convivencia comunitaria, por lo tanto
depende de los valores de la comunidad de pertenencia.
10
El particularismo multiculturalista reivindica la bandera de las minorías dentro del estado mul-
ticultural y exige para ellas reconocimientos grupales o étnicos —o, aún discriminaciones positivas-
bajo el argumento, a menudo atendible, que de no ser concedidos, esa omisión podría llevar a la de-
saparición de las culturas minoritarias, absorbidas por la hegemonía de la cultura dominante.
11
La crítica comunitarista, emblematizada por figuras como Alasdair McIntyre, Michael Sandel
o Charles Taylor, reivindica expresamente los valores del particularismo y ataca, una vez más, los fun-
damentos básicos del universalismo.
12
Existen varias definiciones relativas al concepto de «Grupos de Interés» o «Stakeholders» (tam-
bién llamados «partes interesadas»), pero todas tienen en común el tratarse de aquellas personas o
colectivos que se organizan en defensa de sus intereses propios que pueden verse afectados, de forma
directa o indirecta, por las actividades o decisiones del Estado y de las instituciones.
13
Popper, Kart (1945): The Open Society and Its Enemies, Routledge, London.
14
Hayek, Friedrich (1944): The Road to Serfdom, Routledge Press, University of Chicago, London.
15
Talmon, Jacob (1955): The Origens of Totalitarian Democracy, Secker and Warburg, London.
16
Cioran, Emil (1987): Histoire et Utopie, Gallimard, Paris.
17
Berneri, Marie Louise (1939-1948): Viaje a través de la utopía: http://kclibertaria.comyr.com/lpdf/l200.pdf
(consultado el 24 de enero de 2014).
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 191

En este contexto, habría que señalar como una característica específica de la so-
ciedad contemporánea la constante demanda por la diferencia de individuos y so-
ciedades y la invalidación de un universalismo, formal y abstracto. En todo caso,
parece, si no imposible, al menos extremadamente difícil pensar que pueda existir
un solo y único mundo que sea el mejor para todos los seres humanos, sin distin-
ción. Y me inclino por la idea de que no puede existir un solo modelo social capaz
de generar «el mejor de los mundos posibles». Si supusiéramos que hay una clase
de realidad que es la mejor para todos, sobrevendría otro problema: a saber, el de
decidir qué criterio se aplica para saber que es la mejor.
En este contexto, la cuestión fundamental es determinar si las teorías feministas,
en su dimensión teórica y como guías de acción, tienen encaje en el concepto de
utopía, aún siguiendo la concepción extensiva de utopía de Frank E. Manuel. Así,
pues, ¿dónde ubicaríamos las utopías feministas? ¿En el discurso político, en la no-
vela, en el paradigma futurista? ¿Hay algunos de estos modelos de utopía que de-
bamos excluir cuando se piensa en términos de teoría feminista? ¿Se han creado
otros modelos? La complejidad de la cuestión obliga a establecer algunas distin-
ciones para poder dilucidar en qué medida se sostiene la dimensión utópica de las
teorías de género. Pero, en particular, en qué medida novelas de ciencia ficción
como las de Marge Piercy y Ursula K. Le Guin constituyen utopías, en sentido pro-
pio. Al respecto Marge Piercy señala algunas cuestiones a tener en cuenta, Así, dice
«Básicamente, las utopías de las mujeres se preocupan mucho con superar la sole-
dad, porque, ¿qué es la utopía? La utopía es aquello que no tienes. Son las fantasías
sobre lo que nos falta y lo que le falta a la sociedad».18

ALGUNAS CARACTERÍSTICAS DE LAS UTOPÍAS

Para empezar a practicar estas distinciones, un paso previo es abordar las caracte-
rísticas de la utopía. Esta suele ser la descripción de una sociedad tan disímil de la
realidad presente que, por contraste en relación a la misma, se vuelve casi inimagi-
nable. O, mejor aún, en tanto discurso, la utopía encierra, a veces, una dimensión
crítica, subversiva y, otras, una visionaria o constructiva, que son, a menudo, inter-
dependientes. Dicho de otra manera, la utopía se convierte en la posibilidad de ver
los males presentes y poder cambiarlos de acuerdo a un paradigma que se propone
como modelo a imitar, mediante la acción social, porque entre lo verdaderamente
realizable y lo imposible existe —en principio— un margen intermedio de práctica
política. Una de las características tradicionales de los proyectos de emancipación

18
Piercy, Marge: entrevista grabada en un vídeo de O. Ressler, en Cape Cod, EE UU, con una du-
ración de 24 min., 2003, traducción: MediaLabMadrid, Centro Cultural Conde Duque, Madrid.
192 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

social contenidos en paradigmas utópicos ha sido el hecho de partir de una crítica


del presente para proponer un proyecto positivo alternativo, un mundo que es la
antítesis de la realidad inmediata.
El problema que suscita la dimensión transformadora de la utopía reside en que
el valor de esta no se encuentra en su relación con la práctica política presente, sino
en su relación con un futuro posible —que es deseable— y que puede convertirse
en realidad a través del despliegue de esta práctica. Entre otras razones porque,
como se ha señalado, el relato utópico presenta una posibilidad de sociedad alter-
nativa, aunque, también hay proyectos edénicos y paradisíacos que no guardan re-
lación alguna con la realidad y que describen un retorno a la naturaleza. Pero este
no es el caso de Ursula K. Le Guin y Marge Piercy. No describen una Arcadia que
deviene territorio mítico. Ni un paraíso. Este acento en lo paradisíaco constituye
una seña de identidad de algunas propuestas utópicas que acentúan una dimensión
fantasiosa en escenarios irreales. Son mundos futuros los que nos presentan, pero
mundos con intrigas, angustias e incertidumbres.
En general, en las utopías, el modelo social se presenta como una crítica indirecta
a la realidad social concreta. Así puede mirarse, por un lado la utopía como crítica
y por otro, en cambio, como posibilidad de proyectar mundos alternativos que se
basen en un análisis cierto de la realidad social.19 De modo que son componentes
intrínsecos de la utopía no solo la posibilidad de criticar el presente, sino también
muy especialmente la de proyectar modelos generadores de nuevas de formas de
vivir y ser. En su doble dimensión, crítica y alternativa, la utopía conlleva un po-
tencial de cambio e, incluso, una posibilidad de exploración del sentido histórico
del cambio. Así, Ursula K. Le Guin en La mano izquierda de la oscuridad explora
una sociedad neutral, una sociedad en la cual el conflicto sexual no desempeña nin-
gún papel porque los habitantes de Gueden —la sociedad que describe— son an-
dróginos, biológicamente humanos bisexuales. Alternativamente pertenecen a un
sexo o, a otro, e, incluso, son biológicamente neutros. Los cambios de sexo son cí-
clicos. No voluntarios.
Así las cosas, ¿podemos hablar de utopías feministas como portadoras de cam-
bios sociales y políticos? ¿Y las teorías feministas? La teoría filosófica de género
tiene que ver con cambios sociales. Los valores implícitos en los discursos feminis-
tas, las guías de acción que comportan orientadas a invalidar la multiplicidad de
prácticas y la red de relaciones ocultas que mantienen el sistema de dominación de
género abren, precisamente, las puertas hacia la desactivación de los mecanismos

19
Cada época ha tenido sus propios modelos de utopía que mantienen la promesa de la perfecti-
bilidad social. La relación con la realidad y con la época proviene del hecho de que la utopía es una
alternativa del poder existente. Pero, también, puede ser una alternativa al poder o una forma alter-
nativa de poder.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 193

simbólicos de la dominación, transgrediendo los límites entre lo sociológico y lo


simbólico. Y, si esto es así, el discurso feminista que tiene pretensiones de transfor-
mación de las relaciones de los individuos, entre ellos y con el Estado, no puede
estar falto de una dimensión utópica.

LAS TEORÍAS FEMINISTAS COMO DISCURSO POLÍTICO Y SU RELACIÓN CON LOS PARA-
DIGMAS UTÓPICOS

Los discursos feministas incluyen múltiples aproximaciones al problema de la au-


tonomía, la libertad y la emancipación, objetivos todos ellos definidos como políti-
cos. Los feminismos contemporáneos se caracterizarán por la reivindicación de los
derechos civiles, los derechos de reproducción, la paridad política y el papel de las
mujeres en la era de la globalización.20 El feminismo radical entiende que las rela-
ciones mujer-hombre son relaciones políticas y se diferencia en este aspecto del li-
beral-reformista. Por otro lado, se diferencian, además, en la conceptualización del
poder. Así se observa cómo el concepto «poder» se concibe dentro del movimiento
feminista radical no solo en las relaciones macro (como las que se tienen con el Es-
tado y con la clase dominante) sino también en las relaciones de pareja. Millet
misma en su obra Sexual Politics realizará un estudio sobre las vinculaciones entre
la diferencia sexual y las relaciones de poder. Para Millet el sexo tiene un cariz po-
lítico que generalmente pasa «desapercibido». Define el sexo como una categoría
social determinada por la dominación con una construcción cultural tan marcada
por la normatividad que las personas actúan en función de ese sexo y de esa política
sexual.
Todo ello muestra la diversidad de los discursos feministas. La heterogeneidad
y homogeneidad que se encuentran dentro del feminismo —y sus diferentes co-
rrientes— reflejan las diferentes perspectivas de sus discursos sobre la mujer (y
sobre sus roles en la sociedad), e, igualmente, se reflejan en el orden de las priori-
dades a establecer en una estrategia de cambio. Por ello, no se debe perder de vista
una cuestión esencial, los discursos feministas de carácter político señalan priorita-
riamente la serie de disfunciones que son observables en el estatuto de la ciudadanía

20
En 1968 comenzará la denominada «tercera ola feminista». Las obras de cabecera de este período
serán Política Sexual de Kate Millet (hay varias traducciones castellanas, la usada en el presente trabajo
es la realizada por la Editorial Cátedra, Valencia, 2010, y Dialéctica del Sexo de Sulamith Firestone
(edición de la Editorial Kairós, Barcelona, 1976). En los años sesenta comienza el feminismo deno-
minado «radical» que se centra en su análisis de las relaciones entre mujeres y hombres, dentro del
nicho político que fue la izquierda contracultural sesentaiochista. Fue una época en la que feministas
como Shulamith Firestone pidieron el aborto y la libertad de información anticonceptiva como formas
de control de sus propios cuerpos por parte de las mujeres.
194 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

actualmente, en los procedimientos de la democracia representativa y sus prácticas


en relación a las mujeres y a su condición, tanto en términos particulares como ge-
nerales. Al mismo tiempo, el feminismo radical se convierte en un movimiento se-
parado de la izquierda porque no ve en ella un reconocimiento práctico de sus
reivindicaciones y porque en su seno sigue existiendo un poder masculino.21
Por lo pronto, este paso de una visión de la política como práctica masculina, a
una reivindicación de la política como algo propio, marca el origen de un proceso que
se corresponde con una transformación en el imaginario político y una voluntad de
provocar cambios, orientada a la búsqueda de un orden alternativo al dominante que
se ubique más en el terreno de los valores y principios que en el de las estructuras.
El feminismo practica como teoría política una reflexión sobre el cambio tanto
en el terreno de las relaciones con el poder, como de los ciudadanos entre ellos. El
abordaje de la reflexión social como un orden de sentido y de determinación espa-
cio-temporal de las posibilidades de emancipación humana, se hallan presentes en
el discurso feminista, como, igualmente, se halla presente la posibilidad de significar
el mundo de otra manera. El componente utópico de las teorías feministas se ex-
plicita en dimensiones diversas del discurso, pero, especialmente, como reflexión
mediante la cual es posible tanto interpretar el pasado y el presente como promover
escenarios de cambios futuros.
¿Cuál es la utopía feminista reducida a su mínima expresión? Para el discurso
feminista comprometido con los «ideales» de la Ilustración, se puede responder se-
ñalando que, en principio, la constituye la emancipación de las mujeres22 y la ins-
tauración de una sociedad sin estereotipos de género. Resulta ilustrativo que la obra
más conocida —y alabada— de Le Guin, La Mano izquierda de la oscuridad, des-
criba una sociedad sin relaciones de dominación sexual, porque el dualismo sexual
ha dejado de existir. Han desparecido los lazos jerárquicos que estaban marcados
por el poder y la sumisión. Era una utopía de la igualdad, basada en la condición

21
Los movimientos de izquierda entendieron que los «problemas de la mujer» se solucionarían
automáticamente con el fin del sistema capitalista.
22
La Revolución francesa, al igual que otras revoluciones, marcaba como objetivo primordial la
consecución de la igualdad jurídica y de las libertades y de los derechos políticos, sin embargo, hacia
1794 se prohibió explícitamente la presencia de las mujeres en cualquier actividad política. De manera
que la consecución de la igualdad de derechos entre los sexos ha sido el histórico frente de batalla de
los discursos feministas desde sus orígenes ilustrados. Precisamente, una de las características de la
crítica feminista al discurso de la igualdad ilustrada consistió en demostrar su contenido de desigual-
dad y exclusión, en la medida en que las mujeres no estaban incluidas en los derechos básicos de ciu-
dadanía reconocidos a los hombres, tales como el derecho de ser elegibles y elegir. El frente de la
igualdad de derechos fue abierto al discurso feminista, dado que el discurso ilustrado era un discurso
universalista e incluyente pero se excluía como sujetos de pleno derecho a las mujeres. Por ello, los
argumentos feministas apelaron a la universalidad del principio de igualdad para reclamar los derechos
de ciudadanía desde una oposición moral a la dominación masculina.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 195

humana y en la racionalidad de esta. En consecuencia, no cabe la discusión sobre


quién o en qué condiciones las mujeres debían ser titulares de derechos y obliga-
ciones por el ejercicio de una libertad ordenada racionalmente al bien moral. No
hay verdadera diferencia. Cualquier distinción sería arbitraria.
Pero si en el paradigma utópico de Le Guin el dualismo de género ha desapa-
recido, no sucede lo mismo con la realidad histórica. De ahí que sea recurrente el
discurso igualitario y universalista de la emancipación, aunque este se agrieta
cuando el concepto de diferencia23 se forja en las teorías post-estructuralistas y post-
modernistas y se despeja un territorio para la inclusión de un pensamiento complejo
que comprende las diversas corrientes feministas. Por primera vez, la superación
de la desigualdad, se plantea cuestionando una idea de «igualdad» que era, para
algunas corrientes feministas, seguidora de las pautas del modelo masculino, y se
afirma otra que arraiga en la condición de la mujer.24 Estos nuevos escenarios tienen
cabida en las utopías feministas. Proponen un mundo reconciliado por y para mu-
jeres. Particularmente, esta concepción se da en el seno del feminismo cultural es-
tadounidense que integra las distintas corrientes que igualan la liberación de la
mujer con el desarrollo y la preservación de una contracultura femenina: vivir en
un mundo de mujeres para mujeres.
El utopismo feminista no consiste, en general, en una específica concepción de
una sociedad posible, sino en la posibilidad de construir nuevas formas de vivir y
de relacionarse. Es decir, de proponer sociedades diversas y divergentes en las que,
igualmente, las relaciones y los individuos puedan ser diversos y divergentes, sin
estar sometidos a los estereotipos mediante los cuales se articulan los mandatos de
género o las morales de religiones e instituciones que pretenden convertir en uni-
versales un único patrón normativo de ser y estar. Es obligado señalar que los mun-
dos paradigmáticos de Le Guin y de Marge Piercy no solo son mundos en los que
el dualismo de género desaparece, sino que, incluso, hay mundos en los que solo
viven mujeres desconocedoras del sentido de hostilidad y división que es útil para
propósitos políticos internos.
Esas nuevas formas de vivir y relacionarse se expresan en estos paradigmas utópi-
cos de Le Guin y de Marge Piercy también simbólicamente. De hecho, en ellos se

23
El concepto de diferencia ha sido reivindicado para definir una estrategia de liberación de las
mujeres arraigada en su identidad histórica y social. Es un cambio significativo dado que lo femenino
se había siempre entendido como negativo e inferior. La idea básica es señalar que diferencia no sig-
nifica desigualdad, subrayando que lo contrario de la igualdad no es la diferencia, sino la desigualdad.
Ello no significa que el feminismo de la diferencia haya reivindicado la desigualdad respecto de los
derechos, sino una igualdad que atienda a la diferencia.
24
De este proceder resulta ilustrativo el pensamiento de Alessandra Bocchetti cuando afirma que
hay que «pensarse a sí misma a través de la propia experiencia, la propia historia, no medirse con el
hombre y su razón y su historia para encontrar una medida de sí» Bocchetti, 1995: 237.
196 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

observan las huellas de las teorías feministas como ámbitos de producción simbólica
que cuestionan no solo prácticas discursivas, sino también imágenes y representacio-
nes referidas a mujeres para proponer otras nuevas. En muchos sentidos, las teorías
feministas producen representaciones que contribuyen a modificar el orden de sen-
tido de lo femenino transformando las categorías mediante las cuales este es percibido.

LAS MUJERES Y LAS UTOPÍAS

Pero antes de estos paradigmas utópicos, de estos modelos de «sociedad buena»


sin dualismos de género y sin dualismo cultura/naturaleza existieron utopías en las
que las protagonistas de los cambios eran mujeres, si bien no eran mujeres sus au-
toras. Pero las mujeres eran las protagonistas absolutas, decidían el curso de los
acontecimientos, proponían y ejecutaban actos de gobierno. En fin, sus acciones
eran utilizadas, literariamente, como instrumento crítico para hacer visible la de-
gradación de las relaciones de poder existentes en la época, como es el caso de Aris-
tófanes,25 en cuya obra la crítica de la guerra fue una de las constantes. En algunas
de esas obras, las mujeres aparecen como protagonistas de la denuncia, reivindi-
cando cambios que eran, en realidad, demandados por la sociedad de su tiempo.
Las más significativas fueron las comedias en las que se representan utopías orien-
tadas a la restauración de la paz y la reconciliación. Mediante los discursos de las
mujeres aparece escenificado el trasfondo social de la época y de las carencias del
Estado patentes después de la restauración de la democracia en al año 403 a.C.
Así pues, es antigua la asociación de las mujeres con sociedades ideales, pero,
en particular, con la paz, como expresión del gobierno de las mujeres, en la medida
en que se ha atribuido la guerra a la acción masculina. Al margen de las interpreta-
ciones que se hayan hecho sobre la guerra, lo cierto es que esta, como expresión de
la violencia, ha estado siempre asociada a la masculinidad. También es igualmente
cierto que la guerra solo podía ser desencadenada por comunidades que desde un
punto de vista político estuvieran estructuradas e institucionalizadas. Y, en estas,
las mujeres históricamente no tenían derechos plenos, como sucede en la polis26

25
Aristófanes, fue un dramaturgo griego que vivió entre el 444 y el 385 a. C. Nació en Atenas y
fue el comediógrafo más significativo de Grecia. Rivalizó en su género con Eurípides, el gran trágico.
Fue un conservador. Estuvo en contra de la sofística y del propio Sócrates. Su oposición a los cambios
se manifiesta en Las Nubes, donde Sócrates es ridiculizado, como representante radical de las nuevas
corrientes filosóficas.
26
En la polis, los ciudadanos tenía los mismos derechos, pero estaban excluidos de ellos, las mu-
jeres, los esclavos y los niños. Las mujeres no tenían derechos civiles, pero participaban en algunos
cultos religiosos. La mujer se reducía al ámbito del oikos, la casa, y el hombre tenía a su cargo los
asuntos de la polis, lo común.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 197

griega, de manera que estas circunstancias explican la exclusión de las mujeres de


la violencia armada. La imagen del guerrero y su ética de la rivalidad es ajena en la
cultura antigua a la mujer que ama y cuida, cuya abnegación es reconocida como
su máximo valor moral. Para algunos autores, como sucede con Aristófanes, el
poder de las mujeres daría lugar a un mundo sin violencia, por ello se experimen-
taría una sociedad más armónica o de mayor lealtad entre todos. El objetivo es lo-
grar la paz y la reconciliación entre todos los beligerantes, llegando a un acuerdo
común. Este objetivo no es alcanzable, según Aristófanes, por guerreros que no
aceptan argumentos que no sean los de la fuerza y la violencia, pero sí por mujeres
conocedoras del sufrimiento causado por la guerra. Las mujeres comparten el su-
frimiento más allá de las rivalidades políticas.
Pero estas utopías de la paz y de la igualdad no ha sido concebida por mujeres,
sino por un hombre particular y concreto situado en un contexto de conflicto ar-
mado y de sus consecuencias, y usadas por este como instrumento crítico a la polí-
tica bélica, por un lado, en Lísistrata27 y, por otro, en la Asamblea de las mujeres
para satirizar el desgobierno de los hombres. La relación de la comedia antigua con
la vida política, especialmente con los problemas más importantes de la ciudad, es
continua, inmediata, permanente y esta circunstancia se refleja en la obra de Aris-
tófanes. Por otra parte, es un hecho conocido que en la Antigüedad se había carac-
terizado el mundo de las mujeres como un mundo sin guerra. Aristófanes añade,
posteriormente, el hecho de que se trataría de un mundo sin dominación e iguali-
tarista, en la que todo es común. Precisamente, esta es una de las características sig-
nificativas de la Asamblea de las mujeres. En ese sentido es representativa de una
concepción utópica28 del autor. Pero lo que hace es satirizar por medio de esta obra
las reformas políticas y sociales que se debatían en su época y que, en cierto modo,
reaparecen en la República de Platón, con el que Aristófanes no tiene relación al-
guna. Se trata de una utopía inspirada en la idea de un mundo sin violencia asociado
al poder ejercido por las mujeres. La propuesta cambia la estructura de la sociedad
misma, todo es común. La comunidad transforma, de paso, la estructura del poder,
mediante una inversión de hábitos, roles e instituciones, pero también la ética.
Para Aristófanes, la intervención de las mujeres para lograr la pacificación social
es demostrativa de la irracionalidad de la guerra. Lísistrata pretende acuerdos ra-
zonables que pongan fin a la misma. Se trata de una utopía menos radical, pero sí

27
La protagonista de Lisístrata es la primera heroína femenina del teatro de Aristófanes, que imita
en la comedia a Eurípides. Este había situado mujeres como protagonistas en el centro de sus tragedias.
28
La obra trata sobre un grupo de mujeres encabezado por Praxágora, que ha decidido que las
mujeres deben convencer a los hombres para que les cedan el control de Atenas, pues ellas podrán
gobernarla mejor que como lo han hecho ellos. Las mujeres, disfrazadas de hombres, se cuelan en la
asamblea y votan la medida, convenciendo a algunos hombres para que voten por ella debido a que
es la única cosa que no han probado aún.
198 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

son radicales los cambios representados en la Asamblea de las mujeres, pues cuando
estas toman el poder,29 se da un cambio total del gobierno y de la sociedad. Pero la
trama de las dos comedias no es la expresión de un proto-feminismo por parte de
su autor, sino que expresa su convicción acerca de la degradación del gobierno de
los hombres, en esta época de caos político y social ocasionado por la guerra del
Peloponeso.30
Desde esta mirada masculina, es obvio que si la pacificación social es una de las
características del cambio que las mujeres representarían en el poder, también hay
que señalar el hecho de que todas las utopías, en cuanto sociedades ideales, suponen
una estructuración social e institucional que aleje toda posibilidad de conflicto entre
los sujetos colectivos que la configuran, de modo que la caracterización de una uto-
pía como feminista implicaría proponer un modelo distinto de «vida buena», ade-
más de la universalización de la paz. Pero hay que señalar que uno de los aspectos
más significativos de La mano izquierda de la oscuridad consiste en la afirmación
más provocadora de Le Guin: a su juicio, un mundo en el que no existiera la dua-
lidad implícita en las divisiones de género no tendría una historia de guerra. Les
faltaría el sentido del nosotros contra ellos, componente básico de todo proceso
bélico.

¿LA UTOPÍA FEMINISTA COMO PROCESO DE RE-CONCEPTUALIZACIÓN DEL TÉRMINO?

¿Hay utopías feministas, al margen de los paradigmas de la ciencia ficción? ¿A tra-


vés de ellas se encuentran caminos para ubicar lo que queda al margen y resignifi-
carlo? ¿Se intenta con nuevos paradigmas de convivencia reconstruir lo social para
habitarlo? ¿Se vuelve a significar la utopía? ¿El aspecto temporal y unitario que
configuran las utopías tradicionales que guardan una estrecha relación con los sis-
temas de dominación históricos se encuentran presentes en paradigmas feministas

29
Aparentemente, la posición de Aristófanes se asemeja —salvadas las distancias— a la suposición,
sostenida por algunas feministas, de que la sociedad mejoraría solo con el acceso de las mujeres a la
esfera pública. ¿Por qué mejoraría? Porque algunas feministas atribuyen a las mujeres una superiori-
dad moral intrínseca respecto de los hombres. Pero la cuestión no es esa, sino que la ausencia de las
mujeres de la vida pública o su infrarrepresentación es paradigmática de un déficit democrático.
30
La guerra del Peloponeso (431 a 401 a. C.) fue un conflicto bélico en el que se involucraron,
por una parte, Atenas al frente de la confederación de Delos y, por otra, la Liga del Peloponeso lide-
rada por Esparta. La guerra devastó extensos territorios y destrozó ciudades enteras. Fue el fin de la
época dorada de Atenas. Aristófanes gestó gran parte de su obra en el contexto de esta guerra y trató
de poner en evidencia las consecuencias de la misma para la sociedad. De hecho, la guerra del Pelo-
poneso supuso para Atenas no solo el inicio de su decadencia como potencia hegemónica en el mar
Egeo (y, en cierto modo, en el Mediterráneo), sino también el inicio de una serie de procesos de de-
gradación en el terreno político, social y económico que el tiempo demostró irreversibles.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 199

de sociedad ideal? No es fácil responder a estas preguntas. Por ello se debe empezar,
en primer lugar, por responder a otra: ¿a qué se podría llamar utopías feministas?
Podrían llamarse «utopías feministas» a la constitución de un modelo propio y
autónomo de «vida buena» formulado por mujeres, pero no necesariamente por y
para mujeres. El carácter utópico del feminismo también abordaría una dimensión
transformadora de la realidad. Así, la ruptura de los estereotipos generaría por sí
misma un nuevo orden pero, asimismo, se cambiaría el orden por una nueva re-
conceptualización de los territorios y de los espacios de acción. Esto es precisamente
lo que caracteriza a la utopía feminista. De este modo, la dicotomía público y pri-
vado ha sido desarticulada por el discurso feminista en el último tercio del siglo
XX, mediante la invención simbólica «lo personal es político», que no se limitó a
invertir la vieja dicotomía de lo «privado es público»,31 sino que realiza una re-va-
luación de cada uno de esos territorios y su significado. Ahí reside, precisamente,
su potencial de cambio, pero, también, en la aparición de una crítica explícita al
carácter conflictivo y destructivo de ciertas formas de progreso, cuyos efectos se
manifiestan en la cotidianeidad social y en la naturaleza.
Precisamente, uno de los aspectos históricamente característicos de las utopías
consiste en trascender el topos, viajar al otro lado del entorno, cruzar el espejo de
lo dado. La ruptura de la «territorialidad» existente es una de las características del
pensamiento utópico y la teoría filosófica de género se caracteriza por cuestionar
el lugar y el no-lugar de los seres humanos. A veces la utopía ha cristalizado como
una ensoñación que se ubica en un espacio distinto, en un territorio que no existe.
De hecho, utopía (outopia) significa lugar que no existe, utopía es un no-lugar, pero
ese no-lugar puede ser también un buen lugar (eutopia). Pero la utopía no es un
problema de deslocalización, sino de transformación. Si bien se caracteriza el pen-
samiento utópico por su extraterritorialidad, desde ese ningún lugar puede mirarse
de otro modo a nuestra realidad que súbitamente parece extraña e injusta. El espa-
cio en el cual se dan en el sistema patriarcal las relaciones de género son espacios
estereotipados. Los cambios que introduce el discurso feminista configuran un lugar
que todavía es un no-lugar, pues las fronteras entre lo público y lo privado presentan
la densidad de las resistencias opuestas a los peligros de crear un nuevo orden o un
tiempo histórico que trastoque la continuidad de la dominación. ¿Por qué sigue
siendo un no-lugar? Cambiar o transformar ese lugar supone transformaciones pro-
fundas que tienen que ver con la identidad personal, elecciones sexuales, ordena-
miento de la familia, costumbres de crianza de los niños y niñas o patrones
educativos. También en las utopías feministas se dan las mismas circunstancias que

31
Lo personal no es, sin embargo, inmediatamente político: en cada circunstancia histórica es ne-
cesario encontrar las mediaciones que hagan, de lo personal, algo político.
200 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

en otras del socialismo utópico y del socialismo romántico, la sociedad que propo-
nen está aquí, si bien no ahora.

¿QUÉ CLASE DE UTOPÍA? ¿QUÉ TRADICIÓN?

Pero ante ese potencial de cambio universalmente reconocido cabe hacerse una
doble pregunta: ¿han sido los diversos discursos feministas,32 discursos políticos
transformadores, construidos desde la «tradición de los oprimidos»,33 desde las víc-
timas que padecen los efectos negativos de la modernidad y los sistemas de domi-
nación? Y, si esto es así, ¿ha habido en su seno una tendencia utópica manifiesta?
Para empezar, si se entiende el discurso político como aquel que está producido
por aparatos de instituciones especializadas relacionadas con el poder, obviamente
habría que descartarlo. Pero si, por el contrario, se le entiende como una práctica
política de carácter estratégico, es decir, definidora de propósitos, medios y anta-
gonistas, habría que pensarlo un poco más, puesto que el feminismo como discurso
político se ha articulado en torno a la oposición dialéctica en el seno del sistema
patriarcal entre los hombres (del lado de la dominación) y las mujeres (del lado de
las víctimas). Las vías de cambio no son coincidentes, en la medida en que, también,
en ciertos modelos ideales de sociedad se sigue perpetuando el yugo jurídico y dis-
cursivo del patriarcado y, por tanto, la continuidad del poder masculino. De hecho,
las utopías históricamente más significativas no tienen como finalidad proponer un
mundo de transformación del sistema de género, aunque no necesariamente tengan
la pretensión de reafirmarlo.
La orientación hacia la consecución de la emancipación de las mujeres, como
valor social, caracteriza al feminismo como discurso político, a la vez que configura
a este, como la expresión de un compromiso que se asume ante una experiencia de
dominio y de sumisión. Pero, ¿es esto suficiente para caracterizar este discurso como
utópico? ¿Se inscribiría dentro del mismo marco conceptual que define a los para-
digmas utópicos? ¿Remite a las estructuras fundamentales del imaginario social y
cultural generado por el género político-literario denominado utopías?
La reversión de esta situación de sumisión, como objetivo político, a veces in-
voluntariamente, se disfraza y se fragmenta en una pluralidad representada por as-
pectos significativos y parciales de la vida cotidiana. Los modelos de sociedad ideal

32
Dada la multiplicidad de los enfoques feministas, el discurso se puede definir como una estruc-
tura representativa de una forma de interacción a la que otorga un sentido distintivo. Tanto el discurso
hablado como el discurso escrito (texto) se considera, hoy en día, como una forma de interacción
contextualmente situada.
33
Foucault, Michael (2002): «Clase de 28 de enero de 1976», p. 68. En este texto Foucault habla
de la «tradición del oprimido» un concepto también usado por Walter Benjamin.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 201

suelen ser universales. Confieren un sentido esencial a la vida y a la acción, deter-


minando, como resultado, las posibles posiciones del individuo dentro de los ám-
bitos de co-existencia social en los que está enclavado. Pero esto no ocurre en el
discurso utópico feminista. En este, frecuentemente, se pierde la visión de conjunto
del qué y el cómo se pretende transformar. Pero en su favor hay que decir, que la
dimensión transformadora de los discursos feministas se ha llevado a cabo a través
de sucesivos descentramientos del sujeto-mujer hegemónico. Así pues, de manera
transversal y simultánea estos nuevos planteamientos cuestionan el carácter natural
y universal de la condición femenina y darán protagonismo a sujetos-mujeres hasta
entonces marginales.34 Pero, aunque ha habido un sucesivo descentramiento del
sujeto-mujer y una invalidación de hegemonías subjetivas, sin embargo, continúa
reivindicándose la emancipación de las mujeres y reinstalándose en el discurso un
significado de la dominación desde las oscuras relaciones del poder originario del
patriarcado que precede al derecho, a la ley y a la historia. Y, en las utopías femi-
nistas, también.

A MANERA DE CONCLUSIÓN

En el discurso utópico feminista, el campo de lo posible queda abierto más allá de


lo actual. Es un territorio político definido por otras maneras posibles de vivir con
el cambio de significado de los espacios y de las acciones. Maneras mediante las
que se pretende una sociedad sin conflictos de géneros identificados, todavía hoy,
con el orden de cosas dadas. Se trata de dar cuenta de cómo lo injusto y desigual es
naturalizado para encontrar la singularidad específica de una utopía que, ante la
realidad presente otorgue una solución completamente nueva al ethos individualista
y consumista, que hoy tiene en la desmovilización, el consenso y el conformismo
social sus actitudes más características. El discurso utópico feminista se bifurca,
simbólicamente, en dos direcciones: por una parte, hacia la obligada ruptura de los
esquemas normativizadores del deseo, del ser y del pensar que definen las relaciones
de poder patriarcal dominantes y, por otra, a la recuperación del sentido plural de
la existencia, acaparadas bajo muchas comunidades diversas y divergentes en las
cuales las personas lleven diversas y divergentes formas de relaciones sociales en
contraposición a la vieja concepción utópica de una única forma de vida y sentido.

34
El cambio del sujeto de emancipación define nuevos territorios del discurso feminista y enfrenta
los peligros de las hegemonías. Por ello, desde el llamado Tercer Mundo se ha criticado el paradigma
de emancipación feminista tradicional del Primer Mundo. La mujer blanca, protestante, de clase
media, de cultura occidental y heterosexual es puesta en cuestión como modelo por las mujeres negras,
lesbianas, pobres, musulmanas o de otras culturas, religiones y áreas geográficas.
202 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

En esa ruptura de esquemas se inscribe una relación humanista con el medio


ambiente, mediante una crítica radical y coherente del actual manejo social y polí-
tico de la naturaleza, pero también de la sociedad y, cómo este revela la incapacidad
del modelo civilizatorio presente para detener el deterioro ecológico del planeta y
la crisis de la conciencia occidental. Los nuevos paradigmas representados por Úr-
sula K. Le Guin y Marge Piercy practican una aproximación ética y estética a la na-
turaleza. Esta no aparece solo como naturaleza salvaje inmaculada (ecología
profunda) sino como una naturaleza que incorpora, además, la intervención hu-
mana, como expresión de un acto de conexión. La conexión con la naturaleza hace
referencia a cómo esta afecta a la percepción del yo individual e incluye la concien-
cia de uno mismo o de una misma como parte del mundo natural. El resultado de
tales circunstancias ha sido el surgimiento de una nueva sensibilidad respecto de
cómo deben limitarse las expectativas y realizaciones de la voluntad humana, pero,
también, a cómo el autoconcepto de los individuos y su imagen corporal se trans-
forma. Desde la perspectiva de la necesidad de cambios las palabras de Marge
Piercy, son representativas:

En los últimos años, con las mujeres bajo tanto ataque y esforzándose por mantener los
avances que hemos conseguido, no ha habido suficiente energía para crear utopías.
Ahora bien, cuando me enfrenté a «Él, ella y ello», no se trataba una novela de tipo «si
hubiera», no es una novela utópica, es más del tipo de «como esto siga así...35

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORÓS PUENTE, Celia (1990): Mujer; participación, cultura política y Estado, Bue-
nos Aires, Ediciones de la Flor.
ARISTÓFANES (2013): Comedias. Volumen III, Madrid, Gredos.
BOCCHETTI, Alexandra (1995): Lo que quiere una mujer: historia, política, teoría.
Escritos 1981-1995. Valencia, Cátedra.
BONDI, Liz (1996): «Ubicar las políticas de la identidad», Debate feminista, nº 14,
octubre.
DIETZ, Mary G. (1990): «El contexto es lo que cuenta. Feminismo y teorías de la
ciudadanía», Debate feminista, nº 1, marzo.
FIRESTONE, Sulamith (1976): Dialéctica del Sexo, Barcelona, Editorial Kairós.

35
Piercy, Marge: entrevista grabada en un vídeo de O. Ressler, en Cape Cod, EE UU, con una du-
ración de 24 min., 2003, traducción: MediaLabMadrid, Centro Cultural Conde Duque, Madrid.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 203

FOUCAULT, Michael (2002): «Clase de 28 de enero de 1976», en Defender la socie-


dad, México, Fondo de Cultura Económica.
GEARHART, Sally M. (1984): «Future Visions: Today’s Politics: Feminist Utopias in
Review», en Women in Search of Utopia: Mavericks and Mythmakers, New York,
Rohrlich y Hoffman Baruch.
GELB, Joyce (1992): «Feminismo y acción política», en Dalton, Russell y Kuechler,
Manfred (comps.): Los nuevos movimientos sociales, Valencia, Edicions Alfons
El Magnánim.
GUTIÉRREZ, Pepe (2007): Emma Goldman: La mujer más peligrosa del mundo
www.nodo50.org/tortuga/Emma-Goldman-la-mujer-mas
LE GUIN, Ursula K. (2010): La mano izquierda de la oscuridad, Barcelona, Mino-
tauro.
LEVINE, Cathy (s. a): «La tiranía de la tiranía», http://www.nodo50.org/mujeres-
creativas/Cathy%20Levine.htm (consultado el 15 de enero de 2014).
LUNA, Lola (s. a): De la emancipación a la insubordinación: de la igualdad a la di-
ferencia. Puede consultarse en: www.mujeresenred.net (consultado el 11 de enero
de 2014).
MANUEL, Frank E. (1982): Utopías y pensamiento utópico, Madrid, Espasa Calpe.
MIES, María y Shiva, Vandana (1997): Ecofeminismo, Teoría, Crítica y perspectivas.
Barcelona. Icaria
MILLET, Kate (2010): Política Sexual, Madrid, Ediciones Cátedra.
PIERCY, Marge (2010): Woman on the Edge of Time. New York, Balllantine Books.
PLATÓN (1988): República. Madrid, Gredos.
PULEO GARCÍA, Alicia (s. a): «En torno a la polémica Igualdad/Diferencia». Puede
consultarse en: www.mujeresenred.net (consultado el 10 de febrero de 2014).
SHIVA, Vandana (1995): Mujer, Ecología y Desarrollo. Madrid, Horas y Horas.
12. Patagonia argentina, relatos sobre naturaleza
y humanidad
Paula Gabriela NÚÑEZ
IIDyPCA (Universidad Nacional de Río Negro-CONICET)

L
os modos de habitar humanos nos enfrentan a lógicas de dominio y convi-
vencia. Como indica Val Plumwood (1996), las mismas se descubren a partir
de la dinámica de sus interacciones. En las líneas que siguen indagaré en este
complejo cruce en la Patagonia argentina un espacio que oficialmente se ha restrin-
gido al sitio de naturaleza a dominar. Alicia Puleo (2011) reconoce este sitio de
pavor con que la Modernidad presenta la naturaleza indómita, evidenciando en la
reflexión ecofeminista el área de emancipación como para indagar el espacio vin-
cular en una clave más igualitaria.
En el espacio que nos ocupa, la diversidad de la geografía y la interpretación
cambiante del paisaje, han operado como disciplinadores sociales (Núñez y Núñez,
2012; Conti y Núñez, 2012). Así, diferentes políticas públicas han invisibilizado
muchas de las prácticas que, desde otra perspectiva, pueden verse como la base de
una alternativa posible. La construcción territorial de la Patagonia argentina, atra-
vesada por valoraciones diferenciadas del paisaje, abre interrogantes sobre los fun-
damentos y la materialidad de las políticas públicas, llevando a la pregunta por la
sostenibilidad hacia la revisión de la historia del entramado de valores que se pro-
yectaron en el territorio, y en vinculación directa con sus habitantes.
La historia escrita sobre la Patagonia parece circunscribirse a una épica que vin-
cula al paisaje con la tragedia. Por el contrario, las memorias orales remiten a una
historia vivida, con sitios para afectos, alegrías y logros, que reconocen en el paisaje
un potencial de emancipación. De allí que citemos relatos y concepciones de los ha-
bitantes de ese espacio, recuperados a través de una serie de treinta encuentros,
realizados entre 2010 y 2013, con diferentes herramientas (talleres, encuestas, pre-
sentaciones de divulgación, cursos).1 Las voces marcaron un fuerte contraste, no

1
Los proyectos fueron: «Capacitación en Gestión Pública y Organizacional». Área Extensión
Universitaria. UNRN. Lugar de dictado Comallo, Río Negro. 2010. Sierra Colorada. Río Negro. 2011.
206 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

solo en cuanto a la interpretación del paisaje, sino también respecto del relato del
espacio promovido desde las esferas oficiales y los documentos públicos. El análisis
de esta diferencia, entre lo planificado y lo vivido, nos permitirá reflexionar sobre
las dinámicas de integración social y desarrollo sostenible, debatiendo prácticas y
valores productivos del espacio. Evidenciando que hay sentidos profundos que no
terminan de coordinarse, en cuanto al espacio, sus habitantes y sus capacidades.

LA TERRITORIALIZACIÓN DE PATAGONIA

La Patagonia es heredera de una marca de desigualdad que la cubre. Se incorpora


al Estado argentino en un violento proceso conocido como «La Conquista del De-
sierto» que desmanteló las formas de vida de los pobladores originarios. Esta defi-
nición, de Patagonia como desierto, ubica al territorio en el sitio de lo vacío que
necesitaría ser resuelto desde la esfera presentada como habitada, esto es, la zona
central de la Pampa Húmeda, inscribiendo a la región patagónica, en el discurso
nacional, a partir de un carácter de dependencia.
La noción de desierto constituyó este espacio como recurso. Podemos reconocer
el sesgo androcéntrico en esta mirada, en la construcción de esas personas o paisajes,
o animales o prácticas, en clave de dependencia (Puleo, 2000). A los ojos del Estado
Nacional, tierra y habitantes fueron investidos de naturaleza salvaje, necesitada de
control para el surgimiento de su potencial desarrollo, donde parte de lo nativo
debía destruirse (como los guanacos) para el establecimiento de un desarrollo ade-
cuado (la cría de ovejas). Pedro Navarro Floria (2004, 2010) encuentra, en los dis-
cursos nacionales sobre Patagonia, una línea de argumentación paternalista que
repite que el único modo de desarrollar este vacío es a partir de una intervención
del Estado que se resuelve a partir de prácticas que focalizan los tiempos e intereses
del centro del país por sobre el reconocimiento de las dinámicas locales.
La idea de la Patagonia-recurso se justifica desde la noción de Patagonia-vacía.
Es decir, sin un sector social susceptible de ser tomado como una voz legítima del
espacio, por verse sin suficiente entendimiento como para permitir el lugar de la
opinión. La territorialización de la Patagonia argentina emerge, a los ojos del Estado
nacional, constituida como naturaleza muda, ligada a la idea de recurso al servicio
de un centro que sabe y decide sobre la región. Lo sostenible se desdibuja como
tema para la localidad, dado que aquello a sostener es la Nación, que en la explo-

«Memorias de Actividades y Desarrollo de Alternativas» en el marco del programa Línea Sur-UNRN.


Mayo-octubre 2012. En las localidades de Dina Huapi, Comallo, Laguna Blanca y Pichi Leufu. «Eco-
nomía Social en la estepa rionegrina, el desafío del reconocimiento y la importancia del fortaleci-
miento». Aprobado por la Secretaría de Políticas Universitarias. 2013.
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 207

tación de la región-recurso justifica el desmantelamiento en favor de un nuevo


orden, investido de valores patrióticos.
En la Patagonia, la geografía se instituye en este híbrido de naturaleza perma-
nente, a pesar del poblamiento que se alienta desde el propio Estado. Los pobla-
dores patagónicos, limitados en derechos civiles (Iuorno y Crespo, 2008), integrados
con grandes (aunque inconstantes) marcas de racismo y xenofobia (Méndez, 2007),
aparecen con una humanidad menos completa que los humanos-varones-propieta-
rios del espacio central.
Lo nacional se tensionó desde lo natural que se buscaba establecer. El imaginario
oficial fue configurando múltiples sentidos de naturaleza en diálogo directo con la
nación que se presuponía. Así podemos considerar la naturaleza patagónica como
recurso mineral y energético (Núñez y Azcoitía, 2009), como naturaleza poblada de
ovejas (Coronato, 2010), como naturaleza intocada y a preservar en los Parques Na-
cionales (Bustillo, 1971), como naturaleza salvaje, indómita y hostil para la civiliza-
ción (Hudson, 1997), entre otras apelaciones que terminan en un argumento que
lleva a la necesidad de pensar la región como desafío a dominar, y que se repite en
los planes de desarrollo que se proyectan a lo largo del tiempo hasta la actualidad.
El conocimiento mismo sobre Patagonia se inició en un centro exógeno, que
vinculó el relato sobre la región a su propio privilegio como espacio central. La de-
pendencia se institucionalizó al establecer la figura de Territorios Nacionales para
esta región, entre otras del mapa argentino. A través de ella, se limitó la participa-
ción política de los habitantes, cercenando la posibilidad de su representación en
el Gobierno nacional, a pesar de constituir casi la mitad de la superficie nacional.

ESQUEMA DE LOS TERRITORIOS NACIONALES


ARGENTINOS
Modificado de la base
http://www.ign.gob.ar/AreaServicios/Descargas-
Gratuitas/MapaMudos

Al observar las justificaciones de esta limi-


tación de derechos, se encuentra que la propia
noción de naturaleza se modifica en directa re-
lación con la de una humanidad asumida como
muda, en directa homologación a la «natura-
leza» que habita.
208 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

LA HUMANIDAD DE LA PATAGONIA

Por lo antes dicho, puede pensarse que el concepto de humanidad en Patagonia se


constituye junto a la apropiación territorial del espacio, dado que se vincula a la va-
loración positiva por parte del Estado nacional respecto de la migración europea en
detrimento de los pobladores originarios. Sin embargo esto no fue tan claro. Los ha-
bitantes del desierto resultaron fronterizos para el Estado. Esto fue evidente cuando
se presentaron como opuestos al progreso (como los pueblos originarios), o como
intrusos (como chilenos, anarquistas u otra acepción que quite lugar al derecho sobre
la tierra). En ambos casos, los pobladores se reconocen como bárbaros, antagónicos
a la civilización,2 pero la carga peyorativa no se restringió a estos grupos.
Gustavo Vallejo y Marisa Miranda (2004) señalan que el pensamiento argentino
ha estado atravesado por una variante lamarckiana del darwinismo social. Desde
estas premisas, el ambiente aparece como determinante de las características de los
habitantes, por ello la idea de la naturaleza salvaje como imagen de la población
incorrecta no se reduce a la misma, sino que se re-proyecta en la población correcta.
La falta de racionalidad se deslizó desde el ambiente hacia los nuevos habitantes,
que aún inmigrantes con derecho a la tierra se presumen, en su mayoría, con una
humanidad incompleta, por el mero hecho de habitar en Patagonia.
La Patagonia, vista como salvaje, que torna en bárbaros a sus habitantes, para-
dójicamente, fue un área que se conquistó con una mirada moderna. Esto es, acom-
pañada de la ciencia en el proceso mismo de apropiación y con la visión de la
articulación del espacio al capitalismo internacional al que la Argentina se unió,
desde la segunda mitad del siglo XIX, como productor de materias primas.
El territorio de la Patagonia, visto como «vacío», se buscó llenar de modernidad,
y esa modernidad se leyó como una actividad que debía permitir incrementar el co-
mercio transoceánico, sobre todo con el principal socio comercial del país, que era
Gran Bretaña y que, en este espacio, se resuelve con producción ovina (Flores,
2011; Coronato, 2010). Fernando Coronato (2010) recorre el modo en que la ovi-
nización se presentó como la estrategia a la Modernidad, en los argumentos del Es-
tado argentino de fines del siglo XIX y principio del XX. El poblamiento con ovejas
no solo se planteó desde el norte de la Patagonia como una ampliación de las áreas
productivas pampeanas que fundamentaron la Conquista del Desierto. También
resultó estructural la influencia de los productores ovinos de las islas Malvinas, que

2
Esta dicotomía fue explicitada desde 1845 por el influyente pensador Domingo Sarmiento en su
texto Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga. Aspecto físico, costumbres y ámbitos
de la República Argentina, donde sostiene que por el mero hecho de vivir en el desierto la población
evoluciona en las antípodas del progreso. Los trabajos de Puleo citados, así como las reflexiones eco-
feministas y decoloniales cuya cita excede los objetivos de este trabajo, abundan en la crítica a esta
perspectiva que tan fuertemente se arraigó en este escenario latinoamericano.
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 209

fueron invitados a ampliar su producción y profundizar la articulación de la pro-


ducción de lanas con el comercio internacional dirigido por Gran Bretaña.
El autor muestra cómo, en los primeros años del siglo XX, el sesgo nacionalista
se diluye en relación a los capitales que se instalan. No solo porque se entregan
enormes latifundios a extranjeros, sino porque en esa acción se plantea la construc-
ción de la argentinidad en ese espacio. Allí, donde las prácticas de los pueblos ori-
ginarios fueron desmanteladas en nombre de la patria, la nación descansó su
iniciativa en el desarrollo de capitales mayormente británicos y alemanes, y en di-
recta vinculación comercial con Chile. La Modernidad se establece en clave racista
dirigida a los pobladores originarios del espacio, en una consideración que se desliza
hacia el poblador original como intruso, por presentarlo como «chileno».
Pero lo chileno tampoco tuvo una única acepción. El chileno caracterizado como
intruso fue el pequeño productor. Contrariamente, el capitalista inversor también
chileno se reconoció como un socio estratégico, llevando a abrir las fronteras de la
Patagonia en una promoción del comercio internacional que duró hasta la década
del 20 (Azcoitia y Núñez, 2011). La chilenidad emerge como generador de sentidos
antagónicos, donde se encuentra una apelación como argumento para signar a una
parte de la población como invasora y por ende amenazante (Núñez et al., 2012),
pero por otro lado, y a la luz de la articulación comercial que se definió, como base
del crecimiento económico de la región, según los acuerdos firmados en 1902, entre
ambos gobiernos nacionales (Méndez y Muñoz, 2013).
Lejos de las grandes urbes, imagen de la Modernidad clásica, la Patagonia ar-
gentina se desarrolló resguardando el sitio de lo moderno para las ovejas. La dis-
tinción humano / no-humano vuelve a desdibujarse en el cuidado y resguardo de
una actividad que deja a la naturaleza en la imagen del peón rural, que por su falta
de capital vio restringido su acceso a la tierra, y en la representación de la Moder-
nidad a la oveja, productora de lana para la exportación. Bajo ellos, el paisaje pre-
sentado en términos de desierto, refería recurrentemente a la necesidad, a la
ausencia, al vacío que justifica tanto la paradójica representación de los habitantes,
como la presunción de dependencia.
En la homologación con el paisaje, y el sitio de peligro, muchos pobladores que-
daron investidos de una humanidad incompleta, con acceso restringido a los derechos,
donde paradójicamente los humanos completos, esto es, los grandes productores que
obtenían los principales excedentes, acumulaban sus capitales fuera de la región, sos-
teniendo el paisaje agreste y limitando los asentamientos por la lógica de la tenencia
de la tierra.
Con el correr de los años, se replicó esta lógica diferenciada, que continúa jus-
tificando en el paisaje la distribución desigual y las asincronías en el desarrollo. Aún
permanece una dependencia que no se termina de resolver (Masera, 1998). El mo-
delo económico de la Patagonia argentina, apoyado en la ovinización para la ex-
210 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

portación, y el comercio al Pacífico, lejos de instituirse en un dinamismo de creci-


miento expansivo, encontró límites. Por un lado, la apertura del Canal de Panamá
en 1914 modificó el sitio de privilegio del sur del continente. Asimismo, tanto Chile
como Argentina cambiaron su política de aduanas e integración territorial, con una
exacerbación de un nacionalismo xenófobo desde la década del 20 (Azcoitia y
Núñez, 2011). En este contrasentido, de un espacio organizado de un modo que se
considera un atentado al nacionalismo, la Patagonia permaneció ubicada en esa
idea de naturaleza indómita, hostil y necesitada de dirección que permitió la jerar-
quización social interna.
De hecho, desde la década del 20 y sobre todo en los 30, es posible recorrer un
cambio de metáforas que puede seguirse de Chile a Argentina, donde un espacio
reconocido como unidad productiva es re-presentado y re-considerado a partir de
asumirlo dividido. En este proceso, la perspectiva de género emerge como una clave
explicativa, dado que el fundamento de la subalternidad asociado al nacionalismo,
se postuló a partir de homologar cada una de las partes a la imagen de una mujer,
explicitando la dimensión androcéntrica de la perspectiva de dominio.
Así, el sur industrial de Chile, con centro en Osorno, se desmantela en una ru-
ralización que apela a la región como «madre-nutricia» que debía alimentar al cen-
tro del desarrollo industrial del país, concentrado en la región de la ciudad capital,
Santiago. Al otro lado de la cordillera; la zona andina argentina se presenta como
una princesa frágil en la figura del Parque Nacional Nahuel Huapi, que se instala
en 1934; finalmente, la estepa, la tierra de las ovejas, la permanentemente hostil y
salvaje, se describe como esclava, tierra penetrable y descartable. En medio, los
proyectos locales de las regiones vinculadas se pierden, favoreciendo el imaginario
de una naturaleza que debe ser pensada desde otro lugar.

LA SOSTENIBILIDAD Y EL DESARROLLO EN PATAGONIA

La Patagonia, homologada a la idea de recurso, parece proyectarse a la población


en general. Todo el espacio, situado legalmente en la figura de Territorios Nacio-
nales, estuvo impedido, hasta 1958, de poder elegir a sus propios representantes,
bajo el argumento que entendía que una población pequeña no tenía suficiente ca-
pacidad para decidir sobre sí. La demografía se cruzó con una asimilación a la idea
de minoría de edad, que limitó el acceso a las urnas de esta región. La imposibilidad,
o la limitación para decidir lo mejor para sí fundamentaba a su vez el cuidado exó-
geno del Gobierno central.
Adrián Zarrilli (2008), desde su investigación en la zona norte de Argentina, en-
cuentra un proceso de explotación que podría homologarse a la ovinización des-
crita. En la explotación del tanino se desmontan dos tercios de los bosques nativos
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 211

de la región chaco-pampeana. El territorio del Chaco, igualmente incorporado


como Territorio Nacional a la Argentina, desarrolla una industria que, al igual que
la ovina, solo se plantea en término de exportación, sin mayor articulación con el
crecimiento de una economía regional vinculada a algo que no sea la acción extrac-
tiva. En Chaco, el ritmo de explotación fue muy superior a los mecanismos regene-
rativos, construyendo desierto con lo que se suponía que era avance hacia la
Modernidad.
Tanto en el sur como en el norte, la maximización de beneficios individuales,
vinculados a los sectores poblacionales a quienes se les reconocía la «racionalidad»,
generó que se sobreexplotara el propio recurso, destruyendo bosques en un caso,
desertificando la tierra por sobrepastoreo en el otro. En ambos, los beneficios de
la actividad bajaron con el correr del tiempo, reiterando la amenaza de la tierra hos-
til, de la naturaleza indómita y de los habitantes subvalorados. Es decir, retornando
circularmente al mito del desierto hostil a partir de la explotación más moderna.
Navarro Floria vincula este proceso con la consolidación del colonialismo in-
terno, denominando como «nacionalización fallida» a la continuidad de los pro-
blemas regionales ya identificados y diagnosticados a principios del siglo XX. Es
interesante que el autor destaque la presencia del Estado nacional desde la década
del ‘30, cuando a partir de la coyuntura crítica de principios de la misma comienza
a practicar formas de intervención directa y activa en la vida económica y social en
general, resignificando la presencia en los territorios nacionales. La emblemática
constitución de los Parques Nacionales, como espacios de naturaleza «intocada»
(Diegues, 2005), que operaron estratégicamente como consolidación de la frontera
nacional (Bessera, 2011), permite reconocer la imagen con que este espacio, per-
manentemente incompleto, se describe en argumentaciones que justifican el pater-
nalismo una y otra vez desde referencias demográficas a falta de política pública,
en parte por la arbitrariedad en la distribución de la tierra que fomentó la concen-
tración de la misma.
El Estado centralizado y planificador que se reconoce como resultado de los go-
biernos del ’30 profundiza este carácter con el Gobierno peronista (1946-1955).
Los elementos discursivos de mediados de siglo son altamente significativos para
la lectura que se propone, dado que permiten reconocer en este Gobierno de Perón
la permanencia de la imagen de Patagonia anclada en lo natural (Navarro Floria,
2010).
La precariedad de los caminos y la falta de servicios eran el principal argumento
para mostrar como limitadas las posibles medidas comerciales, frenando iniciativas
como la unión aduanera con Chile —por entonces en estudio— o el establecimiento
de zonas francas. Los funcionarios estatales señalaban en sus informes que solo la
acción estatal podría modificar las condiciones impuestas por la naturaleza y posi-
bilitar el desarrollo local de las riquezas naturales, pero las políticas de desarrollo
212 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

no terminaban de materializarse (Navarro, 2010). Aún a mediados de siglo XX, los


términos de los gobernantes de la región permiten reconocer la vigencia de una na-
turaleza que subordina un espacio donde el Estado llega en forma inacabada, ge-
nerando dependencia donde se suponía que se iba a generar autonomía. Así, las
promesas de progreso quedan en la declamación frente a una crisis que no se re-
suelve (Núñez y Almonacid, 2013).
Paradójicamente, los elementos de crecimiento gestionados por la propia po-
blación, como la vía férrea que una el norte neuquino con Chile, se desestiman en
este período, cuando se estaba a punto de concretarla. Ello no significa que la in-
tegración con Chile fuera un problema, puesto que el tren binacional se planifica
en el norte de la cordillera argentina. El punto que se repite en el silencio estatal es
que la integración económica norpatagonia no es un tema de la Nación, la Patagonia
como recurso no se vincula desde la autonomía, sino desde lo que el centro decide
sobre ella y organiza su presencia en base a una mirada extractiva.

PAISAJES DISCIPLINADORES Y EXPERIENCIAS ALTERNATIVAS

Frente a este relato, que con matices pervive hasta la actualidad, la experiencia de
subsistencia y comercio de pequeños/as productores de la región de la estepa rio-
negrina, permite poner en entredicho el determinismo que se desprende del relato
oficial. Es aquí donde la pregunta por la sostenibilidad nos lleva a la articulación
de niveles. La historia del paisaje mencionada resulta altamente disciplinadora y,
de hecho, se mantiene en propuestas oficiales. Pero la vivencia de ese paisaje da
cuenta de un relato diferente. Como se mencionaba al principio, parte de las fuentes
que se han revisado para este trabajo son las memorias y valoraciones de varios de
los/as pequeños/as productores/as.
En los relatos, el punto de inicio de los pueblos puso en evidencia la tensión en
las memorias como representativa de las tensiones sobre los relatos de la tierra. Uno
de los registros más emblemáticos fue el de uno de los pueblos de la región rione-
grina, el municipio de Comallo. Porque a pesar de reconocerse una fecha de inicio,
el 30 de marzo de 1918, vinculado a los galpones que se establecieron por un tren
que llegaría un par de lustros más adelante, las referencias del pasado llevan a pensar
que no hay un registro específico del inicio. Las historias remiten a un tiempo an-
terior a la específica fundación del poblado. Las fechas no parecen ser tan impor-
tantes en la memoria local, se recuerda más desde la producción, el intercambio y
el modo en que las personas se movían, donde los elementos del pasado registran
antecedentes mucho más largos que una fecha. Los datos oficiales son específicos,
además de la fundación reconocida, el ejido municipal se determinó por el Decreto
Nacional N° 92.659, de 19 de octubre de 1936. Comallo forma parte de la línea de
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 213

pueblos que se vinculan por el tren actualmente conocido como «tren patagónico».
La estación de Comallo se crea como parte de este ramal de principios del 30, por
ello no sorprende que el Estado Nacional decrete la creación del pueblo en 1936.
Pero el pueblo, o su memoria, no comienza aquí, sino que las memorias tomadas
en los talleres registran poblamientos previos, en «Comallo abajo», donde estaban
varias familias antes, que después se mudan por el tren, pero que igualmente está
cerca. Desde esta memoria podemos pensar que los cambios que se introducen des-
pués de la institucionalización son muy pocos. Los primeros recuerdos remiten a
un camino «Se traían piñones de la cordillera, ruta que venía por laguna blanca y
se hacían trueques» (cita taller «Memorias de Actividades y Desarrollo de Alterna-
tivas»). El anclaje temporal se pierde, y la memoria apela al recuerdo de varias ge-
neraciones, de abuelas que contaron a las abuelas. En el principio del pueblo está
el movimiento y el intercambio, pero esto no aparece en la historia, sino en el re-
cuerdo doméstico, en lo que se cuenta en la cocina, en la memoria femenina que
refiere a todas las estrategias que hicieron posible la subsistencia.
Los principales recuerdos recuperados hablan de historias de producciones, de
intercambios, de vínculos familiares y afectivos de larga data. Es el pasado de una
tierra ya poblada a donde llega el Estado Nacional en los papeles más que en las
prácticas. «Antes había carretas, todo se movía con bueyes» «La lana se veía de
lejos en las carretas», «había carretas por todo el campo». «La comida era lo que
se producía en el campo, con los animales y las huertas, en verano había más huevos,
había más agua, papas. También se cultivaba trigo y alfalfa» (cita taller «Memorias
de Actividades y Desarrollo de Alternativas»). En el antes están las acciones, las di-
námicas, las vinculaciones; en el ahora, la institucionalidad que cierra la posibilidad
a ese «antes».
Antes, incluso antes de la llegada del ferrocarril, Comallo ya existía. Había po-
bladores en Comallo abajo. La fundación del pueblo, de hecho, se refiere a estos
pobladores, las familias inmigrantes o pertenecientes a familias mapuche que, tras
la campaña del desierto, cubrieron la identidad étnica por una menos perseguida,
la de paisanos. Sea cual fuera el origen, estas familias se reconocen asentadas en lo
que hoy se denomina «Comallo abajo», en un tiempo antes del siglo XX.
Los textos de historia sobre la región no se han ocupado del pueblo, pero es
claro que antes de las citadas campañas militares en la región, este era un punto de
producción de ganado, pastos y alimentos en general. Las memorias de la conquista
registran la zona donde hoy está el pueblo como un centro de abastecimiento de
víveres, con pobladores que figuran como referentes y responsables de obtener su-
ficiente alimento para las fuerzas que llegaban. Esto nos sitúa en un espacio de tem-
pranas producciones, cuyas memorias aparecen en las respuestas actuales, cuando
se reflexiona sobre nuevas posibilidades. El futuro no se inscribe en la incertidum-
bre de una nueva tecnología, sino en la valoración de lo ancestral, que es un modo
214 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

de presentarse con una voz propia, de valorar aquello históricamente ocultado como
«trabajo femenino». «Yo sé todo lo que tengo que saber, a mí, mi mamá ya me en-
señó, yo no necesito que de la universidad me digan qué hacer» nos señaló una pro-
ductora cuando nos presentamos en el Taller.
Las memorias personales recuerdan un pasado con una gran diversidad de ani-
males de granja, se menciona ganado vacuno, yeguarizo, ovino, caprino, además de
las huertas que se añoran. En un territorio presentado como desierto por el Estado,
la memoria de los/as pequeños/as productores/as aparece como «verde» (Conti y
Núñez, 2013). Las memorias, en estas personas, fundamentan en por qué es posible
pensar en actividades sostenibles que permitan postular la producción a escala do-
méstica, porque «antes» se hacía. Ese pasado folklorizado y lejano, el camino de
los piñones, las huertas, las historias de las abuelas, remite hoy a la concepción de
una producción alternativa, donde resulta legítimo luchar a favor de una comer-
cialización justa, donde humanidad y naturaleza se presentan con voz propia. Las
artesanías, la cría de animales, la comercialización inter-regional, hasta ahora casi
inexistente por las trabas de las normativas nacionales de sanidad, se están revisando
a partir de considerar estas actividades, históricamente femeninas, en una línea de
acciones hacia la autonomía, donde falta mucho por recorrer pero que, desde su
inicio, pone en evidencia el problema estructural de un relato de dominio que se
tomó como destino.

REFLEXIONES FINALES

Naturaleza y humanidad se mezclan en la Patagonia en una «hibridación» que ins-


tala desigualdades y dependencias. Pero la suposición jerárquica y moderna de la
humanidad subordinando a la naturaleza opera, en este espacio, constituyendo una
vinculación colonialista que deja a la Patagonia, en sus paisajes y habitantes, en un
estado de periferia, donde los propios actores actualizan argumentos jerárquicos
como vías de preservación de privilegios que va en contra de un reclamo por una
integración nacional igualitaria. Desde Walter Mignolo (2005) recuperamos la per-
vivencia de la colonialidad como parte estructural de la constitución de lo moderno;
construcciones de la diferencia subalternizada en la base del desarrollo.
En el caso que nos ocupa, la colonialidad, el sitio del recurso, las trabas a la au-
tonomía que se leen como destino del espacio, son naturalizadas por los habitantes
del territorio que se benefician con esta imagen, como los ovejeros, los migrantes
que ocupan territorios de pueblos originarios, o las propias parcialidades internas.
La colonialidad emerge en Patagonia, paradójicamente, como la vía a la Moderni-
dad, y esta paradoja se materializa en el espejismo de una Modernidad que proyecta
en el entorno un carácter permanentemente incompleto y subalterno.
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 215

El espacio se presenta, al igual que la naturaleza, o como la mujer, siempre ina-


cabado. Las propias carencias son justificaciones para sostener la desigualdad. La
tierra transformada en mujer, la mujer en naturaleza, la naturaleza en recurso, hil-
vanan la mayor parte de las metáforas sobre este espacio, atando en un vínculo de-
sigual a territorios y poblaciones, y evidenciando formas particulares de opresión,
invisibilización y construcción local del centralismo, ubicando a este relato de la
Patagonia en los antecedentes denunciados del ecofeminismo.
La historia social de la Patagonia se vinculó a una historia natural, establecida
según los cánones de la biología, los relatos de los avances siguen la marca de la
historia de la tecnología, las mejoras vividas en el centro del país, a causa de las in-
tervenciones en Patagonia —por la conquista, la explotación de recursos o el esta-
blecimiento de espacios recreativos— son presentadas como mejoras para toda la
Argentina, sin una reflexión análoga en relación al desarrollo regional.
Las categorías de naturaleza y cultura no se trazan en clave de autonomía, sino
de dependencia, se mezclan y confunden según sea necesario para sostener la asime-
tría. Existe una porosidad entre la distinción humanidad y naturaleza que permite el
deslizamiento de una hacia otra, a partir de justificar la jerarquía social en un destino
marcado por el paisaje. La humanidad se torna incompleta, irracional, feminizada,
necesitada de la «domesticación» que ofrece un Estado paternal, que nunca termina
de tornarse en práctica que asegure el completar hacia la promesa de horizonte de
progreso «eso» inacabado, sea el paisaje, sean las actividades, sean las personas.
Pero frente a esta construcción permanentemente precaria, la necesidad de la
subsistencia abre, diariamente, estrategias que, al ser consideradas, nos permiten
observar un ejercicio de nuevas consideraciones, o tal vez antiguas, pero definiti-
vamente no reconocidas. Desde este lugar, de una ancestralidad donde la mixtura
naturaleza/humanidad refiere al derecho de la voz propia, lo sostenible aparece
vinculado a lo solidario, donde el valor del entorno no se resuelve en clave de con-
servación, sino de valoración relacional. La historia de toda la región se tensiona
en este reconocimiento, y el paisaje deja de ser inhóspito para comenzar a pensarse
desde la cotidianeidad de quienes buscan transformar la supervivencia en vida
digna; donde los animales son investidos de afecto, donde la espiritualidad se pro-
yecta en el escenario de lo vivido.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZCOITIA, Alfredo y NÚÑEZ, Paula, (2011): «La normalidad asimétrica de la región


de los lagos», Estudios Avanzados 15, pp. 55-77.
BESSERA, Eduardo (2011): «Exequiel Bustillo y la gestión de Parques Nacionales.
Una aproximación a su concepción de las fronteras como áreas naturales prote-
216 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

gidas», en Navarro Floria y Delrio (ed.): Cultura y espacio: contribuciones a la


diacronización del corredor Norpatagonia Araucanía (pp. 115-125), Argentina,
IIDYPCA-UNRN.
BUSTILLO, Exequiel (1971) [1968]: El despertar de Bariloche, Buenos Aires, Casa
Pardo.
CONTI, Santiago y Paula NÚÑEZ (2013): Cuaderno de trabajo. «Memorias de Acti-
vidades y Desarrollo de Alternativas», Programa Línea Sur, UNRN, mayo-octubre
2012, Informe final, 11 pp. Inédito.
— y Paula Núñez (2012): «Poblaciones de la Estepa rionegrina, el desafío de supe-
rar un pasado folklorizado y ser reconocidos como agentes económicos», Revista
Artemis 14, pp. 144-155.
CORONATO, Fernando (2010): «El rol de la ganadería ovina en la construcción del terri-
torio de la Patagonia», Tesis doctoral. Escuela Doctoral ABIES, París, Agro Paris Tech.
DIEGUES, Antonio Carlos (2005): El mito moderno de la naturaleza intocada, Center
for Research on Human Population and Wetlands, São Paulo, Brasil,
FLORES, Roberto Dante (2011): Gran Bretaña entre Argentina y Chile. Su influencia
económica (1879-1999), Buenos Aires, Ediciones Cooperativas.
HUDSON, Guillermo (1997) [1893]: Días de ocio en la Patagonia, El Elefante
Blanco, Buenos Aires.
MASERA, Ricardo (1998): «Breve caracterización de la Norpatagonia y el Somun-
curá», en Masera (coord.) La meseta patagónica del Somuncura, un horizonte en
movimiento, Argentina, Gobierno de la Provincia del Chubut. Gobierno de la
Provincia de Río Negro, pp. 5-9.
MÉNDEZ, Laura (2007): «Bariloche 1880-1935: procesos migratorios, prácticas po-
líticas y organización social» en Ruffini y Masera, Horizontes en perspectiva. Con-
tribuciones para la historia de Río Negro, 1884-1955, Viedma, Fundación
Ameghino/Legislatura de Río Negro, pp. 363-388.
— y Jorge Muñoz (2013): «Capitalismos en pugna. La Norpatagonia argentino-chi-
lena entre 1895 y 1920», en Nicoletti y Núñez (ed.) Araucanía - Norpatagonia: la
territorialidad en debate. Perspectivas ambientales, culturales, sociales, políticas
y económicas, Argentina, IIDYPCA-UNRN editora, pp. 152-167.
MIGNOLO, D. Walter (2005): «La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio
occidental en el horizonte colonial de la modernidad», en Edgardo Lander
(comp.): La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
Latinoamericanas, Buenos Aires, CLACSO, pp. 55-85.
NAVARRO FLORIA, Pedro (2004): Patagonia, Ciencia y Conquista. La mirada de la
primera comunidad científica de la Argentina, Neuquén, CEP-UNCO.
NAVARRO FLORIA, Pedro (2010): «Planificación fallida y colonialismo interno en los
proyectos estatales del primer peronismo (1943-1955) para la Patagonia». Cuartas
Jornadas de Historia de la Patagonia, Argentina, UN La Pampa.
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 217

— (2011): «Territorios marginales: los desiertos inventados latinoamericanos. Re-


presentaciones controvertidas, fragmentadas y resignificadas», en Deni Trejo
Baraja (coord.), Los desiertos en la historia de América. Una mirada transdis-
ciplinaria, México, Univ. Michoacana de San Nicolás de Hidalgo-Univ. Autó-
noma de Coahuila, pp. 207-226.
NÚÑEZ, Paula y ALMONACID, Fabián (2013): «Nación y región a mediados del siglo
XX. Una mirada comparada sobre la integración de la Norpatagonia en Argentina
y Chile», en Nicoletti y Núñez (ed.) Araucanía - Norpatagonia: la territorialidad
en debate. Perspectivas ambientales, culturales, sociales, políticas y económicas,
Argentina, IIDYPCA-UNRN editora, pp. 169-189.
— y NÚÑEZ, Martín (2012): «Conocer y construir naturaleza en el sur argentino»
en: C. C. Silva y L. Salvatico (eds.) Filosofia e Histórica da Ceincia no Cone Sul,
Porto Alegre, [ntr]mentes editorial, pp. 428-437.
— y AZCOITIA, Alfredo (2009): «Elementos de territorialización en San Carlos de
Bariloche. El comercio transcordillerano, el Parque Nacional Nahuel Huapi y la
provincialización», Cuadernos del Sur. Historia 38, pp. 45-63
—; MATOSSIAN, Brenda y VEJSBJERG, Laila (2012): «Patagonia, de margen exótico
a periferia turística. Una mirada sobre un área natural protegida de frontera», Re-
vista Pasos 10, pp. 47-59.
PLUMWOOD, Val (1996): «Naturaleza, yo y género: feminismo, filosofía del medio-
ambiente y crítica del racionalismo», Mora Revista del área Interdisciplinaria de
Estudios de la Mujer 2, pp. 35-59.
PULEO, Alicia H. (2000): Filosofía, Género y Pensamiento Crítico. Servicio de Pu-
blicaciones de la Universidad de Valladolid.
— (2011) Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
IUORNO, Graciela y CRESPO, Edda. (comp.) (2008): Nuevos Espacios. Nuevos Pro-
blemas. Los Territorios Nacionales. Argentina. UNCO-UNPA.
SARMIENTO, Domingo F. (1845): Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo
Quiroga. Aspecto físico, costumbres y ámbitos de la República Argentina. Chile.
El progreso.
VALLEJO, Gustavo y MIRANDA, Marisa (2004): «Evolución y Revolución: explica-
ciones biológicas y utopías sociales», en Biagini y Roig (dir.), El pensamiento al-
ternativo en la Argentina del siglo XX: identidad, utopía, integración (1900-1930)
(vol. 1) (pp. 403-418), Buenos Aires, Biblos.
ZARRILLI, Adrián (2008): «El oro Rojo. La Industria del Tanino en la Argentina
1890-1950», Silva Lusitana 16-2, pp. 239-259.
13. Problemáticas urbano-ambientales: un
análisis desde el ecofeminismo
Micaela AnzoátEgUI y María Luisa fEMEníAs
Centro Interdisciplinario de Investigaciones en género (CInIg)
Universidad nacional de La Plata

Pertenece a los recursos de una ciudad, en primer lugar, el número de personas:


cuántos y de qué condición deben ser por naturaleza; y respecto al territorio,
igualmente, cuál debe ser su extensión y su cualidad.

ArIstótELEs, Política, 1326a4

L
a planificación de las ciudades fue un tema de extremo interés en la antigüe-
dad y, como se sabe, no ha sido sino hasta tiempos relativamente recientes
en que el aumento poblacional ha desbordado a la mayoría de ellas, cons-
truidas y ampliadas durante los dos últimos siglos.1 El ejemplo de México Df o de
nuestras propias ciudades, especialmente Buenos Aires, La Plata, rosario y Cór-
doba, son más que obvios. La noción de los «límites de la ciudad» (en los múltiples
sentidos de «límites») se nos escapan y parece una actividad tan necesaria como ur-
gente comenzar de nuevo a reflexionar filosóficamente sobre al menos dos cuestio-
nes: la primera la plantea Aristóteles, en pocas líneas, en el epígrafe de esta
introducción; se trata de i) la relación forma de vida/ciudad en la que vivimos. o
dicho en otros términos, no podemos volver a pensar la ciudad si no examinamos
al mismo tiempo nuestra forma «occidental» y «moderna» de vida. La segunda
cuestión se vincula con ii) el subtexto jerárquico dominador/dominado, que ha
hecho desde el dictum de francis Bacon en más, a la naturaleza «objeto» del do-
minio del ser humano, entendido fundamentalmente como «racional». Esto último
implica dos maniobras: ii.a) mostrar cómo ese supuesto se comparte con la situación
1
Este trabajo se inscribe en el proyecto La igualdad de género en la cultura de la sostenibilidad:
valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario, Proyecto I+ D dirigido por la Dra. Alicia Puleo
(Universidad de Valladolid - Ministerio de Ciencia e Innovación, España, fEM 2010-15599, período:
2011-2013) y el proyecto Contribuciones para un análisis interdisciplinar de la violencia de sexo-gé-
nero. Estrategias para su abordaje (H.592) dirigido por la Dra. María Luisa femenías (CInIg-IdIHCs,
Universidad nacional de La Plata, Argentina, período 2011-2014).
220 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

general e histórica de las mujeres como «lo otro» subordinado y, bajo la misma
estructura conceptual, de todo aquello que se constituya como «lo otro» del
varón hegemónico paradigmático. La segunda, ii.b) implica la revisión de la no-
ción de «racionalidad» moderna, considerada mayoritariamente como «razón
instrumental».2
La organización de la vida ha ido —lo queramos o no— separándose poco a
poco de la reflexión sobre la forma de vida en que vivimos, tal como lo alentaba la
filosofía clásica. sin embargo, nuestra propuesta no se ve motivada por la añoranza
de la candidez perdida tras el aumento desmedido de las ciudades. significa sim-
plemente apelar a la filosofía, nuestra disciplina de origen, para analizar, revisar,
meditar y examinar los supuestos que están en la base de la situación actual que
pone en crisis a la ciudad y, sobre todo, a la vida y la salud integral de sus habitantes.
Por tanto, nos vemos impulsadas a dar cuenta de que las condiciones de posibilidad
del pensamiento y, en sentido estricto, de la actividad filosófica, deben estar, más
que en ningún otro período, en estrecha vinculación con el mundo en el que vivi-
mos. Por cierto, no accedemos ni nos vinculamos al mundo como un todo, sino a
través del medio-ambiente o de los medio-ambientes específicos en los que nos mo-
vemos, donde se desarrolla la vida humana y no-humana, gracias a las representa-
ciones que tenemos de ellos.
La contaminación atmosférica, el riesgo hídrico y la vulnerabilidad social, la falta
de espacios verdes silvestres de calidad y en cantidad suficiente para quienes habi-
tamos en las ciudades, o la alarma ante el calentamiento global son algunos de los
desastres naturales socio-ambientales cada vez más difíciles de negar.3 Entendemos
estos «desastres» como el «resultado de acciones humanas; no se trata solo de un
acontecimiento físico, sino de un proceso social, económico y político desencade-
nado por un fenómeno natural» (Herzer citada por Andrade, Lucioni e Iezzi, 2012).
Estos factores se deben incorporar al análisis tradicional ya que el resultado de un
desastre sobre la sociedad depende del grado de vulnerabilidad de esta. En efecto,
ocurre un desastre cuando se «supera la capacidad material para absorber, amorti-

2
Dicho brevemente, vamos a entender «razón instrumental», en sentido amplio, como un modo
de razón que prioriza la utilidad de las acciones y el uso de objetos, siguiendo un esquema medio-fin:
Lo importante es el fin sobre el/los medios para obtenerlo/s. se la suele considerar regida por el criterio
de utilidad y, en general, se la une a la técnica y al progreso. sin embargo entraña un doble peligro: i)
objetiva la realidad; ii) la acepta de modo acrítico como una totalidad definitiva que se impone a los
seres humanos. Cf. Horkheimer, Max (1969): Crítica de la razón instrumental, Buenos Aires, sur.
3
Las apreciaciones que realizamos se fundan en un conjunto de investigaciones e informes
realizados por la facultad de Ingeniería (Ingeniería hidráulica) y la facultad de Humanidades y
Ciencias de la Educación (Especialidad geografía) de La Plata, Argentina, disponibles en
http://www.ing.unlp.edu.ar/sphider/search.php?query=inundaciones&search=1 y en http://re-
dargentinadegeografiafisica.files.wordpress.com/2013/04/02-andrade-lucioni-iezzi_factores-de-
riesgo-hc3addrico.pdf, entre otros, respectivamente. Consultados: 24 y 26 de febrero de 2014.
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 221

guar o evitar los efectos de cierto acontecimiento» (Herzer en Andrade, Lucioni e


Iezzi, 2012). Volveremos sobre esta cuestión que, entre otras, en su conjunto pro-
duce una acelerada disminución de la calidad de vida humana y una creciente in-
certidumbre a nivel individual y colectivo. sobre todo, porque disminuyen las
posibilidades de existencia de las poblaciones de las diferentes especies y su repro-
ducción sostenida en el tiempo, con la inevitable degradación de los diversos eco-
sistemas. Por ello, resulta cada vez más indispensable repensar algunos de los
problemas urbano-ambientales propios de nuestra región desde un punto de mira
filosófico y, en especial, desde el ecofeminismo.
Eso significa que conviene mirar a la ciudad como un espacio que ni es neutro
ni asexuado, sino que, por el contrario, como todas las instituciones humanas, de-
tenta marcas no triviales de sexo-género. El espacio público de la ciudad, en apa-
riencia uno y el mismo para todos los pobladores, no lo es tanto: se constituyó por
oposición al espacio doméstico devaluado (como propio de las mujeres) y al privado
(en términos de refugio y solaz de los varones) (Collin, 1994). Como la nomencla-
tura de nuestras calles muestra con claridad, el espacio público se visibiliza mayo-
ritariamente bajo la presencia simbólica de los varones y de su imaginario
consolidando la dupla varón-cultura. Como se sabe, nuestras calles, plazas y paseos
mayoritariamente se denominan con nombres de batallas, generales y, en mucha
menor medida, científicos. solo en la década de los noventa, un mega emprendi-
miento inmobiliario dotó a un barrio de Buenos Aires, con calles con nombres de
mujeres. Ese espacio no es, por tanto, un contenedor homogéneo o una suma ho-
mogénea de las actividades de sus habitantes en interacción. Las mujeres se encuen-
tran desplazadas: desplazadas de las nomenclaturas, pero también de las vías seguras
de circulación; en fin, de los múltiples espacios que configuran una ciudad (Mesa-
nich y schmidt, 2007). ¿Cómo entender entonces este espacio público ciudadano
sexualizado? ¿Cómo entender de qué espacio hablamos? ¿Lo reconocemos como
el área física delimitable por las cuadrículas y por la variedad de las actividades que
las personas llevan a cabo en ellas? ¿Por los espacios simbólicos que constituyen el
texto expresivo del circuito urbano? ¿Por la colección de edificios que como apa-
riencias sustantivas deberían vincularse por igual a las actividades de varones y mu-
jeres, ancianos y niños, sanos y enfermos, ricos y pobres? ¿Por la regularidad con
que nos sorprenden las cosas que ocupan el espacio «vacío» que las contiene? ¿Cuál
es el espacio de los acontecimientos sociales, colectivos, las marchas, los conciertos,
los encuentros? ¿Cómo produce y reproduce su tiempo el espacio? ¿Cómo enten-
demos la ciudad bajo la distinción entre lo público y lo privado, lo bueno y lo malo,
lo decente y lo indecente, lo sustentable y lo imposible, el poder y la fuerza?
originariamente, el espacio ha sido simplemente una posibilidad del conoci-
miento. Como presupuesto de cualquier «objeto» de un proceso ideacional, hace
que lógicamente la ciudad sea posible, proyectando un orden a esos objetos y, con-
222 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

secuentemente, a las personas que la habitan y circulan en ella. Al mismo tiempo,


ese espacio vacío delimita la materialidad de la ciudad de modo extensible, elástico
e independiente de su entorno; es decir, la constituye y bordea como un «indivi-
duo-ciudad» en imagen paralela al «individuo-varón». se la construye con una es-
tructura de interrelación interna, pero obviando cualquier «circunstancia» que la
vincule no-utilitariamente con otros agentes humanos y no humanos. En suma, la
ciudad, como espacialidad urbana, social y objetual se construye reconociendo y
valorando mayormente lo masculino. Esta estructura profunda (este subtexto ge-
nerizado) denuncia la presencia de una ausencia necesaria y productiva: la cons-
trucción de «lo otro» subalternizado que incluye a las mujeres en general bajo la
ancestral analogía de mujer-naturaleza. Esa otredad se extiende a la naturaleza como
un todo y también a quienes el imaginario hegemónico considera más próximos a
ella: los pueblos originarios y los «primitivos», abriendo de ese modo un olvido,
una clausura, un cierre, un anonimato, una forclusión y un silenciamiento sobre las
condiciones de posibilidad «naturales» de la fundación de la ciudad, de la vida ur-
bana y de la calidad misma de la vida. si Adrianne rich tituló uno de sus libros na-
cidos de mujer, subrayando el habitual olvido de ese hecho tan «natural» como
fundante, nos atrevemos a sugerir analógicamente un supuesto título: olvidados de
la naturaleza; ese olvido tan habitual de aquello que constituye la condición de po-
sibilidad de la ciudad y de la vida misma.

Un ProBLEMA UrBAno-AMBIEntAL

Un ejemplo: el 2 de abril de 2013, la ciudad de La Plata y sus cercanías fueron afec-


tadas por una lluvia continua. El servicio Meteorológico nacional informó que 181
milímetros cayeron entre las 18 y las 21 horas. Un estudio de María Isabel Andrade,
que analiza las inundaciones desde la teoría social del riesgo, calcula alrededor de
390 mm. para todo el día (Andrade, 2013).4 Las ciudades de Ensenada y Berisso y
los barrios platenses de Los Hornos, Villa Elvira y tolosa fueron los más afectados
junto con el casco céntrico de la ciudad. Es decir, se inundó más del 50 % de una
urbe que cuenta con 740 mil habitantes en el centro y otros 840 mil en la periferia
urbana. si bien el Estado al día 13 de junio había reconocido solo 78 víctimas mor-
tales, se puede afirmar que el número de fallecidos durante el evento meteorológico
ronda las 219 personas (Habitat y territorio 25/06/13; El Día 2/04/13; Hoy

4
Permítasenos recordar que en Argentina la lluvia se mide en milímetros de agua caída por unidad
de superficie en términos de metros cuadrados; es decir, que 1 milímetro de agua de lluvia equivale a
1 litro de agua por m².
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 223

2/04/13; La nación 2/04/13, entre otros).5 La noticia se repite con cierta variabili-
dad en los datos, según el perfil general del periódico en cuestión, pero lo cierto es
que «el trágico temporal que azotó la ciudad de La Plata» marcó un valor récord
histórico diario de precipitación superando el anterior del 14 de mayo de 1980,
considerando un período que va de 1956 a 2013 (Habitat y territorio, 25/06/13).
En numerosas jornadas de trabajo realizadas por la Universidad nacional de La
Plata, u otros organismos de investigación, se elevaron Informes a las autoridades
nacionales y provinciales en los que se advertía sobre los riesgos y las zonas poten-
cialmente inundables si el caudal de lluvias superaba las marcas históricas, como
podía preverse que sucedería (Andrade, Plot, et. al., 2003). En tales trabajos se
identifican las relaciones entre los procesos naturales y los procesos sociales de las
inundaciones y se establecen criterios para la construcción de una metodología de
evaluación de riesgo de inundación, teniendo en cuenta un modelo de análisis a
partir de algunos componentes básicos: peligrosidad, exposición, vulnerabilidad e
incertidumbre. A partir de ahí, se proyectaron resultados y se definieron pautas
para establecer niveles de vulnerabilidad. Como parte integral del trabajo, se pre-
sentaron mapas de ocurrencia de inundaciones y se identificaron prioridades de in-
tervención.
En pocas palabras, había información suficiente pero no se la tomó en cuenta
para accionar los recaudos mínimos que hubieran mitigado el desastre. El desastre
fue entonces indicador de la falta de soluciones a problemas preexistentes, por
ejemplo, la pobreza y la vulnerabilidad social como variables externas. Los reclamos
de la población pusieron el acento en la imprevisión, producto de lo que para otros
contextos silvia rivera Cusicanqui denominó el «maldesarrollo», concepto que
también utiliza Vandana shiva (rivera Cusicanqui y Barragán, 2007; shiva, 1998).
Pero lo cierto es que independientemente de la imprevisión gubernamental a
diferentes niveles, la explicación es insuficiente. tomar en cuenta el deterioro am-
biental constituye un factor central en la búsqueda de explicaciones y soluciones a
los problemas que planteamos, porque la inundación del 2 de abril no constituyó
un fenómeno climático aislado; ese mismo día, extensas zonas de Buenos Aires tam-
bién se inundaron. Durante el presente verano, otras áreas del país han padecido
sequías inusuales, perdiéndose más del 70 % de las cosechas; ha habido tormentas
de granizo e incluso tornados en zonas no habituales. En el verano de 2013-2014
también se batió el récord de altas temperaturas y de actividad eléctrica, según es-
tadísticas registradas desde la fundación del servicio Meteorológico nacional), a

5
Imágenes y filmaciones caseras y periodísticas pueden consultarse en youtube: «Inundación en
La Plata 2/04/2013». Dejar constancia de los relatos en primera persona de la experiencia de la inun-
dación excede los objetivos de este trabajo, pero estos constituyen una fuente invalorable de infor-
mación y de visualización del dramatismo del desastre.
224 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

comienzos del siglo pasado. Los fenómenos climáticos extremos, la exposición y la


vulnerabilidad están influenciados por una amplia gama de factores, incluidos el
cambio climático antropogénico, la variabilidad natural del clima y el desarrollo
económico.
Los fenómenos naturales extremos pueden contribuir a la ocurrencia de desas-
tres, pero los riesgos de desastre no solo obedecen a fenómenos físicos; surgen de
la interacción entre fenómenos meteorológicos o climáticos extremos y fenómenos
sociales tales como la vulnerabilidad social y su distribución en el territorio. Por
ello, la gravedad de los impactos relativos a los fenómenos climáticos extremos po-
seen una multicausalidad, que deriva en situaciones de riesgo o en desastres cuando
existe población afectada, produciéndose alteraciones graves en la organización so-
cial y calidad de vida de las comunidades involucradas. Entender el cambio climá-
tico y los desastres naturales como un evento meteorológico sin más es desconocer
sus variables fundamentales. Este es el punto en el que nos interesa profundizar.
nuestro objetivo es mostrar cómo reconstruyendo el subtexto de género, se puede
colaborar en la comprensión de los fenómenos actuales y responder en buena me-
dida a las cuestiones que planteamos en nuestra introducción. La inundación de
La Plata es, así, un ejemplo entre tantos de la pluricausalidad y sus consecuencias.

BUsCAnDo ExPLICACIonEs

Inmediatamente después de la catástrofe, comenzaron a buscarse culpables y excu-


sas. no es ese nuestro derrotero. Por el contrario, queremos apuntar la importancia
del ecofeminismo para poner de manifiesto los subtextos explicativos de las poten-
ciales «causas plurales» que nos han llevado a la situación actual y la urgente nece-
sidad de revisarlas y revertirlas. Es sabido que el ecofeminismo, como reciente avance
de la teoría feminista, comporta una buena dosis de diversidad conceptual, práctica
y política, que no solo divergen entre sí, sino que también invitan a reflexionar sobre
qué hay que conservar, qué hay que transformar y qué hay que proteger (Agra, 1998).
Pero fundamentalmente nos interesa apuntar cómo el subtexto de género favorece,
genera y hasta encubre los modos en que, al menos en occidente, la ciencia, en ge-
neral, y la técnica, en particular, sobre todo desde la Modernidad, ha producido un
modelo de razón instrumental, algunas de cuyas derivaciones se hacen evidentes en
la crisis ecológica mundial. En general, se dieron explicaciones del siguiente tipo:

- Hasta el momento no es posible identificar eventos aislados de variabilidad cli-


mática o de cambio climático: no existe la capacidad técnica a nivel mundial para
hacerlo (Habitat y territorio, 2/04/13). Una inundación depende no solo de la
precipitación, sino de otras variables, por ejemplo: la infraestructura de desagües
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 225

pluviales, el estado de mantenimiento de dichos desagües, la exposición y vulne-


rabilidad de la población. En consecuencia, pronosticar eventos como el ocurrido
el 2 de abril es prácticamente imposible.
- Además, esa tormenta se precipitó sobre el casco urbano y si se hubiera pro-
ducido cincuenta kilómetros al Este, no estaríamos hablando de ella: habría
caído en el río de la Plata y no hubiera habido muertos; no hubiera sido una
catástrofe. si no se hubiera anticipado media hora, se hubiera podido monitorear
el radar y las imágenes satelitales. La tormenta, además, tuvo la particularidad
de no desplazarse, cuando en general se desplazan al Este y caen en el río. Cu-
riosamente se trató de un fenómeno localizado… (Habitat y territorio, 3/04/13)

nos interesa subrayar que el paradigma explicativo del desastre encubre los ver-
daderos factores que lo produjeron, «culpando» metalépticamente a la tormenta o
a la falta de «desagües» adecuados. si bien lo segundo es cierto, una lluvia de la in-
tensidad de la caída en tan poco tiempo, no se hubiera podido evacuar aún con de-
sagües en buenas condiciones de mantenimiento: el desastre hubiera sido menor
respecto de la pérdida de vidas humanas y no-humanas en general; pero la lluvia
caída hubiera sido igualmente inusual y es precisamente eso lo que debe ser expli-
cado y lo que debe llamar la atención general de la población y de los expertos.
nos interesa señalar que una ideología basada en el género proyecta un conjunto
de categorías sociales qua «naturales» y biológicamente determinadas, que exigen
al «hombre» (= varón), que «domine», «domestique» o «controle» la naturaleza y
que ese esquema encubre u obstaculiza la comprensión más profunda de la causas
reales (shiva, 1998).
Veamos. ¿Qué «causas» no toman en cuenta las explicaciones previas?

1) Escasa cantidad de áreas silvestres. La falta de áreas verdes en cantidad y calidad


trae como consecuencia servicios ambientales o ecosistémicos (oxigenación del
aire, regulación térmica, absorción de la crecida del río o la lluvia, amortiguación
de la contaminación, protección contra tormentas, etc.) deficientes para la mayor
parte de la población. La escasa cantidad de espacios verdes (especialmente los
poco intervenidos o silvestres) disminuye la calidad de la vida humana, ya que
se incrementa la contaminación ambiental y el riesgo de enfermedades relacio-
nadas con aire o agua contaminada. también se eleva el presupuesto estatal en
obras públicas, que si bien pueden ser útiles en determinados casos, son utiliza-
das para generar aquello que los sistemas naturales realizaban por sí mismos
antes de ser alterados. El caso más claro es el de la modificación de las tierras
bajas y humedales para instalar desarrollos urbanísticos, y la posterior imple-
mentación de bombas hidráulicas para amortiguar las inundaciones, que justa-
mente son agravadas o producidas por la elevación de cota de suelo y su
226 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

impermeabilización con cemento. Los sistemas naturales no son maquinarias,


de manera que no se puede generar una reconstrucción idéntica en propiedades,
partes y secuencias de un sistema natural, con su complejidad, especificidad y
servicios ambientales, como el generado por estas zonas.
2) Disposición de los residuos sólidos urbanos (rsU). se calcula la producción de
6 000 millones de toneladas anuales de basura tan solo en el área metropolitana
de Buenos Aires de alrededor de 14 millones de habitantes (CEAMsE, 23/2/14).
Aún no existe un plan efectivo de separación en origen y reciclaje de materiales
reutilizables en la mayoría de las localidades. Desde mediados del siglo pasado,
se emplean los rellenos sanitarios como forma de disposición de los residuos do-
miciliarios, ubicados en áreas que, en las décadas del 70 y 80, se consideraban
de poco valor, como los márgenes costeros y los humedales. Los rellenos sanita-
rios se cuestionan severamente por las consecuencias en el medio ambiente y en
las poblaciones humanas (CEAMsE, 2009). En efecto, al descomponerse liberan
un líquido, denominado lixiviado, y gases altamente tóxicos, que afectan a las
napas de agua, las aguas superficiales y el aire (ronco: 2009), generando diversas
enfermedades. (Proyecto Basura Cero, 2008; CEAMsE, 2009).
3) Urbanización descontrolada y avance inmobiliario. se urbanizan zonas que de-
berían preservarse por los servicios ambientales que prestan a la sociedad, como
márgenes de ríos, humedales, lagunas, zonas bajas, zonas de cobertura boscosa,
etc. Este es el caso de los proyectos de mega-emprendimientos inmobiliarios y
barrios cerrados para urbanizar áreas de alto valor estético y ecológico que la
ciudad aun no tenía integradas o no les daba un uso efectivo, como es el caso de
las tierras fiscales (Pintos y narodowsky, 2012). Algunas consecuencias de estos
proyectos, son la modificación de suelos y canales, interfiriendo en el proceso
natural de sedimentación y ciclos hidrológicos, así como también en la biodi-
versidad local.
4) Problemáticas de las áreas naturales Protegidas. Las reservas naturales en ge-
neral tienen una serie de problemas constantes por la relación dinámica que es-
tablecen con las ciudades, al estar en el mismo ambiente. La más visible es la
contaminación por plástico (los ríos y corrientes de agua depositan botellas, bol-
sas, envoltorios, etc. que provienen de la ciudad, mediante los desagües pluviales,
o que provienen de basurales clandestinos o asentamientos humanos cercanos).
Por su parte, la invasión de especies de flora exótica por el uso indiscriminado
en jardinería de plantas europeas, asiáticas y norteamericanas, lleva a que estas,
sin competidores, colonicen los nichos ecológicos de las nativas, impactando
sobre las redes tróficas. La descarga de agentes tóxicos provenientes de indus-
trias en los cuerpos de agua provoca la mortandad de especies acuáticas, e in-
cluso la introducción de tóxicos en las redes tróficas, ya que ingresan al ciclo
del agua y contaminan los acuíferos subterráneos y el suelo. Del mismo modo,
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 227

los agrotóxicos, una vez depositados en los cultivos, se dispersan llegando a los
acuíferos subterráneos, lagunas, napas, ríos y arroyos, viajando largas distancias
desde su punto de origen (Malpartita, 2001). otro peligro son los emprendi-
mientos inmobiliarios que urbanizan zonas (rezonificación), alterando el valor
catastral original de uso del suelo, favoreciendo desmontes que hubieran sido
ilegales e incumpliendo las leyes de protección con la complicidad de algunos
funcionarios de turno o simplemente por inacción de los organismos públicos
de control.

LECtUrA DEsDE EL ECofEMInIsMo

Acabamos de enumerar algunas situaciones problemáticas que inciden en el ritmo


de la degradación ambiental y los desastres ambientales de modo acelerado, mos-
trando que a fin de cuentas no son más que desastres socio-ambientales de origen
antrópico. Esto debe llevar a repensar que la situación ambiental de la modernidad-
posmodernidad está marcada por una actividad sostenida y acelerada del hombre a
gran escala en las sociedades post-industriales, lo que genera consecuencias acumu-
lativas a largo plazo, tal como las que se vienen padeciendo a nivel mundial sobre
todo a partir de la última década. tanto es así que en la década del 80 el ecólogo
Eugene f. stoermer introduce el concepto de antropoceno, para dar cuenta de la
presión antrópica creciente sobre el ambiente a nivel mundial. Posteriormente fue
popularizado por Paul Crutzen quien considera que en los últimos siglos la influencia
del comportamiento humano sobre la tierra ha generado un impacto tal que daría
lugar a una nueva era geológica. Es decir, usan el término «antropoceno» para des-
cribir el actual período de la historia terrestre, que comenzaría en el momento en
que las actividades humanas generaron un impacto relevante a nivel global sobre los
ecosistemas terrestres, especialmente a partir de la revolución Industrial. En el siglo
xx la situación se ha acelerado: el uso de combustible fósil, las nuevas tecnologías,
el crecimiento poblacional acelerado, el descubrimiento del ADn y el desarrollo de
la biotecnología, con efectos notorios en la capa de ozono y en el clima. Los desechos
que estamos generando, fundamentalmente producen un cambio en la biología y la
geología del planeta, estimándose que sus efectos persistirán entre tres mil a cin-
cuenta mil años (Crutzen, 2006: 13-18). De manera que una forma de pensar las pro-
blemáticas urbano-ambientales es analizar y conceptualizar cómo surgieron y en qué
contexto histórico, económico y cultural se siguen profundizando.
Como se sabe, las sociedades occidentales contemporáneas son herederas de la
modernidad filosófica, científica y tecnológica europea. La manera de pensar el
espacio urbano y su relación con los respectivos entornos naturales en nuestra
sociedad reciben su impronta en ese período (shiva, 1998; Merchant, 1983). En
228 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

principio, nos interesa recordar que en el pensamiento occidental pueden detectarse


una serie de dicotomías excluyentes, entre ellas, hombre/animal, mente/cuerpo,
varón/mujer, cultura/naturaleza, racionalidad/irracionalidad (o emocionalidad).
Las mujeres aparecen siempre relacionadas al segundo de los términos del par
dicotómico y los varones al primero, que además se sobrevalúa. Las mujeres se
asocian a la naturaleza, al cuerpo, a lo animal y a lo irracional de modo ancestral y
en diferentes culturas, llegando a conformar un ideologema. tal como señala
Merchant (1983: xxiii):

tanto en las culturas occidentales como en las no occidentales, la naturaleza era


tradicionalmente femenina. En latín y en las lenguas romance de la Europa medieval y
moderna, la naturaleza era un sustantivo femenino, y por lo tanto, al igual que las
virtudes (templanza, sabiduría, etc.) personificada como una mujer. (Latín: natura/ae;
alemán: die natur; francés: la naturaleza; italiano: la natura; español: la natura). La
palabra griega physis también era femenina.6

y, bajo esa división dicotómica Uno/otro tajante, el paradigma moderno


construye la fantasía de la independencia humana respecto de la naturaleza, a la que
puede (debe) dominar mediante la técnica, impulsada por la dinámica capitalista
del consumo. Este es, justamente, el nudo de la cuestión desde la Primera revolución
Industrial, base de los avances científicos desde la época y hasta nuestros días. En
ese sentido, rige la razón pero en su modo instrumental, la que paulatinamente
condujo a las problemáticas actuales derivadas del tipo de vida urbana iniciada en
ese período. tal como lo señala Hamilton Clive (2011: 119):

La desconexión del hombre con la naturaleza es un fenómeno moderno. Antes de la


revolución científica e industrial, los europeos tenían una concepción de sí mismos
radicalmente diferente de la actual. De hecho, estas revoluciones constituían en el fondo,
la reformulación de la conciencia que empezó a fines del siglo xVII con la aparición de
la llamada filosofía mecánica.

Este cambio en la cosmovisión de occidente implica también el abandono de


la metáfora organicista de la sociedad y la apelación a la metáfora mecanicista,
primero, y cibernética, después, como modelos explicativos del mundo. De este
modo la naturaleza se transformó en un mero «recurso», cuya explotación se

6
En el original: «In both Western and non-Western cultures, nature was traditionally feminine.
In Latin and the romance languages of medieval and early modern Europe, nature was a feminine
noun, and hence, like the virtues (temperance, wisdom, etc).personified as female. (Latin: natura, -
ae; german: die natur; french: la nature; Italian: la natura; spanish: la natura). the greek word
physis was also feminine». salvo que se indique lo contrario, las traducciones del inglés son nuestras.
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 229

legitimó consonantemente con un principio acumulativo de «riqueza» basado en


la explotación. Este paradigma acumulativo reemplazó el modelo de obtención de
recursos solo para la subsistencia. nuevamente en palabras de Merchant (1983: 2):

fue central en la teoría organicista la identificación de la naturaleza, especialmente la


tierra, con una madre nutricia: una mujer bondadosa y benéfica que proporcionó para
las necesidades humanas un universo ordenado y planificado. Pero también prevalece
otra imagen opuesta de la naturaleza como femenina: la naturaleza salvaje e incontrolable
que podría desatar violencia, tormentas, sequías y caos general. Ambas imágenes fueron
identificadas como propias del sexo femenino y eran proyecciones de la percepción
humana sobre el mundo exterior.7

La primera idea fue perdiendo sentido a medida que el mecanicismo y su


racionalización del mundo natural se fue extendiendo como base de la nueva visión
del mundo; visión divulgada por los pensadores de la revolución científica. La
segunda remite a la naturaleza como generadora de caos, favoreciendo la idea de
que dominarla es una necesidad que implica conocerla y utilizarla. La idea freudiana
de un instinto innato de dominación, que sería propio de los varones de la especie,
fortalece y legitima este mismo paradigma (freud, 1993).8 Entonces, si la idea de
madre-naturaleza y de «la tierra» como organismo vivo otro sirvió durante mucho
tiempo para limitar las acciones de usufructo desmedido de los recursos
disponibles, el surgimiento del modelo mecanicista bloqueó tal cuidado, que
dependía, en parte, de nociones ligadas a una religiosidad considerada más primitiva
o mágica. tales valores no tenían sentido ante los nuevos adelantos teóricos y
técnicos que permitían y avalaban la explotación de los recursos en una escala
mayor. Así, se reemplazó el «cuidado» temeroso y «primitivo» por un orden de
valores racionales bajo el presupuesto del dominio y del progreso ilimitado (Bordo,
1987). De modo que, al concebir el sistema completo de lo natural como un mero
ajuste de partes mecánicas —incluyendo al ser humano y los demás organismos—,
en lugar de un organismo vivo con sus múltiples relaciones con el entorno, en el
cual cada uno de sus componentes colaboraba para el funcionamiento del conjunto,
se legitima desde el comienzo un principio la dominación estructural vertical sobre
la naturaleza otra en términos de uso y usufructo acumulativo.

7
Cf. «Central to the organic theory was the identification of nature, especially the earth, with a
nurturing mother: a kindly beneficent female who provided for the needs of mankind in an ordered,
planned universe. But another opposing image of nature as female is also prevalent: wild and uncon-
trollable nature that could render violence, storms, droughts, and general chaos. Both were identified
with the female sex and were protections of human perception onto to external world».
8
freud habla de una «pulsión de dominio» o «sádica», propia de los varones, sobre la que basa
su posición sobre la imposibilidad de evitar las guerras en su famosa discusión con A. Einstein.
230 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

Probablemente, de la mano de una metodología atomística, no se consideró la


complejidad sistémico-estructural y las relaciones de pluridependencia que se
establecen en y entre los ecosistemas naturales y entre los diferentes organismos y
su entorno. Por el contrario, la instrumentalización, es decir, la manipulación en
función de un interés-otro partió de la separación en componentes atómicos, que
en realidad están relacionalmente unidos para desembocar en el supuesto de que
tales relaciones se producen entre «individuos» como si fueran «compartimientos
estancos». El hombre moderno, es decir, el varón occidental, culto, civilizado,
racional, urbano, de clase acomodada, de origen europeo, se autoinstituyó en
paradigma del sujeto. Pero, como se sabe, la contrapartida del sujeto es justamente
el «objeto». «objeto» es una categoría omninclusiva que finalmente agrupa tanto
a otros seres vivos, incluyendo a otros conjuntos humanos en términos del otro-
cultural, a las cosas en sentido amplio, a las mujeres, y a la naturaleza, como un
todo subvaluado, convirtiéndolos en aquello que debe ser investigado, conocido y
utilizado. Es decir, aquello sobre lo que se construye un discurso de otredad
cosificada. Esta dualidad sociedad-naturaleza ha cimentado la teoría y la praxis de
un discurso (en un sentido foucaultiano) que se decanta hasta nuestros días,
desencadenando consecuencias de diversa índole tanto a nivel ideológico como
práctico, de ahí la situación problemática que describíamos al comienzo de este
trabajo.
Una de las maneras de expresar la discontinuidad polarizada naturaleza-cultura
es no comprender a la ciudad como parte de un ambiente. En efecto, se la entiende
fuera del ambiente y de la naturaleza, y a los seres humanos que la habitan solo
como seres culturales; la cultura no encuentra otro fundamento que la mera
racionalidad instrumental misma. Así, se invisibiliza, por un lado, el origen de la
cultura y de las capacidades cognitivas superiores de la especie a partir del proceso
natural de la evolución; y por otro, que toda ciudad se emplaza en un entorno
determinado y en uno o varios ecosistemas que la preexisten. Paula núñez señala
al respecto:

… el modo en que se ha edificado el saber occidental, sustentado en jerarquías que


implican diversos ejercicios de dominio ha llevado a pensar la sociedad y la naturaleza
como ámbitos aislados e independientes [...] dado este modo de considerar el mundo
—presente también en el contexto de globalización actual— la reducción del medio
ambiente a recurso es cada vez más profunda [...] (2011: 17)

La división excluyente entre ambos conceptos se asocia a la conceptualización


del hombre como el ser «más desarrollado», cuya capacidad de razón y habilidades
relacionadas —que considera que son suyas de manera exclusiva— le permitirían
justificar la dominación sobre todo aquello no-humano. Lo no-humano, en este
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 231

esquema reductivo, se piensa como inferior y, a la inversa del paradigma organicista


que pretende protegerlo paternalísticamente, se lo cosifica y, por ende, se lo
instrumentaliza. De manera complementaria a esta observación, nuñez da otro
paso: según observa, hay una tendencia histórica a pensar que la naturaleza podría
desarrollar mejor sus potencialidades si un ser racional la dominara gracias al
conocimiento y la técnica (núñez, 2011a).
Así, la ciencia de la ecología surge como subsidiaria del modelo acelerado de
producción capitalista, dentro de la rama de las ciencias biológicas. no obstante,
la concepción con la que estamos más familiarizados es la de una nueva idea de
ecología, que surge a mediados del siglo xx a partir de la apropiación del concepto
por grupos activistas que la reivindican como práctica crítica y política. Esta última
acepción es la que invita a pensar la ética en relación a la complejidad del mundo
y a la responsabilidad social del tejido de la vida, del cual somos una pequeñísima
parte. Caso contrario, seremos responsables del ecocidio (Broswimmer, 2007),
legitimando en consecuencia un genocidio (shiva, 2007).
Aparece como pregunta «¿qué hacer ahora?» en virtud del conocimiento
disponible —divulgado y también en desarrollo— sobre, entre otros, las formas de
vinculación entre organismos y microorganismos y el equilibrio ecosistémico que
deriva en una reflexión sobre el impacto negativo de las sociedades humanas sobre
las demás comunidades biológicas, los ciclos naturales, los organismos y su
autorregulación. La ecología comienza a tener el doble carácter, natural y social,
con la que hoy la conocemos al abrirse de manera interdisciplinaria en el abordaje
de sus tópicos centrales, así como también de los nuevos enfoques disciplinares,
entre ellos, las ciencias humanas.
Junto al análisis del paradigma moderno del progreso que perfilamos breve-
mente más arriba, suponemos también un desarrollo piramidal de las actividades
productivas en un mundo de recursos que se presuponen cuasi-infinitos. Esa idea,
junto a la de mercantilización de la naturaleza que la equipara a un «recurso natu-
ral», ha sido revisada críticamente desde la filosofía contemporánea, principalmente
a partir de mediados de siglo xx. En principio, porque la Modernidad implicó una
desconexión respecto de la naturaleza. Precisamente, el «concepto moderno de
progreso» encarna la separación de la naturaleza, tanto física como psicológica-
mente. De modo que «Los procesos de urbanización y adelanto tecnológico han
apuntado a aislar a los seres humanos de los efectos de la naturaleza y, especial-
mente, de los meteorológicos» (Hamilton, 2011: 198). Pero, justamente, porque el
mundo no es infinito ni en recursos ni en espacios, sino que posee una capacidad
limitada para amortiguar los impactos de las actividades humanas, tal como lo es-
tamos vislumbrando, es necesario replantearnos el vínculo que tenemos con él
(Pérez, 2009).
232 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

CIUDAD Vs. AMBIEntE o CULtUrA Vs. nAtUrALEzA: Dos ConCEPtos VIEJos PArA for-
MAs UrBAnAs nUEVAs

El tradicional dualismo jerárquico que se establece entre naturaleza y cultura, entre


ciudad y ambiente, tiene —tal como vimos— una función ideológico-pragmática
específica. La creencia de que los seres humanos y la cultura existen de manera in-
dependiente respecto de la naturaleza, promueve el uso abusivo del medioambiente
sin la percepción de que ello genera un daño irreparable que, además, trae conse-
cuencias importantes a corto y a largo plazo para las sociedades humanas. tal creencia
es, por un lado, funcional al mercado, fundamentalmente al inmobiliario y al ex-
tractivo y, por otro, el mismo paradigma forcluye o invisibiliza los efectos de las ac-
tividades antrópicas realizadas sobre el medio.
Entonces, siguiendo a Val Plumwood (1993: 48-54), para comprender cómo se
construyen los dualismos valorativos jerárquicamente organizados de los que ve-
nimos hablando, se requiere atender necesariamente a cinco pasos que develan
sendos procesos (implícitos) de legitimación forcluida, que creemos pertinente
desmontar:

1) subordinación: el opresor usa al oprimido para fomentar su dependencia y a la


vez negar la propia. niega también la importancia de las contribuciones del opri-
mido, devaluado y subordinado. La subordinación del ambiente a la ciudad y
de la naturaleza a la cultura, se genera en la visión antropocéntrica y androcén-
trica de occidente. sistemáticamente se niega la importancia de los procesos na-
turales y se supone que estos deben ser conducidos y controlados por una
potencia racional, colocando a la naturaleza dentro del campo semántico de lo
irracional. Los servicios ambientales a la sociedad son minimizados, y la biodi-
versidad y los ecosistemas, devaluados.
2) Exclusión radical: implica el reconocimiento de las diferencias en el par
dicotómico naturaleza-cultura como radicalmente distintos y mutuamente
excluyentes. De ese modo, se devalúa la continuidad de la vida y las semejanzas
se ven como superficiales. Esto es especialmente evidente cuando se establece
una brecha ontológica entre el hombre y los demás animales. Lo propiamente
humano se define por contraposición a lo natural, situándoselo en un lugar
privilegiado. Por tanto, lejos de entender la ciudad como parte de un ambiente,
se la entiende como su opuesto ajeno.
3) Incorporación (definición relacional): en oposiciones dicotómicas el término
considerado superior incorpora (absorbe) las características positivas del tér-
mino considerado inferior. A su vez, el término considerado inferior queda de-
finido por el término superior solo según la característica devaluada. Las
cualidades que no se ajustan a este esquema son ignoradas o negadas. En una
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 233

dupla opresor-oprimido (cultura-naturaleza/varón-mujer), el término inferior


se reconoce solamente como una extensión del superior que puede incorporarlo
a sus sistemas de deseos y necesidades. Así, la naturaleza como término inferior
es definida como espacio vacío, rústica, salvaje, sucia, peligrosa o invasiva, por
lo que debe ser controlada. se produce de ese modo un desplazamiento de cua-
lidades desde lo [considerado] inferior (oprimido) a lo [considerado] superior
(opresor). Un desplazamiento afín reconoce Iris young como diseño particular
de la sociedad en términos masculinos, implicando que el conjunto de los varo-
nes siempre tiene más autoridad, control y beneficios sobre el conjunto de las
mujeres sin que su inversa se produzca (young, 1990). En este caso, la razón
instrumental sobre la «naturaleza» está regida por el imaginario de lo femenino
nutriente.
4) Instrumentalismo: se produce a partir de la consideración moral inferior de
aquel cuyo valor reside en ser instrumentalmente «valioso» para los intereses
del opresor. Un ecosistema o sus elementos, rara vez se piensan como entidades
moralmente relevantes per se al momento de un cálculo de intereses. El ser hu-
mano, en cambio, se posiciona como capaz de mejorar la naturaleza al modifi-
carla, sobreestimando sus capacidades intelectuales y/o justificándose en ellas.
Especialmente, esto se vincula a la ideología del «desarrollo sostenible o susten-
table», que hoy se encuentra en auge. Así, se incorpora al ambiente en el discurso
político, institucional o jurídico, pero solo como «recurso» en función del desa-
rrollo económico. no se consideran los ambientes naturales en sí mismos por
su biodiversidad o sus características intrínsecas, sino solo en función del usu-
fructo potencial que pueda realizarse de ellos.
5) Homogeneización: se caracteriza a todos «los oprimidos» del mismo modo, ne-
gando sus diferencias. Así como, de acuerdo al sistema de género, el discurso
social dice «todas las mujeres son…», el discurso social medioambiental tam-
bién supone una naturaleza homogénea, sin particularidades, donde todos los
ambientes se piensan como pasibles de uso y mejoramiento gracias a la inter-
vención humana. Pero, lo que cae bajo los términos de «naturaleza» y de «am-
biente» es, en realidad, un universo dinámico y plural que estamos comenzando
a comprender, cuyas complejas relaciones entre elementos bióticos y abióticos,
no deben ser ni simplificadas ni unificadas.

nuevamente, en palabras de Plumwood:

Así en el caso del dualismo humano/naturaleza, no es solo cuestión de mejorar el es-


tatus de la naturaleza, la moral o algo así, mientras todo permanece igual, sino de re-
examinar y reconceptualizar la noción de lo humano, y también el concepto de clase
de la naturaleza contrastante. En el caso del concepto de lo humano, de lo que ha de
234 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

ser completa y genuinamente humano y de lo que es auténticamente humano en el


conjunto de características típicas que los humanos poseen, ha sido definido por opo-
sición; por exclusión de lo que está asociado con la esfera natural considerada inferior.
(1996: 52)

Desde las últimas décadas del siglo pasado, tanto en Buenos Aires como en otras
grandes ciudades del mundo, la expansión urbanística, especialmente la privada,
está generando modificaciones en la configuración de los territorios metropolitanos
(ríos, 2012: 4). El cambio en el régimen de acumulación capitalista, desde el fordista
al flexible, influye el mercado inmobiliario incorporado al financiero. Así, oficinas
corporativas, edificios y hoteles de lujo, urbanizaciones cerradas, proyectos de re-
novación urbana, mega-emprendimientos de diverso tipo, se producen como cual-
quier otro bien financiero. De ese modo, con más fuerza reproducen y legitiman
los dualismos: sociedad vs ambiente, ciudad vs ambiente, cultura vs naturaleza, pro-
greso vs atraso, desarrollo vs estancamiento. Las zonas más buscadas para la reali-
zación de estos mega-emprendimientos suelen ser los bordes de agua (lagunas,
humedales, frentes costeros, ríos):

En momentos de mayor difusión del discurso ambiental (utilizado por distintos grupos
de las sociedades modernas con intereses contrapuestos) y de concientización sobre el
deterioro de ciertos elementos naturales, la asociación verde + agua se ha tornado un
bien escaso y valorado positivamente en los ámbitos urbanos, permitiéndole a los lotes,
predios, departamentos con vista/uso del «preciado elemento líquido», la obtención de
rentas diferenciales. […] Últimamente, el avance de la urbanización sobre áreas próxi-
mas a frentes marítimos, fluviales o lacustres, se ha constituido como una caracterización
por demás difundida. Los emprendimientos residenciales, turísticos o recreacionales,
en los que se entrelazan tierra y agua de ciudades tales como Miami (Estados Unidos),
Dubai (Emiratos árabes Unidos) o Ciudad del Cabo (sudáfrica) son ejemplo de lo an-
terior. Parecería que ese modelo no cesa de reproducirse y expandirse en nuevos lugares
de todo el mundo. (ríos, 2012: 5)

En nuestro país, emprendimientos como los de Puerto Madero o nordelta res-


ponden a ese esquema. De manera general, podemos decir entonces que las áreas
preservadas de la expansión inmobiliaria durante la consolidación de las metrópolis
modernas fueron aquellas inundables, de fisonomía baja, bordes de agua, que se
conservaron de manera más o menos íntegra por considerárselas inadecuadas para
la construcción. Los nuevos procesos de expansión urbana, con su estética de par-
quización, tienen como consecuencia la parcialización de la naturaleza, reempla-
zando su multidimensionalidad por una unidimensionalidad artificial (ríos, 2012:
6). Es decir, se reemplaza el paisaje nativo, refugio de fauna y flora local, por una
funcionalidad ecosistémica específica de paisajes banales que responden a una es-
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 235

tética global artificiosa, empobrecidos ecológicamente e incapaces de generar ser-


vicios ambientales en calidad y cantidad (Pintos, 2013).

CErrAnDo EL CírCULo

La situación urbano-ambiental en la que nos encontramos en nuestras ciudades


postmodernas necesita de una revisión crítica y urgente de los supuestos que origi-
naron el desarrollo urbano. Los debates acerca de los límites a la expansión de la
frontera urbana y agro-ganadera, los cambios en el clima, la relación conflictiva
entre ciudad y ambiente son temas que ponen en jaque el concepto mismo de pro-
greso que sostiene la ideología del urbanismo. no se puede mantener el modelo
urbano moderno en un mundo al que se entiende y se trata como un otro, porque
el conocimiento de que disponemos y los paradigmas que implementamos para
comprenderlo son insuficientes. La razón instrumental moderna no tuvo en cuenta
que los límites ecológicos de la expansión económica están determinados por la ca-
pacidad de los ecosistemas de amortiguar presiones, propiedad que se conoce bajo
el término de «resiliencia» (gomez-Baggethum y Amado, 2009). no conoce ni pre-
supone los límites del mundo y tampoco prevé su agotamiento. Actualmente la ca-
pacidad de resiliencia de un ecosistema debe ser tenida en cuenta, pues si bien los
sistemas naturales tienen capacidad de autoregenerarse y adaptarse a los cambios,
no pueden hacerlo más allá de cierto nivel de degradación y desorden de sus com-
ponentes. Por eso, debemos con urgencia resignificar la relación de la cultura con
el ambiente y de la ciudad, entendida como producto cultural, con la naturaleza.
Como bien advierte Alicia Puleo:

Corregir no es destruir. […] Erosionar las bases ilustradas de la Modernidad sin distin-
ción de sus componentes prepara el terreno al retorno a las cadenas. El sueño de la razón
produce monstruos […] necesitamos una reconceptualización ecofeminista de lo hu-
mano que se haga cargo de la responsabilidad moral que conlleva el nuevo poder tec-
nológico de la especie. Huérfanos de guías providenciales y despojados de coartadas
teológicas, descubrimos nuestra insignificancia en la infinitud del cosmos. En el universo
desencantado de la ciencia, la técnica y la filosofía, solo una mirada empática hacia hu-
manos y no humanos puede rescatarnos del nihilismo. (Puleo, 2011: 433)

Debemos comprender que esta violencia contra la naturaleza sigue el mismo


patrón que la violencia contra las mujeres: su raíz ideológica es la misma y está
fundada en la metáfora de la naturaleza como mujer y la idea de la mujer como
«cuerpo natural». Históricamente, se pensó a las mujeres como más cercanas a lo
natural por su capacidad de gestar y nutrir la vida. Dentro del imaginario occiden-
236 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

tal, ello significó estar del lado de lo animal; es decir, de lo irracional, lo instintivo
y lo emocional. En otras palabras, de lo que puede ser inferiorizado, cosificado,
instrumentalizado y dominado por un ser «racional», entendido como «superior»
(shiva, 1998).
Ese esquema jerárquico subyacente, este subtexto de género, nos lleva a encon-
tramos a principios del siglo xxI con una crisis ecológica a escala mundial producto,
en gran medida, de la razón que ha instrumentalizado y cosificado análogamente
tanto a las mujeres cuanto a la naturaleza. Así, si tradicionalmente solo se evaluó a
las mujeres por su capacidad procreativa, a la naturaleza se la ha visto como un
mero «recurso». Al hacerlo, se destruyó y se dejó fuera de toda consideración moral,
a aquello que no representa ni interesa al varón hegemónico. siguiendo con nuestra
analogía, se dejó fuera de consideración moral a los ecosistemas, la flora, la fauna,
las poblaciones de campesinos y pueblos originarios y las mujeres en general, todos
asimilados bajo esta lógica, a lo «femenino» devaluado; a lo otro por excelencia.

ConCLUsIonEs

Hemos querido desmontar un conjunto de supuestos que gobiernan el pensamiento


instrumental moderno y que, basados en la dupla del dominador-dominado, son
análogamente aplicables a las mujeres en general y a la naturaleza en particular. La
analogía tradicional mujer naturaleza/varón cultura nos permite establecer este vín-
culo y aplicar un análisis, en términos generales, afín entre ambos analogados. Para
mostrar cómo funciona ese mecanismo hemos querido visibilizar algunos niveles
conceptuales que quedan habitualmente forcluidos bajo el mismo paradigma del
que son elementos indispensables. Por eso, hemos traído ejemplos que muestran
cómo ningún espacio natural es contemplado como valioso «en sí mismo» por su
diversidad y servicios ambientales o por su incidencia en la vida saludable de las
poblaciones humanas (especialmente las urbanas). Por el contrario, son vistos como
«materia prima» o espacio «vacío», por un lado, destinados a la industria, la espe-
culación inmobiliaria, el monocultivo (soja), la extracción metalífera a cielo abierto
(La Alumbrera), el fracking (Vaca Muerta) y, por otro, a recibir los subproductos
generados por estos procesos, en términos de agentes tóxicos arrojados a corrientes
de agua, basurales a cielo abierto o rellenos sanitarios contaminantes, entre tantos
otros. Es decir, la ciudad devora al ambiente: toma de la tierra la materia prima que
le sirve para los distintos desarrollos productivos, la transforma, y luego arroja los
desechos nuevamente al ambiente.
tales emprendimientos, realizados a gran escala, externalizan los costos. Porque,
parte de su ganancia reside en que un alto costo permanece invisibilizado: la vida
humana y no-humana y la degradación del ambiente como cuotas invisibles que
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 237

paga la sociedad como un todo, al punto de poner en jaque a los mismos sistemas
que son la base material de su existencia. Emprendimientos de ese tipo se realizan
sin ningún tipo de análisis previo y confiable de impacto ambiental (ronco, 2009).
si bien cuando son a gran escala requieren de la previa realización de un «Estudio
de Impacto Ambiental» (EIA), generalmente son las mismas empresas las que los
llevan a cabo, minimizando el impacto a partir de la manipulación de los datos o
interviniendo los parámetros a nivel local. se trata de estudios sin rigor científico
que, denunciados por los grupos ecologistas, igual se aceptan.
no se miden los riesgos de las distintas especies y de las comunidades humanas;
ambos se deteriorarán a corto, mediano o largo plazo, terminando por destruir la
misma vida que dicen proteger.
El hombre occidental, que en general se piensa a sí mismo separado de la natu-
raleza, capaz de dominarla con sus fuerzas y redirigirla, erige la fantasía tecnócrata
de su potencia ilimitada. sin embargo, ya se muestran las fisuras de este modelo,
cuyas consecuencias estamos sufriendo a un ritmo que se acelera constantemente:
uno de los ejemplos más palpables es el cambio climático, que da por resultado si-
tuaciones catastróficas como la que hemos señalado al comienzo de este trabajo.
En esa dimensión a escala global, más bombas hidráulicas son un paliativo, no un
principio de solución.
se trata entonces, de replantearnos la relación entre nuestra forma de vida con
las ciudades en las que vivimos y sus relaciones con los ecosistemas en las que están
emplazadas. no se trata de modernidad o atraso; se trata de ecología o ecocidio.
Para ver cómo se ha producido la relación jerárquica según la cual la ciudad pre-
tende someter a su entorno, es preciso desentrañar el subtexto jerárquico domina-
dor/dominado que ha hecho de la naturaleza el «objeto» del dominio del ser
humano. Esto último implicó mostrar que ese supuesto es afín a la situación general
e histórica de las mujeres como «lo otro» inferiorizado y, bajo la misma estructura
conceptual, de todo aquello que se constituya como «lo otro» del varón hegemónico
paradigmático. Por eso, nos interesó subrayar también que la modernidad que se
impone parcializa la razón (como lo hace con la naturaleza), entendiéndola signifi-
cativamente en términos de «razón instrumental».
Paradójicamente, si bien hay excepciones, en general, la mayoría de las ciudades
se han desarrollado y se siguen desarrollando sin una planificación «racional» ur-
bano-ambiental. Por el contrario, siguen la lógica del mercado inmobiliario, mer-
cantilizando los espacios de modo acelerado bajo la ilusión de la infinitud de
«recursos». En consecuencia, la acción antrópica está a la vista: inundaciones, ele-
vación de la temperatura, falta de espacios verdes silvestres, degradación ambiental
y contaminación en general. Urge, por ende, poner en práctica medidas que revier-
tan la aceleración actual del imaginario occidental de «dominación» de la natura-
leza, reconsiderando el valor per se de los sistemas de la vida, preexistentes al ser
238 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

humano y base material de su desarrollo y de su cultura. Después de todo, y así ha


sido desde el comienzo de la historia de la bio-logía, los organismos incapaces de
adaptarse a su medio, han sido condenados a su extinción.

rEfErEnCIAs BIBLIográfICAs

AgrA, María xosé (1998): Ecología y feminismo, granada, Ecorama.


AnDrADE, María Isabel (2013): «ocurrencia de inundaciones en el gran La Plata
Abril de 2013», Informe, Departamento de geografía, facultad de Humanidades
y Ciencias de la Educación, Universidad nacional de La Plata.
—(2013b): «riesgo y gestión de recursos hídricos», IV Congreso nacional de ge-
ografía de Universidades Públicas y las xI Jornadas Cuyanas de geografía, Men-
doza, 19/05/2013.
—; LUCIonI, n. C.; IEzzI, L. E. (2012): «factores de riesgo hídrico en el gran La
Plata, Argentina», Ix° Jornadas nacionales de geografía física, Bahía Blanca,
19-21/04/2012.
— et al. (2003): Informe Problemática de inundaciones en el gran La Plata: mapa
de riesgo hídrico desde la teoría social del riesgo, Intercambio entre la Munici-
palidad de La Plata y el Departamento de geografía, facultad de Humanidades
y Ciencias de la Educación, Universidad nacional de La Plata.
BorDo, susan (1987): the flight to objectivity, new york, sUny.
BrosWIMMEr, franz (2007): Ecocidio: breve historia de la extinción en masa de las
especies, navarra, Laetoli.
CAVAnA, María Luisa; PULEo, Alicia. H. y sEgUrA, Cristina (coords.) (2004): Mu-
jeres y Ecología: historia, pensamiento, sociedad, Laya, Madrid.
CoLLIn, françoise (1994): «Espacio doméstico. Espacio público y vida privada»,
en Ciudad y espacio público. seminario permanente Ciudad y Mujer, Madrid,
pdf, pp. 231-237.
CrUtzEn, «the Antropocene», Ehlers, E. & Krafft t., (comp.) (2006): Earth sys-
tem science in the Anthropocene, pp. 13-18.
http://link.springer.com/book/10.1007%2fb137853 (consultado el 15 de febrero
de 2014).
frEUD, sigmund (1993): tres ensayos para una teoría sexual, Buenos Aires, Amo-
rrortu, tomo VII.
— (1993): Pulsiones y sus destinos, Buenos Aires, Amorrortu, tomo xxIV.
gArAy, A. M. (2007): Lineamientos Estratégicos para la región Metropolitana de
Buenos Aires. La Plata: Dirección Provincial de ordenamiento Urbano y terri-
torial. subsecretaría de Urbanismo y Vivienda, Ministerio de Infraestructura, Vi-
vienda y servicios Públicos, gobierno de la Provincia de Buenos Aires.
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 239

goMEz-BAggEtHUM y gArCíA AMADo, «sostenibilidad: cultura de los límites», en


VVAA Claves del ecologismo social (2009): Madrid, Libros en Acción.
grEEnPEACE (2008): Proyecto Basura Cero. Informe Impactos de los residuos só-
lidos Urbanos de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires en los rellenos sanitarios
del Conurbano Bonaerense. http://www.greenpeace.org/argentina/global/argen-
tina/report/2008/10/impacto-de-los-residuos-de-la.pdf (consultado el 10 de fe-
brero de 2014)
HorKHEIMEr, Max (1969): Crítica de la razón instrumental, Buenos Aires, sur.
MErCHAnt, Carolyn (1983): the death of nature, new york, Harper Collins.
MEsAnICH, Viviana y sCHMIDt, graciela (2007): Huellas: guía urbana de mujeres
de rosario, rosario, Universidad nacional de rosario Editora.
nUñEz, Paula g. (2011a): Distancias entre la ecología y la praxis ambiental: un aná-
lisis desde el ecofeminismo, La Plata, EDULP-Unrn.
— (2011b): «Los límites de lo social: naturaleza, jerarquía y teoría de género»: Po-
lémicas feministas, facultad de filosofía y Humanidades de la Universidad na-
cional de Córdoba.
PérEz, Edith (2009): «Cultura del crecimiento en un mundo finito», en VVAA, Cla-
ves del ecologismo social, Madrid, Ecologistas en Acción.
PIntos, Patricia y nAroDoWsKy, Patricio (coord.) (2012): La Privatopía sacrílega:
efectos del urbanismo privado en la cuenca baja del rio Lujan, Buenos Aires,
Imago Mundo, 2012.
PLUMWooD, Val (1993): feminism and the mastery of nature, London, routledge.
— (1996): «naturaleza, yo y género: feminismo, filosofía del medio-ambiente y ra-
cionalismo», Mora nº 2, UBA.
PULEo, Alicia H. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Ediciones Cáte-
dra, Universitat de Valencia, Madrid.
— (2008): «Libertad, igualdad, sostenibilidad. Por un ecofeminismo ilustrado» en
Isegoría, nº 38, 2008, pp. 39-59.
ríos, Diego, «Prólogo», en Pintos, Patricia y narodowsky Patricio (coord.) (2012):
La Privatopía sacrílega: efectos del urbanismo privado en la cuenca baja del rio
Lujan, Buenos Aires, Imago Mundo, 2012.
rIVErA CUsICAnQUI, silvia y BArrAgán, rossana (1997): Debates Postcoloniales.
Una introducción a los estudios de la subalternidad, La Paz, Editorial Historias-
Ediciones Aruwiyiri.
ronCo, Alicia E. (2009): Primer Informe de Auditoría de los trabajos de releva-
miento de biota, calidad de los recursos, agua, aire, suelo y características hidro-
lógicas del Proyecto Costa del Plata, destinado a ampliación urbana, zona ribera
de Bernal y Don Bosco, Provincia de Buenos Aires, Centro de Investigaciones
del Medio Ambiente, Departamento de Química, facultad de Ciencias Exactas,
Universidad nacional de La Plata (CIMA-UnLP).
240 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr

sHIVA, Vandana (2007): Las nuevas guerras de la globalización, Madrid, Editorial


Popular.
— (1998) «Las mujeres en la naturaleza» en Agra, María xosé, Ecología y femi-
nismo, granada, Ecorama.
VVAA (2009): Claves del ecologismo social, Madrid, Libros en Acción.
yoUng, Iris M. (1990): La justicia y la política de la diferencia. Madrid, Cátedra.
fuentes electrónicas
CEAMsE, Coordinadora Ecológica área Metropolitana sociedad del Estado, área
Metropolitana de la Provincia de Buenos Aires, Disponible en: http://www.ce-
mase.gov.ar/ (consultado el 23 de febrero de 2014).
facultad de Ingeniería, Universidad nacional de La Plata, disponible en:
http://www.ing.unlp.edu.ar/sphider/search.php?query=inundaciones&search=1
(consultado el 19 de enero de 2014).
foro regional en Defensa del río de La Plata, la salud y el Medio Ambiente (2009):
Incidencia de la contaminación del CEAMsE y el Polo Petroquímico, Disponible
en http://fororiodelaplata.wordpress.com/category/residuos-solidos-urbanos/ce-
amse/ (consultado el 20 de febrero de 2014).
Habitat y territorio. Disponible en: http://www.habitatyterritorio.com/ (consultado
el 12 de febrero de 2014).
servicio Meteorológico nacional. Disponible en: http://tn.com.ar/tags/servicio-
meteorologico-nacional (consultado el 5 de febrero de 2014).
MALPArtItA, A. (2001): Informe: Las cloacas máximas y la franja costera sur del
gran Buenos Aires, antecedentes y contaminación actual, Buenos Aires, Univer-
sidad de Buenos Aires. Disponible en: http://www.filo.uba.ar/contenidos/inves-
tigacion/institutos/geo/gaye/archivos_pdf/CloacasMaximasBerazategui.pdf
(consultado el 20 de febrero de 2014).
PIntos, Patricia (2013): «Periferia sin rumbo. Mercado inmobiliario y produc-
ción de paisajes banales en la cuenca baja del río Luján (Argentina)», xIV
Encuentro de geógrafos de América Latina, Perú, EgAL, 2013. Disponible
en: http://www.egal2013.pe/wp-content/uploads/2013/07/tra_Patricia-Pin-
tos.pdf (consultado el 7 de febrero de 2014).
14. Tejer y narrar en la plástica española
contemporánea
Mª Teresa AlArio TriGuEros
Cátedra de Estudios de Género
universidad de Valladolid

En los oscuros momentos en que todo estaba por descubrir, el hilo —un simple hilo
como símbolo de la evolución inteligente— fue un invento estratégico

MArGAriTA riVièrE

l
os estudios feministas pusieron pronto en evidencia que la relación estable-
cida por el patriarcado entre Naturaleza y Feminidad ponía a las mujeres en
una situación de inferioridad simbólica respecto a los hombres, a quienes se
asociaba con «la cultura» y «la historia». Por ello, como dice Mª luisa Cavana, aún
en nuestra cultura «humano significa lo masculino por oposición a lo femenino, la
raza blanca por oposición a otras razas, la cultura por oposición a la naturaleza»
(2004: 13). Como consecuencia se establece no solo un dualismo sino, como afirma
Val Plumwood, una relación dicotómica (mujer-naturaleza frente a hombre-cultura)
que implica «una relación de separación y dominación inscrita y naturalizada en la
cultura y caracterizada por la exclusión radical, el distanciamiento y oposición entre
los órdenes construidos como superior e inferior» (1993: 43).1
si el hombre ha construido la cultura a base de dominar y forzar a la naturaleza,
concebida como materia, es evidente cómo se llega a la legitimación simbólica de
la relación de dominación hombre-mujer. A lo largo de los siglos se ha justificado
el dominio del hombre-cultura sobre la mujer-naturaleza,2 pues el hecho de partir
de la superioridad de la razón y la cultura frente a la naturaleza justifica que esta ha
de ser sometida con objeto de «culturizar la naturaleza», en palabras de la antro-
póloga sherry ortner. En este sentido dice Jane Blocker que «la tierra, dada su im-
bricación simbólica con lo femenino, es un concepto tan construido culturalmente,

1
Mi traducción.
2
Así, por ejemplo, sostenía Fray Martín de Córdoba: «En ellas no es tan fuerte la razón como en
los varones [...] las mujeres son más carne que espíritu y por ende son más inclinadas a ella que al es-
píritu» (Goldberg, 1974: 210).
242 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

tan definido ideológicamente y tan controlado hegemónicamente como el de femi-


neidad» (2002: 337).
Tras la reivindicación de la relación mujer-naturaleza en el feminismo de los años
70 a partir de la figura de la «Gran diosa», comenzó a verse el peligro que esto en-
trañaba al situar a las mujeres fuera de la cultura, lo que llevó a una parte del femi-
nismo a incidir en la idea de que el espacio de la cultura era propio también de las
mujeres. Ello explica que uno de los objetivos de una parte significativa de las in-
vestigaciones feministas se ha orientado a la creación de una genealogía para rei-
vindicar la relación entre mujeres y cultura.
un apartado especialmente interesante de la relación mujer-naturaleza es la rela-
ción simbólica que se ha venido dando entre las mujeres y el mundo animal3 pues,
como afirma Marian scholtmeijer, en este caso existe «un peligro mayor para las mu-
jeres que su identificación con la naturaleza. la naturaleza en abstracto es grandiosa
e importante, los animales particularizados parecen menos seres vivos que nosotras
mismas. En abstracto, la naturaleza es un sistema muy poderoso relacionado con la
cultura, mientras que los animales no humanos parecen haber perdido de una ma-
nera inherente su batalla contra la especie humana»4 (scholtmeijer, 1995: 235).
la identificación entre la figura femenina y los animales no humanos ha situado
históricamente a las mujeres en el escalón más bajo de la relación ser humano-na-
turaleza, no solo porque generalmente esta relación ha estado desprovista de la ad-
miración o el respeto que mantenía en parte la concepción romántica de la
naturaleza, sino porque se ha utilizado en la mayoría de los casos para destacar los
valores más primarios e instintivos de «la feminidad», poniendo el acento en todo
aquello que supuestamente alejaba a esta de la razón.
En este contexto hay que situar las múltiples representaciones iconográficas de
mitos, alegorías o símbolos diversos que forman parte de nuestra historia cultural,
en las que se asocian valores o contravalores femeninos a imágenes de animales. El
saldo de la asociación mujer-animal en las representaciones de todos los ámbitos
de la cultura ha sido tradicionalmente negativo para ellas, en tanto que no solo ser-
vía para destacar algún defecto atribuible al género femenino, sino que ponía ade-
más en evidencia el carácter «casi» infrahumano del género femenino, como se
refleja en muchas obras de la Edad Media.5
Existen múltiples ejemplos en la iconografía artística occidental de la asociación
mujer-animal, tanto de animales «domesticados» como «salvajes», que por contra-

3
«Ella es toda la fauna, toda la flora terrestre…» escribía simone de Beauvoir en el análisis que
hace de los Mitos en El segundo sexo (2005: 244).
4
Mi traducción.
5
En este sentido, dice irene lópez que «el simbolismo animal pondera la naturaleza dual de la
mujer, que se mueve entre el plano instintivo (animal) y el racional (humano)» (lópez rodríguez, i.,
2009: 54).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 243

posición refuerzan la figura del hombre como esencia de «lo humano». Esta aso-
ciación mujer-animal generalmente ha sido utilizada para presentar los aspectos
más negativos del género femenino: temibles arpías, esfinges, sirenas, aviesas mu-
jeres gatunas, tigresas… por no referirnos a la íntima relación entre la mujer y la
malvada serpiente. Estas figuras aparecen en las obras artísticas una y otra vez, es-
pecialmente entre las últimas décadas del siglo xix y las de comienzos del xx. En
esos momentos la ciencia ratificó lo que ya formaba parte de los saberes y las tradi-
ciones de la mayoría de las culturas «que aunque se quisiera separar a la mujer de
los animales socializándola y pretendiendo que se la podía adaptar al mundo inte-
lectualmente evolucionado del hombre, al final se revelaría con toda probabilidad
que era imposible eliminar al animal que había dentro de ella» (dijkstra, 1986: 282-
283). Algunas de imágenes de esta relación presentan un fuerte contenido sexual
como en el caso de Sensualidad, obra que el alemán Franz von stuck realizó a finales
del siglo xix o —ya en el xx— la jovencita con el gato en la habitación bañada por
la luna pintada por Balthus en El gato ante el espejo.
A pesar de la difícil herencia histórica que supone para las mujeres esta relación
simbólica entre naturaleza y mujer, algunas de las líneas más recientes de los estu-
dios feministas, fundamentalmente vinculados al ecofeminismo, han planteado nue-
vas preguntas sobre esta relación al recordar la doble pertenencia de la humanidad
—y por tanto de ambos géneros— tanto a la naturaleza como a la cultura (Puleo,
2011). En este sentido cabe citar que uno de los motivos que señala sandra Harding
por los cuales el punto de vista feminista es privilegiado para encarar el conoci-
miento es su posición de mediadoras ideológicas naturaleza/cultura, ya que las mu-
jeres al haber sido heterodesignadas como naturaleza ponen en relación ambos
mundos.
se ha producido además un cambio significativo, ya que se invierten los valores
asociados al pensamiento ilustrado, pues tanto en el sistema de pensamiento que
Alicia Puleo define como primer ecofeminismo occidental, como en el ecofeminismo
espiritualista surgido en los países del sur en la década de los ochenta, se recupera
«el tradicional dualismo naturaleza/cultura que identificaba a las mujeres con el
mundo natural y a los varones con la civilización para, ahora, invertir los valores y
sostener la superioridad de la Naturaleza frente a la Cultura» (Puleo, 2004: 25).
En este contexto, el feminismo posibilita nuevas lecturas en la representación
artística de la asociación simbólica entre la feminidad y algunos animales, de modo
que la marca negativa asignada por la sociedad patriarcal se invierte al reivindicarse
por parte de las artistas feministas. identificarse con los animales no es ya un signo
de alteridad, sino una forma de rebelarse frente al patriarcado, al identificarse con
esos «otros» no humanos.
Tomemos como ejemplo la araña, un animal que en la mayor parte de las culturas
y desde las épocas más remotas no ha despertado demasiadas simpatías, sino más
244 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

bien repulsión y un cierto horror, hasta el punto de que el cristianismo la consideró


emblema del diablo que atrae a los seres humanos al pecado.
En occidente, hemos de remitirnos al mito de Aracné, en el que se fundamentan
y explican claramente las razones del miedo que suscita esta figura. ovidio en Las
Metamorfosis, narra que Aracné era una tejedora de la ciudad de lidia que sostenía
que su habilidad superaba a la de Minerva, a quien llegó a retar a un concurso de
tejido, por lo que fue castigada y convertida en una araña por la diosa. lo que tra-
dicionalmente se ha destacado en la lectura del mito de Aracné es el pecado de or-
gullo y su consecuente castigo, tal como fue representado magníficamente por
Gustave doré en la edición del año 1861 de Dante en el Infierno.
Pero este mito tiene una segunda lectura, porque el tapiz que Aracné realizó
para el concurso en el que se enfrentó a Minerva representaba un conjunto de epi-
sodios de seducciones engañosas y violaciones cometidas por los dioses; eran imá-
genes de acciones poco edificantes que irritaron a Minerva. Por tanto, se plantea
así la cuestión de si la principal razón del enfado de Minerva fue el reto de una mor-
tal en exceso orgullosa o se debió al tema que Aracné eligió para sus tapices, que
suponía una denuncia de los valores patriarcales que imperaban en el olimpo. Esta
segunda lectura desde una óptica feminista tiene un profundo significado, pues el
tejido se convierte en la forma de hablar, de denunciar, por parte de Aracné que
tras ser convertida en araña fue condenada al silencio. Como afirma ruth scheuing,
Aracné empezó siendo una mujer tejedora de textos a quien el castigo dejó sin voz,
buscando eliminar el poder comunicador y de denuncia de sus tejidos (scheuing,
1998: 326).
Hay que recordar el papel que aún tienen en la cultura occidental este y otros
mitos relacionados con la figura de la tejedora (Penélope, Filomena), porque de
otro modo es difícil entender las relecturas que el feminismo realizó de ellos y de
sus significados. Como dice ruth scheuing «a lo largo de la historia, las asociaciones
con figuras mitológicas aparecen una y otra vez y reflejan la manera en que una de-
terminada sociedad valora y apoya ciertas actividades y códigos de conducta. En
conjunto, estas diferentes historias promueven los valores establecidos bajo el pa-
triarcado. No obstante, (o aunque) hay relatos concretos que suponen un reto a
estas ideas establecidas» (scheuing, 1998: 319).
Estos relatos se activan en ciertos momentos, como sucedió a partir de la década
de 1970, cuando fundamentalmente desde el feminismo anglosajón se reivindicaron
las labores de aguja, asociadas en la mayor parte de las sociedades al mundo do-
méstico y a las mujeres. Con esta reivindicación, se cuestionaba a la vez la tradicional
división entre arte y artesanía desde la creación plástica. El llamado Fiber Art tenía
cierta conexión con las reflexiones del ecologismo emergente. de su importancia
nos habla el hecho de que uno de los apartados del libro Nueva crítica feminista
de arte, que a mediados de la década de los 90 editó Katy deepwell, esté dedicado
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 245

al uso del tejido como técnica artística relacionada con los principios del feminismo.
la técnica textil se convirtió de este modo en una forma de reivindicación, a la vez
que se rompía la división entre artes mayores y menores, abriéndose nuevas posi-
bilidades y líneas de investigación formal y de contenido.6 se revitalizaron así algu-
nos mitos clásicos de la cultura occidental como el de Aracné, el de Penélope o el
de Filomena, convocadas de nuevo para ocupar su espacio en el arte y en la historia.
Ellas volvieron a primer plano porque, como escribía Margarita riviere las mujeres
«guardan aún el hilo de la vida, aunque ya cosen las máquinas y los robots» (Blis-
niewski, 2009: 7).
la reivindicación de la araña por parte de los Feminismos no se reduce a la re-
cuperación y reivindicación del tejido como técnica artística, sino que se entiende
como una forma de narrar y crear otros textos. No podemos olvidar que entre las
definiciones que los diccionarios recogen del término «tejer» se incluye la acción
de «formar en el telar un tejido con la trama y la urdimbre», junto con «formar
ciertos animales sus telas y capullos», y también «discurrir, formar planes o ideas».
Partiendo de esta última acepción Barthes identifica tejido y texto:

Texto quiere decir tejido […] ahora destacamos en ese tejido la idea generativa según la
cual el texto se hace, se elabora en un perpetuo entretejimiento; perdido este tejido —su
textura— el sujeto se deshace a sí mismo, como araña que se disuelve en las secreciones
subjetivas de su tela. si fuésemos aficionados a los neologismos podríamos definir la teoría
del texto como hyfología (hyfos es el tejido y la tela de araña) (Barthes, 1974: 104).

En respuesta a la teoría de la Hyfología de Barthes, Nancy Miller acuñó el tér-


mino Aracnología, haciendo hincapié en la subjetividad de género. la Aracnología
se definiría como «una actitud crítica que se interpreta contra el tejido de indife-
renciación para descubrir la incorporación al texto de una subjetividad determinada
por el género, para recuperar dentro de la representación el emblema de su cons-
trucción» (Miller, 1988: 80). Aunque estas teorías se han aplicado esencialmente a
la creación literaria son también clarificadoras a la hora de analizar algunas realiza-
ciones plásticas feministas, de modo que las artistas que tejen se posicionarían como
sujetos hablantes conscientes de su género, revelándose a través de la relectura de
los mitos de Aracné, o Filomena7 ante el silencio impuesto. Porque no podemos
olvidar que además de perder la forma humana, Aracné fue castigada al silencio:
«empezó siendo una mujer tejedora de textos. Fue transformada en araña, una te-

6
«Tejer es más que un símbolo del lenguaje [...] es también un símbolo de la naturaleza del len-
guaje, determinada por el género, y un medio de resistencia» (scheuing, 1998: 327).
7
Hija de Pandión, rey de Atenas, quien tras ser violada por su cuñado, este le cortó la lengua para
que no lo contara. Pero ella teje un manto en que narra lo sucedido, logrando así que llegue a cono-
cimiento de su hermana.
246 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

jedora silenciosa [...] que dejaba sin voz a la tejedora Aracné. El poder comunicador
de su trabajo de tejer ha desaparecido» (scheuing, 1998: 326). El Feminismo, al in-
terpretar la obra de algunas artistas según su revisión de los mitos de Aracné, Filo-
mena o Penélope, ha puesto el acento en el acto de desafío y el control sobre su
destino que implica la relación entre tejer y narrar (scheuing, 1998).
Partimos, por tanto, de que en la base de nuestra cultura —como en otras mu-
chas—8 el hilo y la palabra, tejer y narrar, son una sola cosa. y por ello cuando al-
gunas artistas quieren mostrar que son poseedoras de la palabra, vuelven al tejido
y se identifican con la figura de la araña, la gran tejedora. Por tanto, la utilización
del tejido en las creaciones feministas desde las últimas décadas del siglo xx no res-
pondió únicamente a la reivindicación de las actividades femeninas tradicionales,
haciendo borrosa la frontera entre arte y artesanía, sino a la búsqueda de la recu-
peración de la palabra, al deseo de narrarse como artistas y mujeres a partir del te-
jido. Aunque son muchas las obras que aquí podrían citarse, cabe recordar a modo
de ejemplo Cogito, ergo sum de rosemarie Trockel, o las realizadas por Ghada
Amer, artista egipcia que borda sobre fondos pictóricos figuras de mujer, muchas
veces tomadas de las revistas pornográficas, pero también en escenas de trabajo o
acciones domésticas con la intención de recordarnos, como dice Frank Frangen-
berg, que la identidad femenina parece pender de un delgado hilo. También rela-
cionada con la figura de la araña está Permanent Demonstration (1976), acción
artística de Annegret soltau en la cual enredaba su cuerpo en una maraña de hilos.
la fusión entre el tejido y el cuerpo está presente también en las obras de Mona
Hatoum, en algunas de las cuales teje su propio cabello entrecruzando el paso del
tiempo, la identidad de género y la cultural con referencias autobiográficas. sería
imposible no citar también aquí a louise Bourgeois y su concepto sanador del arte
a partir del uso de la aguja, que cierra y sutura heridas.9 Para ella, la araña, aunque
también a veces temible, es la gran Mamá, poderosa, protectora y constructora de
la vida: «¿por qué la araña? Porque mi mejor amiga fue mi madre, y ella era cuida-
dosa, lista, pacientemente pulcra y útil como una araña. Ella también sabía defen-
derme a mí y a sí misma».10
Toda esta carga simbólica del tejido hace que no sea casual que partir del desa-
rrollo de internet, en el mundo del ciberespacio términos como hilo, tejer, red o
araña se han asociado a feminismo, como en el caso de Mujeres en Red en España,
Les Penélopes en Francia o La araña feminista en Venezuela.

8
Por ejemplo, cuenta Marcel Griaule en el libro Dios del agua que según la religión tradicional
del País dogón (Mali) «la tela se llame soy, que significa Es lA PAlABrA».
9
«Art is a guaranty of sanity», escribe en una de sus obras.
10
Bourgeois, l. (2002): Destrucción del padre-reconstrucción del padre: escritos y entrevistas
1923-1997. síntesis Editorial, Madrid.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 247

desde el feminismo anglosajón, en el que predomina una visión holística de la


naturaleza, se puso pronto en evidencia que en el encuentro entre la ecología y los
feminismos, los tejidos «significan en este contexto nuestro redescubrimiento de
un modo de vida de base ecológica […], los tejidos en la naturaleza proponen con
frecuencia una nueva alineación estética entre lo natural y lo cultural» (Jerfferies,
1998: 289-290). Así, los tejidos se convirtieron en uno de los mejores instrumentos
para que las artistas cumplieran con el papel de mediadoras ideológicas entre na-
turaleza/cultura, como destacó sandra Harding.
Ninguna de las artistas citadas hasta aquí forma parte del contexto cultural del
Estado español, por lo que surgen ciertas preguntas: ¿qué ha sucedido durante
estos años en el arte del Estado español? ¿No ha habido creadoras trabajando con
el tejido? ¿Ha tenido o aún tiene un papel significativo en nuestro arte feminista?
Evidentemente, hay en nuestro territorio creadoras con una larga trayectoria en la
que más o menos puntualmente está presente la referencia directa o indirecta a la
figura de la araña que teje, como en el caso de la serie La vérité est mieux que rien
(Louise Bourgeois) de Eva lootz, artista que suele recurrir a la figura de los ani-
males para sus creaciones. otro ejemplo lo encontramos en la obra Araña de sole-
dad sevilla, en la que recrea una tela de araña en grandes dimensiones para destacar
su carácter constructivo y geométrico, valores que se suelen asociar a lo racional y,
por lo tanto, a lo «no animal». Hay otros ejemplos de conocidas artistas como Elena
del rivero o Maribel doménech cuya obra tiene en los textiles o el tejido uno de
sus ejes y —especialmente en la última década— han surgido proyectos colectivos
de interés en torno al poder comunicador del tejido, como la exposición Coser y
callar, comisariada por yolanda Herranz, o Aracnologías, coordinada por Teresa
Gómez reus y áfrica Vidal. sin embargo estos ejemplos de creadoras que han unido
tejido y palabra no dejan de ser excepciones en el contexto del arte español, por lo
que las artistas que hoy se aventuran a seguir reivindicando a Aracné no encuentran
referentes en nuestro pasado próximo y siguen mirando hacia el exterior. Es cierto
que en la genealogía feminista del arte español faltan «conectores», que aún es ne-
cesario recuperar realidades y huellas perdidas, sobre todo de mujeres artistas que
trabajaron en el Estado español en las décadas de los 60 y comienzos de los 70.11
Aunque están siendo ahora reivindicados y recuperados nombres relacionados con
el conceptualismo como los de Fina Miralles o Àngels ribé, bastantes artistas ob-
jetuales quedan todavía invisibilizadas en los pliegues de la historia.
El problema es que, como dice Patricia Mayayo refiriéndose a la situación del
arte feminista en España, hemos vivido y crecido huérfanas de genealogía artística

11
A pesar del salto que supuso la exposición Genealogías feministas en el arte español: 1960-2010 ,
realizada entre los años 2011 y 2012 en el MusAC de león y comisariada por Juan Vicente Aliaga y
Patricia Mayayo, así como la posterior publicación del catálogo.
248 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

propia, y dependientes de los discursos anglosajones y franceses. Ello ha generado


un «síndrome de tabula rasa, un mismo cansancio por la sensación de estar empe-
zando siempre de cero» (2013: 33). lo que parece evidente es que lo que sirvió
para el análisis de la obra a las artistas europeas o norteamericanas de las décadas
de los 60 y los 70, en otro contexto espacio-temporal y en otro marco sociológico,
aquí no nos sirve. No podemos olvidar la existencia del largo periodo del fran-
quismo que, a pesar de las décadas pasadas, ha dejado unas marcas que no es po-
sible obviar. ¿No tendrá alguna relación el que las artistas feministas que trabajaron
en las décadas de los 70 hubieran vivido la «férrea educación en labores» a que se
sometía a las niñas y jóvenes a través de la sección Femenina y la educación reglada12
con la resistencia a usar el tejido o el bordado como elemento de reivindicación?,
¿cómo hacerlo si para ellas los trabajos de aguja seguían siendo instrumentos con
los que el sistema patriarcal las recluía en el ámbito de lo privado y las separaban
de lo intelectual?
Todavía en la década de los 90 del pasado siglo en la obra de artistas declarada-
mente feministas como Marina Núñez se detecta cierto distanciamiento con res-
pecto a estas técnicas de modo que, aun cuando utilizaba en sus obras materiales
textiles considerados «domésticos» y «femeninos» como manteles bordados, hacía
notar de un modo insistente que no los había realizado ella, distanciándose de la
reivindicación de este tipo de técnicas artístico-artesanales. El peso de la reciente
historia de España cegaba las miradas, de modo que mientras se veían con interés
y respeto las obras de Miriam shapiro o rosamarie Trockel, en el territorio hispano
la relación textil-arte feminista se presentaba como una especie de erial donde la
única figura (relativamente) salvable era Aurelia Muñoz.
sin embargo, puede que quizá no hayamos mirado bien y las obras estén ahí,
esperando ser vistas e interpretadas. y esto explica que precisamente entre las ar-
tistas más invisibles y oscurecidas, aquellas cuyas huellas se han ido perdiendo, estén
quienes han trabajado y reivindicado el tejido como arte, las Aracnes del arte espa-
ñol. María Aurèlia Capmany nos ponía en guardia, ya en 1975, contra el significado
del olvido: «El olvido que afecta a nuestra propia historia es, en el caso del movi-
miento feminista, más grave aún, porque la muchacha de hoy que se cree evolucio-
nada, no se da cuenta de que toma el partido de sus propios enemigos» (Capmany,
1975: 8).
lo cierto es que hasta las últimas décadas del siglo xx la artesanía seguía siendo
considerada un conjunto de técnicas menores por la «alta cultura» hispana. y es-
pecialmente aquella que trabajaba las materias blandas como el textil, asignado tra-

12
la ley de Educación Primaria de 1945 establecía que «la educación primaria femenina prepa-
rará especialmente para la vida en el hogar, artesanía e industrias domésticas».
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 249

dicionalmente a las mujeres en nuestro ámbito cultural.13 Como dice la artista Teresa
lanceta, aún hoy «los tejidos no suelen estar en los libros de arte si no van acom-
pañados de un adjetivo que matice su cualidad artística». solo así puede entenderse,
por ejemplo, que la obra de Aurelia Muñoz (1926-2011), la gran renovadora del
arte del tapiz en España, vinculada con el minimalismo, las instalaciones y el arte
conceptual, haya quedado en una especie de terreno de nadie en la historiografía
del arte español. o que pocas personas recuerden que Magda Bolumar (Caldas de
Estrach, Barcelona, 1936) es algo más que la viuda del gran escultor informalista
Moisés Villelia. Como dice Marta Mantecón «la historia del arte es, como cualquier
otra disciplina, un cúmulo de elecciones relatadas» (2011: 18), por ello, en esta re-
flexión, hemos optado por detenernos en primer lugar en la figura de esta artista
catalana, una Aracne injustamente olvidada por nuestra literatura artística, de quien
Cirici Pellicer escribió: «Magda Bolumar ha hecho algo más simple y más puro de
lo que nadie había hecho jamás. dejar hablar al tejido en sí mismo» (1970: 3).
las «xarpelleres» que Magda Bolumar, cuya obra se contextualiza en las van-
guardias catalanas de las décadas centrales del siglo xx,14 expuso por vez primera
en el año 1960 en varias salas de Barcelona tienen un sentido esencialmente cons-
tructivista, pues a pesar del papel innegable que en ellas tiene la materia y la textura
que las conectan en cierto modo con el informalismo, la estructura adquiere el pro-
tagonismo principal a partir de las tensiones generadas por los hilos, tal como des-
tacaba Cirici:

otros artistas como Burri o Millares, se dedicaban entonces a la obra basada en mate-
riales textiles, pero uno y otro dejaban de lado el material para centrar la atención sobre
las dramáticas vicisitudes en las cuales el material hacía el papel de víctima. romperlo,
coserlo, apedazarlo, atarlo, mancharlo de gotas o goteos. Magda Bolumar, a diferencia
de ellos dejó que fuera el material mismo el protagonista de su obra. Que asumiese su
significado, que tomase una actitud, que realizara un acto.
En esta dinámica, vemos cómo los hilos de la misma tela se dividen o se agrupan; cómo
destejen para liberar un calado y se retejen para cubrir un campo; se separan en haces
divergentes como palmitas, o convergen hacia un punto de ataque; [...] las fibras adop-
tan todo tipo de papeles estructurales, solas, retorcidas en cuerdas u entretejidas en
trama (Cirici Pellicer, 1970, 4).

13
«Curiosamente, el hombre contemporáneo cree que lo que él llama artesanía, donde supuesta-
mente predomina la habilidad manual y el patrón establecido sobre el talento creativo, es como un
arte de mentirijilla. y, claro, quien teje un tapiz ha de ser, por fuerza, un artesano, porque no puede
campar libremente por sus respetos y, sobre todo, es algo doméstico, popular y funcional; vamos, por
decirlo así, la apoteosis de lo femenino» (Calvo serraller, 1996).
14
Estuvo vinculada al grupo de Arte Actual de Mataró y más indirectamente con algunos artistas
de Dau al set. Colaboró estrechamente con la revista Inquietud artística, manteniendo amistad con
Joan Brossa y Cirici Pellicer, entre otros.
250 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

En este texto se destaca la diferencia de significados del uso del textil en el con-
texto de la versión hispana del informalismo: frente al dramatismo y la denuncia de
la podredumbre que latía en las arpilleras de Millares, la idea de la construcción de
un nuevo cosmos está en la base de las obras de Magda Bolumar. una idea bajo la
que se esconde la necesidad de «reordenar» el mundo, ya que la trama de los hilos
le sirve para construir «su mundo», un cosmos organizado lleno de ecos orgánicos.
la artista siempre ha negado que su obra pueda considerarse estrictamente
como informalista.15 la confusión procede de la simplificación y superficialidad
con que es tratada la obra de gran parte de las artistas, y con la tendencia ancestral
de convertirlas en seguidoras de los grandes nombres masculinos, considerados por
la historia canónica como los verdaderos renovadores. En el caso de la obra de
Magda Bolumar la historia del arte de un único carril a la que estamos acostum-
brados forzó el significado de la relación materia-vanguardia, haciéndola pasar ex-
clusivamente por una lectura desde el informalismo.
lo cierto es que las «xarpelle-
res» que Magda Bolumar realizó
ente las décadas de 1960 y 1990,
aunque presentan diferencias a lo
largo del tiempo que son conse-
cuencia de una evolución, siempre
muestran una fuerza esencial-
mente cerebral, como ha puesto
también de manifiesto la crítica Mª
lluïsa Borràs: «las magníficas
“xarpelleres” de esta artista mani-
fiestan una arrolladora liberación
de fuerzas, cerebrales en su mayo-
ría, que desembocan en tensiones
de urdimbre en trama, estrellados
o paralelismos reveladores de una
liberación intelectiva, de ingenio y
rigor constructivo».
El teñido de las arpilleras, el
uso de colores jugosos y vivos, de
Magda Bolumar. Xarpellera (1962) esos «verdes alternativamente de

15
En una entrevista que realicé a la artista en 2008, me respondía así a la pregunta sobre la relación
de su obra con el informalismo hispano de las décadas centrales del siglo xx: «No creo que mi obra
pueda ser considerada informalismo. En aquella época estaba trabajando en mis xarpelleres que tienen
un sentido constructivista».
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 251

oliva y esmeralda, de helecho y roble…», unido a las líneas de tensión-construcción,


establecen una relación con lo natural y lo orgánico: recordando estructuras rami-
ficadas, alas, membranas, telas de araña. Con el bordado de sus «xarpelleres»,
Magda Bolumar busca acercarnos poéticamente a la vida, como decía Joan Brossa
en un texto dedicado a uno de lo cuadros de la artista, en que destacaba el sentido
lírico de estas estructuras textiles: «El marc/ fa de tambor/per a bordar el sac»
(Brossa, 1965: 6).
una relación con la naturaleza que también se mantiene cuando la pintora dibuja
con tintas, como destacaba Cirici en 1982:

... cultiva el dibujo pequeño, precio-


sista, casi una miniatura, con una
gran preocupación por la calidad
del material [...] los temas, delica-
damente escritos sobre los fondos
nebulosos, son temas lineales y rít-
micos como los de las Xarpelleres,
[...] sugieren la vida orgánica por-
que tienen cabezas y abdómenes,
tienen patas y antenas, filamentos li-
geros, nervios, membranas de colo-
res (Cirici, 1982: p. 3).

A partir de la década de 1980 las


obras de Magda Bolumar, que ha
seguido produciendo de un modo
silencioso sus «xarpelleres», dibujos
y esmaltes cada vez más cargados de
lirismo, vuelven a verse en las salas
de exposiciones, pero las demandas
del mercado artístico van por cami- Magda Bolumar. Xarpellera (1969)
nos muy distintos en esos años. Hoy
se conocen solo datos sueltos sobre la trayectoria y la obra de esta artista y, como
en otros casos de mujeres artistas, se hace necesario rastrear su actividad en los es-
tudios publicados sobre su marido.
un segundo nombre que queremos destacar aquí es el de Teresa lanceta (Bar-
celona, 1951).16 la obra que esta artista realiza a partir de la década de 1980 se ins-

16
Es licenciada en Historia Moderna y Contemporánea y está doctorada en Historia del Arte. En
la actualidad vive en Alicante.
252 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

pira en las técnicas tradicionales de los tapices de Marruecos, haciendo tambalear


la vieja distinción entre arte y artesanía,17 a la vez que destaca las relaciones entre
las estructuras del tejido y las tendencias constructivas en el arte contemporáneo
occidental.18 A pesar de que la modernidad se había apoyado en una relectura de
la plástica no occidental, esencialmente procedente del áfrica subsahariana, los tex-
tiles quedaron fuera en ese proceso. Hecho lógico, si se tiene en cuenta que incluso
la tradición tapicera occidental había quedado devaluada en toda Europa —más
especialmente en España— y olvidada en gran parte con el desarrollo de la moder-
nidad. Este es el contexto en que
Teresa lanceta nos pone ante esas
piezas que conectan con la tradi-
ción del norte de áfrica.
En un primer momento, Teresa
lanceta realizaba tapices planos e
inspirados en motivos extraídos
del arte tradicional, pero reinter-
pretados de un modo muy pictó-
rico y poniendo en evidencia la
geometría que vincula este tipo de
tapiz con las vanguardias, aunque
busca utilizar «la geometría como
vehículo de imprevisión, no de se-
guridad», en palabras de la propia
artista.19
Posteriormente la mezcla entre
tejido y pintura se hace más com-
pleja y evidente en una serie que
lanceta denominó «lienzos cruza-
dos» en los que utiliza varios lien-
Teresa lanceta. El Cabo (2003)
zos cortados en tiras que entreteje
a modo de hilos o mimbres. Como ella describe, «este cruce crea una doble com-
posición, una oculta y otra a la vista, una encubierta y otra que encubre. los dibujos
originales quedan fragmentados y distorsionados». A esta serie pertenece una obra

17
A finales de la década de 1980 Victoria Combalia destacaba que los tejidos de lanceta suponían
una reconsideración de las labores femeninas. Victoria Combalia (1989).
18
María Escribano ha relacionado la investigación plástica que subyace en la obra de Teresa lan-
ceta con la pintura abstracta de artistas como Newman, stella, scully o Blekner. Sobre la exposición
«La alfombra roja». El País, 9/12/1989.
19
Web de Teresa lanceta: http://www.teresalanceta.com/es/index.php (consultado el 29 de di-
ciembre de 2013).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 253

que titula El Cabo de las Huertas,20 que se refiere a un lugar de la costa alicantina.
la artista hace en ella una clara defensa del medio ambiente y llama al respeto por
una naturaleza cotidiana, que «no es salvaje ni sublime ni exige admiración», frente
a la privatización y a la ocupación inmobiliaria insensata y destructora que ha des-
truido nuestras costas. los colores de los lienzos que se entretejen remiten a los co-
lores intensos y mediterráneos: el azul, el intenso amarillo, el color de las plantas
que florecen espontáneamente en el roquedal.
Así, en la obra de Teresa lanceta, nuevamente el hilo, el tejido, deviene palabra
que denuncia. El sentido crítico que subyace en la Aracnología está claramente pre-
sente en la obra abstracta de lanceta, que nos habla muy claro de cosas muy cer-
canas a nuestra vida:

Que el arte occidental evite la reflexión ecológica y el compromiso de su propio medio


es una soberbia que no va a durar eternamente, y deja en entredicho a la alabada auto-
nomía del arte que no cuestiona su propia dependencia, muchas veces, servil respecto a
los poderes políticos y económicos.21

Tanto en la obra de Magda Bolumar como de Teresa lanceta, encontramos unas


constantes: que el uso del tejido no es una mera reivindicación de la artesanía, sino
que indaga en la potencialidad constructiva y racional del hilo sin renunciar a su
valor comunicativo y poético;22 que la elección de la técnica y el material es una de-
cisión consciente que aporta a sus obras un sentido de respeto a la naturaleza, que
en el caso de Teresa lanceta hace también explícito en sus textos.
la tercera de las artistas cuya obra quisiera tratar en este texto es Andrea Milde
(1963). Nacida en Ennepetal (Alemania), vive desde 1986 en España donde ha de-
sarrollado gran parte de su obra centrada en la capacidad narrativa del tejido. En
el año 2006 la artista se trasladó desde Madrid a la montaña palentina, a un pue-
blecito cercano a Aguilar de Campó, en busca de un mayor contacto con la natu-
raleza. Andrea Milde es una Aracné con una obra especialmente interesante porque
en sus obras, con sus hilos y sus temas, conecta el «yo» con el «nosotras». una
artista comprometida y personal de quien Javier Tolentino escribió que «es una ar-
tista que teje gobelinos mirando a Beuys» (1998),23 haciendo de la técnica una me-
táfora de su pensamiento.

20
obra fechada en 2003, que forma parte de los fondos de la Fundación Alberto Jiménez-Arellano
Alonso (universidad de Valladolid).
21
Web de Teresa lanceta: http://www.teresalanceta.com/es/index.php (consultado el 29 de di-
ciembre de 2013)
22
Podríamos aplicar a la obra de estas artistas la frase de Elena del rivero: «con este vocabulario
secreto y ancestral voy hilvanando ideas y pensamientos».
23
Web de Andrea Milde: http://www.andreamilde.com/Espa%F1ol/TextoTolentino.html (con-
sultado el 29 de diciembre de 2013).
254 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

Formada en la década de los 80 en la Ecole Nationale d’Art decoratif d’Aubus-


son (Francia), se especializa en la realización de tapices de gobelinos, tapices pic-
tóricos que le Courbusier definió como «murales nómadas». desde 1989, en que
participó en su primera exposición colectiva en Alemania, hasta la actualidad su
obra se ha expuesto en EE uu, Canadá, Japón, así como en varias ciudades europeas
como san Petersburgo, Graz, Budapest o Madrid, entre otras. sin embargo su obra
ha sido hasta ahora prácticamente «invisible» para los círculos artísticos hispanos
a pesar de su evidente calidad, lo que hace que haya que seguir preguntándose si
realmente se ha superado la vieja dicotomía arte/artesanía. Heredera de la antigua
tradición artesana, Andrea Milde concibe la realización del tapiz como un proceso
en que ella ha de intervenir directamente desde el diseño hasta el momento de cor-
tar los hilos.24 Cada tapiz tiene un proceso en el que no cabe la prisa. Constituyen
«un hermoso duelo contra el tiempo» a través del cual nos invita a recuperar el
valor del tiempo reposado, el respeto a los ritmos de la naturaleza.
los temas y estilo de los tapices de Andrea Milde son muy variados e incluyen
tanto formas extremadamente figurativas como abstractas. destaca entre ellos un
conjunto de especial interés compuesto por 7 piezas textiles de gran tamaño que la
artista ha titulado Las siete Marías, realizados entre los años 1997 y 2001.

Andrea Milde con su obra Las 7 Marías

24
Es muy expresiva la forma en que Andrea Milde cuenta cómo «nace un tapiz». El paralelismo
con la idea de parto es evidente cuando se refiere al corte de los hilos como si se refiriese al cordón um-
bilical, y describe el modo en que siente todo el peso del tapiz enrollado en sus brazos por vez primera.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 255

Cada pieza representa a una mujer rural con una técnica minuciosa que permite
recrearse en todos los detalles de rostros, manos, vestimentas, poses… son mujeres
de pueblo sentadas al sol que conversan; figuras potentes, mujeres-montaña por los
volúmenes casi geológicos de sus cuerpos y los pliegues de sus ropas. El origen de
esta obra, según cuenta la artista, es una vieja fotografía familiar que le sugirió la
necesidad de hacer «genealogía», de recordar las raíces rurales de su abuela y su
madre. Pero tras ese primer nivel de lectura hay aún un segundo, más sutil y menos
evidente que introduce complejidad en esta obra. En la esquina inferior derecha
de la segunda pieza comienzan a verse unos pequeños personajes que aparecen,
como si de una secuencia se tratara, a lo largo del resto de las piezas y que cuentan
una historia. son figuras solo perfiladas que cuentan una dura historia de maltrato,
hablan de esa violencia soterrada en lo cotidiano que es la violencia de género, lo
silenciado, lo sabido y contado en voz baja, lo sufrido sin palabras. Porque quizá
no era únicamente de cosas cotidianas e intrascendentes de lo que hablaban las an-
cianas mujeres representadas en los tapices.25

Andrea Milde. Las 7 Marías (detalle de uno de los tapices)

25
Así describe Andrea Milde en su blog cómo introduce la referencia a la violencia de género:
«Había terminado el primero de los siete tapices cuando ocurrió el asesinato de Ana orantes, en di-
ciembre de 1997. Ella fue quemada viva por su marido tras relatar su historia en televisión. la difu-
sión del suceso a través de los medios de comunicación puso de manifiesto el drama de las víctimas
del terrorismo doméstico en toda su crueldad. desde entonces, las cifras revelan una tendencia cre-
ciente». https://amilde.wordpress.com/obra-work-werke/human-textile/las-siete-marias-1996-2001/
(consultado el 29 de diciembre de 2013).
256 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

Andrea Milde sigue realizando magníficos gobelinos, pero ha dado un paso más
apoyándose en el tejido para investigar nuevas formas ecoartísticas a través del land
art, la performance y las instalaciones.26 El proyecto 410 días es un magnífico ejem-
plo de proyecto ecofeminista en el ámbito artístico en que se mezclan el fiber art y
la performance. Milde inició este proyecto en junio de 2012, cuando le faltaban 410
días para cumplir 50 años, un número significativo en la vida de todo ser humano
y especialmente en el de las mujeres que sienten cercanos muchos cambios con la
llegada de la menopausia.
Como en sus tapices, este es un proyecto complejo que tiene varias «capas» en
las que el tiempo es el elemento de conexión, como se refleja incluso en los elemen-
tos que constituyen el proyecto. Por una parte, está la obra textil, un tejido que fue
creciendo y formando una gran bola a lo largo de los 410 días. El objetivo era «tejer
[…] 120 metros de este hilo de Ariadna, lo que hace una media de 30 centímetros al
día [...] 410 días en los que me quiero conceder el tiempo para reflexionar sobre
mi andar por el laberinto de la vida…»,27 escribía la artista al comenzar el proyecto.
El segundo de los elementos es una video-instalación que documenta el desarrollo
del proyecto y que día a día pudo seguirse por internet: nuevamente el tiempo, en
solitario a veces, compartido en otras ocasiones… tiempo en que se teje la vida. Fi-
nalmente el tercer elemento de esta obra lo constituye una performance que cerró
el proyecto y que se llevó a cabo por vez primera el 20 de julio de 2013 cuando se
cumplían los 410 días del inicio que dan título al proyecto.
una segunda capa en este proyecto es lo que a lo largo de ese tiempo unía el
dentro y el fuera, el «yo» con el «nosotras». Por ello, los 30 centímetros de tejido
que diariamente salían de las manos de la artista —solas o acompañadas— variaban
de color, pasando del rojo en los días de su ciclo menstrual al morado el día que se
producía una muerte por violencia de género, y al blanco del resto de días. una
mancha negra rompía el ritmo, señalando la marcha minera en que las mujeres de
la cuenca del norte caminaron junto a sus compañeros en protesta por el cierre de
las minas. Así, un proceso biológico y vital individual adquiría conciencia de género.
la gran bola de tejido fue creciendo con sus diversos colores hasta poder des-
plegarse formando un laberinto univiario que Andrea Milde creó en la última fase
del proyecto, la performance. Así describía su sentido la artista unos días antes:

... muchos meses de soledad y compañía, de interior y exterior, tristes y alegres, quedan
«atrapados» en esta bola. En julio se extenderá para formar un pequeño laberinto tran-
sitable de 12 x 12 m como invitación a reflexionar conjuntamente sobre todo aquello

26
En la Montaña Palentina, Andrea lleva también desde 2013 el proyecto Ku(nst) & Ku(ltur)
(Kunst und kultur in der natur- Arte y cultura en la naturaleza).
27
https://amilde.wordpress.com/ (consultado el 29 de diciembre de 2013).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 257

que ha influido en su creación: el ciclo anual de la naturaleza, el ciclo vital de una mujer
al borde de la menopausia, la vida cotidiana en un territorio rural en el norte de Es-
paña…. y el contexto cultural y espiritual de este símbolo existencial…28

Andrea Milde. 410 días (performance)

El laberinto univiario era la forma ancestral que vinculaba lo particular y lo uni-


versal, el yo con la naturaleza, y todo a través del tiempo.29 Era la invitación a un ri-
tual que nos vincula con la naturaleza y a la vez nos hace profundizar en nuestra
subjetividad. En el centro del laberinto la artista coloca una silla sobre la que está
el tejido sin terminar y que nos invitan a seguir con ella tejiendo la vida.
Caminar por ese laberinto se convierte en una pequeña metáfora vital; de pronto
descubrimos que cuando creíamos haber avanzado, tras una vuelta completa, esta-
mos realmente mucho más cerca del lugar donde comenzamos de lo que suponía-
mos. idas y vueltas que, si tenemos paciencia, finalmente nos llevarán al centro, al
final del camino, donde podremos reposar, pensar y seguir tejiendo nuestro propio
laberinto, nuestra vida.
otro elemento de la instalación que acompaña la performance 410 días hace más
explícito el significado del color morado que, de modo intermitente, aparece en el
tejido: la denuncia de la violencia de género a través de 75 números que se despa-

28
https://amilde.wordpress.com/ (consultado el 29 de diciembre de 2013).
29
Varias artistas, como Angels ribé o Mónica sjöö, han utilizado las formas laberínticas como
forma de vincular lo particular con lo universal en la vida de las mujeres
258 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr

rraman desordenados por la hierba, recordando que ese era el número de mujeres
muertas por la violencia de género durante los 410 días que duró el proyecto.
En el caso de estas tres artistas pertenecientes a distintas generaciones, el tejido
ha recuperado así su capacidad de narrar, de denunciar, que le había sido arreba-
tado a Aracné como castigo. se atribuye a Jean lurçat, promotor de la prestigiosa
Bienal de Tapicería de lausana, una frase que dice: «Tened cuidado con esas chi-
quillas que hacen punto» (Thomas, 1985)… y parece que tenía razón.

rEFErENCiAs BiBlioGráFiCAs

BArTHEs, roland (1974): El placer del texto, Buenos Aires, siglo xxi.
BEAuVoir, simone de (2005): El segundo sexo, Cátedra, Madrid.
BlisNiEWsKy, Thomas (2009): Las mujeres que no pierden el hilo, Maeva, Madrid.
BloCKEr, Jane (2002): «Tierra», en Cordero reiman, Karen, sáenz, inda (comp.)
Crítica feminista de la Historia del Arte, México, universidad iberoamericana,
pp. 377-400.
BrossA, Joan (1965): «dos cuadres de Magda Bolumar», Inquietud artística nº 32,
Vich, p. 6.
CAlVo sErrAllEr, Francisco, «El Tapiz volador», El País, 5/ 5/1996.
CAPMANy, María Aurelia (1975): De profesión, mujer, Barcelona, Plaza & Janés,
col. Testigos de España.
CAVANA, María luisa (2004): «la relación instrumentalizadora con la Naturaleza»,
en Cavana, María luisa; Puleo, Alicia H. y segura, Cristina (coords.), Mujeres y
Ecología: Historia, Pensamiento, Sociedad, Madrid, Asociación Cultural Al-Mu-
dAyNA.
CiriCi PElliCEr, Alexandre (1970): Magda Bolumar, Barcelona, sala Gaspar.
— (1982): «Magda Bolumar, El 81», Barcelona, Caixa laietana.
CoMBAliA, Victoria (1989): «Teresa lanceta. El tapiz revisado», en página web de
Teresa lanceta http://www.teresalanceta.com/ca/publicacions.php (consultado
el 29 de diciembre de 2013).
diJKsTrA, Bram (1986): Ídolos de perversidad, Madrid, debate.
GoldBErG, Harriet (ed.) (1974): Jardín de las doncellas, Fray Martín de Cordoba.
A critical Edition and Study, Chapel Hill, North Carolina studies en romance
langages and literatures.
JErFFEriEs, J. (1998): «Texto y tejidos: tejer cruzando fronteras», in deepwell, Katy
(ed.) (1998): Nueva crítica feminista de arte. Estrategias críticas, Madrid, ed. Cá-
tedra/universidad de Valencia/ instituto de la Mujer, pp. 281-296.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 259

lóPEz rodríGuEz, irene (2009): «la animalización del retrato femenino en el Libro
del buen amor», Lemir nº 13, pp. 53-84.
MANTECóN Moreno, Marta (2011): «Mujeres, feminismos y género en España», en
Exít nº 58, pp. 15-29.
MAyAyo, Patricia (2013): «imaginando nuevas genealogías. una mirada feminista
a la historiográfica del arte español contemporáneo», Genealogías feministas en
el arte español: 1960-2010. MusAC/ Junta de Castilla y león, pp. 21-38.
MillEr, Nancy (1988): Subject to Change: Reading Feminist Writing, New york,
Columbia university Press.
PluMWood, Val (1993): Feminism and the Mystery of Nature, london and New
york, routledge.
PulEo, Alicia H. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, ed.
Cátedra.
sCHolTMEiJEr, Marian (1995): «The Power of otherness: Animals in Women´s Fic-
tion», en C. J. Adams y J. donovan (eds.) Animals & Women. Feminist Theory
Explorations. duke university Press. durham and london, pp. 231-262.
sCHEuiNG, ruth (1998): «Penélope y la historia desenmarañada», en deepwell, K.
(ed.) (1998): Nueva crítica feminista de arte. Estrategias críticas, Madrid, Cátedra,
universidad de Valencia/ instituto de la Mujer, pp. 319-331.
THoMAs, M. (1985): Textile Art: Embroideries, Tapestries, Fabrics, Sculptures,
Ginebra, Albert skira s. A.
TolENTiNo, Javier (1998): «Andrea Milde. Tapices». Textilforum 1/98, March.
III. RESISTENCIAS
15. Aportaciones de las mujeres indígenas al
diálogo entre filosofía y ecología
Georgina AIMÉ TAPIA GONZÁLEZ
Universidad de Colima, México

A
lgunas líderes indígenas están vindicando un lugar importante para las mu-
jeres dentro de las cosmovisiones de sus pueblos. Su punto de partida no
es una conciencia desencarnada, sino que sus ideas y valores están corpo-
reizados, son sentidos, vividos y expresados a través de prácticas concretas. El eje
del pensamiento indígena que ellas incorporan a sus vindicaciones es la comunidad
integrada por todos los seres que conforman el cosmos, es decir, una filosofía cen-
trada en el «nosotros», que incluye a los seres humanos, las plantas, los animales y
todo lo que vive sobre la Tierra.
De acuerdo con el pensamiento nosotrocéntrico de pueblos amerindios como el
maya-tojolabal (Lenkersdorf, 2008),1 en el conocimiento no existe el binomio su-
jeto-objeto, sino dos sujetos: uno que conoce y otro que participa del acto cognos-
citivo. Ambos se vinculan de forma horizontal porque son igualmente necesarios: se
complementan y se influyen uno al otro.2 Pero, ¿cómo es posible el conocimiento
sin objetividad? Esta cuestión está planteada desde el contexto de la epistemología
occidental hegemónica, sin embargo, a partir de otras perspectivas podría pregun-
tarse: ¿cómo puede darse el conocimiento sin la participación de dos o más sujetos?
Nótese que si se profundiza en la idea indígena de que todos los seres son su-
jetos porque poseen corazón, es decir, valor, dignidad y espíritu, entonces, las for-

1
En el pensamiento maya-tojolabal pueden encontrarse algunos de los fundamentos del zapatismo
que surgió a finales del siglo XX en el sureste mexicano. La importancia del movimiento zapatista ha
sido esencial dentro de los procesos de reconstitución de los pueblos indígenas.
2
«En el contexto tojolabal, el conocimiento no se realiza por la acción del sujeto conocedor que
somete al objeto a su acción de conocer. Este tipo de conocimiento es unidireccional. El objeto por
conocer es pasivo. Para los tojolabales, en cambio, el conocimiento así como las demás acciones son
bidireccionales. Se exigen las aportaciones tanto del sujeto conocedor como del sujeto por conocer»
(Lenkersdorf, 2008: 57).
264 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

mas de vida no humanas que existen sobre la tierra también tienen su propio modo
de racionalidad. Con esto se pone en cuestión la definición tradicional del hombre
como un ser superior a otros debido a su razón. Más aún, diversas culturas indíge-
nas coinciden en sostener que: «el pensamiento no se refiere a la capacidad de ra-
ciocinio, sino a la de relacionarse los unos con los otros con dignidad y respeto para
vivir en comunidad» (Lenkersdorf, 2008: 107).
Ahora bien, las indígenas que participan en los movimientos en defensa del te-
rritorio y de los derechos específicos de género, consideran que la sobrevivencia
de sus pueblos es inseparable del reconocimiento de la paridad entre los sexos.
Conciben sus cuerpos en interconexión con el resto de los seres. Son conscientes
de que la justicia requiere del equilibrio entre todas las formas en que se manifiesta
la vida, sean humanas o no. Saben que ningún pensamiento que sea verdaderamente
universal podría excluirlas.
Desafiando la lógica dominante,3 algunas mujeres pobres y sin escolaridad se
han convertido en las portadoras de un discurso feminista fundado en la filosofía
nosotrocéntrica de las culturas indígenas. Estas mujeres bien pueden ser llamadas
«ecofeministas», aunque, según la cosmovisión que está en la base de sus prácticas,
tal afirmación representa una redundancia porque, lo que entienden como «femi-
nismo», es decir, la búsqueda de igualdad, reciprocidad y respeto, para ser cohe-
rente, debe extenderse no solo a las relaciones entre los sexos, sino también a las
formas de vida no humanas. Así como las demandas de reconocimiento, justicia y
democracia de los pueblos originarios resultan vacías si no toman en cuenta al co-
lectivo femenino, un feminismo que sea indiferente ante la destrucción de la natu-
raleza y de las comunidades indígenas se queda a la mitad del camino.4 Tanto en
sus discursos como en la vida cotidiana, las indígenas zapatistas están recuperando
el sentido originario de la palabra «nosotros», «ke‘ntik».5 Ellas dicen «nosotras y
nosotros» o feminizan términos que tienen género gramatical masculino, como
cuando hablan de «insurgentas» y «jóvenas». Asimismo, están trabajando para lo-
grar que las mujeres participen en las asambleas comunitarias en las mismas condi-
ciones que los varones, y que estos comiencen a desempeñar tareas que habían sido
consideradas «femeninas».
Sylvia Marcos ha señalado que cuando las mujeres dicen que sienten tristeza en
sus corazones, se refieren a las funciones de pensamiento y memoria que corrien-
temente adjudicamos al cerebro o la mente (2010). Para las culturas indígenas, el

3
En Occidente también han existido, y existen actualmente, discursos y prácticas alternativos
ante el modelo de desarrollo etnocéntrico, sexista y ecocida.
4
Sobre género, medio ambiente y mujeres indígenas, véase: Velázquez, Margarita (coord.) (1996);
Vázquez García, Verónica y Velásquez Gutiérrez, Margarita (coords.) (2004); VVAA (2011).
5
Ke‘ntik: palabra maya-tojolabal que no tiene género gramatical.
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 265

corazón, que cumple las funciones del teyolía, abarca «la razón, la inteligencia, los
recuerdos, la vida» (2010: 82). Al aludir a su corazón, las mujeres indígenas vindican
su humanidad compartida con los varones, es decir, su capacidad de pensar, decidir,
trabajar, enseñar y hacer cualquier cosa a la par que ellos.
Los pueblos indígenas tienen una historia que ha comenzado a ser interpretada
a partir de los estudios feministas desarrollados desde las cosmovisiones mesoame-
ricanas y a través de la mirada de las mujeres indígenas. Los discursos de género
que están elaborando las zapatistas ubican el problema de la desigualdad en una
dimensión histórico-política que rebate las visiones naturalistas. Afirman que es en
las malas costumbres (sexistas) y no la naturaleza donde hay que buscar las causas
de la subordinación femenina. Esta se habría producido por el proceso de coloni-
zación, el alcoholismo de los varones y una serie de conductas equivocadas. Lo que
puede considerarse como la «metodología» de los feminismos indígenas es preci-
samente el diálogo. En efecto, ha sido la confluencia entre modernidad y tradición,
feminismos occidentales y cosmovisiones amerindias, la que ha hecho posible el
surgimiento de reivindicaciones de género en los movimientos de resistencia de las
comunidades indígenas y campesinas.
En el presente trabajo abordaré la aparición de estas reivindicaciones a través de
la historia de vida de una mujer indígena: María de Jesús Patricio Martínez, médica
nahua,6 feminista y zapatista. Espero mostrar, así, la importancia que tienen los co-
nocimientos de las indígenas que protagonizan movimientos en defensa del territorio
y de los derechos de las mujeres para los estudios de género y la ética ecológica.

LAS FUENTES ORALES Y EL CONOCIMIENTO FILOSÓFICO


La historia oral ha ido ganando cada vez mayor legitimidad como metodología de
investigación en las ciencias sociales y en las disciplinas humanísticas. La aspiración
de la Modernidad a una objetividad científica capaz de esclarecer diversos ámbitos
de la realidad mediante la aplicación de métodos adoptados de las ciencias de la
naturaleza, se ha mostrado insuficiente para abordar la complejidad de las relacio-
nes sociales. El valor de la subjetividad para la comprensión de la historia y las di-
námicas culturales ya fue señalado por los precursores de las ‹‹ciencias del espíritu››
como una respuesta a las epistemologías de cuño positivista. Posteriormente, el de-
sarrollo de la antropología y de los estudios multiculturales ha contribuido a la re-
valorización de los saberes de las culturas no occidentales sobre el medio ambiente,
las fuentes orales y las cosmovisiones alternativas. Como señala Jorge E. Aceves Lo-
zano a propósito de esta metodología:

6
Durante la entrevista realizada, María de Jesús Patricio Martínez se definió como «médica tra-
dicional», por ello utilizo esa forma para nombrarla.
266 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Las historias de vida al resaltar las experiencias vitales de los individuos en su acción
dentro de la sociedad, descubren la relevancia de las vivencias personales en los marcos
institucionales y el impacto de las decisiones personales en los procesos de cambio y es-
tructuración social. Es por ello que pueden servir para probar teorías, hipótesis y pro-
posiciones conceptuales, y pueden funcionar como el «caso negativo» frente a un cuerpo
teórico establecido […]. Permiten asimismo generar nuevas hipótesis en campos que
parecían agotados, puesto que aportan evidencia que de otra manera […] no sería po-
sible obtener (1997: 13).

Si bien la historia de vida es considerada como un método de investigación fun-


damental en el ámbito de las ciencias socio-históricas, no sucede lo mismo en la fi-
losofía. A pesar de que en su historia abundan las autobiografías, los diarios y los
testimonios personales, estos se consideran más como curiosidades literarias que
como reflexiones filosóficas, especialmente cuando su autoría es femenina. Sin em-
bargo, aquí podemos hacernos las siguientes preguntas: ¿estudiar diversas formas
de conocimiento no constituye, asimismo, una tarea filosófica? ¿Las fuentes orales
no tienen nada que aportar a la ética, la epistemología, la antropología filosófica, la
filosofía de la historia, la filosofía de la cultura o la filosofía social? ¿La pretendida
universalidad que busca la filosofía es inconciliable con la subjetividad personal de
la historia de vida? Con estos interrogantes volvemos a una cuestión de fondo, a
saber: ¿qué importancia tienen para la filosofía las experiencias y los saberes de las
mujeres pertenecientes a los pueblos originarios ante la complejidad de la crisis eco-
lógica actual?
Considerar que la historia de vida de una mujer indígena tiene interés filosófico
significa cuestionar los fundamentos del pensamiento patriarcal de Occidente. En
este caso, el sujeto del discurso no se presenta como «objetivo» y «neutral», por el
contrario, este «sujeto» es una mujer, en su cosmovisión no existen objetos, sino
únicamente sujetos —todo lo que vive sobre la Tierra es parte del «nosotros cós-
mico»—, de ahí que no pueda ser «objetivo». Por otro lado, su supervivencia como
miembro de un pueblo víctima de expolio, le exige una posición de resistencia
frente al capitalismo globalizado, lo que hace imposible que sea «neutral». El tipo
de universalidad al que apela se refiere a la capacidad de la filosofía para aceptar
que existen distintos puntos de mira que enfocan lo que llamamos «mundo», y que
la verdad está en el diálogo, la pluralidad y el acuerdo, y no en la imposición de
una particularidad que se presenta falsamente como universal.
La narración en primera persona constituye un medio para abordar temas que
no son considerados relevantes dentro de los discursos éticos hegemónicos, tales
como las problemáticas de las mujeres pobres del Sur y de otros colectivos discri-
minados. En palabras de Karen Warren: «El uso de la narrativa en la ética, como
una reflexión de las experiencias vividas y sentidas, produce una postura en la que
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 267

el discurso ético puede contener las realidades sociales, históricas y materiales en


las que los sujetos morales se encuentran» (2003: 76). De acuerdo con lo anterior,
la historia de vida de una mujer indígena, feminista, zapatista y médica tradicional
no solo nos informa sobre un caso particular, sino que también apunta a los proce-
sos de cambio que están atravesando las mujeres indígenas, mediante la reflexión
sobre sus derechos específicos de género en ámbitos como la salud, la educación,
la participación política y la conformación de nuevas identidades.

HISTORIA DE VIDA DE UNA MUJER INDÍGENA

María de Jesús Patricio Martínez pertenece a la comunidad nahua7 de Tuxpan, Ja-


lisco, México, en donde, desde hace años, ha sido reconocida como «médica tradi-
cional». Fue elegida por la asamblea comunitaria para asistir al Foro Nacional
Indígena convocado por el Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) en
enero de 1996, en la localidad de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, y para parti-
cipar en el Congreso Nacional Indígena, donde leyó la declaración final: Nunca
más un México sin nosotras/os el 12 de octubre de 1996, en México, Distrito Fe-
deral. En su historia de vida, se entrecruzan la lucha para conquistar la igualdad de
oportunidades entre mujeres y hombres, los movimientos indígenas por el recono-
cimiento de la autonomía, la defensa de la medicina tradicional y el cuidado de la
naturaleza. Su voz nosótrica hace presente la filosofía de los pueblos originarios y
el feminismo indígena8 al encarnarlos en experiencias vitales.

«ESTO QUE SOY, LO QUE PRACTICO»

Durante la entrevista que tuvimos, una de las palabras que más se repitió en las
respuestas de la médica nahua fue «origen». Por ello, me parece pertinente co-
menzar señalando las alusiones que hace sobre su propia infancia. María de Jesús
Patricio recuerda que, cuando era niña, veía que su abuela y sus tías recurrían a
infusiones de plantas para sanar sus enfermedades, así fue como comenzó a apren-
der medicina tradicional. Siendo aún muy joven, estaba encargada de atender las
necesidades de las/os más pequeñas/os de la casa. Aunque todavía no tenía con-
ciencia de género ni de pertenencia étnica, ya desde su adolescencia, como ella
misma sostiene: «Anhelaba participar en un proceso de cambio en mi comunidad

7
Los nahuas constituyen un conjunto de pueblos originarios de Mesoamérica.
8
Sobre feminismo indígena, véase las distintas posiciones de: Lagarde, 1999; Sánchez Néstor,
2005; Millán, 2006: Hernández Castillo, 2008; Marcos, 2010; Gargallo, 2012, entre otras.
268 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

en lo que se refería a la salud de las personas. A eso me fui enfocando en mi cami-


nar a través del tiempo» (2011).
Sin embargo, el cumplimiento de esos anhelos no podía ser fácil. Por una parte,
las costumbres sexistas imperantes impedían cualquier atisbo de autonomía para
las mujeres. El padre de María de Jesús no permitía que su hija saliera sola ni si-
quiera a la tienda, mucho menos a otras comunidades. Pero María pronto se rebeló,
como relata en su narración: «Empecé a salirme a escondidas porque quería conocer
más, quería saber» (2011). Comenzaba a darse cuenta de que a los varones se les
daban más libertades, pero que, a pesar de eso, ninguno hacía lo que ella soñaba
llegar a realizar. Mientras las mujeres de la familia trabajaban sin descanso y eran
capaces de resolver la mayor parte de los problemas que se presentaban, los varones
cumplían su jornada en el campo y se desentendían de todo lo demás. No podía
comprender por qué se afirmaba que ellos eran más fuertes, cuando las faenas co-
tidianas del colectivo femenino eran interminables y la labor de parto sumamente
dura. La conclusión a la que llegó fue que, si las mujeres laboraban más de 18 horas
al día, además de atravesar por la experiencia de dar a luz en condiciones adversas,
era evidente que podían hacer cualquier cosa, entonces, ¿por qué no se les daban
las mismas oportunidades que a los varones?
Es importante destacar que María de Jesús contaba con el apoyo de su madre,
sus abuelas y sus tías, quienes la alentaban y confiaban en ella. Su familia había atra-
vesado una situación muy dura cuando la madre perdió parte de su movilidad de-
bido a una extraña enfermedad. En busca de alternativas, la llevaron a la ciudad
más cercana para que recibiera atención médica; ahí, la revisaron distintos especia-
listas sin encontrar las causas de su padecimiento. Después de varios meses, le diag-
nosticaron un problema en la columna. Pasaron tres años deambulando de médico
en médico sin que hubiera ninguna mejoría. Fue entonces, afirma María de Jesús
Patricio: «que mi madre tuvo un sueño en el que se le reveló la forma de recuperar
la salud» (2011). Pidió que la llevaran con una sanadora indígena:

Asesorada por ella y por otras personas, continué cuidándola. Se levantó en tres meses
[...]. Después de que mi mamá se levantó, comenzaron a venir otros enfermos que se
fueron recuperando con los tratamientos que les daba, esto trajo cada vez más gente
que buscaba sanarse y que creía en mi trabajo al ver que otros se restablecían. Por eso,
la comunidad me dio el cargo de médica tradicional, lo que para mí ha significado la
responsabilidad de cuidar la salud de quienes integran el tejido comunitario (2011).

De acuerdo con lo anterior, en los orígenes de María de Jesús Patricio puede


apreciarse el despertar de una conciencia de género que la llevó a rebelarse ante un
destino tradicional. También aparece la inconformidad ante la explotación padecida
por su padre y por muchas otras personas a su alrededor. En su narración, se reco-
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 269

noce el valor positivo de una racionalidad alternativa que opera a través de sueños
e indicios, al mismo tiempo que se enfatiza una de las principales exigencias éticas
de la medicina indígena, esto es, que la salud no puede ser mercantilizada. Su prin-
cipal preocupación ha sido atender las causas de las enfermedades sin considerar
la posibilidad de convertir el quehacer terapéutico en un medio de lucro. Asimismo,
su vocación le fue abriendo un espacio de autonomía que no era común para una
mujer pobre y además indígena. Tales son los antecedentes que pueden ayudarnos
a comprender el desarrollo posterior de la médica indígena que ha llegado a con-
vertirse en una agente social clave en el proceso de reconstitución de su pueblo.

«UN IR Y VENIR DE LA PALABRA ENTRE NOSOTRAS»

Para María de Jesús Patricio hubo un acontecimiento fundamental que la llevó a


asumir plenamente su doble pertenencia de etnia y género: el levantamiento del
Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). Antes de que se hiciera público
el movimiento zapatista, María sentía una gran disconformidad por las situaciones
que enfrentaba su comunidad, pero no tenía idea de lo que había más allá de su
entorno. Sus experiencias le habían enseñado que ser mujer, tener la piel morena y
contar con lo más imprescindible para sobrevivir constituía una triple desventaja,
aunque no entendía por qué. Solo después de haber sido elegida por su comunidad
para participar en los diálogos del Foro Nacional Indígena en San Cristóbal de las
Casas, en 1996, comprendió la realidad vivida por los pueblos indígenas a nivel na-
cional. De acuerdo con ella:

Mi ser indígena lo definí más cuando se dio el levantamiento zapatista. Fue un sacudir
para todos los pueblos indios de México. No era solamente esta comunidad, porque yo
pensaba que nada más nosotros éramos indígenas. Pero, cuando conocí el movimiento
zapatista, me di cuenta que existían miles de indígenas por todo el país y muchas comu-
nidades lejanas que tenían los mismos problemas. Esto hizo que pudiéramos identifi-
carnos como hermanos (Patricio, 2011).

La asamblea comunitaria de Tuxpan había elegido a un hombre y a una mujer


para que fueran a Chiapas. No obstante, se multiplicaban los rumores de que no
iban a regresar porque se les obligaría a integrarse al Ejército Zapatista. Muchas per-
sonas sentían temor. De los dos que fueron comisionados por la comunidad, solo
viajó María de Jesús Patricio, el hombre tuvo miedo y no se presentó. Al principio,
estaba atemorizada, pero, después de más de 20 horas de viaje, cuando por fin llegó
y pudo ver a otras/os indígenas, comenzó a encontrar respuestas a las preguntas que
se había hecho desde hacía mucho tiempo: «En ese momento descubrí que había
270 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

más comunidades indígenas, y que los problemas que teníamos en Tuxpan: discri-
minación, pérdida de nuestra lengua, robo de conocimientos tradicionales, eran algo
que nos identificaba con los demás pueblos indios» (2011). La lección recibida le
había mostrado que la guerra de exterminio contra los pueblos originarios llevaba
más de 500 años de historia, abarcaba a cada uno de los estados de la República Me-
xicana y, más allá de las fronteras, se extendía por todo el continente americano.
Lo que la médica indígena encontró en Chiapas fueron las raíces del «México
profundo» (Bonfil, 2005), pero también a las mujeres zapatistas. Algunas de ellas te-
nían puestos de mando en el EZLN, hablaban con libertad, daban discursos, eran res-
petadas y tomadas en cuenta por los varones. Esto la impresionó tan hondamente
como el descubrimiento de las/os otras/os indígenas. No había llegado a un territorio
dividido por la guerra, sino a la promesa de un mundo más justo y solidario. Como
ella misma lo expresa: «Me animó ver que comunidades mucho más pobres que la
mía seguían resistiendo con dignidad. Sentí mucha fuerza al conocer a las mujeres
zapatistas y verlas participar, pues constituían la prueba de que sí era posible vivir el
respeto y la dignidad» (2011). En lugar de ser obligada a incorporarse a un ejército
lejos de su familia, lo que recibió fue el mensaje de regresar a su comunidad para
continuar trabajando como médica y, desde ahí, poder defender los saberes tradi-
cionales nahuas, pero no de manera aislada, sino junto con otros pueblos.
Cuando volvió a Tuxpan, la esperaban impacientes su madre y sus tías: «Había
llegado agotada —relata la médica indígena— con ganas de irme a descansar, pero
no me dejaban, me preguntaban cómo me había ido, qué cosas había conocido. Era
como un ir y venir de la palabra entre nosotras» (2011). Llama la atención este her-
moso testimonio de sororidad. María de Jesús Patricio tenía el apoyo incondicional
de las mujeres de su familia, en quienes encontró fuerza, confianza y una complicidad
capaz de superar las diferencias, pues ellas seguían viviendo subordinadas a esquemas
de desigualdad en sus relaciones con los varones. En sus palabras: «La lucha cons-
tante como mujeres también ha sido una fuente de fuerza para mí. Recuerdo que le
decía a mi mamá que no permitiera que mi papá la hiciera como quisiera» (2011).
Conforme se multiplicaron los viajes de María de Jesús Patricio a distintas co-
munidades, su madre, sus hermanas y sus tías también quisieron salir para conocer
otros horizontes. Paralelamente, su padre y sus hermanos se hicieron más flexibles
ante las nuevas situaciones, y ya no les parecía imposible realizar algunas tareas do-
mésticas mientras las mujeres estaban fuera de la casa.

«CUANDO UNA MUJER AVANZA NO HAY HOMBRE QUE RETROCEDA»

Nuestra médica tradicional tuvo su primer encuentro con el feminismo citadino en


la Coordinadora Nacional de Mujeres. Eso le permitió conocer los problemas vivi-
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 271

dos por el colectivo femenino urbano, así como identificar las semejanzas y dife-
rencias entre las mujeres de la ciudad y las del ámbito rural. Sin embargo, lo que
no pudo entender fue la desvinculación del feminismo urbano de los contextos co-
munitarios de las mujeres indígenas y campesinas. Le parecía absurdo haber viajado
tantas horas hasta la Ciudad de México para escuchar lo que vivía todos los días:
que las condiciones de vida de las indígenas son muy duras, sus jornadas extenuan-
tes y el valor económico de su trabajo no es reconocido. Ella estaba de acuerdo en
que esos temas eran importantes pero pensaba que, en el caso específico de las mu-
jeres indígenas, tenía que reflexionarse también sobre lo que está sucediendo en
los pueblos originarios:

Las mujeres necesitamos participar en el proceso de reconstitución de nuestros pueblos,


tenemos que darnos la mano entre nosotras y también con los hombres, trabajando jun-
tos para construir la igualdad, la equidad, el respeto. Muchos hombres están comen-
zando a reconocer que las mujeres sí podemos, pero algunos aún piensan que somos
discapacitadas o de segunda, y no es así. Somos fuertes, tenemos iniciativa y podemos
hacer las cosas igual que ellos (2011).

Al igual que las indígenas zapatistas de Chiapas, María de Jesús Patricio consi-
dera que el problema de fondo es el sistema de dominación que hoy se presenta
con el nombre de capitalismo neoliberal. Según ella, el feminismo indígena debe
incluir a mujeres y hombres, promover el trabajo comunitario y buscar unir esfuer-
zos. Esto no significa que se invisibilicen los problemas específicos que afectan a
las mujeres. Las culturas indígenas no perciben la realidad como un conjunto de
esferas separadas, sino dependientes unas de otras. Las mujeres, los hombres, las/os
niñas/os, las/os ancianas/os, los seres vivos no humanos, la tierra, todo forma una
unidad en equilibrio.
Sin embargo, la reciprocidad entre los distintos seres vivos se ha deformado en
una relación jerárquica que genera desigualdad entre los sexos y destrucción de la
naturaleza. En palabras de la médica indígena «Juntos, mujeres y hombres es como
debemos trabajar, no chocando. El problema no son los hombres, sino el capita-
lismo neoliberal. Para hacerle frente, tenemos que conjuntar nuestras fuerzas y
proponer alternativas que nos permitan sobrevivir. De otra forma, no vamos a lo-
grar nada más que pelearnos entre nosotros mientras mueren nuestras raíces» (Pa-
tricio, 2011). Estas reflexiones son muy similares a las expuestas por la ecofeminista
Vandana Shiva, quien, al teorizar sobre lo que denomina el «mal desarrollo» ge-
nerado por el crecimiento económico del Norte global, considera que: «En la prác-
tica, esta perspectiva fragmentada, reduccionista y dualista viola la integridad y
armonía del hombre con la naturaleza, y la armonía entre el hombre y la mujer»
(Shiva, 1995: 35).
272 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Las mujeres indígenas no solo padecen la desigualdad de género, sino que además
ven amenazada la supervivencia misma de las comunidades a las que pertenecen.
Ahora bien, aunque es innegable que el impacto del capitalismo globalizado del Oc-
cidente hegemónico ha sido muy destructivo, especialmente para las poblaciones
originarias, hasta el punto de poder afirmar su incompatibilidad con la aspiración
ecofeminista de construir un mundo justo y sostenible, existen numerosos ejemplos
de culturas respetuosas de la naturaleza que, no obstante, subordinan al colectivo
femenino (Amorós, 2012). Como apunta Alicia Puleo: «Es necesario aprender de la
interculturalidad sin olvidar los derechos de las mujeres» (2011: 317).
Si bien el neoliberalismo, por todas las razones expuestas, es antifeminista y
ecocida, no puede ser considerado como la única explicación del androcentrismo
presente en las diferentes culturas estudiadas hasta hoy. El testimonio de la médica
tradicional muestra que es consciente de que para las mujeres indígenas hay otra
lucha además de la que se libra contra el capitalismo globalizado. Su situación es
tan compleja, que no pueden centrarse en hacer distinciones entre conceptos que
pertenecen a referentes culturales distintos a los suyos. Durante la entrevista, María
de Jesús Patricio no pronunció términos como «patriarcado», «androcentrismo»
o «género», aunque lo que expresan sus palabras no deja lugar a dudas de que el
significado de cada uno de ellos le es conocido. Consciente de la influencia que
aún ejercen las tradiciones opresivas, subraya que los derechos de las mujeres no
pueden pedirse, sino que tienen que imponerse. Como zapatista, coincide en este
punto con sus compañeras de Chiapas al declarar que: «los hombres no están dis-
puestos tan fácilmente a decirnos: “ahí están sus derechos, los respetamos y los
reconocemos”. Somos las mujeres las que tenemos que proponernos hacer valer
nuestros derechos y asumirlos en la práctica. Los debemos ir tomando desde
donde estemos» (2011).
Para la médica nahua, el feminismo indígena es un proceso de descubrimiento
a través del cual ella misma está caminando. En su comunidad, ha podido compro-
bar que las resistencias no solo provienen de los varones, sino también de muchas
mujeres. Algunas sienten vergüenza de hablar en público, tienen miedo, piensan
que no pueden desempeñar las mismas tareas que sus compañeros. Esto se acentúa
cuando a las reuniones de las comunidades indígenas asisten personas que no per-
tenecen a ellas. En ocasiones, se hacen juicios externos sobre la escasa participación
de las mujeres sin llegar a comprender lo que sucede en el interior de los pueblos
originarios. María de Jesús Patricio recuerda el caso de Ostula, comunidad nahua
de la costa de Michoacán, México, que se levantó para luchar por el reconocimiento
de su autonomía en 2008, y que actualmente sigue resistiendo: «Las mujeres eran
las que iban adelante, la mayoría casi ni hablaba, pero estaban dispuestas a arriesgar
sus vidas para defender su territorio» (2011). Algo similar está sucediendo en Che-
rán, municipio que también forma parte del estado de Michoacán, y que tiene un
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 273

porcentaje elevado de población indígena. Su lucha por la autonomía y por la pre-


servación de sus bosques no puede comprenderse si se deja de lado la participación
de las mujeres.
Ahora bien, en el núcleo de este feminismo indígena, María de Jesús Patricio
encuentra un rasgo que revela la influencia de la filosofía de los pueblos indios: el
«nosotras/os». Sostiene que este es un valor fundamental que es conservado por
las mujeres y que muchos varones han olvidado. «Algo que he aprendido en este
caminar —nos dice— es que las mujeres acostumbramos a decir “nosotros”. En
cambio, los señores, cuando hablan, dicen “yo”» (2011). Esta observación recuerda
las diferencias encontradas por las teóricas de la ética del cuidado en las sociedades
pos-industriales. Las tareas que tienen que ver con las necesidades afectivas y con
el mantenimiento de la vida son realizadas principalmente por el colectivo femenino
y carecen de reconocimiento social. Esta «feminización del cuidado» no se debe a
una «esencia maternal», sino a los roles socialmente asignados a mujeres y hombres.
El reto es llegar a universalizar dicha ética para que deje de tener género. A mi jui-
cio, desde las coordenadas culturales de nuestra médica nahua, se trata de que los
varones —y muchas mujeres también— aprendan a ver el mundo a partir del «no-
sotras/os», lo que constituye uno de los principales objetivos del feminismo indí-
gena de las zapatistas.

«LA SALUD DE UNA PERSONA IMPLICA LA SALUD DE LA COMUNIDAD Y EL EQUILIBRIO


CON LA NATURALEZA»

Para María de Jesús Patricio, las enfermedades que padecen los seres humanos están
vinculadas con el entorno social y ambiental. En sus propias palabras: «Hay una re-
lación de todo con todo. La salud de las personas tiene que ver con el cuidado del
agua, los árboles, los animales y la tierra» (2011). Sin embargo, a pesar de que cada
día mueren miles de seres humanos a causa de males relacionados con la contami-
nación producida por el capitalismo globalizado, los conocimientos indígenas siguen
siendo subvalorados en casi todas partes. A la medicina indígena se le acusa de ser
atrasada, poco científica e, incluso, nociva para la salud. Paralelamente, científicos
occidentales están patentando plantas medicinales y técnicas médicas ancestrales.
Como saber propio de los pueblos originarios, se le desprecia, pero como mercancía
para el mercado mundial, se exaltan sus beneficios. A este robo de saberes tradicio-
nales que denuncia nuestra médica nahua se le conoce como biopiratería.9

9
De acuerdo con Joan Martínez Alier este concepto se refiere a «la apropiación de los recursos
genéticos (silvestres o agrícolas) sin pago adecuado o sin reconocer a los campesinos o indígenas como
sus dueños (incluyendo el caso extremo del Proyecto Genoma Humano)» (2009: 325).
274 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

El conocimiento de las plantas y el cuidado de la salud a través de cantos, rezos


y masajes son tareas que han sido desempeñadas tradicionalmente por mujeres,
aunque no solo por ellas. Los saberes que han desarrollado a lo largo de siglos se
ubican fuera de la lógica monetaria, además de abrir espacios de poder para las mé-
dicas indígenas. Muchas hierbas curativas crecen libremente por los campos. No
cuestan nada. Por otra parte, estas médicas conocen plantas relacionadas con la
salud reproductiva, lo que les da cierto control sobre la fecundidad. Asimismo, es
un hecho que la medicina tradicional representa una alternativa a la que recurren
los pueblos indígenas y muchas personas pobres que carecen de seguridad social.
María de Jesús Patricio sostiene que la medicina indígena constituye uno de los
factores más importantes dentro del proceso de reconstitución de los pueblos ori-
ginarios, al mismo tiempo que representa un espacio de autonomía para las mujeres.
Por ello, ha sido especialmente atacada por las estrategias del capitalismo globali-
zado. No es casualidad que se estén promoviendo decretos que prohíben a las/os
médicas/os indígenas el uso de plantas medicinales comunes, alegando su peligro-
sidad para la salud, mientras que a las grandes empresas farmacéuticas se les dan
todas las facilidades para que patenten dichas plantas y las comercialicen a altos
costos. La privatización de la vida amenaza a la diversidad biológica y cultural, ade-
más de convertir la salud en una mercancía.
El neoliberalismo despoja a las mujeres más pobres de la única alternativa que
tienen para atender sus problemas de salud, envenena bosques, aires y mantos acuí-
feros para producir más mercancías, además de agravar las condiciones de miseria
de los pueblos indígenas y campesinos. Se trata de una lógica suicida que, al destruir
la diversidad biológica, hace imposible la continuidad de la vida a mediano plazo.
La alternativa que ofrecen los pueblos originarios es universalizar la ética nosotro-
céntrica que han practicado durante siglos. Nuestra médica indígena explica lo an-
terior a través de lo que podemos considerar como una visión «ecofeminista»:

Hay una relación especial de la mujer con la tierra. Así como la mujer da hijos, los cuida
y los protege, así también la naturaleza da alimento, medicinas y cobijo a los seres hu-
manos. Si esta se contamina o se destruye, sus habitantes no tienen posibilidades de so-
brevivir. En mi familia existe la costumbre de que cuando un niño nace se tiene que
enterrar su ombligo para que la tierra reconozca que ya hay un hijo más, es como enrai-
zarlo y, aunque vaya adonde vaya, siempre va a regresar a su raíz. En muchas creencias
se muestra que las mujeres tienen confianza de encontrar en la naturaleza remedios para
sus enfermedades. En Tuxpan, se creía que, cuando una mujer estaba en peligro de abor-
tar, tenía que ir a un nacimiento de agua, hacer un pocito y beber de ahí. Esa era la cu-
ración. Ahora, el río está tan contaminado que ya no es posible (2011).

Las afirmaciones de María de Jesús Patricio parecen coincidir con los ecofemi-
nismos esencialistas, según los cuales las mujeres mantienen una relación especial
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 275

con la naturaleza por sus características biológicas. De acuerdo con lo anterior, la


potencia materna de sus cuerpos las ubicaría más cerca de la Madre Tierra. Mujeres
y naturaleza se caracterizarían por su capacidad de dar y sostener la vida, pero tam-
bién por ser devaluadas y explotadas dentro de la lógica patriarcal, que en nuestros
días se presenta bajo el rostro del capitalismo globalizado. Sin embargo, la médica
nahua se distancia de tales posturas al insistir en que la filosofía indígena del neo-
zapatismo está desarrollando un feminismo que afirma que las mujeres y los hom-
bres deben integrarse por igual a la vida política de sus comunidades y al cuidado
de la biodiversidad. Si bien el colectivo femenino se identifica con la tierra por las
experiencias relacionadas con la maternidad y la crianza, los varones también están
enraizados en la naturaleza y tienen el deber de preservarla.
En este sentido, considero importante destacar que el feminismo zapatista es
producto del diálogo entre las cosmovisiones de los pueblos originarios y los dis-
cursos feministas que llegaron a las comunidades indígenas a través de las ONG, así
como de diversas iniciativas con perspectiva de género. No es casualidad que las
zapatistas insistan mucho más en la igualdad-reciprocidad, que ellas llaman «pari-
dad», que en las diferencias entre mujeres y hombres. El concepto maya-tojolabal
lajan lajan `aytik, que se ha traducido al castellano como «estamos parejos», y que
representa la «condición de posibilidad de la igualdad» (Lenkersdorf, 2004: 77),
se ha incorporado al pensamiento feminista indígena mediante la interpelación
mutua entre teoría feminista occidental y culturas indígenas.

CONSIDERACIONES FINALES

Resulta significativo que María de Jesús Patricio haya decidido tener una familia
pequeña, además de no haberse casado muy joven. Durante la entrevista, en nin-
gún momento exaltó los valores tradicionales de la «madre cuidadora» como ho-
rizontes del feminismo indígena. Aunque hizo algunas alusiones que podrían
interpretarse como argumentos esencialistas, sus testimonios giraron principal-
mente en torno a sus viajes, a sus intervenciones en espacios públicos, al trabajo
compartido con su esposo en la atención de las/os hijas/os y a sus contribuciones
al cuidado de la salud comunitaria. Más que una ecofeminista esencialista, nuestra
médica nahua puede ser considerada como una expresión del «sujeto mujer» que
la lucha de género, etnia y clase de las/os indígenas zapatistas está dando a luz. En
sus experiencias vitales se conjuntan feminismo, ecologismo y defensa de los pue-
blos originarios. Como mujer, exige la igualdad de derechos entre los sexos y la
participación de los varones en las tareas del cuidado de los seres humanos y no
humanos. El ecofeminismo que vindica es indígena, y debe ser comprendido desde
sus propias coordenadas culturales: la filosofía nosotrocéntrica de los pueblos ori-
276 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

ginarios y el feminismo de las indígenas zapatistas que están trazando caminos al-
ternativos para un futuro solidario, sostenible y plural.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACEVES LOZANO, Jorge (1997): «Un enfoque metodológico de las historias de vida»,
en Garay, Graciela (coord.): Cuéntame tu vida. Historia oral: historias de vida,
México, Instituto Mora, pp. 9-28.
AMORÓS, Celia (2012, 31 de marzo): «¿Hay un ecofeminismo crítico?», El País
(http://blogs.elpais.com/tormenta-de-ideas/2012/03/hay-un-ecofeminismo-cri-
tico.html) (consultado el 8 de octubre de 2012).
BONFIL BATALLA, Guillermo (2005): México profundo. Una civilización negada,
México, Debolsillo.
GARGALLO, Francesca (2012): Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones
de mujeres de 607 pueblos en nuestra América, Colombia, Desde abajo.
HERNÁNDEZ CASTILLO, Rosalva (ed.) (2008): Etnografías e historias de resistencia.
Mujeres indígenas, procesos organizativos y nuevas identidades políticas, México,
Publicaciones de la Casa Chata, CIESAS, UNAM.
LAGARDE, Marcela (1999): «Insurrección Zapatista e identidad genérica: una visión
feminista», en Lovera, S. y Palomo, N. (coords.): Las Alzadas, México, Comuni-
cación e Información de la Mujer y Convergencia Socialista, pp. 183-217.
LENKERSDORF, Carlos (1999): «El género y la perspectiva en tojolabal», en Estudios
de la Cultura Maya, Vol. XX, México, UNAM-IIFI, pp. 291-231.
— (2005): Filosofar en clave tojolabal, México, Miguel Ángel Porrúa.
— (2008): Los hombres verdaderos. Voces y testimonios tojolabales, México, Siglo
XXI.
MARCOS, Sylvia (2010): Cruzando fronteras: Mujeres indígenas y feminismos abajo
y a la izquierda, México, Cideci-Unitierra, Chiapas.
MARTÍNEZ ALIER, Joan (2009): El ecologismo de los pobres. Barcelona, Icaria.
MILLÁN, Márgara (2006): Participación política de mujeres indígenas en América
Latina: El movimiento Zapatista en México, República Dominicana, INTRAW.
PATRICIO, María de Jesús (2011): Entrevista realizada por la autora, material inédito.
PULEO, Alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
SÁNCHEZ NÉSTOR, Martha (2005): «Ser mujer indígena en México: una experiencia per-
sonal y colectiva en el movimiento indígena en la última década», en Sánchez Néstor,
M. (coord.), La doble mirada. Voces e historia de mujeres indígenas latinoamericanas,
UNIFEM, México, Instituto de Liderazgo Simone de Beauvoir, pp. 89-103.
SHIVA, Vandana (1995): Abrazar la vida. Mujer, ecología y desarrollo, Traducción
de Ana Elena Guyer y Beatriz Sosa Martínez, Madrid, horas y HORAS.
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 277

VÁZQUEZ GARCÍA, Verónica y Velázquez Gutiérrez, Margarita (comp.) (2004): Mi-


radas al fututo. Hacia la construcción de sociedades sustentables con equidad de
Género, México, UNAM-CRIM-IDCR-CRDI-CC.
VELÁZQUEZ, Margarita (coord.) (1996): Género y ambiente en Latinoamérica, Mé-
xico, UNAM-CRIM.
VVAA (2011): «Cosmovisiones: defensa de territorios, empoderamiento femenino e
identidad indígena», dossier en español de la revista Development «Cosmovi-
sions», 54, 4 (http://www.sidint.net/docs/spanish_dossier.pdf) (consultado el 12
de marzo de 2014).
WARREN, Karen (ed.) (2003): Filosofías ecofeministas (traducción de Soledad
Iriarte), Barcelona, Icaria.
16. Una mirada ecofeminista sobre las luchas
por la sostenibilidad en el mundo rural
Emma SILIPRANDI
Universidad Estatal de Campinas (UNICAMP), Brasil

L
a participación creciente de mujeres que se reivindican feministas —o que
tienen prácticas que las sitúan en el campo del feminismo— en los movi-
mientos agroecológicos brasileños torna oportuna una reflexión sobre la
aproximación entre esos movimientos y los desafíos que esa convivencia ha traído,
en la práctica, para ambas fuerzas de la lucha social. Muchas de esas mujeres, a
pesar de sus distintos orígenes y prioridades —pues vienen de organizaciones tan
diversas como movimientos campesinos, de los sin-tierra y asociaciones y coopera-
tivas de producción ecológica, entre otras— están construyendo identidades co-
munes en cuanto agricultoras y militantes de los movimientos de mujeres que tienen
como base su compromiso en acciones cuestionadoras de las desigualdades de gé-
nero en el medio rural y del modelo productivo depredador del ambiente. Entre
tanto, por ser agricultoras familiares, están sumergidas en realidades opresivas en
el interior de las familias, viviendo la contradicción de criticar el modelo productivo
y de organización familiar y al mismo tiempo luchar para su reproducción —exac-
tamente porque lo consideran el más justo y adecuado para el desarrollo rural equi-
librado y equitativo.
El surgimiento público de los movimientos de mujeres agricultoras remonta, en
Brasil, a la década de 1980. Han sido muchas décadas de movilización y articulación
en torno al reconocimiento de su profesión, del derecho a la sindicalización, a ser
dueñas de la tierra, buscando la garantía de su autonomía financiera y productiva.
En el inicio del año 2000 tiene lugar la organización de la primera Marcha de
las Margaridas, una articulación de agrupaciones de mujeres de todo el país, lide-
radas por una confederación sindical de agricultores, que llevó cerca de veinte mil
mujeres a Brasilia para presionar al Gobierno por sus reivindicaciones. A partir de
ahí, otros movimientos —como los vinculados a La Vía Campesina— también em-
piezan a llevar a cabo acciones públicas lideradas por mujeres. Un nuevo escenario
280 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

comenzó a delinearse y a repercutir en el conjunto de movimientos rurales: las mu-


jeres agricultoras pasaron a señalar nuevas cuestiones que iban más allá de la simple
garantía de la supervivencia del modo de vida campesino. En el campo agroecoló-
gico, destaca la actuación del Grupo de Trabajo Mujeres de la Articulación Nacional
de Agroecología (ANA), creado en 2004.
Las mujeres rurales pasaron a exigir del Estado, de la sociedad y de sus propias
organizaciones una revisión del lugar destinado a ellas en esos modelos. Además,
comenzaron a desarrollar políticas de alianza propias, organizaran eventos públicos,
en fin, mostraron fuerza política en cuanto mujeres rurales. En las discusiones pro-
puestas, emergieron cuestiones claramente vinculadas con el campo ambiental, al
mismo tiempo que temas históricamente traídos por el feminismo. Se abre así una
nueva realidad: mujeres agricultoras con un discurso que integra los dos campos:
ambientalismo y feminismo.
También comienzan a identificar y a denunciar las diversas formas de violencia
dentro de las familias rurales, violencia que muchas veces no es percibida como tal:
la prohibición de ir a una reunión, la falta de espacio en la familia para discutir las
cuestiones estratégicas de la producción, la falta de acceso a la gestión de la pro-
piedad, al uso de los recursos comunes (tales como la tierra, los instrumentos de
trabajo, los recursos financieros, etc.). Para muchas de ellas, la militancia agroeco-
lógica —la participación en experiencias de producción y comercialización de pro-
ductos limpios, sin uso de venenos, entre otras características— fue el espacio
donde se dio su aprendizaje político. Por tanto, será allí donde ellas manifestarán
su discordancia con los sistemas actuales y buscarán construir propuestas alterna-
tivas, pensando en un modelo de familia coherente con un ideal de sociedad más
justa y sostenible.
En estas líneas me propongo visibilizar el contacto entre los propósitos de estos
dos movimientos —feminismo y agroecología— y, a pesar de la existencia de algu-
nos puntos de tensión (que intentaré apuntar), demostrar que es posible y necesaria
la construcción de alianzas duraderas. En el centro del debate está la cuestión de la
radicalidad del discurso de la autonomía y de la contribución de los individuos en
cuanto sujetos políticos plenos, a la construcción de sociedades democráticas y sos-
tenibles defendidas tanto por el feminismo como por el movimiento agroecológico.
El reconocimiento de la necesidad de la participación de las mujeres (y de otros su-
jetos sociales) en este proceso será una resultante de esa radicalidad.

ORÍGENES Y DESAFÍOS DEL (ECO)FEMINISMO

El feminismo puede ser visto, al mismo tiempo, como una teoría crítica y como un
movimiento social que se dedica a desvelar los mecanismos de coacción estructural
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 281

responsables de la histórica subordinación de las mujeres por los hombres. Esos me-
canismos serán descritos como un sistema sexo-género, también llamado patriar-
cado, presente en la gran mayoría de las sociedades conocidas y que se sustenta sobre
raíces materiales, pero también ideológicas y simbólicas, perpetuando la creencia de
que las diferencias biológicas entre hombres y mujeres justificarían las desigualdades
sociales.
A lo largo de la historia, las mujeres no siempre se conformaron con esa situación
y buscaron formas de resistencia a la opresión. Sea en las grandes olas del feminismo
a nivel mundial, sea en momentos de menor agitación política, en diferentes épocas,
hombres y mujeres tuvieron que hacer esfuerzos intelectuales y políticos muy gran-
des para tornar visibles los «marcos de injusticia»1 en que se encontraban inmersos,
así como para poder obtener legitimidad para sus reivindicaciones de transforma-
ción social.
El feminismo llegó a los temas ecológicos ya en los años 60 del siglo pasado.
Había muchos elementos en común entre la crisis ambiental, que se avecinaba con
el avance de la industrialización y de la urbanización, y la percepción de los movi-
mientos feministas sobre el lugar destinado a las mujeres en esas sociedades emer-
gentes. A finales de los años 1970 surge el ecofeminismo, una teoría que buscaba
asociar la opresión que la humanidad ejercía sobre la naturaleza a la forma desigual
con que los hombres trataban a las mujeres.
Las ecofeministas europeas y norteamericanas destacaron en esos debates,
siendo su principal contribución la percepción de la existencia de un «marco opre-
sivo androcéntrico» (Warren, 1998), caracterizado por la postura arrogante que
orientaba las relaciones de los seres humanos con el medio natural y los demás seres.
Esa postura, además de antropocéntrica, era también androcéntrica y etnocéntrica,
porque reflejaba un desdén para con las condiciones de supervivencia del planeta,
así como en relación a las mujeres y otras categorías sociales que no fuesen hombres
blancos y adultos tomados como referencia de estándar moral. Vandana Shiva, con
su libro Abrazar la vida (1991), en que cuenta la historia de resistencia del movi-
miento de mujeres Chipko, en la India, destacó como una ecofeminista tercermun-
dista por haber cuestionado también el uso de la ciencia moderna en la destrucción
de los sistemas comunitarios de producción agrícola y forestal.
Entre esas diversas propuestas, destacamos aquí aquellas del ecofeminismo cons-
tructivista, que reconocen la necesidad de la organización de las mujeres en cuanto
sujetos políticos que tienen especificidades en las luchas sociales y, particularmente
en las cuestiones ambientales, considerándose igualmente los demás colectivos opri-
midos. Rescatan, así, el lenguaje de los derechos y de la igualdad como orientadora
de esta lucha, en la cual no puede haber espacio para ningún tipo de esencialismo

1
Expresión de Celia Amorós y Ana de Miguel, en su obra Teoría Feminista (2005).
282 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

ontologizante (Puleo, 2008). Para esa corriente, las alianzas entre los movimientos
feministas y ecologistas tendrían que darse a partir de algunos supuestos, entre ellos,
el de que es imprescindible el reconocimiento mutuo de la igualdad en términos
de dignidad y derechos entre hombres y mujeres y de la necesidad de posturas res-
ponsables de la humanidad ante el medio natural y los demás seres vivos. Esas serían
las condiciones para la construcción de utopías en las que el feminismo y ecologismo
tendrían un papel fundamental.

LAS MUJERES EN LA CONSTRUCCIÓN DE LA AGROECOLOGÍA

Diversos textos que describen las premisas y los métodos de la Agroecología se re-
fieren a las desigualdades de género como fuente de prejuicios contra las mujeres
y como aspectos que deberían ser considerados en la elaboración de sus programas
de investigación y propuestas de intervención.2 Sin embargo, no existe profundiza-
ción sobre esa problemática, que es fundamental para la comprensión de cómo se
expresan las relaciones de poder en el medio rural y qué determina, por ejemplo,
el vínculo de una fracción significativa de la población campesina (las mujeres) a
los medios de producción y a los recursos ambientales.
A pesar de esa ausencia de abordaje sobre el tema, es innegable que las relaciones
de poder determinan las condiciones de participación de los hombres y mujeres en
los espacios de decisión sobre el rumbo de la sociedad y por tanto, en la construc-
ción del desarrollo rural sostenible. Parece, de hecho, existir un vacío de análisis
entre el nivel micro enfocado por las teorías agroecológicas (el agro ecosistema) y
el nivel macro (las comunidades rurales, campesinas, indígenas y la agricultura fa-
miliar), un espacio que merece ser analizado, puesto que allí es donde se encuentran
las personas concretas, hombres y mujeres, que trabajan en la agricultura.
En Brasil, los primeros textos reivindicando una mayor atención a la participación
de las mujeres en la construcción de la Agroecología aparecerán a mediados de la
década de 1990, en la autoría de María Emilia Lisboa Pacheco, antropóloga vincu-
lada a una organización no gubernamental de asesoría a movimientos populares.3

2
Ver, por ejemplo, Hecht (2002); Caporal (1998); Sevilla Guzmán (1999).
3
Diversas investigadoras e investigadores (Paola Cappelin, Lena Lavinas, Leonilde Medeiros,
Zander Navarro, Cândido Gribowski, entre otros) ya venían refiriéndose al resurgimiento de los mo-
vimientos de mujeres agricultoras en Brasil, ocurrido durante la década de 1980. Esos movimientos
luchaban por el reconocimiento de las mujeres en cuanto trabajadoras rurales (buscando obtener de-
rechos sociales y seguridad social) y por el acceso a políticas productivas específicas (como tierra, cré-
dito, asistencia técnica) y comenzaban a ganar espacio en el conjunto de las luchas campesinas. María
Emilia Pacheco, sin embargo, fue la primera autora que se refirió específicamente a la participación
de las mujeres en la construcción de experiencias agroecológicas.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 283

Llamando la atención sobre la invisibilidad del trabajo de las mujeres en la agri-


cultura y la importancia de las demás actividades productivas que desempeñan en el
conjunto de la unidad familiar (como la huerta, el pomar, los animales domésticos y
todas las actividades consideradas secundarias en relación a las culturas comerciales),
María Emilia Pacheco proponía que los proyectos agroecológicos otorgaran relevancia
a aquellos espacios de producción en que las mujeres asumían el papel principal y,
con eso pasasen a reconocer a las propias mujeres como sujetos productivos. Esas ac-
tividades eran importantes para la seguridad alimentaria, para complementar los in-
gresos de la familia y como estrategia de conservación de la biodiversidad.
El reconocimiento de su valor implicaría, sin embargo, un cambio de postura
de los técnicos que trabajaban en ese tipo de proyectos, pues sería necesario escu-
char a las mujeres, atender a sus preocupaciones y reconocerlas como elementos
activos en las luchas sociales, lo que, en la práctica, hasta entonces, ocurría muy es-
porádicamente (Pacheco, 1997).
La invisibilidad del trabajo de las mujeres en la agricultura familiar está vinculada
a las formas en que se organiza la división sexual del trabajo y se reparte el poder
en esa forma de producción en que la jefatura familiar y de la unidad productiva es
socialmente otorgada al hombre. Aunque la mujer trabaje efectivamente en el con-
junto de actividades de la agricultura familiar: preparación del suelo, plantío, cose-
cha, crianza de los animales, entre otras (incluyendo la transformación de productos
y la artesanía), solamente son reconocidas y con estatus inferior, aquellas actividades
consideradas extensión de su papel de esposa y madre (preparación de los alimen-
tos, cuidados de los hijos e hijas, etc.).
La antropóloga discutía ese asunto usando como referencia los postulados de la
Economía Feminista y de algunas ecofeministas que mostraban que la explotación
del trabajo de las mujeres, tanto en la esfera productiva como reproductiva, obe-
decía a la misma lógica de la explotación de la naturaleza. Introdujo la cuestión de
la necesidad de empoderamiento de las mujeres, considerándolas como productoras
de bienes y gestoras del medio ambiente, así como portadoras de una lógica no des-
tructiva de la naturaleza:

Hay eslabones a establecer entre los debates sobre sostenibilidad y las relaciones sociales
de género. Ambas nociones se oponen a una visión productivista y economicista. Por
un lado, la noción de sostenibilidad se refiere al campo de las luchas sociales, a nuevas
relaciones entre sociedad y naturaleza, en una perspectiva democrática, para la denuncia
de la explotación de clase y de la injusticia social y ambiental. Por otro lado, la crítica al
paradigma dominante de la economía, hecha por el pensamiento feminista, quiere insistir
en la perspectiva según la cual un examen del desarrollo sostenible debe tener en cuenta
las dimensiones sociales y de género e integrar en ese concepto una distribución justa
de los recursos materiales, los conocimientos y el poder, un sistema de valoración eco-
nómica adecuado a la sustentabilidad del medio ambiente. (Pacheco, 2002: 8)
284 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Tal argumento de defensa de la importancia de las mujeres en la agroecología


combinaba postulados feministas del empoderamiento de las mujeres con los con-
ceptos de co-evolución de los sistemas sociales y ecológicos, especificando el papel
de las mujeres en la construcción de los conocimientos, o sea, reivindicando el es-
tatus de sujetos sociales para ellas:

Las mujeres adquirieron históricamente un vasto saber de los sistemas agroecológicos.


Desempeñan un importante papel como administradoras de los flujos de biomasa, con-
servación de la biodiversidad y domesticación de las plantas, demostrando en muchas
regiones del mundo un significativo conocimiento sobre los recursos genéticos y asegu-
rando por medio de su actividad productiva las bases para la seguridad alimentaria. [...]
Ese papel es más importante aun cuando consideramos que la conservación y el uso de
la biodiversidad son un punto clave para la defensa de la agricultura y del agro-extrac-
tivismo familiar, y simultáneamente, que la biodiversidad es protegida por la diversidad
cultural. (Pacheco, 2002: 20)

Sin embargo, para revertir su situación de invisibilidad y enfrentar las estructuras


del poder sería necesario, entre otras medidas, ofrecerles apoyo organizativo y posi-
bilitar su acceso a recursos productivos (tierra, crédito, formación técnica) para que
pudiesen desarrollar sus capacidades. Esa postura representaría un triple desafío
para las organizaciones que apoyaban esas experiencias: revisión de las categorías
de análisis aceptadas hasta entonces, revisión de las prácticas político-educativas de
las propias ONGs y entidades de asesoría; y profundización de las críticas a las pro-
puestas de políticas públicas para que presenten alternativas que tomen en conside-
ración los anhelos de las mujeres (Pacheco, 2002: 23).
Esas cuestiones chocaban claramente con el valor otorgado al carácter familiar
de la agricultura campesina. La autora argumentará que la agroecología tiene que
aproximarse a esa discusión, pues:

... las relaciones entre hombres y mujeres en el ámbito familiar y la forma en que la
familia es constituida y reproducida son tan importantes como las relaciones de clase
cuando se trata de explicar las diferencias sociales del campesinado, así como su repro-
ducción social. (Pacheco, 2005a: 2)

Uno de los puntos más difíciles sería justamente la desconstrucción del mito de
la familia como un conjunto armónico e integrado en el que todos ejercen papeles
complementarios, gestionados por el hombre. Esa visión idealizada escondía, en
realidad, que la familia era también un espacio donde se reproducían relaciones
desiguales de poder entre los hombres y las mujeres. No obstante, en un momento
en que se buscaba, justamente, afirmar la bondad intrínseca del modelo de agricul-
tura familiar, esa cuestión se tornaba delicada.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 285

Hay que recordar que, en el contexto de la discusión sobre la importancia del


campesinado en la agroecología, se estaba redescubriendo a autores como Alexan-
der Chayanov (1974) y Jerzy Tepicht (1973), entre otros, que percibían el carácter
familiar de la agricultura campesina como una de las virtudes que permitía que esa
forma de producir subsistiese dentro del capitalismo, porque era capaz de examinar
permanentemente el destino de los recursos productivos a partir de un balance
entre las exigencias del mundo exterior en términos de producción y las necesidades
de la familia.
En ese debate, estaban en juego cuestiones como la capacidad de la unidad cam-
pesina de acumular capital, incorporar nuevas tecnologías y apropiarse de la renta
de la tierra. Se trataba de una situación de permanente tensión entre crecer y capi-
talizarse, por un lado, y sobrevivir en cuanto modo de vida, por otro. La perspectiva
de los marxistas clásicos era, en general, economicista y determinista (el campesi-
nado estaría abocado necesariamente a un destino determinado bajo el capitalismo);
posiciones que eran contestadas por autores que buscaban en Chayanov y Tepicht
pistas sobre la inesperada sobrevivencia del campesinado a lo largo de los años, en
formaciones históricas muy distintas. Esos autores veían en el aspecto familiar de
la unidad campesina una parte de la respuesta, dada su unidad de propósitos (la
manutención del patrimonio de la familia como el objetivo máximo de los campe-
sinos). Era preciso, sin embargo, ver más allá de los aspectos económicos para en-
tender la lógica del campesinado.4
Asimismo, lo que los defensores del campesinado como un modo de vida no
conseguían ver es que los demás miembros de la familia —esposa, hijas e hijos, agre-
gados— no eran seres inertes dentro del aglomerado familiar, actuando apenas
como mano de obra suplementaria a la que se recurría en caso de necesidad. Eran
personas que ocupaban determinados papeles productivos y sociales dentro de la
familia, poseedoras de saberes diferenciados acumulados por esas experiencias y,
sobre todo, sujetos dotados de deseos y necesidades capaces de influenciar también
en las decisiones sobre el futuro de la empresa familiar.
María Emilia Pacheco va a ayudar a quebrar esa visión monolítica de la agri-
cultura familiar, llamando la atención sobre las injusticias que sufrían las mujeres.
Se basó en algunas investigaciones que mostraban que, en el campesinado, la dis-
tribución del producto del trabajo tendía a ser más igualitaria en los sistemas de
producción en los que la mujer participaba de las decisiones de planificación y
de la forma de disponer los productos (argumento de la equidad). Además de
eso, mostró que cuando se aumentaba el rango de actividades generadoras de
renta en las cuales las mujeres se implicaban, aumentaban las opciones estratégi-
cas, creándose condiciones para que ellas tuviesen mayor autonomía y poder de

4
Una excelente presentación de esa discusión puede ser encontrada en Abramovay (1992).
286 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

decisión (argumento del empoderamiento basado en las condiciones materiales)


(Pacheco, 2005: 4).

LA INFLUENCIA DE LA PERSPECTIVA AGROECOLÓGICA EN LA CONQUISTA DEL ESPACIO


POLÍTICO POR LAS MUJERES RURALES

A partir del año 2000, comenzaron a realizarse algunas investigaciones sobre la par-
ticipación de las mujeres agricultoras en las luchas sociales rurales, así como en las
experiencias productivas vinculadas al movimiento agroecológico.5 Por primera
vez, eran enfocados los cambios ocurridos en los sistemas productivos de las pro-
piedades rurales desde el punto de vista de género, lo que llevó a concluir que, de
manera general, participar de experiencias agroecológicas proporcionaba la am-
pliación del espacio de actuación de esas mujeres, más allá de sus redes de sociabi-
lidad habituales.
Se señalaron algunos factores en los sistemas de producción agroecológicos que
favorecían la mejora de la situación de las mujeres

a) El enfoque agroecológico valoriza las actividades tradicionalmente desarrolladas


por las mujeres (huertas, frutales, crianza de pequeños animales, transformación
casera de productos), incluyéndolas necesariamente en varias etapas del proceso
productivo en la unidad familiar.
b) La transición agroecológica muchas veces es vivida por los agricultores y agri-
cultoras como un cambio radical en el modo de relacionarse con la naturaleza y
con las personas, en una perspectiva ética de cuidado con el medio ambiente y
con los demás seres humanos. Además de valorar una actitud generalmente atri-
buida a las mujeres (el cuidado), esa postura favorece el cuestionamiento de re-
laciones autoritarias.
c) La forma en que se da la transición agroecológica presupone la participación de
todos los miembros de la familia. Puesto que ese proceso exige la integración
del conjunto de las actividades de la propiedad, muchas veces bajo responsabi-
lidad de diferentes personas, quiebra el monopolio directivo del hombre.
d) En el periodo más reciente, entidades externas a las familias (Estado, ONGs fi-
nanciadoras de proyectos, movimientos de mujeres rurales) han comenzado a
presionar para que las mujeres estuviesen presentes en mayor número en los es-
pacios donde las propuestas de apoyo a la transición agroecológica eran discu-
tidas, tales como cursos y seminarios.

5
Ver Pastore (2003); Karam (2004); Mourão (2004); Burg (2005), entre otras.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 287

e) La participación de las mujeres en espacios públicos, principalmente donde se


realiza la comercialización (como las ferias), permite el contacto con personas y
grupos exteriores a la propiedad, así como la adquisición de nuevos conocimien-
tos y habilidades, posibilitando el reconocimiento social del trabajo desarrollado
por ellas y generando mayor autoestima.
f) El hecho de que las mujeres pudieran obtener, por sí mismas, ingresos más per-
manentes, recibidos individualmente y fruto directo de su trabajo, tiende a me-
jorar su poder de intercambio dentro de las familias, permitiendo avances en
cuanto a su autonomía.

Sin embargo, las mismas investigaciones apuntaron que esas transformaciones


no eran automáticas, habiendo casos en que, cuanto más avanzaba el sistema pro-
ductivo en dirección a las prácticas ecológicas y se integraba más fuertemente al
mercado, más al margen de las decisiones quedaban las mujeres. Se verificó enton-
ces una especie de paradoja: las actividades que eran de dominio de las mujeres pa-
saban a ser controladas por los hombres, y ellas perdían poder de intercambio
dentro de las familias, volviendo a actuar solamente como mano de obra.6
La explicación de esos fenómenos tendría que ser buscada en el carácter pa-
triarcal de la sociedad en que las mujeres están insertas. En el contexto de la agri-
cultura familiar (de base ecológica o no), el poder sobre las decisiones que afectan
la familia en cuanto unidad de producción y también en cuanto núcleo de con-
vivencia es otorgado a los hombres, correspondiendo a las mujeres un lugar su-
bordinado. Las actividades consideradas productivas (que generan renta) son
consideradas más valiosas que las reproductivas (de cuidado de las personas),
siendo las primeras identificadas como del universo masculino y las segundas,
del femenino.

AGROECOLOGÍA Y MUJERES RURALES COMO SUJETOS: TENSIONES VISIBLES

Aunque las mujeres estén presentes en las experiencias agroecológicas y muchas


veces sean las protagonistas en las luchas por la soberanía alimentaria por medio

6
Magalhães (2005) analiza un caso semejante también en el sur de Brasil: la masculinización de la
producción lechera en el oeste paranaense, mostrando como esa actividad, tradicionalmente consi-
derada femenina, pasa al control de los hombres cuando la leche se integra en un mercado más es-
tructurado y comienza a generar más renta para las familias. Queda claro que el factor de éxito
económico alcanzado con las actividades desarrolladas tradicionalmente por mujeres, por sí solo, no
explicaría una tendencia de la agricultura ecológica a abrir espacios para una mayor autonomía de las
agricultoras. Otros factores tendrían que ser analizados para entender mejor lo que favorecería o di-
ficultaría esas transformaciones.
288 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

de sus movimientos organizados, por ejemplo, su lugar de liderazgo en esos temas


no está garantizado. De la misma forma, las cuestiones teóricas que implican su
aparición como sujetos políticos todavía no están tratadas en el campo de estudios
de la agroecología. Persisten abordajes yuxtapuestos, por ejemplo, sobre género y
agricultura, o sobre campesinado y soberanía alimentaria, sin que aparezca clara-
mente la manera en que todas esas cuestiones están íntimamente relacionadas.
Eso puede deberse a debilidades teóricas y conceptuales, pero también a la re-
sistencia en visibilizar a las mujeres y a las cuestiones de género en dichos escenarios.
En general existe la percepción de que es suficiente trabajar con las familias cam-
pesinas e indígenas como sujetos de un nuevo modelo de producción y consumo
—basado en la agroecología y en la búsqueda de la soberanía alimentaria— sin pro-
blematizar la falta de equidad y las tensiones que existen en su interior.
Como hemos visto, los estudios campesinos han tenido como centro de interés
a la unidad doméstica de producción y, por tanto, a las comunidades campesinas o
indígenas, que son percibidas como un conjunto de individuos indiferenciados en
relación al género donde quedan subsumidas las mujeres. No fue sino cuando las
feministas empezaron a estudiar desde una perspectiva de género las unidades do-
mésticas de producción, cuando las mujeres fueron visibilizadas, no solo en la pro-
ducción, sino en la reproducción de las mismas unidades y, por tanto, consideradas
fundamentales en la agricultura familiar y en la cultura campesina. Más reciente-
mente la ecología política, en su propuesta de trabajar las relaciones de poder en la
apropiación y uso de los recursos naturales, ha privilegiado en su análisis las rela-
ciones sociales referidas a la clase o a la condición étnica, sin profundizar en la di-
ferenciación de géneros y edades.
En Brasil, esto comienza a cambiar claramente cuando las mujeres rurales se
presentan en la escena pública como sujetos políticos con reivindicaciones propias
que van más allá de lo planteado por los movimientos campesinos, mayoritaria-
mente masculinos.
Un ejemplo que puede clarificar las tensiones entre esos campos es la cuestión
de la violencia contra las mujeres, que será visibilizada en varios países con las luchas
de La Vía Campesina y, en Brasil, liderada por el Grupo de Trabajo Mujeres de la
Articulación Nacional de Agroecología. Para esas organizaciones, la violencia se-
xista es una realidad que tiene que ser tratada dentro del ámbito agroecológico,
como una necesidad de justicia social y de construcción de un nuevo modelo de
relaciones en el campo. Los varones de esos movimientos tienden a rechazar el
tema, argumentando que es una cuestión que excede los mandatos de la agroeco-
logía, como el racismo, los prejuicios de etnia, etc. Las mujeres, por otro lado, con-
testan que la agroecología no es solamente un campo de conocimientos y prácticas
sobre producción agraria sostenible, sino también una propuesta de un nuevo mo-
delo de sistema agroalimentario y de relaciones entre personas. La existencia del
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 289

machismo y de la violencia penaliza todo el colectivo femenino e impide a la agro-


ecología afirmarse como una propuesta de cambios radicalmente democráticos en
el campo. En concreto, esas mujeres reinsertan dentro de una discusión sobre el
modelo agroalimentario temas históricos traídos por el feminismo. Llegan incluso
a plantear a los movimientos que no puede haber agroecología sin feminismo.
Por otro lado, las organizaciones de mujeres están construyendo experiencias
agroecológicas en todo el país, buscando la soberanía alimentaria, la mejora de eco-
sistemas degradados y el fortalecimiento de los medios de vida, sin que sus trabajos
y conocimientos sean reconocidos. Trabajan para mejorar la producción agrícola
sostenible para el consumo y la venta, recuperan semillas, se ocupan de produccio-
nes agrícolas y crianza de animales, cuidan del agua y de los bosques, con ninguno
o muy poco apoyo técnico, financiero y organizacional. Son vistas como mano de
obra, y no como creadoras de estrategias de supervivencia y de nuevos saberes. Su
papel como lideresas en el campo agroecológico continúa siendo secundario, per-
maneciendo, en general, los varones al frente de los movimientos políticos.
Sin embargo, también el feminismo está incorporando cuestiones que origina-
riamente han sido planteadas por movimientos ecologistas en el campo, como es el
caso de la Soberanía Alimentaria. Lo hacen de manera clara porque es un tema im-
portante para las mujeres campesinas que plantean ese debate tanto entre los com-
pañeros varones de las organizaciones rurales, como junto a las mujeres urbanas,
para quienes las cuestiones concernientes a la agroecología podrían parecer lejanas.
Se trata de una doble tarea política para las mujeres campesinas, una tarea que me-
rece la atención de todas las personas que propugnan un desarrollo rural sostenible
y con justicia social, para que no se queden solas en esas luchas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, Ricardo (1992): Paradigmas do capitalismo agrário em questão, Cam-


pinas, HUCITEC/ANPOCS.
AMORÓS, Celia; De Miguel, Ana (ed.) (2005): Teoría feminista: de la Ilustración a
la globalización, Madrid, Minerva.
BURG, Inês Claudete (2005): As mulheres agricultoras na produção agroecológica
e na comercialização em feiras no sudoeste paranaense, Dissertação (Mestrado
em Agroecossistemas) – Curso de Pós-Graduação em Agroecossistemas, Univer-
sidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, UFSC.
CAPORAL, Francisco Roberto (1998): La extensión agraria del sector público ante
los desafíos del desarrollo sostenible: el caso de Rio Grande do Sul, Brasil, Tese
(Doutorado) – Programa de Doctorado en Agroecología, Campesinado e Histo-
ria, ISEC-ETSIAN, Universidad de Córdoba, Córdoba, UCO.
290 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

CHAYANOV, Alexander (1974): La organización de la unidad económica campesina,


Buenos Aires, Nueva Visión.
HECHT, Susanna (2002): «A evolução do pensamento agroecológico», en: Altieri,
Miguel: Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável, Guaíba,
Agropecuária, pp. 21-52.
KARAM, Karen (2004): «A mulher na agricultura orgânica e em novas ruralidades»,
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, nº 1, pp. 303-320.
MAGALHAES, Reginaldo (2005): A «masculinização» da produção de leite. São Paulo
(mimeo).
MOURÃO, Patrícia de Lucena (2004): Agricultura familiar em Abaetetuba: um olhar
sobre as práticas agroecológicas e as relações de gênero, Dissertação (Mestrado),
Universidade Federal do Pará, Belém, UFPA.
PACHECO, Maria Emilia Lisboa (2005): «Construindo um diálogo: feminismo e
agroecologia (entrevista)», Proposta, Rio de Janeiro, v. 28/29, nº 103/104.
PACHECO, Maria Emilia Lisboa (2002): «Em defesa da agricultura familiar susten-
tável com igualdade de gênero», en GT Gênero-Plataforma de Contrapartes
Novib/SOS CORPO (2002): Perspectivas de gênero: debates e questões para as
ONGs, Recife, Gênero e Cidadania.
PACHECO, Maria Emilia Lisboa (1997): «Sistemas de produção: uma perspectiva
de gênero», Proposta, Rio de Janeiro, v. 25, nº 71, pp. 30-38.
PASTORE, Elenice (2003): Relações de gênero na agricultura ecológica: um estudo
de caso na região serrana do Rio Grande do Sul, Dissertação (Mestrado) – Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, UFRGS.
PULEO, Alicia (2008): «Libertad, igualdad, sostenibilidad. Por un ecofeminismo
ilustrado», Isegoría. Revista de Filosofía Moral y Política, n° 38, enero-junio 2008,
pp. 39-59.
TEPICHT, Jerzy (1973): Marxisme et agriculture: le paysan polonais, Paris, Armand
Colin.
SHIVA, Vandana (1991): Abrazar la vida: mujer, ecología y supervivencia, Montevi-
deo, Instituto del Tercer Mundo.
SILIPRANDI, Emma (2009): Mulheres e Agroecologia: a construção de novos sujeitos
políticos na agricultura familiar, Tese (Doutorado) – Centro de Desenvolvimento
Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, UNB.
WARREN, Karen (1998): «El poder y la promesa de un feminismo ecológico», en Agra,
Maria Xosé (comp.), Ecología y feminismo, Granada, Ecorama, pp. 117-147.
17. La Ecocrítica, vanguardia de la crítica
literaria. Una aproximación a través de la
ecoética de Marguerite Yourcenar
Teo Sanz
Universidad de Burgos

U
no de los enfoques más vanguardistas y lúcidos de la crítica literaria en estos
tiempos de cambio climático es la Ecocrítica. Hay que remontarse a los
años sesenta del siglo xx para encontrar los orígenes de la toma de concien-
cia actual frente al deterioro medioambiental. En ese sentido, como certeramente
señala Greg Garrad (2004), el libro de Rachel Carson, Silent Spring, publicado en
1962, abrió tempranamente los ojos a la eco-catástrofe, poniendo el acento en el
hecho de que la destrucción de la naturaleza es obra del ser humano y nada tiene
que ver con fenómenos inexplicables. Este libro científico que denunciaba la acción
devastadora de los pesticidas tiene un arranque literario-poético en el cual se pre-
senta una maravillosa pintura de la campiña norteamericana. En «a Fable for To-
morrow», su primer capítulo, la narración pone el énfasis en la belleza de un lugar
que visita la gente para observar la variedad de pájaros que por allí pasan en su re-
corrido migratorio.1 Pero, casi sin transición, el mundo bucólico de la fábula se
convierte en el centro de una catástrofe que, de manera inexplicable, rompe ese
equilibrio armonioso, acarreando enfermedades y muerte. así, el canto de pájaros,
auténtica sinfonía natural, se torna en silencio de muerte que cubre los campos y
bosques. «Los pocos pájaros que se podían ver estaban moribundos, temblaban
violentamente y no podían volar. Fue una primavera silenciosa» (Carson, 1962,
2002: 2).2 Más adelante, en el capítulo tercero, «Elixirs of Death» nos muestra que
el causante de ese desastre será el DDT, un pesticida muy eficaz utilizado después

1
«The countryside was, in fact, famous for the abundance and variety of its bird life, and when
the flood of migrants was pouring through in spring and fall people traveled from great distances to
observe them» (Carson, 1962, 2002: 2)
2
Mi traducción.
292 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

de la Segunda Guerra Mundial para erradicar plagas, pero, al mismo tiempo, alta-
mente perjudicial para el medio natural y para sus moradores, humanos y no hu-
manos. Rachel Carson denunciaba que estos productos químicos se encuentran
hasta en los ecosistemas más remotos, están almacenados en los cuerpos de los ani-
males y llegan hasta el ser humano en todas sus edades, incluso a través de la leche
materna y los tejidos placentarios,3 hipótesis esta última posteriormente compro-
bada de manera irrefutable. Silent Spring es recordado como un texto pionero por
el movimiento ecologista.

SURGiMiEnTo E iDEaS FUnDaMEnTaLES DE La ECoCRíTiCa

Esa toma de conciencia medioambiental, que posteriormente dio lugar al surgi-


miento del pensamiento ecológico de los años setenta del siglo xx, terminó por al-
canzar también el terreno de la crítica literaria, dando lugar a la nueva corriente
analítica denominada Ecocrítica. Esta influencia no fue inmediata. Habrá que es-
perar hasta los años noventa del siglo xx para encontrar definiciones teóricas sólidas
para analizar los textos literarios desde una perspectiva ecológica. no obstante, el
termino ecocrítica ya había sido utilizado con anterioridad. así, en el año 1978, Wi-
lliam Rueckert escribió un artículo cuyo título era «Literature and Ecology: an Ex-
periment on Ecocriticism» (Rueckert, 1996). En dicho trabajo, Rueckert sostiene
que es necesario aplicar la ecología y los conceptos ecológicos al estudio de la lite-
ratura, dado que la ecología es de vital importancia para el presente y el futuro del
mundo en que vivimos.
Pero el libro que teoriza sistemáticamente desde distintas perspectivas la relación
de la literatura con el medio natural tardaría casi dos décadas en aparecer. Se trata
de una publicación de 1996 que recupera el artículo de Rueckert y que lleva por tí-
tulo The Ecocriticism reader (1996). Coordinado por Cheryll Glotfelty y Harold
Fromm, contiene más de veinte capítulos que abordan el tema desde la eco-teoría,
las consideraciones ecocríticas en la ficción y el teatro o los estudios críticos rela-
cionados con la literatura medioambiental. La introducción general de Cheryll Glot-
felty, profesora de la Universidad de nevada, es uno de los textos más citados por
parte de lo ecocríticos que desean explicar en qué consiste esta innovadora corriente
interpretativa. La autora señala que, hasta ese momento —recordemos que el pró-
logo está escrito a mediados de los años noventa del pasado siglo—, ninguna insti-

3
«[...] have been found in fish in remote mountain lakes, in earthworms burrowing in soil, in the
eggs of birds-and in man himself. For these chemicals are now stored in the bodies of the vast majority
of human beings, regardless of age. They occur in the mother´s milk, and, probably in the tissues of
the unborn child» (Carson, 1962, 2002: 16).
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 293

tución de estudios literarios ha sido consciente de la crisis medioambiental (Glot-


felty, 1996: xvi). La teoría literaria habría sido la única impermeable a ese hecho.
Por el contrario, otras disciplinas humanísticas como «la historia, la filosofía, el de-
recho, la sociología o la religión» llevaban más de dos décadas, desde 1970, preo-
cupadas por el tema. igualmente subraya que «mientras los movimientos sociales,
léase derechos civiles o el movimiento de liberación de las mujeres de los sesenta y
setenta, se habían consolidado en los estudios literarios, nada de eso ocurría con el
movimiento medioambiental (Glotfelty, 1996: xvi).
no será hasta principios de los noventa cuando los estudios literarios con pers-
pectiva ecológica alcancen un reconocimiento como corriente crítica. Glotfelty se
pregunta qué es la Ecocrítica y responde de la siguiente manera: «dicho de manera
sencilla, la Ecocrítica es el estudio de la relación entre la literatura y el entorno fí-
sico» (1996). Como complemento a esa respuesta concisa pero clarificadora, añade:
«De la misma manera que la crítica feminista examina el lenguaje y la literatura
desde una perspectiva de conciencia de género, y la crítica marxista es consciente
de los modos de producción y de las clases sociales para la interpretación de los
textos, la ecocrítica adopta un enfoque ecocentrado a la hora de examinar los textos
literarios» (Glotfelty, 1996: xviii).4 observa que como toda teoría literaria estudia
las relaciones entre los escritores, los textos y el mundo pero señala que la noción
de «mundo» en la Ecocrítica es más amplia, se extiende a la totalidad de la ecoes-
fera» y señala la manera por la cual los teóricos de este enfoque pueden estudiar
una creación literaria, por ejemplo, ver cómo la naturaleza aparece en un poema,
o bien cuáles son los valores ecológicos de un texto en particular.
otro estudio a tomar en consideración por su capacidad de síntesis es The en-
vironmental imagination de Laurence Buell (1995), profesor de Literatura de la
Universidad de Harvard. Esta obra es altamente útil porque resume en cuatro pun-
tos básicos los criterios que nos podrían guiar a la hora de valorar el grado ecológico
de un texto:
1) El medioambiente no humano aparece no solo como un mero marco, sino como pre-
sencia que comienza a sugerir que la historia humana está ligada a la historia natural.
2) El interés humano no es comprendido como el único interés legítimo. 3) La respon-
sabilidad humana por el medioambiente forma parte de la orientación ética del texto.
4) Se encuentra implícita, al menos, cierta idea del medioambiente como un proceso y
no solo como una constante o un dato»5 (Buell, 1995: 7-8).
Por otro lado, también hay que tener en cuenta la Ecopoética como enfoque
crítico en el tema que nos ocupa. Este concepto ha sido desarrollado en el ámbito
de la crítica francófona con el fin de analizar la estética de los textos comprometidos

4
Mi traducción.
5
Mi traducción.
294 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

con la defensa de la naturaleza. Para Pierre Schoentjes, los conceptos temáticos de


Buell delimitan una orientación ética pero no dicen nada acerca de la estética del
texto (Schoentjes, 2010). otros, nathalie Blanc, Denis Chartier y Thomas Pughe,
estiman que «si la ecología plantea un desafío a la crítica literaria, podemos igual-
mente preguntarnos si la literatura puede a su vez proponer una nueva mirada sobre
la ecología» (Blanc, Chartier, Pughe, 2008). Los defensores de esta corriente de
marcado acento textual señalan que no debemos obviar los medios formales por
los cuales se describe la naturaleza. El concepto de «descentramiento» como una
manera de forjar un imaginario ecológico distinto del tradicional pensamiento an-
tropocéntrico, adquiere gran importancia (Skinner, 2003). El editor de la revista
Ecopoetics señala que este enfoque no se limita a cierto tipo de período, estilo o
temática, sino que busca detectar las formas de construcción de una nueva percep-
ción de lo silvestre que dé lugar a las voces no humanas. Por mi parte, creo que un
equilibrio entre el campo temático-ético y el textual puede ser muy fructífero a la
hora de analizar las obras literarias desde un punto de vista ecológico.
La Ecocrítica también se preocupa por la labor de transmisión de conocimientos
en el campo de la enseñanza. Como disciplina relativamente nueva, debe buscar
cómo combinar las teorías de la literatura tradicionales con las herramientas de una
disciplina comprometida con el medio natural. William Rueckert, en el artículo ya
citado, publicado originariamente en 1978 y considerado fundador (Rueckert, 1996:
105-123), sostiene que la literatura es una fuente renovable de energía, uno de los
muchos soles que posee la humanidad. Por ello, plantea la necesidad de encontrar
fórmulas de usarla, de utilizar la energía que procede del lenguaje poético con el
fin de que la enseñanza de la literatura sirva para concienciarnos de que debemos
mantener una biosfera sana.
El reciente libro Teaching ecocriticism and Green cultural studies, coordinado
por Greg Garrad (2012), nos ofrece un panorama amplio en el que se nos muestra
que la teoría Ecocrítica puede dar resultados innovadores. Múltiples discursos y
aspectos de la realidad se encuentran implicados en este enfoque que nos permite
reconceptualizar el mundo: la literatura, la teoría postcolonial, la globalización, el
posthumanismo, el cambio climático, los nuevos medios de comunicación, la de-
construcción, el cine, etc. Lo más importante es, como escribe Richard Kerridge
(Kerridge, 2012: 12-13), que los enfoques ecocríticos se guíen por el principio de
las interconexiones.

Una LECTURa ECoCRíTiCa DE MaRGUERiTE YoURCEnaR

Dentro de un marco amplio en el que se tienen en cuenta ciertos postulados ecocrí-


ticos, estudiaré la ecoética y la poética ecológica yourcenarianas que contribuyen a
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 295

que quien se acerca a su obra transite por nuevas formas de relación con el entorno
natural. Sin duda, la ecología está muy presente en el horizonte de expectativas de
Marguerite Yourcenar, una escritora pionera en dar la alerta sobre las catástrofes re-
lativas al deterioro de nuestro planeta. En esa línea, estudios como el coordinado
por andrea Padilla y vicente Torres en 2007, Marguerite Yourcenar y la Ecología,
un combate ideológico y político, son un instrumento valioso para conocer el alcance
del compromiso ecológico de nuestra autora. Como escribe Michèle Goslar en uno
de los artículos de este estudio: «Si lo político puede ser definido como voluntad de
incidir en el comportamiento de un grupo de individuos, puede decirse entonces
que la preocupación constante de Marguerite Yourcenar por el porvenir de los ani-
males y la naturaleza fue de carácter político. Esta preocupación por el respeto de
la vida humana y no humana se manifestó desde sus primeros escritos y en todos los
géneros que cultivó: novela y poesía, teatro y ensayos, traducciones y discursos, en-
trevistas y correspondencia» (Goslar, 2007: 37). Una amplia antología relativa a la
presencia del pensamiento ecológico de Yourcenar puede encontrarse igualmente
en la publicación de 1990 realizada por el CiDMY (Centre international de Docu-
mentation Marguerite Yourcenar) titulada Marguerite Yourcenar et l’Ecologie.
Efectivamente, un enfoque ecocrítico de su obra revela que en la mayoría de sus
creaciones siempre hay un resquicio para un compromiso real con respecto a la na-
turaleza y a los seres vivos, animales humanos y no humanos que la habitan. Pero,
ciertamente, además de los criterios temáticos, la obra de Yourcenar nos ofrece su
visión de la naturaleza a partir de una escritura con una gran fuerza estética, por lo
que se podría estudiar desde la ecopoética.
Marguerite Yourcenar (1903-1987) fue la primera mujer que ocupó un sillón en
la academia Francesa de la lengua. Su nombramiento, a propuesta de Jean d’or-
messon, tuvo lugar en 1981, no sin reticencias por parte de algunos «inmortales».
En efecto, fueron muchos los que opusieron gran resistencia a que una mujer en-
trara en ese recinto exclusivo, entre ellos Lévi-Strauss. El reconocido antropólogo
apoyó su negativa en el argumento de que «no se cambian las leyes de la tribu».
Yourcenar fue una escritora comprometida con la ecología. Manifestó también
su apoyo a la Declaración Universal de los Derechos de los Animales proclamada
por la Liga internacional de los Derechos del animal en 1978 y aprobada poste-
riormente por la onU y por la UnESCo. Siempre sostuvo que la ecología formaba
parte de su vida y que fue una de sus principales preocupaciones. En el capítulo
«Un écrivain dans le siècle», incluido en Les Yeux ouverts (Yourcenar, 1980), res-
ponde a las preguntas de Matthieu Galey sobre la ecología refiriéndose al sombrío
panorama que, ya a principios del siglo xx, pintaban algunas mentes clarividentes
como el geógrafo Schrader. Yourcenar considera que todas las catástrofes que en-
tonces se vaticinaban serán aún peores dado que a finales de siglo el panorama es
terrorífico: lluvia ácida, contaminación de ríos y mares por el mercurio y los residuos
296 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

químicos y atómicos, desaparición de miles de especies animales, uso generalizado


de pesticidas, mareas negras, destrucción de la capa de ozono, etc. (Yourcenar,
1980: 293-294). Por esa razón, Yourcenar no cesó de llevar a cabo una actividad
pública favorable a las asociaciones defensoras del planeta hasta el punto de que,
con 84 años, un mes antes de su muerte, en su penúltima conferencia, titulada «Si
aún queremos salvar la Tierra» e impartida en la Universidad de Laval, en Canadá,
habla de «extravío de la conciencia humana» y subraya que «la fórmula Tierra de
los hombres es extremadamente peligrosa ya que la Tierra pertenece a todos los
seres vivos y nosotros pereceremos con ellos y con ella» (Yourcenar, 1988: 32).6
Esta convicción se encuentra presente en su imaginario literario ficcional, en sus en-
sayos y entrevistas y en su amplia obra autobiográfica donde, de una manera o de
otra, alude a sus preocupaciones fundamentales: el problema ecológico, las guerras,
el racismo, el comercio de marfil, las granjas-factoría, la industria peletera, la matanza
de focas, la vivisección y la caza. En las líneas que siguen analizaré, desde una pers-
pectiva ecocrítica, la obra yourcenariana tomando como eje principal su última no-
vela, Un Hombre Oscuro (Un homme obscur, 1982) y refiriéndome también, por
las razones indicadas, a otros textos de su autoría, ya sea de ficción o factuales.

ConCEPTo DE naTURaLEza Y vínCULo aL LUGaR

En primer término cabe preguntarse qué papel juega la naturaleza en la estética de


la autora. Ciertamente no es la idea romántica de la naturaleza la que predomina
en los textos de Yourcenar. En ese sentido, se aleja de los discursos propios del
viejo Continente en lo referente al paisaje (Sanz, 2010). Yourcenar huye del tipo
de narración idílica romántica, a la europea, en la que se pone solo el acento en la
belleza del paisaje que acompaña el sentir de un personaje afligido por la desdicha.
no vamos a encontrar una representación de la naturaleza como mero escenario o
proyección de los estados de ánimo de los humanos. Ese tipo de paisaje domesti-
cado del Romanticismo es un refugio ideal para una fusión de marcado carácter
egocéntrico. Yourcenar, en cambio, se encuentra más próxima a la noción de «Wil-
derness», de la naturaleza virgen aún no contaminada por la civilización. así se evi-
dencia en Un hombre oscuro, que podemos considerar su testamento ecológico.
ambientada en el siglo xvii, esta novela breve narra la historia de nathanaël, un
joven inglés sensible y enfermizo, que en pleno siglo cartesiano se ve obligado a tra-
bajar en un barco que recorre los mares. En esos viajes se enfrenta a la realidad de
la vida y a las atrocidades del mundo. nathanaël simboliza lo natural y la sensibili-
dad. La experiencia del viaje le permite descubrir la espléndida naturaleza incó-

6
Mi traducción.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 297

lume de las tierras y de las islas del norte del continente americano. Esta naturaleza
es mucho más que un escenario adecuado para el héroe. Se trata de una presencia
con realidad propia. nathanaël se siente maravillado por esta naturaleza no hete-
rodesignada y desde el barco percibe las costas hasta las cuales descienden «selvas
impenetrables». En esos momentos recuerda sus lecturas, los bosques al borde de
los santuarios de los que habla virgilio. al final de la historia la fusión de nathanaël
con la naturaleza será total.
no es de extrañar que Marguerite Yourcenar describa con fascinación, por
medio de su personaje, esos paisajes desprovistos de toda semantización cultural o
literaria. El ecocrítico Jonathan Bate, en su libro The Song of the Earth (Bate, 2000),
realiza el primer estudio con enfoque ecocrítico de la literatura inglesa, mostrando
la importancia que la poesía tiene en el nuevo milenio frente a la sociedad tecnoló-
gica, subrayando la capacidad de los escritores para devolvernos a la tierra que es
nuestro hogar. Esa capacidad la encontramos, sin duda, en buena parte de la lite-
ratura de Marguerite Yourcenar. incansable viajera, la escritora desarrolla un ima-
ginario de los lugares marcado por un compromiso que la lleva a denunciar los
desastres que afectan a los seres que habitan el planeta Tierra. En un ensayo de
gran calado ecocrítico, Writing for an endangered world, Laurence Buell acuña el
concepto de «place-connectedness» para hablar del vínculo con los lugares. En
concreto, habla de cinco formas de vinculación. Por su actividad y pensamiento,
Yourcenar podría ser adscrita a una de ellas, la tercera, que Buell denomina «lugares
no estables», es decir los que han cambiado su estructura por las fuerzas interiores
o exteriores que los han vulnerado.7 Cuando en 1942 la escritora descubre la isla
de Monts Deserts, en el estado de Maine, nace el vínculo que la llevará a vivir en
ella hasta el final de sus días. En ese lugar abierto al mar, declara: «uno tiene la im-
presión de estar en una frontera entre el universo y el mundo humano» (Yourcenar,
1982: 134).8 En el prólogo de uno de sus primeros textos, la obra de teatro La Petite
sirène (La Sirenita, de 1942), Yourcenar cuenta que, a partir de esa época, su gusto
por los paisajes del pasado fue dando paso a su interés creciente por los lugares
cada vez más escasos en los que todavía no había dejado su huella la horrorosa aven-
tura humana (Yourcenar, 1971: 176). En su trilogía autobiográfica Le Labyrinthe
du Monde (escrita entre los años 1974 y 1988 y recogida en Gallimard-La Pléiade
en el volumen de Essais et Mémoires (1991), la autora constata la degradación de
los idílicos lugares de su infancia. En la primera entrega, Souvenirs pieux (1974) (Re-
cordatorios) (Yourcenar, 1991) se centra en la investigación de sus raíces maternas.

7
«Just as modern place attachment, such as it is, tend to be more or less dispersed, so, conversely,
to introduce a third consideration, the places themselves are no stable, free-standing entities but con-
tinually shaped and reshaped by forces from both inside and outside.» (Buell, 2001: 67).
8
Mi traducción.
298 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

Con el fin de ser fiel a la realidad, la narradora visita los lugares que fueron testigos
del pasado familiar. De esta manera, completa con viajes a Bélgica, la tierra de sus
ancestros, lo aprendido en los documentos consultados que le sirven de guía. Du-
rante uno de ellos, en 1956, se detiene en el castillo de Flémalle. Marguerite Your-
cenar considera de vital importancia visitar las mansiones porque esas piedras y esos
interiores, que vieron pasar la vida de las gentes que los habitaron, también ayudan
a reconstruir la memoria. al recorrer ese lugar, que ya conocía y que le había llamado
la atención en un grabado de su posesión, Yourcenar constata de qué manera mueren
los símbolos de la Historia. El lugar virgen que mostraba el grabado era ahora un
lugar sin hierba ni árboles, una zona industrial con su «topografía de infierno» (Your-
cenar, 1991a: 763). Del castillo, solo quedaban unas ruinas. La mansión había sido
adjudicada a una empresa de derribos. La parte mejor conservada era una barandilla
con sus hierros del siglo xviii. Yourcenar llega el día del cierre antes del derribo y al
verla piensa, como en los grabados de Piranesi, que también esa escalera parecía
subir alegremente hasta el cielo (Yourcenar, 1991a: 764).
En un viaje posterior, esta vez en 1971, Yourcenar constata la degradación del
lugar. nubes malolientes y amarillas que llegaban al cielo ahogaban al visitante. El
paisaje estaba salpicado de minas de carbón cerradas y de edificios abandonados
que le recuerdan el castillo en ruinas del negro encantador que aparece al final de
un acto de Parsifal. Su grabado «Las Delicias de la comarca de Lieja» se había trans-
formado en un «apocalipsis» (Yourcenar, 1991a: 766) provocado por los errores
del ser humano que se mete a aprendiz de brujo. al presentar la desfiguración in-
dustrial de la región de sus padres, Marguerite Yourcenar deja, a la vez, constancia
de su compromiso ecológico. Recupera los vestigios de su pasado familiar para juz-
gar el mundo que la rodea.
En el segundo libro de la trilogía familiar titulado Archives du Nord (1977)
(Archivos del Norte) (Yourcenar, 1991), la escritora bucea en los orígenes fami-
liares paternos. «Despega» de la noche de los tiempos imaginando cómo sería
antes del nacimiento del mundo el lugar en que vivió su familia. Con esa visión,
rememora ese tiempo en que el hombre no existía todavía (Yourcenar, 1991: 954)
e imagina una naturaleza virgen que cambia según las estaciones aún no ampu-
tadas por calendarios ni relojes. La autora nos devuelve el silencio solo interrum-
pido por los ruidos de los animales libres en su entorno natural. acto seguido,
en contraste con la idílica paz descrita, aparece el «depredador-rey […] el leñador
de los animales y el asesino de los árboles, el cazador que dispone de sus trampas
en donde se estrangulan los pájaros» (Yourcenar, 1991: 957), en suma, el hombre
con sus poderes que vienen a ser una anomalía dentro del conjunto de las cosas.
Su aparición no será beneficiosa para ese jardín primitivo. Yourcenar lo concibe
en toda su brutalidad: «Los cómics y los manuales científicos populares nos
muestran a ese adán sin gloria bajo el aspecto de un bruto peludo blandiendo
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 299

una porra: nos hallamos lejos de la leyenda judeo-cristiana para la cual el hombre
original deambula en paz por la sombra de un hermoso jardín» (Yourcenar,
1991b: 958).9
Situando la ficción de Un hombre oscuro en el siglo xvii, Yourcenar nos alerta
del peligro que se cierne sobre los espacios naturales con el advenimiento de la Mo-
dernidad. nathanaël admira la inmensa belleza de la naturaleza virgen y su pensa-
miento transmite a los lectores la fragilidad de las selvas que ya empiezan a ser
destruidas por la desmesura humana. Una desmesura que, según Yourcenar, nació
con el hombre (Yourcenar, 1982: 296). Sin embargo, en cierta medida, Yourcenar
denuncia desde la literatura, como también lo haría Carolyn Merchant en su ensayo
The Death of Nature (Merchant, 1983), la filosofía mecanicista que despoja a la
naturaleza de su antigua dignidad en tanto poseedora de energía espiritual. Como
se evidencia también en la elección de la figura del alquimista en tanto personaje
principal de la novela «L’Oeuvre au Noir»10 (Yourcenar, 1982b), Yourcenar se siente
atraída por el animismo renacentista que sucumbió más tarde a los embates del me-
canicismo. En su obra encontraríamos la crítica a una modernidad tecnológica, que
pasó a considerar la Terra Mater como una materia prima pasiva, inerte y atomística.
Una modernidad que inicia el «desencantamiento del Mundo», preparando así la
instalación de la explotación intensiva y la guerra contra la naturaleza que denun-
ciará tres siglos después Rachel Carson con su Primavera silenciosa.

éTiCa DEL CUiDaDo Y GénERo

La «compasión universal» se sitúa en el centro de la ética yourcenariana. De ahí


que desde muy temprano se muestre sensible al espectáculo del dolor de los seres
vivos que poseen, según sus propias palabras en Recordatorios: «el sentido de una
vida encerrada en una forma diferente».11 En una carta de 1957, Yourcenar felicita
a la escritora y poeta Lise Deharme, defensora de los animales, «por haber tenido
la valentía de tratar ese tema (pocos hay que sean tan graves) y por desdeñar de an-
temano el reproche de sentimentalismo que los necios no dejarán de hacerle».12
nuestra autora es consciente de las resistencias que encuentra el desarrollo de una
sensibilidad moral que atienda al sufrimiento más allá de nuestra especie. Y frente
a la tradición racionalista que considera que la piedad es una pasión y, en conse-

9
Mi traducción.
10
Cuyo título fue traducido en una de las versiones en español justamente como El Alquimista.
11
«Le sens d’une vie enfermée dans une forme différente» (Yourcenar, 1974: 298).
12
«Je vous félicite d’avoir eu le courage de traiter ce sujet (il en est peu de plus graves) et de dé-
daigner d’avance le reproches de sentimentalité que les sots ne manqueront pas de vous adresser»
(Yourcenar, 1995: 165).
300 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

cuencia, una expresión de nuestra parte corporal inferior al intelecto, Marguerite


Yourcenar aboga por el desarrollo de nuestras capacidades sensoriales que están
demasiado sometidas «a ese ordenador que es el cerebro para nosotros (Yourcenar,
1980: 320).
ahora bien, en las últimas décadas, la revalorización de los sentimientos en el
ámbito de la moral ha ido de la mano de los estudios de género. Recordemos a
Carol Gilligan, quien en su libro In a Different Voice (Gilligan, 1982), reclamaba
el reconocimiento de «otra voz», es decir de una moral femenina que ha sido tra-
dicionalmente menoscabada: la ética del cuidado. Según sus investigaciones empí-
ricas, en la decisión moral, los hombres se guían de acuerdo a principios, hablan
de conceptos y de deberes y piensan en términos de justicia. Por el contrario, las
mujeres parten de un yo relacional que conduce a una moral de la responsabilidad,
así como a un mayor relativismo contextual frente a la lógica de los principios.
Mientras que según las clasificaciones de teóricos de la Moral como Kohlberg, esta
forma de pensamiento ético era inferior a la basada en el deber y los principios, Gi-
lligan, junto con otras pensadoras de la ética del cuidado, estiman que esas dos pers-
pectivas morales no son contradictorias ni deben estar jerarquizadas. La idea de
que existe una forma femenina del pensamiento moral ha sido muy debatida y cri-
ticada. Entre otros argumentos, se ha señalado que las sociedades modernas son lo
suficientemente complejas y los roles de género se han hecho menos rígidos, por lo
que generalizar acerca de un pensamiento moral característico de las mujeres sería
abusivo. Sin embargo, las estadísticas no dejan de mostrar que subsiste una dife-
rencia entre el número de mujeres y hombres dedicados a las tareas del cuidado y
que los miembros de las bases de los movimientos ecológicos y de defensa de los
animales en el mundo son mayoritariamente mujeres. La misma noción de ética del
cuidado ha sido favorablemente acogida por las teorías ecofeministas como una vía
de ampliación de la responsabilidad moral al mundo no humano, si bien lo han
hecho ajustándola en cada caso a posiciones teóricas diferentes (Gaard, 1993; Wa-
rren, 1996; Puleo, 2011). a pesar de sus divergencias, estas lecturas ecofeministas
coinciden en alejarse de posiciones ecofeministas esencialistas que no permitirían
esperar actitudes propias de la ética del cuidado en los hombres. Por el contrario,
postulan el final de la contraposición de género, aspirando a una moral no andro-
céntrica compartida por todos. En ese sentido, podríamos ver a nathanaël, el per-
sonaje central que Yourcenar nos presenta en Un hombre oscuro, como un modelo
ético. nathanaël no renuncia a la emotividad como dictan las normas de la mascu-
linidad, ni en él se encuentran los valores de quienes para defender la cultura deni-
gran a la naturaleza y la consideran un objeto para dominar. no participa del poder
ni muestra la tradicional actitud de competición de los varones. a lo largo de su
vida, permanece en una escala jerárquica «inferior», mostrando una discreción ab-
soluta, hasta su silenciosa fusión final con la naturaleza. La ética del cuidado, el re-
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 301

chazo de la violencia, la manifestación de las emociones en tanto características atri-


buidas históricamente a las mujeres y, por consiguiente, devaluadas, son la base del
mundo afectivo del último personaje yourcenariano.
Pero, paradójicamente, las mujeres que aparecen en la novela son estereotipos
femeninos. Un análisis de las figuras de la feminidad de este texto tal como el que
Simone de Beauvoir hace en El Segundo Sexo (Beauvoir, 2005) a la obra de autores
tan relevantes de la literatura francesa como Breton, Claudel y otros, nos permite
constatar que las mujeres del relato yourcenariano no están dotadas de individua-
lidad. En primer término, Janet, con quien nathanaël mantiene una corta relación
antes de iniciar su gran viaje, es un personaje claramente estereotipado, limitado a
un conjunto de tretas para seducir al varón. Foy, su compañera en una isla perdida,
encarna la mujer ingenua que sabe trabajar la tierra y que está dotada de una es-
pontaneidad seductora. De vuelta a Europa, nathanaël vive con Saraï, una prosti-
tuta que engaña y roba a sus clientes. También aparecen figuras femeninas positivas,
pero siempre esquemáticas (Sanz, 2005). El personaje principal se cruza en su vida
con mujeres que le ayudan o le salvan como Mevrow Clara o Madame d’ailly. Esta
última es el símbolo de la mujer ideal pero inalcanzable. Como en el modelo del
amor cortés, la veneración que el amado siente por ella funciona como un motor
de perfeccionamiento para este. Ella le transmite la fuerza espiritual para que con-
tinúe su propio camino y sacrifica su integridad física al besarlo a pesar de saber
que tiene una enfermedad pulmonar contagiosa. nathanaël se va convirtiendo pau-
latinamente en un personaje complejo mientras ellas permanecen ancladas en una
función concreta al servicio de una narración cuyo objetivo consiste en mostrar la
transcendencia de la figura masculina. Son simples medios. Por el contrario, el per-
sonaje masculino central será quien nos transmita la voz del otro no humano, al li-
berarse de las normas de su género para convertirse en un sujeto transcendente y
sabio en el corazón mismo de la naturaleza. Podemos concluir que Yourcenar ha
sabido superar el sesgo antropocéntrico pero no el androcentrismo que la lleva a
adjudicar al falso universal —el hombre— lo que todavía es, en gran medida, un
particular de género.

SEnSoCEnTRiSMo Y BioCEnTRiSMo

La superación del antropocentrismo hace de Yourcenar una pionera que merece la


atención de la Ecocrítica. ahora bien, atendiendo a la variedad de perspectivas que
suelen distinguirse en el espectro del pensamiento ambiental, podemos preguntarnos
cuál sería la posición que la caracteriza. En sus obras, otorga un lugar privilegiado a
la dignidad de los animales. Marguerite Yourcenar critica el antropocentrismo hu-
manista y la cultura francesa en la que la teoría del animal-máquina cartesiano es un
302 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

artículo de fe que favorece la explotación y la indiferencia. a ese respecto, se pre-


gunta si la aseveración cartesiana no fue entendida en su nivel más bajo dado que el
animal-máquina es también el mismo ser humano: «una máquina de producir y or-
denar las acciones, las pulsiones y las reacciones que constituyen las sensaciones de
frío y de calor, de hambre y de satisfacción digestiva, los impulsos sexuales y también
el dolor, el cansancio y el terror que los animales experimentan al igual que nosotros»
(Yourcenar, 1991: 375).
así, Yourcenar expresa un pathos contemporáneo, una ética sensocéntrica,
que encontramos teorizada en la filosofía utilitarista de Peter Singer (Singer, 2005)
quien hereda de Bentham la idea de que la capacidad de sentir dolor, y no la ca-
pacidad de razonar debe ser el criterio para actuar con consideración moral hacia
otros seres vivos. Pero a diferencia de filósofos como Singer, que buscan funda-
mentar el antiespecismo exclusivamente en la razón, tanto en algunos ensayos
como en sus relatos, Yourcenar da un lugar muy importante a los sentimientos del
sujeto de la acción. Sin embargo, esto no la lleva a despreciar las normas y princi-
pios. Considera que una Declaración de los Derechos de los animales es útil en
una época de crecientes abusos. Yourcenar recuerda que, a pesar de La Declara-
ción de los Derechos Humanos de la Revolución francesa, hubo destrucciones ma-
sivas de vidas que degradaron, en los campos de concentración, la noción de
humanidad hasta extremos impensables. a la pregunta que ella misma se hace
sobre sí será efectiva una Declaración de ese tipo mientras el ser humano no cam-
bie, responde afirmativamente, pues «siempre es conveniente promulgar o reafir-
mar las Leyes verdaderas que no por ello dejarán de ser infringidas, pero dejando
aquí y allí a los transgresores el sentimiento de haber obrado mal». “no matarás”.
Toda la historia, de la que nos sentimos tan orgullosos, es una perpetua infracción
a esa ley» (Yourcenar, 1991c: 375).13 El posicionamiento de Yourcenar con res-
pecto a los animales no humanos está también presente en Un hombre oscuro.
nathanaël rechaza constantemente la violencia contra ellos. nunca habla de dónde
se encuentran con el fin de que los cazadores no los abatan. Uno de los pasajes
más representativos al respecto narra, en estilo poético, una estancia de este per-
sonaje en una colonia inglesa del nuevo Mundo en compañía de su compañera
Foy. nathanaël prefiere recoger frutos y disfrutar del bosque en vez de seguir a
los demás varones que gozan con la caza y la pesca. Se solidariza con los animales
que pueblan los bosques, con el oso con el que se topa, con el zorro que lo observa
o con las culebras condenadas a ser aplastadas si desvelara a los otros hombres su
existencia (Yourcenar, 1982: 930).
no obstante, la ética de Yourcenar tiene también rasgos biocéntricos. Una re-
copilación de sus notas de lectura publicadas con el título de Sources II recoge una

13
Mi traducción.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 303

enorme cantidad de textos que nos muestran su pensamiento y nos explican el mé-
todo de creación yourcenariana. Como subraya Rémy Poignault, estos textos «te-
nían ante todo un objetivo personal, a saber, el de la meditación cotidiana a la
manera de los estoicos, los cristianos o los filósofos orientales» (Poignault, 2007:
49). Uno de los apartados lleva por título «Souhaits» (anhelos). En él habla de sus
deseos con relación al mundo en que querría vivir: «Un mundo donde todo objeto
viviente, árbol, animal, fuera sagrado y jamás destruido, salvo con aflicción y en
caso de necesidad» (Yourcenar, 1999: 240). Por otro lado, Yourcenar escribe en
«L’Homme qui aimait les pierres», uno de los ensayos incluidos en el libro En Pelerin
et en Étranger (1991) (Peregrina y Extranjera) y dedicado al escritor Roger Caillois,
que la piedra es anterior al hombre, es «un alfabeto inconsciente» (Yourcenar, 1991:
552), una sorda vibración secular. La autora llega incluso a hablar de la amistad de
las piedras, de su significado, de su importancia, porque como ya vio el místico me-
dieval Eckhart, «la piedra es Dios, y el hecho de no saberlo la determina como pie-
dra» (Yourcenar, 1991: 550). Uno de sus últimos libros —La voix des choses
(Yourcenar, 1987)— insiste en los mensajes que un objeto puede transmitirnos. Su
título hace alusión al sonido que emite una placa de malaquita de antigüedad inme-
morial, proveniente de la india, que se le cae de las manos y se rompe cuando la es-
critora estaba hospitalizada y con gran debilidad. Yourcenar se siente consternada
por la destrucción de un mineral de dibujo perfecto y casi tan antiguo como la Tierra.
no obstante, observa, el sonido que emite al romperse es muy bello, es un ejemplo
de la voz de las cosas que nos hablan. Como en otros pensadores biocéntricos, en
Yourcenar, lo animado va incluso más allá de lo que llamamos «seres vivos».
Comparando su pensamiento con el de los teóricos ecocéntricos actuales, ¿po-
dríamos decir que Yourcenar estaría en la línea de un biocentrismo holístico que
solo concede valor a los ecosistemas sin otorgarlo a ningún individuo en sí mismo?
Considero que no. Creo haber dejado claro a través de los ejemplos anteriores que
Yourcenar adoptaría más bien un biocentrismo en el que no esté ausente una ética
de la responsabilidad hacia todos y cada uno de los seres vivos no humanos. En
todo caso, su ecocentrismo respondería a un espiritualismo anti-violento de mar-
cado acento místico, a un sentido de comunicación con la Totalidad. Por ello, para
Yourcenar, las plantas y las piedras practican la reciprocidad, nos agradecen por
nuestros cuidados o nos envían oscuras vibraciones cuando las tocamos (Yourcenar,
1980: 322). Esta idea la encontramos también en Un hombre oscuro, donde se puede
observar cómo nathanaël rechaza toda violencia contra cualquier forma de vida
animal o vegetal: «El chico amaba asimismo a los árboles; los compadecía, por muy
altos y majestuosos que fueran, por ser incapaces de huir o de defenderse entrega-
dos al hacha del más débil leñador» (Yourcenar, 1982: 990).
304 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

a MoDo DE ConCLUSión

Yourcenar siempre declaró que sus libros caminaron a la par que su propia evolu-
ción vital. al final de su vida, su gran anhelo consistía en que el planeta estuviera
libre de violencia y contaminación. Por esa razón nunca dejó de manifestarse en
contra de los que llamó «asesinos de la naturaleza» y «verdugos» de los animales.
En Yourcenar, la literatura no solo es una composición estética, sino un compromiso
ecoético pionero que, como tal, no ha sido suficientemente reconocido.
La Ecocrítica, como enfoque analítico, ha de ser también, sin duda, un compro-
miso literario y político, pues no se pueden cortar los lazos entre la ficción y el con-
texto del cual emana. La crisis ambiental global no es ninguna metanarrativa. En
suma, sería pertinente señalar que la autonomía total de los textos no existe. Por
eso, cuando hacemos estudios con este enfoque innovador hay que buscar las hue-
llas de las ideas y de las representaciones de la naturaleza e intentar evaluar los tex-
tos, como declara Kerridge, «en términos de su coherencia y utilidad como
respuesta a la crisis medioambiental» (Kerridge, 1998: 5). Ello no obsta para que
también desde la ecopoética, para la cual existe, indudablemente, excelente material
en la obra yourcenariana, lleguemos a sensibilizarnos del terrible peligro que ame-
naza la supervivencia de nuestro planeta. a la luz de una lectura ecocrítica, enri-
quecida por la ecopoética, del temprano pensamiento ecológico de Marguerite
Yourcenar, podemos decir que esta innovadora corriente de la crítica literaria nos
ofrece una herramienta preciosa de análisis literario desde un compromiso ecoético
abarcador.

REFEREnCiaS BiBLioGRáFiCaS

BaTE, Jonathan (2000): The Song of the Earth, Cambridge, Harvard University Press.
BEaUvoiR, Simone de (2008): El Segundo sexo, prólogo de Teresa López Pardina,
trad. Elena Martorell, Madrid, Colección «Feminismos», Cátedra.
BLanC, nathalie, Chartier, Denis, Pughe, Thomas, (2008) : «Littérature et Ecologie:
vers une écopoétique», Revue Ecologie et Politique, nº 36, La Ferté Saint aubain,
pp. 15-28.
BUELL, Laurence (1995): The Environmental Imagination, Cambridge, Harvard
University Press.
CaRSon, Rachel (2002): Silent Spring , Boston-new York, Mariner Books.
CiDMY, (1990): Marguerite Yourcenar et l’Ecologie, Bulletin, nº 2, Bruxelles.
GaaRD, Greta (ed.) (1993): Ecofeminism. Women, Animals, Nature, Philadelphia,
Temple University Press.
GaRRaD, Greg (2004): Ecocriticism, London and new York, Routledge.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 305

— (ed.) (2012): Teaching ecocriticism and Green Cultural Studies, Basingstoke,


Palgrave Macmillan.
GiLLiGan, Carol (1982): In a different Voice. Psychological Theory and Women’s
Development, Harvard University Press.
GLoTFELTY, Cherryl y Fromm, Harold (1996): The Ecocriticism reader. Landmarks
in literary ecology, athens and London, University of Georgia Press.
GoSLaR, Michèle (2007): «Marguerite Yourcenar y la protección de la naturaleza:
el combate de toda una vida», en Padilla, andrea y Torres, vicente (2007), Mar-
guerite Yourcenar y la Ecología. Un combate ideológico y político, Bogotá, Uni-
versidad de los andes, pp. 36-48.
KERRiDGE, Richard y nEiL, Sammells (1998): Writing the Environment. Ecocriti-
cism & Literature, London-new York, zed Books.
KERRiDGE, Richard (2012): «Ecocriticism and the Mission of “English”», en Gar-
rad, Greg (ed.) (2012),Teaching ecocriticism and Green cultural studies, Bas-
ingstoke, Palgrave Macmillan, pp. 11-23.
MERCHanT, Carolyne (1980): The Death of Nature. Women Ecology and the Sci-
entific Revolution, San Francisco, Harper.
PaDiLLa, andrea y ToRRES, vicente (2007): Marguerite Yourcenar y la Ecología.
Un combate ideológico y político, Bogotá, Universidad de los andes.
PoiGnaULT, Rémy (2007): «Ensayos y meditaciones», en Padilla, andrea y Torres,
vicente (2007), Marguerite Yourcenar y la Ecología. Un combate ideológico y
político, Bogotá, Universidad de los andes, pp. 49-50.
PULEo, alicia H. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
RUECKERT, William (1996): «Literature and Ecology», en Glotfelty, Cherryl y
Fromm, Harold, The Ecocriticism Reader. Landmarks in Literary Ecology,
athens and London, University of Georgia Press, pp. 105-123.
Sanz, Teo (2005): «Féminiser le masculin ou renier la féminité: l’éthique de la so-
llicitude dans Un homme obscur de Marguerite Yourcenar», en Ledesma, Ma-
nuela y Poignault, Rémy (eds.) (2005): Marguerite Yourcenar. La femme, les
femmes, une écriture-femme?, Société internationale d’Etudes Yourcenariennes,
Clermont-Ferrand, pp. 377-385.
— (2010): «L’Engagement écologique de Marguerite Yourcenar», en Leuwers, Da-
niel (2010), Les Engagements, Paris, Calliopées, pp. 113-118.
YoURCEnaR, Marguerite (1971): Théâtre i, Paris, Gallimard.
— (1980): Les yeux ouverts. Entretiens avec Matthieu Galey, Paris, Le Centurion.
— (1982): Un homme obscur, Oeuvres romanesques, Paris, Gallimard/La Pléiade.
— (1987): La Voix des choses, Paris, Gallimard.
— (1988): «Le droit à la qualité de l’environnement: un droit en devenir, un droit
à définir», en nicole Duplé, Vème Conférence internationale de droit constitu-
tionnel, Québec, Québec/amérique.
306 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR

— (1991): Souvenirs pieux, Essais et Mémoires, Paris, Gallimard/La Pléiade.


— (1991): Archives du Nord, Essais et Mémoires, Paris, Gallimard/La Pléiade.
— (1991): «Qui sait si l´âme des bêtes va en bas?», en Le Temps ce grand sculpteur,
Essais et Mémoires, Paris, Gallimard.
— (1995): Lettres à ses amis et quelques autres, Paris, Foilo/Gallimard.
— (1999): Sources II, Paris, Gallimard.
SCHoEnTJES, Pierre (2004): «Texte de la nature et nature du texte», en Poétique,
Revue de Théorie et d’Analyse Littéraire, 164, Paris, Seuil, pp. 477-494.
SKinnER, Jonathan (2003): «Editor’s notes», Ecopoetics, n° 3.
SinGER, Peter (1995): Ética práctica, Cambridge, Cambridge University Press.
WaRREn, Karen (1996): Ecological Feminist Philosophies, Bloomington-indianapo-
lis, indiana University Press.
18. Ecocrítica y ecofeminismo: diálogo entre
la filosofía y la crítica literaria1
Carmen FLYS JUNQUERA
Universidad de Alcalá

E
l crítico William Rueckert (1978), ya en la década de los años setenta, se pre-
guntaba por el papel de la teoría y crítica literaria. Se preguntaba si simple-
mente eran modas académicas o si tenían una relevancia significativa para
el mundo en el que vivimos. Afirmaba que era necesario que surgiera una escuela
de crítica literaria que abordara el medio ambiente, pues nada podía ser más urgente
y relevante que la crisis medioambiental que se avecinaba. Su anhelo tardó en llegar.
Surgieron escuelas de crítica literaria asociadas al feminismo, a las minorías raciales
y al poscolonialismo. Pero hasta la década de los noventa, la crítica literaria perma-
necía aparentemente indiferente a los crecientes problemas medioambientales. En
estas líneas, pretendo resumir el surgir de la ecocrítica y mostrar el fructífero diálogo
que mantiene con la filosofía ecofeminista.
La ecocrítica, como escuela de crítica literaria, nace formalmente en la década
de los noventa en el Oeste americano con la fundación en 1992 de la Asociación
para el Estudio de la Literatura y Medio Ambiente (ASLE en sus siglas en inglés).
Esta asociación, que en la actualidad cuenta con más de 1800 socios, tiene filiales
directas o bien asociadas en Canadá, Oceanía, Japón, India, Taiwán, Brasil, Reino
Unido y en otros países europeos con la asociación EASLCE. En 1993, Patrick Murphy
fundó la revista ISLE (Estudios Interdisciplinarios de Literatura y Medio Ambiente),
que pasó pronto a ser la revista de la asociación y, hoy en día, es gestionada por Ox-
ford University Press con 4 números al año y una altísima demanda. El desarrollo
en Europa ha sido algo más lento y liderado por el Reino Unido con la revista Green
Letters, fundada en 1999. En 2004 se funda la asociación europea y en 2010 Eco-

1
La investigación para este trabajo fue financiada por el proyecto CLYMA (Ref. IF 2011-009) del
Instituto Franklin de la Universidad de Alcalá y por el proyecto I+D (HAR2011-23678).
308 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

zon@. Revista europea de literatura, cultura y medioambiente, la única que admite


artículos, además de en inglés, en otros idiomas. Existen algunas otras revistas clara-
mente ligadas a asociaciones regionales o dedicadas a campos relacionados como la
historia medioambiental pero no principalmente a la ecocrítica. Este crecimiento tam-
bién se ha visto en el número de editoras del mundo anglosajón que han creado series
específicamente dedicadas a la ecocrítica o a las humanidades ecológicas, entre ellas
21 editoriales universitarias (Harvard, Georgia, Illinois, Virginia, etc.), y al menos unas
8 editoriales comerciales (Palgrave, Rowman & Littlefield, Peter Lang, Rodopi, etc.).
La ecocrítica estudia las interrelaciones entre la literatura y otros textos culturales
y el medio ambiente. Es una escuela con un fuerte compromiso ecologista, ético,
didáctico y político que pretende mejorar la relación entre todos los seres vivos del
entorno. En una primera fase se fijó principalmente en la literatura de no-ficción,
ensayos de observación de la naturaleza y reflexiones personales acerca del entorno,
el género literario llamado «nature writing». La mayor parte de estos textos cele-
braban la unión con la naturaleza y promulgaban el encuentro con lo más íntimo
del ser en la naturaleza, género con claro origen en el movimiento filosófico trans-
cendentalista norteamericano con las obras de Ralph W. Emerson, Henry D. Tho-
reau o Margaret Fuller. Los ecocríticos de esta fase mostraban gran interés en la
conservación de la naturaleza en parques o reservas tanto para preservar la biodi-
versidad como para su disfrute. Hacia el año 2000, las voces que exigían mayor di-
versidad de perspectivas se hicieron oír y creció el interés por otros géneros
literarios como la ficción, el teatro o la poesía, así como géneros no realistas del
tipo de la ciencia ficción o la fantasía, aduciendo que podrían contribuir mucho a
la concienciación medioambiental, así como al análisis de las actitudes culturales
subyacentes. Igualmente, se amplía el horizonte de la temática a la relación entre el
nivel socio-económico y el entorno con el concepto de la justicia medioambiental
y los ecologismos del sur. Además, se empieza a reconocer la aportación del ecofe-
minismo que había seguido un proceso paralelo. Hasta este punto, la ecocrítica, en
su mayor parte, se desarrollaba en los Estados Unidos y hacia principios del nuevo
milenio en el Reino Unido y Australia. Poco se realizaba fuera de este contexto an-
glosajón y lo que existía provenía de los estudios ingleses en otros países.
Como siempre, Patrick Murphy fue un gran precursor, publicando en el año
1998 The Literature of Nature: An International Sourcebook, donde se editan en-
sayos en inglés sobre las diferentes literaturas nacionales y su relación con el en-
torno. Casi la totalidad de la investigación publicada seguía en inglés. Cabe destacar
como excepción el número especial de Ixquic del año 2000, en el que se analizaban
las literaturas hispánicas y su relación con la naturaleza. En este periodo también
surge una nueva preocupación. Si la tendencia inicial tendía a ser «anti-teoría», po-
niendo el énfasis en la dimensión experiencial del autor y cuestionando la construc-
ción lingüística o social de la realidad, sesgo predominante en las críticas literarias
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 309

del momento, a partir del 2000 surge la necesidad de desarrollar teorías propias.2
Muestra de ello es la sección especial de la revista ISLE, dedicada al debate teórico
como consecuencia de los arduos debates que se venían dando (17.4, 2010). A partir
del año 2009, con la publicación del número especial de MELUS (2009, 34.2) sobre
la etnicidad y el medio ambiente, del volumen Ecocríticas. Literatura y medio am-
biente (2010) y la fundación de Ecozon@, empiezan a proliferar estudios de otras
literaturas y regiones y tímidamente el uso de otros idiomas. En esta década, la eco-
crítica ha vuelto su mirada hacia la globalización y su implicación para el medio
ambiente. Se está cuestionando la desaparición o re-definición del concepto tradi-
cional del sentido del lugar y arraigo con las crecientes diásporas y se está desarro-
llando el concepto del eco-cosmopolitismo. Asimismo, los conceptos de la justicia
medioambiental, los ecologismos del sur, la eco-justicia y el decrecimiento se con-
vierten en ejes centrales de la ecocrítica. La filosofía feminista materialista ha co-
brado gran interés con su lógica extensión hacia la ecocrítica materialista. De forma
resumida, esto podría constituir la vertiginosa evolución de la ecocrítica en la que
las tres tendencias conviven.
¿Qué hace un ecocrítico? En primer lugar, la metodología que usa suele ser la
ya tradicional de la crítica literaria, una lectura detenida y detallada del texto, el lla-
mado «close reading». Lo que diferencia esta escuela de otras es el enfoque, los as-
pectos del texto que interesan. Por una parte, podríamos decir que le da la vuelta
a la crítica tradicional al interesar tanto o más aquello del exterior que lo del interior.
Se fija en las imágenes de la naturaleza y del entorno, no como un telón de fondo
sobre el cual los seres humanos actúan, sino como un agente más, un personaje más
que se interrelaciona con los seres. Se fija en ese entorno y sus implicaciones para
el texto, sea como fuente de recursos para unos exploradores o la inspiración para
la mente. ¿El entorno condiciona a los seres humanos o es el humano quien pre-
tender controlar su entorno? El ecocrítico estudia la representación de la naturaleza
y su referente material (i.e. ¿la tormenta es una tormenta meteorológica real, o una
metáfora o símbolo?). ¿Esa representación es fiel a la realidad material o un arque-
tipo? Las implicaciones de esas imágenes y sus referentes materiales reflejan la ac-
titud del autor o personaje y permite al crítico extraer las actitudes culturales y sus
consecuencias para el medio ambiente. El ecocrítico también busca la sabiduría
ecológica de un texto (o su ausencia) y analiza las implicaciones. Analiza las actitu-
des alternativas que puede plantear un autor. El ecocrítico, sin dejar de lado los
pensamientos y el espíritu humano, también enfatiza el entorno, lo más-que–hu-
mano que nos condiciona. En este sentido, su análisis no es antropocéntrico, me-
ramente enfocado hacia el ser humano, sino eco-céntrico, atento a la realidad

2
Esto constituye una de las críticas más frecuentes a la ecocrítica, promoviendo cierto rechazo
por parte de las instituciones académicas (ver Barry, 2009).
310 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

material y física de ese organismo tan complejo que es el mundo. El ecocrítico cues-
tiona las dicotomías falsas de nuestra cultura como pueden ser cultura/naturaleza,
humano/animal, mente/cuerpo. Estos términos no pueden ser opuestos y mutua-
mente excluyentes, ya que están íntimamente imbricados, existiendo en un continuo
con diferentes gradaciones. Un paisaje puede ser «naturaleza salvaje» si no se per-
cibe la mano humana (aunque con los temas de contaminación y lluvia ácida es pro-
bable que tal paisaje no exista) o bien casi totalmente cultural como pueden ser los
parques en cualquier ciudad.
Diversos ecocríticos también utilizan conceptos eco-céntricos para analizar otras
realidades. Por ejemplo, se podría hablar del proceso de crecimiento y desarrollo
de un texto, o la cultura como un sistema ecológico. William Rueckert hace esto en
su «experimento» ecocrítico. Sugiere que consideremos un poema como energía
almacenada que se libera con cada lectura. Ve la poesía como una vía energética, el
equivalente verbal de los combustibles fósiles pero renovables ya que procede de
dos matrices generativas: el lenguaje y la imaginación. Cada lectura constituye una
transferencia energética que fluye desde la poesía hacia los centros lingüísticos e
imaginativos de los lectores. La docencia y el discurso crítico amplían e intensifican
la energía, creando el medio idóneo para que fluya hacia la comunidad (1978: 108-
110). La ecocrítica también analiza la denuncia (o su falta) hacia problemas medio-
ambientales que figuran en los textos culturales y reivindica una responsabilidad
ética hacia el mundo más allá de lo humano. Analiza y resalta las actitudes alterna-
tivas, más sostenibles, que aparecen en las obras de algunos autores.
Si bien la ecocrítica norteamericana tiende a celebrar la naturaleza y la impor-
tancia de buscar cierta paz y sosiego en ella, la ecocrítica británica, cuyas fuentes
principales yacen en el romanticismo inglés, tiende a denunciar los desastres.
Abundan los estudios sobre el cambio climático y un cierto tono apocalíptico. Al
igual que la incipiente ecocrítica española, los temas de la globalización, de los ex-
cesos del capitalismo, los alimentos transgénicos y la obsesión con el crecimiento
llenan sus páginas. En Europa parece importar más la sostenibilidad y el decreci-
miento que la conservación de parques o reservas naturales, siendo ambas cosas
importantes.
Hecho este pequeño resumen de las bases de la ecocrítica, quisiera dirigirme
ahora a la filosofía ecofeminista. El ecofeminismo surge con Françoise d’Eaubonne
en 1974. Como señalan Alicia Puleo (2011), Val Plumwood (1993) o Karen Warren
(1996), entre otras, hay muchos tipos de ecofeminismos y no es el objeto aquí de
resumirlo y menos aún en un foro donde el conocimiento del ecofeminismo es
obvio. Lo que pretendo es ilustrar cómo la filosofía ecofeminista ha influenciado a
un sector de la ecocrítica, dando lugar a unos análisis literarios muy interesantes.
Ya en 1995, Patrick Murphy publica su clásico Literature, Nature, and Other: Eco-
feminist Critiques, quizás el primer estudio amplio de las relaciones entre la natu-
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 311

raleza y la otredad en textos literarios. En 1998 co-edita con Greta Gaard Ecofe-
minist Literary Criticism and Pedagogy, y continúa publicando libros y artículos
relacionados con el tema. Murphy recoge las teorías ecofeministas y las aplica a la
crítica literaria. Con esto sembró unos de los diálogos más fructíferos entre la filo-
sofía y la crítica literaria.
Scott Slovic y Paul Slovic, ecocrítico y psicólogo, respectivamente, afirman que
para interiorizar conceptos complejos o abrumadores como la crisis medioambien-
tal, el hambre y el desarrollo a nivel global, hacen falta tanto los números como lo
experiencial. Puesto que no todos podemos experimentar las vivencias de otros países
o seres, el arte, la metáfora, la imagen sirven para acercarnos, y en muchas ocasiones
con mayor efectividad que los números que nos llegan a dejar insensibles
(2004/2005: 14). Karen Warren reivindica la narrativa en primera persona, pues
permite que la ética emerja de una experiencia contextualizada, no impuesta, que
distinga entre diferentes actitudes y experiencias (1996: 27). Jim Cheney afirma que
una narración es esencial desde el punto de vista argumentativo, ya que desarrolla
el contexto en el cual se produce el dilema ético y la solución a la que se llega (1987,
144). Como nos explica Brian Boyd, la narrativa y los relatos nos permiten multi-
plicar e imaginar las posibles opciones que tenemos y cómo reaccionar ante cual-
quier evento (2009, loc. 4675). Lisa Zunshine afirma dentro de su «teoría de la
mente» que la ficción cumple tres funciones esenciales: nos permite organizar y ma-
tizar nuestras emociones y percepciones; nos confiere conocimiento o mayor en-
tendimiento, desarrollando un sentido ético más agudo; y crea nuevas formas de
entender nuestra existencia diaria (Zunshine, 2006, loc. 3571-75). Joseph Meeker,
un ecologista humano y especialista en estudios comparados entre comportamiento
animal y humano, afirma en Comedy of Survival que la literatura puede ser inter-
pretada como filosofía y utilizada para influenciar las vidas de varias generaciones
ya que, de forma consciente o inconsciente, la gente frecuentemente imita perso-
najes literarios y tienden a recrear en sus propias vidas aquello que han «vivido» en
los textos literarios. De tal manera, afirma que los relatos nos dan un modelo de re-
laciones entre seres humanos y no-humanos que pueden influenciar la percepción
humana de la naturaleza y sus reacciones ante ella (1977).
Así pues, mi premisa es que algunos textos literarios no solo pueden ilustrar
principios éticos, sino también señalar el proceso de deliberación y el contexto para
que el lector entre en diálogo hipotético con el texto, planteando sus propias dudas
y reflexiones. Como afirma Mª Teresa López de la Vieja, los relatos nos dan una
ilusión de cercanía, plantean nuevas posibilidades y soluciones imaginarias que
muestran al lector una amplia gama de experiencias (2003).
Por tanto, propongo recoger algunas ideas del ecofeminismo social (o de inte-
gración crítica, como lo denomina Alicia Puleo, 2000) de Val Plumwood y Karen
Warren e ilustrar cómo pueden ser aplicadas a la crítica literaria para el análisis de
312 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

determinados textos. Karen Warren parte de la premisa de que es necesario tomar


en cuenta la dominación interrelacionada y compartida por las mujeres y la natu-
raleza para cualquier ética medioambiental (Warren, 1996: 19). Igualmente, recu-
pera de Marilyn Frye el concepto de la «mirada afectuosa» como un componente
esencial de una ética ecofeminista (Warren, 1996: 18-19), una mirada que reconoce
la diferencia e independencia del otro y pretende llegar a conocerlo, entenderlo y
apreciarlo. Intenta distinguir entre los intereses propios y los posibles intereses del
otro y su complejidad a diferencia de la «mirada arrogante», característica de la ló-
gica de la dominación y de todas las empresas colonizadoras, que ven al otro como
algo consumible o útil que debe ser asimilado o conquistado. La mirada afectuosa
reconoce la relación entre ambos, pero es una relación de complementariedad y no
una fusión (Frye, 1983: 66-72). La ética del cuidado, que Warren propugna, bebe
de esta mirada afectuosa, dirigida tanto a otros seres humanos como a los no-hu-
manos. Warren describe la séptima característica de la ética ecofeminista como una
que otorga una posición central a los valores de respeto, amor, amistad, confianza
y reciprocidad, valores, tradicionalmente asociados a las mujeres pero centrados en
las relaciones con los otros, lo que ella denomina «estar en relación con» y que pre-
supone que nuestras relaciones con otros seres son cruciales para entender quiénes
somos (1996: 33).
Por ejemplo, la escritora nativo-americana de la tribu Chicksaw, Linda Hogan,
es una de las autoras que, sin ser conocedora de las teorías ecofeministas, mejor las
ilustra en sus novelas. En su novela Solar Storms podemos leer una clara referencia
a esa opresión compartida cuando escribe: «El lugar daba testimonio de su historia
y de la historia de la colonización: cuando la tierra estaba agotada, los castores y
los lobos desaparecidos, casi extintos, los hombres avanzaban hacia aquello que
aún no había sido destruido, dejando atrás sus mujeres y niños, como si ellos tam-
bién fueran animales desechados».3 Esta dominación paralela también se muestra
claramente en la novela de ciencia ficción de Octavia Butler, Dawn, en la cual los
alienígenas que rescatan a los humanos de un desastre nuclear le extirpan el cáncer
a la protagonista Lilith. Cuando ella descubre la cicatriz, se rebela a la vez que se
da cuenta de que le han tratado igual que a los animales: «Esto era una cosa más
que le habían hecho a su cuerpo sin su consentimiento y supuestamente por su pro-
pio bien. “Nosotros tratábamos a los animales así”, masculló con amargura».4 Terry
Tempest Williams, en su texto autobiográfico Refuge. An Unnatural History of Fa-

3
Las traducciones de los textos literarios son propias, ya que no se han traducido al español. El
original figura en la nota: «when the land was worn out, the beaver and wolf gone, mostly dead, the
men moved on to what hadn’t yet been destroyed, leaving their women and children behind, as if
they too were used-up animals» (1995: 28).
4
«This was one more thing they had done to her body without her consent and supposedly for
her own good. “We used to treat animals that way”, she muttered bitterly» (1987: 31).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 313

mily and Place, en el cual establece el paralelo entre su vida, la muerte por cáncer
de mama tanto de su abuela como de su madre, con la crecida de nivel del Gran
Lago Salado que inunda el refugio de pájaros migratorios donde trabajaba. Esta-
blece la relación entre el cáncer, que ella también ha padecido, con las pruebas nu-
cleares que las tres presenciaron en los desiertos de Nevada. Y reflexiona:
«Hablamos de rabia. De mujeres y el paisaje. Cómo nuestros cuerpos y el cuerpo
de la tierra habían sido minados».5 Ann Pancake, cuya novela Strange as This Weather
Has Been denuncia la voladura de las montañas de los Apalaches para extraer el
carbón en minas a cielo abierto, equipara el paisaje a las personas y su sufrimiento.
La protagonista, al ver el vacío de las montañas que ya no se elevaban, dice «Era
como ver fotos pornográficas… como ver fotos de gente desnuda. Como ver fotos
de cadáveres».6 Otro ejemplo muy politizado, pero que claramente aporta la pers-
pectiva de los ecologismos del sur y la dominación paralela de las mujeres, indígenas
y la naturaleza, es el breve texto «I’m on Nature’s Side» de Aurora Levins Morales,
dentro de su libro, co-escrito con su madre, Getting Home Alive.

Pero yo soy del Tercer Mundo, mujer nacida de clase obrera. Veo las cosas desde el
punto de vista de la naturaleza, desde el punto de vista del insecto, el insecto en el maizal
chupando el jugo de la dulce y crujiente caña o la rica carne tierna de grano de maíz re-
cién salido…
[...]
Esos bichos allí en nuestros campos de trigo, maíz, huertos y jardines, ellos quieren
lo mismo que nosotros —la tripa llena de grano y el corazón de alegría… Eso los convierte
en pestes. Para controlarlos, jardineros y escuelas agrícolas, granjeros y multinacionales
rocían venenos, distribuyen mantas envenenadas, sueltan depredadores y ejércitos, des-
truyen nidos y pueblos y barrios. Y morimos. Muchos de nosotros morimos.7

En este texto, Morales pasa de un sujeto en primera persona del singular a adop-
tar el plural, uniéndose ella a los «bichos» que sufren la opresión. Combina la opre-
sión de los insectos por plaguicidas con la opresión de los pobres con mantas

5
«We spoke of rage. Of women and landscape. How our bodies and the body of the earth have
been mined» (2001: 10).
6
«But it was like dirty pictures I was seen […] Looking at pictures of naked people. Like looking
at pictures of dead bodies» (Pancake, 2007, loc. 840-843).
7
«But I’m a Third World, born working class woman. I look at it from nature’s point of view, from
the insects point of view, the insect out in the cornfield sucking the sweet juice of the crunchy cane or
the nourishing mealiness of the newly plumped kernel… Now those bugs out there in our wheatfields,
cornfields, orchards and gardens, they’re out for the same things we are—for a stomach full of grain
and a heart full of joy… That makes them pests. To control them, gardeners and agricultural schools,
farmers and multinationals spray poisons, distribute infected blankets, unleash predators and armies,
demolish nesting sites and villages and neighborhoods. And we die. Many of us die» (1986: 68).
314 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

envenenadas, y a los nidos con hogares, enfatizando la continuidad de todos los


seres marginados y oprimidos por los intereses del mercado.
Ejemplos de esa mirada afectuosa ecofeminista también abundan. Bant, la pro-
tagonista de la novela de Pancake, solo se siente a gusto en la montaña. En la ciudad
percibe el mal y se refugia corriendo en el campo:

Me paré para asegurarme, tirando de mi aliento, los mosquitos arremolinándose y la dis-


tancia se cerraba. Una sensación de proximidad a los árboles por todas partes. Salí dis-
parada otra vez, realmente corriendo, la curva y hondonada de la tierra formada por el
eco de la curva y hondonada de mi cuerpo, algo que una carretera plana nunca podía
emular, y cuanto más la distancia se cerraba, más rápido desaparecía el mal.8

Su cuerpo y el de la montaña se sienten en sintonía, parte de un todo natural.


Otro caso muy claro se encuentra en la novela del español Juan Cobos Wilkins, El
Corazón de la Tierra. La novela, sobre la injusticia medioambiental en la minas de
Riotinto, presenta el personaje de Blanca, una anciana con claros valores ecofemi-
nistas. Ella, en el monte donde apenas hay vegetación debido a los gases tóxicos de
las teleras y la tala de árboles para las mismas, planta unos árboles. Se lo explica a
su visita, Katherine, mostrando su gran afecto a la naturaleza:

[los árboles] aún son pequeños, pero crecerán.


Cuando yo no esté, seguirán creciendo... es más que un árbol genealógico, en estas
hojas, como en un libro vivo que muda, cambia, renace con las estaciones, están escritos
mis recuerdos. Sin necesidad de tinta ni papel, y mejor, porque así no caen borrones en
la memoria... Aquí, el retorno de la muerte es fértil.
[…]
Árboles, nombres. Rojizos, dorados en otoño; desnudos en invierno; florecidos como
ahora que tú los has reavivado esta primavera. No hay ser más generoso. Purifican, co-
bijan, nutren, y se consumen en fuego para ofrecernos calor. ¿Cómo no iba a tener en
ellos mis nombres? ¡Árboles! Cuántas veces palpo sus troncos, aspiro profundamente,
los abrazo: y los siento recorridos de una secreta fuerza honda, de un cálido y poderoso
fluir. Al retirarme, me noto fortalecida, reconfortada, serena y como purificada. De su
abrazo salgo más viva. No hablo sola si hablo con ellos. (2001: 137-138)

Estas ideas de Karen Warren son claramente compartidas por Val Plumwood.
Esta última no solo denuncia esa opresión, sino que en su último libro, Environ-

8
«I stopped there to make sure, tugging after my breath, the gnats wavering in, and it was, the
distance was shutting. A feeling closer to the trees all around. I took off again, really running this
time, the curve and dip of the ground echo-shaping the curve and dip of my body the way a flat road
never did, and the more the distance shut, the faster the badness dropped away» (2007, loc. 544-547).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 315

mental Culture, da un paso más, articulando una ética inter-especies. Afirma que
debemos emplear una metodología dialógica, recíproca, que implica el considerar
al otro como potencialmente comunicativo y como sujeto-no objeto (2002: 190).
Ella destaca varias estrategias para contrarrestar la hegemónica lógica de la domi-
nación. Estas estrategias son: el reconocimiento de la continuidad entre lo humano
y lo no-humano para derribar las barreras creadas por la dicotomía excluyente hu-
mano/naturaleza; reconstruir la identidad humana de forma que se reconozca nues-
tra animalidad, desplazando el excesivo valor atribuido al raciocinio; reconocer la
diferencia de los seres no-humanos como otras «naciones» de forma positiva y no
jerárquica; hacer el esfuerzo de no homogenizar las categorías humana y naturaleza;
mostrar actitudes de apertura hacia el ser no-humano como un ser potencialmente
intencionado y comunicativo, o sea, sujeto y no objeto; hacer el esfuerzo de escuchar
al otro; invitar de forma activa a la posible comunicación e interacción; estar dis-
puestos a redistribuir los recursos; otorgar una consideración ética hacia estas clases
excluidas; dejar de categorizar las especies de forma jerárquica, valorando los con-
textos; adoptar una actitud reflexiva y autocrítica en los dilemas éticos; estar abierto
hacia la negociación y el ajuste mutuo con otros seres; y reconocer la complejidad
del otro y nuestras limitaciones en su conocimiento (2002: 194). Estas estrategias
apuntan claramente unas pautas a seguir, precisamente para lograr lo que Karen
Warren afirmaba como la octava característica de una ética ecofeminista, la re-con-
cepción de lo que implica ser humano y de lo que puede ser un comportamiento
ético hacia los demás.
Estas estrategias teóricas pueden ser claramente reflejadas en textos literarios
con ejemplos de actitudes y comportamientos, más fáciles de entender. Por ejemplo,
Williams, en su novela Refuge, enfatiza la continuidad entre los pájaros y las perso-
nas (además del lago en otros fragmentos): «Los pájaros y yo compartimos una his-
toria natural. Es cuestión de arraigo, de raíces, de vivir en un lugar tanto tiempo
que la mente y la imaginación se fusionan».9 El escritor chicano, Rudolfo Anaya
constata que «el paisaje cambia al hombre y el hombre se convierte en paisaje».10
Linda Hogan en todas sus novelas afirma la continuidad entre los seres humanos y
los demás seres. Angela, protagonista de Solar Storms, se da cuenta de que ella «era
parte de la misma ecuación que los pájaros y la lluvia».11 Tal y como sugiere el crítico
Randy Malamud, el objetivo de los textos literarios sobre animales debiera ser, a
través de la imaginación empática, situar al poeta/lector y al animal en el mismo
término, como co-habitantes, simultáneos y, por tanto, ecológicamente y experien-

9
«The birds and I share a natural history. It is a matter of rootedness, of living inside a place for
so long that the mind and imagination fuse» ((2001: 21).
10
«The landscape changes man, and the man becomes landscape» (1977: 41).
11
«[W]as part of the same equation as birds and rain» (1995: 79).
316 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

cialmente iguales (2003: 33) y esto lo podríamos extender a todos los seres de la
tierra.
Otra estrategia que esboza Plumwood es mantener una actitud abierta, dispuesta
a la comunicación con el otro. Los textos literarios abundan en ejemplos. Como no
podía ser de otra manera, las novelas de Hogan lo muestran. En la novela Power,
vemos a la protagonista Omishto y su tía Ama siguiendo a una pantera. En un mo-
mento la pantera se para y ven que: «El gato nos mira. No huye. En la oscuridad,
sus ojos brillan y es lo que veo. Ojos. Parece mirar más allá de nosotras. Su mirada
nos atraviesa. Entonces, con calma, como si estuviera segura de que seguiríamos,
lentamente se aleja. Nos está llamando… ese brillo de los ojos es su testimonio. Su
voz, sus palabras». A continuación, Ama les presenta: «el gato levanta la cabeza y
mira y [Ama] me muestra al gato y lo que hace es que me presenta al gato y el gato
a mí. Dice mi nombre al mirarme, como si fuera tanto una ofrenda como una
amiga».12 En este fragmento no solo se reconoce la capacidad comunicativa de la
pantera sino su agencialidad, su condición de sujeto al mismo nivel que Omishto y
Ama. Omishto se muestra abierta a aceptar esa realidad y reconocer una comuni-
cación con la pantera, aunque no sea ni verbal ni racional.
Los personajes de las novelas aprenden a escuchar y oír a la naturaleza, como Án-
gela que dice «Creí oír las voces del mundo, de todo aquello que nos rodeaba —las
piedras, las aguas fluyendo hacia su desembocadura, las águilas pescadoras con sus
garras en un pez, incluso los pececillos y huevas. Oía los árboles con sus raíces aga-
rrando el suelo»,13 o Lila que era «escuchadora de la voz del agua, una mujer que
interpretaba la historia del río para su pueblo. Un río nunca miente. A diferencia de
los humanos, no tenía la necesidad de distorsionar la verdad, y ella oía la voz del río
fluyendo como su agua por la tierra».14 Reconocen que la naturaleza les observa y
que tiene su capacidad actante: La «tierra se negaba a ser moldeada por los que ha-
cían los mapas. La tierra tenía su propia voluntad».15 Estos ejemplos hacen que el
lector cuestione sus actitudes y le pueden inducir a abrir su perspectiva.

12
«The cat looks back at us. It doesn’t run. In the darkness its eyes shine and this is what I see.
Eyes. It seems to look right through us. It sees through us. Then, at ease, as if certain we will follow,
it moves slowly away. It is calling us forward… That eyeshine is its testimony. Its voice, its words»
(1998, 64)... «cat looks up and she shows me to the cat, and what she does is, she introduces me to it,
it to me. She says my name as she looks at me, as if I am both an offering and a friend» (1998, 65).
13
«I thought I heard the voices of the world, of what was all around us —the stones, the waters
flowing toward their ends, the osprey with its claws in fish, even the minnows and spawn. I heard
trees with their roots holding ground» (1995: 181).
14
«[W]as a listener to the voice of water, a woman who interpreted the river’s story for her people.
A river never lied. Unlike humans, it had no need to distort the truth, and she heard the river’s voice
unfolding like its water across the earth» (1990: 5).
15
«[L]and refused to be shaped by the makers of maps. Land had its own will» (1995: 123).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 317

La novelista Ursula Le Guin también desmonta las barreras entre seres humanos
y no humanos, particularmente la barrera de los nombres. En un breve relato, «She
Unnames Them», que alude al Génesis cuando Adán nombra los animales, Eva de-
cide quitar los nombres a los animales y luego devuelve el suyo y se marcha con los
animales. Al quitarles el nombre:

... parecían mucho más cercanos que cuando su nombre habían estado entre nosotros
como una barrera: tan cercanos que mi miedo de ellos y su miedo a mí se convirtió en
un mismo miedo. Y la atracción que muchos de nosotros sentíamos, el deseo de oler el
olor de los otros, de sentir o frotar o acariciar nuestras escamas o piel o plumas o pelo,
probar nuestra sangre o carne, calentarnos mutuamente —esa atracción se mezclaba
con el miedo y el cazador no se distinguía de la presa, ni el que comía de la comida.16

Este texto alude al poder que ejerce aquel que nombra a aquellos silenciados.
Al dejar de tener nombres, Eva, que ha renunciado a su poder, se siente más cercana
a los otros. Ahora todos se ven obligados a explorar la nueva relación. Le Guin
rompe la dicotomía humano/no-humano al afirmar que la piel, las escamas o las
plumas son meramente distintos tipos de «ropa», reconociendo la diversidad pero
restando la jerarquía de valor. Al final del relato, Eva se marcha con ellos, pero se
da cuenta de la dificultad de expresar la nueva relación ya que implica una nueva
perspectiva: «mis palabras ahora deben ser tan lentas, tan nuevas, tan singulares,
tan tentativas como los pasos que tomé bajando por el camino alejándome de la
casa…».17 Pero Eva se ve comprometida con la búsqueda de un cambio de valores,
de buscar una nueva forma de relacionarse con el mundo no-humano en la cual
todas las especies fueran valoradas de igual forma y otorgadas una dimensión ética.
Estos son tan solo algunos ejemplos, pero ilustran las posibilidades de los textos
literarios para hacer más claras y asequibles las teorías filosóficas. Como afirmaba
Rueckert, la crítica literaria contribuye a que la energía, la sabiduría del texto, llegue
a la comunidad de forma más eficaz. Podríamos abordar muchos más textos en los
que se muestran distintas formas de lenguaje para la comunicación con el otro, tex-
tos donde la naturaleza nos devuelve la mirada y nos observa, invirtiendo el sentido
habitual de la observación, textos donde la plantas reflejan y perciben nuestros sen-
timientos, ejemplos de todas las estrategias que plantea Val Plumwood.

16
«[S]eemed far closer than when their names had stood between myself and them like a clear
barrier: so close that my fear of them and their fear of me became one same fear. And the attraction
that many of us felt, the desire to smell one another’s smells, feel or rub or caress one another’s scales
or skin or feathers or fur, taste one another’s blood or flesh, keep one another warm, —that attraction
was now all one with the fear, and the hunter could not be told from the hunted, nor the eater from
the food» (1990: 235).
17
«[M]y words now must be as slow, as new, as single, as tentative as the steps I took going down
the path away from the house…» (1990: 236).
318 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Estos ejemplos literarios nos muestran esa imaginación empática de los autores,
a la vez que unas estrategias que hacen al lector reconocer la condición de sujeto
de los seres no-humanos. Vemos que todos estos textos muestran una ética de cui-
dado y respeto a los seres humanos y no-humanos, considerándonos a todos parte
de un todo, distintos pero igualmente dignos de consideración ética. Establecen
esa relación dialógica donde todos los seres interactúan y se afectan. La reciprocidad
no es cuestión de medida, ni un quid pro quo, sino que está en el reconocimiento
mutuo de la condición de sujeto: la naturaleza no es pasiva ni un objeto. La mirada
afectuosa no exige a los seres no-humanos que sean como nosotros, sino que se re-
conozca que cada uno tiene valor en sí. Los personajes, a través de la narración,
muestran una actitud ética hacia la naturaleza y muestran cómo puede ser esta ac-
titud para el lector. De esta forma, los autores nos dan esa respuesta ética narrativa
que sugiere Plumwood (2002). Esta actitud puede ser apreciada por los lectores y
puede iniciar un cambio de paradigma cultural, ya que con solo aceptar la posibi-
lidad de una comunicación, la mirada arrogante antropocéntrica de nuestra cultura
se desvanecería. Scott y Paul Slovic concluyen que es necesario desarrollar nuevos
modos de discurso, nuevas formas de describir la experiencia y traducir las esta-
dísticas y la ciencia en discursos que lleguen al corazón. Afirman que los relatos tie-
nen el poder de ayudarnos a entender problemas y teorías complejas (2005: 18).
Estos relatos pueden ejemplificar esos contextos éticos que plantean los filósofos
de una forma más sencilla para que llegue a muchos lectores, no solo a unos cuantos
especializados. Ursula Le Guin concluye que solo la imaginación nos puede sacar
del presente inmediato, sea inventando o planteando nuevos caminos que pueden,
luego, ser desarrollados en miles de opciones, al estilo del hilo de oro que nos ayuda
a salir del laberinto. El relato nos puede llevar a la libertad, la libertad de aceptar
algo no real, pero imaginarlo para que llegue a ser real (1989: 45). Este diálogo entre
la ecocrítica y la filosofía ecofeminista se nos presenta como una forma de llegar a
la comunidad humana y sugerir el cambio de paradigma cultural que propugnan
las ecofeministas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAYA, Rudolfo (1977): «A Writer Discusses His Craft», CEA Critic, Vol 40.1, nov.
1977, pp. 39-43.
BARRY, Peter (2009): Beginning Theory: An Introduction to Literary and Cultural
Theory, 3rd ed., Manchester University Press.
BOYD, Brian (2009): On the Origin of Stories: Evolution, Cognition and Fiction.
Belknap Press of Harvard University Press, Kindle E-Book.
BUTLER, Octavia (1987): Dawn. New York, Warner.
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 319

CHENEY, Jim (1987): «Eco-feminism and Deep Ecology», Environmental Ethics 9,


pp. 115-145. Ecozon@. Revista europea de literatura, cultura y medio ambiente.
www.ecozona.eu
FLYS JUNQUERA, Carmen; MARRERO HENRÍQUEZ, Jose Manuel y BARELLA VIGA, Julia
(eds.) (2010): Ecocríticas. Literatura y medio ambiente, Madrid, Iberoamericana
Vervuert.
FRYE, Marilyn (1983): «In and Out of Harm’s Way: Arrogance and Love», en The
Politics of Reality, Trumansburg, New York, The Crossing Press, pp. 66-72.
GAARD, Greta y MURPHY, Patrick (eds.) (1998): Ecofeminist Literary Criticism and
Pedagogy, Urbana, University of Illinois Press.
HOGAN, Linda (1990): Mean Spirit, New York, Ivy Books.
— (1995): Solar Storms, New York, Scribner.
— (1998): Power, New York, Norton.
LE GUIN, Ursula K. (1987): Buffalo Gals and Other Animal Presences, New York,
ROC.
— (1989): Dancing at the Edge of the World, Thoughts on Words, Women, Places,
Grove Press.
LÓPEZ DE LA VIEJA, Mª Teresa (2003): Ética y Literatura, Madrid, Tecnos.
MALAMUD, Randy (2003): Poetic Animals and Animal Soul, New York, Palgrave
Macmillan.
MEEKER, Joseph W. (1977): The Comedy of Survival. Literary Ecology and a Play
Ethic, 3rd ed., University of Arizona.
MORALES, Aurora Levins y MORALES, Rosario (1986): Getting Home Alive, Ithaca,
New York, Firebrand.
MURPHY, Patrick (1995): Literature, Nature, and Other. Ecofeminist Critiques, Al-
bany, New York, State University of New York Press.
— (ed.) (1998): The Literature of Nature: An International Sourcebook, Chicago,
Illinois, Fitzroy Dearborn Publishers.
PANCAKE, Ann (2007): Strange as This Weather Has Been, Counterpoint, Kindle
E-book.
PLUMWOOD, Val (1993): Feminism and the Mastery of Nature, London-New York,
Routledge.
— (2002): Environmental Culture. The Ecological Crisis of Reason, London and
New York, Routledge.
PULEO, Alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
— (2000): Filosofía, Género y Pensamiento Crítico, Valladolid, Secretariado de Pu-
blicaciones de la Universidad de Valladolid.
RUECKERT, William (1978): «Literature and Ecology», en Glotfelty y Fromm (ed.)
(1996), The Ecocriticism Reader. Landmarks in Literary Ecology, Athens, GA,
University of Georgia Press, pp. 105-123.
320 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

SLOVIC, Scott y SLOVIC, Paul (2004-2005): «Numbers and Nerves: Toward an Ef-
fective Apprehension of Environmental Risk», Whole Terrain. Reflective Envi-
ronmental Practice, Vol. 13, Risk, pp. 14-18.
WARREN, Karen (1996): «The Power and Promise of Ecological Feminism», en
Warren, K. (ed.), Ecological Feminist Philosophies, Bloomington and Indianapo-
lis, Indiana University Press, pp. 19-41.
WILLIAMS, Terry Tempest (1992): Refuge. An Unnatural History of Family and
Place, Vintage.
ZUNSHINE, Lisa (2006): Why We Read Fiction: Theory of Mind and the Novel,
Ohio State University Press, Kindle E-Book.
19. Por una genealogía de contra-subjetividades
alternativas
Carmen GARCÍA COLMENARES
Cátedra de Estudios de Género
Universidad de Valladolid

Sin raíces, desde luego, nos secamos. Pero demasiado apegadas a nuestras raíces
no crecemos [...] una identidad sin subjetividad es ciega y una
subjetividad sin identidad es vacía.

CELIA AMORÓS

HUELLAS DEL PASADO, MIRADAS DEL PRESENTE

H
istóricamente, las mujeres han sido consideradas inferiores a los varones y
causantes de los males de la humanidad, fraguándose el arquetipo de la
feminidad subordinada al varón. A través del simbolismo de género se han
ido transmitiendo modelos de feminidad que podemos encontrar reencarnados en
la actualidad a través de la cultura popular (publicidad, moda, cine, televisión, vi-
deojuegos) y que se multiplican de manera instantánea a través de las redes sociales.
Revisar estos imaginarios, en tanto que configuran modelos identitarios tradicio-
nalmente asignados, nos puede ayudar a re-conocer su vigencia e incidencia en la
formación de subjetividades femeninas de la posmodernidad. La confluencia de las
políticas neoliberales con los planteamientos de la postmodernidad está dando lugar
a la aparición de identidades femeninas emergentes que nos remiten, a pesar de sus
máscaras, a los modelos tradicionales; por lo que se hace cada vez más necesario
potenciar el desarrollo de herramientas conceptuales que refuercen el carácter
emancipatorio de los feminismos en las jóvenes generaciones que, si bien se han
beneficiado de las conquistas feministas, desconocen la historia del movimiento.
Como señala Celia Amorós (2010), las mujeres han sido consideradas portadoras
y guardianas de identidad, mientras los varones lo han sido de subjetividad. La
identidad supone deber y pasado, mientras la subjetividad permite una mayor
libertad a la hora de seleccionar y redefinir los bagajes simbólicos tradicionales.
Pero el cuestionamiento sobre el sujeto hegemónico ilustrado desde posicionamientos
322 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

postmodernos y multiculturales plantea interrogantes: «¿Cómo destruir el tema del


sujeto de la historia si las mujeres no son sujeto ni tienen tradicionalmente
historia? […] ¿Cómo proponer una historia de carácter disociador para destruir
al sujeto hegemónico si, nuevamente, las mujeres históricamente no han sido ni
sujeto ni hegemónicas?» (Femenías, 2000: 71). Por otra parte, «desestimar las
conceptualizaciones postmodernas es al menos estratégicamente inconveniente.
Abandonar ciertos marcos ilustrados también» (Femenías, 2000: 82). Habría, por
tanto, que buscar aspectos que unan experiencias diversas y resistencias que faciliten
la emancipación. Se trataría de encontrar un lugar de «concordancia armónica de
voces contrapuestas» puesto que «si cada sujeto está posicionado en inscripciones
múltiples, la pérdida de una hegemónica, lejos de implicar desestructuraciones
identitarias supone la resignificación de sus inscripciones alternativas» (Femenías,
2004: 86-87).
La generación de identificaciones no cerradas, ya sean de ficción ya reales,
permitiría reagrupar un legado frágil y disperso de voces de otras mujeres, evitando
la orfandad genealógica. Recuperar sus nombres, citar sus obras y logros en nuestros
escritos nos ayudará a insertarnos dentro de un proyecto colectivo donde las
genealogías feministas se convierten en contra-memorias y espacios de resistencia
(Braidotti, 2000).
El papel subversivo de genealogías femeninas de ficción ha sido recuperado a
través de la literatura, la expresión artística y la música. Figuras míticas como las
de Lilith y Melusina son re-interpretadas en novelas de escritoras feministas como
Ángela Carter y Antonia Byatt, en creadoras plásticas como Marion Peck y Marina
Nuñez, y en compositoras como Lidia Pujol. Como resalta Griselda Pollock,
«ningún sujeto social está engendrado, clasificado, o racializado sin más. Somos
textos, texturas, tejidos de múltiples posicionalidades e identificaciones que
constituyen nuestro emplazamiento móvil en el doble eje de las generaciones y las
geografías» (2010: 57). En este sentido, desde la metaficción historiográfica «la
historia y la ficción son discursos, que constituyen sistemas de significación a través
de los cuales damos sentido al pasado […] el significado y la forma no residen en
los acontecimientos, sino en los sistemas que convierten esos acontecimientos
pasados en hechos históricos presentes» (Hutcheon, 1988: 89).
En estas representaciones ficcionales también aparecen mujeres de carne y hueso
que en su momento incorporaron el contra-legado simbólico de Lilith. La ficción
historiográfica feminista suele centrarse en momentos históricos en los que la
mujeres han tenido mayor participación como fue el periodo de finales del siglo
XIX y comienzos del XX (Creed, 1987). La contienda bélica de 1914 supuso un
revulsivo para el movimiento feminista internacional que se plasmó en el Congreso
Internacional de 1915 en La Haya, origen de la creación de la Liga Internacional
de Mujeres para la Paz y la Libertad. Pero también fue el inicio de los primeros
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 323

contactos del movimiento feminista español con las redes internacionales, al contar
por primera vez con representación en ese congreso.1
El paso siguiente será incorporar desde configuraciones políticas críticas las
identidades emergentes en la era de la globalización, asumiendo que «la cultura
popular impregna el mundo en el que viven las mujeres jóvenes hoy, y el rostro del
feminismo actual, para bien o para mal, está siendo escrito a través de la cultura de
masas» (Rowe, 2005: 45). Como señala esta autora, la desconexión entre los diferentes
feminismos tiene graves consecuencias para el mantenimiento de logros, en estos
momentos en precario, como el derecho al aborto, a la educación y a la sanidad.
En las páginas siguientes, voy a intentar presentar una visión polifónica de las
diferentes voces tanto reales como de ficción que al igual que un caleidoscopio «a
medida que gira(n) sus varios aspectos reflejan y responden a las circunstancias
circulares en mutación. Ya que cada aspecto habla según el eje central, cada una y
todas las respuestas separadas son legítimas, integradas y verdaderas» (Asthon-
Warner, 1967, cit. por Vasconcelos, 2001: 9).

COSER, DESCOSER Y VOLVER A COSER RETAZOS DE VIDA

Integrar las diferentes vetas de esta arriesgada arqueología genealógica hace


necesaria una estructura discursiva transdisciplinar que, a través de movimientos
«de zigzag y cruce; no lineal, pero tampoco caótico; nómada y, sin embargo,
responsable y comprometido; creativo, pero también cognitivamente válido;
discursivo y también materialmente corporizado en el conjunto; es coherente sin
caer en la racionalidad instrumental» (Braidotti, 2009: 20). En este ir y venir, se
desarrollan una serie de estrategias metodológicas de carácter interpretativo
similares a las de una costurera de retazos (patchwork). Previamente es necesario
realizar la búsqueda de fuentes que nos permitan recoger los elementos y
herramientas necesarias para emprender nuestro trabajo, porque

… las fuentes «existen» si hay voluntad de buscarlas, de interpelarlas, de interrogarlas


adecuadamente. Más que la procedencia masculina o femenina de las mismas, lo que
interesa es confrontarlas y cruzarlas, encontrar en ellas matices y contrastes. El debate
Naturaleza–Cultura adscrito tradicionalmente a lo femenino y lo masculino […] no
puede ser un punto de partida inamovible sino un punto para la reflexión (Ramos y
Vera, 2001: 715).

1
A pesar de haber desplegado una intensa consulta bibliográfica y documental, no he encontrado
ningún dato sobre la misma, salvo la escueta referencia a la «représentante espagnole Mme. J. M. Gay.
Calle Claris 102.Barcelona» en la página 251 de las actas del Congreso Internacional de La Haya (1915).
htp://www.archive.org/details/berichtrapportreOOwomerich (consultado el 20 de diciembre de 2013).
324 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

En el caso de la recuperación genealógica, estas fuentes son indicios o aspectos


considerados a priori poco relevantes, por lo que habría que posicionarse en «una
metodología basada en lo secundario que utilice sensores capaces de detectar lo
que asoma de manera intermitente por las grietas e intersticios del sistema» (García
Colmenares, 2011: 19). Pero en esta indagación hay que partir de «la sana descon-
fianza de toda herramienta de análisis conceptual y metodológica que no sea de ori-
gen feminista» (Weigel, 1986: 75).
Los retazos de tela constituirían los relatos de vida (récits de vie) y deben
presentarse de manera no caótica y, en nuestro caso, incorporar la carga crítica de
las identidades proscritas (reales y de ficción) en el análisis de las subjetividades
emergentes de la globalización.

Cada uno debe ser responsable de coser su patchwork. Téngase en cuenta que al coser la
colcha, los fragmentos deben encajar muy bien, si no se deben deshacer y volver a coser.
Los fragmentos dispares de nuestras experiencias de vida deben integrarse de forma
coherente […] a pesar de la heterogeneidad (Rodrigo, 2009: 294).

Aunque a veces los hilos para la costura se presentan torcidos y parafraseando


a María Martínez Sierra2 (1931) hay que desenredarlos yendo «despacito ovillando,
tirando de la hebra blandamente, deshaciendo nudos, apartando cabos con santa
paciencia hasta llegar al fin» (189).
Sin embargo no podemos olvidar que estamos trabajando, intencionadamente,
con saberes flotantes, no encapsulados en disciplinas clásicas, que tienen en cuenta
la complejidad del conocimiento, por lo que la configuración del texto va cam-
biando según se va escribiendo/tejiendo al estar abierto a múltiples interpretaciones.

La narración no lineal y la hiperficción exigen unos modos de lectura que no son los de
quienes contemplan un mosaico o una alfombra. Las lecturas que permite el hipertexto
(pero también un texto convencional) nos llevan no solo a seguir una ruta secuencial,
sino todo un haz de distintos itinerarios posibles, como si ese tapiz pudiera transformarse
en otros por medio de relaciones paradigmáticas; la parodia, sin ir más lejos, es siempre
el juego entre un texto y un hipotexto en donde se establecen relaciones asociativas, no
lineales (Martos, 2007: 10-11).

Se ha abierto, pues, una interesante línea de recuperación genealógica que reinventa


y confunde los mitos, liberando vetas de gran carga subversiva como la relacionada
con las actividades tradicionalmente femeninas del tejer y el coser. M. Teresa Alario
en uno de los capítulos de ese libro analiza el mito de Aracné que, obligada a tejer
eternamente sin poder acceder a la palabra, convierte al tejido en un texto que

2
Seudónimo empleado por María Lejárraga.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 325

habla. Otro ejemplo desde el mundo de la costura es utilizado por María José
Majado en la exposición de Las Pelonas (2012), que presenta la tediosa tarea del
punto de cruz, utilizando como hilo el pelo de las mujeres que realizan la costura.
La comisaria de la exposición, Verónica Perales, plantea la Costura Subversiva como
un «contra-tejer, recuperar la inercia mecánica y potencial de la práctica y modificar
su dirección a nuestro favor, afectando así al sentido» (Perales, 2012).

SIN SEDE NI DESTINO, DESTERRADAS DE LO HUMANO

Recurrir a los mitos fundacionales de una cultura permite conocer y analizar su


vigencia en los procesos de construcción simbólica de las identidades de género
actuales. Rastreando las fuentes filosóficas, las mujeres constituyen una desviación
de la naturaleza, una desviación de lo humano, como señala María Zambrano.

Lo humano es el contenido de la definición del hombre, y la mujer quedaba siempre en


los límites, desterrada y, como toda realidad, rechazada, infinitamente temible. Solo en
su dependencia al varón, su vida cobraba ser y sentido; más en cuanto asomaba en ella
el conato del propio destino, quedaba convertida en un extraño ser sin sede posible.
Era la posesa o hechizada que, vengadora, se transformaba en hechicera (Zambrano,
1945: 80).

El relato histórico convirtió en malditas a esas mujeres al dotarlas de una


naturaleza monstruosa. Arrojadas de lo humano, sin sede ni lugar, reflejarán en su
cuerpo la maldad a través de la monstruosidad física, que pondrá en evidencia su
categoría subhumana. El miedo hacia la mujer autónoma hace que se la represente
como monstruosa y sanguinaria. Son «seres colgantes, suspendidos entre una cosa
(cuerpo, la naturaleza, la animalidad) y la razón» (Vila, 1999: 44). Esa cosa, el
cuerpo, es lo que pertenece a la naturaleza, lo biológico, lo opuesto a la razón. Seres
colgantes que se balancean buscando un destino, al no aceptar el designado. Y esa
falta, querer transcender, van a pagarla a través de un cuerpo que las delata, por lo
que deben vivir en lugares alejados, vagando con otra idénticas en el imaginario
histórico.
Desde la mitología clásica se puede rastrear una genealogía que refleja un destino
aterrador para aquellas que osaron transgredir los mandatos patriarcales, creando
sus propias normas y espacios. Lilith, la primera madre, configurará una interesante
genealogía. Creada como igual de Adán, se negó a someterse a él, abandonándolo
y uniéndose a demonios, por lo que Dios la amenazó con matar a sus descendientes
si no regresaba. El sufrimiento por la muerte de sus hijos e hijas le provoca
venganza, matando compulsivamente a otras criaturas.
326 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Junto a la de Lilith, he retomado la leyenda medieval del hada Melusina que


incorpora tres seres malditos para el cristianismo: la mujer, la serpiente y el hada.
La mujer y la serpiente son consideradas claras representaciones del mal y lo
sobrenatural por su origen demoníaco (Alvar, 1992). En esta historia, el hada
Presina madre de Melusina hace jurar a su esposo el rey Elinas que no intentaría
verla mientras dure el parto y la cría de sus tres hijas. El rey no cumple su palabra
y Presina jura vengarse abandonando a su esposo y criando a sus hijas en Avalón.
Estas conocedoras de la falta del padre, deciden castigarle, encerrándolo de por
vida. Pero la madre considera desproporcionado el castigo y maldice a sus hijas.
Entre 1387 y 1392, Jean d’Arras escribe la historia de Melusina que arrastra la
maldición de transformarse, una vez a la semana, en sirena: mitad humana, mitad
pez. Puede mantener su figura humana mientras nadie descubra esa trasformación,
que ella ocultará incluso a su marido el noble Remondín de Poitiers. Pero el
hermano de Remondín, haciéndose eco de los comentarios sobre sus misteriosas
ausencias, le pondrá sobre aviso acerca de la sospecha de posibles encuentros
sexuales clandestinos. Remondín descubre la maldición en el cuerpo de Melusina
y esta, sabiéndose descubierta por su esposo, entona un doloroso canto de
despedida. Las interpretaciones posteriores acerca de la despedida de Melusina no
se corresponderán con la obra original de Arras, y son las que han permanecido en
el imaginario. La visión patriarcal iguala el destino de Melusina al de Lilith que
huye con un grito espeluznante y que asolará a los habitantes la región.
A través de estas mujeres monstruosas podemos conocer cómo se crean y recrean
los cuerpos biopolíticos desde zonas híbridas a la vez que se analizan los
mecanismos de exclusión (Balza, 2013). Las representaciones de las siniestras, las
muertas, las monstruas, las locas y las ciborgs de Marina Núñez nos sacuden e
interrogan con la mirada y nos posicionan en una práctica autocritica que reactiva
la visión positiva de lo monstruoso al apostar por «la búsqueda de representaciones
sociales y culturales positivas de los otros híbridos, monstruosos, abyectos y
extraños como una forma de subvertir la construcción y el consumo de diferencias
negativas» (Braidotti, 2005: 223). Ese sentimiento, si cabe, se hace más evidente
contemplando la imagen de las sirenas de la misma autora, «… que lejos de ser un
mito bello, se han convertido en seres mutantes, en el resultado de algún tipo de
experimento biológico, un experimento que además se ha olvidado porque
aparecen encerradas en unos cimientos que ya están oxidados».3
El poder de las figuras de la monstruosidad ha servido de modelo de ficción
para un planteamiento subversivo y vindicativo más allá de la maldición de Eva.
Para Margaret Atwood (2006) la novela contemporánea feminista aporta una
temática más amplia, una mirada más crítica y una apuesta más evidente de temas

3
Exposición Luz y Tinieblas en la catedral de Burgos. Diario de Burgos, 12 de junio de 2008.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 327

ocultos. Escritoras inglesas como Angela Carter y Antonia Byatt han recreado
personajes de ficción femenina desde esos planteamientos.
En la inquietante obra La Pasión de la Nueva Eva, Angela Carter relata de
manera distópica la situación de las mujeres arrojadas del paraíso y desprovistas de
voz, evidenciando la pervivencia de los mitos culturales asentados en las
instituciones y en las prácticas sociales. El valor subversivo de la novela se manifiesta
en el protagonista masculino al que se ha encerrado en un cuerpo de mujer. De esa
manera irá conociendo la historia silenciada de las mujeres, a través de un fascinante
y doloroso viaje iniciático. Al final de la obra se vislumbra la esperanza a través del
alumbramiento del protagonista de una nueva vida que permitirá un mundo mejor.
Un carácter más utópico tendrá Noches de Circo, ambientada en el siglo XIX, donde
la protagonista es la reencarnación de Leda, el cisne (Suarez, 1996).
El mito de Melusina lo encontramos en la novela Posesión de Antonia Byatt,
mito que se con-funde entre la protagonista histórica, Cristabel Lamotte y la
protagonista en tiempo real, la investigadora Maud Waley. Junto a ellas aparecen
otras voces como las de Cristina Rosseti, Emily Dickinson y Virgina Woolf (Hidalgo,
1991). Los protagonistas masculinos tienen papeles secundarios y, al igual que
Remondín, irán descubriendo de manera más o menos oculta el secreto de las dos
protagonistas. La principal característica de Posesión es la multiplicidad de voces,
la parodia y el pastiche.

MUJERES ENREDADAS EN ESPACIOS PROPIOS

En el siglo XIX se produce un importante cambio identitario femenino, principalmente


en los países del norte de Europa y en el mundo anglosajón, debido a la aparición de
un movimiento feminista organizado y reivindicativo. Fueron tiempos de cambio para
las mujeres que participaron en los comienzos del movimiento feminista, creando
redes como la International Women Suffrage Alliance (IWSA), fundada en 1904.
Posteriormente, la celebración del Congreso Internacional de Mujeres en 1915 en La
Haya permitirá la visibilización de manera rotunda de las relaciones entre sufragismo,
feminismo y pacifismo, al crearse la Liga Internacional de Mujeres para la Paz y la
Libertad. El Congreso contó con la participación de más de 1 300 delegadas de
países como Austria, Bélgica, Gran Bretaña, Canadá, Dinamarca, Hungría, Italia,
Holanda Suecia, Noruega y EE UU. La Liga emprenderá una ofensiva por la paz en
plena guerra mundial ante sus respectivos gobiernos, siendo una de sus presidentas
Jane Addams, premio Nobel de la Paz en 1931. Anteriormente, se había celebrado
en la misma ciudad en 1899 un Conferencia de Paz, en la que tuvieron un importante
papel feministas librepensadoras como Belén Sárraga (Ramos, 2008).
328 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

En el siglo XIX también aparece la primera generación de feministas españolas


cuyo origen estará en los grupos fourieristas republicanos. Ellas servirán de guía
para la generación posterior, configurando lo que se ha denominado el periodo de
desarrollo del movimiento feminista en España, cuyos comienzos se sitúan a finales
de siglo y que abarcaría hasta fechas cercanas a la guerra mundial. Presentarán unas
características especiales al no tener en sus orígenes como prioritaria la conquista
del voto, centrándose en el poder transformador de la educación (Fagoaga, 1985,
1996). Librepensadoras como Rosario de Acuña, Ángeles López Ayala, Belén
Sárraga, Ana y Amalia Carvia, por citar a las más representativas, fueron mujeres
independientes y autónomas, viajaban solas, daban mítines, creaban asociaciones y
escuelas. Fueron perseguidas y encarceladas en numerosas ocasiones, otras tuvieron
que exiliarse. A través de sus escritos hemos podido conocer sus trayectorias vitales
y profesionales, cómo gestionaban los conflictos, las resistencias que utilizaron
frente a los mecanismos de exclusión.
Hemos de analizar la historia de sus vidas interconectadas desde la perspectiva
del sujeto autodesignado, aunando tiempo histórico y biográfico, para dar a conocer
nuestra genealogía a las más jóvenes porque estas:

... pueden admitir sin mayores problemas que la desigualdad existió, pero antes, como
en un país lejano y remoto. Sin embargo carecen de un conocimiento esencial: esa desi-
gualdad ha ido cediendo por la lucha organizada de millones de mujeres y solo para con-
seguir el derecho al voto se necesitó más de un siglo de lucha tenaz y continuada. Y no
eran marcianos eran hombres los que se resistían también tenazmente a que las niñas, en
definitiva sus esposas, madres, hijas y hermanas pudieran estudiar, ser autónomas y votar.
En general, cuando las chicas se enteran de lo que en el feminismo se denomina nuestra
genealogía se mueven inicialmente entre la indignación y el «no me lo puedo creer», para
terminar finalmente como Simone de Beauvoir, en el feminismo (De Miguel, 2008: 35).

Aunque el pensamiento androcéntrico y patriarcal ha intentado presentar a las


mujeres como enemigas entre sí, poco dadas a la sororidad y ayuda entre iguales, si
revisamos la historia reciente nos encontramos con una experiencia colectiva de
apoyo mutuo, frente a las fuerzas conservadoras y también a las de sus propios com-
pañeros ideológicos para quienes su lucha por la igualdad llevaba a las mujeres a
un «lamentable caos y perturbación en cerebros no muy resistentes; y, lo que es
más sensible y doloroso, almas extraviadas y rebeldes, ignorantes de las prácticas
de vida, llenas de odio y de amargura por el sentimiento de su inferioridad» (Ramos
2005: 58). Ante esta situación sus objetivos serán por un lado la emancipación de
la religión y por otro deslegitimar los discursos de sus compañeros creando espacios
propios de sociabilidad femenina, siendo los focos principales Barcelona y Valencia.
En estos espacios se priorizará la educación de las mujeres y las niñas como herra-
mienta básica para conseguir la igualdad.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 329

En Barcelona, en 1889, surgió la Asociación Autónoma de Mujeres, que puede


considerarse la primera asociación feminista en la que se dará la confluencia del lai-
cismo, el librepensamiento y el anarquismo, al estar entre sus fundadoras Ángeles
López de Ayala, masona, Amalia Domingo Soler, espiritista, y Teresa Claramunt,
anarquista. Entre sus actividades habría que destacar la creación de la Escuela de
Fomento de Instrucción Libre (1889), primera escuela laica gratuita para obreras.
Más tarde formarán la Asociación Progresiva Femenina (1898). En Valencia, Ana
Carvia y Belén Sárraga crearán la Sociedad General Femenina (1897). Las cone-
xiones entre ambas asociaciones permitirán, a partir de 1915, la formación de redes
que se plasmarán en la Liga Española para el Progreso de la Mujer, extendiéndose
más allá de Valencia, Barcelona y Madrid, a zonas de Andalucía y Galicia. La difu-
sión se hará a través de la Revista Redención. Por esas mismas fechas, comenzarán
a interesarse por los derechos políticos y el sufragio, formando parte del Consejo
Supremo Feminista de España (1919). El pensamiento heterodoxo de estas pioneras
se impregnará de otras influencias como la teosofía, el espiritismo y el naturismo,
proporcionando una visión diferenciadora con respecto a otros movimientos femi-
nistas, a la vez que se percibe un acercamientos a los feminismos procedentes de
Portugal y América Latina (Ramos, 2005).

LA LÓGICA DE LA NATURALEZA: EDUCAR PARA VIVIR

La preocupación por la naturaleza y por los efectos negativos del alejamiento de ella
va a ser una constante en las librepensadoras que abogarán por el respeto a los prin-
cipios de la misma. Preocupación que manifestarán tanto en su vida cotidiana como
en sus planteamientos educativos. Rosario de Acuña dejará constancia en sus escritos
de su relación íntima con la vida en el campo, así como de la preocupación por el
maltrato animal, siendo considerada como «ecologista avant la lettre» (Ramos, 2011:
29). La naturaleza será para ella una vía de conocimiento y regeneración (Hibbs-
Lissorgues, 2012). Cotidianidad que también se manifiesta en los espacios domésti-
cos cuando se describe la casa de Amalia Domingo en la que «… resultaba difícil
separar el salón en que se celebraban las sesiones mediúmnicas del hogar propia-
mente dicho, o delimitar las fronteras entre el patio de la escuela y el pequeño
huerto doméstico situado casi siempre en la parte trasera de la casa» (Ramos, 2005:
37). A través de la influencia espiritista, también crearon balnearios donde hacían
ensayos de terapias relacionadas con la homeopatía, la hidroterapia, el vegetaria-
nismo, el naturismo, entre otras (Ramos, 2011).
A comienzos del siglo XX irán apareciendo grupos y asociaciones contra el mal-
trato animal de las que formarán parte un interesante número de maestras feminis-
tas coetáneas y posteriores a las educadoras laicistas mencionadas. Entre las
330 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

primeras destaca Isabel Muñoz Caravaca, que denunciará la crueldad con los ani-
males en las fiestas populares, entre ellas las corridas de toros. Durante el período
de la II República, en la Federación Ibérica de Sociedades Protectoras de Animales
y Plantas, participarán maestras y profesoras como María de Maeztu y Regina Lago.
Esta última escribió un artículo titulado El amor a los animales.4
El modelo educativo de la escuela racionalista tendrá una gran influencia en
Ángeles López de Ayala, Ana Carvia y Consuelo Alvarez, colaboradoras y coautoras
de textos pedagógicos junto a Ferrer y Guardia (Muina, 2008). También hay que
citar a maestras como Amparo Lorente y Elena Just, de la Asociación General
Femenina y la Sociedad Bien de Obreras de Valencia, Soledad Areales, de Córdoba,
y Amalia Pérez Congiu, directora de la Escuela Moderna para niñas en Málaga
(Ramos 2008). A diferencia de Ferrer y Guardia, además de escribir y crear escuelas,
intervinieron en su dirección y desarrollo directo, siendo más que meras transmisoras
de conocimientos, al traducir en clave pedagógica las abstracciones teóricas,
ensamblando teoría y experiencia.
Mención especial merece, por su implicación en la educación naturista, la
maestra racionalista anarquista Antonia Maymón. Pacifista, miembro del Comité
Nacional Contra la Guerra de Marruecos, será encarcelada junto a Teresa
Claramunt. Durante el período de la II República creará una escuela propia. Su
pensamiento pedagógico se manifiesta en Esbozo Racionalista (1931). Partidaria
de la coeducación, considera la maternidad eje de la de la identidad femenina,
aunque ella no fue madre, y propone la asignatura de maternología para las niñas:
«Dejad que vuestras hijas destrocen muñecos, hagan aparatitos, manejen hilos,
alambres y telas, pregunten cosas que ignoran, discutan acaloradamente, verifiquen
experimentos. Pensando aprenderán a pensar. No hay otro modo» (Maymón, 1931,
cit. en Ruano, 2013: 120).
La educación racionalista como elemento emancipador se caracteriza por la
experimentación, la observación, la coeducación, el respeto a la naturaleza, la
autoeducación y el aprender sin premios ni castigos. La educación por el ambiente
(nature study) constituirá uno de los pilares básicos de este modelo educativo. A
través del mismo se intentará desarrollar en la infancia el interés por la naturaleza,
provocando su conocimiento. Supone la conexión entre la escuela y la vida real,
facilitando la transformación de la escuela en un organismo vivo que permitirá la
aprehensión integral del mundo y de la vida (Pratelle, 1976).
Esta visión de la escuela se verá enriquecida por las influencias de maestras
teósofas, a través de su conexión con los movimientos de renovación pedagógica.
Es el caso de María Solá de Sellares, representante española de la Liga Internacional

4
Se publicó en el periódico El Progreso de Lugo, el 4 de febrero de 1928 (p. 3).
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 331

de la Escuela Nueva en 1921, quien reivindica el contacto estrecho con la naturaleza


y las escuelas al aire libre y considera que la educación puede «evitar hecatombes
como la que se había vivido en la guerra mundial» (Solá, 1987: 8).
Puede decirse que todas ellas:

... fueron verdaderas funámbulas con el orgullo y la poética del riesgo de moverse entre
los roles construidos como contradictorios por el imaginario social y científico patriarcal:
el de «ser mujeres», con las ideas sobre la feminidad; el de «ser científicas», según la
idea de qué quería decir hacer ciencia, y el de ser feministas, voluntariamente o
accidentalmente, por las redes a las cuales pertenecían o por el simple hecho de provocar
las relaciones instauradas con su activa presencia (Cabruja, 2010: 93).

NUEVAS IDENTIDADES FEMENINAS: ¿OTRA REINVENCIÓN DEL PATRIARCADO?

A partir de los años ochenta, el postfeminismo aparece como un movimiento crítico


con la segunda ola del feminismo. Algunas autoras han señalado su sospechosa
coincidencia con el auge del neoliberalismo, abiertamente antifeminista y basado
en el individualismo, la excelencia y el logro personal (Fernández Villanueva, 2010;
Fraser 2009; De Miguel, 2008). En 1991, Susan Faludi ya denunciaba el fenómeno
de reacción de las políticas neoliberales contra el feminismo y el discurso que lo
presentaba como pasado de moda y culpable de la incapacidad de ser felices de
numerosas mujeres. Nos estaríamos enfrentando a un mecanismo de distorsión
ideológica que fija con más fuerza si cabe el sistema patriarcal. Tal distorsión se
manifiesta a través de dos formas, una más sutil, o de consentimiento, y otra más
hostil, o de coacción, que conlleva un ataque a los valores de equidad del feminismo
(Puleo, 2011). El espejismo de la igualdad hace que las más jóvenes consideren que
ya está todo conseguido:

... aunque no sepan ni qué se consiguió, ni quiénes lo consiguieron, simplemente dan


por hecho y dejan que las cosas sigan. No advierten que la agenda está por hacer, ni
siquiera la perciben. Cuando el feminismo consigue algo que no cabe dudar que sea
valioso, se procesa, se digiere y se declara obtenido por el mero paso del tiempo y el
sentido común. El grupo completo de mujeres sigue sin referentes, sin pasado, siendo
siempre recién llegadas, siempre «año cero» en que todo comienza y con las mismas
dificultades (Valcárcel, 2008: 201).

Por otra parte, todavía se mantienen una serie de resistencias externas e internas
que ralentizan el avance de la equidad de género como señaló la Presidencia Sueca
del Consejo de la Unión Europea en 2010 (Fernández Villanueva, 2010). Las ba-
rreras persisten en el trabajo, el ámbito educativo y el familiar, la administración de
332 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

justicia, y el poder. En cuanto a las resistencias internas, individuales y colectivas,


van surgiendo actitudes que frenan y ralentizan los logros conseguidos. Son meca-
nismos de socialización que se manifiestan a través del conformismo, la individua-
lización de los logros, la aceptación de la discriminación, la naturalización de las
diferencias y la culpabilización de sí mismas y de otras mujeres (Fernández Villa-
nueva, 2010).
Las conexiones entre la producción cultural y la política económica permitieron
diluir ciertos aspectos del discurso feminista (empoderamiento, libre elección,
autonomía) en la agenda neoliberal, para más tarde declararlo caduco. Esta
estrategia se puede observar en el funcionamiento ideológico de los mass media,
que formarán parte de la cultura popular de las y los jóvenes (MacRobbie, 2009).
Las subculturas juveniles constituyen espacios donde se construyen modelos
identitarios diferentes a los que se ofrecen en la familia, la escuela o el trabajo.
Dentro de ellas las diferencias de género son evidentes. Como señala Ana de Miguel,
el aumento del consumo de pornografía por Internet en los varones constituye un
factor preocupante. Asimismo, las revistas de deportes, motor y videojuegos son
más utilizadas por ellos, no existiendo revistas masculinas relacionadas con cómo
tener éxito con las chicas, mientras que sí existen las femeninas (González, 2011).
Los videojuegos utilizados tienen una alta carga competitiva y agresiva, apareciendo
en muchos casos las chicas como trofeo en el harén del jugador. En cuanto a sus
consecuencias, más allá del efecto catártico que suscriben algunos autores, se
aprenden códigos y lenguajes virtuales con un ejercicio de la violencia que no tiene
consecuencias y es considerada no solo aceptable, sino también divertida.

Para ellas el culto a la imagen, al cotilleo y al amor romántico. Para ellos la triada fútbol-
motor-pornografía. Ellas, como la mayor parte de las mujeres del mundo sigue-seguimos
interpretando la coacción como libre elección, tanto en los taconazos de aguja, como
en el culto al cuerpo, como en la elección de estudios no tecnológicos, como en la
asunción de los trabajos domésticos o el abandono del empleo porque alguien tendrá
que cuidar a los niños (De Miguel, 2008: 36).

En las mujeres, todo lo referente al amor constituye el eje central en el que gira
su vida, mientras que en ellos lo es el reconocimiento social (Boch, Ferrer, Ferreiro
y Navarro, 2013). Por lo que respecta a las jóvenes, se podría hablar de códigos
románticos, códigos domésticos, códigos de moda y códigos de la música pop que
aparecen reflejados en las revistas femeninas de moda y canciones (MacRobbie,
1991). Los códigos domésticos son evidentes y siguen sin cuestionar aspectos como
la doble tarea. El ámbito de lo doméstico se idealiza como un lugar de paz y donde
«… descubrimos otro poderoso fundamento ideológico en la represión cultural del
apetito. La idea de que a las mujeres les satisface más alimentar a otros que así
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 333

mismas» (Bordo, 1999: 130). El control social del hambre femenino y la negación
de la alimentación es una micropráctica de la autolimitación y contención.
Con relación al modelo de hiperfeminidad que aparece en las revistas dentro
del mundo de la moda, Angela MacRobbie (2010) retoma el trabajo de Joan Rivière
para señalar la estrategia de la mascarada postfeminista donde la incorporación de
esa hiperfeminidad se utiliza «… para evitar la ansiedad y las represalias que temen
de los hombres» (2007: 19). Pero tanto ese modelo como el puritano del ángel del
hogar siguen siendo proyecciones del deseo masculino (Puleo, 1997). Sin embargo
otras autoras son particularmente críticas con esta visión de la feminidad
hegemónica de las jóvenes al resaltar tanto la diversidad de situaciones como de
interpretación. El Girl Power no puede interpretarse ni reducirse exclusivamente
a un único efecto sobre las consumidoras más jóvenes (Rowe, 2005; Carrington y
Bennett, 1999).
El debate se encuentra entre las investigaciones que consideran a las mujeres
como víctimas pasivas de la cultura hegemónica de la feminidad, puesto que tras la
mascarada de la feminidad se esconde un control biopolítico basado en el consumo
y no en la emancipación ni la independencia (MacRobbie, 2010) y las posturas que
señalan que los efectos de la moda, las revistas y las series no pueden reducirse a
un efecto único que considere a las jóvenes imbéciles culturales (Rowe, 2005;
Carrington y Bennet, 1999). No hay que olvidar que, a través de la cultura de la
comunicación, está cambiando nuestra manera de pensar y que la vida para las y
los más jóvenes se convierte en una pantalla más (Turkle, 1996).
Teniendo en cuenta lo anterior, ¿es posible educar en la sostenibilidad sin caer
en un modelo de vida de consumo insaciable? ¿Cómo competir con el sexismo, el
racismo y la violencia de los videojuegos y series televisivas que configuran las mentes
infantiles desde los primeros años? ¿Y aunar razón y sentimientos en aras de una
educación ambiental no androcéntrica? Me interesa detenerme en esta última
pregunta, responder a todas ellas excedería los límites de este trabajo. Existe una
interesante reivindicación de lo afectivo en la educación ambiental a través de la
literatura (Puleo, 2005) y en la expresión plástica (artistas como Verónica Perales)5
que puede favorecer lo que el escritor J. M. Coetzee denomina «imaginación
compasiva».6 Buen ejemplo de ello son la Biblia Envenenada de Barbara Kingsolver
y el Barón Rampante de Italo Calvino.
En la lectura del Barón Rampante, Italo Calvino resuelve, a mi juicio, la
dicotomía individualidad versus comunidad a través del protagonista Cósimo
Rondó, al que su decisión de no volver a pisar la tierra no le impide ser «amigo al
mismo tiempo del prójimo, de la naturaleza y de sí mismo, aunque no por ello el

5
Ver, en este libro, el trabajo de Verónica Perales titulado «Reflexiones de una retratista de gorilas».
6
Elizabeth Costello, Mondadori, Barcelona, 2004, p. 87.
334 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

autor deja de ser crítico al plantear que «… bastó con la llegada de generaciones
con menor criterio, de imprevista avidez, gente no amiga de nada, ni siquiera de sí
misma, y ya todo ha cambiado, ningún Cósimo podrá avanzar por los árboles»
(1990: 130).7
La Biblia Envenenada permite conocer el proceso de independencia de la
República Democrática del Congo desde los ojos de las cuatro hijas de un pastor
baptista y la incidencia de los factores políticos y económicos en la destrucción de
la naturaleza.8 Destrucción que continúa en la actualidad con la extracción del
coltán, importante componente de baterías de móviles, videojuegos y portátiles. El
conflicto bélico que ha desencadenado ha costado desde 1997 más de cuatro
millones de muertos y la desaparición de poblaciones enteras de gorilas. Los dibujos
de Grandes Simios en Femenino de Verónica Perales que pueden apreciarse en este
libro refuerzan esa imaginación compasiva.

ABRIENDO INTERROGANTES, ACERCANDO DEBATES

La situación precaria en la que se encuentran algunas conquistas relacionadas con


los derechos de las mujeres hace necesario re-construir un movimiento que incluya
las diversas posiciones feministas para facilitar el análisis crítico- reflexivo de la
influencia de los componentes patriarcales de la industria cultural juvenil.

… lo importante es que las teorías feministas sean capaces de formular políticas


reivindicativas capaces de minar y erradicar la situación de subordinación, servidumbre
y explotación de las mujeres del mundo. Tal vez no sea ahora el momento de más juegos
de palabras del «feminismo sin mujeres», el «feminismo sin feministas» y de colocarle a
todo el prefijo post. Quizás sea el momento de comprender que mientras unas juegan
simbólicamente a ser fragmentos a otras las convierten en fragmentos de carne para el
mercado (De Miguel, 2014).9

Poner en práctica la teoría feminista supone un ejercicio transdisciplinar que


conlleva el entrecruzamiento de fronteras de los diferentes saberes (Braidotti, 2000)
y de diferentes posiciones feministas críticas (Cabruja y Fernández Villanueva,
2011). Pero para cambiar la vida cotidiana necesitamos comprender los mitos y

7
El Barón Rampante, Ediciones Siruela, 1990, 3ª edición.
8
La Biblia envenenada, Norma Ediciones, Barcelona, 2008.
9
A vueltas con el sujeto del feminismo. Revista Con la a, nº 28, Disponible en: http://numero28.con-
laa.net/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=61. Consultado el 4 de enero
de 2014.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 335

narraciones de las que forma parte y esto supone cambiar la mirada en relación con
la cultura popular, desterrando perjuicios.
Con relación a la recuperación genealógica, la investigación narrativa supone
una estrategia metodológica que ha permitido un acercamiento reflexivo para la re-
creación de subjetividades subversivas. Bien a través de la ficción, bien a través de
la historia del feminismo es posible articular discursos que sirvan de referencia para
el presente.

Las vidas se construyen; por lo tanto más vale que nos convirtamos en buenos artesanos
junto con los otros actantes mundanos del relato. Hay una enorme reconstrucción por
hacer, empezando por un poco más de cartografía con la ayuda de los artefactos ópticos
provistos de filtros rojos, verdes y ultravioletas (Haraway, 1999: 125).

A pesar del riesgo de hablar por/como/sobre ellas, no puedo/podemos


desatender el ruego de no ser olvidadas que reclama Rosario de Acuña en la carta
que envía a Las Dominicales del Libre Pensamiento: ¡Feliz si allá en los siglos que
vendrán, las mujeres elevadas a compañeras de hombres racionalistas se acuerden
de las que haciendo de antemano el sacrificio de sí mismas empuñaron la bandera
de su personalidad en medio de una sociedad que las considera mercancía o botín!»
(Muina, 2008: 133).
Por lo que respecta a la construcción social de sujetos emergentes en la era de
la globalización, se abre una interesante línea de investigación a través de la
utilización de posicionamientos metodológicos situados y estrategias etnográficas
interpretativas. Se trata de conocer la influencia de la cultura popular en la
construcción de subjetividades de las y los más jóvenes y su relación con el
feminismo. Dentro de los sujetos emergentes habría que destacar los estudios
realizados desde el ecofeminismo donde convergen la doble teoría y práctica al
cuestionar los puntos ciegos del ecologismo en relación con la equidad de género
(Puleo, 2011a). Para esta autora se vislumbra un futuro esperanzador puesto que:
«La nueva Ariadna tiene muchos rostros. Lucha en los movimientos sociales
rurales y en los urbanos. Trabaja sin cesar en las diversas formas de mantenimiento
cotidiano de la vida. Está presente en la educación, en la creación y en la cultura»
(Puleo, 2011b: 269). Desde este esta óptica esperanzadora, aunque como hemos
visto no exenta de crítica, Ana de Miguel (2008: 44) nos señala que: «Hoy como
ayer las jóvenes harán lo que quieran, y no podría ser de otro modo, pero seguro
que unas cuantas, las suficientes, seguirán tomando el testigo del feminismo y
ellas, como en su día las sufragistas, las socialistas y las radicales, ellas cambiarán
el mundo».
336 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVAR, Carlos (1992): «Prólogo», en D’Arras Jean: Melusina (IX-XVII), Madrid, Siruela.
AMORÓS, Celia (2010): «Feminismo e interculturalismo», en Amorós, Celia y de
Miguel, Ana (eds.): Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización, (pp. 217-
264), Tomo 3, Madrid, Minerva.
ATWOOD, Margaret (2006): La maldición de Eva, Barcelona, Lumen.
BALZA, Isabel (2013): «Tras los monstruos de la biopolítica», Dilemata, 12, pp. 27-46.
BOSCH, Esperanza; FERRER, Victoria; FERREIRO, Virginia y NAVARRO, Capilla (2013):
La violencia contra las mujeres. El amor como coartada, Madrid, Anthropos.
BORDO, Susan (1999): «El hambre como ideología», en Luke, Carmen (comp.):
Feminismo y pedagogías en la vida cotidiana, Madrid, Morata, pp. 119-143.
BRAIDOTTI, Rossi (2009): Transposiciones, Barcelona, Gedisa.
— (2005): Metamorfosis. Hacia una teoría materialista del devenir, Madrid, Akal.
CABRUJA, Teresa (2010): «Las mujeres de la psicología y la psicología de las muje-
res», en Doctas doctoras y catedráticas. Cien años de acceso libre de la mujer a la
Universidad, Barcelona, Generalitat de Catalunya, Consell Interuniversitari de
Catalunya, pp. 89-100.
— y FERNÁNDEZ VILLANUEVA, Concepción (2011): «Psicología social feminista.
Perspectivas críticas, postmodernas y radicales», en Ovejero, Anastasio y Ramos,
Júpiter (coords.): Psicología social critica, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 81-95.
CARRINGTON, Kerry y BENNETT, Anna (1999): «Las revistas de chicas y la formación
pedagógica de la chica», en Luke, Carmen (comp.): Feminismo y pedagogías en
la vida cotidiana, Madrid, Morata, pp. 144-159.
CENDRAN, Susana (2013): «Todo tiene que ver con los monstruos», International
Contemporary, nº 53-54, pp. 78-86.
CREED, Barbara (1987): «From here to Modernity: Feminism and Postmodernism»,
Screen, vol. 28, nº 2, Spring, pp. 47-67.
D’ARRAS, Jean (1992). Melusina, Madrid, Siruela. 6ª ed.
DE MIGUEL, Ana (2008): «Feminismo y juventud en las sociedades formalmente
igualitarias», en Aguinaga, Josune (coord.), Revista de Estudios de Juventud, nº
83, pp. 30-45.
— (2014): «A vueltas con el sujeto del feminismo». Revista Con la A, nº 28, dispo-
nible en: http://numero28.conlaa.net/index.php?option=com_content&view=ar-
ticle&id=56&Itemid=61 (consultado el 4 de enero de 2014).
FAGOAGA, Concha (1985): La voz y el voto de las mujeres. El sufragismo en España
1877-1931, Barcelona, Icaria.
— (1996): «De la libertad a la igualdad: laicistas y sufragistas», en Segura, Cristina
y Nielfa, Gloria (eds.): Entre la marginación y el desarrollo mujeres y hombres
en la historia, Madrid, Ediciones del Orto, pp. 171- 198.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 337

FALUDI, Susan (1991): Reacción. La guerra no declarada contra la mujer moderna,


Barcelona, Anagrama.
FEMENÍAS, Mª Luisa (2000): Sobre Sujeto y Género. Lecturas feministas desde Be-
auvoir a Butler, Buenos Aires, Catálogos.
— (2004): «Sujetos multiculturales y las políticas de la diferencia», en Birulés, Fina
y Peña, M. Isabel (eds): La passió per la llibertat. Homenatge a Maria Aurèlia
Capmany, Barcelona, Universitat de Barcelona, pp. 77-88.
FERNÁNDEZ VILLANUEVA, Concepción (2010): «La equidad de género: presente y
horizonte próximo», Quaderns de Psicología, vol. 12, nº 2, pp. 93-104.
GARCÍA COLMENARES, Carmen (2011): Las primeras psicólogas españolas, Trayec-
torias vitales y profesionales, Granada, Universidad de Granada.
GONZÁLEZ, Amalia (2011): «Patriarcado cyborg», en Amorós, Celia y Quesada,
Fernando (coords): Las mujeres como sujetos emergentes en la era de la globali-
zación. Nuevas modalidades de violencia, nuevas formas de ciudadanía, Madrid,
Instituto de la Mujer, pp. 265-305.
HIBBS-LISSORGUES, Solange (2012): La naturaleza como vía de conocimiento y de
regeneración en la obra de Rosario de Acuña (1850-1923), Biblioteca Virtual Mi-
guel de Cervantes.
HARAWAY, Donna (1999): «La promesa de los monstruos. Una política regeneradora
para otros inapropiados/bles», Política y Sociedad, nº 30, pp. 121- 163. L30as
HIDALGO, Pilar (1991): «La feminización de la novela postmodernista», Atlantis,
vol. 12, pp. 65-81.
HUTCHEON, Linda (1988): A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction,
London, Routledge.
MACROBBIE, Angela (1991): Feminism and Youth Culture, Londres, Macmillan.
— (2010): «¿Las chicas arriba? Las mujeres jóvenes y el contrato sexual postfemi-
nista», Debate Feminista, 41, pp. 113-135.
MARTÍNEZ SIERRA, María (1989): Una mujer por los caminos de España, Madrid,
Castalia.
MARTOS, Luis (2007): «El lector del siglo XXI ante las TIC: textos y fluidos», Nuevas
Hojas de Lectura, nº 15, pp. 8-16.
MAYMÓN, Antonia (931): Esbozo Racionalista, Mislata (Valencia), Ateneo Científico
de Divulgación Social.
MUINA, Ana (2008): Rebeldes Periféricas, Madrid, La Linterna Sorda.
PERALES BLANCO, Verónica (2012): «Coser, planchar, vindicar / activist sewing»
(sp/eng), en Pelonas, texto en catálogo como comisaria de la exposición de María
José Majado Rosales. Disponible en http://www.academia.edu/2401040/Coser_plan-
char_vindicar_activist_sewing_sp_eng_ (Consultado el 20 de diciembre 2013)
PERALES, Verónica (2011): Arte, ecofeminismo y grandes simios, Art-Oficial,
http://www.academia.edu/2401040/Coser_planchar_vindicar_activist_sewing_sp
338 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

_eng_. (Consultado el 20 de diciembre 2013)


POLLOCK, Griselda (2010): Encuentros en el museo feminista virtual, Madrid, Cátedra.
PULEO, Alicia (2011a): «Ecologías y ecofeminismos», en Amorós, Celia y Quesada,
Fernando (coord.): Las mujeres como sujetos emergentes en la era de la
globalización. Nuevas modalidades de violencia, nuevas formas de ciudadanía,
Madrid, Instituto de la Mujer, pp. 173-188.
— (2011b): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
— (2005): «Los dualismos opresivos y la educación ambiental», Isegoría, 32, pp.
201-214.
— (1997): «Mujer, sexualidad y mal en la filosofía contemporánea», Daimon 14,
pp. 167-172.
PRATELLE, Aristide (1976): «La educación por el ambiente», en Ferrer y Guardia
(1976), La Escuela Moderna, Editorial Zero S. A., Bilbao, pp. 202-206.
RAMOS, Mª Dolores (2011): «Feminismo laicista, voces de autoridad, mediaciones
y genealogías en el marco cultural del modernismo», en Aguado, Anna y Ortega,
Teresa (eds.), Feminismos y antifeminismos. Culturas políticas e identidades de
género en la España del siglo XX, Valencia, PUV, pp. 21-44.
— (2008): «Republicanas en pie de paz: la sustitución de las armas por la justicia,
el arbitraje y el derecho (1868-1899)», Pasado y Memoria. Revista de Historia
Contemporánea, 7, pp. 35-57.
— y VERA, Teresa (2001): «Revisando el canon desde la historia de las mujeres: tra-
bajo, ciudadanía y formas de conciencia», Baetica. Estudios de Arte, Geografía e
Historia, 23, pp. 13-40.
— (2005): «La República de las librepensadoras (1890-1914)», Ayer, vol. 60, nº4,
pp. 45-74.
RIVIERE, Joan (2007): «La feminidad como mascarada», Athenea Digital, nº 11, pp.
229-226.
RODRIGO, Miguel (2009): «La identidad como patchwork», IC. Revista científica
de información y comunicación, nº6, pp. 285-305.
ROWE, Kathleen (2005): «Scream, cultura popular y el feminismo de la tercera ola.
Yo no soy mi madre», Lectora, 11, pp. 43-73.
RUANO, Raúl (2013): Contra la ignorancia, Madrid, El Viejo Topo.
SOLÁ, María. (1987): Irradiación de una biografía: María Solá de Sellarés, México,
Costa-Amic.
SUAREZ, M. Socorro (1996): «La mujer como tema intertextual en la literatura con-
temporánea en lengua inglesa», en Scriptura, nº 12, pp. 153-171.
TURKLE, Sherry (1996): «Who are we?», Won Newsstands Now, Issue 401, January.
VALCÁRCEL, Amelia (2008): Feminismo en un mundo global, Madrid, Cátedra.
VASCONCELOS, Teresa (2001): «Prefacio», en Costa Araujo, Helena y Magalhaes,
María José: Retazos de vidas. Biografías, profesoras y ciudadanía, Lisboa, Comissao
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 339

para Igualdade e para os Direitos das Mulheres, pp. 5-9.


VILA, Fefa (1999): «Genealogías feministas. Contribuciones de la perspectiva radi-
cal a los estudios de las mujeres», Política y Sociedad 32, pp. 43-51.
WEIGEL, Sigrid (1986): «La mirada bizca», en Ecker, Gisela (ed.), Estética Feminista,
Barcelona, Icaria, pp. 69-98.
ZAMBRANO, María (1945): «Eloísa o la existencia de la mujer», Sur, 124, Buenos
Aires.
20. Más allá del mecanicismo: heroínas ecoló-
gicas del imaginario actual1
Angélica VELASco SESMA
cátedra de Estudios de Género
Universidad de Valladolid

S
e ha dicho que el surgimiento de la Filosofía constituye el paso del mito al
logos, es decir, el cambio hacia la aceptación de las explicaciones racionales
en lugar de las procuradas por la imaginación. Los poemas homéricos han
sido elegidos por los filósofos de la Escuela de Frankfurt Max Horkheimer y The-
odor Adorno (1998) para analizar el rumbo del pensamiento occidental. Estos au-
tores reinterpretan la odisea de Homero, partiendo de la tesis de que el mito es
Ilustración. Por «Ilustración» no solo se refieren al pensamiento de la época de las
Luces, sino a todo proceso de racionalización del mundo, para transformarlo en
algo manipulable, sometido al dominio del hombre. En este poema encuentran ya
los orígenes del dominio ilustrado de la naturaleza. Afirman, asimismo, que, a pesar
de que la Ilustración se había propuesto destruir los mitos y alimentar la imagina-
ción con el saber científico, la razón instrumental ha terminado convirtiéndose ella
misma en un mito. Sin la reflexión sobre los fines últimos de la vida humana, la ra-
cionalidad termina imponiendo nuevos límites al pensamiento.
Los mitos poseen, tal vez, una fuerza especial que escapa al razonamiento lógico.
Pueden generar sentimientos poderosos que mueven a la acción en un sentido de-
terminado. Las narraciones fantásticas configuran un imaginario cargado de valores
que marcan generaciones. A lo largo de la historia, se ha empleado la figura del
otro idealizado como un recurso crítico con el que se pretende corregir la propia
cultura (Puleo, 2011). Durante el Renacimiento, se instauró el mito de una edad de
oro en la que se vivía armónicamente. Los viajes de descubrimiento de nuevas tie-
rras facilitaron la aparición de esta creencia. Los indígenas que describe Américo

1
Este trabajo ha sido realizado en el marco del proyecto I+D La Igualdad de Género en la cultura
de la sostenibilidad: Valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario (FEM2010-15599). Sub-
programa de Proyectos de Investigación Fundamental no orientada. Se ha beneficiado, asimismo, del
programa de becas FPI de la Universidad de Valladolid.
342 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

Vespucio en Mundus novus (1503), como individuos libres que no obedecen a nin-
gún gobernante, que no conocen la propiedad privada y que tienen tantas esposas
como deseen, contribuyeron a forjar el imaginario europeo constructor de otros
mundos posibles. La crítica a las estructuras políticas y sociales del Antiguo Régi-
men vino favorecida por los elementos que los filósofos del Barroco y de la Ilustra-
ción extrajeron de la cultura china, de la Polinesia o del nuevo Mundo. «La mirada
del otro fue utilizada para poner de relieve los defectos propios, para juzgar y ri-
diculizar a la sociedad europea» (Puleo, 2011: 323). Los viajes a la Polinesia y a las
Américas, a diferencia de lo que sucedió con las antiguas civilizaciones orientales,
contribuyeron a forjar la idea de que se estaba descubriendo el pasado originario
de la humanidad. Jean-Jacques Rousseau, en el Discurso sobre el origen de la desi-
gualdad entre los hombres (1755), presenta al buen salvaje compasivo y viril como
contrapuesto al filósofo civilizado que cultiva su egoísmo valiéndose de la razón.
Alicia Puleo ha llamado la atención sobre el surgimiento, en la actualidad, de
un nuevo imaginario en el que la figura del buen salvaje de Rousseau reaparece,
aunque en este caso en versión femenina. Las mujeres cercanas a la naturaleza y de-
fensoras de culturas preindustriales sostenibles son un recurso frecuente de algunas
corrientes ecofeministas y ecologistas. Este proceso es el resultado de la influencia
de la antropología, la etnopsicología, el multiculturalismo y los movimientos indi-
genistas y se emplea para llevar a cabo una crítica del complejo tecno-científico mo-
derno. Es imprescindible analizar esta imagen para encontrar las ventajas y los
inconvenientes que implica tanto para las mujeres como para la naturaleza y para
comprobar si realmente facilita el diálogo intercultural. La mujer-naturaleza aparece
como una alternativa al hombre tecnológico causante de la destrucción medioam-
biental. Esta autora acepta que la figura de la alteridad femenina natural positiva-
mente connotada puede llegar a ser políticamente eficaz en algunas ocasiones, pues
se fundamenta en emociones de la infancia que comparten básicamente todas las
personas. Esta figura de la alteridad, vinculada a la madre protectora, permite ob-
servar de forma crítica el complejo técnico-científico occidental. Igualmente, invita
a la universalización en el sentido de que muestra la necesidad de que todas las per-
sonas y todas las culturas examinen sus identidades de género y su relación con el
mundo natural.
Puleo comienza la introducción de su libro Ecofeminismo para otro mundo po-
sible reinterpretando el mito griego del Minotauro.2 En la versión que propone, la
aportación femenina no se reduce a una colaboración secreta. Ariadna no adopta
un rol pasivo, entregando a Teseo un ovillo para que este pueda matar al Minotauro
y regresar por el laberinto guiándose con el hilo, sino que, por el contrario, entra
en el laberinto del mundo junto a Teseo y se convierte en protagonista del cambio.

2
Véase Puleo, Alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible. Madrid, cátedra, p. 7.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 343

Pretende transformar la cultura y lograr la justicia social y ambiental. Ella descubre


que el monstruo no es un ser abominable, sino que está emparentado con los seres
humanos, a pesar de que este parentesco haya sido negado durante siglos. con su
hilo libera al «monstruo», pues se acerca a la naturaleza3 desde la simpatía y no
desde el pavor. La nueva Ariadna es hija del feminismo y la ecología y adquiere una
importancia fundamental en los tiempos del cambio climático.
¿Podemos rescatar nuevas «Ariadnas» en la actualidad? ¿Encontramos perso-
najes femeninos en el imaginario de los últimos años que transmiten valores ecoló-
gicos e igualitarios? Dada la influencia que los medios de comunicación de masas
ejercen en la formación del carácter de las personas4 —influencia señalada por los
mismos filósofos de la escuela de Frankfurt—, resulta interesante analizar determi-
nadas producciones que se alejan de la historia tradicional en la que toda la trama
gira en torno al héroe masculino. considero que en los largometrajes Ferngully
(1992), Pocahontas (1995) y Avatar (2009)5 encontramos determinados valores que
pueden contribuir a una transformación de nuestras actitudes con respecto a la na-
turaleza. Igualmente, sus protagonistas femeninas visibilizan a las mujeres como su-
jetos activos y ponen de manifiesto la importancia de una revisión crítica de los
papeles tradicionalmente asociados a mujeres y hombres así como del estatus con-
cedido a cada individuo en virtud del género.
A pesar de la simplificación que supone generalizar, creo que el argumento de
estas tres películas se asemeja en lo esencial. En los tres casos, observamos una so-
ciedad nativa que vive en armonía con la naturaleza, que acepta la interconexión
entre el mundo humano y el no humano y que utiliza únicamente los recursos ne-
cesarios para la supervivencia, respetando los ciclos naturales. Los extranjeros co-

3
Elegimos, siguiendo la concepción de Puleo, el término «naturaleza», pues posee unas conno-
taciones filosóficas, literarias, artísticas y emocionales más ricas que el concepto de «medio ambiente»
que utilizan las éticas antropocéntricas extremas.
4
considero que las producciones cinematográficas poseen una relevancia fundamental en la ac-
tualidad dado que constituyen un poderoso discurso de legitimación de género. Estos discursos son
sistemas de creencias que muestran los motivos de la diferenciación entre las personas de sexo mas-
culino y las de sexo femenino, así como la manera en que estos se diferencian (Puleo, 2000b). Las pe-
lículas, dependiendo de los valores que transmitan, pueden llegar a ser una eficaz forma de inculcar
los roles y los estereotipos de género, determinando la identidad sexuada de las personas.
5
El director, productor y guionista de Avatar, James cameron, reconoció la influencia que La prin-
cesa Mononoke (1997) —largometraje de animación de Hayao Miyasaki— tuvo en esta producción.
A pesar de las diferencias, debidas, tal vez, a los elementos propios de la tradición japonesa, encontra-
mos en La princesa Mononoke muchas similitudes con las tres películas mencionadas. no obstante,
en el film japonés, obra de culto en todo el mundo para aficionados a este tipo de cine, aparece un ele-
mento que se aleja de la tradicional vinculación de la mujer con la naturaleza, pues el personaje que re-
presenta la industria y la tecnología es una mujer. Por el contrario, en las películas que vamos a analizar,
no hallamos ningún personaje principal femenino con actitudes de explotación y dominio. Todas se
acercan a la naturaleza desde el respeto y la empatía y tratan de cuidarla y protegerla.
344 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

rresponden a la figura del hombre blanco occidental. Poseen una concepción de la


naturaleza muy diferente. Su intención es explotar los recursos naturales sin tener
en cuenta las repercusiones sociales y ambientales de esta actividad. Pretenden so-
meter a los nativos para lograr el dominio de la naturaleza. no obstante, el personaje
principal masculino termina conociendo la sociedad nativa y cambiando su actitud
de conquista gracias a las enseñanzas de las que consideraremos, de ahora en ade-
lante, nuestras tres heroínas ecológicas. Ellas logran transformar la visión del mundo
de sus compañeros, que trabajarán a su lado para impedir que los colonizadores
triunfen en la imposición de su modelo de dominio. Juntos derrotarán a los colonos,
defendiendo el mundo natural. De este modo, triunfa el respeto por la naturaleza.
no obstante, y a pesar de que los nativos consigan expulsar a los extraños, perma-
nece la idea del peligro ante las actitudes de conquista y dominación y la convicción
de que es necesario seguir trabajando para lograr una transformación radical de
nuestra forma de relacionarnos con el mundo.
Para poder interpretar estas tres obras de la cultura popular, voy a proceder, en
primer lugar, a recordar el cambio en la concepción de la naturaleza que tuvo lugar
durante la Modernidad. En segundo lugar, mostraré algunas de las aportaciones
del ecofeminismo. En tercer lugar, me acercaré a los valores del cuidado que repre-
sentan estas heroínas. Finalmente, trataré la idea del amor romántico para compro-
bar si en estas historias encontramos relaciones de amor alienantes o si, por el
contrario, hallamos relaciones afectivas enriquecedoras.

EL DESEncAnTAMIEnTo DEL MUnDo: DEL coSMoS oRGánIco A LA MáqUInA

En cada una de las obras fílmicas citadas, el conflicto que surge entre la sociedad
nativa y el grupo colonizador se debe a la diferencia de visiones y actitudes con
respecto a la naturaleza. Unos la conciben como algo sagrado, que alimenta la vida
y posibilita la supervivencia, y otros la ven únicamente como un recurso a su dis-
posición. crysta, Pocahontas y neytiri, nuestras protagonistas femeninas, mostra-
rán a Zak, John Smith y Jake, respectivamente, la importancia del cambio de
actitud hacia el mundo natural no humano. Su papel es imprescindible en la trama,
pues ponen de manifiesto los efectos destructivos de la devastación del entorno y
la necesidad de concebir la naturaleza como algo de lo que formamos parte. Estas
enseñanzas adquieren importancia vital en nuestro mundo actual en el que los
efectos de la destrucción medioambiental —contaminación, pérdida de biodiver-
sidad, desertificación, cambio climático, etc.— adquieren, cada día más, un as-
pecto dramático.
ya antes de la evidente crisis ecológica actual, Horkheimer y Adorno (1998)
habían desarrollado una crítica a la colonización tecnológica del mundo natural y
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 345

social. Estos dos filósofos denuncian la dominación de la naturaleza debido a la


aplicación de la razón instrumental y patriarcal que, en su intento por lograr de-
terminados objetivos científicos, tecnológicos y económicos, renuncia a la refle-
xión sobre los valores y la finalidad de la existencia. Esta razón, entendida como
dominación de la naturaleza no humana, implica también el sometimiento de la
naturaleza humana. consideran, por tanto, que la razón ha perdido su poder
emancipatorio y que se ha convertido en un cálculo de medios para obtener fines
que no se ajustan ni a la ética ni a la estética. El progreso propio de la Modernidad
es visto por estos autores como una expansión destructora reflejo de la voluntad
de dominio sobre la naturaleza, la cual se ve como una mera extensión mensurable
que se utilizará para diversos fines.
El desarrollo tecnológico, científico y económico iniciado en la Modernidad se
produce paralelamente a una transformación profunda de la cosmovisión europea.
Hasta ese momento, la imagen del universo se basaba en la cosmología aristotélica
geocéntrica. Esta concepción del universo como finito y heterogéneo se adaptaba a
la doctrina cristiana del Dios creador del universo y del hombre como centro del
mismo. ya en el Renacimiento se empieza a transformar el concepto de naturaleza.
La cosmología aristotélica es sustituida por la teoría heliocéntrica propuesta por ni-
colás copérnico y el cosmos limitado aristotélico-ptolemaico pasa a ser un universo
infinito sin centro fijo gracias a las aportaciones de Giordano Bruno. De este modo,
se recupera la concepción de la naturaleza como fuerza interna que hace crecer los
organismos vivos propia de la cultura griega presocrática. El cosmos se concibe,
pues, como un gran organismo vivo, animado por el Espíritu del Mundo. Sin em-
bargo, este animismo renacentista termina siendo reemplazado por el mecanicismo.
carolyn Merchant (1981) lleva a cabo un análisis de los símbolos y las formas
conceptuales de aprehensión de la naturaleza en su relación con las fuerzas pro-
ductivas y reproductivas. Llama «muerte de la naturaleza» al efecto del estableci-
miento del complejo tecnológico-científico del racionalismo moderno. Aunque esta
autora no pretende imponer de nuevo una imagen feminizada de la naturaleza, re-
cupera la cosmovisión renacentista que veía la naturaleza como una madre nutricia,
colaboradora del ser humano, y a los animales y las plantas como sujetos activos.
Propone rescatar estas ideas pues considera que pueden contribuir a una transfor-
mación de la actitud ética de las personas con respecto al mundo natural.
El nuevo orden socioeconómico que estaba surgiendo en los albores de la Mo-
dernidad precisaba, según Merchant, de una visión como la mecanicista. Esta autora
analiza el mecanicismo, llamando la atención sobre el contexto de represión social
y política en que surge esta cosmovisión, así como en su sesgo patriarcal. Dado el
trasfondo de desorden social, religioso y cósmico de los siglos xVII y xVIII, la teoría
mecanicista, desarrollada primeramente por los pensadores franceses Marin Mer-
senne, Pierre Gasendi y René Descartes, se presenta como una solución a la incer-
346 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

tidumbre intelectual y como base racional para la estabilidad social. ya que lo que
se pretendía es restablecer el orden moral e intelectual, se rechaza la imagen de la
naturaleza como un organismo vivo, pues está relacionada con las ideas de cambio,
incertidumbre e imprevisibilidad. Se desarrolla, así, una filosofía fundada en ideas
compatibles con el orden, el control y la manipulación. De este modo, «el mecani-
cismo transformó el cuerpo del mundo y su alma femenina, fuente de actividad en
el cosmos orgánico, en un mecanismo de materia inerte en movimiento, convir-
tiendo el espíritu del mundo en un éter corpuscular, eliminando los espíritus cor-
pusculares de la naturaleza y transformando las simpatías y antipatías en causas
eficientes»6 (Merchant, 1981: 195). La metáfora de la máquina sirvió para la reor-
ganización del mundo, de forma que el cosmos, la sociedad y el ser humano pasan
a concebirse como sistemas ordenados de partes mecánicas gobernados por la ley
y sujetos a razonamientos deductivos.
Según esta autora, las metáforas de género que se encuentran en diferentes textos
de la ciencia moderna esconden un trasfondo político de dominación sexual. Francis
Bacon establece el método científico a seguir, determinando la necesidad de torturar
a la naturaleza para que muestre sus secretos. Se impone, así, una imagen de la natu-
raleza reducida a mera máquina cuyas piezas se pueden —y deben— manipular para
adquirir el conocimiento. Por el contrario, la imagen renacentista de la Madre Tierra,
muy similar a las cosmovisiones premodernas caracterizadas por el holismo, implicaba
determinados límites a las prácticas de explotación de las riquezas naturales.
Las epistemólogas feministas Evelyn Fox Keller y Sandra Harding han mostrado
la parcialidad de género de la ciencia moderna. Harding (1996) sostiene que las re-
glas de investigación científica también son normas morales, por lo que no es ex-
traño que, tanto en el método científico como en la racionalidad científica, se
encuentren concepciones masculinas en cuanto a las relaciones entre los humanos
y la naturaleza. La ciencia moderna se entiende como dominación de un objeto que
se reduce a las características exclusivamente relevantes para la finalidad de la in-
vestigación (Puleo, 2000a). Implica, por tanto, el distanciamiento emocional que
permite la manipulación sin interferencia de los juicios morales y el pensamiento
dualista que elimina la afectividad y la dependencia con respecto al objeto de estu-
dio.7 Esto puede relacionarse, sin duda, con la identidad masculina que estudian
las teóricas de las relaciones objetales.
El racionalismo moderno del siglo xVII determina la separación entre la divini-
dad y la naturaleza. Esta deja de concebirse como un organismo animado. Por el
contrario, se la percibe como mera extensión mensurable, regida por leyes racio-

6
Mi traducción.
7
como afirma Puleo, la vivisección se muestra como el ejemplo más sangrante de estos supuestos
científicos.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 347

nales geométricas y aritméticas.8 La naturaleza pasa a ser un reloj y el científico


debe descubrir su mecanismo interno. Esta visión mecanicista de la naturaleza es
la que observamos en los colonizadores de las tres películas. nuestras heroínas eco-
lógicas comprenden los beneficios de vivir en armonía con la naturaleza. ¿no sería
interesante, dada la situación ecológica actual, potenciar la creación de personajes
femeninos9 que sean protagonistas en la transformación de nuestra concepción de
la naturaleza y de nuestras actitudes de dominio y explotación? He señalado ya la
influencia que la ficción puede llegar a tener sobre las personas. Por ello, el surgi-
miento de un imaginario en el que las mujeres y los valores que tradicionalmente
se les han asociado adquieran estatus y relevancia, y en el que las actitudes de res-
peto por la naturaleza aparezcan como algo imprescindible, se muestra como un
elemento fundamental para una transformación cultural a la altura de nuestro
tiempo. como veremos a continuación, las diferentes teóricas ecofeministas tienen
bastante que aportar en este sentido.

DEL MEcAnIcISMo A LA ToTALIDAD oRGánIcA: APoRTAcIonES DESDE EL EcoFEMInISMo

A lo largo de la historia, se ha considerado que las mujeres están más próximas a la


naturaleza que los hombres. Esta supuesta proximidad ha servido para justificar la
infravaloración de las mujeres. En un primer artículo publicado en 1979, la antro-
póloga Sherry B. ortner (1979) sostiene que esta infravaloración la encontramos
en todas las culturas conocidas.10 ortner afirma, también, que básicamente todas

8
no obstante, tal y como nos señala Puleo (2011), esta idea mecanicista no fue unánimemente
aceptada. Los neoplatónicos de cambridge se opusieron a ella, defendiendo la visión renacentista del
cosmos unitario y habitado por el espíritu. Así, encontramos durante el siglo xVII diferentes intentos
de reencantamiento del mundo natural. Del mismo modo, en el siglo xVIII, la corriente naturalista —
o materialismo energetista— representada por Maupertuis, también se resistirá a la doctrina mecani-
cista. Diderot termina desarrollando este tipo de teoría, defendiendo la tesis de que la materia tiene
sensibilidad y apostando por la observación empírica como el método adecuado para comprender el
devenir de la naturaleza. Vemos, pues, que la cosmovisión mecanicista de la naturaleza desarrollada
en los siglos xVII y xVIII convive con la postura contraria que defiende la existencia de un principio
vital incluso en la materia aparentemente inanimada.
9
Sostengo la tesis de Puleo en cuanto a la utilización de la figura de la mujer natural. Según esta
autora, la figura de la ecologista natural tiene que cumplir tres condiciones: «que las mujeres con-
cretas que inspiran su imagen no queden ocultas y silenciadas; que sus buenas prácticas y sus buenas
causas no sean utilizadas para legitimar y reforzar subtextos de género opresivos; y que […] la ho-
nestidad dé cabida, junto al elogio de la excelencia, a las reivindicaciones de igualdad y libertad»
(Puleo, 2011: 341).
10
Posteriormente, estudios etnográficos y antropológicos han demostrado que esta universalidad
no es tal, pues el concepto de naturaleza ha ido variando a lo largo de la historia y existen algunas
348 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

las sociedades desvalorizan la naturaleza, concediéndole importancia a la cultura


como medio de control sobre el entorno natural. Los hombres tratan de imponer
la cultura como aquello que trasciende las condiciones naturales. La cultura, pues,
es superior a la naturaleza. y los varones se han identificado con ella, asociando a
las mujeres con la parte inferior del dualismo naturaleza/cultura.
Se puede apreciar que el pensamiento occidental es fuertemente dualista. En él
encontramos una serie de dualismos —cultura/naturaleza, mente/cuerpo, razón/emo-
ción, humano/animal, etc.— que están claramente jerarquizados, pues uno de los
elementos del par de opuestos se establece como superior al otro. Todos ellos se
relacionan con el dualismo hombre/mujer. La lógica de la dominación (Warren,
1990) justifica la sujeción de la parte considerada inferior sobre la base de que esta
parte carece de alguna característica relevante que posee el elemento superior. His-
tóricamente, los distintos componentes de los dualismos se han vinculado, de forma
que lo femenino se asocia a la naturaleza, al cuerpo, a las emociones, a la animalidad,
etc.; y lo masculino se asocia a la cultura, a la mente, a la razón, a lo propiamente
humano. Así, la lógica de la dominación permite justificar la subordinación y la in-
fravaloración de las mujeres y de todo lo asociado a ellas (naturaleza, animales, emo-
tividad, etc.).
La reflexión sobre el vínculo mujer/naturaleza ha hecho surgir el ecofeminismo.
Se trata de un pensamiento que integra las reivindicaciones de las mujeres con las
demandas ecologistas, partiendo de la relación que existe —tanto a nivel empírico,
simbólico, histórico, conceptual, epistemológico, ético y político (Puleo, 2004)—
entre el pensamiento feminista y el ecologista. Las aportaciones de las distintas te-
óricas ecofeministas pueden contribuir a la deconstrucción de los estereotipos de
género y a la transformación de los valores patriarcales vigentes.
En cuanto a nuestra visión sobre la naturaleza, nos ofrecen elementos impres-
cindibles a la hora de llevar a cabo una redefinición de los conceptos de «natura-
leza», «cultura» y «ser humano». En este sentido, la ecofeminista clásica Andrée
collard (1988) ha afirmado que las sociedades primitivas, matriarcales y sin jerar-
quías, se basaban en el respeto por todo lo viviente y en la interconexión. La natu-
raleza era concebida como algo sagrado. Por el contrario, en la Modernidad
occidental, la naturaleza se concibe solo en términos utilitarios. Los hombres se re-
lacionan con ella a través de la explotación, olvidando que están vinculados a todos

culturas etnológicas en las que se invierten los valores, de forma que los hombres se identifican con
la naturaleza salvaje considerada lo superior y la cultura es lo considerado femenino e inferior
(Strathern, 1980). En las sociedades totémicas, lo perecedero son los artefactos, mientras que lo eterno
y trascendente es la cadena genealógica (Puleo, 2000a). Por estos motivos, la hipótesis de ortner será
rechazada como errónea universalización etnocéntrica, con lo que, en 1996, reduce la universalidad
de su teoría, aunque se reafirma en sus líneas generales. A pesar de todo, y como afirma Puleo (2011),
la hipótesis de ortner puede aplicarse a la tradición occidental y a gran parte de la oriental.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 349

los demás seres y elementos naturales, y generando, así, la crisis ecológica. También
Vandana Shiva (1995), basándose en las tesis de Merchant, ha señalado los aspectos
negativos del paso de la concepción de la naturaleza como terra mater a su reduc-
ción a mera máquina de la que se extraen materias primas. Según Shiva, el dualismo
hombre/naturaleza y la visión cartesiana de esta última —según la cual la naturaleza
está separada del hombre, de forma que este puede someterla y dominarla, conci-
biéndola de manera mecanicista como un recurso explotable— ha dado origen a
un paradigma de desarrollo que, al mismo tiempo, perjudica a la naturaleza, a las
mujeres y a los pueblos colonizados. El mal desarrollo, que ve al varón colonizador
como el modelo del desarrollo, ha dado lugar a una ontología de la dominación
sobre la naturaleza y las personas y ha generado una nueva fuente de desigualdad
entre hombres y mujeres, pues se elimina la interdependencia y complementación
de los ámbitos de trabajo masculino y femenino que, según la autora, existe en las
sociedades de subsistencia.11
Encontramos este modelo del mal desarrollo en los tres films que estamos ana-
lizando. El varón colonizador impone sus ideas de progreso, ignorando los benefi-
cios que los modos de vida tradicionales tienen para el entorno natural. En
Ferngully, los personajes que manejan la máquina de talar árboles no tienen en
cuenta las repercusiones ambientales de la tarea que realizan. Solo les importan los
beneficios económicos que obtendrán de su labor. Los colonizadores que aparecen
en Pocahontas desprecian el modo de vida de los indios. La afirmación de John
Smith («Enseñaremos a tu gente a emplear esta tierra como Dios manda, a aprove-
charla al máximo […]. construiremos carreteras y casas decentes») demuestra que
el paradigma del mal desarrollo está arraigado en su mentalidad. Es más, está con-
vencido de que su actitud es la correcta, y que Pocahontas cree que sus casas están
bien porque no conoce la civilización. Desde su arrogancia, sostiene que tienen
mucho que enseñarles y que ya han mejorado la vida de otros salvajes por el mundo.
Esta misma actitud la encontramos en los colonos de Avatar. A los personajes que

11
Sin embargo, y a pesar de que puede afirmarse, como hace Shiva, que las sociedades tradicio-
nales tienen una concepción más respetuosa de la naturaleza y viven de una forma más sostenible que
las sociedades capitalistas, la supuesta igualdad de género de las sociedades tradicionales a la que se
refiere Shiva ha sido criticada y rechazada. Así, por ejemplo, Puleo considera que Shiva idealiza la
vida de las comunidades originarias, omitiendo toda crítica a las costumbres y prejuicios que en ellas
se mantienen, y condenando únicamente el patriarcado capitalista occidental. Para esta autora, esta
actitud puede tener eficacia estratégica alterglobalizadora, pero pierde legitimidad al aplicar la mirada
crítica de forma desigual. como afirma Puleo: «En general, las mujeres poco podemos rescatar a nues-
tro favor del pasado y de las tradiciones referentes a los roles e identidades de género» (Puleo, 2008:
45), por lo que será necesario criticar todas las costumbres basadas en prejuicios patriarcales, aunque
sean ecológicamente sostenibles. En este sentido, Martínez-Alier (2004: 268) señala que, a pesar de
que la producción campesina preserve la biodiversidad y sea respetuosa con el entorno, «las sociedades
campesinas son lastimosamente patriarcales».
350 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

están tratando de invadir el nuevo planeta solo les interesa llevar a cabo la extrac-
ción del valioso mineral. no les importa la destrucción del mundo natural ni la de-
saparición de la cultura y de la sociedad nativa. De hecho, no entienden cómo es
posible que los habitantes de Pandora no se hayan interesado por los adelantos tec-
nológicos ni por los productos culturales que les han ofrecido a cambio del mineral.
Sus modos de vida y sus prácticas ecológicamente sostenibles no se consideran ren-
tables y, por ello, se rechazan y minusvaloran. La naturaleza no importa más que
como recurso a disposición del hombre, que permitirá conseguir beneficios econó-
micos, incluso a costa de la estabilidad social y ambiental.
Desde el ecofeminismo deconstructivo de Val Plumwood (1991) se resalta la ne-
cesidad de redefinir el yo propio del racionalismo y del instrumentalismo, desta-
cando tanto nuestras diferencias con el resto de la naturaleza como nuestra
continuidad e interrelación. Así, se logra una concepción del yo en relación con los
otros distintos. Karen Warren también defiende la necesidad de aceptar nuestra
interconexión con el mundo natural no humano. Señala que es necesario cambiar
nuestra actitud con la naturaleza, pasando de la percepción arrogante —que pre-
supone una identidad entre todos los humanos, de forma que solo podrán perte-
necer a la comunidad moral aquellos que sean iguales o similares a ellos— a la
percepción afectiva del mundo no humano. La percepción afectiva se basa en un
reconocimiento tanto de las similitudes como de las diferencias entre lo humano y
lo no humano, y apuesta por valorar al otro tal y como es.
El ecofeminismo, como vemos, nos ofrece distintas teorías que, a pesar de sus
diferencias, pueden contribuir al establecimiento de la justicia ambiental. Ivone
Gebara (2000), por su parte, propone una teología ecofeminista que vea el conjunto
de la naturaleza como un Todo interrelacionado. y Puleo (2011), desde su ecofe-
minismo crítico, apuesta por un cambio desde el antropocentrismo extremo al an-
tropocentrismo moderado, para reconocer la importancia de todos los seres vivos.
La ética antropocéntrica moderada en la que se apoya incorpora los sentimientos
empáticos y compasivos sin rechazar el lenguaje de los derechos. Igualmente, acepta
la necesidad de concebir los sistemas naturales de forma holista, basándose en los
conocimientos científicos de la ecología, y de aceptar como relevante tanto la cos-
movisión de otras culturas como la experiencia emocional ecocéntrica, ya que apor-
tan nuevas ideas sobre la conceptualización del mundo.
Las diferentes autoras ecofeministas coinciden en afirmar que es necesario trans-
formar nuestra visión de la naturaleza para establecer una relación respetuosa que
no se base en la dominación. Las aportaciones del ecofeminismo resultan impres-
cindibles para la construcción de una sociedad ecológica e igualitaria, pues permiten
la redefinición de nuestra relación con el mundo no humano, así como de las rela-
ciones entre los sexos.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 351

LoS VALoRES DEL cUIDADo coMo SUPERAcIón DE LA VIoLEncIA, LA DoMInAcIón y


EL MIEDo AL oTRo

nuestras tres heroínas forman parte de sociedades que los colonizadores consideran
extrañas. Estas comunidades son vistas como el otro al que se teme y al que se pre-
tende someter. Para justificar la dominación del otro, se recurre a la animalización
y bestialización de sus características. Este recurso a la bestialización de las socie-
dades extrañas ha sido empleado frecuentemente. Algunos autores han afirmado
que se debe a la desvalorización previa de los animales no humanos, que se ha tras-
ladado, posteriormente, a determinados grupos humanos.12 Así, charles Patterson
(2008: 53) afirma que «la gran divisoria entre humanos y animales propició la apa-
rición de una norma con la que juzgar a las demás personas, tanto dentro del ámbito
cultural propio como en sociedades extrañas». Por su parte, Armelle Le Bras-cho-
pard (2003) sostiene que, desde los inicios de la humanidad, el hombre ha intentado
situarse en la cima de todo lo existente. Para ello, ha degradado la imagen de los
animales, considerándolos inferiores. Esta desvalorización de los animales ha con-
tribuido a la animalización del otro humano. El asociar al oprimido con caracte-
rísticas bestiales y demoníacas permite la justificación de la discriminación y la
explotación, pues su peligrosidad legitima la dominación (Puleo, 2011). Este pro-
ceso constituye la base sobre la que se asienta el colonialismo, el sexismo y el an-
tropocentrismo extremo. Las características del otro se ontologizan y se convierten
en prueba de la inferioridad y la peligrosidad, legitimando, así, el sometimiento.
observamos cómo el odio y el miedo al otro desembocan en la legitimación de
la violencia como único método para solucionar los problemas. También el ecofe-
minismo aporta elementos interesantes en relación al tema de la violencia. La ecofe-
minista pacifista Petra Kelly (1992) sostiene que, en la resolución de los conflictos,
el uso de la violencia imposibilita la reconciliación. Lo que se consigue, por el con-
trario, es someter al adversario. La violencia, pues, no es emancipatoria, sino que es
autoritaria. Esta autora ha afirmado (1997: 29) que «hay una relación clara y pro-
funda entre militarismo, degradación ambiental y sexismo». Por este motivo, pode-
mos entender que nuestros esfuerzos por alcanzar la igualdad de género, el respeto
por la naturaleza, la justicia y la paz, deben centrarse en superar la lógica de la do-
minación que subyace tanto a la dominación de la naturaleza como a la dominación
de las personas en virtud del género, la raza, la clase o la orientación sexual.

12
Lévi-Strauss (1973), citado en Le Bras-chopard (2003: 224), sostiene que «el hombre occidental
nunca ha comprendido mejor que en los últimos cuatro siglos de su historia que al arrogarse el derecho
de separar radicalmente la humanidad de la animalidad, al dar a uno todo lo que retiraba al otro,
abría un círculo maldito, y que esa frontera, en continuo retroceso, servía para separar a unos hombres
de otros».
352 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

Las ecofeministas clásicas aceptan el dualismo generizado naturaleza/cultura, y


celebran la conexión de la mujer con la naturaleza. Según estas pensadoras, la mujer
se identifica con el mundo natural y el hombre con la cultura. Sin embargo, en estas
reflexiones se invierten los valores y se afirma la superioridad de la naturaleza. La
esencia femenina se asocia con Eros, mientras que la masculina es identificada con
Tánatos. Apuestan, pues, por recuperar los valores femeninos que promueven la
paz y el respeto por las personas y la naturaleza. Este esencialismo ha sido rechazado
por el resto de las corrientes del ecofeminismo, que consideran que, a pesar de que
existan diferencias entre los valores asociados a varones y a mujeres, estas distin-
ciones se deben a factores socioculturales e históricos y no a esencias inmutables
biológicas. Las mujeres, debido a las labores que han realizado a lo largo de la his-
toria, han desarrollado una conciencia específica tanto en su relación con la natu-
raleza como con las personas (Salleh, 1994; Mellor, 1997). Así, carol Gilligan (1985)
afirma que las mujeres hablan con otra voz, con una voz diferente a la de los hom-
bres, pues se enfrentan a los dilemas morales de una forma distinta, privilegiando
las relaciones interpersonales, la empatía y el cuidado por los otros.
¿Encontramos esto en nuestros tres largometrajes? Es decir, ¿apreciamos una
actitud femenina característica, de atención y protección por los demás? nuestras
heroínas hablan desde la empatía y desde su experiencia personal.13 Enseñan a su
compañero a descubrir en la naturaleza un valor que va más allá del cálculo racional
y económico. En Ferngully, crysta consigue que Zak sienta el dolor de los árboles.
Este comprende, por fin, el daño que los humanos causan a la naturaleza con sus
actitudes de conquista y explotación extrema. Pocahontas, por su parte, muestra a
Smith el valor intrínseco de todos los elementos naturales. él descubre, gracias a
ella, la riqueza de la naturaleza como algo de lo que formamos parte, que nos ofrece
alimento, descanso y belleza. y en Avatar, neytiri guía a Jake en el aprendizaje de
todos los secretos de la naturaleza, haciendo que él se acerque al mundo vivo desde
el amor y el respeto, aceptando la interconexión de todos los elementos naturales.
Ellas logran un cambio en la actitud de sus compañeros. Les enseñan las virtudes
del cuidado. Les muestran las ventajas de actuar desde el amor y la empatía. com-

13
Warren (1997) considera que la narrativa en primera persona es un elemento imprescindible
tanto para el feminismo como para la ética medioambiental, por varias razones. Primeramente, esta
narrativa suple las carencias del discurso ético analítico tradicional, incluyendo una sensibilidad que
permite concebirse como un ser interconectado con los otros, entre los que se incluye a los no huma-
nos. En segundo lugar, muestra determinadas actitudes, como la actitud del cuidado, que no se han
tenido en cuenta en la ética occidental predominante, y las antepone a los comportamientos de con-
quista. En tercer lugar, posibilita que la ética surja de las situaciones particulares de los agentes mo-
rales. y, finalmente, la narrativa en primera persona es importante por su relevancia argumentativa,
pues sugiere que aquello que se cuenta es importante para la situación ética.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 353

parten con ellos su experiencia personal de afecto por todo lo que les rodea. Se
convierten en el factor del cambio. Son el elemento fundamental en la transforma-
ción de la percepción arrogante de sus compañeros varones, que terminan adop-
tando la percepción afectiva del mundo no humano.
Las características que tradicionalmente se han asociado a los varones han sido
aceptadas por las mujeres como necesarias para el ámbito del trabajo, la cultura y
la política. Por el contrario, las características femeninas han sido asumidas por los
hombres en mucha menor medida. como afirma Puleo (2011: 423):

Las conductas y habilidades de los hombres se presentan como simplemente neutras,


como atributos eminentemente humanos. Por ello, su adopción por parte de las mujeres
toma la forma de conquista de un estatus que nos había sido injustamente negado. La
devaluación de las actitudes y las habilidades asociadas a las mujeres, vividas y concebi-
das como lo particular, contingente y finito frente a lo universal, necesario y eterno, blo-
quea la salida de una situación de desigualdad en roles asimétricos.

Las virtudes del cuidado, que históricamente han estado atribuidas a las mujeres,
tienen que convertirse en valores universalizables. Para ello, como mantiene Puleo,
será necesario predicarlas especialmente a los varones, para no reforzar los hábitos
de sacrificio femeninos. Desde el ecofeminismo crítico se ha defendido también la
necesidad de ampliar los valores empáticos al mundo no humano. Entendemos,
pues, la importancia de la creación de personajes femeninos protagonistas que en-
señen a los varones a asumir como propias las labores del cuidado, responsabili-
zándose tanto de los humanos como de la naturaleza.

EL AMoR RoMánTIco En LA VIDA DE LAS MUJERES: HAcIA UnA RELAcIón AMoRoSA


EnRIqUEcEDoRA

En numerosas producciones culturales, ya sean literarias, cinematográficas o de


otro tipo, se ha impuesto el mito del amor romántico como la mayor realización a
la que las mujeres pueden aspirar. Muchos personajes femeninos han hecho girar
toda su existencia en torno a la vida del héroe, anteponiendo su amor por él a cual-
quier proyecto propio. Es inevitable acercarnos brevemente al tema del amor si te-
nemos en cuenta la relación que establecen nuestras heroínas con sus compañeros
masculinos. En las tres películas se desarrolla, en mayor o menor medida, una his-
toria amorosa que influye en el desarrollo de la trama. Ferngully es, posiblemente,
el film en el que menos relevancia tiene el tema del amor romántico. A pesar de
que sea evidente el cariño que une a ambos personajes, crysta no aspira a llenar su
existencia a través de un hombre. Aunque Zak intente besarla, ella se relaciona con
354 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

él únicamente desde la amistad y el afecto y se separa de él cuando han conseguido


salvar el bosque. En Pocahontas encontramos una historia de amor profundo.
Ambos personajes desafían las normas establecidas para lograr estar juntos. no
obstante, a pesar de que Pocahontas luche firmemente por su amado, es capaz de
decidir por sí misma. Así, escoge su propio camino, rechazando irse con Smith a
Londres. Se queda en su tierra, con su gente y con su propio proyecto de vida. En
el caso de Avatar, también la historia de amor es fundamental en la sucesión de los
acontecimientos de la trama. Jake y neytiri se enamoran y acaban uniéndose. Sin
embargo, en contra de lo que sucede en muchas otras películas, en las que la prin-
cesa abandona su vida para trasladarse al mundo de su príncipe, en este caso es
Jake el que se instala en la tribu de su compañera. Visto esto, cabe preguntarse si
debemos rechazar el amor romántico como un producto del patriarcado que favo-
rece la subordinación de las mujeres o si, por el contrario, podemos encontrar en
él elementos enriquecedores para la vida de ambos miembros de la pareja.
Shulamith Firestone (1976) ha llevado a cabo un análisis detallado del amor ro-
mántico que se desarrolla en lo que ella considera la sociedad de clases sexuales
(las mujeres, según esta autora, son una clase biológica, condicionada por su servi-
dumbre reproductiva). Toma sus referentes conceptuales de la tradición marxista
y la freudo-marxista, por un lado, y de Simone de Beauvoir, por otro (Amorós,
2010). Así, lleva a cabo una redefinición del materialismo histórico, afirmando que
el dualismo de clases biológicas sexuales es el que condiciona la dinámica de las
clases sociales y de las relaciones de producción.14 Por ello, la crítica de este dua-
lismo implicará, en la medida en que va a la raíz, un cuestionamiento de toda la or-
ganización cultural y de las relaciones de la cultura con la naturaleza.
Firestone afirma que el amor es la entrega o la rendición al dominio del otro.
Es la cima del egoísmo pues el yo intenta enriquecerse absorbiendo al otro ser.
cuando se ama, el individuo se encuentra en una situación de vulnerabilidad emo-
cional absoluta, ya que amar implica estar físicamente abierto del todo al otro. no
obstante, el amor no debe limitarse a la incorporación del otro, sino que debe ba-
sarse en un intercambio de yos. Es necesario que exista este intercambio mutuo,
pues, de lo contrario, una de las partes saldrá herida. A pesar de que considera
que el amor es la cima del egoísmo, no ve en esto elementos intrínsecamente des-
tructivos, pues considera positivo un poco de egoísmo saludable. Si el amor se da
entre dos iguales, ambos se enriquecen y cada uno crece a través del otro. El amor
supone una participación en la existencia del amante, abriendo la propia expe-
riencia y las perspectivas particulares. ya que el amor exige una vulnerabilidad
mutua, se volverá destructivo si no se desarrolla en un contexto de igualdad. Por
lo tanto, Firestone señala que, dada la desigualdad existente entre hombres y mu-

14
En este sentido hablará de «superestructura económica».
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 355

jeres, el amor entre los sexos se caracteriza por la corrupción que presenta el amor
romántico.
no sostengo que las relaciones amorosas de nuestras heroínas con sus compa-
ñeros se desarrollen en circunstancias de igualdad. Es evidente que seguimos mo-
viéndonos en contextos patriarcales. Sin embargo, su historia de amor no se
convierte en el centro de su existencia. Ellas se enamoran pero mantienen un obje-
tivo trascendente que las define. Su voluntad no se reduce a ser amadas. Es más,
son un elemento decisivo para el cambio en la concepción del mundo del amado.
Encontramos un amor en el que ellas no quedan en una situación de alienación,
sino que les permite conseguir el resto de sus objetivos. De hecho, representan el
modelo activo del que ellos aprenden.
Según la interpretación de Firestone, el amor solo adquiere connotaciones ne-
gativas en el contexto de desigualdad de poder entre los sexos. El amor no corrom-
pido enriquece a ambas partes. Se trata, entonces, de buscar relaciones que nos
potencien, de buscar un amor que, como señala Platón en El Banquete, nos eleve
hacia el Bien y nos impulse a buscar la belleza, la sabiduría y la felicidad. Si aten-
demos a estas observaciones, podemos ver a nuestras heroínas como modelos po-
pulares de un amor que no se reduce a la dependencia y a la atención del ser amado.
Ellas cuidan su relación pero no se limitan exclusivamente a ello. Aunque estas his-
torias respetan el tradicional protagonismo masculino, invierten en algún momento
los consabidos roles de género. Los relatos en que el príncipe mata a la bestia para
salvar a la princesa son sustituidos por un desarrollo de la acción en que la bestia
es buena y lucha junto con los protagonistas. Finalmente la heroína salva la vida
del héroe en su enfrentamiento con la máquina que es el verdadero monstruo. Apa-
recen en ellas mujeres con poder sacerdotal, otras que participan en los enfrenta-
mientos bélicos, también incluyen científicas y la heroína tiene conocimientos
tradicionales de la naturaleza. Son obras que no limitan a las mujeres a las tareas
del cuidado, sino que las presentan enseñando la actitud del cuidado a varones que
no la practicaban. Muestran heroínas de firmes convicciones ecológicas capaces de
llevar adelante la defensa activa de la naturaleza. El profundo amor que suscitan
no se debe solo a su belleza ni surge de la atracción por la pasividad, sino a su per-
sonalidad decidida y su pasión por una causa.

RESUMEn y concLUSIonES: TRAnSGREDIEnDo EL SISTEMA DE SExo-GénERo, EDU-


cAnDo En VALoRES IGUALITARIoS y EcoLóGIcoS

Hemos visto ya que, con la Modernidad, la razón instrumental se enfoca al dominio


de la naturaleza, la cual deja de percibirse como terra mater —totalidad orgánica
femenina— y pasa a entenderse como materia prima inerte y pasiva. Este cambio
356 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

de concepción abrió paso a la explotación medioambiental sin límites, que nos ha


llevado a la situación de crisis ecológica actual. Históricamente, la mujer ha estado
vinculada a la naturaleza en la tradición occidental, a diferencia de lo que ha suce-
dido con el hombre, asociado a la cultura como elemento superior del dualismo
naturaleza/cultura. Apartándose del esencialismo, mi trabajo se ha propuesto re-
cuperar varios personajes del imaginario actual que representan la figura de la mujer
natural, la cual puede aportar elementos positivos para lograr una reconciliación
con el mundo no humano y el establecimiento de una sociedad basada en valores
igualitarios y ecológicos.
no pretendo defender que estas ficciones cinematográficas sean un ejemplo en
materia de igualdad. Soy consciente de que, en gran medida, siguen actuando como
discursos legitimadores de género. Las comunidades nativas a las que pertenecen
nuestras heroínas son fuertemente patriarcales. Los puestos clave de poder están
en manos de los hombres. La violencia se muestra como la forma idónea de reso-
lución de conflictos. y, a pesar del papel fundamental que desempeñan ellas en
toda la trama, el protagonismo tiende a ser acaparado por el héroe varón. Sin em-
bargo, he pretendido resaltar las ventajas de la aparición en escena de estos perso-
najes femeninos con un papel principal activo en la defensa de unos valores
imprescindibles en la actualidad: se esfuerzan por mantener la armonía de la natu-
raleza, tienen una mirada holística, entienden la necesidad de proteger los vínculos
que nos unen con el mundo natural y se relacionan con los animales no humanos
desde el reconocimiento y el respeto. Igualmente, la existencia de estas heroínas
ecológicas contribuye a visibilizar a las mujeres como factores del cambio. cada
una de ellas se convierte en la nueva Ariadna que trabaja, junto a su compañero,
por la justicia social y ambiental. Su forma de relacionarse con su pareja permite,
asimismo, vislumbrar la posibilidad de la creación de nuevas concepciones del amor
que se basen en el enriquecimiento mutuo y no en la alienación.
Los tres largometrajes representan el enfrentamiento entre las máquinas y los
individuos concretos. La tecnología de los colonizadores trata de imponerse sobre
los propios cuerpos de los colonizados. Encontramos, pues, la lucha de lo mecá-
nico frente a lo orgánico. Resulta interesante que aparezca en las producciones ci-
nematográficas el protagonismo de la naturaleza como sujeto. Los animales no
humanos son parte activa en los tres casos y están estrechamente vinculados a nues-
tras heroínas. Les ofrecen apoyo, amistad y cariño. De este modo, cambia la con-
cepción de los animales como meros medios para la satisfacción de los fines
humanos y se posibilita la ampliación de la comunidad moral más allá de los límites
de nuestra especie.
nos encontramos en un momento en el que la reflexión sobre nuestra actitud
con el mundo natural no humano es algo ineludible. Tenemos que replantearnos,
pues, nuestra forma de estar en el mundo. Por otro lado, no debemos permitir que
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 357

la desigualdad entre los sexos continúe perpetuándose a través de discursos más o


menos encubiertos. Es imprescindible que descubramos los elementos que posibi-
litan el mantenimiento de la sociedad capitalista patriarcal, que nos está llevando a
una situación ecológica y social insostenible. Hemos de trabajar desde todos los
ámbitos de la sociedad, incluyendo las producciones culturales. La creación de un
imaginario en el que adquieran relevancia los personajes comprometidos con la de-
fensa de la naturaleza, con los valores del cuidado y con la igualdad de género se
muestra, pues, como una labor indispensable. Educando en valores ecofeministas
podremos mantener la esperanza de construir un mundo justo, en el que el respeto
por las personas abarque también al resto de la naturaleza, a las generaciones futuras
y a nuestros compañeros no humanos.

REFEREncIAS BIBLIoGRáFIcAS

AMoRóS, celia (2010): «“La dialéctica del sexo” de Shulamith Firestone: modula-
ciones feministas del freudo-marxismo», en Amorós, celia, de Miguel, Ana (eds.):
Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización. Vol. 2. Del feminismo liberal
a la posmodernidad, Madrid, Minerva Ediciones, pp. 69-105.
coLLARD, Andreé y conTRUccI, Joyce (1988): Rape of the wild, Great Britain, The
Women’s Press.
FIRESTonE, Shulamith (1976): Dialéctica del sexo, trad. de Ramón Ribé, Barcelona,
Kairós.
GEBARA, Ivone (2000): Intuiciones ecofeministas. Ensayo para repensar el
conocimiento y la religión, trad. Graciela Pujol, Madrid, Trotta.
GILLIGAn, carol (1985): La moral y la teoría. Psicología del desarrollo femenino,
trad. Juan José Utrilla, México, Fondo de cultura Económica.
HARDInG, Sandra (1996): ciencia y feminismo, trad. Pablo Manzano, Madrid,
Morata.
HoRKHEIMER, Max y ADoRno, Theodor (1998): Dialéctica de la Ilustración. Frag-
mentos filosóficos, trad. de Juan José Sánchez, Madrid, Trotta.
KELLy, Petra (1992): «Llevar el derecho a las naciones», en Kelly, Petra: Pensar con
el corazón. Textos para una política sincera, Trad. Joan Parra contreras, Barce-
lona, círculo de Lectores, pp. 263-271.
— (1997): Por un futuro alternativo, trad. Agustín López y María Tabuyo,
Barcelona, Paidós.
LE BRAS-cHoPARD, Armelle (2003): El Zoo de los filósofos. De la bestialización a
la exclusión, traducción de María cordón, Madrid, Editorial Santillana.
MARTínEZ-ALIER, Joan (2004): El ecologismo de los pobres. conflictos ambientales
y lenguajes de valoración, Barcelona, Icaria.
358 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR

MELLoR, Mary (1997): «Un socialismo verde y feminista: la teoría y la práctica»,


Ecología Política, nº 14, cuadernos de Debate Internacional, Barcelona, Icaria,
pp. 11-22.
MERcHAnT, carolyn (1981): The Death of nature: Woman, Ecology, and the
Scientific Revolution, San Francisco, Harper and Row.
oRTnER, Sherry B. (1979): «¿Es la mujer con respecto al hombre lo que la naturaleza
con respecto a la cultura?», en Harris, o. y young, K. (1979): Antropología y
feminismo, Barcelona, Anagrama, pp. 109-131.
PATTERSon, charles (2008): ¿Por qué maltratamos tanto a los animales? Un modelo
para la masacre de personas en los campos de exterminio nazis, traducción de
Ramón Sala, Lleida, Editorial Milenio.
PLUMWooD, Val (1997): «naturaleza, yo y género: Feminismo, Filosofía
medioambiental y crítica del racionalismo», en Agra, María xosé (comp.): Ecología
y feminismo, trad. carme Adán Villamartín, Granada, Ed. comares, pp. 227-259.
PULEo, Alicia (2000a): «Ecofeminismo: hacia una redefinición filosófico-política
de «naturaleza» y «ser humano»», en Amorós, celia (ed.): Filosofía y feminismo,
Madrid, Ed. Síntesis, pp. 165-190.
— (2000b): Filosofía, género y pensamiento crítico, Valladolid, Servicio de
publicaciones de la Universidad de Valladolid.
— (2004): «Luces y sombras de la teoría y la praxis ecofeministas», en cavana,
María Luisa, Puleo, Alicia, Segura, cristina (coords.): Mujeres, ecología, sociedad,
Madrid, Ed. Almudayna, pp. 21-34.
— (2008): «Libertad, igualdad, sostenibilidad. Por un ecofeminismo ilustrado», en
Isegoría. Revista de Filosofía Moral y Política, Madrid, consejo Superior de In-
vestigaciones científicas, n° 38, pp. 39-59.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, cátedra, Madrid.
SALLEH, Ariel (1994): «naturaleza, mujer, trabajo, capital: la más profunda
contradicción», Ecología Política, nº 7, cuadernos de Debate Internacional,
Barcelona, Icaria, pp. 35-47.
SHIVA, Vandana (1995): Abrazar la vida. Mujer, ecología y desarrollo, trad. Instituto
del Tercer Mundo de Montevideo (Uruguay), cuadernos inacabados 18, Madrid,
Ed. horas y Horas (ed. original 1988).
STRATHERn, Marilyn (ed.) (1980): nature, culture and Gender, new york,
cambridge University Press.
WARREn, Karen (1997): «El poder y la promesa de un Feminismo ecológico», en
Agra, María xosé (comp.): Ecología y feminismo, trad. carme Adán Villamartín,
Granada, Ed. comares, pp. 117-146.
21. Del patriarcado como sistema alquímico a
la alternativa: el imaginario del don
Kaarina KAILO
University of Oulu

E
l lema dominante hoy en día en los regímenes neoliberales es TINA: «There
is no alternative».1 El objetivo de mi trabajo es combatir esta nueva forma
de dogma monoteísta motivado por intereses económicos. Planteo el imagi-
nario del don y otras formas de resistir a TINA como alternativas formuladas teórica
y empíricamente ante el culto neoliberal corriente al Becerro de Oro. Considero el
imaginario del don como una matriz psico-espiritual de valores internalizados del
don, maneras de relacionarse con el mundo y formas de ser y vivir sostenibles eco-
socialmente. Como noción filosófica enraizada en mi reinterpretación feminista de
los «imaginarios» masculinizados teorizados por Jacques Lacan y otros académicos
patriarcales (p. e. Althusser, 1971), entiendo este concepto y las acciones-valores a
los que conduce como otro paso inherente al Decrecimiento (no necesariamente
para los que ya viven con sus principios). En tanto otra brújula de «realidad», mi
concepto desafía el centro psico-social y subliminal de la mentalidad hegemónica
en el mundo que es el imaginario del Dominio con su énfasis en el consumo y la
competitividad en vez de una identidad ecológica y orientada hacia lo vivo. «Ima-
ginario» es un término que algunos teóricos, desde las ciencias sociales a la literatura
y las ciencias de la educación, han tomado de Lacan. Entre los diferentes usos del
término, Louis Althusser define la ideología como «la relación imaginaria de los in-
dividuos con sus condiciones reales de existencia» (1971: 52). Sostiene que el ima-
ginario es aquella imagen o representación de la realidad que enmascara las
condiciones históricas y materiales de la vida. Para mí, «el imaginario» condensa
precisamente todos los símbolos, rituales, políticas institucionales y valores cultu-

1
No hay alternativa. Este acrónimo era usado por la primera ministra conservadora británica Mar-
garet Thatcher para sostener su política de privatizaciones, libre mercado y capitalismo globalizado.
N.d.T.
360 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

ralmente significativos, las imágenes de la colonización mental y los guiones de gé-


nero públicos, tanto si son producidos deliberadamente como inconscientemente.
Mi punto de partida filosófico es que no podemos evitar el «suicidio generali-
zado» ecosocial de la humanidad androcéntrica que se vislumbra en el horizonte a
menos que combinemos políticas científicas y culturales activas con una eco-mito-
logía feminista como condición de la extensión del don (Kailo, 2008). Este tipo de
mitología se halla fundado en las culturas matriarcales pero puede ser creado en
cualquier parte como conjunto alternativo de narrativas que enseñan e internalizan
maneras de vivir para un futuro sostenible. Las historias no son simples historias,
como bien saben y explican los pueblos indígenas. Contienen sabiduría, conoci-
miento empírico y tradicional de un pueblo particular y son medios de transmitirlas
intergeneracionalmente. Transformar la fálica y ecocida economía actual también
implica la necesidad de crear y aplicar una teoría de cómo y por qué la mente mo-
derna subliminal colonizada se adhiere cada vez con más fuerza al ethos autodes-
tructivo del fascismo occidental, crecientemente globalizado. ¿Los hombres y
mujeres que ahora experimentan la disminución y pérdida de sus posibilidades de
poseer alguna vez el mítico Falo están entrando ciegamente en la compulsión repe-
titiva de la Historia, en una reestructuración modificada de los derechos básicos y
de lo que nos hace humanos al estilo nazi? Afirma Stephan Ducat:

Mientras que todos los machos anatómicamente intactos tienen un pene, nadie tiene un
falo —el mítico, el permanentemente erecto monolito arquetípico de la omnipotencia
masculina que significa crecer sin impedimento, la invulnerabilidad y la libertad con
respecto a cualquier dependencia. El que parece poseer el falo es visto como alguien a
quien no le falta nada ni nadie. Parece manejar un talismán que protege contra todo pe-
ligro femenino, en especial contra el que se cierne desde dentro. (Ducat 2004, 2)

A partir de esta cita de Ducat, reinterpretaré el Falo como un símbolo sobrede-


terminado del éxito y del desarrollo personal y colectivo hacia cierto atractivo Ideal
Futuro. Es, también, por supuesto, la pista falsa dominante ofrecida a los ciudadanos
que quieren cambiar pero que no comprenden de quién son los intereses que se van
a «desarrollar». El Falo como Amo es la imagen conjunta de la Torre de Babel y la
competición por erigir rascacielos cada vez más altos y controlar los recursos del
mundo cuando estos están disminuyendo rápidamente. Es el permanente movi-
miento hacia el Dios celestial en su forma moderna que se realiza a través de la si-
multánea destrucción de «lo opuesto al cielo» —la madre tierra y la realidad lunar—.
El Falo como fuente del modelo imaginario es un caleidoscopio de significados pro-
vocados por lo que podemos considerar la envidia no reconocida de algunos hom-
bres hacia el útero (Ducat, 2014). Puede también estar formado por otras complejas
raíces psico-sociales que llevan a los hombres y a algunas mujeres hacia actitudes de
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 361

riesgo para convertirse en el «número uno», «el primer espada». En lo que concierne
a la protección contra el «peligro femenino», incluyendo la Naturaleza, multitud de
teorías tratan de encontrar sus raíces en las aportaciones de los estudios críticos de
la masculinidad y el género. El «peligro» puede ser interpretado como la revelación
sobre la realidad de una larga era de historia femenina y de modos de vida matriar-
cales que desafían la naturalización del «patriarcado universal». Psicológicamente,
el peligro puede ser también la irrupción de la vergüenza y la culpa asociados a la
violencia sistémica, feminicida (e interseccionalmente étnica y clasista) que ha co-
nocido alternativas y puede, por lo tanto, ser transformada. Las profundas raíces
psico-sociopolíticas, económicas y sexuales del imaginario del Amo incluyen los pro-
cesos del patriarcado capitalista «alquímico» (Von Werlhof, 2001, 2013) que lo fer-
tiliza y apoya psíquica, lingüística y semióticamente, así como de otros modos que
tenemos que comprender mejor. De ahí las palabras clave de mi título.

EL SUSTRATO Y EL CENTRO DEL ENFOQUE

Las ecofeministas están en lo cierto al considerar que puede que nos dirijamos hacia
una hipnosis colectiva, hacia la eterna búsqueda de chivos expiatorios útiles a la
élite financiera. Después de todo, rara vez son los dueños del Falo (FMI, UE, Banco
Mundial, Banco Central Europeo y los Estados nación) quienes son culpados y vi-
tuperados por los jóvenes furiosos. Es en los seres más vulnerables, en los animales,
por ejemplo en los perros, en las mujeres y en los inmigrantes en quienes los grupos
neoconservadores y fascistas descargan su ira. En Irlanda, 8 000 perros fueron ma-
sacrados tras el empobrecimiento de la gente con la crisis de los préstamos subprime
y la pérdida de puestos de trabajo. En Grecia, numerosos hombres airados se des-
fogan con los perros, torturándolos y linchándolos.
En estas líneas, me centraré en la tensión entre los imaginarios del don y del
amo como sutiles estructuras profundas de género y de culturas específicas que
hoy crean «guerras» epistémico-económicas. Tales imaginarios son la lente a tra-
vés de la cual la vida es percibida y experimentada afectivamente, y son parte de
las relaciones de poder asimétricas junto con el último ab/usar y des/conocer el
sustrato anterior de la ética y economía doméstica del cuidado. Este es un ámbito
de vida no monetarizada sobre el que descansa la economía de mercado. El pa-
triarcado capitalista no prosperaría sin los dones gratuitos que crean el valor aña-
dido que beneficia a la élite. El amplio abanico del don va desde lo que la
naturaleza da libremente hasta el don forzado que personas responsables del cui-
dado en ámbitos claramente feminizados proporcionan a la vida pública. Teorizo
sobre este imaginario con el fin de llamar la atención sobre el hecho de que el
cambio en la superestructura política de las sociedades y en los regímenes de
362 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

poder no es suficiente; el cambio tiene que darse en un nivel más profundo psico-
espiritual y perceptivo.

EL PATRIARCADO COMO UN SISTEMA ALQUÍMICO

Mis «imaginarios» heurísticamente dualistas encuentran apoyo teórico en numero-


sos resultados de la investigación realizada por los miembros de la Red de Investi-
gación Feminista por una Economía del Don a la que he pertenecido desde el año
2001. Recurriré aquí a los escritos de Claudia von Werlhof con su profundo análisis
de cómo los aparentemente diferentes reinos que van desde la Iglesia a la economía
patriarcal comparten un núcleo no reconocido de «creencias alquímicas» —de es-
fuerzos por reemplazar la biología, la naturaleza y el poder de dar a luz de las mu-
jeres con sus sustitutos mecánicos, por ejemplo, la tecnología reproductiva.
Preguntarse por qué las enfermeras están siendo reemplazadas por robots y cómo
es posible que Monsanto esté considerando la posibilidad de patentar leche en
polvo para bebés, o por qué los médicos han comenzado a afirmar que las mujeres
no necesitan su menstruación implica una contribución real a nuestra comprensión.
Von Werlhof ha elaborado una importante interpretación que relaciona el patriar-
cado con la alquimia, señalando que encontró «la llave» (la llave es el principal sím-
bolo de la alquimia) no solo para entender la historia y las versiones concretas del
patriarcado, sino también «las formas de comportamiento patriarcal, de política
patriarcal concreta hacia la gente, las mujeres, la naturaleza, la sociedad y el mundo
en general» (Werlhof, 2001, 4). Considera la alquimia como «el método» del pa-
triarcado por el cual los políticos, los tecnócratas, los científicos y los experimenta-
dores tratan de transformar el mundo no solo en un mundo moderno, sino también
en uno patriarcal. Puesto que la forma en que el patriarcado capitalista se ha desa-
rrollado solo puede sobrevivir si la gente pone toda su fe en ella, la pregunta es
cómo librarnos de esta creencia desacertada y autodestructiva (Werlhof, 2001: 3).
Von Werlhof plantea que:

... [la] creación a través de la destrucción es el poco apropiado nombre capitalista pa-
triarcal para «el desarrollo del subdesarrollo». Nos hacen creer que el mundo mejora
para el desarrollo de la «sobreexplotada» Asia, África y otros continentes no superindus-
triales una vez que adoptan el dogma del misionero económico neoliberal (2013, 17).

Por razones de espacio no puedo exponer aquí la convincente forma en que Von
Wehrlhof relaciona los esfuerzos por convertir «alquímicamente» a la Naturaleza y
a las mujeres en «el oro» o la piedra filosofal pero recojo algunas de sus observa-
ciones clave:
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 363

... la alquimia del patriarcado, sobre todo en la mezcla de cristianismo y capitalismo, ha


transformado el mundo entero, invirtiéndolo todo. Después de todo, poseyó la fe cris-
tiana «pura» y el cálculo económico frío «puro» —Dios y Dinero— como «sustancias»
«puras», abstractas, ambas originariamente separadas (como aún las presentan hoy en
día). Y luego fueron reunidas en un matrimonio profano construido sobre el declive de
la naturaleza y de la cultura femenina: transformadas en «capital» —dinero, orden, ma-
quinaria— como la prueba de la existencia de Dios. El otro resultado de esta mezcla no
es, sin embargo, el noble y Civilizado Hombre y el Paraíso en la Tierra: al contrario, el
resultado más bien se parece a algo así como el infierno en una tierra que sirve de casa
al doctor Jekyll y Mister Hyde. El mal, el diablo, el pecado, «la escasez», todas esas cosas
de las que la religión afirma liberarnos, y que la economía dice mejorar, realmente son
producidas por ellas y, luego, sistemáticamente expandidas al mundo entero. La alquimia
no ha generado ni graciosos homúnculos ni oro (2001: 8).

A pesar de mucha «ayuda benéfica» proporcionada en el espíritu de la verdadera


Economía del Don, la importación de la política patriarcal como «talismán contra
el orden femenino» (sin embargo, inconsciente) ha privado de hecho a las víctimas
de las políticas de ayuda de su autodeterminación cultural y ecológica. Veamos solo
un ejemplo, la casa extensa de la matriarcal mosuo de China ha sido convertida en
un sitio turístico que asesta un golpe mortal a un antiguo sistema social igualitario.
Los esfuerzos de los movimientos de liberación femenina y de las ONG para resistir
al reemplazo de la Naturaleza por la ciencia mecánica han fallado por muchos mo-
tivos. Uno de ellos es la tenacidad de la caza de brujas moderna sufrida por nume-
rosos miembros del Grupo de Estudios Matriarcales en los últimos años (Wehrlhof,
2003). Von Werlhof observa acertadamente que:

... la consideración de alternativas a la Modernidad es posiblemente el tabú principal en


el Norte global. Mientras ningún concepto del patriarcado que se dirija a la «estructura
profunda» de la Modernidad sea reconocido, en particular en cuanto a la perversión
dramática del mundo (visión) sobre no solo los últimos 500, sino los últimos 5 000 años,
el colapso próximo no será comprensible, a pesar de ser un objeto de la experiencia in-
mediata incuestionable (2013: 78).

Por mi parte, atribuyo la totalidad de estos derechos y responsabilidades a un


futuro ecosocial sostenible orientado hacia la vida. El control del daño o la restau-
ración del ambiente natural, actualmente degradado apenas a unos niveles más allá
de una posible reparación, tienen la misma prioridad que la comprensión del pa-
triarcado más sutil, disfrazado por «procesos alquímicos».2

2
Las actitudes, prácticas, lógica, visión del mundo, rituales e ideas sobre los acuerdos a los que
ahora nos referimos como Economía Feminista del Don (e.g. Vaughan 1997, 2004, 2007), Filosofía
364 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

EL AMO IMAGINARIO Y EL SISTEMA DE LA GUERRA

Llamo (escindido) Amo Imaginario al paradigma occidental histórica y geográfica-


mente dominante y a la cosmovisión relacionada con los valores humanos, la iden-
tidad, la naturaleza y el conocimiento. Condensa las dicotomías artificiales y
arbitrarias que han conducido a los hombres heterosexuales de la élite, sobre todo
blancos, y a sus adherentes, a dominar la Naturaleza, a las mujeres vulnerables, a
las poblaciones nativas y a la gente de color, así como a los hombres que desafían
los contratos de género heterosexistas/heteronormativos y, a menudo, homosocia-
les. Von Werlhof capta tanto lo que bloquea como lo que favorece el futuro ecoso-
cial sostenible. Iniciadora del Movimiento Planetario por la Madre Tierra, ha
insistido en que hay que teorizar y analizar el patriarcado y el capitalismo juntos:
fallar en la percepción de sus interconexiones implica fallar en la identificación del
núcleo de la crisis civilizatoria de la Modernidad (Werlhof, 2004, 2011). Para esta
autora, capitalismo y patriarcado no solo comparten un tiempo juntos en esta tierra,
durante 500 años ya, sino que están profundamente relacionados el uno con el otro
como modos de masculinización (Vaughan, 1997), competitividad, egocentrismo,
individualidad y un énfasis miope en el «progreso» y el «desarrollo».
La tendencia de los promotores inmobiliarios y de la gente de negocios occi-
dental a destruir lo que desean ha ayudado a crear un mercado para la espiritualidad
y el «crecimiento psicológico». Esta es una de las paradojas del proceso alquímico
por el cual se crea algo «nuevo e innovador» destruyendo algo natural.

GÉNESIS DE LOS PROCESOS ALQUÍMICOS

Von Werlhof encuentra que en los partidos políticos o en la investigación de género


académica dominante (aparte de algunas secciones de los movimientos indígenas y
otras excepciones) no existe ninguna conciencia sobre el concepto de patriarcado
como núcleo esencial de «lo moderno», tanto si nos referimos a los sistemas pa-
triarcales socialistas, comunistas o capitalistas (2013: 78). La «especialización» ex-
tendida y la atomización de nuestro conocimiento de las totalidades nos impiden
ver el fondo científico natural racionalista de todas las disciplinas académicas. Von
Werlhof subraya que la relación de la civilización patriarcal con la política, el género
y el cambio intergenerational, así como con la naturaleza en todas sus dimensiones,
económicas, tecnológicas y espiritual-religiosas continúa sin ser examinada (Mies y

de la Compensación (Caffyn, 1992), Imaginario del Don (Kailo, 2008) o Economía/Episteme Indígena
del Don (Kuokkanen, 2007) emergen en cierto nivel como un ethos de construcción de relaciones
comunitarias ecoéticas, transnacionales y transgénero.
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 365

Shiva, 1993). Estoy de acuerdo en que el imaginario dominante junto con las polí-
ticas de la vida real para poseer el Falo mítico-concreto explica la negación de los
problemas de raíz. En palabras de Von Werlhof: «Si hoy el patriarcado constituye
lo que Jung llamó el inconsciente colectivo (1995; 1984 de Erdheim), o lo modela
de manera decisiva, entonces no será fácil anularlo» (2013, 80).3
Algunos ejemplos de mi Finlandia Natal nos servirán para ejemplificar el pa-
triarcado alquímico como un proceso destructivo para convertir la Naturaleza en
«Oro alquímico», en ganancia. En Finlandia, en el Norte lejano, con su aura de
magia y sus animales exóticos, su aurora boreal, su paisaje y su pueblo Sami, Lapo-
nia representa el paraíso nacional, el sitio privilegiado del deseo colectivo. Es tam-
bién donde, gracias a los promotores inmobiliarios, se destruye la misma cultura
(el originario sami) y el paisaje que los turistas esperan. Es el sitio primario para la
posesión, aunque sea brevemente, del Falo imaginario como una fantasía de vaca-
ciones. Construir enormes torres hoteleras que compiten con los árboles más altos
en medio de la pureza de los «fells»4 con renos vagando en libertad produce un ex-
traño contraste que recrea el régimen fálico. Al mismo tiempo, los turistas y la élite
buscan «paz», «tranquilidad», naturaleza pura y muchos otros elementos de los
cuales Jürgen Kremer (2008) cree que nos hemos enajenado por una «esquismogé-
nesis disociativa» (1997: 10-11). Kremer enfatiza que todos los pueblos tienen raíces
indígenas (prepatriarcales) cuya recuperación podría, en esta coyuntura histórica,
causar más efectos ecológicamente importantes que los que algunas corrientes post-
modernas son capaces de descubrir o aceptar. Veo una contradicción mayor en esta
tensión entre la fantasía colonial-colonizadora y la verdadera necesidad que siente
la gente de un modo de participación en una realidad no-alquímica cercana a la na-
turaleza cuando se la imagina en su virginidad, en su forma pura (¡agua fresca y
pura, aire limpio, espacio, animales en libertad, una pausa en la «carrera» por la

3
Un erudito pro-feminista especializado en estudios indígenas e identidad ecológica humana, Jür-
gen Kremer, ha definido la trayectoria evolutiva del llamado proceso de civilización como «esquis-
mogénesis disociativa» (Kremer, 1997: 10-11). Este concepto alude a la escisión de la psique en el
modo masculinizado de relacionarse y vivir separados de la Naturaleza. Afirma: «La gente de ascen-
dencia europea o la que ha entrado en el proceso eurocentrado del conocimiento se ha separado a sí
misma de la interacción entre el lugar, los ancestros, los animales, las plantas, el o los espíritus, la co-
munidad, la historia, la ceremonia, los ciclos de la vida, y los ciclos de las estaciones y las edades. Esta
disociación ha creado una conceptualización de la evolución social cuyo principal cambio tuvo lugar
en el paso de la prehistoria a la historia, de la tradición oral a la escritura de la civilización, de la pre-
sencia inmanente del espíritu(s) a la transcendencia de Dios(es)» (Kremer, 2008). Afirma, además,
que la Filosofía de la Ilustración europea culminó el desarrollo del proceso no participativo, de diso-
ciación mental, entronización de la causalidad lineal y apropiación imperial de las apariencias de re-
alidad en una reducción cuantitativa globalizadora (llegando, presumiblemente, al control de lo que
es concebido como la realidad objetiva en sí (Kremer, 2008).
4
Fell, del antiguo nórdico fjall, «montaña». N.d.T.
366 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

eficiencia que ha sustituido a la vida!). A la larga, se trata de un suicidio para expe-


rimentar los efectos del bienestar de la Naturaleza —las hormonas mentales de Gas-
ton Bachelard, aire, agua, fuego, tierra—. En la persecución de esta fantasía
primaria, la destruyen. La creación por la destrucción es el principal ejemplo del
falo destructivo —los árboles son cortados, los animales llevados a un punto cer-
cano a su extinción y los estilos de vida indígenas amenazados en un deseo paradó-
jico de naturaleza.
La cosmovisión de los pueblos finoúgricos antiguos, incluidos los sami y los finn,
presenta un contraste agudo con el Imaginario del Amo. En las culturas indígenas
tradicionales, incluidas algunas pequeñas naciones originarias poco conocidas de
Escandinavia y Norteamérica, encontramos que los demás seres no son tratados no
como el Otro extraño al yo autónomo, individual, sino como parientes en una red
de parentesco cósmico. En la cosmovisión mundial cíclica antigua se creía que los
animales, los humanos y el mundo natural entero vivían en un continuo interde-
pendiente. En las sociedades matrilineales de las naciones originarias, el parentesco
es concebido en términos de familias extensas, casas, clanes y tribus enteras, no en
estructuras de familia nuclear.
La magia era parte integrante de la economía del don, y ambas estaban unidas
en la temporalización propia de las actividades agrícolas desde plantar las semillas
hasta la recolección, en paralelo con el tiempo de la fabricación de la cerámica y de
los rituales de renacimiento para estimular los poderes vivificantes de la Naturaleza
(Makilam, 1999). Lo que ha hecho el talismán del patriarcado alquímico es la magia
del Dinero, de la reproducción perversa, la fabricación de más dinero a partir del
dinero virtual en un círculo negativo de dones venenosos —de comercio de deri-
vados financieros y préstamos para impedir, no para facilitar las condiciones de ciu-
dadanos que se encuentran totalmente dependientes de las instituciones bancarias
depredadoras. La antigua magia buena consistía en prácticas pragmáticas ecoso-
ciales, en la creación y uso de amuletos, bordados llenos de la magia protectora de
las artesanías femeninas y objetos sagrados que, se creía, garantizaban buenos re-
sultados (Kelly, 2012). Su papel no consistía en un intercambio económico para
hacer que alguien ganara a expensas de otro, sino en asegurar el equilibrio socio-
cósmico y los poderes regeneradores de la Naturaleza, el retorno de las estaciones.
Por supuesto, siempre ha habido individuos destructivos y otros que usaban la
magia negra para sus propios objetivos perversos. Lo que me interesa aquí, sin em-
bargo, es el impacto de esta otra cosmovisión en el modelo y la norma humanos
dominantes. El ampliamente extendido Imaginario del don crea un tipo de clima
ético y ecosocial muy distinto del que vivimos hoy.
La definición de patriarcado que surgió de las investigaciones de Von Werlhof
apunta a un belicoso, religiosamente legitimado y utópicamente motivado proyecto
«de creación por la destrucción». Se caracteriza por sus tentativas de usurpar los
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 367

productos de las madres y de la «Madre-Naturaleza» y convertirlos en su contrario


a través de productos y procesos que convierten lo orgánico en mecánico y negador
de la vida. La contribución de Von Werlhof ha mostrado, además, que la forma
universal del «progreso» moderno no es simplemente una forma de dominación,
sino, de hecho, un proyecto que transforma el mundo. Postulo el Modo Fálico de
Desarrollo y el Imaginario del Amo como programas gemelos de nivel micro y
macro que son captados en la profunda investigación de Von Werlhof sobre el pa-
triarcado alquímico a través de otro método y distinta focalización.
Otro ejemplo de mi Finlandia Natal atestigua al proceso alquímico por el que
la Naturaleza se convierte en procesos mecánicos regidos por la ganancia. El futuro
y el papel de los trabajadores que cuidan a dependientes, desde las enfermeras al
personal de servicios para gente mayor, están en crisis —el argumento que se repite
a menudo es que no podemos permitirnos el antiguo nivel de «cuidados» dado que
el número de personas ancianas se disparará en un futuro próximo—. Como solu-
ción a la reducción y a la destrucción gradual del Estado de Bienestar y de sus ser-
vicios públicos, ámbitos androcéntricos como ICT y productores de robots buscan
nuevos «Nokias» —la gran industria de la telefonía móvil que hizo a Finlandia tan
competitiva hace un tiempo—. ¡En vez de aprovechar los beneficios de los servicios
asistidos por animales que han resultado ser rentables, humanos y ventajosos tam-
bién para los derechos de los animales, la tecno-oligarquía prefiere la invención de
juguetes mecánicos para el anciano y demenciado! ¡Estos juguetes robóticos, desde
osos polares a focas, son ofrecidos a las ancianas como un servicio (¡después de
todo, a las mujeres les gusta nutrir hasta el último suspiro!) con la excusa de que
ellas no entienden la diferencia entre los animales domésticos verdaderos y los no
biológicos (¡Frankenstein anda suelto!). Mientras que se sabe que las personas ma-
yores pueden encontrar la ternura y el contacto bio-cósmico que ansían en animales
fieles, en una relación de confianza no explotadora, solo se les permite acariciar a
un tecno-oso. Esto muestra el gran desprecio hacia la biología y la Naturaleza. El
progreso mecánico sustituye así a los animales como compañeros y robots rubios
con labios de bótox son creados para asistir al anciano (¿macho?, ¿lesbiana?). Las
enfermeras son despedidas y la base fiscal también es debilitada ya que los robots
no pagan impuestos, ni se declaran en huelga ni piden ayuda al sindicato. La disto-
pía orwelliana está ya ante nuestros ojos.

LA RED DEL DON

Llevar a un primer plano el trabajo del don como el pilar material y espiritual sobre
el que se han construido los ámbitos masculinos dominantes de la tecnología, la in-
dustria y la economía implica hacer visible el fondo de la vida pública que se da
368 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

por hecho. También requiere la exposición de las raíces y las corrientes subterráneas
militaristas disfuncionales de la economía hegemónica y los elementos primarios
del PIB en sí mismo. Los miembros de nuestro grupo de Economía del Don han in-
vestigado y publicado un gran número de evidencias científicas que fundamentan
una alternativa. «Otra cosmovisión es posible» ha sido uno de nuestros lemas en
nuestro Mumbai Feminar. El grupo de Economía del Don otorga esperanza contra
la esperanza. No se trata solo de criticar al patriarcado, sino de ofrecer alternativas
profundas como la formulada por von Wehrhof u otros/as expertos/as en matriar-
cados. La investigación de Barbara Mann (2000) en el matriarcado iroqués y su ter-
giversación es un ejemplo que muestra no solo los errores acumulados de la
investigación patriarcal, sino cuál era el ideal de la economía del don democrática
iroquesa durante su vigencia. El Camino de la Abundancia fue creado por equilibrio
cósmico y por relaciones de género supervisadas por abuelas de los clanes. Debido
a la influencia de la ciencia patriarcal que oculta sus negaciones conscientes y su
deformación en cuanto a otros campos de estudios sobre los iroqueses, los eruditos
hoy desacreditan los tratados más científicos sobre las economías del don igualita-
rias y orientadas hacia la vida. Sin embargo, las pruebas aplastantes reunidas ac-
tualmente por la Red de Economía del Don, entre otros grupos, lo hacen cada vez
más difícil.
No obstante, persiste la creencia de que matriarcado significaba «gobierno de
las mujeres» en vez de «gobierno de los hombres». No es así nunca en la sociedad
matriarcal, pero sí puede serlo en la sociedad patriarcal, en cambio. Como Von
Werlhof señala:

... los términos «matriarcado» y «patriarcado» no se refieren solo a «hombres» y «muje-


res», o «machos» y «hembras», sino al carácter de la totalidad del orden social, de modo
que tanto hombres como mujeres que viven en el matriarcado tienen que ser considerados
«matriarcales e, igualmente, los hombres y las mujeres que viven en el patriarcado tienen
que ser considerados como principalmente «patriarcales» en su pensamiento, acción y
sentimiento (Von Werlhof, 2013).

Como el matriarcado y sus diversas variaciones locales presentan realmente una


verdadera alternativa al patriarcado, el mismo concepto es «un peligro» asociado
con «lo femenino» y con la esfera de «lo natural» que «los alquimistas» desean con-
vertir en innovaciones puras creadas por lo masculino.
El modelo de vida promovido por el falo neoliberal crea necesidades falsas y ca-
rencias para crear mercados para muchos productos dañinos o venenosos ecoso-
cialmente (regalos envenenados). Al mismo tiempo, hace cada vez más difícil poder
satisfacer las necesidades básicas de supervivencia. De hecho, un modelo fálico está
castrado en términos de creación de la vida, del eros, mientras se esfuerza por ele-
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 369

varse a alturas incomparables de dominación y poder. Se trata de Thanatos en vez


de Eros. El Instinto de Muerte y el culto a la Muerte lo animan como se revela en
la obsesión de los media por los asesinatos. Muchas personas indígenas que obser-
van la cultura occidental se refieren a ella como cultura de la muerte (p. ej. Gunn
Allen, 1986). Como resume Von Werlhof, el patriarcado alquímico primero se apro-
pió de los sistemas del don orientados a la vida y después los convirtió en «destruc-
ción creativa» disfrazada de desarrollo, en invenciones que sustituyen a la vida y
son presentadas como el progreso.
A pesar de todas nuestras diferencias culturales, étnicas, religiosas, sexuales, geo-
gráficas, de clase, de edad y demás, la Red del Don equivalente al patriarcado al-
químico del imaginario del Amo fálico podría ser resumida como un mundo
equilibrado y respetuoso de relaciones humanas que reconocen nuestra interde-
pendencia con toda la Creación. Contrasta con el mito individualista de la «auto-
nomía» personal y acentúa la práctica de la sostenibilidad ecosocial arraigada
también en los derechos de las generaciones futuras. El mismo término «circulación
de don espiritual» sustituye los esfuerzos alquímicos hacia la tecno-oligarquía y su
esencia biofóbica como un modelo más originario de vida. El valor clave es dar
valor al otro, no escindir, competir o jerarquizar y el don es el medio para crear un
sistema ecosocial de mutualidad e interdependencia entre todos los seres creados,
no glorificando cyborgs o robots como hacen muchas ciberfeministas.
Para la mayor parte de las ecofeministas, la exposición de la lógica de la civili-
zación patriarcal de la Modernidad representa un fracaso (Von Werlhof, 2013). El
objetivo último de la formulación de la teoría crítica del patriarcado consiste, para
Von Werlhof, en dar una alternativa a la sociedad y la civilización patriarcales (Pro-
jektgruppe, 1999). Con este objetivo en mente, von Werlhof y yo misma entendimos
que era necesario establecer una unión con la investigación del matriarcado mo-
derno que se llevaba a cabo simultáneamente (Göttner-Abendroth, 1988, 2009).
Aunque Von Wehrlhof no asume todas las teorías de la Economía del Don y de la
Red del Matriarcado, también utiliza algunas de sus contribuciones a una «alterna-
tiva profunda» colectiva. Gracias a las investigaciones compartidas en esta Red, la
comparación entre civilizaciones patriarcales y no patriarcales como extremos heu-
rísticos de una serie continua que traza un mapa de las civilizaciones hasta ahora
conocidas ha producido información y resultados importantes. Los imaginarios del
Don y del Amo pueden ser contrastados: una cosmovisión igualitaria que afirma la
vida, más preservada entre la gente indígena, las madres generosas y los grupos de
ciudadanos activistas, frente a la otra fundamentalmente hostil a la fuerza de la vida
y a las culturas ecosociales sostenibles en las que las madres de los clanes y los
modos matriarcales de vida aseguraron el bienestar de todos. Desde mi punto de
vista, la teoría del patriarcado como una «superestructura alquímica» de destruc-
ción es repetida en la noción patológica de Joseph Schumpeter (1942) de «destruc-
370 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

ción creativa» —una escuela económica que legitima procesos sociales negativos y
guerras económicas como la tierra positiva de nuevas oportunidades… La combi-
nación del Falo como Desarrollo y los remanentes subconscientes de la dominación
desde la naturalización darwiniana de la vida depredadora —«la supervivencia del
más apto»— explican la aceleración drástica de la destrucción planetaria a la que
estamos asistiendo.
El regalo imaginario puede ser visibilizado nuevamente ya que todavía existe
(aunque a menudo como una cultura liminal secundaria o una economía doméstica
oculta sobre la que se apoya la pública) pero también necesitamos ecomitologías
como medio por el cual la infancia y la juventud podrían ser apoyadas y re-sociali-
zadas/condicionadas para imaginar alternativas ecosociales sanas (Kailo, 2008). No
entiendo por tales narrativas dominantes de conquista y violencia, sino historias
que se concentren en el modo ecosocial sostenible de vida de la prehistoria y de
eras posteriores cuyo rastro podemos encontrar en cuentos de hadas y cuentos po-
pulares, así como en las historias culturales reescritas de pueblos como el cabil (Ma-
kilam, 1999) o en las diversas economías del Don que aún existen en India, Asia e
incluso en el continente americano del norte y del sur.
La lengua no es solo un vehículo para el esfuerzo comunicativo. Forma parte de
los caminos a través de los cuales nos percibimos mutuamente y percibimos la na-
turaleza. La alternativa ecofeminista profunda que necesitamos es lingüística, dis-
cursiva, política y psicológica. Podemos trazar la carta del camino hacia las
afinidades del don a través del género, las especies y la cultura solo combinando
los diversos niveles y las estrategias multidimensionales de transformación. La len-
gua cultural orientada hacia el don está basada en nuevos/prehistóricos símbolos
del árbol de la vida, rituales dirigidos a asegurar la renovación de la vida y el ciclo
de las estaciones, un tesoro de rituales que aseguraron el círculo bueno del don.
Como Mary B. Kelly (2012; El Heiskanen, Kailo, 2013), entre otros, ha demostrado,
implica artesanías femeninas, bordados y ornamentos que apuntaron a la promo-
ción/protección de los ciclos de vida, renacimiento y transmisión del conocimiento
ecológico. Estas artesanías femeninas participaron del ethos basado en la protección
y la reciprocidad de las eras matriarcales a través de un imaginario que no es la ima-
gen especular de la dominación patriarcal. Por el contrario, como muestran estudios
recientes sobre los bordados homeopáticos matriarcales, transmitían la sabiduría
histórica significativa en cuanto al mantenimiento de la fertilidad, la renovación de
la vida y los modos chamanísticos de honrar las uniones cósmicas. Esta sabiduría
específica de las mujeres y esta identidad ecológica surgieron del otro imaginario y
de una práctica basada en la magia que asegura la suerte. Terminaré con dos visio-
nes, una pesimista, otra más optimista en cuanto al potencial que reside en los ima-
ginarios ecológicos profundos del don, la economía del don:
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 371

El resultado último del patriarcado desenfrenado y terminal será la catástrofe ecológica


o el holocausto nuclear. (Kelly, 1984: 113)

Restaurando el don a las numerosas áreas de la vida en que ha sido no reconocido u


ocultado, podemos comenzar a hacer consciente el paradigma del Don. El Don subyace
a la sinonimia del sentido en la lengua y sentido de la vida. (Vaughan 2002: 2)

Traducción del inglés de ALICIA H. PULEO

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, Louis (1971): Lenin and Philosophy and other essays, trad. de Ben
Brewster, New York, Monthly Review. Bachelard, Gaston and Maria Jolas
(Translator) (1994): The Poetics of Space, New York, Orion Press.
CHOMSKY, Noam (1999): Profit over People. Neoliberalism and Global Order, New
York: Seven Stories Press.
DUCAT, Stephen J. (2004): The Wimp Factor. Gender Gaps, Holy Wars, and the
Politics of Anxious Masculinity, Boston, Beacon Press.
GIMBUTAS, Maria (1991): The Civilization of the Goddess, San Francisco, Harper.
GÖTTNER-ABENDROTH, H. (ed.) (2008): Societies of Peace, Past and Present, To-
ronto, Inanna Press & Education.
KAILO, Kaarina y Irma HEISKANEN (2013): Näyttelyesite, «Esiäitien elämänvoiman
juurilla-perinnetietoa Pohjolan myyttiemojen ja haltioiden maa-ilmasta», julk.
Myyttikehrä, Kaarina Kailo ja Irma Heiskanen. 2013, Oulu, pohjolan painotuote.
34 s. (Exhibition booklet, At the Roots of the Foremothers’ Life Force-Traditional
Knowledge regarding the Worldview of mythic totemistic female guardians and
haltias).
KAILO, Kaarina (2009): «Sustainable Cultures of Life and Gift Circulation: A New
Model for the Green/Postcolonial Restructuring of Europe?», Sustainable Soci-
eties. Ed. Jarno Pasanen and Marko Ulvila. Ympäristö ja kehitys ry (Environment
and Development Association), Finnish Ministry of Exterior, pp.1-16.
— (2008), Wo/men and Bears. The Gifts of Nature, Culture, Gender Revisited,
Inanna Press & Education, Toronto.
— (2007): «Cyber /Ecofeminism», Encyclopedia of Gender and Information Tech-
nology: Exploring the Contributions,Challenges, Issues, and Experiences of
Women in Information Technology.Idea Group Reference. Ed. EileenM. Trauth.
Hershey: Pennsylvania State University, pp. 172-177.
— (2004): «Globalisation Revisited. Ecospiritual Movements Reviving the Gift Imag-
inary», In Search of a Humanised Globalisation. The Contribution of Spirituali-
372 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

tybased Movements. Asia-Europe Foundation, Nanzan University, Japan, April


27-29, pp. 13-20.
KELLEY, Caffyn (ed.) (1992): Give Back. First Nations Perspectives on Cultural
Practice. North Vancouver, Gallerie Publications.
KELLY, Mary B. (2012): Goddess Women Cloth A Worldwide Tradition of Making
and Using Ritual Textiles, Ed. Mary B. Kelly and Karen Macier.
KELLY, Petra (1984): «Women and Power», in Warren, Karen (ed.) (1984): Ecofem-
inism: Women, Nature, Culture, Bloomington and Indianapolis, Indiana Univer-
sity Press, pp. 112-119.
KREMER, Jürgen (2008): «Bearing Obligations», en Kailo, Kaarina (ed.) (2008),
Wo/men and Bears. The Gifts of Nature, Culture, Gender Revisited, Inanna Press
& Education, Toronto, pp. 147-152.
KUOKKANEN, Rauna (2007): Reshaping the University: Responsibility, Indigenous
Epistemes, and the Logic of the Gift. Vancouver, University of British Columbia
Press.
MAKILAM (1999): Symbols and Magic in the Arts of Kabyle Women., traducción
del original francés de Elizabeth Corp, Signes et rituels magiques des femmes
kabyles, Edisud, Aix-en-Provence. www.makilam.com
MANN, Barbara (2000): Iroquoian Women, the Gantowisas, New York, Lang.
MIES, Maria y SHIVA, Vandana (1993): Ecofeminism, London, Zedbooks.
MUTHIEN, Bernadette (2011): «Rematriating Western Ways of Thinking and Prac-
tice». Women’s Worlds, Congress in Ottawa, July 1-7, 2011. Paper presented at
the session «Re-matriation».
PROJEKTGRUPPE «ZIVILISATIONSPOLITK» (1999), Frankfurt am Main, Peter Lang,
pp. 233-272.
SCHUMPETER, Joseph A (1975): Capitalism, Socialism and Democracy, [orig. pub.
1942] New York, Harper.
VAUGHAN, Genevieve (1997): For-Giving. A Feminist Criticism of Exchange.
Foreword by Robin Morgan, Texas, Plainview Press. On request from author.
— (2002): 36 Steps Toward a Gift Economy. Austin, Texas.
— (ed.) (2007): Women and the Gift Economy. Another Radically Different World-
view is Possible, Toronto, Inanna Publications and Education.
WEHRLHOF, Claudia von (2001): «Loosing Faith in Progress: Capitalist Patriarchy as
an Alchemical System», en Bennholdt-Thomsen, Veronika, Faraclas, Nichols, von
Werlhof, Claudia (eds.) (2001): There is an Alternative. Subsistence and Worldwide
Resistance to Corporate Globalization, London, Zed Press, pp. 15-40.
— (2003a): «Patriarchy as Negation of Matriarchy: The Perspective of a Delusion»,
Paper presented at the First World Congress of Matriarchal Studies, Luxemburg.
WERLHOF, Claudia von et al. (2003b): Die Diskriminierung der Matriarchats-
forschung.Eine moderne Hexenjagd, Bern: Amalia.
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 373

— (2011): The Failure of Modern Civilization and the Struggle for a «Deep» Al-
ternative, Frankfurt am Main, Peter Lang.
— (2012): The failure of the «Modern World System» and the new paradigm», en
Babones, Salvatore y Chase-Dunn, Christopher (eds.), Routledge Handbook of
WorldSsystems Analysis, Oxon and New York, Routledge, pp. 172-180.
22. Ecofeminismos materialistas. Política de la
vida y política del tiempo en Mary Mellor1
María José GUERRA
Universidad de La Laguna

El ecofeminismo parte de un reconocimiento de la centralidad de la «naturaleza» para


la existencia humana. La naturaleza es intrascendible en el sentido que le da Beauvoir.
Siempre formará parte de la condición humana y debe abordarse directamente.
Entonces la cuestión pasa a ser la de cómo se puede confrontar la dualidad
naturaleza-cultura que ha marginado a las mujeres y a la naturaleza.

MARY MELLOR

M
i objetivo en este texto es explorar las propuestas y perspectivas de una
de las vetas más interesantes de la ramificada familia de enfoques ecofe-
ministas, la de los ecofeminismos materialistas. Los ecofeminismos han
sido marginales, y marginalizados, tanto en el horizonte de las teorías y prácticas
del ecologismo como del feminismo. Su carácter híbrido, desarrollado al hilo del
debate ético y político entre dos de los movimientos sociales más decisivos de los
últimos cincuenta años, el ecologista y el feminista, supone, por un lado, una falta
de encaje en los discursos hegemónicos de ambos movimientos, a la vez que propi-
cia una fructificación mutua, a través de la crítica entrecruzada, a la que creo que
es interesante atender. Hoy encontramos, por ejemplo, que las ideas ecofeministas
son un ingrediente esencial de los discursos sobre la justicia global, donde se funde
tanto con teorías liberacionistas de la tecnología como alimenta los fenómenos de
los feminismos postcoloniales y de los ecologismos de los pobres. Afrontaremos,
pues, la exposición y comentario crítico de algunas tesis de una de las ecofeministas
materialistas más afamadas, la británica Mary Mellor. Destacaremos de sus pro-
puestas, enraizadas y a la vez críticas con la raíz marxiana, cuatro aspectos decisivos
que la cualifican para pasar el test que Alicia Puleo establece para engrosar la familia
de los ecofeminismos críticos (Puleo, 2008 y 2011).2 Las notas materialistas y cons-

1
Este trabajo está inserto en el Proyecto I+D «Justicia, ciudadanía y género: feminización de las
migraciones y derechos humanos» (FFI2011-24120) del Ministerio de Economía y Competitividad
del Gobierno de España.
2
He comentado las tesis de Puleo en M. José Guerra Palmero en «La nueva Ariadna y las Ilustra-
ciones olvidadas. Crítica, sensibilidad y utopía para el siglo XXI», Daimon. Revista Internacional de
Filosofía, nº 57, 2012, pp. 169-172.
376 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

tructivistas de sus planteamientos entroncan con un ecosocialismo que aborda las


insuficiencias de la teoría marxiana relativa a la reproducción social.
El ecofeminismo socialista de Mellor mantiene un fuerte compromiso filosófico
con la materialidad y la inmanencia, principalmente, dirigiendo su atención al hecho
de la corporalidad humana, las interdependencias y las necesidades. Unas necesi-
dades enraizadas en nuestra procedencia de la naturaleza y que, tanto en lo físico
como en lo emocional, son desatendidas por el actual modelo de desarrollo. Un
modelo capitalista global que redefine y mantiene la jerarquía de los sexos. En se-
gundo lugar, Mellor se empeña a fondo en la crítica a la antropología normativa del
homo economicus. Una construcción social y cultural procedente de la burguesía
liberal, no olvidemos que su relato fundador es Robinson Crusoe, que lejos de ser
descriptiva, como la economía neoclásica sigue manteniendo, es muy imperativa y
normativa, pero que, además, es fundamentalmente androcéntrica, obviando el ca-
rácter interrelacional e interdependiente de las relaciones humanas y obviando las
necesidades sociales ligadas al cuidado de los otros. Me gustaría añadir algunas
notas más al análisis de Mellor sobre el carácter netamente etnocéntrico del homo
economicus y para ello me serviré de un ejemplo extraído de la literatura económica
sobre el desarrollo. Tenemos que constatar que el homo economicus es, hoy por
hoy, en la teoría social, especialmente en la dimensión metodológica, un ídolo ya
caído. El artículo de Amartya Sen titulado «Rational Fools: A Critique of the Be-
havioral Foundations of Economic Theory» en el lejano año 1977 da cuenta de ello.
No obstante, su presencia es perenne en la literatura económica y su éxito social
como modelo antropológico hegemónico del discurso social y político neoliberal
hace imprescindible su abordaje crítico. En el terreno de la práctica, la enorme di-
fusión de las retóricas de la emprendeduría, la idea de que la aspiración de todo in-
dividuo debe ser la de ser empresario, y las políticas del desarrollo centradas en los
microcréditos, la llamada bancarización de los pobres, sobre todo de las mujeres
pobres, son mitos sociales, desmentidos por los analistas serios de la cuestión (Na-
rayan, 2005; Vera-Sanso, 2008; Valenzuela, 2005), que, sin embargo, mantenidos
por las burocracias internacionales de la ONU y por el establishment político-eco-
nómico mundial, están teniendo unos costos sociales y humanos enormes para las
más desfavorecidas en los países empobrecidos.
Las premisas axiológicas y normativas sustentadoras de la ficción del homo eco-
nomicus, en suma, han tenido un punto álgido en el ideario neoliberal. La crítica
de Mellor presenta la inadecuación antropológica y la incorrección ética y política
de este omnipresente mito. En tercer lugar, destacaremos lo que nos parece uno de
los aspectos más sugerentes del pensamiento ecofeminista de Mellor: su reflexión
sobre la temporalidad vivida en relación con la construcción social y económica del
tiempo. Su tesis es que el tiempo acuñado por el productivismo capitalista está en
conflicto con el tiempo biológico de las necesidades humanas y con el tiempo eco-
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 377

lógico en su carácter cíclico y de ritmos de reposición de los recursos naturales. Las


tensiones entre estos órdenes temporales son sufridas especialmente por las mujeres
al transitar del ámbito productivo al reproductivo y, en los países empobrecidos, al
tener que enfrentar el reto diario de la supervivencia de la familia.
Este último asunto, el dualismo «Producción/Reproducción» en el ámbito eco-
nómico y social es el que le permite a Mellor señalar la analogía entre la economía
feminista y la economía ecológica. Al igual que el recorte de variables de la econo-
mía ortodoxa —centrada en un modelo idealizado de mercado— deja de reconocer
los costes ambientales —agotamiento de recursos naturales, calentamiento global,
contaminación, etc.— y los designa como externalidades, la reproducción social,
el trabajo no pagado realizado por las mujeres en sus atribuciones de cuidadoras
sociales, condición de posibilidad del mismo proceso productivo, es invisibilizado
y tenido como «natural». En suma, manteniendo la analogía, queda fuera del enfo-
que supuestamente científico de la economía neoclásica y es arrojado al cajón de
sastre de las externalidades. La invisibilidad del trabajo doméstico y de cuidados,
que en el Sur del planeta conlleva la responsabilidad por la supervivencia, implica
una devaluación sistemática del trabajo no remunerado de las mujeres —cuidados
y trabajo doméstico—. Las bases de la economía feminista son repensadas por Me-
llor desde la asunción de la existencia biológica/ecológica de los seres humanos.
Esperamos que este recorrido expositivo y crítico sirva para hacer visible la estre-
chez de la visión estándar de la economía oficial, atada a sus dogmas neoliberales a
pesar de la insostenibilidad ecosocial hoy más que patente.

ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS: ANTROPOLOGÍA, ECONOMÍA Y POLÍTICA

Las consecuencias sexo/genéricas y ecológicas de las actividades económicas


son dejadas de lado como externalidades.
MELLOR, 2000: 27

Mellor nos permite contextualizar la constelación ecofeminista en la globalización


neoliberal. El sentido de su diagnóstico no deja dudas. El capitalismo patriarcal o,
visto desde las mutaciones históricas de largo alcance, el patriarcado capitalista no
se mueve hacia una sociedad sostenible e igualitaria; todo lo contrario, el sobrecon-
sumo y el modelo económico depredador destruye la autonomía económica de las
comunidades y arruina sus fuentes de subsistencia al expropiar recursos y explotar
a los trabajadores. Por otra parte, esa misma globalización tiende a devaluar los bie-
nes y servicios no mercantilizados, especialmente, el trabajo reproductivo, el trabajo
no remunerado que realizan las mujeres. Mellor recurre al bagaje de la naciente
economía feminista para afirmar que la globalización devalúa y desprecia todo lo
378 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

que no se monetariza. De hecho, con Arlie Russell Hochschild podemos decir que,
como fuerza social y cultural, el actual capitalismo pugna por mercantilizar ámbitos
antes ajenos a sus reglas, incluso la vida íntima (Russell Hochschild, 2008). Un ejem-
plo sería la patentabilidad de la vida, al hilo de la revolución biotecnológica que se
está traduciendo en la apropiación del patrimonio genético común por parte de las
Corporaciones, pero también la entrada en el mercado global de los servicios de
cuidado y de los llamados «servicios sexuales». La dimensión transnacional, cadenas
globales de cuidado o el tráfico de mujeres, es la novedad por su alcance y magni-
tud, que abre la posibilidad de hablar de un sistema sexo/género global (Fraser,
2009). El elemento básico de la extracción de plusvalía, traducido como extenua-
ción física y agotamiento emocional, mantiene a las mujeres como cuidadoras so-
ciales —atadas por el mecanismo motivacional del deber o del amor— a la vez que
las redes transnacionales de la globalización, encarnadas en las migraciones, fuerzan
nuevos modelos de explotación capitalista tanto por la feminización de la mano de
obra internacional —el fenómeno de las maquilas— como por la creación de nuevas
formas de servidumbre que se suman a las antiguas.
La cuestión es, además, que el capitalismo de mercado, aún con modificaciones
ad hoc, no puede resolver los problemas ambientales globales. Su motor, el obtener
beneficios a corto plazo es incompatible con la conservación ecológica a largo plazo.
Las regulaciones medioambientales —moratorias, límites a la contaminación, im-
plementación del principio de precaución, protección del territorio y de las especies,
etc.— chocan con el objetivo del capitalismo, no son compatibles con la expansión
irrestricta del libre mercado. Es más, requieren de instituciones políticas, locales,
nacionales y transnacionales, que las implementen y hagan cumplir. El neolibera-
lismo, por lo tanto, no puede tener un rostro verde.
Este hecho, además —el de la incompatibilidad entre capitalismo global y soste-
nibilidad—, en la argumentación de Mellor, impacta en el feminismo: «… el femi-
nismo que aboga por la “igualdad de oportunidades” siempre estará muy limitado si
no advierte la insostenibilidad de las sociedades consumistas contemporáneas. No
sería un gran logro conseguir la igualdad en un barco que se está hundiendo» (Blasco,
2002: 21). Pero el ecologismo tiene también que enfrentar el hecho de que si no
atiende a la asimetría de género que estructura y sostiene la economía de mercado
será responsable de trasladar «asunciones patriarcales» a sus alternativas verdes.
La economía capitalista no es neutral desde el punto de vista del sexo/género. No
solo porque en las élites económicas las mujeres brillen por su ausencia, la preocupa-
ción del feminismo liberal es meramente esta, sino porque el trabajo no remunerado
de las mujeres «subsidia» la economía global y su tendencia, agudizada en los últimos
tiempos, a bajar salarios y precarizar el trabajo haciendo retroceder en los países eu-
ropeos, o impidiendo que avancen en el Sur Global, los derechos de los trabajadores
y de las trabajadoras.
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 379

El caso es que el patriarcado capitalista tiene como dispositivo básico la extrac-


ción de plusvalía derivada del trabajo no remunerado de las mujeres. Pero incluso
las teorías ecosocialistas ven como periférico y marginal tanto a las mujeres como a
este trabajo no pagado. Marx, que inspira el materialismo histórico y social que
profesa Mellor, es, sin embargo, culpable de no haber percibido el carácter cons-
truido de la división sexual del trabajo y de haber aceptado la categorización bur-
guesa de que trabajo es únicamente el trabajo asalariado. Mellor se apoya en Ariel
Salleh para afirmar que el cuidado, servicio/trabajo no pagado que exige de las mu-
jeres el patriarcado capitalista y que, por no ser retribuido monetariamente, es de-
nigrado, es la base de la reproducción social y sin él todo se vendría abajo. El
patriarcado capitalista, apuntará Maria Mies, explota a las mujeres, al mundo na-
tural y al Sur. La economía deja la producción de vida al margen; las mujeres, así,
han quedado excluidas de lo social y lo histórico. Mellor analiza la miopía del ma-
terialismo histórico en el siguiente texto más que revelador:

En La ideología alemana de Marx y Engels las relaciones sociales de producción se re-


fieren a «la producción de la vida, tanto del propio trabajo de uno como de la nueva
vida por la procreación». La condición fundamental de la vida humana, el primer «acto
histórico» es la producción de la vida material descrita como «comer, beber, techo, ves-
tido y muchas otras cosas». ¿Hacer otras muchas cosas incluye hacer nuevos seres hu-
manos, la lactancia y la nutrición? (Mellor, 2000: 209)

El trabajo enajenado y explotado no incorpora, dada la creencia en la naturali-


dad de la división sexual del mismo, el trabajo de las mujeres que queda excluido
de las relaciones de producción. Rectificar esta exclusión es el caballo de batalla de
la economía feminista desde Marylin Waring al plantear ese «Si las mujeres conta-
ran» (Waring, 1989). A estas alturas, el reto es lanzado tanto contra la economía
ortodoxa como a los planteamientos ecosocialistas que critican el productivismo
marxiano, pero no su dualismo producción/reproducción.
La conjunción entre ecosocialismo y feminismo pivota en Mellor, más allá de su
lectura ecofeminista de la globalización neoliberal, alrededor de la revisión de las
asunciones antropológicas del pensamiento económico y filosófico moderno. De
ahí derivará su crítica al homo economicus. Pero no se quedará solamente en la crí-
tica sino que planteará que el decantarnos por la inmanencia implica el tener que
asumir una responsabilidad política por las consecuencias sociales y ecológicas de
la corporalidad humana. Especial relevancia, como veremos, tendrá el repensar el
tiempo de la vida y sus acuñaciones sociales y económicas.
En suma, el ecofeminismo socialista, por tanto, se deriva de constatar lo que
Mellor llama la conexión económica o material: tanto los costes ambientales como
los costes sociales, sobre todo los derivados del trabajo reproductivo de las mujeres,
380 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

son descartados por la economía neoliberal como «externalidades». Esto es, las mu-
jeres y la naturaleza no cuentan tras decretarse su carácter ajeno, su alteridad radical
con respecto a la soberanía absoluta del mercado. Revisemos ahora sus aportaciones
críticas sobre el homo economicus y la intelección de las diversas temporalidades
en conflicto en nuestra vida material y social.

HOMO ECONOMICUS: LOS IMPACTOS ECOSOCIALES DE UNA FICCIÓN DAÑINA

Este asunto nos va a permitir ver cómo opera la apuesta por la inmanencia y la ma-
terialidad concreta del pensamiento de Mellor (1997). Este constructo ficticio re-
mite al pretendido sujeto de las supuestas decisiones racionales en una sociedad de
mercado, donde los individuos son responsables de construir su propio bienestar
mediante elecciones reflexivas y calculadas. El homo economicus se presenta como
«maximizador» de sus opciones, racional en sus decisiones y egoísta en su compor-
tamiento. Dado que la génesis de tal constructo coincide con la operación social y
política de la separación de las esferas, se entiende que, en un primer momento, las
mujeres fueron entendidas como lo «Otro» del homo economicus. Las mujeres,
como reproductoras sociales, aparecen así como seres al servicio de los otros. Rous-
seau, ideólogo del patriarcado moderno, fustigará el egoísmo y las aspiraciones cul-
turales de las aristócratas para alumbrar a la obediente Sofía, una mujer atenta a
las necesidades de Emilio. Las mujeres serán presentadas como intensamente emo-
cionales, todo sentimiento, y en consecuencia, como irreductiblemente irracionales.
Esta última característica las inhabilitará para la esfera pública, para la economía y
la política. La atribución social del altruismo con los más próximos sellará su «en-
trega» al trabajo doméstico y al cuidado. Este altruismo es además, «inmediato»,
no admite dilaciones, hay que responder al momento a las necesidades de los demás
y esto va a privar a las mujeres no solo de la habitación propia, que reclamaba Vir-
ginia Woolf, sino de tiempo propio.
A pesar de los cambios sociales, respecto a las relaciones de género, ocurridos en
el siglo XX, Mellor puntualiza que «En una sociedad dominada por el hombre eco-
nómico en la que la responsabilidad por las decisiones productivas descansa en las
compañías, laboratorios y gobiernos (mayoritariamente masculinos), no puede haber
voz para las mujeres y para la naturaleza» (Mellor, 2000: 137). En la esfera pública,
se espera que las mujeres «incorporadas» se asimilen y acomoden al constructo —el
estereotipo de la ejecutiva agresiva que pierde, a cambio, su feminidad—, pero dado
que la ética del cuidado sigue vigente, se espera de ellas que sus prioridades con-
cuerden con esta última. De este modo, las disonancias y tensiones se multiplican.
La traducción material de este conflicto, encarnado en la doble jornada, es una asi-
metría notable entre los sexos en la carga de trabajo —en las sociedades desarro-
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 381

lladas, con sus bajas tasas de natalidad, la presión ha pasado al cuidado de los an-
cianos—. Las tensiones que generan las dos lógicas, la de la competencia profesional
y la realización familiar como atención a las necesidades de los otros hace que las
mujeres apresadas en estos dilemas sociales estén no solo exhaustas, sino también
hambrientas del tiempo para aspirar a lo que el ideal de autonomía y de autorrea-
lización de la Modernidad prometía: alzarse sobre la red intersubjetiva como dis-
positivo terminal único y protagonista.
La construcción androcéntrica del homo economicus descansa, dice Mellor, en
la existencia de otro destinado a «absorber los aspectos subordinados de la vida»
(Mellor, 2000: 134). Frente a los aspectos subordinados de la vida, el cuidado de
los otros, principalmente, se destacan las prioridades de una agenda económica y
política caracterizada como letal por Mellor, en la estricta tradición ecofeminista.
Por decirlo con uno de los ejemplos de los años ochenta, se prefieren las armas nu-
cleares a las guarderías. La lógica de la guerra domina el lenguaje económico y po-
lítico de la competencia y la acuñación masculinista del poder duro.
Las agendas económicas y políticas se diseñan dejando atrás el carácter corporal
y necesitado de la humanidad. No se piensa sobre los imperativos de la biología ni
de la ecología. No se entiende lo humano como encarnado e incardinado en el eco-
sistema.
El homo economicus opaca la niñez, la enfermedad, el hambre, la necesidad de
descanso y sueño, la ropa sucia, las preocupaciones cotidianas, la maternidad y la
paternidad, el envejecer y las responsabilidades. En este corte operado por la ficción
del homo economicus las mujeres soportan las cargas y las tensiones entre las dos
lógicas sociales: la de la competencia y la maximización del beneficio y la del al-
truismo inmediato debido a los más próximos. Mellor parafrasea a Ynestra King:
«Este es el “pequeño sucio secreto”: la humanidad procede de la naturaleza no hu-
mana» (Mellor, 2000: 130).
La ficción del homo economicus ha forjado el imaginario social moderno del
individualismo posesivo sobre la premisa del individuo hecho y derecho que fun-
ciona independientemente, responsable solo de lo suyo, libre para toda iniciativa
económica, se ha hipertrofiado en el neoliberalismo. Su carácter burgués, su an-
drocentrismo, la identificación con la experiencia masculina del mundo y su etno-
centrismo son sus notas. Esta falsa «libertad económica» ignora los parámetros
ecológicos y biológicos que constriñen las opciones de las sociedades y la humani-
dad. Pondremos un ejemplo de su innegable y funesto éxito neoliberal en las polí-
ticas del desarrollo. Todos hemos sido testigos de la retórica triunfal de los
microcréditos como estrategia contra la pobreza. La bancarización de los y las po-
bres ha sido concebida bajo el patrón del homo economicus a partir de asunciones
neoliberales y patriarcales: —el que los mercados no están construidos socialmente
y el de que los individuos y las familias aisladas son unidades de análisis viables.
382 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

Así, hemos inventado al pobre endeudado hasta la médula, sobre todo a las mujeres
por ser más fiables al devolver el dinero. Las concepciones individualistas del em-
poderamiento femenino en contextos de pobreza están siendo atacadas duramente
porque descuentan las dimensiones de ciudadanía a las que las mujeres tienen de-
recho. Se opta por «sálvese quien pueda» antes que por políticas públicas igualita-
ristas de empleo, asumiendo el empequeñecimiento del Estado en consonancia con
el credo neoliberal. El caso reciente de Brasil demuestra cómo reducir las desigual-
dades es una cuestión de políticas públicas redistributivas y políticas de empleo y
desarrollo capitaneadas por el Estado. Eso no resta para que, a pesar de contar con
voces críticas sobre la sostenibilidad, no se esté revisando el carácter insostenible
del crecimiento.
Por último, aunque Mellor no lo explicita, el homo economicus es una cons-
trucción trasplantada a todo el globo con el fin de romper los lazos de reciprocidad
comunitaria vigentes en gran parte de las culturas del planeta. Adelman y Taft, en
un artículo que evaluaba políticas del desarrollo, llegaban a pedir directamente a
los antropólogos, como economistas, indicaciones para ver cómo quebrar las soli-
daridades tradicionales en pos de la emergencia de la psicología ventajista y com-
petitiva del homo economicus. El rechazo al constructo, a la ficción normativa
occidentalizadora, forjada por el capitalismo, es hoy motivo de resistencia cultural,
económica y política en muchas comunidades que intentan ensayar modelos de eco-
nomía social y cooperativa. El reciente premio Nobel de economía a una mujer he-
terodoxa, Elinor Ostrom (Aguilera, 2009), debería azuzar el debate sobre otros
mitos correlativos como el de la Tragedia de los Comunes, en un momento en que
es urgente, por imperativo ecológico, establecer los usos de bienes comunes globales
como la atmósfera o los mares. Los abusos y expolios ya sabemos a dónde nos han
conducido.

MUJERES, NATURALEZA Y TIEMPO: LO SOCIAL, LO BIOLÓGICO Y LO ECOLÓGICO

Las mujeres son las generadoras primarias de plusvalía en forma de tiempo social.
MELLOR (Blasco, 2002: 23)

Abordemos, ahora, la analítica del tiempo que nos expone Mellor. El dato histórico
de partida es que la Revolución Industrial se originó a partir del mecanismo básico
del control del tiempo en el mismo momento en que la producción se desplazaba
de la casa familiar o de la comunidad a la fábrica disociando trabajo y hogar. Así,
se inventaba un dispositivo básico para organizar el trabajo: el pago por el tiempo
trabajado en forma de salario. El tiempo social originado por esta revolución está
guiado por la extracción de la plusvalía, por la aceleración y la rapidez, que van a
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 383

ensayarse con la mecanización y con los sistemas cada vez más «racionales» de tra-
bajo. Nunca olvidaremos al genial Chaplin en Tiempos Modernos burlándose de
la apuesta por la velocidad del fordismo. El caso es que el tiempo social del trabajo
colisiona, choca, con lo que Mellor va a caracterizar como tiempo biológico —el
de las necesidades humanas, el del cuidado y la reparación del cuerpo— y el aún
más reposado tiempo ecológico referido a la escala de tiempo de la sostenibilidad,
de la renovación y la regeneración de la naturaleza. Las mujeres se sitúan en las lí-
neas de choque de estas temporalidades, sobre todo en la referida al cuidado, más
en el Norte del planeta, y a la supervivencia, más en el Sur, que suma todo. El re-
sultado es el hambre femenina de tiempo que es paralela a la feminización de la po-
breza. Las jornadas de trabajo de las mujeres son extensas y extenuantes, más aún
en tiempos de más y más desregulación laboral o de trabajo intensivo en la economía
sumergida y/o informal. En los países enriquecidos, además, esta segunda jornada
se transfiere a otras mujeres en los trabajos mal pagados y precarios de las trabaja-
doras domésticas procedentes de la migración internacional.
Mellor afirma que centrarse en el trabajo de las mujeres no es esencialista, sino
materialista. Así se logra exponer una construcción del mundo material, ligado a
las necesidades biológicas y a los límites ecológicos, que tiene su base en el trabajo
y el tiempo proporcionado por las mujeres a los otros de manera gratuita. Aquí se
habla de un materialismo corporeizado, noción que toma de Ariel Salleh.
Si el objetivo es pensar una sociedad igualitaria y sostenible, habrá que revisar
la pulsión a la velocidad del capitalismo global —consuma más y más veces, pro-
duzca más de forma inmediata— y revisar el tiempo social puesto que su enajena-
ción es lesiva para la satisfacción de necesidades humanas y para la buena marcha
del planeta. La nueva organización social debe pensar la política del tiempo por
encima de la obtención del beneficio inmediato y del mero crecimiento, debe situar
a la justicia social, especialmente en sus dimensiones de clase, género y etnicidad,
y a la sostenibilidad como criterios prioritarios. Mellor habla de que sea posible
tener tiempo para crecer, para jugar, para estar enfermo, para disfrutar de la familia
y los amigos puesto que somos seres sociales con necesidades afectivas que no cubre
el consumo compulsivo con que nos seduce el aparato de marketing capitalista. La
sostenibilidad y no las fuerzas del mercado —salarios bajos, jornadas extensivas,
energía barata y polución externalizada— deben ser las rectoras (Mellor, 2000: 137).
Se trataría, por tanto, de reconectar al reloj, a la medida del tiempo con la vida
y la naturaleza, para efectivamente reconocernos en nuestra corporalidad necesitada
y en nuestra pertenencia al ecosistema local y global. Desgraciadamente, las tecno-
logías de la comunicación, tan útiles para tantas cosas, se están ensamblando en el
sistema económico para servir a la disponibilidad completa de los trabajadores, con
la exigencia de responder al instante. Con esta incursión en el tiempo de descanso,
de ocio, en alternativas incluso presentadas al servicio de la conciliación como el
384 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

teletrabajo, se vuelve a borrar la distinción trabajo-hogar, para ponerlo todo al ser-


vicio de la productividad. Tanto la economía como la tecnología, en su obsesión
por apretar el acelerador «han perdido el sentido de la interrelación de la corpora-
lidad humana con otros seres y con el mundo natural» (Mellor, 2000: 138).
Las mujeres, de nuevo, y en consonancia con lo que llevamos viendo, son res-
ponsables del tiempo biológico, vinculado al cuidado. Ellas proporcionan tiempo
a los demás y por eso son deficitarias respecto a él. La disponibilidad de las mujeres
es el punto de toque. Mellor, desde su ecofeminismo materialista, constructivista
moderado, pues en él la biología y la ecología ponen los límites de lo posible, nos
invita a pensar, desde el análisis crítico del presente, con claves ecosocialistas y eco-
feministas, una nueva utopía social que tiene que ver con superar las condiciones
materiales y simbólicas del patriarcado capitalista, del capitalismo patriarcal. En
sus palabras:

La posición por la que abogo es un ecofeminismo materialista profundo que analice las
relaciones materiales de sexo/género en términos de la confrontación de la inmanencia
humana, la corporeidad física y la inserción ecológica. (Mellor, 2000: 225)

El cuerpo humano es el punto de partida. Por eso Mellor denuncia el matricidio


que efectúa tanto la ficción del homo economicus, el adulto varón independiente,
como una economía hegemónica que «malgasta tiempos y recursos» justificando la
depredación del medioambiente y la explotación de los seres humanos. Las deman-
das del materialismo físico, el relacionado con la biología y la ecología, no desapa-
recen. Este materialismo se contextualiza en un holismo ecológico que señala límites
y constricciones y que enseña nuestra pertenencia a lo natural.
Los ecofeminismos están llamados a jugar un gran papel en este nuevo escenario
global teórico y vital. Históricamente, los ecofeminismos no solo nos han propor-
cionado y reiterado las preguntas sobre el cuerpo biológico y sus capacidades ge-
neradoras y hospitalarias, o sobre la naturaleza en su hacer ecológico regenerador,
sino que nos van a permitir hacernos cargo de la vida de las mujeres de otras lati-
tudes, de esas visiones ecofeministas de las pobres y de las indígenas que hoy ins-
piran muchos movimientos sociales de mujeres plurales y diversas, por ejemplo, en
América Latina.
Los ecofeminismos, en primer lugar, y como decíamos, se han ocupado del
cuerpo, del buen vivir, de la sexualidad, de la procreación y de la salud. En segundo
lugar, como ecofilosofías, permiten, al menos, en muchas de sus versiones, un te-
rreno común con las cosmovisiones naturalistas de otros pueblos, con lo que ahora
reconocemos como el «giro eco-territorial» de las emergencias indígenas. Hablan
de la vida, de la subsistencia y del enraizamiento en la tierra, hablan de acomodar
las necesidades humanas a los ciclos naturales y del ser igualmente cíclico de las
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 385

mujeres. Esta «conexión» se presenta como elemento de privilegio vital, investido


de autoridad simbólica, imprescindible para abordar una transformación de la eco-
nomía del despilfarro en economía solidaria, al servicio del «buen vivir», dejando
atrás el desarrollismo depredador que aniquila ecosistemas y pueblos. Las meta-
morfosis y las transposiciones (Braidotti, 2005 y 2009), por usar las imágenes en las
que Rosi Braidotti concentra su propuesta de feminismo materialista y vitalista, se
suceden, devienen al combinarse los discursos feministas, los ecologistas y las cos-
movisiones indígenas, alimentando los afectos y las imaginaciones de movimientos
sociales en distintos procesos políticos en Latinoamérica. Queda por delante una
enorme tarea de traducción intercultural y de articulación política tendente a la
transformación ecosocial y feminista que conduzca a la justicia. En suma, el pensa-
miento ecosocial de Mary Mellor cumple con los requisitos planteados por Alicia
Puleo para engrosar la categoría de ecofeminismos ilustrados y críticos. Mary Me-
llor, autora señera de la tradición ecofeminista materialista, como hemos visto, re-
cupera, a su modo y añadiendo la dimensión de la sostenibilidad, lo dicho por una
feminista italiana histórica, Mariarosa Dalla Costa. Necesitamos pensar e imaginar
«…un nuevo tipo de desarrollo en el que la reproducción humana no esté cons-
truida sobre un insostenible sacrificio de las mujeres como parte de una estructura
que solo contempla al tiempo de trabajo dentro de una intolerable jerarquía sexual»
(Dalla Costa, 2009: 311).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUILERA, Federico (2009): «Una nota sobre la Nobel de Economía Elinor Os-
trom», Revista de economía crítica, nº 8, segundo semestre, pp. 4-7.
BRAIDOTTI, Rosi (2005): Metamorfosis, Madrid, Akal.
— (2009): Transposiciones, Barcelona, Gedisa.
BLASCO, Jaume (2002): «Ecologismo, feminismo y socialismo. De la intergración
ideológica a la transformación social. Una conversación con Mary Mellor» Eco-
logía Política, nº 23, pp. 19-24.
DALLA COSTA, Mariarosa (2009): Dinero, perlas y flores en la reproducción femi-
nista. Madrid, Akal.
FRASER, Nancy (2009): «El feminismo, el capitalismo y la astucia de la historia»,
New Left Review, nº 56, pp. 87-103.
GUERRA PALMERO, María José (2012): «La nueva Ariadna y las Ilustraciones olvi-
dadas. Crítica, sensibilidad y utopía para el siglo XXI», Daimon. Revista Interna-
cional de Filosofía, nº 57, pp. 169-172.
MELLOR, Mary (1997): «Women, nature and the social construction of economic
man», Ecological Economics, 20, pp. 129-140.
386 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR

— (2000): Feminismo y ecología. México, Siglo XXI.


NARAYAN, Uma (2005): «Colonialismo, género, sector laboral informal y justicia so-
cial», en Anales de la Cátedra Francisco Suárez. Serie III, 39, pp. 337-350.
PULEO, Alicia (2008): «Libertad, igualdad, sostenibilidad. Por un mundo ilustrado»,
Isegoría. Revista de Filosofía Moral y Política, nº 38, pp. 39-59.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
RUSSELL HOCHSCHILD, Arlie (2008): La mercantilización de la vida íntima. Apuntes
de la casa y el trabajo. Buenos Aires, Katz.
SEN, Amartya (1977): «Rational Fools: A Critique of the Behavioral Foundations of
Economic Theory», en Philosophy and Public Affairs, Vol. 6, nº 4, pp. 317-344.
VALENZUELA, María Elena (ed.) (2005): ¿Nuevo sendero para las mujeres? Micro-
empresa y género en América Latina en el umbral del siglo XXI, Santiago de Chile,
Ediciones LOM.
VERA-SANSO, Penny (2008): «Whose money is it? On Misconceiving Female Au-
tonomy and Economic Empowerment in Low Income Households», Institute of
Development Studies Bulletin, Reclaiming Feminism: Gender and Neoliberalism.
Vol. 39, nº 6, pp. 51-59.
WARING, Marilyn (1989): If Women Counted. London, Macmillan.
23. El ecofeminismo y sus compañeros de
ruta. Cinco claves para una relación positiva
con el Ecologismo, el Ecosocialismo y el De-
crecimiento1
Alicia H. PULEo
Cátedra de Estudios de Género de la Universidad de Valladolid
Instituto de Investigaciones Feministas de la Universidad Complutense de Madrid

L
a memoria feminista conserva un pasado de esperanzas defraudadas y apoyos
no recíprocos en relación con otros movimientos sociales. El presente trabajo
pretende contribuir a lo que me gusta llamar «Pactos de Ayuda Mutua» entre
los movimientos sociales contemporáneos, en este caso, entre el ecofeminismo y el
ecologismo en sus diversas variantes, en un tiempo de crisis múltiples y desesperada
necesidad de alternativas viables y solidarias. Nada más adecuado, para comenzar,
que recordar unas palabras de la malograda Petra Kelly, cofundadora de Los Verdes
alemanes (Die Grünen): «Nosotras queremos trabajar con nuestros hermanos del
movimiento verde, pero no queremos estar sometidas a ellos. Ellos deben demostrar
su buena voluntad para abandonar sus privilegios de miembros de la casta mascu-
lina» (Kelly, 1997: 29).
En el primer apartado recordaré algunas de las numerosas decepciones históricas
que sufrieron las feministas en su contacto con otros movimientos por la libertad y
la igualdad. En el segundo, realizaré una breve aproximación al ecofeminismo, esa
corriente del feminismo que actualmente despierta tantas expectativas en un mundo
que se enfrenta a una crisis ecológica de dimensiones crecientes. Finalmente, en el
tercero, abordaré lo que considero cinco escollos en la relación entre (eco)feministas
y ecologistas con el objetivo de señalar las vías de su superación y el consiguiente
éxito de los Pactos de Ayuda Mutua a corto, medio y largo plazo.

1
Este trabajo se ha realizado en el marco de los proyectos de investigación La igualdad de género
en la cultura de la sostenibilidad. Valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario (FEM2010-
15599) y «Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS: FFI2013-42935-P). Una versión anterior
ha sido publicada en italiano con el título de Donne e mutamento sociale: uno sguardo ecofeminista,
en Cacciari (2014).
388 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

LA HIStoRIA, ESA GRAN MAEStRA

La larga historia de amores no correspondidos que arrastra el feminismo le previene


ante la posibilidad de depositar una confianza ingenua en los actuales compañeros
de ruta por un mundo más justo. observando los hechos históricos, el fenómeno de
los esfuerzos de las mujeres en movimientos emancipatorios distintos al feminismo
fue calificado certeramente por Celia Amorós de «alianzas ruinosas» (Amorós,
2005a: 342), dado que no estaban acompañadas de la correspondiente reciprocidad.
Las mujeres fueron, una y otra vez, utilizadas como luchadoras de la libertad y la
igualdad para, más tarde, ser olvidadas cuando llegaba el momento de la reorgani-
zación social y del cumplimiento de las promesas.
Recordemos brevemente algunas de estas amargas decepciones. Heidi Hart-
mann condensó la experiencia de las feministas con el marxismo en la elocuente
metáfora del «matrimonio mal avenido» que servía de título al artículo en el que
denunciaba la constante subordinación de «la cuestión femenina» en partidos y sin-
dicatos de clase y llamaba a una integración en igualdad o, en caso contrario, al «di-
vorcio» (Hartman, 1979).
ya durante la Revolución francesa, en ese momento fundacional de las ideas de
libertad, igualdad y fraternidad, las mujeres que participaron en la gesta vieron de-
fraudadas sus esperanzas. tras la exclusión de las mujeres de los debates de la asam-
blea revolucionaria, la girondina olympe de Gouges escribe: «El hombre esclavo
ha redoblado sus fuerzas y ha necesitado apelar a las tuyas para romper sus cadenas.
Pero una vez en libertad, ha sido injusto con su compañera. ¡oh, mujeres! ¡Mujeres!
¿Cuándo dejaréis de estar ciegas? ¿Qué ventajas habéis obtenido de la revolución?
Un desprecio más marcado, un desdén más visible» (De Gouges en Puleo,
1993:160). Las jacobinas —protagonistas de la marcha de las mujeres a Versalles que
dejó al rey Louis XVI en manos de la Asamblea Nacional— vieron cómo sus com-
pañeros de partido cerraban por decreto su Club de Ciudadanas Republicanas Re-
volucionarias y las exhortaban a volver al ámbito doméstico en nombre de las leyes
naturales. Según afirmaba el diputado Amar, inspirado en Rousseau, su deseo de
participar en la política no era sino un alejamiento de la misión fijada por la Natu-
raleza, la de ser madres dedicadas al hogar.2 Este recordatorio solo se produjo cuando
los jacobinos habían llegado al poder y ya no necesitaban movilizar a sus bases fe-
meninas. Pauline Léon y Claire Lacombe, sus activistas más destacadas, se salvaron
de la guillotina gracias a una oportuna huida al extranjero. Ni el esfuerzo de las re-

2
Su discurso, que fue seguido por el decreto de la Convención Nacional que prohibía todo club
político de mujeres, tuvo lugar en la sesión del 9 Brumario, que corresponde a la fecha del 30 de oc-
tubre de 1793. Fue publicado en el periódico revolucionario Le Moniteur universel (tome 18, n°40,
p. 164).
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 389

volucionarias fue reconocido ni se produjeron avances en la situación del colectivo


femenino. En el siglo siguiente, las mujeres se implicaron en la lucha por la abolición
de la esclavitud de los negros pero los líderes abolicionistas no devolvieron el apoyo
recibido cuando, más tarde, se trató de conseguir el voto para las mujeres.
Cierto es que la participación en los movimientos emancipatorios a menudo ha
sido un revulsivo que despierta iniciativas feministas. Las delegadas norteamerica-
nas en la lucha antirracista por la abolición de la esclavitud descubrieron que se les
negaba la entrada al Congreso internacional abolicionista de Londres por el hecho
de ser mujeres. Este rechazo inesperado les llevó, ya de vuelta a EE UU, a crear, en
1848, el movimiento sufragista, convencidas de que era necesario luchar por sus
propios derechos civiles y políticos: el voto, la capacidad de administrar sus bienes,
de trabajar sin solicitar el permiso de sus maridos, de cursar estudios superiores o
ejercer profesiones liberales. El sufragio era considerado la clave para poder, a partir
de su obtención, superar su condición de eternas menores de edad.
Como señala Ana de Miguel, el sufragismo encontró en el socialismo marxista
un inesperado oponente que recomendó a las mujeres postergar cualquier demanda
de igualdad con la promesa de que la revolución proletaria solucionaría automáti-
camente la injusta subordinación femenina (De Miguel, 2008a). Por un lado, los es-
critos de Engels contribuyeron a socavar los argumentos naturalizantes que excluían
a las mujeres del trabajo y de la vida política, pero, por otro, su tesis —que más tarde
los estudios antropológicos revelaron errónea— sobre el origen del patriarcado como
resultado de la aparición de la propiedad privada, fundamentaba el mandato de
abandonar las reivindicaciones sufragistas, consideradas irrelevantes, y de concentrar
todas las energías exclusivamente en la lucha de clase, negando la existencia de cual-
quier opresión de sexo en el seno de la familia obrera (Puleo, 2012).
Con la segunda ola del feminismo, en los años sesenta y setenta del siglo pasado,
resurgió el debate sobre «el enemigo principal» (Delphy, 1982): patriarcado o capi-
talismo y las feministas socialistas tuvieron que batallar para que se reconocieran los
legítimos intereses de las mujeres (Molina Petit, 2005). Las experiencias frustrantes
en el movimiento de estudiantes de la Nueva Izquierda llevaron a las más jóvenes a
crear los grupos del feminismo radical. observemos la similitud con los aconteci-
mientos vividos en Madrid, Barcelona y otras ciudades en 2011 cuando las jóvenes
descubrieron, perplejas, que entre los participantes del nuevo movimiento de Indig-
nados del 15-M se manifestaban actitudes sexistas, indiferentes y hasta agresivas con-
tra sus demandas de visibilización de las mujeres. Esta experiencia las llevó a
organizarse en torno al lema «Sin feminismo, no hay revolución» (Ezquerda, 2012).
No hay duda de que, como señalaba más arriba, los momentos de movilización social
y política abonan el terreno para el resurgimiento de las demandas feministas.
Las feministas radicales de los setenta releyeron el freudo-marxismo en clave
de género (Amorós, 2005b) y plantearon una transformación social en profundidad
390 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

que reconocía en las bases del sistema patriarcal no solo aspectos jurídicos y eco-
nómicos, sino también afectivos y simbólicos ((Puleo, 2005; De Miguel, 2008b).
Autodenominadas «radicales» en alusión al sentido etimológico de «ir a la raíz» de
un problema,3 estaban redefiniendo lo que se consideraba una buena vida (en tanto
anhelo de felicidad), la vida buena (como ideal ético) y la sociedad justa (u organi-
zación política basada en principios, virtudes y valores éticos). De ahí que se incluya
al feminismo, a pesar de su larga trayectoria, dentro de los llamados «nuevos mo-
vimientos sociales» junto con el ecologismo (Dalton y Kuechler, 1992). Ambos tu-
vieron similares desencuentros con teóricos y militantes de la izquierda que tardaron
bastante en aceptar (quienes lo han hecho, que no son todos) que la economía no
era la única clave explicativa de todo fenómeno social y que una industrialización
devastadora basada en el mito del crecimiento indefinido no era la meta indiscutible
que aportaría un bienestar sin sombras a la humanidad.
Pero el ecologismo, como movimiento emergente, a pesar de tener unas bases
altamente feminizadas, no ha estado exento de reproducir los viejos errores de
otros movimientos progresistas con respecto a las mujeres. Cierto es que los par-
tidos verdes fueron pioneros en la aplicación de la paridad en sus listas e integraron
al feminismo ya en sus inicios, impulsados en este aspecto tan innovador por el
pensamiento de figuras de la talla de Petra Kelly (Riechmann, 1991, 1992; Velasco
Sesma, 2010 y 2014). Pero las ecofeministas materialistas Ariel Kay Salleh (1994)
y Mary Mellor (1997) tuvieron que criticar la devaluación del trabajo reproductivo
realizado por las mujeres en que incurrían hasta los mismos teóricos ecosocialistas.
Val Plumwood (1993) mostró la exclusión de la experiencia femenina del cuidado
empático del otro en la noción de «yo expandido» de la Deep Ecology. Mary Judy
Ress (2006) se lamentó de lo poco que se escuchaba a las ecofeministas espiritua-
listas latinoamericanas en el seno de la propia teología de la Liberación a la que
se adscribían. Estos reproches apuntan a un problema compartido que, después
de una rápida aproximación al ecofeminismo, analizaré, sin pretensiones de ex-
haustividad, en cinco puntos clave.

EL ECoFEMINISMo

Si comparamos nuestro presente con el de quienes vivieron hace un siglo y medio,


concluiremos que las mujeres han cambiado las sociedades modernas de manera
profunda, exitosa y no violenta. Lo han logrado a partir de dos momentos históricos
inéditos: el sufragismo que nació a mediados del XIX y la segunda ola del feminismo

3
y no por emplear la violencia, como parece sugerir ahora este término debido a su interesado
uso como arma de descalificación en las últimas décadas.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 391

surgida en el último cuarto del siglo XX. Por lo general, no se reconoce la autoría
de tal proeza, pero es incontestable. La tarea emancipatoria no ha terminado y las
mujeres conservan el entusiasmo y la fuerza de los sujetos sociales emergentes. El
análisis feminista de las relaciones de poder y de la construcción de las identidades
de género se ha extendido a múltiples aspectos sociales y culturales. Con mucha
propiedad, el feminismo podría hacer suya la afirmación «nada de lo humano me
es indiferente». y si atendemos a su implicación ecológica a través de la corriente
llamada ecofeminismo, agregaremos: «ni de lo no humano». En sus diferentes for-
mas, el ecofeminismo aborda los nuevos problemas derivados del desarrollo indus-
trial; analiza las relaciones entre patriarcado y dominio sobre la naturaleza;
revaloriza las actitudes y virtudes de la ética del cuidado históricamente propias de
las mujeres; denuncia los graves problemas de salud sufridos por las mujeres a causa
de la contaminación;4 revela la miseria y la multiplicación de las tareas de las mujeres
más pobres debido al deterioro medioambiental y sostiene que el modelo neoliberal
tecnocapitalista depredador ha de ser reemplazado por una relación armónica con
el medio que, en vez de buscar el beneficio mercantil a corto plazo, conserve los
recursos naturales, respete a los demás seres vivos y atienda al bien común.
Minoritario dentro del feminismo, el ecofeminismo es hoy una fuerza emergente
que atrae sobre todo a las jóvenes, genera estilos de vida ecológico-feministas, se
concreta en acciones precisas ecológicas y animalistas, se difunde en las redes so-
ciales a través del ciberactivismo y se expresa con diversos enfoques en las Huma-
nidades y las Ciencias Sociales. Como en toda corriente de pensamiento vivo, el
núcleo de ideas compartidas —en este caso, la tesis de una relación entre patriar-
cado, subordinación de las mujeres y dominio sobre la Naturaleza no humana—
no impide la existencia de posturas diferentes y hasta radicalmente opuestas entre
las distintas pensadoras. Algunas teóricas se han decantado por el esencialismo con
respecto a la identidad de género, otras optan por el constructivismo. El materia-
lismo histórico ha inspirado ciertas investigaciones, las teorías postmodernas, otras.
Hay quien ha partido de hipótesis antropológicas de difícil comprobación sobre la
existencia de un supuesto matriarcado primitivo que, sostienen, subsistiría en al-
gunos pueblos actuales,5 afirmación que —no puedo dejar de señalar— suscita mi
escepticismo. Algunas pensadoras se han centrado en el análisis de la estructura so-

4
Los pesticidas y herbicidas actúan como xenoestrógenos, causando un notable incremento del
cáncer de mama y del Síndrome de Hipersensibilidad Química múltiple tanto en productoras como
en consumidoras. Sobre la incidencia de los productos químicos en la salud de las mujeres, ver, en
este libro, el capítulo «Sesgos de género en medio ambiente y salud», de la endocrinóloga Carme
Valls-Llobet.
5
Para un ejemplo de esta posición, ver en este libro el trabajo de Kaarina Kailo «Del patriarcado
como sistema alquímico al imaginario del don».
392 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

cioeconómica del capitalismo desde una perspectiva ecofeminista.6 otras han de-
sarrollado sus tesis ecofeministas desde la teología (p. e. Gebara, 2000) o la Filosofía
(p. e. Plumwood, 1993), o desde cosmovisiones no occidentales (p. e. Shiva, 1988).
también existe diversidad en la interpretación de la historia de la Filosofía y en las
consideraciones en torno a la ética animal (Adams y Donovan, 1995; Warren, 1996;
Puleo, 2011).
Por último, cabe destacar que la interrupción voluntaria del embarazo y hasta
el control de la natalidad parecen suscitar reparos a algunas ecofeministas (p. e.
Mies, 1998), lo cual me ha llevado a sostener que un ecofeminismo que parte de la
idea de «santidad de la vida» conlleva un alto riesgo de alejamiento con respecto a
las reivindicaciones de libertad y de decisión sobre el propio cuerpo del feminismo.
Existe también lo que puede considerarse una praxis ecofeminista en la que sus
agentes no se auto-aplican ese calificativo. Como forma del llamado «ecologismo
de los pobres» (Martínez Alier, 2004), esa praxis ecofeminista tiene una presencia
creciente en la resistencia a lo que la ecofeminista y altermundialista Vandana Shiva
ha llamado «el mal desarrollo» (Shiva, 1988). Los grupos de mujeres en lucha contra
proyectos locales devastadores del medio ambiente se han multiplicado en las últi-
mas décadas. Este incremento responde principalmente a la intensificación del
ritmo de la globalización neoliberal. La disminución de los recursos naturales de-
bido a la sobreexplotación y el fenómeno de la deslocalización de las empresas han
ampliado los límites espaciales y la profundidad de implantación del modelo que
algunos han llamado, con demasiado optimismo, «capitalismo desmaterializado».
Lejos de hacerse independiente de los bienes naturales, esta fase globalizada co-
rresponde a la liquidación final de la Naturaleza y a la inclusión forzada de la tota-
lidad de humanos y no humanos en los engranajes implacables de la economía de
mercado.
El sistema de producción agrícola hegemónico destruye la biodiversidad, genera
pobreza y exclusión social. Empeora notablemente las condiciones de la vida coti-
diana de las campesinas del Sur, haciendo más difícil su labor de obtención de ali-
mentos, de leña o de agua. ya en los años ochenta del siglo XX, V. Shiva denunciaba
que las mujeres rurales de la India que vivían en una economía de subsistencia eran
las primeras víctimas de la llegada de la explotación intensiva «racional» dirigida
al mercado internacional (Shiva, 1988). El avance de la deforestación les condenaba
a recorrer a pie grandes distancias para encontrar la leña que antes recogían junto
al pueblo. organizadas en torno a los principios de respeto a los demás seres vivos
propios de la tradición de la India y de las enseñanzas de Gandhi, las mujeres

6
Para una exposición del ecofeminismo materialista de Mary Mellor, ver en este mismo libro el
capítulo de María José Guerra «Ecofeminismos materialistas. Política de la vida y política del tiempo
en Mary Mellor».
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 393

Chipko se abrazaron a los árboles en turnos de vigilancia hasta lograr la detención


de la tala de los bosques comunitarios en contra de la voluntad de sus maridos que
preferían venderlos. En los últimos años, mujeres de los pueblos originarios de
América Latina han comenzado a organizarse para reivindicar las tierras ancestrales
y rechazar los proyectos de la megaminería. El Frente de Mujeres Guardianas de la
Amazonia ha denunciado las actividades extractivistas de empresas multinacionales
causantes de una monstruosa contaminación y de la expulsión de los pueblos ori-
ginarios de sus propios territorios. Numerosas mujeres rurales se han opuesto a la
invasión de los transgénicos y al uso masivo de agrotóxicos, esa guerra contra la
Naturaleza que es también guerra contra los seres humanos más pobres. Gracias a
organizaciones de mujeres rurales e indígenas como Anamuri, de Chile, se ha reve-
lado el potencial político de algunas costumbres de valor ecológico que antes se
consideraban sin relevancia. Este es el caso del intercambio de semillas y saberes
en el trafkintu7 propio del territorio mapuche. Hay casos trágicos, como los de ma-
dres que perdieron a sus hijos debido al incremento de la leucemia infantil en zonas
cercanas a campos fumigados. Como antaño las Madres de Plaza de Mayo, ahora
las Madres del Barrio Ituzaingó Anexo, en la provincia de Córdoba, Argentina
(García Forés, 2012) se han movilizado hasta conseguir pequeños pero difíciles éxi-
tos judiciales. En otras ocasiones, las mujeres tomaron el relevo de la resistencia
cuando los hombres habían sido asesinados. tal fue el origen del movimiento de
mujeres organizadas que se opusieron con valentía a la deforestación en el pueblo
de Cherán, en Michoacán, México. Como puede observarse en la entrevista a una
de las participantes en esta lucha, los motivos prácticos de orden utilitario se unen
a una visión biocéntrica, pre-moderna que coincide con intuiciones de la ética eco-
lógica desarrollada en centros filosóficos de vanguardia: «Antes había árboles que
solo se podían abrazar entre cuatro personas, nos dejaron arbolitos que puedes
abrazar tú solita, por eso decidimos reforestar, muchas nos dedicamos a plantar y
cuidar los árboles; para nosotras son una fuente de recursos, pero también un ser
al que le debemos respeto».8
La participación de mujeres en el movimiento internacional por la Soberanía
Alimentaria ha dado lugar a la Declaración de Nyéléni (Mali, 2007) en la que piden
que se reconozca que las mujeres han sido pioneras en el conocimiento popular de
la agricultura y que, actualmente, actúan como verdaderas guardianas de la biodi-
versidad cuando se ocupan de conservar e intercambiar semillas autóctonas. Re-

7
La conciencia de la importancia del trafkintu ha llevado a la Carta de Kurarrewe: Proclamación
por el cuidado de la semilla y la soberanía alimentaria del wallmapu de mayo de 2012. Puede consul-
tarse en Internet.
8
Campesinas se transforman en Guardianas para asegurar la defensa de la Amazonia. Entrevista
a Inés Fajardo, en «Cimacnoticias. Periodismo con perspectiva de género», 21/02/2014. Puede con-
sultarse en: http://www.adital.com.br/?n=cdfs (consultado el 30 de noviembre de 2013).
394 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

cuerdan también que son quienes producen el 80 % de los alimentos en los países
más pobres. Enumeran los daños causados por la agricultura industrial, reclaman
para las mujeres el acceso a la tierra, a los recursos y servicios esenciales y piden la
participación política. Rechazan explícitamente tanto la opresión moderna del mer-
cado como la antigua de las sociedades tradicionales. Por su parte, el Documento
Final del Noveno Encuentro Internacional de la Marcha Mundial de las Mujeres
(MMM, 2013), preparatorio de la Cuarta Acción Internacional de la Marcha Mundial
de las Mujeres de 2015, reivindica una «cultura feminista contra-hegemónica» que
incluye entre sus objetivos la lucha contra el agronegocio, el hidronegocio, el ex-
tractivismo, los cultivos transgénicos y la expropiación de tierras a la vez que de-
nuncia la violencia sexista y el conservadurismo crecientes que están vinculados a
estas nuevas formas de dominio del mundo. Vemos, pues, que la lucha por la So-
beranía Alimentaria abre nuevas vías de reivindicación de la dignidad y la autono-
mía de las mujeres.9 En el medio rural, un ámbito difícil para las reivindicaciones
feministas, se comienza a tomar conciencia de la subordinación femenina y de la
violencia patriarcal. Las mujeres ya no se resignan a ser productoras invisibles y re-
claman reciprocidad.

CINCo CLAVES PARA UNA AMIStAD DURADERA

De los llamados nuevos movimientos sociales se ha afirmado que son praxis cogni-
tiva que opera una redefinición de la realidad. En este sentido, el feminismo, a pesar
de su larga historia, puede ser incluido entre los nuevos porque ha redefinido lo
que es ser hombre y mujer al cuestionar y transformar las relaciones entre los sexos
(De Miguel, 2003). El ecologismo y el animalismo, en sus diversas formas, redefinen
también al ser humano y a la naturaleza no humana. Los movimientos gay y lésbico,
el LGtB y, recientemente, el movimiento asexual han propuesto nuevas visiones del
amor y la sexualidad. En la estela del ecologismo, son también redefiniciones de la
realidad aquellos paradigmas que, como el decrecimiento, la ecología social, el eco-
socialismo y el ecofeminismo, a pesar de las diferencias que los separan, coinciden
en transformar el criterio con el que se mide la calidad de vida, abandonando la ti-
ranía del mercado o dogmas tales como «más siempre es mejor».
tanto en su teoría como en su praxis, el ecofeminismo comparte numerosos
principios y metas con los demás paradigmas alternativos a los dogmas actuales del

9
Sobre las tensiones provocadas por las demandas de las mujeres en la práctica de la Agroecología,
una disciplina ligada a la meta de la Soberanía Alimentaria, ver el capítulo de este libro titulado «Una
mirada ecofeminista sobre las luchas por la sostenibilidad en el mundo rural» de la investigadora bra-
sileña Emma Siliprandi.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 395

crecimiento, del homo oeconomicus, del antropocentrismo extremo y de la econo-


mía de mercado. La crítica al sistema capitalista, el reclamo del ecosocialismo de
transformar en profundidad las estructuras de producción y consumo y de demo-
cratizar las decisiones económicas, acaparadas hoy en día por unos pocos (Lowy,
2011; Riechmann, 2013), son compartidos por numerosas ecofeministas en su pro-
puesta de un mundo más justo y sostenible. La convivialidad de Iván Ilich, la sen-
cillez y la amistad de las sociedades verdes del futuro frente a los objetivos de
competitividad, poder y dinero eran ya una meta de las escritoras consideradas ins-
piradoras del pensamiento ecofeminista.10 Los ocho pilares del decrecimiento en
Serge Latouche, expresados en sus famosas ocho R (reevaluar, recontextualizar, res-
tructurar, relocalizar, redistribuir, reducir, reutilizar y reciclar) (Latouche, 2009),
pueden leerse desde la perspectiva ecofeminista. también la R de «recuperar» téc-
nicas y saberes tradicionales.11 En primer lugar, como ya he señalado, el ecofemi-
nismo reconceptualiza el mundo humano y no humano. Si el feminismo permite
ver el mundo con gafas violetas, el ecofeminismo inaugura una visión verde y violeta.
Frente al contractualismo, revaloriza la ética del cuidado, abriendo así el espacio
de la responsabilidad ecológica y transgeneracional y de la superación del espe-
cismo, concebido como visión arrogante patriarcal sobre los animales no humanos.
El ecofeminismo nos recuerda que reutilizar y reciclar son actitudes y tareas coti-
dianas de millones de mujeres en el mundo. tanto la agricultura campesina como
el saber tradicional de las mujeres que trabajan los huertos familiares se caracterizan
por el cierre de los ciclos de la materia y el respeto a los tiempos necesarios para la
vida. Con respecto a reducir el consumo, la huella ecológica, los desplazamientos
y el tiempo de trabajo para poder disfrutar del ocio y de las relaciones interperso-
nales, el ecofeminismo puede añadir las consideraciones feministas sobre la doble
jornada de trabajo que agobia a la «superwoman» moderna. La salida de las mujeres
del espacio doméstico se ha producido sin que se transformara el perfil masculino
del puesto de trabajo, es decir, conservando una visión del trabajador como hombre
liberado de las tareas domésticas necesarias para la vida puesto que había una es-
posa que se ocupaba de ellas. Reestructurar la base económico-productiva, desde
la perspectiva de la economía feminista, incluye tomar en cuenta también la esfera
del cuidado indispensable para la reproducción de la vida humana. Finalmente, las
demandas de acceso a los recursos y las movilizaciones por los conflictos ecológicos

10
Un ejemplo de ello es la excelente novela de ciencia ficción de Ursula Le Guin El nombre del
mundo es bosque (the Word for World Is Forest) cuya publicación en inglés data de 1976.
11
Sobre el protagonismo de las mujeres en esta tarea, ver, en este libro, el capítulo «Aportaciones
de las mujeres indígenas al diálogo entre filosofía y ecología», de la profesora mexicana Georgina
Aimé tapia González; y el ya citado de la especialista brasileña en mujeres y Agroecología, Emma
Siliprandi.
396 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

distributivos de la praxis ecofeminista plantean redistribuir como forma fundamen-


tal de la justicia y de la sororidad internacional tras desvelar que las mujeres pobres
son las más afectadas por la injusticia económica y ambiental.
Son muchos los puntos de contacto y coincidencia entre el ecofeminismo y las di-
ferentes propuestas ecologistas. Sin embargo, también existen zonas de sombra para
los intereses emancipatorios de las mujeres. Voy a referirme brevemente a las más no-
tables. No trataré el animalismo, tanto porque reivindica su diferencia con respecto al
ecologismo como porque me propongo dedicarle un estudio específico en el futuro.
Llamaré a estas cinco zonas opacas de los nuevos paradigmas ecológicos: mujeres
invisibles, emancipación en diferido, Ilustración olvidada, multiculturalismo beato,
y viejo hombre nuevo.

1) Mujeres invisibles

En las relaciones entre la teoría feminista y las teorías ecologistas (en sus muy diversas
variantes) se suele reproducir la falta de reciprocidad y reconocimiento que se ob-
serva entre los sexos en el conjunto de la sociedad patriarcal. Las feministas estudian
y citan a teóricos de todo origen pero la inversa es mucho menos frecuente. Pocos
son los autores que, desde el ecologismo, el ecosocialismo o el decrecimiento, reco-
nocen las aportaciones del feminismo.12 Así, por ejemplo, un famoso pensador de la
teoría del decrecimiento no tiene problemas en reconocer parentescos con la Eco-
logía Social de Murray Boockin, la Deep Ecology de Arne Naess, el neozapatismo
de Chiapas, el sumak kausay (buen vivir) de los pueblos originarios de Latinoamérica
pero reduce la gran diversidad existente de expresiones del ecofeminismo (populares
y académicas, filosóficas y sociológicas, etc.), a una irónica y peyorativa mención a
las «grandes sacerdotisas ecofeministas de los cultos neopaganos sincréticos y new
age» (Latouche, 2007: 156). Asimismo, es asombroso que logre el prodigio de hablar
de control demográfico y reproducción humana sin mencionar siquiera una sola vez
la palabra «mujeres» o referirse de alguna otra manera a su existencia (Latouche,
2007: 46-50). En otros autores, existe una tendencia a subsumir la pluralidad de
las mujeres en la categoría «la mujer», lo cual es también una forma de invisibilidad
de todas y cada una en tanto personas diversas. Esta invisibilidad no solo suele ser
algo común en los textos, también se da en la dinámica cotidiana de grupos de jó-
venes por la sostenibilidad. En ocasiones, algunas activistas me han comentado su
decepción por haber descubierto que se contaba siempre con las mujeres para las

12
Son honrosas excepciones a esta regla del total olvido y el silencio: Andrew Dobson (1997),
Paolo Cacciari (2008), Jorge Riechmann (2012, 2013), Joan Martínez Alier (2007) y Florent Marcellesi
(2012), entre otros.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 397

tareas cotidianas de infraestructura pero pocas veces las elegían cuando surgía la
oportunidad de enviar un portavoz a los medios de comunicación, por ejemplo.
Asimismo, en la estructura de numerosas oNG ambientales puede advertirse la co-
nocida pirámide de bases femeninas y cúspide masculina.

2) Emancipación en diferido

Esta es una antigua y recurrente exigencia que se ha hecho a las mujeres desde
movimientos sociales progresistas distintos al feminismo. Se les llama a postergar
sus intereses como colectivo de género y a plegarse a un objetivo general que, su-
puestamente, solucionará en el futuro todos los problemas del «segundo sexo».
Como ya hemos visto, tal fue el mensaje que Engels envió a las mujeres con res-
pecto al sufragismo: la lucha sufragista no tenía sentido ya que la sociedad comu-
nista que emergería tras la revolución no sería patriarcal. Por ello, las mujeres
debían olvidar sus propias reivindicaciones y dedicar todos sus esfuerzos a acelerar
el proceso revolucionario. La historia demostró después que no se cumpliría tal
promesa. Este no es el único caso de promesa incumplida. Los ejemplos históricos
son innumerables. En los procesos de lucha social y política se suele aceptar la
participación de las mujeres mientras se está en el momento de la lucha y se nece-
sita sumar energías. Cuando se alcanza el poder, las demandas de las mujeres son
generalmente ignoradas. Recordar este triste fenómeno no implica aconsejar que
las mujeres se abstengan de participar en otra lucha social que no sea el feminismo
pero sí que lo hagan desde la autoconciencia de pertenecer a un colectivo de sexo
que ha padecido y padece un tipo especial de opresión. La emancipación en dife-
rido no es más que una promesa vana si no se acompaña de una praxis igualitaria
en el seno del grupo desde el presente. Este gran escollo de la emancipación en
diferido está estrechamente ligado a la invisibilización de las mujeres, a su percep-
ción como «idénticas» y a su no reconocimiento pleno como sujetos en igualdad.
El ecofeminismo ha de cumplir, al respecto, la función de una necesaria negocia-
ción preventiva con el ecologismo.

3) Ilustración olvidada

El discurso postmoderno ha desmontado la imagen autocomplaciente de la Mo-


dernidad occidental. Era necesario hacerlo pero, en su esfuerzo deconstructivo, ha
terminado poniendo en duda los principios de la resistencia a la opresión. He de-
nominado ecofeminismo crítico (Puleo, 2011) a mi propuesta de una teoría ecofe-
minista que sea capaz de eludir los peligros que encierra para las mujeres la renuncia
398 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

al legado de derechos de la Modernidad. todos los ecofeminismos son críticos en


la medida en que cuestionan el sistema actual pero el adjetivo «crítico» alude en
este caso a la necesidad de conservar el legado emancipatorio del pensamiento ilus-
trado. Indudablemente, la Modernidad tiene muchas caras y algunas nos han lle-
vado a la crisis ecológica actual. Pero no debemos olvidar que el movimiento
filosófico de la Ilustración representa una formidable lucha contra la opresión re-
ligiosa y política. La crítica al prejuicio y las ideas de autonomía y de igualdad de
todos los hombres han sido decisivas para el surgimiento imparable de las reivin-
dicaciones de las mujeres. tenemos que construir una nueva cultura ecológica sin
desandar el camino recorrido por el feminismo ni abandonar los fundamentos que
nos han permitido avanzar en él. En este sentido, es necesario dejar clara la reivin-
dicación de los derechos sexuales y reproductivos. Frente a una difusa exaltación
de la Vida que esconde la tradicional negativa a dar autonomía sexual a las mujeres,
el ecofeminismo crítico que propongo defiende la libre determinación sobre el pro-
pio cuerpo (Puleo, 2011). De hecho, el texto en el que por primera vez se utilizó el
término ecofeminismo era un artículo de Françoise d’Eaubonne publicado en 1974
que sostenía que la sobrepoblación del planeta, tema que preocupaba a los ecolo-
gistas, era el resultado de la negación patriarcal del derecho a decidir de las mujeres
sobre sus propios cuerpos. Esta idea se ha debilitado en los desarrollos ecofeminis-
tas posteriores. Algunas teóricas incluso han demonizado todo recurso tecnológico
por considerarlo una expresión del patriarcado capitalista. Vuelven, así, a la imagen
de la mujer definida por su rol de madre.
Por otro lado, ciertas formas del ecologismo están actualmente impulsando un
discurso esencialista y antifeminista que reactivará probablemente el justificado
temor de las mujeres al ecologismo. Esto es muy negativo tanto para las mujeres
como para el ecologismo. «your body is a battleground», denunciaba la artista plás-
tica Barbara Krugger en una obra feminista ya célebre. Una vez más, ahora teñido
de verde, el cuerpo de las mujeres se presenta como territorio de lucha. En 2012,
la influyente revista the Ecologist, en su versión para España y Latinoamérica, pu-
blicó un monográfico titulado «La revolución calostral» que confirma el giro de
esta publicación periódica hacia posiciones espiritualistas neoconservadoras pro-
fundamente antifeministas.13 Los temas de portada eran elocuentes con respecto a
la estructuración del discurso: «La usurpación de la fertilidad», «La esterilización
de la población», «El proselitismo pro-abortista», «Las tecnologías terminator»,
«La mercantilización de la maternidad», «El parto/nacimiento natural», «Ciclos lu-
nares e indigenismo». El conjunto de sus artículos es una clara declaración de guerra

13
El fundador de la revista, Edward Goldsmith (1928-2009), ya sostenía en sus escritos que solo
se salvaría la naturaleza si se santificaba la familia y se adoptaba una organización social tradicional
en que las mujeres volvieran a sus tareas de cuidado del hogar.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 399

contra el Ecologismo Político que, por el contrario, acepta el derecho al aborto y a


la eutanasia. Estos derechos de libertad individual son presentados como formas
de opresión del Estado «paternal-autoritario». La eutanasia solo es objeto de una
breve mención. El tema central es, como lo muestra el título elegido, la condena
inapelable del aborto al que consideran negación de la fertilidad y oculta forma an-
tiecológica elegida por los poderes económicos y políticos para dominar el mundo.
Al no llamar a la obediencia, sino a la insumisión, los autores muestran conocer
bien cómo conseguir la adhesión de un público alternativo y contestatario. Afirman
que la forma de rebelarse frente al «tecnopatriarcado» es (que las mujeres acepten)
volver a los «ciclos sagrados» de la vida. Se mezclan en un totum revolutum preo-
cupaciones que no podemos dejar de compartir como la dominación económica,
la contaminación con agrotóxicos o los peligros inherentes a los cultivos transgéni-
cos con manipulaciones ideológicas en torno a la interrupción del embarazo y las
prácticas anticonceptivas. Para el ecologismo neoconservador la planificación fa-
miliar y la interrupción de una gestación son algo tan irresponsable y violento como
el accionar de las grandes corporaciones que devastan el planeta o el genocidio nazi.
Entre metafísicas oscuras sobre el poder de la Eternidad y citas de sanadoras indí-
genas, encontramos alusiones a un san Agustín retocado que pondría todas las es-
peranzas de cambio del mundo en el poder de las madres. En toda mujer habitaría
una naturaleza salvaje, indómita, en la que el placer sexual estaría ligado inexora-
blemente a la reproducción. El parto llega a ser presentado como éxtasis orgásmico
que las madres comunes modernas no son capaces de experimentar porque están
profundamente reprimidas por el patriarcado. La nueva maternidad-paternidad
regida por la Naturaleza ancestral y liberada del «catecismo feminista» será capaz
de regenerar a la humanidad. Se dice que el feminismo ha introducido la discordia
entre los sexos, disminuyendo así la natalidad, como si siglos de Historia no nos
hubieran enseñado que el patriarcado ha herido y matado mucho antes de que el
movimiento por los derechos de las mujeres fomentara el «desorden» de la auto-
nomía femenina y la maternidad responsable. Según este ecologismo neoconser-
vador, la liberación de las mujeres consistirá en dejar de pretender ser iguales a los
hombres. Vuelve, así, la decimonónica teoría de la complementariedad a recordar
a las féminas cuáles son sus labores naturales. Desde luego, como hemos visto, esta
no es la primera vez que se utiliza el concepto de Naturaleza para poner en su
lugar a un colectivo insubordinado. En su tratamiento filosófico de los sexos, Rous-
seau ya desplegaba lo que he llamado «discurso del elogio»: nadie puede hacer las
labores domésticas del cuidado como vosotras, por lo que no seréis ciudadanas de
pleno derecho, sino que os limitaréis a criar ciudadanos. El ecologismo neocon-
servador vuelve a utilizar su engañoso tono adulador: sois maravillosas, poseéis
virtudes y poderes extraordinarios y los estudios universitarios estropean esas ca-
pacidades innatas de vuestro sexo.
400 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

Evidentemente, no será con este ecologismo neoconservador con quien corres-


ponda hacer Pactos de Ayuda Mutua. Pero incluso en los círculos de la Ecología
Política ajenos a estas posiciones neoconservadoras, encontramos, en ocasiones,
cierta tendencia a mistificar la maternidad y la crianza. El discurso sobre la lactancia
adquiere un carácter normativo y las mujeres que por razones laborales no pueden
cumplir estrictamente con el modelo comienzan a sentirse culpables. Se preguntan
si son egoístas o madres incompletas por haber elegido la autonomía del trabajo
asalariado o la carrera profesional. Es significativo que la llamada para que las mu-
jeres retornen al hogar vuelva a oírse en una época de altas tasas de paro y en un
período histórico que puede considerarse de Contrarreforma patriarcal.
He sostenido que, entre el hedonismo nihilista irresponsable y carente de obje-
tivos solidarios y el retorno a la sacralización de los procesos biológicos, existe una
alternativa que combina libertad y responsabilidad: la conciencia ecológica y em-
pática que preserva su plena autonomía. El olvido de la Ilustración, su rechazo sin
matices es altamente peligroso para todos, pero las primeras en sufrir sus conse-
cuencias son, sin lugar a dudas, las mujeres.

4) Multiculturalismo beato

En estrecha conexión con el olvido de la Ilustración, encontramos en algunos textos


y posturas ecologistas una reverencia extrema hacia prácticas que, si se dieran en
nuestra propia cultura, serían objeto de indignado repudio por parte de esos mis-
mos que dicen respetarlas cuando tienen lugar en otras. El necesario rechazo del
etnocentrismo, prejuicio ingenuo e interesado correlato del imperialismo, ha llevado
a algunos —sobre todo en el terreno de las costumbres opresoras para con las mu-
jeres y los animales no humanos— a un culto beato a lo consagrado por la tradición
en culturas que no conocemos bien. Considero que un pensamiento emancipatorio
no puede aceptar mistificaciones opresoras, ni propias ni ajenas. La vocación uni-
versalista de la ética no es simple etnocentrismo, sino reconocimiento de la similitud
de necesidades de los sujetos, humanos y no humanos. Sufrimiento, encierro, dis-
criminación, esclavitud, tortura, explotación... son universalmente malos. No po-
demos justificarlos con el argumento de que existen formas similares o peores de
abuso en nuestra sociedad.
Ninguna cultura es perfecta, pero todas pueden mejorar con el aprendizaje in-
tercultural. Frente a un multiculturalismo extremo que beatifica cualquier práctica
con tal de que esté fundada en la tradición, el aprendizaje intercultural nos permite
comparar, criticar y criticarnos.
Hemos de aprender de culturas sostenibles como oportuno correctivo a nuestra
civilización suicida pero hacerlo sin caer en una admiración beata. también tenemos
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 401

que ser capaces de reconocer en lo propio algo que ofrecer a los demás. A través de
la autocrítica y de la crítica, avanzaremos. El objetivo ha de ser construir en conjunto
una cultura ecológica de la igualdad, no venerar toda costumbre solo por ser parte
de la tradición cultural nuestra o de la ajena. todas las culturas han sido y continúan
siendo injustas con las mujeres y con los animales no humanos y el feminismo tiene
una larga historia olvidada de defensa conjunta de ambos (Rodríguez Carreño, 2012;
VVAA., DEP, 2013). Los criterios mínimos de comparación que he propuesto para pre-
sidir la ayuda mutua intercultural del ecofeminismo crítico (Puleo, 2011) son la sos-
tenibilidad, los derechos humanos, con especial atención a los de las mujeres por
ser los más ignorados transculturalmente y el trato dado a los animales.

5) El viejo hombre nuevo

toda interpretación del mundo que busque mejorarlo suele tener una propuesta
de «hombre nuevo». Sin duda, un cambio social de este tipo requiere la construc-
ción de un anthropos éticamente mejorado. Los paradigmas ecológicos no son una
excepción al respecto. Pero, ¿puede hacerse esta gran transformación sin una pers-
pectiva (eco)feminista que permita deconstruir el aner? A esta altura del acontecer
histórico, con la potencia tecnológica de que se dispone y la estructura económica
capitalista basada en el crecimiento infinito, la consigna de la construcción social
del varón en torno a la idea de poder implica la liquidación del ecosistema global a
medio plazo. Evidentemente, no se puede obviar la denuncia de los intereses eco-
nómicos implicados en la devastación medioambiental contentándose con una crí-
tica a las identidades de género. Sin embargo, esta también es imprescindible si
queremos una transformación ético-política profunda que no se quede en mera ges-
tión racional de los «recursos». Habrá que proceder a una visibilización y crítica
del androcentrismo que hace del varón (andros) la medida de todo valor. «Andro-
centrismo» es un concepto clave para la comprensión de la ideología del dominio.
El sesgo androcéntrico de la cultura proviene de la bipolarización histórica extrema
de los papeles sociales de mujeres y varones. En la organización patriarcal, la dureza
y carencia de empatía del guerrero y del cazador se convirtieron en lo más valorado,
mientras que las actitudes de afecto y compasión relacionadas con las tareas coti-
dianas del cuidado de la vida fueron asignadas exclusivamente a las mujeres y fuer-
temente devaluadas. En el mundo moderno capitalista, bajo la búsqueda insaciable
de dinero y el omnipresente discurso de la competitividad, late el antiguo deseo de
poder patriarcal. De ahí que una mirada crítica a los estereotipos de género sea
también necesaria para alcanzar una cultura de la sostenibilidad. El guerrero, el ca-
zador y el broker no son las únicas formas de cristalización de la voluntad de poder
patriarcal, desde luego. El ámbito intelectual y el activista tienen las suyas. Por ello,
402 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

debemos tener siempre presente que el verdadero hombre nuevo no invisibiliza a


las mujeres con sus actos mientras las alaba con sus palabras. tampoco calla, por
mor del respeto a las tradiciones, cuando se vulneran los derechos de las mujeres o
se impide a las niñas desarrollar sus capacidades.
Avanzar hacia un nuevo anthropos implica no caer en esencialismos uniformi-
zadores ni en un discurso del elogio que haga de las mujeres las abnegadas salva-
doras del ecosistema, sino practicar la igualdad, reconocer el valor de la empatía
y el cuidado atento, desarrollar estas potencialidades desde la infancia también en
los varones y aplicarlas más allá de nuestra especie, a los animales —esclavizados
y exterminados a una escala sin precedentes— y a la tierra en su conjunto. La crí-
tica al modelo neoliberal de desarrollo basado en la competitividad del mercado
que explota y oprime ha de tener perspectiva de género. Necesitamos una recon-
ceptualización del ser humano que integre razón y emoción, un sentido moral am-
pliado y una ética de la responsabilidad acorde con el nuevo poder tecnológico de
la especie.

CoNCLUSIoNES PARA UN FUtURo CoMúN

Frente al siniestro panorama del nihilismo consumista, de los fundamentalismos


religiosos y de la globalización neoliberal explotadora y ecológicamente suicida,
los nuevos movimientos sociales han de apoyarse y reforzarse mutuamente. Esto
no excluye la crítica. tengamos siempre presente los cinco obstáculos que hay
que superar: mujeres invisibles, emancipación en diferido, Ilustración olvidada,
multiculturalismo beato, y viejo hombre nuevo. El hombre nuevo seguirá siendo
viejo si no se autoaplica la hermenéutica (eco)feminista con honestidad y profun-
didad. Los movimientos por la sostenibilidad tienen mucho que ganar si recono-
cen a las mujeres como sujetos con una historia de autoconciencia emancipatoria.
Desactivar estereotipos de género discriminatorios, no aplazar sine die las reivin-
dicaciones feministas y combatir el androcentrismo de la cultura son algunas de
las claves de este reconocimiento. A la vista de ello, podemos concluir, pues, que
para el pensamiento y la praxis verdes, el ecofeminismo ha de ser el tábano so-
crático que les acompañe en ese largo camino hacia otro mundo posible. Los «ma-
trimonios» son desventurados cuando se asientan en amores no correspondidos.
Es preferible que el ecofeminismo y sus compañeros de ruta cultiven amistades
francas que, como es sabido, suelen ser sólidas y duraderas.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 403

REFERENCIAS BIBLIoGRáFICAS

ADAMS, Carol y DoNoVAN, Josephine (eds.) (1995): Animals & Women, Duke Uni-
versity Press, Durham and London.
AMoRóS, Celia (2005a): La gran diferencia... y sus pequeñas consecuencias para las
luchas de las mujeres, Colección Feminismos, Cátedra, Madrid.
— (2005b): «La Dialéctica del Sexo de Shulamith Firestone: Modulaciones femi-
nistas del freudo-marxismo», en Amorós, Celia, De Miguel, Ana (2005), Historia
de la teoría feminista. De la Ilustración a la globalización, volumen II, Minerva
Ediciones, Madrid, pp. 69-105.
CACCIARI, Paolo (2010): Decrecimiento o barbarie. Para una salida no violenta del
capitalismo, trad. S. Puddu Crespellani, Icaria, Antrazyt, Barcelona.
— (ed.) (2014): La decrescita tra passato e futuro: fonti e soggetti, Jaca Book, Mi-
lano.
DELPHy, Christine (1982): «Por un feminismo materialista. El enemigo principal y
otros textos», La Sal-Cuadernos Inacabados 2-3, Barcelona.
DE MIGUEL, Ana (2003): «El movimiento feminista y la construcción de marcos de
interpretación», Revista internacional de Sociología (RIS), tercera época, nº 35,
mayo-agosto, pp. 127-150.
— (2008a): «Movimientos sociales y polémicas feministas en el siglo XIX: Funda-
mentos ideológicos y materiales», en Puleo, Alicia H. (ed.) (2008): El reto de la
igualdad de género. Nuevas perspectivas en ética y Filosofía Política, Biblioteca
Nueva, Madrid, pp. 85-100.
— (2008b): «Dimensiones filosófico-políticas de los movimientos sociales», en Que-
sada, Fernando (ed.) (2008): Ciudad y ciudadanía. Senderos contemporáneos de
la Filosofía Política, (pp. 279-300), trotta, Madrid.
DoBSoN, Andrew (1997): Pensamiento político verde. Una nueva ideología para el
siglo XXI, trad. J. P. tosaus, Paidós, Barcelona.
EzQUERRA, Sandra (2012, 27 de enero): «Discursos y prácticas feministas en el mo-
vimiento 15-M: avances y asignaturas pendientes», Ameco Press, Puede consul-
tarse online.
GARCíA FoRéS, Estefanía (2012): «Madres contra fumigaciones», en revista Sobe-
ranía Alimentaria, 11 (nov.). Puede consultarse online.
GEBARA, Ivone (2000): Intuiciones ecofeministas. Ensayo para repensar el conoci-
miento y la religión, trad. Graciela Pujol, trotta, Madrid.
GREtA GAARD (ed.) (1993), Ecofeminism. Women, Animals, Nature, temple Uni-
versity Press, Philadelphia.
GUERRA PALMERo, Mª José (2014): «Feminismo transnacional, globalización y dere-
chos humanos», en Dilemata nº 15, 2014, pp. 161-169.
404 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR

HARtMANN, Heidi (1979): «the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: to-
wards a more Progressive Union», Capital & Class Summer, 1979, 3, pp. 1-33.
DALtoN, R, Kuechler, M. (comps.) (1992): Los nuevos movimientos sociales, Edi-
cions Alfons El Magnànim, Valencia.
LAtoUCHE, Serge (2007): Petit traité de la décroissance sereine, éditions Mille et
une Nuits, Fayard, Paris.
— (2009): La apuesta por el decrecimiento. ¿Cómo salir del imaginario dominante?,
trad. P. Astorga, Icaria.
MARCELLESI, Florent (2012): Cooperación al posdesarrollo. Bases teóricas para la
transformación ecológica de la cooperación al desarrollo, Bakeaz, Bilbao.
MMM (Marcha Mundial de las Mujeres) (2013): Declaración Feminismo en Marcha para cam-
biar el mundo, disponible en: http://encontrommm.wordpress.com/2014/02/20/declara-
cion-feminismo-en-marcha-para-cambiar-el-mundo/ (consultado el 30 de diciembre de
2013).
MARtíNEz ALIER, Joan (2004): El ecologismo de los pobres. Conflictos ambientales
y lenguajes de valoración, Icaria, 2004.
MELLoR, Mary (1997): Feminism and Ecology, Polity Press, Cambridge University
Press, New york.
MIES, María y SHIVA, Vandana (1998): La praxis del ecofeminismo. Biotecnología,
consumo y reproducción, trad. Mireia Bofill y Daniel Aguilar, Icaria, Barcelona.
MoLINA PEtIt, Cristina (2005): «El feminismo socialista estadounidense desde la
Nueva Izquierda. Las teorías del sistema dual (capitalismo +patriarcado), en Amo-
rós, Celia y De Miguel, Ana (2005): Historia de la teoría feminista. De la Ilustración
a la globalización, volumen II, Minerva Ediciones, Madrid, pp. 147-187.
PLUMWooD, Val (1993): Feminism and the Mastery of Nature, London-New york,
Routledge.
PULEo, Alicia H. (2005): «Lo personal es político. El surgimiento del feminismo
radical», en Amorós, Celia y De Miguel, Ana (2005): Historia de la teoría femi-
nista. De la Ilustración a la globalización, volumen II, Minerva Ediciones, Madrid,
pp. 35-67.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Cátedra, Madrid.
— (2012): «La filosofía como cuestionamiento de la vida cotidiana», en Spadaro,
María Cristina (coord.) (2012), Enseñar filosofía, hoy, Editorial de la Universidad
Nacional de La Plata (EDULP), Argentina, pp. 91-108.
RESS, Mary Judy (2006): Ecofeminism in Latin America, orbis Books, New york.
RIECHMANN, Jorge (1991): ¿Problemas con los frenos de emergencia? Movimientos
ecologistas y partidos verdes en Alemania, Holanda y Francia, Ed. Revolución, Madrid.
— (1992): «tras la muerte de Petra Kelly y Gert Bastian: desinformaciones e
interrogantes», En pie de paz nº 26, pp. 54-57.
— (2012): Interdependientes y ecodependientes. Ensayos desde la ética ecológica
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 405

(y hacia ella), Cànoves i Samalús, Proteo, Colección Siglo XXI ética Actual.
— (2013): Para una caracterización del ecosocialismo en diez rasgos, FUHEM Ecosocial.
Disponible en: http://www.fuhem.es/ecosocial/articulos.aspx?v=9292&n=0 (consultado el
12 de diciembre de 2013)
RoDRíGUEz CARREño, Jimena (2012): «Frances Power Cobbe y la lucha contra la
vivisección como causa femenina en la Inglaterra del siglo XIX», en Rodríguez
Carreño, Jimena (ed.) (2012): Animales no humanos entre animales humanos,
Plaza y Valdés (Dilemata), Madrid, pp. 85-115.
SALLEH, Ariel (1994): «Naturaleza, Mujer, trabajo, Capital: La más profunda con-
tradicción», en Ecología Política. Cuadernos de Debate Internacional nº 2, Icaria.
SHIVA, Vandana (1988): Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India, zed
Books, London. Hay traducción castellana (1995): Abrazar la vida. Mujer,
ecología y desarrollo, trad. Instituto del tercer Mundo de Montevideo (Uruguay),
Madrid, Cuadernos inacabados 18, ed. horas y HoRAS.
VELASCo SESMA, Angélica (2010): «Petra Kelly. Cuando el pacifismo es ecofemi-
nista», EcoPolítica nº 3. http://www.ecopolitica.org/index.php?option=com_con-
tent&view=article&id=106%3Apetra-kelly-cuando-el-pacifismo-es-ecofeminista&
catid=25%3Aecofeminismo&Itemid=1 (consultado el 10 de diciembre de 2013)
— (2014): «Resistencia no violenta para una sociedad igualitaria y sostenible: el
pensamiento de Petra Kelly», Daimon. Revista Internacional de Filosofía, nº 63
(septiembre-diciembre).
WARREN, Karen (ed.) (1996): Ecological Feminist Philosophies, Hypatia Book, In-
diana University Press.
VVAA. (2012): «La Revolución calostral ha empezado», Monográfico de la revista
the Ecologist para España y Latinoamérica, nº 48.
VVAA., «Femminismo e questione animale», monográfico de DEP. Deportate, esuli,
profughe. Rivista telematica di Studi sulla Memoria Feminile, Università Ca’Fos-
cari Venezia, nº 23, luglio 2013.
Sobre autoras y autores

Mª Teresa Alario Trigueros


Es doctora en Historia del Arte y profesora titular de esta materia en la Universidad
de Valladolid. Dirige la Cátedra de Estudios de Género de esta Universidad de Va-
lladolid. Su investigación se ha centrado en los Estudios sobre las Mujeres y de Gé-
nero en la Historia del Arte Contemporáneo, la Historia del Arte, la equidad de
género y la Educación, así como la Arquitectura y el Urbanismo contemporáneo
en España. Es autora de Arte y Feminismo.
Email: talario@arte.uva.es

Eva Antón
Máster en Género y Políticas de Igualdad por la Universidad Rey Juan Carlos de
Madrid y licenciada en Filología Hispánica por la Universidad de Valladolid. Es
Agente de Igualdad (UVA) y forma parte de la Cátedra de Estudios de Género de la
UVA. Se encuentra finalizando su tesis doctoral titulada ¿Cambio de roles de género
en el cambio de siglo? Análisis comparativo de la literatura francesa y española ac-
tual (1990-2010) en la Universidad de Burgos bajo la dirección del Dr. Teo Sanz.
Es coautora de Lo que Usted debe saber sobre violencia de género.
Email: eva.anton.2010@gmail.com

Micaela Anzoátegui
Profesora de Filosofía por la Universidad Nacional de La Plata, Argentina. Secre-
taria del Centro Interdisciplinario de Investigaciones en Género (CINIG), Facultad
de Humanidades y Ciencias de La Educación, UNLP. Sus líneas de investigación se
centran actualmente en la ecología política y en el ecofeminismo en particular, la
filosofía del giro animal y los desafíos que presentan estas nuevas perspectivas para
la región.
Email: micaeanz@gmail.com
408 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INTERDISCIPLINAR

Isabel Balza Múgica


Es doctora en Filosofía por la Universidad del País Vasco y profesora titular de Fi-
losofía Moral de la Universidad de Jaén. Es miembro del Seminario Permanente
de Investigación Multidisciplinar «Mujer, Ciencia y Sociedad» de la Universidad
de Jaén. Forma parte del Grupo de Investigación «Biopolíticas» de la Junta de An-
dalucía. Sus líneas de investigación actuales son la teoría feminista contemporánea,
los estudios de género, los estudios animalistas, la biopolítica y la ética social. Entre
sus últimas publicaciones: «Por una ética feminista o de los cuerpos encarnados»,
«Hacia un feminismo monstruoso: sobre cuerpo político y sujeto vulnerable», «Tras
los monstruos de la biopolítica» y «Mujeres de Zambrano: desterradas, errantes,
hechiceras».
Email: ibalza@ujaen.es

Lucile Desblache
Es profesora y directora del Centre for Translation and Transcultural Studies en la
University of Roehampton, Londres. En el ámbito de la ecocrítica, desde una pers-
pectiva comparatista, su investigación se centra en la representación de los animales
en las culturas contemporáneas. Entre las numerosas obras que ha dedicado a este
tema, cabe citar Women and Apes in Twenty-First-Century French Writing: New
Narratives of Experience, Bestiaire du roman contemporain d’expression française
y La Plume des Bêtes. Su último libro es Souffrances animales et traditions humai-
nes: rompre le silence (2014). Es, asimismo, redactora en jefe de JoSTrans, The
Journal of Specialised Translation.
Email: l.desblache@roehampton.ac.uk

Pilar Errázuriz
Es doctora en Estudios de Género por la Universidad de Valladolid y psicóloga
psicoanalista por la Université de la Sorbonne. Dirige el Centro de Estudios de Gé-
nero y Cultura en América Latina de la Facultad de Filosofía de la Universidad de
Chile e imparte docencia como profesora de Psicoanálisis y Género en el Magister
de Género y Cultura de esa misma Universidad. Su último libro es Misoginia ro-
mántica, psicoanálisis y subjetividad femenina.
Email: pilarerraz@gmail.com

María Luisa Femenías


Doctora en Filosofía por la Universidad Complutense de Madrid. Es profesora de
Filosofía de la Universidad Nacional de La Plata, Argentina. Es catedrática de An-
tropología Filosófica y directora del Centro Interdisciplinario de Investigaciones en
Género (CINIG) y de la Especialización en Educación, Géneros y Sexualidades de la
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de
SoBRE AUToRAS y AUToRES 409

La Plata. Entre sus publicaciones cabe recordar El género del multiculturalismo,


Sobre sujeto y género y Violencias cotidianas (en las vidas de las mujeres).
Email: mlfeme@yahoo.com.ar

Carmen Flys
Es doctora en Filología Inglesa y profesora titular de Literatura Norteamericana
de la Universidad de Alcalá. Fue pionera de la ecocrítica en España y presidenta
de la Asociación Europea (EASCLE) en el bienio 2010-2012. Es fundadora y editora
general de la revista Ecozon@. Dirige el grupo de investigación GIECo del Instituto
Franklin en la Universidad de Alcalá y el proyecto CLyMA (Ref. IF 2011-009). Es
coeditora de Ecocríticas. Literatura medio ambiente y de Paisajes culturales: he-
rencia y conservación.
Email: carmen.flys@uah.es

Carmen García Colmenares


Profesora titular honorífica de Psicología Evolutiva y de la Educación. Forma parte
de la Cátedra de Estudios de Género de la Universidad de Valladolid, de la que
fue cofundadora. Dentro de sus líneas de investigación se encuentran la construc-
ción de las identidades/subjetividades de género en los y las jóvenes, la coeduca-
ción en las aulas y el estudio de las trayectorias vitales y profesionales de las
primeras psicólogas españolas. Entre otros trabajos, ha publicado Autoridad fe-
menina y mecanismos de exclusión. Reflexiones desde la psicología, Las primeras
psicólogas españolas, Educar en tiempos de guerra. Maestras y psicólogas en las
colonias escolares.
Email: cgcolmen@psi.uva.es

Francisco Garrido Peña


Doctor en Filosofía por la Universidad de Granada. Profesor titular de Universi-
dad de la Universidad de Jaén y responsable del grupo de investigación SEJ-314
Biopolítica. Sus áreas de investigación son la Ecología Política, la teoría de las de-
cisiones colectivas en la salud pública, la Bioética, la ética ecológica, el Diseño
institucional y la ética experimental. Es miembro de la Comisión de ética de la
Universidad de Jaén (Comité de organismos Modificados Genéticamente), de la
Comisión académica del Programa de Doctorado de Ciencias de la Salud de la
Universidad de Sevilla, de la Universidad de Jaén y de la Escuela Andaluza de
Salud Pública (EASP). Pertenece asimismo a diversas sociedades científicas de Filo-
sofía Moral y Política, Bioética y/o Ecología entre las que se cuentan la AEEFP, la
AECPA, SEAGE y la SEBE.
Email: fpena@ujaen.es
410 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INTERDISCIPLINAR

María José Guerra Palmero


Es doctora en Filosofía y profesora titular de Filosofía Moral de la Universidad de
La Laguna. En la actualidad es vicedecana de la Facultad de Filosofía y dirige el
Centro de Estudios Ecosociales de la Universidad de La Laguna. Es investigadora
principal del Proyecto I+D (FFI2011-24120), titulado «Justicia, Ciudadanía y Gé-
nero. Feminización de las Migraciones y Derechos Humanos». Sus líneas de inves-
tigación incluyen la teoría ética y política contemporánea, la teoría feminista, los
estudios de género y la ética aplicada, especialmente la bioética y la ética y política
ecológicas.
Email: mjguerra@ull.es

Kaarina Kailo
Es doctora en Filosofía por la University of Toronto. Ha sido profesora de Women’s
Studies and Multiculturalism y directora de la primera Cátedra de Estudios de las
Mujeres en la Universidad de oulu, Finlandia. Ha liderado campañas para la igual-
dad, la paz y la democracia global y ambiental en Canadá, país en el que ha desa-
rrollado parte de su actividad docente universitaria. Ha introducido y practicado
las nociones de «eco-mitología» y «ciberecofeminismo». Entre sus publicaciones
destacan «Indigenous Women, Ecopolitics and Healing. Women who Marry
Bears», «Pandora revisited» y «Cyber/Ecofeminism».
Email: kaarina.kailo@gmail.com

Mª Teresa López de la Vieja


Catedrática de Filosofía Moral en la Universidad de Salamanca y Adjunct Professor
of Bioethics en la Case Western Reserve University de Cleveland. Es investigadora
responsable del GR41, Grupo de excelencia, Junta de Castilla y León, y del Grupo
de ética, Universidad de Salamanca. En esta Universidad dirige una Unidad Aso-
ciada con el CSIC y es vocal del Comité de Bioética. Es igualmente investigadora del
EMUI en la Universidad Complutense e IP del proyecto MINECo FFI2012-32827. Ha
publicado, entre otras obras, Bioética y Literatura y Bioética y ciudadanía.

Paula Gabriela Núñez


Es doctora en Filosofía y licenciada en Historia. Investigadora del CoNICET y pro-
fesora de la Universidad Nacional del Comahue, Argentina. Ha dirigido diversos
proyectos de investigación en torno a los procesos de desarrollo en Patagonia Norte
desde la perspectiva decolonial y la teoría de género. Es miembro del Instituto de
Investigaciones en Diversidad Cultural y Procesos de Cambio de la Sede Andina
de dicha Universidad. Ha publicado Entre la ecología y la praxis ambiental. Una
lectura crítica desde el ecofeminismo y Miradas Transcordilleranas.
Email: pnunez@unrn.edu.ar
SoBRE AUToRAS y AUToRES 411

Verónica Perales Blanco


Artista multimedia e investigadora, profesora en la Facultad de Bellas Artes de la
Universidad de Murcia. Fundadora del colectivo artístico internacional Transna-
tional Temps que opera en la confluencia del Arte, la Tecnología y la Ecología. Su
investigación se centra en las prácticas artísticas activistas de implicación medio-
ambiental, el análisis ecofeminista y la integración de tecnologías dialógicas con el
entorno. Autora de «Dessiner ce que nous ne voyons pas», «La odisea de la otra
Mitad (de la especie)», «Arte, ecofeminismo y grandes simios», «Práctica artística
y ecofeminismo», entre otros.
Email: vperales@um.es

Margarita Mª Pintos de Cea-Naharro


Teóloga, es presidenta de la Asociación para el Diálogo Interreligioso en Madrid
(ADIM), grupo que organiza tertulias, jornadas y publicaciones para un mejor co-
nocimiento de las diferentes tradiciones religiosas presentes en la sociedad y el fo-
mento de la colaboración con la ciudadanía en el trabajo por la paz. Es miembro
de la Asociación de Teólogos y Teólogas Juan XXIII. Entre sus publicaciones re-
cordaremos La mujer en la iglesia, Budismo y cristianismo en diálogo y la Educación
religiosa en una sociedad pluralista.
Email: margaritapintos@gmail.com

Alicia H. Puleo
Es doctora en Filosofía y profesora titular de Universidad de Filosofía Moral y
Política de la Universidad de Valladolid. Forma parte del Consejo de la Cátedra de
Estudios de Género de la misma Universidad y del Consejo del Instituto de
Investigaciones Feministas de la Universidad Complutense de Madrid. Cuenta con
numerosas publicaciones en Europa y América. Su último libro es Ecofeminismo
para otro mundo posible. Ha dirigido el proyecto de investigación I+D. La igualdad
de género en la cultura de la sostenibilidad. Valores y buenas prácticas para el
desarrollo solidario y, desde septiembre de 2014, es directora de la Colección
Feminismos que la Editorial Cátedra publica en colaboración con la Universitat de
València.
Email: aliciahelda.puleo@uva.es

Concha Roldán
Profesora de investigación en el Instituto de Filosofía del CSIC, del que es actual-
mente directora. Preside la Sociedad Española Leibniz (SeL) y la Asociación Espa-
ñola de ética y Filosofía Política (AEEFP), y es vocal en la Junta Directiva de la Red
de Género GENET y de la Red Española de Filosofía (REF). Investigadora principal
del proyecto europeo «Philosophy of History and Globalisation of Knowledge.
412 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INTERDISCIPLINAR

Cultural Bridges Between Europe and Latin America» (WoRLDBRIDGES) y del I+D
«Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS). Ha sido becaria Humboldt,
DAAD y DFG, y profesora invitada en Mainz (1991), Berlín (1998-99) y Múnich
(2004-2005). Tiene numerosas publicaciones sobre filosofía moderna e Ilustración,
ética, feminismo y filosofía de la historia.
Email: roldan@ifs.csic.es

Iván Sambade Baquerín


Doctor en Filosofía por la Universidad de Valladolid y especialista en estudios de
las masculinidades. Miembro de la Cátedra de Estudios de Género de esta Univer-
sidad. Ha coordinado el módulo de Violencia de Género en el Máster de Estudios
de Género y Políticas de Igualdad de la UVA. Entre los artículos que ha publicado,
recordaremos «La pragmática masculina del control: del gobierno de sí mismo hacia
la violencia contra las mujeres» y «Medios de Comunicación, Democracia y Subje-
tividad masculina».
Email: ivansambade@gmail.com

Teo Sanz
Catedrático de Literatura Francesa en la Universidad de Burgos y Vicepresidente
de l’Association Internationale de la Critique Littéraire (AICL). Doctor en Filología
y musicólogo formado en Francia, es autor de Música y Literatura. La poesía fran-
cesa en la obra de Maurice Ravel, Cómo leer a Marguerite yourcenar y de nume-
rosos artículos de Literatura Comparada publicados en Francia, Bélgica, Inglaterra,
España, EEUU, Canadá, Argentina, Portugal, Grecia, Italia y otros países. En los úl-
timos años ha desarrollado su investigación en el marco de la Ecocrítica.
Email: teosanz@ubu.es

Ángela Sierra
Doctora por la Universidad de Barcelona, es profesora titular de Filosofía de la
Universidad de La Laguna y miembro del Instituto de la Mujer de la Universidad
de La Laguna. Ha sido eurodiputada, es docente e investigadora del Instituto de
Estudios de la Mujer de la Universidad de La Laguna y directora del Centro de Es-
tudios Interdisciplinares Latinoamericanos (CEILAM) y de la Cátedra Cultural y
Científica de Hermenéutica Crítica. Entre otras obras, es autora de Las utopías, del
estado real a los estados soñados y La filosofía ante el ocaso de la democracia re-
presentativa.
Email: asierrgo@ull.es
SoBRE AUToRAS y AUToRES 413

Emma Siliprandi
Doctora en Desarrollo Sostenible por la Universidad de Brasilia, es investigadora
del Núcleo de Estudios e Investigaciones en Alimentación (NEPA) de la Universidad
Estatal de Campinas (UNICAMP), Brasil. Autora de numerosos estudios sobre las
mujeres en el medio rural. Entre los más recientes cabe citar «Agricultura familiar
e o atendimento à demanda institucional das grandes cidades», «As mulheres agri-
cultoras e sua participação no Programa de Aquisição de Alimentos», «Mujeres y
Agroecología: nuevos sujetos políticos en la agricultura familiar».
Email: emma.siliprandi@gmail.com

Juan José Tamayo


Es doctor en Teología por la Universidad de Salamanca en 1976 y en Filosofía y
Letras por la Universidad Autónoma de Madrid. Es profesor titular de la Univer-
sidad Carlos III de Madrid y dirige actualmente la Cátedra de Teología y Ciencias
de las Religiones Ignacio Ellacuría de esta última Universidad. Es cofundador y ac-
tual Secretario General de la Asociación de Teólogos Juan XXIII. Entre sus libros
cabe citar Invitación a la utopía. Ensayo histórico para tiempos de crisis, otra teo-
logía es posible, Pluralismo religioso, interculturalidad y feminismo.
Email: teologiaycsdelasreligiones@gmail.com

Georgina Aimé Tapia González


Es doctora en Filosofía por la Universidad de Valladolid (España) y maestra en Fi-
losofía de la Cultura por la Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo
(México). Actualmente es profesora de la Escuela de Filosofía y de la Facultad de
Pedagogía de la Universidad de Colima, México. Entre sus publicaciones citaremos
«Edith Stein y Simone de Beauvoir: Filosofía, feminismo y experiencia vivida» y
«Mujeres de todos los colores de la tierra: en defensa del territorio, los derechos
étnicos y de género».
Email: georgina_tapia@ucol.mx

Laura Torres San Miguel


Licenciada en Derecho y Filosofía por la Universidad de Valladolid y experta en
Intervención Social contra la Violencia hacia las Mujeres por la Universidad Com-
plutense de Madrid. Es miembro de la Cátedra de Estudios de Género de la Uni-
versidad de Valladolid. Cuenta con una larga trayectoria profesional como técnica
de igualdad de mujeres y hombres en organismos públicos. Ha coordinado el mó-
dulo de Violencia de Género en el Postgrado Agentes de Igualdad de oportunida-
des de la UVA. Es autora de «Simbolismo de género, Naturaleza y feminidad» y
coautora de Lo que Usted debe saber sobre violencia de género.
Email: lauratorressanmiguel@gmail.com
Carme Valls-Llobet
Médica dedicada a la Asistencia en Medicina Interna y Endocrinología. Directora
del Programa Mujer, Salud y Calidad de Vida del CAPS (Centro de Análisis y Pro-
gramas sanitarios). Ha promovido la creación de la RED CAPS de profesionales en
salud de las mujeres en el Estado Español, y ha organizado el Primer Congreso In-
ternacional sobre Mujeres, Salud y Trabajo (1996), que ha continuado en seis edi-
ciones. Su último libro es Mujer, Salud y Poder.
Email: c.vallsllobet@gmail.com

Angélica Velasco Sesma


Es Máster en Estudios Avanzados de Filosofía por la Universidad de Valladolid y
la Universidad de Salamanca y Máster en Estudios de Género y Políticas de Igual-
dad por la Universidad de Valladolid. Forma parte del Consejo de la Cátedra de
Estudios de Género de esta última Universidad. Entre sus publicaciones citaremos
«Desarrollo y medio ambiente en clave de género», «Justicia social y ambiental:
Mujeres por la Soberanía Alimentaria» y «Petra Kelly: cuando el pacifismo es eco-
feminista».
Email: angelica.velasco.sesma@gmail.com
Género, Sexualidades e Intersecionalidade

Géneros e
Sexualidades:
Interseções e
Tangentes

JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA & LÍGIA AMÂNCIO


Géneros e
Sexualidades:
Interseções e
Tangentes
GÉNEROS E SEXUALIDADES

FICHA TÉCNICA

Edição
Centro de Investigação e de Intervenção Social (CIS-IUL)/Lisboa

Âmbito
Linha temática Género, Sexualidades e Intersecionalidade

Organização
João Manuel de Oliveira & Lígia Amâncio

Edição
2017

Comissão científica
João Manuel de Oliveira (ISCTE-IUL)
Lígia Amâncio (ISCTE-IUL)
Conceição Nogueira (U. Porto)
Maria Juracy Filgueiras Toneli (U. Federal de Santa Catarina)
Nuno Santos Carneiro (U. Porto)

Design gráfico e paginação


vivóeusébio

Impressão
Gráfica Maiadouro

ISBN
978-989-732-986-9

Depósito Legal
423904/17

Financiado por

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons -


Atribuição - Não Comercial - Compartilha Igual - 4.0 Internacional.

2
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Índice
Das intersecções e tangentes João Manuel de Oliveira e Lígia Amâncio. . . . . 5

Parte 1 – Género – Ordem e desordens . . . . . . . . . . 15

Assimetria Simbólica. Breve história de um conceito Lígia Amâncio . . . . . .17


Estudos da masculinidade e teoria feminista António Manuel Marques . . . 39
Desigualdades de género em profissões qualificadas e resistências
à mudança – Um percurso de investigação Maria Helena Santos . . . . . . 55
“Mi cuerpo es mío”. Parentalidades y reproducción no heterosexuales
y sus conexiones con otras demandas Gracia Trujillo . . . . . . . . . . . . 75
Cisheteromonormatividad y Orden Público© Pablo Perez Navarro . . . . . 89

Parte 2 – Desestabilizar os Géneros e as Sexualidades . . . 113

Trânsitos de Género: leituras queer/trans* da potência do rizoma


género João Manuel de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
Limbos da normatividade: reflexões sobre o género humano nas
experiências de cross-dressing Rita Grave, João Manuel de Oliveira
e Conceição Nogueira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Branquitude e racialização do feminismo: um debate sobre privilégios
Georgia Grube Marcinik e Amana Rocha Mattos . . . . . . . . . . . . . . 159
Circuitos integrados? Intersecções de gênero, sexualidade e geração
nas vivências afetivo-sexuais de um jovem e sua rede de convívio no
nordeste do Brasil Karla Galvão Adrião, Jaileila Menezes, Emilia
Bezerra e Roseane Amorim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
Enviadescer para produzir interseccionalidades Leandro Colling,
Alexandre Nunes de Sousa e Francisco Soares Sena . . . . . . . . . . . . . 193

Notas biográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217

3
JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA E LÍGIA AMÂNCIO

Das intersecções
e tangentes

No âmbito das actividades da linha de investigação sobre


Género, Sexualidades e Interseccionalidade do Centro de
Investigação e Intervenção Social do ISCTE-IUL o livro que
agora se apresenta, Géneros e Sexualidades – Intersecções
e Tangentes, pretende contribuir para alargar e difundir o
debate sobre estes temas e mostrar os seus múltiplos pontos
de contacto e cruzamento que, hoje, nos conduzem a falar
de géneros e sexualidades, no plural. O livro não reproduz
apenas contribuições apresentadas na Conferência interna-
cional Gender, Sexualities and Interseccionalities, organizada
em Outubro de 2015, mas alarga o seu conteúdo aos contri-
butos de investigadorxs, nacionais e internacionais, que inte-
gram uma rede que tem vindo a crescer em torno desta linha
temática.

Os géneros, entendidos na ótica binária em que a ordem


do género e a heterossexualidade hegemónica os colocam,
GÉNEROS E SEXUALIDADES

apresentam-se não apenas como uma das bases centrais dos


processos de opressão e privilégio no quadro de relações de
dominação, mas e em consequência, são centrais no processo
de intersecção com outras matrizes de dominação (Collins,
2000), como ‘raça’, sexualidades, classe, idade, entre outras.
Assim, estudar o género implica um duplo processo: um
entendimento do modo como se estruturam os processos
assimétricos do eixo de dominação género e, por outro
lado, uma leitura que compagina o modo como o género se
intersecta, é reformulado e se cruza com outras relações de
privilégio e de opressão, como mostra Conceição Nogueira
(2011) e os trabalhos na linha da interseccionalidade. Lucas
Platero (2012) recorre à figuração de maraña, que em por-
tuguês podíamos traduzir como enredado e que permite
mostrar como nesse processo de múltiplas posições (repor-
tando-nos a posições ocupadas nesses eixos de opressão e
privilégio), numa geometria não euclidiana. Procuramos
salientar aqui uma diferenciação entre identificação e posi-
ção social, dado que pode haver des-identificação da posição
social ocupada neste emaranhado. Assim em vez da teoria
dos conjuntos e diagramação de Venn para traçar os espaços
de interseccionalidade, precisaremos de recorrer a outro
tipo de imagem. Neste caso, a ideia de rizoma de Deleuze
e Guattari (2008) ajuda a perceber que a própria rede e as
ligações entre múltiplas posições são indeterminadas ou
não inteiramente previsíveis, atuam de formas inesperadas
e criam toda uma série de agenciamentos que não são dados
previamente pela estrita soma das partes. A perspectiva
crítica da interseccionalidade que Jasbir Puar (2013) levanta
permite entender como a tensão entre formas identitárias
multíplices como é o caso da interseccionalidade com o
agenciamento (Deleuze e Guattari, 2008) que pressupõem
uma analítica pós-identitária:

6
INTERSEÇÕES E TANGENTES

“a interseccionalidade tenta compreender ins-


tituições políticas e suas formas corolárias de
normatividade social e administração disciplinar,
enquanto o agenciamento, num esforço de reintro-
duzir a política no âmbito político, indaga o que
está antes e além do que acaba sendo estabelecido.
Então, parece-me que uma das maiores vanta-
gens de se pensar partindo do entrelaçamento das
noções de interseccionalidade e agenciamento é
que ele pode nos ajudar a produzir mais caminhos
para essas relações não totalmente compreendidas
entre disciplina e controle.” (Puar, 2013, p.366 )

Estes textos implicam uma pensamento sobre o género como


ordem social e visam perceber de que forma o género é afe-
tado e afeta outras formas de dominação, seja por intersecção,
seja de forma menos evidente e mais tangencial. Igualmente
concebemos as sexualidades de forma central neste processo,
dado que tanto a ordem de género como os múltiplos géne-
ros são refigurados e sempre considerados em face de uma
heterossexualidade hegemónica, socialmente construída
mas num processo de naturalização se apresenta como natu-
ral (Butler, 1990), auto-evidente e superior a outras formas
de sexualidade configurando-se como heteronormatividade
(Warner, 1993). Recorrer a estas e a outras formas de opressão
e simultaneamente práticas de reivindicação política implica
uma perspectiva interseccional e de agenciamento, interes-
sada em detalhar as implicações de determinadas posições
nestas matrizes de opressão e privilégio, sem esquecer o modo
de enunciação, pressupostos e efeitos destas políticas. O livro
está estruturado em duas partes que pretendem salientar este
duplo processo. Uma I Parte intitulada “Género - Ordem e
Desordens” e uma II Parte intitulada “Desestabilizar Géneros
e Sexualidades”

7
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Os textos da I Parte tratam da ordem hegemónica de género e


da sua resistência às transformações sociais e aos movimen-
tos de contestação, seja pela cumplicidade dos e das alvos da
dominação, seja pela influência das instituições na preser-
vação da estabilidade e permanência dessa ordem. O texto
de Lígia Amâncio, Assimetria Simbólica. Breve História de
Um Conceito, reconstituindo um percurso de investigação
iniciado, em Portugal, na década de 80 do século passado,
aborda a forma como o pensamento binário sobre os sexos
assenta numa assimetria de significados, uma ideologia sobre
os seres que emergiu com a modernidade, que se estende aos
contextos sociais e se constitui em sistema de dominação
masculina, ao mesmo tempo que se caracteriza por uma plas-
ticidade que facilita a sua adaptação a novos contextos sociais,
sem pôr em causa a lógica de dominação que lhe está subja-
cente. É esta capacidade da ideologia de género para sobre-
viver às transformações sociais que o texto de Maria Helena
Santos, Desigualdades de género em profissões qualificadas
e resistências à mudança – Um percurso de investigação,
exemplifica, ao mostrar que apesar das grandes mudanças
ocorridas em Portugal, nos últimos anos, em particular nas
qualificações das mulheres, as profissões qualificadas perma-
necem colonizadas por significados masculinos e, portanto,
lugares onde a estranheza da presença das mulheres lhes é
recordado em permanência. O texto de António Marques
Estudos da masculinidade e teoria feminista, no prosse-
guimento de uma linha de investigação iniciada com a sua
tese de doutoramento (Marques, 2011), propõe uma reflexão
sobre o encontro, potencialmente produtivo, como diz e
demonstra, entre a teoria feminista e os estudos da masculi-
nidade, mostrando os pontos de convergência e divergência
no percurso destas duas áreas de estudos e a pressão para a
permanência e naturalização da masculinidade hegemónica
que é exercida por algumas instituições, como os media, com

8
INTERSEÇÕES E TANGENTES

o propósito de ocultar a dominação exercida, sobre mulheres


e homens, da masculinidade hegemónica. Noutro contexto
e momento político, o texto de Gracia Trujillo “Mi cuerpo es
mío”. Parentalidades y reproducción no heterosexuales y sus
conexiones con otras demandas convoca também o plano
institucional, mas neste caso o papel do Estado espanhol,
para impor a norma da heterossexualidade durante o debate
público em torno da alteração ao Código Civil sobre o casa-
mente entre pessoas do mesmo sexo, em 2005, com o objec-
tivo de manter os casais constituídos por mulheres privados
dos seus direitos parentais. O texto de Pablo Perez Navarro,
Cisheteromonormatividad y Orden Público©, foca-se numa
genealogia das noções de ordem pública e de como incor-
poram múltiplas normatividades do binarismo de género,
monogamia e da heterossexualidade hegemónica. A ideia de
ameaça à ordem pública permite o exercício da violência de
Estado e é tangente com o classismo, a xenofobia, o racismo e
a discriminação religiosa como é o caso da islamofobia.

Os textos incluídos na 2ª parte inserem-se na perspetiva


da necessidade de desconstruir e desnaturalizar géneros e
sexualidades e usá-los para produzir outros futuros e outros
espaços, fora do domínio das heteronormas de género, da eli-
minação da fluidez e dissidência de género. O texto de João
Manuel de Oliveira, Trânsitos de Género: leituras queer/trans*
da potência do rizoma género, propõe o género como uma
viagem através de um rizoma feita a partir de múltiplos agen-
ciamentos e aponta para uma tentativa de resolução entre
normas e expressões de género, uma análise do género simul-
taneamente como potência e como potestade, na esteira de
Espinosa e Butler. O texto de Georgia Grube Marcinik e Amana
Rocha Mattos, Branquitude e racialização do feminismo: um
debate sobre privilégios, mostra como a teoria feminista sofre
um efeito de braquitude que implica o não reconhecimento

9
GÉNEROS E SEXUALIDADES

do lugar de privilégio que num sistema racista implica não


pensar a racialização das mulheres brancas. A desestabiliza-
ção interseccional que este texto suscita tem como implica-
ção a releitura das contribuições de um feminismo branco
que oblitera a sua racialização e se torna conivente com o
racismo, como denunciado pelo feminismo negro (e.g., hooks,
1981). Na mesma linha de pensamento, o texto de Leandro
Colling, Alexandre Nunes de Sousa e Francisco Soares Sena,
Enviadescer para produzir interseccionalidades enceta um
debate a partir da ideia de enviadescer, isto é, optar pela dis-
sidência face à heteronorma, cruzando género, ‘raça’, classe
e sexualidade, o que implica repensar-se para lá do identi-
tário, tornar-se criador/a e criação de si próprio e repensar
neste processo a interseccionalidade, na linha que Jasbir Puar
(2013) menciona.

O texto de Karla Galvão Adrião, Jaileila Menezes, Emilia


Bezerra e Roseane Amorim, Circuitos integrados? Inter-
secções de gênero, sexualidade e geração nas vivências afeti-
vo-sexuais de um jovem e sua rede de convívio no nordeste
do Brasil, recorrem a uma analítica interseccional de género,
‘raça’, classe, sexualidade e geração para produzirem um olhar
sobre um jovem em particular, mas entendendo-o num cir-
cuito integrado (Haraway, 1991), implicando uma análise das
suas múltiplas identidades e posições e do modo como estas
se articulam e permitem a permeabilidade das fronteiras e
das identidades, atravessadas por corpos pessoais e políticos.
No plano de um pensamento sobre as múltiplos efeitos dos
códigos de legibilidade do género no caso de cross-dressers,
Rita Grave, João Manuel de Oliveira e Conceição Nogueira,
Limbos da normatividade: reflexões sobre o género humano
nas experiências de cross-dressing, recorrem a um trabalho
exploratório sobre cross-dressing, que já deu origem a uma
tese de mestrado (Grave, 2016). Neste capítulo parte-se da

10
INTERSEÇÕES E TANGENTES

discussão sobre o modo como determinadas maneiras de


transgressão das normas de género são constitutivas de uma
falta de inteligilibilidade como humano (Butler, 2004) para
perceber o modo como uma pessoa entrevistada que recorre
ao cross-dressing se sente a ser lida pelas normas de género e
de que como negoceia a sua dissidência face às normas.

O conceito que deu origem a este livro é devedor das perspeti-


vas críticas da academia neoliberal, os chamados estudos crí-
ticos da universidade (e.g., Petersen & O’Flynn, 2007; Davies
& Petersen, 2005). Críticos destes processos da longa marcha
neoliberal (Hall, 2011) que tomou conta das universidades e
que começam a ser evidentes em todo o mundo, pretendemos
que este livro possa ser destituído de valor comercial e que
tenha um acesso livre, universal e gratuito, inspirando-nos
em projetos como o Reframe da Universidade de Sussex.
Desligando a comodificação do conhecimento da sua legiti-
mação como saber, recorrendo a financiamento público que
permitiu cobrir os custos de produção, esperamos que este
livro tenha utilidade para quem se aventure nos cada vez
mais complexos e por isso mesmo mais interessantes, cami-
nhos dos estudos de género e das sexualidades.

Referências
• Butler, Judith (1990). Gender Trouble. New York: Routledge.
• Butler, J. (2004). Undoing Gender. New York: Routledge.
• Collins, Patricia Hill (2000). Black Feminist Thought-knowledge,
consciousness, and the politics of empowerment. New York:
Routledge.
• Davies, Brownym & Petersen, Eva B. (2005). Neoliberal discourse in
the academy: the forestalling of collective resistance. Learning and
Teaching in the Social Sciences, 2, 77-98
• Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e
esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim.

11
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Grave, Rita (2016). Desidentificações de género - discursos e práticas.


Dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação. Porto: Universidade do Porto.
• Hall, Stuart (2011). The Neoliberal Revolution. Soundings, 48, 9–27.
• Haraway, Donna (1991). A Cyborg Manifesto: Science, Technology
and Social Feminism in the late Twentieth Century. In Donna
Haraway. Symians, Cyborgs and Women: the Reinvention of Nature.
New York: Routledge, (p. 149-182).
• hooks, bell (1981). Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism.
Boston: South End Press.
• Marques, António Manuel (2011). Masculinidade e Profissões:
Discursos e Resistências. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e
Fundação para a Ciência e Tecnologia.
• Nogueira, Conceição (2011). Introdução à teoria da interseccionalidade
nos Estudos de Género. In Sofia Neves (Ed.). Género e Ciências Sociais.
Maia: Edições ISMAI.
• Petersen, Eva Bendix & Gabrielle O’Flynn (2007). Neoliberal
technologies of subject formation: a case study of the Duke of
Edinburgh’s Award scheme. Critical Studies in Education, 48, 197-211.
• Platero, Lucas (2012). Intersecciones: cuerpos y sexualidades en la
encrucijada. Barcelona: Bellaterra.
• Puar, J. (2013). “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”:
interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, 8,
343-370.
• Warner, Michael (1991). Fear of a queer planet: Queer politics and
social theory. Minneapolis: Minnesotta University Press.

12
Parte 1
Género:
Ordem e
desordens
LÍGIA AMÂNCIO

Assimetria Simbólica
Breve história de um conceito

O conceito de assimetria simbólica desenvolveu-se num con-


texto particular das ciências sociais em Portugal e a partir
de uma combinação de influências, tanto da psicologia
social, como de outras disciplinas, vistas sob um olhar femi-
nista. A partir da comunicação apresentada na Conferência
Inaugural da Linha Temática sobre Género, Sexualidades e
Interseccionalidades, organizada em Outubro de 2015, este
artigo aborda a origem e o percurso do conceito na investiga-
ção sobre as relações de género e outras relações sociais, assi-
nalando ainda os usos que representam um esvaziamento do
seu propósito inicial e que, hoje, já são possíveis de identificar.

O Contexto
Em Portugal os estudos de género iniciaram-se num período
em que a afirmação das ciências sociais coincidiu com as
profundas transformações da sociedade portuguesa, que
GÉNEROS E SEXUALIDADES

ocorreram na sequência da implantação da democracia, tor-


nando-se domínios relevantes do saber sobre a sociedade e os
processos de transformação social, áreas de formação superior,
mas também assumindo formas de intervenção e participa-
ção no(s) debate(s) público(s) e na definição de novas políticas
públicas no âmbito de um Estado social em construção.

Uma das principais transformações do pós-25 de Abril diz


respeito à situação das mulheres. A procura da escolaridade, a
todos os níveis de ensino, que marcou a sociedade portuguesa
da altura, acompanhando o progressivo aumento da escolari-
dade obrigatória nos anos 80 foi particularmente expressiva
no caso das mulheres, cujo atraso era bem mais acentuado,
visto que em 1988 a taxa de analfabetismo das mulheres
(21%) era, ainda, quase o dobro da dos homens (11%). Para as
gerações mais jovens, em particular, o percurso ao longo do
sistema educativo foi particularmente bem-sucedido e, no
fim da década de 90, as mulheres já constituíam a maioria
da população que entrava no ensino superior. A participação
das mulheres no trabalho pago, já iniciada no período da
guerra colonial, acentuou-se, com a sua entrada em muitas
profissões qualificadas e até aí quase exclusivamente mascu-
linas, como a medicina e o direito, acompanhando a criação
de novos serviços, como um sistema universal de assistência
na saúde (o SNS), e órgãos de soberania, nomeadamente uma
magistratura e um ministério público independentes. Para
além da sua participação na construção das instituições
democráticas, a participação das mulheres seria crucial para
o desenvolvimento de áreas fundamentais para o progresso
e a modernização do país, como a ciência. Este percurso das
mulheres portuguesas, marcado por um forte progresso, no
plano da educação e da autonomia económica, sobretudo nas
comparações com as gerações mais velhas, não foi favorável
ao desenvolvimento de uma consciência das discriminações

18
INTERSEÇÕES E TANGENTES

que as atingiam e que eram abundantemente evidenciadas


pela investigação e difundidas pelos organismos internacio-
nais. Numa iniciativa pioneira de Maria de Lourdes Pintasilgo
tinha sido criada, em 1975, a Comissão da Condição Feminina
(C.C.F.), no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, por
ela presidido na altura, organismo que viria a ser institucio-
nalizado em 1977, com a missão de “apoiar todas as formas
de consciencialização das mulheres portuguesas e a elimi-
nação das discriminações contra elas praticadas, em ordem
à sua inserção no processo de transformação da sociedade
portuguesa, de acordo com os princípios consignados na
Constituição”1. A existência deste organismo, mesmo antes da
adesão do país ao Conselho da Europa (1976) e à Comunidade
Europeia (1986) veio dar visibilidade a formas de desigual-
dade social durante muito tempo remetidas para o domínio
da “natureza” ou da fatalidade, mesmo num contexto social
de fraca consciência sobre o caracter estrutural da discrimi-
nação e da violência contra as mulheres. Para retardar esta
consciência contribuiu ainda o efeito do backlash contra o
feminismo que se difundiu na década de 80 e que foi ampla-
mente divulgado em Portugal pelos media.

As ciências sociais e humanidades também reflectiam esta


indiferença da sociedade civil. Enquanto na investigação
sociológica as desigualdades foram, durante algum tempo,
quase exclusivamente, as de classe, para a psicologia social, a
enorme influência da orientação anglo-saxónica que se fazia
sentir nos métodos e nas principais filiações teóricas, não se
fazia sentir nos temas de interesse, já que a abundante produ-
ção de investigação sobre o sexismo e o racismo não suscitava
a mesma adesão da investigação que se fazia por cá e que

1. A CCF daria origem à Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres na dé-
cada de 90 e, já neste século, à Comissão para a Igualdade de Género.

19
GÉNEROS E SEXUALIDADES

procurava afirmar este campo do saber. Foi neste contexto,


de relativa indiferença da ciência social face às desigualdades
de género, e de invisibilidade das suas consequências sociais,
que se desenvolveu o modelo da assimetria simbólica.

Da diferença à distância ao
referente
A distinção entre os sexos, presente em todas as culturas,
embora traduzida numa grande diversidade de expressões
constitui, segundo alguns autores, uma distinção fundadora
de muitas outras distinções sociais (Moscovici, 1972/1994;
Heritier,1996). Na sua forma de expressão binária, é esta
distinção que sustenta a diversidade de crenças e compor-
tamentos que dão sentido ao que é ser homem e ao que é
ser mulher, os seus territórios e espaços próprios e os seus
destinos individuais e que se exprimia nas ilhas do pacífico
de formas diversas, nas sociedades observadas por Mead
(1949/1968) e também de forma diferente da que assumia na
sociedade americana da altura. Mas a existência desta distin-
ção era, e é, uma constante no pensamento social, tal como
o sentido da diferença que a acompanha e a centralidade do
corpo e da sexualidade / reprodução nos seus significados. A
mitologia grega e as grandes religiões oferecem abundantes
exemplos desta diferenciação fundadora que, em nome da
função reprodutora do corpo feminino, afasta as mulheres
da relação com deus, impondo-lhes a intermediação vigilante
e disciplinadora dos homens (Toldy, 1998; Garcia, 1999), seja
nos ritos e nas práticas religiosas, seja no acompanhamento
e controlo que as mudanças sociais cruciais, como foi o
acesso das mulheres à educação no século XIX, podem ter
na posição que é reservada às mulheres (Giorgio, 1991/1994;
Baubérot, 1991/1994; Green, 1991/1994, Garcia, 1999). Mas esta

20
INTERSEÇÕES E TANGENTES

constância não pode ser confundida com intemporalidade,


porque é a modernidade que torna central a interrogação
sobre a ‘diferença’ entre homens e mulheres, lhe dá sentido
político e a investe de novos significados, como veremos
adiante.

Para a mudança cultural e social na construção da distinção


entre os sexos que ocorre com a modernidade, no ocidente,
contribuiu a reivindicação da liberdade e da igualdade da
época das Luzes (Laqueur, 1990/1992), que veio romper com
a naturalidade com que eram aceites as diferenças entre
senhores e escravos, na antiguidade, ou entre as classes na
idade média. Por outro lado, o papel da ciência – neste caso,
a biologia – foi fundamental para marcar a especificidade
do corpo feminino, já que, como mostra aquele autor, até ao
século XVIII, o corpo masculino e o corpo feminino eram
um só, representado, no feminino, pelo avesso dos órgãos
contidos, e no masculino, pelo direito dos órgãos expostos.
Ao ‘descobrir’ a diferença do corpo feminino e os efeitos da
reprodução sobre a ‘mente’ feminina, a biologia conferiu uma
especificidade sexual às mulheres, que não tem equivalente
no caso dos homens. Foi esta ‘descoberta’ que serviu para
justificar a desigualdade da posição social a que as mulhe-
res foram remetidas e que veio alterar profundamente a sua
condição social, depois de terem usufruído de uma relativa
liberdade intelectual e até de mobilidade, bem como da pro-
tecção da classe social de pertença durante o século XVIII, a
crise do antigo regime e mesmo na fase revolucionária. Os
dois séculos que separam a publicação d’O contrato social de
Jean-Jacques Rousseau, em 1762, que estabelece uma clara
dissociação entre a esfera da família e a esfera da política, e
O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, em 1949, marcam,
segundo Fraisse (2000), o período de construção da fusão
entre diferença e desigualdade e a ruptura com o passado, no

21
GÉNEROS E SEXUALIDADES

que à representação das mulheres diz respeito. A análise de


Geneviève Fraisse aos textos fundadores da revolução fran-
cesa revela o esforço argumentativo que é desenvolvido para
justificar a exclusão das mulheres da cidadania, colocando-as
à margem do projecto de igualdade e emancipação política,
sem pôr em causa a suposta universalidade desses mesmos
ideais (Fraisse, 1995, 1998). Um esforço exagerado e excessivo,
como classifica a autora, cheio de contradições e no limite da
irracionalidade, denunciadas por algumas figuras intelec-
tuais da época, como Olímpia de Gouges, Condocert ou Mary
Wollstonecraft (Carmo e Amâncio, 2004), gerador do para-
doxo entre o universalismo dos ideais da República moderna
e o particularismo reservado às mulheres no seu seio (Scott,
1998). Apesar destas limitações, este foi um esforço bem-su-
cedido na criação de uma redefinição das mulheres como
sujeitos sexuados, com uma cidadania limitada (Nogueira e
Silva, 2001), mas também concreta, na medida em que o seu
estatuto civil decorria exclusivamente das funções, deveres
e posições das mulheres na família, como viria a ser consa-
grado no Código Napoleónico de 1804, no plano do direito.

Desta construção resultou uma identidade feminina baseada


numa comunidade de semelhantes, individualmente indife-
renciadas numa categoria de sexo, tal como salientava Simone
de Beauvoir (1949/1976, p. 14) quando dizia que nenhum homem
precisava de recorrer ao seu sexo de pertença, para se definir,
enquanto indivíduo, “qu’il soit homme, cela va de soi”, ao con-
trário do que acontece com as mulheres cuja individualidade é
sempre colectiva, na medida em que decorre da enunciação da
sua pertença à categoria “mulher”. Não existe portanto sime-
tria nas diferenças entre os sexos, a partir da representação
construída pela modernidade. Como diz Guillaumin (1992),
essa forma particular de representar a ‘classe’ das mulheres,
que as remete para a esfera da natureza, colocando-as fora das

22
INTERSEÇÕES E TANGENTES

relações sociais, constitui uma ideologia que serve de suporte a


uma relação de dominação e se estende a outros grupos sociais:
na medida em que o sentido da diferença se define em relação a
uma entidade central, um ponto de origem (é-se diferente de…),
ou padrão normativo que representa a regra e a lei – o cidadão,
o trabalhador - é a distância em relação a esse referente que dá
significado ideológico à diferença e, ao mesmo tempo, remete
as mulheres, como outros grupos dominados, para uma con-
dição de dependência.

Assimetria simbólica no
pensamento sobre o masculino
e o feminino
As distinções entre categorias sociais que alimentam repre-
sentações largamente difundidas nas sociedades assentam
em estereótipos. Este conceito surge no início do século
XX, numa obra dedicada à formação da opinião pública, da
autoria de Walter Lippmann (1922/1929), escritor e jornalista.
A definição proposta por Lippmann irá caracterizar a abor-
dagem empírica dos estereótipos pela psicologia social, nas
décadas seguintes, na medida em que acentua o seu pendor
psicológico, de ‘imagens mentais’, resultantes do sistema de
valores dos indivíduos, que desempenham funções adaptati-
vas e, por isso mesmo, são resistentes à mudança. A redução
do conceito à técnica de medida, baseada em listas de traços
– tecnicamente, um estereótipo constitui o menor número de
traços que um maior número de pessoas atribui a determi-
nado grupo social – e das explicações ao plano individual,
caracterizou os primeiros estudos sobre minorias nacionais
e étnicas nos EUA (Katz e Braly, 1933) e também os numerosos
estudos sobre as categorias de sexo que são feitos nos anos
70, acompanhando a emergência do movimento feminista

23
GÉNEROS E SEXUALIDADES

(Broverman et. al., 1970 e 1972). Estes estudos salientavam


que os estereótipos tinham um sentido adaptativo para os
participantes, homens e mulheres, às representações domi-
nantes sobre o ser homem e o ser mulher, mas diziam-nos
pouco sobre o significado social associado a esses traços, ou
seja, não estabeleciam qualquer relação entre os estereótipos
e essas mesmas representações dominantes. Os estereótipos
surgiam assim como fenómenos de geração espontânea na
cabeça das pessoas sem qualquer ligação à realidade social
envolvente. O único esforço explicativo identificável nestes
estudos encontrava-se na associação do conjunto de traços,
ditos típicos do masculino e do feminino, ao conceito de papel
ou orientação comportamental (Eagly, 1987), com origem
num processo de aprendizagem socializada. De certa forma,
a visão que prevalecia no olhar da psicologia era a da fina-
lidade instrumental dos estereótipos para a adaptação com-
portamental, em detrimento da compreensão do fenómeno.
Na verdade, a explicação da socialização, que pouco ou nada
adiantava, servia para integrar a dimensão social, sem no
entanto a reconhecer, ao não responder a perguntas óbvias:
Porque razão se ‘treinava’ as crianças para aqueles compor-
tamentos e não outros? Noutras épocas, e noutros contextos,
os estereótipos não eram diferentes? Como mostrou a reflexão
feminista posterior, estes estudos dos anos 70, apesar de preo-
cupados em dar visibilidade às mulheres e uma imagem mais
positiva do feminino, mantiveram uma orientação essencia-
lista (Morawski, 1987) e contribuíram para a fusão do social
no biológico, ao definir ‘perfis de personalidade’ masculina
e feminina, contidos nos papéis sexuais (Connell, 1987). Ao
se limitarem a reproduzir o dualismo das categorias de sexo,
já inscritas no pensamento do senso comum, e a ilusão de
simetria na ‘diferença’ que supostamente os distinguia, tanto
no plano do modo de ser como no plano do modo de se com-
portar, estes estudos contribuíram mais para levantar novos

24
INTERSEÇÕES E TANGENTES

problemas do que para o seu esclarecimento, como diziam


Hurtig e Pichevin (1986).

Os primeiros estudos sobre estereótipos masculinos e femi-


ninos, desenvolvidos em Portugal nos anos 80 do século
passado (Amâncio, 1992, 1993, 1994), adoptaram uma meto-
dologia diferente da generalizada na psicologia social, de
modo a verificar a proximidade e distância dos estereótipos
das categorias de sexo em relação a um referente dominante.
Com efeito, o objectivo desses estudos não era o de recolher
traços estereotípicos para concluir que aqueles eram os traços
constitutivos do estereótipo masculino e feminino, nem de
recolher as avaliações positivas ou negativas dos traços, igno-
rando o sistema de valores que guiava esses juízos, numa
abordagem dos estereótipos que persiste até aos nossos dias
(Marques, Lima e Novo, 2006). O que se pretendia era encon-
trar uma explicação ideológica para a constituição dos este-
reótipos em torno daqueles traços, através da identificação
dos significados que eles transportavam em relação a uma
categoria supra ordenada, ou referente, que, neste caso, foi
o adulto. Os resultados deste exercício permitiram verifi-
car a proximidade do estereótipo masculino ao estereótipo
do adulto e a distância do estereótipo feminino em relação
a esta categoria supra ordenada, mais universal em relação
às categorias de sexo, por incluir traços que remetem para
o corpo, ausentes tanto do estereótipo masculino como do
do adulto, e de dependência, considerada defeito no adulto,
sendo estas dimensões, física e de dependência, que marcam
a diferença da categoria feminina e a excluem do mundo
adulto e referente. A análise do conteúdo dos estereótipos no
plano das dimensões de orientação comportamental permi-
tiu ainda estabelecer uma articulação analítica com o sistema
de valores: contrariamente ao que se verificava nos estudos
desenvolvidos noutros países, o estereótipo masculino, na

25
GÉNEROS E SEXUALIDADES

sociedade portuguesa dos anos 80, não apresentava uma


orientação para a instrumentalidade, antes exprimia a conti-
nuidade do paternalismo e autoritarismo masculinos que, no
período da ditadura, estavam plasmados na lei – os homens
eram os ‘chefes’ de família, com ascendência e poder discipli-
nador sobre as mulheres e os filhos. Se este primeiro estudo
demonstrou claramente que o estereótipo masculino se con-
funde com o referente universal e que este, por sua vez, está
estreitamente ligado aos valores dominantes, este resultado
também permitia esperar que as mudanças desses valores se
repercutissem no referente (masculino) e não no diferente
(feminino). As mudanças que ocorreram na sociedade portu-
guesa no final dos anos 80 e início dos anos 90, na sequência
da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, ofereceram
uma ocasião ideal para a verificação dessa hipótese. Nesse
período assistiu-se ao desenvolvimento de infra-estruturas,
apoiado pela chegada dos fundos comunitários, à privatização
de empresas nacionalizadas e ao crescimento do nível de vida
e de uma classe média urbana, graças ao controle da inflação
e ao aumento do emprego, transformações económicas que
foram acompanhadas por um discurso político e dos meios
de comunicação social que exaltavam os conceitos liberais
de iniciativa individual, competição e espírito empresarial,
através das histórias de empresários e gestores ‘ de sucesso’.
Partindo da lista de traços usada no estudo anterior, a réplica
dos anos 90 acrescentou as categorias ‘pessoa jovem’ e ‘pessoa
idosa’, às categorias de pessoa masculina, feminina e adulta.
As principais diferenças entre o primeiro e o segundo estudo
são de ordem qualitativa e não quantitativa, já que o número
de traços típicos de cada estereótipo praticamente não sofreu
alteração, nem as proporções entre as qualidades e os defeitos
do adulto, que mantiveram a posição de referente do estereó-
tipo masculino. O estereótipo feminino também não sofre
alterações, mas o estereótipo masculino passou a incluir

26
INTERSEÇÕES E TANGENTES

uma forte dimensão de instrumentalidade, ausente no estudo


anterior, e representada por traços como objectivo, lutador,
racional, seguro, quase todos associados aos jovens, enquanto
o paternalismo e a rigidez foram associados aos idosos. O este-
reótipo masculino apresentava, neste segundo estudo, “uma
síntese de valores modernos e pré-modernos” e mostrava “que
o imaginário social “vê” o jovem do sexo masculino como o
principal actor num cenário de mudança social, relegando as
mulheres e os idosos para papéis secundários neste cenário.”
(Amâncio, 1993, p. 134). Comparativamente com a ancoragem
dos significados masculinos no modelo de pessoa dominante,
ou referente, que atribui aos homens um lugar na história e
na dinâmica social, ressaltava destes estudos a permanência
da particularidade dos significados femininos e a exclusão
das mulheres dos processos sociais.

Nesta linha de investigação, o passo seguinte consistiu em


analisar as funções normativas e explicativas das orientações
comportamentais, subjacentes aos estereótipos masculino e
feminino, e a pertinência do conceito de papel, para perce-
ber como se exprimem os juízos sobre o comportamento de
homens e mulheres. Colocados/as perante decisões tomadas
por actores homens e mulheres, em contextos organizacio-
nais, os e as participantes nos estudos seguintes foram con-
vidados a exprimir as suas impressões, a partir dos traços
dos estereótipos, e a fornecer explicações para as decisões
apresentadas. O que o primeiro estudo mostrou foi que “as
orientações comportamentais expressas nos conteúdos…dos
estereótipos, são normativas para as mulheres mas não para
os homens, porque é no caso delas que os juízos são orientados
por expectativas de adequação ou não adequação…às fron-
teiras delimitadas pelos estereótipos” (Amâncio, 1992, p.17).
Ressalta deste estudo uma normatividade assimétrica nos
conteúdos dos estereótipos, já que os traços femininos servem

27
GÉNEROS E SEXUALIDADES

para delimitar o comportamento das mulheres e averiguar da


sua “adaptação” ao que é próprio do feminino, mas o mesmo
não se verifica nos traços masculinos que não são associados
nem a contextos, nem a actores particulares, revelando assim
a sua generalidade e independência relativamente aos contex-
tos. As implicações deste processo na visibilidade de actores
homens e mulheres também resultam diversas, na medida
em que a vigilância a que o comportamento das mulheres
está submetido, por parte dos estereótipos, colocando-as, ou
do lado apropriado (feminino), ou do lado não apropriado
(masculino), guia o olhar e os juízos sobre elas, enquanto no
caso dos homens, a inexistência de fronteiras estereotípicas
para o seu comportamento, faz com que os juízos sobre eles
sejam guiados por critérios centrados no resultado e não no
comportamento em si, como mostrou o estudo centrado sobre
as explicações para os comportamentos. Subjacente a esta
assimetria normativa está um efeito discriminatório sobre
as mulheres que se encontram ‘fora’ do contexto que lhes é
‘próprio’ e que é, em geral, ignorado. O facto de as mulheres
estarem sujeitas à dupla referência do estereótipo masculino,
referente tanto para homens como para mulheres, e do este-
reótipo feminino, que só a elas se aplica, implica um esforço
adicional da parte delas para se inserirem no mundo do traba-
lho ou ocuparem posições no espaço público (Amâncio, 1995).
Este efeito discriminatório, pelos custos emocionais e sociais
que tem para as mulheres, constitui também uma forma de
condicionar o impacto da mudança que a saída das mulheres
do espaço privado da família poderia representar e limitar
o efeito emancipatório desta mudança (Oliveira e Amâncio,
2002). Embora a partilha dos espaços públicos e de trabalho
por ambos os sexos projecte uma imagem de modernidade
de uma sociedade, e suscite mesmo um sentimento de satis-
fação e boa consciência nos próprios homens, a ignorância
das discriminações que resultam dos processos de assimetria

28
INTERSEÇÕES E TANGENTES

simbólica constitui um forte travão à mudança. A adesão das


mulheres portuguesas ao duplo padrão faz com que as mulhe-
res trabalhadoras vivam com a culpa de estarem a ‘faltar’ aos
seus deveres na família e acumulem uma enorme sobrecarga
de trabalho doméstico com um sentimento de ‘justiça’, que as
torna singulares em comparações internacionais (Amâncio,
2007), ao mesmo tempo que são sujeitas a permanentes e
penosas demonstrações de competências nos contextos de
trabalho qualificado. Esta acumulação de discriminações
naturalizadas permite assegurar que o passado está contido
no presente, sem nunca o colocar inteiramente em causa.

Assimetria simbólica
e mudança social
Tendo presente a condicionante ideológica que a assimetria
simbólica introduz nos processos de mudança das relações
de género, esta linha de investigação orientou-se para as cha-
madas profissões masculinas, devido à prevalência numérica
dos homens, numa altura em que a presença das mulheres no
ensino superior e a sua entrada nas profissões qualificadas
surgiam como um dos sinais de modernização da sociedade
portuguesa (Barreto, 1996). Ao acentuar o sucesso do percurso
escolar das mulheres, ignorando as formas de discrimina-
ção de que eram vítimas no mundo do trabalho, esta visão
sociológica da evolução do Portugal democrático ignorava a
investigação de género e feminista e tornava as políticas para a
igualdade, como por exemplo as acções positivas, no mínimo
controversas, porque desnecessárias. Ora, o interesse por este
tema tinha sido suscitado pelo primeiro inquérito à comu-
nidade científica portuguesa, onde a análise das carreiras de
homens e mulheres nas diferentes disciplinas tinha permitido
mostrar que: “Ambos os sexos deram o seu contributo para o

29
GÉNEROS E SEXUALIDADES

desenvolvimento da ciência em Portugal, nos últimos 20 anos.


Da parte das mulheres, essa contribuição exigiu mesmo um
esforço de recuperação ao nível das qualificações, esforço que
é visível ao longo da década de 80 [referimo-nos aqui ao cresci-
mento dos doutoramentos]. No entanto, nem esse esforço, nem
a partilha de um percurso histórico foram suficientes para
impedir que elas fossem colocadas no “círculo exterior” da
comunidade científica.” (Amâncio e Ávila, 1995, p.160).

A ciência constitui de facto uma das profissões onde a discre-


pância entre as qualificações académicas das mulheres e a sua
progressão na carreira tem sido estudada, e Portugal não é
excepção (Amâncio, 2005), mesmo considerando os enormes
progressos que se registaram na década de 90 do século pas-
sado. As limitações à mudança social, resultantes da assime-
tria simbólica, que consistem em remeter as mulheres para as
‘margens’ das profissões assentam em processos de significa-
ção social. Trata-se de fundir os significados masculinos com
as competências profissionais, numa “genderização” da cul-
tura profissional (Oliveira, Batel e Amâncio, 2010) e do mérito
(Santos e Amâncio, 2009), a partir da fusão entre o modelo
masculino e o modelo profissional. A investigação de António
Marques (2011) sobre a magistratura judicial e a cirurgia geral
mostra esta fusão nos discursos dos próprios profissionais,
homens e mulheres: “Os léxicos a que os participantes de cada
uma delas recorrem para construir o ‘deve-ser’ da profissão e
do profissional são, naturalmente diferentes, pois referem-se
a realidades objectivas distintas. O cirurgião é representado
como pragmático, rápido, decidido, frontal, pouco expressivo
emocionalmente, líder, viril e agressivo; o magistrado como
seguro, íntegro, isento, imparcial, estável e muito trabalha-
dor… Delimitadas de forma peremptória, segura e hegemónica,
as identidades profissionais, sobreponíveis à identidade do ser
masculino – no sentido mais estereotípico – estão claramente

30
INTERSEÇÕES E TANGENTES

orientadas para e pelo ethos masculinista. Ou seja, os con-


teúdos aglutinados para objectivar o padrão normativo de se
ser homem e profissional são assumidos como ‘naturalmente
masculinos’ e não como o resultado de qualquer convenção
sujeita a revisão e refutação.” (Marques, 2011, p.454).

Uma segunda limitação à mudança resulta da adesão das


próprias mulheres à ideologia de género na sua dupla refe-
rência identitária, numa participação activa para a manu-
tenção e perpetuação desta mesma ideologia. Como mostrou
Conceição Nogueira (2001), as mulheres em profissões de ele-
vado estatuto oscilam entre um discurso essencialista e um
discurso de resistência sobre as suas trajectórias profissionais,
sendo que o primeiro tipo de discurso acentua as dificulda-
des que se lhes impõem pela duplicidade de ‘papéis’ que lhes
estão supostamente destinados e a retórica meritocrática.
Em contextos organizacionais, interpretam o poder através
de significados próximos do estereótipo feminino, procu-
rando resolver o paradoxo identitário a que estão sujeitas, o
que diminui, ao mesmo tempo, a sua autoridade (Rodrigues,
2008) e acentua a sua marginalidade. A retórica meritocrática
dos discursos dominantes que põem em ‘dúvida’ o mérito das
mulheres e salientam o seu défice de competências em profis-
sões e actividades tão exigentes como a medicina e a política
(Santos, 2011; Santos e Amâncio, 2011, 2016, Santos, Amâncio
e Roux, 2015), para além de menosprezarem a necessidade
de mudança, servem para iludir a consciência das próprias
vítimas de discriminação.

Conclusão
A investigação sobre a assimetria simbólica permitiu ques-
tionar o quadro conceptual subjacente aos estudos sobre as
categorias de sexo (Amâncio, 1993b) e o alcance dos seus

31
GÉNEROS E SEXUALIDADES

modelos de análise. Ao remeter o pensamento sobre os sexos


para o nível de análise ideológico questionava-se o lugar dos
indivíduos como ponto de partida e de chegada da investiga-
ção convocando, ao mesmo tempo, uma dimensão de relações
sociais, em particular das relações de dominação simbólica.
No quadro do debate sobre as relações intergrupais na psico-
logia social da altura, essa reflexão trazia uma visão crítica
(Amâncio,2006), enquanto no plano da responsabilidade
social da investigação, assumia as suas implicações para uma
psicologia feminista (Amâncio e Oliveira, 2006). Os desenvol-
vimentos posteriores da investigação em psicologia social que
conduziram à hegemonia presente do individual são visíveis
na forma como o conceito de assimetria simbólica foi esva-
ziado de uma parte do seu significado e reduzido à noção de
assimetria hierárquica ou de estatuto.

Um outro desenvolvimento crítico desta linha de investiga-


ção inseriu-se no debate sobre a modernização da sociedade
portuguesa, no seio das ciências sociais, em particular, ao
mostrar a discriminação que atinge as elites femininas, em
resultado da prevalência de uma forte ideologia de género que
é partilhada por homens e mulheres. Apesar da maior parte
dos estudos sobre a assimetria simbólica se ter centrado nos
processos sociais associados ao sexismo, uma das primei-
ras aplicações do conceito foi aos estudos sobre o racismo
(Cabecinhas e Amâncio, 1999) e às relações entre o referente
‘branco’ e os grupos minoritários de imigrantes de cor dife-
rente. No sexismo, tal como no racismo2, a consciência da
discriminação é uma condição fundamental para a mudança
e o seu maior obstáculo é a naturalização dos modos de ser

2. Um artigo recente analisa a intersecção do sexismo e do racismo, considerados como


ideologias, (Gianettoni & Roux, 2010) denuncia alguns dos limites e das contradições
dos debates sobre a integração das minorias emigrantes, em especial das mulheres.

32
INTERSEÇÕES E TANGENTES

branco, negro, homem ou mulher. Um dos efeitos mais per-


versos da ideologia consiste em fazer crer aos indivíduos que
os atributos normativos lhes pertencem e os diferenciam
individualmente. Esta ilusão individualista, que uma parte
da investigação psicossociológica persiste em reproduzir,
permanece o grande obstáculo ao desenvolvimento da cons-
ciência sobre a ideologia de género e à relevância dos estudos
de género nas ciências sociais.

Ao convocar pensamentos disciplinares diversos, o conceito


de assimetria simbólica, e a investigação a que deu origem,
permitiram identificar um processo e esclarecer a sua cons-
trução no seio da sociedade, ao mesmo tempo que procurou
contribuir para a consciência social do seu impacto nas tra-
jectórias individuais.

Referências
• Amâncio, Lígia (1992). Asimetrias nas representações de género.
Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 34, 9-22
• Amâncio, Lígia (1993a). Género: representações e identidades.
Sociologia. Problemas e Práticas, nº 14, 127-140
• Amâncio, Lígia (1993b). Stereotypes as ideologies. The case of gender
categories. Revista de Psicologia Social, vol.8, 2, 163-170
• Amâncio, Lígia (1994). Masculino e feminino. A construção social da
diferença. Porto, Afrontamento
• Amâncio, Lígia (1995). Social identity and social change. In Lígia
Amâncio e Conceição Nogueira (orgas.) Gender, Management and
Science. Braga, Universidade do Minho, Instituto de Educação e
Psicologia, pp. 33-42
• Amâncio, Lígia e Ávila, Patrícia (1995). O género na ciência. In Jorge
Correia Jesuíno (org.) A Comunidade Científica Portuguesa nos
finais do século XX. Oeiras, Celta, pp. 135-162
• Amâncio, Lígia e Oliveira, João Manuel (2006). Men as individuals and
women as a sexed category. Implications of symbolic asymmetry for
feminist practice and feminist psychology. Feminism & Psychology,
vol.16 (1), 35-43

33
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Amâncio, Lígia (2006). Identidade social e relações intergrupais. In


Jorge Vala e Maria Benedita Monteiro (orgs.) Psicologia Social, Lisboa,
FCG, pp. 387-409, 1ª edição 1993
• Amâncio, Lígia (2007). Género e divisão do trabalho doméstico
- o caso português em perspectiva. In Karin Wall e Lígia Amâncio
(orgas.) Família e Género em Portugal e na Europa, Lisboa, Instituto
de Ciências Sociais, pp. 181-209
• Barreto, António (org.) A situação social em Portugal, 1960-1995,
Lisboa, ICS
• Beauvoir, Simone de (1976). Le deuxième sexe, Paris: Gallimard,
volumes I-II, 1ª edição 1949
• Baubérot, Jean (1994). Da mulher protestante. In George Duby e
Michelle Perrot (orgs.) História das Mulheres, vol. 4 (O Século XIX).
Porto, Afrontamento, pp.239-255, edição original 1991
• Broverman, IngeK., Broverman, DonaldM., Clarkson, Frank E.,
Rosenkrantz, Paul S., Vogel, Susan R. (1970). Sex-role stereotypes
and clinical judgements of mental health. Journal of Consulting and
Clinical Psychology, 34, 1-7
• Broverman, Inge K., Vogel, Susan R., Broverman, Donald M.,
Clarkson, Frank E., Rosenkrantz, PaulS. (1972). Sex-role stereotypes:
A current appraisal. Journal of Social Issues, 28, 2, 59-78
• Cabecinhas, Rosa e Amâncio, Lígia. (1999). Asymmetries in the
perception of other as a function of social position and context. Swiss
Journal of Psychology, 58(1), 40-50
• Connell, Raewyn W. (1987). Gender & Power, Cambridge, Polity Press
• Eagly, Alice (1987). Sex differences in social behavior: a social-role
interpretation. Hillsdale, N.J., Lawrence Erlbaum Associates
• Fraisse, Geneviève (1995). Muse de la raison. Démocratie et exclusion
des femmes en France. Paris, Gallimard
• Fraisse, Geneviève (1998). Les femmes et leur histoire. Paris,
Gallimard
• Fraisse, Geneviève (2000). Les deux gouvernements: la famille et la
Cité. Paris, Gallimard
• Garcia, Maria Antonieta (1999). Judaísmo no feminino. Tradição
popular e ortodoxia em Belmonte. Universidade Nova de Lisboa,
Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões
• Gianettoni, Lavinia & Roux, Patricia (2010). Interconnecting
Race and Gender Relations: Racism, Sexism and the Attribution
of Sexism to the Racialized Other. Sex Roles, 62,374–386

34
INTERSEÇÕES E TANGENTES

• Giorgio, Michela de (1994). O modelo católico. In George Duby e


Michelle Perrot (orgs.) História das Mulheres, vol. 4 (O Século XIX).
Porto, Afrontamento, pp.199-237, edição original 1991
• Guillaumin, Colette (1992). Sexe, Race et Pratique du pouvoir. L’idée
de Nature. Paris, Côté-femmes editions
• Green, Nancy (1994). A formação da mulher judia. In George Duby e
Michelle Perrot (orgs.) História das Mulheres, vol. 4 (O Século XIX).
Porto, Afrontamento, pp.257-275, edição original 1991
• Heritier, Françoise (1996). Masculin, Féminin. La pensée de la
différence. Paris, Odile Jacob
• Hurtig, Marie Claude e Pichevin, Marie France (1986). La difference
des sexes. Questions de psychologie. Paris, Editions Tierce
• Katz, Daniel e Braly, Kenneth (1933). Racial stereotypes of 100 college
students. Journal of Abnormal and Social Psychology, 28, 280-290
• Laqueur, Thomas (1990). Making sex, body and gender from the
Greeks to Freud / La fabrique du sexe. Essai sur le corps et le genre
en Occident, Paris, Gallimard, 1992
• Marques, António Manuel (2011). Masculinidades e profissões:
discursos e resistências. Lisboa, FCG/FCT
• Marques, Sibila, Lima, Maria Luísa e Novo, Rosa (2006). Traços
estereotípicos associados a pessoas jovens e idosas em Portugal.
Laboratório de Psicologia, 4(1), 91-108
• Mead, Margaret (1968). Male and Female. NY: Laurel, 1ª edição, 1949
• Morawski,Jill G. (1987). The troubled quest for masculinity,
femininity and androgyny. In Phillip Shaver e Clyde Hendrick (eds.)
Review of personality and social psychology: Vol. 7. Sex and Gender,
Londres, Sage, pp. 44-69
• Moscovici, Serge (1994). La société contre nature. Paris, Editions du
Seuil, 1ª edição 1972
• Nogueira, Conceição (2001). Um novo olhar sobre as relações sociais
de género. Feminismo e perspectivas críticas na psicologia social.
Lisboa, FCG/FCT
• Nogueira, Conceição & Silva, Isabel (2001). Cidadania. Construção de
novas práticas em contexto educativo. Porto: Edições ASA
• Oliveira, João Manuel e Amâncio, Lígia (2002). Liberdades
condicionais. O conceito de papel sexual revisitado. Sociologia
Problemas e Práticas, nº40, 45-61
• Oliveira, João Manuel, Batel, Susana e Amâncio, Lígia (2010). Uma
igualdade contraditória? Género, trabalho e educação das “elites
discriminadas”. In Virgínia Ferreira (orga.) A igualdade de mulheres

35
GÉNEROS E SEXUALIDADES

e homens no trabalho e no emprego em Portugal. Políticas e


circunstâncias. Lisboa, CITE, Colecção Estudos (7), pp.247-260
• Rodrigues, Fatima (2008). A reprodução do poder nas organizações.
Uma perspectiva de género. Tese de Doutoramento, ISCTE
• Santos, Maria Helena (2011). Do défice de cidadania à paridade política.
Testemunhos de deputados e deputadas. Porto, Afrontamento
• Santos, Maria Helena e Amâncio, Lígia (2011). Género e cidadania, o
lento caminho para a paridade. In Magda S. Roberto, Maria T. Batista,
Maria Helena
• Santos, Rita Morais, Rui S. Costa e Maria Luísa Lima (orgs.) Percursos
de investigação em psicologia social e organizacional. Lisboa, Edições
Colibri, Vol.IV (2009), pp.51-74
• Santos, Maria Helena e Amâncio, Lígia (2016). Gender inequalities in
highly qualified professions. A social psychological analysis. Journal
of Political and Social Psychology, vol. 4(1) 427-443
• Santos, Maria Helena, Amâncio, Lígia e Roux, Patrícia (2015).
Numbers do not tell the whole story: Gender and medicine in
Portugal. Women’s Studies International Forum, vol. 53, 73-82
• Scott, Joan (1998). La citoyenne paradoxale. Les feministes françaises
et les droits de l’homme. Paris, Albin Michel
• Toldy, Teresa (1998). Deus e a Palavra de Deus na Teologia Feminista.
Lisboa, Edições Paulinas

36
ANTÓNIO MANUEL MARQUES

Estudos da
masculinidade e
teoria feminista3

Os estudos sobre os homens e sobre a masculinidade hão-de


cruzar-se, em algum momento, com a teoria feminista e com
o feminismo. A partilha de algumas raízes teóricas e sociais,
interrogações fundamentais e alguns posicionamentos
ideológicos e epistemológicos torna esse encontro inevitável
e potencialmente produtivo, mas não deve ser casual, uma
obrigação ou mero alinhamento ideológico, sem reflexão
prévia ou decisão deliberada.

Como orientação para desta reflexão, partilho com Judith


Gardiner (2002a) a curiosidade sobre o modo como as teorias
feministas configuram os estudos sobre a masculinidade
e como os contributos destes as modificaram. Para uma

3. Este texto resulta da adaptação de parte de um capítulo da minha Tese de Douto-


ramento (Marques, 2011), editada pela Fundação Gulbenkian e pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, as quais a autorizaram explicita e formalmente.
GÉNEROS E SEXUALIDADES

apreciação geral acerca desta relação, tomo como ponto de


partida a avaliação dessa autora quando a classifica como
assimétrica, interativa e mutável (op.cit., p.2).

Em momentos e com orientações e princípios distintos, as


teorias feministas terão contribuído para dar visibilidade às
situações de desvantagem das mulheres e sustentar formas
de ação transformadoras. Tem havido, sobretudo, um esforço
para introduzir transformações ideológicas, institucionais e
relacionais para minimizar as categorias de género (Gardiner,
2005, p.35). Esse esforço tem uma história.

O início da relação entre a


teoria feminista e o estudo da
masculinidade
O legado dos movimentos de libertação das mulheres dos anos
60 e 70 do Século XX acentuou a oposição entre feminismo e
masculinidade (Gardiner, 2002a). Desde o início da década
de 70 do Século XX, o ressurgimento do movimento de defesa
dos direitos das mulheres4 clamou pelo reconhecimento da
igualdade cívica entre mulheres e homens, pela não subordi-
nação da feminilidade face à masculinidade (Amâncio, 2003a,
2004; Ergas, 1995; Foster, 1999; Segal, 1995, 2001).

Deste posicionamento, pelo menos nesse momento histórico,


ressalta a focalização nas instituições e ideologias que foram
alimentando e materializando um universo humano consti-
tuído por grupos baseados nas diferenças de sexo, aos quais se

4. Relativamente à chamada Primeira Vaga do feminismo, sobretudo europeu, ver


Isabel do Carmo e Lígia Amâncio (2004) e, para uma panorâmica mundial, Françoise
Thébaud (1995) e ainda o contributo de Conceição Nogueira (2001, p.131 ss).

40
INTERSEÇÕES E TANGENTES

associariam, de forma argumentada e materializada, direitos


diferentes. Claramente, aos homens caberia o favoritismo e a
supremacia e, logo, às mulheres, uma situação de subalter-
nidade e de vivência da injustiça. Deve, então, dizer-se que
a teoria feminista tem na sua base a discussão em torno dos
homens e da masculinidade, ou, de forma mais radical, o
combate contra estas duas entidades, pelo seu protagonismo
na criação e uma situação especificamente desigual e desvan-
tajosa para as mulheres. Contextualizada temporalmente, é
fácil compreender a saliência desta concepção dual da relação
entre os sexos e da discussão acerca da assimetria entre ambos.
Em termos emergentes e prioritários, e até pelo acumular de
movimentos e discussões em torno desta temática, há plena
justificação para tal cenário e para as estratégias adoptadas
(Ergas, 1995; Segal, 1995).

As primeiras teorias feministas eram, assim, basicamente


defensivas, atribuindo responsabilidade aos homens pela
desapropriação de direitos às mulheres e pela manutenção da
assimetria evidente (Gardiner, 2005, p.36). Ainda que iden-
tificando o peso da cultura nos modos de agir dos homens,
foi-lhes imputada a responsabilidade direta na organização
social que lhes garantia essa posição de superioridade. Salvas
as originalidades das diferentes orientações teóricas (Ergas,
1995; Nogueira, 2001; Petersen, 2003; Segal, 1990), a focali-
zação comum no protagonismo dos homens, na chamada
Segunda Vaga do feminismo, cria espaço para questionar que
homens estão, afinal, em causa. Judith Gardiner (2005, p.36)
resume bem esta ligação entre a teoria feminista e a definição
da masculinidade enquanto área de estudo ao afirmar que
a misoginia criou a teoria feminista e esta ajudou a criar a
masculinidade. Através desta dinâmica, impulsionou-se a
busca dos fundamentos das disparidades entre homens e
mulheres e, ao mesmo tempo, essas reflexões originaram

41
GÉNEROS E SEXUALIDADES

o questionamento da primazia e vantagem dos homens


(Petersen, 2003).

Os chamados estudos sobre as mulheres, inicialmente cons-


tituídos nas universidades norte-americanas, criaram um
conjunto de académicos aderentes à teoria feminista e, por
outro lado, foram inspiradores dos estudos sobre os homens
e sobre a masculinidade. Neste último caso, o feminismo e a
teoria feminista foram encarados como suporte para a deli-
mitação de um domínio do saber e para a ação social e política
(Gardiner, 2005).

Os estudos académicos sobre a masculinidade dos anos de


1970 a 1980 desenvolveram-se sob a dependência algo confli-
tual das teorias feministas, embora em ligação institucional
com os departamentos ou grupos dos estudos sobre as mulhe-
res e programas de estudos de género (Brod, 2002; Thomas,
2002). Estes estudos sobre os homens não foram aceites, desde
o seu início, pelas feministas, chegando estas a ridicularizar
a sua constituição como ramo do conhecimento e a sua insti-
tucionalização académica (Gardiner, 2005).

Na década de 1990, enquanto os movimentos masculinistas5


procuravam restaurar os tempos de dominação absoluta mas-
culina sobre as mulheres e as teóricas feministas continuavam
a investir no sentido oposto, os estudos do género foram inte-
grando as teorias queer, bem como a masculinidade enquanto
foco teórico de interesse (Garlick, 2003; Wiegman, 2002).

5. Ver, a este propósito, as reflexões de Caroline New (2001) e de Ross Haenfler (2004)
acerca destes movimentos, como Promise Keepers, Million Man March, Mythopoets.
Ver também em Lígia Amâncio (2004, p.16-7) a análise dos fundamentos e do impacto
da obra do neoconservador e masculinista Robert Bly (Iron John: A book about Men),
datada de 1990, e a Dissertação de Ana S. Fonseca (1998), completamente focalizada
na análise dessa obra.

42
INTERSEÇÕES E TANGENTES

O pensamento sobre o género viria, pois, a complexificar-se


e a integrar outros elementos conceptuais e ideológicos e de
intervenção política.

Quando se questiona a inevitabilidade da relação entre o


corpo sexuado e o género (Amâncio, 1994, 2003a, 2003b;
Butler, 1990, 1993; Connell, 1994, 1995; Laqueur, 1992), a
manutenção das análises e da ação política centradas na bipo-
laridade mulher-homem pode ser encarada como contendo
elementos contraditórios. Ou seja, ao insistir-se que a questão
essencial reside na relação desequilibrada inter-sexos, assu-
me-se a homogeneidade dos grupos ou categorias sexuais
e, logo, o primado do fundamento biológico das diferenças
(Foster, 1999). Há, portanto, necessidade de desconstruir essa
ligação entre sexo e género6, como sintetiza Lígia Amâncio
(2003a, p.707):

“A perspectiva desconstrutivista rompeu definitiva-


mente com a concepção do género como atributo
dos homens e das mulheres concretos e tornou
visível a confluência da cultura, da linguagem, das
práticas e das instituições para a sua construção.
Do ponto de vista das formas e conteúdos em que
esta assenta, a centralidade da norma heteros-
sexual e a assimetria dos significados emergem
como elementos estruturantes.”.

Os discursos que acentuam o peso da cultura no modo


como, a partir do corpo sexuado, se constroem dispositivos
psicológicos, normas, ritos e instituições sociais genderiza-
dos permitem envolver tanto as mulheres como os homens,

6. Ou, como diz Miguel Vale de Almeida (1995, p.130), (…) “um corte nas metáforas
verticais de estrutura, hierarquia ou níveis” (…).

43
GÉNEROS E SEXUALIDADES

enquanto objetos dessa ação socializadora. Pelo menos no


chamado feminismo liberal, nas décadas de 1960 a 1980, a
equidade entre homens e mulheres é sempre vislumbrada
como meta a atingir, agindo, sobretudo nos planos legis-
lativo (Gardiner, 2005), para instituir planos de igualdade,
mas também nos processos de educação e de socialização
das crianças, uma via para garantir um futuro de equilíbrio
e de equidade entre sexos (Ergas, 1995; Nogueira, 2001).

Sob este pensamento, as interrogações ganham um sentido


horizontal e transversal, questionando como os proces-
sos de construção dos indivíduos e das sociedades minam
as possibilidades de se cumprirem os ideais de cidadania.
O questionamento dos direitos e privilégios de cidadania não
concedidos às mulheres continuou presente na teorização
e intervenção feministas e estendeu-se aos estudos sobre a
masculinidade (Gardiner, 2005). Esta dinâmica, diz Gardiner
(2002a), acarreta alguma complicação, mas também bastante
riqueza, ao movimento feminista, aos estudos sobre o género
e sobre a masculinidade. Terá sido por esta altura que os
últimos entraram num período de maturação e de relativa
independência, influenciados pelas teorias queer, pelo pós-
-estruturalismo, pelos estudos pós-coloniais e étnicos e pelos
feminismos (Gardiner, 2002a; Kimmel & Messner, 1995).

Os estudos sobre a masculinidade terão conquistado uma


posição de aceitação consensual em vários temas (Berggren,
2014; Gardiner, 2002a). Apesar de substancialmente minori-
tários, em termos de número de pesquisas, face aos estudos
sobre as mulheres e aos estudos de género mais centrados nas
mulheres e na feminilidade, é aceitável falar de uma imple-
mentação segura dos estudos sobre os homens e da masculi-
nidade (Gardiner, 2002a).

44
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Feminismo e masculinidade: entre


o antagonismo e o consenso
Vale a pena recuar e relembrar o efetivo antagonismo (funda-
mentado) entre a masculinidade e as teorizações e os movi-
mentos feministas. As objecções feministas à masculinidade
resumem-se, na óptica de Gardiner (2002a), a duas formas
de pensamento. Numa delas, a masculinidade é associada
aos modos de ser dos homens – incluindo a agressão e a
competição – as quais, pela sua institucionalização, refor-
çarão a dominação dos homens face às mulheres, ou seja, a
masculinidade como a antítese dos objectivos do feminismo.
Por outro lado, esta recusa feminista em aceitar a masculini-
dade dirige-se também para o próprio conceito, por este ser
uma entidade dúbia e inconsistente (op.cit., p.3). Nesse caso,
a estratégia necessária deve minar o sistema de género, de
modo a que este deixe de presidir à organização das socieda-
des e das instituições (Lorber, 1988; Maccoby, 1998). Assim,
nesta óptica menos radical, o foco de atenção não deverá ser
a dicotomização entre os homens e as mulheres mas, antes,
a grande diversidade intra-categorias.

Aquela a que Gardiner (2002a, p.4) chama segunda vaga de


antagonismos entre o feminismo e a masculinidade é, na sua
óptica, o resultado de uma oposição mútua. Não está somente
em causa a reação básica e escarnecedora dos homens ao femi-
nismo dos anos 1960 e 70, mas um movimento organizado e
reunido em torno de ideais saudosistas, de engrandecimento
de um passado de supremacia masculina, motivado pelo
desejo de melhorar a condição dos homens, minimizando
a opressão das mulheres (Thomas, 2002). Esses movimen-
tos masculinistas expressaram a necessidade de defender
os homens dos ataques das mulheres e do feminismo, pois

45
GÉNEROS E SEXUALIDADES

estes colocavam em causa os seus traços naturais e direitos


ancestrais, daí a necessidade de subestimar, atacar e denegrir
o feminismo e a teoria feminista (Gardiner, 2005).

Enquanto jornalista, Susan Faludi (1991) encontrou discursos


de lamentação acerca da crise dos homens, muitos deles apon-
tando diretamente para os efeitos nefastos do feminismo nos
EUA. Ela considera que esta crise (se existe) não tem ligação
direta com a ascensão feminina e que, por isso, os homens
deveriam questionar a cultura predominante, em lugar de aspi-
rar a um status quo passado e supostamente benéfico. Opõe-se,
assim, à ideia de que, para melhorar a situação das mulheres,
haja necessidade de piorar a dos homens; raciocinar desta
forma binária, defende, não é o melhor caminho. Tal como diz
Faludi (op.cit.), para que ultrapassem a crise, supostamente
real, os homens deveriam preocupar-se em ser humanos, em
lugar de insistirem em não perder a masculinidade.

O contramovimento de homens pró-feministas concorda que


a organização tradicional e rígida do género é desvantajosa
para homens e mulheres e que é possível alterar as situações
de dominação, o que terá contribuído para combater ou
atenuar as estratégias misóginas e masculinistas (Gardiner,
2002a; Newton, 2002). A argumentação e as práticas destes
movimentos de homens pró-feministas assentam na defesa
de que a supremacia masculina não afecta apenas as mulhe-
res mas também muitos homens subordinados, razão pela
qual, enquanto homens, devem apoiar o feminismo (Connell,
1995; Gardiner, 2002a, 2002b, 2005; Kimmel, 1996, 2000;
Thomas, 2002).

O conceito de masculinidade hegemónica e as análises que


este permite têm, neste contexto, um papel importante.
Pelo seu enorme potencial de disseminação e pelas suas

46
INTERSEÇÕES E TANGENTES

ramificações a diferentes níveis da organização social e do


quotidiano, a masculinidade hegemónica afectará negativa
e profundamente as mulheres e muitos homens (Connell,
1995, 2000, 2001, 2002; Kimmel, 2000), o que faz dela uma
espécie de inimigo comum e o combate contra ela um
objectivo supra-ordenado para feministas e pró-feministas.
O reconhecimento de que alguns homens também vivenciam
a posição de vítimas, o mal-estar, a inibição, a restrição e a
imposição que advêm da masculinidade (Gardiner, 2002a;
Kimmel, 2000; New, 2001; Robinson, 2000; Segal, 1990, 2001)
aproxima, claramente, as feministas e os pró-feministas.

Um desafio partilhado pela teoria feminista e pelos estudos


da masculinidade advém da integração do pós-modernismo
e das teorias queer, os quais têm insistido no carácter social-
mente construído do género e da sexualidade (Wiegman,
2002). Ainda que vantajosos, esses contributos não podem,
em contrapartida, deixar de abalar o pensamento puramente
binário, assente nas categorias de homem e de mulher, de
masculino e feminino, o que dificulta e questiona, em parte,
a mobilização teórica e política em torno do género. Por essa
razão e basicamente, as questões fundamentais que se colo-
cam aos estudos feministas e aos estudos sobre a masculi-
nidade dizem respeito à conceptualização dessas categorias,
às possibilidades de articulação das suas interdependências
e conflitos mútuos e aos efeitos dos homens e das masculi-
nidades nos homens e nas mulheres e das mulheres e das
feminilidades nos homens (Gardiner, 2002a).

Frequentemente, no contexto mais específico dos estudos


sobre a masculinidade, é expresso um clima de ansiedade
devido à situação de dependência ambivalente e antagonismo
face ao feminismo, à masculinidade hegemónica, aos estudos
gay, lésbicos e queer (Gardiner, 2002a, p.9). Poderá pensar-se

47
GÉNEROS E SEXUALIDADES

na hipótese de se ter instalado um clima de suspeição mútua


ou, pelo menos, de não estar ainda clarificado e espaço a
ocupar pelos estudos da masculinidade, a acrescer à lenta
aproximação dos homens ao tema. As observações recolhidas
junto de homens académicos por Judith Newton (2002) apon-
tam para a sua relutância em assumir o papel de ‘visitantes’
ou de terem de falar para mulheres, pois estariam convictos
de que, para as feministas, jamais estarão à altura e na posi-
ção certa para se envolverem nos seus temas e objetivos.

Para Gardiner (2005), o pensamento feminista terá bene-


ficiado dos contributos teóricos e empíricos dos estudos
sobre a masculinidade, os quais permitiram aprofundar a
complexidade das assimetrias, o conhecimento acerca da
diversidade de contextos e de instituições em que o género
tem especial saliência. Indicadores importantes são, na sua
análise, o número de livros dos estudos sobre as mulheres
e os dos estudos sobre os homens que partilham premissas
feministas centrais, o interesse comum pelas diversas facetas
da opressão social e pelas hierarquias da dominação e, ainda,
o facto da teoria feminista citar cada vez mais os autores e as
autoras que estudam a masculinidade e vice-versa.

Numa óptica positiva, enfatizando o caminho percorrido pelas


teorias feministas e pelos estudos da masculinidade, convirá
aceitar que esta não é nem estática nem monolítica, mas o
produto de processos com resultados diversos nos indivíduos,
grupos, instituições e sociedades. Com efeito, existem formas
hegemónicas e dominantes de masculinidade que procuram
insistentemente defender a sua estabilidade, naturalidade e
permanência (nomeadamente através de representações nos
media e de performances individuais e colectivas), anulando
a diversidade das masculinidades e a sua construção histórica
e social.

48
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Defendo, por isso, que a cooperação entre as teorias femi-


nistas e os estudos da masculinidade é viável e desejável,
dos pontos de vista político e intelectual, pois os diferen-
tes pontos de partida localizados (standpoints) e as trocas
mútuas representam enriquecimento. É justo afirmar que as
teorias feministas e a sua consideração prática e concreta nas
sociedades contemporâneas tiveram e continuam a ter um
efeito efetivo nas formas de pensar e de organizar a vida e as
instituições, afectando diretamente as mulheres e os homens
(Gardiner, 2005).

Possivelmente, a curta duração, em termos relativos, desta


discussão e a natureza profunda do seu conteúdo explicarão
o aparente equilíbrio e acalmia entre o feminismo e o estudo
da masculinidade. Estão em causa, essencialmente, mais de
trinta anos de história e de movimentações sociais e acadé-
micas, pelo que podemos estar num domínio ainda eferves-
cente e com inúmeros aspectos por clarificar. Tanto no senso
comum como no mundo académico, as representações sociais
associadas ao feminismo, nas suas formas substantiva ou
adjetiva e frequentemente injustas e desadequadas, assinala-
rão a presença de um tema com alguns aspectos por debater
e aprofundar7. Identifico-me com os princípios essenciais que
aproximam a teoria feminista e os estudos sobre a masculi-
nidade, expressos, sob a forma de aspiração, por Conceição
Nogueira (2001, p.243) através das seguintes palavras:

7. Isabel do Carmo e Lígia Amâncio (2004, p.11) sintetizam essa necessidade ao re-
ferirem a uma forma de posicionamento ideológico ainda difundido: “Feminismo,
palavra maldita. Um termo que suscita reacções indignadas, risos ou um presunçoso
comentário de que “isso já passou de moda””. No entanto, em clara contradição, os
valores feministas têm sido socialmente incorporados, enquanto as feministas e o mo-
vimento feminista são vulgarmente rejeitados (Riley, 2001).

49
GÉNEROS E SEXUALIDADES

“O activismo feminista para além de promover a


vida das mulheres e trabalhar para uma sociedade
mais justa, deverá atribuir um valor elevado quer
a homens quer a mulheres, procurando analisar a
forma como os processos e práticas sociais cons-
trangem as escolhas de todos”.

São esses constrangimentos, de uns e de outras, que apoiam a


resistência das práticas geradoras de desigualdade e que justi-
ficam o investimento na identificação de estratégias eficazes
de mudança.

Referências
• Almeida, M. V. (1995). Senhores de Si. Uma interpretação
antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século.
• Amâncio, L. (1994). Masculino e Feminino. A construção social da
diferença. Porto: Edições Afrontamento.
• Amâncio, L. (2003a). O género nos discursos das ciências sociais.
Análise Social, xxxviii(168), 687-714.
• Amâncio, L. (2003b). Implicações teóricas e epistemológicas dos
estudos de género para a teoria feminista. Faces de Eva, 9, 29-34.
• Amâncio, L. (2004). A(s) masculinidade(s) em que-estão. In L.
Amâncio (Ed.), Aprender a Ser Homem. Construindo masculinidades
(pp. 13-27). Lisboa: Livros Horizonte.
• Berggren, K. (2014). Sticky masculinity post-structuralism,
phenomenology and subjectivity in critical studies on men. Men and
Masculinities, 17(3,) 231-252.
• Brod, H. (2002). Studying masculinities as superordinate studies.
In J. K. Gardiner (Ed.), Masculinity Studies & Feminist Theory. New
directions (pp. 161-175). New York: Columbia University Press.
• Butler, J. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of
identity. New York: Routledge.
• Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”.
New York: Routledge.
• Carmo, I., & Amâncio, L. (2004). Vozes Insubmissas. A história
das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos
quando era crime fazê-lo. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

50
INTERSEÇÕES E TANGENTES

• Connell, R. W. (1994). Psychoanalysis on masculinity. In H. Brod &


M. Kaufman (Eds.), Theorizing Masculinities (pp. 11-38). Thousand
Oaks: Sage Publications.
• Connell, R. W. (1995). Masculinities. Cambridge: Polity Press.
• Connell, R. W. (2000). The Men and the Boys. Cambridge: Polity
Press.
• Connell, R. W. (2001). The social organization of masculinity. In S. M.
Whitehead & F. J. Barrett (Eds.), The Masculinities Reader (pp. 30-50).
Cambridge: Polity Press.
• Connell, R. W. (2002). Gender. Cambridge: Polity Press.
• Connell, R. W., Hearn, J., & Kimmel, M. S. (2005). Introduction. In M.
S. Kimmel, J. Hearn & R. W. Connell (Eds.), Handbook of Studies on
Men and Masculinities (pp. 1-12). Thousand Oaks, California: Sage
Publications.
• Ergas, Y. (1995). O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980.
In G. Duby & M. Perrot (Eds.), História das Mulheres no Ocidente (Vol.
5, pp. 579-607). Porto: Edições Afrontamento.
• Faludi, S. (1991). Backlash. The underclared war against American
women. New York: Crown Publishers.
• Fonseca, A. J. M. S. (1998). A Identidade Masculina segundo Robert
Bly: o paradoxo entre o real e o imaginado. Tese de Mestrado,
Universidade Aberta, Lisboa.
• Foster, J. (1999). An invitation to dialogue. Clarifying the position
of feminist gender theory in relation to sexual difference theory.
Gender & Society, 13(4), 431-456.
• Gardiner, J. K. (2002a). Theorizing age with gender: Bly’s boys,
feminism, and maturity masculinity. In J. K. Gardiner (Ed.),
Masculinity Studies & Feminist Theory. New directions (pp. 90-118).
New York: Columbia University Press.
• Gardiner, J. K. (2002b). Introduction. In J. K. Gardiner (Ed.),
Masculinity Studies & Feminist Theory. New directions (pp. 1-29).
New York: Columbia University Press.
• Gardiner, J. K. (2005). Men, masculinities, and feminist theory. In M.
S. Kimmel, J. Hearn & R. W. Connell (Eds.), Handbook of Studies on
Men and Masculinities (pp. 35-50). Thousand Oaks: Sage Publications.
• Garlick, S. (2003). What is a man? Heterosexuality and the technology
if masculinity. Men & Masculinities, 6(2), 156-172.
• Haenfler, R. (2004). Manhood in contradiction. The two
faces of straight edge. Men and Masculinities, 7(1), 77-99.

51
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Kimmel, M. S. (1996). Manhood in America: a cultural history. New


York: Free Press.
• Kimmel, M. S. (2000). The Gendered Society. Oxford: Oxford
University Press.
• Kimmel, M. S., & Messner, M. (1995). Introduction. In M. S. Kimmel
& M.
• Messner (Eds.), Men’s Lives (3 ed., pp. xiii-xxiii). Boston: Allyn &
Bacon.
• Laqueur, T. (1992). La Fabrique du Sexe. Essai sur le corps et le genre
en Occident. Paris: Gallimard.
• Lorber, J. (1988). Using gender to undo gender: a feminist degendering
movement. Feminist Theory, 1(1), 79-95.
• Maccoby, E. E. (1998). The Two Sexes: growing up apart, coming
together. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press of Harvard
University Press.
• Marques, A.M. (2011). Masculinidade e Profissões: discursos e
resistências. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para
a Ciência e a Tecnologia.
• New, C. (2001). Oppressed and oppressors? The systematic
mistreatment of men. Sociology, 35(3), 729-748.
• Newton, J. (2002). Masculinity studies: the longed for profeminist
movement for academic men? In J. K. Gardiner (Ed.), Masculinity
Studies & Feminist Theory. New directions (pp. 176-192). New York:
Columbia University Press.
• Nogueira, C. (2001). Um Novo Olhar sobre as Relações Sociais de
Género. Feminismo e perspectivas críticas na Psicologia Social.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência
e a Tecnologia.
• Petersen, A. (2003). Research on men and masculinities. Some
implications of recent theory for future work. Men & Masculinities,
6(1), 54-69.
• Riley, S. (2001). Maintaining power: male constructions of ‘feminists’
and ‘feminist values’. Feminism & Psychology, 11(1), 55-78.
• Robinson, S. (2000). Marked Men: white masculinity in crisis. New
York: Columbia University Press.
• Segal, L. (1990). Slow Motion: changing masculinities, changing men.
London: Virago Press.
• Segal, L. (1995). A feminist look at the family. In J. Muncie,
M. Wetherell, M. Langan, R. Dallos & A. D. Cochrane (Eds.),
Understanding the Family (pp. 295-321). London: Sage Publications.

52
INTERSEÇÕES E TANGENTES

• Segal, L. (2000). Why Feminism? New York e: Columbia University


Press.
• Segal, L. (2001). The belly of the beast: sex as male domination? In
S. M. Whitehead & F. J. Barrett (Eds.), The Masculinities Reader (pp.
100-111). Cambridge: Polity Press.
• Thébaud, F. (1995). A Grande Guerra. O triunfo da divisão sexual. In
G. Duby & M. Perrot (Eds.), História das Mulheres (Vol. 5, pp. 31-93).
Porto: Edições Afrontamento.
• Thomas, C. (2002). Reenfleshing the bright boys; or, how male bodies
matter to feminist theory. In J. K. Gardiner (Ed.), Masculinity Studies
& Feminist Theory. New directions (pp. 60-89). New York: Columbia
University Press.
• Wiegman, R. (2002). Unmaking: men and masculinity in feminist
theory. In J. K. Gardiner (Ed.), Masculinity Studies & Feminist Theory.
New directions (pp. 30-59). New York: Columbia University Press.

53
MARIA HELENA SANTOS

Desigualdades de
género em profissões
qualificadas e resis-
tências à mudança
Um percurso de investigação8

Este capítulo apresenta o balanço de uma linha de investi-


gação sobre género e a política, enquanto profissão ou ativi-
dade, onde se destaca a evidência de que as qualificações das
mulheres não são suficientes para a sua integração e aceitação,
devido à prevalência de subjetividades coletivas, de ordem
ideológica, que se constituem como obstáculos às mulheres
nas profissões tradicionalmente masculinas, tornando-as
“estranhas” à profissão.

Este percurso está ligado ao desenvolvimento de trabalhos


académicos, como o mestrado, o doutoramento e o pós-dou-
toramento, mas não é estritamente pessoal, na medida em
que se insere num trabalho coletivo que contou com a orien-
tação de Lígia Amâncio, do Instituto Universitário de Lisboa

8. Agradecimentos: Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia (Ref.: SFRH/BPD/78150/2011).
GÉNEROS E SEXUALIDADES

(ISCTE-IUL) e Patricia Roux, do Centre en Etudes Genre


LIEGE, da Universidade de Lausanne, como será evidente ao
longo do texto.

Aproximação à Investigação -
Género, Política, Ação Positiva
e In/justiça Social
Este percurso começou, no início do século, enquanto bol-
seira de investigação em dois projetos coordenados por Lígia
Amâncio (“A igualdade injusta: uma abordagem psicossocio-
lógica das desigualdades de género” e “Elites discriminadas”),
altura em que contactámos, pela primeira vez, com a litera-
tura sobre medidas de ação positiva destinadas a promover a
igualdade.

O termo “affirmative action” surgiu nos Estado Unidos da


América (EUA) em 1935, na Lei Wagner, relativamente ao
mundo do trabalho (Bacchi, 1996). No contexto dos direitos
cívicos, a origem das medidas de ação positiva é, geralmente,
atribuída ao Governo Kennedy em 1961, tendo sido imple-
mentada em 1965, durante o mandato do Presidente Johnson,
banindo a discriminação baseada na “raça”, na cor, na religião
e na nacionalidade nas empresas com contratos ou subcontra-
tos com o Estado Federal. Um ano depois, esta foi corrigida e
generalizada às mulheres (Thermes, 1999). A ação positiva diz
respeito a todas as medidas políticas ou programas de ação, de
caráter temporário (Holloway, 1989), que se destinam a acelerar
o processo de eliminação da discriminação face aos grupos
historicamente desfavorecidos (i.e., as minorias e as mulheres),
de forma a compensá-los em situações de igualdade de compe-
tências, promovendo a igualdade e a diversidade (Bergmann,
1996). Entretanto, diversos tipos de medidas já foram adotadas

56
INTERSEÇÕES E TANGENTES

por mais de cem países de todo o mundo, em particular no


contexto da política (ver Santos, 2011, para uma revisão).

Embora estas medidas tenham sido criadas com o objetivo de


diminuir a discriminação baseada nas pertenças sociais e ate-
nuar os efeitos da discriminação do passado (Kravitz & Platania,
1993), geraram fortes controvérsias sociais desde a sua origem
(Crosby & Cordova, 1996). A perplexidade gerada por estas con-
trovérsias conduziu à formulação de perguntas condutoras do
percurso de investigação. Por que será que medidas que procu-
ram promover uma maior igualdade e, sobretudo, repor uma
justiça de tratamento, sistematicamente violada no caso de
certos grupos sociais, causam tanta controvérsia? Analisamos
este fenómeno no âmbito da tese de mestrado (Santos, 2004),
centrada na política, até porque Portugal era o país ideal para
o fazer neste contexto, como veremos em seguida.

De facto, em 1980, com a ratificação da Convenção sobre a


Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (The Convention on the Elimination of All Forms
of Discrimination against Women, CEDAW), adotada em
1979 pela Assembleia das Nações Unidas), ficou consagrada a
possibilidade de implementação destas medidas (Art. 4.º) em
Portugal. Em 1997, a 4ª Revisão Constitucional abriu a porta
à introdução de mecanismos de ação positiva na política e,
em 1999, foi proposto pelo Partido Socialista que se adotasse
o sistema de quotas (Proposta de Lei n.º 194/VII, votada na
Assembleia da República, em 1999) no sentido de promover
uma maior igualdade entre homens e mulheres nas listas
eleitorais. Embora de uma forma bastante menos violenta da
que ocorreu noutros países (e.g., em França), esta tentativa
(falhada)9 de adotar as quotas gerou fortes reações no debate

9. Proposta pelo Governo de António Guterres, foi chumbada pelo PSD, CDS, PCP e PEV.

57
GÉNEROS E SEXUALIDADES

público português. Havia, claramente, um consenso quanto


ao diagnóstico do problema (i.e., as desigualdades de género),
mas não quanto à solução a adotar para o resolver (Martins,
2015).

Assim, desde logo, no plano teórico da tese (Santos, 2004),


identificámos na literatura as principais razões da contro-
vérsia em torno deste tipo de medidas, dando particular des-
taque à perceção de justiça. Contribuímos para este debate,
propondo a articulação dos estudos de género com os da
perceção da justiça (recorrendo particularmente às teorias
da justiça distributiva, procedimental e da privação relativa),
de modo a procurar elucidar alguns dos argumentos usados
pelas/os detratoras/es destas medidas. Tal como mostrámos
numa publicação (Santos e Amâncio, 2010a), o argumento do
mérito foi central nesse debate.

No plano empírico, foram realizados três estudos com o


objetivo de verificar a tolerância/ resistência das pessoas
face às quotas para a participação das mulheres na política
e questionar a neutralidade do mérito, assim como o efeito
de subversão que ele assume nos debates públicos sobre as
quotas. O primeiro estudo, efetuado junto de trabalhadoras/es
e estudantes, pretendeu recolher as perceções sobre as com-
petências necessárias para o exercício do lugar de deputada/o.
Este estudo começou, desde logo, por mostrar a dificuldade
em encontrar uma medida de mérito padronizada e “obje-
tiva”. Embora não tenha havido um consenso quanto a um
perfil de competências padrão para o lugar de deputada/o no
Parlamento, foram salientados traços de personalidade (e.g.,
inteligência, pragmatismo e convicção), sobretudo associados
ao universo simbólico masculino (Amâncio, 1994), mostrando
que a política continuava um “mundo de homens” (Santos
& Amâncio, 2010a). Outro estudo, com jovens estudantes e

58
INTERSEÇÕES E TANGENTES

trabalhadores/as, revelou que estes/as são mais favoráveis às


quotas dirigidas às “pessoas com deficiências” e às “regiões
subdesenvolvidas” do que às quotas dirigidas às “minorias
étnicas” e às “mulheres”. O estudo permitiu verificar que
as atitudes negativas face às quotas não se prendem com as
quotas em si, são antes as representações que as pessoas têm
do grupo-alvo a que a medida se destina que interferem no
seu julgamento. Por outras palavras, há especificidades na
representação do grupo-alvo que levam as pessoas a concor-
dar, mais ao menos, com as quotas.

Finalmente, questionando a neutralidade da avaliação do


mérito e da justiça das quotas, efetuámos outro estudo, argu-
mentando que os julgamentos do mérito das pessoas e da
justiça das quotas são influenciados pela ideologia de género,
na linha do modelo da assimetria simbólica (Amâncio, 1994).
Um estudo com estudantes universitárias/os analisou uma
situação de seleção em que duas pessoas (um homem e uma
mulher) competiam por um lugar numa lista de um partido,
em que apenas um/a seria selecionada/o, através de uma
quota (Santos, 2004, Estudo 3). As/os participantes avaliaram
o mérito da/o candidata/o selecionada/o e a justiça das quotas
utilizadas. Os homens consideraram sobretudo a informação
que lhes tinha sido facultada sobre a competência da/o can-
didata/o, revelando a normatividade do mérito e da justiça
no seus juízos. As mulheres, no entanto, foram influenciadas
pelas condições experimentais, revelando uma genderização
do mérito e da justiça. Parecem partir do princípio de que
as mulheres têm menos mérito do que os homens e que as
quotas estão mais associadas à incompetência. Assim, a
avaliação do mérito revelou a sua subjetividade, normativa
e genderizada, na medida em que é associado ao masculino,
existindo uma expectativa de menor mérito das mulheres
(Santos & Amâncio, 2007), que legitima a escolha de mais

59
GÉNEROS E SEXUALIDADES

homens para os cargos políticos. Os resultados confirmaram,


portanto, a existência de uma assimetria simbólica de género
nas avaliações das competências de candidatas/os a funções
políticas que é claramente penalizadora das mulheres (ver
uma análise atualizada em Santos, Amâncio, & Alves, 2013).

Um “Mergulho” no Género
na Política e as Resistências
à Mudança
A relevância do género na análise destas questões, revelada nos
estudos anteriores, determinou a opção de dar continuidade
a esta investigação no âmbito do projeto de doutoramento10,
com o objetivo de fornecer um conhecimento aprofundado
sobre os fatores explicativos das desigualdades de género
na política e dos obstáculos às medidas que se destinam a
reduzir as mesmas, integrando também grupos internos à
política. Procurámos, desta forma, conhecer o que pensam as
mulheres, enquanto grupo dominado, as mulheres políticas,
enquanto membros do grupo dominado que conseguiram
ascender ao grupo dominante, e os homens, enquanto grupo
dominante.

No plano teórico, para além de situar o objeto de estudo na


história, esta investigação (Santos, 2010) articulou diferentes
níveis de análise (Doise, 1980, 1982) da literatura relevante
(sobretudo ao nível intergrupal e ideológico, ligados às dinâ-
micas intergrupais e à mudança social), no sentido de obter
uma explicação psicossociológica da controvérsia sobre as
medidas de ação positiva, em particular as quotas e a Lei da

10. Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ref: SFRH/


BD/21628/2005).

60
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Paridade, aprovada em 200611. Verificámos, por exemplo, que


há ideologias que justificam e mantêm uma ordem estabele-
cida de relações sociais (Doise, 1982), para as quais todas/os
contribuem - dominantes e dominados - por vezes, mesmo à
custa do interesse da própria pessoa ou o do seu grupo (e.g.,
Blasi & Jost, 2006; Jost, Banaji, & Nosek, 2004). De facto, estes
últimos vivem um estado de ambiguidade face às conse-
quências do preconceito e discriminação a que são sujeitos
(Crocker & Major, 1989) e, por isso, nem sempre percebem
que são discriminados. Tal sentimento, por vezes, também
entendido como uma estratégia de coping face à discrimina-
ção, não contribui para a mudança, porque limita o envol-
vimento das pessoas em ações que conduzam à alteração da
situação. Também as novas formas de expressão de sexismo,
agora mais subtis, podem contribuir para manter a ideolo-
gia dominante (ver Santos & Amâncio, 2014a). Além disso, a
elevada restrição de alguns contextos intergrupais, onde só
alguns membros dos grupos dominados conseguem ultrapas-
sar as fronteiras e aceder ao grupo dominante, também causa
ambiguidade e incerteza nas pessoas, promovendo a ilusão da
meritocracia, o mito da justiça, e a tolerância à discriminação
(Palacios, 2004; Wright, 2001). Assim, a consciencialização
das desigualdades de género torna-se imperativa, porque há
desigualdades que teimam em persistir, tanto em contextos
de maioria como de minoria, com claras desvantagens para
as mulheres (ver Santos & Amâncio, 2014b, para uma revisão
da literatura) em qualquer dos contextos.

Ao nível empírico, uma abordagem qualitativa, envolveu


a realização de três estudos. Um estudo com deputadas/os
mostrou, desde logo, que estes/as reconhecem claramente

11. Lei Orgânica nº 3/2006, de 21 de Agosto (retificada pela Declaração de Retificação


n.º 71/2006 de 4 de Outubro).

61
GÉNEROS E SEXUALIDADES

a existência das desigualdades de género na sociedade e na


política, considerando uma situação injusta, um problema da
democracia, originada, sobretudo, por fatores socioculturais.
No entanto, verificaram-se algumas diferenciações discursi-
vas ao nível do sexo e da orientação política. Por exemplo, os
deputados, sobretudo os de direita, identificaram a situação
como um problema de ordem social, mas também indivi-
dual, responsabilizando as mulheres pela situação, e não
consideraram a representação da diversidade da sociedade
no Parlamento como uma questão central. Em contraste, as
deputadas, sobretudo as de esquerda, consideraram que este
era um problema de ordem política, um exemplo de demo-
cracia inacabada, questionando a qualidade da democracia
representativa.

Relativamente aos fatores que se constituem como obstáculos


à redução das desigualdades de género, entre os deputados,
sobretudo de direita, foi identificado o mecanismo do “con-
vite” tanto para entrar para a política, como para ascender na
“carreira”. Ora, num contexto masculino, em que há mecanis-
mos de construção e de seleção das carreiras (Bettencourt &
Pereira, 1995), este mecanismo é prejudicial para as mulheres,
pois exige a participação em redes e uma visibilidade que
ainda lhes são pouco favoráveis neste contexto. Além disso,
as deputadas revelaram-se mais envolvidas com a questão
da “conciliação” entre a vida política e familiar, aspeto que
também é prejudicial às mulheres na política, um mundo
onde não há horários, exigindo uma disponibilidade que se
continua a coadunar mal com o peso que as tarefas domésti-
cas e a atenção à família representam para as mulheres por-
tuguesas (e.g., Amâncio, 2007; Silva, Jorge, & Queiroz, 2012;
Wall & Guerreiro, 2005). Neste contexto, o fator socioeconó-
mico também surgiu como importante, tendo as deputadas
admitido que foi o seu estatuto socioeconómico elevado que

62
INTERSEÇÕES E TANGENTES

lhes permitiu recorrer a ajuda externa no que diz respeito às


tarefas domésticas e ao cuidado da família.

Registaram-se, ainda, diferenciações discursivas sobre as


medidas de ação positiva ao nível do sexo e da orientação
política, sendo a questão da “competência” transversal aos
discursos. Os deputados revelaram-se mais desfavoráveis às
medidas do que as deputadas, sendo particularmente des-
favoráveis às mesmas por estas considerarem o critério do
sexo, condicionando, assim, os partidos e os outros critérios.
Os deputados de direita foram mais longe e defenderam que
medidas deste tipo já não são necessárias, questionando antes
a competência das mulheres para a política. Não se verificou
uma genderização da “profissão” de política/o, parecendo
revelar algumas mudanças ao nível da cultura política, pro-
vocadas pela entrada das mulheres. No entanto, registou-se
a genderização da competência/mérito, sobretudo nas posi-
ções dos deputados de direita, para quem as mulheres devem
provar que têm competências. Em suma, os resultados deste
estudo revelam diversos obstáculos à entrada e permanência
das mulheres na política, sobretudo de natureza ideológica
(ver Santos & Amâncio, 2011), também percetíveis quando
olhamos para os seus percursos e opiniões individuais
(Santos, 2011).

Num estudo subsequente, com estudantes universitárias/os,


verificámos que, em geral, as desigualdades de género na
sociedade e na política foram reconhecidas e que conside-
ram que estas são originadas sobretudo por fatores histó-
ricos. Entendendo que se trata de um problema de ordem
social e “natural”, responsabilizaram também as mulheres
pela situação. Com efeito, identificámos o discurso da “natu-
ralização” da história, particularmente entre os homens,
sendo a situação vista como relativamente “inalterável”,

63
GÉNEROS E SEXUALIDADES

como se fizesse parte da natureza e algo que está “fora” das


pessoas. Neste estudo, registou-se uma fraca sensibilidade
quanto à questão da qualidade da democracia representa-
tiva. Também registámos discursos heterogéneos face às
medidas de ação positiva, sobretudo por parte dos homens,
uma vez mais, muito devido às questões ligadas ao critério
do sexo, que estas medidas consideram, e da in/competência
política das mulheres. Tal evidencia a forte adesão à merito-
cracia e resistências à mudança. De facto, defenderam que
a sociedade está a evoluir “naturalmente” para a igualdade
e que não se deve interferir “artificialmente” na evolução
“natural” da história, devendo antes ser as mulheres a provar
que têm competências para a política. Simultaneamente,
registaram-se, entre estes, expectativas de menor compe-
tência por parte das mulheres, confirmando a existência da
genderização da competência. Este estudo veio, assim, con-
firmar a genderização da profissão, já apontada em estudos
anteriores, sendo apontados traços de personalidade (e.g.,
ligados à competência, liderança e carisma), particular-
mente associados aos significados do masculino (ver Santos
& Amâncio, 2010b).

Uma análise comparativa entre ambos os estudos analisou


os discursos internos e externos à política sobre as desigual-
dades de género na política e as medidas de ação positiva,
procurando clarificar as comunalidades e as diferenças entre
estes grupos. Esta análise salientou a existência de um dis-
curso externalizante, evidente, quer no atirar do problema
para a sociedade e para a história, quer na culpabilização
das mulheres. Com efeito, verifica-se que a desigualdade de
género é, sobretudo, considerada uma questão da sociedade
e uma (aparente) questão histórica, mas que esconde uma
redução da história à tradição e à naturalização das relações
sociais. “É assim, não há nada a fazer!”

64
INTERSEÇÕES E TANGENTES

No entanto, a análise também mostrou que as/os jovens


estudantes e as/os deputadas/os recorrem, por vezes, a con-
tornos diferentes nas suas explicações. Para as/os jovens, as
causas da desigualdade de género na política reduzem-se à
sua dimensão social e histórica, preferindo que a situação
se resolva “naturalmente”, com o tempo, isto é, num sentido
determinista e, portanto, desresponsabilizante. Para as/os
deputadas/os, a desigualdade de género na política também
tem origem nos próprios partidos e, por isso, fizeram suges-
tões de mudança na sociedade e na política, ao nível do funcio-
namento dos partidos e não tanto através de medidas de ação
positiva. Mostraram-se, assim, cidadãs/ãos mais pró-ativas/
os e mais críticas/os em relação à sociedade e ao funciona-
mento dos partidos. Só neste grupo surgiu uma ligação entre
a igualdade de género e a qualidade da democracia, através
das referências à representatividade democrática, como
vimos acima, devido às mulheres, sobretudo de esquerda.

A responsabilização/culpabilização das mulheres é transversal


aos grupos, quer na abordagem da origem do problema da desi-
gualdade de género, quer na procura da sua resolução, embora
de forma mais clara por parte das/os jovens estudantes. Ora, a
culpabilização das mulheres é mais uma forma de externalizar
o problema. De facto, se pensarmos que a “culpa” é das mulhe-
res e que elas não estão interessadas, nem têm as competências
necessárias para fazer política, nesse caso, já não se trata de
uma injustiça social. Logo, também não se exige nenhuma res-
posta social. Certa é a relevância dada à competência política
que coexiste com e a dúvida ou desconfiança relativamente à
competência das mulheres para a política. Tal confirma clara-
mente a genderização da competência/mérito neste contexto.

Esta análise revela a existência de uma desmobilização


social face à desigualdade de género na política, deixando

65
GÉNEROS E SEXUALIDADES

transparecer uma sociedade pouco sensível à questão e pouco


empenhada em contribuir para a sua mudança e a melhoria
da qualidade da democracia.

O último estudo centrou-se na implementação da Lei da


Paridade em Portugal, aprovada em 2006 e implementada
em 2009. A controvérsia social, em linha com o que ocorrera
noutros países, tinha criado um terreno particularmente rico
de análise para as práticas assentes na ideologia de género.
Assim, com o foco no ciclo eleitoral de 2009 (que envolveu as
três eleições: europeias, legislativas e autárquicas), este estudo
pretendeu verificar se a Lei da Paridade tinha sido cumprida
pelos grandes partidos políticos portugueses e, além disso,
conhecer os discursos que emergiram, nesse período, sobre
o tema na imprensa escrita. Os dados revelaram o cumpri-
mento da lei e os seus efeitos positivos na representação das
mulheres nestes partidos políticos nas eleições europeias
e, em menor grau, nas legislativas, e o seu incumprimento
nas eleições autárquicas. A análise dos discursos permitiu-
-nos demonstrar a existência de diversas resistências à Lei
da Paridade (e.g., diversos casos de incumprimento da lei,
ou em que esta foi contornada ou violada; casos em que as
mulheres foram colocadas no limiar do cumprimento da lei;
casos em que surgiu o argumento do mérito; e casos em que
foi identificado o sentimento de ameaça) e estas permanecem
sustentadas por uma ideologia que define a política como um
território masculino (Santos & Amâncio, 2012a), particular-
mente visível ao nível local.

Esta investigação permitiu concluir que, de entre os fatores


explicativos da desigualdade de género na política e da resis-
tência ao seu combate, foram fundamentais os fatores de natu-
reza ideológica e institucional, “prendendo-se com as formas
de organização político-partidária e com a persistência de

66
INTERSEÇÕES E TANGENTES

uma visão social que considera que a esfera privada é um


mundo feminino e que a política é um mundo masculino,
tanto em termos das competências que exige, como da sua
organização interna” (Santos & Amâncio, 2012b, p.55).

Um Olhar pela Política Local


Na tese de doutoramento abordámos diversas teorias das
ciências sociais, entre as quais a teoria do tokenism (Kanter,
1977, 1993) da sociologia. Não tanto a teoria inicial de Kanter,
que, embora tivesse sido importante na altura, adotou uma
perspetiva “neutra” na sua análise, em termos de género, mas
toda a investigação subsequente (e.g., Williams, 1995; Yoder,
1991) que, influenciada por correntes vindas da história (Scott,
1986) e da sociologia do trabalho (e.g., Acker, 1990; Connell,
2002), mostrou as desvantagens das mulheres, em compara-
ção com os homens em todos os contextos (ver uma revisão
em Santos & Amâncio, 2014b).

Kanter designou por “grupos distorcidos” os contextos onde há


uma preponderância de um grupo sobre outro (i.e., uma propor-
ção de, aproximadamente, 85:15), por “grupo dos dominantes”
os membros do grupo maioritário, e por “tokens” os mem-
bros do grupo minoritário. Designou-os tokens, porque são,
muitas vezes, tratados como representativos dos seus grupos,
como “símbolos,” ou exemplos, e não como indivíduos. Dando
particular destaque à proporção numérica, a autora concluiu
que, nestes contextos, os tokens são discriminados, estando
sujeitos a uma maior “visibilidade” do que os dominantes, a
uma “polarização” das diferenças entre eles e os dominantes,
e uma “assimilação” aos papéis estereotípicos do seu grupo de
pertença. Embora Kanter tenha analisado apenas mulheres, a
autora generalizou as “dinâmicas do tokenism” a outros grupos
sociais e contextos semelhantes. Esta estratégia motivou fortes

67
GÉNEROS E SEXUALIDADES

críticas (e.g., Williams, 1995; Yoder, 1991), segundo as quais a


análise de Kanter não tinha conseguido reconhecer todos os
fatores que podem contribuir para afetar estas dinâmicas, nem
considerou as relações de género/poder, quando é sabido que
nada é neutro, em termos de género (Acker, 1990; Connell,
2002; Scott, 1986). Estudos realizados com enfermeiros e médi-
cas (Floge & Merril, 1986); mulheres polícias e enfermeiros
(Ott, 1989), e outros, revelaram que os homens têm vantagens.
Segundo Williams (1995), a experiência dos tokens depende
do estatuto social do grupo de pertença. Como os homens têm
um estatuto social mais elevado, os homens tokens estão mais
bem posicionados do que as mulheres tokens (Zimmer, 1988).
Por seu lado, eles próprios não abandonam a sua identidade de
género, antes mantêm a sua masculinidade (Williams, 1995),
lidando com a situação de forma diferente, também devido às
vivências (Barreto, Ellemers, & Palacios, 2004). Assim, no geral,
ao contrário de fenómenos, como o “teto de vidro”, que difi-
cultam a carreira das mulheres tokens e afastam-nas, muitas
vezes, dos cargos de maior prestígio e poder, os homens tokens
acabam por encontrar uma “escada rolante de vidro” que os
puxa para esses cargos (Williams, 1995).

Numa investigação posterior ao doutoramento12, com mulhe-


res políticas dos cinco grandes partidos em atividade ao nível
local no Centro e Norte de Portugal, verificámos diferencia-
ções discursivas, em particular ao nível da idade. De facto, as
mulheres políticas mais velhas (com idades entre 54 e 78 anos)
revelaram experienciar e lutar contra as discriminações de
género existentes na política e privilegiar as competências
femininas no contexto. Em contraste, as mais jovens (com
idades entre 32 e 53 anos) revelaram valorizar o perfil da
“supermulher”, capaz de tudo gerir (que se distancia do seu

12. Projeto de pós-doutoramento financiado pela FCT (Ref: SFRH/BPD/78150/ 2011).

68
INTERSEÇÕES E TANGENTES

grupo socialmente dominado, correndo o risco de negar a dis-


criminação experimentada), e mostraram-se muito ligadas à
ideologia meritocrática, ameaçada pela Lei da Paridade (ver
Santos, Roux, & Amâncio, no prelo). A diferença de perceções
entre os dois grupos de idades pode explicar-se pelo facto de
as experiências de discriminação aumentarem com o tempo,
portanto, com a idade. Porém, este estudo também mostrou
que, para já, a implementação da Lei da Paridade não pertur-
bou a ordem social de género que estrutura a política local,
permanecendo uma hierarquia assimétrica entre homens e
mulheres, com claras desvantagens para as últimas.

Em síntese, articulando os níveis de análise intergrupal e


ideológico, esta linha de investigação permitiu evidenciar
a relevância da análise das subjetividades coletivas (e.g., a
avaliação do mérito) para se poder compreender melhor por
que razão as mudanças profundas registadas em Portugal nas
últimas décadas, como o acesso das mulheres à educação e
a melhoria das suas qualificações, não são suficientes para
a sua integração e aceitação nas profissões tradicionalmente
masculinas, como a política. De facto, ficou claro que ideo-
logias, como o género e a meritocracia, se constituem como
verdadeiros travões à mudança social, determinando uma
visão das mulheres, em primeiro lugar como “mulheres”,
de acordo com a ideologia de género tradicional, e só depois
como profissionais, ou seja, como profissionais “incompletas”
ou “estranhas” à profissão. Tal obriga-as a uma permanente
gestão de identidades contraditórias que, embora possa servir
de estratégia de coping, reforça o seu estatuto marginal.
Assim, ignorar a existência destas subjetividades é contribuir
para perpetuar o status quo.

69
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Referências
• Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: A theory of gendered
organizations. Gender and Society, 4, 139-158.
• Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino: Construção social da
diferença. Porto: Edições Afrontamento.
• Amâncio, L. (2007). “Género e divisão do trabalho doméstico - O caso
português em perspectiva”. In K. Wall & L. Amâncio (Eds.), Família
e género em Portugal e na Europa: Atitudes sociais dos portugueses
(pp. 181-210). Lisboa: ICS
• Bacchi, C. L. (1996). The politics of affirmative action: Women,
equality and category politics. New Delhi: SAGE.
• Barreto, M., Ellemers, N., & Palacios, M. S. (2004). The backlash of
token mobility: The impact of past group experiences on individual
ambition and effort. Personality and Social Psychology Bulletin, 30,
1433-1445.
• Blasi, G., & Jost, J. T. (2006). System justification theory and research:
Implications for law, legal advocacy, and social justice. California
Law Review, 94, 1119-1168.
• Bergmann, B. (1996). In defense of affirmative action. New York:
BasicBooks.
• Bettencourt, A. M., & Pereira, M. M. S. (1995). Mulheres políticas: As
suas causas. Lisboa: Quetzal Editores.
• Connell, R. W. (2002). Gender. Cambridge: Polity Press.
• Crosby, F., & Cordova, D. (1996). Words worth of wisdom: Toward an
understanding of affirmative action. Journal of Social Issues, 52, 33-49.
• Doise, W. (1980). Levels of explanation in the European Journal
of Social Psychology. European Journal of Social Psychology, 10,
213-231.
• Doise, W. (1982). L’explication en psychologie sociale. Paris: PUF.
• Floge, L., & Merrill, D. M. (1986). Tokenism reconsidered: Male nurses
and female physicians in a hospital setting. Social Forces, 64, 925-947.
• Holloway, F. A. (1989). What is affirmative action? In F. A. Blanchard
& F. J. Crosby (Eds.), Affirmative Action in Perspective (pp. 9-19). New
York: Springer-Verlag.
• Jost, J. T., Banaji, M. R., & Nosek, B. A. (2004). A decade of system
justification theory: Accumulated evidence of conscious and
unconscious bolstering of the status quo. Political Psychology, 25,
881-919.
• Kanter, R. M. (1977). Some effects of proportions on group life:

70
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Skewed Sex ratios and responses to token women. The American


Journal of Sociology, 82, 965-990.
• Kanter, R. M. (1993). Men and women of the corporation (2nd Ed.).
New York: Basic Books.
• Kravitz, D., & Platania, J. (1993). Attitudes and beliefs about
affirmative action: Effects of target and of respondent sex and
ethnicity. Journal of Applied Psychology, 78, 928-938.
• Ott, E. M. (1989). Effects of the male-female ratio at work: Policewomen
and male nurses. Psychology of Women Quarterly, 13, 41-57.
• Palacios, M. S. (2004). Consecuencias de la discriminación en función
de la mobilidad social y el género, Dissertação de doutoramento.
Manuscrito não publicado, Universidad de Granada, Granada.
• Santos, M. H. (2004). Género e política: Uma análise psicossociológica
das reacções às acções positivas, Dissertação de Mestrado em
Psicologia Social e das Organizações, ISCTE, Lisboa.
• Santos, M. H. (2010). Género e política: Factores explicativos das
resistências à igualdade, Dissertação de Doutoramento em Psicologia
Social e das Organizações, ISCTE, Lisboa.
• Santos, M. H. (2011). Do défice de cidadania à paridade política:
Testemunhos de deputadas e deputados. Porto: Edições Afrontamento.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2007). Reacções às acções positivas - O
olhar da psicologia social do género. In M. B. Monteiro, M. Calheiros,
R. Jerónimo, C. Mouro, & P. Duarte (Orgs.), Percursos da investigação
em Psicologia social e organizacional (Vol. II, pp. 57-74). Lisboa:
Edições Colibri.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2010a). A (in)justiça relativa da acção
positiva - A influência do género na controvérsia sobre as quotas
baseadas no sexo. Revista Análise Psicológica, 1, 43-57.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2010b). A competência política, a
desigualdade de género e as medidas de acção positiva: Uma questão
“natural” ou de “competência”? Psicologia, XXIV, 117-140.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2011). Género e Cidadania: o lento
caminho para a paridade. In M. S. Roberto, M. T. Batista, M. H.
Santos, R. Morais, R. S. Costa, & M. L. Lima (Orgs.), Percursos da
investigação em Psicologia Social e Organizacional (Vol. IV, pp.
51-74). Lisboa: Colibri.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2012a). Género e política: Análise
sobre as resistências nos discursos e nas práticas sociais face à Lei da
Paridade. Sociologia, Problemas e Práticas, 68, 79-101.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2012b). Resistências à igualdade de
género na política. Ex aequo, 25, 45-58.

71
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2014a). Perceção de justiça, discrimi-


nação e sexismo. Revista Psicologia, 28, 67-81.
• Santos, M. H., & Amâncio, L. (2014b). Sobreminorias em profissões
marcadas pelo género: consequências e reações. Análise Social, 212,
XLIX, 700-726.
• Santos, M. H., Amâncio, L., & Alves, H. (2013). Gender and politics:
The relevance of gender on judgments about the merit of candidates
and the fairness of quotas. Portuguese Journal of Social Science, 12,
133-149.
• Santos, M. H., Roux, P., & Amâncio, L. (no prelo). Expériences et
stratégies de femmes investies dans un «monde d’hommes» : Le
cas de la politique locale portugaise. Revista Sociologia Problemas
e Práticas, 82, 69-87.
• Scott, J. W. (1986). Gender: A usuful category of historical analysis.
American Historical Review, 91, 1053-1075.
• Silva, M. C., Jorge, A. R., & Queiroz, A. (2012). Divisão sexual do
trabalho doméstico: entre representações e práticas, Configurações,
9, 135-159. Retirado de: http://configuracoes.revues.org/1158
• Thermes, J. (1999). Essor et déclin de l’affirmative action: Les étu-
diants noirs à Harvard, Yale et Princeton. Paris: CNRS Éditions.
• Wall, K., & Guerreiro, M. D. (2005), “A divisão familiar do trabalho”.
In K. Wall (Ed.), Famílias em Portugal: percursos, interacções e redes
sociais (pp. 303-362). Lisboa: ICS.
• Williams, C. L. (1995). Still a man’s world. Men who do “women’s
work”. London: University of California Press.
• Wright, S. C. (2001). Restricted intergroup boundaries: Tokenism,
ambiguity and the tolerance of injustice. In J. Jost & B. Major (Eds.),
The psychology of legitimacy: Emerging perspectives on ideology,
justice, and intergroup relations (pp. 223-254). New York: Cambridge
University Press.
• Yoder, J. D. (1991). Rethinking tokenism: Looking beyond numbers.
Gender and Society, 5, 178-192.
• Zimmer, L. (1988). Tokenism and women in the workplace: The
limits of gender-neutral theory. Social Problems, 35, 64-76.

72
GRACIA TRUJILLO

“Mi cuerpo es mío”


Parentalidades y reproducción no
heterosexuales y sus conexiones con
otras demandas13

En el Estado español, no exageramos si decimos que la


mayoría de los análisis que se hacen desde la Antropología
o la Sociología de la familia, por ejemplo, ni cuestionan ni
escapan a lo que Monique Wittig (1992) denominó “la mente
heterosexual”, al analizar las prácticas sexuales, las diversas
formas de relaciones, las familias, los géneros, el reparto de
los cuidados, las ideas sobre el amor, etc. Al mismo tiempo, la
presencia de los trabajos anglosajones es abrumadora y con-
viene estar alerta para evitar trasladar conceptos y debates
de otros casos al nuestro, sin tener en cuenta las diferentes
condiciones económicas, sociales y políticas. En este texto
analizo la situación actual en el contexto español en relación

13. Este texto es parte de una investigación más amplia, actualmente en curso, y ha
sido publicado con anterioridad en un número especial de la revista Viento sur con
el título “Sexualidades diversas, múltiples debates”, editado por Tino Brugos y Josué
González (número 146, Junio 2016, pp. 45- 85).
GÉNEROS E SEXUALIDADES

con las parentalidades no heterosexuales y el impacto de los


cambios legales en lo que cuenta como familia y lo que no,
entre otros temas, tratando de ver si las cosas siempre van a
mejor (el conocido it always gets better del discurso liberal) o
no. Estas páginas terminan con unas notas sobre las conexio-
nes de las demandas relacionadas con este ámbito con otras
luchas como el aborto, la despatologización de las identidades
trans y el trabajo sexual. Cuestiones que comparten la idea de
“mi cuerpo es mío”, y que necesitamos pensar, a mi modo de
ver, de manera conjunta y en clave transnacional.

La necesidad de una mirada no


heteronormativa
Los temas relativos a las sexualidades, la reproducción y el
parentesco han estado (y continúan) controlados y vigilados
de cerca por la Iglesia católica, los discursos médicos y legales,
e influidos por los media. Como apuntó Preciado, “el cuerpo
de las mujeres ha sido disciplinado para ser maternal”14. Una
de las demandas históricas del movimiento feminista ha sido
precisamente la separación de los ámbitos de la sexualidad y
la reproducción, reivindicando el placer y el control por parte
de las mujeres de sus propios cuerpos y vidas (pensemos en el
acceso a los métodos anticonceptivos, el aborto libre y gratuito,
la legitimidad de otras opciones sexuales distintas a la norma
heterosexual, el acceso a las técnicas de reproducción asistida,
etc.) Los derechos sexuales y reproductivos han sido, y son
aún en innumerables lugares a lo largo y ancho del planeta,

14. Entrevista realizada por Úrsula del Águila en 2009, “Judith Butler et Beatriz Precia-
do en entretien”, disponible en https://tallerdeteoriaqueer.wordpress.com/2012/10/17/
entrevista-judith-butler-y-beatriz-preciado-conversan/ (consultado el 7 de Septiem-
bre de 2016).

76
INTERSEÇÕES E TANGENTES

un auténtico campo de batalla, y una batalla sin fin: como


ejemplo cercano recordemos que estos últimos años hemos
tenido que salir a la calle para frenar el proyecto restrictivo
de Ley del aborto presentado por el Partido Popular.

Autoras como Gayle Rubin (1984), Judith Butler (2004) y Paul


Preciado (2013) han realizado una serie de aportaciones crí-
ticas, desde una mirada no heteronormativa, que han sido
clave en el análisis de las sexualidades, la reproducción, el
parentesco y la familia. Cuando hablamos de heteronor-
matividad nos referimos al concepto acuñado por Michael
Warner (1993) para referirse al conjunto de relaciones de
poder por medio de las cuales la sexualidad se normaliza
y reglamenta en nuestra cultura y las relaciones heterose-
xuales se institucionalizan y se equiparan con lo que signi-
fica ser humano. En otras palabras, la heteronormatividad
es el régimen social y político que impone que la heterose-
xualidad sea la única sexualidad ‘normal’, natural y legítima
y, como tal, visible y asociada a una serie de derechos. No
hay que olvidar que, en nuestro país y hasta hace relativa-
mente poco, lesbianas, transexuales, gays, travestis… fueron
incluidos en la categoría de “peligrosos sociales” en la Ley de
Peligrosidad y Rehabilitación Social (LPRS) y eran hostiga-
dos y detenidos por causar “escándalo público”. La LPRS fue
aprobada por el régimen franquista en 1970 (un año después
de la Revuelta de Stonewall, que marcó la reemergencia de
los movimientos de liberación sexual en los países occiden-
tales) y no fue derogada hasta 1979, mientras que el delito de
escándalo público se mantuvo hasta 1988.

Para las teóricas anteriormente mencionadas, desmontar


la heterosexualidad implica cuestionar los presupuestos de
disciplinas como la Sociología, la Antropología y pensar estos
temas desde otro lugar, desde uno radicalmente diferente,

77
GÉNEROS E SEXUALIDADES

lejos de binarismos y dicotomías e incluyendo una perspec-


tiva interseccional. La antropóloga Gayle Rubin ya señaló, a
comienzos de los años ochenta, cómo las sexualidades no
heterosexuales son construidas socialmente como extrañas y
desviadas, y situadas en una jerarquía sexual en la que tienen
menores niveles de visibilidad y respetabilidad. Esta jerarquía
sexual divide el sexo en “bueno” (natural, normal, saludable)
y “malo” (antinatural, anormal, patológico) y establece entre
ambos extremos una serie de fronteras sexuales que marcan
la virtud y el vicio, el orden sexual y el caos. En el borde de
la respetabilidad, como apunta Rubin, están las parejas esta-
bles de gays y lesbianas, seguidos en el descenso hacia el sexo
“malo” por los gays y lesbianas promiscuos, hasta llegar a los
niveles más bajos, los más estigmatizados: prostitutas, traves-
tis, transexuales, sadomasoquistas, fetichistas, etc. (Rubin,
1984: 308). Los sujetos con opciones sexuales e identidades de
género que se escapan al marco heteronormativo se enfren-
tan a mayores violencias, a menor visibilidad, legitimidad,
respetabilidad y reconocimiento legal, a la presunción de
enfermedad mental, a la pérdida de apoyo institucional, al
acoso en los espacios laborales, etc. Las penalizaciones socia-
les a lxs disidentes sexo- genéricos son todavía algo bastante
más habitual de lo que podríamos esperar en los contextos
en los que hemos ido ganando algunos derechos y libertades,
gracias, sobre todo, a la movilización colectiva en la calle
durante varias décadas.

El parentesco no es sólo
heterosexual
Kath Weston, en el prefacio de la nueva edición de su libro
Familias elegidas (1991), aquellas basadas no en los lazos de
sangre sino en la amistad y el afecto, nos recuerda de dónde

78
INTERSEÇÕES E TANGENTES

venimos: no es que las personas queer (raras, desviadas, no


heteronormativas) hayan rechazado tradicionalmente la
familia sino al revés. En los años setenta y ochenta, la idea
de que las relaciones de lesbianas, gays, trans, etc., no podían
durar mucho estaba bastante extendida en la cultura popular.
El cine y la literatura, entre otros ámbitos, se encargaron de
transmitir que el destino de desviarse de la norma sexual
suponía la muerte (la cantidad de películas de lesbianas, por
ejemplo, que acaban en que alguna se suicida o muere es
impresionante) o una vida, y una muerte también, en soledad.
La epidemia del SIDA no ayudó mucho a contrarrestar estas
ideas sino todo lo contrario. El tsunami de homofobia que
produjo, dirigido principalmente a los gays pero no solo, hizo
todavía más evidente la falta de derechos que tenían las pare-
jas del mismo sexo. Esto condujo a la demanda de las uniones
de hecho en los países occidentales, una demanda que en el
Estado español el movimiento de lesbianas, gays, trans, bise-
xuals e intersexuales (lgtbi en adelante) comenzaría a activar
en la primera mitad de los noventa (Trujillo, 2009).

Sin embargo, el movimiento modificó esta demanda después


de 1998, lo que significó un cambio importante en el discurso
y en las representaciones, que supuso, en gran medida, una
desexualización y despolitización de la protesta. Un discurso
basado en la igualdad y no en la diferencia, en los conceptos
de ciudadanía y derechos humanos, fue el utilizado para con-
vencer a los políticos, a los medios y a la sociedad en general
de que el matrimonio no sólo era necesario sino algo que tenía
que ver con la igualdad y la justicia: lesbianas y gays no podían
seguir siendo ciudadanxs de segunda clase. Enmarcadas en
términos universales, las demandas de las organizaciones
de la sección moderada del movimiento lgtbi consiguieron
atraer la atención de un sector de la clase política. Pero el
discurso de los derechos humanos, que ha sido ya clasificado

79
GÉNEROS E SEXUALIDADES

(y criticado) como una tendencia mundial y más aún cuando


las organizaciones e instituciones internacionales aceptan la
identificación de los derechos lgtbi como derechos humanos
tiene, como sabemos, ciertos límites: insertar a lxs disidentes
sexuales en narrativas más amplias que giran en torno a la
noción de ciudadanía supone para los movimientos sexuales
perder opciones de interactuar con un diálogo verdadera-
mente transformador con la sociedad, donde las categorías
sociales, las ideas sobre las relaciones de parentesco, las
sexualidades, el amor, etc., pudieran recoger mucho más la
diversidad sexo-genérica existente (atravesada por variables
como la etnia, la clase, la raza, la edad o la diversidad funcio-
nal, entre otras).

Grupos de feministas lesbianas y queer (como el Colectivo de


feministas lesbianas de Barcelona o el Grupo de Trabajo Queer,
en Madrid) criticaron entonces que el matrimonio fuera la
prioridad política para el movimiento lgtbi. La primera Ley
de Identidad de género, que, por otra parte, consideraba a las
personas trans enfermas y recibió por ello bastantes críticas,
tuvo que esperar 2 años más, hasta el 2007. Para muchas de
nosotras entonces (y ahora), era dificil conjugar la demanda
de los derechos con la estructura heteropatriarcal de la insti-
tución del matrimonio, y cuestionamos el peligro inherente
a los relatos acerca de la “normalización”. Los derechos
ganados pueden suponer para mucha gente una mejora en
sus vidas, una mayor legitimidad, etc (véanse al respecto los
relatos de vida compilados por Borrás, 2014). Sin embargo,
no hay que perder de vista que el Estado sanciona algunas
estructuras familiares a expensas de excluir otras, no sólo
las no monógamas sino las diversas formas de relaciones de
parentesco. Estas pueden ser muy variadas; Butler, por ejem-
plo, propuso una definición amplia, incluyendo “aquellas
que surjan para cuidar de las formas fundamentales de la

80
INTERSEÇÕES E TANGENTES

dependencia humana, que pueden incluir el nacimiento, la


cría de los niñxs, las relaciones de dependencia emocional y
de apoyo, los lazos generacionales, la enfermedad, la muerte
y la defunción (por nombrar solo algunas)” (2014: 150).

En 2005, durante el proceso de demanda de la modificación


del Código civil que permitió a las parejas de gays y de les-
bianas casarse, las feministas lesbianas hicieron hincapié en
que lo importante era la filiación, no el matrimonio. La ley no
modificó los artículos relacionados con la filiación de los hijxs
nacidxs dentro del matrimonio (arts. 116, 117 y 118). Si un niñx
nace en una pareja heterosexual, los derechos se conceden
automáticamente a la pareja de la madre, algo que no sucede
en el caso de las parejas de lesbianas. Durante los primeros
años de la aplicación de la nueva ley de matrimonio, las madres
lesbianas casadas obtenían dos “libros de familia”: uno para
el matrimonio y el otro para la madre biológica y su bebé. La
pareja de la madre necesitaba adoptar al niñx si quería obtener
los derechos de filiación. Estos problemas surgieron de nuevo
en el contexto de la Ley de reproducción asistida de 2006. Esta
ley no tuvo en cuenta que el matrimonio podía ser entre dos
mujeres. El Gobierno, sin embargo, acabó eliminando los
conceptos heterosexistas de la ley en 2007, permitiendo a una
mujer casada reconocer la filiación del bebé de su pareja si se
había concebido utilizando las técnicas de reproducción asis-
tida (TRA de aquí en adelante). A pesar de estas modificaciones
legales, las parejas de lesbianas siguen estando discriminadas
en relación con las heterosexuales ya que tienen que casarse
antes de que nazca el bebé, algo que los heterosexuales no
necesitan hacer. Al final, el matrimonio es, en el caso de la
parentalidad lesbiana, la manera más fácil de obtener derechos
de filiación de lxs hijxs reconocidos a ambas madres sin tener
que enfrentarse a un proceso de coadopción, a los plazos y a la
posible arbitrariedad o prejuicios del o la funcionarix de turno.

81
GÉNEROS E SEXUALIDADES

No siempre van a mejor las cosas


per se
Frente el discurso liberal que intenta convencernos de que
todo va siempre a mejor, y que el progreso es sólo un proceso
lineal de aumento de derechos y reconocimiento... podría-
mos mencionar muchos ejemplos. Uno de ellos es cuando
en 2013, Ana Mato, Ministra de salud entonces y en pleno
ataque a la sanidad pública en general, aprobó un Decreto
que modificaba la Ley de reproducción asistida (2006), argu-
mentando que “la ausencia de un hombre no es un problema
médico”, en referencia a la esterilidad. Este Decreto supuso
la expulsión de las lesbianas y mujeres sin pareja varón del
acceso a las TRA en la sanidad pública. De esta manera,
mientras se pretendía obligar a mujeres que no quieren ser
madres a serlo a toda costa (el entonces Ministro de Justicia
Alberto Ruiz- Gallardón tenía su proyecto de restringir la ley
del aborto en marcha), a otras que sí querrían se les privaba
de esa posibilidad, ahondando además las desigualdades
sociales. En la actualidad, sólo pueden acceder a las TRA
las que vivan en comunidades donde hayan continuado
ofreciendo estas técnicas en la sanidad pública (como el
País Vasco), o se hayan recuperado recientemente gracias
a una sentencia judicial favorable (Madrid) o tengan recur-
sos para hacerlo a través de las clínicas privadas. A estas
clínicas acuden lesbianas procedentes de países (muchos de
ellos europeos) donde no pueden acceder a las TRA como
parejas, sólo a título individual, y en ocasiones ni siquiera
(el caso de Alemania, por ejemplo). Hoy en día este turismo
“de fertilidad” es bastante notable en España y un increíble
negocio con más de doscientas clínicas privadas a lo largo
de todo el territorio.

82
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Por otra parte, en el contexto actual de crisis y políticas de


austeridad en el sur de Europa, las condiciones precarias en
las que viven muchas personas probablemente están haciendo
que la gente busque la manera de obtener el reconocimiento
legal para así garantizar ciertos beneficios económicos a los
miembros de las parejas. En el sur de Europa y en España en
particular, en el contexto de un Estado del bienestar bastante
reducido, las familias han tenido tradicionalmente un papel
relevante en relación con todo lo referente a los cuidados, al
apoyo económico, etc., y este papel ha aumentado durante
la crisis. Para las personas no heterosexuales, las relaciones
con las familias de origen no son siempre fáciles, y muchxs
dependen en alguna medida de estas últimas y más en el
contexto actual.

Como Gayle Rubin (1984) explicó, hay una jerarquía sexual


que valora la heterosexualidad sobre la homosexualidad, la
monogamia en las relaciones no monógamas, tener hijos
por no tener, etc. Para las lesbianas, estar en una relación
estable, sin una diferencia de edad significativa, monógama
y con niñxs supone probablemente la mayor legitimidad
que se puede alcanzar. Esta es una de las ideas que compar-
tieron nuestras informantes en un trabajo de campo con
parejas lesbianas: tener hijxs cambió mucho las relaciones
con sus familias de origen y, en especial, con sus propias
madres. Las entrevistadas se referían a los cambios experi-
mentados con sus familias de origen en términos de “recon-
ciliación”, una especie de “vuelta a casa” después de años de
separación, distancia o relaciones no satisfactorias (Trujillo
y Burgaleta, 2014).

83
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Demandas y movilizaciones
interconectadas
La propuesta de Weston sobre las “familias elegidas” subra-
yaba la idea de que la familia no es una institución estática
sino una categoría flexible, cultural, que debería representar
para la comunidad lgtbi un reto más que una herramienta
para la asimilación en el sistema. La función del matrimonio
en el capitalismo neoliberal es del todo menos progresista:
se trata de privatizar el bienestar social, de desplazar los
cuidados al ámbito doméstico en lugar de considerarlos un
proyecto colectivo. La ampliación del matrimonio a gays
y lesbianas extiende la capacidad de esta institución priva-
tizadora de absorber funciones sociales. Esto explicaría, al
menos en parte, que en estos últimos años, mientras se está
consiguiendo el matrimonio para gays y lesbianas en algunos
contextos (con o sin el derecho a adoptar), el aborto no está
ni en la agenda (pensemos en Irlanda, en Argentina…) por no
hablar de los derechos de las trabajadoras sexuales. No digo
con esto que la consecución de los avances legales sea fácil
o nos la regalen en ningún sitio, pero el hecho de que unos
derechos sean más funcionales o menos incómodos para el
sistema que otros debería hacernos pensar en los porqués,
cuando menos.

Al mismo tiempo, pensando en el matrimonio de gays y de les-


bianas, el interés por parte de algunas personas en la “igual-
dad” es real (además de legítimo, obviamente): la exclusión
de los beneficios y el reconocimiento puede resultar negativa
y tener efectos materiales. Pero también es real el reto que
supone para otras formas de parentesco, al tratarse de una
demanda de inclusión de las familias lgtbi frente a otras que
siguen resistiendo por diversas razones a este modelo.

84
INTERSEÇÕES E TANGENTES

A nivel colectivo, es fundamental fortalecer las políticas de


alianzas con otras demandas y luchas. En este sentido, las
reivindicaciones relativas al aborto libre y gratuito, la nor-
malización del trabajo sexual (concepto diferente a la trata),
la despatologización de los cuerpos y las identidades trans,
el acceso a las TRA y las más recientes en relación con la
donación de óvulos y la gestación subrogada son luchas que
comparten, a mi modo de ver, la demanda feminista (y queer)
de la autonomía y de la libertad corporal. No tengo espacio
aquí para entrar a analizar cada una de ellas, pero creo que la
ausencia de regulación y derechos no es el mejor escenario, y
más en el contexto de desigualdades a nivel global de género,
clase, raza, etc. en el que vivimos. En todo caso, me parece
bastante contradictorio que estemos reclamando el derecho
al aborto y no consideremos las demandas de las trabajado-
ras sexuales, o que nos movilicemos por los derechos trans
y no por el aborto, por poner dos ejemplos. Es necesario que
salgamos de una vez por todas de la política identitaria de
los compartimentos estancos por la cual el aborto es una
demanda del movimiento feminista y los derechos trans del
movimiento trans, y así sucesivamente, y ver que estamos
demandando lo mismo: que nuestros cuerpos son nuestros, y
que nosotrxs decidimos sobre nuestras vidas. En estos tiem-
pos de confluencias políticas (o, al menos, de su intento), tra-
bajemos en esas políticas de alianzas, aunque sean puntuales,
en acercar posiciones más que en ahondar en debates estériles
como el de la prostitución versus la trata de mujeres.

En el momento actual de ataque sin precedentes a todo lo


público y de intento de empujarnos décadas atrás en lo ideo-
lógico, el feminismo necesita urgentemente dejar de pensar
en términos esencialistas, binarios, heterocentrados, blancos
y burgueses, y considerar las intersecciones que están atra-
vesando nuestros cuerpos y nuestras vidas. Por otra parte, el

85
GÉNEROS E SEXUALIDADES

movimiento lgtbi-queer necesita incorporar mucho más la


mirada y las demandas feministas. Y pensando en las nuevas
y no tan nuevas formaciones políticas, un aviso: estos no son
temas ni demandas particulares, que solo nos conciernen a
las mujeres y a las mal llamadas “minorías sexuales”. La lucha
contra las violencias y las desigualdades que generan el neoli-
beralismo, el heteropatriarcado y el racismo es una batalla de
todxs. En los setenta, el movimiento feminista luchó porque
no se jerarquizaran las opresiones dentro de las izquierdas:
primero había que ocuparse de las cuestiones importantes,
que eran las relativas a la clase social, luego ya vendrían las de
género, y los temas “sexuales” podían esperar incluso todavía
más. Cuarenta años después esto debería estar ya claro: no
se pueden subordinar unas demandas a otras porque están
todas entrecruzadas, no se pueden dejar de lado las demandas
feministas y sexuales, considerándolas menos importantes o
urgentes, si realmente estamos pensando en otra política, en
una que cambie verdaderamente las cosas.

Referências
• Borrás, Vicente (ed.) (2014). Familias también. Diversidad familiar,
familias homoparentales. Barcelona: Bellaterra.
• Butler, Judith (2004/2006). “¿El parentesco es siempre heterosexual
de antemano?” en Deshacer el género. Barcelona: Paidós, págs
149- 187.
• Preciado, Paul (2013) “Qui defend l´enfant queer?” Liberation, 14
de Enero de 2013. http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/
qui-defend-l-enfant-queer_873947. Traducción al castellano
disponible en el siguiente enlace: http://paroledequeer.blogspot.com.
es/2014/08/quien-defiende-al-nino-queer-por.html
• Rubin, Gayle (1984). “Reflexionando sobre el sexo: notas para una
teoría radical de la sexualidad”, en Carole Vance (comp.): Placer y
peligro. Explorando la sexualidad femenina. Madrid: Talasa.
• Trujillo, Gracia (2009). Deseo y resistencia. Treinta años de
movilización lesbiana en el Estado español (1977- 2007). Madrid y
Barcelona: Egales.

86
INTERSEÇÕES E TANGENTES

• Trujillo, Gracia y Burgaleta, Elena (2014). “¿Queerizando la


institución familiar? Entre los discursos bio-sociales y las multiples
resistencias”, en Feminismo/s 23, junio, pp. 159-179.
• Warner, Michael. 1993. Fear of a Queer Planet: Queer Politics and
Social Theory Minneapolis: University of Minnesota Press.
• Weston, Kath (1991/2003). Las familias que elegimos. Lesbianas,
gays, y parentesco. Barcelona: Bellaterra.
• Wittig, Monique (1992/2006). El pensamiento heterosexual. Madrid
y Barcelona: Egales.

87
PABLO PÉREZ NAVARRO

Cisheteromonor-
matividad y Orden
Público©
The time has come to think about queering the state.
Lisa Duggan

Oh sí, voy a ser mamá.


Almodóvar y Mcnamara

Si hubiese que elegir un único concepto jurídico por cuya


historia y comprensión crítica debiéramos preocuparnos
quienes habitamos los márgenes del género binario, de la
heterosexualidad o de la monogamia, el de orden público
bien podría encabezar la lista de candidatos. Quizá ya por
ser, en un primer momento, una noción “tan vinculada al
régimen franquista” (Elvira, 2008: 6) y, con él, al contexto
de la represión posibilitada, entre otros dispositivos, por la
Ley de Vagos y Maleantes. Ley sin duda emblemática de la
historia de la homofobia en España que, si bien no portaba
la expresión “orden público” en su texto, tampoco se puede
desvincular de este. Muy al contrario, esta herencia de la
Segunda República formaba parte de una creciente obsesión
por la defensa del “orden público” que quedaría reflejada en
GÉNEROS E SEXUALIDADES

un conjunto de leyes que incluían la Ley de Defensa de la


República, la Ley de Orden Público y la propia Ley de Vagos
y Maleantes, en su versión del año 1933 (Ricardo Campos,
2014: 6), si bien no sería hasta caer en manos del régimen y
una vez incluidos los “homosexuales” en su lista de poten-
ciales delincuentes habituales (pues la ley permitía atajar el
crimen antes de que se produjera, al más puro estilo de la
película Minority Report), cuando desplegaría su máximo
potencial represivo15, contra el que ya previnieran los anar-
quistas desde su promulgación (p. 7).

Reminiscencias dictatoriales y de la criminología ficción


aparte, lo cierto es que la noción de “orden público” continua
siendo, en la actualidad, un elemento clave en el ejercicio
estatal del biopoder. Esto es, en palabras de Foucault, de ese
“ejercicio del poder sobre el hombre (sic) en cuanto ser viviente”
que, a lo largo del siglo XIX, adoptó la forma de una cierta
“tendencia conducente a lo que podría denominarse estatali-
zación-de-lo-biológico” (Foucault, 2000: 217). La genealogía y
alcance de dicho orden no se limita, por supuesto, al territorio
del Estado español. Este será, sin embargo, el principal refe-
rente geográfico de la reflexión que sigue, con la que pretendo
contribuir a desbordar los límites disciplinarios de su análisis
en el ámbito de las ciencias jurídicas desde el punto de vista
de las políticas sexogenéricas y de algunas de sus interseccio-
nes con otros vectores de opresión.

15. Este trabajo ha sido desarrollado en el marco del proyecto “INTIMATE – Ciudada-
nía, Cuidados y Derecho a Elegir: Micropolíticas de la Intimidad en Europa del Sur”
- Starting Grant n. 338452 (2014-2019), coordinado por Ana Cristina Santos en el Cen-
tro de Estudios Sociales de la Universidad de Coimbra. Véase al respecto el detallado
análisis de los “archivos de vagos y maleantes” de los juzgados de Cataluña y Baleares
realizado por Geoffroy Huard (2015).

90
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Genealogías del orden familiar


Destaca a primera vista, en los análisis de los juristas, la
multitud de referencias a la extrema dificultad de acotar
el significado de este “arquetipo limitador de los derechos
fundamentales en general” (Martínez, 2014: 769). Así, en su
amplio ensayo sobre el orden público, Ángel Acedo observa
que “la doctrina civilista española ha intentado en algunas
ocasiones, muy pocas por cierto, y con escaso éxito casi
siempre, aproximarse a una noción precisa de orden público”
(1997: 326) y que “los civilistas se han visto y se ven forzados a
la tarea ingrata, difícil, quizá imposible, de explicar y definir
lo sea el orden público” (de Castro y Bravo, 1982, cfr. Acedo,
1997: 325). Otros consideran que se trataría, “de un concepto
subjetivo, en blanco” (Montalvo Abiol, 2010: 198), entre otras
cosas porque “el ordenamiento jurídico no nos obsequia con
definición alguna del mismo“ (201). Situación por la que, con-
cluyen aún otros, se trataría de “un término fragmentado y
potencialmente peligroso como instrumento de limitación
institucional de los derechos fundamentales de los ciudada-
nos” (Ortega, 2003: 16: cursivas mías).

Alcanza el consenso, en cualquier caso, a situar su origen


en el derecho romano, vinculado a un cierto ius publicum
que sería “imposible de derogar mediante la voluntad pri-
vada” (Acedo Penco, 1997: 329; Muñoz, 2007: 15). Su ingreso
en el derecho moderno, tras un largo periplo por el derecho
medieval y del antiguo régimen (Noriega, 2007: 8) habría
tenido lugar con su inclusión en el sexto artículo del código
civil napoleónico de 1804 (Ángel, 1997: 332; Echandia, 1946:
251; Muñoz, 2007: 16; Noriega, 2007: 10), por el que se esta-
blecía que “no se pueden derogar por convenios particu-
lares las leyes que interesan al orden público y las buenas

91
GÉNEROS E SEXUALIDADES

costumbres”16. Dada la influencia del code, este límite del


principio liberal de no injerencia del estado en las libertades
individuales pasó a convertirse en un ingrediente clave de
la mayor parte de los códigos civiles europeos y latinoame-
ricanos (Noriega, 2007: 10); además de estar muy presente
(aunque por otros caminos) en el derecho anglosajón, donde
fundamenta la criminalización de los tradicionalmente
llamados crímenes “sin víctimas”, esto es, contra el orden
público17.

Bastante común resulta también la distinción entre algo así


como un sentido “vulgar” (Acedo Penco, 1997: 338) del orden
público y otro técnico o propiamente jurídico. El primero, a
veces referido como “orden público de policía” (Echandia, 1946:
252) u “orden material” (Ortega, 2003: 19), estaría directamente
asociado a la ausencia de disturbios en el espacio público. De
él se ocuparía en la actualidad la Ley Orgánica de protección
de la seguridad ciudadana (Ascensión, 2008: 6), popularmente
conocida como ley mordaza18. El segundo sentido es el que
principalmente nos ocupa y se refiere, por su parte, al mante-
nimiento del orden en el difícilmente delimitable ámbito de los
principios y valores fundamentales que sostienen el conjunto
del ordenamiento jurídico (Ortega, 2003: 23). A este se refiere
el Tribunal Constitucional cuando dictamina que el “respeto a

16. «On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux dispositions qui in-
téressent l’ordre public et les bonnes mœurs», Code civil des Français (1804), Art. 6.
17. En cuya tipificación destacan las llamadas Public Order Acts del Reino Unido y
otros países.
18. Diseñada ad hoc para criminalizar formas emergentes de la protesta social tras la
irrupción del Movimiento 15-M. Según un editorial del New York Times, se trataría
de una vuelta a los “tiempos oscuros del franquismo” (“Spain’s Ominous Gag Law”,
22-4-2015, http://www.nytimes.com/2015/04/23/opinion/ spains-ominous-gag-
-law.html?_r=0). Esta asociación resulta especialmente acertada si tenemos en cuenta
que vino a endurecer otra ley de seguridad ciudadana (la llamada ley Corcuera) que
sucedió, por su parte, a la Ley de Orden Público franquista (Sol, 2012).

92
INTERSEÇÕES E TANGENTES

los derechos fundamentales y libertades públicas garantizados


por la Constitución es un componente esencial del orden públi-
co”19, así como el Tribunal Supremo cuando explica, por su
parte, que el orden público está “constituido por los principios
jurídicos, públicos y privados, políticos, morales y económicos,
que son absolutamente obligatorios para la conservación del
orden social en un pueblo y en una época determinada”20.

Uno de los más dilatados debates al respecto de este sentido


jurídico consiste en determinar si coincide con, o más bien
excede a, el conjunto de normas efectivamente escritas en
la legislación. En el ya citado tratado Ángel Acedo propone,
superando en cierto modo el debate, entender al orden
público como “instrumento de cierre del ordenamiento en
manos de los jueces” (1997: 328). Interesante descripción que
sitúa al orden público en una suerte de espacio limítrofe,
entre la legislación y aquello que, posibilitando su “cierre”,
la excede. El concepto haría así suya la esquiva lógica del
supplement derrideano, introduciéndose en la legislación
como aquel tipo de “excedente” o, incluso, de “organismo
parasitario” (Derrida, 1971: 225) capaz de “enriquecer otra
plenitud” sin producir “ningún relieve” (185). La indecidibi-
lidad ontológica (¿es el Orden Público, en definitiva, interior
o exterior al ordenamiento?) a la que apunta tal posición ten-
dría la ventaja, al menos, de explicar la intensidad del debate
sobre si el orden público consiste o no en “ley y nada más que
ley” o por qué los jueces, en cada uno de sus usos (o recitacio-
nes performativas) del concepto, estarían ejerciendo algo así
como una “función cuasi-legislativa” (Aguilar Navarro, 1953;
cfr. Ángel, 1997: 348).

19. STC 19/1985, de 13 de febrero.


20. STS DE 5 de febrero de 2002, cursivas mías.

93
GÉNEROS E SEXUALIDADES

En adelante, para diferenciarlo del anterior, nos referiremos a


este sentido21 (meta)jurídico como Orden Público©. Su alcance
se extiende por la casi totalidad de las ramas del derecho,
desde el civil al constitucional, pasando por el laboral, el
procesal o el administrativo (Ortega, 2003: 16-22). El derecho
familiar22 no es una excepción. Al contrario, las alusiones a
este sentido del orden en las sentencias relacionadas con este
ámbito tienen una bien consolidada historia. Las atribucio-
nes del pater familias, por ejemplo, se imponían en la España
de Franco sobre la base de que “si en un contrato celebrado
entre cónyuges se dispensa a la mujer de la potestad marital,
el acto es nulo absolutamente por ir contra el orden [público]
familiar” (Echandia, 1946: 258). Ya avanzada la transición se
constataba que “las normas sobre la competencia y forma de
autorización del matrimonio son de orden público y quedan
obviamente sustraídas a la autonomía de la voluntad”23;
mientras que, en la actualidad, los juristas suelen coincidir
en que puede hablarse con propiedad de un “orden público
familiar” (Acedo; 363, García Presas, 2010: 241).

Cabe preguntarse, por tanto, por cuál es la forma que adopta


el Orden Público© en el ámbito familiar, es decir, a qué formas
de parentesco y filiación alcanza el reconocimiento estatal
y en qué exclusiones constitutivas descansa ese reconoci-
miento. En otros términos, y por señalar tan sólo algunas
declinaciones posibles de esa pregunta, ¿continúa el Orden
Público© reafirmando la primacía de la heterosexualidad

21. El uso de la marca “©” o “copia registrada” sirve aquí para indicar su pertenencia,
en tanto que copia, a una cadena histórica de iteraciones en instancias judiciales, tan-
to como la pretensión de cada una de esas citas de consolidar los límites de una cierta
identidad que es, como veremos, cultural y legislativa a un tiempo.
22. Entendido como “conjunto de normas jurídicas de derecho privado que regulan la
familia en todos sus aspectos” (García Presas, 2010: 240).
23. 24 de septiembre de 1987 (cfr. Acedo, 388).

94
INTERSEÇÕES E TANGENTES

o supuso el matrimonio igualitario, por el contrario, la


superación plena de esta? ¿Hasta qué punto transformó la
extensión del derecho a la adopción las estructuras heterose-
xuales de la filiación? ¿Qué límites establecen en su nombre
los juzgados a la diversidad relacional y qué lugar ocupa en
ellos la monogamia? ¿En qué medida se fundamenta este
orden familiar en la concepción binaria del género? ¿Cómo
interacciona, en fin, el Orden Público© familiar con la cons-
trucción de identidades culturales y nacionales en sentido
amplio?

El Orden Público© heterosexual


Pese a la exclusión de homosexuales y transexuales de la
Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social (sucesora de la
Ley de Vagos y Maleantes) en 197924 (Trujillo, 2016: 63), el
Orden Público© español continuó siendo estrictamente hete-
rosexual hasta finales del siglo XX. Momento en que, leyes
autonómicas de parejas de hecho mediante (Pichardo Galán,
2009: 144), comenzó el proceso de desheterosexualización
que se consumó con la promulgación de la ley estatal del
matrimonio igualitario, adopción incluida, en el año 2005.
Tal sería, al menos, la interpretación dominante desde el
punto de vista de una cierta fetichizacion del matrimonio
como símbolo de la igualdad formal que resulta, por lo demás,
bastante ubicua (Platero Méndez, 2007: 93). Sin embargo, lo
cierto es que basta una mirada a la regulación actual de las
relaciones de filiación para poner en evidencia que incluso
el desplazamiento meramente “formal” de la norma hete-
rosexual está lejos de haber concluido. Muy al contrario, la
flexibilización de las regulaciones del parentesco ha servido

24. Si bien el más indirectamente relacionado delito de “escándalo público” no fue


eliminado del código penal hasta 1988.

95
GÉNEROS E SEXUALIDADES

más bien para dejar al descubierto la biologizante infraes-


tructura heterosexual del Orden Público© familiar.

Esta base heteronormativa de la filiación resulta evidente en


relación con la inscripción de la llamada “filiación natural”.
En otras palabras, aquella que se establece de forma directa
tras el nacimiento, sin mediación de procesos de adopción
(Hernández Rodríguez, 2014: 160). Efectivamente, para
comenzar, la ley de reproducción asistida vigente25 consagra
la heterosexualidad como filiación por defecto con cada una
de sus referencias a la figura del “marido”26, además de con
su falta de previsiones para el establecimiento la filiación en
parejas lesbianas. Notoria ausencia que, si bien fue total en el
momento de su promulgación pronto pasaría, en una correc-
ción posterior27, a considerar el muy específico caso en que
ambas madres se encuentren casadas entre sí (Díaz Martínez,
2007: 78; Trujillo, 2016: 65). En consecuencia, la inscripción
de la doble maternidad de nacimiento se permite en la prác-
tica sólo cuando hay casamiento. Condición que, al no tener
equivalente alguno en el abierto campo de la filiación hetero-
sexual, resulta insólita en un cualquier supuesto escenario de
“igualdad formal”. A menos, claro está, que entendamos que
esta no se estableció entre tipos de relaciones sino más bien
entre matrimonios del mismo y de distinto sexo.

El caso de la filiación de nacimiento por parte de dos pro-


genitores de sexo legal masculino no es manos llamativo.
De hecho, la decisión sobre su legitimidad se encuentra en
manos del Tribunal Constitucional, tras una batalla judicial

25. Ley 14/2006, actualizada por última vez en julio de 2015.


26. Menciones del tipo: “Si la mujer estuviera casada, se precisará, además, el con-
sentimiento de su marido…” (Art. 6) o “Ni la mujer progenitora ni el marido, cuando
hayan prestado su consentimiento formal” (Art. 8)
27. A través de la Ley 3/2007.

96
INTERSEÇÕES E TANGENTES

que se va aproximando a la década de antigüedad y que, de


mantener el actual rumbo, podría resolverse en el Tribunal
Europeo de Derechos Humanos (TEDH). Todo ello como
resultado de que la posibilidad de establecer una filiación de
nacimiento sin figuras maternas es declarada ilegal en la ya
citada ley de reproducción asistida, en la que se establece que
los contratos de gestación subrogada no tienen efecto legal en
el Estado español 28.

En consecuencia, un número indeterminado29 de pare-


jas subrogan anualmente la gestación en terceros países
(Caravaca & González, 2015: 49; Hernández Rodríguez, 2014:
149). El actual conflicto se originó, en concreto, cuando un
consulado español se negó a trasladar, al registro español,
una doble paternidad masculina previamente inscrita en
los Estados Unidos. Momento a partir del cual la relación de
filiación entre estos padres (españoles) y los menores (esta-
dounidenses) se encontró, junto a la de muchas otras parejas
homoparentales, en un hostil limbo jurídico (Blanco-Morales
Limones, 2015: 13). Desde entonces, si bien la inscripción de
la filiación se ha ido facilitando tras sendas instrucciones
de la Dirección General de Registros y Notariado (DGRN) y
tres sentencias relacionadas del TEDH contra Francia e Italia
(Caravaca & González, 2015: 54-55), el llamado “caso cero”
prosigue su curso. Las sentencias dictadas hasta la fecha
esgrimen múltiples argumentos, entre los que destacan por
derecho propio el de que la filiación que se pretendía inscribir
“ni es ni puede serlo a efectos materiales, pues biológicamente

28. Ley 14/2006, Art. 10.


29. Según algunos cálculos de agencias especializadas podría situarse en torno a las
1000 “parejas” por año. El País, “Las familias españolas buscan vientres de alquiler
‘baratos’”, 1 de mayo 2014, http://sociedad.elpais.com/sociedad/2014/05/01/actuali-
dad/1398974404_290772.html.

97
GÉNEROS E SEXUALIDADES

resulta imposible”30 y el de que, como argumenta el Tribunal


Supremo, la inscripción atenta contra el “orden público
internacional”31.

Así las cosas, puede afirmarse que el Orden Público© español


internacionaliza, por una parte, el recurso a la gestación
subrogada, de forma similar a lo que no hace tanto hiciera
con el aborto, esto es, limitando su acceso en función de los
costes que la mediación de kilómetros (e intermediarios)
supone. A la vez que, por la otra, hostiga muy específica-
mente32 el tipo de filiación que considera “biológicamente
imposible”, pese a que son más bien las sentencias judiciales,
antes que la biología, quien impide su reconocimiento33. En
consonancia, claro está, con una ley de reproducción asistida
que perpetúa ese “heterosexismo de estado” para el que la
“unión sexopolítica entre un hombre y una mujer son las con-
diciones necesarias e inmutables para la reproducción” (Paul
B. Preciado, 2014); a la par que se aferra a un marcado biologi-
cismo que demuestra, en fin, que la pretendida superación del
“continuo coito/alianza/filiación” (Pichardo Galán, Stéfano
Barbero, & Martín-Chiappe, 2015: 189) está lejos de haber

30. Juzgado de Primera Instancia N°. 15 de Valencia, 15 Sep. 2010. Cursivas mías.
31. STS 6 febrero 2014. En general, se entiende por “orden público internacional”
aquella dimensión del orden público propia del Derecho Internacional Privado que
impide el reconocimiento de los efectos de cualquier ley extranjera (en este caso, la
que permitió la inscripción de la filiación de nacimiento) cuando esta perturba en
demasía lo que aquí hemos venido llamando Orden Público (Monreal, 1976: 122-123).
32. Al parecer, las subrogaciones heterosexuales (entre el 70 y el 80 por ciento del total,
según algunas estimaciones; “Papá, mamá y la tía Samantha” 2015) resultan invisibles
para los funcionarios y juzgados españoles, incluso cuando, como explican desde Son
Nuestros Hijos, las fechas de nacimiento y las de entrada de sus progenitores en el país
de destino ponen frecuentemente en evidencia la mediación de la subrogación (http://
sonnuestroshijos.blogspot.pt/p/nuestros-hijos-son-espanoles.html).
33. Pero que alcanza un espectro de cuestiones administrativas relacionadas, como
las negativas al disfrute de la llamada baja por “maternidad” en ausencia de una figura
materna.

98
INTERSEÇÕES E TANGENTES

sido consumada mediante la mera extensión del derecho a


la adopción. Antes bien, la fragmentación de ese continuo ha
servido más bien para dejar al descubierto un estrato más
profundo de la filiación heterocentrada, a saber, un continuo
“parto/matrimonio/filiación” que domestica las posibilidades
de la doble maternidad lesbiana a la par que pretende cancelar
las de una filiación de nacimiento marica cuyo perturbador y
antisocial espectro invocaran Almodóvar y Mcnamara en la
ya mítica Voy a ser mamá.

Un nombre propio
Por supuesto, el alcance disciplinario del Orden Público©
sobre la diversidad genérica, deseante y relacional está lejos
de limitarse a la consolidación del biopolítico nexo entre
“madres” y “gestantes”. E incluso esta requiere, como toda la
inercia heterosexualizante del dicho orden en su conjunto, de
un gesto fundante que permita articular los mimbres legales
de esa articulación normativa entre sexos, géneros y deseos
que Butler denominó “matriz heterosexual” (Butler, 2007: 36).

El hecho de que en el Estado español existan dos, y solo dos,


posibilidades para la obligatoria inscripción registral del sexo,
que su alteración esté restringida a la mayoría de edad, a unos
rígidamente estipulados períodos de hormonación previa
(Morelo, 2007: 151), a la supervisión de la autoridad médico-
-psiquiátrica en unidades específicas y, en suma, a criterios
heterónomos y procesos patologizantes, permite intuir la
intensidad de la violencia “de género” (Coll-Planas, 2010: 55)
que el marco binario descarga, en especial, sobre todo el aba-
nico de las identidades trans. Entre las poliédricas dimensio-
nes del así estatalizado “orden de género” (Lombardo, 2003;
cfr. Platero Méndez, 2007: 4) destaca, dados sus efectos sobre
el variado conjunto de prácticas institucionales y burocráticas

99
GÉNEROS E SEXUALIDADES

binarias que Dean Spade denomina “violencia administra-


tiva” (2015: 168), las marcas de género de los documentos
de identidad (Spade, 2015). Marcas, en plural, dado que no
se limitan a la obvia referencia al sexo legal (que Monique
Wittig comparara en “La categoría de sexo” con la mención de
la raza en los documentos de identidad durante el apogeo del
racismo de estado en los Estados Unidos; 1992: 29), sino que
incluyen, además, ese otro signo lingüístico mediante el cual
el binarismo de género tiende a invadir, literalmente, nuestra
vida cotidiana desde nuestra más tierna infancia: el llamado
nombre propio.

Ciertamente, entre las restricciones impuestas por la ley que


regula actualmente la inscripción del nacimiento, de la filia-
ción, del nombre y de sus posibles cambios se encuentra la de
que el nombre no debe hacer “confusa la identificación”34. En
la práctica administrativa y judicial, esta confusión incluye
sin duda la genérica, como ya se insinúa en aquel primerí-
simo artículo de la ley de identidad de género que recuerda
que el cambio de sexo debe acompañarse con el de nombre,
a fin de no que estos no resulten “discordantes” 35. De ahí
que sea bastante común referirse a la transición legal de sexo
con fórmulas mixtas del tipo “cambio del registro legal del
nombre/sexo” (Suess, 2010: 38) y que pueda afirmarse que, al
menos por lo que al establecimiento del sexo legal se refiere,
la mención registral del nombre propio tiene un efecto equi-
valente al de la mención del sexo. Situación que explica que,
a día de hoy, el cambio de nombre en menores trans, incluso
sin cambio de la mención registral de sexo 36, se encuentre

34. Ley 20/2011, de 21 de julio, del Registro Civil, Art. 51.


35. Ley 3/2007, Art. 1.
36. El Mundo, “El Supremo ve inconstitucional que los menores transexuales no
puedan inscribir el cambio de sexo”, http://www.elmundo.es/sociedad/2016/03/17/
56ea93c0ca4741601d8b45fb.html

100
INTERSEÇÕES E TANGENTES

totalmente judicalizado (Platero, 2014: 173), en claro contraste


con la rutinaria sencillez del trámite de cambio de nombre
“intragénero”, o que los autos que lo autorizan recurran aún
hoy a justificarse con diagnósticos de “disforia de género”37,
como si de un cambio de sexo legal se tratara.

Así pues, dada la importancia del binarismo de género como


fundamento de las presunciones de heterosexualidad que
aún habitan nuestro sistema legislativo, no resulta sor-
prendente que el establecimiento del nombre (y apellidos,
pese a que estos se encuentren bastante más emancipados
del binarismo genérico) sea todavía un asunto de Orden
Público© de primer orden. O, incluso, “donde más continua-
mente se trata esta materia [el orden público] en los registros
civiles” (Acedo Penco, 1997: 388). Y es que ese nombre tan
mal llamado “propio”, marca lingüística con la que tan ínti-
mamente tendemos a (des)identificarnos, no es un simple
performativo de género entre otros, como bien saben quie-
nes batallan por la autodeterminación de su sexo/nombre
legal. A diferencia del muchas de las “invenciones fabricadas
y preservadas mediante signos corpóreos y otros medios
discursivos” (Butler, 2007: 266), la repetición del nombre
sexuado, desde el documento que registra la filiación hasta
el de defunción (pensemos en la cantidad de lápidas que no
respetan la identidad de género de los cuerpos bajo ellas
enterrados) conlleva una inscripción de la ley binaria del
género en nuestra carne material y administrativa digna de
la máquina de la colonia penitenciaria de Kafka.

37. El Mundo, “Autorizan a una niña de cuatro años cambiar de nombre por moti-
vos de transexualidad en Gipuzkoa”, 2-2-2016, http://www.elmundo.es/pais-vas-
co/2016/02/02/56b0b133ca474161538b45ab.html

101
GÉNEROS E SEXUALIDADES

La troika cisheteromonormativa
Así disciplinado, nombre y marca de género mediante, el
binarismo queda listo para organizar el campo de las uni-
dades familiares y reproductivas. Siempre dentro, claro está,
de un marco jurídico que añade, a la infraestructura hetero-
sexual de la filiación, al menos otro ingrediente clave para la
regulación del ámbito genérico, deseante y relacional. Uno
que se mantiene en la actualidad en un estupendo estado de
salud, a saber, ese ubicuo elemento cuyas implicaciones no
sólo jurídicas, sino sociales y culturales en sentido amplio
reúne Brigitte Vasallo bajo la denominación de “marco monó-
gamo” (Vasallo, 2015).

Su relación con lo que venimos llamando Orden Público© es,


si cabe, aún más estrecha que la de la propia heterosexuali-
dad o el binarismo sexogenérico. Al menos en el sentido de
que, como componente de la institución matrimonial y sus
derivados, la monogamia atraviesa los siglos, en ese entorno
geopolítico que solemos denominar “occidente”, apenas sin
inmutarse. Presente ya en la regulación del matrimonio del
derecho romano y posteriormente sublimada en el dere-
cho canónico, ingresó en el derecho moderno, incólume, a
comienzos del siglo XIX, en el ya citado código napoleónico
(Caravaca & González, 2005: 21). Momento en que se estataliza,
mediante la administración civil de la “unión entre varón y
mujer”, la bien avenida troika constituida por el binarismo
de género, su jerarquizada complementariedad heterosexual
y, organizando esta en unas fácilmente censables unidades
reproductivas, la monogamia.

La coincidencia, en este texto inaugural del derecho moderno,


de la introducción del Orden Público© como límite de las
libertades individuales y el matrimonio civil representa un

102
INTERSEÇÕES E TANGENTES

hito histórico en la evolución del control biopolítico de pobla-


ciones a gran escala. Es más, dada la vida posterior de ambos
fetiches jurídicos, y la de sus íntimas relaciones, puede argu-
mentarse que esta sincronía elevó de hecho la citada tríada
al estatuto de Orden Público©, convenientemente reunida en
una única institución. Lo que así se secularizó no fue, en con-
secuencia, tanto el sacramento matrimonial como la potestad
para la gestión del régimen cisheteromonormativo38, enten-
dido este como el control estatal de la matriz heterosexual
en aquellos entornos (temporales, espaciales o jurídicos) que
privilegian la monogamia a la par que discriminan y ejer-
cen diversas formas de violencia administrativa sobre otras
estructuras relacionales, sean estas de origen religioso, laico
o aconfesional.

Actualmente, los y las migrantes polígamas se encuentran,


junto al bebé sin papeles de la subrogada y las infancias trans,
entre los más evidentes exponentes de la violencia que este
régimen despliega en el Estado español y otros muchos de su
entorno sobre quienes viven en conflicto con cualquiera de
sus tres ejes constitutivos. Los casos de las viudas de relacio-
nes polígamas a las que se ha concedido el derecho a recibir
sus correspondientes pensiones de viudedad, en virtud de la
aplicación del denominado “orden público atenuado” (Calvo
Caravaca & Carrascosa González, 2007: 470; Campiglio, 2012:
165; Lema Tomé, 2003: 17) son apenas el reverso amable de una
excluyente praxis jurídica que comprende desde la denegación
del derecho a la reagrupación familiar (Maria Lourdes Labaca
Zabala, 2009) hasta la de las solicitudes de nacionalidad.

38. El término “cisheteromonormativo” resulta del injerto entre los de heteronorma-


tividad (Warner, 1991) y mononormatividad (Pieper M. & Bauer, 2005), al que añado
el prefijo cis para destacar el binarismo de género sobre el que descansa tanto la com-
plementariedad heterosexual (dimensión cualitativa) como la restricción monógama
(dimensión cuantitativa).

103
GÉNEROS E SEXUALIDADES

En especial, en las sentencias referidas a este último caso, el


repetido argumento de que la poligamia “repugna al orden
público español”39 deviene sistemáticamente prueba de una
supuesta “falta de integración en la sociedad española”40. Se
produce con ello un sustancial cambio de registro entre el tipo
de conflicto jurídico por el que habitualmente se apela a la
cláusula de “orden público internacional” para no reconocer
los efectos de leyes extranjeras incompatibles con la propia
(Monreal, 1976: 121) al del juicio de valor sobre supuestos
grados de integración social. Así, más que a efectos jurídi-
cos aceptables o no para la jurisprudencia (como las propias
pensiones de viudedad) se convierte a individuos concretos
en el muy corpóreo objeto de aplicación del Orden Público©.
Sustancial giro en virtud del cual el régimen cisheteromonor-
mativo despliega su potencial para el ejercicio de la violencia
estatal implícita en la amenaza o en la realidad efectiva de
la deportación a la par que pone en evidencia alguna de sus
ramificaciones en materia de políticas migratorias y, a través
de estas, de sus intensas relaciones con el clasismo, la xeno-
fobia, el racismo y la discriminación religiosa.

Este recurso implícito a una homogénea, monolítica y monó-


gama concepción de la “sociedad española”, dista mucho de
ser, por lo demás, un complemento casual del recurso al Orden
Público©. Antes bien, es digno descendiente de una sus más
propias líneas genealogicas. Según explica uno de sus exége-
tas más influyentes, M. Savigny, el Orden Público© fue intro-
ducido en el derecho moderno nada menos que como garante
de la comunión entre “los pueblos de occidente, asentada en
el cristianismo y en el Derecho Romano” (Monreal, 1976: 123;

39. Ver por ejemplo las sentencias del Tribunal Supremo 6358/2002 y 4764/2009, o la
de la Audiencia Nacional de 14 de marzo de 2013.
40. Idem.

104
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Savigny, 1851: 35). Su función no sería por tanto otra que la de


proteger, según otros eruditos de la doctrina francesa, “los
principios comunes a las naciones civilizadas (…) expresión
de la moral y la justicia objetivas” (Lerebours-pigeonniere &
Loussouarn, 1962: 500; Monreal, 1976: 124) de perturbadoras
influencias extranjeras. Universalista y xenófoba genealogía,
pues, que contribuye quizá a explicar el lugar que ocupa el
matrimonio como peculiar alternativa a las políticas de asilo,
como si de una suerte de versión moderna de la figura de la
conversión religiosa se tratara, así como que medidas de corte
claramente islamofóbico, como la reciente prohibición de
usar el burkini en hasta una docena de municipios franceses,
se hayan fundamentado legal y políticamente en una preocu-
pación por el mantenimiento del “orden público”41.

El estado del desorden púb(l)ico


Aun concediendo un valor relativo a la sugerencia de que
“Estado y Orden Público han ido de la mano desde el principio
de los tiempos” (Montalvo Abiol, 2 010: 205), resulta evidente
estamos ante un importante mecanismo por lo que a la repro-
ducción de las variantes nacionales de la filiación, del género

41. Las ordenanzas hablan del “trouble à l’ordre public” (sentido material del orden
público) pero lo hacen en la práctica indistinguible de este sentido universalista y
xenófobo del Orden Público propiamente dicho, tanto en la arbitrariedad de unas
ordenanzas que combinan la prohibición con apelaciones a las “buenas costumbres”
como, sobre todo, en sus explicaciones políticas. La teniente alcalde de Niza, por
ejemplo, ha explicado que se trata de mantener “nuestro ideal de la relación social”
y de luchar “contra el comunitarismo” (Huffington Post, 19-08-2016 “Avant Nice,
les communes françaises qui ont interdit le burkini sur leurs plages”; http://www.
huffingtonpost.fr/2016/08/19/burkini-plages-interdiction-nice-_n_11604624.
html), mientras que la presidenta del Frente Nacional, Marine Le Pen, considera
que se trata de una cuestión “de orden público, ciertamente; pero más allá, se trata
de la esencia de Francia” (20Minutos, 16-08-2016, “Una docena de municipios ya
prohíben el burkini en Francia”; http://www.20minutos.es/noticia/2818216/0/
mujeres-multa-cannes-francia-burkini-playa/#xtor=AD-15&xts=467263).

105
GÉNEROS E SEXUALIDADES

y de la diversidad relacional se refiere. De ahí la importancia


de su desestabilización para cualquier política que pretenda
hacer suyo el impulso critico que abría este ensayo: “ha lle-
gado el momento de pensar en queerizar el estado” (Duggan,
2009: 1). Aunque si algo así como pensar en esta queerifica-
ción es, de hecho, posible, lo será tal vez sólo a condición de
asaltar la dicotomía entre distintos sentidos del orden, es
decir, aquella que nos permite distinguir entre la ausencia
de disturbios en el espacio público y el Orden Público© en
sentido (meta)jurídico. Puesto que, tal y como observa desde
la filosofía del derecho Miguel Álvarez Ortega, en un ensayo
en que aboga justamente por una reformulación unificada del
concepto, “sostener que una catástrofe natural no perturba el
orden material o la paz social y una revuelta callejera sí no
deja de ser sorprendente. Si optamos en cambio por conside-
rar la quiebra de los valores sociales en juego, la distinción
puede resultar más diáfana” (Ortega, 2003: 25; cursivas mías).

La conexión así apuntada entre perturbación de la “paz


social” y “quiebra” de los “valores sociales en juego” dista de
indicar una mera posibilidad de reformulación teórica de un
abstracto concepto jurídico. Antes bien, la existencia de un
estrecho vínculo entre ambos sentidos del orden bien podría
ser la intuición básica de, entre otras formas de activismo cal-
lejero y combativo, la que conocemos como activismo queer.
Recorrería en ese caso tanto los disturbios de Stonewall (avant
la lettre) como la visita de Act-Up a la misa de St. Patrick, los
tragafuegos de las Lesbian Avengers o los kiss-ins de Queer
Nation. Estaría también muy presente en las campañas “El
Ministerio de Sanidad tiene las manos manchadas de sangre”
de la Radical Gai, en la sexualizada cartelería lesbiana de
LSD, en los die-ins de la Transmaricabollo de Sol contra el
apartheid sanitario y en la defensa de los espacios de crui-
sing de Barcelona de Triangles Rosas. Formaría también parte

106
INTERSEÇÕES E TANGENTES

del combativo LGTB bloc de la resistencia del Gezi Park, de


todas las asambleas queer de los movimientos Occupy, de la
convocatoria antiausteritaria de las Panteras Rosa durante el
Rios para o Carmo y también, sin lugar a dudas, del reciente
asalto de Lesbians and Gays Support the Migrants al centro
de detención de inmigrantes de Yarl’s Wood. En su diversi-
dad, todas ellas ocupan esas efímeras grietas del campo de lo
posible a través de las cuales, en ocasiones, el más anárquico
y minoritario desorden púb(l)ico deviene conmoción política.
Claro está que los efectos de tales aperturas son, por defini-
ción, inanticipables. Lo que explica, quizá, por qué suelen
tener tanto éxito en atraer la atención de las fuerzas del orden.

Referencias
• Acedo Penco, Á. (1997). El orden público actual como límite a la
autonomía de la voluntad en la doctrina y la jurisprudencia. Anuario
de La Facultad de Derecho, 14-15, 323–392.
• Ascensión, E. (2008). Libertad de circulación y orden público en
España. Revista Para El Análisis Del Derecho, (2), 1–19.
• Blanco-Morales Limones, P. (2015). Una filiación: tres modalidades
de establecimiento. La tensión entre la ley, la biología y el afecto.
Bitácora Millennium DIPr., 1, 1-16.
• Butler, J. (2007). El género en disputa. Barcelona: Paidós.
• Calvo Caravaca, A. L., & Carrascosa González, J. (2007). Los matri-
monios entre personas del mismo sexo en la Unión Europea. Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario, 700, 443–475.
• Campiglio, C. (2012). Los conflictos normo-culturales en el ámbito
familiar, 4(Octubre), 5–21.
• Campos, R. (2014). Pobres, anormales y peligrosos en España (1900-
1970): De la “mala vida” a la ley de peligrosidad y rehabilitación social.
En XIII Coloquio Internacional de Geocrítica. El control del espacio y
los espacios de control. Barcelona, 5-10 de mayo. Barcelona. http://
www.ub.edu/geocrit/coloquio2014/Ricardo Campos.pdf (accedido
el 26-08-2016).
• Caravaca, A.-L. C., & González, J. C. (2005). Derecho internacional
privado y matrimonios entre personas del mismo sexo. Revista de
Instituciones Europeas, vol. 1, 758–824. http://eprints.ucm.es/7864/
(accedido el 26-08-2016).

107
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Caravaca, A.-L. C., & González, J. C. (2015). Gestación por sustitución


y derecho internacional privado. Más allá del tribunal supremo y
del tribunal europeo de derechos humanos. Cuadernos de Derecho
Transnacional, 7(Octubre), 45–113.
• Coll-Planas, G. (2010). La policía del género. En M. Missé & G. Coll-Planas
(Eds.), El género desordenado. Críticas en torno a la patologización de
la transexualidad (pp. 55–67). Barcelona y Madrid: Egales.
• Díaz Martínez, A. (2007). La doble maternidad legal derivada de la
utilización de técnicas de reproducción humana asistida. Derecho
Privado Y Constitución, 21, 75–129.
• Duggan, L. (2009). Queering the State, 39, 1–14.
• Echandia, H. D. (1946). Evolucion de la noción de orden publico.
Revista de La Universidad Nacional (1944 - 1992), 6, 251–262.
• Foucault, M. (2000). Defender la sociedad: curso en el Collège de
France (1975-1976). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de
Argentina.
• García Presas, I. (2010). El derecho de familia en españa desde las
últimas reformas del código civil. En Actas del I Congreso Ibero-
asiático de Hispanistas Siglo de Oro e Hispanismo general (pp.
237–265). Delhi: Publicaciones digitales del GRISO/Servicio de
Publicaciones de la Universidad de Navarra.
• Hernández Rodríguez, A. (2014). Determinación de la filiación de
los nacidos en el extranjero mediante gestación por sustitución:
¿hacia una nueva regulación legal en España? Cuadernos de Derecho
Transnacional, 6(2), 147–174.
• Huard, G. (2015). Los «invertidos» en Barcelona. Masculinidades
cuestoinadas durante el franquismo en los archivos judiciales. En
R. M. Mérida Jiménez & J. L. Peralta (Eds.), Masculinidades en la
transición (pp. 207–223). Barcelona y Madrid: Egales.
• Lema Tomé, M. (2003). Matrimonio poligámico, inmigración islámica
y libertad de conciencia en España. Migraciones Internacionales, 2,
149–170.
• Lerebours-pigeonniere, P., & Loussouarn, Y. (1962). Droit
international privé. Paris: Dalloz.
• Lombardo, E. (2003). EU Gender Policy: trapped in the Wollstonecraft
Dilemma? The European Journal of Women’s Studies, 10(2), 159–179.
• Labaca Zabala, Maria Lourdes (2009). El matrimonio polígamo
islámico y su repercusión en el derecho español. Revista Jurídica de
Castilla Y León, 261–331.
• Martínez, M. M. (2014). Límites a la libre circulación de personas en
la UE por razones de orden público, seguridad o salud pública en

108
INTERSEÇÕES E TANGENTES

tiempos de crisis: una revaluación a la luz de la jurisprudencia del


TJUE. Revista de Derecho Comunitario Europeo, 49, 767–804.
• Monreal, E. N. (1976). Defensa de las nacionalizaciones ante tribu-
nales extranjero. México: Universidad Nacional Autónoma de México.
• Montalvo Abiol, J. C. (2010). Concepto de orden público en las
democracias contemporáneas. Revista Jurídica de La Universidad
Autónoma de Madrid, (22), 197–222.
• Morelo, P. G. (2007). La nueva ley ¿es tan buena como nos la venden?
En M. G. Ruiz (Ed.), Transexualidad. Situación actual y retos de
futuro (pp. 147–154). Asturias: Conseyu de la Mocedá del Principáu
d’Asturies.
• Muñoz, E. S. y. (2007). Orden público e impugnación de acuerdos
sociales. Revista Xurídica Galega, 54, 13–22.
• Noriega, A. E. F. (2007). El orden público en el derecho privado. Tesis
del Magister en Derecho Civil, Pontificia Universidad Católica del
Perú.
• Ortega, M. Á. (2003). Orden público: unidad axiológica, espacio
europeo. Anuario de Derecho Europeo, 3, 15–45.
• Pichardo Galán, J. I. (2009). (Homo)sexualidad y familia: cambios y
continuidades al inicio del tercer milenio. Política Y Sociedad, 46(1),
143 – 160.
• Pichardo Galán, J. I., Stéfano Barbero, M. de, & Martín-Chiappe, M. L.
(2015). (Des)naturalización y elección: emergencias en la parentalidad
y el parentesco de lesbianas, gays, bisexuales y transexuales. Revista
de Dialectología Y Tradiciones Populares, 70(1), 187–203.
• Pieper M., & Bauer, R. (2005). Call for papers: International
conference on polyamory and mono-normativity. University of
Hamburg, 5–6 November. http://www.wiso.uni-hamburg.de/index.
php?id?3495 (accedido el 26-08-2016).
• Platero Méndez, R. (2007). Entre la invisibilidad y la igualdad formal:
perspectivas feministas ante la representación del lesbianismo
en el matrimonio homosexual. En A. Simonis (Ed.), Cultura,
Homosexualidad y Homofobia. Vol II. Amazonia: retos de visibilidad
lesbiana (pp. 85–106). Madrid: Laertes.
• Platero, R. (Lucas). (2014). Transexualidades. Acompañamiento,
factores de salud y recursos educativos. Barcelona: Bellaterra.
• Preciado, P. B. (2014). Procreación políticamente asistida. Parole
de queer. http://paroledequeer.blogspot.pt/2014/04/procreacion-
politicamente-asistida-por.html (accedido el 26-08-2016).
• Savigny, F. C. (1851). Tratado de derecho romano Vol. VIII. Paris:
Institut de France.

109
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Spade, D. (2015). Una vida normal. Barcelona: Bellaterra.


• Suess, A. (2010). Análisis del panorama discursivo alrededor d
ela despatologización trans: procesos de transformación de los
marcos interpretativos en diferentes campos sociales. En El
género desordenado. Críticas en torno a la patologizacion de la
transexualidad (pp. 29–55). Barcelona y Madrid: Egales.
• Trujillo, G. (2016). Mi cuerpo es mío: parentalidades y reproducción
no heterosexuales. Viento Sur, 146(1992), 61–68.
• Vasallo, B. (2015). Limits, boundaries and borders: frontex questioned
from a queer non-monogamous perspective. Coimbra: Keynote at 1st
International INTIMATE Conference “Queering Partnering.” http://
saladeimprensa.ces.uc.pt/ficheiros/canalces/14097_brigitte_vasallo.
mp4 (accedido el 26-08-2016).
• Warner, M. (1991). Introduction. Fear of a Queer Planet. Social Text,
29, 3–17.
• Wittig, M. (1992). El pensamiento heterosexual y otros ensayos.
Barcelona y Madrid: Egales.

110
Parte 2
Desesta-
bilizar os
géneros e
as sexua-
lidades
JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA

Trânsitos de Género
leituras queer/trans* da potência do
rizoma género42

“Eu é que estou escutando o assobio no escuro.


Eu que sou doente da condição humana.
Eu me revolto: não quero mais ser gente. Quem?”

Clarice Lispector, Água Viva

0. Desidentificações e primeiras
impressões
Comecemos pelo detrás do título, do avesso, como se queer43
fosse português e quisesse dizer deslizar categorias, géneros,
identidades e desejo que se complexificam, tornando-se mais
tortas, mais invertidas, deslizando como ácido numa pedra
e corroendo-a um pouco, deixando rasto, marcando a pedra.
Um queer antes demais sensibilidade e traço, não identidade,
mas antes um traço de uma desidentificação (Muñoz, 1999):
um modo de apropriar e reconstruir um texto culturalmente

42. Este texto foi anteriormente publicado na obra de Leandro Colling (2016). Ativis-
mos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA e é republicado aqui com
alterações.
43. E por isso não vou o grafar em itálico. Vou mantê-lo como se fosse português.
GÉNEROS E SEXUALIDADES

codificado que é ressignificado, para passar a expôr os termos


universalistas e de exclusão dessa mensagem, enquanto se
apropria o texto para que este passe a dar conta e a incluir
identidades e identificações de minorias. Com Gayatri Spivak
(2014), podemos apreender um método de descolonização,
para mim des-heterossexualização44 que também pode ser
queer, usando Frantz Fanon como exemplo: quando Fanon
(1967) descreve a sua própria reação à frase de uma menina
francesa branca assustada, ao vê-lo em França, recém che-
gado da Martinica “Mamã, olha o preto” - subsumir toda a sua
identidade a ser um negro que é tido como um insulto numa
ideologia racista e colonial, sobretudo no país colonizador.
Similarmente, o insulto homo e transfóbico produz o mesmo
tipo de efeitos. A reação de Fanon foi proceder a um esforço
de analisar e lutar contra a descolonização. Encontramos aqui
outro paralelismo com o movimento queer - ir entender os
processos de heterossexualização do mundo e desconstrui-
-los. Por fim, o importante capítulo que Fanon dedica a Hegel
neste livro, desmontando-lhe o eurocentrismo, o que permite,
segundo Spivak (2014) aprender que “a lição de Fanon é que se
usa o que os senhores [coloniais] desenvolveram e vira-se do
avesso, para que sirva os interesses de quem foi escravizadx
ou colonizadx” (p.61). Ou como alude Spivak (2012), a necessi-
dade e a importância da sabotagem. Esta lição é fundamental
para os ativismos e teoria queer, da necessidade de virar uma
teoria ou uma frase ou o que seja do avesso para a usar de que
forma a que sirva os interesses de quem foi colonizadx pelas
normas de género e de heternormatividades.

Nas propostas queer ou feministas queer, estamos sempre no


domínio da sabotagem que pode ser hackear, piratear, reciclar,

44. Usada aqui no sentido que Butler (1992) dá regime de heterossexualidade


hegemónica.

116
INTERSEÇÕES E TANGENTES

em produzir teoria bandita (Singer, 1993), que vai cozinhar e


devorar (Colling & Pelúcio, 2015 a recorrerem à metáfora antro-
pofágica de Oswald de Andrade), infectar com a marca do hífen
(Oliveira, 2014). Do queer, precisamos de professar a nossa
dificuldade de tradução da palavra, mas gostamos de lexicali-
zá-lo no português, língua creolizada, espaço intermédio entre
o colonializado e o império na sua posição de semi-periferia,
entre Caliban e Próspero, na figuração de Boaventura de Sousa
Santos (2003). Esse português, língua semi-periférica, não
tem queer, nem cuir, nem sequer kuir, mas nada nos impede,
pois não consta que tenhamos que obedecer aos dicionários.
Lexicalizemos o queer, tiremo-lo da sua gramática política
inicial e usemo-lo noutros sistemas linguísticos (Spivak, 2012),
adaptando-o, comendo-o. Vamos engoli-lo, degluti-lo e trans-
formá-lo dentro de nós, do espaço que definimos como nossa
cultura, esse rizoma que não acaba nunca.

Tal como o espanhol também não temos queer, como reflete


Juan Pablo Sutherland (2009) mostrando nuances estéticas
(manipulações em torno do identitário pela hiperbolização,
metaforização do estigma e neo-barroquização da identidade
como um lugar de fuga da violência) e políticas (assentes
na ideia de que a identidade se dissolve numa hiper identi-
dade - maricas, urso, bicha, fufa, travesti) desse queer que
não temos em português. Esta distinção é particularmente
importante pois permite a produção de políticas pós-identi-
tárias e de modos de resistir à normalização e à domesticação
neoliberal do bom sujeito/cidadão homossexual (Richardson,
2005), preocupação em muitas sociedades ocidentais e em
determinadas classes sociais. Contudo a experiência de um
mundo muito maior, de um Sul global e de diversas classes,
‘raças’, grupos culturais levam-nos a cruzar o queer também
com outras dimensões e outras relações de poder. E se fizésse-
mos como Tim Stüttgen (2014), uma hifenização dos saberes e

117
GÉNEROS E SEXUALIDADES

experiências e pusessemos o A de BlAck no meio de Queer e isso


desse Qu*A*re? Imaginar queer deve ser também a capacidade
de o pensar a partir de epistemologias do sul (Santos, 2014), a
partir de um posicionamento que recusa o eurocentrismo e o
ocidentalismo na produção dos saberes/poderes/praxis que
surgem a partir das lutas contra o colonialismo, o capitalismo
e o patriarcado - que eu prefiro aqui definir como as normas de
género, permitindo aludir simultaneamente às sexualidades,
ao género, à sua interseccionalidade e ao controlo e policia-
mento das expressões de género. Assim, as epistemologias
do Sul (Santos, 2014) são para além de geográficas, relativas
a modos de conhecimento que produzem a dessubjugação do
conhecimento e as modalidades tradicionais da sua legitima-
ção, conhecimentos que servem grupos e movimentos sociais,
em vez do desperdício de conhecimentos e do epistemicídio
que resulta na supressão do conhecimento subordinado pelos
conhecimentos colonizadores ocidentais. Este desperdício e
este verdadeiro epistemicídio aconteceu com os saberes queer,
feministas e trans, como reconhece Susan Stryker (2006), na
análise que propõe, a partir de Michel Foucault, da dessubjuga-
ção dos saberes trans. Este texto inscreve-se nesta genealogia
da dessubjugação e da luta contra o epistemicídio, que o pen-
samento straight (Wittig, 1992), ou hegemónico heterossexual
promove e que colonizou toda a academia e mesmo o pensa-
mento da esquerda.

Este texto tem vários sinais diacríticos como o -, o *, ou o


uso de x’s no meio das palavras, para criar a indeterminação
de género, simultaneamente um desejo de abarcar mais e
desejo de complexificar, de ir desnaturalizando a linguagem
como maneira de ver nela uma performatividade que ins-
tala a ilusão de uma metafísica da substância (Butler, 1992).
Refiro-me sobremaneira ao uso da expressão trans*. Em
trans*, como mostra Lucas Platero (2014), a adição do * alude

118
INTERSEÇÕES E TANGENTES

à necessidade de assinalar uma heterogeneidade de corpos,


identidades e vivências para lá das normas socialmente
impostas. Este uso implica pois um trabalho ativo de sabo-
tagem da norma, dar visibilidade no texto e na vida, à norma
e à expressão de género que a ressignifica. Precisamente o
meu objetivo aqui: sabotar o sistema de pensamento sobre
os processos de produção do género, tomando como ponto
de partida, não os indivíduos que são conformes à norma
de género, mas aquelxs que apresentam performances
subversivas de género (Butler, 1990). Ou seja, conceptua-
lizar os processos de constituição do sujeito genderizado a
partir de sujeitos trans*, em vez de recorrer às pessoas que
(aparentemente) se situam e se posicionam na norma, como
normativas.

Trata-se pois de um questionamento queer que não presume


nenhuma equivalência entre género, identidade e desejo, e
que pelo contrário, os encara como um deslizamento, uma
não continuidade. É também de um questionamento a partir
de uma epistemologia trans* que duvida da continuidade
essencial da diferença sexual como grande narrativa para as
teorias do género. Assim proporemos também uma dimen-
são ontológica do género, a partir da sua dupla constituição
enquanto norma e expressão (Butler, 1990), para além de nos
referirmos às dimensões do exercício da violência e morte das
populações trans*.

Necropolíticas, potência e
potestade de género: Espinosa
polindo nossas lentes
Antonio Gramsci (1992: 371), a partir da prisão, avisa:

119
GÉNEROS E SEXUALIDADES

‘A crise consiste precisamente no fato de que


enquanto o velho está a morrer, o novo ainda não
pode nascer; neste interregno surge uma grande
variedade de sintomas mórbidos’.

Esta análise do modo como a inovação e a mudança se inter-


ligam com as estruturas já existentes, gerando uma situação
de atrito e de conflito, pode ser aplicada ao caso do género.
Pensemos nos movimentos contra o ensino e a produção de
conhecimento sobre género, que recusam a difusão e dissemi-
nação do conceito nos programas escolares e na educação, que
hoje em dia estão presentes em vários países. Manifestações
organizadas contra o género (o que quer que isso queira dizer),
que se juntam a objectivos políticos de impedir legislação
sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, estatuto fami-
liar centrado exclusivamente no casal heterossexual, com o
propósito de suscitar o impedimento de casais do mesmo sexo
em adotar crianças.

Contraste-se este movimento conservador e fundamentalista


das normas tradicionais de género com aquilo a que Judith
Butler (2005) chamou de Novas Políticas de Género, ligados
aos movimentos transgénero, transexual, intersexo e as suas
relações com o feminismo e a teoria queer. De fato, como Butler
(2005) mostra, a relação entre as singularidades e as normas
é de tensão: um ‘eu’ que constituído pelas normas, mas que
se esforça por manter uma relação crítica e transformadora
com elas. Esta tensão tem uma profunda relação com o reco-
nhecimento de humanidade: “Posso sentir que sem alguma
forma de reconhecimento não posso viver. Mas também posso
sentir que os termos através dos quais a minha vida é reco-
nhecida tornam a minha vida invivível” (Butler, 2005: 4). Ou
seja, trata-se de uma tarefa que pode ser lida como alargar o
âmbito de reconhecimento do humano para incluir pessoas

120
INTERSEÇÕES E TANGENTES

que necessitam de reconhecimento para lá das normas dimór-


ficas e binárias do género. O facto de países como a Argentina
e Malta já terem legislação completamente assente na autode-
terminação das pessoas para efeitos do reconhecimento legal
do género já é uma evidência dos impactos destas problema-
tizações trazidas pelos movimentos sociais, pelos estudos de
género e teoria queer e por outrxs aliadxs.

A emergência destes movimentos e das suas reivindicações (o


novo) e a existência de grupos, instituições, estados e religiões
que põem em causa qualquer possibilidade de ressignificação
das relações sociais de género traduzem esta crise a que alude
Gramsci, que é marcado pelas dificuldades acrescidas ao novo
em emergir, pela resistência do velho em desaparecer. Os
sintomas de morbidez, a que se refere Gramsci, são marcados
por duas lógicas a que iremos aludir: uma lógica ideológica,
marcada por uma maneira de ver o género naturalizado como
sexo e como tal, sem possibilidade de mudança e com conse-
quências para a manutenção de um modelo de família muito
tradicional, falsamente tido como maioritário, centrado no
casal heterossexual reprodutor, com uma divisão sexual do
trabalho clássica e que parte do contrato/sacramento casa-
mento, que vai alimentar imaginários religiosos e conser-
vadores, heteronormativos, misóginos e transfóbicos. Este
modelo é apregoado como estando em risco e as formas de
diversidade familiar são tidas como ameaçadoras ao modelo
e capazes de o pôr em causa e por isso devem ser contidas e
controladas, quando não mesmo banidas, como é evidente
nas leis familialistas, sem terem em conta a diversidade de
formas de organização familiar e relacional.

Por outro lado, a lógica da violência, simbólica ou não, sobre


a diversidade do género, através do exercício de violên-
cia e mesmo de assassinato contra pessoas queer e trans*.

121
GÉNEROS E SEXUALIDADES

De acordo com Balmer & Hutta (2012), no Relatório da


TransgenderEurope, o caso do Brasil é o pior dos casos con-
tabilizados (sempre subestimados) sendo o país do mundo
com mais casos noticiados de assassinato contra pessoas
trans* até 2011. Estes números, obtidos neste relatório, mos-
tram que no Brasil ocorreram 50% (325) dos homicídios de
pessoas trans* na América do Sul e Central (644) e 39% dos
homicídios de pessoas trans* em todo o mundo (831), dados
do período entre 2008 e 2011. Berenice Bento (2014) descreve
a situação do Brasil como transfemínicidio, ou seja, como
uma política de eliminação intencional, disseminada e sis-
temática desta população e que apresenta características
distintivas como sejam as mortes ritualizadas, que ocorrem
no espaço público, em situação de impunidade por parte do
Estado, constituindo uma espetacularização exemplar que
se constitui como preventiva. No caso português, a morte de
Gisberta Salce Júnior45, mulher trans brasileira imigrante, no
Porto, às mãos de jovens rapazes institucionalizados numa
instituição religiosa, descrevi-a anteriormente (Oliveira,
2014), recorrendo à idéia de necropolítica (Mbembe, 2003) e
de necropolítica queer (Puar, 2007; Haritaworn, Kuntsman
& Posocco, 2014). A necropolítica é uma forma de soberania
assente na “instrumentalização generalizada da existência
humana e na destruição material de corpos humanos e
populações.” (Mbembe, 2003: 14). Enquanto Foucault (2006)
se centrou na biopolítica e no biopoder, o foco na necropo-
lítica implica determo-nos, como explicam Haritaworn et
al (2014), em determinadas populações são sujeitas a um
overkill (um excessivo número de homicídios, como é o caso
da população trans* no Brasil e noutros países) o que coloca

45. Sobre quem Maria Bethânia canta “A Balada de Gisberta”. A história cruel de Gis-
berta com espancamento, tortura e afogamento da qual resultou a morte, deu origem
a uma campanha quer nacional, quer internacional, “Justiça para Gisberta”, que será
uma das primeiras de Transgender Europe contra violência anti-trans.

122
INTERSEÇÕES E TANGENTES

essas populações numa ontologia de quase vida, dada a vul-


nerabilidade dessas populações ao necropoder. Puar (2007),
na sua consideração sobre necropolítica queer, acrescenta
as dimensões da radicalização e da classe: para alguns/mas,
certos Estados reservam o casamento e a família, enquanto
outras pessoas são aguardadas num campo de refugiados,
enviadas para os seus países de origem quando pedem asilo
político por conta da sua sexualidade ou por outras razões.
Ou simplesmente deixadas morrer no Mediterrâneo. Assim,
a necropolítica, queer, trans* e outras, fazem parte da demo-
cracia e constituem-na (Haritaworn et al, 2014), através de
mecanismos legais, de desproteção, de encarceramento e de
negligência, que se revelam mundos de morte, isto é,

“novas formas de existência social onde vastas


populações são sujeitas a condições de vida
que lhes conferem o estatuto de mortos-vivos”
(Mbembe, 2003: 39).

Estes movimentos que revelam o sintoma da crise do sistema de


género compactuam, legitimam e fundamentam tais políticas
e por isso se torna cada vez mais necessário um vigoroso com-
bate aos seus ideários, dado que podemos ler as normas que
representam e que pretendem ver cumpridas como o re-envio
de ainda mais pessoas queer e trans* para estes mundos de
morte, onde pela marca da vulnerabilidade possam ser deixa-
das nas garras do necropoder. Contudo este modelo que preco-
nizam do género como forma de conformidade e opressão de
outrxs só conta uma parte da história do género. Os sintomas
mórbidos de Gramsci querem mesmo dizer morte.

Regressemos por momentos, a Baruch Espinosa, pelas mãos


de Antonio Negri (2013) e de Judith Butler (2015). Ambxs
defendem a tese de que há uma leitura profundamente

123
GÉNEROS E SEXUALIDADES

anti-individualista de Espinosa que encontra em Deleuze


um dos seus primeiros expoentes. Butler (2015) argumenta a
partir da ideia de que a Ética de Espinosa defende uma visão
da categoria de vida como uma que não pode ser entendida
de forma individual, até porque de acordo com Espinosa, o
conatus (o esforço que cada coisa faz para perseverar no seu
ser) é aumentado ou diminuído em função dos encontros
com os outros. Assim, Espinosa estaria a advogar, na óptica
de Butler, que a singularidade está implicada nas singulari-
dades de outrxs e que como tal, o desejo da vida põe a singu-
laridade do eu em questão, dada esta importância dx Outrx.
Quando Espinosa se move da ética para a política, este projeto
é claro, pois como propõe também Negri (2013) é marcado
pela socialidade que não é mutuamente exclusiva ou oposta
à singularidade; pelo contrário, a socialidade apropria-se da
singularidade, desapossa-a e ao mesmo tempo, a singulari-
dade limita as possibilidades totalizantes do social, mas que
assume a sua especificidade no contexto em que é gerada, ou
seja, na socialidade. Negri (2013) defende a tese de que a partir
da consideração desta tensão entre socialidade e singulari-
dade, a multitude é um dos loci teóricos de Spinoza a que vai
dar maior importância, distinguindo entre ser-multitude, isto
é, a composição fenomenológica da multitude como um con-
junto de singularidades a partir de um princípio de utilidade; e
fazer-multitude, um processo material e coletivo dirigido por
uma paixão. Esta multitude é a origem da Lei e do Estado, a
fonte da soberania e constrói uma ideia de cidadania multitu-
dinária e a sua potência reside nas diferenças entre singulari-
dades. Paul B. Preciado (2011) recorre precisamente a este ideia
das multitudes queer como o sujeito possível da política queer:

“Não existe diferença sexual, mas uma multidão


de diferenças, uma transversalidade de relações
de poder, uma diversidade de potências de vida.

124
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Essas diferenças não são “representáveis” porque


são “monstruosas” e colocam em questão, por esse
motivo, os regimes de representação política, mas
também os sistemas de produção de saberes cien-
tíficos dos “normais”.” (p.18)

Nota-se de forma bastante clara o impacto das ideias de


Espinosa e a sua relevância para um pensamento queer. O
contributo de Espinosa pode ser muito útil igualmente noutro
contexto, o contexto da constituição do sujeito genderizado,
como irei mostrar.

Se pensarmos na teoria da performatividade de género, pro-


posta por Butler (1990), é preciso entender que existe uma
relação complexa entre normas e expressões de género, em
que a norma, que é constituído pela repetição e pela citacio-
nalidade das performances, vai por sua vez, condicionar o
modo como essas expressões são legíveis e reconhecíveis à luz
dessas normas de inteligibilidade, se a falha da performance
(que sempre ocorre) não desconstrói a pseudo interioridade
e especialização do género. Poderíamos decompor sem opor,
pois não se trata de um antinomia, mas de uma relação de
interdependência e de tensão criativa, estas maneiras de olhar
para o género enquanto expressão, enquanto possibilidade,
enquanto promessa, condicionado por uma outra forma de
género, decorrente da repetição e citacionalidade da primeira,
mas que impõe este modo de representação do género como
normativo. Simultaneamente a teoria de Butler nos permite
olhar para um género que é ativamente feito e criado, mas que
está sempre significado por determinadas normas de género.
Esta distinção permite-nos avançar para considerar proces-
sos mais vastos de significação do poder e que dão razão a
Patricia Porchat (2015) quando afirma a clara influência no
trabalho de Judith Butler.

125
GÉNEROS E SEXUALIDADES

E aqui Espinosa é um filósofo muito pertinente para a teoria


do género na sua distinção entre poder como potentia e
poder como potestas. Para Espinosa, o poder não pode ser
entendido simplesmente de uma forma simples, como um
exercício de força sobre outrem. Na sua acepção potestas,
é um poder ligado a uma concepção de comando, uma
faculdade, implicando a capacidade de agir e criar efeitos,
um poder que está ligado à possibilidade de ser usado ou
inibido, portanto uma concepção transcendente do poder.
O poder potentia implica o uso e exercício da força em acto,
localizado, um poder que é imanente e onde se coordena
desejo subjectivo e construção. Esta distinção foi já usada
em relação ao género por Rosi Braidotti (2011), mas no meu
caso pretendo localizá-la em relação às teses butlerianas,
em que a potestas está claramente ligada às normas de
género que estão sempre em relação com o género imanente,
a potentia de género que tem que ver com a expressão do
género no concreto, que é claramente afectada pelas normas,
que são limites à ação do género. Esta é uma concepção do
género que é simultaneamente a norma e o que está para lá
da norma. O conceito de potência de género é particular-
mente útil para compreender determinadas incorporações
da norma e das suas ressignificações, profundamente ligada
ao corpo e aos usos do corpo e implicando um pensamento
que vê no género simultaneamente ação e limite da ação.
Contudo implica passar a pensar-se o género num outro
quadro ontológico.

Trânsitos de género: passos para


uma ontologia
Denise Riley (1988) pergunta-se se é possível habitar um
género sem um certo grau de horror. Tenho dificuldade em

126
INTERSEÇÕES E TANGENTES

não dar uma resposta negativa a esta dúvida. Uma resposta a


este questionamento implica uma curta viagem aos primeiros
usos do conceito (ver Oliveira, 2013), nomeadamente ao traba-
lho de John Money que funda o conceito como uma alterna-
tiva à ontologia do sexo como natural, imutável e dimórfico.
De facto, desde o início, que o género tem uma relação com as
pessoas trans* e intersexo, dado que o conceito foi criado para
precisamente servir de sustentação a uma terapia comporta-
mentalista de reprogramação do género, isto é, a um trabalho
que visava que crianças intersexo ou que tivessem sofrido
algum acidente na sua genitália, se recondicionassem para
viver no outro sexo. Assim, cria-se a identidade de género, que
para Money, Hampson & Hampson (1957), se constitui como
a expressão privada do género, um aspeto fundamental da
existência e que tende a confluir para uma expressão pública,
entendida como o papel de género, que envolve dimensões
de reconhecimento social e cumprimento de expectativas
sociais de conformidade. Esta identidade de género, que
implica transferir para a esfera da psicologia o que antes era
tido como um discurso da natureza e que por isso pertencia
ao domínio da biologia, implicou uma série de implicações, a
meu ver, que passo a enunciar:

1) individualizar o género, que passa a ser descrito como


uma identidade;

2) resgatar o sexo do domínio estrito da biologia para


operar sobre ele tecnologicamente (Preciado, 2008);

3) produzir técnicas de programação de género aplicá-


veis às pessoas com um género não conforme ao sexo.

Estas implicações, conforme também analisa Anne Fausto-


Sterling (2000) decorrem também do sobre-investimento

127
GÉNEROS E SEXUALIDADES

ideológico que Money faz no dimorfismo de género. A dife-


rença sexual continuou a ser a ontologia do género, sendo
entendida de um modo transcendente aos sujeitos, que
mesmo que apresentando identidades de género que possam
ser distintas de um sexo biológico, são necessariamente regu-
ladas por um sistema dicotómico e polarizado: masculino e
feminino. E se pensarmos na diferença sexual como uma
produção do género, como faz Butler (1990), pensando o sexo
como uma representação desde logo marcada pelo género, em
que o sexo se apresenta como dicotómico porque as normas
de inteligibilidade do género assim o determinam. O que é
corroborado pelos trabalhos de Fausto-Sterling (2000), que
mostra como Money investe no modelo dimórfico do sexo,
sem nunca ter em conta que o modelo dualista implica
sempre a ideia de um sexo essencial que pre-existe o sujeito,
sem entender o modo como os sistemas de inteligibilidade
socialmente construídos do sexo (necessariamente género)
são determinados pelas dinâmicas societais. Para Fausto-
Sterling (2000), os sistemas de género estão em mudança e
como vimos, há ampla evidência disso. As mudanças tec-
nológicas, mudanças nas tecnologias de género (Lauretis,
1987), implicam também que o horizonte de possibilidade
se alargou, o que para esta autora, implica que estaremos a
sair de uma era do dimorfismo sexual para entrarmos num
modelo da variedade, da diversidade para além dos dois sexos.
Argumento aqui também a favor dessa diversidade.

Simone de Beauvoir (1975) é uma das nossas guias. Apesar de


recorrer à ideia de relações sociais de sexo, é possível afirmar
que o pensamento de Beauvoir se inscreve numa tradição a
que hoje chamamos Estudos de Género. Em O Segundo Sexo,
Beauvoir procede uma separação entre as ideias da diferença
entre os sexos, para separar as mulheres de um destino
social que é discursivamente construído como biológico.

128
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Esta clarificação permitiu-lhe também evidenciar que é no


domínio das relações sociais que se pode tratar a questão da
desvalorização das mulheres face a um referente universal
androcêntrico - o homem como peso e medida do humano.
Assim, a desnaturalização que Beauvoir propõe recorre ao
suporte de uma nova ontologia para substituir a antiga onto-
logia da diferença essencial entre os sexos: o devir mulher. A
importante lição de Beauvoir do não se nascer mulher, tor-
nar-se mulher, concretiza a ideia da permanente construção
do género. Ora pegando nessa ideia de tornar-se mulher ou
ir-se tornando mulher, não significa como afirma Butler
(1990) que quem se torne mulher o faça por sua e espontânea
vontade, mas sim por uma compulsão cultural para o fazer,
e que quem se torne mulher seja necessariamente do sexo
feminino. Estas questões remetem-nos para o plano funda-
mental do género descrito como um processo, um devir, um
ir-se tornando.

Esta concepção do género como um devir também deve


ser pensado no âmbito de uma reflexão mais geral sobre os
usos do conceito de género que implica ver nele um rizoma
(Deleuze & Guattari, 2007) em vez de um conceito, ou seja,
implica pensar o género numa multiplicidade de propostas
científicas, artísticas, culturais e políticas, ligadas entre si
de formas inesperadas, com linhas de fugas e processos. Em
vez de procurar definir qual é o género, pensamos o género
como os géneros, inúmeras possibilidades, multiplicidades e
diferentes posições sócio-políticas. Seguindo as propostas de
Gilles Deleuze e Félix Guatari (2007),

“qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado


com qualquer outro, e tem de sê-lo. É muito dife-
rente da árvore ou da raiz que fixam um ponto de
ordem. (...) Num rizoma (...) cada linha não aponta

129
GÉNEROS E SEXUALIDADES

necessariamente para um traço linguístico: elos


semióticos de qualquer natureza são conectados
com os modos de codificação muito diversos, elos
biológicos, políticos, económicos, etc.” (p. 25-26).

Mais do que definir e concretizar um género, pensemos a sua


teorização e a sua prática rizomaticamente. Igualmente é
importante concretizar como esses elos se ligam com práticas
sociais, teorias e terapêuticas biopsicossociais e a mecanis-
mos de legitimação diferenciados.

O género é/são muitas teorias da complexidade, o que implica


igualmente uma atenção aos devires e sobre devires. Deleuze
& Guattari (2007) dizem:

Como é que os movimentos de desterritorialização


e os processos de reterritorialização não seriam
relativos, perpetuamente em ligação, apanhados
uns nos outros? A orquídea desterritorializa-se ao
formar uma imagem, um decalque de vespa; mas
a vespa reterritorializa-se sobre esta imagem. A
vespa desterritorializa-se, no entanto, tornando-
-se ela própria uma peça no aparelho de reprodu-
ção da orquídea; mas reterritorializa a orquídea,
ao transportar-lhe o pólen. A vespa e a orquídea
fazem rizoma enquanto heterogéneas. Poder-se-ia
dizer que a orquídea imita a vespa de que ela repro-
duz a imagem de maneira significante (mimese,
mimetismo, fingimento, etc.). (p. 29)

O rizoma género são vespa a devir orquídea, orquídeas des-


territorializadas em vespa. E assim podemos pensar que uma
ontologia do género, relida a partir destes quadros teóricos,
pode ser uma ideia de transito, de devir, de viagem. Em vez de

130
INTERSEÇÕES E TANGENTES

querer saber quem é/o que é a vespa ou a orquídea, porque não


centrar a análise no trânsito? Na possibilidade de um ponto
de vista psíquico e psicossocial atravessarmos o arco-íris do
género, marca da diversidade humana e podermos pensar,
sentir, agir, ser afectados a partir de pontos diferentes dessa
constelação? Ou seja, a minha proposta assenta essencial-
mente na crítica à necessidade de constância do género, que é
mais conceptual do que vivencial e mostra o género como um
exercício bem mais fluido (apesar necessariamente da vigên-
cia das normas de género) do que se imagina nos modelos
mais estruturais do género. Que implica este trânsito entre
orquídeas e vespas, entre seres e figurações, um trânsito que
reflete a relação do sujeito com as normas de se tornar sujeito,
mas também com a melancolia de género e consequente fora-
clusão da impossibilidade de se ser outrx (Butler, 1997).

Na minha perspectiva, e ligando diretamente o trânsito de


género à potência e ao conatus, esse esforço de perseverar na
sua existência (Chaui, 2006), pode ser lido como um esforço
para perseverar naquilo que sentimos que somos e que é
condicionado pelas normas de inteligibilidade de género. O
processo de constituição de sujeitos, sendo constituído pela
conformidade face às normas (Butler, 1997), não tem como
implicação que haja um sexo prévio ao género. Assim não se
trata de uma suposta consonância entre sexo e género, pois
o género não tem nenhuma relação com o sexo a não ser a
de o constituir como “matéria”. Há antes um tratamento
social que encontra marcadores estéticos que presumem a
constância, estabilidade e homologia do sexo em relação ao
género. É impossível não ver nesta constância do género um
simulacro que cria a aparência de substância do sexo que é
sempre género. Assim tanto sujeitos trans* como sujeitos não
trans* apresentam processos de trânsitos de género. O que
as distingue são o recurso a diferentes tecnologias de género

131
GÉNEROS E SEXUALIDADES

(Lauretis, 1987), diferentes modos de tornarem esse género em


matéria. Não me parece haver nenhuma distinção ontológica
ou essencial entre pessoas trans* e pessoas não trans, deste
ponto de vista, de todas viajarem pelo espectro dos géneros,
e daí não recorrer ao prefixo cis46 para identificar as últimas.
As pessoas trans* recorrem a tecnologias de género variadas
consoante o modo como fazem a sua expressão de género e
mais uma vez a diversidade é muito grande: há pessoas trans*
que se identificam com um género que querem ser, há pessoas
trans* que não pretendem uma identificação normativa de
género. Os sistemas categoriais de género são sempre insu-
ficientes para transmitir a complexa e contraditória rede
de identificaçõess, desidentificações, tecnologias de género,
performances.

Assim tomo como figuração desta ideia do género a figura dx


pessoa trans*. E é através da figuração trans*, que o género
pode ser pensado a partir de um balanço que cruze simulta-
neamente a sua dimensão normativa do poder potestas com
a sua dimensão potentia, que permite a operação desse poder.
No caso das pessoas trans*, o Estado e a sociedade passam
a ter presente e a ter que efectivamente lidar com pessoas
abertamente em inconformidade com o género que lhes foi
socialmente atribuído. A sua expressão de género não se atem
nem se adequa às normas sociais, o que acarreta os terrores
de uma necropolítica trans* com a que a democracia liberal
só feita para quem não é se descarta de quem não cumpre as
normas. O trânsito do género coloca em causa um aspecto
essencial: a ilusão da imutabilidade e da constância do género.

46. Esse prefixo é usado por grupos dentro do movimento trans* com determinadas
dimensões políticas. Contudo no espaço desta teoria, a ideia de cis esconde mais do
que revela, dado que as pessoas não trans* também recorrem a tecnologias de género
e viajam no espetro dos géneros.

132
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Ao exporem-na/exporem-se, sujeitos trans* mostram ao resto


do mundo a sua própria ontologia do género num espelho. E
muitas vezes, à violência por revelarem o género em todo o
seu esplendor: artifício, tecnologia.

Retome-se Espinosa. Marilena Chaui (2006) destaca a di-


mensão profundamente crítica do individualismo na qual
Espinosa opera: mesmo a ideia de mente humana e de corpo
humano implicam relacionalidade, intensificação ou dimi-
nuição do conatus. Essa potência interna que define a sin-
gularidade individual encontra expressão na ideia de que é
o desejo (cupiditas) que podemos pensar como essência do
humano quando determinado a fazer algo, em virtude de um
afecto. Ou seja, o que Espinosa propõe é uma teoria dos afec-
tos, aquilo que nos afecta e como podemos afectar os outros e
esses afectos são os que nos permitem aumentar/diminuir a
intensidade do conatus,

Chauí (2006) diz a partir de Espinosa:

“Dizemos que um ser é livre quando, pela neces-


sidade interna de sua essência e de sua potência,
nele se identifica sua maneira de existir, de ser e
de agir. A liberdade não é, pois, escolha voluntária
nem ausência de causa (ou uma ação sem causa),
e a necessidade não é mandamento, lei ou decreto
externos que forçariam um ser a existir e agir de
maneira contrária à sua essência. Isto significa
que uma política conforme à natureza humana
só pode ser uma política que propicie o exercício
da liberdade e, dessa maneira, possuímos, desde
já, um critério seguro para avaliar os regimes polí-
ticos segundo realizem ou impeçam o exercício da
liberdade.” (p. 119).

133
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Assim, ao usar esta teoria para pensar o género estamos a


optar por uma teoria não individualista, baseada na relação
dialógica de um psiquismo em relação figura fundo com o
social, com uma significação política e que não presume
uma constância ou uma identidade. O conatus é uma força
da potência da singularidade, que é aumentado ou dimi-
nuído em razão do diálogo com o social, afectos inibitórios
ou potenciador.

Conclusão - Corpos em luta


Este trabalho é um passo inicial numa analítica do género, que
recorre ao trabalho de Butler sobre a subjectivação do género
como epistemologia do género e ao trabalho de Espinosa para
pensar a sua ontologia. A minha preocupação foi retratar o
modo como esta epistemologia requer uma ontologia baseada
na ideia de trânsito e de como a inconformidade às normas
de género é o terreno indicado para pensar conceptualmente
estes processos de subjectivação. Igualmente, tive a preocu-
pação de pensar esta proposta a partir de uma perspectiva
queer e trans*, assumidamente pós-identitária, para mostrar
como o género pode ser definido a partir de um plano grupal,
mas antes a partir de uma singularidade que é balizada pelos
limites que o social lhe impõe. Partilho com Donna Haraway
(2002), a ideia de que

“Não existe nada no facto de ser fêmea que vincule


naturalmente as mulheres. Não existe sequer o
estado de ser fêmea, uma categoria em si mesma
altamente complexa, construída em contestados
discursos cientifico-sexuais e noutras práticas
sociais. A consciência do género, raça ou classe
é uma conquista que nos é imposta pela terrí-
vel experiência histórica das realidades sociais

134
INTERSEÇÕES E TANGENTES

contraditórias do patriarcado, do colonialismo e


do capitalismo. E quem conta como ‘nós’ na minha
própria retórica?” (p. 232).

Este ‘nós’ é sempre e antes de mais, uma experiência de


aliança política e não de nada que anteceda a criação deste
coletivo, não há uma identidade essencial, há política e as
identidades são sempre e desde logo, políticas. Este ‘nós’ são
os corpos na rua na luta, o corpo da multitude e não nenhum
contrato anterior ou nenhuma identidade primordial.

Para Butler, a filosofia de Espinosa é (2015) como uma ética que

“reconhece que uma vida desejante significa desejar


a vida para si, um desejo que implica a produção
de condições políticas para a vida e que permita
alianças regeneradas que não tenham uma forma
final, nas quais o corpo e os corpos, na sua pre-
cariedade e promessa, naquilo que até poderia ser
chamado da sua ética, se incitem uns aos outros
para viver.” (p.89).

Assim este meu projeto analítico implica precisamente um


pensar de forma queer e trans* a política do género, os corpos,
os desejos na polis. Ligar a teorização contemporânea do
género ao trabalho de um polidor de lentes do século XVII
implica também recorrer a fantasmas. Estas propostas impli-
cam invocar estes passados para nos ajudarem a desbloquear
os nossos futuros presos e pendurados na crise do género,
quando as teorias, tal como a praxis, devem incitar estes
desejos de que Butler fala, expresso na ideia de perseveração
na singularidade do conatus de Espinosa e não olhar para
o género como uno, para que este ser gente de Lispector no
epígrafe possa abrir-se à multitude das gentes.

135
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Referências
• Balzer, Carsten & Hutta, Jan Simon (2012). Transrespect versus
transphobia worldwide - A Comparative Review of the Human-
rights Situation of Gender-variant/Trans People. Berlim:
Transgender Europe.
• Beauvoir, Simone de (1975). O Segundo Sexo. Lisboa: Bertrand
• Bento, Berenice (2014). Brasil, país do transfemínicidio. Artigos e
resenhas do Centro Latino-Americano em sexualidade e direitos
humanos. link: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/
Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf
• Braidotti, Rosi (2011). Nomadic theory: the portable Rosi Braidotti.
New York: Columbia University Press.
• Butler, Judith (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion
of identity. New York: Routledge.
• Butler, J. (1992). Bodies that matter: on the discursive limits of sex.
New York: Routledge.
• Butler, J. (1997). The psychic life of power: theories on subjection.
Stanford: Stanford University Press.
• Butler, J. (2005). Undoing Gender. New York: Routledge.
• Butler, J. (2015). Senses of the subject. New York: Fordham University
Press.
• Chauí, Marilena (2006). Espinosa, poder e liberdade. In Atilio Boron
(ed.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. São Paulo:
Universidade de São Paulo.
• Colling, Leandro & Pelúcio, Larissa (2015). Deslocamentos
antropofágicos ou de como devoramos Judith Butler. Periódicus, 3,
1-6.
• Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e
esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim.
• Fanon, Frantz (1967). Black skin, white masks. London: Pluto.
• Fausto-Sterling, Anne (2000). Sexing the body: gender politics and
the construction of sexuality. New York: Basic books.
• Gordon, Avery (2008). Ghostly matters: haunting and sociological
imagination. Minneapolis, MN: Minnesota University Press.
• Gramsci, Antonio (1992). Selections from the Prison’s Notebooks.
New York: International Publishers.
• Haraway, Donna (2002). O manifesto ciborgue: a ciência, a tecnologia
e o feminismo socialista nos finais do século XX. In Ana Gabriela

136
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Macedo (Ed). Género, identidade e desejo: antologia crítica do


feminismo contemporâneo. Lisboa: Cotovia.
• Haritaworn, Jin, Kuntsman, Adi & Posocco, Silvia (2014).
Introduction. In Jin Haritaworn, Adi Kuntsman & Silvia Posocco
(Eds.) Queer Necropolitics. New York: Routledge.
• Lauretis, Teresa (1987). Technologies of Gender. Bloomington,
Indiana: Indiana University Press.
• Lispector, Clarice (2012). Água Viva. Lisboa: Relógio d’Água.
• Mbembe, Achille (2003). Necropolitics. Public Culture, 15, 11-40.
• Money, John, Hampson, John G. & Hampson, Joan L. (1957).
Imprinting and the Establishment of Gender Role. Archives of
Neurology and Psychiatry, 77, 333-336.
• Muñoz, José E. (1999). Desidentifications: queers of color and the
performance of politics. Minneapolis, MN: Minnesota University
Press.
• Negri, Antonio (2013). Spinoza for our time. New York: Colombia
University Press.
• Oliveira, João M. (2013). O rizoma ‘género’: cartografia de três
genealogias. E-Cadernos do CES, 15, 3 –54.
• Oliveira, J. M. (2014a). A necropolítica e as sombras na teoria
feminista. Ex aequo, 29: 69 - 82
• Oliveira, J. M. (2014b). Hyphenations: the other lives of feminist and
queer concepts. Lambda Nordica, 2014, 38-59.
• Porchat, Patricia (2015). Um corpo para Judith Butler. Periodicus,
3, 37-51.
• Platero, Lucas (2014). Trans*sexualidades: Acompañamiento, factores
de salud y recursos educativos. Barcelona: Bellaterra.
• Preciado, B. (2011). Multidões queer: notas para uma política dos
“anormais”. Revista Estudos Feministas, 19, 11-20.
• Preciado, B. (2008). Testo Yonqui. Madrid: Espasa.
• Puar, Jasbir (2007). Terrorist Assemblages: homonationalism in queer
times. London: Duke University Press.
• Richardson, Diane (2005). Desiring Sameness? The Rise of a
Neoliberal Politics of Normalisation. Antipode, 37, 515–535.
• Riley, Denise (1988). Am I That Name?”: Feminism and the Category
of “Women” in History. London: Macmillan, 1988.
• Singer, Linda (1993). Erotic Welfare: sexual theory and politics in
the age of epidemic. New York: Routledge.

137
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Sousa Santos, B. (2014). Epistemologies of the South: justice against


epistemicide. Boulder, CO: Paradigm Publishers.
• Sousa Santos, Boaventura (2003). Between Prospero and Caliban:
Colonialism, post-colonialism and inter-identity. Luso-Brazilian
Review, 34, 9-43.
• Spivak, Gayatri C. (2012). Harlem. In An Aesthetic Education in the
Era of Globalization. Cambridge, MA: Harvard University Press. (p.
399- 428).
• Stryker, Susan (2006). (De)Subjugated Knowledges: an introduction
to Transgender studies. In Susan Stryker & Stephen Whittle (Eds.).
The transgender studies reader. New York: Routledge. (pp.1-17)
• Stüttgen, Tim (2014). In a Qu*A*re Time and Place: Post-Slavery
temporalities, Blaxploitation and Sun Ra’s Afrofuturism between
intersectionality and heterogeneity. Berlin: B_books.
• Sutherland, Juan Pablo (2009). Nación Marica: Práticas culturales y
critica activista. Santiago de Chile: Ripio Ediciones
• Wittig, Monique (1992). El pensamiento heterosexual. Barcelona:
Eguales.

138
RITA GRAVE, JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA E CONCEIÇÃO NOGUEIRA

Limbos da
normatividade
Reflexões sobre o género humano nas
experiências de cross-dressing

A força da normalização implica uma interpretação dos


corpos segundo um sistema de género binário e heteronor-
mativo. As pessoas cujos corpos são lidos das normas de
género apresentam-se como inconformes à ordem social,
podendo ser inclusivamente vistos como fora da própria
inteligibilidade do humano. Adotando uma leitura constru-
cionista, crítica e reflexiva, dos significados de agentes inte-
rativos em permanente troca e influência (Neves & Nogueira,
2004), propomos tecer considerações sobre as questões dos
géneros construídos e performativos (Butler, 1999), sobre a
interseccionalidade das categorias socialmente construídas
(Nogueira, 2013), sobre conhecimentos situados (Oliveira
& Amâncio, 2006), tendo em conta perspetivas, vivências e
experiências de cross-dressing.

Com foco na desconstrução, na desgenderização, na desiden-


tificação, acedemos à edificação da multitude, da diversidade,
GÉNEROS E SEXUALIDADES

da ambivalência e da resistência. A proposta é explorar os


limbos da normatividade no âmbito das experiências de
cross-dressing, explorar as performances de género não-nor-
mativas. Cruzando as formas de vestir, de agir, de comportar
dos dois polos genderizados, sugerem-se possibilidades de
ressignificação e recontextualização de formas e experiências.

O nosso ponto de partida localiza-se na construção social


das práticas, na multiplicidade de discursos inseridos numa
história, numa cultura, numa política, num espaço, num con-
junto de relações dinâmicas (Gergen,1994). A nossa conduta é
orientada pelas reconsiderações da totalidade das ações e pen-
samentos acerca do mundo e, por conseguinte, de nós mesmos
(Gergen & Gergen, 2011). O principal desígnio é alcançar um
conhecimento relativo, dependente do tempo, da cultura, do
económico e do social, que vai sendo construído através das
interações entre as pessoas, dos seus discursos e dos proces-
sos sociais (Neves & Nogueira, 2004). Dirigimo-nos para uma
reflexão que intenta a significados localizados e contextuali-
zados, que respeita a multiplicidade dos discursos, que acede à
divergência e à diferença (Braun & Clarke, 2013). Numa lógica
metodológica reflexiva e plural, que articula o método, a teoria
e o problema a investigar, a clarificação dos pressupostos que
orientam a produção do conhecimento acontece criticamente
(Oliveira & Amâncio, 2006). A análise é interseccional, pelo que
resiste à essencialização das categorias, atua na desconstrução
e na pluralidade (Nogueira, 2013), compreende multidimen-
sionalidades, teoriza opressões e privilégios como estatutos
fluidos e dinâmicos, permeáveis à mudança e dependentes de
localizações, contextos e culturas (Crenshaw, 1989).

“É-se o que social e culturalmente se constrói como possibi-


lidade de ser ‘homem’ ou ‘mulher’, em função de uma cons-
trução linguística que demarca, ela própria, o ‘masculino’

142
INTERSEÇÕES E TANGENTES

do ‘feminino’.” (Carneiro, 2009, p. 147, 148). A emergência do


conceito género está intimamente associada a uma ordem
pré-existente aos corpos, género como “verdade” psicológica
do sexo (Oliveira et. al., 2009), género como norma que opera
nas práticas sociais como um standard implícito de normali-
zação (Butler, 2004).

A tendência do entendimento comum enfatiza o binarismo da


categoria social sexo, mas que é e sempre foi género (Butler,
1999). É suposto que subsistam “homens” “masculinos” e
“mulheres” “femininas”. Por conseguinte, “ser pessoa” pode
implicar a aprovação e integração das distinções de género,
dos atos que se consideram normativos para cada “sexo”,
para cada cultura. No âmbito das relações de dominação, um
destes ‘sexos’ assume o poder e a dominância, enquanto que
o outro grupo internaliza a subordinação e a desvalorização
(Nogueira, 2001). Mais ainda, acontece que não há espaço
para homens que são/estão femininos nem para mulheres
que são/estão masculinas, o que implica uma ausência de
espaços para pessoas que não fazem o género “homem” nem
fazem o género “mulher”.

Com procedência nos paradoxos da “correção” de corpos


(Butler, 2004), momentos em que o género foi criado como
uma disposição pré-existente à experiência humana
(Oliveira, 2010), opressão inerente de criação de estereótipos
que mantêm a crença nas diferenças (Nogueira & Saavedra,
2007), passando pelas explorações feministas provocadoras
de mudanças nos pressupostos teóricos e metodológicos da
representação do sexo feminino e da perceção de ciência
(Saavedra & Nogueira, 2006), encontrando as intersecciona-
lidades e as multidimensionalidades das experiências vividas
pelos sujeitos marginalizados (Crenshaw, 1989), chegamos às
teorizações pós-estruturalistas, deixa-se de “ter género” e

143
GÉNEROS E SEXUALIDADES

passa-se a “fazer género” (Butler, 1999). Género como “perfor-


mativo”, sendo essa mesma performance que o faz (Nogueira,
2003), género como o guião de conduta para a existência dos
nossos corpos genderizados, a norma, o processo de regula-
ção e “naturalização”, a cópia sem original (Butler, 1999, 2004).

“O género refere-se a uma relação social, e não a uma proprie-


dade de indivíduos concretos, e essa relação que é marcada
pela assimetria no plano dos significados e define um contexto
de dominação, é socialmente construída” (Amâncio, 2003, p.
702). O género não é um atributo interno estável e constante, é
um saber da sociedade (Nogueira, 2013). Da análise de Spargo
(1999) relativa às propostas de Butler sobre os nossos “géneros
atribulados”, retiramos a sua verdade: género não é a extensão
conceptual, nem tão pouco cultural do sexo biológico e cro-
mossómico, é sobretudo uma prática discursiva estruturada
em torno da heterossexualidade, entendida como a norma das
relações humanas. Contemplamos o conceito a par das teoriza-
ções de Butler e subscrevemos quando afirmou que

gender is not exactly what one “is” nor is it precisely


what one “has.” (...) Gender is the mechanism by
which notions of masculine and feminine are pro-
duced and naturalized, but gender might very well
be the apparatus by which such terms are decons-
tructed and denaturalized. (Butler, 2004, p. 42)

Género é o processo de “naturalização” social (Butler, 1999),


de regulação e “normalização” (Butler, 2004), o género é per-
formativo, diz respeito a um conjunto de atos e gestos social-
mente construídos, pelo que a “realidade” é produzida como
uma “essência” interior, no entanto, essa “essência” é o efeito
de um discurso social de normas e regulações que ditam com-
portamentos, atitudes, gostos e desejos que, por conseguinte,

144
INTERSEÇÕES E TANGENTES

criam a ilusão de existir um núcleo interior impulsionador de


género (Butler, 1999). Esse núcleo não existe, só existe o seu
holograma, o guião de conduta para a existência dos nossos
corpos genderizados. Existe a experiência discursiva social
que (nos) regula e é orientada por uma narrativa hegemónica,
baseada nas estruturas polarizadas que pressupõe o sexo
binário e a heteronormatividade (Femenías, 2003).

Alcançamos um conceito de género como um constructo


temperado de opressão que inclui as normas mas também a
resistência face às mesmas, género como um ato intencional
e performativo, onde “performativo” implica uma construção
dramática e contingente de significado, o efeito produzido nos
corpos pelas suas estilizações, os seus gestos, os seus compor-
tamentos (Butler, 1999). Alcançamos o género humano.

E encontramo-nos no campo queer, cuja constituição corres-


ponde à opção de um modelo não identitário, relativamente
a géneros e sexualidades, recusando o binarismo institucio-
nalizado (Sedgwick, 1990). As afirmações queer denunciam a
ordem de género heterossexual, são uma estratégia de resis-
tência (Oliveira & Nogueira, 2009). Acedemos ao campo da
construção de subjetividades queer (Butler, 1993). Insistimos
na desconstrução dos dispositivos que produzem as diferen-
ças de classes, “raças”, géneros e sexualidades. Vislumbramos
um conceito, género como simultaneamente uma tecnologia
e o seu produto, género como a representação de uma relação
social, como uma construção que é tanto o resultado como o
processo da sua representação (De Lauretis, 1987).

De um ponto de vista queer, compreendendo que o poder


opera através de “identidades” sexuais e de categorias, des-
construir e recusar qualidades identitárias sexuais é a chave
para a resistência. Tal significa que não existem “critérios

145
GÉNEROS E SEXUALIDADES

para membros queer” (Clarke, et al., 2013). Queer descreve


uma diversidade de práticas críticas (Spargo, 1999). As afir-
mações queer recusam a fixidez de identidades e denunciam a
ordem de género heterossexual, são, portanto, uma estratégia
de resistência (Oliveira & Nogueira, 2009).

Embora o termo queer contenha nas suas origens concep-


tualizações insultuosas que remetiam à noção de estranheza
(Butler, 1993), a sua evolução permitiu atribuir novos signi-
ficados ao conceito. Queer passa a ser crítica das identidades
essencialistas, fixas e inflexíveis (Clarke & Peel, 2009). Queer
pode funcionar como substantivo, adjetivo ou verbo, contudo,
em todos os casos, define-se como oposição ao que é conside-
rado normativo. O conceito descreve a diversidade de práticas
e prioridades críticas (Spargo, 1999).

Aproximamo-nos de experiências da diversidade. Cross-


dressing como possibilidade de existência e ação performa-
tiva dos géneros queer.

Foi a partir do século XIX e com a emergência de formas posi-


tivistas de ciência, que a experiência cross-dressing passou a
ser compreendida como uma perturbação psicológica asso-
ciada a orientações sexuais, ou uma prática “não-normativa”.
Contudo, em períodos anteriores, e em locais específicos,
cross-dressing era somente um comportamento humano,
muitas vezes associado a cultos religiosos específicos de
determinadas comunidades (Bullough & Bullough, 1993).

Reportando à cultura nativo-americana anterior à coloniza-


ção47, várias comunidades mantinham um culto pela pessoa

47. Em 1492, Cristóvão Colombo e a sua tripulação na sua invasão das Américas quan-
do deparados com as práticas culturais das tribos nativo-americanas (incluindo as

146
INTERSEÇÕES E TANGENTES

independentemente do espectro de género como conhecido


hoje. Cross-dressing acontecia naturalmente, livre de dois
polos genderizados e exclusivos. Two Spirit, termo usado
por comunidades indígenas norte-americanas que designa
variações de género, implica uma performance de género
fluida, pelo que possuir características femininas e mas-
culinas confere atributos de “super-humano”, tratam-se
de pessoas reverenciadas e com significativa importância
(Jacobs, Thomas, & Lang, 1997). Nas referidas culturas nati-
vo-americanas é mais fácil a aceitação das “ambiguidades”
que fazem parte da vida. Assim, uma pessoa Two-Spirit
apresenta uma alternativa às diferenças entre “homem” e
“mulher”, podendo definir-se como uma pessoa “morfologi-
camente homem” que não cumpre os papéis sociais tipica-
mente “masculinos” da cultura ocidental, e tem significativa
importância, sendo que combina comportamentos, vestuá-
rio, papéis sociais (considerados) masculinos e femininos
(Willams, 1986).

O termo travestismo foi cunhado por Magnus Hirschfeld em


1910, referindo-se à prática cross-dressing como uma “varia-
ção sexual”. Havelock Ellis estudou travestismos e sugeriu
que a prática emerge de uma admiração pelo “sexo oposto”
(Hotchkiss, 2012). Desde então, vários termos têm surgido
para apelidar pessoas que não desempenham as normas de
género binário, estando inerente a conotação clínica: disforia
de género, fetichismo, crossing, representação masculina ou
feminina, entre outros.

tradições das pessoas Two-Spirit), por serem incompatíveis com a bíblia cristã, mani-
festaram uma atitude condenatória, sacrificaram muitas vidas e procuraram eliminar
tais tradições com opressão e violência (Bullough & Bullough, 1993). A tradição Two-
-Spirit permanece até aos dias de hoje, contudo com reduzida saliência.

147
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Atualmente a leitura clínica tende a patologizar o comporta-


mento. O mais recente manual de perturbações mentais apre-
senta um capítulo para os transtornos parafílicos, estando
presentes as características de diagnóstico para a “pertur-
bação travesti” (APA, 2013). Tal perturbação implica que um
homem envergue roupas e acessórios de mulher.

Nas prévias descrições patológicas está espelhada a norma


regulatória, guiada pelo poder heteronormativo que consti-
tui o género (Butler, 2004). O corpo (e o que é feito dele) está
dependente da sua construção enquanto corpo genderizado.
Assim, o corpo foi sendo esculpido socialmente, conceden-
do-lhe a sua superfície sexuada que emergiu como o sinal
da “identidade” e do “desejo” de uma norma de corpos
heterossexuais (Butler, 1999). Fazer um género é um pro-
cesso complexo de naturalização, procedimento que requer
diferenciação dos prazeres do corpo e das suas “partes”
que, por sua vez, se constituem com base num protótipo
de género. Espera-se que os prazeres do corpo residam e
emanem do pénis, vagina e dos seios, contudo, tais descri-
ções correspondem a um corpo que foi outrora construído
ou naturalizado como um género específico, tendo em
conta a matriz de normas de género (Butler, 1999). Outras
possibilidades de ação passam a ser não normativas, ten-
dencialmente “híper-sexualizadas” e ainda patologizadas,
como é o caso das experiências de cross-dressing masculino
para feminino, que usualmente envolvem a erotização das
formas genderizadas de vestuário (Allen, 2014). Se a norma
binária de “género” (homem/mulher) foi sendo constituída
e estabelecida tendo em conta a norma binária de “orien-
tações sexuais” (hétero/homossexual) (Butler, 1999), então
os fenómenos como cross-dressing serão, como percebemos
pela análise dos manuais de diagnóstico, comummente
indissociáveis de questões de sexo (Allen, 2014).

148
INTERSEÇÕES E TANGENTES

A matriz cultural através da qual tem sido desenvolvida a


heterossexualização da “identidade de género” contribuiu
para que se tornem ininteligíveis certas formas de existên-
cia pela ambiguidade de possibilidade de géneros, isto é, o
género binário, como é conhecido, está de tal forma assolado
de poder regulatório, pelo que as pessoas cujos géneros não se
fazem conforme as normas tornam-se impossibilidades lógi-
cas (Butler, 1999), tornam-se “patologias”, “estranhos proces-
sos desenvolvimentais”, “humanos com falhas”, “exceções à
regra”. Rejeitamos tais assunções e é assim que respondemos
a Burt (2012) quando pergunta “What’s wrong, exactly, with
being a man in a dress? (...) Why are other people shocked,
or distressed, when they see femininity poorly, or inexpertly,
performed?” (p. 206).

A epistemologia queer convida a embarcar na jornada das


investigações expandidas sobre interseccionalidades e anti-
normalização (Eng, Halberstam & Muñoz, 2005). Queer como
um estilo de vida das múltiplas existências, de múltiplas
“pertenças”, inclui “identidades” sexuais, de género, sociais e
culturais que se localizam fora do sistema heteronormativo,
regulado pelas convenções da família, da reprodução, de um
sistema capitalista (Halberstam, 2005).

Rejeitamos patologias, articulamos cross-dressing e a forma


como o conceito “despolariza os géneros”. Para Butler (1999)
a prática de cross-dressing ilustra a forma como a “identi-
dade de género” constitui a produção da “realidade” que é
em simultâneo o seu efeito, ou seja, ações de imitação sem
procedência.

Vários autores e autoras referem-se a cross-dressers como


pessoas que não seguem as normas binárias de género
no que concerne ao vestuário e acessórios (Bullough &

149
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Bullough, 1993). Assim, incorporadas no termo transgende-


rismo que abarca todas as “identidades” ou expressões de
género fora das normas sociais convencionais, surgem as
conceptualizações no âmbito do cross-dressing, assim como
o travestismo, o/a drag, entre outros e outras (Oliveira, 2010).
“Cross-dressing, therefore, represents a symbolic incursion
into territory that crosses gender boundaries.” (Bullough &
Bullough, 1993, p. viii).

Numa metodologia exploratória inicial, procurámos com-


preender a experiência de certos eventos e perceber de que
modo as pessoas dão significado aos seus mundos (Willig,
2010). Examinámos, por via de uma análise temática explo-
ratória, a entrevista de uma pessoa que descreve a sua expe-
riência de cross-dressing. Procurámos aceder a dados que são
palavras, num campo crítico e experiencial (Braun & Clarke,
2013). Apreender a qualidade e a textura da experiência, deter
significados (Willig, 2010). Capturar a análise de discurso no
sentido de aceder à melhor compreensão possível de vidas
sociais em interação (Potter & Wetherell, 1987), pois:

o discurso nada mais é do que a reverberação de


uma verdade em vias de nascer diante dos seus
próprios olhos; e, quando tudo pode, por fim,
tomar a forma do discurso, quando tudo pode
ser dito e o discurso pode dizer-se a propósito de
tudo, é porque todas as coisas, tendo manifestado
e trocado o seu sentido, podem regressar à inte-
rioridade silenciosa da consciência de si. (Foucault,
1997, p. 37)

Acedemos aos limbos da normatividade através da experiên-


cia de cross-dressing, orlas onde se abrem caminhos para
a fluidez de “identidades” que sugerem possibilidades de

150
INTERSEÇÕES E TANGENTES

ressignificação e recontextualização que, por sua vez, vêm


colocar privações à cultura hegemónica que cultiva as “iden-
tidades de género” essencialistas (Butler, 1999).

Desgenderizações e alterações da ordem social heteronorma-


tiva (Spargo, 1999) são evidentes no discurso em análise. O
participante propõe alterações à ordem social que se organiza
em dois “géneros” e dois “sexos” conectados, e se organiza
segundo preferências heterossexuais. O entrevistado sente-se
“(…) masculino, nunca tive dúvidas (…)” (E1), e desafia a mascu-
linidade estereotipada, pelo que tanto se apresenta com uma
aparência “sóbria, um estilo absolutamente banal: camisas,
polos ou t-shirts (...)” (E1), como se apresenta com uma apa-
rência mais “(…) extravagante (…) Muitos laggings, lentejou-
las, hum… tops caicai feitos com gaffa tape(…) maquilhagem,
saltos de 12cm de altura (…)” (E1) Confirma-se que “there is no
gender identity behind the expressions of gender; that iden-
tity is performatively constituted by the very ‘expressions’
that are said to be its results.” (Butler, 1999, p. 33)

Também foi clara a resistência face à normalização (Butler,


1999). O participante informa-nos que mesmo sentindo o
magnetismo da norma, mesmo sentindo as reações adversas,
mesmo sentindo que para muitos e para muitas o seu com-
portamento parece ser subversivo, parece ser perturbador, o
participante desafiou a regra, resiste à norma, ou seja, “(…)
sempre ignorei isso tudo (…) haviam reações adversas. Não
necessariamente de um determinado grupo, ou de um tipo
ou estrato de pessoas, não… de qualquer género, de qualquer
background cultural, aparece de tudo, positiva e negati-
vamente.” (E1) São estas as aspirações queer que procuram
aceder à resistência face à normatividade (Clarke & Peel, 2009).
Somos fusão de possibilidades (Penedo, 2008). Percebemos
que “possuir uma identidade corresponde a um fechamento

151
GÉNEROS E SEXUALIDADES

de possibilidades, à estabilização e enceramento provisórios


do Eu em torno de uns certos predicados que excluem a atua-
lização de outros.” (Brandão, 2009, p.93)

Num horizonte de possibilidades queer (Spargo, 1999), com-


preendemos que o entrevistado é fiel à recusa de identidades,
de categorizações, de ordens institucionalizadas e “gosto que
depois não me consigam categorizar assim: ‘é um travesti’ ‘é
um drag queen’ ‘é um não sei o quê’ (…) Não sou nenhuma
destas coisas porque normalmente isto, cada uma destas
coisas envolve um conjunto de outros fatores que depois eu
não respeito.” (E1) O seu discurso espelha também a perfor-
matividade inerente ao género (Butler, 2004), o participante
cria um personagem que é o próprio e ao mesmo tempo não
é, um personagem que faz o género que quer: “No carnaval
eu não me mascaro, eu tiro as máscaras, e revelo um lado
em mim que não revelo naturalmente no dia-a-dia (...) tiro
a máscara mas no fundo crio um personagem que sou eu
mas que não é... que não é... que sou eu! Mas não deixa de ser
um personagem.” (E1). Compreendemos que o entrevistado
explora as estratégias das multitudes queer da “desidentifi-
cação”, as dos desvios das tecnologias do corpo. A recusa da
identidade natural (homem/mulher), a rejeição das definições
pelas práticas (heterossexual/homossexual). Fundamenta-se
na multiplicidade de corpos que se levantam contra os regi-
mes que constroem os “normais” e os “anormais” (Preciado,
2011), são os corpos da resistência.

Destacamos a fluidez de possibilidades e de “identidades”


(Butler, 1999), o entrevistado mostra que o que ele é e faz não
pode ser estanque, não pode ser fixo, não pode ser imutável.
Mostra que não é necessário manter a perspetiva essencialista
sobre os géneros, as orientações, as pessoas. Existe a possibili-
dade de fluir, de experienciar um horizonte de possibilidades

152
INTERSEÇÕES E TANGENTES

de existência, “é puxar mais por algo que já faz parte de mim


e que se vê em mim no dia-a-dia, mas que... pronto, posso
revelar mais naquele momento. E tendo essa possibilidade
gosto muito.” (E1) Com flexibilidade, “Gosto de usar unhas
pintadas mas não posso por questões de trabalho. Não sinto
nada em relação a isso.” (E1) O entrevistado acentua o enten-
dimento queer dos géneros e das sexualidades que materia-
liza e harmoniza o surgimento das fragilidades do modelo
binarista. (Des)significa-se, (des)territorializa-se, alcança-se
a ambivalência de possibilidades. Tenta-se subverter o sis-
tema dominante da representação sexual, o ‘sexo’ perde a
sua mitológica condição essencialista (Oliveira, el al., 2009). É
possível “ser”, num espaço de “happy limbo of a non-identity”
(Foucault, 1980, p. xiii).

Acedemos à transversalidade do conceito heteronormati-


vidade e à sua conscientização: a consciência da existência
da norma “hétero”, do binarismo institucionalizado que
comanda vidas e corpos: “Também já frequentei (...) ambien-
tes completamente heteronormativos, em que tens um bar
com meninas de biquíni que só servem homens e um bar de
homens de sunga que só servem raparigas.” (E1). Percebemos,
ainda, a heteronormatividade como obstrução, como impe-
dimento, como impossibilidade de um ser, estar e fazer mais
genuíno: “Não uso as coisas muito extravagantes, geralmente,
no dia-a-dia, especialmente em situações profissionais.” (E1)
Pois as operações sociais genderizadas no (nosso) sistema de
normas e de performances de género concretizam a conso-
nância e ressignificam as inconformidades. Ressignificam-se
as performances subversivas de género como é o caso das
afirmações queer (Oliveira & Nogueira, 2009).

Alcançamos experimentações no campo queer, sem nomes,


sem categorias, sem “identidades”, “(…) como momento de

153
GÉNEROS E SEXUALIDADES

escape do quotidiano e ao mesmo tempo vai buscar um


momento de performance.” (E1) E percebemos que segurança,
naturalidade e confiança ajudam na relação com o mundo das
normas: “A imagem que transmito é a de segurança absorta.
Estou a ir, estou a fazer, isto é assim. Não estou a entrar em
conflito com ninguém, mas também não me apago, não tento
criar uma imagem de fraquinho, (...) não me escondo (...) é
assim, e por isso também acho que as pessoas que se sentem
desconfortáveis com a maneira de eu ser, daquilo que eu
estou a fazer, hum... Também percebem isso, percebem que
o faço naturalmente, falam para o lado, mas também não se
sentem insultadas e invadidas, acho que é por aí...” (E1) Assim,
encontramo-nos nos limbos da normatividade, de possibili-
dades de existência, de libertações do sistema de normas, da
organização social heteronormativa. Cross-dressing como
mais uma possibilidade de fazer o género humano.

Referências
• Allen, S. (2014). Whither the transvestite? Theorising male-to-female
transvestism in feminist and queer theory. Feminist Theory, 15 (1)
51-72. doi: 10.1177/1464700113515171
• Amâncio, L. (2003). O género no discurso das ciências sociais. Análise
Social, XXXVIII (168), 687-714
• American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical
manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: Author
• Braun, V., & Clarke, V. (2013). Successful qualitative research:
A practical guide for beginners. Los Angeles|London|New
Delhi|Singapore|Washington, DC: Sage Publications
• Brandão, A. M. (2009). Queer, mas não muito: género, sexualidade e
identidade nas narrativas de vida de mulheres. ex aequo, 20, 81-96
• Bullough, V. L., Bullough, B. (1993). Cross Dressing, Sex and Gender.
Pennsylvania: University of Pennsylvania Press
• Burt, S. (2012). My life as a girl. VQR, 88 (4) 203-211
• Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”.
New York: Routledge

154
INTERSEÇÕES E TANGENTES

• Butler, J. (1999). Gender Trouble: Feminism and the subversion of


identity. New York: Routledge
• Butler, J. (2004). Undoing Gender. New York: Routledge
• Carneiro, N. S. (2009). “Homossexualidades” Uma Psicologia entre
Ser Pertencer e Participar. Porto: Livpsic
• Clarke, V. & Peel, E. (2009). From here to queer? Pitfalls and
possibilities. ex aequo, 20, 41-53
• Clarke, V., Ellis, S., Peel, E., & Riggs, D. W. (2013). Lesbian Gay
Bisexual Trans & Queer Psychology: An Introduction. New York:
Cambridge University Press
• Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race
and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine,
feminist theory, and antirracist politics. University of Chicago Legal
Forum, 139-167
• De Lauretis, T. (1987). Technologies of gender: Essays on theory, film
and fiction. Bloomington: Indiana University Press
• Eng, D. L., Halberstam, J., & Muñoz, E. (2005). What´s queer about
queer studies now? Social Text, 23 (3,4), 1-17
• Femenías, M. L. (2003). Judith Butler: Introducción a su lectura.
Buenos Aires: Catálogos.
• Foucault, M. (1980). “Introduction” to Herculine Barbin, New York:
Pantheon, vii – xvii
• Foucault, M. (1997). A ordem do Discurso. Lisboa: Relógio D’Água
Editores
• Gergen, K. J. (1994). Exploring the postmodern. Perfils or Potentials?
American Psychologist, 49 (5), 412-416
• Gergen, K. J., & Gergen, M. (2011). Reflexiones sobre la construcción
social. Madrid: Espasa Libros S. L. U.
• Halberstam, J. (2005). In a Queer Time and Space – Transgender
Bodies, Subcultural Lives. New York: New York University Press
• Hotchkiss, V. R. (2012). Clothes Make the Man: Female Cross Dressing
in Medieval Europe. New York: Routledge
• Jacobs, S. E., Thomas, W., & Lang, S. (1997). Two-spirit People: Native
American Gender Identity, Sexuality, and Spirituality. University of
Illinois Press
• Neves, S., & Nogueira, C. (2004). Metodologias Feministas na
Psicologia Social Crítica: A Ciência ao Serviço da Mudança Social. ex
aequo, 11, 123-138
• Nogueira, C. (2001). Um novo olhar sobre as relações sociais de

155
GÉNEROS E SEXUALIDADES

género. Feminismo e perspetivas críticas na psicologia social. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenlian
• Nogueira, C. (2003, outubro). “Ter” ou “fazer” o género: O dilema das
opções epistemológicas em psicologia social. Comunicação apresentada
no XII Encontro Nacional da ABRAPSO. Estratégias de intervenção – a
Psicologia Social no contemporâneo, Porto Alegre, Brasil
• Nogueira, C. (2013). A teoria da Interseccionalidade nos estudos
de género e sexualidades: condições de produção de “novas
responsabilidades” no projeto de uma psicologia feminista crítica.
In A. V. Zanella, A. L. Brizola, & M. Gesser (Eds.) Práticas sociais,
políticas e direitos humanos (pp. 227-248). Abrapso
• Nogueira, C., & Saavedra, L. (2007). Estereótipos de género: conhecer
para os transformar. Cadernos SACAUSEF, 3, 10-30
• Oliveira, J. M., & Amâncio, L. (2006). Teorias feministas e
representações sociais: desafios dos conhecimentos situados par a
psicologia social. Estudos Feministas, 14(3) 597 – 615
• Oliveira, J. M., & Nogueira, C. (2009) Introdução: um lugar feminista
queer e o prazer da confusão de fronteiras. ex aequo, 20, 9-12
• Oliveira, J. M. (2010). Orientação Sexual e Identidade de Género na
psicologia: notas para uma psicologia lésbica, gay, bissexual, trans e
queer. In C. Nogueira & J. M. Oliveira (Eds.) Estudo sobre a discriminação
em função da orientação sexual e da identidade de género (pp. 19-44).
Lisboa: Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
• Penedo, S. L. (2008). El Labirinto Queer: La Identidade n Tiempos de
Neoliberalismo. Madrid: Egales Editorial
• Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and Social Psychology:
Beyond attitudes and behaviour. London: Sage
• Preciado. B. (2011). Multidões queer: notas para uma política dos
“anormais”. Estudos Feministas, 19 (1), 11-20
• Saavedra, L., & Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na
psicologia: para a construção de memórias futuras. Memorandum,
11, 113-127
• Sedgwick, E. (1990). Epistemologies of the Closet. Berkeley:
University of California Press
• Spargo, T. (1999). Foucault y la teoria queer. Barcelona: Gedisa
Editorial
• Willams, W. L. (1986). The Spirit and the Flesh: Sexual Diversity in
American Indian Culture. Boston: Beacon Press
• Willig, C. (2010). Introducing Qualitative Research in Psychology.
New Delhi: Tata McGraw-Hill

156
GEORGIA GRUBE MARCINIK E AMANA ROCHA MATTOS

Branquitude e
racialização do
feminismo
Um debate sobre privilégios48

Até o momento em que as brancas forem capazes de confrontar


seu medo e ódio das mulheres negras (e vice-versa), até conse-
guirmos reconhecer a história negativa que molda e informa
nossas interações contemporâneas, não haverá diálogo franco
e significativo entre os dois grupos.
(bell hooks, “De mãos dadas com minha irmã:
Solidariedade feminista”)

Neste trabalho, assumimos a necessidade de pensar a bran-


quitude constitutiva da teoria feminista, presente nas cons-
truções sobre o ser mulher – visto que tal condição produz
efeitos e divergências dentro de uma estrutura racializada do
gênero dentro do movimento feminista e suas ramificações.

48. Agradecemos às pesquisadoras integrantes do DEGENERA – Núcleo de Pesquisa e


Desconstrução de Gêneros pelas acuradas discussões e reflexões que vêm sendo feitas
coletivamente no Núcleo e que em muito contribuíram para o desenvolvimento das
ideias abordadas neste texto. Em especial, agradecemos à professora e pesquisadora
Giovana Xavier, pelas inúmeras trocas, sugestões e críticas feitas ao longo da produção
desse texto.
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Enquanto autoras brasileiras brancas e acadêmicas, produzi-


mos este texto em diálogo com autoras do feminismo negro,
que têm indicado discussões que o feminismo branco49 não
vem realizando, e propomos uma reflexão sobre os atravessa-
mentos raciais que se fazem presentes nesse campo de debates.

Ao analisarmos o movimento feminista numa perspectiva


histórica, verificamos que sua contribuição – através de lutas
políticas e práticas de resistência – foi (e continua sendo)
imprescindível na conquista, garantia e legitimação de direi-
tos para as mulheres. Entretanto, podemos afirmar que a
historicidade desse movimento se consolidou através de um
discurso marcado por uma visão eurocêntrica e universali-
zante sobre as mulheres, centrado em mulheres brancas, de
classes médias e cisgêneras50.

O feminismo localizado como acadêmico, ou clássico, come-


çou a ser problematizado na década de 1960 por mulheres
negras estadunidenses51. Segundo Carneiro (2003, p. 118), as
diferenças e desigualdades presentes no universo feminino
não são reconhecidas por este movimento hegemônico, o
que consequentemente faz com que mulheres vítimas de
outras formas de opressão – não considerando apenas o
sexismo – continuem sendo silenciadas e invisibilizadas
neste debate. Assim, refletindo sobre o contexto brasileiro,

49. Utilizaremos a denominação “feminismo branco” – expressão empregada por


feministas negras que identifica um modo de mulheres se organizarem dentro do mo-
vimento e que promove uma invisibilidade conferida às questões de raça dentro do
movimento e, consequentemente, do racismo dentro do feminismo.
50. O termo “cisgênero” designa pessoas que se identificam, ao longo das suas vidas,
com o sexo/gênero que lhes foi atribuído no nascimento.
51. Como diversas estudiosas identificam, devido aos processos de escravização e do-
minação imperialista modernos, as mulheres negras não foram pensadas e construí-
das no imaginário social como “mulheres”, como o foram as mulheres brancas. (hooks,
1984, Carneiro, 2003, Haraway, 2004).

160
INTERSEÇÕES E TANGENTES

a autora afirma que há uma “insuficiência teórica e prática


(...) para integrar as diferentes expressões do feminino cons-
truídos em sociedades multirraciais e pluriculturais”. Essas
problematizações “(...), vêm exigindo a reelaboração do dis-
curso e [das] práticas políticas do feminismo. E o elemento
determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente
movimento de mulheres negras sobre o ideário e a prática
política feminista no Brasil”.

Neste sentido, propomos uma reflexão – disparada pelos


pressupostos do pensamento de feministas negras e do
feminismo interseccional – sobre a importância de discu-
tirmos a branquitude presente no feminismo, que acaba por
reproduzir e reforçar hegemonias e relações de saber-poder
intragênero. Para tal, partimos de questionamentos trazidos
por feministas negras sobre os tensionamentos presentes
no movimento feminista quando outros fatores que trans-
cendem a luta contra o sexismo entram em discussão ou em
prática. Entendemos que há relações de poder intragênero
no feminismo que são produzidas hierarquicamente a partir
das intersecções raciais, e que se atualizam em conceitos e
práticas desenvolvidos nesse campo de debate intelectual e
intervenção social.

A branquitude da categoria
“mulher”: tensionando discursos
no movimento feminista
A diversificação das concepções e práticas políticas
que a ótica das mulheres dos grupos subalterniza-
dos introduzem no feminismo é resultado de um
processo dialético que, se, de um lado, promove
a afirmação das mulheres em geral como novos

161
GÉNEROS E SEXUALIDADES

sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento


da diversidade e desigualdades existentes entre
essas mesmas mulheres. (Sueli Carneiro, “Mulheres
em Movimento”)

Com o pensamento de intelectuais negras e o constante


exercício de visibilização do discurso marginalizado destas
mulheres, o feminismo negro vem investigando como mar-
cadores sociais atravessam as diversas possibilidades de ser
e agir socialmente. Essas produções de saberes e práticas de
resistência são um ponto crucial para entendermos e ressig-
nificarmos o papel do feminismo nas diversas questões que
envolvem os processos de subjetivação das mulheres.

Podemos afirmar que muito raramente as feministas brancas


interseccionaram analiticamente raça, sexo/gênero e classe
em suas teorias e práticas. Frequentemente há o reconhe-
cimento dessas especificidades por parte das mesmas, mas
não há um espaço horizontal para tal diálogo dentro de suas
produções e agendas, e o movimento crítico ocorre de forma
diferente quando entram em pauta as questões raciais. É
preciso pensar a não desconstrução da universalização do
ser mulher para feministas brancas, que persiste até os dias
atuais (Haraway, 2004).

Segundo Brah (2006, p. 341), não podemos analisar isolada-


mente os problemas que afetam as mulheres, muito menos
universalizá-los: “Dentro dessas estruturas de relações sociais
não existimos simplesmente como mulheres, mas como
categorias diferenciadas”, isto é, os discursos de feminilida-
des assumem significados específicos a partir das diferentes
trajetórias que atravessam não apenas as questões de gênero,
mas de raça, classe, sexualidade, geração, entre outros.

162
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Para tanto, a abordagem interseccional considera a diversi-


dade e as diferenças organizadas pelos diversos marcadores
sociais para compreender criticamente a produção de desi-
gualdades sociais e provocar novas formas de pensar o lugar
das diferentes possibilidades de ser sujeito, inclusive acade-
micamente. Constitui-se assim um contexto mais abrangente
que amplia a visibilidade de identidades e experiências de
sujeitos na cena pública; experiências e identidades sociais
que se articulam através do complexo cruzamento de diversos
marcadores sociais da diferença (Brah, 2006; Crenshaw, 1994).

Crenshaw (1994) nos convoca a pensar, pelo conceito de


interseccionalidade, a desconstrução de uma perspectiva
universalizante da(s) mulher(es) e de estereótipos que são
produzidos por concepções dominantes, propondo uma
agenda não essencialista que possa mediar as constantes
tensões entre as afirmações sobre as múltiplas identidades
e a contínua necessidade em se fazer políticas grupais. Brah
(2006) propõe compreender a racialização do gênero através
da interseccionalidade das diferenças:

Discussões sobre o feminismo e o racismo muitas


vezes se centram na opressão das mulheres negras
e não exploram como o gênero tanto das mulheres
negras como das brancas é construído através da
classe e do racismo. Isso significa que a “posição
privilegiada” das mulheres brancas em discursos
racializados (mesmo quando elas compartilham
uma posição de classe com mulheres negras) deixa
de ser adequadamente teorizada, e os processos de
dominação permanecem invisíveis. (Brah, 2006, p. 351)

Compreender o impacto das diversas discriminações e


exclusões sociais que as questões étnico-raciais produzem

163
GÉNEROS E SEXUALIDADES

é insuficiente. Por meio de novos modos de constatação


sobre a pluralidade de subjetivações da mulher, os feminis-
mos negro e branco precisam ser “tratados como práticas
discursivas não essencialistas e historicamente contingen-
tes” (Brah, 2006, p. 358), podendo trabalhar em conjunto
mediante articulações políticas e práticas feministas antir-
racistas, numa análise conceitual das questões de diferença
que servem, de maneira pontual, para determinadas lutas
e pautas.

Para que isso aconteça, faz-se necessário localizar a bran-


quitude52 do movimento feminista, suas repercussões e
construções subjetivas. Partindo de uma perspectiva histó-
rica, percebemos a complexidade em (d)enunciar a questão
de ser “branca ou branco” nas diversas esferas, sejam elas
sociais, políticas, ideológicas, acadêmicas, culturais, e assim
por diante. Tal complexidade pode ser entendida a partir da
ideia de que pessoas brancas têm de não se reconhecerem
ocupando uma posição privilegiada racialmente, o que con-
sequentemente (re)produz formas de opressão que se con-
solidam pela denúncia de privilégios de outros grupos. Em
grande parte, tal problematização é estruturada por femi-
nistas negras, devido às opressões por elas vivenciadas, em

52. “A partir da década de 1990, os estudos sobre raça e racismo nos Estados Unidos
começam a mudar seu enfoque, e novos olhares sobre o tema começaram a surgir.
O movimento de mudança nesses estudos deu-se quando os olhares acadêmicos das
ciências sociais e humanas se deslocaram dos “outros” racializados para o centro so-
bre o qual foi construída a noção de raça, ou seja, para os brancos. Esses novos en-
foques foram chamados de estudos críticos sobre a branquitude (critical whiteness
studies). Apesar de os Estados Unidos serem pioneiros nos estudos sobre branquitu-
de, encontramos produções acadêmicas sobre essa temática na Inglaterra, na África
do Sul, na Austrália e no Brasil” (Schucman, 2014, p. 45). No Brasil, os estudos sobre
branqueamento e branquitude no campo da psicologia emergem a partir da década
de 1990, através de Jurandir Freire Costa, Iray Carone, Maria Aparecida Bento e Edith
Pizza (Santos, Schucman, & Martins, 2012).

164
INTERSEÇÕES E TANGENTES

que apontam a dificuldade de feministas brancas em refletir


sobre estruturas de opressão tão profundas e invisibilizadas
como o racismo.

Neste sentido, é necessário pensarmos o sujeito branco –


neste caso, as feministas brancas – como pertencente a um
lugar simbólico que não é estabelecido por questões genéticas,
mas por posições e lugares sociais que os sujeitos ocupam em
função de seus fenótipos raciais. Racializar a pessoa branca,
ou seja, considerar a branquitude como um marcador social
do sujeito, que foi ao longo do tempo se consolidando e se
constituindo normativamente através da interlocução de
privilégios históricos e políticos, é imprescindível para que
se entenda a posição sistemática desses sujeitos “no que diz
respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados
inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se
mantêm e são preservados na contemporaneidade”, através
de discursos como o da meritocracia, por exemplo. Portanto,
para se entender a branquitude, é importante entendermos
“de que formas se constroem as estruturas de poder concre-
tas em que as desigualdades raciais se ancoram” (Schucman,
2014, p. 56).

A questão aqui exposta não diz respeito apenas a sentimentos


preconceituosos que porventura feministas brancas possam
experienciar, mas a um movimento que mantém as mulheres
brancas ocupando melhores lugares (inclusive no feminismo)
em função de seus privilégios raciais, mesmo que não os
reconheçam. Para isso, é necessário compreender o que faz
com que os dispositivos de proteção da branquitude se man-
tenham e legitimem práticas opressoras em relação a outras
mulheres, como as feministas negras. A branquitude opera
nas relações intragênero como potencial força de poder.

165
GÉNEROS E SEXUALIDADES

A partir das observações expostas, exploraremos essas ideias


trazendo alguns exemplos em que o racismo é (re)produzido
em função de uma falta de consciência e não identificação
do local de privilégio racial promovido pela branquitude. Em
seguida, discutimos os efeitos da invisibilização das intersec-
ções gênero e branquitude no feminismo branco, refletindo
sobre o lugar das mulheres brancas na luta antirracista.

Para não “dividir o movimento”?


A invisibilização das pautas
raciais no feminismo
A última delas, você não sabe. Elas queriam que
o ônibus tivesse alguns pontos no condomínio, ao
invés de largar todas elas na parada única. Imagina
se os patrões iam querer aquele navio negreiro
circulando pelas alamedas arborizadas? Tenha
dó! Deixa como está, é bom para elas se exercita-
rem um pouco. Empregada doméstica moderna é
sedentária, tem muito eletrodoméstico à disposição.
(Cidinha da Silva, “Ônibus Especial”)

É frequente escutarmos de mulheres negras que o movimento


feminista (seja acadêmico, seja do ativismo) não as acolhe, ou
mesmo, que é opressor e racista, ainda que de maneira velada.
Ao pautarem essas questões nos meios majoritariamente bran-
cos do feminismo, mulheres negras e indígenas53 são aponta-
das como aquelas que “dividem a causa comum das mulheres”,

53. As minorias raciais variam nas diferentes partes do mundo. No Brasil, em função
do processo colonizador promovido por Portugal, as raças negra e indígena consti-
tuem os principais grupos raciais que vêm sofrendo racismo, extermínio, marginali-
zação e invisibilização em diferentes níveis, desde o século XVI.

166
INTERSEÇÕES E TANGENTES

criando tensões que atrasariam a luta coletiva por melhores


condições para “todas as mulheres”. O lugar racializado de
mulher, que porta pautas “específicas”, é então designado às
mulheres negras e indígenas, em oposição ao conjunto univer-
salizado de mulheres, que é pensado de maneira a invisibilizar
a raça branca como um marcador social digno de análise.

Na literatura do feminismo negro há inúmeros registros de


situações em que mulheres negras identificam racismo nas
relações com pessoas brancas e, ao explicitarem essas opres-
sões, se veem questionadas sobre a realidade e legitimidade
dessas experiências. O discurso de Sojourner Truth proferido
nos Estados Unidos em 1851, em que ela se pergunta “e eu,
não sou uma mulher?”, é recorrentemente citado para exem-
plificar de que maneira mulheres negras precisam estar o
tempo todo afirmando sua mulheridade em uma sociedade
que lhes nega as características tidas como definidoras do
feminino (delicadeza, sensibilidade, fragilidade, passividade,
etc.). Mas basta estarmos um pouco mais atentas aos debates
teóricos, acadêmicos e dos movimentos ativistas contempo-
râneos, para perceber a repetição exaustiva dessas situações
em espaços considerados inclusivos e supostamente seguros
para mulheres discutirem e conversarem sobre questões de
gênero.

Num de seus diversos exemplos sobre essas situações, bell


hooks (1984) narra uma ocasião em que se matriculou em
uma disciplina de pós-graduação sobre teoria feminista,
sendo a única estudante negra da turma. Ao questionar o fato
de que a bibliografia da disciplina não incluía autoras negras,
indo americanas, hispânicas ou asiáticas, as mulheres bran-
cas presentes trataram-na com raiva e hostilidade, como se
ela estivesse “destruindo” (palavra usada por algumas delas)
a turma e cada uma delas com suas críticas. hooks discute

167
GÉNEROS E SEXUALIDADES

o efeito retórico dessa acusação, que reforça a ideia de que


mulheres negras são atrevidas, agressivas e causadoras de
problemas, estereótipos que geram hierarquizações no debate
feminista e, ao serem acionados por mulheres brancas, criam
para estas os lugares de “vítimas” das falas de mulheres negras
que apontam opressões e práticas racistas invisibilizadas.

Giovana Xavier, por sua vez, descreve em seu blog54 inú-


meras situações em que se vê como mãe, ativista e pesqui-
sadora entre mulheres brancas, tendo que se fazer ouvir e
representar enquanto feminista negra em espaços nos quais
pairam desconfianças sobre seus questionamentos quanto ao
racismo das práticas mais naturalizadas. Questionar a esco-
lha da imagem de arte naïf pelas mães brancas para ser a capa
do anuário escolar da turma de seu filho pequeno, em que
crianças negras, ao contrário das brancas, são retratadas sem
olhos; ou indagar sobre a ausência de pesquisadoras negras
em mesas que tematizam “gênero e raça” na abolição da
escravatura, em eventos de prestígio na academia brasileira
são práticas experienciadas pela pesquisadora que vive como
“negra 24h/dia” numa sociedade racista que não admite sê-lo,
e que causam incômodo em diferentes grupos de mulheres
brancas que são confrontadas com o silencioso pacto narcí-
sico (Bento, 2002) que lhes assegura privilégios raciais.

Como feministas, sabemos que a percepção das estruturas de


opressão e da concretude de suas lógicas cotidianas é mais
evidente justamente para aqueles que encontram-se em
posições marginais. Não ser beneficiado/a por determinada
opressão faz com que os efeitos danosos dessa lógica sejam
mais visíveis. Tal marginalidade, inclusive, é condição para

54. Preta ‘Dotora’ na Primeira Pessoa. Disponível em: http://pretadotora.blogspot.


com.br/

168
INTERSEÇÕES E TANGENTES

o que Haraway (1995) define como objetividade feminista.


Assim, é inquietante que feministas brancas, que se dedicam
a visibilizar as opressões de gênero as mais imperceptíveis
nas relações sociais, mostrem-se tão refratárias aos aponta-
mentos que mulheres negras têm feito sobre o racismo estru-
tural presente também nos espaços e teorizações feministas.
A invisibilização das interseccionalidades raciais em debates
de pautas caras ao feminismo (como aborto, violência obs-
tétrica, objetificação da mulher pela mídia, divisão sexual
do trabalho, para citar alguns exemplos) tem sido uma das
principais críticas de mulheres negras (feministas ou não) ao
feminismo branco.

No Brasil, foi possível observar essas questões emergirem


após o lançamento do filme “Que Horas Ela Volta?” (2015),
da cineasta branca Anna Muylaert. O filme, que tem prota-
gonistas mulheres, conta a história de Val (interpretada pela
atriz Regina Casé), uma empregada doméstica que trabalha
há muitos anos na casa da família de Bárbara (Karine Teles).
Val cuida do filho do casal, da cachorrinha, da arrumação
da casa, das roupas, da comida da família. O filme mostra,
em diálogos perturbadoramente familiares para a sociedade
brasileira, a dependência da família em relação a Val, seja nas
questões práticas, seja nas questões emocionais. Já no início
do filme, Val recebe a notícia de que Jéssica, sua filha ado-
lescente (Camila Márdila), que cresceu longe da mãe em sua
terra natal, vai para São Paulo, onde Val trabalha, prestar o
vestibular para uma prestigiada universidade pública. A mãe
pede à patroa para receber a filha nesse período, e durante a
hospedagem vão ficando evidentes os choques de classe entre
patroa, empregada e a adolescente.

O filme teve grande repercussão no país e no exterior, e


mobilizou muitos debates sobre trabalho doméstico, sobre

169
GÉNEROS E SEXUALIDADES

ódio de classes, e sobre as recentes conquistas de direitos


das classes populares nos últimos anos no país. Entretanto, a
questão racial não é central no filme, tendo sido invisibilizada
também na repercussão que a obra teve na grande mídia. As
atrizes que interpretam Val e Jéssica não são negras, o que fez
com que o racismo presente nas relações patrões-empregadas
domésticas no Brasil não fosse um conflito encenado na trama.
Coube às feministas negras explicitarem esse silêncio, no país
em que o trabalho doméstico é exercido majoritariamente por
mulheres negras55. É evidente que toda a dinâmica da relação
casa de família – quartinho de empregada, que Muylaert leva
para as telas, foi herdada dos séculos de escravidão no Brasil.
Entretanto, ao não escalar atrizes negras para representar
esses papéis, a diretora promove um branqueamento do con-
flito, ressaltando outras características das personagens (sua
origem de classe pobre, oriundas de uma região considerada
periférica no país em relação à cidade de São Paulo, onde a
história se passa).

As críticas de feministas negras à invisibilização das questões


raciais no filme foram recebidas com muito desconforto por
feministas e demais pessoas brancas nos debates, discussões
nas redes sociais e eventos ocorridos à época de seu lança-
mento. Entender e refletir sobre esse desconforto coloca-se
como um grande desafio para feministas brancas, pois ele
explicita as dificuldades (ou mesmo impossibilidades) de
aproximações de pautas entre feministas brancas e negras.
Como destaca Bento (2002), as pessoas brancas que se dis-
põem a participar dos debates sobre racismo nem sempre

55. Conferir, por exemplo, o texto de Giovana Xavier, “Branquidade, que horas ela
chega?”, disponível em: http://pretadotora.blogspot.com.br/2015/10/ler-tantos-
-pontos-de-vista-diversos-e.html, e de Stephanie Ribeiro, “Afinal, o que leva os
Brancos adorarem Que horas ela volta?”, disponível em: http://www.geledes.org.br/
afinal-o-que-leva-os-brancos-adorarem-que-horas-ela-volta/

170
INTERSEÇÕES E TANGENTES

estão de fato dispostas a se reconhecer como beneficiárias


desse mesmo racismo que buscam combater. Essa recusa
em reconhecer os privilégios raciais pode produzir reações
contraditórias, desagradáveis, como culpa, dor, raiva, agres-
sividade ou sentimento de impotência, que frequentemente
são projetados nas pessoas que explicitam o racismo presente
nas relações. Além disso, o entendimento por boa parte das
feministas brancas de que discutir raça e racismo é discutir
negritude, não se posicionando como mulheres brancas no
debate56, reproduz a descorporificação e não-localização dos
saberes, que o movimento feminista tanto denunciou na ciên-
cia (Haraway, 1995, Harding, 1993).

A interpelação feita por mulheres negras a respeito do lugar


racial privilegiado ocupado por feministas brancas precisa
ser elaborada de maneira a sermos capazes de incorporar
interseccionalmente a questão racial em nossos estudos e
análises sobre opressões de gênero, localizando-nos também
em marcadores raciais, e não apenas de gênero. Além disso,
é preciso avançar na discussão sobre o que significa produzir
saberes antirracistas no feminismo a partir do lugar de femi-
nistas brancas. Isso significa que um certo debate centrado
na disputa sobre “quem pode falar sobre racismo?”, deva
ser deslocado para “de que lugar eu falo sobre racismo?”. No
nosso entender, essa reflexão precisa ser dialógica e perma-
nente, especialmente quando realizada por pessoas brancas.
Não podemos supor que basta nos localizar enquanto “bran-
cas” para que o problema da branquitude esteja resolvido,

56. Há poucos estudos feitos sobre a branquitude no movimento feminista, e seus


efeitos, enquanto categoria racial, nas vivências e trajetórias de feministas brancas.
Geórgia Marcinik, primeira autora desse texto, está desenvolvendo uma pesquisa de
campo em sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, sob a orientação da pro-
fessora Amana Mattos, segunda autora. A pesquisa está em andamento, com previsão
de conclusão para 2018.

171
GÉNEROS E SEXUALIDADES

pois isso seria apenas o primeiro passo. Para não recairmos


na essencialização de categorias raciais, é preciso estarmos
em permanente desconstrução de preconceitos arraigados,
de concepções de merecimento baseadas em características
raciais extremamente naturalizadas, e atentas às críticas de
mulheres negras a possíveis reincidências em lógicas racis-
tas e desumanizantes, das quais pessoas brancas – inclusive
mulheres – se beneficiam cotidianamente.

Considerações finais
Neste texto, discutimos como o silenciamento de questões
raciais, que não explicitam a branquitude nos saberes e prá-
ticas do feminismo branco, excluem reflexões sobre hierar-
quias raciais presentes no movimento, contribuindo para a
marginalização de experiências de mulheres não-brancas em
diferentes âmbitos.

Discutir raça e racismo dentro do movimento feminista nos


possibilita pensar sobre como as práticas de sujeitos são (re)
produzidas e como a não racialização do “ser mulher (branca)”
acaba por legitimar concepções racistas de gênero. Falar e
problematizar o racismo exige reflexão e entendimento sobre
os lugares que ocupamos e sobre nossas práticas, visto que o
não reconhecimento do lugar de privilégio racial desfrutado
por mulheres brancas já se torna uma forma de racismo, por
não permitir o tensionamento de hierarquias raciais intragê-
nero. Em diálogo com produções de feministas negras, indi-
camos algumas complexidades interseccionais presentes na
discussão sobre gênero, destacando a necessidade de que seja
feito um debate reflexivo sobre a branquitude das produções
e práticas feministas, de modo que estas possam contribuir,
de fato, para a luta antirracista.

172
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Referências
• Bento, M. A. S. “Branqueamento e branquitude no Brasil” Em I.
Carone, M. A. S. Bento (Orgs.) Psicologia Social do Racismo: Estudos
sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-57). Petrópolis,
RJ: Vozes.
• Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cardernos
Pagu, 26, 329-376.
• Carneiro, S. (2003). Mulheres em movimento. Estudos Avançados,
17(49), 117-132.
• Crenshaw, K. (1994). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity
Politics andViolence Against Wmen of Color. Em M. A. Fineman, &
R. Mykitiuk, The Public Nature of Private Violence (pp. 93-118). Nova
York: Routledge.
• Haraway, D. (2004). “Gênero” para um dicionário marxista: a política
sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, 22, 201-246.
• Haraway, D. (1995). Saberes Localizados: a questão da ciência para
o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu,
5, 07-41.
• Harding, S. (1993). Rethinking Standpoint Epistemology: What
is “Strong Objectivity”?. Em L. Alcoff, E. Potter (Eds.). Feminist
Epistemologies. Nova York: Routledge.
• hooks, b. (2013). “De mãos dadas com minha irmã: Solidariedade
feminista”. In: Ensinando a Transgredir: A educação como prática
da liberdade (pp. 127-150). São Paulo: Martins Fontes.
• hooks, b. (1984). Black Women: Shaping Feminist Theory. Feminist
Theory from Margin to Centre. Nova York: South End Press.
• Santos, A. d., Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2012). Breve Histórico
do Pensamento Psicológico Brasileiro Sobre Relações Étnico-Raciais.
Psicologia: Ciência e Profissão, 166-175.
• Schucman, L. V. (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo:
branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo:
Annablume.
• Silva, C. da (2011). Ônibus Especial. Em Oh Margem! Reinventa os
Rios! São Paulo: Selo Povo Editora.
• Truth, S. (1851). E não sou uma mulher? Akron, Ohio. Discurso
proferido na Convenção dos Direitos da Mulher. Disponível em:
http://www.geledes.org.br/sojourner-truth-2/ Acessado em: 8 de
setembro de 2016.

173
KARLA GALVÃO ADRIÃO, JAILEILA MENEZES,
EMILIA BEZERRA E ROSEANE AMORIM

Circuitos integrados?
Intersecções de gênero, sexualidade e
geração nas vivências afetivo-sexuais de
um jovem e sua rede de convívio no
nordeste do Brasil.

Introdução
O presente estudo é parte de uma pesquisa57 que foi desen-
volvida na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE,
Brasil, entre os anos de 2014 e 2015. Teve como objetivo ana-
lisar os significados e práticas produzidos sobre os campos
dos Direitos Sexuais (DS) e dos Direitos Reprodutivos (DR)
por mulheres e homens jovens e sua rede de convívio e apoio
(família, comunidade, escola, sistema de saúde, amizade,
religião) em uma região do Estado de Pernambuco, em pro-
cesso de intenso crescimento econômico. Analiticamente, a
pesquisa buscou salientar a intersecção entre os marcadores
de gênero, sexualidade e geração que se presentificam nas
vivências afetivo-sexuais dos/das jovens desta região.

57. Significados e práticas sobre os Campos dos Direitos Sexuais e dos Direitos Repro-
dutivos: uma análise interseccional com mulheres e homens jovens e suas redes de
convívio em território de desenvolvimento econômico. Apoio CNPq/Brasil.
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Os Direitos Reprodutivos tratam da garantia de meios que


promovam a liberdade de escolha reprodutiva, reforçando o
exercício mais amplo da cidadania, na conquista de garantias
legais e na participação nas decisões públicas. Os direitos
sexuais, por sua vez, constituem-se como o respeito à viver
a sexualidade com prazer, o direito à liberdade e autonomia
no exercício responsável da sexualidade. Isso implica viver a
sexualidade livre de coerção, discriminação e violência. Se por
um lado entendemos que o respeito a tais direitos não deve se
restringir à vivência adulta da sexualidade (Menezes et al, 2016),
não podemos, todavia, desconsiderar que efetivamente há uma
série de interdições ao exercício desses direitos por jovens.

A discussão sobre sexualidade e juventude está historica-


mente perpassada pela interferência de uma matriz desen-
volvimentista que fortalece discursos e práticas de etapização
(que partem de um modelo pautado em etapas cristalizadas
da vida) e universalização das vivências sexuais. Essa pers-
pectiva organicista e biologicista tem grande penetração em
significativas instituições sociais responsáveis pelo ordena-
mento da vida humana nas sociedades ocidentais (família,
escola, judiciário, sistema de saúde). O discurso desenvolvi-
mentista sobre a sexualidade é comumente apropriado por
diversas instâncias sociais para reforçar a subalternização de
crianças, adolescentes e jovens a uma lógica normativa que
limita suas oportunidades de exercício de autonomia.

Entendemos que o exercício de contextualização faz-se


fundamental para a produção de leituras que considerem a
pluralidade de modos de ser, a heterogeneidade das vivên-
cias de sexualidade na juventude, considerando que esta
não é simplesmente uma passagem, mas um momento bio-
gráfico marcado por articulações particulares de aspectos
socioeconômicos, territoriais, religiosos, raciais. De acordo

176
INTERSEÇÕES E TANGENTES

com Novaes (2006, p.105): “jovens com idades iguais vivem


juventudes desiguais”.

A reflexão sobre juventude, direitos sexuais e direitos repro-


dutivos solicita atenção ao contexto sociocultural e econômico
no qual os/as jovens estão inseridos/as, bem como ao conjunto
de crenças, valores, interesses, normas e práticas sociais que
circunscrevem suas existências na relação com instituições
sociais e suas redes de convívio e apóio. Na pesquisa que rea-
lizamos buscamos inspiração nas noções de cena e cenário
sexuais (Paiva, 2006) para dinamizarmos o entendimento
das possibilidades e limites de atuação dos/das jovens com
relação aos seus desejos, prazeres, afetos, negociações (cena) e
ao desenvolvimento de programas de promoção à saúde e aos
direitos sexuais e direitos reprodutivos (cenário).

A sexualidade é considerada um ponto central para com-


preender o modo como as várias relações de poder cons-
tituem os sujeitos, através de comportamentos aceitáveis
ou inaceitáveis (Bozon, 2004). É importante pontuar que o
aprendizado da sexualidade não se limita ao acontecimento
da primeira relação sexual. Trata-se de um processo de expe-
rimentação afetiva e sexual, que envolve introjeção da cultura
sexual do grupo ao qual o/a jovem faz parte, mas também
disputa com relação a esses valores culturais. Em uma pers-
pectiva construcionista e pós-estruturalista da sexualidade
há uma relação dinâmica entre saber-poder-verdade-sujeito,
nesse sentido importa olhar para aspectos macropoliticos
que circunscrevem possibilidades de ação, considerando-se,
concomitantemente, a inventividade e as transformações nas
dimensões micropolíticas.

Neste capitulo abordaremos a interseccionalidade entre os


marcadores de geração, gênero e sexualidade nas vivências

177
GÉNEROS E SEXUALIDADES

afetivo-sexuais de um jovem morador de um município em


processo de crescimento econômico. A análise considerará o
discurso do jovem e de sua rede de convívio e apóio, buscando
pelas diversas articulações possíveis (afetivas, institucionais)
e seus efeitos em termos de saberes e poderes que sustentam
e/ou desafiam os códigos de sexualidade da cultura local.
Problematizaremos a dificuldade de acesso e reconhecimento
dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos e suas implica-
ções nas vivências sexuais do jovem. Iniciamos apresentando
o método da pesquisa, passando em seguida para a discussão
dos dados produzidos e trazendo considerações ético-políti-
cas para as questões abordadas.

Sobre o Método
Para o desenvolvimento da pesquisa buscamos subsídios no
debate feminista pós-estrutural (Butler, 2004; Haraway, 1995)
sobre o uso de categorias de desigualdade, a partir da noção
de interseccionalidade (Piscitelli, 2008; Nogueira, Saavedra
& Costa, 2008) e de subalternidade (Spivak, 2010). A noção de
interseccionalidade ajudou-nos a compreender e tratar dos
fenômenos sem os considerar como linhas paralelas que não se
encontram, ou como categorias que se sobrepõem sem serem
relacionadas efetivamente. Seguindo a inspiração dos estudos
sobre subalternidade nos propusemos a pesquisar com jovens
ao invés de pesquisar sobre eles/elas (Castro, 2010), posicionan-
do-os/as como construtores do mundo no aqui e agora de suas
possibilidades de ação e entendimento da vida social.

Consideramos também importante para o estudo dos sig-


nificados e práticas sobre os Direitos Sexuais e os Direitos
Reprodutivos de jovens, a referência às redes de convívio (famí-
lia, escola, comunidade, serviço de saúde, religião e amigos/as)
na construção e nos “destinos” da sexualidade, na produção

178
INTERSEÇÕES E TANGENTES

e reprodução da vida social (Quadros & Adrião, 2010). Assim,


esta pesquisa tomou a prerrogativa de trabalho em redes, tendo
em vista o que Haraway (2009, p.76) chama de “circuito inte-
grado” e o lugar de mulheres e homens jovens neste cenário. De
acordo com Haraway (2009, p. 76) o circuito propõe uma rede
ideológica que “sugere uma profusão de espaços e identidades
e a permeabilidade das fronteiras no corpo pessoal e no corpo
político”. Importa considerar quais elementos compõem a rede
de apoio e convívio do jovem, como esses elementos se rela-
cionam no sentido da produção ou não da autonomia sexual
juvenil. No debate sobre sexualidade e juventude a questão da
autonomia é central enquanto analise dos discursos e práticas
sociais que possibilitam e/ou limitam a autodeterminação, ou
seja, em qual condição efetiva de poder e negociação alguns
grupos sociais participam (ou não) das decisões sobre repro-
dução e sexualidade (Corrêa & Petchesky, 1996).

A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas: na primeira


foram realizadas entrevistas dirigidas com 18 jovens estu-
dantes do ensino médio e residentes nos municípios Cabo de
Santo Agostinho e Ipojuca58. Nessa primeira fase de entre-
vistas buscamos explorar a percepção dos jovens sobre as
mudanças econômicas na região e os impactos em suas vidas
e de seus familiares. Importa pensar que em uma perspectiva
compreensiva das cenas e cenários sexuais havia uma expec-
tativa de que ao crescimento econômico anunciado para a

58. Esses municípios compõem parte da região metropolitana do Recife denominada


sub-região SUAPE e que sofreu significativas transformações nos últimos 10 anos im-
pulsionadas pelo crescimento econômico do Complexo Industrial SUAPE. A instalação
de várias indústrias na área de petroquímica de combustíveis em geral e fabricação de
seus derivados (plásticos, embalagens) e acessórios (fabricação de contêineres) impac-
tou os territórios geográficos e simbólicos da população local. A presença dos traba-
lhadores de grandes obras que migraram de várias regiões do país para a construção
do complexo portuário também afetou as dinâmicas sociais, culturais e econômicas
do lugar.

179
GÉNEROS E SEXUALIDADES

região garantisse desenvolvimento social com melhoria da


qualidade de vida da população.

A segunda etapa de construção de informações consistiu em


entrevistas sobre temas relativos aos campos dos direitos
sexuais e dos direitos reprodutivos com quatro jovens e sua
rede de convívio. Decidimos por estes quatro jovens conside-
rando 02 de cada sexo, a complexidade da condição socioeco-
nômica explorada na primeira entrevista e a disponibilidade
e interesse em continuar na pesquisa. Cada um/a desses/as
jovens indicou um membro da família, um/a amigo/a, um/a
representante de sua religião, um/a profissional da escola
em que estudava, um/a profissional da rede de saúde local,
para também serem entrevistados/as na perspectiva de cir-
cuito integrado. Para analisar as informações construídas,
utilizamos a análise temática de conteúdo (Bardin, 1977) e a
interseccionalidade dos marcadores sociais gênero e geração
nas vivências sexuais dos/das jovens.

Para o presente capitulo problematizaremos aspectos da


vivência sexual de um jovem homem tomado como semente,
termo que utilizamos para designar o encaminhamento
analítico em duas frentes: sincrônica (trazendo aspectos da
carreira afetivo-sexual do jovem na relação com eixos que
a literatura considera fundamental para a compreensão dos
direitos sexuais e dos direitos reprodutivos na intersecção
com marcadores de gênero e geração) e diacrônica (aborda
a vivência da sexualidade do jovem a partir dos significados
atribuídos pelo circuito-rede de convívio).

Diego e suas vivências sexuais


Diego tinha 19 anos no período da realização das entrevistas,
declarou-se “afrodescendente”, morava com a avó em Nossa

180
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Senhora do Ó – município de Ipojuca. Evangélico “não pra-


ticante”, tinha uma namorada que morava em Recife, com
quem viveu a primeira relação sexual. Cursava o terceiro ano
do ensino médio e não tinha emprego fixo. Esporadicamente
prestava serviços como garçom em um hotel da região. Sobre
os planos para o futuro, pensava em estudar Medicina, mas
ponderava por questões financeiras. Também falou na pos-
sibilidade de trabalhar “na região de Suape”, o que se coloca
como estratégia para ter uma renda fixa.

Ao falar sobre sua iniciação sexual, Diego narra que antes da


primeira transa, praticava “sexo oral, esses negócios”, mas
nunca chegou “até lá” (referindo-se ao gozo com penetração
vaginal). Além disso, coloca que a maioria das meninas com
as quais ficava (antes do namoro) também eram virgens. A
primeira relação sexual foi com sua namorada, convergindo
com os achados de pesquisa sobre o aprendizado da sexua-
lidade (Knauth, Víctora, Leal & Fachel, 2006). Os dois eram
virgens e a relação sexual aconteceu depois de um ano de
relacionamento.

Quando investigados os significados sobre direitos sexuais


e direitos reprodutivos a partir da compreensão da rede do
jovem Diego, algumas questões chamaram atenção. É preva-
lente uma cultura sexista na localidade investigada que tem
implicações nas vivências sexuais dos/as jovens. O código
sexual da cultura local desqualifica as jovens que tem relação
sexual antes de uma idade/momento considerado ideal.

Percebemos que as questões de geração e gênero estão bem pre-


sentes nesses posicionamentos, pois tais categorias são cons-
tituídas a partir de relações de poder e estabelecem normas
e comportamentos considerados “adequados” de forma dife-
renciada para homens e mulheres. Gênero é considerado por

181
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Scott (1995, p.86) “um elemento constitutivo de relações sociais


baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos”. Sendo
ainda, uma forma primária de dar significado às relações de
poder. Scott sugere que as relações de gênero se engendram no
campo social mediadas por significados, linguagens, ações e
percepções traduzidas nas dimensões materiais e simbólicas
de existência, logo constitui um campo em disputada.

As dinâmicas hierárquicas que se atualizam na articulação


das categorias de gênero e geração (re)posicionam homens e
mulheres, mais velhos/as e mais novos/as, em referência à
família, à comunidade, aos espaços diversos de convivência
(Scott, 2010).

Na localidade estudada, é aceitável e até mesmo uma exigên-


cia que o homem jovem, independente da idade, inicie suas
práticas sexuais, como comprovação de sua masculinidade.
Já para as mulheres o mesmo não pode acontecer, sob o risco
de ficarem “mal faladas”, serem inferiorizadas e desvaloriza-
das no mercado matrimonial.

Da cena sexual referida pelo jovem Diego na abertura desse


tópico chama atenção uma relação diferenciada com o código
da cultura sexual do local, pois ele como jovem homem não
seguiu a regra de uma relação sexual sob qualquer condição.
Resolveu aguardar o que considerou momento e pessoa ideal
e o fez em contexto de namoro e não em situação de “ficar
com” (modalidade de relacionamento considerada menos
séria). Outro aspecto importante de relativização da cultura
sexual é que o marcador etário, comumente utilizado para
classificar a precocidade ou não da relação sexual é negociado
em função de “com quem” a jovem está se relacionando e pela
perspectiva de casamento. Esses dados corroboram pesquisas
anteriores realizadas no nordeste do Brasil (Quadros & Adriao,

182
INTERSEÇÕES E TANGENTES

2010). A seguir abordaremos o posicionamento de cada pessoa


entrevistada na rede de Diego.

Família
Diego indicou um de seus primos para participar da entre-
vista, um jovem de 20 anos que expressou um conjunto de
preocupações com relação à banalização das relações sexuais.
O discurso da banalização é regulado pela perspectiva etária
que qualifica a precocidade do ato sexual antes da vida adulta.

Em uma pesquisa realizada com jovens de 15 a 19 anos, em


São Paulo, Borges e Shor (2005) perceberam que a primeira
relação sexual não foi planejada pela maior parte dos jovens,
sem diferença entre homens e mulheres. No que se refere à
idade para a primeira relação sexual, as mulheres continua-
ram tendo a primeira relação mais tarde que os homens. Em
sua maioria (82,9%), guardando a primeira vez para ser com-
partilhada com pessoas cujo relacionamento compreendesse
um compromisso, como, por exemplo, namorados ou noivos.
As questões de gênero se destacam por conta do temor viven-
ciado pelas mulheres de se “entregarem” a alguém que pode
vir a abandoná-las.

A relação entre esta e a nossa pesquisa está na localização de


vivências sexuais de risco - pois os/as jovens não conseguem
usufruir de situações que os/as qualifique em suas experiên-
cias sexuais (informações, insumos) - e na moralização da
sexualidade das jovens mulheres com vistas à legitimidade
do ato sexual em relações estáveis e matrimoniais, limitando
seu repertório experiencial.

Refletindo sobre a integração dos elementos do circuito ou rede


de convívio e apoio, entendemos que o discurso da precocidade,

183
GÉNEROS E SEXUALIDADES

a vivência do risco e a moralização da sexualidade mostram o


tipo de relação existente entre a família e o sistema de saúde,
pois os/as jovens informaram que tem dificuldade de acessar o
Posto de saúde para tirar dúvidas e buscar preservativo: é um
pouco, você fica com vergonha, né? mas é: você vai lá e pega
(entrevistado do circuito de Diego - Família).

Os dados nos permitem afirmar, considerando a intersecção


entre geração e gênero como fundamental ao entendimento
da sexualidade de jovens da região pesquisada, que para além
da família, há uma lógica familiar que regula as vivências
sexuais. O valor-família se estende a instituições que deve-
riam garantir os direitos sexuais e direitos reprodutivos
dos/das jovens, mas acabam funcionando como instâncias
de controle e regulação dos corpos juvenis. Por exemplo, as
mulheres jovens, ao frequentarem o posto de saúde na busca
de uma consulta ginecológica podem ser vistas pela comuni-
dade como uma mulher que não é mais virgem, que não casou
ou não tem um companheiro fixo e mesmo assim iniciou a
vida sexual, manchando assim a própria reputação e a de sua
família. No caso do homem jovem, a presença no posto para
pegar preservativos não gera comentários sobre sua reputa-
ção, mas sim sobre a precocidade, o que pode constrangé-lo
no exercício de seus direitos.

Amizade
A amiga entrevistada, de 17 anos, falou sobre como
são percebidas as relações de amizade entre os/as
jovens na região e foi possível observarmos a forte
interferencia de valores sexistas: Não aceita como
se fossem amigos, menino e menina se estão juntos
é como se fossem namorados (entrevistado do cir-
cuito de Diego -Amizade).

184
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Em um trabalho sobre amizade entre jovens mulheres e


sexualidade, Franch (2013) ressalta que o grupo de pares apa-
rece como instância socializadora, que ajudaria nos aprendi-
zados de autonomia e conquista da independência. O grupo
de pares seria o lugar para tirar dúvidas e receber conselhos
sobre sexualidade, o que tem uma grande importância na
subjetivação dos/as jovens.

No entanto, mesmo a sexualidade sendo um assunto comum


nos grupos de amizades entre as jovens, é preciso ser muito
cuidadosa na hora de fazer circular informações a respeito do
próprio comportamento sexual. A gestão da própria reputação
é um assunto delicado nesse meio, gerando um difícil equi-
líbrio entre a vontade de partilhar as próprias experiências
e o medo da divulgação (e da deturpação) do próprio com-
portamento sexual (Franch, 2013). Em nossa pesquisa chama
atenção que os/as jovens tiram duvidas sobre sexualidade na
internet e que entre amigos ocorre mais o compartilhamento
das conquistas amorosas, de brincadeiras e piadas “picantes”.

Escola
O trabalho com o tema sexualidade nas escolas, embora
recomendado por instâncias educacionais para um trata-
mento transversal, acaba se limitando a aulas de áreas tradi-
cionalmente reconhecidas como especialistas da questão, a
saber, ciências e biologia, o que revela a matriz organicista de
compreensão da sexualidade. Historicamente o assunto tem
sido abordado pelo viés dos perigos e riscos que a vivência
da sexualidade pode conter, isso porque a educação sexual
passa a ser recomendada nas escolas como forma que o
Estado encontrou para responder ao crescimento do numero
de casos de gravidez na adolescência e infecção por HIV
(segunda metade do século XX).

185
GÉNEROS E SEXUALIDADES

No que diz respeito às temáticas que poderiam ser trabalhadas


neste sentido, o professor entrevistado, de 30 anos, relatou ser
importante problematizar:

Gênero, Puberdade, métodos de prevenção, DSTs,


a questão do relacionamento, é... como que eu
diria? Não sei se você me entende bem... mas
eu digo assim: O relacionamento afetivo! Certo?
Porque existe um pouquinho também dessa histó-
ria: “Só porque eu estou abraçando... eu enquanto
homem estou abraçando outro homem, será que
eu sou também... eu sou gay? Se duas meninas
estão se abraçando será que elas são gay? Então,
os relacionamentos afetivos entre homoafetivos
ou heterossexuais (entrevistada do circuito de
Diego- Escola).

O mesmo parece entender a importância de abordar o assunto


para além das aulas de biologia ou ciências, pensando sexua-
lidade enquanto um conceito amplo, que vai envolver rela-
ções de gênero, violência, erotismo, dentre outros aspectos.
A escola é uma Instituição que tem meios para trabalhar as
relações de gênero e novas formas de pensar sobre sexualidade.
Entretanto, o reconhecimento e abertura deste docente para o
trato da questão representa uma exceção, pois foi recorrente
o discurso de que cabe à família, ao sistema de saúde e não é
responsabilidade docente. Nesses termos chamamos atenção
para uma rede vazada, pois entendemos a necessidade de uma
boa articulação entre os vários elementos do circuito para que
as lógicas de gênero e sexualidade atuem a favor dos direitos
sexuais e direitos reprodutivos dos/das jovens.

186
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Saúde
A entrevistada indicada foi uma agente comunitária de saúde
(ACS), de 48 anos, que falou um pouco sobre o acesso de jovens
ao posto de saúde.

não, o serviço que eles vem procurar mais é den-


tista, né? Mais dentista. Agora parte de consulta
médica, clínica, eles vêm menos. Vem mais assim,
quando eles tão assim precisando de... com algum
sintoma assim. Porque digamos, pra prevenção
eles não vêm. Prevenção de um modo geral, que é
pra pegar preservativo, pra fazer uma prevenção,
né? (entrevistada do circuito de Diego- Saúde).

Segundo o manual de atendimento integral (Brasil, 2000),


as consultas são momentos privilegiados para o aconselha-
mento de práticas sexuais responsáveis e seguras. O uso do
preservativo deve ser enfatizado como prática indispensável
na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de
gravidez. Pode ser o momento de esclarecimento de dúvidas,
de conversar sobre a importância do afeto e do prazer nas
relações amorosas e para alertar sobre situações de risco e
vulnerabilidade, inclusive o abuso e/ou exploração sexual.
Mas para que isso aconteça é importante que seja garantido
o acesso dos/as jovens ao posto de saúde e que as consultas
clínicas e ginecológicas sejam incentivadas como algo impor-
tante para a saúde do/a jovem.

A entrevistada relatou também que são realizadas palestras


no Posto de Saúde, mas o público é sobretudo adulto, de modo
que não há um trabalho destinado ao segmento jovem da
população, mesmo sendo função do/a ACS desenvolver um
trabalho planejado para os/as jovens. Percebemos que essa

187
GÉNEROS E SEXUALIDADES

não é uma realidade na região da presente pesquisa. Não se


trata, evidentemente, de culpabilizar esses/as profissionais
pela ausência desse trabalho, mas sim questionar por que não
pensar ações, palestras, oficinas para os/as jovens?

As relações de gênero, ao sugerirem condutas diferenciadas


para homens e mulheres em relação à primeira relação sexual,
ao tipo de vínculo com o primeiro parceiro e às decisões acerca
das práticas contraceptivas, geram impacto importante no
processo de decisão de relacionar-se sexualmente de formas
mais ou menos seguras e necessitam ganhar espaço na ela-
boração das políticas públicas voltadas à saúde de homens e
mulheres jovens (Borges & Shor, 2005).

Considerações finais
Os relatos sobre as vivências sexuais construídos com Diego e
sua de rede de convívio, nos informam sobre aspectos relati-
vos às vivências de outros/as jovens. As falas do jovem contri-
buem para o debate sobre iniciação/vida sexual e percebemos
que a forma como posicionam-se em relação à questão da
prevenção/contracepção - quando narra relações sexuais sem
o uso de preservativo ou qualquer outro método – revela uma
fragilidade de alguns atores/atrizes da rede da qual faz parte.
Encontramos um modelo de família que não parece entender
como importante a abordagem de temas relativos à sexuali-
dade do homem jovem, indicando aí uma nuance de gênero.
Ao mesmo tempo, um modelo de escola que contraria Planos
que regem o campo da educação, reduzindo a discussão sobre
os direitos sexuais e reprodutivos a questões do biológico e/ou
associando tal tema a vivências de risco ou problema – caso
da gravidez não planejada. Uma rede de saúde que ainda não
encontrou uma forma de atrair jovens (mulheres e homens
em geral), de modo planejado e efetivo, para atendimentos

188
INTERSEÇÕES E TANGENTES

onde esses/essas possam, de fato, sentirem-se acolhidos/as


para buscarem informações.

Retomando a noção de Haraway (2009), de “circuito integrado”,


compreendemos que os significados e as práticas dos Direitos
Sexuais e dos Direitos Reprodutivos de mulheres e homens
jovens em um território de crescimento econômico, são pau-
tadas por uma “rede ideológica” marcada por desigualdades
de gênero e geração – categorias que se sobressaíram nas falas
aqui apresentadas. Portanto este último marcador relacionado
às questões de gênero nos informa sobre uma juventude que
parece vivenciar aspectos da sexualidade e reprodução com
pouca autonomia e liberdade, uma vez que as instituições as
quais podem acessar (família, escola, sistema de saúde, entre
outras) acabam por reforçar significados e práticas morali-
zantes e normativas concebidas pelas relações de gênero.

Referências
• Bardin, L. (1997). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.
• Borges, A. L. V. & Schor, N. (2005). Início da vida sexual na
adolescência e relações de gênero: um estudo transversal em São
Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 21(2), 499-507.
• Bozon, M. (2004).Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas.
• Brasil.(2000). Ministério da Saúde. Manual de Atendimento à Saúde
Integral de Adolescentes e Jovens. (4. ed.). Brasília.
• Butler, J. (2004). The Force of Fantasy: Mapplethorpe, Feminism,
and Discursives Excess, em Sara Salih with Judith Butler (eds.). The
Judith Butler Reader. (pp. 183-203). Oxford: Blackwell Publishing.
• Castro, L. R. de. (2010). Falatório: participação e democracia na escola.
Coordenação: Lucia Rabello de Castro – Rio de Janeiro: Contra Capa.
• Corrêa, S. & Petchesky, R. (1996).Direitos sexuais e reprodutivos:
uma perspectiva feminista. Physis. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1/2.147-177.
• Franch, M. (2013). Amigas, colegas e “falsas amigas”. Amizade e
sexualidade entre mulheres jovens de grupos populares. Sexualidad,
Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. n.4 - 2010. 28-52.

189
GÉNEROS E SEXUALIDADES

• Haraway, D. (2009). Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e


feminismo-socialista no final do século XX. In: Tadeu, T. (org).
Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. 2ª edição.
(pp.31-118). Belo Horizonte: Autêntica.
• Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para
o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu,
5, 07- 41.
• Knauth, D. R., Victoria, C. G., Leal, A. F. & Fachel, J. (2006). As trajetórias
afetivo-sexuais: encontros, uniões e separação. In: Heilborn, M. L. et
al. (Orgs). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias
sociais de jovens brasileiros. (pp. 267-307). Rio de Janeiro: Fiocruz.
• Menezes, J. de A., et al. (2016).Significados e práticas sobre os Campos
dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos: uma análise
interseccional com mulheres e homens jovens e suas redes de convívio
em território de desenvolvimento econômico. Relatório final - projeto
de pesquisa: Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 43/2013.
• Nogueira, C., Saavedra, L. & Costa, C. (2008).(In)Visibilidade do
género na sexualidade juvenil: propostas para uma nova concepção
sobre a educação sexual e a prevenção de comportamentos sexuais
de risco. (pp. 59-79). Campinas: Pro-Posições. v. 19, n. 2.
• Novaes, R. (2006).Os jovens de hoje: contextos, diferenças e
trajetórias. In: Almeida, M. I. M.& Eugenio, F.(Orgs.). Culturas jovens:
novos mapas do afeto.(p. 105-120). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
• Paiva, V. (2006). Analisando cenas e sexualidades: a promoção da
saúde na perspectiva dos direitos humanos. In: Cáceres, Careaga,
Frasca & Pecheny (org). Sexualidad, estigma y derechos humanos.
Desafíos para el acceso a la salud en América Latina. Lima: FASPA/
UPCH. Septiembre.
• Piscitelli, A. (2008). Intersecionalidades, categorias de articulação
e experiências de migrantes brasileiras. In: Revista Sociedade e
Cultura. v. 11.
• Quadros, M. T. de & Adrião, K. G. (2010). Relatório final do projeto
de pesquisa Mulheres e Dupla proteção em diferentes circuitos de
Socialidade. FACEPE: Recife.
• Scott, J. W.(1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
Educação & Realidade. (pp. 71-99).Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez.
• Scott, P. (2010). Gênero e geração em contextos rurais: algumas
considerações. In: Scott, P., Cordeiro, R. & Menezes, M. (Orgs). Gênero
e geração em contextos rurais. (pp.15-33).Ilha de Santa Catarina: Ed.
Mulheres.
• Spivak, G.(2010). Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG.

190
LEANDRO COLLING, ALEXANDRE NUNES DE SOUSA E
FRANCISCO SOARES SENA

Enviadescer
para produzir
interseccionalidades

O que é enviadescer e qual a sua potência para pensar as


interseccionalidades? Para tentar responder essas questões,
inicialmente defenderemos que pessoas e coletivos sintoni-
zadxs com as perspectivas queer têm trabalhado com mais
ênfase a interseccionalidade em suas ações e políticas, pen-
sadas aqui como um artivismo das dissidências sexuais e de
gênero. Identificaremos algumas expressões artivistas no
Brasil da atualidade e recuperaremos alguns debates sobre as
históricas relações entre arte, política e ativismos e, ao final,
analisaremos brevemente o trabalho de Mc Linn da Quebrada,
que nos ensina como enviadescer para produzir interseccio-
nalidades, ou melhor, nos provoca para pensar em como é
necessário incluir o enviadescer nas estratégias que almejam
as interseccionalidades.

Na luta pelo respeito à diversidade sexual e de gênero, em quais


setores temos visto com mais ênfase a tentativa de trabalhar
GÉNEROS E SEXUALIDADES

com interseccionalidade? Uma pista para responder essa


pergunta pode estar nas conclusões do estudo realizado por
Colling (2015) sobre as diferenças entre os movimentos LGBT
e os ativismos queer em Portugal, Espanha, Chile e Argentina.
Ele aponta uma série de diferenças dentro desses dois blocos e
também entre essas duas grandes formas de realizar e pensar
políticas sexuais e de gênero. Ao final, o pesquisador detecta
que os coletivos ou ativistas independentes que se autode-
nominam ou que estão sintonizados, de alguma forma, com
o que hoje se convencionou chamar de perspectivas queer,
defendem e tentam desenvolver ações mais interseccionais
do que a maioria do movimento LGBT institucionalizado, que
possui diferenças entre si mas, via de regra, elege como ban-
deiras temáticas que dizem respeito apenas às pessoas gays e
lésbicas e, em menor intensidade, às travestis e transexuais.

Essas interseccionalidades ocorrem de diversas maneiras e a


depender da realidade de cada país. Apenas um exemplo: se
na Argentina e no Chile as pautas da diversidade sexual e de
gênero, para quem está sintonizado com perspectivas queer,
recaem mais sobre questões de classe, em Portugal e Espanha,
além de temas ligados às classes, ativistas queer dialogam
também com os problemas causados pelas políticas de imi-
gração, o que em geral também exige a interseccionalidade
com questões raciais.

As interseccionalidades dos ativismos sintonizados com


perspectivas queer estudados por Colling parecem atentas ao
alerta realizado por Puar (2013). Em diálogo com Kimberlé
Crenshaw e outras autoras, Puar defende que o modo como
tem sido usado o conceito/ideia de interseccionalidade
apresenta muitas limitações. Ao invés de dessencializar as
identidades (o que era seu propósito inicial, vindo de pers-
pectivas pós-estruturalistas), colabora-se para essencializar

194
INTERSEÇÕES E TANGENTES

determinadas identidades, em especial as chamadas “mulhe-


res de cor”. E isso não acontece, diz ela, apenas pelo modo
como as “mulheres de cor” trabalham com esse conceito, mas
também como as brancas o utilizam. Por exemplo: quando
usamos uma perspectiva interseccional quase sempre fala-
mos das pessoas negras. Ou seja, a interseccionalidade tem
sido pensada para essencializar identidades marcando as
posições das pessoas negras e deixando as brancas em uma
posição de conforto, do tipo, “quem precisa da intersecciona-
lidade são só as pessoas negras”.

Como apontam teóricos do racismo transnacionalistas, pós-


-colonialistas e críticos, a centralidade do posicionamento
dos sujeitos “mulheres brancas” tem sido reassegurada
mediante a forma como a interseccionalidade tem sido
empregada. A teoria da interseccionalidade argumenta que
todas as identidades são vivenciadas e experienciadas como
interseccionais (de tal forma que as próprias categorias são
entrecortadas e instáveis) e que todos os sujeitos são inter-
seccionais, independentemente de se reconhecerem ou não
como tais. Contudo, o método da interseccionalidade é mais
predominantemente utilizado para qualificar a “diferença”
específica das “Mulheres de Cor”, uma categoria que agora
se tornou, eu diria, simultaneamente vazia de significado
específico, por um lado, e superestimada em seu emprego,
por outro. Dessa forma, a interseccionalidade sempre produz
um Outro, o qual sempre é uma “Mulher de Cor”, que deve,
invariavelmente, mostrar-se como resistente, subversiva ou
articuladora de um protesto (Puar, 2013, p.347).

E onde encontramos mais perspectivas interseccionais no


tocante a diversidade sexual e de gênero no Brasil? Ao con-
trário do que ocorre em outros países, a exemplo de Portugal,
Espanha e Chile (Colling, 2015), no Brasil não existe algum

195
GÉNEROS E SEXUALIDADES

coletivo que se identifique como queer. No entanto, isso não


quer dizer que as perspectivas queer não existam (ontem e
hoje) ou que inexistam pessoas e coletivos que estão sinto-
nizados com questões caras aos estudos e políticas queer. No
Brasil essas perspectivas estão mais visíveis no chamado arti-
vismo, que nomearemos aqui de artivismos59 das dissidências
sexuais e de gênero60. É aí que encontramos uma grande
resistência contra a onda conservadora e o fundamentalismo
religioso que elegeu, nos últimos anos, as pessoas LGBT como
um dos seus alvos preferidos. A resistência ao conservado-
rismo está em um novo ou novíssimo movimento, que não é
e nem quer ser, ao menos por enquanto, institucionalizado.
Está numa multidão de diferentes que encontramos em
escolas, universidades, ruas, locais ocupados, redes sociais,
teatros, bares, prédios públicos diversos, algumas igrejas e
terreiros de religião de matriz africana, produzindo potentes
contradiscursos.

A emergência desses artistas e coletivos artivistas pode ser


explicada por várias razões. Eis algumas: o espantoso cres-
cimento dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, em

59. “Artivismo é um neologismo conceitual ainda de instável consensualidade quer


no campo das ciências sociais, quer no campo das artes. Apela a ligações, tão clássicas
como prolixas e polêmicas entre a arte e política, e estimula os destinos potenciais da
arte enquanto ato de resistência e subversão. Pode ser encontrado em intervenções
sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de estratégias poéticas
e performativas (...). A sua natureza estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e
interroga temas e situações num dado contexto histórico e social, visando a mudança
ou a resistência. Artivismo consolida-se assim como causa e reivindicação social e si-
multaneamente como ruptura artística, de participação e de criação artística” (Raposo,
2015, p. 4)
60. Usamos a expressão “dissidências” em contraposição à ideia de “diversidade se-
xual e de gênero”, já bastante normalizada, excessivamente descritiva e muito próxi-
mo do discurso da tolerância, ligada a uma perspectiva multicultural festiva e neoli-
beral que não explica como funcionam e se produzem as hierarquias existentes na tal
“diversidade”.

196
INTERSEÇÕES E TANGENTES

especial os situados nas dissidências sexuais e de gênero; a


ampliação do acesso às novas tecnologias e a massificação
das redes sociais; a ampliação da temática LGBT na mídia em
geral, em especial em telenovelas, filmes e programas de tele-
visão; a emergência de diversas identidades trans e pessoas
que se identificam como não-binárias em nosso país, além da
valorização da fechação, da não adequação às normas (corpo-
rais e comportamentais) de meninos afeminados, mulheres
lésbicas masculinizadas e outras várias expressões identitá-
rias flexíveis que provocaram a abertura do fluxo antes mais
rigidamente identitário. Mas talvez a mais importante das
razões esteja exatamente na própria necessidade, autode-
clarada ou não, de reagir frente ao quadro terrível no qual
estamos inseridos.

Assim como o ativismo queer pesquisado por Colling (2015),


essas pessoas artivistas trabalham de formas diferenciadas,
mas alguns aspectos as unem: 1) priorizam as estratégias
políticas através de produtos culturais, pois entendem que
os preconceitos nascem na cultura e que a estratégia da
sensibilização via manifestações culturais é eficaz para pro-
duzir outros processos de subjetivação; 2) criticam a aposta
exclusiva nas propostas dos marcos legais, em especial
quando elas reforçam normas ou instituições consideradas
disciplinadoras das sexualidades e dos gêneros; 3) explicam
as sexualidades e os gêneros para além dos binarismos, com
duras críticas às perspectivas biologizantes, genéticas e
naturalizantes; 4) entendem que as identidades são fluidas
e que novas identidades são e podem ser criadas, recriadas
e subvertidas permanentemente; 5) rejeitam a ideia de que,
para ser respeitado ou ter direitos, as pessoas devam abdicar
de suas singularidades em nome de uma “imagem respeitá-
vel” perante a sociedade; 6) e, como já destacamos, parecem
mais conscientes da necessidade de interseccionar as suas

197
GÉNEROS E SEXUALIDADES

lutas com vários outros marcadores sociais das diferenças, a


exemplo de questões étnicas, de classes, gerações, níveis de
escolaridade, capacidades corporais, territorialidades, etc.

Alguns exemplos? Temos dezenas, pois essas experiências


procriam rizomaticamente em vários cantos do Brasil. Na
música, aparentemente, temos nomes que rapidamente se
tornaram bem conhecidos nacionalmente, como Johnny
Hooker, Liniker, Jaloo, Caio Prado, Rico Dalasam, As Bahias
e a Cozinha Mineira, MC Xuxu e MC Linn da Quebrada, sobre
esse último adiante falaremos um pouco mais porque seu
trabalho está visivelmente sintonizado com as características
apontadas acima. Na cena teatral temos o Teatro kunyn (São
Paulo), As travestidas (Fortaleza), Atelier voador e Teatro A
queda (Salvador). Fora isso, uma profusão de coletivos diver-
sos, com ênfase em performances, como O que você queer?
(Belo Horizonte), Cena queer (Salvador), Anarcofunk (Rio
de Janeiro), Revolta da lâmpada (São Paulo), Selvática ações
artísticas (Curitiba), Cabaret drag king (Salvador), Coletivo
coiote (nômade), Seus putos (Rio de Janeiro). A lista poderia
ser bem mais longa.

Como sabemos, a produção artística brasileira que problema-


tiza as normas sexuais e de gênero não é absolutamente nova, a
exemplo do grupo Dzi Croquettes (Cysneiros, 2014) e o cinema
de Jomard Muniz de Britto (Sant´anna, 2016), bem como
nas artes visuais, com Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e
Leonilson (Lord & Meyer, 2013). Outros vários exemplos pode-
riam ser citados, como é o caso do Teatro Oficina (São Paulo).
No entanto, o que temos percebido com mais intensidade nos
últimos anos é a emergência de outros coletivos e artistas que
trabalham dentro de uma perspectiva interseccional via dissi-
dências sexuais e de gênero e que, ao mesmo tempo, explicitam
suas intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as

198
INTERSEÇÕES E TANGENTES

suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer


política, em especial quando contrapostas às formas mais “tra-
dicionais” usadas pelo movimento LGBT mainstream.

Ao analisar o trabalho de algumas dessas artivistas, a pes-


quisadora Patrícia Lessa (2015) apontou para algumas carac-
terísticas. Uso intenso das novas tecnologias e redes sociais,
produções não voltadas para espaços fechados ou museus,
mas para as ruas, festas e outros espaços públicos de sociabi-
lidade facilmente acessados, horizontalidade das produções
e, fundamentalmente: “as artivistas, por meio dessas práticas,
questionam o corpo, o sexo, e o modelo dessexualizado do
contrato de casamento, propondo novas formas mais criati-
vas de estar no mundo e de sentir a multiplicidade e o valor
da liberdade para a vida” (Lessa, 2015, p. 222).

Arte, política e ativismo


Diante dessa discussão, cabe refletir um pouco mais sobre as
relações e as polêmicas em torno dos cruzamentos entre arte e
política, que também não são recentes. Na verdade, não parece
possível falar de alguma expressão da criação humana que
esteja fora dos processos políticos de interpelação e de poder.
Contudo, essas relações nunca foram simples. Se voltarmos
à primeira metade do século XX, veremos Antonio Gramsci
(1975) concordar com seu adversário, o filósofo Benedetto
Croce, que afirmava que a arte é educadora enquanto arte e
não enquanto arte-educadora. Vejamos o estranho da situa-
ção: dois pensadores de filiações teóricas antagônicas, um
idealista e o outro materialista, assentiam no mesmo enten-
dimento quando o tema em questão era arte. Assim, o debate
girava em torno de perguntas como: deveria a arte possuir
uma função pedagógica ou mesmo uma intencionalidade
política? Questões como essa mostravam os tensionamentos

199
GÉNEROS E SEXUALIDADES

existentes naquele campo mesmo antes da Segunda Guerra


Mundial, problematizações que atravessariam o século XX e
chegariam até nossos dias.

Já Mourão (2015), em uma linha que se assemelha às percep-


ções de Foucault sobre o discurso da bifurcação entre razão
instrumental e razão dialética61, aponta para a necessidade
de, ao contrário da reprovação moral de instrumentalização
da arte, deveríamos perguntar de que formas e com quais
intenções a arte é instrumentalizada, uma vez que no século
XX isso ocorreu de forma recorrente. Nesse contexto, ainda
segundo o autor, apartar a arte da sua dimensão transfor-
madora seria uma perda para as sociedades contemporâneas,
pois “pactuar com a exclusão de uma dimensão interventiva
da arte é diminuir a liberdade numa sociedade que se queira
democrática e participativa, inclusive ao nível artístico”.
(Mourão, 2015, p. 56).

Giovanni (2015), por sua vez, atenta para o fato de que as van-
guardas modernistas já apontavam para uma função experi-
mental e disruptiva dos limites entre vida cotidiana, política
e arte. Essas fronteiras estariam borradas uma vez que os
artistas se apresentavam empenhados na busca de outras lin-
guagens que rompessem com a tradição. Inclusive, na visão
da mesma autora, citando Esposito, estaríamos revivendo
hoje um momento semelhante àquele com o aparecimento
do artivismo. Contudo, esse não é um ponto pacífico entre os
artistas modernistas.

Uma possível chave para o entendimento desse fenômeno


atual chamado de artivismo parece ser a expressão política que

61. Ver FOUCAULT, M. (1975) Nietzsche, Freud, Marx/ Theatrum philosoficum. Porto:
Rés Limitada.

200
INTERSEÇÕES E TANGENTES

problematiza, através das artes, as mais diversas questões sem


o corrimão das identidades fixas e que privilegia a experiên-
cia do corpo em trânsito. Esses fenômenos, que já apareciam
durante os questionamentos modernistas, vão ganhar carac-
terísticas muito próprias como a emergência das chamadas
subjetividades flexíveis (Rolnik, 2011) do final do século XX.
É nesse sentido que parece ser possível diferenciar as propos-
tas de articulação arte-política (Movimento Antropofágico,
Tropicalismo, contracultura, do que hoje se chama de arti-
vismo) daquela arte-militante pelo que Marcelo Ridenti (2000)
chamou de “a grande família comunista brasileira”. Para além
de suas nuances internas e diferenciações entre lukácsianos e
brechtianos, a “grande família” tem em comum o fio condutor
da construção de uma arte para a conscientização. Para a eleva-
ção do que se chamava de “povo”, uma categoria problemática,
desde a condição de “classe em si” até status de “classe para si”.
Discurso muito comum entre os conhecidos Teatro de Arena,
CPC da UNE e demais experiências similares do início dos anos
1960 no Brasil e que ficaram conhecidas como arte popular
revolucionária (Hollanda, 2004). Essas experiências foram
denominadas por Rolnilk (2011) como pertencentes ao campo
da macropolítica, que ficaram conhecidas como arte engajada.
Ao contrário desse fenômeno, a autora argumentará que a arte
envolvida com o desbloqueio das possibilidades do corpo e da
liberação do fluxo do desejo está no campo das micropolíticas
e seus processos de subjetivação criativos62.

Outra escritora que pode ajudar a pensar a tensão entre arte e


política é Susan Sontag. A ensaísta americana considerava os
dois campos como radicalmente distintos. Não pelas temáticas

62. Contudo, é importante questionar em que medida o artivismo em sua experiên-


cia empírica se afasta e se aproxima dessas noções de elevação de consciência de um
determinado público.

201
GÉNEROS E SEXUALIDADES

abordadas, mas pelas formas de condução da escrita criativa.


A mesma afirmava que quando alguém escreve um panfleto
ou um ensaio tem que fazer o esforço de comunicar e argu-
mentar em torno de uma ideia. Uma tese coerente. Por sua
vez, quando alguém escreve ficção pode colocar as inúmeras
e contraditórias vozes que lhe habitam na boca de diversos
personagens63. A autora parece sugerir a necessidade de fuga
de uma possível arte-didática que reduziria as capacidades
criativas e prescreveria modos unívocos de ação.

Mesmo não considerando sua obra ficcional como direta-


mente política, o texto literário de Sontag que obteve maior
repercussão mundial foi Assim vivemos agora, de 1986, no
qual tratava da AIDS em uma época em que o governo ame-
ricano negava a existência da epidemia. O fato da escritora
ser uma personalidade internacionalmente famosa ajudou
enormemente o ativismo da AIDS, então nascente. Ao ponto
da mesma ser homenageada na ópera-rock Rent, de Jonathan
Larson, um clássico do teatro sobre a AIDS.

A relação da escrita de Susan Sontag com a AIDS estava inse-


rida em um movimento maior que foi chamado posterior-
mente de “epidemia discursiva” (Bessa, 1997), momento em
que a temática da síndrome “invadiu” a produção de nume-
rosos artistas. Inclusive, muitos deles se tornando ativistas. O
tensionamento arte-ativismo esteve fortemente presente nas
intervenções públicas do ACT Up e Queer Nation (Downing,
2002). Os mesmos realizavam as mais diversas performances,
como invadir igrejas, prefeituras e outras repartições públicas.

63. Essa postura da escritora já existia antes do interesse dela pela epidemia da AIDS,
o que pode ser constatado em sua entrevista ao programa de TV “Voices” de 1983. Dis-
ponível em https://www.youtube.com/watch?v=9PcJR5MWrzc [acessado em 02 de
agosto de 2016]

202
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Não raro, havia também os happenings mórbidos, nos quais


os pacientes terminais faleciam em praça pública para
denunciar o descaso dos governos com a síndrome64. Outro
ato performático era o chamado Candlelight, uma vigília para
o luto público em alusão às vítimas da AIDS (Sousa, 2016).

Uma outra diferenciação entre o que se chama de artivismo


e a arte engajada de outrora parece residir no foco dado ao
corpo como expressão simultaneamente política e artística,
além do contexto de crises e emergências de novas possibili-
dades de ocupação do espaço público na virada do século XX
para o XXI. A irrupção desses artivismos parece estar ligada
às expressões de políticas do corpo como local de fruição e
ação política. Se a queda do muro de Berlim e o fim das expe-
riências do chamado socialismo real decretaram também o
fim da História e da Política, vemos, no alvorecer do século
XXI, formas outras de criação de esferas de interlocução.
Elas serão chamadas por diversos termos como: ocupações,
espaço de aparecimento, espaços liminares, espaços criativos,
etc. (Giovanni, 2015; Mourão, 2015).

Embora esses espaços e experiências não tenham sido cria-


dos exclusivamente na década vigente, como vimos, as polí-
ticas queer e coalizões da AIDS já agiam nesse sentido. Para
Mourão, a crise de 2008 teria sido um importante elemento
catalizador do artivismo na Europa e nos EUA. Nas palavras
do escritor: “atualmente, em grande medida por causa da
crise socioeconômica, tem-se cruzado práticas artísticas e
posicionamentos relativos à pólis com uma renovada vitali-
dade” (Mourão, 2015, p. 55).

64. Já no Brasil, tivemos a temática da AIDS invadindo obras como as de Caio Fer-
nando Abreu, entre outros. Contudo, o único autodeclarado ativista da AIDS e escritor
brasileiro parece ter sido Herbert Daniel (Bessa, 2002).

203
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Vitalidade que se contrapõe à captura das artes e das subjeti-


vidades flexíveis ao que Rolnik (2011) chamou de “geopolítica
da cafetinagem”. Se as sociedades totalitárias tenderiam à
paralisia do chamado “corpo vibrátil” e de uma subjetividade
criadora, a maquinaria capitalista flexível, por sua vez, teria
como ação absorver e transformar em mercadoria os movi-
mentos de contestação. O que Hija de Perra (2014), citando
Zizek, chamou de “shopping queer”65.

Dentre as diversas formas de nomeação desses espaços outros


de criação, privilegiamos aqui os momentos em que os auto-
res se valem do conceito de “espaço de aparição/aparência/
aparecimento”66 para pensar esses novos modos de ocupação
artística da cena pública. É o que Mourão atesta quando ana-
lisa a exposição Nossos sonhos não cabem nas urnas. Para o
escritor, a mesma funcionava como uma espécie de metáfora
visual pois cada projeção se ligava a outra e, simultaneamente
ao conjunto, num todo. A composição refletia virtualmente
várias realidades performadas, analogia do que Hannah
Arendt chamou de “espaço da aparência” (Arendt 2001: 249)
– o espaço que permite estruturar a esfera pública e por ela
ser estruturado, um espaço que só é possível constituir pela
pluralidade de atores. Neste caso, atores de contrapoder em
diversas performances artivistas no espaço público (Mourão,
2015, p. 65)

65. Um movimento que não se reduz à apropriação da expressão queer em produtos


culturais como os seriados “Queer as folk” ou “A queer eye for the straight guy,” mas
abrange a transformação em mercadorias de todas as construções imagéticas e discur-
sivas potencialmente vendáveis, como a fotografia de Che Guevara, os óculos de John
Lennon e toda a expressão do que ficou conhecido como movimento hippie.
66. Os diversos autores traduzem de forma distinta a expressão arendtiana original-
mente formulada em inglês: space of appearence. Preferimos traduzi-la como espaço
de aparecimento, uma vez que “espaço de aparência” pode remeter ao dualismo pla-
tônico aparência x essência, o que não cabe no pensamento arendtiano, uma vez que,
para ela, ser é aparecer.

204
INTERSEÇÕES E TANGENTES

É nesse sentido ainda que Giovanni aponta a contribuição de


Judith Butler para a renovação do pensamento de Hannah
Arendt ao trazer para o debate da esfera pública as questões
ligadas à corporeidade, as quais formam, por sua vez, negli-
genciadas pela última. Assim, Butler “já apontou que pensar
essas manifestações de rua em termos de abertura de espaços
políticos – de “espaços de aparecimento” na teoria arendtiana
– exige hoje que investiguemos a dimensão corporal da ação”
(Giovanni, 2015, p. 23).

Em sintonia com o livro mais recente de Butler (2015c), que


discute essas questões, Notes towards a performative theory
of assembly, Mourão (2015) reafirma esse local do corpo na
interação arte e ativismo quando argumenta que faz parte
de toda política algo performativo e toda performance é algo
político. Ao mesmo tempo em que repõe, nesse domínio, a
performance art como espaço privilegiado de ação e criação.
É também nesse sentido que Giovanni compreende o lugar
do corpo performático no artivismo. Vale a longa citação:

Se há um lugar onde o “poder liminar” de uma ocu-


pação se preserva fora da praça ocupada, esse lugar
é o corpo – aquele que Foucault chamou ao mesmo
tempo de “utopia” e “topia implacável” (Foucault
1966). Para Marcelo Expósito, reside nos corpos a
memória social das sublevações políticas, e atra-
vés deles se explica a ressonância e os mimetismos
complexos entre episódios distintos de ocupação
temporária de “espaços falsamente públicos” para
subverter suas funções e constituir temporaria-
mente prefigurações de uma nova democracia. Se
a ocupação se tornou um paradigma em um ciclo
de revoltas das últimas décadas, segundo o autor,
é porque “em cada nova insubmissão coletiva os

205
GÉNEROS E SEXUALIDADES

corpos recordam: se produzem acontecimentos em


que o movimento em seu conjunto sabe e lembra
mais do que a mera soma dos sujeitos conscientes
que o compõem” (Expósito 2014:228). Se o momento
de um protesto se mostra aberto a outros possíveis,
segundo o autor, é porque quando cada corpo ali
abre-se aos outros reativa-se uma memória sen-
sível de outras lutas incompletas e expectativas
irrealizadas. (Mourão, 2015, p. 23).

Como já sinalizamos, essa parece ser uma característica dife-


rencial do chamado artivismo como forma de intervenção
política. Não mais um espaço de ação para levar a consciên-
cia a uma totalidade fechada chamada de “povo”, mas para
a reabertura da experiência à vulnerabilidade ao Outro ou,
nos termos de Rolnik (2011), a desobstrução e vibratilidade
do corpo. Tendo por base essas premissas, Colling questiona:

vivenciamos um período de subjetividades flexí-


veis, perversamente apropriadas pelo capitalismo,
ao mesmo tempo em que forças conservadoras se
articulam e retomam discursos de regimes dita-
toriais e, no meio desse turbilhão, determinadas
pessoas reagem, tentam produzir outras men-
sagens mas que, ao mesmo tempo, também não
estão necessariamente imunes da lógica do capital
sobre as suas produções pretensamente desestabi-
lizadoras e subversivas (2016, s/p).

Como saída possível, Rolnik aponta a necessidade de supe-


ração da anestesia da vulnerabilidade ao outro. Uma vez que
“a vulnerabilidade é a condição para que o outro deixe de ser
simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas
e possa se tornar uma presença viva” (2011, p. 12). Um corpo

206
INTERSEÇÕES E TANGENTES

aberto à possibilidade de afecção. As performances artivistas,


nas mais variadas formas de ocupações, expressões e lingua-
gens, seriam esse espaço de aparecimento privilegiado, tendo
em vista que as mesmas são “uma voz independente na esfera
pública, procurando interpelar o Outro a partir de certas estra-
tégias, arriscadas na sua audácia.” (Mourão, 2015, p. 28).

É importante pontuar que a construção desses espaços con-


tingentes de aparecimento em nada tem a ver com a esfera
pública burguesa teorizada por Habermas. É o que nos lembra
Barbalho quando mobiliza diversos autores que vão na con-
tramão do filósofo frankfurtiano:

Ortega, ao discutir o pensamento de Hannah


Arendt, coloca que, ao contrário da esfera pública
habermasiana, que tende para unificação, para a
identidade, a ideia de espaço público, na óptica
de Arendt, privilegia as diferenças, a pluralidade.
E não estando ligado ao Estado, o espaço público
privilegia locais de ação política, pois são múlti-
plas as possibilidades com as quais se pode criar
algo novo, experimentar novos espaços (2006, p. 15)

Vale ressaltar, contudo, que em termos de artivismo queer essa


relação não se apresenta de forma necessariamente apartada
das demandas em direção ao Estado. É o caso do coletivo
Mujeres al borde, de Bogotá (Vidal-Ortiz, Viteri & Amaya,
2014) ou mesmo do coletivo As travestidas, de Fortaleza (Lírio,
2015). Na verdade parecem se delinear duas grandes linhas de
atuação que não são estanques. Uma mais ligada à chamada
“democracia radical”, empenhada em questionar e denunciar
os limites dos direitos estabelecidos pelo Estado neoliberal,
assim como a pressão por outras formas de condução da polí-
tica mas também formas de reconhecimento dentro do Estado.

207
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Essa linha de pensamento faz parte das reflexões de Judith


Butler, Chantal Moufee, etc. E outra linha mais conectada às
perspectivas anarquistas de questionamento não só do Estado
neoliberal, como também qualquer forma de condução a partir
do Estado. Perspectiva mais alinhada com as reflexões de Paul
B. Preciado e as chamadas multidões queer.

Essas questões são importantes para pensar a política do desejo


no pensamento de autoras como Butler (2015b), conceito que,
em sua produção mais recente, aparece também como desejo/
demanda de reconhecimento por parte do Outro. No caso de
Butler, ao se perguntar o que é reconhecível como uma vida
válida, parece haver a retomada de uma cena pós-hegeliana de
reconhecimento. Contudo, não há aqui uma demanda por reco-
nhecimento a partir dos predicados/identidades nos termos
da dialética senhor/escravo. Parece ser nesse sentido que o
pensamento da teórica queer aponta hoje para uma política da
despossessão (Butler & Athanasiou, 2013; Butler, 2015a, 2006).
Em uma espécie de reconhecimento sem identidade. O reco-
nhecimento do outro não mais pelos predicados que possui,
mas por uma espécie de precariedade que atinge a todos e todas.

Ainda no Brasil, temos as apropriações do pensamento de


Judith Butler por parte de Vladmir Safatle (2015, 2012). Para
o filósofo, viveríamos em uma política do medo como afeto
paralisador da criação. E somente a circulação de afetos para
além da esperança ou do medo que garantiria a construção
de uma política da despossessão. Uma política para além das
identidades, dos predicados. Em última instância, uma polí-
tica do desamparo no sentido psicanalítico, na qual eu me
deixo ser despossuído pelo Outro e uma espécie de vínculo
ético surge a partir da experiência de precariedade. Esse des-
bloqueio possibilitaria a emergência do novo, do impensável,
daquilo fora da existência discursiva palpável.

208
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Todas essas propostas de Butler, Preciado, Mouffe, Safatle,


Rolnik, guardadas as suas diferenças, problematizam a insu-
ficiência da unidade do sujeito, do indivíduo moderno e as
formas de fazer política. Parece ser dessa insuficiência que
surgem as formas de interlocução entre arte e ativismo.

O artivismo de Mc Linn
Como vimos, o ativismo sintonizado com perspectivas queer
aposta na possibilidade de desestabilização das identidades,
na transformação social e na quebra de normas regulató-
rias. O propósito é estranhar tanto as formas de fazer arte
quanto as formas de produzir ativismo. Essa perspectiva de
dialogar estreitamente e intencionalmente com um “lugar de
abjeção’’ pode ser assinalada como uma forte expressão dos
artivismos queer que pretendem enfrentar as imposições do
sistema heteronormativo.

A seguir um trecho da música Enviadescer, de Mc Linn da


Quebrada, que rejeita um modelo de “gay-macho-discreto”
e da hetero/homonormatividade (Oliveira, 2013), compor-
tamento e “modo gay de ser”, uma espécie de higienização
que reitera o ideal da masculinidade hegemônica, ratificando
esse lugar através da desqualificação do que seria uma expres-
sividade considerada feminina:

Hey, pssiu, você aí, / Macho Discreto, /chega mais,


/cola aqui, /vamo bater

um papo reto, /que eu não to interessada no seu


grande pau ereto. /Eu gosto

mesmo é das bicha! Das que são afeminada das


que mostram muita pele

209
GÉNEROS E SEXUALIDADES

rebolam, saem maquiada. /Eu vou falar mais


devagar pra ver se consegue

entender:/ Se tu quiser ficar comigo boy,/ hahaha/


Vai ter que enviadescer.

(Enviadescer- Mc Linn da Quebrada) (Fonte: Canal


do Mc Linn da Quebrada no YouTube)

Negra, periférica, paulista e deliberadamente escrachada. É


através de uma musicalidade que mistura funk e rap e de
uma estética que explora roupas, cabelo e maquiagem hiper-
coloridos, além de danças e performances irreverentes, que
Mc Linn da Quebrada vem contestando fortemente o “macho
alfa’’ e o “gay-discreto’’ através do cruzamento de estilos
musicais dominados por cantores e cantoras que valorizam
as suas masculinidades ou feminilidades em corpos com
gêneros tidos como coerentes com suas genitálias. Por sua
vez, com muito glitter e enfrentamento, o trabalho de Mc
Linn não só critica a imposição heteronormativa do “gay-dis-
creto’’, mas também enaltece e visibiliza as resistências das
bichas pintosas.

O trabalho de Mc Linn ainda ironiza e desqualifica a ideia


hegemônica de masculinidade. Sua música desconsidera
a ideia binária do pênis como centro do desejo, fortalece e
atribui sentido positivo a uma estética que apresenta carac-
terísticas marginalizadas e tidas como abjetas. Para além da
letra da canção, as imagens do clipe67 também trabalham com
uma perspectiva queer interseccionalizada com vários outros
marcadores sociais das diferenças, a exemplo de questões
geográficas, raciais, de gênero, classe, padrões corporais e

67. Ver https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY

210
INTERSEÇÕES E TANGENTES

orientação sexual. O clipe é gravado no bairro onde Linn mora


e com pessoas cujas corporalidades são diversas e também
marginalizadas. Sapas, bichas, corpos gordos e negros com-
põem o clipe com danças e que produzem interseccionalida-
des como propostas estéticas de enfrentamento.

“É das bicha afeminada” que ela se refere com desejo e como


modo de resistência. Não há aspiração pela norma, ao con-
trário, ela é fortemente criticada. Também não há um com-
promisso com uma estética asséptica ou com uma linguagem
culta. É justamente a partir dessa “ofensa’’ que sua estética
e letra se produzem, fortalecendo esses aspectos geralmente
marginalizados, como o corpo da bicha afeminada, e atri-
buindo a ele outros sentidos.

A negação e o desprezo atribuídos a esses corpos e sujeitos


são reapropriados de forma que o estranho e desviante se
configurem como perspectiva de construção e reivindicação
política e artística (Inácio, 2016, p. 89). O corpo subalterno
torna-se então o elemento central das possibilidades de
borrar as fronteiras binárias entre os gêneros, por exemplo, e
também as perspectivas mais tradicionais a respeito da arte.

E é justamente a partir de suas vivências e do seu próprio


corpo que Linn desenvolve essas questões. Ela afirma que sua
produção e seu estilo estão diretamente relacionados à sua
realidade. Reconhece que suas inspirações e pirações vêm
das ruas, da margem e da noite. O que ela descreve como
um universo mais próximo da sarjeta. “Ela se define “Bicha,
trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx,
performer e terrorista de gênero.” Ativista, colaborou com
a formação da ONG Atravessa (Associação de Travestis de
Santo André) e atua como performer no Coletive Friccional.”
(Caparica, 2016)

211
GÉNEROS E SEXUALIDADES

No trecho dessa entrevista, fica explícito como o trabalho


de Mc Linn dialoga com o que estamos chamando de um
artivismo das dissidências sexuais e de gênero, significati-
vamente sintonizado com as perspectivas queer e fortemente
interseccional.

O que você quer dizer exatamente com “enviadecer”?68

MC LINN - Enviadecer pra mim, como eu digo


na música, não tem a ver com gostar de rola ou
não. Não tem a ver com ser gay. Pra mim é uma
atitude. Um posicionamento. Tem a ver com não
ser macho, com poder dar pinta, existir da forma
como eu escolher. Tem a ver com ser afeminada, e
ter orgulho disso. Em celebrar o feminino indepen-
dente de em que corpo ele esteja localizado.

Lésbicas e héteros são capazes de enviadecer também? O que


ganham com isso?

Como eu disse acima, enviadecer é um posiciona-


mento em que eu privilegio o meu corpo, os meus
afetos, a minha vivência, e não um sistema hete-
ronormativo compulsório que possui um roteiro
pré-estabelecido e que vai decidir por mim como
eu devo viver, que roupas devo usar, com quem,
quando, e como devo transar e/ou me apaixo-
nar, como devo amar, como devo me comportar,
gestos, empregos, estética, que aparência devo ter
pra ser amada e ter uma vida digna; e caso eu
não aceite esse contrato, que nem é posto como

68. Em seu clipe, Mc Linn grafa a palavra com “s” (enviadescer) e o autor da entrevista
grafou sem o “s”.

212
INTERSEÇÕES E TANGENTES

possibilidade, eu sou punida por isso. Enviadecer


é, pra mim, assumir o controle do próprio corpo,
da própria vida. É também duvidar de suas pró-
prias certezas. É poder errar; é erro enquanto
acerto, como possibilidade. É poder inventar sua
própria história. É ser ao mesmo tempo criação e
criadora. E isso não depende do que eu tenho no
meio das minhas pernas, se sou hétero ou não, até
porque quando se assume isso, você ganha auto-
ria sobre si mesma. Aumentam as possibilidades,
diminuem as certezas e os limites se tornam mais
flexíveis. (Caparica, 2016)

Logo, segundo Mc Linn, para enviadescer não é preciso ser


homossexual, ou melhor, não é necessário ser viado. Sua
proposta, nesse sentido, foge do rígido modelo identitário
para pensar o enviadescer como um posicionamento capaz
de diversas coisas, inclusive duvidar de certezas e inventar
suas histórias. Ao enviadescer aumentamos nossas possibi-
lidades e flexibilizamos aquilo que definimos como limites.
Em um mesmo clipe e em uma pequena entrevista, Mc Linn
consegue, rapidamente, tratar de interseccionar sexualidade,
gênero, raça, padrões corporais, territorialidades.

Se Puar (2013) defende que temos usado a ideia de intersec-


cionalidade muito mais para falar de identidades negras e,
com isso, temos deixado as identidades raciais brancas numa
zona de conforto,Mc Linn da Quebrada nos alerta para outras
identidades heterossexuais e homossexuais que precisam ser
desconfortadas. Ou seja, ao enviadescer a interseccionalidade
acontece, ou melhor, o enviadescer torna-se fundamental
para uma proposta interseccional.

213
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Referências
• Barbalho, A. (2006). No ar da diferença. Comunicação e informação,
V, 9, nº 1, pp. 08-16.
• Bessa, M. S. (1997). Histórias positivas: a literatura (des)construindo
a AIDS. Rio de Janeiro: Rocco.
• Bessa, M. S. (2002). Os perigosos. Rio de Janeiro: Aeroplano.
• Butler, J. (2015a). Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
• Butler, J. (2015b). Relatar a si mesmo. São Paulo: Autêntica.
• Butler, J. (2015c). Notes toward a performative theory of assembly.
London: Harvand University Press.
• Butler, J. (2006). Vida precaria: el poder del dielo y la violencia.
Buenos Aires: Paidós.
• Butler, J. & Athanasiou, A (2013). Dispossession: the performative in
the political. Cambridge: Polity Press.
• Caparica, M. (2016). MC Linn da Quebrada: “o ódio disfarçado de
opinião é tão culpado quanto quem mata. Lado Bi, Recuperado
em 20 agosto, 2016, de http://ladobi.uol.com.br/2016/05/
mc-linn-quebrada-enviadecer/
• Cysneiros, A. B. (2014). Da transgressão confinada às novas possi-
bilidades de subjetivação: resgate e atualização do legado Dzi a
partir do documentário Dzi Croquettes. Dissertação de mestrado não-
publicada. Universidade Federal da Bahia, Programa Multidisciplinar
de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, Salvador, Brasil.
• Colling, L. (2016). A emergência do artivismo da dissidência sexual e
de gênero no Brasil da atualidade. In: Garcia, P. C. & Thürler, D. (orgs.)
Erotização da política e a política do desejo: narrativas de gênero e
sexualidades em tempos de cólera. Salvador, EDUNEB, pp. 74-86.
• Colling, L. (2015). Que os outros sejam o normal. tensões entre
movimento LGBT e ativismo queer. Salvador: EDUFBA.
• Downing, J. D. H. (2002). Mídia radical: rebeldia nas comunicações
e movimentos sociais. São Paulo: Senac.
• Deleuze, G. & Parnet, C. (2004). Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água.
• Giovanni, J. (2015). Artes de abrir espaço. Apontamentos para a
análise de práticas em trânsito entre arte e ativismo. Cadernos de
Arte e Antropologia, Vol. 4, Nº 2, pp. 13-27.
• Gramsci, A. (1975). Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes.
• Hollanda, H.B. (2004). Impressões de viagem. Rio de Janeiro:

214
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Aeroplano.
• Lírio, G. (2015). Br trans e a potência do corpo performativo: conversa
com Silvero Pereira. Questão de crítica. Rio de Janeiro,Vol. VIII, pp.
263-272.
• Lord, C. & Meyer, R. (2013). Art & queer culture. London: Paidon Press.
• Mourão, R. (2015). Performances artivistas: incorporação duma
estética de dissensão numa ética de resistência. Cadernos de Arte e
Antropologia, Vol. 4, Nº 2, pp. 53-69.
• Oliveira, J. M. (2013). Cidadania sexual sob suspeita: uma meditação
sobre as fundações homonormativas e neo-liberais de uma cidadania
de “consolação”. Psicol. Soc. vol.25, n.1, pp.68-78.
• Perra, H. (2014). Interpretações imundas de como a Teoria Queer
coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-
mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos
encantados com a heteronorma. Revista Periódicus, Vol 1, nº 2.
• Puar, J. (2013). “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”:
interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, Belo
Horizonte, volume 8, número 2, pp. 343-370.
• Raposo, P. (2015). “Artivismo”: articulando dissidências, criando
insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, volume 4, número
2, pp. 3-12.
• Ridenti, M. (2000). Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Editora
UNESP.
• Rolnik, S. (2011). Cartografia sentimental - transformações
contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS.
• Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify.
• Safatle, V. (2012). Grande hotel abismo: por uma reconstrução da
teoria do reconhecimento. São Paulo: Martin Fontes.
• Sant’ana, T. S. (2016). Outras cenas do queer à brasileira: o grito
gongadeiro de Jomard Muniz de Britto no cinema da Recinfernália.
Dissertação de mestrado não-publicada. Universidade Federal da
Bahia, Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e
Sociedade, Salvador, Brasil.
• Sousa, A. N. (2016). Da epidemia discursiva à era pós-coquetel: notas
sobre a memória da AIDS no cinema e na literatura. In. Anais do II
Seminário Internacional de Memória Social. Rio de Janeiro, pp. 01 a 14.
• Vidal-Ortiz, S., Viteri, M. A. & Amaya, J. F. S. (2014). Resignificaciones,
prácticas y políticas queer en América Latina: otra agenda de cambio
social. Nómadas, n.41, pp.185-201.

215
INTERSEÇÕES E TANGENTES

Notas biográficas
Alexandre Nunes de Sousa é professor da Universidade Federal
do Cariri no Brasil e doutorando no Programa Multidisci-
plinar de Pós-graduação e Cultura e Sociedade. Integra o
grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) da UFBA.
E-mail: alexandrenunes@cariri.ufc.br

Amana Mattos é feminista, graduada em psicologia, mestre


e doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, e coordena o DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e
Desconstrução de Gêneros. E-mail: amanamattos@gmail.com

António Manuel Marques é doutorado em Psicologia Social


e Organizacional pelo Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE-IUL), Professor-Coordenador da Escola Superior de
Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal (Portugal) e iin-
vestigador no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL),
Centro de Investigação e Intervenção Social. Para além da
atividade docente em unidades curriculares que visam apli-
cação da perspetiva psicossocial aos contextos da saúde, tem
investigado e editado nos domínios da psicologia e sociologia
da saúde, da sexualidade e dos estudos do género e da mascu-
linidade. E-mail: antonio.marques@ess.ips.pt

Conceição Nogueira é Professora Associada com Agregação


na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade do Porto. Doutorada em Psicologia Social
- Universidade do Minho e autora de variadas publica-
ções nacionais e internacionais - artigos em revistas

217
GÉNEROS E SEXUALIDADES

científicas, livros, capítulos de livros e procedimentos confe-


renciais sobre Estudos de Género, Feminismos, Sexualidades
e Interseccionalidades, tem experiência na coordenação de
diversos projetos financiados pela FCT no seu domínio de
investigação. Email: cnogueira@fpce.up.pt

Emília Bezerra de Miranda é psicóloga e mestre em psi-


cologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia
- UFPE. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL), onde desen-
volve estudos sobre juventude e amizade; juventude, gênero
e sexualidade.

Francisco Sena é estudante de Psicologia da Universidade


Federal da Bahia, Brasil (UFBA) e integra o grupo de pesquisa
Cultura e Sexualidade (CUS) da UFBA.

Georgia Grube Marcinik é graduada em Psicologia,


Especialista em Gênero e Sexualidade (CLAM/UERJ), mes-
tranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (bolsista
CAPES) e pesquisadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa
e Desconstrução de Gêneros. E-mail: georgia_marcinik@
hotmail.com

Gracia Trujillo, doutora em Sociologia pela Universidade


Autónoma de Madrid, Espanha, membro doutorado do
Instituto Juan March de Estudios e Investigaciones e pro-
fessora da UCLM desde 2007. É docente em cursos de pós-
-graduação da Universidade Complutense de Madrid e da
Universidade Internacional da Andaluzia. Investigadora e
ativista, integrou vários grupos feministas e queer desde os
anos noventa e é parte do movimento 15M desde 2011. Seus

218
INTERSEÇÕES E TANGENTES

interesses de pesquisa giram em torno das teorias e práticas


políticas feministas e queer, feminismo pós-coloniais, peda-
gogias críticas e, mais recentemente, reprodução e parentesco
não-heterossexual, áreas em que tem um amplo número de
publicações. Alguns desses trabalhos podem ser encontrados
na página https://uclm.academia.edu/GraciaTrujillo. E-mail:
Gracia.Trujillo@uclm.es

Jaileila de Araújo Menezes é psicóloga pela Universidade


Federal do Ceará, Brasil, mestre e doutora em psicologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente vinculada
ao Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais
do Centro de Educação e ao Programa de Pós-graduação
em Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas
(GEPCOL), onde desenvolve estudos sobre juventude e parti-
cipação sócio politica, juventude e projeto de vida, juventude,
gênero e sexualidade. E-mail: jaileila@terra.com.br

João Manuel de Oliveira é investigador auxiliar no Centro de


Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário
de Lisboa (ISCTE-IUL) onde presentemente coordena a linha
de investigação Género, Sexualidades e Interseccionalidades.
Tem publicado sobre as seguintes áreas de pesquisa em
Portugal e no estrangeiro: teorias feministas, estudos críticos
da sexualidade, teoria do género, necropolítica e neolibera-
lismo, teoria queer, cidadania sexual, heteronormatividade e
homonormatividade. É doutor em Psicologia Social. E-mail:
joao.oliveira@iscte.pt

Karla Galvão Adrião é Psicóloga, com mestrado em Lingistica


(UFPE) e doutorado em Ciências Humanas (UFSC) com área
de especialidade em estudos feministas e de género. Seu

219
GÉNEROS E SEXUALIDADES

pós-doutorado foi realizado na City University of New York


(CUNY/USA), sobre psicologia social, estudos feministas e pes-
quisa-intervenção com jovens em situação de desigualdade.
Atua como professora no departamento e na Pos-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco-Brasil.
Co-coordenadora do Laboratório de Estudos da Sexualidade
Humana (Labeshu), e dos coletivos feministas Diadorim e A
Coletiva/Labeshu/UFPE. Desenvolve estudos sobre Sujeitos
do Feminismo, pesquisa-intervenção, processos grupais,
juventudes, direitos sexuais e direitos reprodutivos, numa
perspectiva Feminista pós-estrutural e decolonial. Email:
galvaoadriao@gmail.com

Leandro Colling é doutor em Comunicação e Cultura Con-


temporâneas pela Universidade Federal da Bahia, Brasil. É pro-
fessor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC)
Professor Milton Santos e professor permanente do Programa
Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade,
ambos da Universidade Federal da Bahia. É criador e coor-
denador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e
um dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus,
primeira e única inteiramente dedicada aos estudos queer no
Brasil. É autor do livro Que os outros sejam o normal: tensões
entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador dos
livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do
CUS, todos editados pela Editora da Universidade Federal da
Bahia. E-mail: leandro.colling@gmail.com

Lígia Amâncio é licenciada em Psicologia e Educação pela


Universidade de Paris VIII, doutorada em Sociologia pelo
ISCTE e professora catedrática de psicologia social do ISCTE-
Intituto Universitário de Lisboa desde 2002. Dedicou a sua
carreira de investigação ao estudo dos processos de constru-
ção social do masculino e do feminino e das suas implicações

220
INTERSEÇÕES E TANGENTES

para os indivíduos mulheres e homens. Foi Presidente da


Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres
de 1996 a 1998 e Vice-Presidente da Fundação para a Ciência
e a Tecnologia de 2006 a 2012. E-mail: ligia.amancio@iscte.pt

Maria Helena Santos é licenciada, mestre, e doutorada em


Psicologia Social e Organizacional pelo Instituto Universitário
de Lisboa (ISCTE-IUL). Atualmente, é investigadora de pós-
-doutoramento no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-
IUL), Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-IUL)
do ISCTE-IUL, do qual é membro integrado. A sua área de
atividade científica tem sido desenvolvida em torno de estu-
dos teóricos e empíricos sobre as desigualdades de género na
política e as medidas de ação positiva criadas para as com-
bater, em particular as quotas e a Lei da Paridade. E-mail:
mhelena.rc.santos@gmail.com

Pablo Pérez Navarro é doutor em Filosofia pela Universidade


de La Laguna, Espanha, com a tese “Performatividade, género
e identidade na obra de Judith Butler.” A sua investigação de
pós-doutoramento tem-se desenvolvido entre a Universidade
Carlos III de Madrid e no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra. Na primeira ele dirigiu e leccionou,
entre outros, um curso de introdução à teoria queer por três
anos consecutivos. Ele é o autor de Del texto al sexo: Judith
Butler y la performatividad (Egales, 2008), capítulos en obras
colectivas e outras publicações. Os seus trabalhos recentes
centram-se nas masculinidades queer, ativismos LGTBQ em
cenários de protesto e crítica das políticas estatais de género
e sexualidade. E-mail: pabloperez@ces.uc.pt

Rita Grave é licenciada em Ensino Básico - 1º Ciclo


(Universidade do Minho - Instituto de Estudos da Criança) e
Mestre em Psicologia (Universidade do Porto - Faculdade de

221
GÉNEROS E SEXUALIDADES

Psicologia e Ciências da Educação). Tendo desenvolvido uma


Dissertação em torno das questões de género e Teoria Queer,
intitulada ‘Desidentificações de Género: Discursos e Práticas’,
está atualmente a desenvolver investigação no âmbito dos
géneros e das sexualidades. Email: anaritaguerragrave@
gmail.com

Roseane Amorim da Silva é Psicóloga, Especialista em Saúde


Mental e Mestre em psicologia pela Universidade Federal
de Pernambuco, Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-
graduação em Psicologia - UFPE. Pesquisadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas
- GEPCOL, tem trabalhado com pesquisas sobre juventude, uso
de álcool e interseccionalidade.

222
INTERSEÇÕES E TANGENTES

225
Research brief 2019

ATITUDES SOCIAIS FACE


À HOMOSSEXUALIDADE
EM PORTUGAL E NO
BRASIL NO VIRAR DO
SÉCULO XXI
Rita Gouveia
Liliane Moser
Introdução
ÍNDICE
Ao longo das últimas décadas tem-se assistido a mudanças cruciais na sociedade portuguesa
e na sociedade brasileira no que respeita ao crescente reconhecimento público, político e legal
dos direitos sociais de homens e mulheres homossexuais. Por um lado, testemunha-se alguns
progressos relevantes na legitimação e visibilidade dos direitos sociais de homens e mulheres
homossexuais, tais como a criminalização da homofobia e o acesso legal à conjugalidade e à
2 parentalidade. Por outro, persistem fortes desigualdades sociais e formas de discriminação e
exclusão social, que afetam grandemente as suas sociabilidades, práticas familiares, o seu bem-
-estar e o exercício pleno da sua cidadania.
Evolução temporal das No que toca à discussão e à introdução de medidas legais e políticas sociais promotoras de
atitudes sociais face à uma maior igualdade entre indivíduos com diferentes orientações e identidades sexuais, o per-
homossexualidade curso destes dois países tem-se pautado por diferentes estratégias, lógicas e ritmos (ver caixa 1).
Por conseguinte, importa refletir em que medida tais políticas se traduzem em mudanças na
forma de pensar a homossexualidade e os direitos sociais de homens e mulheres homossexuais
em Portugal e no Brasil. De que forma tem vindo a mudar a perceção da população portuguesa
e brasileira relativamente à homossexualidade ao longo dos últimos 30 anos? Quais os grupos
4-6 sociais mais tolerantes e quais os grupos sociais mais resistentes?
Com base na análise de dados longitudinais provenientes do EVS – European Values Study
(https://europeanvaluesstudy.eu) e do WVS – World Values Survey (http://www.worldvaluessurvey.
O papel das características org), o presente research brief dá a conhecer a evolução das atitudes sociais da população por-
sociodemográficas tuguesa e da população brasileira face à homossexualidade no virar do século XXI, apontando
para as semelhanças e diferenças entre os dois países e para as linhas de continuidade e mudan-
ça ao longo do tempo (ver caixa 2). Analisaremos estes dados tendo em conta o impacto de fac-
tores sociodemográficos como o sexo, a idade, o nível de escolaridade e de religiosidade, mas
também de factores culturais como as atitudes face à vida familiar. Finalmente, oferecemos
6 um olhar mais atual sobre estas questões em Portugal e no Brasil, separadamente, com base em
dados estatísticos não comparáveis, mas referentes ao mesmo ano de 2014.
É de salientar a dificuldade em aceder a dados oficiais sobre a população LGBTQIA+ (lésbica,
O papel das atitudes
gay, bissexual, transgénero, queer, intersexo, assexual e outros não heteronormativos) nos dois
face aos modelos
países, que nos permitam caracterizar as suas condições de vida nas diversas esferas sociais à
culturais de família
excepção do casamento civil. Das escassas estatísticas oficiais referentes à população homosse-
xual nos dois países, podemos verificar a evolução do número de casamentos civis anuais entre
pessoas do mesmo sexo em Portugal e no Brasil. Observamos um crescimento nos dois países,
sobretudo a partir de 2014. Curiosamente, em Portugal casam-se mais homens do que mulhe-
res, enquanto no Brasil assistimos à tendência oposta, havendo mais casamentos entre mulhe-
8-9 res. Em 2017, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo correspondem a 1.55 % do total de
casamentos em Portugal e 0.55% do total de casamentos no Brasil. Esta lacuna de dados oficiais
Um olhar sobre prende-se, sobretudo, com a polémica questão da autoidentificação da orientação e/ou identi-
a atualidade dade sexual nos inquéritos populacionais e em estatísticas oficiais, como aquelas relativas aos
processos de adopção (OECD, 2019). Por outro lado, são também escassos os estudos representa-
tivos da população em geral que se debrucem sobre as representações sociais da homossexuali-
dade e as atitudes sociais face ao reconhecimento de direitos familiares de homens e mulheres
homossexuais.
10-11 Por conseguinte, consideramos que os dados aqui analisados oferecem informação valio-
sa sobre estas questões e esperamos contribuir para um conhecimento mais aprofundado das
Concluões atitudes sociais da população portuguesa e brasileira face à homossexualidade, bem como dos
processos de diferenciação social que atuam sobre as mesmas.

Caixa 2 – Nota metodológica


Os inquéritos: O EVS e o WVS investigam as mudanças nos valores e nas atitudes face a
várias dimensões sociais da vida, tal como o género, o capital social, a democracia, a religião,
a igualdade de género, as relações intergrupais, entre outros. Os dois inquéritos são homólogos,
no sentido em que contém um conjunto de perguntas e indicadores comuns, permitindo analisar
comparativamente as atitudes e os valores sociais de indivíduos pertencentes a diferentes países
e continentes. Os dois inquéritos foram aplicados em Portugal e no Brasil em anos que não são
exatamente coincidentes, mas que representam os mesmos momentos temporais: início da
década de 90, final da década de 90 e final da década de 2000. Em Portugal, o EVS foi aplicado
em 1990, 1999 e 2008. No Brasil, o WVS foi aplicado em 1991, 1997 e 2006. Por conseguinte,
apesar das vantagens comparativas, temos de ter em conta estas diferenças que constituem uma
limitação do presente estudo.
CAIXA 1 – ALGUNS MARCOS LEGISLATIVOS

PORTUGAL BRASIL

1982 - Revisão do código penal, descriminalizando a 1989 – Vários estados federativos proíbem a discriminação com
homossexualidade (Decreto-Lei n.º 400/82) base na orientação sexual nas suas Constituições Estaduais
1980-1999

1995 – É proposto à Câmara dos Deputados o primeiro Projeto de


Lei – PL nº 1151 relativo à união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Contudo, após 24 anos este projecto de lei ainda não foi apreciado
pelos deputados.

2001 – Reconhecimento legal do direito à união de facto 2004 – Cria-se o Programa Brasil sem Homofobia, marco inicial no
e à economia comum por casais dos mesmo sexo (Lei n.º processo de regulação de direitos LBGT, pelo Conselho Nacional
2000-2004

7/2001) de Combate à Discriminação do Ministério da Saúde.


2003 - A homossexualidade é protegida pela lei do código do
trabalho (Lei n.º 99/ 2003)
2004- A orientação sexual é incluída no artigo 13º do princípio
da igualdade na Constituição Portuguesa

2007- É criada uma lei no código penal que protege 2006 – Sancionada Lei Maria da Penha, que coíbe a violência
os homossexuais da discriminação e ofensas à integridade doméstica e familiar contra a mulher e prevê que as relações
física (Lei nº 59/2007) pessoais independem de orientação sexual. (Lei nº 11.340/2006)
2007 – Estabelecida idade de consentimento igual entre 2008 – Realiza-se a I Conferência Nacional LBGT. Institui-
pessoas do mesmo sexo e entre pessoas do sexo oposto se no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo
(Lei nº 59/2007) Transexualizador. (Portaria Ministério Saúde nº 1.707)
2007 - Inclusão de relações entre pessoas do mesmo sexo 2009 – É lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos-3,
na criminalização da violência doméstica (Lei nº 59/2007) a partir do qual prevê-se ações a serem adotadas pelo Governo
2009 - Foi introduzido o tema da homossexualidade e da brasileiro para combater a discriminação segundo a orientação
2005-2009

diversidade sexual na lei de aplicação da educação sexual sexual, bem como ações de sensibilização da sociedade para a
nas escolas (Lei n.º 60/2009) garantia do direito à liberdade e à igualdade de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais. (Decreto nº 7.037, de 21 de
dezembro de 2009)
2009 – É lançado o Iº Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e Direitos Humanos LGBT. São estabelecidas diretrizes para a
formação de professores e materiais didático-pedagógicos para
promover o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero
no contexto escolar, bem como para combater ao sexismo e a
homofobia (Resolução/CD/FNDE nº 16/04/ 2009).
2010 – O Superior Tribunal de Justiça – STJ conforme decisão
judicial em 27 de abril de 2010 reconhece como legal a adoção por
casais do mesmo sexo no Brasil.

2010 - Foi promulgada a lei que permite o casamento civil 2011 – O Superior Tribunal Federal – STF equiparou as relações
entre pessoas do mesmo sexo (Lei n.º 9/2010) entre pessoas do mesmo sexo à de união estável (Arguição de
2010-2014

2013 – Inclusão da identidade de género como motivação Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ).
nos crimes de homicídios, ofensas à integridade física e 2013 – A conversão da união estável em casamento e a celebração
discriminação e alargamento da questão da orientação de casamento direto foram reconhecidas pelo Conselho Nacional
sexual (até aí referente a gays, lésbicas e bissexuais) para de Justiça - CNJ através da Resolução Nº 175.
todas as pessoas abrangidas pela sigla LGBT (Lei n.º 19/2013)

2016 - Foi promulgada a lei que permite a adopção de 2019 – O Superior Tribunal Federal – STF considera que a homofobia
crianças por casais do mesmo sexo casados civilmente ou é crime, equiparando as penas por ofensas a homossexuais e a
2015-2019

em união de facto (Lei n.º 2/2016) transexuais às previstas na lei contra o racismo.
2017 – Alteração da Lei n.º 32/2006, permitindo um acesso 2019 – É aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do
inclusivo à procriação medicamente assistida (PMA), Senado Federal o Projeto de Lei PL 672/2019, que prevê incluir na
independentemente do diagnóstico de infertilidade, estado Lei de Racismo a discriminação por orientação sexual ou identidade
civil ou orientação sexual (Lei n.º 58/2017) de gênero.

Os indicadores estatísticos: Neste research brief utilizamos dois indicadores atitudinais: uma medida de aceitação social da homosse-
xualidade e uma medida de distância social a indivíduos homossexuais. Estes dois indicadores têm sido utlizados sistematicamente em
vários inquéritos internacionais, permitindo assim comparar as atitudes sociais face à homossexualidade em vários países e continentes.
Aceitação social da homossexualidade (justificabilidade da homossexualidade): Este indicador capta em que medida a homossexuali-
dade é considerada “justificável” pelo inquirido. Os inquiridos devem responder à seguinte pergunta: Diga-me em que medida acha que a
homossexualidade é justificável, utilizando uma escala que vai de 1-nunca se justifica a 10-justifica-se sempre. O indicador varia entre 1 a
10, pelo que quanto maior o valor, maior o nível de aceitação social da homossexualidade.
Distância social a indivíduos homossexuais (homossexuais como vizinhos): Este indicador avalia em que medida os inquiridos se senti-
riam confortáveis com a presença de indivíduos homossexuais como vizinhos. Os inquiridos são confrontados com uma lista de grupos
sociais (e.g., ciganos, toxicodependentes, imigrantes) e têm de indicar quais os grupos sociais que não desejavam ter como vizinhos. Este
indicador é dicotómico: “mencionou não querer ter homossexuais como vizinhos” e “não mencionou não querer ter homossexuais como
vizinhos”. Na presente análise, focamo-nos na percentagem de inquiridos que mencionou “não querer ter homossexuais como vizinhos”.

3
Figura 2. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
1. Evolução temporal das atitudes sociais face à querer ter homossexuais como vizinhos - Brasil e Portugal, início
homossexualidade e final dos anos 90 e final dos anos 2000
Começamos por comparar os níveis de aceitação social da Figura 2.
homossexualidade e a perceção da distância social a indivíduos
100
homossexuais nos dois países, no início dos anos 90, no final dos
anos 90 e no final dos anos 2000. 80
Um primeiro aspeto que deve ser salientado prende-se com
o facto de as respostas dos inquiridos relativamente à aceitação 60 52,4
social da homossexualidade, tanto em Portugal como no Brasil,
40 30,2
se situarem abaixo do ponto médio da escala (5) em todos os 25,6 26,1 27,7
21,6
momentos considerados, inclusivamente no final da década de 20
2000. Estudos comparativos baseados nos mesmos dados do EVS
2008 indicam que, no contexto Europeu, Portugal se situa num 0
nível médio baixo de aceitação da homossexualidade. É nos paí- início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
ses do norte da Europa, tais como a Suécia, a Finlândia, a Norue- portugal brasil
ga, a Dinamarca e os Países Baixos, onde encontramos níveis
mais elevados de aceitação (Takács & Szalma, 2013).
Não obstante, se considerarmos a evolução da aceitação No que toca à perceção da distância social a “homossexuais”,
social da homossexualidade entre o início dos anos 90 e o final verificamos que houve uma redução da percentagem de inquiri-
da década de 2000, verificamos uma tendência positiva de cres- dos que mencionaram não querer ter indivíduos homossexuais
cente acolhimento público da homossexualidade nos dois paí- como vizinhos ao longo do tempo. Se em Portugal, no início
ses. Se no início dos anos 90, os valores médios se situavam em dos anos 90, praticamente metade da população portuguesa
redor dos 2.50 (2.18 em Portugal e 2.43 no Brasil), no final da reportava não desejar ter indivíduos homossexuais como vizi-
década de 90, esses valores subiram em mais do que 1 ponto nhos, esta percentagem reduziu para metade no final dos anos
médio. Contudo, enquanto no Brasil essa aceitação seguiu uma 90, mantendo a mesma percentagem no final dos anos 2000.
trajetória ascendente linear entre os três momentos em análi- No Brasil, também se assistiu a uma queda na percentagem de
se; em Portugal, apesar de a tendência ser também positiva, ela indivíduos desfavoráveis à presença de pessoas homossexuais
ocorreu a dois ritmos. Entre o início e o final da década de 90, como vizinhos, porém de forma mais subtil. Note-se que ape-
o crescimento foi muito pronunciado, chegando mesmo a atin- sar de a descida ser mais discreta, a representatividade de indi-
gir níveis de aceitação mais elevados do que no Brasil. Já o salto víduos que manifestavam não desejar ter homossexuais como
entre o final da década de 1990 e o final da década de 2000 foi vizinhos foi sempre inferior neste país. Enquanto no início dos
mais subtil. anos 90, 30% da população brasileira (em contraste com 52% da
Acreditamos que face às medidas legislativas introduzidas a população portuguesa) manifestava não querer homossexuais
partir de 2010 na sociedade portuguesa, esta evolução positiva como vizinhos, no final dos anos 90 e dos anos 2000, apenas 26%
da aceitação da homossexualidade tenha sido reforçada ao lon- e 22% dos inquiridos assumiam essa posição, respetivamente.
go da última década. Teremos oportunidade de avaliar a direção
e a intensidade dessa evolução entre 2008 e 2019 em Portugal,
através dos dados provenientes da próxima edição do EVS, cuja 2. O papel das características sociodemográficas
recolha acontecerá no final deste ano. Dados da ronda de 2014
do WVS no Brasil revelam que a aceitação social da homosse- Nesta secção, analisamos a variação dos indicadores de acei-
xualidade neste país continuou a aumentar, representando uma tação social da homossexualidade e de perceção da distância
média de 4.58 (ver secção sobre a atualidade). social a indivíduos homossexuais segundo o sexo, a idade, a reli-
Figura 1. Nível médio de aceitação social da homossexualidade ao giosidade e a escolaridade.
longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- justifica-se
sempre) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos 2.1 Sexo
anos 2000 Tanto em Portugal, como no Brasil, homens e mulheres
diferem no nível de aceitação social da homossexualidade e
5
4,24 essas diferenças têm-se expressado segundo o mesmo padrão
ao longo do tempo. Os dados revelam que as mulheres apre-
4
3,36 sentam níveis médios de aceitação da homossexualidade mais
3,68 elevados do que os homens em todos os anos considerados. No
3 2,43 3,17 entanto, essa clivagem de género é maior no Brasil do quem
2 Portugal. Por exemplo, no final dos anos 2000, os níveis de
2,18 aceitação médio entre homens e mulheres em Portugal con-
1 vergem significativamente (Mmulheres=3.85 e Mhomens=3.41).
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 Figura 3. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
por sexo ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10-
Portugal Brasil sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e
final dos anos 2000

4
3

brasil portugal Também a distribuição do indicador de distância social a


5
4,53
5
3,85
indivíduos homossexuais mostra que é entre os inquiridos per-
4 3,52 4 3,42
3 2,67 3,92
3 2,34 3,41 tencentes aos escalões etários mais velhos, sobretudo, aqueles
2,82 3,28
2 2,13 2 2
1 1 8
que têm mais de 65 anos de idade, que encontramos percenta-
0 1 2 3 4 0 1 2 3 4 gens mais elevadas de inquiridos que mencionam preferir não
homem mulher homem mulher
ter homossexuais como vizinhos. Consistente com a tendência
Linear (homem) Linear (mulher) Linear ( homem) Linear (mulher)
encontrada no indicador de aceitação social, as clivagens etárias
na perceção de distância social a pessoas homossexuais em Por-
Figura 4. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer tugal são visivelmente marcadas, ao contrário do Brasil, onde há
ter homossexuais como vizinhos, por sexo - Brasil e Portugal, uma maior convergência das percentagens.
Figura 4
início e final dos anos 90 e final dos anos 2000 Figura 6. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer
ter homossexuais como vizinhos, por escalão etário - Brasil e
100 Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
80
57,7 100
60 47,6
40 35,4 32,2 80
25 30,1 30,4 22,8 21,8 23,7 24,6 19,6
62,2
20 58,7
60 51,5
44,4
0 42
38,7
40 33 33,2
homem mulher homem mulher homem mulher 26,9 26,6
31,4 31,8 32,2
25,1 24,1 24,3 25,6
21,2 18,9 18,9 23,5
início 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 20 13,9 15,6

portugal brasil 0
15-29 30-49 50-64 65 15-29 30-49 50-64 65 15-29 30-49 50-64 65
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
Também relativamente à perceção da distância social face a portugal brasil
indivíduos homossexuais, a percentagem de homens e mulhe-
res que reporta preferir não ter indivíduos homossexuais como
vizinhos é significativamente diferente. Em Portugal, no início No final da década de 2000, em Portugal, 39% dos inquiri-
dos anos 90, mais homens do que mulheres (58% face a 48%) dos com mais de 65 anos e 32% dos inquiridos com idades com-
rejeitavam a ideia de ter “homossexuais” como vizinhos. No preendidas entre os 50 e os 64 anos rejeitavam a ideia de ter
final dos anos 90 e dos anos 2000, apesar de a queda geral na homossexuais como vizinhos face a 16% e 19% entre os inquiri-
percentagem de homens e mulheres manifestando este descon- dos com idades compreendidas entre 15 e 29 e 30 e 49 anos, res-
forto, a clivagem de género persiste. Também no Brasil tem-se petivamente. Já no Brasil, no final dos anos 2000, apenas a gera-
testemunhado a mesma tendência de género. À semelhança do ção mais velha se destaca com 32% de indivíduos dessa geração
padrão assistido na sociedade portuguesa, a percentagem de a reportar não querer homossexuais como vizinhos. Entre os
mulheres reportando não querer ter homossexuais como vizi- outros escalões etários, a percentagem de indivíduos a rejeitar
nhos é sempre inferior à dos homens, em todos os anos consi- a ideia de ter homossexuais como vizinhos é muito semelhante
derados. (15-29 anos=21%, 30-49 anos= 19%, 50-64 anos=23%).

2.2. Idade 2.3. Religiosidade


A idade também se revelou como um fator diferenciador A sociedade portuguesa e a sociedade brasileira distinguem-
nas atitudes sociais face à homossexualidade. Ao analisarmos -se fortemente no que respeita aos seus backgrounds religiosos,
o nível médio de aceitação social da homossexualidade segun- quer ao nível das confissões, que ao nível das práticas. De for-
do os escalões etários nos três momentos, verificamos que nos ma a atenuar essas diferenças históricas e culturais, baseámo-
dois países o padrão atitudinal é globalmente semelhante. Os -nos numa variável mais subjetiva do nível de religiosidade. Os
inquiridos pertencentes a escalões etários mais jovens apresen- inquiridos foram questionados em que medida se consideravam
tam níveis médios de aceitação da homossexualidade mais ele- pessoas religiosas e as suas respostas foram codificadas em duas
vados do que os inquiridos pertencentes a escalões etários mais categorias: “considero-me uma pessoa religiosa” e “não me con-
velhos. No entanto, importa destacar algumas diferenças rele- sidero uma pessoa religiosa”. No final da década de 2000, a per-
vantes. Se em Portugal existe uma clara diferenciação atitudi- centagem de inquiridos que se autoconsideravam como pessoas
nal segundo a pertença geracional em todas as décadas consi- religiosas era muito semelhante nos dois países, representando
deradas, já no Brasil o fosso geracional tem vindo a diminuir ao 83% em Portugal e 88% no Brasil.
longo do tempo. Figura 7. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
Figura 5. Nível médio de aceitação social da homossexualida- por religiosidade (escala de 1-nunca se justifica a 10- sempre se
de, por escalão etário ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos
justifica a 10- sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final anos 2000
Figura 7
dos anos 90 e final dos anos 2000.

Brasil
brasil portugal
Portugal
4,87 6 6
5 5 4,44
4,29 4,44 5 5 5,08
4,39 4,71
4 4 3,96 4 4
3,44 3,3 3,67
3,78 2,89 3,28 3,4
3,4 3 3,08 3
3 2,58 3 2,63 2,69
3,28 3,12 2 2
2,52 2,31 2
2,61
2,36 2
2 2,51 1,8 1 1
1,79 2,19
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5
1,43
1 1
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 religiosa não religiosa religiosa não religiosa
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
15-29 30-49 50-64 ≥65 15-29 30-49 50-64 ≥65 Linear (religiosa) Linear (não religiosa) Linear (religiosa) Linear (não religiosa)

5
Globalmente, a evolução da aceitação social da homossexuali- relação a Mmédio=4.45 e Mbaixo=3.91 em 2006); em Portugal,
dade em função da religiosidade nos dois países é a mesma, no é o grupo de inquiridos com níveis de escolaridade mais baixos
sentido em que os inquiridos que se consideram pessoas religio- que se destacam por apresentar níveis de aceitação significativa-
sas apresentam níveis médios de aceitação da homossexualida- mente inferiores aos dos outros grupos (Mbaixo =3.26 em rela-
de inferiores aos dos inquiridos que não se consideram pessoas ção a Mmédio=4.71 e Malto=5.49 em 2008).
religiosas. Contudo, à semelhança do que verificámos para os Figura 9. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
efeitos da idade na variação deste indicador, a clivagem entre as por nível de escolaridade ao longo do tempo (escala de 1-nunca se
pessoas religiosas e não religiosas é muito mais vincada em Por- justifica a 10- sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final
tugal do que no Brasil, especialmente no final dos anos 2000. Se dos anos 90 e final dos anos 2000
no início e no final da década de 90, os portugueses que se consi-
deravam como pessoas religiosas e aqueles que não se considera- Portugal Brasil
6 6
vam como pessoas religiosas diferiam de forma menos contras- 5,49 5,47
5 5
4,71
tada. Em 2008, os inquiridos autoconsiderados como religiosos 4
4,54
4
4,45
3,86 3,96 3,91
apresentavam níveis médios de aceitação da homossexualidade 3 2,75
3,26 3
3,32
2,78
muito inferiores aos inquiridos autoconsiderados como não reli- 2 2
1
giosos (M=3.40 face a M=5.08). Já no Brasil, no final da década de 1
final dos anos 90 final dos anos 2000 final dos anos 90 final dos anos 2000
2000, os inquiridos que se consideravam como pessoas religio- básico secundário superior básico secundário superior
sas apresentaram níveis médios de aceitação social mais próxi-
mos (4.24 face a um nível médio de 4.71). Figura 10. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
Figura 8. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer querer ter homossexuais como vizinhos, por nível de escolaridade
ter homossexuais como vizinhos, por nível de religiosidade - Brasil - Brasil
Figura 10e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
Figura 8. 100

100 80

80 60

60 53,9 40
31,9 30 32
46,9 24,3 25,8
19,7 14,9 18,3 15,8 14,5
40 20 13,6 13,7
31,2 27,2 25,7 27,7 29,2
24,1 25,5
21 20,4 0
20 14,9
baixo médio alto baixo médio alto

0 final dos anos 90 final dos anos 2000


religiosa não religiosa religiosa não religiosa religiosa não religiosa portugal brasil
início 90 final dos anos 90 final dos anos 2000

portugal brasil O mesmo acontece com a perceção da distância social. Nos


dois países, é no grupo de indivíduos com níveis de escolari-
As diferenças na percentagem de inquiridos que reportam dade mais baixos que encontramos uma sobrerrepresentação
atitudes mais homofóbicas entre o grupo de pessoas religiosas de inquiridos que reportam não querer ter homossexuais como
e não religiosas são mais discretas. No Brasil, a percentagem vizinhos. No Brasil, houve uma queda subtil nas percentagens
de inquiridos, religiosos ou não, que reportaram preferir não de inquiridos com atitudes homofóbicas em função da escolari-
ter homossexuais como vizinhos foi sempre muito constante ao dade. Se no final dos anos 90, observamos que 30% de inquiridos
longo do tempo. No final da década de 2000, entre os inquiri- dentro do grupo com níveis de escolaridade mais baixos rejei-
dos brasileiros autoconsiderados como religiosos, 21% rejeitava tava a ideia de ter “homossexuais” como vizinhos, no final dos
a ideia de ter homossexuais como vizinhos face a 26% entre os anos 90, essa percentagem reduziu para 26%. A queda é, ainda
inquiridos não religiosos. Em Portugal, no mesmo período, tam- assim, um pouco mais acentuada no grupo de inquiridos com
bém as percentagens são muito semelhantes: 29% dos inquiri- níveis de escolaridade intermédios e superiores. Em Portugal, a
dos considerados como religiosos reportam não querer homos- distribuição por nível de escolaridade no final dos anos 90 e no
sexuais como vizinhos contra 21% dos inquiridos com a mesma final dos anos 2000 é muito semelhante, com 32% dos indivíduos
opinião entre o grupo de não religiosos. com níveis de escolaridade mais baixos a reportar não querer
ter homossexuais como vizinhos nos dois períodos.
2.4. Escolaridade
A escolaridade, enquanto indicador de capitais culturais e de 3. O papel das atitudes face aos modelos culturais
diferenciação social dos indivíduos, é também um fator chave de família
na evolução atitudinal face à homossexualidade.
Globalmente, o padrão de aceitação da homossexualidade As atitudes sociais face à homossexualidade estão fortemen-
segundo o nível de escolaridade é o mesmo nos dois países. Os te associadas às representações que os indivíduos detêm em
inquiridos com um nível de escolaridade superior apresentam relação ao ideal de família e à diversidade de modelos fami-
um nível de aceitação social da homossexualidade mais elevado liares. O papel dos modelos culturais de família são sobretu-
(acima do nível 5 nos dois países no final dos anos 2000), segui- do influentes nas atitudes face ao reconhecimento dos direitos
dos dos inquiridos com níveis intermédios e baixos de escolari- legais, de homens e mulheres homossexuais, à conjugalidade e à
dade. Se no Brasil, o contraste é sobretudo em relação aos inqui- parentalidade Por conseguinte, analisámos de que modo os indi-
ridos com um nível de escolaridade superior (Malto=5.47 em cadores de aceitação social da homossexualidade e de perceção

6
da distância social a indivíduos homossexuais variam de acordo Encontramos a mesma tendência geral na variação do indi-
com as atitudes dos inquiridos face ao modelo monoparental cador de distância social percebida a indivíduos homossexuais.
feminino (uma mulher poder ter filhos sem estar em conjugali- Em todos os momentos, quer em Portugal, como no Brasil, é no
dade), ao ideal bi-parental heterossexual de família (a condição grupo de inquiridos que desaprovam o modelo monoparental
de ter um pai e uma mãe como garantia de felicidade de uma feminino que encontramos as percentagens mais elevadas de
criança) e face à desinstitucionalização da conjugalidade (consi- rejeição da ideia de ter indivíduos homossexuais como vizinhos
derar o casamento como uma instituição ultrapassada). (34.5% em Portugal e 30% no Brasil no final dos anos 2000). É
de salientar que em Portugal ocorreu uma redução brutal da
3.1. Modelo monoparental feminino de família: Uma distância social a “homossexuais” no grupo de inquiridos que
mulher pode ter filhos sem ter uma relação com um homem desaprovavam o modelo monoparental feminino, representan-
Nos dois países, verificamos que os indivíduos que apoiam do 61% no início dos anos 90 e apenas 35% no final da década
um modelo de família monoparental no feminino apresentam de 2000.
níveis de aceitação da homossexualidade mais elevados. Pelo
contrário, aqueles que desaprovam a ideia de que uma mulher 3.2. Modelo bi-parental heterossexual: uma criança pre-
pode ter filhos sem estar numa relação com um homem, são cisa de um pai e de uma mãe para ser feliz
aqueles que apresentam níveis de aceitação da homossexualida- Em ambas as populações, os inquiridos que apoiam um
de mais baixos. Com uma posição média, encontramos os inde- modelo bi-parental heterossexual como o modelo ideal de bem-
cisos. -estar das crianças são aqueles que apresentam níveis médios
Se, em Portugal, os indivíduos com posições diferentes face de aceitação da homossexualidade mais baixos. Pelo contrá-
ao modelo monoparental feminino contrastam de forma consis- rio, aqueles que discordam com a assunção de que uma crian-
tente ao longo dos três momentos considerados; já no Brasil, no ça precisa de uma mãe e de um pai para ser feliz, são aqueles
final dos anos 90, os inquiridos indecisos e aqueles que desapro- que apresentam níveis de aceitação da homossexualidade mais
vavam o modelo monoparental feminino convergiam nas suas elevados. Apesar de a tendência ser muito semelhante nos dois
atitudes face à homossexualidade, destacando-se dos inquiridos países, em Portugal, no final da década de 90, os dados revela-
favoráveis (Mfavoráveis=4.90). vam uma aproximação, no nível de aceitação da homossexuali-
Figura 11. Nível médio de aceitação social da homossexualidade, dade, entre indivíduos que valorizam de forma oposta o modelo
por nível de com concordância com o modelo monoparental bi-parental. No entanto, no final da década de 2000, as atitudes
feminino ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- voltam a divergir marcadamente. Já no Brasil, a clivagem entre
sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e defensores e não defensores de um modelo bi-parental foi sem-
final dos anos 2000 pre muito marcada.
6 Figura 13. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
por nível de concordância com o modelo bi-parental ao longo do
4,9
5 tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- sempre se justifica) -
4,55
4,08 4,08
Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
3,87 3,92
4 3,65
3,24
6
2,86 2,89 2,79 2,9
3 2,63
2,45
5,17
2,27 2,33
5 4,59
2 1,83
1,55 4,1 4,07
3,85 3,72
4 3,55
1
3,2 3,22
desaprovo aprovo depende desaprovo aprovo depende desaprovo aprovo depende 3,03
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 3
2,25
Portugal Brasil 2,06
2
Figura 12. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
querer ter homossexuais como vizinhos, por nível de concordância 1
com o modelo monoparental feminino - Brasil e Portugal, início e discordo concordo discordo concordo discordo concordo
Figurados
final 12 anos 90 e final dos anos 2000 início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000

Portugal Brasil
100
80
60,5
60 45,3
50
36,9 33 30,9 34,5
40 32,5 25,6 30 25,3
24,3
20,3 21,1 22,7 20,8 16,8 13,6
20
0
desaprovam

desaprovam

desaprovam
aprovam

aprovam

aprovam
depende

depende

depende

início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000

portugal brasil

7
Figura 14. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer 6
ter homossexuais
Figura 14 como vizinhos, por nível de concordância com
o modelo bi-parental - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 5
4,424,49
e 100
final dos anos 2000 4,2
3,85
4
3,47 3,43
80 2,9 3,01
3 2,78
2,45
54,1 2,27
60 2,11
2
40 30,9 32 29,2 27,6 30,2
23,5 23,8 1
16,9 17,9 16,6 discordo concordo discordo concordo discordo concordo
20
12,1
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
0 Portugal Brasil
discordam concordam discordam concordam discordam concordam
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
Figura 16. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
portugal brasil
querer ter homossexuais como vizinhos por nível de concordância
com a desinstitucionalização do casamento - Brasil e Portugal,
No que respeita à distância social percebida a indivíduos início e final dos anos 90 e final dos anos 2000.
Figura 16
homossexuais, em todos os momentos e quer em Portugal quer
no Brasil, é dentro do grupo de inquiridos que apoiavam o 100
modelo bi-parental heterossexual que encontramos as percenta-
gens mais elevadas daqueles que manifestaram não querer ter 80

homossexuais como vizinhos. Em Portugal, houve uma redu- 60 52,8 53,4


ção muito significativa de inquiridos que rejeitam a presença de
homossexuais como vizinhos no grupo de apoiantes do modelo 40 31,3 30,5
26,7 27,6 28,3 25,1 22,8
24,3 22,5
bi-parental de família ao longo do tempo, com uma percenta- 21,3
20
gem de 54% no início dos anos 90 face a 31% no final dos anos
2000. 0
discordam concordam discordam concordam discordam concordam

3.3. Desinstitucionalização da conjugalidade: O casa- início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
mento é uma instituição ultrapassada portugal brasil
Nos dois países, verificamos que os indivíduos que concor-
dam com a ideia de que o casamento é uma instituição ultra-
passada são aqueles que apresentam níveis médios de aceitação 4. Um olhar sobre a atualidade
da homossexualidade mais elevados. É também entre os inqui- Nas secções anteriores analisámos a evolução da aceitação
ridos com visões mais desinstitucionalizadas da conjugalidade social da homossexualidade e da perceção de distância social
que encontramos percentagens mais elevadas de inquiridos a indivíduos homossexuais em Portugal e no Brasil no virar do
que revelam uma atitude favorável à presença de indivíduos século XXI, incidindo em três momentos (início dos anos 90,
homossexuais como vizinhos. No que toca a evolução temporal, final dos anos 90 e final dos anos 2000) e apontando as varia-
verificamos que no Brasil este padrão mantem-se em todos os ções segundo determinados factores sociodemográficos e mode-
momentos considerados, sendo que no final da década de 2000 los culturais de família. Nesta secção, oferecemos um olhar
há uma convergência entre inquiridos com visões mais desinsti- sobre as atitudes sociais face à homossexualidade e ao reconhe-
tucionalizadas e mais normativas da conjugalidade. Já em Portu- cimento legal dos direitos familiares de casais do mesmo sexo
gal, a trajetória foi mais sinuosa. No início dos anos 90, quer os em 2014 nos dois países. Contudo, relembramos que não temos
inquiridos com visões mais desinstitucionalizadas, quer os mais dados comparáveis para os dois países, pelo que os indicadores
tradicionais apresentavam níveis baixos de aceitação social da atitudinais são diferentes e as análises referentes a cada contex-
homossexualidade. Surpreendentemente, no final dos anos 90, to nacional serão apresentados separadamente.
os inquiridos que consideravam o casamento uma instituição
ultrapassada eram aqueles que apresentavam níveis mais baixos 4.1. Portugal em 2014
de aceitação da homossexualidade. Finalmente, nos anos 2000, No ano de 2014, no âmbito do módulo especial do Interna-
esta tendência reverte-se e os inquiridos com visões mais desins- tional Social Survey Programme (ISSP 2012) “Famílias e Papéis de
titucionalizadas da conjugalidade reportam níveis mais eleva- Género em Mudança”, realizou-se um inquérito à população
dos de aceitação da homossexualidade do que os que discordam portuguesa acerca das suas atitudes face a vários tópicos da vida
com a crença de que o casamento é uma instituição ultrapassa- familiar e aos papéis de género. Para além destes tópicos, foi
da, destacando-se com um nível médio de 4.42 face a 3.43. também auscultada a opinião da população portuguesa acerca
Figura 15. Nível médio de aceitação social da homossexualidade, das medidas e alterações legislativas discutidas e/ou aprovadas
por nível de concordância com a desinstitucionalização do em Portugal ao longo dos últimos anos (ver Ramos, Atalaia e
casamento ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- Cunha, 2016). Este inquérito permitiu, assim, conhecer as atitu-
sempre se justifica) - - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 des dos portugueses face ao reconhecimento das competências
e final dos anos 2000 parentais de casais do mesmo sexo, bem como a opinião dos por-
tugueses acerca do reconhecimento legal dos direitos ao casa-
mento civil e à adoção por parte dos mesmos (Lei nº9/2010, de
31 de maio, e Lei nº2/2016, de 29 de fevereiro, respetivamente).

8
Relembramos que este inquérito é anterior à legalização da esta medida 4 anos depois. O reconhecimento legal da adopção
adopção por casais do mesmo sexo na sociedade portuguesa (Lei parece dividir ao meio a população portuguesa. Dois anos antes
nº12/2016, de 29 de fevereiro). da aprovação desta medida, 48% dos inquiridos reportavam dis-
Figura 17 – Percentagem de inquiridos que “discordam”, “não cordar com a adopção de crianças por casais do mesmo sexo e
concordam, nem discordam” e que “concordam” com cada uma a outra metade da amostra dividia-se entre 15% de inquiridos
das
Figuraafirmações
17 – Portugal, 2014 que não tinham uma posição definida em relação a esta maté-
ria e 37% de inquiridos que concordavam com esta medida. A
este nível, as clivagens de género e de idade revelaram-se vin-
% de inquiridos cadas, observando-se maior resistência junto dos inquiridos do
sexo masculino e mais velhos, em particular no que concerne
um casal de duas mulheres pode a adopção.
criar um filho tão bem como um 42,9 11,9 45,2
Figura 18 – Percentagem de inquiridos que “discordam”, “não
casal de um homem e de uma…
concordam, nem discordam” e “concordam” com cada uma das
um casal de dois homens pode
afirmações
Figura 18 – Portugal, 2014
criar um filho tão bem como um 47,2 13,1 39,7
casal de um homem e de uma…

0 20 40 60 80 100 % de inquiridos
discordo não concordo, nem discordo concordo
adopção de crianças por casais
48,3 14,7 37
do mesmo sexo
4.1.1. Atitudes face ao reconhecimento das competências
parentais de casais do mesmo sexo
casamento entre pessoas do
Em matéria do reconhecimento das competências parentais 42,2 17,6 40,1
mesmo sexo
de casais homossexuais femininos e masculinos verificamos que
os portugueses estão divididos. Se, por um lado, 45% dos inqui- 0 20 40 60 80 100
ridos concordam que um casal homossexual de duas mulheres
tem as mesmas competências parentais que um casal heteros- discordo não concordo, nem discordo concordo
sexual, 43% dos inquiridos discorda desta afirmação. Esta divi-
são de opiniões acontece, também, no reconhecimento das com- 4.2. Brasil em 2014
petências parentais de casais compostos por dois homens por No Brasil, decorreu uma quarta ronda do WVS em 2014, pelo
comparação a um casal heterossexual, com 39% dos inquiridos a que temos acesso aos mesmos indicadores de aceitação social e
favor e 47% com uma opinião desfavorável. de perceção de distância social a indivíduos homossexuais ana-
Acresce referir que uma análise mais aprofundada destes lisados nas secções anteriores. Pelo contrário, não temos acesso
dados revelou que a variação de percentagens face ao reconhe- a indicadores que avaliem o reconhecimento dos direitos paren-
cimento das competências de casais homossexuais em fun- tais e conjugais de casais do mesmo sexo tal como fizemos para
ção de estes serem compostos por duas mulheres ou por dois Portugal.
homens não é aleatória. Análises intra-individuais revelam que Em relação à aceitação social da homossexualidade entre
um mesmo inquirido é mais favorável ao reconhecimento das 2006 e 2014, verificamos uma evolução positiva de maior aco-
competências parentais de casais compostos por duas mulhe- lhimento social. No entanto, o ritmo de tal tendência desacele-
res do que de casais compostos por dois homens. Entre outros rou. Se entre o final dos anos 90 e o final dos anos 2000, o nível
factores, esta diferença é explicada por visões mais tradicionais de aceitação aumentava de 3.17 para 4.24, entre 2006 e 2014,
em relação aos papéis de género e à parentalidade, assente em apenas aumentou em 0.34. Tal como o padrão encontrado entre
modelos essencialistas que atribuem às mulheres a função inata o início dos anos 90 e o final dos anos 2000, em 2014 persis-
de cuidadoras privilegiadas em comparação com os homens, a te uma clivagem de género. As mulheres apresentam um nível
quem é atribuído um papel secundário nos cuidados às crian- médio de aceitação social da homossexualidade superior ao dos
ças. Estas atitudes variam em função do sexo e da idade, com homens (M=4.86 face a H=4.28).
os inquiridos mais velhos e do sexo masculino a revelarem-se Figura 19.
mais desfavoráveis ao reconhecimento das competências paren-
tais de casais dos mesmo sexo, sobretudo, aqueles compostos 5,00 4,53 4,86
4,24 4,58
por dois homens. 4,00 4,28
3,92
3,00
4.1.2. Opinião face ao reconhecimento legal dos direitos
ao casamento e à adopção por casais do mesmo sexo 2,00
Tal como no reconhecimento das competências parentais 1,00
de casais homossexuais masculinos e femininos, também aqui final 2000 final 2010
verificamos que os inquiridos se revelam divididos em relação
ao reconhecimento legal do casamento e da adopção por casais Male Female total
do mesmo sexo. A distribuição da amostra nos dois indicadores
é muito semelhante, porém, a resistência ao direito à adopção
parece maior do que a resistência ao direito ao casamento. A
legalização do casamento por pessoas do mesmo sexo, apesar de
introduzida em 2010, suscita ainda alguma resistência na socie-
dade portuguesa, com 42% dos inquiridos ainda desfavoráveis a

9
Relativamente à perceção de distância social a indivíduos Figura 21. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
homossexuais em 2014, verificamos que apenas 11% da amos- querer ter homossexuais como vizinhos e nível médio de aceitação
tra rejeita a presença de homossexuais como vizinhos. Tam- social da homossexualidade por escalão etário - Brasil, 2014
bém aqui assistimos a uma diferença de género, com apenas
7% das mulheres a mencionar não querer ter “homossexuais” 50,0% 6
como vizinhos face a uma percentagem duas vezes maior entre 5,05 4,89
os homens. 40,0% 5
4,04
Figura 20. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
3,51 4
querer ter homossexuais como vizinhos, total e por sexo – Brasil, 30,0%
201420
Figura 3
20,0% 15,8%
14,1% 2
100,0% 7,1% 10,7%
15,5% 11,1%
10,0% 8,3%
80,0% 1

60,0% 0,0% 0
84,5%
92,9% 88,9% 15-29 30-49 50-64 65+
40,0%

20,0%
Em relação à aceitação social, verificamos que os inquiridos
0,0% pertencentes aos escalões etários mais jovens são aqueles que
Homem Mulher Total
apresentam um nível de aceitação social da homossexualidade
não mencionou mencionou mais elevado (M+H15-29=5.05 e M+H30-49=4.89), contrastando
com os inquiridos pertences às gerações mais velhas (M+H50-
64=4.04 e M+H+65=3.51).Relativamente à perceção de distância
social, é nos escalões etários mais velhos que encontramos a
maior percentagem de inquiridos que mencionam não querer
ter indivíduos homossexuais como vizinhos, representando 14%
e 16% no grupo daqueles com idades compreendidas entre 50
aos 64 e com mais de 65 anos de idade.

Conclusões

A
análise comparativa dos dados provenientes do EVS problema tem se agravado nos últimos anos, apesar da invisi-
e do WVS permitiu conhecer a evolução das atitu- bilidade destes acontecimentos sob o ponto de vista da pro-
des sociais face à homossexualidade no Brasil e em dução oficial de dados e estatísticas no Brasil. Em Portugal,
Portugal no virar do século XXI. Constatámos que, não há dados oficiais sobre os crimes praticados contra as
em ambos os países, esta evolução foi positiva no sentido de pessoas LGBTQIA+. No entanto, segundo os dados da ILGA
uma crescente aceitação pública da homossexualidade, bem Portugal, referentes a 2018, o Observatório da Discriminação
como uma diminuição na distância social percebida a indiví- contra as Pessoas LGBTI+ registou 59 denúncias de crimes
duos homossexuais. No entanto, o Brasil apresentou sempre de ódio contra pessoas LGBTI e 74 casos de incidentes dis-
níveis médios de aceitação social da homossexualidade ligei- criminatórios, tais como de discursos de ódio.
ramente superiores aos de Portugal, bem como uma menor Se por um lado, Portugal e Brasil se assemelham em ter-
percentagem de indivíduos que manifestavam desconforto mos do grau de aceitação social da homossexualidade e de
com a presença de pessoas homossexuais no seu ambien- manifestação de distância social a indivíduos homossexuais;
te próximo. Apesar da tendência positiva entre o início dos por outro lado, a trajetória temporal e a diferenciação social
anos 90 e o final dos anos 2000, em termos comparativos segundo factores sociodemográficos e culturais revelam algu-
com outros países da Europa, Portugal e o Brasil situam-se mas especificidades.
abaixo do nível médio de aceitação social da homossexualida- Em Portugal, testemunhou-se uma evolução positiva muito
de. Importa notar que, face às recentes mudanças legislativas expressiva entre o início e o final dos anos 90, seguindo-se um
nesta matéria, por um lado, e face às mudanças político-i- salto mais subtil entre o final dos anos 90 e o final dos anos
deológicas, por outro na sociedade brasileira, urge avaliar o 2000. Já no Brasil, essa trajetória foi sempre ascendente e
impacto destas linhas de força de sinal contrário na evolu- mais linear ao longo dos três momentos considerados. Contu-
ção de tais tendências na esfera pública. O Brasil está entre do, dados mais recentes da população brasileira revelam que,
os países em que ocorre o maior número de homicídios de apesar de ligeiramente superior, o nível de aceitação social da
LGBTQIA+. De acordo com Relatório do Grupo Gay da Bahia, homossexualidade em 2014 estagnou.
estima-se um aumento de 30% nos homicídios em 2017 em Outro aspeto importante a destacar é o papel estruturante
relação ao ano anterior. Também o Atlas da Violência 2019 do de factores sociais e culturais nas atitudes face à homosse-
IPEA, com base no Disque 100, contabilizou 193 homicídios xualidade nos dois países, nomeadamente, o impacto dife-
em 2017 contra pessoas LGBTQIA+, o que evidencia que o renciador de variáveis como o sexo, a idade, a escolaridade,

10
a religiosidade e das atitudes face a diferentes modelos Em Portugal incidimos nas atitudes face às competências
familiares. Longe de posições consensuais, as populações parentais de casais homossexuais masculinos e femininos,
dividem-se segundo estes factores. Em geral, e de igual bem como na opinião dos indivíduos face à legalização do
modo nos dois países, as mulheres, os indivíduos perten- casamento civil e da adoção por casais do mesmo sexo.
centes a gerações mais jovens, com níveis de escolaridade Longe de consensual, verificámos que estes tópicos dividem
mais elevados e os que não se consideram pessoas religio- a população, mesmo após o reconhecimento legal do casa-
sas são aqueles que apresentam atitudes mais positivas face mento civil entre pessoas do mesmo sexo em 2010 e outras
à homossexualidade. Por outras palavras, destacam-se por medidas legais e políticas promotoras de uma maior igual-
reportar níveis mais elevados de aceitação social da homos- dade e diversidade sexual, familiar e de género. São, nova-
sexualidade e por revelar uma menor perceção da distância mente, as mulheres e os indivíduos pertencentes às gera-
social entre os próprios e indivíduos homossexuais. Já os ções mais jovens, aqueles que se revelam mais igualitários
segmentos sociais mais resistentes à aceitação social da e abertos à diversidade, manifestando-se favoráveis quer
homossexualidade e, portanto, detentores de atitudes menos ao reconhecimento das competências parentais de casais
favoráveis, correspondem aos indivíduos do sexo masculino, homossexuais (masculinos e femininos), quer ao acesso legal
pertencentes a gerações mais velhas, com menor nível de ao casamento civil e à adoção por parte de casais do mesmo
escolaridade e que se consideram pessoas religiosas. Em sexo.
relação à influência das atitudes face a diferentes modelos No Brasil, apesar de não conseguirmos captar estas
culturais de família, nomeadamente, em relação ao modelo dimensões atitudinais, tivemos acesso aos dados provenien-
monoparental feminino, o ideal de modelo bi-parental (como tes do WVS de 2014, pelo que analisámos a evolução dos
o mais adequado ao bem estar das crianças) e a desinstitu- indicadores de aceitação social da homossexualidade e de
cionalização da conjugalidade, verificámos que, em ambos distância social a indivíduos homossexuais mais recentes. Os
os países, os indivíduos com atitudes mais tradicionais e dados de 2014 revelam que apesar de a evolução ser positi-
institucionalizadas da família são aqueles que se manifestam va, o aumento do nível de aceitação social da homossexua-
mais resistentes à aceitação social da homossexualidade e lidade não ocorreu de forma tão marcante como nos perío-
que se sentem mais distantes deste grupo social. Neste sen- dos anteriores (início dos 90, final dos 90, final dos 2000).
tido, constatamos que as atitudes face à homossexualidade Também aqui continua a haver um fosso entre gerações e
são construídas e ancoradas num quadro de atitudes mais entre homens e mulheres, com as mulheres e os jovens a
gerais face aos modelos familiares e às relações de género. manifestarem atitudes mais favoráveis à homossexualidade.
É também no âmbito da diferenciação social da aceitação Como nota final, importa dizer que este research brief ofe-
social da homossexualidade (e não tanto na perceção de dis- rece dados sistemáticos relevantes para monitorizar, pensar
tância social), em função destes factores sociodemográficos, e desenhar políticas públicas e medidas legislativas que pro-
que residem algumas diferenças entre Portugal e Brasil. Com movam adequadamente uma maior igualdade e que sejam
efeito, Portugal apresenta as maiores clivagens em função catalisadoras de atitudes sociais mais inclusivas face à diver-
da idade e da religiosidade, no sentido em que os indivíduos sidade sexual, familiar e de género. Para além do pano de
com diferentes posições sociais contrastam vincadamente fundo social, histórico e político de cada um destes contex-
nos seus níveis de aceitação social da homossexualidade. tos nacionais, um aspeto comum que sobressai desta aná-
Já no Brasil, essa clivagem é sobretudo expressa na diver- lise comparativa é o papel preponderante de fatores estru-
gência entre homens e mulheres no nível de aceitação da turais e culturais na construção das atitudes sociais face à
homossexualidade. Estes resultados sugerem que o peso homossexualidade na sociedade portuguesa e na sociedade
dos vários factores sociodemográficos na formação das ati- brasileira. Se atendermos que são os mais jovens e os mais
tudes sociais face à homossexualidade é diferente nos dois escolarizados os mais recetivos aos valores da inclusão e do
países. respeito pela diversidade, não podemos deixar de sublinhar
Em relação ao quadro atual de atitudes face à homosse- a importância do acesso à escolarização de nível superior,
xualidade e ao reconhecimento legal e social do acesso à que não pode deixar para trás os homens. A educação con-
conjugalidade (casamento civil) e à parentalidade (adopção), sistente das novas gerações para estes valores é, sem dúvi-
fizemos um zoom in na paisagem atitudinal da sociedade da, um dos caminhos a prosseguir no Brasil e em Portugal.
portuguesa e da sociedade brasileira em 2014 (os dados
representativos mais recentes).

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e aTecnologia, I.P., no âmbito
da bolsa pós-doutoramento individual da FCT: SFRH/BPD/116958/2016 e da CAPES/Brasil – Fundação Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, no âmbito da bolsa de pós-doutoramento do Programa Professor
Visitante no Exterior – Júnior 2017/2018 (Processo nº88881.170370/2018-01)

11
Observatório das Famílias e das Políticas de Família
O Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP), criado em
2010, é o observatório do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa (ICS-ULisboa) que tem por objetivo aprofundar e divulgar o
conhecimento sobre as famílias e as políticas de família na sociedade
portuguesa. As duas grandes linhas de atuação são: o acompanhamento
da evolução das formas e dinâmicas da vida familiar, assim como do seu
impacto nos padrões demográficos; e a monitorização e divulgação da
legislação e das políticas de família nacionais.

Neste research brief do OFAP propomos um novo olhar, apresentando


resultados comparativos sobre a evolução das atitudes sociais face à
homossexualidade na sociedade portuguesa e na sociedade brasileira
no virar do século XXI. Este estudo baseia-se sobretudo em dados
quantitativos recolhidos através de dois grandes inquéritos homólogos
aplicados à população residente em Portugal e no Brasil em três
momentos entre 1990 e a atualidade: o EVS – European Values Study
e o WVS – World Values Survey. Adicionalmente, recorremos a outras
fontes estatísticas para complementar a pesquisa sobre o panorama
atual nos dois países.

Este estudo resulta de uma colaboração científica no âmbito das


atividades do OFAP, entre Rita Gouveia, investigadora do ICS-ULisboa,
e Liliane Moser, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e
investigadora visitante no ICS-ULisboa.

Saiba mais em
www.observatoriofamilias.ics.ul.pt

ISBN:978-972-671-562-7

UID/SOC/50013/2019
dossiê teoria crítica

Tudo é interseccional?
Sobre a relação entre racismo e sexismo*

Ina Kerner
tradução de Bianca Tavolari

RESUMO
O artigo propõe a diferenciação de quatro modos de relação
entre racismo e sexismo. O primeiro estabelece semelhanças; o segundo, diferenças entre eles; o terceiro, acoplamentos
entre ambos, e o quarto, cruzamentos, entrelaçamentos ou intersecções. Um modelo crítico que abarque semelhanças,
diferenças, ligações e intersecções permite uma compreensão das relações entre racismo e sexismo mais abrangente do
que a tentativa de formular a relação em apenas uma dimensão.
PALAVRAS‑CHAVE: Racismo, Sexismo, Interseccionalidade, Reconhecimento

ABSTRACT
The article diffrentiates four modes of relating racism and
sexism. The first calls attention to similarities between the two phenomena; the second, to differences; the third, to
couplings, and the forth to intersections. A model that encompasses similarities, differences, couplings and intersec‑
tions, the author stresses, has a much wider critical reach than a one-dimensional one.
KEYWORDS: Racism, Sexism, Intersectionality, Recognition

[*] Publicado originalmente em A discussão sobre interseccionalidade tem ocupado


Feministische Studien, 1, maio 2009.
um espaço importante na pesquisa de gênero. O reconhecimento de
que formas sexuais de injustiça são, por um lado, análogas e, por outro,
empiricamente entrelaçadas com outras formas de injustiça — como
as relacionadas a “raça”, etnia e religião — encontra nesse conceito sua
expressão teórica. Se levarmos em consideração razões histórico‑lin‑
guísticas, a importância de refletir com maior precisão sobre a relação
entre racismo e sexismo é evidente por si só. A palavra alemã Sexismus
tem origem no inglês norte‑americano. O termo de origem sexism foi,
por sua vez, criado por analogia com o termo racism na segunda me‑
tade dos anos 1960. Um texto de intervenção do Southern Student
Organizing Committee, um grupo de ativismo político de Nashville,
[1] Cf. Oxford English Dictionary, Tennessee1, registra uma das primeiras ocorrências textuais de uso do
col. xv, 1989, p. 112.
termo. Em 1969, em texto intitulado “Freedom for Movement Girls
— Now”, o grupo declarou:

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 45

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 45 24/08/12 19:29


Os paralelos entre sexismo e racismo são nítidos e claros. Cada um
deles incorpora falsas suposições sob a forma de mito. E, assim como o racis‑
ta é aquele que proclama, justifica ou pressupõe a supremacia de uma raça
sobre outra, da mesma forma, o sexista é aquele que proclama, justifica ou
pressupõe a supremacia de um sexo (adivinha qual) sobre o outro2. [2] Disponível em: <http://scripto-
rium.lib.duke.edu/wlm/vanauken>.

Podemos fazer objeções a diversos aspectos das teses defendidas


nessa citação, se levarmos em conta o contexto do estado atual da re‑
flexão sobre o tema. Em primeiro lugar, impõem‑se objeções contra
tamanha redução das diversas facetas do racismo e do sexismo nas
premissas e opiniões adotadas. Concepções que trabalhem com mais
dimensões parecem ser capazes de nos levar mais longe. Seguindo a
análise do poder de Michel Foucault, desenvolvi um modelo que dife‑
rencia uma dimensão epistêmica, que abarca o conhecimento racista e
sexista e seus discursos correspondentes; uma dimensão institucional,
referente a formas institucionalizadas de racismo e de sexismo; e uma
dimensão pessoal, que, além de posicionamentos individuais a respeito
da identidade ou da subjetividade, também abrange ações individuais
e interações pessoais3. Em segundo lugar, as concepções de sexismo [3] Kerner, Ina. Differenzen und
Macht. Zur Anatomie von Rassismus
que dão ênfase a grupos de gênero definidos de maneira inequívoca und Sexismus. Frankfurt a. M.: Cam-
não devem servir como base teórica, mas devem antes ser entendi‑ pus, 2009.
das como parte do problema a ser analisado e criticado — pelo menos
quando não se pretende reproduzir a naturalização da existência de
apenas dois gêneros. O mesmo vale para o recurso à categoria “raça”.
Essa perspectiva permite adotar uma postura crítica à naturalização
na medida em que a existência de “raças” humanas não é entendida
como fato biológico. Ao contrário, os processos de construção de “ra‑
ças” humanas são tratados como componentes epistêmicos do racis‑
mo a serem analisados. Pelo menos em relação à situação na Europa,
acredito ser apropriado também considerar, em terceiro lugar, formas
“diferencialistas” em que a incompatibilidade de diferentes culturas é
proclamada como superioridade “racial” — Etienne Balibar chamou
essas formas de neorracismo4. [4] Balibar, E. “Gibt es einen ‘Neo-
Rassismus’?”. In: Balibar, E. e Waller-
No entanto, a intenção não é negar totalmente certa plausibilidade stein, I. Rasse, Klasse, Nation. Ambiva-
na criação de analogias. Isso porque tanto racismos quanto sexismos lente Identitäten. Hamburgo/Berlim:
Argument, 1990.
podem ser entendidos como fenômenos complexos de poder que ope‑
ram no contexto de atribuição de diferenças categoriais. Mesmo que
não seja sempre necessariamente assim, eles frequentemente funcio‑
nam por meio de referências a características corporais e, portanto,
por meio de referências a supostas certezas biológicas. É por isso que
atribuições de diferença de cunho racista ou sexista são geralmente atri‑
buições de diferenças naturalizadas que exigem validade atemporal
ou pelo menos por longos períodos de tempo. Nesse sentido também
as formas racistas e sexistas de poder são diferentes daquelas que

46 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 46 24/08/12 19:29


operam vinculadas a relações de classe ou de produção. Uma diferen‑
ciação heurística já um pouco antiga proposta por Nancy Fraser trata
dos racismos e sexismos como problemas sociais com uma dimensão
político‑econômica e com uma dimensão cultural‑avaliativa. Em ou‑
tras palavras: seriam problemas de distribuição e de reconhecimento,
enquanto as formas de poder relacionadas a classes ou camadas so‑
ciais são primariamente descritas de maneira político‑econômica e
poderiam ser combatidas apenas por meio de medidas de redistribui‑
[5] Fraser, N. Die halbierte Gerechtig- ção5. E mesmo se quisermos nos opor a essa diferenciação, ao afirmar‑
keit. Frankfurt a. M.: Suhrkamp,
2001, pp. 23 ss.
mos que um hábito específico da camada social de uma pessoa pode,
do mesmo modo, ser apresentado como motivo do reconhecimento
negado — um ponto que, a propósito, a própria Fraser admitiu em
[6] Fraser, N. e Honneth, A. Umver- publicações posteriores sobre o tema6 —, na maior parte das vezes
teilung oder Anerkennung? Eine politisch
philosophische Kontroverse. Frankfurt
um hábito desse tipo é considerado uma característica social que, em
a. M.: Suhrkamp, 2003, pp. 37 ss. condições de mobilidade social, poderia ser transformada pelo menos
no horizonte de tempo de alguns anos. Em regra, isso é diferente nos
casos de atribuições racistas e sexistas. Não faz diferença se se tratam
de afirmações sobre as propriedades características de um “tipo de
raça”, da tese de que conflitos étnicos são a consequência inevitável de
contatos étnicos ou de pressupostos da existência de identidades de
gênero e de sexualidade “normais” — nos casos de atribuições racistas
e sexistas, a ideia de que elas seriam fundamentadas na natureza hu‑
mana é dominante. É por isso que atribuições de diferença de cunho
racista ou sexista são geralmente atribuições de diferenças naturaliza‑
das que exigem validade atemporal ou pelo menos por longos perío‑
dos de tempo.
Apesar de podermos estabelecer semelhanças ou paralelos desse
tipo entre racismo e sexismo, ainda falta muito para obtermos um
quadro completo das relações entre ambos os fenômenos. Embora o
diagnóstico da analogia tenha marcado o feminismo de maneira de‑
cisiva há bastante tempo — é incorporado desde os primeiros movi‑
mentos feministas norte‑americanos, que surgiram no contexto do
movimento pela abolição da escravidão, passando por teóricas como
Simone de Beauvoir até textos e slogans dos movimentos de mulheres
norte‑americanos e da parte ocidental da Europa —, ele é, há muito, in‑
cisivamente criticado. Todos, ativistas e cientistas de grupos “raciais” e
étnicos minoritários à frente, argumentaram que entender o racismo e
o sexismo como paralelos obstruía a visão para seus entrelaçamentos.
Contrárias a formulações aditivas como o conceito de “tripla opres‑
são”, elas sugeriram entender o racismo sob a perspectiva de gênero
— gendered — e o sexismo como “racificado” — racialized — e, a partir
daí, diferenciar cada variante distinta de racismo e sexismo. Isso sig‑
nifica partir do pressuposto de que racismo e sexismo se cruzam de
formas diferentes dependendo do contexto e, assim, também podem

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 47

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 47 24/08/12 19:29


se manifestar dessas formas correspondentes. Partindo da observação
de que as figuras de referência implícitas ao contexto de tematização
do racismo eram quase sempre homens e que as figuras de referência
implícitas ao contexto da tematização do sexismo eram quase sempre
mulheres brancas, nacionais ou que de alguma forma fizessem parte
da “cultura dominante”7, foram convincentes ao mostrar que a força [7] Rommelspacher, B. Anerkennung
und Ausgrenzung: Deutschland als mul-
explicativa da criação de analogias é especialmente fraca justamente tikulturelle Gesellschaft. Frankfurt a.
em relação àquelas pessoas que sofrem com formas de racismo e se‑ M.: Campus, 2002; Schirrmacher, F. e
Schwarzer, A. “Die Islamisten meinen
xismo ao mesmo tempo. Disso decorreu a seguinte recomendação para a es so ernst wie Hitler”. Frankfurter
análise política e científica: racismo e sexismo não deveriam ser trata‑ Allgemeine Zeitung, 4/7/2006, p. 45.
dos como problemas análogos — o foco da relação deveria estar antes
em seus múltiplos entrelaçamentos e combinações8. [8] Ver, por exemplo: Combahee
River Collective. “A Black Feminist
Enquanto ambas as posições — de um lado, a criação de analogias Statement”. In: Kolmar, W. K. e Bart-
e, do outro, a recomendação da busca por entrelaçamentos — são por kowski, F. (orgs.). Feminist theory.
A reader. Nova York: McGraw-Hill
vezes interpretadas como excludentes entre si9, eu defendo a seguir que Humanities, 2006; hooks, b. Feminist
ambas são úteis à conceituação das complexas relações entre racismos theory: from margin to center. Boston:
South End Press, 1984; Anzaldúa,
e sexismos e que, além dessas, existem ainda outras classificações G. (org.). Making face, making soul/
úteis para tratar dessa relação. Proponho a diferenciação de quatro Haciendo caras. Creative and critical
perspectives by feminists of color. San
modos de relações entre racismo e sexismo. Francisco: Aunt Lute Books, 1990;
O primeiro estabelece semelhanças entre formas de racismo e de Collins, P. H. Black feminist thought.
Knowledge, consciousness, and the poli-
sexismo, o segundo, diferenças entre eles, o terceiro, acoplamentos entre tics of empowerment. Nova York/Lon-
ambos, e o quarto, cruzamentos, entrelaçamentos ou intersecções. Eu dres: Unwin Hyman, 1991; FeMigra.
“Wir, die Seiltänzerinnen. Politische
defendo a tese de que um modelo que abarque semelhanças, diferen‑ Strategien von Migrantinnen gegen
ças, ligações e intersecções tem efeitos muito mais benéficos para a Ethnisierung und Assimilation”. In:
Eichhorn, C. e Grimm, S. (orgs.).
compreensão das relações entre racismo e sexismo do que a tentativa Gender Killer. Texte zu Feminismus und
de formular a relação em apenas uma dimensão e reduzi‑la a um único Kritik. Berlin/Amsterdam: Edition
ID-Archiv, 1994, pp. 49-63.
termo como o da interseccionalidade ou da interdependência. Por isso
semelhanças, diferenças, ligações e intersecções devem ser justapos‑ [9] Por exemplo, Walgenbach, K.
“Gender als interdependente Kate-
tas em vez de serem tratadas como alternativas teóricas. Por mais que gorie”. In: Walgenbach, K., Dietze,
essas relações sejam formadas de maneiras distintas, que racismo e se‑ G., Hornscheidt, A. e Palm, K. Gender
als interdependente Kategorie. Neue
xismo sejam antes de tudo descritos como fenômenos separados en‑ Perspektiven auf Intersektionalität, Di-
tre si no que diz respeito à identificação de semelhanças e diferenças, versität und Heterogenität. Opladen:
Barbara Budrich, 2007, pp. 23-64.
e que, por outro lado, justamente suas junções estejam em primeiro
plano no que tange à classificação de ligações e intersecções, continuo
partindo do pressuposto de que cada uma dessas definições da rela‑
ção corresponde a certos ganhos cognitivos. Mas esses ganhos são de
alcance limitado e, por isso, precisam de complementação recíproca.
Para tornar essa tese plausível, vou discutir a seguir cada uma das clas‑
sificações da relação. Além disso, em cada seção pretendo alcançar o
objetivo de propor um ponto de vista que me pareça analiticamente
útil a respeito de cada classificação da relação.
Antes de começar essa tarefa, ainda me permito fazer uma obser‑
vação preliminar a respeito da natureza e da pretensão das reflexões
a serem desenvolvidas a seguir. O modelo, ou as diferenciações que

48 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 48 24/08/12 19:29


proponho aqui, foi desenvolvido a partir da literatura pertinente ao
tema publicada até o momento — em sua maioria trabalhos teóricos.
Não pretendo reunir características que necessariamente correspondam
às manifestações empíricas do racismo e do sexismo. Minha ideia é
antes tentar montar um panorama sobre os principais fatores que pos‑
sivelmente podem caracterizar a relação entre ambos em casos concre‑
tos. Racismo e sexismo são fenômenos complexos e não estáticos que
diferem de acordo com o contexto. Por isso, afirmações gerais sobre
sua relação não podem ser outra coisa que não propostas a respeito
das possíveis características dessas relações — ou, formulado de ou‑
tro jeito, cartografias de suas possíveis características. As exposições
desenvolvidas a partir de agora cumprem seu propósito, portanto, se
despertarem para a compreensão das complexidades das relações en‑
tre racismo e sexismo, por um lado, e sobre os possíveis elementos
e características dessas relações, por outro. Um procedimento como
esse não substitui estudos empíricos. Meu objetivo é antes oferecer
uma lista de aspectos que, se considerados na análise de casos indivi‑
duais, talvez possa nos levar mais longe nessa questão.

Semelhanças

Como já indiquei logo de início, racismo e sexismo são semelhan‑


tes no que diz respeito aos aspectos centrais de seus mecanismos de
funcionamento. Diferenças categoriais são construídas em ambos os
casos — por exemplo, entre homens e mulheres, entre heterosse­xuais,
homossexuais e bissexuais, entre negros, brancos e asiáticos, entre
alemães ou europeus e turcos, ou entre cristãos, judeus e muçulma‑
nos. Suposições sobre membros desses grupos sociais minoritários
são, em casos extremos, marcadas por mitos que levam à naturalização
e, assim, à fixação de suas supostas características. É dessa forma que
temos de lidar tanto com a imagem do “eterno feminino” como com a
figura do “eterno judeu” — ou com a presunção de que sociedades não
europeias, como as da África pré‑colonial ou mesmo as da África colo‑
nial e pós‑colonial, seriam desprovidas de história. Além de constru‑
ções de mitos como essas, um segundo aspecto semelhante pode ser
apontado: tanto nos casos de racismos como de sexismos, as respecti‑
vas atribuições categoriais de diferenças são utilizadas para legitimar
formas de estratificação e de segregação. O lugar apropriado de uma
pessoa dentro — ou também fora — de uma sociedade é deduzido a
partir de seu pertencimento a determinado grupo e das características
específicas que são atribuídas aos diversos grupos sociais. As mulhe‑
res, por exemplo, deveriam então pertencer ao lugar onde seus filhos
estão e os muçulmanos, a lugares fora da Europa. Analogias estrutu‑
rais entre racismos e sexismos são particularmente convincentes na‑

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 49

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 49 24/08/12 19:29


queles momentos em que se constata que homens brancos, nacionais
e, na maior parte das vezes, heterossexuais são considerados a norma
da qual desviam todos aqueles que não reúnem essas características.
A história do pensamento político nos oferece exemplos desses mo‑
mentos10, mas também a história da antropologia física, dentro de [10] Maihofer, A. “Gleichheit nur
für Gleiche?”. In: Gerhard, U. e
cujos limites foram comparados e igualados os crânios de mulheres outros (orgs.). Differenz und Gleich-
brancas com os de homens não europeus — então vistos como perten‑ heit. Menschenrechte haben (k)ein Ge-
schlecht. Königstein: Ulrike Helmer,
centes a “raças inferiores” — no século xix. Após essa primeira opera‑ 1997, pp. 351-67; idem, “Dialektik der
ção, ambos os grupos eram então comparados com homens brancos Aufklärung — Die Entstehung der
modernen Gleichheitsidee, des Dis-
europeus e, a partir de então, as características de menor inteligência e, kurses der qualitativen Geschlech-
como contrapartida, de forte emotividade e impulsividade poderiam terdifferenz und der Rassentheorie
im 18. Jahrhundert”. In: Hobuß, S.
lhes ser atribuídas11. Mas também a sexologia do final do século xix e e outros (orgs.). Die andere Hälfte der
do início do século xx oferece exemplos, uma vez que era orientada Globalisierung. Menschenrechte, Öko-
nomie und Medialität aus feministischer
pela antropologia comparativa no que se refere à sua metodologia e Sicht. Frankfurt a. M.: Campus, 2001,
iconografia e, consequentemente, também pela pesquisa racial — pelo pp. 113-32.
menos nos Estados Unidos. Nesse sentido, ela põe ideias sobre su‑ [11] Stepan, N. L. “Race and gender:
postos órgãos sexuais anormais e suposições sobre desvios sexuais the role of analogy in science”. In:
Goldberg, D. T. (org.). Anatomy of rac-
em contato direto, atribuindo ambos a mulheres negras e também a ism. Minneapolis: University of Min-
lésbicas, além de criar conexões entre desejos homossexuais e os então nesotta Press, 1990.
chamados desejos “inter-raciais”. Em ambos os casos, uma escolha
sexual anormal era atestada12. [12] Somerville, S. B. Queering the
color line. Race and the invention of ho-
No entanto, a referência a analogias estruturais entre racismo e se‑ mosexuality in American culture. Dur-
xismo também foi instrumentalizada com intenções emancipatórias, ham: Duke University Press, 2000.
mais precisamente por movimentos de mulheres brancas na América
do Norte e na Europa Ocidental que,assim — e também ao fazerem uso
de palavras de ordem como “as mulheres são os negros do mundo”13 [13] Schrader-Klebert, K. “Die kul-
turelle Revolution der Frau”. In: Kurs-
—, dramatizavam suas próprias questões. Esse tipo de equiparação buch, 17, 1969, pp. 1-45.
redutora foi atacada com razão, tanto por tornar as mulheres negras
invisíveis, como também por minimizar as experiências da escravidão
e da exploração. Essa crítica completamente justificada à criação de
paralelos altamente problemáticos não deve, contudo, levar à recusa
generalizada de todo e qualquer diagnóstico de analogias. A questão se‑
ria antes a de analisar, em cada caso, em que medida as eventuais se‑
melhanças são suficientes e qual posição é respectivamente atribuída
às mulheres de grupos minoritários “raciais”, étnicos ou religiosos.

Diferenças

Não é tarefa fácil identificar diferenças entre contextos de proble‑


mas demarcados de forma intencionalmente vaga. Não obstante, dois
aspectos distintos devem ser abordados nesse momento. O primeiro
diz respeito aos padrões de estratificação e de segregação que são pro‑
duzidos em contextos de racismos e sexismos. O segundo aspecto se
refere ao valor da reprodução [sexual] em discursos racistas e sexistas

50 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 50 24/08/12 19:29


e em seus respectivos arranjos institucionais. Se nos detivermos à li‑
teratura publicada nos últimos anos sobre o complexo temático “raça/
classe/gênero” ou sobre gênero e etnia no contexto da teoria social de
língua alemã, encontraremos diversas propostas com teor semelhante
que podem ser aplicadas a padrões de diferenciação racistas e sexistas.
Aprendemos aqui que o gênero produz, por um lado, inclusão — a das
mulheres na esfera da família e da vida doméstica — e, por outro, subor‑
dinação nas arenas do trabalho e da política. Em contrapartida, “raça”
e etnia também produzem subordinação nas arenas do trabalho e da
política, mas a exclusão aparece aqui como segundo momento, no nível
[14] Lenz, I. “Grenzziehungen und do Estado e da nação14. Contudo, certa cautela é adequada diante de
Öffnungen: Zum Verhältnis von
Geschlecht und Ethnizität zu Zeiten
generalizações esquemáticas desse tipo. Nesse sentido, deveríamos,
der Globalisierung”. In: Lenz, I. e por exemplo, perguntar até que ponto discursos e arranjos institu‑
Germer, A. (orgs.). Wechselnde Blicke.
Frauenforschung in internationaler
cionais estruturados de forma sexista ainda efetivamente relegam
Perspektive. Opladen: vs Verlag für as mulheres ao interior do espaço privado — e, além do mais, a quais
Sozialwissenchaften, 1996, p. 200-
27; Klinger, C. “Ungleichheit in den
mulheres eles se referem. Mesmo na Alemanha, o trabalho doméstico
Verhältnissen von Klasse, Rasse und vem sendo cada vez mais terceirizado e geralmente tem ficado sob a
Geschlecht”. In: Knapp, G.-A. e Wet-
terer, A. (orgs.). Achsen der Differenz.
responsabilidade de mulheres imigrantes ilegais. Apesar das ativida‑
Gesellschaftstheorie und feministische des domésticas continuarem a pertencer às tarefas clássicas atribuídas
Kritik II. Münster: Westfälisches
Dampfboot, 2003, p. 13-48; Eich-
às mulheres, elas são executadas no âmbito do emprego e, assim, fora
horn, C. “‘Frauen sind die Neger aller das quatro paredes da própria casa. Elas ainda estão, portanto, rela‑
Völker’. Überlegungen zu Feminis-
mus, Sexismus und Rassismus”. In:
cionadas ao espaço privado das famílias, mas são, ao mesmo tempo,
Redaktion diskus (org.). Die freun- desenvolvidas no contexto de um mercado de trabalho — ainda que
dliche Zivilgesellschaft. Rassismus und
Nationalismus in Deutschland. Berlim:
informal. E, assim, são em certa medida desenvolvidas em um espaço
id Verlag, 1992, p. 95-104. social externo. No contexto do racismo devemos, por sua vez, diferen‑
ciar entre o modelo do racismo colonial, que antes serve à estratificação
social e, assim, à subordinação, e o “neo”‑racismo diferencialista, que
antes aspira à homogeneização e cujo momento de exclusão é mais
acentuado. No entanto, podemos consolidar a ideia de que a diferen‑
ciação público/privado tem um papel mais importante no sexismo do
que no racismo e que, no racismo, a construção do estranhamento ou
do momento da des‑familiarização — para pegar emprestado o termo
de Birgit Rommelspacher — é mais importante.

Agora podemos passar ao segundo aspecto: o do valor da reprodu‑


ção. Devemos notar neste momento que normas sexistas de gênero
são centradas na reprodução em sentido amplo, ou seja, tanto normas
sexuais como também classificações de gênero estão incluídas aqui.
Tudo o que possibilita e facilita a reprodução [sexual] é considerado nor‑
mal e natural: o maior exemplo é o da ideia da existência de apenas
dois gêneros, complementada por normas de gênero tais como a da
normalidade do desejo heterossexual. Todas as demais variações de
sexo, gênero e desejo são privadas do status de normalidade, uma vez
que contestariam e serviriam de impedimento aos requisitos naturais

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 51

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 51 24/08/12 19:29


da reprodução humana. Se, em comparação, observarmos discursos
e instituições racistas, a reprodução ganha um valor e uma função
completamente diferentes, o que não significa que ela deixa de ser
importante. Discursos e instituições racistas servem na maior parte
das vezes à homogeneização e à segregação e, assim, ao impedimento da
mistura entre “raças”, incluindo especialmente os âmbitos da família
e da descendência, e, portanto, servem ao impedimento da reprodução
biológica entre diferentes grupos. Todas as proibições de casamentos
mistos são comprovações paradigmáticas desse ponto. Assim po‑
demos concluir de forma cautelosa que o topos da reprodução é im‑
portante de maneiras distintas em discursos e instituições racistas e
sexistas. Enquanto o sexismo tem como objetivo possibilitar formas
específicas de reprodução, o racismo busca impedir a miscigenação,
incluindo aqui o impedimento à reprodução entre grupos diferentes,
e a indistinção de fronteiras que dela decorre.

Ligações

A preocupação sexista com a reprodução e a preocupação racista


com a homogeneidade, bem como acerca do impedimento de misturas
“raciais”, são compatíveis entre si e podem ser conectadas a um com‑
plexo demográfico ou, para usar outro vocabulário, a um complexo bio‑
político. A conexão ou ligação consiste no seguinte fato: em tempos em
que a necessidade de crescimento populacional é proclamada, medidas
pró‑natalidade que afetam as habitantes do país — incluindo desde a
restrição a direitos reprodutivos até estruturas de incentivo financeiro
[relativos à reprodução] — se correlacionam com uma política restriti‑
va de imigração. Por meio dessa combinação, as mulheres nacionais são
principalmente tratadas como mães, enquanto potenciais imigrantes
e seus descendentes são excluídos e representados com menor valor.
Nesse contexto, Verena Stolcke fala de uma “racist‑cum‑sexist ideology”,
uma ideologia racista‑sexista15. Ela esclarece: [15] Stolcke, V. “Is sex to gender as
race is to ethnicity?”. In: Valle, Te-
resa del (org.). Gendered anthropology.
O recente alerta sobre as taxas declinantes de natalidade em alguns paí‑ Londres/Nova York: Routledge, 1993,
p. 17-37.
ses europeus e o natalismo fomentado por essa preocupação são apenas parte
de mais uma instância do racismo que reforça o papel maternal das mulheres.
Se, como argumentam alguns políticos conservadores desses países, o declínio
nas taxas de natalidade estivesse ameaçando os assim chamados Estados
de Bem‑Estar, uma solução certamente seria a de oferecer emprego para os
desempregados e/ou abrir suas fronteiras aos milhões de pobres do Terceiro [16] Ibidem, p. 36. Ver também
Mundo, mas eles geralmente não são “brancos’”16. Miles, R. Rassismus. Einführung in die
Geschichte und Theorie eines Begriffs.
Hamburgo/Berlin: Argument, 1999;
Essas ligações foram levadas ao extremo nas políticas nazistas para Rommelspacher, B. Dominanzkultur.
Texte zu Fremdheit und Macht. Berlin:
a família e para o extermínio. Mas ligações desse tipo também podem Orlanda Frauenverlag, 1995, p. 106.

52 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 52 24/08/12 19:29


ser estabelecidas na atualidade. O slogan “Kinder statt Inder” — “crian‑
ças ao invés de indianos” — serve de exemplo ao contexto alemão, uma
vez que Jürgen Rüttgers, primeiro‑ministro em exercício da Renânia
do Norte‑Vestefália, utilizou‑o em sua campanha eleitoral ao parla‑
mento estadual em 2000. Naquela época estava em curso um debate
público sobre a iniciativa do governo federal de conceder greencards a
fim de suprir a então virulenta escassez de mão de obra qualificada,
principalmente na área de tecnologia da informação. Como ninguém
na Alemanha ansiava por uma migração por empregos induzida pelo
greencard, muito menos de especialistas em computadores vindos da
Índia, os tabloides criaram o termo “Computer‑Inder” — “indiano do
computador” — e passaram a divulgar imagens assombrosas de gran‑
des famílias indianas que supostamente teriam decidido se estabele‑
cer em pequenas cidades alemãs. O objetivo de Rüttgers era resolver a
escassez de mão de obra qualificada por meio da formação de crianças e
não por meio da imigração. É relativamente claro que ele tinha crianças
alemãs em mente e não crianças imigrantes de origem indiana. Além
disso, ele provavelmente pensava, sobretudo, em meninos, crianças das
mulheres tratadas implicitamente como mães em seu slogan eleitoral.
Visto que ele era “apenas” contra a imigração, mas não a favor da ma‑
nutenção de estruturas familiares tradicionais, ele também poderia
mostrar seu compromisso em favor de iniciativas que despertassem o
interesse especialmente de meninas e mulheres por carreiras em tec‑
nologia da informação e que lhes facilitasse o acesso a essas profissões.
Ele não o fez e esse é o motivo pelo qual o slogan “crianças ao invés de
indianos” de fato ilustra a ligação que nos interessa aqui.
Outra ligação entre racismo e sexismo pode ser estabelecida, em‑
bora se trate de uma variante posicionada de forma um pouco distinta:
[17] Jäger, M. “Ethnisierung von a da “etnicização do sexismo”17, para tomar emprestada uma expressão
Sexismus im Einwanderungsdis-
kurs. Analyse einer Diskursver-
de Margarete Jäger. De forma mais geral, também podemos falar do
schränkung”. In: Wichter, S. e Antos, othering18 do sexismo, ainda que tenhamos que recorrer a um termo
G. (orgs.). Wissenstransfer zwischen
Experten und Laien. Umriss einer Trans-
em inglês. Os padrões e as estruturas sexistas são aqui etnicizados na
ferwissenschaft. Frankfurt/M.: Peter medida em que são principalmente atribuídos a outros grupos étnicos
Lang, 2000, p. 105-20. Disponível
on-line em: <http://www.uni-duis-
e religiosos que recentemente aumentaram em número, de modo que
burg.de/DISS/Internetbibliothek/ seu próprio grupo é representado como justo em respeito às questões
Art.../Ethnisierung_von_Sexis-
mus.htm>.
de gênero, ainda que implicitamente — ou ao menos como mais justo
que os demais grupos. Margarete Jäger fala aqui de um “cruzamento de
[18] Em inglês no original. [N. T.]
discursos” — expressão que eu mesma reformulo como “ligação”
de discursos sobre mulheres e imigrantes e que ilustro por meio das
declarações que frequentemente apareceram nas entrevistas condu‑
zidas por Jäger. Foram recorrentes as manifestações de que imigrantes
na Alemanha ou muçulmanos em geral seriam mais sexistas do que a
maioria da população de origem não turca e não muçulmana. Nessas
suposições, as mulheres do grupo supostamente mais sexista são

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 53

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 53 24/08/12 19:29


vitimizadas de forma geral — um exemplo disso é a tese de que o véu
islâmico simbolizaria em si a subordinação ou mesmo a submissão das
mulheres. Essa variante de ligação representada pelo othering do sexis‑
mo também não é completamente estranha ao próprio feminismo. Há
muitos anos, Chandra Talpade Mohanty já criticava a construção de
uma “diferença do terceiro mundo” entre mulheres ocidentais e mu‑
lheres oprimidas não ocidentais. Trata‑se da construção de uma dife‑
rença vitimizadora que não só marcava as tentativas ocidentais de pla‑
nejar o feminismo global, mas que também afetava negativamente as
perspectivas de sucesso dessa empreitada19. No plano nacional ou da [19] Mohanty, C. T. “Under Western
Eyes. Feminist Scholarship and Co-
política interna, as teses de Alice Schwarzer ilustram o othering do se‑ lonial Discourses”. In: Mohanty, C.
xismo no que diz respeito ao islamismo e, em especial, ao significado T., Russo, A. e Torres, L. (org.). Third
World women and the politics of femi-
do véu islâmico. Com a intenção de, nesse caso, denunciar o sexismo de nism. Bloomington/Indianapolis: In-
fundamentalistas islâmicos no Irã, Schwarzer não só comparou o véu diana University Press, 1991, p. 51-80.
das mulheres islâmicas à suástica20, mas também comparou o signifi‑ [20] Schwarzer, A. Der große Unter-
cado simbólico do véu com o da estrela de Davi. Segundo Schwarzer, schied. Gegen die Spaltung von Men-
schen in Männer und Frauen. Frankfurt
tanto o lenço quanto a estrela identificam partes da população como a. M.: Fischer, 2002.
pessoas de segunda classe21. Essas comparações podem ser criticadas
[21] Schirrmacher, F. e Schwar-
em vários níveis. Podemos nos opor ao fato de Schwarzer não enxergar zer, A., “Die Islamisten meinen es so
a abertura interpretativa pertencente às características constitutivas ernst wie Hitler”, op. cit.
dos símbolos e de instrumentalizar o holocausto de forma histórica
e moralmente questionável a fim de dar ouvidos a questões feminis‑
tas atuais. São, porém, dois outros aspectos que tornam suas com‑
parações exemplos para o othering do sexismo. Em primeiro lugar, ela
oculta o fato de que muitas — se não todas — mulheres muçulmanas
usam o véu sem coerção e que isso ocorre pelas mais variadas razões.
Ela aceita apenas uma interpretação que resulta na avaliação do véu
como sinal de uma cultura e de uma religião sexistas22. Em segundo [22] Ver também Rommelspacher,
B. Anerkennung und Ausgrenzung:
lugar, Schwarzer se limita ao Islã em sua crítica a religiões e práticas Deutschland als multikulturelle Gesell-
religiosas baseadas em hierarquias de gênero. O catolicismo, ainda schaft, op. cit., pp. 119 ss.; Oestreich,
H. Der Kopftuch-Streit. Das Abendland
fortemente ancorado nas instituições e nos ideais da Alemanha, cuja und ein Quadratmeter Islam. Frankfurt
política sexual e de igualdade entre gêneros também poderia receber a. M.: Brandes & Apsel, 2004; Braun,
C. von e Mathes, B. Verschleierte
algumas acusações, fica em regra excluído de suas análises. Ao mesmo Wirklichkeit. Die Frau, der Islam und
tempo, ela não só generaliza as violações dos direitos das mulheres der Westen. Berlim: Aufbau, 2007.
praticadas em nome do Islã — que de fato existem e que também de‑
vem ser criticadas enquanto continuarem a existir — como típicas do
islamismo, mas também reduz o Islã a essas violações.

Intersecções

Não está claro o que precisamente se quer dizer com o termo “in‑
tersecção” nas discussões atuais. Se seguirmos o posicionamento de
[23] “Sex, race, and biopower: A fou-
Ladelle McWhorter23, então as intersecções são atualmente proclama‑ cauldian genealogy”. Hypathia, vol. 3,
das em relação a estruturas sociais, significados históricos, relações de n-º 19, 2004, pp. 38-62.

54 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 54 24/08/12 19:29


poder e identidade. Seriam avaliadas discursivamente e institucio‑
nalmente, bem como em sua relação com as práticas locais. Na atual dis‑
[24] Crenshaw, K. “Demarginal-
izing the intersection of race and cussão europeia, o termo “intersecções” serve como símbolo para
sex: A black feminist critique of an- todas as formas possíveis de combinações e de entrelaçamentos de
tidiscrimination doctrine, feminist
theory and antiracist politics”. The diversas formas de poder expressas por categorias de diferença e de
University of Chicago Legal Forum, diversidade, sobretudo as de “raça”, etnia, gênero, sexualidade, clas‑
1989, pp. 139-67.
se/camada social, bem como, eventualmente, as de religião, idade e
[25] Um dos exemplos selecionados deficiências. Quanto a isso, ao menos originariamente o termo era
por Crenshaw é o caso DeGaffenreid
vs. General Motors (gm) de 1976, muito mais restrito e, assim, era conceituado de forma mais precisa.
que trata de demissões por razões A teórica do direito norte‑americana Kimberlé Crenshaw introduziu
operacionais. Naquela época, cinco
mulheres negras entraram com uma o conceito no debate sobre a teoria da diferença precisamente para
ação judicial alegando que o sistema explicar que, nas experiências de discriminação por qual passavam
de senioridade da empresa na reali-
dade reproduzia a antiga discrimina- mulheres negras nos Estados Unidos, os fatores de discriminação
ção contra mulheres negras. Antes de sexista e de discriminação racista nem sempre eram distinguíveis.
1964, ano em que o Civil Rights Act
entrou em vigor, a General Motors Em 1989, Crenshaw afirmou o seguinte em Demarginalizing the inter‑
nunca tinha contratado mulheres ne- section of race and sex:
gras. Todas aquelas contratadas a par-
tir de 1964 perderam seus empregos
em 1970 após uma onda de demis- A discriminação, assim como o tráfego de veículos em um cruzamento
sões organizada segundo o princípio
da senioridade. Em sua sentença, o [intersection], pode fluir em uma direção ou em outra. Se um acidente acon‑
tribunal decidiu que este não poderia tece no cruzamento, ele pode ter sido causado por carros vindos de várias
ser declarado como caso de discrimi-
nação de gênero, uma vez que a gm já direções e, às vezes, por carros que vêm de todas as direções. De forma seme‑
contratava mulheres [brancas] antes lhante, se uma mulher negra sofreu uma injustiça porque ela está no cruza‑
de 1964. A denúncia de discrimina-
ção racial foi rejeitada com a sugestão mento, a injúria cometida contra ela pode resultar da discriminação sexual
de reuni-la com outras queixas de ra- ou da discriminação racial24.
cismo contra a gm — embora esses
outros casos não tratassem do pro-
blema de senioridade. Não foi permi- Com base nessa imagem do cruzamento, Crenshaw defendeu uma
tido às denunciantes entrar com uma
ação como mulheres negras: as ações reforma do direito antidiscriminação norte‑americano. Segundo seu
contra discriminação por motivo de diagnóstico, esse direito funcionaria de uma forma específica que lhe
gênero e também por motivo “racial”
tiveram apreciação negativa. Em dois permitia apenas reagir a casos baseados em questões de gênero — em
outros casos tratados por Crenshaw, que a mulher branca era o padrão — ou a fatos racistas — e então os
o problema consistia no fato de que
mulheres negras eram privadas pe- homens eram a norma. Ao analisar diversos casos judiciais em que
los tribunais de desempenharem a discriminações contra mulheres afro‑americanas no mercado de
função de representantes do grupo
das discriminadas sexualmente e das trabalho não puderam ter seguimento em razão dessa lógica unidi‑
discriminadas por questões raciais. mensional, ela demonstra que, sem essa reforma jurídica, as mulheres
Mais uma vez, não era possível à par-
te afetada ter êxito em denúncias na negras estavam ameaçadas de cair nas lacunas do direito antidiscri‑
condição de mulher — e não de mu- minação25. A própria Crenshaw ampliou seu conceito de interseccio‑
lher negra — e também em denúncias
na condição de negra (ver Crenshaw, nalidade e, em ensaio posterior sobre violência contra women of color
op. cit., pp. 141 ss.). — “mulheres de cor” —, ela tratou da interseccionalidade estrutural,
[26] Crenshaw, K. “Mapping the
da interseccionalidade política e da interseccionalidade nas ciências
margins: intersectionality, iden- sociais26. Apesar disso, é o direito que está no foco de seus trabalhos.
tity politics, and violence against
women of color”. In: Crenshaw, K.
Com relação à interseccionalidade estrutural, ela trata, por exemplo,
e outros (orgs.). Critical race theory. da situação precária de mulheres imigrantes, cuja permanência como
the key writings that formed the move-
ment. Nova York: The New Press,
residentes no país depende de seus maridos violentos; em relação à
1995, pp. 357-83. interseccionalidade política, ela discute diversas medidas políticas e

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 55

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 55 24/08/12 19:29


jurídicas contra a violência doméstica, que têm no tratamento injusto
à situação específica das women of color seu traço comum; e, em relação
à interseccionalidade nas ciências sociais, ela trata de um estudo sobre
a tematização de estupros no direito, que, mais uma vez, reproduz os
problemas já citados. Sem de modo algum querer reduzir o grande
valor desses trabalhos, acredito que eles não colocam de forma su‑
ficientemente ampla a questão de como pode ser mais esclarecedor
entender a interseccionalidade do racismo e do sexismo como fenô‑
menos de poder complexos e entrelaçados empiricamente de múlti‑
plas formas, com uma dimensão epistêmica, uma institucional e outra
pessoal. A fim de apresentar minha proposta, quero primeiro voltar
mais uma vez a essas três dimensões — que se inter‑relacionam e se
apoiam mutuamente umas nas outras — apresentadas brevemente
no início do texto. Em seguida espero poder mostrar que é possível
e proveitoso fazer algumas afirmações relacionadas a cada uma das
três dimensões, além de mostrar que o sentido da interseccionalidade
difere de dimensão para dimensão.
Em primeiro lugar, portanto, faço novamente referência às pró‑
prias dimensões. A dimensão epistêmica do racismo e do sexismo está
relacionada a discursos e saberes, mas também contém símbolos e
imagens. A dimensão institucional diz respeito a arranjos institucionais
que produzem formas estruturais de hierarquização e de discrimina‑
ção. Por fim, a dimensão pessoal diz respeito a atitudes, mas também à
identidade e à subjetividade de pessoas — tanto daquelas que perten‑
cem a grupos sociais com status de maioria no que se refere ao racismo
e ao sexismo, quanto daquelas que podemos atribuir a grupos minori‑
tários. Além disso, a dimensão pessoal também se refere a ações indi‑
viduais e a interações pessoais.
Se revisarmos a literatura relevante em busca de uma compreensão
abrangente e socioteórica da interseccionalidade, mais cedo ou mais
tarde vamos nos deparar com os trabalhos de Patricia Hill Collins,
principalmente com as diferentes edições de seu livro Black feminist
thought27. Nessa obra, a principal questão de Collins é analisar as con‑ [27] Black feminist thought. Knowl-
edge, consciousness, and the politics of
dições de vida de mulheres afro‑americanas e, portanto, a possibili­ empowerment. Nova York/Londres:
dade de generalização de sua proposta está limitada aos componentes Unwin Hyman, 1991 e 2000.
de conteúdo. No entanto, daqui pode ser extraído um quadro teórico
que também pode ser esclarecedor para outros contextos — trata‑se de
seu conceito de “matriz de dominação”. Por meio do conceito, Collins
designa organizações específicas de relações sociais hierárquicas de
poder. Nesse sentido, as matrizes de dominação seriam caracteriza‑
das, por um lado, por um arranjo específico de sistemas sobrepostos
de opressão, tais como “raça”, estrato social, gênero, sexualidade, esta‑
tuto de cidadão, etnia e idade; e, por outro, por uma organização espe‑
cífica de suas esferas de poder. Collins lista quatro esferas diferentes

56 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 56 24/08/12 19:29


de poder: primeiro a esfera estrutural, relacionada a arenas tais como
ocupação profissional, governo, educação, direito, economia e mora‑
dia, na qual o poder é exercido por meio de leis e políticas públicas;
em segundo lugar vem a esfera disciplinar, em que o exercício do poder
se dá por meio de hierarquias burocráticas e de técnicas de controle e
vigilância; em terceiro, a esfera hegemônica, em que ideias e ideologias
atuam no sentido de despolitizar opiniões discrepantes, ou também
em que grupos sociais se controlam mutuamente e acabam por produ‑
zir o mesmo efeito; e, por fim, em quarto lugar, a esfera interpessoal que
abarca o racismo cotidiano, as experiências cotidianas de discrimina‑
ção e as reações de oposição e de resistência a esses atos. A diferencia‑
ção da matriz de dominação em esferas de poder proposta por Collins
é transversal à diferenciação de variadas dimensões entre racismo e
sexismo que eu mesma propus. O modelo de Collins é principalmente
caracterizado pela reunião de diversas formas ou campos de ação do
poder. No entanto, ele fornece um ponto de partida muito útil para a
diferenciação dimensional que proponho, não só no que diz respeito
ao conceito de matriz de dominação, mas também pelo material empí‑
rico que, ao servir de ilustração dos efeitos da matriz, ganha espaço não
menos importante em seu livro. Diante desse pano de fundo, eu me
proponho a desenvolver uma concepção sobre as intersecções entre
racismo e sexismo que abarque uma dimensão epistêmica, institu‑
cional e também pessoal a partir dos resultados obtidos por Collins.
Em relação à dimensão epistêmica, temos então que lidar com nor‑
mas de gênero “racializadas” e com representações e atribuições “ra‑
ciais” sexualizadas — e aqui a interseccionalidade também implica
uma pluralização ou uma diferenciação interna de categorias usuais
da diversidade. Estereótipos e atributos da feminilidade negra se dife‑
renciam, por exemplo, de normas de gênero concernentes a mulheres
brancas ou asiáticas. Estereótipos e atributos da feminilidade negra e
da masculinidade negra também se diferenciam entre si.
Em relação à dimensão institucional, a interseccionalidade de racis‑
mo e sexismo resulta em complexo entrelaçamento entre diferentes
estruturas institucionais — um entrelaçamento entre, por exemplo,
condições de acesso e permanência no mercado de trabalho, estrutu‑
ras familiares e a concreta situação da política educacional. Seu efeito
é, entre outros, o fato de que o papel tradicional da mulher identifica‑
do pelo feminismo burguês e “branco” — a saber, a existência como
[28] Gutiérrez Rodríguez, E. Intelle-
dona de casa e mãe — nunca se constituiu de fato para as mulheres
ktuelle Migrantinnen — Subjektiv- afro‑americanas.
itäten im Zeitalter von Globalisierung.
Eine postkoloniale dekonstruktive
Por fim, quanto à dimensão pessoal, a interseccionalidade aponta,
Analyse von Biographien im Span- entre outros, a processos de subjetivação ou de formação de identida‑
nungsverhältnis von Ethnisierung und
Vergeschlechtlichung. Opladen: Leske
des com diferentes pontos de referência. Para tratar desse tema, Encar‑
e Budrich, 1999.06 nación Gutiérrez Rodríguez cunhou o termo “etnicização de gênero”28.

NOVOS ESTUDOS 93 ❙❙ JULHO 2012 57

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 57 24/08/12 19:29


Como parte de uma pesquisa sobre os processos de formação identitá‑
ria de mulheres que migraram para a Alemanha, Gutiérrez Rodríguez
mostrou que o desenvolvimento de uma identidade de gênero sempre
inclui processos de etnicização, uma vez que não existem normas de
gênero que sejam etnicamente neutras. A questão de se os indivíduos
se dão conta de sua própria etnicização ou não continua a depender de
sua posição social: em todos os casos, integrantes de minorias étni‑
cas foram percebidos como portadores de registros étnicos marcados
mais fortemente do que integrantes de grupos étnicos majoritários.
Esses resultados são interessantes e orientadores da dimensão pes‑
soal do racismo e do sexismo principalmente por sugerirem que os
processos de formação de identidades étnicas e de gênero não podem
ser diferenciados com clareza — porque eles estão entrelaçados.
Levando em consideração todos esses aspectos, podemos então
dizer que as intersecções entre racismo e sexismo não constituem algo
unitário, mas têm significados distintos dependendo da dimensão es‑
pecífica. E o que difere aqui é sobretudo a forma, a configuração das
relações de intersecção. Nesse sentido, intersecções significam: pri‑
meiro, normas de gênero pluralizadas e normas que dizem respeito
aos pertencentes de uma “raça” ou de um grupo definido etnicamen‑
te; segundo, cruzamentos institucionais com efeitos que diferenciam
grupos sociais; e, em terceiro lugar, processos multifatoriais de forma‑
ção de identidades.

Conclusão

Afirmações úteis a respeito de semelhanças, diferenças, ligações


e intersecções podem ser feitas no contexto das relações entre racis‑
mos e sexismos. A defesa de uma conceituação multidimensional das
relações de ambos os complexos de problemas é a consequência di‑
reta dessa primeira ideia. O atual interesse feminista por formas de
interseccionalidade não deve por isso levar à completa substituição
de “antigos” diagnósticos centrados nas analogias — estes devem ser
antes completados e corrigidos onde for preciso. E também as liga‑
ções e intersecções não devem ser confundidas entre si. Além disso,
sempre que pensarmos a respeito de ligações e intersecções, devemos
perguntar — ou melhor: saber — o que precisamente se combina e se
cruza. Em todo caso, não podemos pressupor que os elementos
individuais das ligações e intersecções funcionam necessariamente
de acordo com os mesmos princípios. Nesse sentido, parece útil per‑ Rece­bido para publi­ca­ção
guntar pelas semelhanças e diferenças entre racismos e sexismos. No em 22 de março de 2012.
entanto, a análise de semelhanças e diferenças nunca será suficiente. NOVOS ESTUDOS
CEBRAP
93, julho 2012
pp. 45‑58
Ina Kerner é professora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Humboldt de Berlim.

58 Tudo é interseccional? ❙❙ ­Ina Kerner

05_Kerner_Dossie_93_p44a59.indd 58 24/08/12 19:29


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE
ESPECIALISTAS EM ASPECTOS DA
DISCRIMINAÇÃO RACIAL
RELATIVOS AO GÊNERO
KIMBERLÉ CRENSHAW
University of California – Los Angeles

Resumo: Tanto os aspectos de gênero da discriminação racial quanto os aspectos raciais da


discriminação de gênero não são totalmente apreendidos pelos discursos dos direitos humanos.
O presente documento, baseado no crescente reconhecimento de que as discriminações de
raça e de gênero não são fenômenos mutuamente excludentes, propõe um modelo provisório
para a identificação das várias formas de subordinação que refletem os efeitos interativos das
discriminações de raça e de gênero. Este documento também sugere um protocolo provisório
a ser seguido, a fim de melhor identificar as situações em que tal discriminação interativa
possa ter ocorrido e, além disso, defende que a responsabilidade de lidar com as causas e as
conseqüências dessa discriminação deva ser amplamente compartilhada entre todas as
instituições de direitos humanos.
Palavras-chave: gênero, raça, discriminação, interseccionalidade, direitos humanos.

Introdução e panorama
Inspiradas pela vontade de discutir a desigualdade que atinge mulheres em todo o
mundo, as ativistas dos direitos humanos vêm realizando significativos ganhos nas últimas
décadas, assegurando a maior inclusão do tema do abuso dos direitos relativos às mulheres
e ao gênero nos discursos dos direitos humanos.1 Em nível formal, o princípio da igualdade
de gênero, no que se refere à fruição dos direitos humanos, baseia-se na Carta das Nações
Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo depois explicitado na
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres
(Convention for the Elimination of All Forms of Discriminantion Against Women/CEDAW). Essas
garantias foram detalhadas através de uma série de conferências mundiais, incluindo as
do Cairo, de Viena e de Beijing. Tais detalhamentos realmente constituíram avanços
conceituais, pois expandiram os direitos humanos para além dos seus parâmetros iniciais,
que marginalizavam os abusos de direitos relacionados ao gênero que atingissem

1
A versão original (em inglês) deste documento, intitulado “Background Paper for the Expert Meeting on Gender-
Related Aspects of Race Discrimination”, encontra-se na homepage Women’s International Coalition for Economic
Justice <www,wuceh,addr,cin/wcar_docs/crenshaw.html>. A tradução em português deste documento é aqui
publicada com permissão da autora.

ESTUDOS FEMINISTAS 171 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

especificamente as mulheres. O relativo sucesso de tais esforços baseou-se em uma


mudança significativa de perspectivas quanto à relevância da diferença de gênero no
projeto de ampliação do escopo dos direitos humanos das mulheres.
Embora a Declaração Universal garanta a aplicação dos direitos humanos sem
distinção de gênero, no passado, os direitos das mulheres e as circunstâncias específicas
em que essas sofrem abusos foram formulados como sendo diferentes da visão clássica de
abuso de direitos humanos e, portanto, marginais dentro de um regime que aspirava a
uma aplicação universal. Tal universalismo, entretanto, fundamentava-se firmemente nas
experiências dos homens. Conseqüentemente, apesar da garantia formal, a proteção dos
direitos humanos das mulheres foi comprometida à medida que suas experiências poderiam
ser definidas como diferentes das dos homens. Assim, quando mulheres eram detidas,
torturadas ou lhes eram negados outros direitos civis e políticos, de forma semelhante como
acontecia com os homens, tais abusos eram obviamente percebidos como violações dos
direitos humanos. Porém, quando mulheres, sob custódia, eram estupradas, espancadas
no âmbito doméstico ou quando alguma tradição lhes negava acesso à tomada de
decisões, suas diferenças em relação aos homens tornavam tais abusos ‘periféricos’ em se
tratando das garantias básicas dos direitos humanos.
Ao longo da última década, em conseqüência do ativismo das mulheres, tanto em
várias conferências mundiais como no campo das organizações de direitos humanos,
desenvolveu-se um consenso de que os direitos humanos das mulheres não deveriam ser
limitados apenas às situações nas quais seus problemas, suas dificuldades e vulnerabilidades
se assemelhassem aos sofridos pelos homens. A ampliação dos direitos humanos das
mulheres nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à incorporação
da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das conferências mundiais de Viena e
de Beijing. De fato, ao mesmo tempo que a diferença deixou de ser uma justificativa para
a exclusão do gênero dos principais discursos de direitos humanos, ela, em si mesma,
passou a servir de apoio à própria lógica de incorporação de uma perspectiva de gênero.
Tal incorporação baseia-se na visão de que, sendo o gênero importante, seus efeitos
diferenciais devem necessariamente ser analisados no contexto de todas as atividades
relativas aos direitos humanos. Assim, enquanto no passado a diferença entre mulheres e
homens serviu como justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de forma
mais geral, para justificar a desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres
indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de incorporar
uma análise de gênero em suas práticas.
A Declaração Universal também reforça o princípio da não-discriminação com base
na raça. Essa garantia foi mais bem elaborada na Convenção Internacional para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (International Convention on the
Elimination of All Forms of Racial Discrimination/CERD), que tratou da proteção contra a
discriminação baseada na cor, na descendência e na origem étnica ou nacional. Como
a proteção dos direitos civis e políticos é garantia básica dos direitos humanos, aspectos
da discriminação racial que mais se assemelhavam à negação da cidadania plena, do
tipo apartheid, foram enquadrados nos parâmetros prevalecentes dos direitos humanos.
Entretanto, como no caso da discriminação de gênero, as noções de diferença, também
aí, limitam a possível expansão das garantias de direitos humanos ligados à raça aos
contextos em que a discriminação se pareça mais com a negativa formal, de jure, dos
direitos civis e políticos. A discriminação que não se enquadra nesse modelo-padrão pode
às vezes ser tratada como ‘excessivamente diferente’ das experiências formais do tipo
apartheid para que possam constituir abuso de direitos humanos.

ANO 10 172 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

No sentido de melhor definir o alcance do direito à não-discriminação racial, bem


como da não-discriminação de gênero, foram feitos vários esforços em conferências
mundiais, oportunidade que novamente se apresentará na próxima Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban,
África do Sul. Até o momento, no entanto, nada equivalente aos compromissos assumidos
em Viena e Beijing, em termos de incorporação do gênero, foi feito no contexto da raça e
da discriminação racial. Essa coincidência nas respectivas trajetórias de gênero e de raça
no âmbito das ações pelos direitos humanos é, por um lado, resultado de uma estratégia
de dez anos que culminou na incorporação da perspectiva de gênero e, por outro lado, é
o início de novas estratégias para o aprofundamento do compromisso de eliminar a
discriminação racial e outras formas de intolerância. Assim, essa sobreposição de trajetórias
cria uma etapa particularmente receptiva para pensar a interação entre as discriminações
de raça e de gênero de pelo menos duas maneiras fundamentais.
Em primeiro lugar, enquanto as nações e as organizações não-governamentais
(ONGs) se preparam para a próxima Conferência Mundial contra o Racismo, o imperativo
da incorporação da perspectiva de gênero, o qual se aplica amplamente às agências e
órgãos de vigilância de tratados das Nações Unidas, dirige a atenção para a necessidade
de desenvolver protocolos e análises voltados para o tratamento das dimensões de gênero
do racismo. Considerando que a discriminação racial é freqüentemente marcada pelo
gênero, pois as mulheres podem às vezes vivenciar discriminações e outros abusos dos
direitos humanos de uma maneira diferente dos homens, o imperativo de incorporação do
gênero põe em destaque as formas pelas quais homens e mulheres são diferentemente
afetados pela discriminação racial e por outras intolerâncias correlatas. Portanto, a
incorporação do gênero, no contexto da análise do racismo, não apenas traz à tona a
discriminação racial contra as mulheres, mas também permite um entendimento mais
profundo das formas específicas pelas quais o gênero configura a discriminação também
enfrentada pelos homens.
Em segundo lugar, a lógica da incorporação da perspectiva de gênero, ou seja,
focalizar a diferença em nome de uma maior inclusão, aplica-se tanto às diferenças entre
as mulheres como às diferenças entre mulheres e homens. Há um reconhecimento crescente
de que o tratamento simultâneo das várias ‘diferenças’ que caracterizam os problemas e
dificuldades de diferentes grupos de mulheres pode operar no sentido de obscurecer ou
de negar a proteção aos direitos humanos que todas as mulheres deveriam ter. Assim
como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao
peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados a
suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional
e orientação sexual, são ‘diferenças que fazem diferença’ na forma como vários grupos
de mulheres vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas
e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem
desproporcionalmente apenas algumas mulheres. Do mesmo modo que as vulnerabilidades
especificamente ligadas a gênero não podem mais ser usadas como justificativa para
negar a proteção dos direitos humanos das mulheres em geral, não se pode também
permitir que as ‘diferenças entre mulheres’ marginalizem alguns problemas de direitos
humanos das mulheres, nem que lhes sejam negados cuidado e preocupação iguais sob
o regime predominante dos direitos humanos. Tanto a lógica da incorporação do gênero
quanto o foco atual no racismo e em formas de intolerância correlatas refletem a
necessidade de integrar a raça e outras diferenças ao trabalho com enfoque de gênero
das instituições de direitos humanos.

ESTUDOS FEMINISTAS 173 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da


proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias
formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao
modo pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de
diferentes grupos de mulheres. Como as experiências específicas de mulheres de grupos
étnicos ou raciais definidos são muitas vezes obscurecidas dentro de categorias mais amplas
de raça e gênero, a extensão total da sua vulnerabilidade interseccional ainda permanece
desconhecida e precisa, em última análise, ser construída a partir do zero.
Apesar das lacunas gritantes na informação disponível sobre mulheres racialmente
marginalizadas em todo o mundo, é possível facilitar a discussão sobre a variabilidade da
discriminação contra as mulheres por meio de modelos provisórios projetados para mapear
suas múltiplas identidades. Com esse fim, o presente documento sugere várias formas de
entender como as experiências únicas de mulheres étnica e racialmente identificadas são
por vezes obscurecidas ou marginalizadas nos discursos sobre direitos. Onde os contornos
específicos da discriminação de gênero não são bem compreendidos, as intervenções
para tratar de abusos aos direitos humanos das mulheres serão provavelmente menos
efetivas. Portanto, seria útil que aqueles que esperam articular e/ou responder às
necessidades das mulheres marginalizadas antecipassem as várias formas pelas quais as
vulnerabilidades de raça e de gênero podem se entrecruzar. Este documento busca
apresentar um catálogo parcial dessas vulnerabilidades, através de alguns exemplos
ilustrativos. Tais exemplos formam a base para um protocolo que pode ser usado na
identificação de situações em que a discriminação de gênero é ampliada pela ou
combinada com a discriminação racial, ou vice-versa.
Finalmente, são feitas recomendações para a expansão do escopo do protocolo
sugerido a fim de incluir não apenas o trabalho dos órgãos de vigilância dos tratados das
Nações Unidas, como também as atividades da comunidade mais ampla de direitos
humanos. As ONGs e outras instituições devem se envolver nos esforços simultâneos de
investigação das implicações de gênero do racismo, da xenofobia e de outras formas de
intolerância e de maior conscientização quanto às implicações de raça, etnia, cor e outros
fatores que contribuem para uma combinação de abusos dos direitos humanos que
mulheres e, por vezes, homens enfrentam.

Invisibilidade interseccional: repensando a impor tância da


importância
diferença intragrupo
Há várias razões pelas quais experiências específicas de subordinação interseccional
não são adequadamente analisadas ou abordadas pelas concepções tradicionais de
discriminação de gênero ou raça. Freqüentemente, um certo grau de invisibilidade envolve
questões relativas a mulheres marginalizadas, mesmo naquelas circunstâncias em que se
tem certo conhecimento sobre seus problemas ou condições de vida. Quando certos
problemas são categorizados como manifestações da subordinação de gênero de mulheres
ou da subordinação racial de determinados grupos, surge um duplo problema de
superinclusão e de subinclusão.
O termo ‘superinclusão’ pretende dar conta da circunstância em que um problema
ou condição imposta de forma específica ou desproporcional a um subgrupo de mulheres
é simplesmente definido como um problema de mulheres. A superinclusão ocorre na medida
em que os aspectos que o tornam um problema interseccional são absorvidos pela estrutura
de gênero, sem qualquer tentativa de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra
forma de discriminação possa ter exercido em tal circunstância. O problema dessa
abordagem superinclusiva é que a gama total de problemas, simultaneamente produtos

ANO 10 174 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

da subordinação de raça e de gênero, escapa de análises efetivas. Por conseqüência, os


esforços no sentido de remediar a condição ou abuso em questão tendem a ser tão
anêmicos quanto é a compreensão na qual se apóia a intervenção.
O discurso sobre o tráfico de mulheres é um exemplo disso. Quando se presta atenção
em quais mulheres são traficadas, é óbvia a ligação com a sua marginalização racial e
social. Contudo, o problema do tráfico é freqüentemente absorvido pela perspectiva de
gênero sem que se discuta raça e outras formas de subordinação que também estão em
jogo. Por exemplo, no recente relatório sobre tráfico de mulheres, do Comitê sobre a
Condição das Mulheres, não se deu atenção alguma ao fato de que, muitas vezes, a raça
ou formas correlatas de subordinação contribui para aumentar a probabilidade de que
certas mulheres, ao invés de outras, estejam sujeitas a tais abusos.
Os esforços no sentido de remediar tais situações devem ser fundamentados em
uma compreensão da magnitude do problema, incluindo, quando forem relevantes, suas
dimensões raciais. Em algumas ocasiões é visível a atenção dada à identidade racial ou
social de mulheres traficadas; no entanto, o reconhecimento das dimensões raciais do
problema nem sempre é suficiente para garantir que as soluções propostas sejam
absolutamente informadas por esses fatores. Por exemplo, durante o Seminário de
Especialistas do Pacífico Asiático, preparatório à Conferência contra o Racismo, em Bangkok,
a relação entre discriminação racial e tráfico foi reconhecida. Esse foi um primeiro passo
importante para entender todos os contornos do problema. Contudo, a atenção à questão
de raça na análise do problema não foi devidamente destacada nas recomendações
para ações futuras. Uma análise do tráfico totalmente integrada sugeriria que todos os
fatores que contribuem para a vulnerabilidade das mulheres em tal contexto sejam incluídos
tanto na análise quanto nas recomendações para o tratamento do problema.
Uma questão paralela à superinclusão é a subinclusão. Uma análise de gênero
pode ser subinclusiva quando um subconjunto de mulheres subordinadas enfrenta um
problema, em parte por serem mulheres, mas isso não é percebido como um problema de
gênero, porque não faz parte da experiência das mulheres dos grupos dominantes. Uma
outra situação mais comum de subinclusão ocorre quando existem distinções de gênero
entre homens e mulheres do mesmo grupo étnico ou racial. Com freqüência, parece que,
se uma condição ou problema é específico das mulheres do grupo étnico ou racial e, por
sua natureza, é improvável que venha a atingir os homens, sua identificação como problema
de subordinação racial ou étnica fica comprometida. Nesse caso, a dimensão de gênero
de um problema o torna invisível enquanto uma questão de raça ou etnia. O contrário, no
entanto, raramente acontece. Em geral, a discriminação racial que atinge mais diretamente
os homens é percebida como parte da categoria das discriminações raciais, mesmo que
as mulheres não sejam igualmente afetadas por ela.
Um exemplo de subinclusão é a esterilização de mulheres marginalizadas em todo
o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, milhares de porto-riquenhas e afro-americanas
foram esterilizadas sem seu conhecimento ou consentimento. Esses abusos foram
predominantes nos anos 1950, mas também ocorreram em períodos mais recentes. Embora
as mulheres porto-riquenhas e afro-americanas fossem, de forma desproporcional, as vítimas
mais prováveis dessa negação dos direitos reprodutivos por causa da sua raça e classe, o
ataque a esse direito humano fundamental raramente tem sido reconhecido como um
dos exemplos mais flagrantes de discriminação racial já perpetrados contra povos
racializados nos Estados Unidos. Em geral, a esterilização forçada de mulheres em todo o
mundo não tem sido tratada como uma questão racial, embora, quando cuidadosamente
examinada, se reconheçam aí fatores de ‘risco’, como raça, classe e outros, que determinam
quais mulheres, mais provavelmente, sofrerão e quais não sofrerão esses abusos.

ESTUDOS FEMINISTAS 175 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

Comumente, apenas grupos específicos de mulheres em qualquer país são o alvo, mas a
distribuição seletiva dos abusos não tem sido investigada como um exemplo de
discriminação racial.
É evidente que existem algumas situações em que os abusos que atingem
exclusivamente as mulheres são rapidamente definidos como um problema de
subordinação étnica, mas esse reconhecimento freqüentemente ocorre porque o problema
enfrentado é mais facilmente construído como um ataque ao grupo com um todo. A
violência sexual perpetrada por elementos externos a um grupo consiste-se em um desses
casos.
Por exemplo, os trágicos eventos de genocídio em Ruanda e na Bósnia foram
desencadeados pelas mutilações e pelo estupro de mulheres por motivações étnicas. Tais
abusos, caracterizados pela degradação das mulheres, foram perpetrados tanto como
ataques contra a honra do grupo quanto, é claro, como atos contra as próprias mulheres.
Conforme afirma a Relatora Especial das Nações Unidas, Radhika Coomaraswamy, as
mulheres são alvos especiais desse tipo de abuso por serem freqüentemente percebidas
como representantes da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da
comunidade. Embora o ataque à comunidade tenha sido execrado como genocídio étnico,
essa indignação não sinaliza preocupações com suas vítimas diretas, muitas das quais
estão condenadas ao ostracismo, vistas como mulheres maculadas e irremediavelmente
degradadas.
Em resumo, nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna
invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a
própria diferença é invisível.
A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em
contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o pano de
fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas
por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da
vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível.
O efeito disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido,
enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal subordinação
permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em questão poderia ser vista
simplesmente como sexista (se existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista
(se existir uma estrutura de gênero como pano de fundo). Para apreender a discriminação
como um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da
estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para
a produção da subordinação.
Um exemplo pode ser resgatado da experiência das mulheres dalit, na Índia, que
são espancadas ou sofrem outras formas de abuso em espaços públicos quando realizam
suas responsabilidades ‘femininas’, como buscar água na fonte.2 Ou seja, os abusos ocorrem
em contextos em que a suposta condição de ‘intocável’ as deixa vulneráveis à violência
dos membros das castas mais altas, principalmente se esses considerarem que elas
transgrediram suas fronteiras corporais. Embora essa violência seja prontamente definida
como simples discriminação de casta, na verdade, ela é interseccional: as mulheres devem,
portanto, negociar um conjunto complexo de circunstâncias nas quais uma série de
responsabilidades marcadas pelo gênero as posiciona de forma que elas absorvam as
conseqüências da discriminação de casta na esfera pública.

2
Na Índia, dalit representa uma casta constituída por pessoas consideradas ‘intocáveis’ (N.R.).

ANO 10 176 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

A importância de desenvolver uma perspectiva que revele e analise a discriminação


interseccional reside não apenas no valor das descrições mais precisas sobre as experiências
vividas por mulheres racializadas, mas também no fato de que intervenções baseadas em
compreensões parciais e por vezes distorcidas das condições das mulheres são, muito
provavelmente, ineficientes e talvez até contraproducentes. Somente através de um exame
mais detalhado das dinâmicas variáveis que formam a subordinação de mulheres
racialmente marcadas pode-se desenvolver intervenções e proteções mais eficazes.
Tendo descrito as várias razões pelas quais a subordinação interseccional de mulheres
racialmente marcadas passa despercebida, vamos, agora, considerar as várias formas
pelas quais as vidas de algumas mulheres são moldadas, controladas e, por vezes, perdidas
aos nexos entre gênero, raça, cor, etnia e outros eixos da subordinação.

Definindo interseccionalidade: uma conceituação metafórica


A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários
modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação.
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões
que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento.
Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em
que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas
que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas
do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder
distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo,
que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas,
freqüentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais
dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres racializadas freqüentemente estão
posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se
encontram. Por conseqüência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego
em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas
opressões, posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas,
devem negociar o ‘tráfego’ que flui através dos cruzamentos. Esta se torna uma tarefa
bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções. Por vezes, os
danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança vítimas no caminho
de outro fluxo contrário; em outras situações os danos resultam de colisões simultâneas.
Esses são os contextos em que os danos interseccionais ocorrem – as desvantagens
interagem com vulnerabilidades preexistentes, produzindo uma dimensão diferente do
desempoderamento.

Categorizando a experiência interseccional: um modelo


provisório
Hoje, ao mesmo tempo que é amplamente aceito que as mulheres nem sempre
vivenciam o sexismo da mesma forma, e que homens e mulheres também não vivenciam
o racismo de forma idêntica, o projeto de entender as circunstâncias concretas nas quais

ESTUDOS FEMINISTAS 177 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

o racismo e o sexismo convergem apenas começa a se desenvolver em nível global. A


seguir, apresento um modelo provisório que pretende auxiliar na catalogação e organização
do conhecimento existente sobre as múltiplas formas pelas quais a interseccionalidade
pode configurar a vida de mulheres de todo o globo terrestre. O objetivo dessas topologias
iniciais é propor uma linguagem capaz de expressar as experiências das pessoas e, também,
de ilustrar a necessidade de expandir os parâmetros conceituais dos discursos dos tratados
internacionais existentes. Como mostram as topologias, o problema interseccional não
está simplesmente no fato de não abordar um único tipo de discriminação de forma
completa, mas no fato de que uma gama de violações de direitos humanos fica
obscurecida quando não se consideram as vulnerabilidades interseccionais de mulheres
marginalizadas e, ocasionalmente, também de homens marginalizados.
Os exemplos mais conhecidos de opressão interseccional são geralmente os mais
trágicos: a violência contra as mulheres baseada na raça ou na etnia. Essa violência pode
ser concebida como uma subordinação interseccional intencional, já que o racismo e o
sexismo manifestados em tais violações refletem um enquadramento racial ou étnico das
mulheres, a fim de concretizar uma violação explícita de gênero. Tragédias recentes na
Bósnia, em Ruanda, no Burundi e em Kosovo ilustram tristemente o fato de que a longa
história de violência étnica contra as mulheres não está relegada a um passado distante.
Enquanto esses são os exemplos mais recentes e conhecidos de violência interseccional,
essa vulnerabilidade específica não assumiu papel importante apenas no conflito armado,
mas também em outros contextos.
1. Os trágicos incidentes de estupro motivados por questões raciais são às vezes
precedidos de outras manifestações de opressão interseccional, ou seja, a disseminação
de propaganda racista ou sexista explicitamente direcionada às mulheres em um esforço
para racionalizar a agressão sexual contra elas. Isso foi abertamente usado na Bósnia
e em Ruanda, conforme relatos do Human Rights Watch.
2. As mulheres não são as únicas vítimas de tal subordinação interseccional. Estereótipos
racializados de gênero também foram usados contra homens para racionalizar uma
forma de violência de conotação sexual contra eles. Nos Estados Unidos, por exemplo,
a propaganda racista freqüentemente precedeu e subseqüentemente racionalizou o
linchamento de homens afro-americanos.
3. Mesmo quando a propaganda sexualizada não culmina em violência sexual de
massa, há razões para acreditar que a propaganda projetada contra as mulheres
esteja causando danos de várias outras formas, assim constituindo mais um outro exemplo
de opressão interseccional. A propaganda contra as mulheres pobres e racializadas
pode não apenas torná-las alvo da violência sexual, mas também pode contribuir
para a tendência, já demonstrada, de duvidar da honestidade das que procuram
pela proteção das autoridades. De acordo com o Human Rights Watch, as mulheres
dalit que tentam acusar criminalmente estupradores dificilmente têm seus casos levados
a julgamento, especialmente nos casos que envolvem perpetradores de castas mais
altas. Nos Estados Unidos, as mulheres negras e latinas raramente vêem os homens
acusados de estuprá-las sendo processados e presos. Estudos sugerem que a identidade
racial da vítima assume um papel significativo na determinação de tais resultados, e
há evidências de que os jurados podem ser levados, pela propaganda sexualizada, a
acreditar na maior probabilidade de que mulheres racializadas consintam em ter
relações sexuais, em circunstâncias que eles achariam pouco prováveis se a vítima
não fosse de uma minoria racial.
4. A propaganda sexualizada direcionada às mulheres racializadas também pode
contribuir com a subordinação política das mesmas, especialmente em contextos

ANO 10 178 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

relacionados às políticas reprodutivas e de bem-estar social. As justificativas para políticas


que comprometem os direitos reprodutivos de mulheres pobres e de minorias, tais como
a esterilização, o controle forçado da natalidade e a imposição de punições econômicas
e outros desestímulos à gravidez, são, muitas vezes, baseadas em imagens preexistentes
de mulheres pobres ou étnicas como sendo sexualmente indisciplinadas. Isso poderia
ser enquadrado como discriminação interseccional, já que os aspectos da subordinação
nessas imagens derivam, simultaneamente, de estereótipos de gênero preexistentes
que apontam diferenças entre mulheres, baseados em percepções da conduta sexual
e, também, de estereótipos raciais e étnicos, os quais caracterizam alguns grupos como
sexualmente indisciplinados. Conseqüentemente, as mulheres que estão na intersecção
desses estereótipos tornam-se especialmente vulneráveis a medidas punitivas, baseadas
em como suas identidades são percebidas pelos outros.
5. Atos de discriminação intencional não se limitam à violência sexual. No emprego, na
educação e em outras esferas, há mulheres sujeitas a discriminações e outras opressões,
especificamente por não serem homens e por não serem membros dos grupos étnicos
e raciais dominantes na sociedade. Sem dúvida, isto se trata de discriminação composta:
com base na raça, elas são excluídas de empregos designados como femininos, sendo
também excluídas de empregos reservados aos homens com base no gênero. De fato,
elas são especificamente excluídas como mulheres étnicas ou de minorias porque não
há ocupações para as candidatas com tal perfil étnico-racial e de gênero.
6. Por exemplo, em alguns mercados de trabalho, especialmente aqueles segregados
por gênero e raça, as mulheres racializadas podem se confrontar com a discriminação
composta, onde, como regra, as mulheres sejam contratadas para funções de escritório
ou posições que envolvem interação com o público, enquanto que as minorias étnicas
ou raciais sejam empregadas no trabalho industrial ou em alguma outra forma de
trabalho segregado por gênero. Nesses casos, mulheres racializadas enfrentam
discriminação porque os empregos femininos não são apropriados para elas e o trabalho
designado para homens racializados é definido como inapropriado para mulheres.
7. Também há casos onde a superposição entre a exclusão de raça e a de gênero
limita oportunidades de emprego ou de educação para os homens. Quando os
empregos industriais ou outros tipos especificamente masculinos de trabalho são
limitados, e o que sobra é orientado para as mulheres, os homens podem também
enfrentar a discriminação composta: o trabalho que está disponível para as mulheres
não é considerado como apropriado para os homens, e o trabalho disponível para
homens mais privilegiados não é oferecido a homens racialmente subordinados.
8. Também na educação as mulheres de determinada identidade étnico-racial podem
ser excluídas das oportunidades educacionais ou ter menos anos de estudo em relação
aos homens do seu grupo ou às mulheres da elite. Relatórios recentes sugerem que, na
Bósnia, meninas albanesas são excluídas da educação e, na Índia, as meninas dalit
têm significativamente menos oportunidades de estudo, com taxas extremamente altas
de evasão escolar.
9. Uma manifestação ligeiramente diferente da subordinação interseccional pode ser
definida como subordinação interseccional estrutural. Esse fenômeno representa uma
gama completa de circunstâncias em que as políticas se intersectam com as estruturas
básicas de desigualdade, criando uma mescla de opressões para vítimas especialmente
vulneráveis. Em alguns casos, a discriminação de gênero ocorre dentro de um contexto
em que algumas mulheres já são vulneráveis devido à raça e/ou à classe. Em outros
casos, uma política, prática ou ato individual com base na raça, na etnia ou em algum
outro fator ocorre no contexto de uma estrutura marcada pelo gênero que afeta as

ESTUDOS FEMINISTAS 179 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

mulheres (ou às vezes os homens) de forma única. A vulnerabilidade das mulheres


refugiadas à violência sexual constitui um exemplo de problema interseccional que
deveria ser apenas parcialmente analisado como discriminação étnica. Conforme relato
do Human Rights Watch, as mulheres do Burundi, refugiadas na Tanzânia, relatam uma
incidência de estupro extremamente alta. Sua vulnerabilidade à violência sexual é
parcialmente estruturada pelo gênero, já que elas estão freqüentemente mais
vulneráveis a tal abuso quando cumprem as responsabilidades femininas de coletar
lenha e outras tarefas essenciais à vida doméstica. Na condição em que vivem
atualmente, honrar essa responsabilidade requer que elas percorram várias milhas,
sozinhas ou em pequenos grupos, fora dos campos de refugiados. Desse modo, são
freqüentemente atacadas, muitas vezes em conseqüência de sua identidade como
mulheres refugiadas e desempoderadas. Essa condição é produto do
desempoderamento étnico-racial e do patriarcalismo: por serem mulheres, a estrutura
das relações de gênero exige que elas arrisquem sua segurança a fim de executarem
suas tarefas; por serem hutus, são percebidas como estranhas em uma terra estrangeira.
Em termos mais gerais, as condições que prevalecem nos campos de refugiados,
especialmente a falta de produtos básicos para a sobrevivência, também resultam de
padrões mais amplos de poder racial, em especial, o diferencial em recursos disponíveis
para refugiados africanos em comparação àqueles destinados a vítimas de conflitos
étnicos na Europa. Finalmente, a natureza dinâmica da violência sexual tem a ver
tanto com gênero como com raça: o abuso específico a que mulheres refugiadas
estão sujeitas é obviamente baseado em seu gênero, enquanto que a sua identidade
como hutus as faz particularmente vulneráveis aos estereótipos raciais predominantes
entre os homens da Tanzânia.
10. Outro exemplo de interseccionalidade estrutural pode ser observado nos efeitos
superpostos de estruturas que interagem com uma política ou outras decisões, criando
fardos ou responsabilidades que são desproporcionalmente impostos a mulheres
marginalizadas. O que distingue esse problema interseccional dos exemplos anteriores
é que a política em questão não é de forma alguma direcionada às mulheres ou a
quaisquer outras pessoas marginalizadas; ela simplesmente se entrecruza com outras
estruturas, gerando um efeito de subordinação. Exemplos desse tipo de subordinação
poderiam ser ilustrados pelas responsabilidades depositadas sobre as mulheres pelas
políticas de ajuste estrutural das economias em desenvolvimento. As conseqüências
em termos de gênero dessas políticas já foram colocadas por vários críticos que
reconhecem a pesada carga depositada sobre as mulheres. Em geral, são as mulheres
que sofrem as conseqüências adicionais criadas pela retração dos serviços que antes
eram cobertos pelo Estado. Por exemplo, quando o Estado corta recursos relativos aos
cuidados com os jovens, doentes e idosos, as necessidades não supridas recaem, em
grande parte, sobre os ombros das mulheres, a quem tradicionalmente se atribuíram
essas responsabilidades. Além disso, as adicionais estruturas de classe determinam quais
mulheres executarão fisicamente esse trabalho e quais mulheres pagarão outras,
economicamente desfavorecidas, para que prestem esse serviço. Assim, mulheres
pobres acabam tendo de carregar o peso do cuidado da família dos outros, além da
própria. As conseqüências do ajuste estrutural – especialmente onde a desvalorização
da moeda reduziu os salários – colocam tais mulheres em uma posição econômica
que as força a assumir ainda mais trabalho, geralmente marcado pelo gênero, que as
mulheres da elite podem assegurar através do mercado.
Como o exemplo sugere, as conseqüências da subordinação interseccional não
precisam ser intencionalmente produzidas. As políticas de ajuste estrutural deflagram certas

ANO 10 180 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

dinâmicas que acabam afetando as mulheres de diferentes maneiras, embora essas


decisões não sejam intencionalmente discriminatórias e nem sejam fruto de políticas
totalmente nacionais. A tomada de decisões por instituições distantes do local do problema
pode criar fardos monumentais para a vida de mulheres social e economicamente
marginalizadas de todo o globo. À medida que os efeitos de decisões tomadas à distância
fluem através de estruturas de subordinação justapostas e atingem a base, o peso do
fardo sobre os ombros das mulheres torna-se mais intenso. Por conseqüência, o arrocho
que ocorre em algumas economias pode funcionar como um estrangulamento econômico
e social para aqueles sujeitos menos capazes de redistribuir as conseqüências de políticas
de austeridade impostas de cima para baixo. O ônus desse processo não atinge o topo da
pirâmide, mas a sua base, um lugar geralmente marcado pelo gênero, pela classe e,
freqüentemente, pela raça.

Interseccionalidade política
Os exemplos acima dão maior relevo às conseqüências materiais da
interseccionalidade. Há, no entanto, outro aspecto da superposição entre a subordinação
de raça e a de gênero que merece ser observado. Mulheres de comunidades que são
racial, cultural ou economicamente marginalizadas têm se organizado ativamente, em
pequena ou grande escala, a fim de modificar suas condições de vida. Para isso, enfrentam
não só alguns obstáculos que as mulheres de elite também enfrentam, como também
outros problemas que lhes são exclusivos. Um desses obstáculos é freqüentemente definido
em termos do compromisso perante seus grupos sociais ou nacionais, compromisso que é
por vezes usado para reprimir qualquer crítica sobre práticas ou problemas que poderiam
atrair atenção negativa sobre o grupo. Mulheres que insistem em defender seus direitos
contra certos abusos que ocorrem dentro de suas comunidades arriscam serem vítimas de
ostracismo ou de outras formas de desaprovação por terem presumivelmente traído ou
constrangido suas comunidades. Por exemplo, Anita Hill chamou a atenção do mundo
quando acusou Clarence Thomas por assédio sexual.3 Embora Hill tenha efetivamente
quebrado o silêncio sobre um problema tão difundido, aumentando o nível de consciência
sobre assédio sexual, muitos afro-americanos passaram a considerá-la como uma traidora
dos interesses do grupo. Esse tipo particular de carga é algo que as mulheres de grupos
raciais dominantes não costumam enfrentar.
Mulheres que desafiam as práticas discriminatórias defendidas por outros como
sendo práticas culturais freqüentemente se encontram em posição bastante precária. Por
um lado, às vezes um grupo étnico ou racial pode facilmente desencadear duras críticas
em relação às práticas de um outro grupo diferente, mesmo diante de abusos igualmente
questionáveis dentro de sua cultura. Por outro lado, quando as mulheres permitem que
contestações às tradições culturais patriarcais dentro de suas comunidades sejam
silenciadas, elas perdem a oportunidade de transformar práticas que são prejudiciais às
mulheres em geral.

Desenvolvendo um protocolo interseccional


Embora a interpretação das convenções e leis estabelecidas seja por vezes limitada,
de modo a apreender somente a discriminação ou o desemporderamento que ocorre ao
longo de um único eixo de poder, é importante reconhecer que tais interpretações

3
Anita Hill, uma mulher negra ex-colega (embora funcionária subalterna) do juiz negro Clarence Thomas, acusou
este de assédio sexual durante as ‘audiências’ no Senado norte-americano quando de sua indicação à Corte
Suprema dos Estados Unidos (N. R.).

ESTUDOS FEMINISTAS 181 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

desconsideram as possibilidades explícitas nas convenções, leis e declarações, cujo intento


é proteger os indivíduos da negação de direitos baseada na raça e no gênero. Assim, na
medida em que a CERD objetiva proteger os indivíduos da discriminação racial, ela inclui
todos os aspectos da discriminação racial, inclusive aqueles que afetam diferentemente
homens e mulheres. A mesma interpretação se aplica à discriminação de gênero: os direitos
garantidos pela CEDAW englobam toda a gama de experiências da discriminação de
gênero relacionadas à raça.
Embora não seja necessária outra formulação dos princípios básicos para
estabelecer direitos e proteções contra a discriminação interseccional, seria útil que se
desenvolvessem protocolos interpretativos a fim de romper com os limites das interpretações
e práticas existentes, os quais reduzem os direitos das vítimas de subordinação interseccional.

Análise contextual e coleta de informações


Por sua natureza, a subordinação interseccional é freqüentemente obscurecida tanto
porque tende a atingir aqueles que são marginais mesmo dentro de grupos subordinados,
como pelo fato de que os paradigmas existentes não prevêem de forma consistente esse
tipo de discriminação. Há poucos padrões que fornecem um gancho investigatório sobre
as circunstâncias por vezes complexas que contribuem para a subordinação interseccional.
Isso não surpreende, pois é lógico que, se um dano específico não é previsto, é difícil
revelá-lo através do uso de ferramentas analíticas afinadas somente com os paradigmas
prevalecentes de discriminação. Essa disparidade entre padrões e práticas estabelecidas
para a investigação da discriminação e as realidades freqüentemente complexas da
subordinação interseccional gera ainda outra dimensão de vulnerabilidade interseccional.
Como certos problemas não são previstos, eles também não são imediatamente
descobertos e, por isso, sua análise continua subdesenvolvida. Os esforços no sentido de
melhor compreender os problemas ligados à interseccionalidade passam por um ponto
de inflexão que vai de sua presente invisibilidade até a conscientização dos membros de
órgãos revisores dos tratados internacionais, dos formuladores de políticas públicas, de
ativistas de ONGs e de tantos outros atores.
É menos provável que a vulnerabilidade interseccional seja identificada onde a
análise dominante está estruturada como uma investigação categórica (ou de cima para
baixo) sobre como as discriminações colorem nosso mundo social. As conseqüências
interativas do racismo e da discriminação sexual somente serão reveladas se essa
abordagem de cima para baixo for reconfigurada de forma a seguir as pistas da
discriminação até o ponto onde as práticas de subordinação interagem com, influenciam
e são influenciadas por outras formas de subordinação.
O reconhecimento e a aceitação desse problema requerem que os protocolos
interseccionais focalizem principalmente a análise contextual. Portanto, a atenção à
subordinação interseccional exige uma estratégia que valorize a análise de baixo para
cima, começando com o questionamento da maneira como as mulheres vivem suas vidas.
A partir daí, a análise pode crescer, dando conta das várias influências que moldam a
vida e as oportunidades das mulheres marginalizadas. É especialmente importante descobrir
como as políticas e outras práticas podem moldar suas vidas diferentemente de como
modelam as vidas daquelas mulheres que não estão expostas à mesma combinação de
fatores enfrentados pelas mulheres marginalizadas.
Para isso, são necessários esforços no sentido de destacar a necessidade de que
os/as pesquisadores/as examinem especificamente as experiências das mulheres
marginalizadas. No entanto, há pouca informação direta sobre elas, o que é agravado
pelo fato de os relatórios e as ferramentas de avaliação não conseguirem revelar

ANO 10 182 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

experiências não catalogadas previamente, de forma a refletir as identidades múltiplas


das mulheres marginalizadas ou a gama de pesadas cargas que somente elas sustentam.
Assim, é preciso formular protocolos especiais de pesquisa, a fim de desenvolver uma base
de informação adequada a partir da qual se analisem as conseqüências específicas da
raça e do gênero. Esses protocolos especiais de pesquisa podem envolver especialistas
de várias áreas, que desenvolvam métodos de pesquisa capazes de desvendar aspectos-
chave da subordinação interseccional. Essa informação poderia, assim, formar a base
para um exame mais detalhado dos problemas ou das condições que estruturam as
realidades da vida de mulheres marginalizadas.

Desenvolvendo metodologias para a análise da subordinação


interseccional
Para assegurar a total visibilidade da subordinação interseccional, será necessário
desenvolver novas metodologias que desvendem as formas como várias estruturas de
subordinação convergem, pois é muito pouco provável que tais problemas se apresentem
claramente como produto de vulnerabilidades múltiplas.
O desenvolvimento da conscientização quanto à dimensão interseccional desses
problemas poderia ser encorajado pela adoção de uma política de ‘fazer outras perguntas’,
uma metodologia proposta pela teórica feminista Mari Matsuda. Conforme Matsuda sugere,
muitas vezes uma condição pode ser identificada, por exemplo, como produto óbvio do
racismo, porém, mais poderia ser revelado se, como rotina, fossem colocadas as seguintes
perguntas: “Onde está o sexismo nisso? Qual a sua dimensão de classe? Onde está o
heterossexismo?”. E a fim de ampliar ainda mais tais questionamentos, poder-se-ia perguntar:
“De que forma esse problema é matizado pelo regionalismo? Pelas conseqüências históricas
do colonialismo?”.
A aplicação dessa metodologia às condições de trabalho nas zonas de
processamento e exportação pode ser uma experiência reveladora. A dimensão de gênero
dessas condições pode estar imediatamente aparente: são mulheres que ocupam tais
setores, um fator que por si só reflete a dinâmica de gênero pela qual as mulheres são mais
requisitadas para trabalhar nessas áreas. Mas há mais do que gênero envolvido nessa
questão. Tais dinâmicas adicionais poderiam ser descobertas através da formulação de
um conjunto de perguntas. Há racismo atuando na determinação de quais mulheres serão
sujeitas a tais condições de trabalho? Há alguma outra estrutura de poder que permite
que essas condições continuem? Na arena global mais ampla, o que contribui para a
existência dessas condições? A colocação de tais perguntas adicionais pode revelar que
raça ou etnia desempenhou um papel na determinação de quais direitos a condições
humanas de trabalho poderiam ser prontamente desrespeitados por formuladores de
políticas desesperados por atrair investimento estrangeiro. É evidente que esse desespero
pode estar fundamentado nas relações históricas e contemporâneas entre o Norte e o Sul,
as quais poderiam ser exploradas com proveito através dessa série de questionamentos.
Em suma, onde parece haver evidência de discriminação de gênero ou de raça, um
protocolo afinado com a interseccionalidade deveria considerar se existe ou não algo em
relação às mulheres (ou aos homens) em questão que as torna particularmente vulneráveis
a certos abusos.

Desafios e recomendações
Se plantado em solo fértil, o protocolo sugerido acima pode constituir uma
intervenção efetiva contra a invisibilidade da subordinação interseccional. Há, no entanto,
certos dilemas – alguns dos quais bastante significativos – que irão complicar até as mais

ESTUDOS FEMINISTAS 183 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

ambiciosas tentativas de expandir as atividades de direitos humanos no sentido de


incorporar os direitos das mulheres e dos homens sujeitos à subordinação interseccional:

1. Raça ou etnia não é um marcador constante em todo o mundo


Raça
A capacidade de explicar as intersecções da subordinação apóia-se na
capacidade de conceituar com alguma clareza a função das hierarquias étnico-raciais e
outras práticas baseadas no grupo. Enquanto é óbvio que todas as sociedades são, em
graus variáveis, delineadas pelo gênero, por vezes é difícil de estabelecer firmemente a
questão da raça ou de divisões correlatas. Muitas sociedades têm uma história pouco
marcada por classificações raciais explícitas, do tipo apartheid, como aquelas que
caracterizam as sociedades construídas sobre uma estratificação racial, como é o caso
dos Estados Unidos e da África do Sul. Contudo, a história e a continuada subordinação
dos povos indígenas é generalizada e, na maior parte dos países, continua ocorrendo
uma combinação específica de certas características de grupo entre aqueles que ocupam
os degraus mais baixos da sociedade. Os que são pobres, ou são de alguma outra maneira
marginais, geralmente são diferentes da elite seja pela cor, pela casta, descendência,
língua ou religião. Existem certos aspectos da estratificação racial que são exclusivos de
sociedades pós-apartheid, entretanto, a história e as práticas de diferenciação entre grupos
estão suficientemente disseminadas para que se possa perceber que as diferenças entre
países são mais de grau do que de natureza. Além disso, com a crescente fluidez de
movimento através de fronteiras internacionais, nenhuma sociedade pode,
verdadeiramente, reivindicar-se como homogênea. Assim, nenhuma sociedade é imune
ao racismo ou a intolerâncias correlatas; conseqüentemente, o imperativo de considerar
a interação do racismo ou de outras intolerâncias com o sexismo continua sendo válido.

2. O desenvolvimento desigual dos discursos de direitos humanos de raça e


de gênero
O nível de organização e institucionalização da prática de direitos humanos com
base no gênero está mais avançado do que o com base na raça. Essa importante diferença
pode complicar os esforços para enfocar a subordinação interseccional. Enquanto existem
várias instituições e ONGs internacionais que se dedicam a garantir os direitos humanos
das mulheres, o número de instituições semelhantes sob a rubrica da raça é
comparativamente limitado. Talvez em conseqüência disso, atualmente não haja consenso
sobre a adoção de uma política de incorporação da perspectiva de raça (race
mainstreaming). Considerando que a afirmação de que a raça, ou outra diferença
correlata, continua a permear a maioria das sociedades é altamente contestada, a
construção de um consenso sobre a importância de sua incorporação pode ser uma luta
árdua. Obviamente as hierarquias de raça e outras a ela relacionadas não são iguais às
de gênero, mas, dado o nível de desigualdade racial no mundo e a forma pela qual a
raça, como o gênero, pode limitar dramaticamente a fruição dos direitos e garantias
básicas, as instituições das Nações Unidas deveriam incorporar ao seu trabalho as análises
que levam em conta a raça.

3. TTematizando
ematizando a divisão Nor te/Sul
Norte/Sul
Algumas das vulnerabilidades interseccionais discutidas aqui são, em parte,
conseqüência da divisão Norte/Sul. Enquanto isso pode limitar o grau de tratamento dessas
questões na perspectiva dos direitos humanos, que cuida primordialmente das relações
no interior dos Estados, a eventual construção racial/étnica de tal divisão, juntamente com

ANO 10 184 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

seus vínculos com a história colonial, introduz o fantasma da raça ou da cor no nível macro
da equação. Portanto, poucas circunstâncias podem ser definidas como ‘livres da raça’,
mesmo supondo um caso em que nenhum direito humano possa ser explicitamente
invocado.

4. O complexo papel das elites racializadas


A subordinação econômica ou política de algumas nações na esfera internacional
pode às vezes contribuir para a negação de divisões raciais internas, o que, por sua vez,
complica os esforços de estabelecer uma análise interseccional. As relações de
desempoderamento entre certas nações na arena global são certamente uma realidade.
Ainda assim, as elites das sociedades do Sul são por vezes marcadas por uma dualidade:
marginalizadas e talvez até silenciadas na arena internacional, mas ocupando posição
privilegiada dentro de suas nações. As elites dessas sociedades podem se apropriar dos
discursos sobre raça e outras formas correlatas de subordinação para ressaltar as relações
de poder existentes entre o Norte e o Sul, enquanto resistem às tentativas de examinar as
hierarquias internas, as quais também podem manifestar subordinação racial ou de outros
tipos. A análise interseccional pode ajudar na formulação desse debate, de maneira que
sejam reconhecidos tanto os padrões mais gerais de poder entre o Norte e o Sul como a
superposição de hierarquias existentes no interior de cada nação.

5. Os discursos dos nacionalismos e a solidariedade racial


A expressão política da solidariedade racial ou o nacionalismo constitui-se em
obstáculo para que se aborde o bem-estar de mulheres racialmente identificadas em
todo o mundo. Com base na defesa da raça ou da nação, a retórica antifeminista às
vezes coloca as mulheres na posição insustentável de ter que escolher entre suas identidades
como mulheres e suas identidades como membros de nações ou de grupos raciais
marginalizados. A análise interseccional pode ajudar na reestruturação dos interesses das
mulheres como sendo co-extensivos aos interesses da raça ou da nação e,
conseqüentemente, eliminar a exigência de que as mulheres racializadas tomem posições
contra elas próprias.

À luz dessas observações, apresentamos as seguintes recomendações:


1. Promover melhorias na coleta de dados e nas estratégias de desagregação
Os dados coletados pelos órgãos de vigilância dos tratados internacionais e por
outras instituições de direitos humanos deveriam ser desagregados por raça e gênero e,
quando possível, cruzados para permitir identificar a condição das mulheres marginalizadas.
Esses órgãos e instituições deveriam encorajar os Estados a coletar os dados necessários
para determinar até que ponto mulheres marginalizadas estão sujeitas à subordinação
interseccional. A importância desses órgãos na criação de incentivos para a coleta
desagregada de dados tem sido articulada pela Divisão das Nações Unidas pelo Progresso
da Mulher (United Nations Division for the Advancement of Women/DAW) e por outras
instituições, no contexto da incorporação da perspectiva de gênero. Dessa maneira,
“enquanto que remediar a falta desses dados é primeiramente responsabilidade de Estados-
membros, uma solicitação explícita dos Comitês desses dados e sua análise pode servir
como estímulo para que os governos providenciem tais informações de forma mais
sistemática”.
2. Entender a responsabilidade dos órgãos de revisão de tratados na solicitação de
uma análise interseccional

ESTUDOS FEMINISTAS 185 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

O Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD) já


deu um passo significativo para a incorporação de uma análise de gênero em seu campo
de ação, através da recente adoção da Recomendação 25. Dessa forma, “em seu trabalho,
o Comitê se empenhar-se-á em levar em conta fatores ou questões relacionados ao gênero
ou temas que possam ser interligados com a discriminação racial”. Ao fazer isso, o Comitê
procura desenvolver “uma abordagem mais sistemática e consistente no sentido de avaliar
e monitorar tanto a discriminação racial contra as mulheres como as desvantagens,
obstáculos e dificuldades que essas enfrentam para o exercício e á fruição plenos de seus
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais com base na raça, cor, descendência,
origem nacional ou étnica”. A CEDAW e suas instituições de apoio também deveriam corrigir
seus protocolos onde fosse necessário a fim de garantir que a subordinação interseccional
seja reconhecida, investigada e tratada.
3. Revisar os mecanismos nacionais para determinar a possibilidade de as mulheres
buscarem proteção e reparação contra a discriminação interseccional
Em nível doméstico, poucos países cumpriram a tarefa de garantir que os danos
interseccionais pudessem ser efetivamente remediados. Apesar disso, relevantes tratados
sobre a discriminação exigem que os países signatários proponham uma legislação nacional
que aborde tanto a discriminação racial quanto a de gênero. Se os mecanismos nacionais
não são capazes de tratar desses problemas interseccionais, as mulheres marginalizadas
não podem receber toda a proteção a que teriam direito. Portanto, países que não fornecem
soluções para a discriminação interseccional não cumprem totalmente suas obrigações.
A fim de preencher essa lacuna, é essencial não apenas que o gênero seja incorporado
aos relatórios e revisões dos países por meio da CERD, mas também que a raça seja
similarmente incorporada ao funcionamento de todas as instituições e órgãos da ONU,
incluindo a CEDAW, a DAW e a Comissão sobre a Condição da Mulher (Commission on the
Status of Women/CSW).
4. Dar um apoio à incorporação da perspectiva de raça semelhante ao dispensado
à incorporação do gênero
À medida que a Conferência Mundial contra o Racismo se aproxima, é provável
que surjam esforços no sentido de chamar a atenção institucional para problemas da
diferença racial e étnica. Esse possível desdobramento deveria ser apoiado pelas mesmas
instituições que facilitaram o consenso sobre a incorporação da perspectiva de gênero. A
atenção ao papel da raça ou dos seus análogos mais próximos se faz necessária, em
parte, para garantir que a incorporação do gênero assegure a inclusão de toda a gama
de experiências ligadas ao gênero. Mas independentemente da necessidade de atentar
para a raça, como meio de perceber suas intersecções com o gênero, a reflexão sobre o
modo como esta e outras categorias da diferença determinam a vida diária de pessoas
em todo o mundo é tão obrigatória quanto foi no caso do gênero.
Todos os organismos de direitos humanos e as instituições de apoio deveriam revisar
seus documentos e práticas correntes – particularmente aquelas associadas à incorporação
do gênero – a fim de perceberem que eles próprios têm a ver com as vulnerabilidades
específicas de mulheres racialmente subordinadas. Embora seja largamente reconhecido
dentro do discurso da incorporação do gênero que gênero é uma construção social que
varia em relação a fatores como raça e outros, essa observação fundamental raramente
determinou a forma pela qual os órgãos de vigilância dos tratados internacionais têm
lidado com essa categoria no âmbito de suas obrigações institucionais. Curiosamente,

4 Esse documento encontra-se acessível em <www.unifem.undp.org/progressww/> (N.R.).

ANO 10 186 1º SEMESTRE 2002


DOCUMENTO PARA O ENCONTRO DE ESPECIALISTAS

vários outros fatores são mais rapidamente incorporados à análise de gênero do que a
raça. Por exemplo, conforme relatado no documento Women 2000,4 o Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Committee on Economic, Social and Cultural Rigths/CESCR)
pedia especial atenção aos direitos das mulheres vulneráveis. Ainda assim, levando-se em
conta as categorias da vulnerabilidade, a CESCR não considerou a raça, a cor, a etnia ou
qualquer dos outros eixos da identidade que poderiam contribuir com a vulnerabilidade
das mulheres marginalizadas. O fato de que essa grave omissão pôde ocorrer em um
contexto em que se pretendia promover maior inclusão levanta sérias preocupações sobre
se a incorporação do gênero tratará verdadeiramente de toda a gama de conseqüências
relativas ao gênero ou se simplesmente enfocará uma faixa mais estreita de diferenças.
5. Capacitar as mulheres marginalizadas para participar mais diretamente dos
discursos de direitos humanos, através do aumento de financiamentos e treinamentos
O amplo leque da marginalidade interseccional somente será integrado aos
discursos dos direitos humanos das mulheres quando as mulheres racialmente subordinadas
de todo o mundo tiverem total acesso às instituições dos direitos humanos. Atualmente,
muitas mulheres racializadas ganham acesso a tais instituições por meio de grupos de
mulheres da elite. Às vezes, essas instituições estão em seus próprios países, mas
freqüentemente estão localizadas fora, por isso deveriam ser disponibilizados recursos para
que grupos autônomos de mulheres participem e influenciem os discursos dos direitos
humanos.
6. Indicar um/a Relator/a Especial para promover maior conscientização sobre as
condições das mulheres de grupos étnicos e raciais discriminados de todo o mundo
Há muito pouca informação e conscientização sobre as formas específicas de
desrespeito ou abuso dos direitos de mulheres racialmente marginalizadas. Há alguns anos,
predominava uma situação até certo ponto semelhante com respeito à violência contra
as mulheres. Radikha Coomaraswamy, Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher,
tem procurado destacar não apenas a vitimização geral de mulheres, assim como tem
avançado em novas perspectivas para o diálogo sobre o abuso de mulheres e suas
implicações para a prática dos direitos humanos. A conscientização a respeito da
subordinação interseccional é somente um dos vários objetivos principais de um/a Relator/
a Especial. As tarefas adicionais seriam facilitar a criação de protocolos e a coleta de
dados necessários ao desenvolvimento de um entendimento prático desses problemas e
apoiar os atuais esforços dos órgãos das Nações Unidas no monitoramento mais efetivo do
progresso dos países na garantia dos direitos de mulheres marginalizadas.
7. Realizar uma reunião conjunta dos Comitês da CERD e da CEDAW
Embora a incorporação do gênero se aplique amplamente ao mandato de todas
as instituições das Nações Unidas, talvez a interação mais produtiva, que poderia aumentar
o nível de entendimento sobre aspectos do racismo relacionados ao gênero e sobre
aspectos do sexismo relacionados à raça, seria uma reunião conjunta da CERD e da CEDAW.
Essa recomendação não é totalmente sem precedentes. De acordo com o documento da
DAW, Women 2000, o Comitê dos Direitos da Criança (CRC) e o CEDAW reuniram-se em
1996 a fim de coordenar os métodos de trabalho para promover os direitos assegurados
pelas duas convenções. A colaboração mútua nesse sentido foi facilitada pela designação
de um membro do CRC para acompanhar o trabalho do CEDAW. Certamente a natureza
da discriminação interseccional sugere que os esforços para proteger os direitos específicos
de mulheres racialmente marginalizadas exigem alguma coordenação, dados os
parâmetros superpostos do CERD e do CEDAW. A coordenação de conceitos e de
procedimentos entre os órgãos encarregados de acompanhar a implementação de

ESTUDOS FEMINISTAS 187 1/2002


KIMBERLÉ CRENSHAW

convenções pelos países garantiria a eliminação das fendas através das quais os direitos
de mulheres com múltiplas opressões poderiam desaparecer.
8. Criar uma linguagem para o esboço do documento da Conferência Mundial
contra o Racismo chamando atenção para a discriminação interseccional
A próxima Conferência Mundial contra o Racismo representa uma oportunidade de
criar um consenso em torno da importância de reconhecer, monitorar e apresentar soluções
para a discriminação interseccional. Se possível, recomendações conjuntas dos órgãos
relevantes deveriam ser esboçadas para inclusão na documentação da Conferência
Mundial contra o Racismo.

Conclusão
O quadro analítico apresentado neste documento teve como único propósito facilitar
o diálogo produtivo e o desenvolvimento de informações acessíveis sobre as dimensões
de raça e gênero da subordinação interseccional. A análise é provisória e, conforme sua
utilidade, poderá ser revisada ou até mesmo descartada.
A análise também não pretendeu ser exaustiva. Os exemplos expostos funcionam
meramente como ilustrações concisas de algumas das dinâmicas principais da
subordinação interseccional. Na verdade, há dezenas de questões que poderiam também
ser discutidas nessa perspectiva, entre as quais pode-se incluir: Aids e outros tópicos
relacionados à saúde, desenvolvimento econômico, acesso à terra e aos recursos naturais,
casamento e família, velhice, violência doméstica, chefia de domicílios, direitos reprodutivos
e controle populacional, poder político, cultura popular e educação. Certamente essa
lista crescerá – bem como a análise aqui sugerida – quando mulheres de todo o mundo
entrelaçarem o fio de suas vidas no tecido dos direitos humanos.

Tradução de Liane Schneider


Revisão de Luiza Bairros e Claudia de Lima Costa

Background P aper for the Exper


Paper Expertt Meeting on the Gender
Gender-- R elated Aspects of R ace
Race
Discrimination
Abstract
Abstract: Neither the gender aspects of racial discrimination nor the racial aspects of gender
discrimination are fully comprehended within human rights discourses. Building on the growing
recognition that race and gender discrimination are not mutually exclusive phenomena, this
background paper forwards a provisional framework to identify various forms of subordination
that can be said to reflect the interactive effects of race and gender discrimination. It suggests
a provisional protocol to be followed to better identify the occasions in which such interactive
discrimination may have occurred, and posits further that the responsibility to address the causes
and consequences of such discrimination be shared widely among all human rights institutions.
Keywords: gender, race, discrimination, intersectionality, human rights.

ANO 10 188 1º SEMESTRE 2002


Lígia Amâncio* Análise Social, vol. XXXVIII (168), 2003, 687-714

O género no discurso das ciências sociais

INTRODUÇÃO

Today, gender slips uneasily between being merely another word for
sex and being a contested political term [Oakley, 1997, p. 30].

Nascido no intenso debate que o feminismo da segunda vaga gerou, o


conceito de género difundiu-se rapidamente nas ciências sociais, se conside-
rarmos a cronologia de alguns textos de referência, como o de Ann Oakley
(1972) para a sociologia, o de Rhoda Unger (1979) para a psicologia social
e o de Joan Scott (1988a) para a história. A emergência deste conceito ins-
crevia-se num processo de mudança nas ciências sociais que não era alheio
ao debate político envolvente. Ao considerar o sexo um construto a explicar,
em vez de factor explicativo, o conceito de género correspondia, no plano
teórico, ao propósito de colocar a questão das diferenças entre os sexos na
agenda da investigação social, retirando-a do domínio da biologia, e orien-
tava a sua análise para as condições históricas e sociais de produção das
crenças e dos saberes sobre os sexos e de legitimação das divisões sociais
baseadas no sexo. Mas a emergência do género inscrevia-se num processo
que tornava, ao mesmo tempo, visível uma relação social marcada pela
desigualdade que a investigação, a reflexão teórica e a acção política tinham
ignorado ou ocultado. De contributo para a abertura de novos objectos de
estudo, ou melhor, do retomar, em novos moldes, de uma velha questão, o
conceito de género deu lugar, mais recentemente, a uma perspectiva crítica
sobre a produção dos saberes em diversas disciplinas das ciências sociais.

* Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. 687


Lígia Amâncio

Nos anos 80, o género surge no discurso político-institucional, nomeada-


mente das Nações Unidas, que tiveram, neste plano, um papel pioneiro,
passando depois para os media, que o difundem junto da opinião pública.
O processo de integração do género nas políticas dos direitos humanos e de
luta contra a discriminação baseada no sexo reflecte, no entanto, as especi-
ficidades do contexto histórico em que teve lugar e que vieram a marcar o
discurso sobre ele.
O princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres, que a Carta
das Nações Unidas, aprovada em 1945, em São Francisco, já referia, veio a
ser contemplado, em diversos domínios, na Declaração Universal dos Direitos
do Homem, três anos depois. Mas foi preciso esperar ainda trinta e um anos,
até à aprovação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, em 1979, para que, mais do que afirmar,
se definissem meios e objectivos para a implementação da igualdade. Para isso
contribuíram não só os movimentos de mulheres dos anos 60 do mundo
industrializado, mas também as mudanças no resto do mundo e na política
internacional, que conduziram à elevação das questões do desenvolvimento
para o topo da agenda das Nações Unidas, naquela altura, e que se repercu-
tiram na relevância que o conceito de género adquiriu nas novas abordagens
sobre o desenvolvimento (Staudt, 1991; Friedman, 1996 [1992]). A emergên-
cia do género e de outros termos1 no discurso daquela Organização a partir
da década de 80, como mostra Katarina Tomasevski (1998), está ligada a
uma orientação política que, reconhecendo os obstáculos de ordem cultural
e social que impediam o usufruto dos direitos humanos por parte das mu-
lheres, se traduz na adopção de medidas e instrumentos destinados a eliminar
a discriminação, em vez de se contentar com a sua proibição.
Só que o facto de o género ter surgido associado à maior preocupação
com os direitos das mulheres não deixou de ser aproveitado pelos movimen-

1
Como o de licença parental, em vez de licença de maternidade, ou o de mainstreaming.
Este conceito estratégico, proveniente das teorias do desenvolvimento, designa a integração
da dimensão do género em todas as políticas e acções e foi adoptado, desde os anos 80, pelos
organismos internacionais de ajuda ao desenvolvimento, incluindo os da actual União Eu-
ropeia, assim como muitas das agências de cooperação bilateral. Aplicado às políticas para
a igualdade entre os sexos, destina-se a promover a articulação destas com outras esferas da
governação, como acontece actualmente na maior parte dos países da UE, a fim de as retirar
da posição periférica a que tendiam a ser votadas pelos governos (em Portugal, o Ministério
para a Igualdade, criado em 1999, cumpriu esta função durante o curto espaço de tempo
que marcou a sua existência). Também as ambiguidades nas definições do mainstreaming
reflectem diferentes orientações teórico-políticas, como mostravam alguns documentos da
Comissão Europeia no final da década de 90. Enquanto nos textos em inglês se afirmava
que o conceito designa a introdução da gender dimension em todas as políticas, já nas versões
francesas o mainstreaming surgia frequentemente associado à dimension de l’égalité des
688 chances entre mulheres e homens.
O género no discurso das ciências sociais

tos de opinião que, sob o efeito do backlash antifeminista (Faludi, 1991) e


neoconservador da década de 80, ou negavam a especificidade histórica da
sua condição colectiva, remetendo-a para o domínio do individual, ou insis-
tiam em confundir a luta contra a discriminação com uma luta de interesses
das mulheres. A organização da IV Conferência Mundial das Nações Unidas
sobre as Mulheres mobilizou e tornou visível, com efeito, uma parte impor-
tante do discurso conservador em torno do género tanto por parte de orga-
nismos governamentais como ao nível das organizações não governamentais,
envolvendo o conceito num conflito ideológico. Algumas semanas antes da
Conferência, congressistas do Partido Republicano americano e delegados à
Conferência pertencentes a movimentos de direita exprimiram a sua preo-
cupação, como nos conta Joan Scott, pelas «implicações subversivas do
‘género’» e pelo facto de considerarem que o programa da Conferência tinha
sido tomado de assalto por

gender feminists, who believe that everytinhg we think of as natural,


including motherhood and fatherhood, heterosexuality, marriage and
family, are only culturally created «fixes», originated by men to oppress
women. These feminists profess that such roles have been socially
constructed and are therefore subject to change [Scott, 1999a, p. IX, itálico
meu].

Segundo aquela autora, a controvérsia instalou-se no seio das próprias


Nações Unidas entre os defensores da definição estritamente «biológica» (!)
do género e os defensores de uma definição mais social, tendo dado lugar
a uma declaração que pretendia esclarecer o significado do termo no texto
da Plataforma de Acção que viria a ser aprovada em Beijing e que terminava
da seguinte forma:

Accordingly, the contact group reaffirmed that the word «gender» as


used in the Platform for Action was intended to be interpreted and
understood as it was in ordinary, generally accepted usage [Scott, 1999a,
pp. IX-X].

O problema, como diz Joan Scott, é que, face à ausência de explicação


sobre o tal «uso geralmente aceite», este esclarecimento pouco adiantou no
plano conceptual, mas terá eventualmente servido para acalmar a controvér-
sia. Durante a Conferência, o debate prosseguiu na reunião das organizações
não governamentais em Huairou entre as críticas ao uso «institucional» do
género, que o esvaziava do seu sentido político e conceptual, à falta de
diálogo entre técnicos e teóricos e à redução do género a variável estatística
e as críticas do conservadorismo do backlash, que inseriam o género num 689
Lígia Amâncio

projecto de politização das relações entre homens e mulheres e recusavam


qualquer explicação de ordem estrutural para as condições específicas das
mulheres no mundo (Baden e Goetz, 1997). Estas autoras não deixam de
salientar que muitas das questões levantadas naquela reunião constituem
desafios teóricos importantes e resultam de contradições e inconsistências da
própria reflexão feminista sobre o género.
O conflito ideológico que envolveu o género na Conferência de Beijing
acabou por se reflectir na ambiguidade com que foi tratado no texto da
Plataforma de Acção. Na versão inglesa, editada em 1996 pelo Departamen-
to de Informação Pública das Nações Unidas, e apesar de todo o texto se
referir a women (e men), só se encontram referências ao género quando a
palavra sexo pareceria adequada, como nas recomendações relativas às esta-
tísticas, e deveria distinguir-se do género. A redacção de uma das recomen-
dações, inscrita no capítulo sobre as mulheres e a pobreza, exemplifica isto
mesmo:

Collect gender and age-disaggregated data on poverty and all aspects


of economic activity and develop qualitative and quantitative statistical
indicators to facilitate the assessment of economic performance from a
gender perspective [p. 46 da versão inglesa, itálicos meus2].

A confusão entre a instrumentalidade estratégica e analítica do conceito,


embora compreensível, não contribui para a distinção entre sexo e género.
Esclarecer esta diferença torna-se, portanto, pertinente a fim de evitar a simples
colagem do género ao sexo e a ontologização das identidades, das orientações
comportamentais, dos papéis e das divisões sociais que perpetuam a naturaliza-
ção dos processos de produção de sentido sobre o sexo. Além disso, a
reafirmação do dualismo sexual e a desconceptualização do género, que resultam
destas confusões, tendem a confinar a análise das diferenças baseadas no sexo
aos domínios da realidade social onde a pertença sexual está presente, isto é, aos
homens e às mulheres concretos e às relações entre eles, limitando assim os
domínios da realidade social susceptíveis de serem abordados numa perspectiva
de género. Mas o conflito ideológico que o género suscita mostra também que
a sua dimensão política não se esgota na ligação aos movimentos sociais dos anos
60. As resistências que o conceito suscita nos discursos político, científico e

2
Os textos das Nações Unidas reflectem, no entanto, um constante esforço de actualização
a partir do debate teórico. No relatório do Fundo das Nações Unidas para a População
(FNUAP) de 1997, por exemplo, o género já não se aplica apenas aos «homens» e às
«mulheres», passando a abranger a masculinidade e a feminilidade. Também a recente
campanha da ONUSIDA, lançada para 2001, incorpora a reflexão sobre a masculinidade,
sobretudo no que diz respeito às implicações dos comportamentos heterossexuais masculinos
690 para a disseminação da epidemia da SIDA.
O género no discurso das ciências sociais

comum reflectem uma certa concepção da ordem social cujo questionamento


só é possível através de um olhar crítico sobre as ciências sociais.
Em Portugal, o interesse das ciências sociais pelas questões do género é
recente. Ao contrário do que aconteceu com outros objectos de estudo, a
investigação neste domínio desenvolve-se de forma lenta e irregular a seguir
ao 25 de Abril de 1974, tendo permanecido num estado de latência até à
década de 80. Vários factores poderão ter contribuído para esta particularida-
de. O facto de as organizações de mulheres que foram surgindo nos anos 70
(Magalhães, 1998) terem permanecido relativamente invisíveis e atravessadas
por diversas contradições (Tavares, 2000) não será alheio ao desaparecimento
da experiência do feminismo da I República da memória colectiva. Investiga-
ções recentes que mostram a exploração ideológica de um modelo feminino
passivo e familialista por parte da ditadura (Pimentel, 2000) e a mobilização
das herdeiras do feminismo da primeira vaga para a luta contra a ditadura
(Gorjão, 2000) permitem inferir que estes dois aspectos terão participado para
a perda desse património histórico e cultural.
Por outro lado, a continuidade do baixo nível de instrução da população
portuguesa ao longo do século XX (Mónica, 1978), e das mulheres em parti-
cular, situação que apenas começou a mudar nos anos 60 (Barreto, 1996) e,
ainda assim, para uma minoria de mulheres privilegiadas, no caso do ensino
superior (Sedas Nunes, 1968), opôs-se à tendência de contínuo progresso na
educação das mulheres ao longo do século que se verificou nos outros países.
Enquanto nesses países as universidades foram lugares de socialização política
para as mulheres através do activismo ou da observação dos movimentos
sociais dos anos 60 (Stewart, Settles e Winter, 1998), em Portugal foi ainda
a luta contra a ditadura e a guerra colonial que mobilizou a população uni-
versitária, como não podia deixar de ser.
O terceiro factor tem a ver com o recente desenvolvimento das ciências
sociais em Portugal, que impediu a difusão de instrumentos conceptuais e ana-
líticos para o debate e a reflexão sobre estas e outras questões (Amâncio, 1998a).
Além disso, a situação de «penúria financeira crónica» das instituições do ensino
superior (Gago, 1990, p. 31), com o consequente sacrifício da investigação
científica até aos anos 90, não era particularmente encorajadora de iniciativas
críticas, ao juntar a competição pelos escassos recursos disponíveis à competição
pela institucionalização de territórios e identidades profissionais.
A combinação destes factores terá, sem dúvida, contribuído para a lenta
evolução da reflexão e do ensino sobre as questões de sexo e género, con-
ferindo uma especificidade particular ao caso português, como mostram
alguns autores, que consideram que a produção de conhecimentos neste
domínio se encontra ainda, em algumas disciplinas, numa «fase de acumu-
lação», comparativamente com a «fase de consolidação» que se verifica em
Espanha (Cova, 1998a, p. 322). 691
Lígia Amâncio

Em 1985 realizam-se dois colóquios sobre a situação da mulher em


Portugal, por iniciativa de instituições universitárias, o primeiro em Feve-
reiro, em Lisboa, organizado pelo Instituto de Ciências Sociais, com o apoio
da Comissão da Condição Feminina, e o segundo no mês seguinte, em
Coimbra, organizado pelo Instituto de História Económica e Social. As
palavras de Maria de Lourdes Lima dos Santos na nota prévia das Actas do
Colóquio de Lisboa (1986, p. 473) exprimem o estatuto emergente do tema
do colóquio nas ciências sociais em Portugal:

Para lá dos objectivos comuns a qualquer colóquio [...] o Colóquio


Interdisciplinar sobre a Mulher em Portugal pretendeu também ser um
contributo para que, através da discussão em torno da vulgarmente cha-
mada «questão feminina», esta se vá constituindo entre nós como objecto
de análise das ciências sociais [itálico meu].

Também António de Oliveira, na apresentação das Actas do Colóquio de


Coimbra (1986, p. 12), manifesta perplexidade pela chegada tardia do tema
ao debate científico:

[...] não deixa de ser sintomático que só uma década depois do 25 de


Abril, não considerando os encontros voltados para outras atenções e não
desconhecendo a posição interdisciplinar do Seminário de Estudos sobre a
Mulher levado a efeito pela Comissão da Condição Feminina em Novem-
bro de 1983, com uma exposição bibliográfica sobre a mulher em Portugal
[...] se tenham proporcionado reuniões para, no domínio da especialidade,
se debater a história das mulheres portuguesas [itálico meu].

Embora o conceito de género tenha surgido nestes debates, destacando-


-se a referência ao seu papel na historiografia na apresentação do Colóquio
de Coimbra, foi necessário esperar alguns anos para que ele ganhasse visi-
bilidade em Portugal. Em 1994, o programa do III Congresso Luso-Afro-
-Brasileiro em Ciências Sociais, organizado em Lisboa pelo Instituto de
Ciências Sociais, incluía uma sessão sobre o género, que abriu com uma
comunicação colectiva onde se defendia a interdisciplinaridade que o concei-
to exige, a sua potencialidade «crítica de alguns dos paradigmas das ciências
sociais e o [seu] estatuto teórico inovador» (Almeida et al., 1996, p. 129).
É, de facto, na década de 90 que o debate teórico, suscitado pela perspectiva
do género, marca os trabalhos académicos de várias disciplinas, como a
psicologia social (Amâncio, 1989; Nogueira, 2001a), o direito (Beleza,
1993), a geografia humana (André, 1993), a sociologia da educação (Araújo,
2000 [1993]), a antropologia (Almeida, 1995; Joaquim, 1997) e a sociologia
692 da família (Torres, 1996 e 2000; Pais, 1998). Este é também o período em
O género no discurso das ciências sociais

que a investigação neste domínio vai conhecer um crescimento significativo,


como mostra um balanço recente (Vicente, 1998), repercutindo-se nos tex-
tos de apoio ao ensino graduado (Almeida et al., 1995) e pós-graduado3
(Nizza da Silva e Cova, 1998). Actualmente, começam a surgir reflexões
sobre o género noutras áreas, como a filosofia (Ferreira, 2001a) e a psico-
logia (Amâncio, 2001a; Nogueira, 2001b), no quadro de uma interpelação
das próprias disciplinas (v. ainda, para o caso da filosofia, Ferreira, 1998
e 2001b).
Um indicador significativo da ignorância do género, enquanto conceito de
análise social, na sociedade portuguesa actual encontra-se no Dicionário da
Língua Portuguesa Contemporânea, recentemente elaborado pela Academia das
Ciências de Lisboa. A entrada dedicada à palavra género apresenta várias defi-
nições: «1. Raça, espécie [...] 2. Conjunto de seres, coisas, factos, situações...
que têm entre si grande semelhança ou características comuns [...] 3. Estilo,
modo, tipo [...] 4. Classe de seres ou objectos com propriedades comuns [...]
5. Grupo taxionómico, usado nos sistemas de classificação [...] 6. Categoria
gramatical, indicadora do masculino, do feminino e do neutro [...] 7. Categoria
convencional em que se agrupam as composições artísticas ou literárias [...]
8. Espécie ou categoria de uma obra de arte [...]», mas nenhuma delas remete
para o estatuto analítico do género na investigação social.
Mas a chegada tardia à academia portuguesa do conceito de género e da
problemática da diferença e da desigualdade baseada no sexo não é suficiente
para explicar as ambiguidades que se verificam na apropriação do género nos
vários discursos onde ele surge, em geral, confundido com o sexo. De facto,
passados trinta anos sobre a eclosão do debate científico, o sexo, inscrito no
corpo, e o género, inscrito na história e na cultura, continuam a estabelecer
relações de ambiguidade, quer através da utilização arbitrária que deles é feita,
como se fossem termos conceptualmente equivalentes, quer através da fusão
entre eles (no termo «género sexual», por exemplo), confundindo assim o
indicador com o conceito e a abordagem descritiva com a analítica. Estas
ambiguidades, que se encontram no discurso científico, não deixaram de se
verificar no próprio discurso feminista, como veremos adiante.

UM NOVO CONCEITO PARA UMA VELHA QUESTÃO

We found a source of questions in the most egregious errors of the


past. But at the same time we stayed prisoners to a set of categories and

3
Para além das disciplinas que surgiram nos cursos de mestrado em Sociologia do
Trabalho e Sociologia da Família do ISCTE no início da década, destaca-se aqui a abertura
do I Mestrado em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta em 1995. 693
Lígia Amâncio

preconceptions deeply rooted in traditional sociology [Michelle Rosaldo,


1987, p. 281].
A expansão do sistema universitário que ocorreu no período posterior à
segunda guerra mundial e o consequente alargamento da base de recrutamen-
to de docentes e investigadores foram factores determinantes para a abertura
das ciências sociais, que se iniciou nos anos 60, como refere o relatório da
Comissão Calouste Gulbenkian (1996). Para isso contribuiu a chegada de
uma nova geração, sensível aos movimentos de protesto dessa altura, com
preocupações de crítica social e novas exigências quanto ao papel da ciência
na sociedade, que se reflectiram na emergência de novos objectos e na
progressiva acomodação de novas áreas de especialização no seio do velho
sistema de disciplinas. Inscrevem-se neste processo de mudança as críticas a
alguns dos pressupostos básicos que sustentaram a produção de conhecimento
em ciências sociais, como o universalismo (relatório Gulbenkian, 1996), a
imunidade da ciência ao sexismo e ao racismo, a sua autonomia e indepen-
dência políticas (Santos, 1987 e 1991), assim como as ideias de imparcia-
lidade e objectividade científicas (Ziman, 1998).
É neste quadro de questionamento da ciência social que se fazia que se
insere a emergência do conceito de género. Segundo a socióloga Ann
Oakley, o conceito de género foi introduzido no discurso das ciências sociais
na sequência da publicação da sua obra Sex, Gender and Society em 1972.
Numa recente publicação sobre a história do conceito, que aborda as
ambiguidades com que tem sido tratado, a autora recorda que, no seu sig-
nificado original, ele servia um objectivo claro:
[...] to map a domain of cultural perspectives on the natural body
which would help people to develop both personal and political
understandings of important aspects of their own and other people’s
identities [Oakley, 1997, p. 53].

Mas, como ela própria reconhece, o termo já era conhecido na área das
ciências médicas. De facto, encontra-se uma anterior definição do conceito na
obra de Robert Stoller Sex and Gender, publicada em 1968. Nesta obra o autor
utilizava o termo sexo para distinguir indivíduos do sexo masculino e do sexo
feminino e designar os aspectos biológicos que determinam se uma pessoa é
macho ou fêmea, a palavra sexual para referir os aspectos anatómicos e fisio-
lógicos e a palavra género para se referir às «tremendous areas of behavior,
feelings, thoughts and phantasies that are related to the sexes and yet do not
have primarily biological connotations», acrescentando ainda que «one can
speak of the male sex or the female sex, but one can also talk about
masculinity and feminity and not necessarily be implying anything about
anatomy or physiology» (Stoller, 1968, cit. por Millet, 1977, p. 29).
De acordo com estas definições, o sexo seria um marcador físico e
694 morfológico de conotação biológica, enquanto o género remeteria para o
O género no discurso das ciências sociais

domínio da cultura, ou para o de uma produção de origem sociológica,


segundo Oakley (ou psicológica, segundo Stoller), que fornece os elementos
indispensáveis para a percepção e compreensão do próprio corpo sexuado e
para a construção das noções de eu e do outro.
A centralidade do género, enquanto conceito, no projecto teórico e po-
lítico emergente na altura está bem patente no facto de os trabalhos de
Stoller surgirem abundantemente citados numa das obras clássicas do femi-
nismo da segunda vaga4 (Millet, 1977) onde se denunciava a colonização do
espírito das mulheres pela visão patriarcal das relações entre os sexos que a
literatura — anglo-saxónica — e a teoria psicanalítica difundiam. A liber-
tação das mulheres em relação à subjectividade feminina que esta cultura
lhes devolvia implicaria, segundo a autora, a descoberta de uma outra (ver-
dadeira?) feminilidade. Esta reflexão inscrevia-se, portanto, no espírito de
um tempo onde se procuravam identificar os determinantes sociais do sexo
— feminino, neste caso — e denunciar as pressões exercidas sobre as mulheres
para adoptarem um determinado modelo de ser feminino (Friedan, 1963).
Mas esta interrogação, que encontrava, nos anos 60, um contexto favo-
rável à sua expressão, tinha surgido mais de uma vez ao longo de dois
séculos. No século XVIII ela surge na obra de Mary Wollstonecraft The
Vindication of the Rights of Women, publicada em 1792, em resposta ao
projecto de Talleyrand de excluir as raparigas dos objectivos da educação
nacional no quadro da nova Constituição francesa. Na extensa dedicatória a
Talleyrand, Wollstonecraft (1975 [1792]), p. 85, apela à razão, ao amor pela
human race e ao progresso «of those glorious principles that give a substance
to morality» para que a educação se estenda também às raparigas. A sua
identificação com as promessas da Revolução Francesa5 para todos os cida-

4
Utilizamos aqui a classificação, consagrada na literatura, do movimento feminista em
três vagas, sendo a primeira a que vai do século XVIII até à primeira guerra mundial, período
que antecede mesmo a própria designação de feminismo, que só aparece no fim do século
XIX (Cova, 1998b), a segunda a do activismo dos anos 60 e 70 e a terceira a dos anos 90,
também designada de feminismo pós-moderno. Apesar de procurar englobar a diversidade
histórica e social do feminismo europeu e americano, esta classificação não concede o lugar
merecido a Simone de Beauvoir e à enorme influência, ainda que diferida no tempo, do
Segundo Sexo, publicado em 1949, para o feminismo da segunda vaga, como mostra o
recente estudo da historiadora francesa Sylvie Chaperon (2000).
Por outro lado, a designação corrente de «pós-feminismo», aplicada à terceira vaga,
pretende apenas destacar a extinção do activismo dos anos 60 e 70, em nome da qual se
decreta a morte do feminismo. Esta troca, não inocente, de palavras não exprime senão um
«ante-féminisme, promu post-féminisme et devenu militant», chamado antifeminismo, como
diz Christine Delphy (1998, p. 254). Na verdade, os anos 90 constituem um período de
intensa reflexão que contribuiu para a consolidação da teoria feminista.
5
O caso desta inglesa que atravessou o canal para participar nos acontecimentos é
exemplar do envolvimento das mulheres na revolução. Em 1791 Olímpia de Gouges publi-
cara a célebre Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, iniciando assim a luta
pela realização dos direitos que a revolução prometera. No entanto, esta luta não era 695
Lígia Amâncio

dãos, independentemente da sua condição de nascimento, acompanha o argu-


mento de que a (não)educação das mulheres condiciona o seu modo de ser:

Contending for the rights of woman, my main argument is built on


this simples principle, that if she be not prepared by education to become
the companion of man, she will stop the progress of knowledge and
virtue [...] but the education and situation of woman at present shuts her
out from such investigations [Wollstonecraft, 1975 (1792), pp. 86-87].

A ideia de que a educação das raparigas para as boas maneiras, a coqueteria


e a virtude era degradante e as remetia para uma sujeição semelhante à da
escravatura volta a aparecer, quase um século mais tarde, no texto de John Stuart
Mill publicado em 1869. Também ele procura nas «laws of the influence of
circumstances on character» (Mill, 1989 [1869], p. 140) a explicação para as
diferenças entre os sexos, recusando a ideia de «natureza» feminina:

What is now called the nature of women is an eminently artificial


thing — the result of forced repression in some directions, unnatural
simulation in others. It may be asserted without scruple that no other
class of dependents have had their character so entirely distorted from its
natural proportions by their relations with their masters [Mill, 1989
(1869), p. 138].

No século XX coube a Simone de Beauvoir retomar a questão em O Segundo


Sexo, publicado em 1949. Pioneira da pequena elite de mulheres educadas
do seu tempo (Moi, 1994), assume uma postura analítica, inteiramente ino-
vadora, das condições sociais, políticas e históricas que limitam a liberdade
das mulheres e participam para o conflito entre a sua liberdade e autonomia,
enquanto sujeitos, e a condição de alteridade para que são remetidas, enquan-
to mulheres.
Mas, se o acolhimento desta questão e do conceito de género pelas
ciências sociais, nos anos 70, foi facilitado pela reemergência do movimento
feminista, num contexto social de aumento generalizado da escolaridade e

bem acolhida pela nova ordem democrática. Alexis de Tocqueville lamentava, com efeito,
que as francesas não seguissem o exemplo das americanas, que «se faisaient une sorte de
gloire du volontaire abandon de leur volonté, et [qu’elles] mettaient leur grandeur à se plier
d’elles-mêmes au joug et non à se soustraire» (Tocqueville, 1986 [1840], p. 293). Mas as
americanas não eram, afinal, tão bem comportadas quanto isso. Em 1848, Lucretia Mott,
Martha C. Wright, Elizabeth Cady Stanton e Mary Ann McClintock redigem o apelo para
uma convenção para discutir «the social, civil, and religious condition and rights of women»,
que foi publicada no Seneca Falls Courier. A Convenção, que se realizou nos dias 19 e 20
de Julho em Seneca Falls e aprovou a Declaration of Sentiments (entre outros), marca o início
696 do movimento feminista americano.
O género no discurso das ciências sociais

qualificação das mulheres, outras circunstâncias limitaram o alcance da


problematização do género. Enquanto a nova geração de académicas se con-
frontava com o sexismo das instituições e era remetida para o «círculo exte-
rior» da ciência (Zuckerman, Cole e Bruer, 1991), as ortodoxias disciplinares
ofereciam resistência aos novos objectos de estudo que os movimentos sociais
exigiam. Como dizia Alice Rossi (1998 [1964], p. 34), «o feminismo foi
minado pelo conservadorismo da psicologia e da sociologia do período do pós-
-guerra». Todavia, como esta minoria já não era constituída apenas por algu-
mas excepções, tendo atingido um número crítico para se tornar uma minoria
activa, no sentido de Moscovici (1979), a emergência de áreas, centros e
programas de estudos sobre as mulheres foi uma forma de contornar as bar-
reiras que as respectivas comunidades científicas (Jesuíno, 1995) opunham à
integração das mulheres e à investigação de novas questões. O relato de Jessie
Bernard (1998) sobre a criação do grupo Sociologists for Women in Society no
seio da ASA, em 1970, retrata bem a diversidade de motivações individuais, mas
também o sentimento de insatisfação que os e as protagonistas desta iniciativa,
onde Alice Rossi desempenhou um papel fundamental, partilhavam6.
As preocupações em dar visibilidade às experiências das mulheres e em
demonstrar a iniquidade das diferenças socialmente criadas entre os sexos
(Myers, Anderson e Risman, 1998) irão presidir a esta primeira fase dos
estudos sobre as mulheres, e de integração do género nas ciências sociais, que
as revistas científicas então criadas (Signs, Sex Roles e Women’s History, por
exemplo) e a organização de inúmeras conferências se encarregam de divulgar.
Alguns dos títulos dos livros publicados nos anos 70, como Hidden from
History e Becoming Visible, que marcaram o lançamento da história das
mulheres, são reveladores dos objectivos dos seus autores, como diz Joan Scott
(1988b, p. 18), e do movimento de procura de novos conhecimentos sobre as
mulheres, que então se designava de her-story (numa transformação da palavra
history). Mas o olhar crítico sobre a produção deste período permitiu também
identificar alguns dos seus limites. Para além de confundir o género com «as
mulheres», carregando a feminilidade de um sentido intemporal (Scott, 1988c)
que não problematiza a ideia de duas categorias de sexo intrinsecamente di-
ferentes e internamente homogéneas, e de participar para o que Françoise
Collin7 (1995, p. 314) designa de «metafísica dos sexos», esta orientação
positivista também não promoveu a crítica aos modelos dominantes.
Num ambiente científico marcado pela influência do funcionalismo, do
culturalismo e da psicanálise, presentes tanto no pensamento de Talcott
Parsons como no de Margaret Mead, a teorização do género limitou-se,

6
O movimento paralelo no seio da APA é relatado num outro artigo, dedicado ao
percurso do género na psicologia (Amâncio, 2001a)
7
Filósofa e fundadora da primeira revista feminista francesa, Les cahiers du GRIF, em
1973. 697
Lígia Amâncio

como afirma Connell (1987, p. 33), a uma «estratégia teórica, centrada sobre
o como e o até que ponto (how far) se poderiam transformar as relações sociais
de género» (itálico do autor), que resultou, simplesmente, no aumento da
investigação sobre os papéis sexuais (sex-roles) e as diferenças entre os sexos
(sex-differences research)8, sem grande progresso teórico, para além da insis-
tência nos factores de socialização9 e na necessidade de os modificar.
No entanto, logo nos anos 70 surgiram críticas da sociologia francesa à
utilização da variável sexo na investigação sociológica, por esta assentar
apenas na «intuição de uma realidade sociológica subjacente» (Mathieu,
1991 [1971], p. 25), devido à ausência de uma teoria sociológica sobre o
sexo, ao contrário do que acontecia em relação à classe. No contexto desta
discussão, a autora propunha o conceito de sexe social (Mathieu, 1991 [1971],
p. 23), contemporâneo, portanto, do conceito de género. Este último não era
inteiramente rejeitado (Mathieu, 1991 [1989]), antes era integrado numa
reflexão em torno da relação entre sexo e género orientada para o modo
como o género constrói o sexo e que destaca a assimetria no processo de
diferenciação entre sexos como parte integrante dessa construção. As rela-
ções de homologia ou analogia entre sexo e género são substituídas por uma
relação «socio-lógica e política... numa lógica antinaturalista e de uma aná-
lise materialista das relações sociais de sexo» (p. 256) que remete em causa
a bipolarização das categorias de sexo e as noções estáticas de hierarquia ou
dominação dos homens sobre as mulheres. Neste quadro de pensamento, a
utilização exclusiva e despropositada do termo género pela corrente ameri-
cana dos women’s studies não podia deixar de merecer a crítica da autora.
A investigação dos anos 70 contribuiu, assim, para a polarização do dua-
lismo dos sexos e para a acentuação da diferença entre eles, através de uma
prática de investigação em que a evidência sobre as mulheres e a relevância
das suas experiências se tornaram «normativas» (Davis e Gremmen, 1998),
enquanto os homens surgiam, também eles, como categoria homogénea, deten-

8
O autor fundamenta a sua afirmação num indicador que mostra que os estudos sobre
os papéis sexuais passaram de 0,5% dos artigos publicados nas revistas de sociologia em 1969
para 10% em 1978 e recorda a criação da revista Sex Roles em 1975 (Connell, 1987, p. 33),
que se mantém, até hoje, com o mesmo nome. A crítica à insistência nos estudos sobre as
diferenças entre os sexos surge, na psicologia, num artigo publicado ainda nos anos 70
(Unger, 1979) onde a autora salientava que pareciam existir mais semelhanças entre os sexos
do que diferenças, desde logo na forma de pensar as diferenças entre eles.
9
É nesta perspectiva que se insere o caso de Agnes, analisado por Harold Garfinkel
(1967, cit. por Almeida et al., p. 154). Agnes foi educada como rapaz e adoptou uma
identidade feminina aos 17 anos, tendo-se submetido, anos mais tarde, a uma operação de
mudança de sexo. A figura de Tootsie, protagonizada por Dustin Hoffman no cinema, retrata
as dificuldades da mudança da identidade de género, reduzindo-a à aprendizagem e
desaprendizagem de maneirismos numa caricatura simplista, mas algo realista, do enfoque nos
698 processos de socialização.
O género no discurso das ciências sociais

tora dos atributos agênticos da opressão. A influência americana que marca


este período, quanto mais não seja ao nível da visibilidade, reflecte-se no
empriricismo da epistemologia feminista (Hawkesworth, 1989), no que diz
respeito à agenda da investigação social. Do ponto de vista político, por outro
lado, este período é também marcado pela emergência do debate que opõe a
igualdade à diferença. Mas a prevalência da ideia da neutralidade em relação
ao género do conceito de cidadania, «raramente usado» pelo feminismo da
segunda vaga, como assinala Voet (1998, p. 23), e da mera extensão dos
direitos formais, adquiridos na esfera pública, à esfera privada, que caracte-
rizam o feminismo liberal, não participaram para o questionamento da ciência
política dominante. Todavia, a ideia de integração da «diferença» feminina
naqueles conceitos, inspirada pelo feminismo radical, também não logrou
constituir-se como alternativa, na medida em que se concentrou na opressão
dos «homens» sobre as «mulheres» na esfera privada, sem que se verificasse
uma articulação produtiva entre género e cidadania (Voet, 1998).
A definição de patriarcado como «poder dos homens» que caracterizou
uma certa corrente do feminismo radical10 contribuiu ainda para a relativa
omissão das questões do poder na análise sociológica, como assinalam algu-
mas críticas recentes. Defendendo a necessidade de uma articulação entre
género e poder, Jantine Oldersma e Kathy Davis (1991) mostram que as
questões de género se mantiveram ausentes de muitas das teorias sociológicas
sobre o poder, do mesmo modo que a abordagem do género nem sempre
integrou as questões de poder. Este desencontro explicar-se-ia, segundo
Kathy Davis (1991), pela visão intuitiva que o feminismo desenvolveu sobre
o poder, visto como atributo ou propriedade «dos homens», sistema de
repressão top-down (p. 79), inevitavelmente ligado a uma relação de subor-
dinação, ou seja, um nasty business (p. 81). Segundo a autora, esta visão
impediu a articulação da agenticidade com as relações de dominação, no
quadro da qual se torna possível recolocar as mulheres no lugar de sujeitos.

O GÉNERO NO QUADRO DE UM NOVO PARADIGMA

[...] feminists began to recognize this [gender] concept as an analytic


tool for studying the impact of gender ideology on the structure of social

10
As várias correntes do feminismo e as suas implicações epistemológicas são discutidas
no extenso trabalho de Nogueira (2001a), pelo que não nos deteremos sobre elas aqui.
Importa, todavia, salientar a pertinência da ideia de Rian Voet (1998) quando diz que entrar
nas classificações das correntes do feminismo, embora possa ter alguma utilidade, não deixa
de ser, como todo o exercício de categorização, simplificador, obscurecendo, por vezes,
aspectos importantes, para além da divisão das pessoas em facções. As ambiguidades em torno
do sexo e do género que discutimos neste artigo, em várias disciplinas, são um bom exemplo
da transversalidade de certos pressupostos a todas as correntes. 699
Lígia Amâncio

and intellectual worlds extending far beyond the minds and bodies of
individual women and men [Keller e Longino, 1996, p. 2].

O enfoque no género enquanto estrutura social, e não como simples carac-


terística dos indivíduos (Meyers, Anderson e Risman, 1998), constituía, neste
contexto de desproblematização do conceito, uma excepção, como assinala
Mary Hawkesworth (1997). Esta excepção encontra-se na teoria social de
Robert Connell. Partindo da crítica à influência do feminismo liberal na
sociologia, Connell (1987) propõe uma teoria que estende a análise do género
a todas as instâncias da organização social, já que tanto a família como a
divisão do trabalho e o estado (Connell, 1994) são atravessados pela lógica da
masculinidade hegemónica, assente na norma da heterossexualidade. A questão
do poder torna-se central nesta análise sociológica do «regime» baseado no
género, mas não nos termos propostos pelo feminismo radical. Reconhecendo-
-lhe embora o mérito de ter trazido a questão do poder para a discussão,
através do conceito de patriarcado, Connell (1994 [1990]) critica também esta
perspectiva feminista por ter essencializado o poder e focalizado a sua atenção
na família. Os limites desta perspectiva situam-se, segundo ele, na exclusão do
género da discussão sobre o estado e na incapacidade de compreender as
mudanças e as «crises» da masculinidade hegemónica.
Mas, quando Connell (1987) se refere ao contexto de influência das
teorias dos anos 40 e 50, que marcou a infância do género na sociologia
americana, distingue claramente o pensamento de Parsons (1956) e de Mead
(1968) do de Simone de Beauvoir (1976). Com efeito, o feminismo materialista
de Beauvoir está presente nos modelos que emergiram na sociologia francesa
dos anos 70 (Moi, 1994). O modelo de Christine Delphy sobre o sistema do
patriarcado, ao qual Connell (1987) dá o devido destaque, partiu da crítica à
forma como a sociologia francesa tratava os homens e as mulheres, nomea-
damente na abordagem da estratificação social, do trabalho e da família, mas
também era uma reacção às críticas dirigidas ao movimento das mulheres pelo
esquerdismo francês, como diz a autora. Ao fazer a história da construção da
sua teoria numa recente reedição dos textos que a foram constituindo, Delphy
(1998, p. 26) afirma que passou a utilizar o conceito de género, a partir de
1976, por considerar que ele conferia, «au moins potenciellement, les moyens
de déplacer le regard des rôles de sexe vers la construction même de ces
‘sexes’». Por isso mesmo, considerava que a definição proposta por Ann
Oakley em 1972 era questionável (Delphy, 1991, p. 91), visto que se limitava
a agrupar «tudo o que era variável e socialmente determinado» sob uma lógica
binária que reproduzia a do agrupamento da invariância biológica contida no
sexo. Além disso, faltava nesta definição a ideia de assimetria, o que transfor-
mou o género num simples sucessor do conceito de sex-role.
A perspectiva materialista está igualmente presente no modelo de Colette
700 Guillaumin sobre as relações sociais de sexo e que ela define como uma
O género no discurso das ciências sociais

relação de poder e um efeito ideológico (Guillamin, 1992). A relação de


poder, que se exprime na apropriação do tempo, do corpo, da sexualidade,
da disponibilidade física para os cuidados com os outros, de um sexo sobre
o outro permite-lhe estabelecer uma analogia entre as relações de classe, de
escravidão/servidão (esclavage/servage), e as de sexo11, para as quais propõe
o termo sexage (Guillamin, 1992, p. 28) (a mesma analogia que John Stuart
Mill estabelecera um século antes, como vimos atrás). Mas esta «apropriação
material do corpo e da individualidade das mulheres, cuja expressão legal é
o contrato de casamento» (Guillamin, 1992, p. 46), tem um suporte ideo-
lógico na forma de representar e diferenciar a «classe» das mulheres, que
corresponde também às formas de representação de outras categorias domi-
nadas: o discurso sobre estas projecta-as para fora das relações sociais através
da ideia de natureza, define-as por atributos conotativos da sua especificidade
(aptidões, talentos, o jeito para...), funde a sua individualidade na categoria de
pertença e torna-as diferentes de um referente: «la signification idéologique de
la différence, c’est la distance au référent» (Guillaumin, 1992, p. 97).
No contexto desta discussão, o conceito de rapports sociaux de sexe
parece destronar o de género, que surge, aparentemente apenas, enquanto
forma gramatical, na análise da utilização do masculino universal pela lin-
guagem comum, num elegante jogo de significados: «[...] genre qui est celui
de la légitimité, du droit exercé et garanti, bref le genre de l’exercice du pouvoir
qui devient homologue, ou homogène à un trait physique» (Guillaumin, 1992,
p. 115).
Diversamente do que aconteceu com a tradição americana, o feminismo
francês nas ciências sociais orientou-se para a produção de uma teoria sobre
o sexo, sobrepondo sempre a reflexão e a produção teórica a finalidades
estratégicas imediatas – mais do que denunciar, a tradição francesa procura
compreender e analisar. Enquanto discurso minoritário, o feminismo acadé-
mico confrontou-se com enormes resistências, que foram desde a ridicula-
rização das autoras, hoje clássicas tanto em França como nos Estados Uni-
dos, até à influência hegemónica das ortodoxias científicas, como salienta
Guillaumin (1981), no caso da sociologia francesa. A autora afirmava que,
apesar disso, nada ficara como dantes, tendo sido possível criar novos ob-
jectos e fazer eclodir velhas categorias, como a de a mulher, que foi subs-
tituída pela de as mulheres, e a de condição12, que designava um estado, pela
de relação (Guillaumin, 1981, p. 27). Efectivamente, o que ressalta do dis-

11
Shulamith Firestone, na obra de referência do feminismo radical, The Dialectics of Sex,
publicada em 1970, também se refere a classe de sexo.
12
Vale a pena lembrar que, quando o governo francês criou um serviço para se ocupar
da questão feminina, em 1974, designou-o de Sécrétariat pour la Condition Féminine. O serviço
equivalente criado em Portugal, em 1977, chamava-se Comissão da Condição Feminina.
Nenhum deles mantém esse nome actualmente. 701
Lígia Amâncio

curso francês das ciências sociais é a sistemática crítica feminista aos mode-
los dominantes nos anos 70 e 80 e a extraordinária consistência conceptual
no discurso actual das mais diversas disciplinas em torno dos pressupostos
básicos da teorização sobre os sexos13. O género refere-se a uma relação
social, e não a uma propriedade de indivíduos concretos, e essa relação, que
é marcada pela assimetria no plano dos significados e define um contexto de
dominação, é socialmente construída. São estes factores que distinguem a
tradição francesa das contradições que atravessaram a tradição anglo-saxóni-
ca14, sem dúvida pela maior dificuldade desta em se libertar dos naturalismos
biológico e psicológico.
Na linha de uma reflexão em torno do género que mostrara os usos
redutores do conceito e definira como objectivo da história compreender
«the significance of sexes, of gender groups in the historical past» (Scott,
1988a, p. 29), na introdução ao I vol. da História das Mulheres, Georges
Duby e Michelle Perrot (1993 [1990], p. 16) definiam esta história como a
da relação entre os sexos, lugar de compreensão e definição da «alteridade
e da identidade femininas», e justificavam o objectivo de «Escrever a história
das mulheres» (título da introdução) do seguinte modo:

Ela constitui uma história que já tem história, que mudou de objecto,
de métodos e de pontos de vista. Animada, a princípio, pelo simples
desejo de se tornar visível [...] esta história tornou-se muito mais proble-
mática, menos puramente descritiva e mais relacional. Na primeira linha
das suas preocupações ela coloca a partir de agora o gender, isto é, as
relações entre os sexos, vistos não como algo inscrito na eternidade de uma
natureza inacessível, mas como produtos de uma construção social que é
importante, justamente, «desconstruir» [Duby e Perrot, 1993, p. 14, itáli-
cos meus].

No domínio da filosofia, e considerando que ela tem sido marcada pela


ausência de questionamento sobre as diferenças entre os sexos, Geneviève
Fraisse defende a necessidade da construção deste objecto justamente porque

13
Os textos do colóquio realizado em Paris em 1995, no quadro da preparação da
Conferência de Pequim, e que reuniu contributos de diversas disciplinas são um excelente
exemplo da partilha de uma linguagem conceptual e analítica comum (Lefaucheur e
Schwartz, 1995).
14
Assiste-se actualmente a uma verdadeira descoberta do feminismo francês pelas autoras
de língua inglesa, reflectida mesmo em publicações sobre a vida e obra de feministas francesas
(como a de Mary Evans sobre Simone de Beauvoir e a de Stevi Jackson sobre Christine
Delphy, ambas publicadas em 1996 pela Sage). A participação de investigadoras de língua
inglesa no colóquio comemorativo das 50 anos da publicação de O Segundo Sexo, realizado
702 em Paris em 1999, foi outro exemplo.
O género no discurso das ciências sociais

«la différence des sexes est ce à partir de quoi on pense mais ce qui n’est
pas pensé» (1996, p. 53). Também aqui se encontra a ideia de assimetria
entre o masculino universal e o feminino específico, como uma dimensão
central do pensamento da diferença que a autora propõe que seja visto na sua
«historicidade» (Fraisse, 1996, p. 59), tal como Françoise Collin salientara,
alguns anos atrás, numa reflexão sobre a diferença entre os sexos no pen-
samento ocidental, que «o particular dos homens é universalizável, o das
mulheres unicamente particular» (Collin, 1995, p. 316).
Com efeito, se é possível encontrar raízes muito antigas nos mitos sobre
os sexos, a pesquisa sobre os processos históricos e sociais de construção da
diferença entre sexos tem mostrado que a modernidade veio trazer uma
ordem onde a particularidade da categoria feminina, na distância que a
separa do novo referente universal, o sujeito cidadão15, encontra formas de
legitimidade particularmente eficazes. Robert Connell refere, nomeadamen-
te, que a passagem do antigo regime ao estado moderno foi acompanhada
da passagem de uma masculinidade baseada na honra, ligada à rede de
parentesco e aos deveres de protecção, para uma masculinidade baseada na
racionalidade, na previsão e no método, mudança esta que «não foi uma
consequência da revolução burguesa, antes é parte integrante da mesma, en-
quanto ordem social sexuada» (gendered social order) (Connell, 1994, p. 50).
É neste contexto que o recurso à biologia, como fonte e fundamento da
masculinidade e da feminilidade, se torna sinal da modernidade, como diz
Laqueur (1992), para remeter as mulheres para o cumprimento de um des-
tino, a maternidade, as confinar ao espaço privado (Hufton, 1994) e as
excluir do contrato social (Santos, 1998).
Neste processo de construção do significado da diferença, em que o género
se torna conhecimento sobre ela (Scott, 1988c), adquirindo assim o sentido de
epistemologia do senso comum a que se refere o modelo das representações
sociais (Vala, 1986), a assimetria simbólica, subjacente à construção deste
conhecimento, constituiria a representação fundadora da nova ordem
«sexuada» (Amâncio, 1998b). Uma representação em que o masculino se
confunde com o universal (Amâncio, 1994) e o feminino transforma as
mulheres numa comunidade de invisíveis (sobre)sexuados, irremediavelmente
diferentes dos homens, confundindo a diferença entre os sexos com a diferença
em si mesma, como se «la femme serait [-elle] tout du sexe et l’homme tout
du genre [?]» (Fraisse, 1995, p. 132). A situação paradoxal de seres da
natureza e seres sociais, cujo espaço de exercício da razão se reduzia à função
reprodutora, no discurso político da modernidade, tornou as mulheres «seres

15
Na Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã escrita por Olímpia de Gouges em
1791, o primeiro artigo já revelava a constituição do masculino como referente: «la femme
nait libre et égale à l’homme en droits...» (itálico meu). 703
Lígia Amâncio

relativos» (Fraisse, 1995, p. 175) no plano da cidadania e dos direitos.


O próprio debate que opôs a igualdade à diferença, e que marca a história do
feminismo desde o seu início, não foi senão resultado dos paradoxos criados
pela democracia moderna, como mostra a análise recente de Joan Scott (1998).
No contexto do debate anglo-saxónico, as feminist standpoint theories
(Harding, 1986), que surgiram nos anos 80 sob a influência do materialismo
histórico, representam uma ruptura com o feminismo empiricista do período
anterior e abrem caminho ao feminismo pós-moderno dos anos 90. Ao
rejeitar a ideia de separação entre sujeito e objecto e de verdade «objectiva»,
considerando que o conhecimento não pode ser desligado da posição espe-
cífica e do momento histórico em que se encontra aquele que o produz
(Hawkesworth, 1989), esta epistemologia não escapou, todavia, à tentação de
celebrar o universo feminino, criando um diferencialismo cujo carácter re-
dutor e ontologizante não deixou de ser problematizado pelo debate teórico
feminista posterior (Hawkesworth, 1989; Nogueira, 2001b).
Muitos dos questionamentos recentes dos conceitos e paradigmas domi-
nantes nas ciências sociais inscrevem-se naquelas ideias, mas distanciam-se
da tentação a que elas deram lugar nos anos 80. É nesta perspectiva que se
inserem as críticas ao universalismo de conceitos modernos, como o de
cidadania (Walby, 2000), o de democracia (Mouffe, 2000) e o de represen-
tação política (Phillips, 2000), não para defender o particularismo, em al-
ternativa, mas para salientar o facto de o género ser estruturante da cidadania
e da democracia, o que significa que as mudanças a esse nível dependem de
mudanças ao nível das relações de género. No que diz respeito ao papel do
estado na estruturação das relações de género e no estabelecimento e vigi-
lância das fronteiras entre o público e o privado (Mottier, Sgier e Ballmer-
-Cao, 2000), a crítica dirige-se à visão predominantemente «negativa» do
estado de algumas análises feministas anteriores (Waylen, 2000) e à pouca
atenção prestada às variações nacionais16 (Sainsbury, 2000). Outras análises
procuram, por outro lado, colmatar o défice do género na teorização sobre
nação e nacionalismo (Yuval-Davis, 1997) e no debate sobre modernidade
e pós-modernidade (Marshall, 1994).
Como diz Conceição Nogueira, o feminismo contemporâneo partilha com
o pós-modernismo um «profundo cepticismo» sobre algumas «reivindicações
universais», entre as quais a da própria ciência (Nogueira, 2001a, p. 180).
A descrença nas metanarrativas das grandes teorias (Lyotard, 1989, cit. por
Nogueira, 2001a) das ciências sociais foi dando lugar à desconstrução dos
claims of truth (Hawkesworth, 1989) sobre os sexos, venham eles de uma

16
O trabalho de Anne Cova (1997) sobre o feminismo francês da primeira vaga aborda,
precisamente, as especificidades de que se revestiu, no caso da França, a evolução dos direitos
704 das mulheres, numa perspectiva histórica.
O género no discurso das ciências sociais

ciência que não integrava a diversidade das experiências (Santos, 2000) ou


do reflexo dessas mesmas experiências nas correntes diferencialistas do fe-
minismo. Esta perspectiva promove a eclosão dos dualismos que marcaram
os períodos anteriores, como o que opôs a igualdade à diferença (Bock e
James, 1992) e sobre o qual se foram ancorando outras divisões de ordem
nacional (feminismo anglo-saxónico versus feminismo francês), cultural (fe-
minismo relacional versus individualista) (Offen, 1995) ou política que,
como vimos ao longo deste texto (v. nota 10), obscurecem as semelhanças
que se encontram nas análises de autores com filiações ideológicas tão di-
ferentes quanto o liberalismo e o marxismo.
Desde logo, porque a oposição entre a igualdade e a diferença, que
emergiu da confrontação com a concepção liberal de igualdade, gerou uma
contradição nos termos, que transportam significados bem diferentes, mas
que se impôs num discurso que obscurece as condições históricas que o
criaram. A igualdade perante a lei não escapou à contaminação do género
(Beleza, 1988, 1993 e 1997; Pina Cabral, 1993), acomodando a crença
inabalável na irredutível diferença que marcou o projecto da democracia
moderna17, mobilizou a oposição entre cultura e natureza no seio da ciência
moderna e persiste, até hoje, na corrupção do género pelo sexo (Scott,
1999b). Ora esta diferença, naturalizada no pressuposto de igualdade entre
todos os indivíduos, limitou os direitos dos iguais, mas sempre diferentes,
como as mulheres, o que sustenta uma proposta recente de deslocar a questão
da igualdade para o plano da justiça (Flax, 1992). Partindo do reconheci-
mento do défice de participação das mulheres na esfera política18, o recente
debate sobre a paridade em França, embora tenha conseguido um consenso
em torno da acção, não escapou às divergências conceptuais em torno da
igualdade e da diferença, nomeadamente em relação à ideia do «couple
essentiel da humanidade» (Chaperon, 1998, p. 264), que aparece na defesa
da mixidade (Agacinski, 1999) e do multiculturalismo (Touraine, 1997;
Touraine e Khosrokhavar, 2000). Apesar de nesta análise se destacar o papel
do movimento das mulheres para este novo olhar sobre a sociedade, o género
é visto simplesmente «como factor de repartição dos papéis sociais» (Touraine,
1997, p. 308), enquanto «a paridade significa que não existe unidade da
humanidade, para além da dualidade dos homens e das mulheres» (Touraine
e Khosrokhavar, 2000, p. 256, itálico meu).
Por outro lado, as mudanças na situação das mulheres e a complexidade das
sociedades contemporâneas fizeram também eclodir a diferença em muitas
diferenças entre homens e entre mulheres (Nogueira e Silva, 2001), contri-

17
A análise de Virgínia Ferreira (1998) é elucidativa das contradições entre a ordem jurídica
estabelecida com a democracia e as reais condições das mulheres na sociedade portuguesa.
18
Os trabalhos de Viegas e Faria (1999) e de Faria (2000) são exemplos do reconhe-
cimento deste défice em Portugal. 705
Lígia Amâncio

buindo para a complexidade das questões teóricas (Weedon, 1999). A mudan-


ça não pode, portanto, ser vista nem como ascensão triunfante numa escala
imaginária de progresso nem com o voluntarismo legalista do feminismo ou
do antifeminismo liberais. A duplicidade dos «regimes» que exercem con-
trole social sobre o comportamento das mulheres, regulado simultaneamente
pelos (novos) valores modernos, transpostos para a lei, e pela (velha) moral
dos costumes, reflecte-se frequentemente nos actuais debates em torno de
questões éticas, do mesmo modo que o conflito entre a liberdade e a
alteridade, de que falava Simone de Beauvoir, ou entre a autonomia e a
feminilidade, particularmente visível nas mulheres que ocupam as posições
«contraditórias» de elevado estatuto ou poder (Nogueira, 2001a, p. 335),
constitui um meio de controle da mudança que se traduz, por vezes, na
«permanência na e pela mudança», como afirma Bourdieu (1998, p. 98).
O género, aplicado às mulheres, aos homens, ou mesmo às relações entre
eles, é incapaz de dar conta da complexidade das situações em que outras
pertenças confluem, como a classe, a cor da pele, a etnia, a religião ou a
orientação sexual, simplesmente porque ele não é um atributo dos indivíduos
concretos, mas um saber da sociedade. Mesmo as próprias definições origi-
nais que distinguiam o sexo do género, definindo-o como um código de
leitura do corpo, verdadeira matéria-prima sobre a qual operava a cultura,
e que se encontram nas abordagens de Connell (1987) e de Laqueur (1992),
são hoje questionáveis à luz de uma visão pós-estruturalista, como a de
Judith Butler (1990). Nesta perspectiva, o género constitui uma forma de
naturalizar o sexo, ou a identidade sexual, através do discurso e refere-se às
formas de produção da distinção entre os sexos. A direcção da causalidade
é invertida, já que o género não constrói o sexo, mas é, ele próprio, um
efeito de relações de poder, da acção das instituições, das práticas e dos
discursos que regulam as suas formas e significados. O género passa, assim,
a ser visto como um acto performativo, algo que se faz (Nogueira, 2001b),
constantemente reafirmado nas interacções sociais, na medida em que as
formas de o reconhecer são partilhadas.
A perspectiva desconstrutivista19, desenvolvida a partir da crítica pós-
-moderna (Nogueira, 2001ab), tem o mérito de chamar a atenção para a força
da cultura na produção dos significados de género, precavendo-nos, ao mesmo
tempo, em relação às concepções totalitárias das identidades masculina e fe-
minina (Hawkesworth, 1997). Mas, por outro lado, como salienta esta autora,
aquela perspectiva não é suficientemente esclarecedora das razões que condu-
zem à centralidade da heterossexualidade na construção do género e à
assimetria dos significados que o constituem.

19
O termo (des)construtivismo, utilizado nas ciências sociais, foi substituído por cons-
trucionismo na psicologia (v. Nogueira, 2001), para não se confundir com o construtivismo
706 social de Piaget.
O género no discurso das ciências sociais

CONCLUSÃO

As the 1990s draw to a close «gender» seems to have lost its ability
to startle and provoke us [Scott, 1999, p. XII].

Ao longo dos mais de trinta anos de existência do género nas ciências


sociais foi difícil realizar um projecto teórico que correspondesse a uma
verdadeira descentração epistemológica do dualismo associado ao sexo bio-
lógico. Neste percurso, marcado pela resistência das ideias sobre a natureza
feminina (Amâncio, 2001b), as ciências sociais revelaram dificuldade em se
emanciparem de um discurso dominante da modernidade. No entanto, a
corrupção do género pelo sexo, que se generalizou na linguagem comum e
no próprio discurso científico, diminuiu o efeito provocatório do género, na
medida apenas em que a sexuação do género passou a constituir um poderoso
indicador da lógica que preside à construção da diferença. Mas foi também
esta deslocação do objecto, que teve lugar em várias disciplinas, que gerou a
convergência das ideias que caracterizam a actual reflexão feminista. A pers-
pectiva desconstrutivista rompeu definitivamente com a concepção do género
como atributo dos homens e das mulheres concretos e tornou visível a
confluência da cultura, da linguagem, das práticas e das instituições para a
sua construção. Do ponto de vista das formas e conteúdos em que esta
assenta, a centralidade da norma heterossexual e a assimetria dos significados
emergem como elementos estruturantes. Mas para melhor compreender este
processo de construção não parece possível prescindir das regularidades his-
tóricas e sociológicas que o modelo das representações sociais, nomeadamen-
te, situa ao nível dos processos de ancoragem (Doise, 1993).
O predomínio das produções anglo-saxónica, sobretudo americana, e
francesa nas referências bibliográficas utilizadas neste artigo reflecte, sem
dúvida, o trânsito de ideias entre estes dois contextos e o papel activo que
cada um deles desempenhou ao longo destes anos para o esforço cumulativo
que marca o percurso do género nas ciências sociais20. É na sequência de
visitas aos Estados Unidos que Françoise Collin funda a primeira revista
feminista francesa (v. nota 7) e que Christine Delphy inicia o seu trabalho

20
A agressividade comercial das editoras de língua inglesa, em especial, não deixa de
contribuir para uma certa hegemonia da literatura nesta língua, tornando a produção noutras
línguas periférica (se não mesmo invisível, como acontece com o português). É o caso da
italiana, cuja produção interna é sustentada por uma intensa actividade editorial (incluindo
traduções) e que merece mais visibilidade do que tem tido até aqui (Bock e James, 1992).
A referência à produção americana neste domínio também pode fazer esquecer o grande
dinamismo do movimento feminista da América Latina, enquanto movimento social e
intelectual, ainda pouco conhecido em Portugal. 707
Lígia Amâncio

teórico. Mas a influência do pensamento de Foucault e de Derrida e do


cepticismo pós-moderno face à ciência (Nogueira, 2001a) foi decisiva para
a mudança que ocorreu a partir dos anos 80 e que contribuiu para a con-
fluência nos modos de dizer e pensar dos anos 90. Se é verdade que a
existência de áreas de estudos sobre as mulheres, ou sobre o género e
feministas, como vieram a chamar-se mais recentemente, criou um ambiente
favorável ao debate nos países anglo-saxónicos, também é verdade que a
constante renovação e transformação do pensamento feminista se ficou a
dever sobretudo a uma capacidade de identificar as suas próprias contradi-
ções, a uma insatisfação e a um olhar crítico sobre a produção científica que
não se encontram apenas nos países onde essas instituições existem. No caso
da França, a tradição europeia do método do pensamento crítico foi, sem
dúvida, decisiva. O que ressalta, no entanto, do debate teórico actual é a
relação produtiva que se estabeleceu entre as diferentes tradições.
Um dos sinais da maturidade desta reflexão é a autonomia que ela ma-
nifesta, actualmente, tanto em relação às disciplinas como em relação às
instituições e aos países de origem. O seu discurso teórico, onde se inclui o
género, começa a surgir em obras de autores consagrados e que o ignoraram
durante muito tempo, como é o caso de Bourdieu (1998). O modelo da
dominação masculina, apresentado neste livro, continua, todavia, a ignorar
os contributos anteriores da sociologia feminista, tanto francesa como ame-
ricana, que procurámos destacar neste artigo, tornando-se assim um exemplo
vivo de que é a distintividade do autor que consagra a teoria, e não a
substância da mesma. Mas, por outro lado, a mudança que o feminismo
trouxe na forma de fazer ciência ultrapassou as fronteiras das ciências sociais,
estendendo-se a outras áreas, onde gerou novos olhares sobre os objectos de
estudo, como na medicina, na biologia ou no estudo dos primatas
(Schiebinger, 1999). Como mostram os exemplos analisados por esta autora,
a ruptura com a ideia da neutralidade da ciência em relação ao sexo e o
próprio conceito de género foram importantes para a mudança nos pressu-
postos e nos métodos.
Este movimento de expansão e difusão da reflexão feminista não é acom-
panhado pelo distanciamento em relação à palavra feminista, como uma leitura
superficial desta evolução poderia levar a pensar. Na verdade, é precisamente
o contrário que acontece. Há, pelo menos, duas razões para a generalização de
um qualificativo do discurso teórico que ainda pode parecer deslocado para
alguns. Em primeiro lugar, e sobretudo no caso dos autores mulheres, a
afirmação do termo é um acto de resistência face ao significado pejorativo e
de censura para com todas aquelas que ousavam pensar-se e pensar o mundo
com que o termo nasceu no século XIX e que carrega até hoje. Na ciência,
como noutros domínios até há pouco tempo, essa ousadia era sentida como
708 uma ameaça pelo meio envolvente e acarretava dificuldades de integração e
O género no discurso das ciências sociais

outros riscos para a imagem das mulheres. A outra razão, porém, não tem que
ver com as mulheres em particular. Trata-se de assumir um compromisso
político claro numa profissão que durante muito tempo envolveu as orienta-
ções ideológicas e os preconceitos que orientavam as suas práticas sob um
manto de neutralidade que a crítica feminista não se cansou de denunciar. Esta
postura crítica não deixa de ser um efeito positivo do distanciamento do
movimento das mulheres em relação ao poder e da relativa marginalidade da
reflexão feminista no seio das instituições académicas. O termo serve, portan-
to, para afirmar o projecto de conhecimento emancipatório que deu origem ao
conceito de género, e não quaisquer pertenças totalizantes de quem para ele
contribui...

[...] ce n’est donc pas du sexe de la théoricienne ou du théoricien qu’il


s’agit, mais du genre de la théorie... [Christine Delphy, 1998, p. 25].

BIBLIOGRAFIA

AA.VV. (1986), A Mulher na Sociedade Portuguesa. Visão Histórica e Perspectivas Actuais


(Actas do Colóquio), Instituto de História Económica e Social, Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra.
AA.VV. (1986), «Mulheres em Portugal. Comunicações ao colóquio organizado pelo Ins-
tituto de Ciências Sociais», in Análise Social, vol. XXII, n.os 92-93.
AGACINSKI, S. (1998), Política dos Sexos, Oeiras, Celta, trad. portuguesa, 1999.
ALMEIDA, J. F. de, MACHADO, F. L., CAPUCHA, L., e TORRES, A. C. (1995), Introdução à
Sociologia, Lisboa, Universidade Aberta.
ALMEIDA, M. V. de (1995), Senhores de Si. Uma Interpretação Antropológica da Masculi-
nidade, Lisboa, Fim de Século.
ALMEIDA, M. V. de, AMÂNCIO, L., PEREZ, R., e WALL, K. (1996), «O género nas ciências sociais:
interdisciplinaridade, inovação e crítica», in Dinâmicas Multiculturais, Novas Faces, Novos
Olhares. Actas do III Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, vol. II, Lisboa,
Universidade Lisboa, ICS, col. «Estudos e Investigações», n.º 7, pp. 129-144.
AMÂNCIO, L. (1989), Factores Psicossociológicos da Discriminação da Mulher no Trabalho,
dissertação de tese de doutoramento, ISCTE.
AMÂNCIO, L. (1994), Masculino e Feminino. A Construção Social da Diferença, Porto,
Afrontamento.
AMÂNCIO, L. (1998a), «O feminismo português no final do século XX. Um olhar sobre o
passado ausente e a promessa de futuro», comunicação apresentada no seminário sobre
«O feminismo em Portugal», organizado pela UMAR, Lisboa.
AMÂNCIO, L. (1998b), «Sexismo e racismo — dois exemplos de exclusão do outro», in
Henrique Gomes de Araújo, Paula Mota Santos e Paulo Castro Seixas (coords.), Nós e
os Outros. A Exclusão em Portugal e na Europa, Porto, SPAE.
AMÂNCIO, L. (2001a), «O género na psicologia: uma história de desencontros e rupturas»,
in Psicologia, vol. XV (1), pp. 9-25.
AMÂNCIO, L. (2001b), «Mitos e racionalidades sobre a ‘natureza’ feminina», in M. L. Ribeiro
Ferreira (org.), Pensar no Feminino, Lisboa, Edições Colibri.
ANDRÉ, I. M. (1993), O Falso Neutro em Geografia Humana. Género e Relação Patriarcal
no Emprego e no Trabalho Doméstico, dissertação de tese de doutoramento, Universidade
de Lisboa, Faculdade de Letras. 709
Lígia Amâncio

ARAÚJO, Helena C. (2000), Pioneiras na Educação. As Professoras Primárias na Viragem do


Século 1870-1933, Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, trad. portuguesa da
dissertação de doutoramento The Construction of Primary Teaching as Women’s Work in
Portugal, 1870-1933, Universidade Aberta, 1993.
BADEN, S., e GOETZ, A. M. (1997), «Who needs [sex] when we can have [gender]? Conflicting
discourses on gender at Beijing», in Feminist Review, n.º 56, pp. pp. 3-25.
BARRETO, A. (org.) (1996), A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Universidade de
Lisboa, ICS.
BEAUVOIR, S. de (1968), Le deuxième sexe, Paris, Gallimard (1.ª ed., 1949).
BELEZA, M. T. P. (1988), «‘Mulheres e crime’. O sistema penal e a construção do género»,
in Revista do Ministério Público, n.os 33-34, pp. 29-47.
BELEZA, M. T. P. (1993), Mulheres, Direito e Crime ou a Perplexidade de Cassandra,
dissertação de tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito.
BELEZA, M. T. P. (1997), «Desigualdade e diferença no direito português», in Actas dos 3.os
Cursos de Verão de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, vol. 1, pp. 179-190.
BERNARD, J. (1998), «My four revolutions: an autobiographical history of the ASA», in
K. A. Meyers, C. D. Anderson e B. J. Risman (orgs.), Feminist Foundations. Toward
Transforming Sociology, Califórnia, Sage.
BOCK, G., e JAMES, S. (1992), «Introduction: contextualizing equality and difference», in G.
Bock e S. James (eds.), Beyond Equality and Difference, Londres, Routledge.
BOURDIEU, P. (1998), La domination masculine, Paris, Seuil.
BUTLER, J. (1990), Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, Nova Iorque,
Routledge.
CHAPERON, S. (1997), «Les voies politiques de la parité: débats», in J. Martin (org.), La parité.
Enjeux et mise en oeuvre, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail.
CHAPERON, S. (2000), Les années Beauvoir 1945-1970, Paris, Fayard.
COLLIN, F. (1995), «Diferença e diferendo», in Georges Duby e Michelle Perrot (orgs.),
História das Mulheres, vol. 5, trad. portuguesa, Porto, Afrontamento (1.ª ed., 1991).
COMISSÃO CALOUSTE GULBENKIAN (1996), Para Abrir as Ciências Sociais, relatório da Comis-
são Gulbenkian sobre a Reestruturação das Ciências Sociais, Lisboa, Publicações Euro-
pa-América.
CONNELL, R. W. (1987), Gender & Power, Cambridge, Polity Press.
CONNELL, R. W. (1994), «The state, gender and sexual politics: theory and appraisal», in
H. L. Radtke e H. J. Stam (orgs.), Power/Gender. Social Relations in Theory and Practice,
Londres, Sage.
CONNELL, R. W. (1994), «Gender regimes and the gender order», in The Polity Reader in
Gender Studies, Cambridge, Polity Press.
COVA, A. (1997), Maternité et droits des femmes en France (XIXe, XXe siècles), Paris,
Anthropos.
COVA, A. (1998a), «L’enseignement de l’histoire des femmes dans la Péninsule Ibérique»,
in A.-M. Sohn e F. Thélamon (orgs.), L’Histoire sans les femmes est-elle possible?, Paris,
Perrin.
COVA, A. (1998b), «O conceito de feminismo numa perspectiva histórica», in M. B. Nizza
da Silva e A. Cova (orgs.), Estudos sobre as Mulheres, Universidade Aberta, CEMRI.
DAVIS, K. (1991), «Critical sociology and gender relations», in K. Davis, M. Leijenaar e
J. Oldersma (orgs.), The Gender of Power, Londres, Sage.
DAVIS, K., e GREMMEN, I. (1998), «In search of heroines: some reflections on normativity
in feminist research», in Feminism & Psychology, 8 (2), pp. 133-153.
DELPHY, C. (1991), «Penser le genre: quels problèmes?», in M.-C. Hurtig, M. Kail e H. Rouch
(orgs.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, Paris, Editions du CNRS.
DELPHY, C. (1998), L’Ennemi principal. Économie politique du patriarcat, Paris, Éditions
Syllepse.
DOISE, W. (1993), «Debating social representations», in G. Breakwell e D. C. Canter (eds.),
710 Empirical Approaches to Social Representations, Oxford, Clarendon Press.
O género no discurso das ciências sociais

DUBY, G., e PERROT, M. (1993), «Escrever a história das mulheres», in G. Duby e M. Perrot
(orgs.), História das Mulheres, vol. I, trad. portuguesa, Porto, Afrontamento (1.ª ed., 1990).
FALUDI, S. (1991), Backlash. The Undeclared War against American Women, Nova Iorque,
Crown Publishers.
FARIA, S. (2000), «Sobre o (difícil) trânsito feminino para o espaço do poder político», in J.
M. Leite Viegas e E. Costa Dias (orgs.), Cidadania, Integração, Globalização, Oeiras, Celta.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (1998) (org.), O Que os Filósofos Pensam sobre as Mulheres, Lisboa,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (2001a), «Reflexões sobre o conceito de género», in M. L. Ribeiro
Ferreira (org.), Pensar no Feminino, Lisboa, Edições Colibri.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (2001b) (org.), Também Há Mulheres Filósofas, Lisboa, Caminho.
FERREIRA, V. (1998), «Engendering Portugal: social change, state politics and women’s social
mobilization», in Costa Pinto (ed.), Modern Portugal, California, Palo Alto, The Society
for the Promotion of Science and Scolarship.
FIRESTONE, S. (1970), The Dialectic of Sex. The Case for Feminist Revolution, Nova Iorque,
Bantam Books.
FLAX, J. (1992), «Beyond equality: gender, justice and difference», in G. Bock e S. James
(eds.), Beyond Equality and Difference, Londres, Routledge.
FRAISSE, G. (1995), Muse de la raison. Démocratie et exclusion des femmes, Paris, Gallimard.
FRAISSE, G. (1996), La différence des sexes, Paris, PUF.
FRIEDAN, B. (1963), The feminine mystique, Nova Iorque, W. W. Norton.
FRIEDMANN, J. (1992), Empowerment. Uma Política de Desenvolvimento Alternativo, trad.
portuguesa, Oeiras, Celta, 1996.
GAGO, J. M. (1990), Manifesto para a Ciência em Portugal, Lisboa, Gradiva.
GORJÃO, V. N. (2000), Mulheres em Tempos Sombrios. Oposição Feminina ao Estado Novo
(1945-1974), dissertação de tese de mestrado, Universidade de Lisboa, ICS.
GUILLAUMIN, C. (1981), «Femmes et théories de la société: remarques sur les effects théoriques
de la colère des opprimées», in Sociologie et sociétés, vol. 13, n.º 2, pp. 19-31.
GUILLAUMIN, C. (1992), «Pratique du pouvoir et l’idée de nature», in Sexe, race et pratique
du pouvoir. L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes, reprod. do art. ed. em Quéstions
féministes, n.os 2 e 3, Fevereiro-Maio de 1978.
GUILLAUMIN, C. (1992), «Question de différence», in Sexe, race et pratique du pouvoir.
L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes.
GUILLAUMIN, C.(1992), «Masculin général, masculin banal», in Sexe, race et pratique du
pouvoir. L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes.
HARDING, S. (1986), The Science Question in Feminism, Nova Iorque, Cornell University
Press.
HAWKESWORTH, M. (1989), «Knowers, knowing, known: feminist theory and claims of thruth»,
in Signs. The Journal of Women in Culture and Society, vol. 14, n.º 3, pp. 533-557.
HAWKESWORTH, M. (1997), «Confounding gender», in Signs. The Journal of Women in
Culture and Society, vol. 22, n.º 3, pp. 649-685.
HUFTON, O. (1994), «Mulheres, trabalho e família», in Georges Duby e Michelle Perrot
(orgs.), História das Mulheres, vol. 3, Porto, Afrontamento, trad. portuguesa (1.ª ed.,
1991).
JESUÍNO, J. C. (1995), «Introdução», in J. Correia Jesuíno (coord.), A Comunidade Científica
Portuguesa nos Finais do Século XX, Oeiras, Celta.
JOAQUIM, T. (1997), Menina e Moça. A Construção Social da Feminilidade, Lisboa, Fim de
Século.
KELLER, E. F., e LONGINO, H. E. (1996), «Introduction», in E. Fox Keller e H. E. Longino
(eds.), Feminism & Science, Oxford, Oxford University Press.
LAQUEUR, T. (1992), La fabrique du sexe, Paris, Gallimard, trad. francesa (1.ª ed., 1990).
LEFAUCHEUR, N., e SCHWARTZ, O. (orgs.), La place des femmes: les enjeux de l’identité et de
l’égalité au regard des sciences sociales, Paris, Éditions La Découverte. 711
Lígia Amâncio

MAGALHÃES, M. J. (1998), Movimento Feminista e Educação, Portugal, Décadas de 70 e 80,


Oeiras, Celta.
MARSHALL, B. L. (1994), Engendering Modernity. Feminism, Social Theory and Social Change,
Cambridge, Polity Press.
MATHIEU, N.-C. (1991), «Notes pour une définition sociologique des catégories de sexe», in
L’Anatomie politique, catégorisations et idéologies du sexe, Paris, Côté-Femmes.
MATHIEU, N.-C. (1991), «Identité sexuelle/sexuée/de sexe? Trois modes de conceptualisation
du rapport entre sexe et genre», in L’Anatomie politique, catégorisations et idéologies
du sexe, Paris, Côté-Femmes.
MEAD, M. (1968), Male and Female, Nova Iorque, Laurel (1.ª ed., 1949).
MILL, J. S. (1989), «On the subjection of women», in Stefan Collini (ed.), John Stuart Mill
on Liberty and Other Writings, Cambridge, Cambridge University Press (1.ª ed., 1869).
MILLET, K. (1977), Sexual Politics, Londres, Virago Press (1.ª ed., 1970).
MOI, T. (1994), Simone de Beauvoir, The Making of an Intellectual Woman, Oxford,
Blackwell.
MÓNICA, M. F. (1978), Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa, Editorial
Presença.
MOSCOVICI, S. (1979), Psychologie des minorités actives, Paris, PUF.
MEYERS, K. A., ANDERSON, C. D., e RISMAN, B. J. (1998), «Introduction: bridging the gaps
in feminist sociology», in K. A. Meyers, C. D. Anderson e B. J. Risman (orgs.), Feminist
Foundations. Toward Transforming Sociology, Califórnia, Sage.
MOTTIER, V., SGIER, L., e BALLMER-CAO, T.-H. (2000), «Présentation», in T.-H. Ballmer-Cao,
L. Sgier e V. Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives, Paris, Gallimard.
MOUFFE, C. (2000), «Féminisme, citoyenneté et démocratie plurielle», in T.-H. Ballmer-Cao,
L. Sgier e V. Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives, Paris, Gallimard.
NIZZA DA SILVA, B., e COVA, A. (1998) (orgs.), Estudos sobre as Mulheres, Universidade
Aberta, CEMRI.
NOGUEIRA, M. da C. (2001a), Um Novo Olhar sobre as Relações Sociais de Género. Perspectiva
Feminista Crítica na Psicologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
NOGUEIRA, M. da C. (2001b), «Construcionismo social, discurso e género», in Psicologia,
vol. XV (1), pp. 43-65.
NOGUEIRA, M. da C., e SILVA, I. (2001), Cidadania. Construção de Novas Práticas em Contexto
Educativo, Lisboa, Edições Asa.
OAKLEY, A. (1972), Sex, Gender and Society, Londres, Temple Smith.
OAKLEY, A. (1997), «A brief history of gender», in A. Oakley e J. Mitchell (orgs.), Who’s
Afraid of Feminism? Seeing through the Backlash, Londres, Hamish Hamilton.
OFFEN, K. (1988), «Defining feminism: a comparative historical approach», in Signs: Journal
of Women in Culture and Society, vol. 14, n.º 1, pp. 121-157.
OLDERSMA, J., e DAVIS, K. (1991), «Introduction», in K. Davis, M. Leijenaar e J. Oldersma
(orgs.), The Gender of Power, Londres, Sage.
PARSONS, T. (1956), «Family structure and the socialization of the child», in T. Parsons e R.
Bales (orgs.), Family, Socialization and the Interaction Process, Londres, Routledge.
PAIS, E. M. H. D. (1998), Homicídio Conjugal em Portugal. Rupturas Violentas da
Conjugalidade, Lisboa, Hugin.
PINA CABRAL, J. (1993), «A lei e a paternidade: as leis de filiação portuguesas vistas à luz
da antropologia social», in Análise Social, vol. XXVIII (123-124), 4-5, pp. 975-997.
PHILLIPS, A. (2000), «Espaces publics, vies privées», in T.-H. Ballmer-Cao, L. Sgier e V.
Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives, Paris, Gallimard.
PIMENTEL, I. F. (2000), História das Organizações Femininas no Estado Novo, Lisboa, Círculo
de Leitores.
Platform for Action and the Beijing Declaration, U. N., Department of Public Information,
712 1996, trad. portuguesa, CIDM, Presidência do Conselho de Ministros, 1997.
O género no discurso das ciências sociais

ROSALDO, M. Z. (1987), «Moral/analytic dilemmas posed by the intersection of feminism and


social sciences», in P. Rabinow e W. M. Sullivan (orgs.), Interpretive Social Sciences,
Berkeley, University of California Press.
ROSSI, A. (1998), «Equality between the sexes: an immodest proposal», in K. A. Meyers,
C. D. Anderson e B. J. Risman (orgs.), Feminist Foundations. Toward Transforming
Sociology, Califórnia, Sage, reed. do art. publicado em Daedalus, vol. 93, p. 2, 1964.
SANTOS, B. S. (1988), Um Discurso sobre as Ciências, Porto, Afrontamento.
SANTOS, B. S. (1991), «Ciência», in M. M. Carrilho (org.), Dicionário do Pensamento
Contemporâneo, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
SANTOS, B. S. (1998), Reinventar a Democracia, Lisboa, Gradiva.
SANTOS, B. S. (2000), Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência,
Porto, Edições Afrontamento.
SAINSBURY, D. (2000), «Les droits sociaux des femmes et des hommes», in T.-H. Ballmer-
-Cao, L. Sgier e Veronique Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives,
Paris, Gallimard.
SCHIEBINGER, L. (1999), Has Feminism Changed Science?, Cambridge, Mass., Harvard
University Press.
SCOTT, J. W. (1988a), «Gender: a useful category of historical analysis», in Gender and the
Politics of History, Nova Iorque, Columbia University Press.
SCOTT, J. W. (1988b), «Women’s history», in Gender and the Politics of History, Nova
Iorque, Columbia University Press.
SCOTT, J. W. (1988c), «Introduction», in Gender and the Politics of History, Nova Iorque,
Columbia University Press.
SCOTT, J. W. (1998), La citoyenne paradoxale. Les féministes françaises et les droits de
l’homme, Paris, Albin Michel, trad. francesa (1.ª ed., 1996).
SCOTT, J. W. (1999a), «Preface to the revised edition», in Gender and the Politics of History,
Nova Iorque, Columbia University Press.
SCOTT, J. W. (1999b), «Some more reflections on gender and politics», in Gender and the
Politics of History, Nova Iorque, Columbia University Press.
SEDAS NUNES (1968), «A população universitária portuguesa: uma análise preliminar», in
Análise Social, vol. VI, n.os 22-24, pp. 386-474.
STAUDT, K. (1991), Managing Development and International Contexts, Califórnia, Sage.
STEWART, A. J., SETTLES, I. H., e WINTER, N. J. G. (1998), «Women and the social movements
in the 60s: activists, engaged observers and nonparticipants», in Political Psychology, vol.
19, n.º I, pp. 63-93.
TAVARES, M. (2000), Movimentos de Mulheres em Portugal. Décadas de 70 e 80, Lisboa,
Livros Horizonte.
TOCQUEVILLE, de (1986), De la démocratie en Amérique, II, Paris, Folio/Histoire (1.ª ed., 1840).
TOMASEVSKI, K. (1998), «Rights of women: from prohibition to elimination of discrimina-
tion», in International Social Science Journal, n.º 158, pp. 545-558.
TORRES, A. C. (1996), Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos, Oeiras, Celta.
TORRES, A. C. (2000), Trajectórias, Dinâmicas e Formas de Conjugalidade. Assimetrias
Sociais e de Género no Casamento, dissertação da tese de doutoramento, ISCTE.
TOURAINE, A. (1997), Pourrons-nous nivre ensemble? Égaux et différents, Paris, Fayard.
TOURAINE, A., e KHOSROKHAVAR, F. (2000), La recherche de soi, Paris, Fayard.
UNGER, R. K. (1979), «Toward a redefinition of sex and gender», in American Psychologist,
34, pp. 1085-1094.
VALA, J. (1986), «Sobre as representações sociais — para uma epistemologia do senso
comum», in Cadernos de Ciências Sociais, 4, pp. 5-30.
VICENTE (1998), As Mulheres em Portugal na Transição do Milénio. Valores — Vivências —
Poderes nas Relações Sociais entre os Dois Sexos, Lisboa, Multinova.
VIEGAS, J. M., e FARIA, S. (1999), As Mulheres na Política, Lisboa, Imprensa Nacional. 713
Lígia Amâncio

VOET, R. (1998), Feminism and Citizenship, Londres, Sage.


WALBY, S. (2000), «La citoyenneté est-elle sexuée?», in T.-H. Ballmer-Cao, L. Sgier e V.
Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives, Paris, Gallimard.
WAYLEN, G. (2000), «Le genre, le féminisme et l’État: un survol», in T.-H. Ballmer-Cao, L.
Sgier e V. Mottier (orgs.), Genre et politique. Débats et perspectives, Paris, Gallimard.
Weedon, C. (1999), Feminism, Theory and the Politics of Difference, Oxford, Blackwell.
WOLLSTONECRAFT, M. (1975), A Vindication of the Rights of Women, Londres, Pelican Books
(1.ª ed., 1792).
YUVAL-DAVIS, N. (1997), Gender & Nation, Londres, Sage.
ZIMAN, J. (1998), «Human brickwork in the social science bridge», in The Social Science
Bridge, Ministério da Ciência e da Tecnologia, OCT.
ZUCKERMAN, H., COLE, J. R., e BRUER, J. T. (eds.) (1991), The Outer Circle. Women in the
Scientific community, N. I., W. W. Norton & Company.

714
A-PDF Merger DEMO : Purchase from www.A-PD
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Etnográfica
Press
Senhores de Si | Miguel Vale de Almeida

IV. O género do
género
Para uma teoria da masculinidade
p. 127-155

Texte intégral

Sexo, género, e feminismo


1 O campo de estudos do género constitui cada vez mais um
«género», no sentido literário do termo, dentro da
antropologia. Como tal, é uma área dificilmente abordável
através de paradigmas fixos, e tendencialmente inter-
disciplinar. Carole Vance (1991) diz que a teoria do
construcionismo social desafiou os modelos antropológicos
tradicionais, tendo dado origem a uma explosão de
pesquisas sobre sexualidade desde 1975. Presentemente, o
aparecimento da Sida levou à procura do conhecimento
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 1/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

sobre os processos sócio-culturais da sexualidade e do


género. Por isso é fundamental definir linhas teóricas que,
no caso presente, permitam abordar a masculinidade fora de
paradigmas essencialistas.
2 Quando parti para o trabalho de campo levava comigo uma
questão para a qual procurava resposta, e que tinha tanto
que ver com o conhecimento antropológico quanto com a
minha própria identidade: que significa «ser homem» do
ponto de vista social?
3 A pergunta é tão complexa quanto aparentemente ingénua.
Para a larguíssima maioria das pessoas, para o nível a que
nas Ciências Sociais chamamos senso comum, ser homem é
fundamentalmente duas coisas: não ser mulher, e ter um
corpo que apresenta órgãos genitais masculinos. A
complexidade encontra-se precisamente na ingenuidade —
agora sim —, de remeter para caracteres físicos do corpo
uma questão de identidade pessoal e social. Isto porque «ser
homem», no dia a dia, na interacção social, nas construções
ideológicas, nunca se reduz aos caracteres sexuais, mas sim a
um conjunto de atributos morais de comportamento,
socialmente sancionados e constantemente reavaliados,
negociados, relembrados. Em suma, em constante processo
de construção.
4 A distinção entre sexo e género é o ponto de partida
fundamental para investigar a masculinidade. Baseada na
distinção que a antropologia sempre promoveu entre
biologia e cultura, e elaborada a partir dos anos sessenta pela
teoria crítica feminista, a separação conceptual entre sexo e
género dá a entender que o segundo é a elaboração cultural
do primeiro. A variação cultural dos papéis femininos e
masculinos, bem como dos traços de personalidade-tipo
tidos como normais para cada sexo em cada cultura — tal
como apresentada por Margaret Mead em Sex and
Temperament —, trazia o determinismo cultural para o
campo da sexualidade. Em 1981, já amadurecido o
movimento feminista em Antropologia e genericamente
aceite o campo dos estudos de género, Ortner e Whitehead,
em Sexual Meanings, abrem aquela obra colectiva dizendo
que:

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 2/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

«…natural features of gender, and natural processes of sex


and reproduction, furnish only a suggestive and ambiguous
backdrop to the cultural organization of gender and
sexuality. What gender is, what men and women are, what
sorts of relations do or should obtain between them — all of
these notions do not simply reflect or elaborate upon
biological «givens», but are largely products of social and
cultural processes». (1981:1)1

5 Neste sentido, tentar responder à pergunta inicial significa


desde logo analisar os requisitos culturais que em Pardais
são necessários para que um indivíduo do sexo masculino
seja considerado um homem. Esses requisitos não se
localizam ao nível estrito do corpo, ainda que as
interpretações deste sejam fortemente mobilizadas para o
discurso do género. Eles espalham-se por todos os níveis do
social, desde a família ao trabalho, do prestígio ao status, da
classe social à idade, passando pela linguagem verbal e
gestual, enfim, a lista seria tão vasta quanto a totalidade do
social. Daí que eu não escolha um locus privilegiado para a
construção da masculinidade (se bem que os meus dados se
concentrem na sociabilidade quotidiana), pelo que este
estudo é de difícil inserção numa das prateleiras temáticas
clássicas da disciplina. Marilyn Strathern, ao explicitar em
The Gender of The Gift (1988) a sua noção de género, ajuda-
me a tornar este ponto mais claro:
«By gender I mean those categorizations of persons,
artifacts, events, sequences, and so on which draw upon
sexual imagery — upon the ways in which the distinctiveness
of male and female characteristics make concrete people’s
ideas about the nature of social relationships.» (1988: ix)2

6 Faço igualmente minhas as palavras de David Gilmore


(1990), quando diz que a explosão de trabalhos feministas
sobre sexo e género na última década deixou intocados os
cultos e códigos da masculinidade. Embora eu tenha uma
opinião algo diferente, nomeadamente a de que é nalguma
literatura feminista que se encontram as bases teóricas para
interpretar a masculinidade. Mas o androcentrismo de que a
antropologia foi acusada pelo feminismo, não só impediu
que se ouvisse a voz das mulheres; impediu também que se
ouvisse a diversidade das vozes masculinas, a sua visão por
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 3/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

vezes dissidente da homologia masculino/ público/ político


— em suma, da masculinidade hegemónica. Ao tornar o
masculino em equivalente implícito do social retirou-se
autonomia e possibilidade de desconstrução crítica. O
processo é análogo à inquestionabilidade da
heterossexualidade na vida do dia a dia, mesmo por parte
dos espíritos liberais que tentam trazer à discussão pública,
sob luz positiva, a «questão» da homossexualidade.
7 Ser homem em Pardais não é o mesmo que sê-lo entre os
letrados lisboetas em cujo meio circulo. Ser homem não é o
mesmo para quem segue a norma social da
heterossexualidade ou para quem assume a bi- ou
homossexualidade. O mesmo se poderia dizer se se
comparassem, em vez de opções de orientação sexual,
classes sociais, níveis de instrução, afiliações étnicas ou
religiosas ou quaisquer outros níveis de identidade social
que se cruzem com o género.
8 Talvez por isto seja difícil estudar a masculinidade com um
paradigma exclusivo. Em última instância todas as
perspectivas contribuem num ou noutro aspecto. A questão
está em que o género é uma área de estudos e do real que
introduz significativa novidade epistemológica. Ao contrário
da classe ou das instituições sociais como a família, o género
cruza-as, por assim dizer, transversalmente. Não só é um
corte nas metáforas verticais de estrutura, hierarquia ou
níveis, como constitui também um tema de recente e difícil
introdução nas ciências sociais, porque de difícil introdução
na própria vida social. Isto torna-se evidente quando se
pensa que em relação à raça quase ninguém pensa hoje que é
na cor da pele que reside em última instância a causalidade
das desigualdades nas relações raciais; mas no respeitante
ao género, é culturalmente difícil não cair na tentação de ver
no sexo e no corpo a raiz do género3. Por isso o género é a
«última fronteira» da reflexividade crítica das ciências
sociais. Constituinte de identidades pessoais e sociais, o
género não cria, porém, grupos sociais, mas sim categorias.
9 Sem o surto dos estudos de mulheres (women’s studies) e,
em especial, da teoria feminista em antropologia e da teoria
crítica levada a cabo pelo movimento gay, nunca se teria
posto sequer a questão de abordar a masculinidade. Nos
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 4/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

últimos quinze a vinte anos tem surgido uma série de


trabalhos antropológicos que focam especificamente as
mulheres como actores sociais, partindo da verificação de
que a disciplina era profundamente androcêntrica. A posição
é eminentemente política, já que o androcentrismo da
antropologia não é mais do que o reflexo do androcentrismo
de todas as estruturas, incluindo portanto as do saber, da
sociedade que a produz.
10 Germinado nos países desenvolvidos, sobretudo no mundo
anglo-saxónico, o feminismo — tanto o social como o
académico —, é um fenómeno de sociedades da
modernidade, e como tal devendo ser visto por nós,
antropólogos «daqui». Mas o seu alcance teórico e
epistemológico não pode só por isso ser menosprezado:
também Marx, Weber e Durkheim foram produtos e agentes
dos picos de desenvolvimento das épocas em que surgiram,
nas suas sociedades, e nem por isso os desprezamos no
esforço de compreensão da nossa sociedade.
11 O livro colectivo editado por Rayna Reiter em 1975 e
intitulado Toward an Anthropology of Women foi, por
assim dizer, a obra fundadora do feminismo enquanto teoria
crítica na antropologia. Como seria de esperar, incluía
também artigos próximos da área biológica e física da
disciplina, já que era necessário rebater teorias da evolução
de vários matizes que afirmavam que os papéis sexuais se
relacionavam directamente com a anatomia e teriam sido
estabelecidos definitivamente há milhares de anos.
12 Mas o artigo da colectânea que maior influência viria a ter na
vaga feminista seria o de Gayle Rubin «The Traffic in
Women: notes on the political economy of sex», que se
propunha perceber o sistema de relações de opressão da
mulher, sobrepondo as grelhas de Freud e Lévi-Strauss, de
maneira análoga à que Marx fizera com os economistas
políticos clássicos. Procurando localizar a opressão da
mulher no seio da dinâmica capitalista, ela aponta para a
relação entre o trabalho doméstico e a reprodução da força
de trabalho. Concordando com Marx neste aspecto, Rubin
afirma porém que explicar a utilidade da mulher para o
capitalismo é diferente de dizer que esta utilidade explica a
génese da opressão da mulher (1975:163). Ou seja, há um
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 5/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

elemento histórico e moral, como o próprio Marx dissera, na


determinação do valor da força de trabalho que é diferente
do caso das outras mercadorias (1972:171, cit in Rubin
1975:164). Para Rubin é preciso, pois, abordar este elemento
histórico e moral que faz de uma mulher enquanto esposa
uma das necessidades do trabalhador. Baseando-se então no
facto de Engels ter distinguido relações de produção de
relações de sexualidade (Engels 1972 [1884]:71-2, cit Rubin
1975:164), ela passa a explicar o que entende por «sistema
de sexo/género» (reconhecendo que outros nomes possíveis
seriam «modo de reprodução» ou «patriarcado»):
«A sex/gender system is not simply the reproductive
moment of a ‘mode of production’. The formation of gender
identity is an example of production in the realm of the
sexual system. And a sex/gender system involves more than
the ‘relations of procreation’, reproduction in the biological
sense». (1975:167)4

13 É então que Rubin procura na área do parentesco o locus


para a reprodução do sistema de sexo/género, dizendo que
os sistemas de parentesco podem ser muitas coisas, mas
aquilo de que são feitos e aquilo que de facto reproduzem
são, antes do mais, formas concretas de sexualidade
organizada (1975:169): «kinship systems are observable and
empirical forms of sex/gender systems» (1975:169)5. Daí que
ela explore a questão da troca de mulheres, reconhecendo
que não se trata de mercadorização — dado que entre os
primitivos os objectos têm hau —, mas implicando de
qualquer modo uma distinção entre quem dá e quem recebe,
fazendo dos homens os beneficiários do produto das trocas
— a organização social (1975:174).
14 Para a autora existe uma «economia» do sexo e do género. A
divisão do trabalho pelos sexos seria um tabú contra a
semelhança de homens e mulheres, afirma ela na esteira de
Lévi-Strauss. Este tabu, exacerbando as diferenças
biológicas entre os sexos, cria o género. Este tabu é-o
também em relação a tudo o que não seja o emparelhamento
de homem e mulher:
«At the most general level, the social organization of sex
rests upon gender, obligatory heterosexuality, and the

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 6/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

constraint of female sexuality». (1975:179)6

15 Os indivíduos serão, então, «engendrados» (note-se o duplo


sentido de «construídos com uma identidade» e «feitos com
um género») para garantir o casamento. A
heterossexualidade pode ser vista como um processo
instituído, e o tabu do incesto pressupõe um tabu anterior
contra a homossexualidade. Mas Rubin não se satisfaz com a
antropologia, pois esta não explica como as crianças são
marcadas — isto nas descrições correntes dos sistemas do
parentesco —, com as convenções do sexo e do género. Daí
ela socorrer-se da psicanálise, que entende como uma teoria
acerca da reprodução do parentesco. Descreve, assim, a
teoria freudiana da bissexualidade pré-Edipiana e abraça
Lacan por salvar Freud da biologia e promover a sua teoria a
uma teoria da linguagem e dos significados culturais: nas
ilhas Trobriand, por exemplo, um homem…
«…calls the women of clans into which he can marry by a
term indicating their marriageability. When the young
Trobriand male learns these terms he learns which women
he can safely desire» (1975:189)7

16 Na interpretação que Rubin faz de Lacan, a crise edipiana


ocorre quando a criança aprende as regras sexuais que estão
embutidas nos termos para familiares e parentes. A sua
libido e identidade de género ficam assim organizadas de
acordo com as regras culturais. Pegando em E.P.Thompson
(1963), a propósito da transformação da estrutura da
personalidade da classe operária inglesa na revolução
industrial, Rubin traça o paralelo dizendo que, tal como as
formas sociais de trabalho exigem certos tipos de
personalidade, assim as formas sociais de sexo e género
exigem certos tipos de pessoas (1975:189).
17 Nesta sua sobreposição de Freud e Lévi-Strauss, via Lacan, a
autora encontra uma articulação harmoniosa:
«Os sistemas de parentesco requerem uma divisão dos
sexos. A fase edipiana divide os sexos. Os sistemas de
parentesco incluem conjuntos de regras que governam a
sexualidade. A crise edipiana é a assimilação dessas regras e
tabus. A heterossexualidade obrigatória é o produto do
parentesco. A fase edipiana constitui o desejo heterossexual.

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 7/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

O parentesco assenta numa diferença radical entre os


direitos de homens e mulheres. O complexo de Édipo
confere direitos masculinos ao rapaz e força a rapariga a
acomodar-se a menos direitos». (1975:198, tradução livre)

18 Rubin prossegue dizendo que o próximo passo seria a


análise marxista dos sistemas de sexo/género, uma vez que
estes são produtos da actividade humana na história. Para
ela, alguém terá de escrever um dia uma nova versão de
Origem da Família, da Propriedade e do Estado,
reconhecendo a mútua interdependência da sexualidade, da
economia e da política. Este projecto feminista, que busca na
psicanálise, no estruturalismo e no marxismo os seus
fundamentos e ferramentas, simboliza bem o estado das
coisas nos anos setenta e a pujança de inovação
epistemológica dada pelo feminismo à antropologia.
19 Apenas cinco anos antes, ou seja, praticamente em
simultâneo, o etnólogo português Jorge Dias assinava um
texto intitulado «O intersexo visto pelo etnólogo». Ao longo
do curto texto, refere-se aos casos clássicos de travestismo
ritual, berdaches, etc, e navega nas águas da teoria de Mead
em Sex and Temperament. O último parágrafo reza assim:
«Na sociedade Ocidental vincadamente patriarcal, as
actividades e comportamentos próprios do homem e da
mulher estavam bem definidos. Hoje vemos, contudo, as
mulheres usarem calças, conduzirem táxis, fumarem,
beberem whisky, usarem cabelos curtos, e vemos os homens
de fartas cabeleiras e, sobretudo na América, dedicarem-se
aos trabalhos domésticos, por vezes usando até avental de
plástico, sem que isto tenha qualquer coisa de travesti. Por
sua vez, a moda francesa vai lançar este ano a moda do
«unisex», que tanto serve para o homem como para a
mulher.» (1970:11-12)

20 Poderia ter escolhido outro exemplo, mais declaradamente


reactivo às mudanças ocorridas na segunda metade do nosso
século. Mas é precisamente o carácter não-reaccionário
desta citação que é curioso, pois, apesar do esforço de
compreensão e mesmo alguma empatia do etnólogo, revela o
estado arcaico da sociedade portuguesa da época, por
comparação com as sociedades modernas que produziam
um discurso como o de Rubin. O espanto do autor perante as
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 8/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

curiosidades exóticas a que se refere, identificando bem os


campos do trabalho e do uso do corpo como terrenos do
controlo sexual, é em si sinal da dificuldade cultural em
aceitar mudanças no género. Mudanças importantes
aconteciam nos anos setenta não só na teoria antropológica,
bem como nas sociedades onde era produzida.
21 Na sequência da «revolução cultural» dos anos sessenta e
das mudanças na estrutura e relações económicas e sociais
globais do pós-guerra (e também ao nível das
transformações na intimidade e da reprodução nesta fase
tardia da modernidade, como aponta Giddens (1992)), surge
em pleno o feminismo como movimento social. O pós-guerra
é também o período dos processos de descolonização e
emancipação de inúmeras nações do terceiro-mundo. A
antropologia descobre-se em crise profunda perante dois
tópicos que a fundamentavam: o Outro exótico, perante o
qual se vê julgada como cúmplice de uma relação de poder
desigual; e a família e o parentesco, cujas estruturas têm de
ser repensadas à luz da negação do essencialismo das
identidades sexuais.
22 A teoria crítica feminista dá entrada na antropologia através
da crítica da ausência das mulheres na etnografia. Mas a
questão é alargada ao tema do Poder: os informantes são
homens porque mais próximos do poder; ora, os anos
sessenta questionam o poder pondo em causa as noções
estabelecidas de indivíduo e sociedade, através do concurso
da psicanálise e do marxismo, redescobertos como
interpretações do mundo e instrumentos analíticos e não só
como projectos terapêutico e de mudança social. Ambas as
áreas do pensamento concorrem para a ideia de que não há
natureza biológica determinante e que tanto sociedades
como indivíduos existem numa história de desigualdades e
contradições. A desigualdade de poder chega aos indivíduos,
em última instância nos seus próprios corpos e no uso
destes, dos prazeres e capacidades reprodutivas. O
feminismo lança a frase «o privado é político». Já Orwell o
sugerira na sua utopia negativa Nineteen Eighty-Four:
«In the old days, he thought, a man looked at a girl’s body
and saw that it was desirable, and that was the end of the
story. But you could not have pure love or pure lust
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 9/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

nowadays. No emotion was pure, because everything was


mixed up with fear and hatred. Their embrace had been a
battle, the climax a victory. It was a blow struck against the
Party. It was a political act». (1959 (1949): 130)8

23 A partir desta época a antropologia registou uma explosão de


obras escritas por e sobre mulheres e uma reavaliação das
áreas do parentesco e família, pessoa e emoções, sexo e
género. O peso da questão feminina sobre estas mudanças é
absolutamente compreensível em termos sociais e políticos.
Por isso ficaram relegadas para segundo plano as áreas quer
da masculinidade quer da homossexualidade. Melhor
dizendo: a maior parte dos estudos feministas partilha o
pressuposto da heterossexualidade natural, e nisto Rubin é
uma excepção notável. E se se atacava o patriarcado, se se
procurava encontrar a sua origem e mecanismos de
reprodução, sobretudo explicitando os mecanismos de
opressão da mulher, esqueceu-se a análise específica da
masculinidade.
24 Reencontramo-nos, aqui, com Ortner e Whitehead (1981). A
colectânea Sexual Meanings foi talvez o livro mais influente
de uma segunda vaga de feminismo, já mais integrado na
prática académica antropológica. Para as organizadoras,
género, sexualidade e repressão devem ser tratados como
símbolos, investidos com significado (ou «sentido», já que a
tradução de meaning é ambivalente) pela sociedade em
análise. O seu projecto é a análise e interpretação destes,
relacionando-os com outros símbolos e significados
culturais, por um lado, e, por outro, com formas de vida
social. Os ensaios do livro são, como seria de esperar, mais
focados nos aspectos culturais, mas não excluem os
contextos social, político e económico das construções
simbólicas em causa, ainda que as autoras afirmem
taxativamente que tanto o marxismo como o
durkheimianismo tradicionais têm uma concepção
inadequada de cultura. A abordagem que propõem é
assumidamente centrada nos actores sociais e na sua
mediação, numa perspectiva que tem as suas raízes em
Weber e desemboca em Geertz (1973).
25 Na maior parte dos casos etnográficos apresentados
verificam-se oposições binárias metafóricas, como sejam
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 10/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Natureza/ Cultura ou auto-interesse/ bem social. Em quase


todos se verifica que 1) os homens surgem definidos por
categorias de status ou papel social, 2) ao passo que as
mulheres são definidas por e em relação aos homens/
parentes; 3) os mesmos eixos que cortam as mulheres dos
homens, atravessam as categorias de género no seu interior
e, 4) em todos se dá a separação conceptual entre um
«mundo dos homens» e um «mundo das relações
heterossexuais».
26 O parentesco e o casamento são considerados meios
privilegiados para a produção e reprodução da ideologia de
género. E é a esfera das relações de prestígio que medeia
entre a organização do parentesco e do casamento, por um
lado, e a ideologia do género, por outro, em qualquer
sociedade. Daí que Ortner e Whitehead infiram que o que é
universal nas ideologias do género é porque também é
universal nos sistemas de prestígio.
27 Aqui as autoras referem Rubin (1975). O parentesco e o
casamento, a distribuição dos meios de violência, as relações
de produção, todas três estruturam o prestígio; as estruturas
de prestígio são como um ecrã entre as várias estruturas
materiais, familiares e políticas que impingem nas
concepções culturais de masculinidade. As estruturas de
prestígio (do tipo «honra social», «valor social») não têm
sido objecto de análise dos autores, embora os actores
sociais tenham delas consciência. As excepções apontadas
seriam Dumont (1970), Goldman (1971), Bloch (1977), bem
como Weber (1958) e Giddens (1971) ao escrever sobre
Weber e status. Assim, quando se estuda o folclore do
género, como no artigo de Brandes (1981) na colectânea, o
que se encontra escondido por detrás não é um mundo
erótico mas sim psiques com uma enorme ansiedade em
relação ao status.
28 Marilyn Strathern, no artigo de 1981 incluído na colectânea,
afirma que a antropologia sobre as relações homem-mulher
tem sempre separado dois aspectos: primeiro, os
estereótipos, isto é, as representações simbólicas dos sexos;
segundo, como as mulheres se adaptam à sua posição, como
manobram, como adquirem poder informal. Strathern
adverte-nos para o perigo de colocar as mulheres como
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 11/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

actores centrais do sistema e para termos cuidado com os


conceitos de pessoa, para tal recorrendo à distinção que
Dumont (1970, 1982, 1983) faz entre pessoa e indivíduo.
29 No seu caso da Nova Guiné, Strathern diz que o antagonismo
entre homens e mulheres é de valor metafórico. Através da
imagética de diferenças de base sexual ordena-se um vasto
leque de valores; o que está em causa como elemento central
é a dicotomia entre auto-interesse e acção de grupo, sendo os
próprios tipos de comportamento sexuados. O género não é
só sobre homens e mulheres. É por isso que as mulheres se
podem dissociar do «handicap» de serem fêmeas, tal como
os homens têm de provar que podem utilizar o potencial de
serem machos. Uma pessoa de qualquer sexo pode
comportar-se de forma masculina ou feminina. Também
Andrew Strathern se refere às dicotomias de desigualdade na
Nova Guiné:
«To say that access to land is guaranteed essentially by the
kinship system is not to deny that there can be marked
inequality of practical access to the means which are
necessary to achieve status. This inequality shows in two
categories of relationships: first between men and women,
and second between men recognised as big-men and those
classified as ‘rubbish’» (Strathern, A., 1982:138)

30 Aqui impõe-se ouvir outro autor que se debruçou sobre a


Nova Guiné, e que tenta ultrapassar o colete de forças do
marxismo ortodoxo: Maurice Godelier (1982). Pode-se
verificar que o projecto que se reivindica weberiano na
colectânea de Ortner e Whitehead não é incompatível com
este de raiz marxista. Godelier diz que quando os Baruya
afirmam que os homens desempenham o papel principal na
fabricação de uma criança, trata-se de uma realidade que
existe, antes do mais, no pensamento, só que sendo tão real
socialmente como os outros elementos da dominação
masculina (controlo dos meios de produção, de violência
etc.). A sua especificidade é consistir num conjunto de
gestos, ritos e práticas simbólicas. Estas últimas são formas
de fazer passar as ideias do mundo do pensamento para o
mundo do corpo, da natureza e, ao mesmo tempo, de
transformá-los em relações sociais. É esta crença na eficácia
concreta das práticas simbólicas o que faz com que, para os
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 12/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Baruya, mostrar simbolicamente seja demonstrar, já que é


actuar e produzir resultados que quotidianamente são
verificáveis nos múltiplos signos visíveis da superioridade
dos homens sobre as mulheres (Godelier 1982).
31 Neste sentido, o pensamento não reflecte, mas antes dá
sentido a situações que nascem de causas e forças cuja causa
não é somente a consciência ou o inconsciente9. Para
Godelier, é preciso analisar as ideias que uma sociedade cria
acerca do corpo e os discursos que sustenta não somente
acerca do corpo do homem e da mulher, mas também, com a
ajuda dos seus corpos, um discurso sobre a sexualidade e um
discurso da sexualidade. É assim que a linguagem do corpo
cria um consentimento vivido e cumpre uma das funções do
pensamento que não é só explicar mas também convencer.
32 Pergunta-se o autor se não existe na submissão da
sexualidade à ordem social um elemento comum, o tabu do
incesto, como amputação do desejo e sua orientação para as
pessoas adequadas. Já mesmo no fim do livro, ele pergunta-
se ainda se não é preciso amputar a polivalência dos desejos
infantis. Parece-me que é justamente isso.
«Em qualquer cultura são as diferenças que traz para cada
sexo a sexualidade… que se tornam nos termos, no léxico do
discurso que a sexualidade é constantemente solicitada para
ter sobre o social e o cósmico. (…) Tudo seria simples se o
pensamento se limitasse a reflectir, a representar a
sociedade, mas todas as dificuldades da análise científica da
parte ideal do real vêm do facto de o pensamento não
somente representar a sociedade, mas ser ele próprio
produtor de sociedade». (1982:352, tradução livre).

33 Pat Caplan (1987) afirma que a antropologia sempre teve de


lidar com a sexualidade. Nos anos vinte a antropologia teve
de lidar com a psicanálise e Malinowski desafiou a teoria
edipiana em Sex and Reppression (1927). Mas não desafiou
de todo o casamento; mais tarde, Mead «provaria» que o
género é socialmente construído. Mas a sexualidade em si foi
pouco focada, passando antes pelas áreas dos rituais de
iniciação do corpo e das metáforas da honra e da vergonha.
Se em 1975 Rubin dissera que sexo e género estavam ligados,
já em 1985 repudiava esta ideia: «Acho essencial separar
sexualidade e género analiticamente» (1984:308). Ortner e
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 13/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Whitehead concordam: «O poder das considerações sociais


sobrepõe-se às libidinais» (1981:24). Caplan pergunta-se
sobretudo se podemos encarar uma disciplina da
sexualidade que combine o feminismo, a antropologia e a
história. Ross e Rapp (1984) haviam distinguido três áreas
nestes campos: a do parentesco e família tal como
representada por Goody, Macfarlane, Flandrin, Stone e
outros e que elas consideram como «cega em relação ao
género»; os estudos de comunidades, sobretudo sobre
grupos de amigos ou peer-groups, e as análises de «sistemas
mundiais»: religião ou lei, de que se destaca Foucault.
34 Voltamos então à relação entre sexualidade e género. Aqui
um tema que surge de novo é o da identidade, já que a
sexualidade pode ser vista como parte integrante daquela.
Os gays no Ocidente ou os xanith de Omão, descoincidem
desarmoniosamente nos três aspectos de sexo, género e
sexualidade10. Neste sentido, o Mediterrâneo, a Ásia e o
Médio Oriente são como que uma área intersticial entre duas
outras (África e Ocidente) em atitudes sexuais. A fertilidade
é valorizada mas só com parceiros de status certo. O rank é
mais importante do que o sexo biológico ou a identidade de
género. Para Lancaster (1988), em termos witgensteinianos,
o machismo, por exemplo, é um «jogo diferente», governado
por regras diferentes; ou, em termos marxistas, representa
uma diferente economia sexual; ou, em termos
foucaultianos, a sexualidade latina representa uma prática
discursiva diferente da anglo-saxónica. Distingue assim a
sexualidade burguesa ou Anglo-Norte Americana da
sexualidade camponesa ou circum-mediterrânica e Latino
Americana.
35 Uma contribuição que, na minha opinião, constituiu uma
viragem é a de Yanagisako (1988). A separação dos factos
biológicos do sexo dos factos culturais do género, segundo
ela, abriu caminho para o tipo de projecto delineado por
Ortner e Whitehead. A interpretação do género como um
sistema de símbolos e significados influenciadores e
influenciados de e por práticas e experiências culturais. Por
todo o lado, o género é visto como a elaboração de uma
diferença biológica e levou às dicotomias público/ doméstico
(Rosaldo 1974), natureza/ cultura (Ortner 1974),
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 14/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

produção/reprodução (Harris e Young 1981). Para estes


autores, a cópula heterossexual, para eles natural, cria
parentesco e género junto com bébés. Mas Yanagisako diz
que quando analisamos a raça já não achamos que a
diferença física tenha de facto importância. A autora diz que
isto lhe sugere três questões: 1º) Como é que as pessoas são
constituídas como sujeitos com género em sistemas culturais
específicos?; 2º) Como é que as categorias de género são
definidas? (não podemos crer que resultem em toda a parte
da mesma diferença); 3º) Quando o sexo é a base do género
devemo-nos perguntar como é que este sistema auto-
referencial é construído (Yanagisako 1988: 4).
36 Para ela, temos de explicar e não pressupor, as práticas
através das quais um sistema de diferenças entre pessoas é
feito de modo a parecer invariável. Ela diz que agora que
questionámos o nosso modelo da base natural do sexo e
começámos a explorar as práticas culturais através das quais
as pessoas são sexualmente constituídas como sujeitos
sexuais, temos de manter em mente o carácter gendered
destas práticas. Yanagisako conclui dizendo que não
podemos deixar de lado o sexo nas nossas análises de género
porque ele é o espaço discursivo a partir do qual iniciamos
estudos comparativos de género. Mas sem esquecer que o
sexo é o que na América se entende como o núcleo central do
género, estando implícito que possa não o ser noutros
contextos.
37 Para Strathern (1988) a sociedade não é construída
independentemente do género e não pode neste sentido ser
um contexto explicativo para ele. As relações de género não
são nem mais nem menos autónomas que todas as outras
relações sociais. Strathern propõe-se acabar com dois mitos.
Primeiro, o de que o feminismo inventou o interesse
antropológico pelas mulheres e pelo género. Segundo, que o
interesse feminista apoia a tradição antropológica. Esta
posição põe inclusive em causa muito do que afirmei até
aqui: mas o que disse é, em larga medida, o percurso da
minha descoberta e Strathern um dos pontos de chegada.
Todavia, há que ter em conta que em The Gender of the Gift,
a autora está a fazer uma análise crítica do feminismo e do
seu uso no contexto melanésico. O feminismo académico
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 15/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

tem, segundo ela, uma estrutura pós-moderna, pois as


dicotomias perspectivas, do tipo nós/eles, da antropologia,
são modernas11. O que é específico do feminismo
antropológico é prestar atenção às especificidades de
circunstâncias sociais e históricas particulares sob a rubrica
do sistema de sexo-género (Rubin 1975) ou das relações
sociais de género (Young et al 1981). No pré-feminismo, e
uso o exemplo de Herdt (1981) na Nova Guiné, o
pressuposto é de que a criação de masculinidade é primeiro
e principalmente conceptualizada pelos actores como uma
questão de aquisição de um papel sexual. Ora, nem do ponto
de vista antropológico nem do ponto de vista feminista nos
deveríamos contentar com a fórmula de que os cultos de
homens sejam cultos «para fazer homens» (de facto é este o
erro da perspectiva de Gilmore (1990))12.
38 A identidade sexual individual é um assunto cultural do
Ocidente. A preocupação com a performance sexual, hetero
ou homossexual — e, diria eu, a necessidade de «optar» por
uma ou outra — tornam o comportamento erótico numa
fonte importante de auto-definição. Somos nós que fazemos
do sexo um papel (role), pois os Melanésios usam muito a
imagética do género, mas não podemos pressupor que é com
a identidade individual que estão preocupados. Há os que
consideram o sexing (a atribuição de um sexo a alguém)
como um estado prévio, e os que o localizam no discurso, e
há os que se atêm à origem ideológica das categorias com
que o eu sexuado é pensado. Mas antes de chegarmos a uma
teoria unitária da identidade de género, precisamos de uma
teoria unitária da identidade. Assim, os que lidam com a
construção social e cultural do género não são obrigados a
tomar uma decisão sobre o prévio ou derivado sexing do
corpo. A sua preocupação é antes com a relação entre as
categorias macho e fêmea; elucidar a base metafórica dos
sistemas de classificação é a tarefa (Strathern 1988: 69).
39 A estratégia dos anos setenta sobre os papéis sexuais teria
falhado, segundo ela, porque macho e fêmea ficaram, à
mesma, como pontos de referência fixos. No Ocidente, de
facto a domesticidade assemelha-se à infantilidade e esta à
ausência de autonomia, porque está fora da esfera do salário,
do local de trabalho, da produção cultural. Mas noutros
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 16/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

sítios pode não ser assim. As ideias de «pessoa» tornam-se


fulcrais para Strathern, que diz que o sexo demarca
diferentes tipos de agência. Por isso, critica agora a ideia de
«construção social», pois a terminologia de «construção»
lembra-lhe a relação conceptual no pensamento ocidental
entre consciência e razão, com a razão demonstrando-se no
sistema e na sistemática (Strathern 1988; também em
conversa pessoal; ver Seidler 1987). Na Melanésia, a vida
colectiva dos homens não deve ser entendida como uma
sociabilidade sublinhada que seja a fonte de valores
hegemónicos ao mesmo tempo masculinos e sociais. Não se
deve tomar por certas as actividades colectivas dos homens,
nem descrever as formas de vida colectiva melanésicas
através do modelo ocidental de «sociedade». As acções
colectivas devem ser vistas como um tipo de «socialidade»,
coexistindo com outro, as relações domésticas, sendo a
relação entre os dois de alternância e não de hierarquia.
Strathern diz que os ritos não «fazem homens» nem «fazem
sociedade». Os ocidentais acreditam demasiado que há uma
pessoa, uma cultura, que a cultura serve para comunicar
com os outros, que ela é propriedade comum e que tem um
autor: os homens. Se bem que este exemplo seja
«melanésico», por inversão confirma muitas das afirmações
já feitas sobre o género no ocidente. E de certo modo o meu
terreno tem elementos (quiçá de «pré-modernidade»)
semelhantes aos descritos pela autora para o seu contexto.
Mas como já se viu que muitos autores angloamericanos não
poriam o sul de Portugal na categoria «Ocidente» do género,
a crítica teórica de Strathern tem toda a importância.
40 Para complementar este ponto de vista, LaFontaine (1981)
diz que os poderes procriativos das mulheres não são um
factor externo universal, moldando a sociedade, mas sim
uma formulação entre uma série de construções culturais
que interpretam essa realidade (com a biologia como um
entre outros). Muito foi dito sobre como a sociedade
constrange as mulheres a desejarem a maternidade, mas
tem-se ignorado as relações entre as definições de homens e
os seus papéis paternos. Diz que a associação comum entre
mulheres, ter crianças e o grupo doméstico, tem de ser
reexaminada, pois é uma conclusão errada tirada a partir de
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 17/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

duas características: a exclusão das mulheres de reuniões em


que as questões rituais e políticas sejam discutidas, e a
associação simbólica comum das mulheres ao grupo
doméstico e dos homens à sociedade. Esta última, quanto a
mim, também tem de ser reexaminada.

Discurso e prática
41 Neste percurso por alguns autores recentes, aproximo-me da
área da teoria da prática (e perspectivas paralelas:
embodiment ou incorporação, experiência, performance),
que me seduz particularmente para a análise do meu caso,
resolvendo inclusive algumas contradições registadas nas
diversas contribuições recenseadas. Collier e Yanagisako
(1987) listam os aspectos desde a perspectiva da prática que
devem ser uma preocupação: primeiro, as abordagens da
prática focam em pessoas reais fazendo coisas reais.
Segundo, isto combina-se com a noção de que o «sistema»
tem um efeito poderoso na acção humana. Terceiro, este
sistema é visto como um sistema de desigualdades,
constrangimento e dominação. Quarto, presta atenção à
construção cultural dos conceitos de feminilidade e
masculinidade, pelo que o sistema de dominação deve ser
entendido como sistema cultural (e citam Ortner e
Whitehead 1981). Em quinto lugar, a teoria da prática, como
a feminista, questiona a partição do sistema em base e
superestrutura (o que já vimos com Godelier), sociedade e
cultura, doméstico e político, produção e reprodução, como
determinante e determinado. E, por fim, há a preocupação
política de ver como a «prática reproduz o sistema, e como o
sistema pode ser mudado pela prática» (Ortner 1984:154).
42 De facto, no momento presente, três tendências parecem
estar a penetrar os estudos de género com algum proveito: a
teoria da prática, derivada de críticas ao marxismo ortodoxo;
os modelos de relação entre estrutura e prática
desenvolvidos sobretudo por Bourdieu (1972, 1980) e
Giddens (1979); e a análise contextual do self, da acção
pessoal e da intersubjectividade. As focagens oscilam,
segundo o sociólogo Robert Connell (1987) entre os relatos
extrínsecos e os intrísecos das determinantes da

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 18/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

desigualdade social: dentro dos intrísecos, entre os que se


centram no costume e os que focam o poder; e dentro das
abordagens do poder, entre as que vêem as categorias como
anteriores à prática e as que as vêem como emergindo dela.
Seja como for, a tendência é para dar conta do entrelaçar da
vida pessoal com a estrutura social. Para Connell, o esboço
de uma solução poderá estar no trabalho de Bourdieu e no
de Giddens, na sua proposta de interconexão entre estrutura
e prática, focando no que as pessoas fazem por via da
constituição das relações sociais em que vivem. Uma teoria
da prática aponta também para a historicidade do género ao
nível da vida pessoal. A ideia de que as formas de
sexualidade são socialmente construídas emergiu do
trabalho de historiadores radicais e da análise de discurso e
sociologia interaccionista. Isto abre para o facto central do
género, que é o modo como as suas estruturas são vividas,
com múltiplas feminilidades e masculinidades. A
historicidade das relações de género não tem sido entendida
devido à ideia feita de que há uma estrutura trans-histórica
inserida no género: a dicotomia sexual dos corpos, ideia feita
que envenenou as teorias sobre os papéis sexuais,
descartando a necessidade de uma teoria social. Para
Bourdieu, todavia, a ideia de uma presença activa da
estrutura na prática e uma constituição activa da estrutura
pela prática foi formalizada teoricamente, e assente na noção
de reprodução social, o único ponto em que pode correr o
risco de pôr em causa a ideia de uma dinâmica histórica13.
43 Quanto à teoria da estruturação de Giddens, nela a prática
humana pressupõe sempre uma estrutura social, no sentido
em que a prática traz à baila necessariamente as regras e
recursos sociais. O equilíbrio formulado por Giddens como
«dualidade da estrutura» é das teorias que mais se
aproxima, para Connell, das exigências de uma teoria do
género. Connell desenvolve um programa de teoria para o
estudo do género dentro dos parâmetros de uma teoria da
prática. A divisão do trabalho, a estrutura do poder e a
estrutura da cathexis (sentimentos e emoções) seriam os
principais elementos de qualquer «Ordem do Género» ou
«Regime do Género». Os modelos estruturais e os
inventários estruturais seriam modos complementares de
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 19/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

olhar os mesmos factos, sendo, na prática, sempre feitos


juntos (Connell 1987).
44 É certo que o artigo de Rubin (1975) era promissor nesse
sentido, e é curioso que Connell diga o mesmo. Mas falta-lhe
o entrelaçar da vida pessoal e da estrutura social. Isto,
evidentemente, tem sido conseguido pela literatura, e não
pela ciência social, se exceptuarmos as recentes tentativas da
antropologia de cariz reflexivo. Se uma teoria da prática para
o campo do género fosse elaborada, as implicações seriam:
que a estrutura não é dada mas historicamente feita; que há
a possibilidade de estruturar o género de modos diferentes,
reflectindo a dominância de diferentes interesses sociais;
que a estruturação seria diferentemente coerente ou
consistente; e que isto seria o reflexo de níveis cambiáveis de
contestação e resistência. Quanto à ideia feita da trans-
historicidade dos corpos, uma teoria social do género tem de
ser autónoma em relação à diferença natural, à reprodução
biológica, às necessidades funcionais da sociedade, aos
imperativos da reprodução social.
45 Giddens (1991), diz-nos, a propósito das relações entre a
modernidade (que para ele engloba também o que outros
chamam de pós-modernidade) e a identidade, que hoje nada
é mais claro do que o facto de o género ser uma questão de
apendizagem e de «trabalho» contínuos, e não uma simples
extensão da diferença biológica. Reporta-nos então à
etnometodologia de Garfinkel, com o caso de Agnes,
transexual, que mostra que ser «homem» ou «mulher»
depende da monitorização (vigilância, autocontrolo) cerrada
do corpo e da gestualidade. Não há de facto um só traço
corporal que separe todas as mulheres de todos os homens e
são poucos os indivíduos que têm a experiência total de
serem membros de ambos os sexos: só eles é que podem
perceber completamente os pormenores da exibição corporal
e a gestão através da qual o género é «feito».
46 Para ele, o assunto do corpo na recente teoria social está
associado ao nome de Foucault. Ele analisou o corpo em
relação aos mecanismos de poder, concentrando-se na
emergência do «poder disciplinador» da modernidade; o
corpo torna-se no foco do poder e este, em vez de tentar
marcar o corpo externamente, como nos tempos pré-
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 20/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

modernos, sujeita-o a uma disciplina interna de


autocontrolo. Os mecanismos disciplinares, segundo
Foucault, produzem «corpos dóceis», mas Giddens diz que
Merleau-Ponty (1962) e Goffman (1951) têm melhores
teorias sobre corpo e agência. Curiosamente, também
Godelier (1993) diz que as pesquisas recentes sobre o
parentesco e sobre representações do indivíduo em várias
culturas têm demonstrado que o sexo age como «um boneco
de ventríloquo», em que o género é forçado a «falar» de
coisas que nada têm que ver directamente com os sexos: os
corpos usados como testemunhos pró ou contra a ordem
existente (Godelier 1993:113).
47 Giddens traça o estado das coisas da sexualidade, já não na
teoria, mas no mundo real, no período actual:
«‘Sexuality’, in the modern sense, was invented when sexual
behaviour ‘went behind the scenes’. From this point onward,
sexuality became a property of the individual, and more
specifically the body, as eroticism conjoined to guilt was
progressively replaced by an association of sexuality with
self-identity and the propensity to shame (…) In sexual
behaviour, a distinction had always been made between
pleasure and procreation. When the new connections
between sexuality and intimacy were formed, however,
sexuality became much more completely separated from
procreation than before. Sexuality became doubly
constituted as a medium of self-realisation and as a prime
means, as well as an expression, of intimacy» (1991:164)14

48 Começou-se, pois, por questionar se a dominação masculina


era um dado universal e porquê (Rosaldo e Lamphere 1974,
Reiter 1975, Friedl 1975), passando-se de seguida a
questionar a homogeneidade das categorias «masculino» e
«feminino», como possuidoras de significados sociais
diversos (Ortner e Whitehead 1981, Strathern 1981). Por fim,
autores como Collier e Yanagisako (1987) argumentam
contra a noção de que as variações culturais nas categorias
de género e desigualdades sejam meras elaborações de um
mesmo facto natural. Esta postura começa por questionar as
dicotomias usadas: natureza/cultura (Ortner 1974),
público/doméstico (Rosaldo 1974) e reprodução/produção
(Harris e Young 1981). Poder-se-ia incluir na primeira
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 21/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

também a dicotomia «self interest / social good» (Strathern


1981). A primeira dicotomia foi criticada em Maccormack e
Strathern (1980): Strathern demonstra que a oposição
Hagen entre mbo e romi não é homóloga de «natureza» e
«cultura», e Bloch e Bloch (1980) mostram que há mudança
sincrónica nestas categorias e que os sistemas simbólicos
não estão separados da acção social. A segunda dicotomia
assenta numa definição apriorística do domínio doméstico
com base na relação mãe-filho e a terceira surgiu explicitada
em Meillassoux (1975). O autor afirmava que o controlo
sobre o trabalho dos indivíduos é mais importante do que o
controlo sobre os meios de produção na definição das
relações de produção em contextos agrários; para ele, o
parentesco é a instituição que ao mesmo tempo regula a
função de reprodução de seres humanos e a reprodução de
toda a formação social, o que roça o funcionalismo.
49 Harris e Young (1981) tentaram deslindar o termo
«reprodução», fazendo-o incluir a reprodução social, a
reprodução da força de trabalho e a reprodução biológica.
Também Raul Iturra (1988) sofistica a noção de reprodução
social, ao definir como factores de reprodução das pessoas e
do sistema os grupos domésticos, a família e o matrimónio, a
circulação de conhecimento dentro da família, das pessoas
pelo casamento e das terras pela herança. Uma quarta
dicotomia sugerida é a que distingue «consciência feminina»
de «consciência masculina», focando nas diferentes
estratégias dos membros dos grupos domésticos,
desnaturalizando-os. Mas Bourdieu (1977) foi quem, através
da noção de «incorporação», melhor procurou contrariar a
noção de separação entre esferas doméstica e pública:
«[for the child] the awakening of counsciousness of sexual
identity and the incorporation of the dispositions associated
with a determinate social definition of the social functions
incumbent on men and women come hand in hand with the
adoption of a socially defined vision of the sexual division of
labor» (1977 (1972):93)15

50 O mesmo se pode ver a partir da análise de Sahlins (1985)


sobre o processo de mudança social no Havai, em que a luta
por novos significados de hierarquia foi simultaneamente

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 22/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

uma luta por mudanças na chefatura e nas relações de


género.
51 Para Collier e Yanagisako (1987), transcender as dicotomias
passa, primeiro, por três atitudes: os sistemas sociais são,
por definição, sistemas de desigualdade; isto permite
separar igualdade de justiça; e liberta-nos de ter de imaginar
um mundo sem desigualdades socialmente criadas. O
programa analítico passaria, por sua vez, pela análise
cultural do significado, por modelos sistémicos de
desigualdade e pela análise histórica. Bourdieu (1972) dizia
que se analiza um sistema social não através da definição de
uma estrutura invisível e atemporal, mas antes
perguntando-nos como as pessoas comuns, na prossecução
dos seus fins subjectivos, realizam as estruturas de
desigualdade. Assim, é necessário perceber os significados
do senso-comum, como é que as pessoas se avaliam
mutuamente. Em suma, como é que a estrutura molda as
pessoas e como é que as pessoas, pelas suas acções, realizam
as estruturas.
52 Um modelo ou um discurso de género é o conjunto de ideias
que informam a actividade de cada sexo num dado contexto.
Estes discursos variam com o contexto, e o seu delinear é
tanto mais difícil quanto menos instituído for o contexto,
como os que eu abordo, ao contrário das tradições letradas.
Criticando Collier e Yanagisako (1987), Loizos e
Papataxiarchis (1991) dizem que, enquanto em certos
contextos o género e o parentesco se implicam de facto
mutuamente como um idioma misto de domesticidade e
pessoa, noutros contextos, fora do casamento, são
construidos em exclusão mútua e oposição, como no caso da
amizade (1991:259). É o caso, por exemplo, que abordo neste
trabalho, do discurso do café, em que os sentimentos de
solidariedade masculina focam relações igualitárias,
incompatíveis com o parentesco, sendo as noções de casa,
conjugalidade e interesse doméstico usadas como metáforas
de calculismo e materialidade. No contexto grego, sendo as
relações entre pessoas do mesmo sexo a regra, fica excluida a
heterossexualidade e a procriação, em forte contraste com o
parentesco biológico.

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 23/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

53 Ao perguntar-se se existe uma estrutura profunda da


masculinidade, Gilmore (1991) não chega a uma resposta
conclusiva, mas define três «moral injunctions» presentes
em todos os contextos etnográficos que parecem sugerir que
a masculinidade é uma resposta a défices estruturais e
psicológicos específicos: a) um homem deve engravidar as
mulheres, b) deve proteger os dependentes do perigo e c)
deve prover os parentes. Gilmore tem uma visão demasiado
determinista, pois diz que quanto mais duro for o ambiente
mais a masculinidade é acentuada como inspiração e
objectivo. A ideologia e o ambiente seriam dois factores de
força na equação da masculinidade, mas o terceiro seria
psicológico: o maior perigo para a performatividade do
trabalho humano seria a regressão, a fuga à realidade.
Assim, a masculinidade podia ser vista como um incentivo
para substituir o princípio do prazer pelo da realidade. Os
homens alimentariam a sua sociedade vertendo sangue, suor
e sémen, ao passo que as mulheres alimentariam os outros
directamente — com os seus corpos, o seu leite e o seu amor.
54 Stoller e Herdt (1993) tentam sofisticar estes contributos da
Psicologia. O homem criaria um escudo protector, a
«ansiedade de simbiose», pelo que o comportamento social
masculino demonstra inúmeras manobras defensivas: o
medo da autonomia feminina, a inveja e consequente
menosprezo das mulheres, o medo de entrar nos seus
corpos, o medo da intimidade, o medo de manifestar
atributos femininos, e o medo de ser desejado por outros
homens. Regressamos à ideia de que o primeiro regulamento
da «profissão de ser homem» é «não ser mulher»
(1993:243). Para as mulheres é «ser mulher». Na sua obra
sobre os Sambia (1981) Herdt explicita as quatro tendências
dos idiomas da masculinidade: 1) uma correspondência
perceptual, com semelhanças que ligam entre si diferentes
classes de fenómenos (por exemplo, mulher=casuar); 2)
«genderizing»: uma antropomorfização polarizada dos
fenómenos naturais com base do género, reaplicada sobre as
construções culturais (Strathern 1978); 3) projecção focal:
isomorfismos que isolam laços subjectivos entre orgãos (ou
traços) humanos e outros fenómenos (ex: a flor do pandanus
é um pénis); 4) fissão perceptual: categorização dos
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 24/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

fenómenos em subtipos tácitos ou manifestos baseados em


imagens subjectivas que polarizam os significados atribuídos
aos membros das classes de género resultantes (ex: rapariga
vs rapaz, pandanus vs casca de noz) (1981:299-300). A
experiência masculina Sambia resultaria numa tensão
subjectiva: entre o imperativo adulto de comportar-se
sempre como um guerreiro masculino, e o sentido infantil
nuclear de ter sido uma pessoa pequena e impotente, em
tempos infimamente ligado à mãe.
55 De inspiração em Bourdieu e Giddens vimos ser a
perspectiva de Robert Connell. Na sua proposta de uma nova
sociologia da masculinidade (Carrigan, Connell e Lee 1985)
três questões devem ser tomadas em linha de conta: 1) a
questão do poder sexual deve ser abordada dentro das
categorias sexuais, em especial a relação entre homens
hetero e homossexuais, de modo a perceber a constituição da
masculinidade como ordem política; 2) a análise da
masculinidade precisa de ser relacionada com outros tópicos
correntes no feminismo, como a divisão sexual do trabalho, a
política sexual nos locais de trabalho e a inter-relação entre o
género e a dinâmica das classes; 3) devem ser usados os
desenvolvimentos da teoria social que ultrapassam as
dicotomias de estrutura vs indivíduo e sociedade vs pessoa.

Masculinidade hegemónica
56 Parece-me central o uso da noção de «masculinidade
hegemónica», ou seja, não o «papel» masculino, mas sim
uma variedade particular de masculinidade que subordina
outras variedades16. Se a fissura entre as categorias de
«homem» e «mulher» é um dos factos centrais do poder
patriarcal e da sua dinâmica, no caso dos homens, a divisão
crucial é entre masculinidade hegemónica e várias
masculinidades subordinadas (Connell 1987). Daqui segue-
se que as masculinidades são construídas não só pelas
relações de poder mas também pela sua interrelação com a
divisão do trabalho e com os padrões de ligação emocional.
Por isso, na empiria, se verifica que a forma culturalmente
exaltada de masculinidade só corresponde às características
de um pequeno número de homens.

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 25/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

57 Connell não deixa de realçar que um dos traços importantes


da masculinidade hegemónica, junto com a sua conexão com
a dominação, é o facto de ser heterossexual (e o processo
foucaultiano da passagem da noção de «luxúria» para a
especificidade das «perversões» seria fundamental para a
constituição histórica da hegemonia).
58 Tal como Paul Connerton (1993) afirma em Como As
Sociedades Recordam, também Bourdieu (1990) diz que é
através dos corpos socializados, ou seja os habitus, e as
práticas rituais, que o passado se perpetua no tempo longo
da mitologia colectiva (1990:4). A dominação masculina não
necessita de justificação, estando a visão dominante
expressa nos discursos como os provérbios e poemas.
Bourdieu chama atenção para o facto de não se estar a
referir a uma ideologia: se as práticas rituais e os discursos
míticos legitimam, o seu princípio não é porém a intenção de
legitimar. Talvez por isso a visão dominante se exprima
também nos objectos e práticas da vida material: na
estrutura do espaço, nas divisões interiores da casa, na
organização do tempo, nas práticas tanto técnicas como
rituais do corpo, posturas, maneiras. Trata-se de um sistema
de categorias de percepção, de pensamento e de acção que,
graças à concordância entre as estruturas objectivas e as
cognitivas, gera a «atitude natural» da experiência dóxica.
59 A divisão das coisas e das actividades segundo a oposição
masculino/feminino insere-se num sistema de oposições
homólogas, como o alto/ baixo, sobre/sob, fazendo parecer
que a diferença está inscrita na natureza das coisas. Isto
chega ao corpo:
«La somatisation progressive des relations fondamentales
qui sont constitutives de l’ordre social, aboutit à l’institution
de deux «natures» différentes, c’est-à-dire de deux systèmes
de différences sociales naturalisées qui sont inscrites à la fois
dans les hexis corporelles, sous la forme de deux classes
opposées et complémenteires de postures, de démarches, de
mantiens, de gestes, etc» (1990:8)17

60 O dominado não dispõe, para pensar, de outra coisa que não


os instrumentos de conhecimento que tem em comum com o
dominador, e que mais não são do que a forma incorporada
da relação de dominação. Daí também que a relação entre
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 26/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

dominantes e dominados não seja simétrica (como no caso


dos mais poderosos socialmente terem mais liberdade sexual
e as suas mulheres maiores exigências de virtude)18.
61 No processo de construção social do género (que Bourdieu
chama sexo…) as categorias de percepção são construídas
em torno de oposições que reenviam para a divisão do
trabalho sexual, estruturando a percepção dos orgãos
sexuais e da actividade sexual. Não deixa, porém, de afirmar
que há possibilidade de resistência e de luta cognitiva, como
na paródia e no carnavalesco.
62 O corpo biológico socialmente confeccionado é também um
corpo político — uma política incorporada, o que se vê em
toda a moral da honra, resumida (no caso Kabyle) numa só
palavra (qabel), «olhar de frente», e na postura corporal que
ela designa (1990:20). É, aliás, através da mediação da
divisão sexual dos usos legítimos do corpo que se estabelece
o laço (que os psicanalistas conhecem) entre o phalus e o
logos.
63 E comum dizer-se que os homens (ou muitos homens) são
vítimas da sua dominação. Bourdieu diz que isso é verdade,
só que são dominados pela sua dominação, o que faz uma
grande diferença em relação às mulheres. O habitus
masculino constrói-se e cumpre-se em relação com o espaço
reservado onde se jogam, entre homens, os jogos da
competição, estabelecendo uma dissimetria entre homem e
mulher nas trocas simbólicas, uma dissimetria de sujeito e
objecto, de agente e instrumento (e dá o exemplo do
mercado matrimonial como realização paradigmática das
relações de produção e reprodução do capital simbólico)
(1990:27)
« La question des fondements de la division entre les sexes
et de la domination masculine trouve ainsi sa solution: c’est
dans la logique de l’économie d’échanges symboliques et,
plus précisement, dans la construction sociale des relations
de parenté et du mariage qui assigne aux femmes,
universellement, leur statut social d’objets d’échange définis
conformement aux interêts masculins (c’est-a-dire
primordialement comme filles ou soeurs) et vouées à
contribuer ainsi à la reproduction du capital symbolique des
hommes, que réside l’explication du primat universellement

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 27/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

accordé à la masculinité dans les taxonomies culturelles. »


(1990:27)19

64 Bourdieu, pela «prática», e Merleau-Ponty, pela


«percepção», são os arautos das duas mais famosas teorias
da incorporação. Para o último, no domínio da percepção a
dualidade principal é entre sujeito e objecto, enquanto que
para o primeiro, no domínio da prática, é entre estrutura e
prática. O objectivo epistemológico da incorporação seria o
colapsar das dualidades (Csordas 1990:7). Para Bourdieu
trata-se, pois, de delinear uma terceira ordem de
conhecimento, para lá da fenomenologia e de uma ciência
das condições objectivas de possibilidade da vida social.
Como Merleau-Ponty, procura deslocar o estudo desde a
percepção dos objectos para o processo de objectificação, ou
da análise do facto social como opus operatum para a
análise do modus operandi da vida social. Tal levaria ao
colapsar das dualidades corpo-mente e signo-significado no
conceito de habitus, que fora originalmente introduzido por
Mauss (1980 [1936]) no ensaio sobre técnicas do corpo para
referir a totalidade dos usos culturalmente padronizados do
corpo.
65 Bourdieu leva mais longe a definição. Trata-se não do
habitus como uma colecção de práticas, mas como um
sistema de disposições duradoiras, que é o princípio
inconsciente e colectivamente inculcado para a geração e
estruturação de práticas e representações (1977:72, in
Csordas 1990:7). O «socially informed body» é o princípio
unificador que faz com que o habitus não gere práticas de
forma aleatória.
66 Como será patente no capítulo VII, as teorias da
performance, muito ligadas aos estudos de ritual (cf Turner
1974) e de antropologia do teatro e da experiência, também
contribuem para compreender a incorporção. A pesquisa em
torno da performance toma como sujeito e método o corpo
experiente situado no tempo, no espaço e na história,
restaurando o corpo como local de conhecimento e local de
luta ideológica, prestando atenção aos encontros face-a-face
em vez das abstracções formais (Conquergood 1993).
67 Um dos problemas que se coloca no estudo do género é o do
compromisso político do investigador. Bourdieu avisa que o
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 28/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

melhor dos movimentos políticos está votado a fazer a pior


ciência. Mas as mudanças são possíveis, ainda que haja
limites: os corpos não compreendem sempre a linguagem da
consciência, pelo que não é fácil quebrar uma cadeia
contínua de aprendizagens inconscientes, «de corpo a
corpo» (Bourdieu 1990:29). As mudanças podem porém
servir para perceber aquilo que vieram alterar. Neste caso, é
a fase tardia da modernidade em que vivemos em certos
contextos que serve de contexto etnográfico elucidador.
68 Hoje, a sexualidade é algo que cada um de nós «tem», e já
não uma condição natural, é um traço do self, moldável, um
ponto de junção entre corpo, auto-identidade e normas
sociais (Giddens 1992). Ao falar da «relação pura», Giddens
pergunta:
«What do men want? In one sense the answer has been clear
and understood by both sexes from the 19th century
onwards. Men want status among other men, conferred by
material rewards and conjoined to rituals of male solidarity»
(1992:60)20

69 A sexualidade masculina era caracterizada até há pouco


pelos seguintes aspectos: o domínio da esfera pública pelos
homens; o duplo padrão: a divisão das mulheres entre puras
(casáveis) e impuras; a compreensão da diferença sexual
como dada por Deus, pela Natureza ou pela Biologia; a
problematização das mulheres como opacas ou irracionais
nos seus desejos e acções; e a divisão sexual do trabalho. Isto
são contextualizações sociais. Mas ao nível da experiência
emotiva, vivida, dos homens?
70 Seguindo a escola de objects relations (representada, no
cisma das influências freudianas, por Nancy Chodorow, por
oposição ao pós-estruturalismo Lacaniano de Kristeva ou
Irigaray), Chodorow (1978) diz que a masculinidade é um
detour (desvio, no sentido de mudança de direcção) na
separação da mãe. Para ambos os sexos, o falo (a
representação imaginária do pénis) deriva o seu significado
da fantasia da dominação feminina. Simboliza separação
mas também revolta e liberdade. A fase edipiana confirma a
separação da mãe e a conquista da liberdade: «The
masculine sense of self-identity is thus forged in

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 29/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

circumstances in which a drive to self-sufficiency is coupled


with a potential crippling emotional handicap» (Giddens
1992:116)21.
71 A sexualidade e a reprodução estruturavam-se mutuamente
no passado. Hoje tal não acontece22. A privatização da
sexualidade foi feita ao mesmo tempo que a negação do
prazer feminino, da ideia da sexualidade masculina como
não problemática, depois de relegada a homossexualidade
para a categoria do perverso. Giddens faz o rol de como era
«antes»: 1) cada indivíduo era tido como macho ou fêmea,
sem categorias intermédias; 2) as características físicas e
traços comportamentais dos indivíduos eram interpretados
como masculinos ou femininos de acordo com o esquema de
género dominante; 3) as pistas sobre o género eram
rotineiramente avaliadas dentro dos padrões aceites de
comportamento de status-género; 4) as diferenças de género
assim constituídas e reconstituídas eram de novo aplicadas
para concretizarem identidades sexuais, filtrando e
excluindo os elementos cross-gender (de género e/ou sexo
trocado: transsexuals e travestis); 5) os actores sociais
monitoravam a sua aparência e comportamento de acordo
com uma identidade sexual «naturalmente dada» (Giddens
1992:198). Como diz Giddens, agora que a anatomia deixa de
ser destino, a identidade sexual torna-se cada vez mais uma
questão de estilo de vida.
72 O conceito de hegemonia, tal como utilizado por Gramsci,
reporta-se a uma sociedade civil organizada, charneira entre
o Estado-dominação e o económico, implicando uma noção
de Política alargada, não confinada ao Estado. Assim,
Gramsci alarga a concepção anterior de hegemonia para o
campo cultural e intelectual: o Príncipe moderno deve criar
uma vontade ao mesmo tempo nacional e popular, criando
um novo senso comum e socializando os conhecimentos e a
nova visão do mundo (Gramsci 1971). No limite, a
hegemonia é uma anti-revolução passiva.
73 O conceito de hegemonia é, então, tomado de empréstimo a
Gramsci que, obviamente, não o utilizou para analisar o
género, mas sim as relações de classe na Itália sua
contemporânea. Significa ascendência social alcançada para
lá das disputas de poder, na organização da vida privada e
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 30/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

dos processos culturais (Connell 1987:184). A hegemonia


não é imposta pela força das armas; embora não exclua a
força, não é através desta que se atinge a hegemonia. E
tãopouco significa a obliteração de alternativas. Como dizia
João Pina-Cabral (em comunicação oral), a hegemonia é
uma forma de dominação em que o dominado participa na
sua dominação, a hegemonia sendo como um foco que, ao
iluminar uma certa zona, deixa as outras zonas na semi-
escuridão23.
74 No campo do género, trata-se da capacidade de impor uma
definição específica sobre outros tipos de masculinidade, o
que significa que o modelo exaltado corresponde, na
realidade, a muitos poucos homens, o que se verifica nos
casos que eu abordo no contexto de Pardais. O conceito
permite uma concepção mais dinâmica de masculinidade,
entendida assim como estrutura de relações sociais, em que
várias masculinidades não-hegemónicas subsistem, ainda
que reprimidas e auto-reprimidas por esse consenso e senso
comum hegemónico, sustentado pelos significados
simbólicos «incorporados».
75 O modelo hegemónico em Pardais corresponde aos traços
descritos no Capítulo II, e analisados em pormenor nos
capítulos que agora se seguem.

Notes
1. Tradução livre: «…os traços naturais do género, bem como os
processos naturais do sexo e da reprodução, são apenas um pano de
fundo sugestivo e ambíguo para a organização cultural do género e da
sexualidade. O que o género é, o que homens e mulheres são, e o tipo de
relações que acontecem entre eles — todas estas noções não são simples
reflexos ou elaborações de «dados» biológicos, mas sim (em grande
medida) produtos de processos sociais e culturais».
2. Tradução livre: «Entendo por género as categorizações de pessoas,
artefactos, eventos, sequências, etc., que se baseiam numa imagética
sexual, nos modos como o carácter distintivo das características macho e
fêmea concretizam as ideias das pessoas acerca da natureza das relações
sociais».
3. Já abordei como isto se deve à fundamentação na Divindade, na
Natureza e, hoje, na Biologia. A propósito, veja-se a recente polémica
sobre o «hipotálamo» na determinação da homossexualidade e a forma
paradoxal como os homossexuais engajados em movimentos sociais

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 31/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

reagiram à «descoberta», uns aclamando a legitimação biológica como


«determinação», outros combatendo-a com o constructivismo social e a
noção da orientação sexual como «opção pessoal».
4. Tradução livre: «Um sistema de sexo/género não é apenas o momento
reprodutivo de um «modo de produção». A formação da identidade de
género é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um
sistema de sexo/género envolve mais do que as «relações de procriação»
(a reprodução no seu sentido biológico)».
5. Tradução livre: «os sistemas de parentesco são formas empíricas e
observáveis de sistemas de sexo/género».
6. Tradução livre: «Em termos gerais, a organização social do sexo
assenta no género, na heterossexualidade obrigatória, e no
constrangimento da sexualidade feminina».
7. Tradução livre: «nomeia as mulheres dos clãs com quem pode casar
com um termo que indica essa possibilidade de casar. Quando o jovem
Trobriand aprende esses termos ele aprende quais as mulheres que pode
seguramente desejar».
8. Tradução livre: «Antigamente, pensou ele, um homem olhava para o
corpo de uma rapariga e via que este era desejável, e pronto. Mas hoje
em dia não se pode sentir nem amor puro e simples, nem luxúria pura e
simples. Nenhuma emoção é pura, porque tudo se mistura com o medo e
o ódio. O seu abraço fora uma batalha, o clímax uma vitória. Fora um
duro golpe contra o Partido. Um acto político».
9. Ver, a este propósito, Godelier, Maurice, 1984, L’Idéel et le Materiel,
Paris:Fayard
10. No sentido em que «sexo biológico», «comportamento» e
«identidade» não são todos, e ao mesmo tempo, nem coincidentes nem
contrários à norma. Muitos gays no Ocidente têm uma auto-identidade
masculina, com um comportamento não-normativo. O xanith rege o seu
comportamento pelo modelo normativo feminino, e não é visto como
«travesti», mas como uma terceira categoria sexual. Sobre os xanith de
Oman, ver Wikan 1977.
11. Giddens, creio, discordaria desta afirmação, como se poderá
constatar adiante. A modernidade é esta disseminação de saberes
concorrentes, nenhum sendo total ou superior, se bem que no período
actual (modernidade tardia para Giddens, pós-modernidade para
Strathern) se acentue.
12. Em Manhood on the Making (1990) Gilmore, embora correcto, na
minha opinião, no respeitante à ideia de que a masculinidade é um
projecto para o qual crianças, jovens e adultos se têm de «esforçar»,
reduz as ritualidades masculinas à função de «fazer homens».
13. Pela ciclicidade repetitiva aparentemente implícita na noção de
reprodução social. Mas só aparentemente, já que qualquer sistema pode

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 32/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

mudar: no caso da masculinidade, quando masculinidades heterogéneas


encontram ou forçam o seu espaço de afirmação.
14. Tradução livre: «A «sexualidade», no sentido moderno, foi inventada
quando o comportamento sexual «passou para os bastidores». A partir
de então, a sexualidade tornou-se numa propriedade do indivíduo, e
mais especificamente do corpo, ao mesmo tempo que o erotismo aliado à
culpa era progressivamente substituído por uma associação entre
sexualidade, auto-identidade e propensão para a vergonha (…) No
comportamento sexual, sempre se fez uma distinção entre prazer e
procriação. Todavia, quando se constituíram as novas conexões entre
sexualidade e intimidade, a sexualidade separou-se de modo mais radical
da procriação. A sexualidade passou a constituir-se duplamente como
meio de auto-realização e como meio — e expressão —, da intimidade».
15. Tradução livre: «[para a criança] o despertar da consciência da
identidade sexual e a incorporação das disposições associadas com uma
definição social das funções sociais incumbentes aos homens e mulheres,
surge de mãos dadas com a adopção de uma visão socialmente definida
da divisão sexual do trabalho». A citação é da tradução inglesa de
Esquisse d’une téorie de la Pratique (1972).
16. Duas áreas de estudos não são abordadas no meu trabalho: a teoria
dos sex roles e o campo dos men’s studies. A primeira por pertencer a
uma área especializada que não domino, a da Psicologia Social; a
segunda por ser, no fundo, uma designação genérica, como o foi
women’s studies, que não me parece teoricamente pertinente. O Género,
como estrutura de relações sociais deve ser o campo sociológico
abrangente.
17. Tradução livre. «A somatização progressiva das relações
fundamentais que são constitutivas da ordem social, tem por resultado a
instituição de duas «naturezas» diferentes, isto é, de dois sistemas de
diferenças sociais naturalizadas, simultaneamente inscritas nas hexis
corporais, sob a forma de duas classes opostas e complementares de
posturas, formas de andar, gestos, etc.».
18. Já o assinalava Pitt-Rivers (1971 [1954]) acerca das mulheres dos
señoritos por oposição às mulheres dos jornaleiros em Grazalema.
19. Tradução livre: «A questão dos fundamentos da divisão entre os
sexos e da dominação masculina encontra assim a sua solução: é na
lógica da economia de trocas simbólicas e, mais precisamente, na
construção social das relações de parentesco e de casamento que atribui
às mulheres, universalmente, o seu estatuto social de objectos de troca
definidos conformemente aos interesses masculinos (isto é,
primordialmente como filhas ou irmãs) e votadas a assim contribuírem
para a reprodução do capital simbólico dos homens, que reside a
explicação do primado universalmente atribuído à masculinidade nas
taxonomias culturais».

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 33/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

20. Tradução livre: «Que querem os homens? De certo modo, a resposta


tem sido clara e compreendida por ambos os sexos desde o século XIX.
Os homens querem status entre os outros homens, conferido por
recompensas materiais e a par e passo com rituais de solidariedade
masculina».
21. Tradução livre: «O sentido de auto-identidade masculina é pois
forjado em circunstâncias nas quais um impulso no sentido da auto-
suficiência se encontra aliado a um potencial handicap emocional».
22. Ver Strathern (1989) sobre novas tecnologias reprodutivas.
23. Em comunicação apresentada no III Congresso da European
Association of Social Anthropologists, Oslo, Noruega, Junho de 1994, na
abertura do painel «Morals and the Margins».

© Etnográfica Press, 1995

Conditions d’utilisation : http://www.openedition.org/6540

Cette publication numérique est issue d’un traitement automatique par


reconnaissance optique de caractères.

Référence électronique du chapitre


ALMEIDA, Miguel Vale de. IV. O género do género : Para uma teoria da
masculinidade In : Senhores de Si : Uma interpretação antropológica
da masculinidade [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 1995 (généré le
24 juin 2021). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/466>. ISBN :
9791036511288. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.466.

Référence électronique du livre


ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de Si : Uma interpretação
antropológica da masculinidade. Nouvelle édition [en ligne]. Lisboa :
Etnográfica Press, 1995 (généré le 24 juin 2021). Disponible sur
Internet : <http://books.openedition.org/etnograficapress/459>. ISBN :
9791036511288. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.459.
Compatible avec Zotero

Senhores de Si
Uma interpretação antropológica da
masculinidade
Miguel Vale de Almeida

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 34/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Ce livre est cité par


Asher, Kiran. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-011
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-002
(2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-023
De Lima Costa, Claudia. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-002
Klahn, Norma. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-003
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-006
Rius, Marisa Belausteguigoitia. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-
007
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-008
Shapiro, Ester R.. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-019
Thayer, Millie. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-022
Feliu, Verónica. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-014
Alvarez, Sonia E.. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-001
Maia, Suzana. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-015
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-005
Espinal, Isabel. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-006
Bueno-Hansen, Pascha. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-018
Hester, Rebecca J.. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-010
Carrillo, Teresa. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-013
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-001
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-003
Fonseca, Claudia. (2003) Changing Men and Masculinities in
Latin America. DOI: 10.1215/9780822384540-003
Schmidt, Simone Pereira. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 35/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

005
Blackwell, Maylei. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-017
Millán, Márgara. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-009
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-007
Lao-Montes, Agustín. Buggs, Mirangela. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-
021
Gómez-Barris, Macarena. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-
012
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-009
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-004
Prada, Ana Rebeca. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-004
Piscitelli, Adriana. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-016
De Lima Costa, Claudia. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-008
Bañales, Victoria M.. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-020
Lima, Diana. (2012) Prosperity and Masculinity: Neopentecostal
Men in Rio de Janeiro. Ethnos, 77. DOI:
10.1080/00141844.2011.609942
Sacramento, Octávio. (2019) For Love, Labour, and Lifestyle:
European Men Moving to Northeast Brazil. Anthropological
Forum, 29. DOI: 10.1080/00664677.2019.1579704
Uziel, Anna Paula. (2001) Homosexuality and adoption in Brazil.
Reproductive Health Matters, 9. DOI: 10.1016/S0968-
8080(01)90087-4
Godinho, Paula. (2019) Antropología portuguesa contemporánea,
casi medio siglo desde abril. Disparidades. Revista de
Antropología, 74. DOI: 10.3989/dra.2019.02.014
ALMEIDA, MIGUEL. (2007) Gender, masculinity and power in
southern Portugal. Social Anthropology, 5. DOI: 10.1111/j.1469-
8676.1997.tb00347.x
Ribeiro, Jakson dos Santos. (2020) Masculinidades públicas na
Princesa Do Sertão: Comportamentos e perfis de homens durante
a Primeira República em Caxias/MA. Revista Científica
Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. DOI:
10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/princesa-do-
sertao

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 36/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press

Sacramento, Octávio. (2018) From Europe with passion:


frameworks of the touristic male desire of Ponta Negra, in the
North-East of Brazil. Current Issues in Tourism, 21. DOI:
10.1080/13683500.2015.1056517
Puga, Rogério Miguel. (2012) ‘Amansar’ o selvagem edénico: a
retórica do achamento do Brasil naCartade Pêro Vaz de Caminha.
Romance Studies, 30. DOI: 10.1179/174581512X13299097529352
Jansen, Stef. (2008) Misplaced masculinities. Anthropological
Theory, 8. DOI: 10.1177/1463499608090790
KLANOVICZ, LUCIANA ROSAR FORNAZARI. (2010)
VejaMagazine and Fashion in Brazil (1985–1990)—Between
Maintenance and Dilution of Sexual Roles. Women's Studies, 39.
DOI: 10.1080/00497878.2010.505150
Feldman-Bianco, Bela. Vale de Almeida, Miguel. (2018) World
Anthropologies: A Portuguese-Brazilian Conversation. American
Anthropologist, 120. DOI: 10.1111/aman.12991

https://books.openedition.org/etnograficapress/466 37/37
Revista Estudos Feministas
ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Tornquist, Carmem Susana; Lisboa, Teresa Kleba; Freire Montysuma, Marcos


MULHERES E MEIO AMBIENTE
Revista Estudos Feministas, vol. 18, núm. 3, septiembre-diciembre, 2010, pp. 865-869
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38118773012

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Dossiê

MULHERES E MEIO AMBIENTE


Carmem Susana Tornquist
Universidade do Estado de Santa Catarina

Teresa Kleba Lisboa


Universidade Federal de Santa Catarina

Marcos Freire Montysuma1


Universidade Federal de Santa Catarina

Este dossiê tem como objetivo compartilhar algumas abordagens contemporâneas


relativas às questões ambientais, nas quais mulheres são tomadas como protagonistas de
ações políticas em interações sociais. A pertinência de oferecer um dossiê dedicado às
questões ambientais reside no fato de esse debate ter ganhado dimensões consideráveis
nos dias atuais, impedindo o aprofundamento das reflexões que alimentam as causas
daquilo que se convencionou chamar de ‘crise ecológica’. Chama atenção, ainda, as
formas como diferentes setores da sociedade têm ressignificado as questões relativas aos
limites do planeta, ao suportar a exploração dos recursos ditos naturais (para usar um termo
que já estava presente nas pioneiras constatações do Clube de Roma, ainda nos anos
1970). Diante do agravamento da crise ambiental, tais preocupações ampliaram-se e
levaram os países a celebrar acordos internacionais, como o protocolo de Kioto (1995) e a
Conferência de Kopenhangen (2009).
A temática que ora apresentamos, embora em contexto bastante diverso daquele
primeiro número da REF,2 ocorrido logo após a ECO-92, demarca, ainda como ponto crucial
de reflexão no campo do feminismo e do gênero, muito trabalho de reflexão e elaboração.
Vale ressaltar que, naquela época, a presença, na ECO-92, das mulheres e das feministas,
com suas especificidades, inaugurou o Planeta Fêmea – um espaço de articulação das
questões ambientais, articulações estas anunciadas também, em nível teórico, nos marcos
do que se convencionou chamar de ‘novos movimentos sociais’, como o movimento
ecológico e o feminista, considerados por alguns autores e autoras como os principais
movimentos sociais da virada do século XX para o século XXI.

Copyright © 2010 by Revista Estudos Feministas.


1
Professor convidado especialmente para a organização deste Dossiê.
2
A REF v. 0, n. 0, do ano de 1992, publicou um dossiê intitulado “Mulher e Meio Ambiente”, dando ênfase em
artigos sobre as “Memórias do Planeta Fêmea”, “Ecos feminismos na ECO 92”, justamente para visualizar o
significado da ECO 92 para os estudos feministas.

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 336, setembro-dezembro/2010 865


CARMEM SUSANA TORNQUIST, TERESA KLEBA LISBOA E MARCOS FREIRE MONTYSUMA

Adotamos neste dossiê um título similar àquele, de 1992, por considerarmos que,
embora 18 anos nos separam daquela data, ainda nos são apontados inúmeros desafios:
de um lado o aumento da crise ambiental, das catástrofes naturais e irresponsabilidade
por parte dos governantes em relação à preservação do meio ambiente; e de outro um
significativo aumento da consciência ecológica, maior número de ações defensivas por
parte dos movimentos sociais, passando pela geopolítica, pelas conferências sobre clima
e propostas de mudanças em relação a um novo tipo de desenvolvimento, mais humano e
sustentável.
Nesse sentido, consideramos importante retomar alguns clássicos dessa discussão,
incluindo outras referências sobre gênero e desenvolvimento sustentável, ecofeminismo,
bem como as questões promovidas por Françoise D‘Eaubonne,3 nos anos 1970, sobre a
temática natureza e cultura, chave central na discussão sobre mulheres e meio ambiente,
importante no contexto francófono e pouco conhecida entre nós.
Outro marco significativo surgido no decorrer dos debates foi que, ao final da década
de 1980, no contexto das políticas de Conferências Mundiais sobre temas como mulheres,
meio ambiente, população, entre outros, as agências de fomento propuseram uma mudança
do enfoque “Mulher e Desenvolvimento” para “Gênero e Desenvolvimento”, com base no
argumento de que “a perspectiva de gênero e desenvolvimento representa não só integrar
as mulheres ao desenvolvimento, mas sim buscar o potencial que as iniciativas de
desenvolvimento possuem para transformar as desiguais relações de gênero e para
propiciar mais poder às mulheres”.4 Essa mudança foi essencial na medida em que
demarcou o caráter político da questão, ou seja, extrapolou a noção de um essencialismo
voltado somente para as mulheres (que eram identificadas com a natureza) e ampliou o
enfoque para as relações de gênero.
Por outro lado, a articulação crescente entre mulheres e/ou gênero e desenvolvimento
sugere que este último conceito também merece ser analisado, a nosso ver, desde uma
perspectiva crítica, a exemplo do artigo de Marie France Labrèque, neste dossiê, fazendo
eco a várias/os estudiosas/os críticas/os com relação ao tema “Gênero e desenvolvimento”,
proposto pelas Nações Unidas.5
Se os organismos multilaterais e o sistema das Nações Unidas contribuíram para
divulgar certa consciência ecológica global, fica evidente que esse comprometimento
reflete as relações de poder entre os países. Recentemente, em Copenhagen, constatou-se
que os países ‘desenvolvidos’ – os maiores poluidores do planeta – negaram-se a subscrever
os acordos mais decisivos e seus pontos mais nevrálgicos. Não por acaso, o “movimento
altermundialista”6 tem sido presença constante nesses encontros com o intuito de pressionar
os governos a assumirem posturas mais radicais no sentido do controle da crise ambiental,
já que as tendências mais hegemonizantes têm caminhado na apropriação dos aspectos
pontuais da questão ambiental.
Nos fóruns sociais mundiais e outros encontros internacionais de movimentos sociais,
como a recente Conferencia Mundial de los Pueblos sobre Cambio Climático y
Derechos de la Madre Tierra Tierra, os debates têm ocorrido com foco nos modelos de
desenvolvimento, no sistema capitalista e nas relações desiguais entre Norte-Sul. Esses

3
VASSEUR, 2009.
4
BRAIDOTTI, 2004, p. 36.
5
Jules FALQUET, 2008.
6
Esse movimento contra o capitalismo neoliberal surge com a revolta zapatista no México, em 1994,
consolida-se nas manifestações durante as reuniões internacionais das instituições chamadas multilaterais
(FMI, OMC, Banco Mundial) e culmina na criação do Fórum Social Mundial.

866 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 865-869, setembro-dezembro/2010


MULHERES E MEIO AMBIENTE

encontros têm chamado atenção para pontos cruciais da crise ecológica, como ocorre
com a proposta de criação de um tribunal internacional de justiça climática que reparte a
chamada dívida climática dos países ricos com os países pobres. A presença dos
movimentos de mulheres vem se sobressaindo junto a estes eventos, com destaque para a
Marcha Mundial das Mulheres, que tem assumido, desde 2005, as bandeiras de lutas
ambientais e sociais, expressadas em seus documentos, nas ações práticas e nas alianças
com os grupos Amigos da Terra e Via Campesina.
A aproximação com o debate sobre gênero e desenvolvimento sustentável tem
incluído, nesse contexto, temas como a agricultura familiar, a silvicultura, irrigação e sistemas
de água, dentre outros, uma vez que são as mulheres que ainda preservam as habilidades
necessárias aos diferentes tipos de cultivos, tanto da alimentação básica como de ervas e
plantas medicinais. São as mulheres que possuem mais experiência na condução de um
processo de desenvolvimento humano local e sustentável, pois têm mostrado através do
cotidiano que são gestoras de recursos, produtoras de alimentos; são as que mais contribuem
para a biodiversidade no pequeno lote de terra, selecionando espécies de sementes,
mudas de ervas e preservando a cultura dos quintais – transportando os campos para as
cidades.
Por outro lado, a desigualdade social que atinge as mulheres pobres faz com que
estas se transformem nas primeiras e principais atingidas pela crise ecológica e deterioração
do meio ambiente. Alguns exemplos disso são o aumento da carga de trabalho das mulheres
diante das mudanças climáticas para satisfazer as necessidades básicas da família diante
da escassez de água, lenha, forragem para os animais, entre outras. Sobretudo nas áreas
rurais, as mulheres têm sentido os efeitos da contaminação da água e do ar, a crescente
exposição delas e de seus familiares aos produtos químicos, ou também nos processos
migratórios contemporâneos, alguns deles relacionados com as mudanças climáticas.
A situação subalterna e de invisibilidade das mulheres no campo é decorrente de
processos históricos. No entanto, essa situação poderia ser modificada em face de utopias
coletivas, entre as quais estão o acesso equitativo e respeitoso aos recursos, ao consumo
consciente e à soberania alimentar, questões estas que, forçosamente, se fazem presentes
no atual contexto de desenvolvimento que, por ora, ainda não privilegia o humano nem a
perspectiva ‘sustentável’!
No texto “Desenvolvimento sustentável com perspectiva de gênero – Brasil, México e
Cuba: mulheres protagonistas no meio rural”, as autoras Teresa Kleba Lisboa e Mailiz Garibotti
Lusa tiveram a preocupação em discutir, de modo comparado, através de dados empíricos
e análise teórica, como em países do porte do Brasil, México e Cuba – e com diferenças
consideráveis entre si – são construídas as chamadas políticas públicas para as mulheres,
orientadas nos parâmetros de desenvolvimento sustentável e gênero, considerando as
‘necessidades básicas das mulheres do campo’. Já no texto “A construção de uma agenda
para as questões de gênero, desastres socioambientais e desenvolvimento”, a autora Rosana
de Carvalho Martinelli Freitas se dispõe a apresentar um mapeamento de questões que
envolvem a relação ‘sociedade, desenvolvimento, meio ambiente e gênero’, tendo como
foco os impactos causados pelos desastres, ditos ‘naturais’, que tanto têm chamado a
atenção da sociedade nos últimos tempos (ainda que fugaz e espetacular). A autora traz
importantes reflexões a partir de uma perspectiva marxista, cujo campo teórico, nos últimos
anos, vem debruçando-se com maior atenção sobre a crise ecológica, destacando que a
mercantilização da vida não se esgota na relação capital-trabalho, mas também envolve
a destruição e deterioração da vida de milhares de seres humanos, assim como os próprios
recursos naturais, mercantilizados, privatizados e dilapidados crescentemente, levando o
planeta a uma encruzilhada civilizatória de dimensões alarmantes. Tanto o texto de Rosana

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 865-869, setembro-dezembro/2010 867


CARMEM SUSANA TORNQUIST, TERESA KLEBA LISBOA E MARCOS FREIRE MONTYSUMA

Martinelli Freitas quanto o de Teresa Lisboa e Mailiz Lusa pretendem, a partir de diferentes
perspectivas teóricas, além de analisar situações e questões específicas, trazer elementos
que, em seus entendimentos, deveriam constituir vetores para a elaboração de uma agenda,
de um campo de militância, no enfrentamento das emergências ambientais colocadas na
agenda política.
No texto “Transversalização da perspectiva de gênero ou instrumentalização das
mulheres?”, de Marie France Labrecque, temos uma análise baseada em pesquisa empírica,
na qual se busca compreender como as políticas de transversalização de gênero são
implantadas no México, a partir da conferência de Beijing, ocorrida em 1995. As referências
internacionais são decodificadas e convertidas em políticas locais, no âmbito de um governo
nitidamente conservador e neoliberal, criando um curioso (e revelador) fato: apontando
para os desafios que o feminismo enfrenta ao assistir à instauração de instituições e de
programas voltados à igualdade de gênero, como o que teria ocorrido no México sem,
necessariamente, efetivar compromissos políticos que estão na base das recomendações
das conferências que os formularam.
No texto ‘‘Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio
ambiente”, Tereza Almeida Cruz, historiadora e ativista de movimentos de mulheres no Norte
do Brasil, analisa como mulheres quilombolas, do Vale do Guaporé, em Rondônia, constroem
saberes ambientais de grande utilidade para uma perspectiva de desenvolvimento
orientada para a sustentabilidade. Detentoras e disseminadoras de conhecimentos
constituídos na cultura local, mulheres seringueiras, castanheiras, pescadoras, parteiras,
curandeiras expressam visões de relação com o meio de interação, bem distintas daquelas
que têm embasado o capitalismo e o industrialismo dos últimos séculos. Essas mulheres
partilham concepções com as comunidades às quais pertencem, nas quais os seres
humanos e animais, em correlação com espíritos da floresta e o dito meio ambiente, não
estão separados, nem separados da vida social, nem tampouco são reduzidos à condição
de suporte, ou se prestam a ser matéria-prima para a vida humana, mas fazem parte desta.
Essa ideia aproxima-se daquela que tem alimentado a noção de perspectivismo,7 na
antropologia, que considera que as cosmologias ameríndias não separam a vida humana
das formas de vida do mundo animal e natural, sendo que as relações destes outros seres
com os seres humanos são constitutivas da sua ‘humanidade’.
O artigo de Maria Ignez Paulilo, “Intelectuais & militantes e as possibilidades de
diálogo”, cumpre explicitamente o principal propósito deste dossiê: o de enfrentar
diretamente o debate entre intelectuais e ativistas dos movimentos de mulheres, à luz de
suas pesquisas junto aos movimentos e lutas sociais contemporâneas, com destaque aos
movimentos rurais articulados na Via Campesina, cujas críticas ao modelo de
desenvolvimento capitalista não apenas repousa no seu caráter fortemente excludente,
mas também no caráter predatório dos recursos naturais, em diversos níveis. Além disso, a
autora caracteriza as diversas correntes do movimento de mulheres agricultoras, apontando
a importância que foi adquirindo o feminismo ecológico ou ecofeminismo (ainda que não
de forma declarada), e contribui com instigantes questões acerca das tensões entre o
feminismo acadêmico (fortemente desconstrucionista da noção de natureza) e uma
concepção de natureza inquestionável (o essencialismo), criticado teoricamente no
movimento de mulheres agricultoras.
Ao mesmo tempo, muitos movimentos indígenas da América Latina têm reverenciado
a “Madre Tierra” (tradução possível de Pachamama) como aquela que garante a

7
Esta discussão tem alimentado vários estudos etnológicos realizados nas e sobre as ditas sociedades
indígenas das terras baixas latino-americanas (Eduardo VIVEIROS DE CASTRO,1996.)

868 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 865-869, setembro-dezembro/2010


MULHERES E MEIO AMBIENTE

indivisibilidade entre mundo humano e mundo natural. Estes povos originários têm garantido,
historicamente, a preservação de vastas áreas naturais vistas como seres viventes e, com
isso, subvertido as concepções ocidentais que sustentam as noções de desenvolvimento,
progresso, crescimento, bem como as práticas destrutivas do meio ambiente, como o
garimpo, a derrubada de florestas, a contaminação de rios.
Nesse sentido, povos e culturas menos comprometidos com a modernidade ocidental
podem contribuir com um projeto societário emancipatório, no sentido de valorizar menos o
crescimento econômico e o consumo de mercadorias, e mais o ‘bem viver’, ideia que tem
se fortalecido nos Fóruns Sociais Mundiais e outros encontros do movimento altermundialista.8
Destarte, uma interessante reflexão é colocada por Boaventura Souza Santos: “Seria apenas
coincidência que 80% da biodiversidade se encontre em territórios indígenas? Não. É
porque a natureza para eles é Pachamama – não é um recurso natural”.9 Nessa metáfora
do Planeta Terra (Mãe Terra), as referências à representação (tão questionada pelo feminismo)
de maternidade fica evidente – e demonstra, a nosso ver, como o debate sobre o
ecofeminismo permanece atual também em muitas pesquisas sobre gênero e meio ambiente.
Assim, consideramos que os artigos deste dossiê contribuirão com essa reflexão crítica,
justamente porque repousam em perspectivas teóricas distintas, à luz da tradição desta
revista. Mesmo que seja fundamental desconstruir teoricamente esses conceitos e essas
imagens, tanto quanto as categorias de desenvolvimento e de sustentabilidade, meio
ambiente e natureza, é importante reconhecer sua força ideológica (quiçá, mítica) e procurar
compreender quais seus sentidos, sua força no plano da vida concreta e das lutas sociais
em prol de outros devires.

Referências bibliográficas
BRAIDOTTI, Rosi. “Mujeres, medio ambiente y desarrollo sustentable”. In: GARCÍA, Verónica
Vázquez; GUTIÉRREZ, Margarita Velásquez (Compiladoras). Miradas al futuro – hacia la
construcción de sociedades sustentables con equidad de género. México: PUEG, CRIM/
Centro Internacional de Investigaciones para el Desarrollo/Colegio de Posgraduados,
2004. p. 23-59.
FALQUET, Jules. De gré ou de force. Les femmes dans la mondialisation. Paris: La Dispute,
2008.
SANTOS, Boaventura Souza. Renovar a teoria critica, e reinventar a emancipação social.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
VASSEUR, Liette. “L’écologie: une science ou un enjeu de la vie quotidienne?” Recherches
Féministes, Montreal, UQAM, v. 22, n. 1, p. 1-4, 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”.
Mana, v. 2, n. 2, p. 115-144, out. 1996.

8
SANTOS, 2007, p. 25.
9
SANTOS, 2007, p. 33.

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 865-869, setembro-dezembro/2010 869


24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

Ex aequo Serviços Personalizados


versão impressa ISSN 0874-5560
Journal
Ex aequo n.22 Vila Franca de Xira 2010
SciELO Analytics

Google Scholar H5M5 (2017)


Os feminismos habitam espaços hifenizados – A Localização e
interseccionalidade dos saberes feministas Artigo

Português (pdf)

Artigo em XML
João Manuel de Oliveira
Referências do artigo
Universidade do Minho
Como citar este artigo

SciELO Analytics
Resumo
Tradução automática
Este ensaio revisita alguma produção teórica na área da teoria feminista e Enviar este artigo por email
dos espaços hifenizados que com ela se foram gerando, como sejam os
feminismos negros e os feminismos lésbicos. Esta re-visita a lugares Indicadores
recentes assume uma preocupação com a situação e contextualização dos
conhecimentos, para a partir deles derivar alguns pressupostos que Links relacionados
permitam posicionamentos críticos dentro da pesquisa feminista. Compartilhar
Destacamos a produção de Donna Haraway que nos mostra como os
feminismos devem habitar em lugares cada vez mais hifenizados e Mais
marcados pela interseccionalidade.
Mais
Palavras-chave Interseccionalidade, localização, feminismos, teoria
feminista, habitar. Permalink

Abstract

Feminisms inhabit hyphenated spaces: location and intersectionality of feminist knowledges

This text revisits some of the theoretical production in the area of feminist theory and of the spaces of
intersection that generated from feminist theory such as black feminism and lesbian feminism. This re-vision to
these recent places in feminist theory is aimed at the location and contextualization of knowledges to generate
some propositions for critical positions in feminist research. We focus the production of Donna Haraway that
shows us how feminism should inhabit spaces marked by intersectionality.

Keywords Intersectionality, location, feminisms, feminist theory, inhabit.

Résumé

Les féminismes habitent dans espaces reliés: localisation et intersectionalité des savoirs feministes

Ce texte revisite une partie de la production théorique dans le domaine de la théorie féministe et des espaces
d'intersection qui sont générés a partir de la théorie féministe comme le féminisme noir et le féminisme lesbien.
Cette re-vision de ces lieux récents de la théorie féministe envisage une localization et une contextualization des
connaissances pour générer des propositions pour quelques positions critiques dans la recherche féministe. La
production de Donna Haraway nous montre comment le féminisme doit habiter des espaces marqués par
l'intersectionnalité.

Mots-clés Intersectionalité, localisation, feminismes, théorie féministe, habiter.

www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 1/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

«Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar
a sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a
subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem para mim, olhem
para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente.
E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre
que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu
mulher?»

Sojourner Truth (1851). Citada por Carmo & Amâncio (2004), Vozes Insubmissas1

A proposta de um dossier temático sobre «habitar» leva-nos a pensar no modo como os feminismos
contemporâneos se localizam num espaço cada vez mais hifenizado, isto é, em espaços dialógicos (Bakhtin,
2006; Bakhtin, Holquist, & Emerson, 1998), marcados por uma necessidade de estabelecer um diálogo com
outras áreas de produção teórica. Mais do que espaços dialogantes, são espaços conceptualmente intersticiais
(Bhabba, 2004) marcados pela liminaridade e pela recusa da erecção de fronteiras estanques entre os saberes.
Estes espaços intersticiais implicam uma construção de saberes hifenizados, marcados também pela hibridização
e pelas múltiplas contradições que irão atravessar esses campos do saber, já esquecidos das fronteiras
disciplinares da científica e inscritos numa lógica de transversalização dos saberes, tematicamente organizados.
Essa organização dos saberes não é hierárquica e poderíamos pensá-la como rizomática: «um rizoma não
deixaria de conectar elos semióticos, organizações de poder, ocorrências que apontam para as artes, para as
ciências, para as lutas sociais» (Deleuze e Guattari, 2007: 26).

Inclino-me a considerar que a teoria feminista habita neste espaço de interstícios,onde os cruzamentos
conceptuais construíram um monstro (Haraway, 1992), uma forma híbrida de saberes, particularmente útil para
compreender e ler um mundo onde se perdeu a ilusão da estabilidade identitária e onde a diversidade precisa de
lentes mais afinadas e sofisticadas para ser percebida. Defendo também a perspectiva de que o feminismo,
enquanto espaço de intervenção científica e filosófica, não é acantonável a uma unicidade de perspectivas.
Igualmente a minha proposta é pois que os feminismos habitam em espaços marcados pela hifenização. Assim o
ponto de partida deste texto são os espaços habitáveis pelo feminismo na sua encarnação. De modo, que
entendo aqui a noção de habitar como um ponto de interrogação, como uma marca questionadora desses
espaços conceptuais. Uso habitar como um verbo (performativo), não como um lugar preciso, apesar de o verbo
implicar a localização. Onde se quer localizar a teoria feminista? Qual as modalidades que recorre para dar
sentido a essa habitação? Este texto não indaga sobre um sujeito para o feminismo, procura sim, quais os
espaços em que os feminismos podem habitar em termos da sua produção conceptual. E o termo habitar passa a
ganhar ressonâncias diferentes, como uma ferramenta de imaginação epistemológica de questionamento sobre o
modo como o conhecimento é construído, por quem é construído e quais os limites a essa construção (Mbembe &
Nuttall, 2004). Ora na teoria feminista creio que a separação sujeito-objecto não apresenta qualquer sentido e
apenas reproduz uma visão disciplinar dos saberes de raiz cartesiana, que não permite sequer representar muitos
dos saberes feministas, assentes numa ética de implicação (Nogueira, 2001) e numa lógica parcial (Haraway,
1988). Assim, creio que a noção de habitar permite uma melhor explicitação dos espaços conceptuais que a
teoria feminista visita e revisita, pois permite manter quer uma política de localização (Rich, 1984/1993), quer
manter as fronteiras epistémicas abertas sobre quem conhece quem. Sobretudo possibilita manter a imaginação
epistemológica alerta sobre novas formas de pensar a teoria feminista.

A interseccionalidade de alguns projectos feministas2

Uma das figurações lendárias para esta hifenização é Sojourner Truth, sobre a qual nunca é demais citar as suas
palavras em 1851 na Convenção sobre os Direitos das Mulheres, em Akron:

Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar a
sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a
subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem para mim, olhem
para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente.
E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre
que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu mulher?
(Sojourner Truth, 1851, citada por Carmo & Amâncio, 2004: 227).

O tom crítico deste discurso de uma ex-escrava e posteriormente activista pela igualdade e pelos direitos civis da
população negra permite antecipar algumas das contradições de um feminismo sem ter em conta outras formas
de opressão. Sendo o género uma forma de opressão, como se explica que dentro dessa estrutura, hajam
modalidades específicas de opressão, modeladas por outros sistemas sociais que com o género se intersectam,
como atesta o discurso com mais de cem anos de Sojourner Truth? Este é um dos primeiros sinais de que o
feminismo centrado exclusivamente no género ou mesmo na diferença sexual não seria suficiente para explicar
as contradições vividas pelas mulheres negras.

www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 2/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

Um contributo muito relevante é trazido pelas propostas da interseccionalidade que marcam o feminismo negro,
desde os tempos do Combahee River Collective (Combahee River Collective, 1977). Essa marca interseccional
está presente até na crítica que desferem ao separatismo (de algum) do feminismo lésbico, pois para este
movimento de feministas negras havia muito a perder com a adesão ao separatismo dos grupos feministas. Pelo
contrário, advogam antes que «a inclusão das nossas políticas fazem-nos preocupar com qualquer situação que
determine a vida das mulheres, das pessoas do Terceiro Mundo e das pessoas que trabalham. Estamos
comprometidas com o trabalho sobre essas lutas em que raça, sexo e classe sejam factores simultâneos de
opressão» (Combahee River Collective, 1977:170). Será mais tarde que o conceito de interseccionalidade irá
adquirir relevância na teoria do género, mas o conceito foi trazido pela praxis feminista de grupos como este.

Surgido nos 70, o feminismo negro é marcado também pelo movimento negro e pelas lutas anti-racistas que vão
marcar a agenda política americana nesta década (Nogueira, 2001). O feminismo negro é um dos campos mais
activos na década de 80, na produção teórica e no activismo e vai marcar a reflexão feminista desde então.
Igualmente emergente, o feminismo chicano vem marcar a agenda do feminismo traduzindo a importância de
pensar as mulheres vindas da América Latina e o seu lugar no mundo e na sociedade norte-americana. Estes
modelos feministas permitiram que se comecem a trabalhar no feminismo a partir de noções mais inclusivas,
introduzindo a «raça» e a cultura como balizas para pensar e para integrar mulheres, que antes não eram alvo do
pensamento feminista. Ou pelo menos que não se reviam nestas propostas, quando aquilo a que bell hooks
(hooks, 1984/2004) chama o feminismo branco, interpelava as mulheres.

É precisamente por criar uma crítica ao feminismo, assente na exclusão das negras, que permite a bell hooks
(hooks, 1981) avançar para este projecto do feminismo negro. As modalidades da crítica de bell hooks centram-
se em duas dimensões específicas: a importância da continuidade do feminismo enquanto discurso critico do
sexismo que atravessa toda a sociedade e a denúncia do racismo dentro do feminismo branco. No que toca à
primeira dimensão, bell hooks (hooks, 1984/2004) vem na continuidade da tradição feminista. Contudo, condena
e critica a pretensão universalista das propostas feministas, nomeadamente no que toca à universalidade da
experiência feminina branca de classe média. O pressuposto da obra de Betty Friedan (Friedan, 1963/1975), de
que as donas de casa casadas com educação universitária e de classe média são equivalentes ao grupo das
«mulheres» e que as «mulheres» sofrem do «problema sem nome» que são os efeitos de terem uma educação
superior e não trabalharem, não almejando outro destino que não seja o trabalho doméstico e a educação dos
filhos, é um dos exemplos que bell hooks (hooks, 1984/2004) dá de feminismo branco.

Partir do pressuposto de que as mulheres não trabalhavam nos anos 50, nos Estados Unidos, implica obliterar as
negras e as brancas pobres, isto é, implica esquecer que mais de um terço das mulheres norte-americanas
trabalhavam nesta época. Necessariamente, para bell hooks (hooks, 1984/2004), as feministas brancas reflectem
o discurso racista e de supremacia branca da sociedade americana. Ainda que a opressão sexista seja uma
experiência comum a todas as mulheres, não é suficiente para homogeneizar esta experiência.

As mulheres negras não têm nenhum outro na escala social que possa estar numa situação de subalternidade
(Spivak, 1996), o que lhes permite pensar o feminismo a partir de uma posição de marginalidade. Essa posição
de marginalidade permite-lhes criticar as hegemonias racistas, classistas e sexistas e criar outras práticas
feministas que permitam contrariar estas ditas hegemonias.

É neste âmbito que as propostas da interseccionalidade vão ganhar corpo. Na ideia de que não é possível estudar
e intervir separadamente sobre pessoas que sofrem duplas e triplas experiências de discriminação assentes numa
experiência de opressão marcada pelo género, classe e raça. Patricia Hill Collins (Collins, 2003) analisa o triplo
processo de segregação das mulheres negras nos Estados Unidos e mostra como a exploração das mulheres afro-
americanas é marcada por uma dimensão económica, política e ideológica. Assim, em termos económicos, o
trabalho mal pago das negras no pós-esclavagismo colocou-as maioritariamente numa situação em que a
sobrevivência era a principal das suas preocupações,aceitando a ghettização das ocupações mal pagas que lhes
eram destinadas no quadro do capitalismo. A dimensão de opressão politica implicou a recusa da atribuição de
direitos sociais e civis à população negra tanto no plano dos direitos políticos, ao trabalho e do acesso à
educação, partilhando as mulheres negras uma condição marcada pela exclusão de direitos justificada por um
sistema racista. No plano ideológico, os estereótipos das negras ditados por um sistema racista e sexista
naturalizaram essa opressão no plano identitário. A análise de Collins (Collins, 2003) mostra como estas três
áreas criaram um sistema de exclusão e controlo social para as mulheres negras.

Como se pode depreender nesta análise, não é possível perceber de forma separada os mecanismos de exclusão
envolvidos nesta intersecção entre vários planos de opressão. Angela Davis (Davis, 1982) já tinha evidenciado o
modo como sexo, raça e classe social se cruzam para gerar a discriminação específica e profunda opressão vivida
pelas mulheres negras.

É contudo apenas com Kimberley Creshaw que o termo ganha um conceito e se inicia uma teorização mais
sistemática da interseccionalidade (Cole, 2009), que é definida como uma área de investigação que estuda os
significados e as consequências das múltiplas pertenças categoriais. Sem nos pretendermos alongar mais na
interseccionalidade como área de investigação (Nogueira, no prelo), é possível desde já perceber o ênfase
colocado num habitar marcado por categorias que se intersectam.

Igualmente importantes, para este propósito são as propostas de Gloria Anzaldúa (Anzaldúa, 1987/2004),
nomeadamente por duas questões: a importância que vem dar à indefinição de fronteiras, introduzida no seu
pensamento pela figuração da mestiza, mas também pelas suas próprias tecnologias de escrita, que misturam o
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 3/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

ensaio no sentido académico, e a alimentação de uma narrativa ficcional e auto-biográfica. O enaltecimento da


figuração híbrida, permite a Anzaldúa, propor a confusão de fronteiras, enquanto maneira de problematizar a
identidade chicana, das mulheres de origem sul-americana, residentes nos Estados Unidos. Constata-se, contudo,
que as propostas de Anzaldúa, embora estilisticamente associáveis às propostas do standpoint, filiadas portanto
na óptica do feminismo radical, já apresentam características pós-modernas (Macedo, 2008), nomeadamente a
preocupação com a hibridização e com as questões da etnicidade e dos pós-colonialismos.

Conforme foi patente nesta revisita a textos centrais dos feminismos, torna-se por demais evidente que o
processo de centramento dos feminismos na ideia de «mulher» deixava de fora uma série de processos e de
hierarquias sociais, que se tornam claras quando se usa a interseccionalidade para proceder ao questionamento
das elaborações entre género, raça e classe como maneira de analisar de forma localizada as opressões. Assim,
esta interseccionalidade dos saberes feministas situa-se na linha do que fora proposto por Adrienne Rich (Rich,
1984/2003), que se propõe pensar o feminismo como uma politica de localização, isto é, caracterizando os
saberes feministas como não deslocalizados, nem universalistas. A crítica a uma noção essencialista de mulher
que não tem em conta a diversidade das mulheres é feita também a partir desta ideia de localização. Ou seja, a
teoria feminista deixa de querer habitar apenas nesse espaço da «mulher» e passa a querer entender as
imbricações das várias multitudes contidas nessas mulheres.

As lésbicas não são mulheres?

Um outro local de reelaboração conceptual dos feminismos, particularmente nas décadas de 70 e 80, foi o
feminismo lésbico, onde as questões da opressão da sexualidade se cruzaram com a opressão de género

Poderíamos entender as propostas do feminismo lésbico, a partir quer das suas influências enquanto movimento
social, quer das suas propostas para a teoria feminista. Emergindo do feminismo radical, as propostas do
feminismo lésbico são determinantes para a constituição das teorias feministas. Para ilustrar a problematização
do feminismo lésbico nos modos como infectar uma teoria feminista ainda marcada pelo fetichismo da noção de
mulher e propor a lésbica como outra categoria para habitar as preocupações feministas, escolhemos Monique
Wittig. É com Wittig (Wittig, 1992), que são integrados uma série de potenciais teóricos que continuaram a ser
explorados (Butler, 1990) e que possibilitaram um entendimento mais amplo das relações entre os sistemas de
género e a heterossexualidade normativa.

O sistema normativo a que Wittig (Wittig, 1992) vai aludir e teorizar é precisamente a heterossexualidade como
máquina de produção de sujeitos heterossexuais. O exemplo específico da população lésbica permite entender
como, num sistema em que a heterossexualidade é normativa, é negada às lésbicas toda a possibilidade de criar
as suas próprias categorias. Daí que as propostas de Wittig (Wittig, 1992), venham traduzir uma preocupação em
desconstruir o pensamento heterossexual, que ela define como uma ideologia inquestionada, reproduzida nas
ciências e nos discursos, que marca conceitos como «mulher», «homem», «sexo», «diferença sexual»,
presumindo a existência de uma base natural, para lá dos discursos das construções sociais. Essa base é a
relação heterossexual. O pensamento heterossexual3 não é problematizado nem teorizado, precisamente por se
pressupor a sua universalidade.

A exclusão provocada por este sistema de pensamento é pois o apagamento do lesbianismo e da


homossexualidade, num jogo de ocultação dos termos: teoriza-se que o tabu do incesto é a maior proibição,
quando na realidade é a homossexualidade. Assim, diferença sexual é um conceito a ser repensado.
Nomeadamente por só fazer sentido com o pensamento heterossexual. Tal como a ideia de mulher e homem, que
só têm cabimento na manutenção da heterossexualidade enquanto sistema hegemónico. A proposta de Wittig, é
de que as lésbicas não são mulheres, retirando as lésbicas do sistema hegemónico heterossexual e também do
domínio da diferença sexual.

A desconstrução da ideia de mulheres é feita, no ano seguinte, em Wittig (Wittig, 1992). Num título que faz ligar
o ensaio de Wittig a «O Segundo Sexo» de Simone de Beauvoir (Beauvoir, 1949/1975), são enunciadas as
propostas e as consequências da afirmação célebre de que as lésbicas não são mulheres. Como Beauvoir
(Beauvoir, 1949/1975), Monique Wittig (Wittig, 1992), recusa a biologização do feminino. O carácter
naturalizador destas categorias de homem ou de mulher, implica uma naturalização da própria opressão, de
fenómenos que são históricos e políticos.

A opção por um feminismo assente na diferença contribui para este processo, nomeadamente pela capitulação ao
patriarcado4: a celebração de diferenças e das características positivas da feminilidade corresponde a assumir os
melhores traços que as relações de dominação atribuem às mulheres. Assim o feminismo da diferença traduz a a-
historicidade do género. Desta forma, e recusando a heterogeneidade do grupo das mulheres, opta-se pelo mito
da mulher, e salientam-se as suas diferenças em relação ao mito do homem.

Este processo revela pois, o carácter político da categoria mulher e a sua dependência do pensamento que Wittig
caracteriza como pensamento heterossexual. Dado que, fora deste sistema ideológico não teria sentido a
manutenção das categorias de sexo, promovendo-se assim a subjectividade, enquanto critério de diferenciação
entre pessoas e não as características presumivelmente associadas ao sexo. O que, para Wittig (Wittig, 1992),
constitui uma mulher é a sua relação social específica em relação aos homens, relação de dominação dentro de
um sistema heterossexual.

www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 4/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

A estratégia de luta contra a subordinação das mulheres passa por destruir o pensamento heterossexual e
destruir o próprio conceito de mulheres, precisamente para evitar a subordinação das mulheres aos homens. Esta
proposta é necessariamente incompatível com qualquer projecto assente na diferença sexual. Para Wittig, a
categoria «mulher» transporta consigo a inevitabilidade da dominação, por isso importa desconstrui-la. Desta
forma, o acesso das mulheres a um estatuto de sujeito universal, só ocorre com a desconstrução da categoria
«mulher».

Verificámos como o trabalho do feminismo lésbico introduziu uma ruptura no pensamento feminista, na denúncia
dos fenómenos heterossexistas e da heterossexualidade como modelo politico de organização social no
patriarcado. Vemos como a lésbica se torna um ponto de inflexão no discurso de que a teoria feminista se deve
cingir a habitar no espaço da mulher. Como fazê-lo, se as lésbicas não são mulheres (Wittig, 1992)? A imbricação
destas várias modalidades de opressão, que se cruzam e se interligam, é pois, um pressuposto dos feminismos
pós-estruturalistas, como irá evidenciar Donna Haraway, cujo pensamento daremos conta na secção seguinte.

As figurações feministas e a obra de Donna Haraway: o prazer na confusão das fronteiras

A manifesto for cyborgs (ou ciborgue na tradução portuguesa – ver Macedo, 2001) é um texto (Haraway,
1985/1991) que vem inaugurar e estabelecer um programa para a 3.ª Vaga do Feminismo. Para Haraway
(Haraway, 1985/1991), a tecnologia está no mundo e pode ser usada como se entender, sem que isso seja
necessariamente positivo ou negativo para o feminismo. O pressuposto de Haraway (Haraway, 1985/1991) é que
incorporámos a tecnologia e por isso, obliterar essa incorporação da tecnologia é manter uma ingenuidade, que
Haraway (Haraway, 1985/1991) critica em autoras como Adrienne Rich e Audre Lorde. Essa ingenuidade está
presente na maneira como estas autoras e nomeadamente o ecofeminismo abraçaram a noção de organismo.

Ora Haraway (Haraway, 1985/1991) demonstra que não é possível pensar os organismos, sem ter em conta que
fazem parte de uma ideologia oposicional (Sandoval, 1995 citada por Haraway, 1985/1991) com a máquina. O
manifesto centra-se pois em desconstruir estas oposições, elegendo como figuração feminista (Haraway,
1985/1991), a imagem d@ ciborgue. @ ciborgue assenta na lógica de ultrapassar os dualismos, numa época em
que cada vez mais deixa de fazer sentido pensarmo-nos como uma espécie de humanos puros, sem ter em conta
o papel crescente da tecnologia nas nossas modalidades de incorporação. Esta figuração, esta metáfora
incorporada, assente na ideia de hibridização, vai possibilitar a construção de um discurso sobre a ciência e a
tecnologia, problematizando as fronteiras entre humanos e não humanos, físico e biológico e entre orgânico e
inorgânico.

Inspirada pela ficção científica, pelo feminismo e pelo socialismo, para Haraway (Haraway, 1985/1991), a figura
ciborgue permite prever alterações radicais na estrutura do poder/saber e de bio-poder (Foucault, 1976/1994),
nas concepções de humanidade e alterações radicais na estrutura patriarcal de género.

Esta figuração ciborgue permite que se utilize enquanto figura geradora de tensões por resolver e enquanto
híbrido que permite fazer a contestação das categorias de humanidade, género e «raça». A rejeição desta
categoria essencializada da «mulher» permite a Haraway afirmar que o género é uma relação social, atravessada
por outras como a etnicidade, a cultura, a orientação sexual, a classe social, entre outras.

Esta contestação do feminino enquanto essência e a consideração do género num feixe de relações sociais,
práticas científicas e políticas no seio das sociedades contemporâneas, introduz igualmente a questão da
homogeneização da categoria «mulheres». Para Haraway (Haraway, 1985/1991) deixa de fazer sentido falar em
nome das «mulheres» ou assentar a teoria feminista na ideia essencializada de mulher. Estamos no domínio da
problematização desta ideia de mulheres, para passar a englobar outras categorias dominadas que se
intersectam com a categoria de mulher, mas também outras que partilham com a categoria uma história e uma
sociologia de dominação.

Necessariamente, o projecto feminista vê em parte o seu sujeito histórico ameaçado. Foi a partir da ideia de
mulher que se questionou o sistema patriarcal e se reivindicou a extensão da democracia às mulheres. Através
da homogeneização da ideia de mulheres, escondem-se situações e contextos diferentes. Lésbicas, negras,
mulheres de culturas não ocidentais, pobres, constituem exemplos de situações divergentes da mulher branca
ocidental e heterossexual e de classe média, pensada enquanto sujeito do feminismo, aptamente denunciada pelo
feminismo negro (hooks, 1981). Trata-se de reposicionar conceptualmente o feminismo, voltando-se mais para
um questionamento da dominação do que focar-se exclusivamente, como fez o feminismo radical cultural para a
saliência de uma categorias sobre as outras. Com isto não se pretende condenar a acção política e activista em
termos da ideia de mulher, mas mostrar como uma reflexão sobre o feminismo enquanto prática de interrogação
do mundo não pode prescindir de uma análise que tome mais questões em linha de conta.

O projecto de Haraway (Haraway, 1985/2003: 250) para o feminismo parte desta ideia:

A imagética ciborgue pode apontar um caminho para sairmos do labirinto de dualismos em que
explicámos a nós mesmas os nossos corpos e as nossas ferramentas. Este sonho não é um sonho
de uma língua comum, mas uma poderosa e infiel heteroglossia. É a imaginação de uma feminista
que fala em línguas capazes de infundir o medo nos circuitos supersalvadores da nova direita.
Significa, simultaneamente construir e destruir máquinas, identidades, categorias, relações e
histórias espaciais. Embora estejam ambos presos um ao outro numa dança em espiral, antes
queria ser ciborgue do que deusa.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 5/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

A imagem bíblica (ou blasfema) da feminista (ou deveríamos dizer d@?), falando em línguas, inspira o projecto
feminista a seguir este caminho. Um caminho marcado pela polifonia, em que as várias vozes localizadas, irão
construir saberes que por vezes podem parecer contraditórios, mas que constituem essa manta de retalhos que
será a teoria feminista e o feminismo, que deixam de ter sentido no singular e adquirem-no apenas no plural.
Conforme iremos ver, esta proposta irá abrir uma nova epistemologia feminista, a ideia de conhecimentos
situados (Haraway, 1988/1991), a que aludiremos adiante. Donna Haraway prepara o caminho para a
desconstrução das fronteiras taxonómicas e categoriais que um mundo herdeiro do iluminismo adoptou. Para o
género, as consequências são enormes: pressupõe-se no género, uma ideia de relação, que é simultaneamente
intersectada pela «raça», a orientação sexual, a cultura, etc. Com Donna Haraway, o género passará não só a
construir e simultaneamente a desconstruir as categorias de homem e de mulher, mas também a estudar @s
innapropriate/d others (Trihn, 1989), aqueles que estão fora do sistema sexo/género (Rubin, 1984/1993).

A própria proposta de Haraway abre o caminho, para o que ela própria, vem designar como as promessas dos
monstros (Haraway, 1992). Veja-se o caso d@ ciborgue: entidade pensada no contexto da guerra fria, para fins
militares, o primeiro ciborgue é um rato com um êmbolo, que é implantado no seu organismo para lhe transmitir
determinadas hormonas (ver Gray, 1995 para uma análise). A reapropriação feminista do ciborgue, na era
Reagan, permite uma utilização dessa metáfora resistente às oposições categoriais no âmbito do feminismo, re-
significando uma figura que decorre de um sistema bélico e sexista.

Quem habita os Feminismos são híbrid@s

Nas suas propostas mais epistemológicas, Haraway (Haraway, 1988/1991) propõe um processo de reestruturação
das epistemologias feministas, conhecido como conhecimentos situados onde questiona a construção do tropo da
objectividade nos processos de legitimação do conhecimento científico, condenando a exclusão das relações de
poder e do próprio processo de construção do saber, dos manuais e artigos científicos.

Para Haraway (Haraway, 1988/1991), a ideia de objectividade é precisamente a justificação discursiva que
legitima o conhecimento científico como verdade, relegando as fundações contingentes (Butler, 1991) desse
saber, nomeadamente a sua contingência histórica, política e cultural. Mas esta desconstrução e atenção à
localização dos saberes, precisamente por ser balizada pela implicação política feminista, evita cair no
universalismo e no relativismo. «O relativismo é uma maneira de estar em parte nenhuma enquanto se afirma
estar em toda a parte» (Haraway, 1988/1991: 191). Tanto o universalismo tentador como a negação de
responsabilidade relativista impedem a responsabilização pela construção dos saberes.

Num texto onde reflectimos sobre os conhecimentos situados, afirmámos:

Os conhecimentos situados correspondem a uma incorporação dos saberes, partindo da opção


pela responsabilidade na produção dos saberes e pela sua localização sócio-histórica. Assim a
objectividade na produção feminista assenta na parcialidade, no olhar contextualizado, em vez dos
falsos universalismos da ciência positiva, indissociavelmente inscrita na meta-narrativa patriarcal e
moderna, em busca de verdades para a sua auto-legitimação (Oliveira e Amâncio, 2006: 601).

É este tipo de epistemologia que Donna Haraway propõe como metodologia para a arqueologia do saber
(Foucault, 1969) do que conta como humano. Uma proposta assente nas vantagens epistemológicas da
parcialidade, sobre a omnisciência da suposta objectividade que obscurece mais do que realmente clarifica. Este
posicionamento implica uma proximidade face ao objecto no sentido a que Haraway (Haraway, 1988/1991) dá
aos conhecimentos situados. Trata-se de utilizar o privilégio da perspectiva parcial que nos permite estar
simultaneamente inserid@s no quadro do objecto e produzir conhecimento sobre ele, a partir dessa inserção. O
contributo desta análise para as epistemologias feministas implica uma mudança de concepção. Os projectos de
pesquisa de conhecimentos situados não são marcados pelo distanciamento positivista com pretensões de
universalidade ou neutralidade. São antes, uma pesquisa marcada pela interpretação necessariamente parcial e
por isso, não pretende constituir-se como uma explicação de factos ou constituição de modelos teóricos
reprodutíveis a outras situações. Assumir o papel de testemunhas modestas como propõe Haraway (Haraway,
1998), implica sujeitos situados, produtor@s de conhecimentos contextuais e responsáveis localizáveis pela
produção desse conhecimento. E é esse o espaço para a pesquisa feminista.

O contributo de Haraway é também fundamental para pensar o espaço conceptual do humano. Se no início da
modernidade, o humano estava incluído na categoria de cidadão e, por isso, as mulheres eram colocadas fora
desse âmbito, graças ao paradoxo da modernidade que Joan Scott (Scott, 1997) identifica –, a coexistência da
universalidade dos direitos com a universalidade da diferença sexual – hoje em dia, a ideia de humano continua a
ser um tropo que permite incluir e excluir. O que constitui uma forma particularmente eficaz de exercer uma
relação de dominação, através da classificação dos grupos em termos das distâncias em relação ao referente
humano. Para figurar a humanidade, a partir de uma perspectiva feminista, Haraway (Haraway, 1992), recorre à
figura de Sojourner Truth, um exemplo do que pode ser uma figuração do que possibilita «figurar uma
humanidade colectiva sem construir o fechamento cósmico de uma categoria não marcada» (Haraway, 1992: 92).
Isto é, possibilita uma hipótese de figuração fora dos limites da inclusão que a categoria «humano», construída
num determinado «regime de verité» e no seio do projecto de saber-poder (Foucault, 1976/1994), a que
Haraway denomina tecnociência.

Esta análise de Haraway de uma figuração da humanidade que não é apenas mulher, apenas negra, apenas
escrava, apenas pobre, apenas feminista conduz-nos pois a pensar já não num sujeito feminista, mas numa
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 6/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

figuração dos feminismos numa óptica de intersecção. Os feminismos são já (provavelmente sempre o foram)
espaços onde para explicar a complexidade da intersecção entre categorias que cada um/a ocupa e habita é
necessário recorrer a abordagens que integrem e que situem essa experiência na sua intersecção. Ou seja, os
feminismos não devem apenas localizar-se no género ou em explicações relativas às posições relativas de
homens e de mulheres.

Este cepticismo em relação à ideia da mulher poder continuar a ser considerada como sujeito do projecto
feminista foi posta em causa, dado que esta grande categoria ilude as divisões intra-categoriais.

Afirmámos recentemente num texto colectivo (Oliveira, Pinto, Pena & Costa, 2009) que o feminismo queer era
uma condição de viabilidade dos próprios projectos feministas. Retomando textos fundamentais para a
compreensão da teoria feminista vemos como este propósito de hibridização de saberes está presente no
feminismo não só desde os anos 70, com os feminismos lésbicos e negros, mas desde Sojourner Truth, quando
1851 proferiu o célebre discurso «Ain't I a Woman?». Fundar o feminismo numa experiência sexuada, branca,
ocidental corresponde a privilegiar exclusivamente uma faceta do feminismo. Com Haraway, torna-se evidente
que não é conceptualmente relevante continuar a fazê-lo sem situar estes conhecimentos numa matriz muito
mais complexa que engloba as redes onde as mulheres estão, marcadas pela confluência de sistemas múltiplos
de opressão e privilégio. Não é possível continuar a produzir uma teoria feminista que atenda exclusivamente ao
género. Sem abdicar deste conceito nem da sua proficuidade conceptual e analítica, é necessário hifenizar o
género com questões de «raça», sexualidades, classe social, e outros sistemas para produzir teorias feministas,
não unificadas que desafiem esta construção de fronteiras e que possibilitem a análise e a praxis a partir de
pontos multifacetados que nos conduzam ao espaço dos hífens, onde nunca se é apenas um/a, mas múltipl@. É
no espaço politico e conceptual do feminismo (Pollock, 2001) enquanto produto precário de um paradoxo, de
permanente desconstrução do seu objecto/sujeito que localizamos este projecto político, da hifenização constante
dos feminismos.

Habitar esse espaço conceptual híbrido, marcado pelo hífen e já não apenas com o plural da ideia de mulher
implica um reposicionamento das propostas feministas. Nomeadamente a recusa de um sujeito histórico do qual
o feminismo se ocupa inteiramente e a substituição dessa noção fundacionalista por uma preocupação com os
múltiplos cruzamentos conceptuais e políticos, uma recusa da erecção de fronteiras. Habitar em vez de um
sujeito parece-me um bom princípio de conversa…

Referências bibliográficas

Anzaldúa, Gloria (1987/2004), «Movimientos de rebeldia y las culturas que traicionam», in hooks, bell, Brah,
Avtar, Sandoval, Chela & Anzaldúa, Gloria (Orgas), Otras inapropriables: feminismos desde las fronteras, Madrid,
Traficantes de Sueños, pp. 71-79.

Bakhtin, Mikhail (2006), The Dialogic Imagination: Four Essays, Austin, University of Texas Press.

Beauvoir, Simone de (1949/1975), O Segundo Sexo, Lisboa, Bertrand.

Bhabha, Homi (2004), The Location of Culture, New York, Routledge.

Butler, Judith (1990), Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, NewYork, Routledge.

Butler, Judith (1991), «Contigent Foundations: Feminism and the Question of Post-modernism», in Butler, Judith
& Scott, Joan (Orgas.), Feminists Theorize the Political, NewYork, Routledge, pp. 3-21.

Carmo, Isabel, & Amâncio, Lígia (2004), Vozes Insubmissas: A História das Mulheres e dos Homens que Lutaram
pela Igualdade dos Sexos Quando era Crime Fazê-lo, Lisboa, Dom Quixote.

Cole, Elizabeth (2009), «Intersectionality and Research in Psychology», American Psychologist, 64, pp. 170-180.

Collins, Patricia Hill (2000/2003), «The Politics of Black Feminist Thought», in McCann, Carole & Kim, Seung-
Kyung (Orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 318-333.

Combahee River Collective (1977/2003), «A Black Feminist Statement», in McCann, Carole & Kim, Seung-Kyung
(Orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 164-173.

Davis, Angela (1982), Women, Race and Class, London, The Women's Press.

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (2007), Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, Lisboa, Assírio & Alvim.

Foucault, Michel (1976/1994), História da Sexualidade – A Vontade de Saber, Lisboa, Relógio d'Água.

Friedan, Betty (1963/1975), A Mística Feminina, Lisboa, Ulisseia.

Gray, Chris (1995), The Cyborg Handbook, New York, Routledge.

www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 7/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

Haraway, Donna (1985/1991), «A Manifesto for Cyborg: Science, Technology and Socialist Feminism in the Late
20th Century», in Donna Haraway (Orga.), Symians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature, New York,
Routledge, pp. 149-182.

Haraway, Donna (1985/2004), «Manifesto Ciborgue», in Macedo, Ana Gabriela (Orga.), Género, Identidade e
Desejo: Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, Lisboa, Cotovia, pp. 221-250.

Haraway, Donna (1988/1991), «Situated knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of
Partial Perspective», in Haraway, Donna (Orga.), Symians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature, New
York, Routledge, pp. 183-202.

Haraway, Donna (1992), «Ecce homo, ain't (a'r'n't) I a Woman and Innapropriate/d Others: The Human in a Post-
humanist Landscape», in Butler, Judith & Scott, Joan (Orgas.), Feminists Theorize the Political, NewYork,
Routledge, pp. 86-100.

Haraway, Donna (1998), Modest Witness@Second Millenium. FemaleMan Meets OncoMouse: Feminism and
Technoscience, New York, Routledge.

Haraway, Donna (2004), The Haraway Reader, New York, Routledge.

hooks, bell (1981), Ain't I a Woman? Black Women and Feminism, New York, South End Press.

hooks, bell (1984/2004), «Mujeres negras: dar forma a la teoria feminista», in hooks, bell, Brah, Avtar, Sandoval,
Chela & Anzaldúa, Gloria (Orgas.), Otras inapropriables: feminismos desde las fronteras, Madrid, Traficantes de
Sueños, pp. 33-50.

Macedo, Ana Gabriela (2009), Narrando o Pós-moderno: Reescritas, Re-visões, Adaptações, Braga, Universidade
do Minho/CEHUM.

Mbembe, Achille & Nuttall, Sarah (2004), «Writing the World from an African Metropolis», Public Culture, 15, pp.
347-373.

Nogueira, Conceição (2001), Um Novo Olhar Sobre as Relações Sociais de Género. Perspectiva Feminista Crítica
na Psicologia Social, Lisboa, Gulbenkian.

Nogueira, Conceição (no prelo), Introdução à Teoria da Interseccionalidade nos Estudos de Género, in Neves, S.
(org.), Género e Ciências Sociais, Maia, Publismai.

Oliveira, João Manuel (2009), Uma Escolha que Seja Sua: Uma Abordagem Feminista ao Debate Sobre a
Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal, Dissertação de doutoramento em Psicologia Social, Lisboa,
ISCTE.

Oliveira, João Manuel & Amâncio, Lígia (2006), «Teorias Feministas e Representações Sociais: Desafios dos
Conhecimentos Situados para a Psicologia Social», Revista Estudos Feministas, 14, 3, pp. 597-615. [ Links ]

Oliveira, João Manuel, Pinto, Pedro, Pena, Cristiana & Costa, Carlos Gonçalves (2009), «Feminismos Queer:
Disjunções, Articulações e Ressignificações», Ex-Aequo, 20, pp.13-27. [ Links ]

Pollock, Giselda (2001), «A Política da Teoria: Gerações e Geografias na Teoria Feminista e na História das
Histórias de Arte», in Macedo, Ana Gabriela (orga.), Género, Identidade e Desejo: Antologia Crítica do Feminismo
Contemporâneo, Lisboa, Cotovia, pp. 191-220.

Rich, Adrienne (1984/2003), «Notes Toward a Politics of Location», in McCann, Carole & Kim, Seung-Kyung
(orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 247-259.

Scott, Joan (1998), Only Paradoxes to Offer, Cambridge, Mass., Harvard University Press.

Spivak, Gayatri (1996), In Other Worlds, New York, Routledge.

Trinh, Minh-ha (1989), Native, Woman, Other, Bloomington, Indiana University Press.

Wittig, Monique (1992), «El pensamiento heterosexual», in Wittig, Monique (orga.), El Pensamiento heterosexual
y otros ensayos, Barcelona, Egales.

Notas

1 Epígrafe da responsabilidade da Coordenação do Dossier.

2 Este texto retoma alguns dos argumentos presentes na minha tese de doutoramento (Oliveira, 2009),
adaptando-os a este contexto.

3 Straight, no original.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 8/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas

4 Wittig (1981/1992) afirma que num matriarcado, o processo seria igual, só mudaria o sexo do opressor.

João Manuel de Oliveira é investigador em pós-doutoramento na Universidade do Minho e Visiting Fellow do


Birkbeck Institute of Social Research, University of London. É doutorado em Psicologia Social pelo ISCTE. A sua
investigação tem sido centrada na Psicologia Social Feminista Crítica, nos Estudos de Género e nas Teorias
Feministas e Queer. Tem publicado em livros e revistas, quer em Portugal, quer no estrangeiro.
joao.m.oliveira@gmail.com

Artigo recebido em 15 de Abril de 2010 e aceite para publicação em 15 de Agosto de 2010.

Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons

Casa das Associações, Parque do Alvito


Estrada do Alvito, 1300-054 Lisboa

apem1991@gmail.com

www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 9/9
Colabora
con la
cultura libre

Desde sus inicios Traficantes de Sueños ha apostado


por licencias de publicación que permiten compartir, como
las Creative Commons, por eso sus libros se pueden copiar,
distribuir, comunicar públicamente y descargar desde su
web. Entendemos que el conocimiento y las expresiones
artísticas se producen a partir de elementos previos y
contemporáneos, gracias a las redes difusas en las que
participamos. Están hechas de retazos, de mezclas, de
experiencias colectivas; cada persona las recompone de
una forma original, pero no se puede atribuir su propiedad
total y excluir a otros de su uso o replicación.

Sin embargo, «cultura libre» no es sinónimo de «cultu-


ra gratis». Producir un libro conlleva costes de derechos de
autor, traducción, edición, corrección, maquetación, diseño
e impresión. Tú puedes colaborar haciendo una donación al
proyecto editorial; con ello estarás contribuyendo a la
liberación de contenidos.

Puedes hacer una donación


(si estás fuera de España a través de PayPal ),
suscribirte a la editorial
o escribirnos un mail
traficantes de sueños

Traficantes de Sueños no es una casa editorial, ni siquiera una


editorial independiente que contempla la publicación de una
colección variable de textos críticos. Es, por el contrario, un
proyecto, en el sentido estricto de «apuesta», que se dirige a
cartografiar las líneas constituyentes de otras formas de vida.
La construcción teórica y práctica de la caja de herramientas
que, con palabras propias, puede componer el ciclo de luchas
de las próximas décadas

Sin complacencias con la arcaica sacralidad del libro, sin con-


cesiones con el narcisismo literario, sin lealtad alguna a los
usurpadores del saber, TdS adopta sin ambages la libertad de
acceso al conocimiento. Queda, por tanto, permitida y abierta
la reproducción total o parcial de los textos publicados, en
cualquier formato imaginable, salvo por explícita voluntad del
autor o de la autora y sólo en el caso de las ediciones con
ánimo de lucro.

Omnia sunt communia!


mapas 6

Mapas. Cartas para orientarse en la geografía variable de la


nueva composición del trabajo, de la movilidad entre fronteras,
de las transformaciones urbanas. Mutaciones veloces que exi-
gen la introducción de líneas de fuerza a través de las discusio-
nes de mayor potencia en el horizonte global.

Mapas recoge y traduce algunos ensayos, que con lucidez y una


gran fuerza expresiva han sabido reconocer las posibilidades
políticas contenidas en el relieve sinuoso y controvertido de los
nuevos planos de la existencia.
creative
CC
commons
LICENCIA CREATIVE COMMONS
Autoría-No Derivados-No Comercial 1.0

Esta licencia permite:


- Copiar, distribuir, exhibir e interpretar este texto.
Siempre que se cumplan las siguientes condiciones:
Autoría-Atribución: Deberá respetarse la autoría del texto y de su traducción. El nombre del
autor/a y del traductor/a deberá aparecer reflejado en todo caso.
No Comercial: No puede usarse este trabajo con fines comerciales
No Derivados: No se puede alterar, transformar, modificar o reconstruir este texto.

- Se deberá establecer claramente los términos de esta licencia para cualquier uso o distribución del
texto.
- Se podrá prescindir de cualquiera de estas condiciones si se obtiene el permiso expreso del autor/a.

Este libro tiene una licencia Creative Commons Attribution-NoDerivs-NonCommercial. Para ver una
copia de esta licencia visite http://creative commons.org/licenses/by-nd-nc/1.0/ o envie una carta a
Creative Commons, 559 Nathan Abbot Way, Stanford, California 94305, USA.

© 2004, la autora o autoras de cada uno de los textos.


© 2004, de la edición, editorial traficantes de Sueños.

* A pesar de todos los esfuerzos por contactar con las poseedoras del copyright previamente a
la publicación de este volumen, en algún caso esto no ha sido posible. El grupo editor estará
encantado de rectificar cualquier error u omisión q se le notifique.

1ª edición:
Marzo de 2004
Título:
Otras inapropiables
Autoras:
bell hooks, Avtar Brah, Chela Sandoval, Gloria Anzaldúa,
Aurora Levins Morales, Kum-Kum Bhavnani, Margaret
Coulson, M. Jacqui Alexander, Chandra Talpade Mohanty,
Traducción:
Maria Serrano Gimenez, Rocio Macho Ronco,
Hugo Romero Fernández Sancho y Álvaro Salcedo Rufo
Revisión del texto:
Carmen Romero y Silvia García Dauder
Maquetación y diseño de cubierta:
Traficantes de Sueños.
Edición:
Traficantes de Sueños
C\Hortaleza 19, 1º drcha.
28004 Madrid. Tlf: 915320928
http://traficantes.net
e-mail:editorial@traficantes.net
Impresión:
Queimada Gráficas.
C\. Salitre, 15 28012, Madrid
tlf: 915305211
ISBN: 84-932982-5-5
Depósito legal:
Otras inapropiables
Feminismos desde las fronteras

bell hooks, Avtar Brah


Chela Sandoval, Gloria
Anzaldúa...
traducción:
Rocio Macho Ronco
Hugo Romero Fernández Sancho
Álvaro Salcedo Rufo
Maria Serrano Gimenez

traficantes de sueños
mapas
índice

Prólogo. Diferentes diferencias y ciudadanías excluyentes:


una revisión feminista. Eskalera Karakola 9

1. Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista. bell hooks 33


2. Transformar el feminismo socialista.
El reto del racismo. Kum-Kum Bhavnani y Margaret Coulson 51
3. Intelectual orgánica certificada. Aurora Levins Morales 63
4. Los movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan.
Gloria Anzaldúa 71
5. Nuevas ciencias. Feminismo cyborg y metodología de los
oprimidos. Chela Sandoval 81
6. Diferencia, diversidad y diferenciación. Avtar Brah 107
7. Genealogías, legados, movimientos.
M. Jacqui Alexander y Chandra Talpade Mohanty 137
Prólogo
por la Eskalera Karakola1

Diferentes diferencias y ciudadanías excluyentes:


una revisión feminista

OTRAS INAPROPIADAS/INAPROPIABLES, desubicadas de las carto-


grafías occidentales y modernas de la política, de la identi-
dad, del lenguaje, del deseo; desbordando las categorías cla-
ras y distintas, las promesas de pureza y separación; propo-
niendo nuevas geometrías posibles para considerar relaciones
atravesadas y constituidas por diferentes diferencias. Otras
inapropiadas/inapropiables que nos urgen a hacer feminismos
desde y atravesados por las fronteras. Feminismos que tal como
nos proponen los textos de esta colección no renuncian a la

1 Este prólogo ha sido escrito colectivamente por algunas de las mujeres


que participamos en el proyecto de la Eskalera Karakola. La Eskalera
Karakola es un centro social autogestionado feminista que fue okupado
allá por el año 1996 en el barrio de Lavapiés en Madrid. En todos estos
se permite la copia

años, muchísimas iniciativas han sido posibles y han sido impulsadas


desde y más allá de la casa: espacios para reuniones, grupos de mujeres,
actividades, talleres, escuelas de feminismos, encuentros, jornadas,
acciones, intervenciones públicas, rehabilitaciones varias, pero sobre
todo la inquietud, la necesidad y el deseo de experimentar los límites y
©

las aperturas de nuevos espacios de colectividad atravesados por la


práctica y el pensamiento feminista. Que lo personal sea político nos ha
invitado desde la Karakola a una revisión constante de los modos de
vida normalizados y a una política de la sospecha que nos empuja a
pensar, proponer y experimentar nuevas y otras formas de habitar coti-
dianamente el espacio público, a reformularlo y sobre todo, a practicar
su reapropiación constante.

9
10 Otras inapriopiables

complejidad, sino que asumiéndola se reconocen parciales y


múltiples, contradictorios y críticos. Feminismos situados,
mestizos e intrusos, con lealtades divididas y desapegados
de pertenencias exclusivas. Que partiendo de la tensión y el
conflicto de las peligrosas y blasfemas encrucijadas que movi-
lizan su identidad, están comprometidos con conocimientos y
prácticas políticas más reflexivas y críticas.
Los textos de esta colección ponen en cuestión qué se
constituye como diferencia y cómo lo diferente tiende a equi-
pararse con lo particular, lo periférico, lo deficiente —frente
a lo universal y lo central— conformándose en relaciones
asimétricas de poder. Las marcas de diferencia se revuelven
mostrando las particulares marcas de la indiferencia: lo «neu-
tro», invisibilizado por normativo hegemónico y sobre-
representado. Frente a un feminismo global homogeneiza-
dor y excluyente que bajo la opresión de género iguala a
todas las mujeres, estos textos nos hablan de múltiples opre-
siones, de diferentes diferencias, y del extrañamiento de
muchas mujeres con un movimiento feminista con el que se
identifican pero cuya agenda y legado histórico resultan en
gran medida ajenos puesto que toman como sujeto de refe-
rencia a la mujer blanca, occidental, heterosexual, de clase
media, urbanita, educada y ciudadana.
Provenientes fundamentalmente del contexto anglosa-
jón y en un intervalo que comprende desde comienzos de
los años ochenta hasta nuestros días, estos artículos dan
cuenta de los diferentes debates que en el interior del femi-
nismo han surgido de la necesidad de atender a las comple-
jas intersecciones constitutivas de las relaciones de subordi-
nación a las que se enfrentan mujeres concretas: respondien-
do no sólo a las relaciones de género o de clase, sino tam-
se permite la copia

bién al racismo, la lesbofobia, los efectos de la colonización,


la descolonización y las migraciones transnacionales. Así,
desde el contexto estadounidense, el artículo de bell hooks
—escrito a principios de los años ochenta en diálogo con el
©

feminismo, el marxismo y el movimiento de liberación


negro—, forma parte de una amplia tradición feminista
negra a la que pertenecen autoras como Angela Davis, Alice
Walker, Audre Lorde, Patricia Hill Collins o Barbara Smith,
y de la que destacamos la antología Todas las mujeres son
blancas, todos los negros son varones, pero algunas de nosotras
Prólogo 11

somos valientes2 cuyo título no puede ser más significativo.


Todas ellas coinciden en denunciar el legado racista del femi-
nismo blanco y su escasa atención a las distintas realidades
materiales de mujeres blancas y negras, a las intersecciones
entre clase y raza, y a la incorporación de agendas diferentes
al género. En concreto bell hooks hace referencia al extraña-
miento de las mujeres negras estadounidenses frente a un
feminismo conservador liberal que bajo el paraguas engloba-
dor de «todas las mujeres estamos oprimidas» resulta ciego a
las formas en que el racismo y la posición de clase hacen
específica la opresión de género para las mujeres negras.
Pero las críticas del feminismo negro no agotan la multi-
plicidad de posiciones étnicas del contexto estadounidense.
Así, desde los años ochenta, el término «mujeres de color»
fue desarrollándose en EE.UU. como un artefacto teórico y
político capaz de aglutinar las opresiones comunes en torno
al racismo que experimentan mujeres de procedencias nacio-
nales y étnico-raciales distintas, reconociendo al mismo tiem-
po la especificidad de sus situaciones concretas. Un ejemplo
de ello nos lo ofrecen los escritos mestizos y bilingües de
escritoras chicanas, puertorriqueñas y latinas en general: tex-
tos como Borderlands/La Frontera,3 Este Puente Mi Espalda4 y
Haciendo Caras,5 y que en esta colección están representados
por los artículos de Gloria Anzaldúa, Chela Sandoval y
Aurora Levins Morales. En «Movimientos de rebeldía y las
culturas que traicionan», Gloria Anzaldúa propone asumir el
mestizaje y la multiplicidad con formas no reductoras. En la
tensión y riqueza política de vivir a caballo entre varias cul-
turas, empleando varios idiomas y en la distancia crítica que
implica el no ser reconocida como adecuada en ninguno de
se permite la copia

2 Hull, Gloria T.; Scott, Patricia Bell y Smith, Barbara (eds.), All the
Women Are White, All Blacks are Men, But Some of Us are Brave, Nueva
York, The Feminist Press, 1982.
©

3 Anzaldúa, Gloria, Borderlands/La Frontera. The New Mestiza, San


Francisco, Aunt Lute, 1987.
4 Moraga, Cherrie y Anzaldúa, Gloria (eds.), This Bridge Called My Back:
Writings by Radical Women of Color, Watertown, Persefone, 1981.
5 Anzaldúa, Gloria (ed.), Haciendo Caras/Making Face, Making Soul:
Creative and Critical Perspectives by Women of Color, San Francisco, Aunt
Lute, 1990.
12 Otras inapriopiables

los marcos disponibles, como mujer, lesbiana y chicana, la


conciencia mestiza de Anzaldúa surge de las posibilidades de
hacer habitable la propia posición de frontera.
Chela Sandoval, por su parte, propone practicar un femi-
nismo del Tercer Mundo estadounidense que desde una concien-
cia cyborg opositiva/diferencial, sea capaz de generar formas de
agencia y resistencia mediante tecnologías opositivas de poder.
Para esta autora las condiciones cyborg están asociadas a la
precariedad y la explotación laboral, a la tecnología en un
orden transnacional que sitúa de lleno el Tercer Mundo en el
Primer Mundo, uniendo las redes del ciberespacio con las
racialmente marcadas cadenas de montaje. Con una pers-
pectiva distinta, Aurora Levins Morales despliega desde el
testimonio de su identidad como jíbara shtetl «intelectual
orgánica» y activista, y nos introduce en otro importante
debate dentro del feminismo. Critica un feminismo acadé-
mico que distanciándose de la militancia usurpa y simplifica
las complejas experiencias de las mujeres de color, manufac-
turándolas y comercializándolas hasta hacerlas irreconoci-
bles por sus propias protagonistas: brillantemente envueltas
se revenden en el mercado editorial con un lenguaje y un
precio en muchas ocasiones inaccesible.
Así, en EE.UU. «lo negro» del feminismo negro se ha
interpretado como excluyente y homogeneizador en torno
a la experiencia de género y del racismo ejercido contra las
personas negras estadounidenses —vinculado a una expe-
riencia de esclavitud y segregación que exigía una lucha
política específica—, constituyéndose el término «mujeres
de color» como espacio político de alianzas y luchas comu-
nes que respondía a la diversidad y a la multiplicidad de
las exclusiones étnico-raciales, nacionales y religiosas.
se permite la copia

Mientras tanto en el contexto británico, como describe


Avtar Brah en su artículo, es el término «negro», extraído de
sus connotaciones esencialistas y de codificaciones raciales
excluyentes, el que se articula políticamente para aglutinar las
©

luchas antirracistas implicando una amplia gama de experien-


cias diaspóricas. Las «“mujeres negras” conformaban una cate-
goría altamente diferenciada en términos de clase, etnicidad y
religión, e incluía tanto a mujeres que habían migrado desde
África, el subcontinente asiático y el Caribe, como a nacidas en
Inglaterra, lo negro en el “feminismo negro” implicaba una
Prólogo 13

multiplicidad de la experiencia a la par que articulaba una


posición de sujeto feminista particular».6
Esta diferente interpretación del feminismo negro británi-
co se aprecia en el texto de Kum-Kum Bhavnani y Margaret
Coulson, que fechado en 1986 resulta en gran medida parale-
lo —y prácticamente coetáneo— al texto de bell hooks.
Ambos textos coinciden en denunciar lo que Bhavnani y
Coulson denominan un capitalismo patriarcal racialmente
estructurado —nosotras añadiríamos heteropatriarcal—;
demandan la necesidad de analizar conjuntamente los efec-
tos del racismo y las relaciones de clase y género. Sin
embargo, los análisis feministas-socialistas de Bhavnani y
Coulson, al abordar un racismo de Estado que se plasma en
diferencias de trato a distintos grupos de mujeres en el con-
texto de un capitalismo internacional, incorporan también
las intersecciones con el nacionalismo, la inmigración y el
imperialismo. En particular, denuncian la violencia racista
estatal en las prácticas de restricción de la inmigración —a
veces bajo la retórica de «igualdad» entre varones y muje-
res—, los controles policiales en «barrios negros» bajo la
reclamación de mayor seguridad para las mujeres o las con-
tradictorias concepciones de «unidad familiar» que utiliza
instrumentalmente el Estado en prácticas de deportación.
Apuntan así cómo las distintas realidades materiales de las
mujeres «blancas» y «negras», lejos de supuestas herman-
dades, generan importantes conflictos de intereses con sus
agendas políticas particulares.
Los textos de Chandra Talpade Mohanty y M. Jacqui
Alexander —desde EE.UU.— y el de Avtar Brah —desde
Gran Bretaña— introducen también los estudios postcolo-
niales para situar al pensamiento feminista en un mundo
se permite la copia

donde las intersecciones entre el colonialismo, el imperialis-


mo y el nacionalismo, complejizan las opresiones de este capi-
talismo globalizado, heteropatriarcal y racista. Postcolonial en
este sentido, no hace tanto referencia a una temporalidad
©

donde la colonización ha terminado, cuanto a relaciones glo-


cales de dominación que reproducen colonialidades en el aquí

6 Brah, Avtar, «Difference, Diversity, Differentiation», en Cartographies of


Diaspora. Contesting Identities, Londres y Nueva York, Routledge, 1996,
pp. 95-127. [Traducido en esta colección]
14 Otras inapriopiables

y el ahora, no sólo en los antiguos países colonizados —median-


te los ya conocidos efectos de la descentralización producti-
va—, sino en los países colonizadores receptores de diás-
poras migrantes procedentes de las antiguas colonias. A
esta tradición teórica y política que elabora un pensamien-
to feminista postcolonial pertenecen entre otros los textos de
autoras como Gayatri Chacravorty Spivak o Trinh T. Minh-ha.
De hecho el término «Ella, la otra inapropiable/ada» que
da pie al título de esta colección proviene de un monográ-
fico editado por esta última autora sobre «Mujeres del
Tercer Mundo».7
El propio texto «Genealogías, legados, movimientos» de
Chandra Talpade Mohanty y Jaqui Alexander se escribió
como introducción a una antología clave del «feminismo pos-
tcolonial»: Genealogías Feministas, Legados Coloniales, Futuros
Democráticos.8 En este artículo se cuestionan tanto las posicio-
nes relativistas postmodernas empeñadas en disolver catego-
rías identitarias acusándolas de esencialistas —léanse muchas
de las críticas dirigidas a las «políticas de identidad»—; como
las apelaciones a una sororidad internacional blanca occiden-
tal que, en forma de llamadas a la unidad del feminismo en
torno a la opresión universal del patriarcado, posponen y
excluyen otras opresiones. Más aún, las autoras critican cómo
bajo la retórica consensual de la articulación de «varias voces»
se ha definido un feminismo inclusivo sobre una base cen-
tro-periferia donde las feministas del Tercer Mundo siguen
constituyendo siempre la periferia. La apuesta feminista
postcolonial de Mohanty y Alexander pasa por la implica-
ción en un proyecto de democracia feminista, frente a la
Democracia formal de libre mercado/capitalista, consistente
en praxis feministas particulares que articulen lo local con
procesos transnacionales y globales más amplios.
se permite la copia

Al igual que Bhavnani y Coulson hacen en el contexto britá-


nico, en este texto se analizan los mecanismos ideológicos cen-
trales que conforman de forma discriminatoria la ciudadanía en
©

7 Trinh T. Minh-ha (ed.), «She, the Inappropiate/d Other. Special Issue


on Third World Women», Discourse 8: Fall-Winter, 1986-1987.
8 Mohanty, Chandra Talpade y Alexander, M. Jacqui (eds.), Feminist
Genealogies, Colonial Legacies, Democratic Futures, Nueva York y Londres,
Routledge, 1997.
Prólogo 15

el capitalismo avanzado —usando como modelo EE.UU.


Identifican así la representación del buen ciudadano como
varón blanco heterosexual que consume y paga sus impuestos,
frente a las figuras de la mujer negra dependiente que se apro-
vecha de los servicios sociales, y de los varones negros —e
inmigrantes— asociados a la delincuencia —¿y al terrorismo?
Igualmente nos invitan a reflexionar sobre la significa-
ción de la ciudadanía desde la posición de una mujer negra,
inmigrante, «sin papeles»: los conceptos de igualdad ante la
ley en este contexto desafían las definiciones convencionales
del supuesto ciudadano legítimo con verdadero acceso y
oportunidades. Denuncian, así, algo que nos resulta trágica
pero enormemente familiar: la sistemática utilización de la
legalidad en la «Democracia» para convertir la diferencia en
desigualdad —y en «ilegalidad» vía leyes de extranjería,
reforzamiento de fronteras, acoso policial, constitución de
una nueva «fortaleza europea», documentos de identidad...
Por último, partiendo de los debates sobre el feminismo
negro en Gran Bretaña, el texto de Avtar Brah identifica y ana-
liza cuatro usos del concepto de diferencia: la diferencia como
experiencia cotidiana y específica; la diferencia como relación
social producto de genealogías y narraciones colectivas sedi-
mentadas con el tiempo; la diferencia como posiciones de sujeto
o subjetividad frente a la idea de un sujeto político-moderno uni-
versal o de un Yo unitario, centrado y racional; y por último, la
diferencia como identidad, como proceso inacabado que otorga
estabilidad y coherencia a la multiplicidad subjetiva. De esta
forma, nos permite comprender cómo la proclamación de una
identidad colectiva implica un despliegue de discursos y prác-
ticas que apelan de forma variable a estos niveles de diferencia
para su movilización, atravesando lo micro y lo macro, lo social
se permite la copia

y lo subjetivo, en un proceso político continuo y contingente


que define fijaciones y exclusiones, prácticas de poder y de
resistencia. Desde una posición política antiesencialista, Brah
nos propone la articulación como práctica política relacional y
©

transformadora: «no compartimentalizar las opresiones sino


formular estrategias para desafiarlas conjuntamente sobre la
base de una comprensión sobre cómo se conectan y articulan».9

9 Brah, Avtar, op. cit.


16 Otras inapriopiables

Diferencias significativas, ¿sujetos in-significantes?

En un mundo de patriotismos y nacionalismos exacerbados;


de nuevas fronteras europeas que construyen muros de ver-
güenza institucionalizados y burocráticos, expulsando de la
ciudadanía a otros-migrantes-no-europeos; en un contexto
político y militar de estado de excepción generalizado, de
pánico mediático globalizado y en tiempo real; de naturali-
zación de la precarización de la existencia, de tal modo que
derechos sociales básicos se transforman en responsabilida-
des individuales; en situaciones paradójicas en que se exalta
el consumo de lo diferente y lo exótico, al tiempo que se
rechazan las diferencias y proliferan los conflictos culturales
y los racismos; en un mundo en el que las violencias glo-
bales de género y sexualidad se convierten en agendas
secundarias siempre aplazadas —o movilizadas instru-
mentalmente— ante la urgencia de nuevos «enemigos
principales» caracterizados esta vez como terroristas y
ante los que se responde con más violencia y destruc-
ción... En este contexto, los textos recogidos en esta colec-
ción nos invitan a reflexionar sobre las diferencias y sobre
el papel que despeña su constitución en el establecimien-
to de sujetos reconocidos como ciudadanos «apropiados».
Qué constituye una diferencia significativa o marca de
opresión en un contexto determinado no es un atributo fijo y
estable, sino una relación contingente y situada que se movi-
liza en cada práctica. De ahí que en ocasiones una determi-
nada marca de identidad pueda ser el espacio no marcado
para la actuación de otra. Por ejemplo, la petición de mayor
protección policial que suscribirían muchas mujeres y algu-
nos grupos feministas, puede suponer para trabajadoras
se permite la copia

sexuales y mujeres migrantes —sobre todo sin papeles—


más que una garantía de seguridad, una amenaza de acoso y
en ocasiones de agresión y expulsión. Evidencian, así, dife-
rencias cruciales sobre qué constituye una prioridad política
©

dentro del feminismo y qué estrategias seguir para alcanzar-


las. Pero lejos de entender estas demandas de reconocimiento
como amenazas que fomentan una fragmentación debilitado-
ra de una supuesta unidad política; o como particularismos
secundarios, «meramente culturales» que distraen de antago-
nismos centrales y unitarios —capitalismo, patriarcado; o
Prólogo 17

someterlas a consensos mayoritarios que terminan por anu-


larlas o acallarlas bajo el pretexto victimizador de que
hablan en estado de alienación; nos invitan a identificar las
especificidades de las opresiones particulares, a comprender
su interconexión con otras opresiones y construir modelos
de articulación política que transformen las posiciones de
partida en un diálogo continuo que no renuncie a las dife-
rencias, ni jerarquice o fije a priori posiciones unitarias y
excluyentes de víctimas y opresores.
El encuentro con los textos de esta colección y con otros
que nacen del feminismo de las mujeres de color y del Tercer
Mundo en una perspectiva postcolonial nos enfrenta necesa-
riamente a la tarea de situar nuestras propias coordenadas de
lectura. Sólo así podremos determinar la relevancia de sus
preguntas y planteamientos —en torno a las diferencias, a la
articulación de las opresiones, a las alianzas, a la transnacio-
nalidad, etc.— en nuestro propio contexto con el fin de no asu-
mirlos desde la generalización, la ahistoricidad y la desme-
moria. La política de la localización, a la que nos aproximan estas
lecturas, pone en primer término la comprensión de la especi-
ficidad de nuestros conocimientos y posiciones situadas. En
este sentido, señalaremos algunos puntos de distancia y cer-
canía con respecto a las reflexiones que aquí presentamos.
En cuanto a lo primero es preciso advertir que buena
parte de las voces feministas de color emergen a partir de la
década de 1970 —y mucho antes si nos remontamos al lega-
do de Sojourner Truth y otras protagonistas de los movi-
mientos abolicionista y sufragista a mediados del XIX— en un
entorno nacional multirracial de hegemonía anglosajona pro-
fundamente racista y desigual. La diversidad étnica —frente
a la negación del hecho multiétnico en la historia española—
se permite la copia

está en la constitución misma de la nación estadounidense y


tiene como precedentes el genocidio de la población autóc-
tona por parte de los colonizadores ingleses, el esclavismo y
las migraciones, primero desde Europa y Asia y más tarde
©

desde América Latina y el Caribe, cada una en su especifici-


dad. La historia de la dominación de las gentes de color es la
historia de estos procesos coloniales y postcoloniales y de las
sucesivas clasificaciones, jerarquizaciones y explotaciones a las
que dieron lugar a lo largo del desarrollo del capitalismo. Es,
asímismo, como nos muestran Anzaldúa y Levins Morales, la
18 Otras inapriopiables

historia de las identidades construidas y reconstruidas en la


diáspora y la hibridación, es decir, en los desplazamientos y
experiencias multilocales o pertenencias múltiples. Una recon-
figuración que en la actualidad, como advierten Alexander y
Mohanty, contribuye a confundir los escenarios postcoloniales
y transnacionales. Y es, finalmente, la historia de unas relacio-
nes multiraciales que no responden únicamente a contactos
binarios —por ejemplo, entre mujeres blancas y negras en el
feminismo— sino a conflictos y solidaridades que atraviesan
las diferencias de origen, raza, clase y género y ponen en diá-
logo a mujeres con constituciones múltiples y complejas que
se remiten a sus propias genealogías.10
El caso de Gran Bretaña, en el que se ubica el trabajo de
Avtar Brah, está vinculado al destino de la India británica y la
Commonwealth, al Caribe y, en general, al desarrollo de las
diásporas originadas a partir de la extensión y del poder del
imperio británico. De modo que las voces de las mujeres
negras y de color, autóctonas y desplazadas que hablan en y a
través de estos textos, responden hoy a una larga trayectoria
histórica atravesada por la raza y fuertemente puntuada en las
últimas décadas por las luchas postcoloniales de las décadas
de 1960 y 1970 y los movimientos de liberación racial, funda-
mentalmente el movimiento negro en Estados Unidos.
El proceso de toma de palabra de las que hasta ahora
habían sido objeto de etnografías en el marco de los estudios
de área ha sido imparable, también en el ámbito académico, y
está desequilibrando sin remisión los discursos del feminis-
mo blanco de clase media, el legado de Friedan tan criticado
por hooks, desde el que se han producido algunos análisis
supuestamente universales que hoy se revelan en su parciali-
dad —por ejemplo, en lo concerniente a la familia, el Estado o
se permite la copia

el trabajo— y otros que, como sugiere Walby al hilo de las


reflexiones de Mohanty, han de ser desechados por erróneos
y deliberadamente sesgados.11
La crisis y revisión de los análisis liberales y socialistas
©

del feminismo hegemónico, particularmente en su olvido de

10 Lorde, Audre, La hermana, la extranjera, Madrid, Horas y horas, 2003;


y Rich, Adrienne, Arts of the possible, Nueva York, Norton, 2001.
11 Mohanty, Chandra Talpade, op. cit., pp. 502.
Prólogo 19

la raza y la sexualidad, es una tarea central a la que nos invi-


tan las autoras reunidas en esta colección.
Nosotras las leemos en la actualidad desde un Estado-
nación, una región y un movimiento con rasgos específicos.
La homogeneidad racial en España, con la excepción notable
de la población gitana, históricamente discriminada, ha sido
un hecho profundamente afianzado en la conciencia de la
identidad nacional desde el siglo XV. La expulsión de judíos
y moros, la posterior persecución de los conversos sujetos a
una constante sospecha y la célebre pureza de sangre como
garante de la pureza de fe penetró el imaginario social espa-
ñol y determinó la formación de un Estado colonial en el que
la diferencia racial quedó desde épocas tempranas relegada
a las sociedades conquistadas, en las que se implantaron dis-
posiciones legales, religiosas y tributarias destinadas a orde-
nar el estatus social y las ocupaciones de los españoles
peninsulares, de los criollos, de los mestizos, los mulatos y
los indígenas. La intensa experiencia de dominación racial,
cultural y sexual12 y las disquisiciones que las acompañaron
–en fray Bartolomé de las Casas o Guamán Poma de Ayala,
por citar dos ejemplos paradigmáticos– apenas alteraron la
homogeneidad en las concepciones de la identidad católica y
de sangre pura –antecedente del concepto moderno de raza–
al otro lado del Atlántico13. Tal y como explica Mignolo14 a
partir de Quijano, la invención de América introdujo una
categoría fundamental en el imaginario occidental, la de
raza, aunque paradójicamente, este mismo imaginario ten-
dió a ocultarla. Así, el pensamiento de la modernidad giró
en torno a la raza —a la clasificación, caracterización, estu-
dio e incluso exposición de los otros— justamente con el
ánimo de delimitar las fronteras entre bárbaros y civilizados
se permite la copia

12 Sobre la que se reflexiona en la colección de textos compilados por


Stolcke (1993).
©

13 La «distinción racial interna», iniciada por los criollos de descenden-


cia británica en Estados Unidos, se produjo en Europa entre cristianos
protestantes del norte y anglos, por un lado, y cristianos católicos del
sur y latinos, por otro. Mignolo, Walter, Historias locales/diseños globales.
Colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo, Madrid,
Akal, 2003, p. 46.
14 Ibídem.
20 Otras inapriopiables

y no confundirse con los sujetos racializados y colonizados.


La supresión de esta frontera de color en nuestras genealo-
gías políticas e intelectuales ha sido una constante a la que
sólo recientemente hemos comenzado a aproximarnos de la
mano de quienes sí han contado estas historias inadecuadas
desde el otro lado.
También para la izquierda, dando un enorme salto que ten-
dremos que ir salvando en lo colectivo, el colonialismo fue una
experiencia de violencia, explotación y dependencia que tuvo
lugar en el Tercer Mundo. En este sentido y en lo que concier-
ne a las Américas, 1992 se reveló como un acontecimiento sor-
prendente al poner de manifiesto la desconexión que existía
desde la crítica entre el espíritu antiimperialista —centrado
desde finales de la década de 1980 en la acción contrainsur-
gente en Centroamérica— y la comprensión de las relaciones
actuales e históricas entre los intereses de las empresas espa-
ñolas y globales, los Estados e instituciones internacionales
y las excolonias. El escenario postcolonial —el de principios
del siglo XX, el de las viejas nostalgias imperiales del fran-
quismo y, más recientemente, el del neocolonialismo glo-
bal— permanecen escasamente dibujados, también en sus
aspectos religiosos, a pesar de los discursos subalternos que
no han cesado de emerger desde las periferias externas e
internas. Los movimientos sociales, incluido el feminista,
que crecieron al calor del antifranquismo, tematizaron el
conflicto de clases y la cuestión nacional sin verse obligados
a afrontar la diferencia racial, el propio concepto de raza,
dentro de las fronteras del Estado, ni siquiera por la influen-
cia ejercida desde otros países europeos a partir del fascis-
mo, de la persecución de los judíos y el impacto, muchas
veces soterrado, que todo esto tuvo en la identidad euro-
pea.15 El antisemitismo de izquierda y de derecha y sus alle-
se permite la copia

gados eugenésicos permanecieron incuestionados.


El internacionalismo penetró los «nuevos» movimientos
sociales —el feminismo, el ecologismo, el pacifismo— a finales
©

15 Braidotti, Rosi, «Figuraciones de nomadismo. Identidad Europea en


una perspectiva crítica» en De Villota, P. (ed.), Globalización y Género,
Madrid, Síntesis, 1999, pp. 27-46; y «La Europa que podría hacernos
soñar», Archipiélago, núm. 58, 2003, pp. 69-75.
Prólogo 21

de la década de 1980 convirtiendo la solidaridad con el Tercer


Mundo y con los movimientos de lucha en contra de las reno-
vadas dependencias imperiales, el neoliberalismo, en un
asunto de intervención desde un esquema de apoyo o solida-
ridad en la distancia. Este espíritu pervivió de forma mucho
más acentuada bajo la nueva matriz institucional y de ONGs
que se desató tras el encuentro de Beijin de 1995 y los foros
mundiales subsiguientes; la pobreza, el subdesarrollo y, más
recientemente, la sostenibilidad quedaron definitivamente
petrificadas en las agendas institucionales del capitalismo
compensatorio. La historia colonial, el lado oscuro de la
modernidad, continuó estando más o menos oculta, al igual
que los vínculos entre los distintos sujetos y comunidades
implicadas en los diseños globales, desde la planta de en-
samblaje fronteriza hasta la nueva sarta de servicios disper-
sos de la ciudad-fábrica. Los límites en la forma de abordar
el neocolonialismo en el Estado Español tenían que ver, de
una parte, con la inexistencia de un análisis de las sociedades
coloniales en su conexión bidireccional con las metrópolis y
su evolución histórica en el seno de la modernidad y, de otra,
con los límites de la izquierda para afrontar los efectos eco-
nómicos, sociales y culturales de la globalización más allá del
marco geográfico norte-sur, Primer y Tercer Mundo.16
A pesar de todo, los llamados movimientos de solidaridad
de finales de la década de 1980 y principios de 1990 fueron
poco a poco tematizando cuestiones como la dependencia que
genera la deuda externa y los planes de ajuste estructural o los
derechos culturales, medioambientales, territoriales y econó-
micos de los pueblos indígenas. Las brigadas de solidaridad,
organizadas a caballo entre movimientos de mujeres a ambos
lados del Atlántico, la participación en encuentros Latinoa-
mericanos y del Caribe y los flujos de textos y activistas que
se permite la copia

atravesaron el charco —dirigiéndose también hacia otras


regiones, bajo el influjo colonial español, como el Sahara
Occidental— constituyeron una experiencia de encuentro y
aprendizaje mutuo enormemente valiosa aunque limitada. En
©

cualquier caso, las diferencias en el seno del movimiento femi-


nista no estuvieron atravesadas por la raza, como sucedió

16 Mohanty, Chandra Talpade, op. cit.


22 Otras inapriopiables

desde sus inicios en Estados Unidos, sino por una historia de


géneros, clases y, en todo caso, sexualidades, aunque esto
último continuó siendo una materia en disputa.17
Ya a finales de los años ochenta, y aquí nos acercamos a
los puntos de cercanía entre nuestra realidad y las coordena-
das de producción de los textos incluidos en la presente
colección, las nuevas migraciones —desde América Latina,
Marruecos y el África subsahariana— comenzaron a modifi-
car la imagen de homogeneidad racial —y de origen— que
había prevalecido en España, en parte gracias a la negación
de la minoría gitana y del legado colonial —crítico, se entien-
de, ya que el franquismo siempre hizo gala de la supremacía
española en términos de raza. Las mujeres dominicanas fue-
ron por distintos motivos noticia18 y los grupos y plantea-
mientos antirracistas y en defensa de los derechos de los
inmigrantes, que en otros países europeos, fundamental-
mente en aquellos que como Francia, Alemania, Bélgica y
Holanda contaban con un proceso migratorio anterior,
comenzaron a aglutinarse tímidamente en el contexto de la
izquierda española tras la promulgación de la primera ley de
extranjería en 1985. En ocasiones, como ocurrió y ocurre en el
feminismo autóctono europeo, la migración estuvo dominada
por la definición de las agendas mediáticas y su obsesión por
los peligros del multiculturalismo, sobre todo en lo que con-
cierne a las mujeres —a las occidentales y a «las otras» inva-
riablemente victimizadas—, una tendencia que ya existía en
las versiones tercermundistas sobre el progreso y la liberación
de la mujer. En muchos casos provenientes de Francia, estos
debates adoptan un carácter ilustrado y eurocéntrico cuando
no abiertamente cínico.19 Por otro lado, el propio nivel orga-
nizativo de los grupos migrantes y, en particular, de las
se permite la copia

17 Buxán, Xosé M., conCiencia de un singular deseo, Barcelona, Alertes, 1997.


18 Hay que recordar aquí el asesinato de Lucrecia Pérez en 1992, pero tam-
©

bién la creciente visibilidad y organización de algunos grupos migrantes.


19 En particular cuando se alude, como hacen algunos grupos, a las
estratificaciones laborales que favorece la extranjería, a la incorpora-
ción de las españolas al mercado laboral, al envejecimiento de la pobla-
ción autóctona y la necesidad de mano de obra inmigrante femenina
ante las carencias de los servicios sociales. Véase al respecto www.sin-
dominio.net/precarias
Prólogo 23

mujeres inmigrantes —mucho más frágil que el que se da en


otros países comparables, como Italia—, y el nuevo papel de
España como guardiana de la frontera sur y atlántica euro-
pea en una atmósfera cada vez más dominada por el miedo
y los discursos securitarios sigue dificultado la proliferación
de otras voces en estos debates.20 Las experiencias feministas,
migrantes o no, en este terreno son escasas, se podría decir
incluso que han retrocedido en algunos aspectos o sencilla-
mente modificado su composición, hoy mucho más cercana
al formato establecido de las ONGs. Dejando a un lado la
riqueza organizativa de las mujeres dominicanas y los gru-
pos que las apoyaron a principios de la década de 199021 y
otras experiencias que surgieron anteriormente a partir de
los desplazamientos políticos desde países como Argentina,
Chile o Perú, el feminismo carecía de una práctica de alian-
zas y tematización de la migración y el asilo. Ni siquiera
existía una reflexión sobre la propia migración española,
mucho menos en femenino, hacia otros países europeos
durante las décadas de 1950 y 1960.22
En nuestros días, la recepción de esta nueva realidad por
parte de los grupos feministas españoles continua siendo
ambivalente, podríamos incluso decir errada en cuanto al
foco y al modo de abordar algunas discusiones de forma
reflexiva y situada. Las cuestiones relativas a los derechos de
ciudadanía, al trasvase de desigualdades, a la feminización
de la pobreza o la migración, a la articulación del racismo y
el sexismo en las representaciones y las prácticas cotidianas,
al reajuste de las desigualdades de género en origen, destino

20 Como las que se dejaron oir durante los encierros —incluido uno
se permite la copia

de mujeres en Barcelona— que siguieron a la aprobación de la Ley de


Extranjería de 2001. Véase www.nodo50.org/racismo/home.htm
21 Gina Gallardo y María Paredes, dos de las protagonistas en la refle-
xión y la organización de las mujeres dominicanas en aquel periodo,
©

estuvieron en la creación de AMDE en 1990. Gallardo, Gina, Buscando la


vida. Dominicanas en el servicio doméstico en Madrid, Santo Domingo,
IEPALA-CIPAF, 1995.
22 Reflexión que comenzaría a darse mucho después, por ejemplo, en
los trabajos audiovisuales Memoria interior de María Ruido en 2002 o 30
años de paso, de Lourdes Izagirre Ondarra y Marina Caba Rall en 1999;
ambos sobre la migración española a Alemania.
24 Otras inapriopiables

y entre medias —fenómeno que se deja ver con rotundidad


en el trabajo sexual, doméstico y de cuidado— y a las asime-
trías que esto genera en un movimiento tremendamente
fragmentado y homogéneo en cuanto a la raza y al origen
ceden protagonismo a otros debates, deliberadamente pro-
movidos desde los medios y las instituciones como el célebre
asunto del velo, la ablación del clítoris o el tráfico de muje-
res, epítomes todos ellos de la opresión de las que hasta
ahora poblaban el Tercer Mundo.23 En Italia, el empuje de las
inmigrantes en algunas regiones como la Toscana está empe-
zando a trastocar los presupuestos y formas de acción del
feminismo blanco autóctono en asuntos tan importantes
como la representación, la encarnación del liderazgo y las
demandas centrales —por ejemplo en lo que se refiere a la
división étnica del trabajo y las relaciones de poder— de un
movimiento de mujeres cada vez más consciente de los flu-
jos transnacionales y del privilegio epistémico, sin garantías,
de las posiciones de las migrantes.24 No se trata ya del acerca-
miento, paternalista o no, a las otras siempre demasiado leja-
nas, de la solidaridad como expresión política de diferencias
inasimilables e inevitablemente distantes entre sí, sino como
sugieren Bhavnani, Brah, Alexander y Mohanty, de la cons-
trucción de alianzas transnacionales que cortocircuiten el rela-
tivismo, el localismo y la esencialización de las diferencias. se permite la copia

23 Una reedición de estos debates, tan apreciados por algunos sectores


del feminismo institucional, ha tenido lugar recientemente —diciem-
©

bre 2003— en Francia a partir del ya tradicional polémica de la hiyab


—adviértase que el crucifijo nunca ha despertado semejantes pasio-
nes— y la escuela pública, con el pronunciamiento de destacadas figu-
ras del feminismo.
24 —www.puntodipartenza.org— A este respecto se podrían mencio-
nar otras muchas experiencias en el contexto europeo como la de Respect
o las Mujeres sin Rostro desde Alemania.
Prólogo 25

Articulación: potencia y límites. Tránsitos desde la


Eskalera Karakola.

Las experiencias en este terreno desde La Eskalera Karakola


han sido diversas y no siempre fructíferas. En el marco del
Encuentro contra el neoliberalismo y por la humanidad en 1997,
La Karakola organizó junto a otras compañeras una mesa de
género en la que se expusieron algunas aportaciones en
torno a las estratificaciones de y entre mujeres producidas
por el neoliberalismo a escala mundial. Ahí nos topamos con
los nuevos retos que lanzaba el zapatismo, desde donde no
se reclamaba ayuda o se alimentaba el imaginario de la vic-
timización, sino que se hablaba abiertamente de las diferen-
cias —también en el seno del propio zapatismo, se apuntaba
así una nueva humanidad— para revisar desde esta riqueza
nuestras implicaciones múltiples en los circuitos globales. La
cuestión, empleando una expresión de Mohanty, estaba en
las «diferencias comunes».25
En 1998 se realizó en Madrid un taller —Encuentro y
Contraste— junto a mujeres inmigrantes, la mayoría trabaja-
doras domésticas marroquíes, que puso de manifiesto la asi-
metría de nuestras realidades y los obstáculos a la hora pro-
pugnar un marco que no fuera ni el estrictamente asistencial
ni el estrictamente culturalista, algo sobre lo que continuamos

25 Y aquí Mohanty, en su enfrentamiento a las derivas postmodernas,


no deja espacio para la duda: «No se está leyendo bien mi trabajo cuan-
do se interpreta que estoy en contra de cualquier forma de generaliza-
ción y como si defendiera las diferencias por encima de lo común. Esta
lectura errada tiene lugar en el contexto de un discurso postmodernista
se permite la copia

hegemónico que etiqueta como “totalización” cualquier conexión sisté-


mica y enfatiza únicamente la mutabilidad y construtividad de las iden-
tidades y estructuras sociales. […] En 1986 [se refiere a su texto «Under
Western Eyes»] mi prioridad era la diferencia, sin embargo, ahora quie-
ro rescatar y reiterar su pleno sentido, que siempre estuvo ahí, y que se
©

refiere a su conexión con lo universal. […] El reto es ver cómo las dife-
rencias nos permiten explicar mejor y de un modo más preciso las cone-
xiones y cruces de fronteras, cómo especificar la diferencia nos permite
teorizar los problemas universales en un sentido más completo. Es esta
iniciativa intelectual la que impulsa mi interés por que mujeres de dis-
tintas comunidades e identidades construyan coaliciones y solidarida-
des transfronterizas». Mohanty, op. cit., pp. 504-505.
26 Otras inapriopiables

reflexionando al calor del sentido de la autogestión.26


Entender la Karakola como un espacio público que se
encuentra atravesado por eso que llamamos «autogestión»,
nos enfrenta con estas cuestiones desde distintos límites y
aperturas. Por una parte, una apuesta fuerte, sobre todo
desde el feminismo pero también desde la okupación y la
lucha anticapitalista: romper con los discursos paternalistas
y victimistas que nuestra propia experiencia específica no
nos había enseñado, excepto, como hemos señalado, en las
cuestiones que se abrían en torno a la tradición de solidari-
dad internacionalista, pero que habían seguido dejando
este asunto como «la cuestión de las otras». Por otro lado,
ser capaces, al mismo tiempo que intentamos tejer ese
nuevo común, de no hacer de las diferencias un espacio
invisibilizado. Es decir, a medida que nuestro entorno se ha
ido transformando, en pro de cierto discurso de la izquier-
da en torno a la igualdad, en pro también de una convi-
vencia deseada, novedosa y radicalmente distinta, «otra»;
en pro también de un no habernos sabido enfrentar y dar
nombre a la cuestión, el camino ha sido más bien allanado
y las diferencias, las más de las veces, suprimidas. La
apuesta por la autogestión tiene que ver con construir un
espacio com-partido desde lo colectivo; pero para tomar,
provocar e impulsar ese «tomar parte-con», debemos enfren-
tarnos con la cuestión y el problema al que nos invitan las
«diferencias» —proyectos en este sentido como el que men-
cionábamos de la Casa de la Diferencia que abría su prime-
ra sesión con las palabras de Audre Lorde: «Ha hecho falta
un cierto tiempo para darnos cuenta de que nuestro lugar
era precisamente la casa de la diferencia, más que la seguri-
dad de una diferencia en particular». El reto, articularlas
desde su especificidad. Desde la Karakola estas posiciones
se permite la copia

diferenciales han sido fuente de encuentros, pero también de


incomprensiones y de conflictos. No sólo la cuestión étnica y
racial que nos coloca en emplazamientos radicalmente dis-
tintos a la hora de ver quién tiene papeles, quién no, a quién
©

insultan por la calle y quién tiene miedo de volver de noche

26 Estas y otras reflexiones quedaban recogidas en Vega, C., «Extranjeras


en la ciudad. Itinerarios de mujeres inmigrantes y okupas en el barrio de
Lavapiés», www.habitat.aq.upm.es/boletin/n8/acveg.html#Piepag1
Prólogo 27

sola en muchas zonas de este Madrid; quién tiene que traba-


jar de qué y en qué condiciones, quién no puede acompa-
ñarnos a las acciones en la calle y por qué. Pero también la
cuestión de la sexualidad y qué significa construir un espa-
cio de visibilidad para todo esto que históricamente ha for-
mado parte del lado oscuro; qué significa que una sea bollo
o trans, en el lugar de trabajo o en la propia casa, en las fron-
teras imaginarias a la hora de ligar, por ejemplo, en aquellos
tiempos de finales de la década de 1990 en los que el tema
de las agresiones estaba a flor de piel y si una era bollo la
cosa siempre se complicaba por mil. Diferencias que se plas-
maban por ejemplo en el conflicto que se planteó en el pro-
yecto nunca consagrado de publicación de una revista por
todo lo alto, que sacó a la luz lo que para algunas significó
la invisibilidad constante de ese ser lesbianas que de alguna
forma se estaba neutralizando.
El paso de ese internacionalismo solidario al pensamiento
y la política transnacional tiene que ver con pensar que las
diferencias, como en el texto de Audre Lorde, se encuentran
también en nuestra propia casa. Empezar a encararlas es un
proceso que no surge de la nada; empezar a darles nombres es
empezar a pensar y a articular su potencial político. Está claro
que en este camino, y lo que significa hacerlo desde un pro-
yecto autogestionado de un espacio público como la Karakola,
nos encontramos con límites imperativos. Imperativos porque
hay diferencias que es muy difícil hacer que se encuentren
—dónde comparar o encontrarse con los intereses y posibili-
dades de tiempo, de fuerzas, de ganas de mujeres migrantes
que libran un día a la semana—. En este sentido, es cierto
que nuestras diferencias de alguna forma son «asimila-
bles» para nosotras mismas —pese a ser rumanas, turcas,
negras, americanas, bollos, trans, etc., compartimos cier-
se permite la copia

tas trayectorias parecidas que nos sitúan en universos


comunes— y a veces para la mirada externa.
Lo cierto es que compartimos esta vivencia de las dife-
©

rencias sin alcanzar todas sus derivas subjetivas, toda la


potencialidad personal y política que este encuentro
demandaba. Algo que sigue sucediendo en la medida en
que la composición de La Karakola se ha ido nutriendo de
mujeres de otros orígenes y situaciones legales y laborales,
a medida que Lavapiés se ha ido transformando en un
28 Otras inapriopiables

entorno multiétnico objeto de representaciones y políticas


segregacionistas, de conflictos internos y acciones que tratan
de visibilizar la diversidad como riqueza.27 Por el camino
hablamos también con otras mujeres que nos recordaron, a
veces desde el prejuicio, otras desde lo inescapable de nues-
tras posiciones sexuales, geográficas, raciales, generaciona-
les y de conocimiento, en definitiva, políticas: que éramos
diferentes y que, además, nuestras diferencias se cruzaban
de forma problemática, algo que no ha dejado de originar
encontronazos, dolores y desconfianzas invariablemente
demasiado escoradas hacia el enquistamiento. También nos
ha traído aprendizajes y pasiones cambiantes a lo largo de
estos siete años en común. En 1998 planteamos el asunto
desde otro ángulo y pusimos en marcha un taller de refle-
xión intercultural: el Taller de Herramientas contra el
Racismo; una acción que amalgamaba cuestiones de pro-
ducción discursiva y representación —también en el entorno
del antirracismo y el antifascismo, éste último muy apegado
a un imaginario machista, simplista y totalizador—, y de arti-
culación política en las que se entrecruzaba el feminismo, el
antirracismo, el anticapitalismo y las luchas sexuales.28 El
resultado fue aceptable; generó debates e introdujo compleji-
dad al detenerse sobre algunas generalizaciones e invisibili-
dades sobre las que seguimos pensando entre nosotras, por
ejemplo desde lugares como La Casa de la Diferencia, y al
intervenir en otras luchas. Con posterioridad ha sido una
herramienta a disposición de distintas gentes y movimientos;
como durante los encierros y la lucha contra la Ley de
Extranjería de 2001. Esta breve historia, sumamente parcial e
incompleta, nos lleva a proyectos aliados más recientes que,
como Precarias a la Deriva o Retóricas del Género, han optado
por una política de la articulación que conjuga «los lugares
se permite la copia

27 En este sentido cabe mencionar las acciones que, desde 1997, ha rea-
©

lizado La Red de Lavapiés o nuestras propias intervenciones en contra


de la violencia machista en 1999.
28 En esta iniciativa se ponían en juego algunas de nuestras ideas, más
o menos compartidas, sobre la posibilidad de repensar los binomios: la
diferencia y lo común, lo material y lo discursivo, más allá de las políti-
cas de la identidad y del culturalismo con el que habitualmente se desa-
creditan las propuestas feministas de actuación sobre el simbólico.
Prólogo 29

comunes» y las «singularidades a potenciar», también las


sexuales y las que nos enfrentan de modo diferencial a las des-
igualdades y explotaciones en una sociedad de migración y
división sexual del trabajo. La operatividad política que todo
esto vaya adquiriendo desde aquí —desde nuestra localiza-
ción española, europea y mundial— dependerá de nuestra
capacidad para construir alianzas a través de las diferencias,
una invitación que nos lanzan los textos de esta colección y algo
que hemos intuido parcialmente, junto a otras, en las confluen-
cias y divergencias con el movimiento de resistencia global.
Nosotras habitamos estos dilemas en un sentido muy
concreto, por ejemplo cuando nuestras luchas son tachadas
de ridículas o identitarias, cuando nos atrincheramos en la
diferencia como un modo de escapar a las apuestas comunes
o a la inversa, cuando lo supuestamente común oculta posi-
ciones excluidas del diálogo, o cuando nos resentimos de las
fracturas que existen entre nuestra práctica y otras expe-
riencias de racismo, de exclusión y precarización que nos
rodean y con las que apenas establecemos conexiones y
menos alianzas. Nos afirmamos en la parcialidad; no repre-
sentamos lo que no somos, aún así nos cuesta expresar todo
lo que somos. Pero buscamos confluencias y tratamos de
explicitar, con mayor o menor éxito, aquellas en las que
estamos involucradas: en el ámbito de un barrio «europeo»
marcado por la obsesión securitaria en torno al «problema
de la migración» y por planes urbanísticos excluyentes; en la
precarización de nuestra existencia, precariedades diversas
en cuanto a su valor social y salarial; en un movimiento
feminista institucionalizado, desanimado o escasamente
interpelado por las nuevas desigualdades; en un movimien-
to de okupación acosado por el desalojo constante de las ini-
ciativas de cooperación en el que en ocasiones nos cuesta
se permite la copia

reconocernos como feministas; en una confluencia «no glo-


bal» que no llega a constituirse como articulación de multi-
plicidades propositivas; en una constitución queer en pos de
una política pública; en una casa atravesada por la ruina
©

inminente y el deseo de recomponer nuestra presencia


pública y nuestros desafíos a la especulación y a la negación
de lo común no estatal. Flujos, todos ellos, de lo global en
nuestras localizaciones que nos instan a retomar, en lo que
nos toca, la crítica al capitalismo heteropatriarcal y racista,
tal y como sugieren Bhavnani y Coulson, como un complejo
30 Otras inapriopiables

cruce de opresiones que no son contiguas sino que se articu-


lan gracias, entre otras cosas, a la mediación estatal desde la
que se asignan los lugares que han de ocupar los distintos
sujetos sexuados y racializados.
Los retos, por ejemplo la cuestión de la subsunción de las
diferencias en el capitalismo, son elementos cruciales para la
acción política en estos tiempos que corren. Tiempos en los
que el capital consigue regenerarse y nutrirse a través preci-
samente de esas diferencias. La capacidad del capital de
absorber y reabsorber, por ejemplo, las encrucijadas que
plantea la migración —desde la criminalización y el paterna-
lismo mediático hasta las propuestas multiculturales como
ocurre en el caso espeluznante del Forum 2004 de
Barcelona—, o las revueltas sexuales; la mercantilización pro-
gresiva del movimiento gay y lésbico; o la neutralización de
la participación ciudadana real por medio de nuevas estruc-
turas de poder como son las concejalías de «participación ciu-
dadana» y sus constantes acercamientos a «lo social». Pero
también la criminalización de los movimientos sociales y de
cualquier espacio de resistencia, la creación de modelos y
representaciones de los modos de vida, de lo que somos y de
lo que seremos, en formato nuevo, vaciado y desnatado, que
nos devuelven imágenes y representaciones que conforman
el mundo, aunque, al fin y al cabo, nunca de forma total y por
eso mismo en forma de máquinas que contienen en su propio
interior la posibilidad de la rebelión.
Esa capacidad del capital de subsunción tiene que ver
con la idea y venta de un modelo absolutamente vaciado y
esencialmente homogeneizador. Un modelo que no trata las
diferencias en sí mismas sino que las sigue utilizando como
parte de un todo en el que funcionan como meros fragmen-
se permite la copia

tos de la maquinaria capitalista que produce clasificaciones,


segmentaciones y fronteras compactas, inmóviles y homogé-
neas. La política se convierte entonces en la tarea constante
que nos invita a ser capaces de subvertir esos modos de vida
©

que nos depara el capital, a potenciar las diferencias y las


singularidades y a articular espacios realmente potentes que
desafíen los límites impuestos del orden heteropatriarcal en
pos de una democracia feminista.
Prólogo 31

Este prólogo como proyecto colectivo

Este prólogo surge como una iniciativa colectiva que preten-


día ser un proceso realmente desafiante en muchos sentidos.
Escribir entre todas algo que tuviese que ver con lo que
todos estos textos nos dicen, nos llaman, nos seducen. Así
comenzamos. Como otros espacios de discusión que se han
dado en la Eskalera Karakola —como la Escuela de Feminis-
mo o simplemente, en muchas ocasiones, en la propia asam-
blea—, un reto colectivo de estas dimensiones supone, en
primer lugar, un apasionamiento precioso que nos sorpren-
de siempre por caminos y derroteros insospechados.
Sabíamos de nuestras diferencias, pero también sabíamos
que esto no tiene porqué constituir un límite sino, incluso,
hacer el reto más interesante. Diferencias de experiencias,
diferencias de niveles de relación con los textos, diferencias
de planteamientos, diferentes perspectivas. Sin embargo,
por una parte, en esta ocasión no hemos sabido gestionar
bien esas diferencias. Por otro lado, la urgencia de plazos y
tiempos nos ha lanzado a otra dimensión: la que va del
paso de un proceso colectivo a la de un trabajo que escriben
—escribimos— cuatro personas de forma acuciante, sin
espacio apenas para la reflexión y sobre todo sabiendo que
nos hemos topado con una especie de conflicto un tanto
irresoluble: dadas las diferencias, ¿hubiésemos podido real-
mente con otros tiempos realizar este proyecto? ¿Cómo se
gestiona el saber colectivo? ¿Qué papeles nos otorgan esas
gestiones a cada una? ¿Qué tipo de relaciones de poder se
estabilizan o se cuestionan?
En cualquier caso, lo que si ponemos sobre la mesa, es el
hecho de que este proyecto haya servido para animar más
se permite la copia

aún el debate acerca de las relaciones entre la generación del


saber colectivo por una parte y el saber individual por otra,
sin perder de vista la indisociabilidad de ambos y el cons-
tante contagio hiperenriquecido que produce momentos
©

como los que tuvimos en esas primeras reuniones. Pero tam-


bién para preguntarnos cómo se hace entonces cuando la
urgencia debe materializarse en un resultado —en este caso
llamado prólogo—, también para pensar el valor de los pro-
cesos colectivos y la apuesta que los mismos requieren.
También para vernos a cada una en un papel que quizás es
32 Otras inapriopiables

necesario desestabilizar. Quizás, sobre todo, para poner


todas estas cuestiones sobre la mesa, que para nosotras no
significa sino encararlas y politizarlas. Al hilo de todas estas
pasiones y de todos estos afectos, con la cabeza bullendo y
con el deseo ferviente de colectivizar este andar que siempre
pensamos como proceso constante inherente a la construc-
ción de otras relaciones y otras formas de entendernos, al
hilo de todo esto, al hilo y al calor de estos límites con los que
cotidianamente nos topamos, surge este prólogo, como diá-
logo también constante con los textos y sus autoras.

se permite la copia
©
1. Mujeres negras.
Dar forma a la teoría feminista1
bell hooks

En Estados Unidos, el feminismo nunca ha surgido de las


mujeres que de forma más directa son víctimas de la opresión
sexista; mujeres a las que se golpea a diario, mental, física y
espiritualmente; mujeres sin la fuerza necesaria para cambiar
sus condiciones de vida. Son una mayoría silenciosa. Una
señal de su victimización es que aceptan su suerte en la vida
sin cuestionarla de forma visible, sin protestar organizada-
mente, sin mostrar ira o rabia colectiva. La Mística de la femini-
dad, de Betty Friedan, que sigue siendo apreciado por haber
abierto el camino al movimiento feminista contemporáneo,
fue escrito como si esas mujeres no existieran. La famosa frase
de Friedan, «el problema que no tiene nombre», citada a
menudo para describir la condición de las mujeres en esta
sociedad, se refería de hecho a la situación de un grupo
selecto de mujeres blancas, casadas, de clase media o alta y
con educación universitaria: amas de casa aburridas, hartas
del tiempo libre, del hogar, de los hijos, del consumismo,
que quieren sacarle más a la vida. Friedan concluye su pri-
se permite la copia

mer capítulo afirmando: «No podemos seguir ignorando


esa voz que, desde el interior de las mujeres, dice: “Quiero
algo más que un marido, unos hijos y una casa”». A ese
«más» ella lo definió como una carrera. En su libro no decía
©

quién tendría entonces que encargarse del cuidado de los

1 Publicación original: bell hooks, «Black Women: Shaping Feminist


Theory», Feminist Theory from Margin to Centre, South End Press, 1984.
[N. de e.]

33
34 Otras inapropiables

hijos y del mantenimiento del hogar si cada vez más mujeres,


como ella, eran liberadas de sus trabajos domésticos y obtení-
an un acceso a las profesiones similar al de los varones blancos.
No hablaba de las necesidades de las mujeres sin hombre, ni
hijos, ni hogar. Ignoraba la existencia de mujeres que no fueran
blancas, así como de las mujeres blancas pobres. No decía a sus
lectoras si, para su realización, era mejor ser sirvienta, niñera,
obrera, dependienta o prostituta que una ociosa ama de casa.
Hizo de su situación, y de la situación de las mujeres
blancas como ella, un sinónimo de la condición de todas las
mujeres estadounidenses. Al hacerlo, apartó la atención del
clasismo, el racismo y el sexismo que evidenciaba su actitud
hacia la mayoría de las mujeres estadounidenses. En el con-
texto de su libro, Friedan deja claro que las mujeres a las que
consideraba víctimas del sexismo eran universitarias, muje-
res blancas obligadas por condicionamientos sexistas a per-
manecer en casa. En su libro, argumenta:

Urge comprender cómo la misma condición de ser ama de


casa puede crear en las mujeres una sensación de vacío, de
no existencia, de nada. Hay aspectos de la función de ama de
casa que hacen casi imposible para una mujer de inteligencia
adulta mantener un sentido de la identidad humana, el
núcleo firme del «yo» sin el cual un ser humano, ya sea hom-
bre o mujer, no está verdaderamente vivo. Estoy convencida
de que, hoy en día en Estados Unidos, hay algo de peligroso
en el estado de ama de casa para las mujeres valiosas.

Los problemas y dilemas específicos de la clase de las ociosas


amas de casa blancas eran problemas reales que merecían
atención y transformación, pero no eran los problemas políti-
cos acuciantes de una gran cantidad de mujeres. Muchas de
se permite la copia

ellas vivían preocupadas por la supervivencia económica, la


discriminación racial y étnica, etcétera. Cuando Friedan escri-
bió La Mística de la Feminidad, más de un tercio de las mujeres
formaban parte de la fuerza de trabajo. Aunque muchas muje-
©

res deseaban ser amas de casa, sólo quienes tenían tiempo


libre y dinero podían formar sus identidades a partir del
modelo de la mística femenina. Se trataba de mujeres a las
que, en palabras de Friedan, «se les decía que dieran marcha
atrás y vivieran su vida como si fueran Noras, limitadas a la
casa de muñecas de los prejuicios victorianos».
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 35

Desde sus primeros escritos, queda claro que Friedan nunca


se preguntó si la situación de las amas de casa blancas de for-
mación universitaria era un punto de referencia adecuado
para combatir el impacto del sexismo o de la opresión sexista
en las vidas de las mujeres de la sociedad estadounidense.
Tampoco se preocupó de ir más allá de su propia experiencia
vital para adquirir una perspectiva ampliada acerca de las
vidas de esas mujeres. No digo esto para desacreditar su obra.
Sigue siendo la muestra de una discusión útil acerca del
impacto de la discriminación sexista en un grupo selecto de
mujeres. Desde una perspectiva distinta, puede verse también
como un caso típico de narcisismo, falta de sensibilidad, sen-
timentalismo y auto-indulgencia que alcanza su punto máxi-
mo cuando Friedan, en un capítulo titulado «La deshumani-
zación progresiva», hace una comparación entre los efectos
psicológicos del aislamiento de las amas de casa blancas y el
impacto del confinamiento en la imagen de sí de los prisione-
ros de los campos de concentración nazis.
Friedan fue una figura esencial en la formación del pen-
samiento feminista contemporáneo. De manera significativa,
la perspectiva unidimensional de la realidad de las mujeres
que su libro presenta se ha convertido en un hito señalado en
el movimiento feminista contemporáneo. Como había hecho
Friedan antes, las mujeres blancas que dominan el discurso
feminista hoy en día rara vez se cuestionan si su perspectiva
de la realidad de las mujeres se adecua o no a las experien-
cias vitales de las mujeres como colectivo. Tampoco son
conscientes de hasta qué grado sus puntos de vista reflejan
prejuicios de raza y de clase, aunque ha existido una mayor
conciencia de estos prejuicios en los últimos años. El racismo
se permite la copia

abunda en la literatura de las feministas blancas, reforzando


la supremacía blanca y negando la posibilidad de que las
mujeres se vinculen políticamente atravesando las fronteras
étnicas y raciales. El rechazo histórico de las feministas a
©

prestar atención y a atacar las jerarquías raciales ha roto el


vínculo entre raza y clase. Sin embargo, la estructura de clase
en la sociedad estadounidense se ha formado a partir de la
política racial de la supremacía blanca; sólo a través del aná-
lisis del racismo y de su función en la sociedad capitalista se
puede obtener una comprensión completa de las relaciones
36 Otras inapropiables

de clase. La lucha de clases está unida de forma inseparable


a la lucha para terminar con el racismo. En un intento de
urgir a las mujeres para que exploraran todas las implicacio-
nes de clase, Rita Mae Brown explicaba en «lo que faltaba»,
un ensayo anterior:

La clase es mucho más que la definición de Marx sobre las


relaciones respecto de los medios de producción. La clase
incluye tu comportamiento, tus presupuestos básicos acer-
ca de la vida. Tu experiencia —determinada por tu clase—
valida esos presupuestos, cómo te han enseñado a compor-
tarte, qué se espera de ti y de los demás, tu concepción del
futuro, cómo comprendes tus problemas y cómo los resuel-
ves, cómo te sientes, piensas, actúas. Son estos patrones de
comportamiento los que las mujeres de clase media se resis-
ten a reconocer aunque quieran perfectamente aceptar la idea
de clase en términos marxistas, un truco que les impide
enfrentarse de verdad con el comportamiento de clase y cam-
biar en ellas mismas ese comportamiento. Son estos patrones
los que deben ser reconocidos, comprendidos y cambiados.

Las mujeres blancas que dominan el discurso feminista, que


en su mayoría crean y articulan la teoría feminista, muestran
poca o ninguna comprensión de la supremacía blanca como
política racial, del impacto psicológico de la clase y del esta-
tus político en un estado racista, sexista y capitalista.
Es esta falta de conciencia la que, por ejemplo, lleva a
Leah Fritz a escribir en Dreamers and Dealers, libro donde se
discute la situación del movimiento de las mujeres en 1979:

El sufrimiento de las mujeres bajo la tiranía sexista es un


vínculo común entre todas las mujeres que trasciende las
particularidades que las diferentes formas de tiranía adop-
tan. El sufrimiento no puede ser medido ni comparado cuantitati-
se permite la copia

vamente. ¿Son la indolencia y la vacuidad forzada de una


mujer «rica», que le llevan a la locura y/o al suicidio, mayo-
res o menores que el sufrimiento de una mujer pobre que
apenas sobrevive gracias a la asistencia pública pero que, de
algún modo, mantiene su espíritu intacto? No hay manera
©

de medir esa diferencia. Cada una de esas mujeres debería


mirar a la otra sin el esquema de clases patriarcal, pueden
encontrar un vínculo en el hecho de que ambas son oprimi-
das, de que ambas viven miserablemente.
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 37

La afirmación de Fritz es un nuevo ejemplo de brindis al sol,


así como de la mistificación consciente de las divisiones
sociales entre mujeres, que ha caracterizado buena parte del
discurso feminista. Si bien resulta evidente que muchas
mujeres sufren la tiranía sexista, hay pocos indicios de que
este hecho forje «un vínculo común entre todas las mujeres».
Hay muchas pruebas que demuestran que las identidades
de raza y clase crean diferencias en la calidad, en el estilo de
vida y en el estatus social que están por encima de las expe-
riencias comunes que las mujeres comparten; y se trata de
diferencias que rara vez se trascienden. Deben ponerse en
cuestión los motivos por los que mujeres blancas, cultas y
materialmente privilegiadas, con una variedad de opciones
a la hora de elegir carrera y estilo de vida, insisten en que «el
sufrimiento no puede ser medido». Fritz no es, de ningún
modo, la primera feminista blanca que realiza una afirma-
ción semejante; afirmación que jamás he oído a una mujer
pobre de cualquier raza. Aunque hay mucho de discutible en
la crítica que Benjamin Barber realiza del movimiento femi-
nista en Liberating Feminism, estoy de acuerdo con él en la
siguiente afirmación:

El sufrimiento no es necesariamente una experiencia uni-


versal que pueda medirse con una vara común: está vincu-
lado a las situaciones, necesidades y aspiraciones. Pero
deben existir algunos parámetros históricos y políticos para
el uso del término de modo que puedan establecerse priori-
dades políticas y distintas formas y grados de sufrimiento a
los que prestar mayor atención.

Un principio central del pensamiento feminista moderno es el


de que «todas las mujeres están oprimidas». Esta afirmación
se permite la copia

implica que las mujeres comparten una suerte común, que


factores como los de clase, raza, religión, preferencia sexual,
etc., no crean una diversidad de experiencias que determina el
©

alcance en el que el sexismo será una fuerza opresiva en la


vida de las mujeres individuales. El sexismo como sistema de
dominación está institucionalizado, pero nunca ha determi-
nado de forma absoluta el destino de todas las mujeres de
esta sociedad. Estar oprimida quiere decir ausencia de eleccio-
nes. Ése es el primer punto de contacto entre el oprimido y el
38 Otras inapropiables

opresor. Muchas mujeres de esta sociedad tienen la posibili-


dad de elegir —por muy imperfectas que sean las eleccio-
nes—, por lo que explotación y discriminación son palabras
que definen de forma más acertada la suerte de las mujeres
como colectivo en Estados Unidos. Muchas mujeres no se
unen a las organizaciones que luchan contra el sexismo preci-
samente porque el sexismo no ha significado una falta abso-
luta de elecciones. Pueden saber que sufren discriminación
por su sexo, pero no califican su experiencia de opresión. Bajo
el capitalismo, el patriarcado está estructurado de modo que
el sexismo restringe el comportamiento de las mujeres en
algunos campos, mientras en otras esferas se permite una libe-
ración de estas limitaciones. La ausencia de restricciones
extremas lleva a muchas mujeres a ignorar las esferas en las
que son explotadas o sufren discriminación; puede incluso lle-
var a imaginar que las mujeres no están siendo oprimidas.
Hay mujeres oprimidas en Estados Unidos, y es justo y
necesario que hablemos contra esta opresión. La feminista
francesa Christine Delphy señala en su ensayo Por un femi-
nismo materialista que la utilización del término opresión es
importante porque sitúa la lucha feminista en un marco polí-
tico radical:

El renacimiento del feminismo coincide con el uso del tér-


mino «opresión». La ideología dominante, i. e. el sentido
común, el discurso ordinario, no habla de opresión sino de
«condición femenina». Pretende remitirse a una explicación
naturalista; una restricción de la naturaleza, una realidad
exterior fuera de nuestro alcance y no modificable mediante
la acción humana. El término «opresión», por el contrario,
remite a una elección, una explicación, una situación que es
política. «Opresión» y «opresión social» son por lo tanto
se permite la copia

sinónimos o, mejor dicho, opresión social es una redundan-


cia: la idea de un origen político, i. e. social, es parte integral
del concepto de opresión.
©

De todos modos, el énfasis feminista en la «opresión común»


en Estados Unidos era menos una estrategia de politización
que una apropiación por parte de las mujeres conservadoras
y liberales de un vocabulario político radical que enmasca-
raba hasta qué punto habían dado forma al movimiento de
manera que se adecuara y defendiera sus intereses de clase.
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 39

Aunque el impulso hacia la unidad y la empatía que supone


la noción de opresión común estaba dirigido a la construc-
ción de la solidaridad, consignas como la de «organízate en
torno a tu opresión» proporcionaban la excusa que muchas
mujeres privilegiadas necesitaban para ignorar las diferen-
cias entre su estatus social y el de una gran cantidad de
mujeres. Era una señal del privilegio de raza y clase, así
como la expresión de cierta libertad respecto de muchas res-
tricciones que el sexismo pone a las mujeres de la clase obre-
ra. De este modo, las mujeres de clase media fueron capaces
de convertir sus intereses en el foco principal del movimien-
to feminista y de utilizar la retórica de lo común que conver-
tía su situación concreta en sinónimo de «opresión». ¿Quién
podía entonces exigir un cambio en el vocabulario? ¿Qué
otro grupo de mujeres tenía, en Estados Unidos, el mismo
acceso a las universidades, las editoriales, los medios de
comunicación y el dinero? Si las mujeres negras de clase
media hubieran iniciado un movimiento en el que se hubie-
ran calificado a sí mismas de «oprimidas», nadie las hubiera
tomado en serio. Si hubieran creado foros públicos y hubie-
ran dado discursos sobre su «opresión», habrían recibido
ataques de todas partes. No fue este el caso de las feministas
burguesas blancas que resultaban atractivas para un grupo
amplio de mujeres, como ellas mismas, que ansiaban cam-
biar su suerte en la vida. Su aislamiento respecto de grupos
de mujeres de otra clase y raza les impidió tener una base
comparativa inmediata con la que poner a prueba sus pre-
supuestos básicos sobre la opresión común.
En un inicio, las participantes radicales en el movimiento
de las mujeres exigían que las mujeres rompiesen ese espa-
se permite la copia

cio de aislamiento y creasen un espacio de contacto. Antolo-


gías como Liberation Now, Women’s Liberation: Blueprint for the
Future, Class and Feminism, Radical Feminism y Sisterhood Is
Powerful, todas publicadas a principios de la década de 1970,
©

contienen artículos que tratan de alcanzar a una audiencia


amplia de mujeres, una audiencia que no fuera exclusiva-
mente blanca, de clase media, universitaria y adulta —en
muchos casos, había artículos sobre las adolescentes. Sookie
Stambler articuló este espíritu radical en su introducción a
Women’s Liberation: Blueprint for the Future:
40 Otras inapropiables

Las mujeres del movimiento siempre se han sentido desa-


lentadas por la necesidad de los medios de comunicación de
crear celebridades y superestrellas. Esto va contra nuestra
filosofía básica. No podemos relacionarnos con las mujeres
de acuerdo a criterios de prestigio y fama. No estamos
luchando en beneficio de una mujer o de un grupo de muje-
res. Tratamos temas que afectan a todas las mujeres.

Estos sentimientos, compartidos por muchas mujeres en los


inicios del movimiento, no se impusieron. Y cada vez más
mujeres adquirieron prestigio, fama o dinero con escritos
feministas y gracias a las victorias del movimiento feminista
en la lucha por la igualdad en el trabajo; el oportunismo
individual socavó las llamadas a la lucha colectiva. Mujeres
que no se oponían al patriarcado, al capitalismo, al clasismo
o al racismo se llamaban a sí mismas «feministas». Sus
expectativas variaban. Las mujeres privilegiadas querían
igualdad social con los hombres de su clase, algunas mujeres
querían un salario igual por el mismo trabajo, otras querían
un estilo de vida alternativo. Muchas de estas preocupacio-
nes legítimas eran fácilmente cooptadas por el patriarcado
capitalista. La feminista francesa Atoinette Fouque señala:

Las acciones propuestas por los grupos feministas son


espectaculares, provocadoras. Pero la provocación sólo saca
a la luz un determinado número de contradicciones sociales.
No revela las contradicciones radicales de la sociedad. Las
feministas mantienen que no pretenden la igualdad con los
hombres, pero sus prácticas revelan lo contrario. Las femi-
nistas son una vanguardia burguesa que mantiene, de forma
invertida, los valores dominantes. La inversión no facilita el
paso a otra clase de estructura. ¡El reformismo le viene bien
a todo el mundo! El orden burgués, el capitalismo, el falo-
centrismo son capaces de integrar tantas feministas como
se permite la copia

sea necesario. En la medida en que esas mujeres se convier-


ten en hombres, a fin de cuentas sólo significan unos cuan-
tos hombres más. La diferencia entre sexos no reside en si se
tiene o no pene, sino en si se forma parte o no de la econo-
mía fálica masculina.
©

Las feministas en Estados Unidos son conscientes de las con-


tradicciones. Carol Ehrlich señala en su ensayo «El desgra-
ciado matrimonio entre marxismo y feminismo: ¿puede sal-
varse?» que «el feminismo parece cada vez más tener una
perspectiva ciega, segura y no revolucionaria» a medida que
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 41

«el radicalismo feminista cede terreno ante el feminismo bur-


gués», y señala que «no podemos permitir que esto siga suce-
diendo»:

Las mujeres necesitan saber —y cada vez temen más descu-


brir— que el feminismo no tiene que ver con la idea de ves-
tirse para el éxito o con convertirse en una ejecutiva de una
gran empresa o con ganar un puesto electoral; no se trata de
hacer posible un matrimonio con dos carreras y unas vaca-
ciones de ski y pasar una gran cantidad de tiempo con tu
marido y tus dos maravillosos hijos porque tienes una tra-
bajadora doméstica que hace que todo eso te sea posible,
pero que no tiene ni el tiempo ni el dinero para hacerlo ella
misma; no tiene que ver con abrir un Banco de las Mujeres o
con pasar un fin de semana en un taller carísimo que garan-
tice que aprenderás a ser asertiva —pero no agresiva—;
sobre todo, no tiene que ver con convertirse en policía o
agente de la CIA o, en general, del cuerpo de marines.
Pero si estas imágenes distorsionadas del feminismo tie-
nen más realidad que la nuestra, es en parte nuestra culpa.
No hemos hecho todo el esfuerzo que podíamos en propo-
ner análisis alternativos claros y significativos que remitan a
las vidas de la gente y que permitan la creación de grupos
activos y accesibles en los que trabajar.

No es accidental que la lucha feminista haya sido cooptada


tan fácilmente para servir a los intereses de las feministas
conservadoras y liberales en la medida en que en Estados
Unidos el feminismo ha sido una ideología burguesa. Zillah
Eisenstein discute las raíces liberales del feminismo nortea-
mericano en The Radical Future of Liberal Feminism, y explica
en su introducción:

Una de las contribuciones más importantes que encontrare-


mos en este estudio es el papel que la ideología del indivi-
se permite la copia

dualismo liberal ha tenido en la construcción de la teoría


feminista. Las feministas de hoy en día no discuten una teo-
ría de la individualidad o adoptan de forma inconsciente la
ideología competitiva, atomista del individualismo liberal.
Hay mucha confusión al respecto en la teoría feminista que
©

vamos a discutir aquí. Mientras no se haga una diferencia-


ción consciente entre una teoría de la individualidad que
reconozca la importancia del individuo en la colectividad
social y la ideología del individualismo que acepta una
visión competitiva del individuo, no tendremos una imagen
clara del aspecto que debe tener una teoría feminista de la
liberación en nuestra sociedad occidental.
42 Otras inapropiables

La ideología del «individualismo liberal competitiva y ato-


mista» ha permeado el pensamiento feminista hasta tal
punto que socava el radicalismo potencial de la lucha femi-
nista. La usurpación del feminismo por parte de mujeres
burguesas que defienden sus intereses de clase ha sido justi-
ficada en gran medida por la teoría feminista a medida que
ésta se ha ido construyendo —por ejemplo, con la ideología
de la «opresión común». Cualquier movimiento que preten-
da resistirse a la cooptación de la lucha feminista debe
comenzar por presentar una perspectiva feminista diferente
—una nueva teoría— que no esté atravesada por la ideología
del individualismo liberal.
Las prácticas excluyentes de las mujeres que han domi-
nado el discurso feminista han hecho prácticamente imposi-
ble que emerjan nuevas teorías. El feminismo tiene su agen-
da de partido y las mujeres que sienten la necesidad de una
estrategia diferente, una fundamentación diferente, a menu-
do se ven silenciadas y condenadas al ostracismo. Las críti-
cas o las alternativas a las ideas feministas establecidas no
son incentivadas, por ejemplo, las recientes controversias
sobre la expansión del discurso feminista a la sexualidad. Sin
embargo, grupos de mujeres que se sienten excluidas del
discurso y la práctica feminista pueden hacerse un lugar sólo
si primero crean, a través de la crítica, una conciencia de los
factores que las alienan. Muchas mujeres blancas han encon-
trado en el movimiento feminista una solución liberadora a
sus dilemas personales. Tras haberse beneficiado del movi-
miento de forma directa, se sienten menos inclinadas a criti-
carlo o a comprometerse con un examen riguroso de su
estructura que aquellas que sienten que no ha tenido un
se permite la copia

impacto revolucionario en sus vidas o en las vidas de gran


cantidad de mujeres de nuestra sociedad. Las mujeres no
blancas que se sienten parte de la estructura actual del movi-
miento feminista —incluso aunque formen parte de grupos
©

autónomos— parecen sentir que su definición de la agenda


de partido, en el tema del feminismo negro o en cualquier
otro, es el único discurso legítimo. Más que alentar la diver-
sidad de voces, el diálogo crítico y la controversia, tratan, al
igual que otras mujeres blancas, de silenciar el disenso.
Como activistas y escritoras cuyo trabajo es ampliamente
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 43

reconocido, actúan como si estuvieran más capacitadas para


juzgar si debemos escuchar las voces de otras mujeres. Susan
Griffin se opone a esta tendencia hacia el dogmatismo en su
ensayo «El camino de toda ideología»:

... cuando una teoría se transforma en ideología, comienza a


destruir la individualidad y la autoconciencia. Nacida en un
principio de sentimientos, pretende situarse por encima de
los sentimientos. Por encima de las sensaciones. Organiza la
experiencia de acuerdo con ella misma, sin llegar a ella. Por
el mero hecho de ser lo que es, pretende tener razón. Invocar
el nombre de esa ideología es convocar a la verdad. Nadie
puede decir nada nuevo. La experiencia deja de sorprender-
la, de atravesarla, de transformarla. Se molesta por cualquier
detalle que no encaja en su visión del mundo. Comenzó
como un grito contra la negación de la verdad y ahora niega
cualquier verdad que no encaje en su esquema. Comenzó
como una forma de restaurar el sentido de la realidad y
ahora trata de disciplinar a la gente real, rehacer a los seres
naturales a su imagen. Todo lo que no consigue explicar se
transforma en su enemigo. Comenzó como una teoría de
liberación y ahora es amenazada por nuevas teorías de libe-
ración; construye una prisión para la mente.

Resistimos a la dominación hegemónica del pensamiento


feminista insistiendo en que es una teoría en proceso de ela-
boración, que debemos necesariamente criticar, cuestionar,
reexaminar y explorar nuevas posibilidades. Mi crítica per-
sistente está atravesada por mi situación como miembro de
un grupo oprimido, una experiencia de explotación y discri-
minación sexista, y por el sentido de que el análisis feminista
dominante no ha sido la fuerza que ha dado forma a mi con-
ciencia feminista. Esto es cierto para muchas mujeres. Hay
mujeres blancas que nunca se habían planteado resistir a la
se permite la copia

dominación masculina hasta que el movimiento feminista


creó la conciencia de que podían y debían. Mi conciencia de
la lucha feminista se vio estimulada por circunstancias sociales.
Crecí en un hogar negro y de clase obrera del sur, dominado
©

por mi padre. Experimenté —como mi madre, mis hermanas


y mi hermano— diferentes grados de tiranía patriarcal y eso
me enfadó; nos enfadó a todas. La rabia me llevó a cuestio-
narme la política de dominación masculina y me permitió
resistir a la socialización sexista. A menudo las feministas
blancas actúan como si las mujeres negras no supiesen que
44 Otras inapropiables

existía la opresión sexista hasta que ellas dieron voz al senti-


miento feminista. Creen que han proporcionado a las muje-
res negras «el» análisis y «el» programa de liberación. No
entienden, ni siquiera pueden imaginar, que las mujeres
negras, así como otros grupos de mujeres que viven cada día
en situaciones opresivas, a menudo adquieren conciencia de
la política patriarcal a partir de su experiencia vivida, a medi-
da que desarrollan estrategias de resistencia —incluso aun-
que ésta no se dé de forma mantenida u organizada.
Estas mujeres negras veían el discurso de las feministas
blancas sobre la tiranía masculina y la opresión de las muje-
res como si hubiera una «nueva» revelación y ésta tuviera
muy poco impacto en sus vidas. Para ellas no era más que
otra indicación de las condiciones de vida privilegiadas de
las mujeres blancas de clase media y alta que necesitaban una
teoría que les dijera que estaban «oprimidas». El hecho es que
la gente que está de verdad oprimida lo sabe incluso si no se
compromete con una resistencia organizada o es incapaz de
articular de forma escrita la naturaleza de su opresión. Esas
mujeres negras no veían nada de liberador en los análisis
oficiales de la opresión de las mujeres. Ni el hecho de que
las mujeres negras no se hayan organizado de forma colec-
tiva en gran número alrededor de los temas del «feminis-
mo» —muchas de nosotras ni conocemos ni usamos el térmi-
no— ni el hecho de que no tengamos acceso a la maquinaria
del poder que nos permitiría compartir nuestros análisis o
nuestras teorías sobre el género con el público estadouniden-
se, niegan su presencia en nuestras vidas ni nos sitúan en una
posición de dependencia en relación con las feministas, blan-
cas o no, que alcanzan a una mayor audiencia.
se permite la copia

La comprensión que a los trece años tenía del patriarca-


do, creó en mí expectativas hacia el movimiento feminista que
eran muy diferentes de las jóvenes blancas de clase media.
Cuando entré en mi primera clase de estudios de las mujeres en
©

la Universidad de Stanford a principios de la década de 1970,


las mujeres blancas estaban descubriendo la alegría de estar
juntas: para ellas era un momento importante y único. Yo no
había vivido nunca una vida en la que las mujeres no estu-
vieran juntas, en la que las mujeres no se hubieran ayudado,
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 45

protegido y amado las unas a las otras profundamente. No


había conocido a mujeres blancas que ignoraran el impacto
de la raza y la clase en su conciencia y situación social —las
mujeres blancas del sur a menudo tenían una perspectiva
más realista sobre el racismo y el clasismo que las mujeres
de otras zonas de Estados Unidos. No sentí ninguna simpa-
tía hacia mis compañeras blancas que sostenían que yo no
podía esperar que ellas tuvieran el conocimiento o la com-
prensión de la vida de las mujeres negras. A pesar de mi
pasado —mi vida en comunidades segregadas racialmen-
te—, yo sabía cosas de la vida de las mujeres blancas y
desde luego ninguna de ellas vivía en mi barrio ni trabajaba
en mi escuela o mi casa.
Cuando participé en grupos feministas, descubrí que las
mujeres blancas adoptaban una actitud condescendiente
hacia mí y hacia otras participantes no blancas. La condes-
cendencia que dirigían a las mujeres negras era una forma
de recordarnos que el movimiento era «suyo», que podía-
mos participar porque ellas lo permitían, incluso nos alenta-
ban a hacerlo. Después de todo, teníamos que legitimar el
proceso. No nos veían como iguales. No nos trataban como
a iguales. Y aunque esperaban que les proporcionáramos
relatos de primera mano sobre la experiencia negra, sentían
que a ellas les tocaba decidir si esas experiencias eran autén-
ticas. A menudo, las mujeres negras de formación universi-
taria —incluso aquellas que procedían de familias pobres y
de clase obrera— eran despreciadas como meras imitadoras.
Nuestra presencia en las actividades del movimiento no con-
taba, ya que las mujeres blancas estaban convencidas de que
la «verdadera» negritud consistía en hablar la jerga de los
se permite la copia

negros pobres, ser poco cultivadas, tener la sabiduría de la


calle y toda una serie de estereotipos. Si nos atrevíamos a cri-
ticar el movimiento o asumíamos la responsabilidad de dar
nueva forma a ideas feministas e introducir ideas nuevas,
©

nuestras voces eran despreciadas y silenciadas. Sólo se nos


podía oír si nuestras afirmaciones eran un eco de los senti-
mientos del discurso dominante.
Se ha escrito poco sobre los intentos por parte de las femi-
nistas blancas de silenciar a las mujeres negras. Demasiado a
46 Otras inapropiables

menudo estos intentos han tenido lugar en las salas de con-


ferencias, las aulas o la privacidad de los cálidos cuartos de
estar donde la única mujer negra se enfrenta a la hostilidad
de un grupo de mujeres blancas. Desde los inicios del movi-
miento de liberación de las mujeres, ha habido mujeres
negras que se unían a los grupos. Muchas de ellas nunca
regresaron después de la primera reunión. Anita Cornwall
tiene razón al afirmar en «Tres por el precio de uno. Notas de
una feminista negra lesbiana» que «desgraciadamente, a
menudo el miedo a encontrar actitudes racistas parece ser
una de las razones principales por las que muchas mujeres
negras se niegan a unirse al movimiento de las mujeres». La
reciente tendencia a tratar el tema del racismo ha generado
discusiones, pero apenas ha tenido impacto en el comporta-
miento de las feministas blancas hacia las mujeres negras.
A menudo, las mujeres blancas que se dedican a publicar
ensayos y libros sobre cómo «desaprender el racismo» conti-
núan teniendo una actitud paternalista y condescendiente
cuando se relacionan con mujeres negras. Esto no es sor-
prendente, dada la frecuencia con la que su discurso se diri-
ge solamente a una audiencia blanca y se centra tan solo en
cambiar actitudes, antes que en situar el racismo en un con-
texto histórico y político. Nos convierten en el «objeto» de su
discurso privilegiado sobre la raza. Como «objetos», conti-
nuamos siendo diferentes, inferiores. Incluso aunque estén
preocupadas de forma sincera por el racismo, su metodolo-
gía sugiere que no se han liberado del paternalismo endémi-
co de la ideología de la supremacía blanca. Algunas de esas
mujeres se sitúan a sí mismas en el lugar de las «autoridades»
que deben mediar entre las mujeres blancas racistas —ellas,
se permite la copia

naturalmente, se ven a sí mismas libres de racismo— y las


mujeres negras furiosas a las que consideran incapaces de
mantener un discurso racional. Por supuesto, el sistema del
racismo, clasismo y elitismo en la educación debe permane-
©

cer intacto si pretenden mantener su posición de autoridad.


En 1981, me matriculé en una clase de postgrado sobre
teoría feminista en la que recibimos una bibliografía con
obras de mujeres y hombres, uno de ellos negro, pero nin-
gún material de o sobre mujeres negras, indias americanas
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 47

nativas, hispanas o asiáticas. Cuando critiqué esta falta de


atención, las mujeres blancas me dirigieron una mirada de ira
y hostilidad tan intensa que me pareció difícil atender a la
clase. Cuando sugerí que el objeto de esa rabia colectiva era
crear una atmósfera en la que me resultara psicológicamente
insoportable intervenir en las discusiones de la clase o inclu-
so atender, me dijeron que no estaban enfadadas. Era yo la
que estaba enfadada. Semanas después de que el curso ter-
minara, recibí una carta abierta de una estudiante blanca
reconociendo su rabia y expresando arrepentimiento por sus
ataques. Escribía:

No te conocía. Eras negra. Al poco tiempo de estar en clase


me di cuenta de que iba a ser yo quien contestara a todo lo
que dijeras. Y habitualmente para contradecirte. No es que
la discusión tratara siempre del racismo, pero pensé que la
lógica oculta era que si podía demostrar que estabas equi-
vocada en una cosa, entonces era posible que no tuvieras
razón en nada de lo que decías.

Y en otro párrafo:

Un día dije en clase que había gente que estaba menos atra-
pada que otra por la imagen platónica del mundo. Dije que
nosotras, tras quince años de educación, cortesía de la clase
dominante, podíamos estar más atrapadas que otras que no
habían iniciado su vida tan cerca del corazón del monstruo.
Una compañera de clase, tiempo atrás amiga íntima, herma-
na, colega, no me ha vuelto a hablar desde entonces. Creo
que la posibilidad de que no fuéramos las mejores portavo-
ces para todas las mujeres le hizo temer por su propia valía
y por su doctorado.

A menudo en situaciones en las que las feministas blancas


se permite la copia

atacaban agresivamente a una mujer negra, se veían a sí mis-


mas como las que estaban siendo atacadas, las víctimas.
Durante una discusión tensa con otra estudiante blanca en
un grupo de mujeres racialmente mixto que yo había orga-
©

nizado, ella me dijo que le habían contado que yo había


«destrozado» a varias personas en el curso de teoría femi-
nista y que temía ser «destrozada» también. Le recordé que
yo había sido una persona sola hablándole a un grupo gran-
de de gente furiosa y agresiva; apenas podía dominar la
48 Otras inapropiables

situación. Fui yo quien salí llorando del aula, y no alguna de


las personas a las que supuestamente había «destrozado».
Los estereotipos racistas de la mujer negra fuerte, sobre-
humana, son mitos operativos en la mente de muchas muje-
res blancas, mitos que les permiten ignorar hasta qué punto
las mujeres negras son víctimas en esta sociedad y el papel
que las mujeres blancas juegan en el mantenimiento y la per-
petuación de esa victimización. En la obra autobiográfica de
Lillian Hellman, Pentimento, escribe: «Toda mi vida, desde
mi nacimiento, he recibido órdenes de mujeres negras, que-
riéndolas y temiéndolas, sintiéndome supersticiosa cada vez
que las desobedecía». Las mujeres negras que Hellman des-
cribe trabajaban en su casa como servicio doméstico y su
estatus nunca fue el de una igual. Incluso de niña, ella ocu-
paba siempre la posición dominante cuando ellas la cuestio-
naban, aconsejaban o guiaban; podían ejercer esos derechos
porque ella u otra figura blanca de autoridad se lo permitía.
Hellman sitúa el poder en las manos de esas mujeres negras
en lugar de reconocer su propio poder sobre ellas; de este
modo ella mixtifica la verdadera naturaleza de su relación.
Al proyectar en mujeres negras un poder y una fuerza míti-
cos, las mujeres blancas promocionan una imagen falsa de sí
mismas como carentes de poder, víctimas pasivas, y distraen
la atención de su agresividad, su poder —por muy limitado
que éste sea en un Estado dominado por hombres que
defiende la supremacía blanca—, su voluntad de dominar y
controlar a las demás. Estos aspectos no reconocidos del
estatus social de muchas mujeres blancas les impiden tras-
cender el racismo y limitan el alcance de su comprensión del
estatus social global de las mujeres en Estados Unidos.
se permite la copia

Las feministas privilegiadas han sido incapaces de hablar


a, con y para diversos grupos de mujeres porque no com-
prendían la interdependencia de las opresiones de sexo, raza
y clase o se negaban a tomarse en serio esta interdependen-
©

cia. El análisis feminista de la situación de las mujeres tiende


a centrarse exclusivamente en el género y no proporciona
una fundamentación sólida sobre la que construir una teoría
feminista. Reflejan la tendencia dominante, propia de las
mentes patriarcales occidentales, a mixtificar la realidad de
Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista 49

la mujer insistiendo en que el género es el único determi-


nante del destino de las mujeres. Sin duda ha sido más fácil
para las mujeres que no han experimentado la opresión de
raza o clase centrarse exclusivamente en el género. Aunque
las feministas socialistas se centran en la relación de clase y
género, tienden a menospreciar la raza o a afirmar que la
raza es un factor importante para después ofrecer un análi-
sis en el que la raza no es tenida en cuenta.
Como grupo, las mujeres negras están en una posición
inusual en esta sociedad, pues no sólo estamos como colecti-
vo en el fondo de la pirámide ocupacional, sino que nuestro
estatus social es más bajo que el de cualquier otro grupo. Al
ocupar esa posición, aguantamos lo más duro de la opresión
sexista, racista y clasista. Al mismo tiempo, somos un grupo
que no ha sido socializado para asumir el papel de explota-
dor/opresor puesto que se nos ha negado un «otro» al que
podamos explotar u oprimir —los niños no representan un
otro institucionalizado aunque puedan ser oprimidos por
sus padres. Las mujeres blancas y los hombres negros están
en ambas posiciones. Pueden actuar como opresores o ser
oprimidos y oprimidas. Los hombres negros pueden ser víc-
timas del racismo, pero el sexismo les permite actuar como
explotadores y opresores de las mujeres. Las mujeres blancas
pueden ser víctimas del sexismo, pero el racismo les permi-
te actuar como explotadoras y opresoras de la gente negra.
Ambos grupos han sido sujetos de movimientos de libera-
ción que favorecen sus intereses y apoyan la continuación de
la opresión de otros grupos. El sexismo de los hombres
negros ha socavado las luchas para erradicar el racismo del
mismo modo que el racismo de las mujeres blancas ha soca-
se permite la copia

vado las luchas feministas. En la medida en que ambos gru-


pos, o cualquier otro grupo, definen la liberación como la
posibilidad de adquirir la igualdad con los hombres blancos
de la clase dominante, tienen intereses creados en la conti-
©

nuidad de la explotación y opresión de los otros.


Las mujeres negras sin «otro» institucionalizado al que
puedan discriminar, explotar u oprimir tienen una expe-
riencia vivida que reta directamente la estructura social de
la clase dominante racista, clasista y sexista, y su ideología
50 Otras inapropiables

concomitante. Esta experiencia vivida puede dar forma a


nuestra conciencia de manera que nuestra visión del mundo
difiera de la de aquellos que tienen cierto grado de privile-
gio —por muy relativo que éste pueda ser en el sistema exis-
tente. Es esencial para el futuro de las luchas feministas que
las mujeres negras reconozcamos el punto especial de venta-
ja que nuestra marginalidad nos otorga y hagamos uso de
esa perspectiva para criticar la hegemonía racista, clasista y
sexista así como para imaginar y crear una contra-hegemo-
nía. Estoy sugiriendo que tenemos un papel central que
jugar en la formación de la teoría feminista y una contribu-
ción que ofrecer que es única y valiosa. La formación de una
teoría y una práctica feministas liberadoras es una responsa-
bilidad colectiva que debe ser compartida. Aunque critico
aspectos del movimiento feminista tal y como lo conocemos,
una crítica que a menudo puede ser dura e implacable, no lo
hago en un intento de menguar las luchas feministas, sino de
enriquecerlas, de compartir la tarea de construir una ideolo-
gía y un movimiento liberadores.

se permite la copia
©
2. Transformar el feminismo socialista.
El reto del racismo2
Kum-Kum Bhavnani y Margaret Coulson1

El feminismo es la teoría y la práctica políticas que lucha para libe-


rar a todas las mujeres: a las mujeres de color, a las mujeres de la
clase obrera, a las mujeres pobres, a las mujeres discapacitadas, a
las lesbianas, a las mujeres ancianas, así como a las mujeres blan-
cas, heterosexuales económicamente privilegiadas.
Smith, 1982.3

A TRAVÉS DE LA LUCHA, en acaloradas discusiones y en textos, las


mujeres negras han tratado de modificar la política del femi-
nismo socialista. En su artículo de 1985, Michèle Barrett y Mary
McIntosh4 dieron una respuesta a esas iniciativas. Nosotras dos
queremos tomarnos en serio este intento llevado a cabo por
feministas blancas de aceptar las acusaciones de racismo volca-
das contra el análisis feminista de las mujeres blancas.

1 Publicación original: Kum-Kum Bhavnani y Margaret Coulson,


«Transforming Socialist Feminism: the Challenge of Racism» en Feminist
Review, núm. 23, Taylor & Francis, 1986, pp. 81-92; aquí tal como lo ree-
ditaron las autoras para su publicación en Kum-Kum Bhavnani (ed.),
se permite la copia

Feminism and Race, Oxford, Oxford University Press, col. Oxford


Readings in Feminism, 2001. [Nota de e.]
2 Queremos dar las gracias a todas aquellas con las que hemos discuti-
do las ideas de este ensayo y, de forma especial a Ruth Frankenberg,
©

Margo Gorman, Lata Mani, Sarah Pyett, Esther Saraga, Andy Shallice y
Claudette Williams.
3 B. Smith, «Racism and Womens studies», en Gloria T. Hull, Patricia Bell
Scott y Barbara Smith (eds.), All Women Are White, All the Blacks Are Men,
But Some of Us Are Brave, Nueva York, Feminist Press, 1982.
4 M. Barrett y M. McIntosh, «Ethnocentrism and Socialist-Feminist Theory»,
Feminist Review, núm 17, 1984.

51
52 Otras inapropiables

Nuestra contribución pondrá de manifiesto nuestras reacciones


y comentarios al artículo. También queremos ocuparnos de
algunos de los argumentos mantenidos en «Muchas voces, un
canto», un monográfico especial de la Feminist Review5 dirigido
por mujeres negras y sobre la lucha de las mujeres negras. Este
número monográfico se sitúa en el marco de la historia recien-
te, con hitos como la creación de la Organización de Mujeres de
Origen Asiático y Africano, la lucha con los Imperial Typewriters,
Trico y Grunwicks, así como el desarrollo de los grupos de
Mujeres contra el Racismo y el Fascismo, la conferencia social-
feminista anti-imperialista y anti-racista de 1980 y aconteci-
mientos más recientes. Consideramos que el hecho de afrontar
la acusación de racismo tiene el potencial de producir una
forma diferente de feminismo-socialista.

El riesgo de asumir este debate

En nuestras conversaciones, entre nosotras y con otras per-


sonas, hemos tratado de identificar algunos de los proble-
mas que conlleva asumir este debate, habida cuenta de las
tensiones que implica. Una debe reconocer que las mujeres
negras y las blancas tienen historias distintas y distintas rela-
ciones con las luchas actuales, tanto en Gran Bretaña como
internacionalmente. Las mujeres blancas que aceptan este
debate deben reconocer la base material de su posición de
poder respecto de las personas negras, tanto si son mujeres
como si son varones. También resulta necesario reconocer las
complejidades de esta relación de poder: por ejemplo, en el
caso de las mujeres blancas respecto de los varones negros;
una relación en la que pueden tener una posición de privile-
gio, estar oprimidas o ambas cosas a la vez.
se permite la copia

En sus contribuciones a esta discusión, las mujeres blan-


cas no pueden esquivar el legado de racismo en el seno del
feminismo. Este legado tiene una larga historia que incluye
el dominio de la eugenesia en los movimientos de control
©

de la natalidad, tanto en los antiguos como en los más


recientes; la aceptación entusiasta por parte de la mayoría

5 V. Amos, G. Lewis, A. Mama y P. Parmar (eds.) «Many Voices, One


Chant: Black Feminist Perspectives», Feminist Review, núm. 17, 1984.
Transformar el feminismo socialista 53

de las sufragistas del nacionalismo imperialista y, en el


mejor de los casos, el fracaso de las campañas anti-violación
a la hora de evitar que reproduzcan estereotipos racistas
sobre la sexualidad de los varones negros. No se trata sólo de
que éstas no hayan tematizado el racismo, ni hayan sido
capaces de ver cómo las campañas contra la violencia mas-
culina son algo complejo en el contexto del racismo, sino que
sus acciones han reafirmado ideas racistas al organizarse
marchas en zonas negras y al exigir mayor presencia policial.
De todos modos, no suscribimos una política basada en
el esencialismo. Sentimos que hay momentos en los que las
activistas políticas blancas y negras deben trabajar juntas y
en este artículo tratamos de hacerlo. Escribimos este ensayo
como una obra teórica y política. Esperamos que las discu-
siones y acciones que de él surjan contribuyan a un proceso
que saque al socialismo feminista de su bache actual —del
que, a veces, se habla como una crisis.
En el feminismo socialista contemporáneo se han producido
hallazgos importantes : en el desarrollo del análisis del trabajo
de las mujeres, asalariado y no asalariado, en las relaciones de
las mujeres con los varones, la clase obrera y el capital, y en los
debates con las feministas radicales acerca de la sexualidad.
Uno de los compromisos recientes del feminismo socialista ha
sido el de enfrentarse a las asunciones «masculinas» que han
distorsionado la teoría y la práctica socialista para así transfor-
mar el socialismo en algo que represente de forma más cabal
las luchas y aspiraciones de las mujeres. Este feminismo socia-
lista debe, por sí mismo, estar abierto a la posibilidad de ser
transformado por el ímpetu de las luchas negras. Pero todavía
es difícil encontrar ámbitos en los que esto suceda.
se permite la copia

¿Una feminidad o muchas?

Aunque el discurso «¿Acaso no soy una mujer?»6 de Sojourner


©

Truth ha sido citado a menudo en el movimiento de las

6 Citado en Hazel Arby, «¡White Women listen! Black Feminism and the
Boundaries of Sisterhood», en Centre for Contemporary Cultural
Studies, The Empire Strikes Back: Race and Racism in 70’s Britain, Londres,
Hutchinson, 1982, p. 214.
54 Otras inapropiables

mujeres... ¿de qué ha servido? Dejando aparte el racismo


intencionado, se ha utilizado la falta de información como
excusa para dejar a las mujeres negras fuera de los análisis,
o bien se las ha definido como un problema o se las ha con-
vertido en algo exótico. Tenemos la impresión de que las
mujeres negras han sido simplemente añadidas al movi-
miento sin que se haya realizado una transformación global
necesaria para el análisis.
El racismo dentro del movimiento de las mujeres en Gran
Bretaña puede mostrarse claramente con el siguiente ejem-
plo. Las marchas conocidas con el nombre de Reclama la
Noche, que se desarrollaron en la segunda mitad de la déca-
da de 1970, con frecuencia recorrían zonas negras pidiendo
mayor seguridad para las mujeres, a menudo con eslóganes
que exigían mayor presencia policial —por ejemplo, una
desarrollada en Cambridge en 1984. A pesar de las protestas
de las mujeres negras, las manifestaciones de Reclama la
Noche siguieron, y todavía siguen con frecuencia , llevando
esos eslóganes que exigen mayor presencia policial. No sólo
es un acto racista manifestarse en zonas negras exigiendo
calles más seguras para las mujeres —¿para qué mujeres?—
, sino que además, por decirlo suavemente, no conozco
muchas mujeres negras que crean que la protección policial
sea una forma de conseguir ese objetivo. El racismo actúa de
forma que sitúa a las distintas mujeres en diferentes relacio-
nes con las estructuras de poder y autoridad en la sociedad.
El problema con el concepto de género es que está enrai-
zado en la base material aparentemente simple y «real» de la
diferencia biológica entre mujeres y varones. Pero lo que se
construye sobre esa base no es una feminidad en relación
con una masculinidad, sino varias. No es sólo que haya dife-
rencias entre los distintos grupos de mujeres, sino que esas
se permite la copia

diferencias son a menudo escenario de un conflicto de inte-


reses. Aunque pueda ser difícil, el feminismo socialista tiene
que reconocer esos conflictos y tratarlos políticamente.
©

El Estado trata a las distintas mujeres de forma distinta

Para las feministas socialistas, una forma de comenzar a tra-


tar estos temas es a través de un examen del Estado y de
Transformar el feminismo socialista 55

cómo trata de forma distinta a los distintos grupos de muje-


res. Luchas, campañas, análisis realizados por personas
negras, especialmente mujeres, contra las leyes de inmigra-
ción han centrado la atención política en la importancia que
esas leyes tienen al revelar el proyecto del Estado respecto a
las personas negras. Desde la década de 1940, las legislacio-
nes sobre inmigración y nacionalidad se han convertido en
instrumentos centrales del racismo de Estado, independien-
temente del partido que haya estado en el gobierno. El
Estado se ha ido preocupando de forma obsesiva por la
entrada de mano de obra negra en el Reino Unido y, en con-
secuencia, por el control de la gente negra que ya está aquí.7
La idea más habitual es que los varones negros entran en el
mercado de trabajo, o lo amenazan, mientras que la obten-
ción de plusvalor a través de las mujeres negras ha sido a
menudo ignorada. Esto, a pesar de la cada vez mayor parti-
cipación de la mujer negra en el trabajo asalariado.8 Esta
asunción se ha venido expresando en el sexismo de los con-
troles de inmigración. Por ejemplo, hasta hace poco se reser-
vaba un cierto cupo para permitir que las prometidas de los
varones negros se reunieran con ellos, pero existía un control
mucho más estricto sobre las mujeres que pretendían traer a
sus prometidos al Reino Unido.
El Tribunal Europeo de Derechos Humanos atendió a las
llamadas de atención contra esta desigualdad en 1985 alu-
diendo a la discriminación sexual. El gobierno británico res-
pondió endureciendo la legislación para controlar de forma
más estricta la entrada de la pareja de cualquier persona.
Esto contrasta con una decisión anterior, incluida en el Acta
Nacional de 1981, que permitía que algunas mujeres —en su
se permite la copia

7 Se ha escrito sobre los controles internos y los registros de gente negra


en una serie de panfletos y libros. Por ejemplo, Manchester Law Centre,
From III Treatment to No Treatment: The New Regulations: Black People and
©

Internal Controls, Manchester, Manchester Law Centre, 1982; y Paul


Gordon, Passport Raids and Checks: Internal Immigration Controls, The
Runnymede Trust, 1981.
8 La participación de mujeres negras en empleos pagados ha sido señala-
da y comentada por algunos autores como Pratibha Parmar, «Gender,
Race and Class: Asian Women in Resistance», en Centre for Contemporary
Cultural Studies, The Empire Strikes Back..., cit.
56 Otras inapropiables

mayoría blancas— pasaran su ciudadanía británica a sus


hijos nacidos fuera del país. En el primer caso, El Estado
abandonó su sexismo de forma negativa, a la vez que conso-
lidaba su racismo al reducir los derechos de mujeres y varo-
nes al mismo nivel. En el segundo caso, proclamaba también
su compromiso con la igualdad de sexos y mejoraba los
derechos de mujeres mayoritariamente blancas, al mismo
tiempo que consolidaba su racismo.9 Así, tras la retórica de
la creación de la «igualdad» entre varones y mujeres, el
Estado profundiza en las prácticas racistas. Aunque ninguna
de nosotras dos tiene respuestas fáciles al problema, éste es
el tipo de conflicto de intereses al que todas las feministas
socialistas tenemos que enfrentarnos.

¿Racismo o etnocentrismo?

Para nosotras, el problema central de la teoría feminista


socialista es el racismo, del que el etnocentrismo puede ser
una consecuencia. En la medida de nuestra comprensión,
el papel del Estado y del capital internacional en la crea-
ción y perpetuación de desigualdades entre personas blan-
cas y negras se pierde si utilizamos un término como el de
etnocentrismo. Es más, la palabra y el mismo concepto
parecen implicar que el problema es de naturaleza cultu-
ral, algo que se mantiene a causa de la ignorancia. De lo
que se sigue que, si ofrecemos mayor información socioló-
gica, superaremos el problema. Nosotras, sin embargo,
sostenemos que considerar el racismo como problema cen-
tral, implica una transformación radical y fundamental del
feminismo socialista.
se permite la copia

Pensamos que si queremos cambiar el marco conceptual


tenemos que comenzar por plantear preguntas diferentes.
Cuando tratamos de comprender la condición de las muje-
©

res nos preguntamos ¿qué es lo que oprime a las mujeres?

9 Para una discusión detallada al respecto, véase J. Bhabha, F. Klug y S.


Shutter (eds.), Worlds Apart: Women Under immigration Law, Londres,
Pluto Press for the Women, Immigration and Nacionality Group, 1985.
Transformar el feminismo socialista 57

¿Qué da forma a la vida y la identidad de las mujeres? Una


manera de entrar en la última pregunta es a través de las diná-
micas políticas. Si pensamos en los problemas por los que la
gente negra ha estado luchando durante los últimos cinco o
diez años en Gran Bretaña, veremos que esas luchas han teni-
do que ver con el cuestionamiento del racismo, sobre todo en
relación con el Estado: sobre la deportación y campañas anti-
deportación, y con la policía. Al hacernos estas preguntas y
repasar estas luchas descubrimos la necesidad de un análisis
actualizado de la relación entre el Estado y «la familia» y de
cómo ésta es distinta para personas negras y blancas. Todo
esto puede llevarnos a un análisis que nos permita compren-
der que el Estado tiene distintas estrategias para cada grupo.

El racismo, el Estado y los hogares negros

Comencemos reconociendo que no todas las formas e ideo-


logías de la familia y el hogar son iguales en Gran Bretaña, del
mismo modo que tampoco son valoradas de igual modo por
el Estado. Por ejemplo, las prácticas del Estado en términos de
ideología de la unidad familiar son bastante contradictorias
en lo que se refiere a la población negra. Como consecuencia
de los controles y prácticas de inmigración, muchas familias
negras tienen que separarse de forma permanente o durante
una gran cantidad de años. El Estado no muestra ningún res-
peto por el principio de la unidad familiar en esos casos. Pero
el Estado declara pretender la unidad familiar para las familias
negras en otras circunstancias. Por ejemplo, si un matrimonio
de personas negras termina y una de las personas se muda tal
vez a su país de origen, el Estado trata de trasladar/deportar al
se permite la copia

resto de la familia/hogar, utilizando el argumento de que se


debe defender la unidad de la familia. Para las personas
negras, el compromiso del Estado con la «unidad de la fami-
lia» es mayor si esa unidad se da fuera del Reino Unido.10
©

Si miramos este hecho de forma más analítica, podemos


examinar la relación del Estado con la población negra en

10 Véanse cometarios al respecto en Bhabha, Worlds Apart..., cit., pp. 100-101.


58 Otras inapropiables

términos de mano de obra negra como excedente de mano


de obra. Nos referimos aquí al argumento de que el capital
tiene interés en mantener a los trabajadores negros como
excedente de mano de obra. Con esto queremos decir que
esa mano de obra es vista como temporal, fácil de conseguir,
fácil de reemplazar y abundante. A causa de la relación colo-
nial de Gran Bretaña con África, el subcontinente indio y el
Caribe, en la década de 1940 y a principios de la de 1950 exis-
tía cierta retórica sobre los sujetos coloniales que iban a tra-
bajar a la «madre patria». En este sentido limitado es en el
que se vio a las personas negras como residentes potenciales,
aunque no se hizo nada para albergarlos o ayudarles a satis-
facer cualquier otro tipo de necesidades humanas. Así, los
trabajadores negros parecieron aumentar la presión existen-
te en los ya de por sí escasos recursos de las zonas urbanas
pobres. En el análisis de Sivanandan,11 mientras que los
beneficios económicos de los/las trabajadores/as negros iban
a parar a manos del capital, los costes sociales tenían que
soportarlos los trabajadores. Pero capital y trabajadores esta-
ban unidos por el racismo. Las presiones políticas internas y
externas, incluida la influencia de la política de la CEE sobre
control de inmigración, llevó al rápido desarrollo de contro-
les racistas de inmigración en Gran Bretaña durante la déca-
da de 1960 y 1970, a través de los cuales las personas negras
que se asentaban en el país pasaron a ser definidas como
mano de obra migrante. De este modo, la mano de obra
negra contratada en los países del mundo capitalista blanco
mantiene una situación temporal.
En la situación actual de creciente desempleo en Gran
Bretaña, y con los cambios que se están produciendo en la divi-
sión internacional del trabajo, los controles de inmigración han
sido y son cada vez más férreos para la gente negra, y de modo
se permite la copia

especial para los varones negros. Los prejuicios patriarcales del


Estado británico, convertidos en leyes de inmigración, deben
situarse en esta dinámica de racismo de Estado.
Las relaciones del Estado con las personas negras están
©

también marcadas por ideas y prácticas que asocian a la


gente de color con el crimen, la perversión y el desorden.

11 A. Sivanandan, «Race, Class and the State: The Black Experience in


Britain», Race and Class, núm. 17, 1976.
Transformar el feminismo socialista 59

Esas ideas y prácticas se utilizan para «justificar» un control


policial especialmente duro y coactivo. No es posible pre-
sentar aquí una serie de argumentos que prueban esto, pero
queremos señalar que la presencia policial y la política de
«ley y orden» son formas esenciales a través de las cuales el
Estado perpetúa y legitima la violencia contra las personas
negras. Stuart Hall et alli., Paul Gilroy y Errol Lawrence han
escrito análisis al respecto.12
El hecho de que muchas feministas-socialistas blancas
ignoren los ataques racistas a los hogares negros no es algo
nuevo. De todos modos, al hacerlo, ignoran que el acoso y
los ataques racistas de mujeres y varones blancos, y a veces
de familias blancas, pueden impulsar la solidaridad de los
hogares negros. Independientemente de las desigualdades
que existan en esos hogares, son también espacios de apoyo
para sus miembros. Al decir esto reconocemos que las muje-
res negras tienen problemas a los que enfrentarse en sus
hogares. Las luchas en materia de sexualidad y contra la vio-
lencia doméstica, por ejemplo, han tenido gran importancia
para todas las feministas, incluidas las feministas negras, y
han propulsado un cuestionamiento de las presuposiciones
existentes sobre la violencia doméstica. Pero al mismo tiem-
po, la familia negra es una fuente de apoyo en el contexto de
acoso y ataque por parte de las personas blancas.
Son esta clase de asuntos los que producen relaciones con-
tradictorias entre las mujeres negras, las mujeres blancas, los
hogares negros, el estado y el movimiento feminista domi-
nado por mujeres blancas.
Llevar esta discusión más allá exige un análisis más com-
pleto de la relación entre «la familia» tal y como es apoyada
por el Estado, en la ideología dominantes y en las prácticas
sociales, y las familias negras, en el contexto general de una
se permite la copia

sociedad racista.
©

12 Stuart Hall et al., Policing the Crisis, London, Hutchinson, 1978; Paul
Gilroy, «El mito de la criminalidad negra», en M. Eve y D. Musson (eds.),
Socialist Register 1982, Londres, Merlin Press, 1982; Errol Lawrence «Just
Plain Common Sense: The “Roots” of Racism», en Centre for
Contemporary Cultural Studies, The Empire Strikes Back..., cit.
60 Otras inapropiables

En conclusión

No queremos resumir aquí nuestro artículo; más bien pre-


tendemos extraer algunas consecuencias de nuestros argu-
mentos y plantear nuevas preguntas. El primer asunto que
queremos señalar es que, al decir que el análisis del racismo
debe ser un tema central del feminismo socialista, no estamos
diciendo que tengamos «la respuesta». Consideramos de
todos modos que el análisis que todas, en tanto que feminis-
tas socialistas, necesitamos desarrollar se basa en la idea de
un capitalismo patriarcal racialmente estructurado (perdón
por el tono grandilocuente). Esto nos lleva a examinar de qué
modo la «raza», el género y la clase se estructuran mutua-
mente entre sí. ¿Cómo se combinan y/o se intersectan entre
sí? ¿Cómo divide el racismo la identidad y la experiencia de
género? ¿Cómo se experimenta el género desde el racismo?
¿Cómo dan forma género y raza a la clase? Afrontar estas
cuestiones exige un replanteamiento fundamental de las cate-
gorías conceptuales del feminismo socialista y podría llevar-
nos a desarrollar políticas más adecuadas.
Como hemos tratado de demostrar, una de las conse-
cuencias de no comprender la centralidad del racismo y del
desafío que supone, es que el feminismo socialista se distan-
cia de la dinámica política. La importancia de este tema está
en relación con la acción política. Muchas feministas que tra-
bajan como profesoras o investigadoras han luchado en el
seno de sus instituciones educativas para conseguir una
mayor igualdad de oportunidades para las mujeres median-
te el cuestionamiento de las condiciones del servicio, las prác-
ticas de contratación, la segregación de género en el trabajo y
la educación, etc. Pocas veces, sin embargo, esas mismas
se permite la copia

mujeres, si son blancas, se han cuestionado el racismo de las


instituciones con la misma claridad y energía. De hecho, a
veces, ven el antiracismo como algo que entra en competen-
cia con el antisexismo a la hora de conseguir financiación y
©

apoyo —por ejemplo, en la contratación de personal y la


matriculación de alumnos—, partiendo de la presuposición
de que el antisexismo es un asunto de las mujeres blancas y
el antiracismo un asunto de la gente negra.
Queremos terminar nuestra conclusión repitiendo que la
presuposición de una hermandad automática entre mujeres
Transformar el feminismo socialista 61

blancas y negras es algo sin fundamento. La hermandad sólo


puede crearse y desarrollarse cuando las mujeres blancas
reconocen las complejas relaciones de poder entre las muje-
res y varones blancos, de un lado, y las mujeres y varones
negros, de otro. El intento de transformar el feminismo
socialista no es una causa noble, sino una necesidad política.
Como ha señalado Barbara Smith:

Las mujeres blancas no trabajan sobre el racismo para hacer-


le un favor a alguien, para beneficiar a las mujeres del Tercer
Mundo. Hay que comprender de qué modo el racismo dis-
torsiona y disminuye vuestras propias vidas como mujeres
blancas, que el racismo afecta también a vuestras oportuni-
dades de supervivencia y que, sin lugar a dudas, os concier-
ne. Mientras que no comprendáis esto, no se producirá nin-
gún cambio esencial.13
se permite la copia
©

13 Smith, «Racism and Women’s Studies», op. cit.


3. Intelectual orgánica certificada 1

Aurora Levins Morales

He comenzado a escribir este ensayo cien veces, de cien


maneras distintas, y cada una de ellas he tenido que enfren-
tarme al mismo entumecimiento total de la mente. Comen-
tando de nuevo esta situación por teléfono con mis padres,
para intentar desembrollar el lío, nos decidimos esta vez por
las metáforas culinarias. Cuando era una niña en el Puerto
Rico rural, la gente que me rodeaba comía productos agríco-
las cultivados en la tierra local, pollos que rondaban por el
vecindario y bananas cortadas directamente del tallo. Todo sin
refinar, sin envasar, repleto de todos esos complejos nutrien-
tes que desaparecen cuando el proceso está excesivamente
controlado. Pero pocos años antes de que emigráramos, el
negocio de la publicidad penetró finalmente en nuestra
remota parte de la isla. A las mujeres del campo se les vendía
el Cheez Whiz on Wonder Bread como un desayuno mejor, más
sofisticado, moderno, avanzado y saludable que los tubércu-
se permite la copia

los hervidos con bacalao o los frijoles con arroz.


Cuando afirmo que soy una intelectual orgánica, quiero
decir que las ideas que llevo conmigo crecieron en una tierra
©

que conozco; que puedo hablar de su equilibrio mineral, del

1 Publicación original: Aurora Levins Morales, «Certified Organic


Intellectual» en The Latina Feminist Group, Telling to Live. Latina
Feminist Testimonios, Durham/London, Duke University Press, col. Latin
America Otherwise: Languages, Empires, Nations, 2001. [Nota de e.]

63
64 Otras inapropiables

clima y del trabajo que ha requerido su preparación para el


uso. En el mercado de las ideas se nos empuja hacia las cade-
nas de supermercados que están reemplazando al pequeño
colmado rural; se nos persuade de que lo confeccionado en
serie es mejor, mucho más si es importado, y que lo que se
vende desnatado y en brillantes envases es preferible a los
cajones abiertos y los toneles llenos de productos de los que
aún cuelga la tierra.
Las tradiciones intelectuales de las que provengo fabrican
la teoría a partir de las vidas compartidas en lugar de encar-
garla por correo. Mi pensamiento se ha nutrido directamente
de la escucha de mis propias turbaciones, reconociendo a
quienes las compartían, quienes las validaban, intercambian-
do historias sobre nuestras experiencias comunes y hallando
pautas, sistemas, explicaciones de cómo y por qué ocurrían las
cosas. Éste es el proceso central de la toma de conciencia, del
testimonio colectivo. Así es como crece la teoría hecha en casa.
Soy, también, hija de dos culturas de resistencia. Crecí
entre jíbaras, apelativo con múltiples significados que se da a
las personas campesinas y que se utiliza, por una parte, para
romantizar la figura imaginaria de los nobles campesinos
«simples pero honestos», o de los trabajadores de los cafeta-
les de antaño y que, por otra, tiene un sentido despectivo
común que implica estupidez y falta de sofisticación, algo así
como «paleto». Sin embargo originariamente significaba en
la lengua del pueblo Arawak, «la que corre para ser libre»,
haciendo referencia a los asentamientos mestizos de esclavos
huidos, indios fugitivos y campesinos europeos que pusieron
rumbo a las montañas para escapar del control del Estado. Yo
crecí en uno de los más antiguos de esos asentamientos, un
se permite la copia

lugar llamado Indiera, escuchando hablar a la gente. Soy hija


también de una urbanita descendiente de la elite venida a
menos de la isla. Mi madre, que provenía de una familia de
pequeños hacendados que había atravesado malos tiempos, se
©

crió en la cultura obrera inmigrante y colectiva de la ciudad


de Nueva York de las décadas de 1930 y 1940, adquiriendo
un sentido del pragmatismo, de orgullo por el trabajo bien
hecho y de adaptabilidad a las corrientes movedizas de la
historia. A finales de la década de 1940 se hizo comunista,
Intelectual orgánica certificada 65

fue feminista antes de que hubiera un movimiento para res-


paldarla, y ahora, cuando cualquier tipo de política le hace
encoger el estómago, confía en su propia intuición antes que
en las credenciales de cualquier otra persona.
Y, así, crecí formando parte de la rama tropical de una
tribu de pensadores judíos de clase obrera que criticaban
los cánones de su tiempo, los de aquellos shtetls de Europa
del este, y que discutían sobre políticas de identidad y
alianza, sobre asimilación y solidaridad tiempo atrás, ya en
el siglo pasado. La tatarabuela de mi padre, esposa de un
rabino en la Ukrania de 1860, desafió las reglas patriarcales
del judaísmo levantándose en el templo y gritando
«¡Vuestro Dios es un hombre!». La abuela de mi padre,
Leah Shevelev, inmigrante en la Nueva York del cambio de
siglo, organizó a las trabajadoras del textil y a las mujeres
desempleadas y trabajó como educadora para el control de
la natalidad con Margaret Sanger. El padre de mi padre
ayudó a fundar las juventudes del Movimiento Comunista.
En la extensa familia que mi bisabuela Leah gobernaba, mi
padre se convirtió en un hombre internacionalista y pro
feminista, un pensador original y creativo que amaba el tra-
bajo intelectual y al que los rituales y la pompa de las insti-
tuciones académicas no le impresionaban.
Así que me crié en una familia de activistas que ya esta-
ban pensando acerca de las cuestiones de la raza, la clase y
el género y los usos de la literatura y la historia antes de que
existieran cursos universitarios en los que hacerlo; una
madre que era feminista en la década de 1950, un padre que
a la hora de dormir me contaba relatos sobre historia china y
africana y enseñaba biología como una ciencia liberadora. Lo
se permite la copia

que pienso, y cómo lo hago, surge directamente de mi iden-


tidad como jíbara shtetl intelectual y activista. Me enseñaron
a creer en estas tradiciones y en la fiabilidad de mi propia
inteligencia en combinación con la de otras personas.
©

En los grupos de autoconciencia a los que pertenecí en


los primeros años de la década de 1970, compartíamos his-
torias personales muy emotivas acerca de cómo había sido
realmente vivir como una mujer, examinando nuestras expe-
riencias con los hombres y con otras mujeres en nuestras
66 Otras inapropiables

familias, en las relaciones sexuales, en los lugares de trabajo


y en las escuelas, en el sistema de asistencia sanitaria y en la
supervivencia frente al desprecio y la violencia social gene-
ral manifestada hacia nosotras. Mientras contábamos nues-
tras historias, reconocíamos que nuestras experiencias y
nuestras reacciones nos eran comunes a muchas de nosotras,
que nuestras percepciones, pensamientos y sentimientos
tenían sentido para otras mujeres. Después utilizábamos esa
experiencia compartida como una fuente de autoridad.
Cuando nuestras vidas no se adecuaban al saber oficial con-
fiábamos en nuestras vidas y utilizábamos el cuerpo colecti-
vo, mutuamente validado, de nuestras historias para criticar
esas versiones oficiales de la realidad. Esta teoría surgía de
una necesidad activista, y la literatura feminista que leíamos,
desde artículos como «The Politics of Housework» y «The
Myth Of the Vaginal Orgasm» a la poesía de Susan Griffin,
Marge Piercy o Alta, respondía al mismo fenómeno masivo
de nombrar la verdad a partir de la experiencia personal.
Por supuesto, en la euforia de encontrar la validación de lo
que nos era común, pronto saltó a la vista lo que no lo era. Las
fuertes diferencias entre nosotras, el modo en que nuestro «ser
mujer» era conformado por la clase, la «raza», la sexualidad,
la edad, nuestras diferentes culturas..., se habían visto artifi-
cialmente aplanadas. Casi inmediatamente, grupos de muje-
res de color, de lesbianas, mujeres de clase obrera, mujeres
judías, discapacitadas..., nos encontramos atravesando tran-
quilamente el mismo proceso de dar testimonio, luchando
de nuevo por nuestras propias verdades específicas. Mi des-
cubrimiento de una comunidad de escritoras, artistas y pen-
sadoras feministas de color, fue probablemente la más pro-
se permite la copia

funda legitimación que nunca haya recibido de mi derecho a


existir, a conocer, a nombrar mi propia realidad.
Pero a medida que el feminismo académico deriva más y
más lejos de sus raíces activistas, mientras que el elitista gali-
©

matías de la jerga postmoderna hace que sea algo cada vez me-
nos aceptable hablar de forma comprensible, he sentido ame-
nazada, cada vez más a menudo, mi confianza en mí misma.
Observo cómo mi vida y lo que sobre ella he teorizado
se convierte en la materia prima del conocimiento de otras
Intelectual orgánica certificada 67

personas. Esto me recuerda al árbol indio de neem, utilizado


durante milenios como repelente de insectos y patentado
ahora por una compañía multinacional farmacéutica. Las
mujeres campesinas desarrollaron la tecnología para extraer
y preparar el aceite para el uso local, pero para las multina-
cionales el uso local es un desperdicio. Han sido capaces de
patentar exactamente el mismo proceso, realizado a un volu-
men mucho mayor y envasado para la exportación.
Mi vida intelectual y la de otras intelectuales orgánicas,
muchas de ellas mujeres de color, es en sí misma lo suficiente-
mente sofisticada para su utilización. Pero para que adquiera
valor en el mercado, los empresarios y promotores de las mul-
tinacionales deben encontrar un modo de procesarla, de refi-
nar la rica multiplicidad de nuestras vidas y todo lo que hemos
llegado a comprender acerca de ellas y convertirlas en alta teo-
ría por el simple método de extirpárnosla, someterla a un pro-
ceso de abstracción que la hará irreconocible, extraerle la fibra,
hervirla hasta que la vitalidad se esfume por un proceso de
oxidación, y comerciar después con ella como algo propio,
revendiéndonosla más cara de lo que podemos permitirnos.

El colmado local de Barrio Rubias, que está al otro lado de la


carretera de Barrio Indiera Baja donde crecí, vendía dos clases
de queso. Queso holandés, que venía en enormes bolas cubiertas
de cera roja. Si enmohecía, lo hacía desde el exterior, así el cen-
tro permanecía en buenas condiciones y era posible rebanar la
parte que se había puesto verde de la corteza. O se podía com-
prar una cosa llamada «Producto Alimenticio Procesado de
se permite la copia

Imitación al Queso». Ambos tenían su origen en las glándulas


mamarias de las vacas. Pero el «PAPIQ» —como sus parientes
contemporáneos, el Velveeta y las porciones individuales en-
vueltas en plástico de Kraft— apenas podían identificarse con
©

ninguno de los procesos de su producción, y lo que es peor,


cuando se echaba a perder, lo hacía minuciosamente, por todas
partes. Toda la capacidad de resistencia de un queso sólido con
corteza le había sido refinada y extraída. A pesar de ello, nor-
malmente se vendía mejor. El envoltorio era colorido, estaba
misteriosamente precintado y resultaba difícil de abrir.
68 Otras inapropiables

Se nos ha entrenado a conciencia para ser consumidoras de


brillantes envases, bolsas precintadas, botellas a prueba
de niños y cantidades copiosas de envoltorio plástico y celo-
fán. Se nos enseña a desconfiar de los alimentos a granel y a
depender del reconocimiento de la marca. A los estudiantes
con los que trabajo se les ha enseñado a dar a los libros
mucha más autoridad de la que dan a sus vidas; tanto es así
que encuentran un desafío extremo en escribir una respues-
ta autobiográfica a las lecturas y conferencias. Lo que mejor
saben hacer es ordenar en una secuencia lógica las opiniones
que otras personas han publicado, parafraseando a una u
otra escuela de pensamiento acerca del tema propuesto.
Cuando el envoltorio es difícil de rasgar, raramente se
preguntan porqué el maldito chisme tiene que estar tan fir-
memente envuelto. Asumen que el problema está en ellos.
Cuando retomé por primera vez la educación superior, como
escritora profesional de mediana edad con muchos años a mi
espalda de hablar en público, aun con toda la confianza que
ello me daba, me sentía humillada por el impenetrable len-
guaje con el que el pensamiento académico viene envuelto
hoy en día. Pero pensé que tan sólo sería cuestión de superar
mi torpeza con la jerga. Un problema de falta de entrena-
miento. Como los países de reciente descolonización que
abrazan las deslumbrantes maravillas de la energía nuclear
decididos a obtener lo que el imperio ha poseído de siempre,
creía que esta nueva disposición impecable de las palabras
era una habilidad que sólo necesitaba ser adquirida.
Ya no lo pienso. El lenguaje en el que se expresan las
ideas nunca es neutro. El lenguaje que usan las personas
revela importante información acerca de con quiénes se
se permite la copia

identifican, cuáles son sus intenciones, para quién están


escribiendo o hablando. El envoltorio es la mercantilización
del producto y cumple la función exacta para la que se ha
diseñado. El lenguaje innecesariamente especializado se uti-
©

liza para humillar a quienes se supone que no deben sentir-


se autorizados para entenderlo. Vende la ilusión de que sólo
quienes pueden manejarlo son capaces de pensar.
Una respuesta frecuente para quienes muestran resis-
tencias a este lenguaje exclusivo es que sufren de pereza
Intelectual orgánica certificada 69

intelectual. Como cualquier otra forma de controlar las


entradas, el caso es que nosotras, y no los porteros, somos las
responsables de haberlas atravesado. Debemos abandonar lo
que estemos haciendo, olvidar por lo que vinimos y dedicar
nuestras energías a aprender las técnicas del allanamiento de
morada. Se nos exige que lo hagamos tan sólo para obtener
la posibilidad de unirnos a la discusión. Si no mostramos
interés, se da por supuesto que somos incompetentes. Pero
mi elección de leer lo legible tiene que ver con un orden de
prioridades diferente. El lenguaje está ligado al contenido, y
el contenido que yo busco es una teoría y una práctica inte-
lectual que me resulte de utilidad en una investigación acti-
vista cuyas prioridades son, sobre todo, democratizadoras.

En la época en la que me encontraba luchando por primera


vez por aferrarme a mi propia integridad intelectual dentro
de la academia, encontraba en mi vida diaria poca valida-
ción para estos sentimientos. Luchaba por ser «buena» y
por hacer lo que se suponía que debía hacer, sentía que
debía de estar perdiéndome algo cuando la mayor parte de
lo que leía me parecía superficial o irrelevante para mi tra-
bajo, sentía que de algún modo la teoría feminista debía
resultarme más apasionante. Quizás, pensaba, el problema
es mi falta de conocimientos académicos. Pero la mayor
parte de lo que leía parecía alejado a tantos niveles de abs-
tracción de la intencionalidad activista y de la experiencia
vivida, de la problemática que yo quería abordar, que se
se permite la copia

había convertido en un ejercicio intelectual, académico en


ese otro sentido de la palabra —desconectado del uso dia-
rio. Para comprenderlo por completo, para poder realmen-
te comprometerme y debatir en ese lugar, debería abando-
©

nar aquello por lo que había llegado hasta allí —para


aprender cosas nuevas acerca de los usos liberadores de la
historia para las latinas—, para dedicar mi tiempo y mi
energía a estudiar las ideas de gente que yo encontraba
menos fiable, menos útil, en lugar de hacer el trabajo que
yo había elegido con y sobre mi propia gente.
70 Otras inapropiables

Ahora, al mirar atrás, recuerdo mi vida en el movimiento


feminista de principios de la década de 1980. Reunión tras
reunión me quedaba en el hall intentado elegir entre el taller,
o comisión, de mujeres judías o de mujeres de color.
Recuerdo como cada umbral que intentaba atravesar exigía
que dejara alguna parte de mí atrás. En esos pasillos comen-
cé a conocer a otras mujeres, la complejidad de cuyas vidas
desafiaba las simplificaciones de las políticas identitarias. En
las conversaciones que mantenía con ellas encontraba el
único reflejo de mi realidad completa. Gran parte de la teo-
ría feminista que yo intentaba leer en la graduate school se
había escrito en habitaciones de puertas demasiado estre-
chas. Me exigían que dejara fuera mis más profundas pasio-
nes intelectuales y a mí misma.
Como mis antepasados inmigrantes, mi hogar intelec-
tual está siendo constantemente revisado, refinado, redeco-
rado. Pero a lo largo de los años ha sido con esas mismas
mujeres que conocí en los vestíbulos, las que han sobrevivi-
do en contra de los elementos, con las que he construido
habitaciones lo bastante grandes como para incluir en su
compleja riqueza las verdades contradictorias de quien soy.
Esta reunión de investigadoras feministas latinas ha sido
una de esas habitaciones; porque en el mismo momento en
que descubrimos una forma de encontrarnos y hablar, nos
deshicimos de las agendas externas y comenzamos a hacer
teoría con lo que había en nuestros bolsillos, con las histo-
rias, incidentes, sueños, frustraciones que nunca fueron
aceptables en ningún otro lugar.
Cada una de nosotras aporta a la mesa un alimento del
que lo conocemos todo, desde cómo se siembra y cultiva
se permite la copia

hasta las más sofisticadas técnicas de preparación. Es esa


riqueza de saberes tribales, locales, particulares y persona-
les, fabricada individualmente y expuesta en la mesa común,
lo que me alimenta en este momento. Éste es el proceso que
©

enseño: escucha a tu hambre, escucha al hambre de otras,


aprende de cocineras con experiencia, ve probando sobre la
marcha, utiliza ingredientes frescos, conoce a tu proveedor y
compra orgánico. ¡Buen provecho!
4. Movimientos de rebeldía y las
culturas que traicionan1
Gloria Anzaldúa

Esos2 movimientos de rebeldía que tenemos en la sangre nosotros


los mexicanos surgen como ríos desbocanados en mis venas. Y
como mi raza que cada cuando deja caer esa esclavitud de obedecer,
de callarse y aceptar, en mí está la rebeldía encimita de mi carne.
Debajo de mi humillada mirada está una cara insolente lista para
explotar. Me costó muy caro mi rebeldía –acalambrada con desve-
los y dudas, sintiéndome inútil, estúpida e impotente.
Me entra una rabia cuando alguien —sea mi mamá, la Iglesia,
la cultura de los anglos— me dice haz esto, haz eso sin considerar
mis deseos.
Repele. Hable pa’ tras. Fui muy hocicona. Era indiferente a
muchos valores de mi cultura. No me deje de los hombres. No fui
buena ni obediente.
Pero he crecido. Ya no sólo paso toda mi vida botando las cos-
tumbres y los valores de mi cultura que me traicionan. También
recojo las costumbres que por el tiempo se han probado y las cos-
tumbres de respeto a las mujeres. Pero a pesar de mi tolerancia cre-
ciente, for this Chicana la guerra de independencia is a constant.

La Fuerza de Mi Rebelión
se permite la copia

Guardo un recuerdo muy vivo de una vieja fotografía: tengo


seis años. Estoy de pie entre mi padre y mi madre, la cabeza
ladeada hacia la derecha, los dedos de mis pies planos afe-
©

rrándose al suelo. Agarrada a la mano de mi madre.

1 Publicación original: Gloria Anzaldúa, «Movimientos de rebeldía y las


culturas que traicionan», Borderlands/La Frontera. The New Mestiza, San
Francisco, Aunt Lute Books, 1987.
2 Las cursivas aparecen en castellano en el original. [N. de e.]

71
72 Otras inapropiables

Hasta el día de hoy no estoy segura de dónde encontré la


fuerza para abandonar la fuente, la madre, separarme de mi
familia, mi tierra, mi gente, y todo lo que esa fotografía signifi-
caba. Tuve que abandonar el hogar para poder encontrarme
a mí misma, encontrar mi propia naturaleza intrínseca, ente-
rrada bajo la personalidad que me había sido impuesta.
Fui la primera en seis generaciones en salir del Valle, la
única de mi familia en dejar la casa. Pero no abandoné todas
las partes de mí: conservé la tierra de mi propio ser. Sobre ella
caminé al marcharme, taking with me the land, the Valley, Texas.
Gané mi camino y me largué. Muy andariega mi hija. Because I left
of my own accord me dicen, «¿Cómo te gusta la mala vida?»
A una edad muy temprana yo ya tenía un fuerte sentido
de quién era, qué era capaz de hacer, y qué era justo. Tenía
una voluntad testaruda que intentaba movilizar constante-
mente a mi alma bajo mi propio régimen, vivir la vida en mis
propios términos sin importar lo inadecuados que resultaran
para los demás. Terca. Incluso de niña nunca obedecía. Era
«perezosa». En lugar de planchar las camisas de mis herma-
nos pequeños o de limpiar los armarios, pasaba largas horas
estudiando, leyendo, pintando, escribiendo. Cada pedacito
de confianza en mí misma que laboriosamente lograba reu-
nir, recibía una paliza diaria. No había nada de mí que mi
cultura aprobara. Había agarrado malos pasos. Something was
«wrong» with me. Estaba más allá de la tradición.
Hay una rebelde en mí —la Bestia de la Sombra. Es una
parte de mí que se niega a aceptar órdenes de autoridades
externas. Se niega a aceptar órdenes de mi voluntad consciente,
desafía la soberanía de mi propio gobierno. Es esa parte de mí
que odia las restricciones de cualquier clase, incluso las autoim-
se permite la copia

puestas. Al mínimo amago de cualquier otro de limitar mi tiem-


po y mi espacio, patalea con ambas piernas. Se desboca.
©

Tiranía Cultural

La cultura moldea nuestras creencias. Percibimos la versión


de la realidad que ella comunica. Paradigmas dominantes,
Movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan 73

conceptos predefinidos que existen como incuestionables,


imposibles de desafiar, nos son transmitidos a través de la
cultura. La cultura la hacen aquellos en el poder —hombres.
Los varones hacen las reglas y las leyes; las mujeres las trans-
miten. ¿Cuántas veces habré oído a madres y suegras acon-
sejar a sus hijos pegar a sus mujeres por no obedecerlos, por
ser hociconas [big mouths], por ser callejeras [going to visit and
gossip with neighbors], por esperar que sus maridos las ayu-
den con la crianza de los hijos y el trabajo doméstico, por
querer ser algo más que esposas?
La cultura espera que las mujeres muestren mayor acep-
tación a, y compromiso con, el sistema de valores que los
varones. La cultura y la Iglesia insisten en que las mujeres
estén sometidas a los hombres. If a woman rebels she is a mujer
mala. Si una mujer no renuncia a sí misma en favor del varón,
es egoísta. Si una mujer se mantiene virgen hasta el matri-
monio, she is a good woman. Para una mujer de mi cultura úni-
camente había tres direcciones hacia las que volverse: hacia
la Iglesia como monja, hacia las calles como prostituta, o
hacia el hogar como madre. Hoy en día algunas de nosotras,
muy pocas, tenemos una cuarta opción: incorporarnos al
mundo por medio de la educación y la carrera profesional y
convertirnos en personas autónomas. Como pueblo de gente
trabajadora nuestra actividad principal es poner comida en
nuestras bocas, un techo sobre nuestras cabezas y ropa sobre
nuestras espaldas. Dar una educación a nuestros hijos e hijas
está fuera de las posibilidades de la mayoría de nosotros.
Educadas o no, la responsabilidad de las mujeres aún es la de
ser esposa/madre —sólo la monja puede escapar de la mater-
nidad. Si no se casan y tienen hijos se hace sentir a las muje-
se permite la copia

res como completos fracasos. «¿Y cuando te casas, Gloria? Se te


va a pasar el tren». Y yo les digo, «Pos si me caso, no va a ser con
un hombre». Se quedan calladitas. Sí, soy hija de la Chingada. I’ve
always been her daughter. No ‘tés chingando. (...)
©

Los humanos temen lo sobrenatural, tanto lo terrenal —


los impulsos animales como la sexualidad, lo inconsciente,
lo desconocido, lo ajeno— como lo divino —lo sobrehuma-
no, el dios que hay en nosotros. La cultura y la religión tra-
tan de protegernos de estas dos fuerzas. Se teme a la mujer
por la virtud de crear seres de carne y sangre en su vientre
74 Otras inapropiables

—sangra cada mes pero no muere—, por la virtud de estar


en comunión con los ciclos de la naturaleza. Dado que,
según el cristianismo y la mayoría de las religiones mayori-
tarias, la mujer es carnal, animal y más cercana a lo terrenal,
debe ser protegida. Protegida de ella misma. La mujer es lo
extraño, la otredad. Es un reconocido fragmento de las pesa-
dillas del hombre, es su Bestia de la Sombra. Verla le condu-
ce a un frenesí de ira y temor.
La gorra, el rebozo, la mantilla son símbolos de «protec-
ción» de las mujeres en mi cultura. La cultura —léase los
hombres— pretende proteger a las mujeres. En realidad
mantiene a la mujer en roles rígidamente definidos. Aleja a
las niñas de otros hombres —no caces en mi coto, sólo yo
puedo tocar el cuerpo de mi niña. Nuestras madres nos ense-
ñaron bien, «Los hombres no más quieren una cosa»; no puedes
confiar en los hombres, son egoístas y son como niños.
Nuestras madres se aseguraban de que no entráramos en
camisón o en bragas en las habitaciones de hermanos o
padres o tíos. Nunca estábamos solas con hombres, ni siquie-
ra con los de nuestra propia familia.
A través de nuestras madres, la cultura nos daba dobles
mensajes: No voy a dejar que ningún pelado desgraciado maltra-
te a mis hijos. Para acto seguido decir, La mujer tiene que hacer
lo que le diga el hombre. ¿Cuál debíamos ser, la fuerte o la
sumisa, la rebelde o la conformista?
Los derechos tribales por encima de los individuales ase-
guraban la supervivencia de la tribu y eran necesarios enton-
ces y, como en el caso de todos los pueblos indígenas del
mundo que están aún defendiéndose contra el asesinato
intencional y premeditado, todavía siguen siendo necesarios.
se permite la copia

Gran parte de lo que la cultura condena se focaliza en las


relaciones de parentesco. El bienestar familiar, la comunidad
y la tribu son más importantes que el bienestar individual. El
©

individuo existe primero como pariente —como hermana,


padre o padrino— y después como individuo.
En mi cultura el egoísmo está condenado, sobre todo en
las mujeres; la humildad y generosidad, la ausencia de egoís-
mo, es considerada una virtud. En el pasado, ser humilde con
miembros de fuera de la familia aseguraba que no harías a
Movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan 75

nadie envidioso; así él o ella no utilizaría ningún hechizo con-


tra ti. Si te sientes importante eres una envidiosa. Si no te com-
portas como todo el mundo, la gente dirá que piensas que eres
mejor que los demás, que te crees grande. Con la ambición —con-
denada en la cultura mexicana y valorada en la anglosajona—
llega la envidia. El respeto acarrea una serie de reglas que man-
tienen en orden las categorías sociales y las jerarquías: el res-
peto está reservado para la abuela, papá, el patrón, aquellos con
poder en la comunidad. La mujer está en lo más bajo de la esca-
la un peldaño por encima de los desviados. La cultura chicana,
mexicana, y algunas culturas indias no toleran la desviación.
Desviación es todo aquello que está condenado por la comuni-
dad. La mayoría de las sociedades tratan de librarse de sus des-
viados. La mayoría de las culturas han quemado y golpeado a
sus homosexuales y a otros que se han desviado de la norma-
lidad sexual. Los raritos son el espejo que refleja el miedo hete-
rosexual de la tribu: ser diferente, ser otro y por lo tanto infe-
rior, por lo tanto sub-humano, in-humano, no-humano.

Mitad y Mitad

Había una muchacha que vivía cerca de mi casa. La gente del


pueblo hablaba de ella como una de las otras, «of the Others».
Decían que durante seis meses era una mujer que tenía una
vagina que sangraba una vez al mes, y que durante los otros
seis meses ella era un hombre, tenía un pene y orinaba de pie.
La llamaban mitad y mitad, mita’ y mita’, ni lo uno ni lo otro
sino una extraña duplicación, una desviación de la naturaleza
se permite la copia

que horrorizaba, una obra de la naturaleza invertida. Pero


existe un aspecto mágico en la anormalidad y en la llamada
deformidad. Según el pensamiento mágico-religioso de las
culturas primitivas se creía que las personas mutiladas, locas
©

y sexualmente diferentes poseían poderes sobrenaturales.


Para ellos, la anormalidad era el precio que una persona debía
pagar por su —de él o de ella— extraordinario don innato.
Hay algo irresistible en ser hombre y mujer a la vez, en el
tener acceso a ambos mundos. En contra de algunos dogmas
76 Otras inapropiables

psiquiátricos, los mitad y mitad no sufren una confusión de


identidad sexual, o una confusión de género. Lo que sufri-
mos es una absoluta dualidad despótica que dice que sólo
somos capaces de ser uno u otro. Se afirma que la naturale-
za humana es limitada y que no puede evolucionar hacia
algo mejor. Pero yo, como otras personas queer, soy dos en un
único cuerpo, tanto hombre como mujer. Soy la encarnación
de los hieros gamos: la unión de contrarios en un mismo ser.

Miedo a ir a casa: homofobia

Para las lesbianas de color, la máxima rebelión que pueden


emprender contra su cultura nativa es a través de su conducta
sexual. La lesbiana va en contra de dos prohibiciones morales:
sexualidad y homosexualidad. Siendo lesbiana y creciendo
católica, adoctrinada como heterosexual, I made the choice to be
queer —para algunos esto es genéticamente inherente. Es un
camino interesante que se desliza continuamente dentro y
fuera de lo blanco, de lo católico, lo mexicano, lo indígena, los
instintos. Dentro y fuera de mi cabeza. Conduce a la loquería,
los locos. Es una forma de conocimiento —de conocer, y de
aprender, la historia de opresión de nuestra raza. Es una forma
de equilibrar, de mitigar la dualidad.
En una facultad de Nueva Inglaterra donde enseñé, la
presencia de algunas lesbianas provocó el pánico entre las
estudiantes y profesoras heterosexuales más conservadoras.
Las dos estudiantes y nosotras, dos profesoras lesbianas, nos
reunimos con ellas para discutir sus miedos. Una de las estu-
se permite la copia

diantes dijo: «creía que homofobia significaba miedo a vol-


ver a casa tras la residencia universitaria».3
Y yo pensé, qué apto. Miedo a volver a casa. Y no ser
©

aceptada. Tememos ser abandonadas por la madre, la cultu-


ra, la Raza, ser rechazadas, culpadas, dañadas. La mayoría
pensamos inconscientemente que si revelamos este aspecto

3 Juego de palabras en inglés entre homophobia y home, «hogar». [N. de e.]


Movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan 77

inaceptable de nosotras, nuestra madre/cultura/raza nos


rechazará totalmente. Para evitar el rechazo, algunas de
nosotras nos ajustamos a los valores de la cultura, relegamos
las partes inaceptables a las sombras. Lo que deja solamente
un miedo —que seremos descubiertas y que la Bestia de la
Sombra se escapará de su jaula. Algunas de nosotras toma-
mos otra ruta. Intentamos hacernos conscientes de la Bestia
de la Sombra, enfrentarnos a la lujuria sexual y a la lujuria
por el poder y la destrucción que vemos en su rostro, discer-
nir de entre sus rasgos la sombra que el orden reinante de los
varones heterosexuales proyecta sobre nuestra Bestia. Sin
embargo, otras damos otro paso: intentamos despertar a la
Bestia de la Sombra que hay en nuestro interior. No muchas
saltan de alegría ante la posibilidad de enfrentarse en el
espejo con la Bestia de la Sombra sin acobardarse ante sus
ojos de serpiente sin párpados, su fría y húmeda mano de
almeja que nos arrastra bajo tierra, los colmillos obstruidos y
siseando. ¿Cómo poner alas a esta particular serpiente? Pero
algunas de nosotras hemos tenido suerte —en el rostro de la
Bestia de la Sombra no hemos visto lujuria sino ternura; en
su rostro hemos desenmascarado la mentira.

Terrorismo íntimo: la vida en la frontera

El mundo no es un lugar seguro para vivir. Temblamos en cel-


das separadas en ciudades cercadas, los hombros encorvados,
apenas escondiendo el pánico bajo la superficie de la piel, tra-
gándonos diariamente el golpe con el café de la mañana, con
se permite la copia

el miedo a que quemen nuestras casas con antorchas, a los ata-


ques en las calles. Encerradas. La mujer no se siente a salvo
cuando su propia cultura y la cultura blanca la critican; cuan-
do los varones de todas las razas la cazan como a una presa.
©

Alienada de su cultura materna, «alien» en la cultura


dominante, la mujer de color no se siente a salvo en lo más
profundo de su Ser. Petrificada, no puede responder, su cara
está atrapada entre los intersticios, los espacios entre los dife-
rentes mundos que habita.
78 Otras inapropiables

La habilidad para responder es lo que se conoce como res-


ponsabilidad, sin embargo nuestras culturas nos quitan
nuestra capacidad de actuar —nos encadenan en nombre de
la protección. Bloqueadas, inmovilizadas, no podemos avan-
zar, no podemos retroceder. Este retorcido movimiento ser-
penteante, el propio movimiento de la vida, más veloz que el
rayo, helado.
No nos comprometemos del todo. No utilizamos del
todo nuestras facultades. Nos abnegamos. Y ahí, frente a
nosotras, está el cruce de caminos y la elección: sentirnos
como víctimas cuando otra persona tiene el control y por
tanto es responsable y puede ser culpado —ser una víctima
y transferir la culpa sobre la cultura, la madre, el padre, el
ex-amante, el amigo, me absuelve de la responsabilidad—, o
sentirse fuerte y, en gran medida, en control.
Mi identidad chicana está forjada en la historia de la
resistencia de la mujer india. Los rituales de luto de la mujer
azteca eran ritos de desafío para protestar contra los cambios
culturales que rompieron la igualdad y el equilibrio entre
mujeres y varones, y protestar contra su desplazamiento a
un estatus inferior, su denigración. Como la Llorona el único
medio de protesta de la mujer india era el lamento.
So mamá, Raza, how wonderful, no tener que rendir cuentas
a nadie. Me siento completamente libre para rebelarme y
protestar contra mi cultura. Por mi parte, no tengo miedo a
traicionar porque, al contrario que las chicanas y otras
mujeres de color que crecieron blancas, o quienes sólo
recientemente han vuelto a sus raíces culturales nativas, yo
estaba totalmente inmersa en la mía. No fue hasta que fui
al instituto que «vi» blancos. Hasta que trabajé en mi título
se permite la copia

de master no los había tenido a un brazo de distancia.


Estaba totalmente inmersa en lo mexicano, un rural, rústico,
aislado mexicanismo. Para separarme de mi cultura —y de
©

mi familia— tuve que sentirme suficientemente competen-


te ahí afuera y lo bastante segura por dentro para vivir la
vida por mi misma. Sin embargo, cuando dejé mi casa no
perdí el contacto con mis orígenes, porque lo mexicano
forma parte de mí. Soy una tortuga, allá donde voy llevo mi
«hogar» en mi espalda.
Movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan 79

No fui yo quien vendió a mi gente sino ellos a mí. Y sí, aun-


que el «hogar» permea cada músculo y cartílago de mi
cuerpo, yo también tengo miedo de volver a casa. Aunque
siempre defenderé mi raza y cultura cuando sean atacadas
por los no-mexicanos, conozco el malestar de mi cultura.
Detesto algunas formas de mi cultura, cómo incapacita a
sus mujeres, como burras, nuestras fuerzas usadas contra
nosotras, vulgares y burras portando humildad con digni-
dad. La habilidad de servir, afirman los hombres, es nues-
tra mayor virtud. Detesto cómo mi cultura hace caricaturas
macho de sus hombres. No, no asumo todos los mitos de la
tribu en los que nací. Puedo comprender por qué cuanto
más teñidas de sangre anglo, más firmemente mis herma-
nas de color y decoloradas glorifican los valores de su cul-
tura de color —para compensar la extrema devaluación de
la que es objeto por parte de la cultura blanca. Es una reac-
ción legítima. Pero yo no glorificaré aquellos aspectos de
mi cultura que me hayan dañado y que me hayan dañado
bajo el pretexto de protegerme.
Así que no me deis vuestros dogmas y vuestras leyes. No
me deis vuestros banales dioses. Lo que quiero es contar con
las tres culturas —la blanca, la mexicana, la india. Quiero la
libertad de poder tallar y cincelar mi propio rostro, cortar la
hemorragia con cenizas, modelar mis propios dioses desde
mis entrañas. Y si ir a casa me es denegado entonces tendré
que levantarme y reclamar mi espacio, creando una nueva cul-
tura —una cultura mestiza— con mi propia madera, mis pro-
pios ladrillos y argamasa y mi propia arquitectura feminista.
se permite la copia

La Herida de la india-Mestiza

Estas carnes indias que despreciamos nosotros los mexicanos así


©

como despreciamos y condenamos a nuestra madre, Malinali. Nos


condenamos a nosotros mismos. Esta raza vencida, enemigo cuerpo.

No fui yo quien vendió a mi gente sino ellos a mí. Malinali


Tenepat, o Malintzin, ha pasado a ser conocida como la Chingada
—the fucked one. Se ha convertido en una palabrota que sale de
80 Otras inapropiables

boca de los chicanos una docena de veces al día. Puta, pros-


tituta, la mujer que vendió a su gente a los españoles, son
epítetos que los chicanos escupen con desprecio. El peor tipo
de traición reside en hacernos creer que la mujer india en
nosotras es la traidora. Nosotras, indias y mestizas criminali-
zamos a la india que hay en nosotras, la brutalizamos y la
condenamos. La cultura masculina ha hecho un buen traba-
jo con nosotras. Son las costumbres que traicionan. La india en
mí es la sombra: La Chingada, Tlazolteotl, Coatlicue. Son ellas que
oímos lamentando a sus hijas perdidas.
No fui yo quien vendió a mi gente sino ellos a mí. Me
traicionaron por el color de mi piel. La mujer de piel oscura
ha sido silenciada, burlada, enjaulada, atada a la servidum-
bre con el matrimonio, apaleada a lo largo de 300 años, este-
rilizada y castrada en el siglo XX. Durante 300 años ha sido
una esclava, mano de obra barata, colonizada por los espa-
ñoles, los anglo, por su propio pueblo —y en Mesoamerica
su destino bajo los patriarcas indios no se ha librado de ser
herido. Durante 300 años fue invisible, no fue escuchada,
muchas veces deseó hablar, actuar, protestar, desafiar. La
suerte estuvo fuertemente en su contra. Ella escondió sus
sentimientos; escondió sus verdades; ocultó su fuego; pero
mantuvo ardiendo su llama interior. Se mantuvo sin rostro
y sin voz, pero una luz brilló a través del velo de su silencio.
Y aunque no pudo extender sus ramas y para ella en este
momento el sol se ha escondido bajo la tierra y no hay luna,
continúa avivando la llama. El espíritu del fuego la estimu-
la para luchar por su propia piel y un trozo de suelo en el
que permanecer, un suelo desde el que ver el mundo —una
perspectiva, un terreno propio donde pueda sondear las
se permite la copia

ricas raíces ancestrales en su amplio corazón de mestiza. Ella


espera hasta que las aguas no sean tan turbulentas y las
montañas no tan resbaladizas con la ventisca. Golpeada y
magullada espera, sus magulladuras se arrojan contra ella
©

misma y contra el pulso rítmico de lo femenino. Coatlalopeuh


espera con ella.

Aquí en la soledad prospera su rebeldía.


En la soledad Ella prospera.
5. Nuevas ciencias. Feminismo cyborg
y metodología de los oprimidos1
Chela Sandoval

¿Qué es lo que, bajo los imperativos de la transnacionali-


zación política económica y cultural, constituye la «resis-
tencia» y la política opositiva2? Los efectos de la actual
reestructuración global se están dejando sentir en las for-
mas organizativas, no sólo de las empresas, sino de las eco-
nomías culturales, la conciencia y el conocimiento. A lo
largo del siglo XX, los activistas y teóricos sociales han
intentado continuamente construir teorías de oposición
que fueran capaces de dar cuenta de, reaccionar ante, y
hacer frente a estas fuerzas globalizadoras de forma que
significaran una renegociación del poder en beneficio de
aquellos que Marx llamó el «proletariado», Barthes denomi-
nó las «clases colonizadas», Hartsock «las mujeres» y Lorde
llamó las «outsiders». Si las corporaciones transnacionales
están diseñando «estrategias comerciales y sus relaciones
con las iniciativas políticas a niveles regional, nacional y
local»,3 entonces, ¿qué formas convergentes de estrategia
están desarrollando los subalternos —los marginalizados—,
se permite la copia

1 Publicación original: Chela Sandoval, «New Sciences. Cyborg femi-


©

nism and the methodology of the oppressed», en C. Grey (ed.), The


Cyborg Handbook, Londres, Routledge, 1995
2 Se ha preferido mantener la traducción «opositiva» de opositive, en
lugar de «antagonista», por su uso común en la literatura feminista y
especialmente en las traducciones de la obra de D. Haraway. [N. de e.]
3 Richard P. Appelbaum, «New journal for global studies center»,
CORI: Centre for Global Studies Newsletter, vol. 1, núm. 2, mayo 1994.

81
82 Otras inapropiables

centradas en definir formas de conciencia y práctica oposi-


tiva que puedan ser efectivas bajo las fuerzas transnacio-
nalizadoras del Primer Mundo?
Permitidme comenzar recurriendo a Silicon Valley, ese vasto
territorio de Locheed, IBM, Macintosh, Hewlett Packard ...,
donde más de treinta mil trabajadores han sido despedidos en
los últimos dos años y otros treinta mil más aguardan un des-
tino similar para el año que viene: el destino de trabajadores
sin empleo, los que temen por su supervivencia.
Comienzo rindiendo homenaje a los músculos y tendones
de los trabajadores que se agotan en las repeticiones exigidas,
en los almacenes, las cadenas de montaje, las células admi-
nistrativas y las redes informáticas que mantienen en funcio-
namiento las grandes firmas electrónicas de finales del siglo
XX. Estos trabajadores conocen el dolor de la unión de la
máquina y el tejido corporal, las condiciones robóticas y —a
finales de siglo XX— las condiciones cyborg bajo las cuales la
noción de agencia humana debe adoptar nuevos significados.
Un alto porcentaje de estos trabajadores que no están en el
sector administrativo sino en sectores descualificados lo com-
pone gente estadounidense de color, indígenas de las améri-
cas, o descendientes de aquellos que fueron traídos como
esclavos o sirvientes temporales; incluyendo a quienes
migraron a los Estados Unidos con la esperanza de una vida
mejor mientras iban integrándose en una sociedad jerarqui-
zada sobre la base de criterios de raza, género, sexo, clase,
lengua y posición social. La vida cyborg —la vida de quien
trabaja volteando hamburguesas y habla el dialecto cyborg
de McDonalds— es una vida para la que los trabajadores del
futuro han de prepararse en pequeñas formas cotidianas. En
se permite la copia

textos anteriores he afirmado que las gentes colonizadas de


las américas ya habían desarrollado, como requisito indis-
pensable para sobrevivir bajo dominación durante los últi-
mos trescientos años, las habilidades cyborg necesarias para
©

sobrevivir bajo estas condiciones tecno-humanas. Sin embar-


go, no deja de resultar significativo que los teóricos de la glo-
balización se comprometan ahora con la introducción de una
política «cyborg» opositiva como si esta política hubiera
emergido únicamente con el advenimiento de la tecnología
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 83

electrónica, y no como resultado de una conciencia en oposi-


ción desarrollada bajo formas previas de dominación.
En este capítulo propongo otra visión, extraída del traba-
jo de la teórica cultural y la filósofa de la ciencia Donna
Haraway, quien en 1985 escribió su trabajo revolucionario
sobre «Feminismo Cyborg», con la intención de re-demos-
trar lo que la actual teoría cyborg ha venido pasando por
alto, a saber: que la conciencia cyborg puede entenderse
como la encarnación tecnológica de una forma particular y
específica de conciencia opositiva que yo he descrito en otra
parte como «feminismo del Tercer Mundo estadounidense».4
Y, de hecho, si la conciencia cyborg ha de ser considerada
como algo totalmente distinto a aquello que reproduce exac-
tamente el orden global dominante, entonces la conciencia
cyborg debe ser desarrollada a partir de una serie de tecno-
logías que reunidas componen la metodología de las opri-
midas, una metodología que puede ofrecernos orientaciones
para la supervivencia y resistencia bajo las condiciones cul-
turales transnacionales del Primer Mundo. Esta conciencia
«cyborg» opositiva ha sido también identificada mediante
términos como conciencia «mestiza», «subjetividades situa-
das», «mujerismo»5 y «conciencia diferencial». Con el fin de
ahondar en el propio proyecto de Haraway, tácito si bien
obvio, de desafiar la racialización y el apartheid de los cam-
pos teóricos de la academia, y con el fin de transcodificar de
una jerga académica a otra —de la «ciborgología» al «femi-
nismo», del «feminismo del Tercer Mundo estadounidense»
a las teorías «cultural» y «subalterna»— seguiré el itinerario
trazado por la metodología de los oprimidos tal como lo
codificó Donna Haraway en «Feminismo Cyborg».
se permite la copia

La obra de Haraway representa un ejemplo de trabajo de


investigación que intenta salvar el actual apartheid de los
dominios teóricos: «post-estructuralismo blanco masculino»,
©

4 Véase «U.S. Third World feminism: the theory and method of opposi-
tional consciousness in the postmodern world», que sienta las bases
para la articulación de la metodología de los oprimidos. En Genders 10,
University of Texas Press, primavera 1991.
5 Womanism en el original. [N. de e.]
84 Otras inapropiables

«feminismo hegemónico», «teoría postcolonial», y «femi-


nismo del Tercer Mundo estadounidense». Entre sus
muchas contribuciones, Haraway ofrece nuevos espacios
metafóricos de resistencia para el alienado sujeto blanco
masculino bajo las condiciones de transnacionalización del
Primer Mundo, y, de ese modo, la metáfora «cyborg» repre-
senta profundas posibilidades para el siglo XXI —conse-
cuencias esperanzadoras, por ejemplo, para el sujeto perdi-
do de Jameson que «ya no puede extender sus protensiones
y retensiones a través de la multiplicidad temporal».6 De
acuerdo con la teoría cyborg, el «viaje» informático puede
entenderse como un «desplazamiento» del «yo» de un
modo similar al que el yo era desplazado según las domi-
naciones modernistas. En ese caso, una política cyborg opo-
sitiva podría muy bien hacer posible la alianza entre la
política del sujeto blanco masculino alienado y la política
subalterna del feminismo del Tercer Mundo estadouniden-
se. La metáfora de Haraway, sin embargo, en su deriva a
través de la academia, se ha visto utilizada y apropiada de
un modo que reprime, irónicamente, el mismo trabajo en el
que también, fundamentalmente, se basa. Esta represión
continua sirve entonces para reconstituir de nuevo la segre-
gación de los campos teóricos. Si bien en las humanidades
la investigación prospera bajo el régimen de este apartheid,
Haraway representa un cruce fronterizo, y su obra se eleva
desde un lugar que las interpretaciones hegemónicas nor-
malmente pasan por alto o malinterpretan.
He afirmado en otro lugar que la metodología de las opri-
midas consiste en cinco tecnologías diferentes desarrolladas
con el fin de asegurar la supervivencia bajo las anteriores
se permite la copia

condiciones del Primer Mundo.7 Las tecnologías que compo-


nen la metodología de las oprimidas generan formas de
©

6 Fredric Jameson, «Postmodernism: the cultural logic of late capita-


lism», New Left Review, núm. 146, Julio-Agosto, pp. 53-92; trad. cast. El
postmodernismo o la lógica cultual del capitalismo avanzado, Barcelona,
Paidós, 1995.
7 The Methodology of the Oppressed, próxima publicación, Duke University
Press. [Publicado en 2000 en University of Minnesota Press. (N. de e.)]
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 85

agencia y conciencia que pueden crear modos efectivos de


resistencia bajo las condiciones culturales de la postmoderni-
dad, y pueden considerarse constituyentes de una forma
«cyborg» de resistencia.8 La práctica de esta CyberConciencia
que es el feminismo del Tercer Mundo estadounidense, o eso
a lo que me refiero como «forma postmoderna diferencial de
conciencia opositiva», ha sido también descrita en términos
que enfatizan su movimiento; es «flexible», «móvil», «diaspó-
rica», «esquizofrénica», «nómada» por naturaleza. Estas for-
mas de movilidad, sin embargo, se alinean en torno a un
campo de fuerzas que las inspira, concentra e impulsa como
formas opositivas de praxis. De hecho, esta forma de concien-
cia-en-oposición queda mejor imaginada como el particular
campo de fuerza que posibilita las prácticas y procedimientos
de la «metodología de las oprimidas». A la inversa, esta meto-
dología está mejor interpretada como un compendio energé-
tico de técnicas de movimiento —o, mejor, como tecnologías
opositivas de poder: tanto «internas» o tecnologías psíquicas,
como tecnologías «externas» de praxis social.
Estas tecnologías pueden resumirse como sigue: (1) lo
que Anzaldúa llama «la facultad», Barthes la semiología o la
«ciencia de los signos en la cultura», o lo que Henry Louis
Gates llama «significar» y Audre Lorde «mirar profundo»,

8 El término «cibernética» fue acuñado por Narbert Wiener a partir de


la palabra griega «Kubernetica», que significa dirigir, guiar, gobernar.
En 1989 el término fue partido en dos, y su primera mitad «ciber» —un
neologismo sin raíz anterior— fue separado de sus significados de «con-
trol» y «gobierno» para representar las posibilidades del viaje y la exis-
se permite la copia

tencia en el nuevo espacio de las redes informáticas, un espacio, se ha


afirmado, que debe ser negociado de nuevas formas por la mente huma-
na. Este ciberespacio se ha imaginado en películas de realidad virtual
como Freejack, El cortador de césped y Tron. Pero fue denominado por pri-
mera vez «ciberespacio» y explorado por el escritor de ciencia ficción
©

William Gibson en su libro de 1987 Neuromante. La propia historia de


Gibson, sin embargo, pasa a través de —e invisibiliza— la ciencia fic-
ción y la teoría feminista de la década de 1970, incluidos los trabajos de
Russ, Butler, Delany, Piercy, Haraway, Sofoulis y Sandoval. En todos
esos casos, es este «ciberespacio» el que puede también describir de
forma adecuada el nuevo tipo de movimiento y localización de la con-
ciencia diferencial.
86 Otras inapropiables

son todo formas de «lectura de signos» que componen la pri-


mera de las cinco tecnologías fundamentales de esta meto-
dología. (2) La segunda y bien conocida tecnología de las
subalternas es el proceso de desafiar los signos ideológicos
dominantes a través de su «de-construcción»: el acto de
separar una forma de su significado dominante. (3) La terce-
ra tecnología es lo que yo llamo «meta-ideologizar» en honor
a su actividad: la operación de apropiarse de formas ideoló-
gicas dominantes y utilizarlas para transformar sus signifi-
cados en un concepto nuevo, impuesto y revolucionario. (4)
La cuarta tecnología de las oprimidas que yo llamo «demo-
crática» es un proceso de localización: es decir, un ejercicio
que dirige todos sus esfuerzos en la dirección de reunir,
impulsar y orientar las tres tecnologías anteriores, semiótica,
deconstrucción y «metaideologizar», con la intención de
garantizar, no sólo la supervivencia o la justicia, como en
tiempos anteriores, sino unas relaciones sociales igualitarias
o, como lo han expresado algunos escritores del Tercer
Mundo desde Fanon hasta Wong, Lugones, o Collins,9 con el
objetivo de producir «amor» en un mundo en descoloniza-
ción, postmoderno y post-imperio. (5) El movimiento dife-
rencial es la quinta tecnología, a través de la cual, sin embar-
go, las demás maniobran armónicamente.
Para entender mejor cómo opera el movimiento diferen-
cial, una debe comprender que éste es una poliforma de la
que dependen la tecnologías previas para su propio funcio-
namiento. Sólo a través del movimiento diferencial pueden
ser transferidas hacia sus destinos. Incluso la cuarta, «demo-
crática», siempre tiende a poner en el centro la identidad en
interés de la justicia social igualitaria. Estas cinco tecnologías
se permite la copia

componen juntas la metodología de las oprimidas, que posi-


bilita la actuación de lo que yo he denominado la función
diferencial del movimiento social opositivo como en el ejem-
plo del feminismo del Tercer Mundo estadounidense.
©

9 Por ejemplo, Merle Woo «Letter to Ma», This Bridge Called My Back;
Maria Lugones, «World Travelling», Patricia Hill Collins, Black Feminist
Thought; June Jordan, «Where is the love?», Haciendo caras.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 87

De acuerdo con él, la conciencia diferencial se ha codificado


como «la facultad» —un vector semiótico—, la «outsider /intrusa»
—un vector deconstructivo—, el esencialismo estratégico —un
vector meta-ideologizador—, el «mujerismo» —un vector
moral— y como «la conciencia de la mestiza», «viajar por el
mundo» y el «amor transcultural» —vectores diferenciales.10 A
diferencia de occidentales como Patrick Moynihan que afirma
que «el colapso del comunismo» en 1991 demuestra cómo «los
lazos de diferencia racial, étnica y nacional sólo pueden, en últi-
ma instancia, dividir cualquier sociedad»,11 la forma diferencial
de conciencia opositiva, tal como ha sido utilizada y teorizada
por una coalición estadounidense racialmente diversa de muje-
res de color, es la forma que adopta el amor en el mundo pos-
tmoderno.12 Genera espacios para la coalición, haciendo posible
la comunidad a través de la diferencia, permitiendo la articula-
ción de un nuevo tipo de ciudadanía, compatriotas del mismo
territorio psíquico cuyas vidas se vuelven significantes median-
te el ejercicio de la metodología de las oprimidas.
La cuestión de si las interfaces con la tecnología mantienen
a las políticas cyborg en continua disputa con las políticas
diferenciales —subalternas y feministas del Tercer Mundo
estadounidense—, es algo que sólo podrán resolver las estra-
tegias políticas y teóricas dirigidas a deshacer el apartheid —
de todo tipo. La forma diferencial del movimiento social y
sus tecnologías ofrecen los vínculos capaces de enlazar las
mentes divididas de la academia del Primer Mundo, de arti-
cular territorios; para esto que debe ser considerado una

10 A través de estas figuras y estas tecnologías la narrativa se vuelve


se permite la copia

capaz de transformar el momento, de cambiar el mundo con historias


nuevas, de meta-ideologizar. Utilizadas de forma conjunta, estas tecno-
logías crean historias embusteras, estratagemas de magia, decepción y
verdad para curar el mundo, como el rap y el cibercine, que trabajan por
©

la redistribución de los poderes dominantes.


11 MacNel / Lehrer NewsHour, noviembre 1991.
12 Véanse los escritos de feministas estadounidenses de color sobre el
tema del amor, incluidas June Jordan, «Where is the love?»; Merle Woo,
«Letter to Ma»; Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought; Maria
Lugones, «Playfulness, “world travelling”, and loving perception»; y
Audre Lorde, Sister Outsider.
88 Otras inapropiables

nueva forma de trabajo transdisciplinario que ponga en el


centro la metodología de las oprimidas —las subalternas—
como nueva forma de organización del conocimiento en el
post-imperio occidental capaz de transformar las actuales for-
maciones y disciplinaciones del saber en la academia. Como
veremos en el siguiente análisis de la obra teórica de Haraway,
la conexión reticular requerida para imaginar y teorizar la
conciencia «cyborgiana» puede ser considerada, en parte, una
metáfora tecnológica de la década de 1970, bajo la rúbrica del
feminismo del Tercer Mundo estadounidense. Sin embargo, tér-
minos tales como «diferencia», «voz media», «tercer significa-
do», «rasquache», «la conciencia de la mestiza», «hibridez»,
«esquizofrenia», y procedimientos tales como la «literatura
menor» y el «esencialismo estratégico» también traen a la
memoria y representan formas de ese ciberespacio; esa otra
zona para la conciencia y el comportamiento que se está propo-
niendo, desde muchos lugares y a través de distintas disciplinas,
como praxis más capaz tanto de hacer frente como de resistir
homeopáticamente las condiciones culturales postmodernas.

Donna Haraway. Teoría feminista cyborg y feminismo


del Tercer Mundo de los Estados Unidos

El «Manifiesto para Cyborgs» de Haraway puede ser defini-


do, en términos de la propia autora, como un «híbrido teori-
zado y fabricado», una «máquina textual», o como una «car-
tografía ficcional de nuestra realidad social y corporal»,
expresiones a las que Haraway también recurre con el fin de
redefinir el término «cyborg» que, prosigue, es un «organis-
se permite la copia

mo cibernético», una mezcla de tecnología y biología, una


«criatura» de «realidad social» y «ficción».13 Esta visión que
©

13 Donna Haraway, Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la natura-


leza, Madrid, Cátedra, col. Feminismos, 1995, p. 253. Todas las citas de
esta sección proceden de este texto, especialmente los capítulos seis y
siete, «Manifiesto para cyborgs: ciencia, tecnología y feminismo socialis-
ta a finales del siglo XX» y «Conocimientos situados: la cuestión científi-
ca en el feminismo y el privilegio de la perspectiva parcial», a no ser que
se indique de otro modo.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 89

se mantiene en el centro de su imaginario es una imagen


«monstruosa». El cyborg de Haraway es la cría «ilegítima»
de la sociedad dominante y el movimiento social de oposi-
ción, de la ciencia y la tecnología, de lo humano y la máqui-
na, del «primer» y «tercer» mundo, del macho/varón y la
hembra/mujer, de hecho, de cada par binario. La cualidad
híbrida de esta criatura se sitúa, en relación a cada extre-
mo de estas posiciones binarias y a cada deseo de totali-
dad, escribe Haraway, igual que la «blasfemia» (1995, p.
251) se posiciona en relación al cuerpo de la religión. La
blasfemia de Haraway es el cyborg, el cual reprocha, des-
afía, transforma y escandaliza. Pero quizás la conmoción
más importante provocada por su teoría feminista de la
política cyborg haya tenido lugar en los pasillos de la teo-
ría feminista, donde el modelo de Haraway ha actuado
como un dispositivo transcodificador, una tecnología que
insiste en traducir los preceptos fundamentales de la críti-
ca del feminismo del Tercer Mundo estadounidense a cate-
gorías que puedan resultar comprensibles bajo la jurisdic-
ción de los Women´s Studies.
Haraway ha sido muy clara acerca de estos linajes y
alianzas intelectuales. No en vano, en su introducción a
Ciencia, cyborgs y mujeres escribe que uno de los principales
objetivos de su trabajo es similar al de la teoría y métodos
del feminismo del Tercer Mundo estadounidense, que es,
en palabras de Haraway, provocar «la quiebra de las ver-
siones del humanismo feminista euro-estadounidense en
sus devastadoras adopciones de narrativas canónicas pro-
fundamente entroncadas en el racismo y el colonialismo».
(Debemos señalar que si este mismo desafío fuera pronun-
se permite la copia

ciado por los labios de una teórica feminista de color,


podría ser condenado e incluso ignorado como «una soca-
vación del movimiento» o «un ejemplo de política separa-
tista»). El segundo —y conectado— objetivo de Haraway
©

es proponer un nuevo territorio para las alianzas políticas


y teóricas, un «feminismo cyborg» que sea «más capaz»
que los feminismos de tiempos anteriores, escribe, de
«mantenerse en sintonía con posicionamientos históricos y
políticos específicos y con parcialidades permanentes sin
90 Otras inapropiables

abandonar la búsqueda de vínculos poderosos».14 Así, el femi-


nismo cyborg de Haraway fue concebido, al menos en parte,
para reconocer y sumarse a las contribuciones de las teóricas
feministas del Tercer Mundo de los Estados Unidos que han
desafiado, a lo largo de las décadas de 1960, 1970 y 1980 lo que
Haraway identifica como «la participación irreflexiva» del
feminismo hegemónico «en las lógicas, lenguajes y prácticas
del humanismo blanco». El feminismo blanco, señala
Haraway, tiende a buscar «un único terreno de dominación
para asegurar nuestra voz revolucionaria» (1995, p. 276).
Así, estas son alianzas ideológicas poderosas y, por tanto,
tiene sentido que Haraway debiera volverse hacia el femi-
nismo del Tercer Mundo estadounidense en busca de ayuda
para modelar un cuerpo «cyborg» que sea capaz de desafiar
lo que llama las «redes y tecnologías informáticas» de la rea-
lidad social contemporánea. Ya que, afirma, ha sido la «teo-
ría feminista que han producido las mujeres de color» la que
ha desarrollado «discursos alternativos de feminidad», y
esto ha cortocircuitado «los humanismos de muchas tradi-
ciones discursivas occidentales».15 A partir de este y otros
discursos alternativos, Haraway pudo plantar las bases de
su teoría del feminismo cyborg, si bien se mantiene clara en
cuanto a la cuestión de esos linajes y alianzas intelectuales:

Las mujeres blancas, incluidas las feministas socialistas, des-


cubrieron —es decir, fueron forzadas gritando y pataleando
a darse cuenta— la «no-inocencia» de la categoría «mujer».
Esta conciencia transforma la geografía de todas las categorí-
as anteriores; las desnaturaliza de igual manera que el calor
desnaturaliza una frágil proteína. Las feministas cyborg
hemos de afirmar que «nosotras» no deseamos más matrices
naturales de unidad y que ninguna construcción es total.16
se permite la copia

14 Ibídem, p. 61.
15 Donna Haraway, «Ecce Homo, ain’t (ar’n’t) I a woman, and inappro-
©

priate/d others: the human in a post-humanist landscape», en Judith


Butler and Joan Scott (eds.), Feminists Theorize the Political, New York,
Routledge, 1992, p. 95.
16 Esta cita refiere históricamente a sus lectores al impacto de las pro-
posiciones del feminismo del Tercer Mundo estadounidense de la déca-
da de 1970 que revisaron, de forma significativa, el Movimiento de
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 91

El reconocimiento de que «ninguna construcción es total», sin


embargo –aunque ayuda—, no es suficiente para acabar con
las formas de dominación que han mermado históricamente
la habilidad de los movimientos de liberación estadouniden-
ses para organizarse de forma efectiva en su lucha por la
igualdad. Y, por esa razón, el continuado trabajo de Haraway
ha sido, en gran medida, la identificación de las habilidades
técnicas adicionales que son necesarias para producir este tipo
diferente de feminismo coalicional que ella llama «cyborg».
Para entender la aportación de Haraway quiero señalar y
enfatizar el paralelismo que establece entre estas habilidades
y lo que yo identifiqué anteriormente como la metodología
de las oprimidas. No es casual que Haraway defina, nombre
y teja las habilidades necesarias para la ciborgología a partir
de técnicas y terminologías de las formulaciones culturales
del Tercer Mundo de los Estados Unidos; desde conceptos
de los nativos americanos como el «tramposo» y el «coyote»
(1995, p. 346), pasando por la «mestiza» o la categoría «muje-
res de color», hasta el punto en que el cuerpo de la cyborg
feminista llega a articularse claramente con los posiciona-
mientos psíquicos y materiales del feminismo del Tercer
Mundo estadounidense.17 Igual que la «conciencia mestiza»

Liberación de las Mujeres (WLM) mediante, entre otras cosas, la acción de


renombrarlo con el irónico énfasis de «Movimiento de Liberación de las
Mujeres Blancas». Y quizás no podrá recuperarse ya toda creencia no pro-
blemática en la honrada benevolencia de los movimientos de liberación
estadounidenses después de que Audre Lorde resumiera la liberación de
las mujeres de la década de 1970 diciendo que «cuando las mujeres blan-
cas piden la unidad» entre las mujeres «tan sólo están nombrando una
necesidad real y más profunda de homogeneidad». En la década de 1980
el problema político central puesto sobre la mesa era cómo continuar ima-
se permite la copia

ginando y construyendo un movimiento feminista que pudiera unir a las


mujeres a través de sus diferencias. El primer principio para la acción de
Haraway en 1985 era clamar —y después enseñar una nueva y tan desea-
da constitución— que las «feministas cyborg», «nosotras», no queremos
©

más matrices naturales de unidad, ninguna construcción es «total».


17 Véase «La promesa de los monstruos» de Harway, Política y Sociedad,
núm. 30, 1999, pp. 121-163, donde la mujer de color se convierte en la figu-
ra emblemática, «una inquietante figura guía» escribe Haraway, para la
cyborg feminista, «que promete información sobre las formaciones psí-
quicas, históricas y corporales que quizá provenga de procesos semióticos
diferentes a lo psicoanalítico en la formulación moderna y postmoderna».
92 Otras inapropiables

descrita y definida por esta forma de feminismo que, como


explica Anzaldúa, surge «en las fronteras y en los márge-
nes» donde feministas de color mantienen «intactas identi-
dades múltiples y cambiantes», con «integridad» y amor; el
cyborg del manifiesto feminista de Haraway debe también
estar «decididamente comprometido con la parcialidad, la
ironía, la intimidad y la perversidad» (1995, p. 256). En esta
alineación equivalente, escribe Haraway, puede reconocer-
se a las feministas cyborg —como agentes del feminismo
del Tercer Mundo estadounidense— por ser la «descenden-
cia ilegítima» del «capitalismo patriarcal» (1995, p. 256).
Las armas del feminismo cyborg y también las armas del
feminismo del Tercer Mundo estadounidense se asemejan a
«fronteras transgredidas, fusiones potentes y posibilidades
peligrosas» (1995, p. 262). No en vano, la máquina textual
del cyborg de Haraway representa una política que corre
paralela a la de la crítica feminista del Tercer Mundo esta-
dounidense. Así, en la medida en que la obra de Haraway
ha influido en los estudios feministas, su feminismo cyborg
ha podido insistir en una alineación entre lo que una vez
fue la teoría feminista hegemónica y la teoría de lo que
localmente se concibe como resistencia indígena, «mestiza-
je», feminismo del Tercer Mundo estadounidense, o modo
diferencial de conciencia opositiva.18
Este intento de alineación entre las formulaciones cultura-
les y teóricas del feminismo del Tercer Mundo estadounidense
y las formulaciones teóricas del feminismo estadounidense se
encuentra más desarrollada en la visión duplicada de
Haraway de un «mundo cyborg». Este puede definirse, opina,
bien como la culminación de los impulsos-de-dominación de
la sociedad «blanca» euro-estadounidense, por un lado, o bien,
por otro, como la emergencia de cosmovisiones de mestizaje
se permite la copia

de resistencia «indígena», feministas del Tercer Mundo esta-


dounidense, o feministas cyborg. Escribe:
©

18 El feminismo del Tercer Mundo de los Estados Unidos reconoce una


alianza llamada «mestizaje indígena», término que insiste en el paren-
tesco entre la gente de color subyugada de modo similar por la raza en
la historia colonial de los Estados Unidos —incluyendo, pero no limi-
tándose, a los pueblos nativos y chicanos, negros y asiáticos coloniza-
dos—, y contemplándolo, a pesar de sus diferencias, como «un pueblo».
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 93

«Un mundo de cyborgs es la última imposición de un siste-


ma de control en el planeta, la última de las abstracciones
inherentes a un apocalipsis de la Guerra de las Galaxias
sufragada en nombre de la defensa nacional, la apropiación
final de los cuerpos de las mujeres en una orgía masculinis-
ta de guerra. Desde otra perspectiva un mundo cyborg
podría tratar de realidades sociales y corporales vividas en
las que la gente no tenga miedo de su parentesco con ani-
males y máquinas, ni de identidades permanentemente par-
ciales, ni de puntos de vista contradictorios.19

La importante noción de «parentesco» a la que Haraway


apela aquí es análoga a la que aparece en algunos textos
indígenas contemporáneos en los que las tribus o linajes se
identifican a partir de quienes comparten, no vínculos de
sangre, sino de afinidad. Estos vínculos de afinidad se produ-
cen mediante la atracción, combinación y relación esculpida
desde y a pesar de la diferencia, y son lo que compone la
noción de mestizaje en los textos de la gente de color. Esto lo
ejemplifica Alice Walker cuando en 1982 pide a los liberacio-
nistas negros estadounidenses que se reconozcan como mes-
tizos. Walker escribe:

Somos el africano y el traficante. Somos el indio y el colono.


Somos opresor y oprimido... somos los mestizos de Norte
América. Somos negros, sí, pero también somos «blancos»,
y somos rojos. Pretender funcionar como sólo uno, cuando
realmente eres dos o tres, conduce, creo, a la enfermedad
psíquica: la gente «blanca» ya nos ha mostrado esa locura.20

El mestizaje en este pasaje —y en general— puede entender-


se como una compleja clase de amor en el mundo postmo-
derno donde el amor se concibe como alianza-de-afinidad y
se permite la copia

afecto a través de ejes de diferencia que se intersectan dentro

19 La contribución de Haraway, aquí, reside en la extensión de la noción


©

de «mestizaje» hasta la inclusión de la mezcla —o «afinidad»— no úni-


camente entre lo humano, animal, físico, espiritual, emocional e intelec-
tual, tal como normalmente lo entiende el feminismo del Tercer Mundo
de los Estados Unidos, sino entre todo ello y las máquinas de la cultura
dominante.
20 Alice Walker, «In the Closet of the Soul: a letter to an African-
American friend», Ms. Magazine, núm. 15, noviembre de 1986, pp. 32-35.
94 Otras inapropiables

y fuera del cuerpo. Walker interpreta la enfermedad psíqui-


ca como el intento de ser «una», de modo similar a la singu-
laridad del amor narrativo de Roland Barthes que controla
todos los significados a través de la mediación de la pareja-
enamorada. La función del mestizaje en la visión de Walker
es más bien como la del amor profético de Barthes, donde la
subjetividad llega a liberarse de la ideología que ata y fija la
realidad. El amor profético deshace el «uno» que reduce la
narrativa, la pareja, la raza, a una singularidad. En vez de
ello, el amor profético recoge la «mexcla», la mezcla-que-
vive a través del movimiento diferencial entre posibilidades
de existencia. Este es el tipo de «amor» que motiva el mesti-
zaje del feminismo del Tercer Mundo estadounidense y su
teoría y método de la conciencia opositiva y diferencial, lo
que Anzaldúa teoriza como la conciencia de la mestiza, o la
conciencia de «la Frontera».21
Haraway entreteje esos compromisos feministas del
feminismo del Tercer Mundo estadounidense con la afini-
dad-a-través-de-la-diferencia en su teoría del feminismo
cyborg, y en ese proceso, comienza a identificar las habilida-
des que componen la metodología de los oprimidos, tal
como lo indica en su idea de que el reconocimiento de las
diferencias y sus correspondientes «visiones del mundo»
(327) no deben entenderse como «alegorías» relativistas «de
infinita movilidad e intercambiabilidad». La simple movili-
dad sin propósito no es suficiente, como demuestra Gayatari
Spivak en su ejemplo de «esencialismo estratégico» que
aboga tanto a favor de la movilidad como de la consolidación
de la identidad al mismo tiempo. Las diferencias, escribe
Haraway, deberían verse como ejemplos de «especificidad
se permite la copia

elaborada» y como una oportunidad para «el cuidado afec-


tuoso que las personas deberían mostrar para aprender
cómo ver fielmente desde el punto de vista del otro» (1995,
p. 327). La potencia y la elocuencia de los escritos de algunas
©

feministas de color estadounidenses, continúa Haraway,


derivan de su insistencia en el «poder para sobrevivir, no

21 Gloria Anzaldúa, Borderlands / La Frontera, San Francisco, Aunt Lute


Books, 1987, p. 77.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 95

sobre la base de la inocencia original —la imagen de un


“érase una vez la totalidad” o la unidad—» sino más bien en
la insistencia de las posibilidades de la afinidad-a-través-de-
la-diferencia. Este mestizaje, o conciencia diferencial, permi-
te el uso de cualquier herramienta de la que una disponga
con el fin tanto de asegurar la supervivencia, como de reha-
cer el mundo. Según Haraway, la labor del feminismo
cyborg debe ser, de modo similar, la de «recodificar» todas
las herramientas de «comunicación e inteligencia», persi-
guiendo el objetivo de la subversión del «mando y el con-
trol» (1995, p. 300).
En la siguiente cita, Haraway analiza la obra literaria de
la intelectual chicana Cherrie Moraga desde una aproxima-
ción «feminista cyborg» que está claramente en firme alian-
za con los métodos feministas del Feminismo del Tercer
Mundo estadounidense. Escribe:

El lenguaje de Moraga no es «total»; está conscientemente


ensamblado, una quimera de inglés y español, ambas lenguas
de conquistadores. Pero es este monstruo quimérico, que no
reclama un lenguaje original previo a la violación, el que pro-
duce las identidades eróticas, competentes y poderosas de las
mujeres de color. La hermana extranjera22 apunta la posibili-
dad de supervivencia de la tierra no a causa de su inocencia,
sino de su habilidad para vivir en los límites, para escribir sin
el mito fundador de la totalidad original, con su inevitable
apocalipsis de regreso final a una unidad mortal [...]
Despojada de su identidad, la raza bastarda nos enseña el
poder de los márgenes y la importancia de una madre como
la Malinche. Las mujeres de color la han transformado, y de
ser la madre diabólica del miedo masculinista ha pasado a ser
la madre letrada original que enseña a sobrevivir.
se permite la copia

Irónicamente, a menudo las lectoras —incluso las de


Haraway— entienden la teoría crítica del feminismo del Tercer
Mundo estadounidense —un conjunto de estrategias teóricas
y metodológicas— tan sólo como una circunscripción demo-
©

gráfica —«mujeres de color», una categoría que puede usarse,


irónicamente, como un «ejemplo» para avanzar nuevas teorías

22 Haraway hace referencia aquí a la clásica obra de Audre Lorde, Sister


Outsider de 1984. [N. de e.]
96 Otras inapropiables

de lo que ahora se están identificando en la academia como


«feminismos postmodernos»— y no como una aproximación
teórica y metodológica en sí misma que despeja el camino para
nuevos modos de concebir el movimiento social, la identidad y
la diferencia. El problema textual, que se convierte en proble-
ma filosófico —problema político, en realidad— es la combi-
nación del feminismo del Tercer Mundo estadounidense, como
teoría y método de la conciencia opositiva, con la generalizada
categoría demográfica, o «descriptiva», «mujeres de color»,
despolitizando y reprimiendo, de este modo, la especificidad
de las políticas y formas de conciencia desarrolladas por las
mujeres de color estadounidenses, feministas de color, y desdi-
bujando la especificidad de lo que es una forma particular de
éstas: el feminismo del Tercer Mundo estadounidense.
En 1991 la propia Haraway reconocía estas formas de eli-
sión, y el modo en que al recoger la categoría «mujeres de
color» e identificarla como una «identidad cyborg, una poten-
te subjetividad sintetizada a partir de fusiones de identidades
extranjeras» —i.e. Sister Outsider—, su trabajo había contribui-
do inadvertidamente a esta tendencia de invisibilizar las con-
tribuciones teóricas específicas de la crítica feminista del femi-
nismo del Tercer Mundo estadounidense, al convertir muchas
de sus aproximaciones, métodos, formas y habilidades en
ejemplos de feminismo cyborg (1995, p. 299). Haraway, reco-
nociendo las implicaciones políticas e intelectuales de estas
duplicidades en los significados, procedió a revisar su posición
y, seis años después de la publicación de «Cyborg Feminism»,
explica que hoy «sería mucho más cuidadosa al describir quién
cuenta como “nosotros” en la afirmación “todos nosotros
somos cyborgs”». En lugar de ello, pregunta, ¿por qué no
se permite la copia

encontrar un nombre o concepto que pueda dar cuenta «más


bien de una familia de figuras desplazadas, de la que el
cyborg» tan sólo es una, «y después preguntar cómo establece
las conexiones el cyborg» con otras personas no-originales que
©

también se encuentran «múltiplemente desplazadas»?23 ¿No

23 Constance Penley y Andrew Ross, «Cyborgs at large: interview with


Donna Haraway», Technoculture, Minneapolis, University of Minnesota
Press, 1991, p. 12.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 97

deberíamos estar imaginando, continúa, «una familia de figu-


ras» que pudiera «poblar nuestras imaginaciones» de «mun-
dos postcoloniales, postmodernos que no fueran tan impe-
rialistas en términos de una única figuración de la identi-
dad»?24 Éstas son cuestiones importantes para algunos
teóricos de distintas disciplinas que se muestran interesa-
dos en encontrar nuevos modelos efectivos para compren-
der los movimientos sociales y la conciencia en oposición
bajo las condiciones culturales postmodernas. Las pre-
guntas de Haraway siguen sin hallar respuesta en el terre-
no del discurso opositivo, sin embargo —o más bien—, ha
sido múltiplemente respondido y diseccionado en el terre-
no académico. E incluso dentro de la teoría feminista, el
propio feminismo cyborg de Haraway y su posterior des-
arrollo de la tecnología de los «conocimientos situados»,
aunque han estado cerca, no han sido capaces de salvar
efectivamente los vacíos de la segregación de campos teó-
ricos anteriormente descrita.
Por ejemplo, si la categoría de Haraway «mujeres de
color» debiera ser concebida, como ella misma lo expuso
anteriormente, «como una identidad cyborg, una subjetivi-
dad potente sintetizada a partir de las fusiones de identi-
dades extranjeras y en las complejas estratificaciones histó-
rico-políticas de su biomitografía» (1995, p. 299), entonces,
¿por qué la teoría feminista ha sido incapaz de reconocer a
la propia crítica feminista del Tercer Mundo estadouniden-
se como una forma de teoría cultural que es también capaz,
en sí misma, de unificar agentes opositivos a través de dife-
rencias ideológicas, raciales, de género, sexo o clase; inclu-
so si esa alianza e identificación tuviera lugar bajo el signo
se permite la copia

transnacional, «racializado» y genéricamente marcado del


«feminismo del Tercer Mundo estadounidense»? ¿Debería
esta elisión interpretarse como un síntoma más del activo
apartheid de los campos teóricos? Porque, como he afirma-
©

do, la identidad no esencialista que exige el feminismo del


Tercer Mundo estadounidense en su modo diferencial, crea

24 Ibídem, p. 13.
98 Otras inapropiables

lo que también Haraway está demandando, una identidad


mestiza, indígena, incluso cyborg.25
Podemos ver a Haraway alegando razones muy similares
para el reconocimiento de la crítica feminista del Tercer
Mundo en su ensayo en Feminist Theorize the Political. El
ensayo de Haraway comienza afirmando que las mujeres
que fueron «sometidas en la conquista del nuevo mundo, se
enfrentaban a un campo social de falta de libertad reproduc-
tiva más amplio en el que sus hijos no heredaban el estatus
de humanos en los discursos fundadores hegemónicos de la
sociedad estadounidense».26 Por esta razón, afirma, «la teoría
feminista producida por las mujeres de color» en los Estados
Unidos continúa generando discursos que refutan o descon-
ciertan los puntos de vista occidentales tradicionales. Lo que
esto significa, señala Haraway, es que si la teoría feminista va a
mostrarse alguna vez capaz de incorporar las visiones de la
teoría y de la crítica feminista del feminismo del Tercer Mundo
estadounidense, el punto de atención fundamental de la teoría
y la política feminista debe trasladarse hacia el objetivo de
construir «un lugar para los diferentes sujetos sociales».27
Este desafío a la teoría feminista representa un poderoso
cambio teórico y político y, si se asumiera, tendría el poten-
cial de establecer un espacio para la afinidad entre el femi-
nismo y otros terrenos teóricos como la teoría del discurso
postcolonial, el feminismo del Tercer Mundo estadouniden-
se, el postmodernismo, y la teoría queer.

25 Deberíamos preguntarnos por qué las formas teóricas dominantes se


se permite la copia

han demostrado incapaces de incorporar y extender las teorías de la


liberación negra, o del feminismo del Tercer Mundo. ¿No consistiría el
giro revolucionario en que los teóricos llegaran a ser capaces de este tipo
de «esencialismo estratégico»? Si creemos en los «conocimientos situa-
©

dos», entonces, personas de cualquier categoría racial, sexual o de géne-


ro pueden desarrollar la práctica del feminismo del Tercer Mundo esta-
dounidense. ¿O tendrían tales prácticas que ser transcodificadas en un
lenguaje «neutral» que fuera aceptable para cada categoría, «conciencia
diferencial», por ejemplo, o «cyborgología»?
26 Haraway, «Ecce homo», p. 95.
27 Ibídem.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 99

¿Cómo lograr este cambio en el campo de la teoría feminis-


ta? Mediante la disposición de las feministas, propone
Haraway, a mostrarse «menos interesadas en incorporarse a
las filas generizadas de la feminidad», para, en lugar de ello
centrarse en «ganar el terreno INSURGENTE como sujeto social
mujer».28 Este desafío a los Women’s Studies significa que se
ha de producir un traslado a un escenario de resistencia que
funcione fuera de la división binaria masculino/femenino, ya
que únicamente de este modo, afirma Haraway, las «teorías
feministas de las subjetividades raciales generizadas» pueden
«dar cuenta afirmativa y críticamente de subjetividades socia-
les emergentes, diferenciadas, auto-representativas y contra-
dictorias, con sus reivindicaciones de acción, conocimiento, y
creencia».29 En esta nueva forma de lo que Haraway llama
«todo un anti-racismo», incluso un feminismo anti-género,
Haraway asegura, «no existe lugar para las mujeres» única-
mente «geometrías de diferencia y contradicción cruciales
para las identidades cyborg de las mujeres» (1995, p. 292).
Es en este punto donde la obra de Haraway comienza a
identificar las tecnologías específicas que alinean por com-
pleto su aparato teórico con lo que yo he llamado la meto-
dología de las oprimidas. ¿Cómo, entonces, debe ser alum-
brada esta nueva forma de feminismo o, como yo lo expre-
saría, esta nueva forma de conciencia opositiva? Mediante la
identificación de un conjunto de habilidades que sean capa-
ces de des-alienar y realinear lo que Haraway llama la
«junta» humana que conecta nuestra «técnica» —detalles
materiales y técnicos, reglas, máquinas y métodos— con
nuestra «erótica» —la aprehensión y expresión sensual del
«amor»-como-afinidad.30 Tal conexión, afirma Haraway,
se permite la copia

28 Los nuevos espacios teóricos necesarios para comprender las actua-


les condiciones culturales del Primer Mundo y la naturaleza de la resis-
©

tencia, no se limitan a la teoría feminista, según Haraway. Escribe, «nos


faltan las conexiones sutiles necesarias para edificar colectivamente teo-
rías eficaces de la experiencia. Los presentes esfuerzos —marxistas, psi-
coanalíticos, feministas, antropolíticos— por clarificar incluso “nuestra”
experiencia son rudimentarios» (1995, p. 296).
29 Ibídem, p. 96.
30 Haraway, «Las promesas...», art. cit., pp. 154-155.
100 Otras inapropiables

requerirá un tipo inteligente de «política de la articulación»


y ésta es la forma política primordial que se encuentra en «el
corazón de una práctica feminista anti-racista»31 que sea
capaz de construir «colectivos más poderosos en épocas peli-
grosamente poco prometedoras».32 Esta poderosa política de
la articulación, esta nueva política «anti-racista» que es tam-
bién capaz de establecer nuevos tipos de coaliciones, puede
reconocerse, afirma Haraway, por medio de la identificación
de las «prácticas expertas» que se utilizan y desarrollan en el
seno de las clases subalternas.
El trabajo teórico de Haraway perfila las formas que
adoptan los conocimientos subyugados que ella identifica.
Estas formas que requieren, como ella misma escribe, «mirar
desde abajo», son habilidades particulares que tienen efectos
sobre los «cuerpos», el «lenguaje» y las «mediaciones de la
visión». La concepción de Haraway de la naturaleza de esas
habilidades se adhiere, inseparablemente, a las mismas habi-
lidades que componen la metodología de los oprimidos;
incluyendo las tecnologías de la «semiótica», «deconstruc-
ción», la «meta-ideologización», la «democrática» y el
«movimiento diferencial». Son estas tecnologías las que per-
miten el constante reposicionamiento diferencial necesario
para la percepción y la acción desde lo que Haraway identi-
fica como «los puntos de vista de las subyugadas». De
hecho, el ensayo de Haraway sobre el feminismo cyborg
identifica estas cinco tecnologías —si bien sólo de forma
superficial—, como formas provocadoras de lo que ella espe-
ra que se convierta en una nueva metodología feminista.
Sobre la primera tecnología, «semiótica», por ejemplo,
Haraway escribe que «el conocimiento de una misma requie-
se permite la copia

re una tecnología semiótico-material que enlace significados


y cuerpos..., la apertura de sujetos, agentes y territorios no-
isomórficos a narrativas inimaginables desde el lugar ventajo-
so del ojo ciclópeo y autosatisfecho del sujeto dominante»
©

(1995, p. 331). Aunque Haraway no identifica las tecnologías

31 Ibidem.
32 Ibidem, p. 145.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 101

de «deconstrucción» o «meta-ideologizar» de modo separa-


do, estos dos vectores de intervención se encuentran implíci-
tos cuando ella escribe que esta nueva aportación a la teoría
del movimiento social, el feminismo cyborg, debe encontrar
diversos «modos de comprender e intervenir en los modelos
de objetivación dentro del mundo». Esto significa «decodifi-
cación y transcodificación más traducción y crítica: todas son
necesarias». «Democrática» es la tecnología de la metodolo-
gía de las oprimidas que guía todas las demás, y la fuerza
moral de esta tecnología viene señalada por la aseveración
de Haraway de que en toda actividad opositiva, los agentes
del cambio «deben ser capaces de rendir cuentas» de los
«modelos de objetificación dentro del mundo» que ahora se
han convertido en «realidad». En este esfuerzo por asumir la
responsabilidad de los sistemas de dominación actualmente
existentes, Haraway insiste en que la practicante del femi-
nismo cyborg no puede existir «sobre localizaciones fijadas
en un cuerpo reificado». Esta nueva actriz opositiva debe
existir «sobre nodos en campos» e «inflexiones en la orienta-
ción». A través de tales movimientos, un feminismo cyborg
opositivo debe crear y actuar en su propia versión de la «res-
ponsabilidad por la diferencia en campos de significado
semiótico-materiales». Por lo que respecta a la última tecno-
logía de la metodología de las oprimidas, llamada «movi-
miento diferencial» la propia versión de Haraway es que el
feminismo cyborg debe entender «la imposibilidad de las
políticas de la identidad y de las epistemologías “inocentes”
como estrategia para ver desde los puntos de vista de las
subyugadas». Más bien, los agentes opositivos deben estar
«comprometidos» en la actuación de todas las formas-de-
se permite la copia

existencia y todas las habilidades —sea la función de esas


«habilidades» semiótica, «decodificadora», «recodificadora»
o «moral»—, para lo que Haraway llama «posicionamientos
móviles y desvinculaciones apasionadas» (1995, p. 330).
©

He afirmado que las «habilidades cyborg» necesarias para


desarrollar un feminismo para el siglo XXI son aquellas que he
identificado con la metodología de las oprimidas. Su uso
tiene el poder de fraguar lo que Haraway afirma que puede
ser un «circuito universal de conexiones» incluida la habili-
dad de desarrollar nuevas coaliciones a través de nuevos
102 Otras inapropiables

tipos de alianzas traduciendo «conocimientos de comunida-


des muy diferentes —y diferenciadas— en términos de
poder» (1995, p. 322). El feminismo que emplee estas tecno-
logías como «habilidades» podrá convertirse en otro tipo de
ciencia, afirma Haraway, una ciencia de la «interpretación,
de la traducción, del tartamudeo y de lo parcialmente com-
prendido». Como la ciencia propuesta por el modo diferen-
cial de conciencia en oposición —el feminismo del Tercer
Mundo estadounidense—, el feminismo cyborg puede con-
vertirse en la ciencia de aquellos a los que Haraway describe
como «sujetos múltiples con al menos doble visión». Bajo
este nuevo tipo de ciencia la «objetividad» científica, escribe
Haraway, significará un compromiso fundamental con una
práctica capaz de amilanar a las ciencias burocráticas y
administrativas, una práctica de la «objetividad» que
Haraway llama «conocimientos situados» (1995, p. 324). Ya
que, escribe, con el advenimiento del feminismo del Tercer
Mundo estadounidense y otras formas de feminismos, se ha
hecho evidente que «incluso los asuntos más simples en el
análisis feminista requieren momentos contradictorios y
cierta cautela en su resolución». Una conciencia-de-la-cien-
cia intelectual y feminista, de la objetividad como «conoci-
mientos situados», significa, de acuerdo con Haraway, el de-
sarrollo de un tipo diferente de relación humana con la per-
cepción, la objetividad, la comprensión y la producción, que
sea semejante al uso de Hayden White y Jacques Derrida de
la «voz media»; ya que exigirá un «estar situado» intelectual
«en un espacio medio inasible». Y como el mecanismo de la
voz media del verbo, los «conocimientos situados» de
Haraway exigen que lo que es un «objeto de conocimiento»
se permite la copia

sea también «imaginado como un actor y agente», capaz de


transformarse a sí mismo y su propia situación mientras
actúa al mismo tiempo sobre él.
En otras palabras, los conocimientos situados de
©

Haraway exigen una forma de conciencia diferencial. De


hecho, Haraway titula la tercera parte de su libro Ciencia,
cyborgs y mujeres «Políticas diferenciales para otras inapro-
piadas/bles». Este capítulo define una forma fusionista y aún
más articulada de movimiento social cuya «encarnación femi-
nista» puede resistir la «fijación» con el fin de manejar mejor
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 103

lo que ella llama las «redes de posicionamiento diferencial»


(1995, p. 338). Las teóricas feministas que subscriben esta
nueva forma postmoderna de conciencia opositiva deben
aprender, escribe, a ser «más generosas y más recelosas (gene-
rosa y suspicaz al tiempo, es justo la postura receptiva que
generalmente busco en la semiosis política). Es una estrategia
alineada muy de cerca con la conciencia opositiva y diferen-
cial»33 del feminismo del Tercer Mundo estadounidense.
Se ha dado por supuesto que los comportamientos de las
clases oprimidas no dependen de ninguna metodología en
absoluto, o mejor, que consisten en cualesquiera actos que
uno deba llevar a cabo con el fin de sobrevivir, tanto física
como psíquicamente. Pero ésta es exactamente la razón por
la que la metodología de las oprimidas puede ahora recono-
cerse como una forma-de-existencia mejor adaptada a la
vida bajo las condiciones postmodernas y altamente tecnolo-
gizadas del Primer Mundo. Porque introducirse en un
mundo en el que cualquier actividad es posible con el fin de
asegurar la supervivencia es también introducirse en un
ciberespacio-de-existencia y conciencia. Este espacio es
ahora accesible a todos los seres humanos a través de la tec-
nología —aunque anteriormente ésta fue una zona accesible
tan sólo a aquellos que fueron introducidos a la fuerza en su
terreno—, un espacio de posibilidades ilimitadas donde los
significados tan sólo se encuentran fijados de forma somera
y son, así, capaces de reajustarse dependiendo de la situa-
ción a la que deban hacer frente. Este ciberespacio es el
grado cero de significación y amor profético de Barthes, la
«puerta abierta de cada conciencia» de Fanon. El estado
«coatlicue» de Anzaldúa y sus procesos están íntimamente
se permite la copia

vinculados con los de la conciencia diferencial.


Resumiendo, el modo diferencial de conciencia opositiva
encuentra su expresión a través de la metodología de las opri-
midas. Las tecnologías de lectura semiótica, deconstrucción de
©

los signos, meta-ideologizar, y compromiso-con-la-igualdad


moral son sus vectores, sus expresiones de influencia. Estos
vectores se encuentran en el modo diferencial de conciencia,

33 Ibídem, p. 326.
104 Otras inapropiables

llevándola todo el camino hasta el nivel de lo «real» donde


puede guiar e impresionar a los poderes dominantes. La con-
ciencia diferencial es, en sí misma, una fuerza que de forma
rizomática y parásita habita cada uno de estos cinco vectores,
vinculándolos en movimiento, mientras el empuje de cada
uno de ellos produce una tensión y re-formulación continua.
La conciencia diferencial puede, así, concebirse como una
constante redistribución del espacio y los límites; realineacio-
nes verticales y horizontales de poderes opositivos. Puesto
que cada vector sucede a diferentes velocidades, uno de ellos
puede realinear a todos los demás, creando diferentes tipos de
patrones y permitiendo la entrada en diferentes puntos. Estas
energías giran unas en torno a otras, alineándose y realineán-
dose en un campo de fuerza que es el modo diferencial de
conciencia oposicional, una Cyber-Conciencia.
De este modo, cada tecnología de la metodología de las
oprimidas crea nuevas posibilidades conjeturales, produci-
das por transformadores regímenes de exclusión e inclusión
en curso. La conciencia diferencial es una red de conciencias
entrecruzadas, una transconsciencia que sucede en un regis-
tro permitiendo que las propias redes resulten adecuadas
como armamento ideológico. Este ciberespacio-de-existencia
es análogo al ciberespacio informático e incluso a la vida
social según la visión de Haraway, pero su concepción del
ciberespacio es más pesimista: «El ciberespacio parece ser
una alucinación consensuada de demasiada complejidad,
demasiada articulación... En el espacio virtual, la virtud de la
articulación, el poder para producir conexión, amenaza con
arrollar y finalmente engullir toda posibilidad de acción
efectiva para cambiar el mundo».34 Bajo la influencia de una
se permite la copia

conciencia oposicional diferencial entendida como una


forma de «ciberespacio», las tecnologías desarrolladas por
las poblaciones subyugadas para negociar este reino de sig-
nificados cambiantes se reconocen como las mismas tecnolo-
©

gías necesarias para todos los ciudadanos del Primer Mundo


que estén interesados en renegociar las culturas contempo-
ráneas del Primer Mundo manteniendo lo que podríamos

34 Ibídem, p. 325.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 105

llamar un sentido de su propio «poder» e «integridad» intacto.


Pero el poder y la integridad, como sugiere Gloria Anzaldúa,
estarán basados en términos completamente diferentes a aque-
llos que se identificaron en el pasado cuando, como escribe
Jameson, los individuos podían cultivar un sentido del yo en
oposición al poder dominante centralizador que los oprimía
y, entonces, determinar cómo actuar. Bajo las desobediencias
postmodernas el yo se vuelve borroso por los márgenes,
cambia «para asegurar la supervivencia», se transforma de
acuerdo a los requisitos del poder; todo el tiempo bajo la
fuerza guía de la metodología de las oprimidas, llevando
consigo la integridad de un conocimiento autoconsciente de
las transformaciones deseadas y sobre todo, un sentido de
los inminentes cambios éticos y políticos que esas transfor-
maciones vayan a representar.
La teoría de Haraway casa las máquinas y una visión de
la política del Primer Mundo a escala transnacional, global,
con el equipo de supervivencia que yo llamo la metodología
de las oprimidas, en el feminismo del Tercer Mundo esta-
dounidense; y es en estos emparejamientos, donde la raza, el
género y el capital, según Haraway, «requieren una teoría
cyborg de totalidades y partes» (1995, p. 310), a la que la visión
de Haraway contribuye tendiendo puentes sobre los abismos
que la segregación de los campos teóricos está creando. De
hecho, la codificación necesaria para re-cartografiar el tipo de
«yo —colectivo y personal— postmoderno desmontado y
vuelto a montar» (1995, p. 279) del feminismo cyborg debe
tener lugar de acuerdo a una guía capaz de situar al femi-
nismo en alineación con otros movimientos de pensamiento
y política para el cambio social igualitario. Esto puede ocu-
se permite la copia

rrir cuando el ser y la acción, el conocimiento y la ciencia,


lleguen a ser autoconscientemente codificados a través de lo
que Haraway llama conocimientos «subyugados» y «situa-
dos», y que yo llamo la metodología de las oprimidas, una
©

metodología que surge de situaciones variables y se mani-


fiesta en una multiplicidad de formas a lo largo del Primer
Mundo y de modo indómito desde las mentes, cuerpos y espí-
ritus de las feministas del Tercer Mundo de los Estados
Unidos que han exigido el reconocimiento del «mestizaje», la
resistencia indígena y la identificación con los colonizados.
106 Otras inapropiables

Cuando la teoría feminista llegue a ser capaz de reconocer y


aplicar de forma autoconsciente esta metodología, entonces la
política feminista podrá convertirse completamente en sinóni-
mo de antirracismo, y el «sujeto feminista» se disolverá.
A finales del siglo XX, los actores oposicionales están
inventando un nuevo nombre y nuevos lenguajes para lo
que la metodología de los oprimidos y la «coatlicue» —con-
ciencias diferenciales— le exigen. Sus tecnologías, desde
«significar» a «la facultad», desde el «feminismo cyborg»
hasta los «conocimientos situados», del «abismo» a la «dife-
rencia» se han identificado de formas variadas desde nume-
rosas posiciones teóricas. La metodología de las oprimidas
ofrece el esquema para el mapa cognitivo de una realidad
social cargada de poder que diversos actores y teóricos opo-
sitivos de diferentes disciplinas, desde Fanon a Jameson,
desde Anzaldúa a Lorde, de Barthes a Haraway, anhelan.

se permite la copia
©
6. Diferencia, diversidad,
diferenciación1
Avtar Brah

¿Feminismo blanco, feminismo negro?

Durante la década de 1970 existió un escaso compromiso


serio y continuado por parte de la academia dominante
con temas tales como la explotación generizada del traba-
jo postcolonial en la metrópolis británica, el racismo exis-
tente en las políticas y prácticas culturales blancas estata-
les, la radicalización de la subjetividad negra y blanca en
el contexto específico del periodo posterior a la pérdida
del Imperio y las particularidades de la opresión de las
mujeres negras dentro de la teoría y la práctica feministas.
Este hecho desempeñó un importante papel en la forma-
ción de organizaciones feministas negras diferenciadas del
Movimiento «blanco» de Liberación de las Mujeres. Estas
organizaciones emergieron en un contexto de profunda
crisis económica y política y de un creciente atrinchera-
miento del racismo.
La década de 1970 fue un periodo en el que el powellis-
se permite la copia

mo2 de la década de 1960 llegó a inundar el tejido social y se


fue consolidando y transmutando gradualmente en el that-
cherismo de la década de 1980. Las comunidades negras se
implicaron en una amplia variedad de actividades políticas
©

1 Publicación original: Avtar Brah, «Difference, Diversity, Differentia-


tion», en James Donald y Ali Rattansi, «Race», Culture and Difference,
Londres, Sage Publications, 1992.
2 J. Powell, parlamentario conservador británico, conocido por defender
el retorno de los inmigrantes a sus países de origen. [N. de e.]

107
108 Otras inapropiables

a lo largo de la década. Se sostuvieron huelgas industriales


de enorme importancia, muchas de ellas encabezadas por
mujeres. Se constituyó el Movimiento de Solidaridad
Sindicalista Negro (Black Trade Union Solidarity Movement)
para lidiar con el racismo en el empleo y en los sindicatos.
Se llevaron a cabo campañas masivas contra el control de la
inmigración, la violencia fascista, las agresiones racistas a
personas y propiedades, las actuaciones policiales que con-
ducían al hostigamiento de personas negras, y contra la cri-
minalización de las comunidades negras. Existían abundan-
tes proyectos de autoayuda relacionados con actividades
educativas, culturales y de asistencia social. Las mujeres
negras estaban involucradas en todas estas actividades, pero
la formación de grupos autónomos de mujeres negras a fina-
les de la década de 1970 infundió una nueva dimensión en la
escena política.
Las prioridades específicas de las organizaciones locales
de mujeres negras, algunas de las cuales se combinaron para
formar un órgano nacional —la Organización de Mujeres de
Procedencia Asiática y Africana (Organization of Women of
Asian and African Descent, OWAAD)— variaban hasta cierto
punto en relación a las exigencias del contexto local. Pero el
propósito general de todas ellas era plantear un desafío a las
formas específicas de opresión a las que se enfrentaban los
distintos sectores de mujeres negras.
El compromiso de forjar una unidad entre mujeres afri-
canas, asiáticas y del Caribe exigía la realización de conti-
nuados esfuerzos por analizar, comprender y trabajar tanto
con lo común como con la heterogeneidad de la experiencia.
Esto requería un cuestionamiento del papel del colonialis-
mo y el imperialismo y de los procesos políticos, económi-
se permite la copia

cos e ideológicos contemporáneos, en el mantenimiento de


divisiones sociales particulares en el seno de estos grupos.
Exigía que las mujeres negras se sensibilizaran con las espe-
cificidades culturales de cada una sin dejar de construir
©

estrategias políticas comunes para hacer frente a las prácti-


cas patriarcales, al racismo y a la desigualdad de clase. Esta
no era una tarea fácil y el hecho de que este proyecto pros-
perara durante muchos años y que algunos de los grupos
locales hayan sobrevivido al impacto divisorio del etnicismo
y se mantengan activos aún hoy, brinda testimonio de la
Diferencia, diversidad, diferenciación 109

fuerza de la visión política y el compromiso de las mujeres


involucradas en él.3
La desaparición de la OWAAD como organización nacio-
nal a principios de la década de 1980 fue provocada por diver-
sos factores, y muchas de estas tendencias divisorias fueron
comunes al conjunto del movimiento de mujeres. Las organi-
zaciones afiliadas a la OWAAD compartían sus objetivos
generales, pero entre las mujeres existían diferencias políticas
en torno a distintos asuntos. El acuerdo de que el racismo era
una pieza clave en la estructuración de nuestra opresión en
Gran Bretaña era general, pero diferíamos en nuestros análi-
sis del mismo y de sus vínculos con la clase y otros modos de
desigualdad. Para algunas mujeres el racismo era una estruc-
tura de opresión autónoma que tenía que ser encarada como
tal; para otras estaba inextricablemente conectada a la clase y
otros ejes de la división social. Existían también diferencias
de perspectiva entre feministas y no-feministas en la
OWAAD. Para estas últimas poner el énfasis en el sexismo
era desviarse de la lucha contra el racismo. El desprecio y los
violentos ataques racistas a las culturas negras supusieron
que para algunas mujeres la prioridad fuera «reclamar» estos
espacios culturales y situarse «como mujeres» en ellos.
Aunque éste era un proyecto importante, en ocasiones dio
como resultado algo más que una insinuación de idealizar un
pasado perdido. Otras mujeres sostenían que, si bien la afir-
mación de la identidad cultural era realmente crucial, de
igual importancia resultaba la necesidad de abordar las prác-
ticas culturales en sus formas opresoras. El problema de la
violencia masculina contra mujeres y niños, la desigual divi-
sión sexual del trabajo en el hogar, las cuestiones de la dote y
los matrimonios forzados, la clitoridectomía, el heterosexis-
mo y la supresión de las sexualidades lesbianas: todos estos
se permite la copia

asuntos exigían atención inmediata; y aunque la mayoría de


las mujeres de la OWAAD reconocían su importancia, existían,
sin embargo, diferencias cruciales sobre las prioridades y las
estrategias políticas necesarias para enfrentarse a ellos.
©

3 Brixton Black Women’s Group, «Black women organising autono-


mously», Feminist Review, núm. 17, 1984; B. Bryan, S. Dadie y S. Scafe,
Heart of the Race, Londres, Virago, 1985; Southall Black Sisters, «Against
the Grain», Southall, Middlesex SBS.
110 Otras inapropiables

En el movimiento de mujeres en conjunto empezaba a mani-


festarse, de forma paralela a estas tendencias, un creciente
énfasis en las políticas de identidad. En lugar de embarcarse
en la compleja pero necesaria tarea de identificar las especifi-
cidades de las opresiones particulares, comprender su inter-
conexión con otras opresiones y construir políticas de solida-
ridad, algunas mujeres estaban comenzando a diferenciar
estas especificidades en jerarquías de opresión. Era común-
mente asumido que el mero acto de autodesignarse miembro
de un grupo oprimido, le investía a una de autoridad moral.
Las múltiples opresiones llegaron a considerarse no en térmi-
nos de sus modelos de articulación sino como elementos sepa-
rados que podían ir añadiéndose de forma lineal, de modo
que cuantas más opresiones pudiera enumerar una mujer, con
más fuerza afirmaba su derecho a ocupar un estrado moral
superior. Las afirmaciones acerca de la autenticidad de la
experiencia personal podían presentarse como si fueran una
guía no problemática para la comprensión de procesos de
subordinación y dominación. Así, en ocasiones, declaraciones
tintadas de una farisaica corrección política llegaron a susti-
tuir al cuidadoso análisis político.4
A pesar de la fragmentación del movimiento de mujeres,
las mujeres negras de Gran Bretaña hemos continuado cues-
tionando de forma crítica la teoría y práctica feministas. Como
resultado de nuestra posición en las diásporas formadas por
la historia de la esclavitud, el colonialismo y el imperialismo,
las feministas negras hemos abogado sistemáticamente en
contra de la mentalidad provinciana y hemos hecho hincapié
en la necesidad de un feminismo consciente de las relaciones
sociales internacionales de poder.5 El artículo de Hazel Carby
se permite la copia

4 S. Ardill y S. O’Sullivan, «Upsetting an applecart: difference, desire


and lesbian sadomasochism», Feminist Review, núm. 23; M.L. Adams,
«Identity politics», Feminist Review, núm. 31.
5 H.Carby, «Schooling in Babylon» y «White women listen! Black femi-
©

nism and the boundaries of sisterhood», en Centre for Contemporary


Cultural studies, The Empire Strikes Back, Londres, Hutchinson, 1982; P.
Parmar, «Gender, race and class: Asian women in resistance», en Centre
for Contemporary Cultural Studies, The Empire Strikes Back; Feminist
Review, 1984; A. Brah y R. Minhas, «Structural racism or cultural diffe-
rence: schooling for Asian girls», en G. Weiner (ed.), Just a Bunch of Girls,
Milton Keynes, Open University Press, 1985; A. Brah, «Journey to
Diferencia, diversidad, diferenciación 111

White Women Listen, por ejemplo, presenta una crítica de


conceptos tan centrales para el feminismo como «patriarca-
do», «familia» y «reproducción». Critica las perspectivas
feministas que utilizan nociones como «residuos feudales» y
«tradicionalismo» para crear escalas móviles de «libertades
civilizadas», en las que se ve al «Tercer Mundo» en un extre-
mo de la escala y al supuestamente progresista «Primer
Mundo» en el otro. Ofrece diversos ejemplos de cómo cierto
tipo de feminismo occidental puede servir para reproducir
más que para desafiar las categorías a través de las cuales
«Occidente» se construye y representa a sí mismo como
superior a los «otros».
Estos planteamientos generaron a las escritoras feministas
blancas algunas reflexiones críticas sobre su propio pensa-
miento. En un intento de re-evaluar sus anteriores trabajos,
Barrett y McIntosh, por ejemplo, reconocieron las limitaciones
del concepto de patriarcado como la inequívoca e invariable
forma de dominación masculina indiferenciada respecto a la
clase o el racismo. Optaron por el uso de «patriarcal» como
término que hiciera referencia al modo en que «relaciones
sociales particulares combinan una dimensión pública de
poder, explotación o estatus con una dimensión de servilismo
personal».6 Pero no especificaron en qué sentido el concepto
de «patriarcal» debería mostrar mayor agudeza analítica que
el de «patriarcado» al abordar las interconexiones entre géne-
ro, clase y racismo. La mera sustitución del concepto de
patriarcado por el de relaciones patriarcales no puede por sí
mismo responder a las acusaciones de ahistoricismo, univer-
salismo o esencialismo que se han volcado sobre el anterior,
aunque, como Walby afirma,7 es posible ofrecer informes
se permite la copia

Nairobi», en S. Grewal, J. Kay, L. Landor, G. Lewis y P. Parmar (eds.),


Charting the Journey: Writtings by Black and Third World Women, Londres,
Sheba Press, 1987; A. Phoenix, «Theories of gender and black families»,
en G. Weiner y M. Arnot (eds.), Gender Under Scrutiny, Milton Keynes,
©

Open University Press, 1987; Grewal et al., Charting the journey; A.


Mama, «Violence against black women: gender, race and state respon-
ses», Feminist Review, núm. 32, 1989; G. Lewis, «Audre Lorde: vignettes
and mental conversations», Feminist review, núm. 34, 1990.
6 M. Barret y M. McIntosh, «Ethnocentrism and socialist-feminist the-
ory», Feminist Review, núm. 20, 1985, p. 39.
7 S. Walby, Theorizing Patriarchy, Oxford, Basil Blackwell, 1990.
112 Otras inapropiables

históricos del patriarcado. Como respuesta a tales reconcep-


tualizaciones del patriarcado, Joan Acker sugiere que acaso
resultara más apropiado trasladar «el objeto teórico del
patriarcado al género, término que podemos definir breve-
mente como las diferenciaciones estructurales, relacionales y
simbólicas existentes entre hombres y mujeres».8 Sin embargo
mantiene la cautela acerca de esta posibilidad ya que «género»,
según ella, carece de la agudeza crítica política de «patriarca-
do» y podría ser cooptado y neutralizado con mucha más faci-
lidad por la teoría dominante. Sería bueno recordar que este
debate se desarrollaba, por lo general, en los parámetros de la
bipolaridad varón-mujer y no se plantea el carácter indetermi-
nado del «sexo» como categoría.9
Prefiero mantener el concepto de «patriarcal» sin tener
necesariamente que aceptar el concepto de «patriarcado»
—historizado o no. Las relaciones patriarcales son una forma
específica de las relaciones de género en las que las mujeres
habitan una posición subordinada. Al menos en teoría, resul-
taría posible imaginar un contexto social en el que las rela-
ciones de género no estuvieran asociadas con la desigual-
dad. Guardo, además, serias reservas acerca de la utilidad
analítica o política de mantener líneas de demarcación entre
«patriarcado» y la particular formación socioeconómica y
política —por ejemplo, capitalismo o socialismo de Estado—
en el que éste se inserta. Sería de mucha más utilidad com-
prender cómo las relaciones patriarcales se articulan con
otras formas de relación social en un determinado contexto
histórico. Las estructuras de clase, racismo, género y sexua-
lidad no pueden tratarse como «variables independientes»
porque la opresión de cada una está inscrita en las otras —es
constituida por y es constitutiva de la otras.
se permite la copia

Reconociendo la crítica feminista negra, Barret y


McIntosh10 enfatizan la necesidad de analizar la construcción
ideológica de la feminidad blanca a través del racismo. Esto,
desde mi punto de vista, es esencial, ya que aún existe una
©

8 J. Acker, «The problem with patriarchy», Sociology, 23/2, 1989.


9 J. Butler Gender Trouble: Feminism and the sobversion of Identity, Nueva
York, Routledge, 1990.
10 Barret y McIntosh, op. cit.
Diferencia, diversidad, diferenciación 113

tendencia a abordar las cuestiones de la desigualdad cen-


trando la atención en las víctimas de la desigualdad. Las dis-
cusiones acerca del feminismo y el racismo se centran a
menudo en torno a la opresión de las mujeres negras más
que en explorar el modo en el que el género de las mujeres
negras y blancas se construye a través de la clase y el racis-
mo. Esto significa que la «posición privilegiada» de las muje-
res blancas en los discursos racializados —incluso cuando
puedan compartir una posición de clase con las mujeres
negras— no está adecuadamente teorizada, y algunos proce-
sos de dominación se mantienen invisibles. La representación
de las mujeres blancas como «las guardianas morales de una
raza superior», por ejemplo, cumple la función de homoge-
neizar la sexualidad de las mujeres blancas al mismo tiempo
que la distingue en términos de clase. En esta representación
fragmentada de la mujer de clase obrera, aunque sea también
imaginada como «portadora de la raza», se señala, de forma
simultánea, como propensa a la degeneración a causa de su
entorno de clase. Aquí vemos cómo las contradicciones de
clase pueden ser ideológicamente tratadas y «resueltas» den-
tro de la estructuración racializada del género.
El artículo de Barret y McIntosh generó un considerable
debate.11 Aunque las críticas reconocían la importancia de la
reevaluación de parte de su trabajo por parte de dos promi-
nentes feministas blancas, también consideraban que sus
métodos de revisión no ofrecían la posibilidad de una trans-
formación radical del análisis anterior, dejando en gran medi-
da sin teorizar el papel que «la raza» juega en la reproducción
social. Este intercambio feminista contribuyó a un debate más
amplio sobre si las divisiones sociales asociadas con la etnici-
dad y el racismo debían analizarse como totalmente autóno-
mas de la clase social, como reductible a ella, o como posee-
se permite la copia

doras de orígenes históricos diferenciados pero articuladas


ahora con las divisiones de clase en las sociedades capitalistas.
Yo afirmaría que el racismo ni es reductible a la clase
©

social o al género ni es por completo autónomo. Los racis-


mos tienen diversos orígenes históricos pero se articulan con

11 Véase las contribuciones de Ramazanoglu, Kazi, Lees y Safia-Mirza,


Feminist Review, 1986; K.K. Bhavnani y M. Coulson, «Transforming socia-
list feminism: the challenge of racism», Feminist Review, núm. 23, 1986.
114 Otras inapropiables

particulares estructuras patriarcales de clase, de formas


específicas, bajo unas condiciones históricas dadas. Los racis-
mos pueden mostrar efectos independientes, pero sugerir
esto no es lo mismo que decir, como lo hace Caroline
Ramazanoglu,12 que el racismo es una «forma independiente
de dominación». El concepto de articulación sugiere relacio-
nes de conexión y efectividad por las cuales, como Hall afir-
ma: «Las cosas están relacionadas entre sí tanto por sus dife-
rencias como a través de sus similitudes».13 En una línea simi-
lar, Laclau y Mouffe14 señalan que la articulación es una prác-
tica y no el nombre de un complejo relacional dado; es decir,
la articulación no es una simple unión de dos o más entida-
des específicas. Es más bien un movimiento transformador
de configuraciones relacionales. La búsqueda de grandes
teorías que especifiquen las interconexiones entre racismo,
género y clase ha sido bastante poco productiva. Serían mejor
descritas como relaciones históricamente contingentes y
situadas en un contexto específico. Por lo tanto podemos cen-
trarnos en un contexto dado y diferenciar entre la demarca-
ción de una categoría como objeto de discurso social, como
categoría analítica y como sujeto de movilización política,
sin hacer suposiciones respecto a su permanencia o estabili-
dad a través del tiempo y el espacio. Esto significa que el
feminismo «blanco» o el feminismo «negro» de Gran Bretaña
no son categorías esenciales sino campos de cuestionamiento
inscritos en procesos y prácticas discursivas y materiales en
un terreno postcolonial. Representan una lucha por los mar-
cos políticos del análisis, los significados de los conceptos teó-
ricos, la relación entre teoría, práctica y experiencia subjetiva;
representa una lucha por las prioridades políticas y las formas
de movilización. Pero no deberían, bajo mi punto de vista,
entenderse como algo que construye a las mujeres «blancas» y
se permite la copia

«negras» como categorías opuestas, fijadas «esencialmente».

12 C. Ramazanoglu, Feminism and the Contradictions of Opressión,


©

London, Routledge, 1989. J. Acker, «The problem with patriarchy»,


Sociology, 23/2, 1989.
13 S. Hall, «Race, articulation and societies structured in dominance», en
Sociological Theories: Race and Colonialism, París, UNESCO, 1980, p. 328.
14 Laclau and Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical
Democratics Politics, Londres, Verso, 1985.
Diferencia, diversidad, diferenciación 115

Contribuciones más recientes al debate se centran, de algún


modo, en puntos diferentes y su objeto de crítica también es
diferente: interrogan al feminismo negro y/o antirracista.
Uno de los argumentos afirma que, lejos de facilitar la movi-
lización política, los discursos feministas negros/antirracis-
tas de las décadas de 1970 y 1980 en realidad obstaculizaban
el activismo político. Knowles y Mercer, por ejemplo, sostie-
nen que el énfasis de Carby y Bourne en la inscripción de la
desigualdad de raza y género en los procesos del capitalis-
mo, el colonialismo y los sistemas sociales patriarcales pro-
dujo argumentos funcionalistas —que el sexismo y el racis-
mo eran inherentes a estos sistemas y servían a las necesida-
des de estos sistemas para perpetuarse. Creían que esta
aproximación exigía nada menos que una lucha generaliza-
da contra estos «ismos», y de ese modo desechaban las res-
puestas políticas más localizadas a pequeña escala. Sin
embargo, sabemos que las décadas de 1970 y 1980 fueron
testigos de una amplia variedad de actividades políticas
tanto a nivel local como nacional. Su propio método para
abordar lo que asumían como defectos producidos por un
énfasis en el macroanálisis, podría sugerir que el racismo y
el sexismo fueran «considerados como una serie de efectos
que no tienen una causa única».15 Yo aceptaría los argumen-
tos de quienes afirman que el nivel de abstracción en el que
se delinean categorías tales como «capitalismo» o «relacio-
nes patriarcales» no ofrece directamente las líneas de inter-
vención para una estrategia y acción concretas, y también
que el racismo y el sexismo no son fenómenos monocausa-
les. Aun así, no estoy segura de en qué sentido tratar al racis-
mo y al sexismo como una «serie de efectos», ofrecería líne-
as más claras de respuesta política. El mismo «efecto» puede
ser interpretado desde una variedad de posiciones políticas
se permite la copia

y conducir a estrategias de acción muy diferentes. Ocupar


una posición política específica significa que se están hacien-
do ciertas suposiciones acerca de la naturaleza de los distin-
tos procesos que subrayan un fenómeno social, del que un
©

hecho particular puede ser efecto. Centrarse tan solo en los

15 C. Knowles y S. Mercer, «Feminism and anti-racism», en J. Donald y


A. Rattansi (eds.), «Race», Culture and Difference, Londres, Sage, 1992, p.
110.
116 Otras inapropiables

«efectos» puede invisibilizar las formas en que esos procesos


ideológicos y materiales trabajan, dificultando, así, nuestra
comprensión de las complejas bases de las desigualdades. Las
luchas específicas, aun resultando cruciales en la movilización
de sectores concretos, pueden, si se asumen como fin en sí
mismas, limitar desafíos más amplios para las desigualdades
sociales. El lenguaje de los «efectos», en cualquier caso, tam-
poco escapa de un subtexto implícito sobre sus «causas».
Comparto las reservas de Knowles y Mercer acerca de las
perspectivas políticas y analíticas en las que la desigualdad
social llega a personificarse en los cuerpos de los grupos
sociales dominantes —las personas blancas, los hombres, o
los individuos heterosexuales; en relación con el racismo, el
sexismo, o el heterosexismo—, pero no podemos ignorar las
relaciones sociales de poder que inscriben tales diferencias.
Los miembros de los grupos dominantes ocupan posiciones
«privilegiadas» en las prácticas políticas y materiales que
acompañan a estas divisiones sociales, aunque las formas
precisas en las que este poder interactúa con instituciones
específicas o relaciones interpersonales no puedan ser esti-
puladas de antemano, e incluso puedan mostrarse contra-
dictoras y ser desafiadas.
Una crítica, un tanto diferente, que se ha volcado sobre el
feminismo negro desafía su capacidad para representar algo
más que los intereses de las mujeres negras.16 Esto implica
una representación del feminismo negro como sectario en
comparación al feminismo radical o al socialista; compara-
ción que resulta problemática, al construir al feminismo
negro como algo externo al radical o al socialista. En la prác-
tica, la categoría «feminismo negro» en Gran Bretaña sólo
resulta realmente significante vis-à-vis la categoría de «femi-
se permite la copia

nismo blanco». Si, como he afirmado anteriormente, estas


dos categorías son contingentes y no esenciales, entonces no
se podría preguntar, como lo hace Tang Mai, si el «feminis-
mo negro» está abierto a todas las mujeres, sin hacer simul-
©

táneamente la misma pregunta al «feminismo blanco». La


caracterización que Tang Main hace del feminismo radical o
socialista como espacios «abiertos a todas las mujeres» des-

16 G. Tang Main, «Black women, sexism and racism: black or anti-


racist?», Feminist Review, núm. 37, 1990.
Diferencia, diversidad, diferenciación 117

afía la evidencia masiva que muestra que al menos en el


Reino Unido y en Estados Unidos, estos feminismos no han
conseguido tomar adecuadamente en consideración el racis-
mo y la experiencia de los grupos racializados de mujeres.
La ideología de «abierto para todas» puede, en realidad,
legitimar todo tipo de exclusiones de facto. El feminismo
socialista, por ejemplo, no puede incluir realmente a las
mujeres que están sometidas por el racismo a no ser que sea
un feminismo socialista antirracista, o a las mujeres lesbia-
nas a no ser que sea simultáneamente antiheterosexista, o a
las mujeres de las castas inferiores a no ser que sea anticas-
tista. Por eso estos temas no pueden plantearse en abstracto,
ni pueden solucionarse de una vez para siempre, sino
mediante una lucha política continua.
Por razones similares, la crítica que Floya Anthias y Nira
Yuval-Davis17 hacen de la categoría «negra», sobre la base de
que no atiende a la diversidad de exclusiones y subordina-
ciones étnicas, parece fuera de lugar. Los límites de un grupo
político formado en torno a preocupaciones específicas
dependen de la naturaleza de dichas preocupaciones y de su
significación e importancia en las vidas de las personas afec-
tadas por ellas. El feminismo negro construyó una agrega-
ción sobre los términos de la experiencia generizada del
racismo ejercido contra las personas negras. Los grupos étni-
cos blancos que no se veían afectados por esta forma parti-
cular de racismo no podían, por lo tanto, ser parte de esta
agregación. Esto no significa que sus experiencias de, diga-
mos, antisemitismo sean menos importantes. Sino que el
racismo contra los negros y el antisemitismo no pueden ser
subsumidos uno en el otro. Esto se hace patente de forma
inconfundible si comparamos la experiencia de una mujer
blanca judía y una mujer negra judía. La mujer negra está
se permite la copia

simultáneamente ubicada en dos discursos racializados.


Anthias y Yuval-Davis hacen algunas observaciones incisi-
vas acerca de la etnicidad como categoría de diferenciación
social, pero su argumento de que «el feminismo negro puede
©

ser una categoría demasiado amplia o demasiado estrecha

17 F. Anthias y N. Yuval-Davis, «Contextualising feminism», Feminist


Review, núm. 15, 1982.
118 Otras inapropiables

para las luchas específicas feministas»18 sigue siendo proble-


mática, ya que la misma emergencia del movimiento de
mujeres negras como respuesta histórica específica es testi-
monio de que la organización en torno a la categoría «muje-
res negras» es posible.
Podemos insistir en que el feminismo negro se constituyó
en articulación con numerosos movimientos políticos: el pro-
yecto de «Unidad Afro-Asiática» en torno al símbolo «negro»,
la política de clase, los movimientos anticoloniales, los movi-
mientos feministas globales y las políticas gays y lesbianas. Esta
multilocalidad marcó la formación de nuevas subjetividades e
identidades diaspóricas; produjo un nuevo sujeto político
poderoso. Como la mayoría de los sujetos políticos, este tam-
bién encarnaba su propia contradicción —en y de multiplici-
dad. Como vimos anteriormente, su aparente coherencia se
vio interrumpida por el debate y el cuestionamiento inter-
nos. Pero fue uno de los sujetos políticos más capacitadores
y potenciadores de la época. La metaforización de «lo negro»
en el feminismo negro –como ocurría generalmente con las
políticas de «lo negro»— extrajo este significante de sus
posibles connotaciones esencialistas y subvirtió la misma
lógica de sus codificaciones raciales. Al mismo tiempo, debi-
litó los discursos que concebían «lo negro» desde la neutra-
lidad de género al afirmar las especificidades de las expe-
riencias de las mujeres negras. En la medida en que «mujeres
negras» conformaba una categoría altamente diferenciada
en términos de clase, etnicidad y religión, e incluía a mujeres
que habían migrado desde África, el subcontinente asiático
y el Caribe tanto como a nacidas en Inglaterra, lo negro en el
«feminismo negro» implicaba una multiplicidad de la expe-
riencia, a la par que articulaba una posición de un sujeto
feminista particular. Más aún, al poner en primer plano una
se permite la copia

amplia gama de experiencias diaspóricas tanto en su especi-


ficidad local como global, el feminismo negro representaba
la vida negra en toda su amplitud, creatividad y complejidad.
©

El feminismo negro forzó una apertura de los cercamientos


discursivos que afirmaban la primacía de, por ejemplo, la clase
o el género por encima de los demás ejes de diferenciación;

18 Ibídem, p. 63.
Diferencia, diversidad, diferenciación 119

cuestionó la construcción de esos significantes privilegiados


como núcleos unificados autónomos.
La cuestión es que el feminismo negro no sólo planteó un
desafío muy serio a los racismos fundados en el color, su
importancia se extiende mucho más allá. El sujeto político
del feminismo negro desestabiliza al sujeto unitario mascu-
linista del discurso eurocéntrico, tanto como las narrativas
masculinistas de «lo negro» como color político, mientras
cortocircuita seriamente cualquier interpretación de «la
mujer» como una categoría unitaria. Es decir, aunque se
constituye en torno a la problemática de «la raza», el femi-
nismo negro desafía performativamente los confines de los
límites de su propia constitución.
El feminismo negro no impedía la coalición a través de
estos límites, y las mujeres negras han trabajado con mujeres
blancas y hombres, y con otras categorías a lo largo de un
amplio espectro de opinión política sobre diferentes temas de
interés común. Reconozco totalmente que la categoría «negro»
como color político ha dejado de tener la fuerza que solía
tener. Como parte del proyecto de la izquierda, ha pasado los
mismos apuros que el resto de la izquierda británica. Las polí-
ticas de la Nueva Derecha que alcanzaron su apoteosis en los
años de Thatcher, el fallecimiento del socialismo de Estado en
la Europa del este, la formación de la Unión Europea, la rees-
tructuración económica, el desarrollo de los movimientos
políticos religiosos, el resurgimiento de nuevas formas de cul-
tura juvenil, etc., han tenido un impacto significativo en todos
los aspectos de la vida. Estos cambios exigen nuevas configu-
raciones de la solidaridad. De cualquier modo, la cuestión es
que cualquier alternativa a la categoría política «negro», como
pueda ser «mujeres de color» o algún término aún no en uso,
se permite la copia

no pueden conformarse en lo abstracto ni pueden ser tampo-


co decididos de antemano. Sólo pueden emerger a través de
nuevos modos de cuestionamiento dentro de una economía y
un clima político transformados.
©

Mi propuesta de que los feminismos «blanco» y «negro»


sean abordados como prácticas discursivas históricamente
contingentes y no esencialistas, implica que las mujeres blan-
cas y negras puedan trabajar juntas para la creación de una
teoría y práctica feministas antirracistas. El tema clave,
entonces, no es la cuestión de la diferencia per se, sino que
120 Otras inapropiables

concierne al interrogante de quién define la diferencia, cómo


se representan los distintos sectores de las mujeres en los
discursos de la «diferencia», y si la «diferencia» diferencia
horizontal o jerárquicamente. Necesitamos más claridad
conceptual al analizar la diferencia.

Diferencia; ¿qué diferencia?

Que el concepto de «diferencia» está asociado con una varie-


dad de significados en diferentes discursos es un axioma. Pero
¿cómo debemos nosotras entender «la diferencia»? En el
marco analítico que intento formular aquí, la cuestión no está
en privilegiar el nivel macro o micro del análisis, sino en cómo
la articulación de discursos y prácticas inscribe relaciones
sociales, posiciones de sujeto y subjetividades. Lo que intere-
sa, entonces, es descubrir de qué forma los niveles macro y
micro son inherentes a las inscripciones mencionadas más
arriba. ¿Cómo designa la diferencia al «otro»? ¿Quién define
la diferencia? ¿Cuáles son las normas supuestas a partir de las
que un grupo se marca como «diferente»? ¿Cuál es la natura-
leza de las atribuciones que se afirman para caracterizar a un
grupo como diferente? ¿Cómo se constituyen, mantienen o
disipan las fronteras de la diferencia? ¿Cómo se interioriza
la diferencia en los paisajes de la psique? ¿Cómo se represen-
tan distintos grupos en diferentes discursos de la diferencia?
¿La diferencia diferencia horizontal o jerárquicamente? Pre-
guntas como estas plantean una problemática más general
acerca de la diferencia como categoría analítica. Yo sugeriría
cuatro modos en los que la diferencia puede ser conceptualiza-
da: diferencia como experiencia, diferencia como relación social,
se permite la copia

diferencia como subjetividad y diferencia como identidad.


©

a) Diferencia como experiencia

El concepto de experiencia ha sido central para el feminismo.


Los movimientos de mujeres han aspirado a dar una voz colec-
tiva a las distintas formas personales en las que las mujeres
Diferencia, diversidad, diferenciación 121

han experimentado las fuerzas físicas y sociales que constitu-


yen lo «femenino» en la «mujer». La cotidianeidad de las rela-
ciones sociales de género —desde el trabajo doméstico y de
cuidado, los empleos precarios y la dependencia económica,
hasta la violencia sexual y la exclusión de las mujeres de los
centros del poder político y cultural— ha adquirido una sig-
nificación nueva a través del feminismo a medida que éste la
ha rescatado del reino de lo «dado por supuesto» para inte-
rrogarla y desafiarla. Lo personal, con sus cualidades pro-
fundamente concretas pero aun así esquivas y sus múltiples
contradicciones, adquirió nuevos significados con el lema de
«lo personal es político» a medida que los grupos de con-
cienciación ofrecían los espacios para explorar las experien-
cias individuales, los sentimientos personales y la propia con-
cepción de las mujeres de sus vidas cotidianas. Como ha
señalado Teresa de Lauretis , esta original perspectiva femi-
nista revelaba la existencia de «una relación, por muy com-
pleja que pueda ser, entre socialidad y subjetividad, entre
lenguaje y conciencia, y entre instituciones e individuos...».19
De todas formas, la cuestión de las considerables limita-
ciones que presenta el método de la concienciación para la
acción colectiva no viene aquí al caso. El asunto es que la toma
de conciencia trajo a primer plano una de las perspectivas
feministas más potentes: que la experiencia no refleja de
forma transparente una realidad dada de antemano, sino
que es, en sí misma, una construcción cultural. De hecho, la
«experiencia» es un proceso de significación que constituye
la misma condición de posibilidad de la constitución de lo
que llamamos «realidad». De aquí la necesidad de re-enfati-
zar la noción de experiencia no como guía inmediata a la
«verdad» sino como una práctica de significación tanto sim-
bólica como narrativa; como una lucha por las condiciones
se permite la copia

materiales y los significados.


Contrariamente a la idea de un «sujeto de experiencia»
totalmente constituido a quien «las experiencias le ocurren»,
©

la experiencia es el lugar de la formación del sujeto. Esta


noción se halla a menudo ausente de las discusiones sobre
las diferencias en las que diferencia y experiencia se utilizan

19 T. De Lauretis (ed.), Feminist Studies/Critical Studies, Bloomington,


Indiana University Press, 1986, p. 5.
122 Otras inapropiables

principalmente como «términos de sentido común».20 No es


sorprendente que tales discusiones pierdan el hilo o estén
repletas de malentendidos cuando se enfrentan a las contra-
dicciones de la subjetividad y la identidad. Por ejemplo,
¿cómo habríamos de abordar el racismo de una feminista, la
homofobia de alguien sometido al racismo o, más aún, el
racismo de un grupo racializado hacia otro grupo racializado
—hablando cada uno, es de suponer, desde el lugar ventajo-
so de su propia experiencia—, si toda experiencia reflejara de
forma cristalina una «verdad» ya dada? Es más, ¿cómo
podría un proyecto como el feminismo, o el antirracismo, o
un movimiento de clase, movilizarse como una fuerza políti-
ca transformadora si no comenzara interrogándose acerca de
los valores y normas internamente asumidos que pueden
legitimar la dominación y la desigualdad naturalizando
«diferencias» particulares? Atender a este punto nos descu-
bre la experiencia como un lugar de cuestionamiento: un
espacio discursivo donde se inscriben, reiteran o repudian
posiciones de sujeto, subjetividades diferentes y diferencia-
les. Resulta fundamental, entonces, abordar la cuestión sobre
qué matrices ideológicas o campos de significación y repre-
sentación están en juego en la formación de sujetos que difieren,
y cuáles son los procesos económicos, políticos y culturales
que inscriben experiencias históricamente variables. Como
afirma Joan Scott: «la experiencia es siempre una interpreta-
ción y al mismo tiempo necesita ser interpretada».21
Pensar la experiencia y la formación del sujeto como
procesos es reformular la cuestión de la «agencia». El «yo»
y el «nosotras» que actúa no desaparece, lo que desaparece
es la noción de que esas categorías son entidades unifica-
das, fijadas, preexistentes, más que modalidades de multi-
localidad marcadas de continuo por las prácticas culturales
se permite la copia

y políticas cotidianas.
Resulta útil distinguir la diferencia como indicador de la
peculiaridad de nuestras «historias» colectivas de la diferen-
©

cia como experiencia personal que se inserta en una biografía


individual. Esta serie de «diferencias» se articulan constan-

20 M. Barret, «The concept of difference», Feminist Review, núm. 26, 1987.


21 J. W. Scott, «Experience», en J. Butler and J. W. Scott (eds.), Feminists
Theorize the Political, Neuva York, Routledge, 1992, p. 37.
Diferencia, diversidad, diferenciación 123

temente y no pueden mencionarse de forma separada. El sig-


nificado que se asigna a un acontecimiento dado varía enor-
memente de un individuo a otro. Cuando hablamos de la
constitución del individuo en sujeto a través de múltiples
campos de significación estamos invocando la inscripción y la
adscripción como procesos simultáneos por los que el sujeto
adquiere significados en relaciones socioeconómicas y cultu-
rales a la vez que adscribe significados al dar sentido a estas
relaciones en su vida cotidiana. En otras palabras, el modo en
que una persona percibe o interpreta un acontecimiento
variará de acuerdo a como «ella» esté culturalmente cons-
truida; la miríada de maneras impredecibles en las que estas
construcciones pueden configurarse en el flujo de su psique
e, invariablemente, el repertorio político de los discursos cul-
turales de los que dispone. Las «historias» colectivas, por
supuesto, también se construyen culturalmente en el proceso
de asignar significados a la cotidianeidad de las relaciones
sociales. Pero si bien las biografías personales y las historias
del grupo son mutuamente inmanentes, son también relacio-
nalmente irreductibles. El mismo contexto puede producir
varias «historias» colectivas diversas que diferencian tanto
como vinculan biografías a partir de su especificidades contin-
gentes. Al mismo tiempo, articular las prácticas culturales de
los sujetos así constituidos marca las «historias» colectivas
contingentes con nuevos significados variables.

b) Diferencia como relación social

El concepto de «diferencia como relación social» hace refe-


rencia a los modos en los que la diferencia se construye y
se permite la copia

organiza en relaciones sistemáticas a través de prácticas insti-


tucionales y de discursos económicos, culturales y políticos.
Es decir, subraya la sistematicidad a través de las contingencias.
Normalmente un grupo moviliza el concepto de diferencia
©

en este sentido cuando atiende a las genealogías históricas de


su experiencia colectiva. De hecho, la diferencia y la comuni-
dad son signos relacionales, que entretejen las narraciones de
la diferencia con las de un pasado compartido y un destino
colectivo. En otras palabras el concepto de «diferencia como
relación social» recalca la articulación históricamente varia-
124 Otras inapropiables

ble de regímenes macro y micro de poder en los que formas


de diferenciación como el género, la clase o el racismo son
instituidas en términos de formaciones estructuradas. La cate-
goría «clase obrera», por ejemplo, realza una posición en
estructuras de relaciones de clase. Pero decir esto no es sim-
plemente designar una posición subordinada en estructuras
socioeconómicas y políticas de poder, sino también subrayar
los sistemas de significación y representación que constru-
yen la clase como categoría cultural.
La diferencia, en el sentido de relación social, debe enten-
derse como las trayectorias históricas y contemporáneas de
circunstancias materiales y prácticas culturales que producen
las condiciones para la construcción de identidades de grupo.
El concepto hace referencia a la inscripción de las narraciones
colectivas compartidas en los sentimientos de la comunidad,
tanto si esta «comunidad» se ha constituido en encuentros
cara-a-cara o en encuentros imaginados —en el sentido que
sugiere Benedict Anderson.22 Es el eco de «la diferencia como
relación social» el que reverbera cuando se invocan los lega-
dos de la esclavitud, el colonialismo o el imperialismo; o
cuando se atrae la atención hacia la «nueva» división inter-
nacional del trabajo y las diferentes posiciones de distintos
grupos en sus sistemas de producción, intercambio y consu-
mo en continua evolución, que dan como resultado desi-
gualdades masivas en y entre diferentes partes del globo.
Pero esto no significa que el concepto de relación social opere
en algún «elevado nivel de abstracción» haciendo referencia
a lo «macro» como opuesto al contexto «micro». Los efectos de
las relaciones sociales no se reducen a las operaciones aparente-
mente distantes de las economías, políticas, o instituciones cul-
turales nacionales o globales, sino que se encuentran también
presentes en escenarios sumamente localizados del lugar de tra-
se permite la copia

bajo y del hogar —que, en algunos casos, como para las home-
workers23 o las ejecutivas de altos sueldos «trabajando desde
casa», se convierte tanto en una unidad de trabajo, aunque dife-
rentemente remunerada, como en un lugar de trabajo—, tanto
©

como en los intersticios de la mente donde se produce y debate

22 B. Anderson, Imagined Communities, Londres, Verso, 1983.


23 Personas que se dedican a trabajar en casa, realizando labores de cui-
dado y atención bajo condiciones de precariedad. [Nota de e.]
Diferencia, diversidad, diferenciación 125

la intersubjetividad. Todas estas esferas siempre han estado


entretejidas, pero en el momento histórico actual se articulan de
formas bastante particulares. Como afirma Donna Haraway:

El hogar, el lugar de trabajo, el mercado, la plaza pública, el


propio cuerpo..., todo puede ser dispersado y conectado de
manera polimorfa, casi infinita, con enormes consecuencias
para las mujeres y para otros; consecuencias que, en sí mis-
mas, son muy diferentes para personas diferentes y que con-
vierten los poderosos movimientos internacionales de oposi-
ción en algo difícil de imaginar, aunque esencial para la
supervivencia [...] Las tecnologías de la comunicación y las
biotecnologías son las herramientas decisivas para recons-
truir nuestros cuerpos. Estas herramientas encarnan y ponen
en vigor nuevas relaciones sociales para las mujeres a través
del mundo. [...] La frontera entre mito y herramienta, entre
instrumento y concepto, entre sistemas históricos de relacio-
nes sociales y anatomías históricas de cuerpos posibles,
incluyendo los objetos del conocimiento, es permeable.24

Las relaciones sociales, por tanto, son constituidas y funcio-


nan en todos los lugares de una formación social. Esto signi-
fica que, en la práctica, la experiencia como relación social y
la cotidianeidad de la experiencia vivida no habitan espacios
mutuamente excluyentes. Por ejemplo, si hablamos de «las
mujeres norteafricanas de Francia», estamos, por un lado,
refiriéndonos a las relaciones sociales de género de la post-
colonialidad en Francia. Por otro lado, estamos también
haciendo una afirmación acerca de la experiencia cotidiana
de esta post-colonialidad por parte de tales mujeres, aunque
no podamos especificar por adelantado la particularidad de
las vidas de esas mujeres individuales o cómo ellas interpre-
tan y definen esa experiencia. En ambas instancias, la cues-
tión de cómo se define la diferencia sigue siendo primordial.
se permite la copia

¿Están actuando aquí las percepciones de la diferencia como


un medio para afirmar la diversidad, o como un mecanismo
de prácticas excluyentes y discriminatorias? ¿Los discursos
de la diferencia legitiman políticas y prácticas estatales, pro-
©

gresistas u opresoras? ¿De qué formas están representadas


distintas categorías de mujeres en esos discursos? ¿Cómo
responden las propias mujeres a estas representaciones?

24 D. Haraway, Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza,


Madrid, Cátedra, 1991, pp. 279-80.
126 Otras inapropiables

Si se interpreta de este modo, es de esperar que la idea de dife-


rencia como relación social rechace cualquier reivindicación de
privilegiar «lo estructural» como el centro de mando de una
formación social, en beneficio de una perspectiva que ponga
en primer plano la articulación de los diferentes elementos.

c) Diferencia como subjetividad

La cuestión de la diferencia ha resultado central para el deba-


te teórico en torno a la subjetividad. Gran parte del debate
contemporáneo se centra en diversas críticas de las concep-
ciones humanistas del sujeto: como un «punto de origen»
unificado, unitario, racional y racionalista, centrado en la
conciencia, en términos de la idea de un «Hombre» universal
como la encarnación de una esencia histórica. Estas críticas
emergieron desde diversas posiciones. En el periodo poste-
rior a la II Guerra Mundial los proyectos del postestructura-
lismo, el feminismo, el anticolonialismo, el antiimperialismo
y el antirracismo habían, de un modo o de otro, discrepado
de las pretensiones de veracidad universal de las grandes
narrativas de la historia que situaban al «Hombre» europeo
en el centro. Pero aunque parte de estos proyectos hayan
coincidido en algunos aspectos, las problemáticas que han
abordado no son idénticas. Tampoco se han comprometido
siempre unos con otros. De hecho, una fuente importantísi-
ma de disenso entre ellos ha sido la relativa falta de atención
—en algunos casos, amnesia casi completa— de un proyecto
sobre temas centrales para el otro. Por ejemplo, muy pocos
de los primeros textos canónicos del postestructuralismo
abordan las cuestiones del colonialismo o la descoloniza-
se permite la copia

ción, ni se ocupan del racismo de un modo sistemático, a


pesar de su continua invocación de la «crisis» de
«Occidente». De aquí la importancia de las potentes críticas
al discurso del Hombre Europeo que emergieron de las
©

luchas anticoloniales por la independencia, mientras muje-


res, hombres y niños planteaban su desafío en África, Asia,
el Caribe y otras partes del mundo. Fanon protagonizó una
instantánea de esta crítica cuando exhortó a sus lectores a:
Diferencia, diversidad, diferenciación 127

Abandonar esta Europa donde nunca dejan de hablar del


Hombre y aún así asesinan a los hombres en cualquier lugar
donde los encuentran, en la esquina de cada una de sus pro-
pias calles, en todas las esquinas del globo... La misma
Europa donde nunca dejan de hablar del Hombre, y donde
nunca dejaron de proclamar que únicamente estaban ansio-
sos por el bienestar del Hombre: hoy sabemos con cuanto
sufrimiento ha pagado la humanidad cada uno de sus triun-
fos de la mente.25

Críticas similares se vierten desde movimientos de resisten-


cia antirracistas más recientes y desde lo que a veces se deno-
mina teoría del «discurso colonial». Estas corrientes de la
teoría y la política se entrecruzan con las del feminismo, los
movimientos pacifistas, las campañas medioambientales y
otros proyectos similares. Juntos enfatizan la noción de que
el sujeto no existe como algo eterno dado de antemano, sino
que es producido en el discurso. Aún así, por muy capacita-
dora que haya sido esta perspectiva sobre la producción del
sujeto, no podría por sí sola dar cuenta adecuadamente de
operaciones no-logocéntricas de la subjetividad. Como
Henriques et al. plantearon el problema, cómo evitaría uno,
por un lado:

Un tipo de determinismo discursivo que implique que las


personas están mecánicamente situadas en los discursos,
perspectiva que no deja lugar para explicar ni las posibili-
dades de transformación ni la resistencia individual al
cambio y que desatiende por completo la cuestión de la
motivación [y, por otro lado la noción de] un sujeto dado de
antemano que opta por posiciones de sujeto particulares?26

Tal dilema condujo a las feministas y otros grupos a regresar


al psicoanálisis —en especial a sus variantes post-estructura-
se permite la copia

listas y a la teoría de las relaciones objetales— y a repensar su


relación con las teorías de la «deconstrucción» y la «micropo-
lítica del poder». Se estaba dando un creciente reconocimien-
to de que las emociones, los sentimientos, deseos y fantasías
©

25 F. Fanon, The Wretched of the earth, Londres, Penguin, 1967, p. 251.


26 J. Henriques, W. Holloway, C. Urwin, C. Venn y V. Walkerdine,
Changing the subject: Psycology, Social regulation and subjectivity, Londres,
Mathuen, 1984, p. 204.
128 Otras inapropiables

más profundas de una persona, con sus múltiples contradic-


ciones, no podían entenderse simplemente en términos de los
imperativos de las instituciones sociales. Las nuevas lecturas
fueron sustanciales para una explicación más compleja de la
vida psíquica. Con su énfasis en un mundo interior permeado
por el deseo y la fantasía, el psicoanálisis interrumpe la idea
de un yo unitario, centrado y racional. Este mundo interior es
concebido como el lugar de lo inconsciente, de efectos impre-
decibles sobre el pensamiento y otros aspectos de la subjetivi-
dad. Al mismo tiempo, el psicoanálisis facilita la comprensión
de los modos en los que el sujeto-en-proceso queda marcado
por un sentido de coherencia y continuidad, el sentido de la
existencia de un «núcleo» que ella o él llama el «yo».
Jane Flax27 sostiene que, a pesar de todos sus defectos
—objeto de un debate considerable—, existen, en el pensa-
miento de Freud, abundantes ambigüedades que lo han hecho
accesible a diversas lecturas. Las ambigüedades en las teorías
de la libido y el inconsciente, por ejemplo, han posibilitado
que los límites entre el yo, el superyo y el ello, o entre lo psí-
quico, lo somático y lo cultural, se conciban como móviles y
permeables. El dualismo mente/cuerpo se vuelve problemá-
tico cuando el instinto o el impulso se conceptualizan simul-
táneamente como psíquico, somático y cultural; en este senti-
do una necesidad, una falta y un deseo nunca son una sensa-
ción puramente corporal sino constituida y regulada en el
seno de un espacio cultural. Las conceptualizaciones de
Freud de la mente como no-unitaria, conflictiva, dinámica,
encarnada y constituida por formas que no pueden ser «sin-
tetizadas u organizadas en una distribución de funciones o
por un control permanente y jerárquico»28 socava las ideas
racionalistas y empiristas sobre la mente y el conocimiento.
se permite la copia

En este tipo de apropiación feminista post-estructuralista


de Freud, los elementos constitutivos de la mente —yo, super-
yo y ello— emergen como conceptos relacionales constituidos
en y a través de experiencias «internas» y «externas». De ahí
©

que el sujeto se conciba como descentrado y heterogéneo en

27 J. Flax, Thinking Fragments: Psychoanalysis, Feminism and Post-moder-


nism in the Contemporary West, Berkeley, University of California Press,
1990.
28 Ibidem, p. 60.
Diferencia, diversidad, diferenciación 129

sus cualidades y dinámicas. La subjetividad, así, no se


encuentra nunca unificada ni fija sino fragmentada y en pro-
ceso constante. Para las feministas, estas consideraciones se
han mostrado especialmente atractivas, ya que problematizan
«la diferencia sexual»: la diferencia sexual es algo que debería
ser explicado en lugar de asumido. Hay quienes, en busca de
una comprensión no-reductora de la subjetividad, se han diri-
gido a la lectura lacaniana de Freud. Otras encuentran más
útil para el desarrollo de proyectos feministas retomar los
hilos argumentales de las relaciones objetales en el esquema
freudiano. Se han presentado, también, argumentos convin-
centes a favor de la importancia del psicoanálisis para el femi-
nismo, contrariamente a las críticas que afirman que la noción
de una identidad fragmentada constantemente en proceso
está reñida con el proyecto feminista de construir conciencia
opositiva a través de la acción. Sin embargo, algunas feminis-
tas se siguen mostrando por completo escépticas acerca del
psicoanálisis en su conjunto. El debate sigue aún sin amainar.29
Tal afirmación resulta esencial y productiva dadas las
muchas dificultades y problemas que continúan plagando la
metanarrativa del psicoanálisis y a las que las protagonistas
del debate, cada una a su manera, buscan hacer frente. Los
efectos psíquicos del racismo, por ejemplo, rara vez aparecen
en estas discusiones, si bien el discurso de la «raza» ha sido
un elemento central en la constitución de la categoría de
«Occidente». A pesar del trabajo de Fanon, el compromiso
con la problemática de la racialización de la subjetividad es
aún limitado. ¿Como podrían las narrativas psicoanalíticas
ser trastocadas mediante el abordaje del tema del racismo?
Hortense Spillers30 interroga al psicoanálisis aun cuando ella
se permite la copia

29 De Lauretis, Feminist Studies; Henriques et al., Changing the Subject; J.


Rose, Sexuality in the Field of Vision, Londres, Verso, 1986; C. Weedon,
Feminist Practice and Poststructuralist Theory, Oxford, Basil Blackwell,
1987; C. Penley, The Future of an Ilusion: Film, Feminism and
©

Psychoanalysis, Londres, Routledge, 1989; Flax, Thinking Fragments; and


R. Minsky, «“The trouble is it’s ahistorical”: the problem of the uncons-
cious in modern feminist theory», Feminist Review, núm. 36, 1990.
30 H. J. Spillers, «Manma’s Baby, Papa’s May Be: An American Gramar
Book», Diacritics, 1987; y «The permanent obliquity of an in(pha)llibly
straight: in the time of the daughters and fathers», en C. A. Wall (ed.),
Changing Our Own Words: Essays on Criticism, Theory and Writing by Black
Women, Rutgers, University Press, 1989.
130 Otras inapropiables

misma lo utiliza en su propio análisis. Su ambivalencia


resulta instructiva cuando dice:

Intento que este escrito sea, de hecho, la puesta a prueba de


una interrogación entrelazada de la que sólo estoy persuadi-
da al cincuenta por ciento. ¿Es el paisaje freudiano un texto
aplicable a —por no decir apropiado para— las situaciones
sociales e históricas que no reproducen momentos de sus
propios orígenes y movimientos históricos? El famoso com-
plejo/enfermedad de Edipo, que aparentemente subsume
el mito de Electra, está incrustado en la familia nuclear
«heterosexual» que dispersa sus semillas en formación
vertical. No únicamente «un hombre, una mujer», sino
estos dos —esta ley— en una ubicación específica de medios
culturales y económicos. Pero ¿cómo da cuenta este modelo,
si es que lo hace, de las personas y comunidades ocupadas o
cautivas —esclavos africanos en las américas— en las que los
derechos y los ritos de las funciones de género han sido histó-
ricamente explotados en forma de neutralidades sexuales?31

Su discurso subraya la cuestión planteada por Dalal32 en rela-


ción a lo que él califica de complicidad del paradigma jun-
giano con los discursos racializados. Enfatiza la importancia
y la necesidad de prestar mayor atención a cómo se concep-
tualiza la subjetividad en culturas distintas de las occidenta-
les y al tráfico transcultural entre las ideas.
A lo largo de los años se han llevado a cabo intentos de
combinar diferentes aproximaciones al estudio de la subjeti-
vidad. Teresa de Lauretis, por ejemplo, sugiere que semióti-
ca y psicoanálisis podrían ser movilizados conjuntamente
para expandir nuestra comprensión de la subjetividad.
Aboga a favor de «localizar la subjetividad en el espacio con-
torneado por los discursos de la semiótica y el psicoanálisis;
ni en la primera ni en el último, sino más bien en su inter-
se permite la copia

sección discursiva».33 El objetivo es explorar la relación entre


cambio personal y cambio social sin recurrir a explicaciones
reductoras basadas en la simple determinación.
©

31 Spillers, «The permanent obliquity of an in(pha)llibly straight», pp.


128-9 cit.,
32 F. Dalal, «The racism of Jung», Race and Class, núm. 2473,1988.
33 T. De Lauretis, Alicia ya no: Feminismo, Semiótica y Cine, Madrid,
Cátedra, 1992, p. 266.
Diferencia, diversidad, diferenciación 131

En otras palabras, necesitamos marcos conceptuales que


puedan dar cuenta por completo del hecho de que los pro-
cesos de formación de la subjetividad son a la vez sociales y
subjetivos; lo que puede ayudarnos a entender las inversiones
psíquicas que hacemos al asumir posiciones de sujeto espe-
cíficas que se producen social y culturalmente.

d) Diferencia como identidad

Nuestras luchas por los significados son también nuestras


luchas por diferentes modos de existir y devenir: diferentes
identidades.34 Los interrogantes acerca de la identidad están
íntimamente conectados con los de la experiencia, la subjeti-
vidad y las relaciones sociales. Las identidades se inscriben a
través de experiencias construidas culturalmente en las rela-
ciones sociales. La subjetividad —el lugar donde se desarro-
llan los procesos que dotan de sentido a nuestra relación con
el mundo— es la modalidad en la que la precaria y contra-
dictoria naturaleza del sujeto-en-proceso se significa o expe-
rimenta como identidad. Las identidades están marcadas por
la multiplicidad de posiciones de sujeto que constituyen el
sujeto. Así, la identidad nunca está fija, ni es singular; es más
bien una multiplicidad de relaciones en constante transfor-
mación. Pero en el curso de este flujo las identidades asumen
patrones específicos, como en un caleidoscopio, al trasluz de
conjuntos particulares de circunstancias personales, sociales
e históricas. De hecho, la identidad puede ser entendida
como ese mismo proceso por el cual la multiplicidad, contradicción,
e inestabilidad de la subjetividad se significa como dotado de cohe-
rencia, continuidad, estabilidad; como dotado de un núcleo —un
se permite la copia

núcleo en transformación constante pero núcleo al fin y al cabo—


que en un momento dado se enuncia como el «Yo».
Como ya hemos visto, la relación entre biografía personal e
©

historia colectiva es compleja y contradictoria. Mientras que las


identidades personales siempre se articulan con la experiencia
colectiva de un grupo, la especificidad de la experiencia vital

34 Trinh. T. Minh-ha, Women, Native, Other: Writing Post coloniality and


feminism, Indianapolis, Indiana University Press, 1989.
132 Otras inapropiables

de una persona, grabada a fuego en los minuciosos detalles


cotidianos de las relaciones sociales vividas, produce trayec-
torias que no reflejan simplemente la experiencia del grupo.
De forma similar, las identidades colectivas son irreductibles
a la suma de las experiencias de los individuos. La identidad
colectiva es el proceso de significación por el cual lo común
de la experiencia en torno a un eje específico de diferencia-
ción, digamos la clase, casta o religión se inviste de un signi-
ficado particular. En este sentido una identidad colectiva
dada borra parcialmente otras identidades, pero porta tam-
bién rastros de ellas. Esto quiere decir que la conciencia agu-
dizada de una construcción de identidad en un momento
dado siempre implica la supresión parcial de la memoria o
sentido subjetivo de la heterogeneidad interna de un grupo.
Pero esto no es en absoluto lo mismo que decir que las rela-
ciones de poder engastadas en la heterogeneidad desaparez-
can. ¿Cómo se transforman los patrones de las relaciones
sociales? Y si lo hacen, ¿resultaría algo contingente en rela-
ción a la potencia de los desafíos políticos? ¿Qué discursos y
qué prácticas específicas serán capaces de llevar a efecto esta
transformación?
La supresión parcial del sentido de una identidad
mediante la afirmación de otra no significa, sin embargo, que
diferentes «identidades» no puedan «coexistir». Pero si la
identidad es un proceso, entonces resulta problemático
hablar de una identidad existente como si ésta estuviera
siempre constituida de antemano. Es más apropiado hablar
de discursos, matrices de significados, y memorias históricas
que, una vez en circulación, pueden consolidar la base de la
identificación en un contexto económico, cultural y político
dado. Pero la identidad que se proclama es un re-hacer, una
construcción contextualmente específica. La proclamación de
se permite la copia

una identidad colectiva específica es un proceso político, dife-


renciado de la identidad como proceso en y de subjetividad.
El proceso político de proclamar una identidad colectiva
específica implica la creación de una identidad colectiva a
©

partir de la miríada de fragmentos del collage de la mente.


Este proceso bien puede generar una considerable disyun-
ción psíquica y emocional en el espacio de la subjetividad,
incluso aunque resulte potenciador en términos de políticas
de grupo.
Diferencia, diversidad, diferenciación 133

En otras palabras, la movilización política resulta crucial para


los intentos de re-inscripción de la subjetividad mediante la
apelación a la experiencia colectiva. Paradójicamente, lo que
se evoca como «lo común» tan sólo puede volverse significa-
tivo en articulación con un discurso de la diferencia. Las formas
precisas en las que se invoca el discurso de lo común y la dife-
rencia, los efectos para los diferentes segmentos del grupo que
busca movilizar, e incluso para aquellos a quienes construye
como fuera de este grupo, varían en gran medida. Pero tales
discursos son esencialmente variaciones de una interpretación
—re-memorada, re-colectada, re-trabajada, re-construida— de
la historia colectiva y, como tal, estos discursos de la identidad
—ya recurran a la noción de «cultura», o se centren en torno a
ideas referentes a las «circunstancias económicas o políticas
compartidas»— son articulaciones de la subjetividad en lo que
he llamado «diferencia como relación social».
Todas las formaciones discursivas son un lugar de poder,
pero no hay un único lugar de poder general en el que la
dominación, la subordinación, la solidaridad y la afiliación
basada en principios igualitarios, ni las condiciones para la
afinidad, convivencia y socialidad, se produzcan y garanti-
cen de una vez para siempre. En lugar de ello, el poder se
constituye de forma preformativa en y a través de prácticas
económicas, políticas y culturales. Las subjetividades, tanto
del dominante como del dominado, se producen en los
intersticios de estos lugares de poder múltiples y entrecru-
zados. La forma precisa de interacción de este poder en ins-
tituciones específicas y relaciones interpersonales resulta
difícil de predecir por adelantado. Pero si la práctica produce
poder entonces es también la práctica el medio para desafiar
a las prácticas opresoras de poder. De hecho, ésta es la impli-
cación de la perspectiva foucaultiana de que el discurso es
se permite la copia

práctica. De forma similar, una imagen visual también es una


práctica. La imagen visual también produce poder, de ahí la
importancia de comprender los desplazamientos de poder
en las tecnologías de la vista —artes visuales como la pintu-
©

ra y escultura, la práctica cinemática o danza, y los efectos


visuales de las tecnologías de la comunicación. Lo mismo
ocurre con el registro oral —la música y otros sonidos produ-
cen poder. De hecho, el cuerpo entero en toda su fisicalidad,
mentalidad y espiritualidad produce poder, y es en este espacio
relacional donde el dualismo mente/cuerpo desaparece. Una
134 Otras inapropiables

«identidad» particular adopta una forma en una práctica polí-


tica a partir de la relacionalidad fragmentada de la subjetividad
y se disuelve para emerger como un rastro en otra formación
identitaria. Como he enfatizado desde el principio, el sujeto
puede ser efecto de discursos, instituciones y prácticas, pero
en un momento dado el sujeto-en-proceso se experimenta a
sí mismo como el «Yo», y tanto consciente como inconscien-
temente repite y resignifica posiciones en las que está situa-
do y de las que está investido.
El concepto de diferencia, entonces, hace referencia a la
variedad de formas en las que los discursos específicos de la
diferencia se constituyen, cuestionan, reproducen y resignifi-
can. Algunas construcciones de la diferencia, tales como el
racismo, postulan unas fronteras fijas e inmutables entre gru-
pos que se significan como inherentemente diferentes. Otras
construcciones pueden presentar la diferencia como relacio-
nal, contingente y variable. En otras palabras, la diferencia no
siempre es un indicador de jerarquía y opresión. Por lo tanto,
la cuestión de si la diferencia resulta en inequidad, explota-
ción y opresión o en igualitarismo, diversidad y formas demo-
cráticas de agencia política es contextualmente contingente.
Stuart Hall considera la etnicidad como una modalidad
potencial de diferencia —indicadora de la especificidad de la
experiencia histórica, política y cultural colectiva— que
podría probablemente cuestionar y desafiar las construccio-
nes esencialistas de las fronteras del grupo. Sugiere que
debería ser posible rescatar la etnicidad de los discursos
racializados nacionalistas:

El hecho de que este enraizamiento de la etnicidad en la dife-


rencia fuera utilizado por el discurso racista como un modo
de negar la realidad del racismo y la represión, no significa
se permite la copia

que debamos permitir que el término sea permanentemente


colonizado. Esa apropiación tendrá que ser discutida, el tér-
mino desarticulado de su posición en el discurso del «multi-
culturalismo» y transcodificado, del mismo modo en que
previamente tendremos que rescatar el término «negro» de
©

su posición en un sistema de equivalencias negativas.35

35 S. Hall, «New Ethnicities», en Donald y Rattansi «Race» Culture and


Difference, p. 257.
Diferencia, diversidad, diferenciación 135

Sin embargo, en la práctica, no siempre resulta sencillo desen-


trañar estos movimientos diferentes de poder. Los discursos
nacionalistas pueden servir para ambos fines. Por ejemplo, las
etnicidades son propensas a ser apropiadas como significan-
tes de límites permanentemente fijos. De aquí que el «carác-
ter inglés» de una clase en particular pueda llegar a repre-
sentarse a sí misma a través del racismo como «britanidad»
enfrentada a aquellas etnicidades que subordina, como las de
los irlandeses, escoceses, galeses, británicos negros, o las del
mundo anteriormente colonizado —aunque, como señalamos
antes, las etnicidades blancas/europeas son subordinadas de
un modo diferente a las «no blancas», «no europeas». Más
aún, las etnicidades siempre tienen un sesgo de género y no
existe garantía de que su recuperación no esencialista vaya a
desafiar simultáneamente las prácticas patriarcales a no ser
que esta tarea se proponga como un objetivo consciente. De
hecho, no puede darse por sentado que el propio proceso de
recuperación no inscriba diferencias esencialistas. Esto
puede resultar especialmente problemático para las mujeres
si los valores culturales que los grupos en cuestión excavan,
refunden y reconstruyen son los mismos que afianzan la
subordinación de la mujer.
Aunque he abogado en contra del esencialismo, es claro
que no resulta fácil enfrentarse con este problema. En su
necesidad de crear nuevas identidades políticas, los sectores
dominados a menudo apelarán a vínculos de experiencia
cultural común con el fin de movilizar al grupo. En ese pro-
ceso pueden reivindicar una diferencia aparentemente esen-
cialista. Spivak36 y Fuss37 han presentado argumentos a favor
de tal «esencialismo estratégico». Ellas sugieren que puede
merecer la pena correr el «riesgo» del esencialismo si ello se
hace desde el lugar ventajoso de una posición de sujeto
se permite la copia

dominado. Esto seguirá siendo problemático si el desafío a


una forma de opresión conduce al reforzamiento de otra.
Parece imprescindible que no compartimentalicemos las
opresiones sino que formulemos, en vez de ello, estrategias
©

para desafiarlas conjuntamente sobre la base de una com-

36 G. C. Spivak, In Other Worlds: Essays in Cultural Politics, Londres,


Methuen, 1987.
37 D. Fuss, Essentially Speaking, Londres, Routledge, 1989.
136 Otras inapropiables

prensión de cómo se interconectan y articulan. Creo que el


marco que he perfilado aquí puede ayudarnos a hacerlo. Es
una perspectiva que clama por un cuestionamiento continuo
del esencialismo en todas sus variantes.

se permite la copia
©
7. Genealogías, legados, movimientos 1

M. Jacqui Alexander y
Chandra Talpade Mohanty2

Genealogías feministas

Empezamos a trabajar en este libro en 1988, después de haber


sido mutuamente presentadas en la primera y única asam-
blea del Women of Color Institute for Radical Research and Action
(Instituto de mujeres de color para la investigación y acción
radical). Esta asamblea fue un intento por parte de un grupo
de alrededor de una docena de mujeres de color y de diver-
sas nacionalidades, de colaborar en la transformación de la
política feminista y de establecer una institución autónoma
que fuera útil a las mujeres comprometidas con la justicia
social y la praxis revolucionaria. Este libro fluye de la visión
colectiva que elaboramos a lo largo de aquel verano. Y si bien
el camino no ha sido lineal ni fácil, ha conformado nuestro
compromiso político e intelectual compartido; hemos cam-
biado, crecido, hemos aprendido a sostenernos la una a la
otra a lo largo de los últimos siete años. Nos hemos desafiado
se permite la copia

1 Publicación original: M. Jacqui Alexander y Chandra Talpade Mohanty,


«Genealogies, Legacies, Movements», introducción a la compilación edita-
da por las mismas autoras, Feminist Genealogies, Colonial Legacies, Democratic
©

Futures, Nueva York/Londres, Routledge, 1997. [N. de e.]


2 Nos gustaría agradecer a Zillah Eisenstein su cuidadosa y provoca-
dora respuesta a este ensayo —realmente nos hemos beneficiado de su
lectura. Como siempre, agradecemos a nuestras familias —Jinny
Chalmers, Maya Alexander y Satya Mohanty— que nos hayan ofrecido
un apoyo emocional e intelectual inconmensurable a lo largo de la vida
de esta compilación.

137
138 Otras inapropiables

mutuamente para ser claras; hemos conseguido sintonizar


recíprocamente con el pulso del pensamiento de la otra —de
lo que ya es nuestro pensamiento— y hemos desarrollado
un lenguaje analítico que verdaderamente, ahora, nos per-
tenece a ambas. Este proceso nos ha exigido el abandono de
las creencias heredadas acerca de la propiedad del conoci-
miento. Y, como consecuencia, sabemos ya que nuestras mejo-
res ideas son producto del trabajo y del pensamiento conjunto.
Las dos llegamos a los estudios feministas en la academia
estadounidense a través de una serie de dislocaciones geo-
gráficas, políticas e intelectuales. Nuestras trayectorias se
hallaban marcadas por un proceso educativo en el que la
lucha anticolonial contra los británicos —en Trinidad y
Tobago y en India— y la fundación del Estado-nación
impregnaban todo el tejido de la vida cotidiana. Nuestras
conciencias fueron, así, formadas por la carga de colonialis-
mos persistentes y por la eufórica promesa del nacionalismo
y la autodeterminación. Ambas heredamos la creencia de
que la educación era una estrategia clave para la descoloni-
zación, más que un mero camino hacia la obtención de unas
credenciales de normalización y la posibilidad de una movi-
lidad ascendente. En otras palabras, para nosotras la educa-
ción siempre estuvo vinculada a la práctica política del ser-
vicio a la comunidad y a la nación. Sin embargo, el naciona-
lismo, en esta etapa, había hecho muy poco por transformar
las prácticas de la educación colonial, al tiempo que tampo-
co nos había imaginado necesariamente a nosotras —en el
caso de Jacqui, hija ahora lesbiana; en el de Chandra, mujer
no madre— como las legítimas herederas de la nueva
nación. Entonces como ahora, la nación y la ciudadanía esta-
ban fuertemente basadas en premisas enraizadas en pará-
metros normativos de masculinidad y heterosexualidad.
se permite la copia

Las dos nos trasladamos a los Estados Unidos de Norte


América hace más de quince años. Ninguna de las fracturas
raciales, religiosas o de clase/casta que habíamos experimen-
©

tado previamente podría habernos preparado para el dolo-


roso terreno racial con el que nos encontramos. Nosotras no
nacimos mujeres de color, nos convertimos en mujeres de
color. De las africanas estadounidenses y de las mujeres esta-
dounidenses de color, aprendimos la marca peculiar del
racismo estadounidense norteamericano y sus constreñidas
Genealogías, legados, movimientos 139

barreras raciales. Los residuos psíquicos de los distintos


colonialismos nos mostraron lo necesario que era confrontar
los matices en la interconexión de las luchas por la descolo-
nización. Efectivamente, el racismo contra las personas afri-
canas estadounidenses era distinto, pero estaba conectado al
racismo contra las personas chicanas, nativas o asiáticas. El
desafío de negociar esta política de fragmentación racial es el
que nos ha traído hasta este momento. A través de una polí-
tica de descolonización, hemos aprendido que la solidaridad
racial es necesaria, incluso aunque signifique enfrentarse con
nuevas diferencias en lo que se refiere a la conciencia oposi-
tiva y relacional. Nuestra propia experiencia en los múltiples
lugares del racismo en los Estados Unidos también nos ha
convencido de que debemos comprender tanto las manifes-
taciones locales del poder como las propiamente globales.
La institucionalización de una definición particular de
los Women’s Studies en la academia estadounidense, ha
hecho patente un nuevo conjunto de contradicciones en
nuestras vidas como activistas feministas, investigadoras y
profesoras. Por «contradicciones» nos referimos a la sensa-
ción de alienación, dislocación y marginación que a menudo
acompaña las posiciones racializadas dentro de las institu-
ciones blancas. Como mujeres «inmigrantes» de color, no
tenemos el color, el género o la nacionalidad «apropiados»
en los términos en los que se autodefine la academia esta-
dounidense o, por extensión, el establishment de los Women’s
Studies. En el contexto de los Women’s Studies, el color de
nuestro género importa. La maquinaria de la ciudadanía
desplegada por el Estado, que nos sitúa como extranjeras
residentes —«desviadas» no ciudadanas; inmigrantes «lega-
les»—, opera de forma similar en los Women’s Studies: codifi-
ca un estatus de extranjera que es bien distinto del estatus de
se permite la copia

extranjera de las mujeres de color nacidas en los Estados


Unidos.3 Por ejemplo, nuestra racialización como mujeres
caribeña e india ha sido asimilada en una narrativa estadou-
nidense de racialización naturalizada entre los africanos
©

estadounidenses y los euroestadounidenses. Nuestras expe-


riencias pueden ser reconocidas y tenidas en cuenta tan sólo

3 David Evans, Sexual Citizenship: The Material Construction of Sexualities,


Nueva York/Londres, Routledge, 1993.
140 Otras inapropiables

hasta el punto en que se parecen a las de las mujeres africa-


nas estadounidenses.
Sin embargo, las especificidades de nuestras genealogías
nacionales y culturales —mujeres negras y oscuras— y nues-
tros estatus de inmigrantes son constantemente utilizados
para situarnos como extranjeras, silenciando, así, la legitimi-
dad de nuestra referencia a las experiencias de ser sometida
a distintos racismos.4 Trabajar solidariamente con distintas
mujeres de color es, en ocasiones, insuficiente para subvertir
por entero los actos de fragmentación racial que intentan
separar a las mujeres de color entre sí. Somos —diferente-
mente— menos amenazadoras que las mujeres africanas
estadounidenses para las mujeres blancas, quienes habitual-
mente prefieren tratar con nuestra condición de «extranje-
ras» más que con nuestra condición racializada en los Estados
Unidos. Esto, a su vez, en ocasiones crea relaciones divisorias
entre nosotras y las feministas africanas estadounidenses. A
menudo experimentamos las contradictorias ironías de la
invisibilidad e hipervisibilidad que Evelyn Hammonds des-
cribe en un ensayo recogido esta compilación.5 De hecho, la
experiencia de estas contradicciones es en parte responsable
de nuestra particular lectura de la injusticia y de nuestra
visión de la transformación social. A partir de un potente com-
promiso intelectual y político con el feminismo, seguimos
comprometidas con la creación de comunidades feministas,
fundadas sobre terrenos distintos a los que hemos experi-
mentado en muchos círculos académicos liberales.
Las genealogías feministas que se encuentran tras este
proyecto pueden representarse en diversos niveles. A parte
se permite la copia

4 Stuart Hall, «Cultural Studies and Its Theoretical Legacies», en


Lawrence Grossberg et al (ed.), Cultural Studies, Nueva York/Londres,
Routledge, 1992, pp. 277-294.
5 Las autoras hacen nuevamente referencia a la condición introductoria
©

de este artículo al libro de Routledge Feminist Genealogies, Colonial


Legacies, Democratic Futures. La publicación de este artículo, plagado de
referencias a los ensayos que componen el mencionado título, cerrando
una compilación que, en castellano, tiene la pretensión de obtener resul-
tados editoriales y políticos similares, responde a la enorme importancia
que para el feminismo post-colonial ha tenido el trabajo de comprensión
intelectual y de composición política realizado por las autoras. [N. de e.]
Genealogías, legados, movimientos 141

de nuestras propias genealogías individuales y colectivas,


queremos considerar: 1) los contornos de la práctica intelec-
tual y política feminista tal y como se encuentra institucio-
nalizada en los programas de los Women’s Studies de las uni-
versidades y colleges estadounidenses; 2) los efectos de las
teorías postmodernas en la teorización de la experiencia, la
conciencia y las identidades sociales de las mujeres de color,
especialmente en términos de la formulación de los feminis-
mos globales o internacionales; y 3) la significación del auto-
examen y la reflexión sobre las genealogías de las organiza-
ciones feministas. En el último caso, queremos ofrecer aquí
una forma relacional y comparativa de pensar la praxis femi-
nista que se encuentra enraizada en el análisis y las visiones
concretas de las autoras y de las comunidades recogidas en
esta colección.
El propio título de este volumen tiene su historia. Durante
los últimos siete años, la compilación ha cambiado de nombre
dos veces. Titulada originalmente Third World Feminism: A
Reader, y después Movements, Histories, Identities: Genealogies of
Third World Feminism, finalmente se titula Feminist Genealogies,
Colonial Legacies, Democratic Futures. A parte de claras conti-
nuidades en el proyecto intelectual y político del libro, los
cambios en el título reflejan sutiles movimientos en el terreno
material y discursivo; en las prácticas organizativas de las
comunidades feministas alrededor del mundo. Uno de los
efectos que ha producido la globalización en las últimas dos
décadas ha sido una nueva visibilidad de los asuntos de las
mujeres en el escenario mundial. Como botón de muestra se
podría mencionar el elevado número de conferencias inter-
nacionales sobre temas como la violencia contra las mujeres,
la salud de las mujeres, la política reproductiva y el «control
de la población». Al mismo tiempo, el feminismo ha sido
se permite la copia

cuantificado para el consumo en el mercado global de las


ideas —denominamos a este feminismo «feminismo de libre
mercado». Discrepamos con este feminismo de libre merca-
do acerca de la construcción de nuestra visión de los futuros
©

democráticos. Las experiencias, las historias y las autorrefle-


xiones de las feministas de color y de las feministas del
Tercer Mundo deben permanecer en el centro de la antolo-
gía, pero los cambios geopolíticos y las formas particulares de
la globalización en la última década exigen un enfoque activo
y deliberado que aborde las cuestiones de las genealogías, los
142 Otras inapropiables

legados y los futuros en clave de praxis feministas compara-


das. De ese modo, hemos elegido intencionadamente carto-
grafiar esos caminos específicos por los que las comunidades,
las organizaciones y los movimientos feministas recurren y
reflexionan sobre algunos momentos de sus propias histo-
rias colectivas, de sus luchas por la autonomía. Por tanto,
nuestra utilización de términos como «genealogías» y «lega-
dos» no intenta sugerir una herencia congelada o encarnada
de la dominación y de la resistencia, sino un interesado y
consciente pensar y repensar la historia y la historicidad. Un
repensar que tiene como núcleo la autonomía de las mujeres
y la autodeterminación.
Después de más de dos décadas de luchas en torno a las
cuestiones del racismo y heterosexismo, en los programas de
los Women’s Studies y los Gender Studies de la academia esta-
dounidense se sigue propugnando una caracterización par-
ticular del género —naturalizada a través de la historia y las
experiencias de las mujeres euroestadounidenses urbanas y
de clase media. Al no desafiar la hegemonía de lo blanco —
y del capitalismo— en las instituciones académicas, estos
programas, por ejemplo los Women’s Studies, terminan a
menudo reforzando los regímenes de raza y el eurocentris-
mo heredado. A pesar de que en la década de 1970 la formu-
lación de la categoría de género y su difusión a través de una
variedad de disciplinas fue uno de los éxitos más importan-
tes de los Women’s Studies, en la década de 1990 han surgido
nuevos desafíos intelectuales, radicalmente diferentes. Estos
desafíos obligan a los Women’s Studies a enfrentarse, ineludi-
blemente, con algunas cuestiones cruciales en relación con la
división de clase, la racialización y heterosexualización que
opera en la política estadounidense y en los mismos progra-
mas de los Women’s Studies. Por ejemplo, la reciente difusión
se permite la copia

de la cultura del consumo, siempre eurocéntrica, en conso-


nancia con una mayor consolidación del capital multinacio-
nal, pone en primer plano la necesidad de teorizar las formas
en las que la desigualdad estructura los valores, los deseos y
©

las necesidades de los diferentes grupos y clases de mujeres.


Cualquier comprensión de las experiencias de las mujeres
que se base en una concepción estrecha del género sería sim-
plemente incapaz de enfocar los efectos homogeneizadores y
jerarquizadores de los procesos económicos y culturales, que
son el resultado de esta cultura de consumo.
Genealogías, legados, movimientos 143

Esta es la razón por la que Genealogías pretende ofrecer una


concepción del feminismo comparativa, relacional y asenta-
da históricamente, que difiera de forma significativa de la
concepción liberal-pluralista del feminismo, herencia de las
raíces predominantemente liberales de la praxis feminista
estadounidense.6 Claramente, una de las cosas que se refleja
aquí es la convergencia entre el modo en que el género apa-
reció como una categoría primaria de análisis y la composi-
ción social, demográfica y de clase de quienes, de hecho, teo-
rizan el género en la academia estadounidense. En otras
palabras, queremos sugerir un vínculo entre las posiciones
de poder ostentadas por las mujeres blancas en los Women’s
Studies, el sujeto de su teorización y el tipo de herramientas
analíticas que emplean.
Además, no se ha producido un compromiso intelectual,
analítico y político serio con las teorizaciones de las mujeres de
color. Por el contrario, este trabajo se ha visto frecuentemente
apropiado y a menudo invisibilizado, de tal modo que no
figura ni en la memoria institucional, ni en las formulaciones
canónicas del saber de los Women’s Studies. En su detallado
análisis de la «colonización» del trabajo de las mujeres de color
en la teoría feminista postmoderna, Paula Moya demuestra
que la alusión ritual a las mujeres chicanas refleja un postmo-
dernismo cuyo sustento epistemológico es interrumpido por
las propias vidas y análisis de las mujeres de color.
El multiculturalismo liberal-pluralista que a menudo se
hace patente en los programas de Women’s Studies —que
dedican una o dos semanas a las «mujeres de color» y la
«sexualidad»— es testimonio de esta apropiación de la obra
de las mujeres de color. La inclusión nominal de nuestros
textos sin reconceptualizar por completo la base blanca, de
se permite la copia

clase media y genéricamente sesgada del conocimiento, nos


consume y nos silencia efectivamente. Esto quiere decir, en
efecto, que nuestras teorías son plausibles y comportan un
©

6 Ejemplos de este análisis, bien fundado históricamente, que ofrece una


crítica implícita y explícita al feminismo liberal son Maria Mies, Lace
Makers of Narsapur: Indian Housewives Produce for the World Market, Zed
Press, Londres, 1983, y Patriarchy an Accumulation on a World Scale, Zed
Press, Londres, 1986; y Vron Ware, Beyond the Pale: White Women, Racism
and History, Verso, Londres, 1992.
144 Otras inapropiables

peso explicativo únicamente en relación con nuestras expe-


riencias específicas, pero no muestran ningún valor de uso
para el resto del mundo. Más aún, la teoría postmoderna, en
su urgencia por disociarse de toda forma de esencialismo, ha
generado una serie de confusiones epistemológicas en lo que
se refiere a las interconexiones entre localidad, identidad y
construcción del conocimiento. Así, por ejemplo, cuestiones
localizadas de la experiencia, la identidad, la cultura y la his-
toria que nos capacitan para entender procesos específicos
de dominación y subordinación, son a menudo rechazados
por las teorías postmodernas como reiteraciones de una
«esencia» cultural o una identidad estable y unificada.7
El discurso postmoderno intenta desplazarse más allá del
esencialismo pluralizando y disolviendo la estabilidad y la
utilidad analítica de las categorías de raza, clase, género y
sexualidad. Esta estrategia a menudo niega la posibilidad de
cualquier recuperación válida de estas categorías o de las
relaciones por medio de las cuales son constituidas. Si disol-
vemos la categoría de raza, por ejemplo, se vuelve difícil
reclamar la experiencia del racismo. Sin duda, el racismo y
los procesos de racialización son mucho más complicados
ahora que cuando W. E. Du Bois predijo que el «problema de
la línea del color es el problema del siglo XX».8 Pero las rela-
ciones de dominación y subordinación que, a través de los
procesos de racialización y el racismo, son nombradas y arti-
culadas, aún existen y aún requieren una explicación y un
compromiso analítico. Los realineamientos globales y la flui-
dez del capital simplemente han conducido a una mayor con-
solidación y exacerbación de las relaciones de dominación y
explotación capitalistas —que en esta compilación referimos
como «procesos de recolonización». Así, mientras la actual
«línea de color» puede sugerir la existencia de formas más
se permite la copia

complicadas de identidad racial, las relaciones de jerarquía


©

7 Michael Warner, Fear of a Queer Planet: Queer Politics and Social Theory,
University of Minnesota Press, Minneapolis y Londres, 1993; y Cathy
Cohen, «Punks, Bulldaggers and Welfare Queens-. The Real Radical
Potential of Queer Politics» ponencia presentada en la conferencia
Identity, Space and Power, City University of Nueva York, Marzo 1995.
8 W. E. Du Bois, The Souls of Black Folk, Nueva York, New American
Library, 1969.
Genealogías, legados, movimientos 145

entre grupos y geografías raciales no han desaparecido. Sin


embargo, la raza no figura en la mayoría de las consideraciones
del postmodernismo del «Primer Mundo».9 Y, como de forma
persuasora sugieren Inderpal Grewal y Caren Kaplan, son las
consecuencias culturales, políticas, económicas y sociales de las
situaciones y transformaciones históricas en la (post)moderni-
dad las que posibilitarán una concepción más sofisticada de las
prácticas feministas, transnacionales y postcoloniales.10
Comprender las diversas construcciones del yo y la iden-
tidad en el capitalismo tardío —cuando la transnacionaliza-
ción confunde lo postcolonial y la relación de las mujeres, y
cuando límites fluidos permiten la movilidad del «libre» mer-
cado del capital— es una empresa complicada que no puede
ser simplemente invocada afirmando identidades fluidas o
fracturadas. ¿Qué tipos de «yo» racializado y generizado son
producidos en la unión de lo transnacional y lo postcolonial?
¿Existen tipos de «yo» formados fuera del contrato heterose-
xual hegemónico que sean capaces de desafiar las concepcio-
nes dominantes (occidentales) de la construcción de la identi-
dad? ¿Son conmensurables con el yo múltiple, construido bajo
el postmodernismo (estadounidense)? ¿Qué tipo de prácticas
transformadoras son necesarias para desarrollar tipos de yo
no hegemónicos? ¿Éstas prácticas son conmensurables con las
luchas organizacionales feministas por la descolonización?
Estas son algunas de las preguntas urgentes con las que bus-
camos comprometernos, y que las autoras de esta colección
recogen. Estas preguntas nos obligan a tomarnos seriamente
la autoridad y la validez de la conciencia y las experiencias de
dominación y de lucha en la formación de identidades que
sean simultáneamente sociales y políticas.
se permite la copia

9 Inderpal Grewal y Caren Kaplan, Scattered Hegemonies: Posmodernity


and Transnational Feminist Practice, University of Minnesota Press,
Minneapolis, 1994; bell hooks, Outlaw Culture: Resisting Representations,
©

Routledge, Nueva York, 1994 y Teaching to Transgress, Routledge, Nueva


York, 1994; Barbara Christian, «The Race of Theory» en Abdul Jan
Mohamed y David Lloyd, (eds.), The Nature Context of Minority Discourse,
Oxford University Press, Nueva York, 1990, pp. 37-49; y Wahneema
Lubiano, «Shuckin’ Off the African American Native Other: What’s “Po-
Mo” Afro-America», Cultural Critique 18 (Primavera de 1991), pp. 149-86.
10 Grewal y Kaplan, op. cit.
146 Otras inapropiables

La rápida institucionalización de una marca particular de


teorización postmoderna en la academia estadounidense
resulta significante por otra razón. La base del conocimiento
de una disciplina tiene un efecto profundo tanto en las estra-
tegias pedagógicas como en el tipo de conocimiento que se
desarrolla en el aula. Ésta es una de las cuestiones centrales
que examina Leslie Roman cuando afirma que el «postmo-
dernismo relativista» —que rechaza las «epistemologías rea-
listas» que «sopesarían las afirmaciones subjetivas de una
persona o grupo contra y en relación con un análisis estruc-
tural adecuado de sus posiciones sociales objetivas»— ha
conducido a cierta forma de relativismo racial o a cierta posi-
ción «defensiva» blanca en el aula. Por «defensividad blanca»
Roman se refiere a «la aserción relativista de que los blancos,
como “la gente de color”, son los sujetos oprimidos de la his-
toria del racismo». Este tipo de posición defensiva evita que
los profesores asuman posiciones pedagógicas antirracistas
críticas que juzgarían diferencialmente entre «los lugares epis-
témicos de los grupos fundamentalmente oprimidos y los
lugares que se encuentran en posiciones más privilegiadas».11
No podemos sobreestimar la necesidad de una autoreflexivi-
dad consciente acerca de la complicidad de los marcos inte-
lectuales en política, puesto que verdaderamente hay algo en
juego en el propio proceso de reautorizar y mediar con las
desigualdades o con las políticas regresivas de distinto tipo.12
Otro movimiento intelectual y político, que se ha inspira-
do en las anteriores formulaciones de una sororidad global,
ha echado raíces en la academia en la década de 1990 a tra-
vés de las discusiones en torno al feminismo internacional.13

11 Leslie Roman, «White Is a Color! White Defensiveness, Postmodernism,


se permite la copia

and Anti-Racist Pedagogy» en Cameron McCarthy y Warren Crichlow


(eds.) Race, Identity and Representation in education, Nueva York, Routledge,
pp. 71-88.
12 R. Radhakrishnan, «Feminist Historiography», en E. Meese y A.
Parker (eds.) The Difference Within: Feminism and Critical Theory,
©

Amsterdam, J. Benjamins Publishing Co., 1989, pp. 189-203.


13 Robin Morgan, Sisterhood Is Powerful: An Anthology of Writings from
the Women’s Liberation Movement, Nueva York, Random House, 1970, y
Sisterhood Is Global: The International Women’s Movement Anthology,
Garden City, N. Y., Anchor Press/Doubleday, 1984; y Charlotte Bunch,
Passionate Politics: Feminist Theory in Action, Essays, 1968-1986, Nueva
York, St. Martin’s Press, 1987.
Genealogías, legados, movimientos 147

Más allá del hecho de que estas apelaciones a un feminismo


internacional casi siempre se originan en Occidente, hay
ciertos temas comunes que las unifican. A partir de una epis-
teme liberal, a menudo sin explicitar, tienden a invocar un
modelo de diferencia-como-pluralismo en el que las mujeres
del Tercer Mundo soportan la desproporcionada carga de la
diferencia. El feminismo «internacional» abraza una aproxi-
mación a la articulación de las «varias voces» con el fin de
postular un feminismo inclusivo —las apelaciones a una
«sororidad global» a menudo tienen como premisa un
modelo de centro/periferia en el que las mujeres de color o
las mujeres del Tercer Mundo constituyen la periferia. La
raza es invariablemente borrada de cualquier concepción de
lo internacional —basada en la nación y desprovista de ele-
mentos raciales—, sobre todo a causa de una estricta separa-
ción entre lo internacional y lo doméstico, o a una concep-
ción de las formas en las que se constituyen mutuamente. A
gran escala, por debajo de la concepción de lo internacional
se encuentra una noción del patriarcado universal operando
de forma transhistórica, con el objeto de subordinar a todas
las mujeres. La única estrategia metodológica plausible aquí,
entonces, es hacer visible e inteligible —para Occidente— las
prácticas organizativas y los escritos de las mujeres del
Tercer Mundo, a través de un discreto enfoque de «estudio
de casos». Más aún, lo «internacional» se ha colapsado den-
tro de la cultura y los valores del capitalismo.
De estas definiciones de lo «internacional» —a lo que, de
ahora en adelante nos referiremos como «transnacional»— al
menos tres elementos se encuentran ausentes: 1) un modo
de pensar sobre las mujeres situado en los distintos contex-
tos a lo largo del mundo, en diferentes espacios geográficos,
más que en relación con todas las mujeres del planeta; 2) una
se permite la copia

concepción del conjunto de las relaciones de desigualdad


entre las personas y los pueblos, más que como un conjun-
to de rasgos encarnados en todos los no ciudadanos esta-
dounidenses —particularmente porque la ciudadanía esta-
©

dounidense continúa basándose en un régimen de premisas


blanco, eurocéntrico, masculinista y heterosexista; y 3) una
consideración del término «internacional» en relación con el
análisis de los procesos económicos, políticos e ideológicos
que ponen en primer plano las estrategias raciales y capita-
listas —por ejemplo aquéllas que, de hecho, requerirían una
148 Otras inapropiables

posición crítica, antirracista y anticapitalista, que hiciera


posible el trabajo solidario feminista.
Hablar de praxis feministas en contextos globales supon-
dría cambiar la unidad de análisis de la cultura local, regio-
nal y nacional por las relaciones y procesos entre culturas.
Asentar el análisis en praxis feministas locales, particulares,
es necesario, pero también necesitamos comprender lo local
en relación con procesos transnacionales más amplios. Esto
requeriría un cambio correlativo en la concepción de la orga-
nización y de la movilización política a través de las fronte-
ras. Las prácticas de democracia, de justicia e igualdad, por
ejemplo, no estarían subsumidas en la definición blanca y
masculinista de los Estados Unidos. La idea de justicia se
aplicaría más allá de los límites culturales y nacionales. La
ideología de los «inmigrantes», de los «refugiados», de los
trabajadores temporales extranjeros y de los «ciudadanos»
tendría que ser reconceptualizada sobre la base de nuevas
definiciones de justicia. Nuestra concepción sobre la democra-
cia y sus prácticas tendría que volverse transcultural. Esta apli-
cación crítica de la praxis feminista en un contexto global sus-
tituiría el relativismo por la responsabilidad, la conciencia, el
compromiso y la solidaridad. Así, en esta compilación, desta-
camos un paradigma de la descolonización que pone el énfasis
en el poder, la historia, la memoria, el análisis relacional, la jus-
ticia —no únicamente la representación— y la ética como los
elementos centrales de nuestro análisis de la globalización.
Atender a las prácticas de la globalización se vuelve cru-
cial para una cartografía conceptual de las genealogías de la
organización. Los ensayos de esta colección ofrecen contun-
dentes análisis de los procesos capitalistas de la post-Guerra
Fría y de los espacios contradictorios que estos han abierto
se permite la copia

para las diferentes formas de movilización feminista. Así, las


autoras incluidas aquí desafían el modo en que la racializa-
ción, la heterosexualización, la polarización de clase y la cre-
ación de pobreza operan en la organización capitalista. Al
©

contrario que un feminismo transhistórico internacional,


demuestran que las comunidades opositivas tienen sus pro-
pias historias de lucha, sus formas de teorizar y sus modos
de organización que dan cuerpo, al tiempo que transforman
las prácticas feministas. Nuestro marco teórico desafía la
aún arraigada noción del estatus originario del feminismo
Genealogías, legados, movimientos 149

occidental. Sencillamente, no sitúa al feminismo del Tercer


Mundo como una reacción a las faltas del feminismo occi-
dental; no emplaza al feminismo del Tercer Mundo al servi-
cio de los proyectos intelectuales y políticos del feminismo
(blanco) occidental. Al contrario, ofrece una posición desde
la que abogar por una praxis feminista comparativa y rela-
cional que sea transnacional en su respuesta a un compro-
miso con los procesos globales de colonización.
En nuestra teorización del feminismo es central el análi-
sis comparativo de la organización, de la crítica y de la auto-
rreflexión feminista; del mismo modo que lo es un profundo
conocimiento contextual de la naturaleza y los contornos de
la actual crisis político-económica. Los análisis individuales
están basados en la crisis contemporánea del capitalismo
global y sugieren que estos contextos particulares son los
que plantean a las organizaciones desafíos analíticos y polí-
ticos muy concretos. Aquí no existe ninguna falsa dicotomía
entre teoría y práctica. Tenemos que pensarnos literalmente
fuera de estas crisis, ayudados por la praxis colectiva y por
formas particulares y novedosas de teorizar. Las crisis pro-
vocan nuevas oportunidades de cambio dentro de las organi-
zaciones. De igual modo, algunas autoras de estos textos leen
sus propias circunstancias en relación a los procesos de glo-
balización con el fin de valorar el compromiso y la organiza-
ción feminista en sus propios contextos. Si bien no afirmaría-
mos que los efectos dentro de la academia sean necesaria-
mente los mismos que los provocados en otras estructuras
políticas, las metodologías críticas de análisis son similares.
A lo largo de estos años, hemos trabajado muy de cerca
con cada una de las autoras recogidas en esta colección,
hemos intentado hacerlo con el espíritu comunitario que
se permite la copia

imaginamos en nuestro primer encuentro. Así, aunque este


libro está compuesto de ensayos de autoría individual, el tra-
bajo sostenido y colectivo que se ha invertido en producirlo
es, en sí mismo, producto de una reflexión, de un modo de
©

hacer política y de una forma de organización que interrum-


pe la forma, dominante y «profesionalizada», de hacer inves-
tigación. El hecho de que las autoras se sitúen en comunida-
des de mujeres particulares crea el contexto propicio para
cada uno de estos análisis. En otras palabras, todas las autoras
ponen su trabajo en conexión con comunidades feministas en
150 Otras inapropiables

lucha —su trabajo fluye de esta conexión. Por tanto, espera-


mos que este volumen, además de poner en movimiento
ciertos proyectos intelectuales, establezca las bases para una
discusión mucho más amplia entre las comunidades y las
organizaciones de mujeres de todo el mundo.

Legados coloniales. Estado, capitalismo y


procesos de colonización

Empleamos la fórmula «legados coloniales» para invocar


el imaginario de una herencia y para cartografiar las conti-
nuidades y discontinuidades entre las prácticas contempo-
ráneas y las heredadas en las viejas formaciones estatales y
capitalistas. Nos gustaría señala en particular, los acelera-
dos procesos de recolonización típicos del momento
actual. Para empezar, queremos poner en primer plano
una concepción de la historicidad del Estado y el capital en
la organización y despliegue de la política sexual. Robert
Connell define la historicidad como «esta sensación de que
las cosas “nunca volverán a ser lo mismo”, de que se han
abierto nuevas posibilidades al tiempo que los viejos patro-
nes se han colapsado». Esto, dice, «es exactamente de lo que
trata la historicidad de las relaciones de género».14Para noso-
tras, esta relación dialéctica entre lo viejo y lo nuevo, ofrece
claves teóricas y políticas para comprender, en esta coyuntu-
ra histórica, las relaciones y jerarquías contemporáneas —lo
que llamamos una arqueología de las prácticas estatales.
La historicidad del Estado posibilita un análisis de las
relaciones y jerarquías contemporáneas y sitúa al Estado
se permite la copia

como un punto central del análisis para las feministas.


Examinamos la forma y el funcionamiento del Estado esta-
dounidense en el capitalismo avanzado como un modo de
analizar los procesos simultáneos que el moderno capital ha
©

generado en el propio capitalismo y en las nuevas prácticas


coloniales. M. A. Jaimes Guerrero ha afirmado que el Estado

14 R. W. Connell, Gender and Power: Society, the Person and Sexual Politics,
Stanford, Standford University press, 1987, p. 143.
Genealogías, legados, movimientos 151

estadounidense despliega un conjunto de relaciones capita-


listas al mismo tiempo que participa en relaciones coloniales
tanto dentro sus fronteras —pueblos nativos y comunidades
de color en los Estados Unidos— como fuera de ellas —en
Puerto rico, Hawai y el Pacífico, con operaciones que están
enmascaradas por una ideología de la estatalidad y del esta-
tus de la Commonwealth. Nos centramos en el Estado esta-
dounidense debido a nuestra propia ubicación y debido
también a que su nuevo estatus post-Guerra Fría lo coloca
como nuevo poder imperial en, por ejemplo, el Caribe e
India. El entretejimiento de lo global y lo local, que es tan
importante en nuestro análisis, es también central en la dis-
cusión de Ella Shohat sobre las prácticas estéticas post-tercer-
mundistas. «En un mundo de comunicaciones transnaciona-
les», escribe Shohat, «el problema central es la tensión entre
la homogeneización cultural y la heterogeneización cultural,
en la que las tendencias hegemónicas son simultáneamente
“indigenizadas” en una compleja y disyuntiva economía
cultural global». Por tanto, existe un recurrente desafío teó-
rico de descubrir la interacción cultural, política y económi-
ca entre las propias categorías de lo global y lo local.
Uno de los principios organizativos centrales de esta
compilación es la imbricación de las prácticas contemporá-
neas de los Estados postcoloniales y coloniales avanzado-
con los procesos capitalistas de recolonización. El ancla
teórica de cierto número de los ensayos precisamente las
continuidades y fracturas entre las formas de colonización
históricas y emergentes. Amina Mama plantea la transfor-
mación de las formas de violencia contra las mujeres en Áfri-
ca Occidental, mientras Honor Ford-Smith muestra como la
colonización estética —el término es de Paula Jun Allen—,
por medio de las agencias internacionales de financiación,
se permite la copia

ha sometido a Jamaica a una nueva disyuntiva descrita entre


la previa colonización británica y las actuales Políticas de
Ajuste Estructural (PAE). El capitalismo es analizado, con-
sistentemente, como un conjunto de procesos mediados a
©

través de la simultánea articulación de las jerarquías de


género, raza y sexo. Chandra Talpade Mohanty demuestra,
por ejemplo, que estas jerarquías operan a través de diferen-
tes ideologías generizadas sobre el trabajo de las mujeres.
Los ensayos conciben el capitalismo en sus manifestaciones
globales, locales y territoriales y en sus intersecciones con los
152 Otras inapropiables

análisis y las luchas feministas; reconocen que el eurocen-


trismo y la colonización territorial se están viendo transfor-
mados y reconfigurados a lo largo del globo. El impulso
hacia la recolonización deriva, claramente, de las crisis del
capitalismo que inventa su propia reconfiguración. Así, mien-
tras algunos ensayos particulares de la compilación, carto-
grafían los fracasos de los nacionalismos anticoloniales, el
efecto acumulativo de tales movimientos por la autodeter-
minación también ha ayudado a provocar las mismas crisis
en el capitalismo.
Puesto que nos servimos de ensayos específicos en esta
colección para ubicar la práctica histórica feminista y los
modos más actuales de organización, debemos también
recordar que por «historicidad» nos referimos al uso de
herencias específicas en torno a historias no-hegemónicas
que interrumpen la dominación estatal y capitalista. Las dis-
tintas formas de la práctica feminista —lo que Geraldine
Heng llama «las distintas variedades de feminismos»— asu-
men sus propias trayectorias a partir de una complicada
superposición de matrices históricas: las luchas de liberación
por parte de la izquierda, los nacionalismos contemporáneos
—a pesar de la relación de enfrentamiento del feminismo con
el nacionalismo— y la propia presencia e intervención del
Estado. En cualquier caso, no hay prescripciones fijadas por
las que cualquiera de estas matrices pudiera determinar de
antemano las historias contra-hegemónicas específicas que
serían de mayor utilidad. De hecho, Heng muestra que un
feminismo amenazado puede asumir estratégicamente «el
manto nacionalista» o buscar «legitimación y soporte ideoló-
gico en la historia cultural local, encontrando, en el pasado
nacional o común, mitos, leyes, costumbres, personajes,
narraciones y orígenes feministas o proto-feministas». Lo
se permite la copia

que el feminismo recuerda —o puede arriesgarse a recor-


dar—, lo que recolecta y narra, su ingenio para codificar la
lucha —en términos que sean ininteligibles para el Estado
(Ford Smith) o visiblemente reconocibles y por tanto subver-
©

sivos (Panjabi)— y qué forma otorgue a las diferentes movi-


lizaciones políticas, son asuntos paradójicamente contingen-
tes, aunque localizados y estratégicos. La importancia de la
memoria histórica opositiva no puede ser malentendida.
Como ha afirmado Patricia J. Williams, «no tener documen-
tación es demasiado insostenible, demasiado espontánea-
Genealogías, legados, movimientos 153

mente ahistórico, demasiado peligrosamente maleable en


manos de quienes rescribirían no sólo el pasado sino (mi)
futuro también».15 Ni siquiera la memoria es una categoría
no-mediada porque, en las herencias contra-hegemónicas,
están insinuadas las herencias de la violencia y el trauma, lo
que Elizabeth Alexander ha llamado la «memoria traumati-
zada». Tales memorias deben ser bien escrutadas y tamiza-
das. Para el feminismo, por tanto, estructurar nuevos modos
de conciencia a través de la praxis es tanto política como psí-
quicamente necesario. Puesto que ninguna variedad del femi-
nismo —particularmente el feminismo del Tercer Mundo—
ha escapado de la intervención, control, disciplina y vigilancia
del Estado; y dado que el Estado —particularmente el Estado
postcolonial— facilita el movimiento transnacional de capital
en sus fronteras nacionales, y es por tanto instrumento de
reconfiguración de las relaciones globales; y puesto que el
capitalismo y estos procesos de recolonización estructuran
las prácticas contemporáneas de los Estados postcoloniales
capitalistas o coloniales avanzados, el Estado aparece como
un elemento central en cualquier intento analítico de abor-
dar los legados coloniales. Así, atender al Estado parece ser
especialmente crucial en un momento en el que muchos de
los intentos para tratar la crisis global del capitalismo son lle-
vados a cabo por el propio aparato del Estado. Las Políticas
de Ajuste Estructural, los desiguales realineamientos entre el
capital multinacional, el Fondo monetario Internacional y el
Banco Mundial son un caso paradigmático. En su ensayo,
Ayesha Imam señala el grado específico de complicidad
entre el Estado nigeriano, militarizado y postcolonial, y la
institucionalización de las PAE. Más aún, a diferencia de
otras instituciones, el Estado se involucra en una casi micros-
cópica vigilancia de los cuerpos de las mujeres; continua
se permite la copia

poniendo más y más áreas de la vida cotidiana bajo su juris-


dicción, incluso cuando le falta la capacidad o autoridad
para hacerlo con éxito.
Sin embargo, no estamos sugiriendo que los imperativos
©

del Estado postcolonial y los de los Estados capitalistas o colo-


niales avanzados sean idénticos. Obviamente, comparten

15 Patricia Williams, The Alchemy of Race and Rights: Diary of a Law


Professor, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1991, p. 54.
154 Otras inapropiables

importantes características: 1) son propietarios de los medios


de violencia organizada, que son desplegados muy a menu-
do al servicio de la «seguridad nacional»; 2) ambos están
militarizados —en otras palabras, masculinizados—; 3)
inventan y solidifican prácticas de racialización y sexualiza-
ción de la población; y 4) disciplinan y movilizan los cuerpos
de las mujeres —en particular las de las mujeres del Tercer
Mundo— con el fin de consolidar procesos patriarcales y de
colonización. Los cuerpos de las mujeres son disciplinados
de maneras distintas: en los discursos de la maximización
del beneficio, como obreras globales y trabajadoras del sexo;
en los fundamentalismos religiosos, como receptáculos del
pecado y la transgresión; en algunos discursos nacionalistas
específicos, como guardianas de la cultura y la respetabili-
dad, y por tanto criminalizadas como prostitutas y lesbianas;
en los discursos estatales de la familia nuclear originaria,
como esposas y madres. Tanto los Estados postcoloniales
como los capitalistas o coloniales avanzados organizan y
refuerzan una estructura catética basada en la diferencia
sexual —por ejemplo la heterosexualidad), que refuerzan
con una variedad de medios, incluida la legislación. En casi
todos los casos, sin embargo, estos Estados vinculan la hete-
rosexualidad con la ciudadanía y organizan una «maquina-
ria de la ciudadanía» para producir una clase de leales ciu-
dadanos heterosexuales y una clase subordinada de no-ciu-
dadanos sexualizados, no procreativos, desleales a la nación
y, por tanto, sospechosos.16
Aún así, existen diferencias importantes. En la reconsoli-
dación global del capitalismo, por ejemplo, los Estados pos-
tcoloniales se encuentran subordinados a los Estados capita-
listas o coloniales avanzados, aunque ambos contribuyan a la
acumulación de capital. En los contextos postcoloniales, los
se permite la copia

administradores del Estado facilitan la entrada y difusión de


capital internacional dentro de las fronteras nacionales y ayu-
dan en la producción de una fuerza de trabajo femenina
©

16 Evans, Sexual Citizenship... cit.; Ruthann Robson, Lesbian (Out)law:


Survival under the Rule of Law, Ithaca, Firebrand, 1992, pp. 247-258; y
Kendall Thomas, «Bowers vs. Hardwick: Beyond the Privacy Principle»,
en Dan danielsen y Karen Engle (eds.), After Identity: A Reader in Law and
Culture, Nueva York, Routledge, 1995, pp. 277-293.
Genealogías, legados, movimientos 155

explotada en zonas de producción para la exportación. El


Estado estadounidense se asimila a un Estado postcolonial en
su aproximación ideológica al Tratado de Libre Comercio de
Norteamérica (NAFTA) y a la Caribean Basin Initiative. Utiliza
los dictados de la economía estadounidense para establecer
los términos mediante los que el capital opera a través de las
fronteras nacionales. En contextos capitalistas o coloniales
avanzados, la transnacionalización proporciona el fundamen-
to para la intervención hipernacionalista en las economías del
Tercer Mundo, socavando el poder y la legitimidad de formas
mucho más significativas. Esto plantea la acusación de que el
Estado postcolonial ha hipotecado sus demandas de sobera-
nía —la promesa nacionalista central— mediante la complici-
dad con su propia recolonización. En una fecha tan temprana
como 1972, Hamza Alavi afirmó que «la relativa indepen-
dencia del Estado postcolonial de los intereses de las clases
indígenas y metropolitanas parecía haber sido suplantada
casi por completo; en el periodo contemporáneo, la práctica
más persuasiva es la del Estado postcolonial como instru-
mento de los intereses de la clase dirigente global».17
Los procesos prolongados de la globalización hacen tan
difícil como necesario hablar del Estado-nación: hablar espe-
cíficamente del nacionalismo y, para nuestros propósitos, de
su relación problemática con las mujeres del Tercer Mundo.
El nacionalismo anticolonial siempre ha movilizado el traba-
jo de las mujeres con el fin de consolidar el nacionalismo
popular, sin el cual el nacionalismo de Estado nunca habría
sido capaz de solidificarse. No es algo accidental, por tanto,
que el feminismo surgiera a menudo en el seno de los movi-
mientos anticoloniales. Pero la puesta en juego de lo femeni-
no por parte del Estado tiene modulaciones contradictorias.
Mientras, como afirma Heng, «las mujeres, lo femenino, y las
se permite la copia

figuras del género han afianzado tradicionalmente el imagi-


nario nacionalista», ciertas mujeres, prostitutas y lesbianas,
se están viendo disciplinadas y expulsadas de la escritura
©

17 Hamza Alavi, «The State in post Colonial society: Pakistanand


Bangladesh», New Left review, núm 74, 1972, pp. 59-81. Un desarrollo
más actualizado de este punto es el de Henrik Secher Marcussen y Jens
Eric Torp, The Internacionalization of Capital: The Prospects for the Third
World, Londres, Zed Press, 1982.
156 Otras inapropiables

del guión de la nación; se las ha investido del poder de


corromper a los leales ciudadanos heterosexuales, posicio-
nadas forzosamente como algo hostil al imperativo procrea-
dor de la construcción nacional y, por tanto, investidas de la
habilidad y el deseo de destruirla. Sin embargo, el Estado-
nación no sólo ha estructurado formas de exclusión en torno
a las cuestiones de la sexualidad y el género, sino también
con relación a las jerarquías de clase y raza. Son estas formas
de exclusión, tanto como la ambivalente y conflictiva rela-
ción del Estado con la soberanía, las que nos ayudan a
explicar los fracasos del nacionalismo anticolonial, un tema
central de la mayoría de los ensayos de esta colección. Si,
como ha afirmado Ella Shohat, «la afiliación con el Estado
nación deviene cada vez más parcial y contingente» en el
contexto postcolonial, la relación de las mujeres con ella lo
es aún más. De formas muy específicas, los procesos de
recolonización —que cartografía esta colección— extraen la
fuerza material e ideológica de las mujeres y de los colecti-
vos de mujeres para volver a afianzar los imperativos hete-
rosexistas y patriarcales.
El hecho de que los movimientos fundamentalistas reli-
giosos ocupen hoy un espacio central en numerosos Estados
postcoloniales y en algunos Estados coloniales avanzados, es
otra indicación de los efectos contradictorios de las movili-
zaciones nacionalistas de hombres y mujeres. Gita Sahgal y
Nira Yuval Davis vinculan el auge global del fundamentalis-
mo religioso al fracaso, tanto del capitalismo como del
comunismo, en la respuesta a las necesidades materiales,
espirituales y emocionales de las personas.18 Sugieren que en
las sociedades postcoloniales, y en Occidente entre la gente
de color, el fundamentalismo religioso también está ligado al
fracaso de los movimientos nacionalistas y socialistas para
se permite la copia

provocar la liberación de la opresión. Los movimientos fun-


damentalistas se muestran profundamente heteropatriarca-
les, sugieren el control y la regulación de la sexualidad de las
mujeres como panacea a todos estos fracasos.
©

Al analizar el nexo del Estado, el capital y el patriarcado


en la consolidación del fundamentalismo religioso en la

18 Gita Sahgal y Nira Yuval-Davis, Refusing Holy Orders: Women and


Fundamentalism in Britain, Londres, Virago Press, 1992.
Genealogías, legados, movimientos 157

India, Amrita Chhachhi muestra que el fundamentalismo


basado en el Estado, refuerza el desplazamiento del control
sobre las mujeres de manos de sus parientes varones a las de
cualquier hombre de la comunidad «religiosa» —lo público es
profundamente patriarcal. En los discursos fundamentalistas
religiosos y en las prácticas estatales, los cuerpos y mentes de
las mujeres, tanto como los espacios domésticos y públicos
que ocupan, se convierten en el primer terreno de regulación
de la moralidad, de inscripción del control patriarcal. Esta es
otra cuestión crucial para cartografiar los procesos de reco-
lonización a finales del siglo XX.19
Sin embargo, ninguna comprensión de estos procesos
post-Guerra Fría estaría completa sin un análisis de la fun-
ción estratégica de la masculinidad militarizada en la repro-
ducción de la colonización. Una designación oficial de la
«post-Guerra Fría» no borra automáticamente los efectos de
la colonización. Además de las dislocaciones y de la disper-
sión de las mujeres del Tercer Mundo cuyas vidas estaban
anteriormente atadas a la militarización, el concepto del sol-
dado —históricamente unido a la masculinidad— también
está sufriendo transformaciones profundas. Como demues-
tran los análisis de Alexander y Wekker, tanto el Estado
como los procesos capitalistas subrayan una crisis patente de
la hetero-masculinidad, que requiere ser ideológicamente
velada para enmascarar los procesos de normalización. En
los contextos neocoloniales, la crisis se hace evidente en la
(re)producción legal de la heterosexualidad mediante los
movimientos estatales para contener el deseo entre mujeres.
En contextos «(des)militarizados» como los Estados Unidos,
la figura del soldado hipermasculinizado, anteriormente
encarnado en la imagen de lo blanco, se difunde globalmen-
te como el agente del poder de los Estados Unidos, el sím-
se permite la copia

bolo de la hombría blanca, y la naturalización del trabajo

19 Amrita Chhachhi, «Forced Identities: The State, Communalism,


©

Fundamentalism and Women in India», en Deniz Kandiyoti (ed.), Women,


Islam and the state, Philadelphia, Temple University Press, 1991, pp. 144-
175. Véanse también los ensayos en Valentine M. Moghadam (ed.),
Identity Politics and Women: Cultural Reassertions and Feminisms in
International Perspective, Boulder, Westview Press, 1994. Amrita Chhachhi
y Renée Pittin, Múltiple Identities, Múltiple Strategies: Confronting State,
Capital and Patriarchy, La Haya, Institute of Social Studies, 1991.
158 Otras inapropiables

sexual de las mujeres del Tercer Mundo organizado princi-


palmente a través de la prostitución. El trabajo de Thanh-
dam Truong y Kamala Kempadoo es, aquí, muy útil para
desmitificar hasta qué punto el trabajo de las prostitutas con-
tribuye a los procesos de la acumulación privada de capital
y hasta qué punto el Estado depende de él como modo de
proseguir con la heterosexualización de la defensa, de la pro-
ductividad militar y de cosas por el estilo.20 Nuevos tipos de
reconfiguraciones raciales y sexuales están sucediendo en
esta era de desmilitarización, en la que la masculinidad blan-
ca ya no puede figurarse en torno a definiciones particulares
de lo militar. Debido a los profundos cambios de la economía
estadounidense, por ejemplo, el empleo policial estatal reside
ahora de manera desproporcionada en el trabajo y en los
cuerpos de la gente de color, mujeres y varones. Sin duda,
ideológicamente el Estado tendrá que esforzarse más en resi-
tuar la masculinidad blanca ya que su presencia, al menos en
los escalones inferiores del ejército, está despareciendo.
Uno de los ejemplos más dramáticos de la crisis de la
heteromasculinidad ha sido el reciente discurso, promovido
por el Estado en Estados Unidos, sobre los gays en el ejérci-
to. Ostensiblemente, el propósito de este debate era determi-
nar si a la masculinidad «afeminada» —que se practica, pero
de la que no se habla— se le podía confiar una de las tareas
más importantes de la ciudadanía: la lealtad y defensa del
propio país. La preocupación central era si esa masculinidad
feminizada —en absoluto considerada como masculina o
como digna de ciudadanía— comprometería la heteromas-
culinidad al desempeñar su trabajo: la defensa de la nación
imperial. Tras meses de discusión —que incluyeron los
predecibles lamentos del Estado por su propia identidad
amenazada en el contexto de un ejército reducido—, la
se permite la copia

heteromasculinidad se reafirmó, dejó presente la sexuali-


dad gay pero en silencio y borró, casi por completo, la
sexualidad lesbiana. Más aún, esta conclusión situaba
©

20 Thanh-dam Truong, «Foreign Exchange: Prostitution and Tourism in


thailand», en Sex, Money and Morality, Londres, Zed Press, 1990; y
Kamala Kempadoo, «Regulating Sexuality: Prostitution in Curaçao»,
paper presentado en la Caribbean Studies Association Conference,
Curaçao, Mayo de 1995.
Genealogías, legados, movimientos 159

como premisa la homosexualidad en un contexto blanco,


posibilitando que los «invisibles» soldados gays y lesbia-
nas intervinieran en el Tercer Mundo y en las comunida-
des de color del propio Estado.
En este punto, la formulación analítica central sobre la
actividad del Estado y del capital en los procesos de recolo-
nización plantea un desafío fundamental a las formas en las
que el feminismo liberal dominante se ha organizado.
Existen muchas críticas feministas de los fracasos del libera-
lismo y sus afirmaciones epistémicas acerca de los derechos
y libertades individuales, la libertad de elección del indivi-
duo y la mitología del igual acceso a los recursos.21 Sin
embargo, a pesar de estas críticas y su muy lúcida compren-
sión de las operaciones del poder estatal, la sacralidad del
derecho y la oportunidad individual protegida y reforzada a
través del capitalismo constituyen, aún, sus premisas y prác-
ticas centrales. Los textos de Aida Hurtado, Brenda Joyner,
Rosalind Petchesky y las experiencias de las mujeres que
luchan contra la colonización estadounidense de Puerto Rico
y el papel del Estado estadounidense en la utilización de los
cuerpos de las mujeres del Tercer Mundo como instrumen-
tos de desarrollo y «progreso», señalan los escollos de esta
ideología jurídica de la elección individual.22 Nuestros análi-
sis han puesto el énfasis en las cuestiones referidas a la colo-
nización, el imperialismo económico y la soberanía territorial
como asuntos centrales para el feminismo. Desde este punto
de vista, se separan de las formulaciones liberales de un
Estado desinteresado, tanto como de la auto-representación
del Estado como una institución nacional y democrática.
se permite la copia

21 Mary G. Dietz, «Context Is All: Feminism and Theories of


Citizenship», en Chantal Mouffe (ed.), Dimensions of Radical Democracy:
Pluralism, Citizenship, Community, Nueva York/Londres, Verso, pp. 1-24.
22 Aida Hurtado, «Relating to Privilege: Seduction and Rejection in the
©

Subordination of White Women and Women of Color», Signs, núm. 14:


4, 1989, pp. 833-855; Brenda Joyner, «Fighting Back to Save Women’s
Lives: The Struggle for Reproductive Freedom», en Marlene Gerber
Fried (ed.), From Abortion to Reproductive Freedom: Transforming a
Movement, Boston, South End Press, 1990, pp. 205-211; y Rosalind
Pollack Petchesky, Abortion and Women’s Choice: The State, Sexuality and
Reproductive Freedom, Boston, Northeastern University Press, 1985.
160 Otras inapropiables

Sugerimos que tomarse en serio la intervención estatal en y


entre naciones podría, como mínimo, hacer posible imaginar
y crear luchas solidarias a través de las fronteras artificiales
que el Estado y el capital construyen.

Futuros democráticos. Conciencia feminista:


organizar visiones.

Sistren me ayudó a crear en mí, definitivamente, concien-


cia de las mujeres. Por primera vez, incluso si salía a la
calle y escuchaba a alguien, tanto si era hombre o mujer,
decir cosas que degradaban a la mujer no sabía como enca-
jarlo. Ahora me encuentro a mí misma, y si oigo a alguien
decir algo que degrade a la mujer, puedo contestarlo. Me
ha dado el coraje para enfrentarme a cualquiera, sin
importar quien pueda ser Becky.23
Comienzo con los cuerpos porque los Estados políticos
siempre tienen interés en ellos; porque la política se deriva,
normalmente, de ese interés; y porque cuanto más nos
movemos hacia nuevas tecnologías que redefinen el cuerpo
femenino, debemos reorganizar ese interés como algo total-
mente político. Las feministas podemos insistir en la utiliza-
ción de nuestros cuerpos para empujar las barreras de la
teoría democrática.
Zillah Eisenstein 24

Juntas, las afirmaciones de Becky, miembro del colectivo


feminista caribeño Sistren, y las de Zillah Eisenstein, teórica
política feminista estadounidense, capturan las contradiccio-
nes y los retos que acarrea pensar más allá de las distintas
formas de colonización de nuestros cuerpos y de nuestras
se permite la copia

23 Sistren y Honor Ford-Smith, Lionheart Gal: Life Stories of Jamaican


Women, Toronto, Sister Vision Press, 1993. [En inglés jamaicano en el ori-
ginal:] «Sistren help me bring about the awareness of women in me defi-
©

nitely. For the first time even if me go out in a street and hear people,
whether man or woman, talks tings fi downgrade woman me wouldn’t
know how to address it. Now me find meself, if I hear anybody say any-
thing to downgrade woman, me can address it. It give me courage to
deal wid anybody, no care who you maybe»
24 Zillah Eisenstein, The Color of Gender: Reimaging Democracy, Berkeley,
University of California Press, 1993, p. 171.
Genealogías, legados, movimientos 161

mentes. Becky afirma que su experiencia en Sistren fue la


base para la transformación de su conciencia, su «conciencia
como mujer», que le otorgó el «coraje para enfrentarse a cual-
quiera». Eisenstein, por otra parte, se centra en los procesos
políticos envueltos en este disciplinamiento del cuerpo feme-
nino y en la necesidad de las feministas de tener en cuenta este
interés masculinista del Estado al reimaginar la democracia.
Dadas las limitaciones de las concepciones liberales occi-
dentales de la democracia, queremos conceptualizar lo que
podría llamarse «democracia feminista» con relación al pro-
yecto de la descolonización —en otras palabras, examinar
detenidamente una visión anticolonialista y anticapitalista
de la práctica feminista. Más aún, queremos elaborar una
definición de la democracia feminista anclada en los análisis
y las visiones proporcionadas por las activistas-investigado-
ras de esta colección. Esta perspectiva implica necesaria-
mente reconocer los efectos objetivadores y deshumanizado-
res de la colonización —por ejemplo, la imitación del coloni-
zador, la violencia horizontal, el menosprecio de uno mismo
debido a la opresión internalizada, la falta de autoconfianza,
la dependencia física y material, el deseo de asimilarse—, y
construir activamente relaciones y culturas anticoloniales
como parte crucial del proyecto de democracia feminista.25
¿Cuál es nuestra definición de democracia feminista? En
primer lugar, las políticas sexuales son centrales en los pro-
cesos y prácticas de gobierno, esto conlleva no sólo los efec-
tos del gobierno sobre las mujeres o «lo que les ocurre a las
mujeres» bajo la regulación del Estado, sino también la
forma en la que los dispositivos de gobierno, en su conjun-
to, tratan a las mujeres.
En segundo lugar, una democracia feminista sugiere un
se permite la copia

orden relacional diferente entre las personas. Implica com-


prender las jerarquías de dominio socioeconómicas, ideoló-
gicas, culturales y psíquicas —como la clase, el género, la
raza, la sexualidad y la nación—, sus interconexiones, y sus
©

25 Resultan instructivos a este respecto, los libros de Frantz Fanon, Black


Skin White Masks, Nueva York, Grove Press, 1967 y The Wretched of the
Earth, Harmondsworth, Penguin, 1967; de Albert Memmi The Colonizer
and the Colonized, Boston, Beacon Press, 1969; y de Paulo Freire, Pedagogy
of the Oppressed, Nueva York, Continuum, 1993.
162 Otras inapropiables

efectos sobre las personas oprimidas en el contexto de una


práctica transformadora colectiva u organizada. De esta
forma, resulta crucial en la elaboración de un orden relacio-
nal diferente, la transformación de las relaciones, de los tipos
de «yo», de las comunidades y de las prácticas de vida coti-
diana dirigidas a la autodeterminación y a la autonomía de
todas las personas.
En tercer lugar, en las formulaciones de la democracia
feminista, el sujeto se teoriza de forma diferente. Las muje-
res no se presentan a sí mismas como víctimas o dependientes
de estructuras de gobierno sino como agentes de sus propias
vidas. Aquí se entiende el sujeto como la reproducción con-
tinuada y consciente de las condiciones de la propia existen-
cia, al tiempo que se toma responsabilidad de este proceso.
Esta agencia está anclada en la práctica de pensarse a una
misma como parte de organizaciones y colectivos feministas.
No es el yo individual, liberal y pluralista del capitalismo.
Precisamente por esto, la descolonización resulta clave para
la definición y el proyecto de una democracia feminista.
Hasta que los profundos efectos de las jerarquías de la
colonización sean tenidos en cuenta, no será posible nuevas
formas de gobierno. Lo que necesitamos, sugieren los ensa-
yos de este volumen, es una nueva cultura política. La desco-
lonización implica pensarse fuera de los espacios de domi-
nación, pero siempre en el contexto de un proceso colectivo
o comunitario; la diferencia entre la identificación como
mujer y la conciencia de género, la primera hace referencia a
una designación social, la última a una conciencia crítica de
las implicaciones de esa designación. Este pensarse «fuera
de» la colonización sólo es posible mediante la acción y la
reflexión, a través de la praxis. Después de todo, la transfor-
se permite la copia

mación social no puede permanecer en la esfera de las ideas,


debe comprometer una práctica. En esta antología, los análi-
sis concretos de las prácticas colectivas y organizacionales en
comunidades feministas proporcionan estrategias provisio-
©

nales para desmantelar las constelaciones psíquicas y socia-


les instaladas por la colonización. Algunos ensayos dirigen
su atención hacia la rapidísima transición de algunos países
del Tercer Mundo, que han pasado de ser naciones coloniza-
das a formar, mediante las luchas anticoloniales, cuerpos de
gobierno nacionalistas que siguen siendo obcecadamente
Genealogías, legados, movimientos 163

patriarcales y heterosexistas. En otras palabras, estos ensa-


yos cartografían los fallos del nacionalismo anticolonial y de
los movimientos por la descolonización, para enfocar seria-
mente los aspectos psíquicos y pedagógicos de la descoloni-
zación, especialmente los que están relacionados con la política
sexual. La descolonización tiene una dimensión pedagógica
fundamental —el imperativo de comprender, reflexionar
sobre, y transformar las relaciones de objetualización y des-
humanización, además de transmitir este conocimiento a las
generaciones futuras. Nuestra formulación de la práctica
democrática feminista busca abordar el fracaso pedagógico
del nacionalismo heredado.
En cuarto lugar, nuestro concepto de democracia feminis-
ta se inspira en principios socialistas para analizar las jerar-
quías de mando y construir una visión alternativa que sirva a
su transformación. En espíritu, si no siempre en palabras,
todas las colaboradoras de este volumen adoptan posiciones
anticapitalistas. Sin embargo, mientras las colaboradoras nos
ofrecen cartografías de prácticas feministas transformadoras,
son muy conscientes de los límites de estas prácticas. Las fuer-
zas, las relaciones y las formas de gobierno materiales no han
variado mucho a fines del siglo XX. De hecho, a causa de la fle-
xibilidad histórica del capitalismo, no hemos tenido el benefi-
cio de la práctica socialista por un periodo de tiempo sustan-
cial. El guión truncado del socialismo y los fracasos del nacio-
nalismo anticolonial se combinan para formar el telón de
fondo de nuestra definición de democracia feminista.
Finalmente, nuestra definición de la democracia feminista
tiene dimensiones específicamente transnacionales. En esta
era, los procesos globales requieren, claramente, alianzas glo-
bales. La descolonización, de hecho, se vuelve un proceso
se permite la copia

urgente precisamente a causa de la homogeneización y la


dominación transnacional llevadas a cabo por los procesos
capitalistas globales. Sugerimos que la democracia feminista
necesita incluir una teorización sobre la democracia participa-
©

tiva transfronteriza que se sitúe fuera de la esfera imperial.


Esta compilación apunta hacia un feminismo transnacional, no
a una sororidad global —definida según un modelo de «cen-
tro/periferia» o «Primer Mundo/Tercer Mundo». Y puesto que
la cuestión de la práctica es central en esta compilación, otro
aspecto de nuestra versión de la democracia feminista implica
164 Otras inapropiables

reimaginar la —a menudo artificial— línea divisoria entre el


activismo y la teorización feminista. Las autoras que aquí apa-
recen creen que la teoría y el análisis se producen mediante un
compromiso dialógico activo con los colectivos y movimientos
feministas. Esta teorización comienza en un lugar diferente —
el de la lucha feminista. La práctica, en los movimientos, asien-
ta la teoría, el análisis se emprende para mejorar la práctica.
Seguidamente, comenzaremos con una sucinta crítica de los
conceptos de democracia de libre mercado o capitalista, prose-
guiremos con una discusión sobre algunas provechosas teori-
zaciones feministas de la democracia y, finalmente, intentare-
mos elaborar el significado de una democracia feminista. En
este análisis, utilizamos «Democracia» con «d» mayúscula
—para sugerir su uso común, coagulado— cuando nos referi-
mos a los usos institucionalizados, hegemónicos, basados en el
libre mercado —a menudo represivos— del término, y «demo-
cracia» —con «d» minúscula para sugerir estructuras colectivas
y prácticas en proceso— para hacer referencia a la reflexión
feminista sobre la idea y la promesa de este concepto. Mientras,
por un lado, una retórica hegemónica de la Democracia —un
disfraz para los procesos liberales capitalistas occidentales— ha
estado en el centro de los propios procesos de recolonización
capitalista —después de todo, muchas prácticas imperialistas
injustas han sido autorizadas en nombre de la preservación de
la Democracia—, una concepción distinta de la democracia,
que garantiza la liberación como condición permanente para
todos los pueblos, ha proporcionado también el terreno mate-
rial e ideológico para la movilización feminista.
El término «Democracia» se ha utilizado a menudo al ser-
vicio de prácticas represoras estatales, nacionales e interna-
cionales. Sin embargo la importancia analítica y política de
se permite la copia

pensar los aspectos emancipadores e igualitarios de la


democracia en esta época de la historia no puede subestimar-
se —después de todo, la democracia ha de ser construida y
reconstruida por cada generación.26 Si la democracia ha de ser
©

el gobierno del pueblo, o el autogobierno que requiere la par-


ticipación del pueblo, sobre la base del mérito, no del estatus

26 Cornel West, Keeping Faith: Philosophy and Race in America, Nueva York,
Routledge, 1993, pp. 107-118 y 236-247; The American Evasion of Philosophy:
A Genealogy of Pragmatism, Madison, University of Wisconsin Press, 1989.
Genealogías, legados, movimientos 165

heredado, la cuestión de cómo se defina «el pueblo» se vuel-


ve fundamental. De este modo, una de nuestras tareas prin-
cipales es visibilizar las relaciones de poder racializadas,
generizadas y heterosexualizadas tipificadas según el con-
cepto hegemónico de Democracia y analizar el mito del «ciu-
dadano universal». Otra tarea es la de formular una definición
de la democracia feminista que sea anticapitalista y se centre
en el proyecto de descolonización. En otras palabras, nuestro
objetivo es elaborar las formas en las que una democracia
feminista debe interpretar las jerarquías de gobernabilidad,
sus interconexiones y efectos, a la vez que se desplaza de una
práctica feminista individual a una colectiva.
Hemos afirmado que la política sexual permea todas las
relaciones sociales y que los procesos de colonización se for-
mulan y se ponen en práctica a través del disciplinamiento de
los cuerpos de las mujeres del Tercer Mundo. El ensayo de Ella
Shohat sobre el cine y vídeo feminista post-tercer mundista,
analiza las formas en las que se figuran las representaciones
del cuerpo femenino racializado en los procesos de represión
y resistencia; el de Kavita Panjabi sitúa el disciplinamiento del
cuerpo —y la mente, el corazón y el alma— femenino en las
narraciones carcelarias de las mujeres indias y argentinas. Este
marco de la compilación, que otorga centralidad analítica a las
experiencias, las conciencias y las historias de las mujeres del
Tercer Mundo, resulta crucial para nuestra concepción de un
proyecto democrático feminista. Conceptualizar «el pueblo» y
la ciudadanía en el marco de una comprensión feminista anti-
colonialista de la democracia exige que teoricemos desde la
experiencia y desde la ubicación epistemológica de las mujeres
del Tercer Mundo. Las llamadas Democracias del mundo han
beneficiado a muy pocas mujeres pobres del Tercer Mundo y
las claves anteriormente definidas de la democracia feminista
se permite la copia

pueden clarificarse útilmente en el marco de las historias y de


las experiencias de estos grupos.27
©

27 En relación a esto Zillah Eisenstein teoriza los derechos y la igualdad


democrática a través del prisma de los derechos reproductivos de las
«embarazadas de color» —versus la idea blanca masculinista de los derechos
universales. Esta ubicación y experiencia particular proporciona simultáne-
amente a Eisenstein la perspectiva más amplia y diversa para repensar el
concepto de derechos universales idividuales y para reteorizar la igualdad
en términos de pluralismo radical. Véase Eisenstein, The Color of Gender, cit.
166 Otras inapropiables

a) Democracia hegemónica, ciudadanía y patriarcados capitalistas

Nuestra ubicación en los Estados Unidos y la posición domi-


nante que ocupa en tanto nación democrática por excelencia,
necesita una clarificación sobre el uso retórico de la Democracia
que hace el Estado estadounidense. Esta sección confronta las
jerarquías de dominación que hemos identificado como un
aspecto crucial del proceso de desmantelamiento, descoloniza-
ción y transformación del capitalismo con el objetivo de dejar el
terreno despejado para una democracia feminista, anticapitalis-
ta y anticolonial. Algunas discusiones previas sobre el colonia-
lismo, el capitalismo y las prácticas estatales, sugieren que las
prácticas de gobierno, coloniales, imperialistas, sexistas y racis-
tas de los Estados Unidos, están ofuscadas por la retórica y la
ideología de la Democracia. La ideología de la libertad y de la
Democracia opera de tal modo que el discurso de los derechos
humanos a menudo se invoca tan sólo cuando están en juego
los intereses económicos y políticos de los Estados Unidos. De
este modo, el Estado estadounidense parece estar comportán-
dose Democráticamente cuando sanciona invasiones imperia-
listas —Panamá, Granada, Nicaragua, etc.— en nombre de la
preservación de la Democracia en cualquier parte del mundo.
Las feministas estadounidenses comprometidas en luchas por
el cambio político ignoran a menudo este aspecto imperial del
Estado. Las voces de las feministas liberales, que claman por la
igualdad de derechos, el bienestar, los servicios sociales y un
salario igual para las mujeres, si bien son espacios cruciales en
la lucha contra el Estado, enfocan el Estado como si fuera evi-
dentemente Democrático.28 Esta teorización, que las feminis-
tas liberales hacen al abordar el tema del sexismo en el
Estado estadounidense como un Estado Democrático, suele
se permite la copia

oscurecer las relaciones de dominación colonial y, por tanto,


impide potencialmente la formación de alianzas entre las
mujeres del Tercer Mundo de las distintas naciones coloni-
zadas o entre las mujeres de las naciones colonizadoras y las
©

de las colonizadas (postcoloniales).

28 Ann Ferguson, Sexual Democracy: Women, Oppression ad Revolution,


Boulder, Westview Press, 1991; Nancy Fraser, Unruly Practices: Power,
Discourse and Gender in Contemporary Social Theory, Minneapolis, University
of Minnesota Press, 1989; Williams, The Alchemy of Race and Rights, cit.
Genealogías, legados, movimientos 167

¿Cómo entender la idea de ciudadanía universal —para


nosotras, una ciudadanía definida a través de o atravesada
por la diferencia—, y el modo en que el Estado moviliza una
maquinaria de ciudadanía que excluye y margina a grupos
particulares sobre la base de su «diferencia»? Iris Marion
Young afirma que «el ideal de la ciudadanía universal com-
porta al menos dos significados además de la extensión de la
ciudadanía a todas las personas: 1) la universalidad se defi-
ne como algo general opuesto a lo particular, lo que los ciu-
dadanos tienen en común y no en lo que difieren; 2) la uni-
versalidad se define en el sentido de reglas y leyes iguales
para todos, aplicadas de forma igual; reglas y leyes que se
muestren ciegas a las diferencias individuales y grupales».29
Sin embargo, en el caso de los patriarcados capitalistas, tam-
bién llamados Democracias, el constructo de la ciudadanía
universal adquiere unos contornos específicos de género,
raza, clase y sexualidad muy particulares. Puesto que en los
momentos de crisis del capitalismo, la ciudadanía se define
mediante las figuras del consumidor y del pagador de
impuestos (blanco), y puesto que esta figura racializada y
masculinizada es la base de una serie de exclusiones en rela-
ción con la ciudadanía —la exclusión de los mismos grupos
desde cuyas posiciones teorizamos—, comprender la utiliza-
ción de estas categorías resulta crucial para reconceptualizar
la democracia. La utilización de esta ciudadanía excluyente
nos conduce a abogar por una democracia feminista explíci-
tamente anticolonial. Los ensayos de Jaimes Guerrero,
Alexander, mama y Bhattacharjee, por ejemplo, presentan
discusiones matizadas sobre el concepto de ciudadanía y las
formas de exclusión implícitas en el mismo. La ley, en parti-
cular, funciona para adjudicar «diferencias». La maquinaria
de la ciudadanía no es «ciega» a las diferencias; de hecho,
se permite la copia

utiliza todo un aparato legal para transformar la diferencia


en desigualdad. En sus esfuerzos para mantenerse «ciega» a
©

29 Iris Marion Young, «Polity and Group Difference: A Critique of the


Ideal of Universal Citizenship», en Cass R. Sunstein (ed.), Feminism and
Political Theory, Chicago, University of Chicago Press, 1990, p. 117.
Véanse también los ensayos de Iris Young en Throwing Like a Girl and
Other Essays in Feminist Philosophy and Social Theory, Bloomington,
Indiana University Press, 1990.
168 Otras inapropiables

las diferencias, en nombre del igual trato, la ley perpetua a


menudo la naturalización de la heterosexualidad y la pro-
ducción de economías psíquicas que se conforman al dicta-
do de la superioridad ideológica de la familia heterosexual.
Uno de los efectos es la extinción de las posibilidades del
deseo entre personas del mismo sexo. El análisis que hace
Janet Halley de los fallos del Tribunal Superior estadouni-
dense de finales de la década de 1980, sugiere que la defini-
ción legal de una clase de homosexuales implica, necesaria-
mente, la constitución menos visible de una clase de hetero-
sexuales. Y el cuestionamiento de Kendall Thomas de los
efectos del caso Bowers versus Hardwick sugiere que, cuan-
do atañe a cuestiones de homosexualidad, el Estado reniega
de su promesa de proteger a todos los ciudadanos de la vio-
lencia terrorista, al tiempo que autoriza efectivamente la vio-
lencia homófoba.30 La diferencia, en este contexto, opera con
la intención de consolidar con más fuerza y legislar el deseo
heterosexual y la ciudadanía.
De forma similar, David T. Evans sugiere que los meca-
nismos ideológicos centrales que conforman la ciudadanía en
el capitalismo avanzado son los papeles del consumidor y del
pagador de impuestos: «La historia de la ciudadanía es una
historia de principios patriarcales fundamentales, formales y
heterosexistas y prácticas ostensible y progresivamente “libe-
ralizadas” hacia y a través de la retórica de la “igualdad”, pero
puestas en práctica con el objetivo de provocar una diferen-
ciación desigual».31 Si los —implícitamente blancos— consu-
midores y pagadores de impuestos son ahora el prototipo de
ciudadano moderno, el discurso actual de la dependencia de
los servicios sociales del Estado estadounidense adquiere una
gran importancia para el análisis y la movilización feminista.
La definición de las mujeres pobres de color como destinata-
se permite la copia

rias paradigmáticas de la ayuda de los servicios sociales —


cuando, de hecho, son mujeres blancas las que constituyen el
mayor grupo— y los discursos característicos en torno a la
©

30 Janet E. Halley, «The Construction of Sexuality», en Michael Warner


(ed.), Fear of a Queer Planet: Queer Politics and Social Theory,
Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 1993, pp. 82-102;
Thomas, «Bowers vs. Hardwick».
31 Evans, Sexual Citizenship..., cit., p. 11.
Genealogías, legados, movimientos 169

dependencia, la falta de cultura y la personalidad psicológica


que se utilizan para disciplinar a estas mujeres indican que
las mujeres —negras— que utilizan los servicios sociales no
son, por definición, ni consumidoras ni pagan impuestos y,
por tanto, son no ciudadanas. Al trazar la genealogía del tér-
mino «dependencia» como una palabra clave para el Estado
de bienestar estadounidense, Nancy Fraser y Linda Gordon
demuestran que la definición, que anteriormente conllevaba
relaciones de poder, dominación y subordinación, ha sido
ahora reemplazada por otras que enfocan la «dependencia»
como sinónimo de pobreza o de desórdenes de la personali-
dad.32 De este modo, las madres adolescentes negras sin recur-
sos han adquirido, por excelencia, el estatus de dependientes de
los servicios sociales en la maquinaria de la ciudadanía esta-
dounidense. El estudio de Eveliynn Hammond sobre la repre-
sentación de las mujeres africanas-estadounidenses y el SIDA,
tanto en los medios de comunicación de masas como en el sis-
tema médico, ilustra la posición contradictoria, si bien altamente
visible, de las mujeres de color como sujetos dependientes —y
enfermas—, a la vez que se les niega el acceso a los recursos
necesarios para la supervivencia y el bienestar.
Así, una cuestión crucial para las feministas es si el fraca-
so de la agenda feminista para abordar el derecho a la asis-
tencia social indica una valorización del trabajo asalariado
de un modo que dé lugar a una convergencia entre el racis-
mo del Estado y el racismo dentro del movimiento feminis-
ta. La maquinaria estatal que posiciona a las mujeres de
color como sujetos dependientes y, por tanto, moralmente
inferiores es un argumento que las feministas en los movi-
mientos organizados aún han de desafiar. Este es, por tanto,
uno de los problemas éticos, intelectuales y políticos de
mayor significación para los movimientos feministas, ya
se permite la copia

sean liberales o socialistas. Es precisamente a partir de la teo-


rización de la cuestión de los privilegios, de la dependencia
y de la dominación desde el punto de vista de, por ejemplo,
las mujeres de color como «dependientes de la ayuda social»
©

32 Nancy Fraser y Linda Gordon, «A Genealogy of Dependency:


Tracing a Keyword of the U. S. Welfare State», Signs , núm. 19: 2, invier-
no de 1994, pp. 208-336; Martha L. Fineman, «Images of Mothers in
Poverty Discourses», Duke Law Journal, núm. 273, 1991, pp. 274-295.
170 Otras inapropiables

o de las mujeres inmigrantes como «trabajadoras indocu-


mentadas», cuando las luchas feministas plantean cuestio-
nes explícitamente anticoloniales y anticapitalistas.
Cierto número de críticas han analizado la convergencia
de los valores capitalistas y la concepción Democrática libe-
ral de la Democracia. En lugar de repetir estos argumentos
en detalle, nos inspiramos en el primer trabajo de Paulo
Freire en su Pedagogía de los oprimidos para esbozar el modo
en que los «mitos» utilizados por la clase gobernante para
preservar el statu quo capitalista son simultáneamente pro-
posiciones sobre la «Democracia» en una cultura liberal
capitalista. En conjunto, estos mitos constituyen una retórica
de la libertad y la igualdad que consolida las prácticas y los
valores, altamente opresores, de la dominación capitalista.
Bajo estas condiciones, la libertad y la igualdad funcionan
como derechos garantizados en el capitalismo, valores que
destacan las cuestiones del acceso económico y de la elec-
ción, de la libertad individual, de la movilidad social y eco-
nómica, de la igualdad definida como acceso, oportunidad y
elección y de la propiedad privada como algo constitutivo de
nuestra propia valía. Estos mitos dan por sentado quién es el
ciudadano con derecho a estos derechos. Definen la libertad
como el acceso y la elección de trabajar —más que como las
condiciones materiales y psíquicas que posibilitan tales acce-
sos y tales elecciones sobre una base equitativa—, y la igual-
dad como la igualdad de oportunidades y de derechos de
acuerdo a la ley, obviando el hecho que el ciudadano legíti-
mo que implican esas definiciones es, inequívocamente, el
consumidor y el pagador de impuestos, varón, blanco, hete-
rosexual y de clase hegemónica. El mito del «carácter funda-
mental de la propiedad privada para el desarrollo humano»,
en el que la propiedad de la tierra se combina con la valía
se permite la copia

personal, el prestigio y el desarrollo del propietario —a dife-


rencia de las concepciones que sostienen la propiedad comu-
nal de la tierra o del mundo, que insisten en que los seres
humanos no son propietarios de la tierra sino que viven en
©

relación con ella— sugiere una cosmovisión sistemática, en


la que los valores capitalistas inspiran los conceptos de ciu-
dadanía y Democracia liberal. De hecho, resulta en la prácti-
ca como si la democracia hubiera sido colonizada por el
capitalismo, imposibilitando, así, que la cuestión de la
democracia se plantee en relación con una práctica socialis-
Genealogías, legados, movimientos 171

ta. De este modo, el proyecto de especificar una democracia


feminista a estas alturas de la historia requiere que desem-
brollemos el colapso de la Democracia por el capitalismo y
que refundamos, en términos anticapitalistas, las concepcio-
nes éticas y sustantivas de los procesos democráticos.
Diversas autoras de esta colección abordan las cuestiones
de la libertad, de la igualdad y de la propiedad. El ensayo de
M. A. Jaimes Guerrero expone la contradicción entre los dis-
cursos de la vinculación de la propiedad privada al progreso y
al desarrollo y la utilización de las políticas de tierras para pri-
var a los pueblos nativos del derecho al voto y despojarlos de
su tierra. De una forma diferente, el ensayo de Anannya
Bhattcharjee acerca de las prácticas y discursos sobre la inmi-
gración, los aspectos públicos/privados de la ciudadanía y los
efectos sexistas, racistas y heterosexistas de las políticas de
inmigración sobre las mujeres surasiáticas en los Estados
Unidos, desvela las definiciones excluyentes de la libertad y de
la igualdad contenidas en el constructo del Estado-nación esta-
dounidense. Bhattacharjee analiza los significados de la ciuda-
danía desde la posición de una mujer/esposa inmigrante del
sur de Asia, trabajadora doméstica inmigrante y «extranjera
sin papeles». En este contexto, los conceptos de igualdad ante
la ley desafían las definiciones convencionales del supuesto
ciudadano legítimo con verdadero acceso y oportunidades.
La científica y política brasileña Evelina Dagnino sugiere
que la retórica del orden mundial Democrático es, de hecho,
el cemento de un orden global verdaderamente antidemo-
crático. La Democracia, aquí, es una generalización abstrac-
ta, reducida a una cuestión de procedimiento, en la que los
mecanismos formales de la democracia representativa se
suponen idénticos a un régimen democrático. En esta defini-
ción procesal de la Democracia —lo que algunos han llama-
se permite la copia

do los aspectos «promisorios» de la Democracia—, los pro-


gramas políticos, la representación y los efectos sustituyen a
las prácticas y la cultura democrática. Las prácticas sociales
y culturales basadas en una comprensión más profunda de
©

la democracia —considerando el aspecto relacional e iguali-


tario de la democracia— son eliminadas.33 Jaimes Guerrero y

33 Evelin Dagnino, «An Alternative World Order and the Meaning of


Democracy», en J. Brecher, J. Brown y J. Cutler (eds.), Global Visions:
Beyond the New World Order, Boston, South End Press, 1993, pp. 239-246.
172 Otras inapropiables

Alexander desafían esta definición procesal de la Democracia


al plantear la cuestión del significado de la ciudadanía para
las mujeres. Al escribir como extranjeras se enfrentan tanto
al Estado como a sus formas de exclusión —en relación con
los pueblos nativos, por un lado, y con las lesbianas y los
gays, por otro. Tanto para Jaimes Guerrero como para
Alexander, la Democracia representativa tal y como la defi-
ne Dagnino, es una condición claramente insuficiente para
la liberación. Junto a la crítica de Chandra Talpade del capi-
talismo y sus efectos devastadores para las trabajadoras
migrantes e inmigrantes del Tercer Mundo, estos análisis
sugieren el reto, crucial para las feministas, de teorizar y
poner en práctica la democracia desde un punto de vista
anticapitalista. El ensayo de Mohanty sobre la naturaliza-
ción de los procesos capitalistas a través de definiciones
domesticadas y heterosexualizadas del trabajo de las muje-
res y la hiperexplotación de las trabajadoras del Tercer
Mundo en distintas regiones del globo, expone la ideología
masculinista y excluyente del «trabajador» como un aspecto
importante de las relaciones sociales de la Democracia capi-
talista y de la construcción de solidaridades entre mujeres
del Tercer Mundo que atraviesen las fronteras nacionales.
El reto planteado a las feminitas es, por tanto, el de efectuar
la crítica, al tiempo que se produce una separación, de esta for-
mulación del Estado Democrático estadounidense; una formu-
lación que conduce normalmente a la invisibilización de la cen-
tralidad de las experiencias de colonización en las vidas de las
mujeres del Tercer Mundo y de las mujeres estadounidenses
de color. Esta invisibilización también permite a las feministas
del Primer Mundo polarizar la cuestión de la «supervivencia»
versus asuntos «feministas» en términos de Tercer y Primer
Mundo, colonizando, por tanto, las experiencias de las mujeres
se permite la copia

del Tercer Mundo e imposibilitando las alianzas en términos


materiales. El énfasis que pone Jaimes Guerrero en lo que hay
de fundamental, para las mujeres nativas, en los derechos terri-
toriales y en la soberanía política, contrasta bruscamente con
©

una noción feminista liberal de la liberación definida, por


ejemplo, en términos de peticiones formuladas al supuesta-
mente democrático Estado de los Estados Unidos en beneficio
de las mujeres. En esta última formulación no existe lenguaje o
marco conceptual para imaginar la soberanía territorial como
una exigencia feminista —o para teorizar la descolonización
como un aspecto fundamental de la lucha feminista. Así, las
Genealogías, legados, movimientos 173

acciones imperiales o coloniales de los presumiblemente


Democráticos Estados Unidos, se mantienen invisibles.

b) Imaginar la democracia feminista. Anatomías de los tipos de


yo, comunidades, organizaciones.

La discusión anterior pone de relieve las jerarquías de gobierno


y dominación que producen el yo liberal individual en la
Democracia capitalista. El análisis de los límites de una concep-
ción procesal, de libre mercado de la Democracia dirige su aten-
ción a las precisas jerarquías contra las que se posicionan las
colectividades y las organizaciones feministas al construir prác-
ticas de descolonización e imaginar una democracia feminista
transformadora. Comenzamos cartografiando someramente los
argumentos sobre la democracia y la ciudadanía bajo el capita-
lismo que han ofrecido algunas teóricas políticas feministas,
para clarificar y agudizar nuestra visión colectiva de una demo-
cracia feminista que ponga en su centro la descolonización.
Las teóricas políticas feministas se han ocupado de cierto
número de cuestiones interrelacionadas a la hora de pensar el
proyecto de la democracia en los Estados-nación contemporá-
neos del Primer Mundo. Las críticas de los modelos liberales
masculinistas de universalidad de los derechos y de la ciuda-
danía, y la distinción público/privado en la que estos descan-
san, están moduladas por las discusiones sobre la raza, la
clase y la sexualidad en relación con los derechos y la integri-
dad de los cuerpos de las mujeres. Mientras Jean Bethke
Elshtain sugiere «la familia» y el ejercicio de la maternidad
como el nuevo locus de definición de una ciudadanía no-mas-
culinista, Carole Pateman aboga por un concepto sexualmen-
te diferenciado de ciudadanía, en el que una definición políti-
se permite la copia

ca de la maternidad adquiriera la misma relevancia, para defi-


nir la ciudadanía, que el patriotismo en el caso de los hom-
bres. Ninguna de estas teóricas conceptualizan los diferentes
significados de la maternidad y el cuidado que surgen de las
©

diferentes situaciones raciales y sexuales en lo político.34

34 Jean Bethke Elshtain, Public Man, Private Woman, Princeton, Princeton


University Press, 1981; y «On the Family Crisis», Democracy, núm. 3: 1,
invierno de 1993, p. 138; Carole Pateman, The Sexual Contract, Stanford,
Stanford University Press, 1988.
174 Otras inapropiables

Iris Marion Young, en contraste, da cuenta de la raza cuando


explora el concepto de un «público heterogéneo» y de una
ciudadanía grupal diferenciada, en la que diversos grupos
raciales, sexuales o genéricos pudieran hacer reclamaciones
sobre la base de sus diferencias, más que por aproximación
a una experiencia blanca masculina universal.35 Chantal
Mouffe, por otro lado, nos invita a imaginar una democracia
radical en la que la diferencia sexual se vuelva eventualmen-
te irrelevante en relación a los principios de libertad e igual-
dad para todos.36 Otras feministas, como Nancy Fraser, han
insistido en la necesidad de repensar el concepto de derechos
en relación a la interpretación y la satisfacción, de las necesi-
dades de distintos grupos de mujeres marginadas en el
Estado de bienestar de los Estados Unidos.37 Zillah Eisenstein
aboga de manera persuasiva por una reconceptualización de
la división público/privado desde el punto de vista de las
mujeres de color, afirmando la necesidad de repensar conti-
nuamente el concepto de derechos democráticos «para exigir
la igualdad de oportunidades vía un Estado afirmativo y no
intervencionista». Basa su definición de la democracia en una
reinvención de un discurso radical del derecho a la privaci-
dad, que atiende a las políticas reproductivas y corporales de
las mujeres estadounidenses de color.38 Patricia J. Williams
afirma que el problema del discurso sobre los derechos con-
siste en que éste critica la afirmación de los derechos en lugar
del compromiso con los derechos. Al afirmar que «los dere-
chos son a la ley lo que el compromiso consciente es a la psi-
que», Williams subraya lo significativo de la concesión de
derechos para todos los pueblos históricamente desautoriza-
dos, como algo simbólico para «todos los aspectos denegados
de su humanidad».39
se permite la copia

35 Young, «Polity and Group Difference», op. cit.


36 Chantal Mouffe, «Feminism, Citizenship, and Radical Democratic
Politics» en J. Butler y J. W. Scott (eds.), Feminists Theorize the Political,
©

Nueva York/Londres, Routledge, 1992, pp. 369.384.


37 Fraser, Unruly Practices, cit.
38 Eisenstein, The Color of Gender, cit., en especial p. 219.
41 Williams, The Alachemy of Race and Rights, pp. 6 y 153. Véase también
Nancy Folbre, Who Pays for the Kids? Gender and the Structures of
Constraint, Nueva York, Routledge, 1994; y los ensayos de las siguientes
Genealogías, legados, movimientos 175

Si bien encontramos útil el trabajo de estas teóricas para defi-


nir los límites de la ciudadanía y de los derechos democráti-
cos para las mujeres en el capitalismo, queremos reenfocar
estas preocupaciones con el objeto de explorar las posibilida-
des democráticas de la formulación de la ciudadanía inspi-
rándonos en principios socialistas. En lo que sigue, explora-
mos lo que significaría 1) dar cuenta de la descolonización en
relación con la democracia y 2) imaginar la conciencia crítica
y la agencia fuera de las concepciones procesales y de libre
mercado de la agencia individual. Así, la cuestión que nos
planteamos es, ¿cómo se conciben las mujeres a sí mismas y a
sus comunidades en el contexto de esta re-teorización? El
modo de pensarnos fuera de las limitaciones de las formula-
ciones occidentales liberales de la Democracia que anterior-
mente hemos analizado consiste en imaginar la movilización
política como práctica de una descolonización activa. Las
transformaciones de la conciencia y las reconceptualizaciones
de la identidad son, por tanto, aspectos necesarios de la demo-
cracia concebida como práctica de descolonización.
La centralidad de la práctica colectiva en las transforma-
ciones del yo y en la revisión de la democracia organizativa,
es la base del pensamiento feminista. De hecho, el pensa-
miento feminista, aquí, se inspira y ratifica los principios
socialistas de la colectivización de los medios de producción.
Intenta reimaginar el socialismo como una parte de la demo-
cracia feminista que sitúa la descolonización en su centro. Sin
embargo, mientras los colectivos feministas luchan contra las
estructuras hegemónicas de poder a distintos niveles, también
se encuentran marcados por estas mismas estructuras —son
estos rastros de lo hegemónico a lo que atienden las prácticas
de descolonización. Así, por ejemplo, Geraldine Heng habla
del modo en que el feminismo adopta el manto nacionalista
se permite la copia

en Singapur y Ayesha Imam examina las contradicciones de


©

antologías: Sheyla Benhabib y Drucilla Cornell (eds.), Feminism as


Critique, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987; Carole
Pateman y Elizabeth Grosz (eds.), Feminist Challenges: Social and
Political Theory, Boston, Northeastern University press, 1986; y
Kathleen B. Jones y Anna S. Jonasdottir (eds.), The Political Interests of
Gender: Developing Theory and Research with a Feminist Face, Londres,
Sage Publications, 1988.
176 Otras inapropiables

la política sexual de clase media en la organización WIN de


Nigeria. De manera similar, Honor Ford Smith explora, en la
dinámica interna de Sistren, los efectos negativos de la ideo-
logía de la «Lady Bountiful», la «maternal matrona de la
caridad que es o bien asexual o cuyas necesidades sexuales
pueden realizarse en la maternidad de la familia heterose-
xual». Estos análisis ofrecen una cierta claridad de pensa-
miento al visibilizar las contradicciones a las que se enfren-
tan los colectivos feministas a estas alturas de la historia. Son
reflexiones cruciales en la medida en que llegan relativa-
mente pronto a la vida de estas organizaciones. Lo que
aprendemos de ellas puede muy bien apuntar hacia nuevas
formas de pensar la organización de las colectividades femi-
nistas —para construir prácticas descolonizadoras.
La interrelación de lo hegemónico y lo antagonista al
pensar el yo feminista es explorada de distintas formas por
Gloria Wekker, Paula Moya y Kavita Panjabi. El ensayo de
Wekker acerca de la agencia crítica de las mujeres afro de
Surinam, explora lo que aparenta ser una configuración dis-
tinta del yo, anclada en una «visión alternativa de la subjeti-
vidad y la sexualidad femenina, basada en los principios de
África occidental». Sus análisis del trabajo de Mati en térmi-
nos de relaciones alternativas entre mujeres, que comportan
simultáneamente componentes afectivos, culturales, econó-
micos, sociales, espirituales y morales, sugieren un guión
antagonista y descolonizado para la lucha feminista y las
prácticas de gobierno. La descolonización implica tanto un
compromiso con la cotidianidad de nuestras propias vidas
de forma que podamos dar cuenta del mundo en relación
con el poder hegemónico, como un compromiso con colecti-
vidades que tengan como premisa las ideas de autonomía y
autodeterminación, en otras palabras, la práctica democráti-
se permite la copia

ca. Para las mujeres creole obreras de las que habla Wekker,
este es precisamente el proceso implicado. Un proceso que
crea lo que ella denomina una «economía psíquica de la sub-
jetividad femenina, [que]...! induce a las mujeres de clase
©

obrera a actuar individual y colectivamente de forma que


contrarrestan el cerco del régimen de conocimiento hegemó-
nico —que privilegia a los varones— el contrato heterose-
xual, la desigualdad y una situación general de injusticia».
Aquí, la inversión en el yo —que Wekker llama «un yo múl-
tiple»— no es necesariamente una inversión de la movilidad
Genealogías, legados, movimientos 177

ascendente para el mantenimiento de un statu quo masculi-


nista, heterosexista y de clase media.
La discusión de Paula Moya sobre el feminismo chicano
y sobre el trabajo de Cherríe Moraga opera de un modo un
tanto diferente, aunque plantea preguntas similares sobre la
conciencia, la identidad y la colectividad en la construcción
de tipos de «yo» políticos. El ensayo de Moya ilustra los vín-
culos entre experiencias de colonización racial, sexual, de
género y de clase, a nivel institucional y psíquico, y la tra-
yectoria y las posibilidades de una praxis feminista emanci-
padora en la línea de lo que Freire llama «concienciación».
Al analizar las conexiones entre posición social, experiencia
e identidad cultural en el trabajo de Cherríe Moraga, lesbia-
na feminista estadounidense, Moya nos ofrece un recuento
sistemático y cuidadoso de las contribuciones epistemológi-
cas y políticas de las mujeres de color al teorizar la práctica
emancipadora. Al explorar las conexiones entre las concep-
ciones del yo y de lo social, y al situar un componente cog-
nitivo en la teorización del yo-en-comunidad, Moya articu-
la las fases implicadas en la transformación de la conciencia
de las mujeres de color. Esto está enraizado en la realidad
física de sus vidas —lo que Moraga denomina «teoría en la
carne». Tanto Wekker como Moya teorizan la agencia y la
subjetividad en el contexto de la lucha colectiva. Pero mien-
tras que Wekker sugiere una nueva concepción del yo múl-
tiple enraizado en una economía psíquica y sexual alterna-
tiva, Moya nos ofrece una genealogía del yo político en el
contexto de unas estructuras de dominación psíquicas y
sociales opresivas y heredadas.
El ensayo de Kavita Panjabi cartografía una versión dife-
rente del sujeto político feminista, al plantear cuestiones refe-
se permite la copia

rentes al significado de la insurgencia feminista —de la ingo-


bernabilidad— bajo condiciones extremas de privación —es
decir, la prisión. Al afirmar que los testimonios de las presas
son «reconstrucciones narrativas que reflexionan sobre la pri-
©

sión o el campo de concentración como una encarnación


microcósmica de las relaciones tanto hegemónicas y autorita-
rias como antihegemónicas y antiautoritarias entre el Estado
y el individuo», Panjabi explora la creación del yo en los tex-
tos de Jaya Mitra y Alicia Partnoy como una forma de resis-
tencia y supervivencia en condiciones represivas físicas y
178 Otras inapropiables

mentales. A diferencia de Wekker y Moya, Panjabi no enfati-


za una instancia de compromiso político en los movimientos
de mujeres. Sin embargo, al explorar la construcción de la
conciencia feminista opositiva y colectiva a través del des-
arrollo de estrategias de resistencia basadas precisamente en
las ideologías de la familia, la maternidad y la crianza, utili-
zada para torturar a las mujeres, examina también los vín-
culos entre el desarrollo del yo de las mujeres y las luchas
políticas a mayor escala contra la represión. La codificación
de la experiencia de la represión y de la resistencia —por
ejemplo, compartir la comida como estrategia colectiva para
la supervivencia física y psíquica en la prisión— proporciona
claves para la construcción de una conciencia política contra-
hegemónica como mujeres. Se trata de una forma de movili-
zación a través de la escritura. Una forma de descolonización,
de imaginar la comunidad de un modo diferente, es pensarse
a una misma fuera de este espacio de extrema represión. Al
explorar la agencia de las mujeres en la creación activa de rela-
ciones, valores y formas de comunicación contra-hegemóni-
cas, para desafiar la colonización deshumanizadora de la pri-
sión, los análisis de Panjabi sugieren que estas genealogías del
sujeto político son diferentes de la narrativa del llegar-a-ser
del sujeto femenino individual del feminismo liberal.
En los ensayos de Wekker, Moya y Panjabi, la historia, la
memoria, las emociones y los lazos afectivos se interpretan
como elementos cognitivos significativos en la construcción
de sujetos feministas críticos y auto-reflexivos. Si bien cons-
truyen conceptos diferentes del yo, cada uno de los ensayos
sugiere que la descolonización emparejada con una práctica
colectiva emancipadora conduce a una reconceptualización
de los legados patriarcales, heterosexuales, coloniales, raciales
y capitalistas en el proyecto del feminismo y, así, a una nueva
se permite la copia

imagen de la democracia y la práctica democrática colectiva.


Cada una sugiere que las cuestiones de la política sexual del
gobierno resultan fundamentales para pensar las cuestiones
de la resistencia en las vidas cotidianas de las mujeres; de este
©

modo, sostienen que estas cuestiones son un aspecto integral


de la epistemología de una lucha feminista anticolonial.
De manera similar, los ensayos de Honor Ford-Smith,
Ayesha Imam y Vasanth y Kalpana Kannabiran, que se cen-
tran en la anatomía de organizaciones feministas, sugieren
Genealogías, legados, movimientos 179

que las mujeres se definen a sí mismas de maneras diferen-


tes en virtud de su implicación en movimientos políticos.
También señalan las limitaciones de los imaginarios —a
menudo vinculados a los fracasos del socialismo y del nacio-
nalismo anticolonial— que, en ocasiones, han heredado los
movimientos de mujeres. Los análisis de estas autoras ilumi-
nan las herencias contradictorias, particularmente de las
prácticas de la dominación, y postulan la organización de
prácticas colectivas, una vez más, poniendo en primer plano
la necesidad de abordar la descolonización como un aspecto
fundamental de la lucha feminista. Estos ensayos también
nos ofrecen esperanza en medio de circunstancias poco favo-
rables. Mientras los espacios para la transformación colecti-
va se hunden frente a la dominación capitalista transnacio-
nal, los ensayos de esta colección apuntan a los intersticios, a
los escasos espacios colectivos disponibles para imaginar y
poner en práctica futuros alternativos.
Los análisis de Honor Ford-Smith sobre los efectos de las
subvenciones en el grupo feminista de Jamaica, Sistren, nos
proporcionan una critica interna, un punto de vista desde
dentro, de una organización radical feminista que se inspira
en ideologías reaccionarias y conservadoras y en construc-
ciones coloniales de la feminidad y el voluntariado, a la par
que trabaja por la liberación de las mujeres. En este ensayo
se abordan directamente, sin rodeos, las cuestiones del
poder, la autoridad, la responsabilidad y el liderazgo en la
construcción de una práctica democrática. Así, la descoloni-
zación, la práctica colectiva feminista, la subjetividad y la
agencia, permeadas por las experiencias e historias de clase
y raza, forman parte de la discusión de Honor Ford-Smith
sobre las posibilidades de una práctica democrática organi-
zativa. Este ensayo explora la relación de la cultura y la
se permite la copia

pedagogía como estrategia de movilización y auto-determi-


nación. Aquí, las cuestiones de la educación popular son
simultáneamente cuestiones acerca de la reconstrucción de
la cultura política; los análisis de Sistren arrojan preguntas
©

de una conciencia política y ética radicalmente nueva que


crea un espacio público de disenso.
De cualquier forma, otro aspecto, que también es parti-
cular de los diversos análisis de las organizaciones y de los
movimientos feministas recogidos en esta compilación, es el
180 Otras inapropiables

acento en la exploración de cómo ciertas coyunturas históri-


cas hacen posible que algunas cuestiones particulares emer-
jan en las organizaciones de mujeres. En el caso de los análi-
sis de Vasanth y Kalpana Kannabiran del movimiento de
mujeres Indias de Hyderabad, del análisis de Ayesha Imam
de WIN en Nigeria y de la exploración de Geraldine Heng
de las variantes del feminismo del Tercer Mundo bajo condi-
ciones de represión estatal extrema en Singapur, las conexio-
nes entre los procesos internacionales —por ejemplo, las
políticas PAE y del FMI— y la colisión del Estado postcolo-
nial son fundamentales para entender la genealogía de las
organizaciones de mujeres. En estos tres casos, las narrati-
vas, las prácticas heredadas de organización feminista y las
divisiones internas deben enmarcarse en el contexto de un
proceso histórico y cultural más amplio, global al mismo
tiempo que particular.
Las prácticas estatales postcoloniales, incluidas la crítica
de un gobierno socialista y un Estado democrático, confor-
man el contexto político del análisis de Vasanth y Kalpana
Kannabiran sobre el surgimiento del movimiento de mujeres
en Hydebarad. Trazan la genealogía paterna y patriarcal del
contexto político, en el que los grupos de mujeres (SAKHI)
empiezan priorizar sus propios problemas, como resultado
de las movilizaciones estatales y religiosas fundamentalistas.
Como en los estudios de Honor Ford-Smith y Ayesha Imam,
esta crítica interna de las contradicciones de la organización
feminista —particularmente la división activistas/académicas
heredada por SAKHI— está vinculada a las políticas mascu-
linistas de la izquierda y del movimiento comunista en India.
De forma similar Ayesha Imam examina los desafíos organi-
zativos a los que se enfrenta Women in Nigeria (WIN) dada
la complicidad del militarizado Estado postcolonial nigeria-
se permite la copia

no con los procesos globales de ajuste estructural. Al refle-


xionar sobre las contradicciones internas de WIN, Imam
cuestiona su capacidad política para intervenir en la devasta-
dora marginación de las mujeres por las PAE y el Estado
©

nigeriano. Al reiterar el objetivo último de WIN, la «transfor-


mación democrática de las relaciones sociales de clase y géne-
ro», Imam cartografía las limitaciones y los éxitos de las prác-
ticas organizativas feministas en el contexto de una profunda
colonización económica, social y psíquica de Nigeria.
Genealogías, legados, movimientos 181

Estos análisis muestran las diferentes exigencias que deben


hacérsele al Estado, una vez que los procesos históricos —en
especial el colonialismo— son tenidos en cuenta. Al pregun-
tarnos cómo los grupos llegan a formular la idea del interés
común, las autoras están de acuerdo en que los movimientos
de mujeres no pueden ser puramente reactivos en relación
con el Estado. Sin duda, el Estado es un objetivo primordial de
las organizaciones, pero estos ensayos no alientan formula-
ciones fáciles de una relación lineal entre la represión y la
resistencia, donde el pensamiento crítico sobre la experiencia
por parte de las personas oprimidas se da por supuesto.
Como lo expresa Paula Moya: «El simple hecho de haber naci-
do persona de color [en los Estados Unidos] o de haber sufri-
do los efectos del heterosexismo o de la privación económica
no otorga, por sí mismo, a alguien una compresión o conoci-
miento mejor de [nuestra] sociedad. La clave para reclamar
autoridad epistémica para las personas que han sido opri-
midas de una forma particular proviene de un reconoci-
miento de que tienen experiencias —experiencias de las que
la gente que no está oprimida del mismo modo habitualmen-
te carece— que pueden proporcionarles información que
todos necesitamos para comprender de qué modo las jerar-
quías de raza, clase, género y sexualidad operan para soste-
ner los regímenes de poder existentes en nuestra sociedad».
Así, la experiencia de la represión puede ser, pero no lo es por
necesidad, un catalizador para la organización. De hecho, es
la interpretación de esa experiencia en un contexto colectivo la
que marca el momento de paso de la percepción de las con-
tradicciones y de la privación material a la participación en
movimientos de mujeres. Finalmente, los ensayos ofrecen
una esperanza colectiva y unos guiones concretos para
repensar y transformar las jerarquías de dominación.
se permite la copia

Las condiciones bajo las que emergen los movimientos


feministas, la construcción de prácticas organizativas y
agendas políticas, las mujeres que se involucran en los movi-
mientos y las imágenes de nuevos modos de práctica orga-
©

nizativa, son todos elementos claves para pensar la demo-


cracia feminista. Este «pensar» incluye la cuestión de lo que
significa imaginarse a una misma como actriz fuera de las
estructuras represoras estatales. Como se mencionó ante-
riormente, las feministas se imaginan a sí mismas como
actrices —ni víctimas ni dependientes— en relación con la
182 Otras inapropiables

ciudadanía. Esto plantea la cuestión de lo que significaría


para las mujeres pobres y del Tercer Mundo imaginar y exigir
un espacio democrático en el que sus historias, su agencia, su
autonomía y su auto-determinación se situaran en el centro.
En la concepción capitalista patriarcal de la Democracia, la
adquisición de propiedades materiales y la satisfacción de las
necesidades de consumo se convierten en las marcas de la
propia valía. Pensar de un modo diferente la democracia
feminista, por tanto, implica la descolonización en estos mis-
mos y específicos términos anticapitalistas. Para que la soli-
daridad entre las mujeres del Tercer Mundo en el Tercer
Mundo geográfico y las mujeres de color del Primer Mundo
sea posible, la dominación imperialista y las actitudes capi-
talistas hacia la adquisición y el progreso deben convertirse
en parte de un proyecto feminista de liberación. La práctica
democrática feminista en este contexto, entonces, no puede
tratar del propio provecho, de la movilidad ascendente o del
mantenimiento del statu quo del Primer Mundo. Ha de estar
basado en la descolonización del yo y en nociones de ciuda-
danía definidas no únicamente dentro de los límites del
Estado nación sino a través de las fronteras nacionales y
regionales. Nos atreveríamos a sugerir que en el contexto de
una democracia feminista definida de la forma que sugeri-
mos más arriba, un feminismo capitalista sería algo contra-
dictorio. Conceptualmente, una democracia feminista de
alcance global necesitaría estar basada en principios antico-
loniales y socialistas.
Si bien la idea de una democracia participativa trans-
fronteriza —en la que no es el Estado sino las personas quie-
nes aparecen como actores principales en la definición del
curso de los procesos económicos y políticos que estructuran
se permite la copia

sus vidas— no ha sido una idea primordial en la agenda de


los movimientos de mujeres por la democracia, quizás haya
llegado por fin su hora.40 La democracia feminista anticolo-
nialista implica pensar transnacionalmente, en un mundo
©

sometido a una creciente reconfiguración ordenada por los


procesos globales económicos y políticos,; la democracia

40 Muto Ichiyo, «For an Alliance of Hope», en J. Brecher, J. Brown y J.


Cutler (eds.), Global Visions: Beyond the New World Order... cit., pp. 147-162.
Genealogías, legados, movimientos 183

transnacional resulta tan necesaria como la democracia


nacional. Los ensayos de Shohat, Mohanty, Imam y
Alexander iluminan los efectos de las instituciones económi-
cas y culturales internacionales en las mujeres del Tercer
Mundo. Aunque es difícil por ahora concebir prácticas
democráticas de representación y responsabilidad en rela-
ción con estas instituciones —medios, turismo, PAE, organi-
zación del trabajo—, la necesidad de democratizarlas no
puede ser ignorada. De esta forma, organizaciones que
toman decisiones que afectan las vidas de todo el mundo
como el Banco Mundial, el FMI y el GATT, tendrían que ren-
dir cuentas de sus actuaciones. De hecho, los procesos de
toma de decisiones en estas instituciones deberían abrirse a
la participación y el escrutinio feminista.
En muchos aspectos, los marcos intelectuales y políticos
centrales de esta compilación no son fortuitos. Han consti-
tuido los principios organizativos de nuestro trabajo y de
nuestras vidas a lo largo de la última década. Así, las cues-
tiones que atañen a la democracia feminista —la descoloni-
zación como algo crucial en la transformación propia y
colectiva, el carácter fundamentalmente pedagógico de la
praxis feminista, el imperativo profundamente anticapitalis-
ta y socialista en imaginar y llevar a la práctica luchas globales
feministas— constituyen el tejido de nuestra acción, refle-
xión e imágen de futuro. A lo largo de años, de haber traba-
jado a contracorriente en instituciones hegemónicas y colo-
nizadoras, en comunidades feministas y otras comunidades
de base, hemos llegado a comprender que el terror emocio-
nal producido por los intentos de renunciar al propio poder
y a los propios privilegios, en la lucha por la autodetermina-
ción, debe ser examinado minuciosamente. El reto reside en
un compromiso ético con el trabajo de transformar el terror
se permite la copia

en un compromiso basado en la empatía, en una imagen de


justicia para todas las personas. Después de todo, es esto lo
que se encuentra en el núcleo de la construcción de una soli-
daridad a través de fronteras sociales, económicas y psíqui-
©

cas, siempre debilitadoras. Los efectos más profundos de


nuestra forma de organizar e imaginar la liberación como
una condición permanente para todas las personas pueden
no ser experimentados hasta, al menos, dentro de siete gene-
raciones. Como ha afirmando Frantz Fanon, cada genera-
ción tiene la responsabilidad de producir y transformar los
Saúde, Sexo
e Género
Factos, Representações e Desafios

Direcção-Geral da Saúde
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 3

Saúde, Sexo
e Género
Factos, Representações e Desafios
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 4 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 5

Ficha Técnica … Everyone who cares for patients or, for that matter, comes in contact with the oldest citizens of our
Autoria society, knows that women outlive men. But male vulnerability as they approach older age is far from
Ana Rita Laranjeira the whole story - from the moment of conception until they die, men are strikingly less likely to survive
Direcção-Geral da Saúde
than are women.
António M. Marques
Instituto Politécnico de Setúbal / Escola Superior For example, even though there are more male than female embryos, probably because spermatozoa
de Saúde de Setúbal carrying the Y chromosome swim faster than those carrying X chromosome, there are more miscar-
Célia Soares riages of male fetuses. Some pundits hypothesize that the gallant Y-bearing sperm is preferentially
Instituto Politécnico de Setúbal / Escola Superior
de Saúde de Setúbal attracted to immature and imperfectly developed oocytes (Do men prefer youth even at the expense of
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da
Empresa age-dependent characteristics like wisdom and stability, even in the womb? Or is it a chivalrous attempt
Vasco Prazeres (coordenador) to rescue the most vulnerable ova?)…
Direcção-Geral da Saúde

Colaboração
Ana Paula Paulino Marianne Legato, 2006
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Helena Santos
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Sónia Gonçalves
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Instituto Piaget
Susana Batel
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa

Capa
Augusto Cardanha

SAUDE, SEXO E GENERO


Saúde, sexo e género : factos, representações e desafios / Vasco Prazeres, coord. ... [et al]. - Lisboa : DGS, 2008. - 137 p. : il.
ISBN 978-972-675-181-6

Género / Sexo / Médicos / Enfermeiros / Entrevistas / Questionários / Informação--análise / Política de saúde

276640/08
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 6 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 7

Nota Introdutória 11
Índice
CAPÍTULO I
Desigualdades em saúde dos homens e das mulheres 15
Determinantes da saúde 17
O paradigma ecológico na epidemiologia 20
Mulheres, homens e saúde 21
Em torno dos conceiros de sexo e de género 24
Sexo, género e saúde 26
Efeitos de sexo e género na saúde - a linguagem dos números 29
Principais causas de morte, em ambos os sexos 32
Género e políticas de saúde 40
O sector da saúde como estrutura genderizada 41

CAPÍTULO II
Representações dos profissionais de saúde 49
Estudo 1 50
Estudo 2 67

CAPÍTULO III
Género e políticas de saúde 83

CAPÍTULO IV
Considerações finais 101

Referências 107
Apêndices 119
Apêndice I – Questionário do Estudo 1 120
Apêndice II – Gráficos dos resultados do Estudo 1 125
Apêndice III – Guião das entrevistas realizadas no Estudo 2 133
Apêndice IV – Gráficos utilizados na entrevista com a distribuição
do n.º de homens e mulheres por algumas especialidades
médicas/enfermagem 135
Apêndice V – Questões orientadoras da análise documental 137
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 8 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 9

Prefácio

O género, entendido como a construção social das diferenças entre homens e mulheres, é um de-
terminante social com reconhecido impacte nos indicadores de saúde. A par da vasta produção cien-
tífica neste domínio, em particular no âmbito das ciências sociais, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) tem realçado a importância do desenvolvimento de políticas de saúde sensíveis ao sexo e ao
género.

Em Portugal, a emergência destas questões surge no debate da promoção da saúde sexual e reprodu-
tiva, como forma de contribuir para melhores resultados em saúde através do empowerment do estatuto
das mulheres. Por outro lado, recentemente, em Novembro de 2007, a proposta para a criação do Fórum
Português para a Saúde dos Homens assinala a desigualdade da esperança de vida entre homens e mu-
lheres,bem como as diferenças existentes na taxa de mortalidade bruta e prematuridade da mortalidade
de homens, considerando “imperativa uma abordagem da saúde sensível ao género”.

O documento que ora se divulga resulta de um conjunto de estudos que foram elaborados no âm-
bito do Projecto “Saúde, Sexo e Género – PROSASGE”, que está a ser desenvolvido na Direcção-Geral
da Saúde, desde Maio de 2006.

Tal iniciativa inscreve-se numa valorização crescente, no domínio da saúde, quer do estudo das seme-
lhanças e diferenças entre homens e mulheres e do papel do sexo e do género enquanto determi-
nantes da saúde, quer da eliminação das iniquidades que são geradas.

À escala mundial, este movimento tem vindo a intensificar-se no decurso dos últimos anos, com ins-
tâncias internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, o FNUAP, a União Europeia e o Con-
selho da Europa a colocarem este assunto em destaque nas respectivas agendas, inserindo-o numa
perspectiva mais ampla de luta contra as desigualdades de género.

A nível nacional, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género polariza um conjunto de moti-
vações e iniciativas neste domínio com impacte na saúde de mulheres e homens.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 10 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 11

Por seu lado, o III Plano Nacional para a Igualdade 2007-2010 preconiza a acentuação de uma “Pers- Nota Introdutória
pectiva de Género nos Domínios Prioritários da Política”, apontando um conjunto de 2 objectivos e 7
medidas concretas a serem desenvolvidas no Sector da Saúde. Por seu turno, a comunidade cientí-
fica, a quem é reconhecido o mérito de ter impulsionado a investigação nestas matérias, tem procu- Afinar os mecanismos que permitem medir o estado de saúde e o bem-estar de cada pessoa, assim
rado dar a conhecer saberes que sustentem novos paradigmas de intervenção neste domínio. como estabelecer comparações entre indivíduos e entre grupos, nessa matéria, constitui uma pre-
ocupação nuclear das Ciências da Saúde. Do progresso permanente dessa tarefa depende a possi-
É, pois, neste contexto que se insere o trabalho agora apresentado, desejando-se que possa repre- bilidade de accionar dispositivos de educação, prevenção e protecção que contribuam para a obtenção
sentar um contributo válido para o reforço do gender mainstreaming na Saúde, e para a obtenção de de mais ganhos em saúde, para cada cidadão e para as populações em geral.
mais ganhos em saúde, numa perspectiva de equidade entre homens e mulheres.
É possível identificar dissemelhanças no que respeita à saúde de cada indivíduo nos diversos mo-
Mas, a concretização do gender mainstreaming (entendido como a impregnação do género nos pro- mentos do respectivo ciclo vital, quando se estabelecem comparações entre indivíduos, ou quando
gramas) impõe esforços acrescidos. O reconhecimento sistemático das diferenças e similitudes entre se colocam em equação populações diferentes ou grupos de indivíduos que ocupam posições as-
homens e mulheres constitui um mecanismo necessário para assegurar respostas adaptadas às ne- simétricas nas hierarquias sociais (Graham, 2007)1.
cessidades da população, contribuindo, desta forma, para a melhoria do estatuto de saúde de homens
e mulheres. Os vários caminhos apontados para encarar tais desigualdades em saúde, ou seja, o estudo das varia-
ções individuais, concretizado através da abordagem clínica e dos cuidados personalizados, o das
Se é certo que, actualmente, o género é reconhecido como importante determinante, sendo priori- diferenças entre grupos ou o das dissemelhanças socialmente estruturadas, mais do domínio da Epi-
dade para as agendas da saúde, já o desafio do gender mainstreaming gera o desenvolvimento de es- demiologia e da Saúde Pública, não devem ser encarados como mutuamente exclusivos. As dimen-
tratégias inovadoras. sões subjacentes têm virtualidades próprias e, cada vez mais, se verifica a necessidade de se
desenvolver uma acção integrada destas diferentes formas de abordar o fenómeno da saúde e da
Cabe à Direcção-Geral da Saúde liderar este processo. doença nos seres humanos.

No presente trabalho, pretende-se dar evidência particular a certas formas de desigualdade em saúde
Francisco George que são, em parte substantiva, socialmente geradas, mantidas ou agravadas – e por isso merecedoras
Director-Geral da Saúde de respostas adequadas numa sociedade verdadeiramente democrática.

Concretamente, o tema nuclear desta dissertação é o das dissemelhanças verificadas quanto à saúde
nos homens e nas mulheres, não deixando de abordar as que decorrem do dualismo biológico, mas
colocando a tónica mais naquelas que, tomando-o como justificação, continuam a ser socialmente
construídas.

1 No presente documento, serão frequentemente empregues, como sinónimos, os vocábulos “desigualdades”, “disparidades”, e “dissemelhanças”, sem-
pre que a apreciação das diferenças detectadas não releve formas de injustiça relativa entre os grupos em análise; nesse caso, aquelas serão designadas
por “iniquidades”, conforme adiante se verá.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 12 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 13

Assim, procura-se utilizar uma perspectiva compreensiva acerca das diferenças relevantes quanto a Nesse sentido, as iniquidades ligadas ao género merecem relevo particular. Minorá-las ou eliminá-las
indicadores de saúde, ou, mais concretamente, no que respeita a dados da mortalidade nos homens exige uma maior clarificação da matriz complexa de variáveis que o sustentam, quer sob o ponto de
e nas mulheres, a determinantes e factores que para eles podem contribuir, ao modo como o próprio vista conceptual, quer nos aspectos do dia-a-dia em que se manifesta.
sector da Saúde lida com a questão, bem como aos desafios que se colocam quanto à intervenção fu-
tura. Tais determinantes da saúde só podem ser integralmente percebidas quando equacionadas nas in-
teracções com as outras determinantes. O impacte produzido só se evidencia, na sua plena expressão,
Para tal, assume-se que o ser homem ou mulher consubstancia uma determinante em saúde com- quando o facto de ser homem ou mulher se cruza com outros elementos de análise, que lhe conferem
plexa, de cariz muito particular, uma vez que os mecanismos de acção e o impacte gerado se tornam, valor e contornos diferentes, tais como a classe social de inserção, a etnia ou o contexto geográfico
por vezes, difíceis de objectivar. Se, no plano dos factores biológicos indutores das diferenças, existe e político (Doyal, 2000). Contudo, porque o estudo de tais influências não constitui objecto central
uma história secular de produção científica e técnica, no campo dos mecanismos psicossociais e dos deste trabalho, apenas lhes será feita menção em diferentes pontos do texto, realçando a sua im-
dispositivos culturais indutores das mesmas o conhecimento é, ainda, incipiente. portância, quando tal foi entendido como pertinente.

Se, no primeiro caso, é sabido que muitas dissemelhanças são inultrapassáveis (pelo menos no es- Em suma, o presente trabalho resulta da necessidade, por um lado, de se conhecer melhor o impacte
tádio actual de evolução das ciências médicas), dada a matriz biológica específica que lhes subjaz, no tido na saúde dos homens e das mulheres, não apenas dos factores ligados ao dimorfismo sexual, mas,
segundo, ao consubstanciarem, em parte significativa, injustiça e serem passíveis de correcção, exi- principalmente, as iniquidades ligadas ao género; por outro, advém da importância de se documentar
gem, cada vez mais, políticas de intervenção assentes no reconhecimento e no controlo dos factores melhor o papel de mediação que este exerce nas políticas, nas práticas e nas relações profissionais
que, em larga medida, as condicionam. no sector da Saúde (Sem & Östlin, 2007).

Assim, torna-se inviável encarar estas (e todas) desigualdades em saúde de uma forma meramente A evidência científica sobre as dissemelhanças entre sexos nesta matéria pode, e deve, merecer abor-
descritiva, acrítica. Ao invés, é tida em consideração a existência de múltiplas dissemelhanças que dagens quantitativas sobre os dados epidemiológicos que estão disponíveis; contudo, a interpre-
assentam nas diferenças e assimetrias entre grupos sociais e que são “política, social e economica- tação dos mesmos e o desenho de políticas preventivas não dispensam uma leitura crítica sobre os
mente inaceitáveis” (WHO, 1978; Whitehead, 1990), uma vez que se afiguram desnecessárias, poten- factores mediadores e determinantes dos resultados encontrados – da qual uma leitura de género
cialmente evitáveis (Braveman, 2006) e injustas. não pode, por isso, estar ausente.

É a esse tipo de discrepâncias, sistematicamente relacionadas com as assimetrias geradas no posi- Nos capítulos seguintes, que resultam do desenvolvimento de linhas de investigação diferentes
cionamento relativo e na valorização atribuída aos indivíduos numa determinada sociedade, que cor- acerca da relação complexa entre sexo, género e saúde, o assunto será abordado sob várias facetas.
responde o conceito de iniquidades (Doyal, 2000; Graham, 2007).
Nesse sentido, no Capítulo I, são tecidas considerações acerca das desigualdades em saúde dos
Analisá-las e minorar ou anular o respectivo impacte pressupõe assumir, também, posicionamentos homens e das mulheres, sob diferentes perspectivas: determinantes em saúde, em particular o sexo
éticos e morais acerca delas, desenvolvendo conhecimentos, lançando políticas e adequando a e o género nas respectivas interacções; expressão epidemiológica das diferenças, a partir dos dados
prestação de cuidados. É numa perspectiva democrática e sob os princípios da justiça social e da da mortalidade; aspectos particulares da diferença em algumas patologias major; finalmente, a gen-
igualdade de oportunidades que tal desiderato deve ser perseguido (The Australian Health Policy derização dos próprios serviços e dos padrões de resposta dados.
Institute, 2006).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 14 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 15

No Capítulo II, admitindo que o género, enquanto (…) forma de olhar o mundo (…) (Health Canada,
2000), assume o carácter de um princípio organizador do modo como estruturamos o conhecimento
CAPÍTULO I
e nos posicionamos, face a homens e mulheres - quanto a diferenças e semelhanças atribuídas, rea-
lidades sociais vividas, formas de conduta percebidas, perfis das relações interpessoais, atitudes face Desigualdades em saúde dos homens
à saúde e interacção com os serviços e profissionais – é dado a conhecer um conjunto de dois estudos
empíricos, complementares, com vista a aprofundar-se o conhecimento sobre a expressão dessas e das mulheres
variáveis entre os profissionais de saúde. Um dos estudos, de cariz quantitativo, centrou-se nas per-
cepções e ideias de médico(a)s e enfermeiro(a)s, quer dos cuidados primários, quer dos hospitalares,
a propósito das diferenças percebidas entre saúde dos homens e das mulheres, contornos das relações Genericamente, as acções em Saúde têm por finalidade a obtenção de mais
profissionais entre sexos e impacto do género nesses processos. O outro, de teor qualitativo, desti- ganhos para todos os cidadãos. Contudo, para que tal se cumpra, as inicia-
nou-se a uma exploração mais sistematizada das facetas do género nas vivências da saúde, a partir tivas não podem ter lugar no pressuposto de que todos os indivíduos se
das representações e narrativas dos profissionais. encontram nas mesmas condições para delas usufruírem. Afigura-se in-
dispensável tomar em consideração o facto de serem diferentes as posições
No Capítulo III, lança-se, através das ‘lentes de género’, um outro olhar sobre um documento es- relativas ocupadas por cada um, e por cada grupo, face à concretização
tratégico e norteador das políticas de saúde em Portugal, o Plano Nacional de Saúde 2004- 2010; desse desiderato.
através dessa reflexão, pretende-se contribuir para que o estabelecimento do gender mainstreaming,
preconizado pelos centros de poder e pelas agências internacionais, adquira maior expressão prática, Uma forma de entender a ‘posição social’ de cada indivíduo é a de consid-
contribuindo para minorar ou eliminar as iniquidades em saúde ligadas ao género e para a obtenção erá-la como resultante da intersecção do estrato social em que se insere,
de mais ganhos para mulheres e homens. entendido numa perspectiva ‘vertical’ (rendimento económico, grau de es-
colaridade, profissão, etc.) com outros grupos de pertença ‘na horizontal’
(grupo etário, sexo, etnia, etc.) (European Partners for Equity in Health,
2006).

Não custa, por isso, admitir que, quanto mais baixa for a posição relativa do
grupo face a outros e mais baixa a posição do indivíduo no seu grupo,
menor é a probabilidade deste apresentar bons índices de saúde.

Nas palavras de Arnaldo Sampaio (1960), “quanto mais pobre mais doente
e quanto mais doente mais pobre!” A este propósito, num relatório publi-
cado, sob a égide da Presidência Britânica da União Europeia, afirmava-se,
nas conclusões, que “(…) os indivíduos com mais baixo nível de escolaridade,
profissional e com menores rendimentos tendem a morrer mais novos e a
ter, ao longo das suas vidas mais curtas, prevalência mais elevada de todos os
tipos de problemas de saúde (…)” (Mackenbach, 2006). Existindo um ver-
dadeiro ‘gradiente social’ (The Norwegian Directorate for Health and So-
cial Affairs, 2005-06; Wood et al., 2006) também no que respeita à saúde,
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 16 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 17

o desafio que se coloca aos cidadãos e aos Estados é minorar ou, mesmo, Determinantes da saúde social, cultural e político, seja o dos contextos de vida e dos recursos co-
abolir tal escalonamento. Assim, nessa ordem de ideias, é esperado que os munitários (Australian Institute of Health and Welfare, 2002).
grupos em desvantagem alcancem, pelo menos, os padrões de saúde já
conquistados pelos que se encontram socialmente mais favorecidos De um ponto de vista discursivo e conceptual, pode dizer-se que a ideia de
(Braveman, Gruskin, 2003). ‘determinantes sociais da saúde’ não é absolutamente nova. A literatura
científica e os documentos orientadores dos últimos 50 anos, incluindo os
Dito de outra forma, garantir a equidade em saúde implica preservar a da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelam alguma insistência no
igualdade de oportunidades na expressão dos potenciais individuais, no tema (Irwin & Scali, 2007). Com efeito, a influência decisiva dos factores
usufruto de cuidados e na obtenção de ganhos em saúde, sem que, para tal, ambientais na saúde tem sido objecto de análise desde há longa data, uma
a pertença a um determinado grupo social, ou a posição hierárquica ocu- preocupação que pode ser sintetizada por uma pergunta formulada, há
pada dentro dele, constituam obstáculos. mais de um século, por Rudolf Virchow2: “Não encontramos nós as doenças
do povo quando descobrimos os defeitos da sociedade?”3.Todavia, a análise
Nesta linha de pensamento, o presente trabalho, que aborda as diferenças das ideias e das políticas, pelo menos, desde meados do Século XX até aos
entre sexos, procura valorizá-las enquadrando-as no posicionamento rela- dias de hoje, evidencia a vulnerabilidade das perspectivas de valorização
tivo de mulheres e homens nas hierarquias sociais, em torno das quais as dos determinantes da saúde, as quais parecem depender dos interesses
sociedades permanecem construídas (Graham, 2007). políticos, económicos e ideológicos prevalecentes num dado momento
(Irwin & Scali, 2007, p.251). O encontro de interesses comuns e a articulação
Não basta, contudo, identificar tais diferenças e descrevê-las; nas Ciências de perspectivas entre as ciências da saúde e as ciências sociais e humanas
da Saúde, essas têm sido tarefas da epidemiologia clássica, entendida como podem ser vistas, neste contexto, como uma via altamente promissora para
o “estudo das doenças e dos factores de risco em diferentes populações” um entendimento mais profundo acer-ca dos determinantes da saúde.
(Braveman, 2006). Afigura-se, cada vez mais, necessário interpretá-las nas
respectivas interacções - e valorizá-las enquanto iniquidades, conforme Na história da saúde pública, são inúmeros os exemplos da tensão entre as
atrás salientado - para que uma perspectiva mais compreensiva e inte- ciências ditas biológicas e as sociais, a qual ainda não está completamente
gradora dos fenómenos possa facilitar intervenções mais promotoras de resolvida (Inhorn & Janes, 2007). Assinalam-se, contudo, bons exemplos de
saúde, em ambos os sexos. como as duas perspectivas se enriquecem mutuamente, sobretudo no
domínio da vigilância, do controlo e da prevenção das doenças transmis-
As iniciativas tomadas necessitam, assim, de ponderar, cada vez com maior síveis (op.cit.). Neste campo concreto, tem-se observado, sobretudo, a difi-
rigor, as diferentes conjunturas e fenómenos que, em interacção, condi- culdade em aplicar de forma eficaz o vasto conhecimento sobre
cionam a saúde dos indivíduos e dos grupos populacionais. Uns, interferem imunologia e virologia, bem como dos mecanismos de transmissão das
no plano individual, quer sob o ponto de vista biológico (genética, somática doenças, mesmo no ‘mundo desenvolvido’, em grande medida, pela re-
ou metabolicamente originados), quer psicossocial, quer dos estilos de vida sistência das comunidades e pela multiplicidade de determinantes em
e comportamentos. Outros, dizem mais respeito ao domínio ambiental, causa (Cline, 1995; Inhorn, 1995; Inhorn & Janes, 2007; Low, Low, & Huynh,
seja os de cariz físico, químico ou biológico, seja os do domínio económico, 2005; Lynch, Davey, Harper, & Hillemeir, 2004).

2 Patologista europeu do Século XIX, citado por Irwin e Scali (2007, p. 236).
3 Tradução livre de: “Do we not always find the diseases of the populace traceable to defects in society?”
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 18 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 19

Como afirmam Inhorn e Janes (2007, p.295), “(…) tem havido alguma ina- Se a finalidade da epidemiologia é a compreensão, a prevenção e o con-
bilidade para lidar, de modo efectivo, com os determinantes sociais das trolo da doença (Oppenheimer, 1995, p.918), não é seguro que, através do
doenças ao nível das comunidades, especialmente nesta era de globaliza- modelo de investigação clínico (dominante), se vá além do aumento do
ção rápida, de colapso das infra-estruturas da saúde e de crescimento da conhecimento acerca da etiologia, dos mecanismos de transmissão e dos
desigualdade". Este balanço menos positivo, no seu entender, pode ser me- efeitos físicos desta (Lawson & Floyd, 1996, p.1029). Ainda que os refiram,
lhorado através da promoção das trocas intelectuais e teóricas entre a epi- os epidemiologistas que se orientam por esse modelo dominante de in-
demiologia e a antropologia (bem como de outras ciências sociais e vestigação têm dado pouco relevo aos comportamentos e às motivações
humanas, acrescentaríamos nós), uma vez que cada uma delas pode dar dos indivíduos na explicação da disseminação das doenças. Ou seja, mais
contributos inegáveis para o conhecimento e compreensão do comporta- do que identificar e enumerar esses comportamentos, é preciso investir na
mento humano, nos contextos sócio-políticos, ecológicos, evolutivos e cul- sua compreensão e incluí-los nos protocolos de investigação, de forma a
turais (op.cit., p.295). atribuir-lhes um carácter determinante. Os significados atribuídos pelos
indivíduos aos comportamentos que condicionam a sua saúde devem,
Por esta via, abandona-se a perspectiva ‘a-social’ acerca dos factores de então, ser centrais no pensamento epidemiológico (op.cit., p. 1029).
risco, em favor da “(…) aproximação aos factores causais (culturais, sociais,
económicos e políticos) que determinam padrões particulares do compor- Em suma, para conhecer melhor os contornos do equilíbrio saúde/doença
tamento humano” (op.cit., p.295). É este o caminho para a acentuação da e poder introduzir factores correctores é necessário melhorar a capacidade
importância da estrutura face ao sujeito, a consideração definitiva de que de valorizar o impacte produzido pelas diferentes determinantes da saúde
as forças macro-estruturais subordinam o controlo individual dos factores nas populações e nos diferentes grupos sociais de pertença (Wood J et al.,
que afectam a saúde individual e colectiva (op.cit., p.295). 2006). Por exemplo, no caso europeu, segundo o relatório produzido no
âmbito da Presidência Britânica da União Europeia, em 2006, “(…) a exis-
Os mesmos investigadores, num artigo de revisão da produção teórica e tência de variações substantivas nos padrões das desigualdades em saúde
prática de Frederick Dunn, sintetizam de forma simples o pensamento in- entre os países europeus, particularmente a nível de causas de morte especí-
tegrador da óptica social no domínio da saúde e da centralidade dos com- ficas, doenças e factores de risco sugerem que as desigualdades em saúde
portamentos humanos: “(…) como todas as doenças são causadas, pelo poderão não ser inevitáveis (…)” (Mackenbach, 2006). Mas, conforme, aliás,
menos em parte, pelo comportamento dos indivíduos, grupos ou comu- o mesmo autor acentua, a persistência das desigualdades – mesmo nos
nidades, a epidemiologia deve ser uma ciência comportamental” (Dunn & países com políticas continuadas para a igualdade – acaba por sublinhar o
Janes, 1986, p.3; citados por Inhorn & Janes, 2007, p.304). Nesse sentido, a facto daquelas ainda estarem profundamente enraizadas nos sistemas de
complementaridade e a colaboração prática entre as perspectivas bio- estratificação social das sociedades modernas (Mackenbach, 2006).
médica e social deve “(…) explorar os nexos entre as consequências do com-
portamento na saúde e as correlações sociais e culturais desse
comportamento” (op.cit., p.304). É inevitável, pois, considerar o conjunto de
factores observados que, com mais proximidade, ampliarão o conheci-
mento acerca dos fenómenos de saúde investigados.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 20 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 21

O paradigma ecológico na Intervir ao nível societal, no sentido da prevenção, implica, portanto, uma em geral, valorizada pela epidemiologia.
relativa desfocalização da esfera individual e definir como alvo os grupos ou
epidemiologia
as populações e considerar o ‘social’ como uma entidade regulada pelas É sob a orientação que surge a metáfora das ‘caixas chinesas’, simbolizando
suas próprias leis e dinâmicas (Susser & Susser, 1996a, p. 671). o paradigma da eco-epidemiologia (Susser & Susser, 1996b, p. 675). Pela
perspectiva das estruturas biológicas, sociais ou topográficas localizadas,
Sob esta perspectiva, para a compreensão mais profunda e para a acção considera-se a existência de níveis sucessivos de organização, cada um
mais eficaz sobre os problemas de saúde com raízes de ordem sócio-cul- deles envolvendo e ligando-se intimamente com o seguinte (op.cit., p. 675-
tural, sugere-se a necessidade de articulação de níveis de análise e de in- 6). A epidemiologia deverá, pois, analisar os determinantes e os resultados
tervenção. É necessário, por um lado, conhecer os mecanismos biológicos a diferentes níveis da organização (op.cit., p. 676), mesmo que tal implique
subjacentes às doenças e, por outro, a um nível intermédio, identificar e o abandono do desejo de construir ‘leis universais’.
caracterizar os comportamentos sociais específicos dos indivíduos, bem
como outras características das populações e, por fim, a um nível global, as Do ponto de vista conceptual e metodológico, sob a orientação deste para-
interconecções entre as diversas sociedades, por forma a conhecer os per- digma, os procedimentos seguem os preceitos aceites pela ciência, pelo
cursos da disseminação (Susser & Susser, 1996b, p. 674-5)4 . que apenas são modificados os níveis de análise considerados, na tenta-
tiva de conhecer a realidade, na sua máxima complexidade. É, julgamos,
Esta via, segundo os investigadores, permitirá aos epidemiologistas “(…) uma orientação adequada aos objectivos deste estudo.
trabalhar ao mesmo tempo aos níveis molecular e societal” (op.cit., p. 675).
Será através da tentativa constante de articulação destes níveis que,
provavelmente, se encontrarão explicações mais plausíveis e complexas
para os problemas de saúde e se evitará o isolamento das análises e das No caso presente - o estudo das diferenças, em matéria de saúde, entre
Mulheres, homens e saúde
intervenções, o que corresponde a propostas que, nas últimas duas dé- homens e mulheres - o principal desafio que dele deriva é o de serem de-
cadas, têm vindo a ser explicitadas (Bandura & Kickbusch, 1991; Charlton, senvolvidas políticas que equacionem, com maior rigor, entre outras variá-
1997; Inhorn & Janes, 2007; Krieger, 1994; Lawson & Floyd, 1996; Link & Phe- veis, o ‘sexo de pertença’ dos indivíduos como determinante das mesmas
lan, 1996; Needleman, 1997; Oppenheimer, 1995; Pearce, 1996; Susser, 1994a, - quer enquanto conjunto de idiossincrasias de carácter biológico que as
1994b; Syme, 2005; Syme & Frohlich, 2001; Weed, 1995; Wing, 1994, 1998). condicionam, quer enquanto argumento que tem permitido construções
socialmente elaboradas e que geram desigualdades que são eticamente
De um ponto de vista epistemológico, tal perspectiva desafia a orientação inaceitáveis.
exclusiva pelo princípio do universalismo, característico do pensamento e
da prática das ciências físicas, pois as ciências ditas biológicas precisam de Dito de outro modo, trata-se de desenvolver mecanismos que permitam res-
valorizar a óptica ecológica (Susser & Susser, 1996b, p. 675). Ou seja, o ‘ecolo- ponder, de forma mais documentada, às diferenças que são determinadas
gismo’, ao contrário do universalismo, impõe a necessidade de localizar e pelo dimorfismo sexual e, simultaneamente, minorar ou eliminar as iniqui-
delimitar as generalizações acerca da biologia humana e dos contextos so- dades tecidas a partir deste. Não se trata, contudo, de uma forma de inter-
ciais, uma orientação que, no entendimento desses autores, não tem sido, venção em universos separados, uma vez que, nesta matéria, os fenómenos
físicos mentais e sociais interagem de forma demasiado complexa para que,
4Para a exposição do seu raciocínio e defesa desta alternativa ao trabalho epidemiológico, os autores tomaram sobre eles, se estabeleçam grelhas de leitura estanques e estereotipadas.
o exemplo do VIH/SIDA, daí a referência à disseminação das doenças transmissíveis.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 22 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 23

Sem dúvida que homens e mulheres apresentam particularidades de pos masculinos e femininos, estando mais documentadas no que respeita
carácter biológico, que não se reduzem, apenas, aos aspectos somáticos e ao segundo processo. A variabilidade evidenciada, pode ser tida em conta
à esfera reprodutiva. Contudo, embora a diferença estrutural seja incon- segundo diferentes parâmetros: biodisponibilidade, distribuição, metabo-
tornável, cada vez se torna mais difícil estabelecer uma dicotomia abso- lismo e eliminação. Assim, e uma vez que os corpos dos homens têm, em
luta. Aliás, diversos estudos no domínio dos intersexos e da Biologia do média, envergadura e peso superiores aos das mulheres, constata-se naque-
Desenvolvimento têm vindo a chamar a atenção para o facto da concep- les uma distribuição mais ampla dos volumes das drogas e uma mais rápida
tualização estrita de um dimorfismo sexual absoluto se afigurar insusten- clearance da maior parte das mesmas; Por outro lado, uma mais significativa
tável (Fausto-Sterling A, 1998, 2000; Blackless et al., 2000). gordura corporal (até às idades mais avançadas) pode acentuar mais a dis-
tribuição das drogas lipofílicas nas mulheres. A absorção total parece não
Num documento, muito recente, da OMS, sobre Gender and Genetics, ser influenciada pelo sexo, embora a absorção possa ser ligeiramente mais
afirma-se que “(…) Os seres humanos nascem com 46 cromossomas, em 23 lenta nas mulheres. O processo de filtração glomerular, secreção e reabsorção
pares. Os cromossomas X e Y determinam o sexo do indivíduo. A maioria das tubular parecem ser mais céleres nos homens. Além disso, nas mulheres, as
Mulheres são 46XX e a maioria dos homens são 46XY. Contudo, a investigação alterações hormonais no decurso do ciclo menstrual, com impacte a nível
sugere que, em cada mil nascimentos, alguns indivíduos apresentam um único renal, cardiovascular, hematológico e imunológico, poderão influenciar a
cromossoma sexual (45X ou 45Y) (monossomias sexuais) e outros três ou mais absorção, distribuição, metabolismo e excreção dos medicamentos (Ghandi,
cromossomas sexuais (47XXX, 47XYY ou 47XXY) (polissomias sexuais). Além Aweeka, Greenblatt, 2004;Kashuba, Narfziger, 1998; Meibohm, Beierle, 2002;
disso, alguns indivíduos do sexo masculino nascem 46XX devido a uma Schwartz 2003; Vaccarino et al., 1999).
translocação de uma pequena secção do cromossoma Y. De forma similar al-
guns indivíduos do sexo feminino nascem 46XY devido a mutações no cro- Contudo, o papel relativo do sexo na farmacocinética, quando equacionado
mossoma Y. Não existem, claramente, apenas mulheres que são XX e homens com a genética, idade, doença, hábitos sociais e as potenciais interacções
que são XY; pelo contrário, constata-se haver uma diversidade de combinações no contexto clínico, ainda não é completamente conhecido. Realce-se,
cromossómicas, perfis hormonais e variações fenotípicas que determinam o desde já, que a investigação tem estado centrada, de forma largamente
sexo dos indivíduos (…)” (OMS, 2007). maioritária, em indivíduos do sexo masculino, embora as conclusões sejam
generalizadas a ambos os sexos e a utilização dos fármacos sigam os stan-
As diferenças no plano endócrino e metabólico também geram, por si dards desse modo produzidos (Jochmann, 2005).
próprias, a satisfação de um conjunto de necessidades de saúde que são
específicas de cada sexo e colocam desafios específicos, em termos de No entanto, se o capital genético e o perfil hormonal característicos de cada
diferentes áreas da intervenção da Saúde. Por exemplo, no domínio da Far- um dos dois grupos tendem a ser constantes nas diferentes sociedades, já
macologia, cada vez é mais reconhecida a lacuna que tem existido – e que os padrões culturais que geram diferenças no plano dos valores, das nor-
urge ultrapassar - quanto à adaptação a cada um dos sexos das terapêuti- mas e dos papéis atribuídos a homens e mulheres, mesmo que apresen-
cas farmacológicas que vão sendo utilizadas nos homens e nas mulheres, tem alguma diversidade, não deixam de ter em comum o mesmo pilar
de forma quase indiscriminada. estruturante: o do estabelecimento de uma acentuada dicotomia entre os
dois grupos, carregada de valores simbólicos e geradora de um gradiente de
A dissemelhança biológica entre os sexos condiciona diferenças na farma- poderes entre ambos (Amâncio, 2002).
codinâmica e na farmacocinética das drogas, quando ministradas nos cor- É a esta assimetria estabelecida, a esta construção social do ser homem e
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 24 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 25

do ser mulher, erigida sobre os traços das diferenças biológicas que se tação elementar deste trabalho. Clarifiquemos, pois, o alcance e as impli-
atribui o significado de género (Vlassoff & Moreno, 2002, citados por cações que advêm do uso de um e de outro termo.
Women´s Health Council, 2007). Tal conceito merece uma interpretação
mais aprofundada, dada a complexidade das suas diversas componentes. Pelo menos até ao início do Século XX, o género e a sexualidade assen-
tavam numa base linear e directa entre o corpo e o sexo dos indivíduos: a
categoria do ‘sexo’ disponibilizaria os elementos básicos para naturalizar e
materializar, de modo indiscutível, a identidade social e a orientação do de-
Em torno dos conceitos de ‘sexo’ Na tentativa de contribuir para a clarificação dos significados dos termos sejo (Garlick, 2003; Laqueur, 1992; Nye, 2005).
‘sexo’ e ‘género’, sobretudo quanto à literatura científica, Kim e Nafziger
e de ‘género’
(2000, p.1) recorrem a uma das perspectivas mais correntes: “(…) as diferen- Terá sido o amplo desenvolvimento do saber científico acerca do papel das
ças de sexo representam as diferenças entre homens e mulheres, as quais in- estruturas biológicas dos processos de sexuação humana (as hormonas, os
cluem o que difere dos pontos de vista genético, hormonal, reprodutivo e físico; cromossomas e os genes, por exemplo) que terá abalado radicalmente essa
as diferenças de género descrevem a variabilidade entre homens e mulheres forma de pensamento. Como afirma Nye (2005, p.1937), “(…) fragmentou-se
que é atribuível às influências ambientais, como a sociedade, a cultura e a o sexo completamente, dividindo o corpo sexual em sistemas com funções
história”5. inter-relacionadas”. Sobretudo durante a segunda metade do Século XX, a
sobreposição entre sexo, género e sexualidade ganham o estatuto de cate-
Opta-se, nesta definição, por uma óptica bi-polarizada entre os dois con- gorias ontológicas e analíticas distintas e relativas.
ceitos, assumindo que cada um diz respeito a diferentes dimensões de
comparação entre homens e mulheres: uma de natureza biológica (su- Com o conceito de género, ter-se-á criado uma forma de questionar o pri-
postamente invariável e imutável) e outra psicossocial (construída e con- mado da natureza no que respeita à explicação dos significados de homem
tingente) (West & Zimmerman, 1987). e de mulher, assim como da justificação das desigualdades sociais exis-
tentes entre o sexos (Amâncio, 1993a, 1993b, 1994, 1995).
Esta concepção, no fundo, não faz mais do que encontrar novas formas de
expressão linguística para reforçar a ideia de dualismo comportamental e A partir destes desenvolvimentos de índole científica e conceptual, o sexo,
psicológico intrínseco aos sexos, o que ameaça o desejo de desconstrução como elemento antes considerado exacto e suficiente para descrever e
da verticalidade que separa as mulheres dos homens e, logo, as potenciali- definir as mulheres e os homens, foi dando lugar ao conceito de género.
dades do conceito de género (op.cit., p.36). Em grande medida, mas não em exclusivo, é sob este enquadramento que
os ‘estudos de género ou sobre o género’ ganham cada vez mais visibili-
Ainda que cientes das limitações desta associação do sexo à dimensão bio- dade e importância, particularmente, a partir das últimas décadas do
lógica e do género à social - demasiado simplista e bastante questionável Século XX (Amâncio, 1994, 2001, 2003c; Harrison, 2005; Nye, 2005).
do ponto de vista conceptual e ideológico6 - aceitá-la-emos como susten-
Durante anos, os chamados estudos sobre o género centraram-se nos
temas e nas situações particulares das mulheres e foram estas, como pen-
sadoras e investigadoras, quem mais investiu na sua visibilidade e reconhe-
5 Tradução e adaptação a partir do original em inglês.
6 Para aprofundamento da discussão da visão dualista do sexo e do género, ver, por exemplo, Harrison, 2005; cimento académico (Connell, Hearn, & Kimmel, 2005). Ao longo do tempo,
Delphy, 1984; Nye, 2005; Butler, 1990, 1993; Laquer, 1992; Connell, 1987
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 26 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 27

contudo, o questionamento do género trouxe consigo a problematização fica pela procura de adesão a uma modernização semântica, politicamente
da posição social dos homens e, também, a ênfase na masculinidade mais aceitável, mas sem uma verdadeira noção das consequências con-
(op.cit.). ceptuais e epistemológicas que estão subjacentes a tal opção (Kim &
Nafziger, 2000, p.1). Pela sua natureza multifacetada, os termos género e
Como exemplo desta gradual aproximação dos universos masculinos às sexo são muitas vezes utilizados como sinónimos e pensados como duas
questões de género, refira-se que, no decurso da recente Presidência Fin- entidades que covariam entre si, inevitavelmente (Davidson et al., 2006, p.
landesa da União Europeia, realizou-se uma conferência sobre Men and 731).
Gender Equality – Towards Progressive Policies, em que, para além de comu-
nicações em diversos painéis temáticos, diferentes grupos de trabalho A própria OMS dá relevo a este facto, ao afirmar que “(…) estes termos [sexo
abordaram temas como o “Gender Mainstreaming nas Políticas de Saúde e género] são frequentemente, e de forma errada, usados indiscriminada-
e nas práticas”, ou “Os Homens e a Reconciliação entre Trabalho e Vida Fa- mente na literatura científica, nas políticas de saúde e na legislação (…)” (OMS,
miliar” (Ministry of Social Affairs and Health, Finland, 2006). 2007).

Uma das consequências imediatas da confusão entre os dois termos iden-


tifica-se na análise das publicações: muitas vezes, as diferenças encon-
Sexo, género e saúde Afigura-se necessário que as estratégias a desenvolver para minorar as de- tradas são relacionadas com o género, mas são tratadas como se
sigualdades de género na saúde não estejam centradas, por si só, na busca derivassem do sexo, e vice-versa (op.cit., p.2). Tal situação levará facilmente
de uma eventual igualização, entre sexos, no que respeita aos resultados a a más interpretações de resultados e, logo, a conclusões desfasadas da na-
obter quanto à melhoria dos indicadores de saúde. Não é possível encarar tureza dos fenómenos.
homens e mulheres do mesmo modo, de uma forma estrita, uma vez que
existem necessidades específicas a cada um dos grupos e vivências dife- As autoras exemplificam este equívoco básico da seguinte forma: se as
rentes (Women’s Health Association of Victoria, 2001). diferenças de sexo forem erradamente atribuídas ao género – como dizer
que as mulheres têm um risco maior face a determinada doença, devido às
Por outro lado,nem sexo nem género podem ser interpretados como variáveis diferenças de género -, a atenção focalizar-se-á nas respostas comporta-
ou condicionantes da saúde independentes uma da outra. Sexo e género mentais. Nesse caso, as possíveis causas fisiológicas que sustentam essa
interagem e os resultados dessa complexa e subtil interacção são contin- ‘observação’ podem ser menosprezadas, pondo em causa a possibilidade
gentes e variam de contexto para contexto (Fausto-Sterling, 1999). Ademais, de agir sobre o problema em estudo (op.cit., p.2).
a própria interpretação da natureza é função do momento histórico e social
em que ocorre. Conforme afirma Anne Fausto-Sterling (2002), “ler a natureza O mesmo se passará na situação inversa, quando se atribui ao sexo a razão
é um acto sócio-cultural”. de uma doença, canalizando-se o investimento de recursos tendo por base
uma causalidade indeterminada ou mal delimitada, e não actuando, assim,
Na literatura científica e na investigação, o uso dos termos ‘sexo’ ou sobre a multiplicidade de factores interligados.
‘género’ corresponde, com frequência, apenas a uma opção dos autores,
como se essas palavras fossem inter-mutáveis e sinónimas. O uso da Neste domínio, afigura-se interessante, por exemplo, reflectir sobre o fenó-
palavra ‘género’, por seu lado, pode ter-se imposto na comunidade cientí- meno da dor. A literatura médica dá conta de que existem diferenças biofi-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 28 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 29

siológicas entre sexos, com o feminino a apresentar um limiar de sensibili- tendência para associar ou fundir o género com as diferenças biológicas
dade e tolerância à dor mais baixos do que o masculino; além disso, as entre os sexos (op.cit., p.2).
mulheres referem dor mais frequentemente, de maior duração e maior se-
veridade (Rhudy e Williams, (2005). Por outro lado, parece haver, também, Kim e Nafziger (2000, p.3) defendem que os investigadores, nomeada-
evidência científica (médica) de que as mulheres serão mais inadequada- mente do domínio da clínica e da farmacologia, devem ser precisos no uso
mente tratadas do que os homens, os efeitos de alguns analgésicos variam que fazem dos conceitos e ser, inclusivamente, vigilantes quanto às cono-
com o sexo e os efeitos adversos parecem ser mais frequentes nas mulhe- tações negativas que, segundo elas, se tem vindo a atribuir ao termo ‘sexo’.
res (Pinn, 2003). No entanto, os discursos das ciências sociais (e algumas Para as autoras, “(…) se a expressão ‘diferenças entre sexos’ é a forma correcta
vozes nas próprias ciências médicas) reconhecem a complexidade que en- de referir as diferenças observadas entre homens e mulheres, esta tem de ser
volve vivência do fenómeno pelos indivíduos, demasiado grande para ser usada”, pois de outra forma corre-se o risco de se chegar a conclusões in-
explicada e apaziguada a partir de uma medição. Conforme afirma David feriores ou mesmo incorrectas (op.cit., p.3).
Le Breton “(…) o corpo encarna um simbolismo antes de representar uma bi-
ologia e, mesmo quando é visto sob este ângulo pelo profano, não deixa de ser
simbólico (…)” (Le Breton, 1995, 2007, pag. 47). As idiossincrasias e condições
pessoais não são suficientes para justificar a variabilidade de respostas a um Efeitos de sexo e género na saúde - Algumas das características biológicas que distinguem os dois sexos
mesmo estímulo doloroso. Anatomia, fisio(pato)logia e psicologia são in- poderão, só por si, determinar e explicar as diferenças bastante nítidas nos
suficientes para explicar as variantes sócio-culturais, conjunturais, de sexo
a linguagem dos números padrões de saúde e de doença experienciados em cada um deles (Doyal,
e pessoais da vivência de um determinado processo doloroso. Acresce ainda 2004, p.162). Por isso, nos últimos anos, vários autores têm chamado a
que, em múltiplas situações, a dor não é objectivável através de procedi- atenção para o facto da dissemelhança entre os padrões de mortalidade e
mentos tecnológicos. Ainda nas palavras de Le Breton, “(…) A dimensão am- de morbilidade entre os sexos também resultar da influência de factores
bígua mas simbólica da dor alimenta os sintomas ou as queixas sem que biológicos, para além do que é o óbvio em situações como, por exemplo,
nada indique que a carne fique alterada (…) O sofrimento está lá, pesa sobre cancro do colo do útero e cancro da próstata (Doyal, 2001, p. 1061). Não deve,
a existência, sem que nenhuma lesão orgânica seja detectada com os uten- pois, excluir-se o que distingue os sexos, a nível genético, hormonal e
sílios sofisticados da medicina moderna (…)” (op.cit, pag. 48). Em suma, para metabólico (Bedinghaus, Leshan, & Diehr, 2001; Doyal, 2001).
além das constatações sobre as diferenças de sexo em matéria de dor, não
pode deixar de ser tido na devida conta o envolvimento simbólico que as Tal afirmação, todavia, não exclui o reconhecimento de que as diferenças
ideologias de género atribuem à vivência da mesma (Hamberg, Risberg, Jo- entre os sexos ultrapassam esses domínios (Doyal, 2001). De facto, as dife-
hansson, Westman, 2002). renças dos sistemas reprodutores masculinos e femininos foram sempre
importantes na prestação dos cuidados de saúde, mas, nas últimas dé-
Afigura-se, assim, indispensável que os conceitos de sexo e género sejam cadas, tem vindo a ser reconhecida a necessidade de olhar para outros fac-
empregues com propriedade e mediante reflexão prévia. Ainda que, em- tores e situações.
piricamente, se observe que o género é um dos factores sociais directa-
mente implicados nas desigualdades em saúde, tem sido lento o Vários exemplos dão conta das diferenças entre os sexos na incidência, na
enquadramento teórico e político dessa perspectiva (Sen et al., 2002). Em sintomatologia e nos prognósticos de outros problemas de saúde, como
grande medida, defendem esses autores, a resistência deve-se à forte sejam, o VIH/SIDA, as doenças infecciosas tropicais, a tuberculose, doenças
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 30 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 31

Quadro 1. Óbitos por todas as causas segundo o sexo e o auto-imunes e doença coronária (Doyal, 2001, p. 1061). Quadro 3. Diferença percentual da mortalidade por sexo De acordo com a OMS, as taxas de mortalidade nos adultos (15-60 anos)
grupo etário segundo o grupo etário
em ambos os sexos, na globalidade dos países, em 2002 foi, de 233/1000
Sexo masculino Sexo feminino TOTAL DIF. H/M % DIF. H/M
As originalidades de cada sexo não são imunes à construção social da dife- habitantes no caso dos homens e de 164/1000 no caso das mulheres, com
<15 453 323 776 rença, as quais, porque presentes no quotidiano e na organização social, <15 130 16,75% valores extremos na Região África (480/1000 habitantes no sexo mas-
15-24 567 196 763 afectam directamente a saúde dos indivíduos (Bedinghaus et al., 2001; 15-24 371 48,62% culino e 438/1000 no sexo feminino) e na Região Pacífico Oeste (157/1000
25-34 1221 413 1634 Doyal, 2001, 2003). Como exemplo, podem referir-se as actividades, as 25-34 808 49,45% no sexo masculino e 96/1000 no sexo feminino). A sobremortalidade mas-
35-44 2151 801 2952 condições de trabalho, a natureza distinta dos papéis socio-sexuais, as 35-44 1350 45,73% culina, persistente em todas as regiões, foi, em valor médio, 1,42 vezes su-
45-54 3690 1605 5295 quais acarretam diferentes graus e tipos de risco para a saúde e suscitam 45-54 2085 39,38% perior à feminina, com valores limites situados em África (1,09 x) e na
55-64 5821 2922 8743
padrões de mortalidade e de mortalidade distintos (Doyal, 2004). 55-64 2899 33,16%
Europa (2,33 x) (OMS, 2007).
65-74 12127 7606 19733 65-74 4521 22,91%
A complexidade destas interacções está sempre presente quando se No que respeita, ainda, à sobremortalidade nos homens, esta adquire ainda
>75 27440 35035 62475 >75 -7595 -12,16%
procura um melhor entendimento sobre os indicadores de saúde apresen- uma expressão mais clara quando se considera uma faixa etária mais es-
TOTAL 53470 48901 102371 TOTAL 4569 4,46%
tados por homens e mulheres. Sob o ponto de vista da duração do ciclo de treita. Num estudo que incidiu sobre 44 países,White e Holmes (2006) con-
Risco de Morrer em Portugal, 2004
vida e das causas de morte em homens e mulheres, o estudo diferencial Risco de Morrer em Portugal, 2004 stataram o peso muito elevado das mortes prematuras (na faixa etária
entre sexos permite realçar diferenças acentuadas entre os dois grupos. 15-44 anos) num número assinalável deles, quer na população masculina,
quer na feminina. Porém, verificou-se que em valor médio, esse peso, em re-
É de realçar aqui que, na investigação, não existem standards que permitam Gráfico 1. Mortalidade proporcional por sexo segundo o lação ao total de óbitos, era quase o dobro nos homens, quando compara-
grupo etário (2004)
Quadro 2. Taxas de mortalidade por todas as causas se- medir o efeito do género na saúde de cada um de nós; não se trata, por- dos com as mulheres (no primeiro caso, 7,4% e, no segundo, 3,1% das
>15
gundo o sexo e o grupo etário tanto, de um agente etiológico de uma doença, nem pode ser incluído em mortes).
58% 42%
Sexo masculino Sexo feminino TOTAL qualquer tentativa de estabelecer um diagnóstico diferencial entre pa- 15-24
<1 451,6 325,7 390,5 tologias (Philips, 2005). Do ponto de vista estatístico, trata-se de um con- 74% 21,6% Em Portugal, e de acordo com a publicação “Risco de Morrer em Portugal –
01-04 37,5 26,5 32,2 ceito abstracto, sendo por isso uma variável latente, cujos efeitos são 25-34 2004” (DGS, 2006), a sobremortalidade masculina foi regra para todos os
05-14 20,2 17,4 18,9
interpretáveis através da análise dos elementos que a estruturam. Quanto 46,6% 53,4% grupos etários – ainda que, no limite superior do ciclo de vida, se tenha
15-24 82,9 29,7 56,8
ao sexo, constituindo uma variável observada, a leitura dos seus efeitos é, 35-44 constatado, em valor absoluto, maior número de óbitos nas mulheres.
59,4% 40,6%
no momento presente, inevitavelmente feita de uma forma dicotómica. (Quadro 1,2,3)
25-34 148,2 50,7 99,7 45-54
35-44 281,1 102,1 190,5 73,9% 26,1%
Detenhamo-nos, então, naquilo que a epidemiologia nos mostra. A análise da diferença proporcional dos óbitos nos homens e nas mulheres
45-54 546,8 225,5 381,9 55-64
55,5% 44,5%
mostra que, no total, a sobremortalidade masculina foi de 4.5%, sendo esta
55-64 1068,8 475,6 754,4
São concebidos mais embriões do sexo masculino do que do feminino (numa diferença proporcionalmente mais evidente na faixa etária 15-54 anos. Al-
65-74
65-74 2677,8 1354,2 1945 proporção calculada de 120/100). Contudo, por haver maior vulnerabilidade 43,6% 56,4% guns constrangimentos de carácter biológico ligados ao sexo apontam
>75 9465,9 7430 8205,1 dos embriões masculinos, a morte in útero é mais frequente em fetos deste >75 para que haja uma vulnerabilidade acrescida nos homens face a algumas
sexo. Ainda assim, a sobrenatalidade nos rapazes expressa-se numa pro- 54,8% 45,2% patologias, ou ao surgimento destas em idades mais jovens.
Risco de Morrer em Portugal, 2004
porção de 105/100. Ao longo do ciclo de vida, persistem taxas de mortalidade
0% 50% 100%
mais elevadas nos homens, nas várias regiões do planeta (WHO, 2007) e Porém, há que realçar o facto daqueles se encontrarem mais expostos a
Sexo masculino Sexo feminino
quaisquer que sejam os grupos etários considerados (White, Cash, 2003). determinados riscos, em alguns contextos de vida (e exporem-se volun-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 32 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 33

tariamente a outros com vista a construir e demonstrar a sua ‘masculi- Gráfico 2. Mortalidade proporcional por sexo segundo é nas causas violentas, designadamente acidentes de trânsito com veículos
grupos de causas de morte (2004)
nidade’), cujas repercussões negativas originam acentuadas perdas na a motor e lesões autoprovocadas intencionalmente que a diferença per-
saúde e na longevidade. Tal facto ganha visibilidade particular quando se centual entre homens e mulheres é mais acentuada (78,4 e 75,4% de óbitos
Lesões autoprovocadas intencionalmente
analisa, por exemplo, a mortalidade por causas externas (violentas). É do sexo masculino por estes grupos de causas, respectivamente).
75,4% 24,6%
nestes territórios que, em larga medida, se expressa melhor o impacte do
Acidentes de trânsito com veículos a motor
género na saúde (mas não só!). Contudo, conforme adiante se verificará, Tal padrão havia já sido constatado a propósito da mortalidade em idades
78,4% 21,6%
quando se aborda a mortalidade por causas naturais, onde, numa leitura jovens. No decénio de 1992-2001, quanto a óbitos por acidentes de transporte
Sintomas, sinais não classificados em outra parte
simplista, poderiam ser considerados apenas factores ligados ao sexo dos 46,6% 53,4%
nos grupos etários 15-19 e 20-24 anos, foram observados nos homens valores
indivíduos, não deixa de ser igualmente importante equacionar o género, superiores em 80% aos verificados nas mulheres (Laranjeira & Prazeres,2005).
Tumores
e as interacções que se estabelecem com o sexo, nas análises efectuadas. 59,4% 40,6%

Doença crónica do figado e cirrose


No que às causas naturais diz respeito, há que salientar a diferença per-
73,9% 26,1% centual observada na mortalidade devida a doença crónica do fígado e cir-
Doenças do aparelho respiratório rose entre homens e mulheres – em 2004, o número de óbitos do sexo
Principais causas de morte, em De acordo com a OMS, na população europeia, ainda que evidenciando 55,5% 44,5% masculino ultrapassou em 48% o do sexo feminino.Também na casuística da
ambos os sexos assinaláveis disparidades geográficas, as doenças cardiovasculares são res- Doenças cerebrovasculares mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias foi observada uma sobre-
ponsáveis, no global, por cerca de 55% e de 43% dos óbitos verificados, res- 43,6% 56,4% mortalidade masculina da ordem de 33%. A este propósito, e não obstante
pectivamente, nas mulheres e nos homens; de entre estas, a doença Doenças isquémicas do coração ponderar-se o impacte dos aspectos biofisiológicos na condição de saúde
54,8% 45,2%
coronária constitui a principal causa de morte, quer no sexo feminino dos indivíduos, em particular o peso que estes factores adquirem na ex-
(23%), quer no masculino (21%) (WHO, 2004). Diabetes mellitus pressão destas diferenças, há que sublinhar que a evidência científica aponta
43,0% 57,0%
para que sejam padrões comportamentais e estilos de vida específicos que
Algumas doenças infecciosas e parasitárias
No que respeita aos tumores, este grupo de causas é responsável por cerca mais contribuem para as casuísticas observadas; saliente-se aqui a relevân-
66,4% 33,6%
de 17 e 21% dos óbitos verificados, respectivamente, nas mulheres e nos cia do consumo de álcool e dos comportamentos sexuais desprotegidos.
homens, embora com disparidades quanto ao tipo de tumores em causa 0% 50% 100%
(WHO, 2004). É de realçar ainda, ser nas idades mais jovens que a sobremortalidade mas-
Sexo masculino Sexo feminino
culina, por estas causas, se afigura mais acentuada – por exemplo, quanto
A análise descritiva das taxas de mortalidade em Portugal, em 2004, põe a doenças infecciosas e parasitárias, na faixa etária dos 25 aos 54 anos, as
em evidência as doenças cerebrovasculares e os tumores como principais diferenças percentuais variaram entre 54 e 69%.
causas de morte, logo seguidas das doenças isquémicas do coração, das
doenças do aparelho respiratório e dos sintomas e sinais não classificados em Assim, as diferenças expressas nas casuísticas da mortalidade traduzem-
outra parte. se, necessariamente numa esperança média de vida no sexo feminino su-
perior à que se verifica no masculino. Por exemplo, em 2005, em Portugal,
É nas causas de morte violentas (que incluem os acidentes de trânsito com a esperança de vida à nascença foi de 81,4 anos, no sexo feminino, ao passo
veículos a motor e as lesões autoprovocadas intencionalmente) que a so- que no masculino não ultrapassou os 74,9 anos (INE, 2007). Trata-se de
bremortalidade masculina é mais evidente (56,7 e 50,7%, respectivamente). uma constatação universal, à excepção de um pequeno número de países
A análise comparativa entre grupos de causas de morte torna evidente que asiáticos. Contudo, a sobrevida nas mulheres não significa, necessaria-
mente, que estas vivam com ‘mais saúde’ do que os homens.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 34 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 35

Causas externas Na Europa, a mortalidade por ‘causas externas’ é sempre superior nos Doenças cardiovasculares Conforme salientado antes, na maioria dos países, as doenças cardiovas-
homens (excepto acima dos 75 anos). No que respeita a acidentes de trân- culares (CVD) representam a principal causa de morte, tanto nos homens
sito, é persistentemente mais elevada nos homens até aos 75 anos, idade a (43% do total de óbitos) como, principalmente, nas mulheres (55%) (WHO,
partir da qual as taxas se igualizam. Quanto às mortes por suicídio, as taxas 2007), embora só recentemente tenha sido reconhecida a magnitude do
Gráfico 3. Diferença proporcional dos óbitos entre sexos
por acidentes de trânsito com veículos a motor, segundo o apresentam-se, sempre, mais elevadas nos homens (White & Cash, 2003). problema no que respeita ao sexo feminino (Pinn, 2003).
grupo etário (2004)

TOTAL Em Portugal, em 2004, as causas externas representaram 5,3% do total de De acordo com White & Keith, (2003) esta causa de morte só atinge maior
56,7% óbitos ocorridos. É sabido que o peso que o conjunto das causas violentas expressão nas mulheres do que nos homens a partir dos 75 anos. Aliás, as
>75 adquire na mortalidade varia em função da idade, sendo na população ac- mulheres apresentam uma média de idades superior em 10 anos aos
26,6% tiva que tal se torna mais significativo; na faixa etária dos 25 aos 54 anos as homens, na altura em que desenvolvem CVD (Philips, 2005; WHO, 2004).
65-74 causas violentas representaram 20,9% da mortalidade. Para além das
41,6% dissemelhanças observadas entre grupos etários, há que assinalar, tam- Em Portugal, quanto a doenças cerebrovasculares, a taxa de mortalidade foi
55-64 bém, as diferenças observadas entre sexos: 12,4%, dos óbitos do sexo femi- globalmente superior no sexo feminino (174,6/100.000 habitantes nas
52,4%
nino com idade entre 25 e 54 anos foram devidos a causas externas, ao mulheres e 144,2 nos homens); a diferença proporcional do número de
45-54
passo que no sexo masculino esse valor foi de 24,3%. É também sabido que óbitos por este tipo de causa foi de 13%. Contudo, quando considerada a
57,6%
são os acidentes de trânsito com veículos a motor que mais contribuem mortalidade por grupos etários, as taxas observadas no sexo masculino
35-44
74,9%
para o peso das causas violentas na mortalidade. foram superiores em todas as idades (DGS, 2006).
25-34
72,7% A sobremortalidade masculina é observada de forma mais acentuada a No que se refere às taxas de mortalidade por doença isquémica, obser-
15-24
partir do grupo etário 15- 24 anos, onde a diferença proporcional dos óbitos varam-se, em 2004, valores de 96/100.000 habitantes, nos homens, e de
62,8% entre sexos é de 63%, acentuando-se nos grupos etários 25-34 e 35-44 anos 74,1 nas mulheres. Em termos percentuais, a sobremortalidade nos homens
<15 (com diferenças percentuais de 73 e 75%, respectivamente). foi da ordem dos 10%. Quando desagregada por idades, a diferença pro-
14,7% porcional observada na casuística por este tipo de causa foi superior no
Atente-se, agora, de forma mais detalhada, em algumas causas de morte grupo etário 35-44 anos, no valor de 70,3%. Nos grupos etários 25-34 e 45-
0% 40% 80% que adquirem relevo particular no contexto da saúde, quer dos homens 54 anos, a sobremortalidade masculina expressou-se, em termos da
quer das mulheres, não, apenas, devido à magnitude do problema, mas, diferença proporcional, com valores da ordem dos 63 e 68,1%, respectiva-
também, pelos contornos da resposta por parte da Saúde, num caso e no mente. Nas idades subsequentes, observou-se uma redução da diferença
Sobremortalidade do sexo masculino em % outro. percentual para 56,8% nos 55-64 anos e para 29,6% nos 65-74 anos, inver-
tendo-se o sentido da diferença nos 75 e mais anos, passando o número de
óbitos do sexo feminino a ser superior em 11% (DGS, 2006).

A identificação e o melhor controlo dos factores de risco têm contribuído


para a redução verificada na mortalidade por CVD, tanto nos homens como
nas mulheres. Contudo, os perfis comportamentais, sustentados, em larga
medida, pelas assimetrias de género, mesmo que em assinalável mudança
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 36 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 37

em algumas comunidades, continuam a manter padrões de exposição e senvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública, acerca da importância do
de gestão dos riscos que diferem, em muitos contextos, entre homens e género na saúde e nos cuidados de saúde. Analisando a distribuição, por
mulheres (Stramba-Badiale et al., 2006; Amâncio, 2004). sexo, da aplicação dos recursos tecnológicos na resposta às doenças car-
diovasculares, os investigadores constataram haver, por parte das mulhe-
Para vários autores, a décalage verificada na idade de ocorrência dos proble- res, um acesso deficitário em relação aos homens no que respeita ao uso de
mas cardiovasculares é devida aos perfis hormonais nas mulheres, cateterismos e cirurgias de bypass; verificaram, também, existir uma repre-
nomeadamente, a presença, protectora, mais marcante dos estrogénios sentação médica sobre este tipo de patologia como sendo uma ‘doença
(Philips, 2205), em particular, antes da menopausa, cujo declínio nas idades dos homens’ e de recuperação mais difícil nas mulheres após a aplicação de
subsequentes fará aumentar a vulnerabilidade. Contudo, pese embora a tratamentos invasivos; além disso, colocaram em evidência as discrepân-
magnitude deste problema de saúde no sexo feminino, o risco de ocorrên- cias existentes entre sexos quanto ao tempo de espera para cirurgias elec-
cia de CVD, nomeadamente de doença isquémica, é frequentemente subes- tivas, contado entre o momento da referenciação do caso e o internamento
timado. com tal fim (Fernandes, Perelman & Mateus, 2007).

Tal pode ser devido, em certa medida, ao facto de que, nas mulheres, os sin-
tomas e sinais associados a este tipo de patologia (e a própria evolução
clínica) podem não ser os mesmos que, mais comummente, são encontra- Diabetes Na primeira metade do século XX, a Diabetes Tipo II apresentava uma
dos nos homens (2005), fazendo com que este problema de saúde acabe prevalência muito superior nas mulheres. Contudo, no presente, essa dife-
por ser sub-diagnosticado naquelas. A tal não será alheio, também, um rença esbateu-se, não parecendo haver uma preponderância assinalável
outro factor, entendível segundo uma perspectiva de género. Conforme é em algum dos sexos (Gale, Gillespie, 2001). Por outro lado, nos países eu-
salientado noutro ponto do texto, um viés de observação, causado pela ropeus, a mortalidade por diabetes é consistentemente superior nos
adopção de uma perspectiva masculina nos ‘hábitos de pensamento’ (tam- homens na maior parte dos casos, com algumas excepções, como no caso
bém médico), cria uma ‘norma masculina’, consubstanciada na tendência de Portugal (White & Cash, 2003).
para usar o homem como standard, mesmo no estudo sobre as doenças
que afectam ambos os sexos (Pinn, 2003). De facto, no nosso País, a casuística da mortalidade devida a diabetes melli-
tus apresentou em 2004 uma sobremortalidade feminina na ordem dos
Tal viés repercute-se, também, no acesso aos cuidados, no emprego dos re- 14%. Tal fenómeno expressou-se também na taxa de mortalidade que, no
cursos de diagnóstico e nos processos terapêuticos. Karin Schenck-Gustafs- caso das mulheres, foi de 47,2/100.000 habitantes, ao passo que nos
son (2006) refere existir evidência de que, na Suécia, em situação de enfarte homens o valor foi de 38,0.
de miocárdio, nas mulheres, em média, a demora entre o início da sin-
tomatologia e a chegada ao hospital é superior em uma hora do que no O sentido da diferença percentual, entre sexos, do número de óbitos ocor-
caso dos homens, têm menor prioridade na espera por ambulância, e têm ridos variou consoante os grupos etários: apesar de constatar-se, global-
que esperar mais vinte minutos para serem observadas no hospital mente, uma sobremortalidade feminina (mais acentuada acima dos 75
(Schenck-Gustafsson, 2006). anos, com uma diferença proporcional de 24%), nos grupos etários 35-44
anos e 45-54 anos o número de óbitos do sexo masculino foi superior ao do
A este propósito, atente-se, por exemplo, num estudo recentemente de- sexo feminino, na ordem dos 21 e 26%, respectivamente.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 38 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 39

Independentemente dos valores observados num determinado momento, Trata-se, há que reconhecê-lo, de um exemplo característico das inter-
importa realçar o padrão de evolução dos resultados, num sexo e no outro. acções imbricadas entre sexo e género, o qual deverá merecer, cada vez
mais, estudo e intervenção mais apurados.
Assim, não pode deixar de ser realçado que os padrões de evolução posi-
tivos verificados no que respeita à mortalidade masculina por esta doença
podem não encontrar semelhança com o que se passa no sexo feminino.
Num estudo publicado em Agosto de 2007, dá-se conta do facto de que, no Tumores Malignos da Traqueia, Na expressão das diferenças observadas entre homens e mulheres, a ca-
que respeita à população dos EUA, a mortalidade nos homens diabéticos Brônquios e Pulmão suística sobre tumor maligno da traqueia, brônquios e pulmão constitui
ter decrescido, nos últimos 25 anos, cerca de 43%, em valor semelhante ao mais um exemplo de mortalidade por causas naturais onde é reconhecido
verificado nos homens não diabéticos. Contudo, no mesmo período de o impacte dos padrões comportamentais, com os hábitos tabágicos a
tempo, na população das mulheres diabéticas a mortalidade não diminuiu, adquirirem particular relevo.
e a diferença entre as taxas de mortalidade nas mulheres diabéticas e nas
não diabéticas duplicou. É de assinalar, contudo, que nos países desenvolvidos, em termos globais, é
notada uma tendência decrescente de consumo, ao contrário do que se veri-
De acordo com a literatura, o risco de ocorrência de doença coronária as- fica nos países em desenvolvimento (Nunes, 2007). No entanto, nas mulhe-
sociada a diabetes é 50% mais elevada nas mulheres que nos homens. Esta res, a incidência do cancro do pulmão tem vindo a registar um acréscimo
diferença pode ser explicada pela existência de perfis de risco coronário significativo, a par do aumento do consumo de tabaco (Nunes, 2006).
mais adversos no sexo feminino, combinados com as possíveis dispari-
dades no tipo de terapêuticas e na efectividade das mesmas, favorecendo Em Portugal, subsistem assinaláveis assimetrias entre sexos, tendo-se veri-
os homens (Huxley, Barzi & Woodward, 2006; Gregg, Gu, Cheng, Narrayan ficado, em 2004, uma taxa de mortalidade de 49,2/100.000 habitantes no
& Cowe, 2007). sexo masculino e de 10,8 no sexo feminino.

Assim, diversos mecanismos podem explicar porque a diabetes parece ter Em termos globais, a diferença percentual observada entre homens e mulhe-
efeitos mais adversos no sexo feminino do que no sexo masculino, em par- res foi de 62,2%; face aos dados desagregados por grupos etários, cons-
ticular no domínio das complicações do foro cardiovascular. Por exemplo, tatou-se ser no grupo 35-44 anos que a expressão desta dissemelhança se
as mulheres com diabetes, não apenas apresentam níveis tensionais e tornou mais evidente (71,3%), seguido dos 55-64 anos (69,5%) e dos 45-54
lipídicos mais elevados que os homens com diabetes, mas também as dife- anos (66,4%).
renças entre elas e as não portadoras de diabetes são significativamente
maiores que no caso dos homens. Para além do peso acrescido destes fac-
tores de risco no caso do sexo feminino, há que realçar igualmente o facto
de estar documentado um menor índice de aplicação, nas mulheres, dos Tumores Malignos do Aparelho À semelhança do observado quanto a tumor maligno da traqueia, brônquios
recursos médicos terapêuticos e das técnicas instrumentais disponíveis Digestivo e Peritoneu e pulmão, também na casuística de tumor maligno do aparelho digestivo e
(Huxley, Barzi & Woodward, 2006; Gregg, Gu, Cheng, Narrayan & Cowe, peritoneu o número de óbitos do sexo masculino ultrapassou o dos óbitos
2007) conforme salientado anteriormente (Fernandes, Perelman & Mateus, do sexo feminino em 17,5%.
2007).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 40 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 41

A sobremortalidade masculina foi igualmente evidente nas taxas de mor- a norma e detendo, em termos globais, mais poder, simbólico e factual. É a
talidade por este tipo de causa, com valores de 99,1/100.000 habitantes nos este fenómeno que Connell (2002) se refere ao mencionar a existência de
homens e de 65,2 nas mulheres. Também neste domínio há aspectos de uma ‘ordem de género’.
ordem social e comportamental, designadamente factores de stress, hábitos
alimentares e outros, sustentados por normas sociais e práticas culturais, Porém, nas diferentes instituições formais e informais que enquadram e
que influem quer na expressão da sobremortalidade masculina, quer na regem o ciclo de vida de homens e mulheres – e que sustentam, organi-
acentuação desta disparidade entre sexos em determinadas idades; por zam e estratificam as vivências sociais – desenvolvem-se formas particu-
exemplo, no grupo etário dos 45 aos 54 anos, o número de óbitos do sexo lares de expressão dessa ordem de género, constituindo-se, de modo mais
masculino ultrapassou o dos óbitos do sexo feminino em 40,5%, logo ou menos voluntário, ‘regimes de género’ (Connell, 2002) que, per-
seguido do grupo 55-64 anos, onde a diferença foi da ordem dos 36%. manecendo estáveis na estrutura básica, vão sofrendo modificações na
forma, à medida que as transformações sociais se operam. É desse modo
que o entendimento e o controlo da vida pública e privada de homens e
mulheres se estabelecem nas famílias, nas comunidades religiosas, na co-
Lesões Autoprovocadas Nos países europeus,têm-se verificado taxas de mortalidade por suicídio mais municação social, na organização do Estado e dos vários sectores de inter-
Intencionalmente elevadas nos homens, em particular acima dos 65 anos, com o diferencial venção.
entre sexos a adquirir maior expressão em Portugal (White & Cash, 2003).
Assim, os fundamentos e os processos decorrentes da actividade da Saúde,
De acordo com o Risco de Morrer em Portugal 2004, as lesões autoprovo- enquanto sector organizado da vida pública, são genderizados. Nela, as mu-
cadas intencionalmente apresentaram uma taxa de 11,5/100.000 habi- lheres e os homens, quer como objecto de estudo e planeamento, quer
tantes; valor que no sexo masculino foi de 17,9/100.000 habitantes, ao como destinatários da acção, são encarados sob o filtro do género, de forma
passo que no sexo feminino foi de 5,5. mais ou menos voluntária, com implicações ainda pouco percebidas nos
resultados dessa intervenção.
Em termos comparativos, as causas de mortalidade onde a diferença pro-
porcional entre óbitos no sexo masculino e no sexo feminino se mostrou
mais evidente foram os acidentes de trânsito com veículos a motor, segui-
dos das lesões autoprovocadas intencionalmente. Foi no grupo etário dos O sector da saúde como estrutura Para entender como a área da saúde é, no fundo, uma ‘estrutura organiza-
15 aos 25 anos que se observou a sobremortalidade masculina mais acen- genderizada cional genderizada’ (Doyal, 2002)7, é preciso identificar como esse sector in-
tuada (da ordem dos 60%). corpora as raízes do género nas suas medidas e modos de organização das
políticas e serviços de saúde (Gideon, 2006). Em termos globais, os efeitos
do género mantêm-se no sector da saúde, porque as normas e vieses con-
tinuam presentes nas tomadas de decisão, tanto nas organizações públi-
Género e políticas de saúde Enquanto ideologia que ‘formata’ a vida dos indivíduos de ambos os sexos, cas como privadas, mesmo contrariando algumas iniciativas sociais que
o género adquire um carácter global, constituindo uma verdadeira ordem
quase universal, posto que os pilares em que assenta têm estrutura cons-
7 Para aprofundar o conceito de estrutura organizacional genderizada, ver, por exemplo, os trabalhos de Joan
tante: diferença entre homens e mulheres, constituindo o sexo masculino Acker (1990, 1998, 2006) e, quanto à medicina em particular, de Elianne Riska (1993, 2003), António M. Marques
e Lígia Amâncio (2004).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 42 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 43

procuram ser sensíveis à igualdade de género (Gideon, 2006, p.330). Em análise dos padrões de consumo alcoólico, no qual se afirma que “a mulher
Portugal, o III Plano para a Igualdade – Cidadania e Género, 2007-2010 tem um padrão de consumo de bebidas diferente do homem”, sendo men-
(Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2007), dá conta deste tipo de cionada explicitamente a sua ‘fragilidade’ enquanto grupo de risco (op.cit.,
iniquidades e aponta medidas para lhes dar resposta. p.155). Por outro lado, a especificidade do ser feminino é salientada, sobre-
tudo, no domínio da reprodução, bem como em relação aos factores de
Várias pesquisas têm identificado os efeitos (vieses) do género no campo da risco associados à mortalidade infantil, no qual apenas se destaca o papel
saúde, nomeadamente nas práticas quotidianas, na formação, na investi- da mãe, mas não o do pai (op.cit., p.155).
gação, na literatura e nos manuais médicos (Alexanderson,Wingren, & Ros-
dahl, 1998; Bennett, 1993; Cotton, 1992; Marques, 2007; Risberg, Johansson, É neste sentido que se pode afirmar que a própria linguagem da Medicina,
Westman, & Hamberg, 2003; Rosser, 1993;Wenger, Seeroff, & Packard, 1993). e a filosofia que lhe subjaz, tendem a continuar a encarar o homem como
Não é raro que documentos científicos, técnicos e de orientação institu- a referência da normalidade e a mulher como o outro sexo (Phillips, 1997,
cional acentuem estereótipos socialmente associados a cada um dos sexos 2005).
(Alexanderson, 1999; Alexanderson et al., 1998; Marques, 2007). Referimos
em seguida alguns exemplos ilustrativos. Tanto na literatura científica como no senso comum, a doença coronária
foi considerada, durante décadas, uma ‘doença dos homens’, pelo que foi
A análise dos manuais de várias disciplinas médicas, como da dermatolo- pouco estudada a susceptibilidade feminina e pouco exploradas as medi-
gia, epidemiologia, medicina ocupacional e saúde pública, Alexanderson e das e estratégias de prevenção específicas para as mulheres (Bedinghaus
colegas (1998), seguindo o protocolo de investigação criado por Alexan- et al., 2001, p.1393). Contudo, e paradoxalmente, nos EUA, a taxa de mortali-
derson (1999), ilustra como estes recursos pedagógicos e as práticas for- dade feminina devido a doença cardíaca é entre quatro a seis vezes supe-
mativas dão corpo a ideologias genderizadas no domínio da saúde. rior à do cancro da mama (op.cit., p.1393).

Da análise realizada pelos autores, salienta-se a tentativa de construir tex- A este propósito, ainda, salientem-se as considerações tecidas anteriormente,
tos e difundir saberes pretensamente neutros no que se refere ao género. a propósito da mortalidade devida a diabetes, assinalando-se, uma vez mais,
Assim, é frequente o uso de expressões como ‘indivíduos’, ‘sujeitos’, traba- o estudo recentemente realizado em Portugal, (Fernandes, Perelman & Ma-
lhadores’ e ‘pacientes’, sem precisar o sexo a que dizem respeito8 (Alexan- teus, 2007), em que este tipo de viés foi amplamente documentado.
derson et al., 1998, p.154). No entanto, sublinham os investigadores, as
mensagens deixem pressupor, muitas vezes, que implicitamente, é ao ser Contudo, os ditames do género também se expressam em sentido inverso,
masculino que se referem (op.cit., p.154). ou seja, tomando por norma o que se passa no sexo feminino, e, por ex-
cepção, as realidades constatadas no sexo masculino atente-se, por exem-
Essa é uma das observações mais patentes dos estudos desses investi- plo, no que se verifica em relação à osteoporose, patologia que parece ser
gadores, em vários dos manuais, ou seja, “(…) o homem é, frequentemente, encarada como ‘feminina’ facto habitualmente documentado e enfatizado
considerado como a norma à qual a mulher é comparada” (op.cit., p.156). Um mediante dados epidemiológicos e destacado em ligação íntima com a
dos exemplos citados refere-se ao domínio da saúde comunitária e à menopausa (National Institute of Health, 2006).

8 O que, do ponto de vista linguístico, é facilitado, considerando que todos os manuais analisados usavam a lín- Nos homens, em geral, a perda rápida de massa óssea processa-se a partir
gua inglesa.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 44 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 45

dos 65-70 anos, ao passo que nas mulheres tal se verifica a partir dos 50 atribuídas ao sexo feminino (aspectos que, em associação, produzem
anos, com a menopausa; as fracturas da anca, nos homens, ocorrem em efeitos ao nível da mortalidade e morbilidade), bem como dos níveis de
idades mais avançadas, facto que talvez explique o maior risco de morte adesão às mensagens preventivas (Bedinghaus et al., 2001).
por complicações no sexo masculino (National Institute of Health, 2004).
Algumas mensagens de promoção da saúde são outro excelente exemplo
Sem aprofundar aqui o assunto, refira-se que, curiosamente, a iconografia de como tem existido pouca reflexão acerca da dimensão social dos com-
que surge na literatura sobre o tema, apresenta (ao contrário do que é ha- portamentos em saúde, nomeadamente na área da educação alimentar e
bitual), modelos femininos a ilustrar os textos, de que é exemplo um im- do aleitamento materno. Tanto num caso como noutro, a informação
portante relatório sobre o tema, o Bone Health and Osteoporosis – A Report disponibilizada pelos profissionais e pelos serviços de saúde tende a não
of the Surgeon General (US Department of Health and Human Services, considerar as realidades concretas de vida das mulheres, as quais, fre-
2004). quentemente, contrariam o desejo de aderirem ao que é aconselhado
(Gideon, 2006, p. 332). Do mesmo modo, como referido, não se tem in-
Noutro âmbito, saliente-se que, provavelmente, o investimento público in- vestido, substantivamente, no envolvimento masculino na saúde repro-
cisivo em campanhas de prevenção do cancro da mama, mais do que das dutiva, nem nos problemas de saúde física e mental resultantes dos
doenças cardíacas na mulher, está na origem do maior receio destas em comportamentos socialmente promovidos, nomeadamente quanto à vio-
relação à doença oncológica mamária (op.cit., p.1393). Por outro lado, a di- lência, ao abuso de álcool e à sexualidade (op.cit., p. 333).
fusão de informação sobre doenças cardiovasculares – muito dirigidas aos
homens – terá feito decrescer a mortalidade e a prevalência dos factores de Relativamente aos problemas de saúde para os quais a perspectiva
risco masculinos associados a elas, o mesmo não acontecendo nas mulhe- hegemónica tem dado mais atenção, constata-se, em termos globais, haver
res (op.cit., p.1393). um padrão que se traduz num predomínio daqueles que mais afectam os
homens, nomeadamente, as doenças crónicas, como seja a doença cardíaca e
Para além dos comportamentos individuais e dos factores que, directa e in- o cancro do pulmão (Inhorn &Whittle,2001;Susser & Susser,1996a),optando-
directamente, os influenciam, os autores revêem um conjunto de estudos se por uma óptica comparativa ao referirem a situação das mulheres, o que
que dão conta do sub-diagnóstico médico dos sinais de alerta de doença acentua a sua ‘diferença’ (Inhorn & Whittle, 2001;Whittle & Inhorn, 2001).
cardíaca nas mulheres, mesmo em situações agudas (Bedinghaus et al.,
2001, p.1393-4). Em parte, esta condição é devida à especificidade dos sin- O recurso ao essencialismo biológico na representação das mulheres é
tomas apresentados pelas mulheres, os quais podem ser menos (re)conhe- visto por Inhorn e Whitlle (2001, p.559) como uma das formas do ‘viés anti-
cidos ou subvalorizados pelos profissionais (op.cit., p.1394). feminista’. Esta caracteriza-se pela forte associação entre o sexo feminino
e a função reprodutora e pela desvalorização das condições sociais que
Um dos aspectos que, neste trabalho, merece destaque é, justamente, a afectam negativamente as mulheres, incluindo as situações de discrimi-
complexificação da análise e das propostas dos autores, os quais identifi- nação (Inhorn & Whittle, 2001; Krieger & Fee, 1994; Krieger et al., 1993;
cam os factores bio-psico-sociais associados à adopção das medidas pre- Krieger & Zierler, 1995).
ventivas por parte das mulheres. Sinteticamente, acentua-se a
determinação dos contextos de vida, das posições sociais de classe, da Como acentuam Krieger e Zierler (1995), é muito frequente que as mulhe-
etnia, do rendimento económico e das actividades quotidianas socialmente res, enquanto ‘grupo de risco’, sejam definidas de forma homogénea pelas
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 46 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 47

suas capacidades de engravidar, de parir e de cuidar adequadamente dos Se, nas últimas décadas, as estatísticas sociais e de saúde apresentam, em
seus filhos, ignorando as realidades e diferenças das suas vidas, altamente separado, os dados relativos aos homens e às mulheres - mostrando, por
marcadas pela genderização. exemplo, a clara existência de diferentes padrões de morbi-mortalidade -
a questão mais pertinente raramente é expressa: ‘porque há diferenças?’
Outra das expressões do ‘viés anti-feminista’ referido por M. Inhorn e K. (Verbrugge, 1995, p. 156). Não adoptar uma postura interrogativa pode ser
Whittle (2001, p.562), diz respeito à descontextualização e despolitização vista como uma forma de viés.
dos riscos de saúde das mulheres. Este viés é visível quando, em termos de
perspectivas dominantes, se insiste na satisfação da ‘descoberta’ da relação Com efeito, a insistência no ‘porquê’, quando se pretende entender deter-
entre o factor de risco e a patologia resultante, evitando questionar a razão minado padrão de distribuição de uma patologia e os mecanismos da sua
de existência desses factores de risco, nomeadamente se estarão rela- difusão, é um primado essencial de enriquecimento da visão epidemioló-
cionados com aspectos económicos, políticos e sociais (op.cit., p.562). Ou gica e uma via para a transformação do sector da Saúde (Krieger et al., 1993,
seja, o que determina que algumas doenças específicas afectem mais in- p.109). De forma muito directa e recorrendo a um discurso metafórico, sin-
cisivamente alguns indivíduos ou grupos e que alguns contextos ou mo- tetizam o seu pensamento da seguinte forma: “Continuar, meramente, a
mentos históricos produzam essa susceptibilidade acrescida não é objecto catalogar os factores de risco como uma ‘rede amorfa’ de causalidade não
de questionamento (Inhorn, 1995; Inhorn & Whittle, 2001; Wing, 1994). será, de todo, suficiente. Se a nossa meta é mudar a teia, em vez de somente
quebrar os seus fios, é tempo de localizar a aranha” (op.cit., p.109)10.
As mulheres são, como sublinhámos, encaradas como beneficiárias espe-
ciais do enfoque das políticas e serviços de saúde, mas a atenção que lhes Sublinham esses investigadores que, para adopção de políticas de pre-
é dada é dirigida para as suas necessidades enquanto mães9 e os factores venção efectivas, “(…) é preciso focalizar os determinantes estruturais da
implicados nos efeitos de género na morbilidade são, tendencialmente, saúde, e não apenas os factores classificados como ‘escolhas de estilo de vida’
ignorados (Gideon, 2006, p. 331). No mesmo domínio, as necessidades dos (...)” (Krieger et al., 1993, p.109).
homens são, por regra, pouco valorizadas e o seu papel na saúde reprodu-
tiva não tem merecido grande investimento (op.cit., p. 331). Em Portugal, Desenvolver um novo olhar sobre estas questões constitui tarefa igual-
nas sucessivas realizações do Inquérito Nacional de Saúde os homens não mente complexa. Exige, nomeadamente, entender melhor o impacte que
têm sido questionados quanto à saúde reprodutiva, o que, quanto a nós, o género tem tido no pensamento, nas interacções e nas práticas dos
poderá sugerir que essa esfera da saúde é encarada como dizendo respeito profissionais de saúde. Impõe, ainda, uma percepção mais aprofundada acer-
apenas às mulheres. ca da forma como as próprias políticas do sector da Saúde (genderizado,
como todos os sectores) reflectem, ou não, através de normativos e orien-
A relação entre os comportamentos dos homens e os efeitos negativos em tações técnicas, uma perspectiva crítica acerca das iniquidades em saúde,
vários domínios da saúde tem sido descrita e analisada por inúmeros inves- que subsistem entre homens e mulheres.
tigadores, mas nem sempre sob o olhar do género (Courtenay, 2000; Daniels-
son & Johansson, 2005; Doyal, 2001; Holland & Hill, 2007; Jadad & Meryn, Nos dois capítulos seguintes dar-se-á conta de investigações feitas nesse
2005; Moynihan, 1998; Verbrugge, 1995;World Health Organization, 2002). sentido.

9 Nomeadamente, sob a denominação de ‘saúde materno-infantil’. 10 Tradução livre a partir do original em inglês.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 48 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 49

CAPÍTULO II

Representações dos profissionais de saúde

O impacte dos significados sociais e culturais do género no campo da saúde


tem vindo a ganhar visibilidade através de um corpus de investigação pro-
duzida no contexto das ciências médicas.

Os resultados de vários estudos internacionais mostram como os efeitos do


sexo do utente e do género podem traduzir um espectro diferenciador ao
nível das estratégias clínicas adoptadas pelos profissionais - por exemplo:
em termos de doenças cardiovasculares, os homens parecem ser sujeitos
a investigações e intervenções mais intensivas, comparativamente às mulhe-
res (Dong, Beh-Shlomo et al., 1998; Roger, Farkouh et al., 2000; Mark, 2000);
por outro lado, é nas mulheres em quem mais se estabelece diagnósticos
com sintomas não-especificados (Hamberg, Risberg et al., 2002).

A nível dos próprios profissionais de saúde, também existem resultados


que apontam para variações em função do sexo - por exemplo: foram iden-
tificadas diferenças consistentes quanto ao estilo de comunicação adoptado
por médicos e médicas (Roter & Hall, 2002).

Relativamente à formação académica, onde se inclui a escolha de espe-


cialidade, a genderização da profissão é visível em algumas áreas específi-
cas. A representatividade dos homens nas especialidades cirúrgicas é
muito superior à das mulheres (Gjerber, 2001; Goldacre, Davidson et al.,
1999). No contexto nacional, no conjunto das especialidades cirúrgicas, 77%
dos profissionais são homens, e esse número aumenta para 82%, se con-
siderarmos apenas a cirúrgia geral (INE, 2005). Este padrão é similar ao
nível da cardiologia, onde a representação do sexo masculino é da ordem
dos 78%. As especialidades com maior representatividade feminina dizem
respeito a disciplinas relacionadas com a saúde da criança e da mulher (em
pediatria - 60% de profissionais mulheres; em ginecologia-obstetrícia - 57%
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 50 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 51

de profissionais mulheres) ou com um maior índice de contacto com o Participantes No total, participaram 249 profissionais de saúde enquadrados em dife-
utente (57% de mulheres na medicina geral e familiar). rentes áreas de intervenção e especialidade. Os quadros que se seguem
permitem caracterizá-los em termos da sua distribuição pelo grupo profis-
Apesar dos resultados empíricos publicados ao longo da última década Quadro 4. Distribuição dos participantes pelos grupos sional, sexo e contexto de intervenção clínica.
salientarem a importância das representações sociais de género nas per- profissionais da saúde considerados
cepções e práticas dos profissionais da saúde, esta temática parece estar Grupo Profissional N %
ainda distante do contexto académico e profissional das ciências médicas.
Médicos 125 51%

Enfermeiros 120 49%


Este projecto foi delineado e desenvolvido com o objectivo de explorar o
Total 245 11 100%
contexto nacional dos profissionais de saúde, de modo a caracterizar as
suas percepções e representações face às problemáticas relacionadas com
sexo e género no desempenho efectivo das suas funções. Deseja-se con-
tribuir para a elaboração de estratégias de intervenção e políticas de saúde Quadro 5. Distribuição dos participantes pelos grupos de
sexo
que tomem em conta as especificidades do ser homem ou mulher, num
domínio que está longe de ser neutro do ponto de vista do género. Sexo N %

Feminino 170 69.4%


Para concretizar estes objectivos foram conduzidos dois estudos diferenci- Masculino 75 30.6%
ados, um primeiro de carácter quantitativo, e um segundo qualitativo, com Total 24511 100%
um enfoque circunscrito às representações de médicos e enfermeiros, em
contexto hospitalar e em centros de saúde.

Quadro 6. Distribuição dos participantes pelos contextos


de intervenção

Estudo 1 Este estudo focalizou as representações dos profissionais sobre o impacte Contexto Intervenção N %

dos significados de género no plano das práticas clínicas, da formação e Hospital 124 49.8%
das próprias relações e opções profissionais. A pesquisa foi quantitativa, Centro Saúde 125 50.2%
através da técnica de questionário, tendo sido orientada para a caracteri- Total 249 100%
zação geral das representações de médicos e enfermeiros, tendo em conta
o grupo profissional, o sexo e o contexto de intervenção.

Apesar da amostra deste estudo incluir um total de 249 participantes, não foi possível identificar o grupo de
11

sexo de 4 pessoas, em virtude da sua não resposta.


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 52 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 53

Procedimentos A recolha de dados foi realizada através da aplicação de um questionário de género assumiu nos currícula apresentados ao longo da formação dos par-
auto-resposta. Este instrumento foi distribuído em diferentes hospitais e ticipantes, bem como no plano académico actual; por outro lado, abordou
centros de saúde da área da Grande Lisboa e posteriormente recolhido para a importância do sexo do estudante na escolha da especialidade, tal como
tratamento estatístico. Os questionários eram anónimos, quer em termos no interesse que os profissionais expressam face à possibilidade de receber
da identidade dos participantes, quer da instituição de pertença. formação complementar neste domínio.

D. O campo das relações entre profissionais – foi dedicado à importância


que o sexo dos profissionais pode assumir ao nível das relações entre pares,
Instrumento O instrumento utilizado para a recolha dos dados foi um questionário de- quer na perspectiva dos próprios, quer na percepção que estes apresentam
senvolvido pela equipa consultora12 e incidiu em áreas temáticas distintas, face aos seus colegas de profissão.
onde o papel do sexo dos utentes e dos próprios profissionais pode revelar
efeitos diferenciais significativos. Concretamente, o questionário foi estru- E. O desenvolvimento da carreira – nesta secção focalizámos questões rela-
turado em torno de cinco temas centrais: cionadas com a igualdade e/ou discriminação no plano da carreira profis-
sional, a diferenciação de especialidades médicas/enfermagem em função
A. O papel do sexo do utente no âmbito das práticas clínicas - focalizou a do sexo dos profissionais, as barreiras que possam estar associadas ao sexo
importância que esta dimensão pode representar no plano da condução dos mesmos, a autoridade de homens e mulheres no contexto da profissão
das consultas, dos critérios que são utilizados para o diagnóstico, no e diferenciações de prestígio ao nível das especialidades médicas/enfer-
processo terapêutico e na relação que o profissional estabelece com o magem.
utente. Estas dimensões foram orientadas para a percepção que o próprio
profissional tem sobre o tema, para a sua percepção sobre a importância
que os colegas da sua área de especialidade lhe atribuem, bem como os
colegas de outras especialidades e áreas profissionais.Introduziu-se ainda uma O questionário é apresentado no Apêndice I.
questão associada às especialidades onde o sexo do utente pode assumir
relevância.

B. O papel do sexo do profissional de saúde no campo das práticas clínicas -


esta secção foi construída de acordo com as mesmas dimensões que de-
screvemos na anterior, embora adaptada à importância do sexo do profis-
sional.

C. A abordagem diferencial da saúde dos homens e das mulheres no con-


texto da formação académica - incidiu no enfoque que a perspectiva de

Alguns itens deste questionário foram adaptados dos estudos desenvolvidos por Risberg, Hamberg & Jo-
12

hansson (2003) e Amâncio e colaboradores (não publicado) (no âmbito do projecto Elites Discriminadas - Uma
abordagem interdisciplinar das desigualdades de género POCTI/SOC/44726/2002 da FCT).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 54 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 55

Principais Resultados Os procedimentos de análise utilizados nas diferentes secções do ques- relevância ao sexo do utente no âmbito do processo terapêutico, apesar das
tionário foram conduzidos de acordo com a natureza dos itens. Passamos a respostas continuarem pouco acima do ponto 3 (pouca importância) (Enf =
apresentar os vários resultados de acordo com a estrutura do instrumento. 3.18, Med = 2.59; t (231) = 2.304, p= .022).

A. O papel do sexo do utente no âmbito das práticas clínicas O padrão de respostas anterior repetiu-se, quando consideraram a pers-
Neste primeiro grupo de questões realizámos Testes T às várias questões, pectiva dos colegas de outras especialidades quanto à relevância que o sexo
de modo a comparar a média das respostas dos participantes, em função do utente assume no âmbito do processo terapêutico (Enf = 3.22, Med = 2.62;
do grupo de sexo, do grupo profissional e do contexto de trabalho (as var- t (229) = 2.520, p= .012), bem como a perspectiva dos colegas de outras áreas
iáveis independentes (VI) em estudo). profissionais sobre a mesma dimensão (Enf = 3.13, Med = 2.66; t (224) =
1.972, p= .050).
As comparações efectuadas entre profissionais mulheres e homens (VI -
Gráfico 4. Para os colegas de outras áreas profissionais, o
sexo) para o conjunto das questões que integraram esta primeira secção sexo do utente tem importância na forma como conduzem Quanto às comparações realizadas em função do contexto de trabalho, ob-
não mostraram quaisquer variações significativas ao nível das suas res- o atendimento/consulta servaram-se três resultados diferenciadores entre os participantes que actuam
postas. Em média, afirmaram pouca importância quanto ao sexo do utente em centros de saúde e hospitais, em termos da importância atribuída ao
Contexto de trabalho
no contexto das práticas clínicas (em torno do ponto 3 da escala de res- sexo do utente. No conjunto, os profissionais dos centros de saúde
posta). Hospitais atribuiram significativamente maior relevo ao seguinte:

Centros de Saúde
Em termos das comparações estabelecidas em função dos grupos profis- • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente rele-
sionais (VI - profissão) foram encontradas algumas variações significati- vante na forma como conduzem a consulta/atendimento (CS = 3.42, Hos
vas. Especificamente: = 2.75; t (228) = 3.071, p= .002);
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4

Na questão importância atribuída ao sexo do utente no âmbito do processo • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente im-
terapêutico os enfermeiros apresentaram pontuações significativamente portante para os critérios de diagnóstico (CS = 3.35, Hos = 2.74; t (228) =
mais elevadas do que os médicos, apesar das suas respostas se localizarem 2.588, p= .010);
pouco acima do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 3.21, Med = 2.69; t (237)
= 1.992, p= .047). Gráfico 5. Para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente im-
do utente tem importância na na relação que estabelecem
com o utente
portante no âmbito da relação terapêutica (CS = 3.28, Hos = 2.64; t (228)
Para a importância atribuída ao sexo do utente no plano da relação que é es- = 2.639, p= .009).
tabelecida no contexto clínico, também foram os enfermeiros a considerar Contexto de trabalho
significativamente mais esta dimensão, relativamente aos médicos, ape- Hospitais No conjunto destes três resultados, uma vez mais, as respostas dos profis-
sar de, mais uma vez, as respostas se localizarem pouco acima do ponto 3 sionais dos centros de saúde situaram-se pouco acima do ponto “pouca
(pouca importância) (Enf = 3.12, Med = 2.56; t (231) = 2.180, p= .030). Centros de Saúde importância”.

Comparativamente ao grupo de médicos, os enfermeiros também in- Introduzimos ainda um outro item com o objectivo de anali-sar, de forma
dicaram mais que os colegas da mesma especialidade atribuem maior 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 mais focalizada, se os participantes consideravam a existência de especiali-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 56 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 57

Quadro 7. Resultados do Teste Binomial dades onde o sexo do utente assume maior importância. Os resultados Gráfico 6. O sexo do próprio profissional tem importância importância ao sexo do profissional no contexto das práticas clínicas, com-
no processo terapêutico
Existe alguma especialidade em que considere
mostraram diferenças nas proporções das duas categorias de resposta (sim parativamente ao sexo do utente.
que o sexo do/a utente tenha importância? ou não), indicando uma concordância maioritária dos profissionais face a Grupo profissional
esta questão. Em termos dos grupos profissionais (VI – profissão) também observámos
Não Sim Total Médico/a
um conjunto de variações significativas, sendo os enfermeiros quem valoriza
N 84 158 242
Realizámos ainda um teste estatístico14, de modo a verificar se esta proporção Enfermeiro/a
um pouco mais o sexo do profissional, comparativamente ao grupo de
Proporção13 .35 .65 1,00 de respostas dependia de alguma associação particular com as variáveis médicos. Especificamente:
p < 0.001 sexo, profissão e contexto de trabalho. Os resultados não mostraram nenhum
padrão significativo, indicando que esta diferenciação nas respostas não teve 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 • No plano do processo terapêutico, os enfermeiros associaram significati-
qualquer relação com aquelas variáveis sociodemográficas. vamente mais importância ao seu próprio sexo, em comparação com os
médicos, apesar das suas respostas se localizarem abaixo do ponto 3
Quadro 8. Especialidades onde o sexo do utente tem relevân-
De maneira a clarificar os resultados obtidos para as especialidades onde o (pouca importância) (Enf = 2.67, Med = 1.93; t (222) = 3.487, p= .001).
cia, de acordo com a opinião de enfermeiros e médicos sexo do utente assume maior importância, efectuámos ainda uma catego-
rização das respostas positivas, cruzando as especialidades indicadas com • Comparativamente ao grupo dos médicos, os enfermeiros também con-
Especialidades Enfermeiros Médicos
o grupo profissional dos respondentes. sideraram significativamente mais que, para os colegas da mesma espe-
Todas as especialidades 1 2 Gráfico 7. Para os colegas de outras especialidades, o sexo cialidade, o sexo do profissional assume importância para: os critérios de
Outras especialidades 8 2 do próprio profissional tem importância nos critérios que
Os resultados indicam que, quanto à atribuição de importância ao sexo do utilizam para avaliação/diagnóstico avaliação e diagnóstico (Enf = 2.55, Med = 2.11; t (234) = 2.117, p= .035) e o
Cardiologia 0 1
utente, quer médicos, quer enfermeiros, salientaram claramente a espe- processo terapêutico (Enf = 2.59, Med = 2.01; t (226) = 2.751, p= .006). As res-
Medicina Geral e Familiar 1 6 Grupo profissional
cialidade de Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia. A Urologia também postas dos enfermeiros continuaram abaixo do ponto 3 (pouca im-
Dermatologia 2 2
apresentou um número de respostas elevado, mas foi o grupo de médicos Médico/a portância) para os dois itens.
Medicina Interna 0 2
que atribuiu maior relevância ao sexo do utente.
Cirurgia Geral 0 1 Enfermeiro/a
• Por outro lado, também foram os enfermeiros a afirmar significativa-
Endocrinologia 1 5
mente mais que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profis-
Oncologia 1 1
B. O papel do sexo do profissional no âmbito das práticas clínicas sional assume importância nos critérios de avaliação e diagnóstico - com
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
Ortopedia 0 1
Nesta parte do questionário também conduzimos Testes T com as várias respostas abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.70, Med = 2.07;
Patologia Clínica 0 1
questões, de modo a comparar a média das respostas dos participantes, t (222) = 3.124, p= .002).
Reumatologia 0 1
em função do grupo de sexo, do grupo profissional e do contexto de tra-
Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia 59 64
balho (VI’s = sexo e profissão dos respondentes, contexto de trabalho). • O mesmo grupo também considerou significativamente mais que os
Saúde Infantil/Juvenil/Pediatria 7 1
médicos que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profis-
Especialidades Cirúrgicas 0 7 Tal como na secção anterior, os resultados emergentes das comparações sional tem relevância para o estabelecimento do processo terapêutico. As
Saúde Mental/Psiquiatria 6 16 realizadas entre mulheres e homens (VI – sexo) não mostraram quaisquer respostas continuaram abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.76,
Urologia 34 54 variações significativas. No conjunto dos itens, as pontuações situaram-se Med = 2.05; t (222) = 3.313, p= .001).
Gastrenterologia 1 1 abaixo do ponto 3 (pouca importância), o que indica a associação de menor

13 A proporção testada foi de .50.


14 Teste de independência para o Qui-Quadrado.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 58 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 59

• Os enfermeiros também referiram significativamente mais que os médi- Gráfico 9. Para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo • Foi o mesmo grupo a salientar mais que os colegas da mesma especiali-
do próprio profissional tem importância na forma como con-
cos que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profissional duzem o atendimento/consulta dade atribuem importância a esta dimensão no contexto das relações
assume importância no estabelecimento da relação com o utente. As res- que estabelecem com os utentes, embora situem as suas respostas no
postas situaram-se no ponto 3 (pouca importância) (Enf = 3.02, Med = Contexto de trabalho ponto 3 (CS = 2.97, Hos = 2.39; t (234) = 2.443, p= .015).
2.47; t (221) = 2.401, p= .017). Hospitais
• Por outro lado, também foram os participantes dos centros de saúde que
• Finalmente, foi o mesmo grupo a indicar significativamente mais que os Centros de Saúde referiram significativamente mais que, para os colegas de outras espe-
médicos que, para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo do cialidades, o sexo do profissional é importante para os critérios que uti-
profissional tem importância para o processo terapêutico. As respostas lo- lizam na avaliação/diagnóstico. No entanto, as pontuações situam-se
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
calizaram-se abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.65, Med = abaixo do ponto 3 (CS = 2.63, Hos = 2.13; t (232) = 2.431, p= .016).
2.16; t (224) = 2.389, p= .018).
• Este grupo de profissionais afirmou significativamente mais que, para os
Quanto às comparações relativas ao contexto de trabalho, emergiu um colegas de outras áreas profissionais, o sexo do profissional tem relevân-
conjunto de resultados diferenciadores entre os profissionais que actuam cia na forma como conduzem o atendimento/consulta (CS = 3.02, Hos =
Gráfico 10. Para os colegas de outras áreas profissionais, o
em centros de saúde e hospitais, em termos da importância atribuída ao sexo do próprio profissional tem importância na relação que 2.31; t (215) = 3.210, p= .002).
sexo do profissional. No conjunto, foram os profissionais dos centros de estabelecem com o utente
saúde que valorizaram um pouco mais a importância desta dimensão nas • Comparativamente aos profissionais dos hospitais, os que actuam nos
Contexto de trabalho
práticas clínicas. Especificamente: centros de saúde sugeriram significativamente mais que, para os cole-
Hospitais
gas de outras áreas profissionais o sexo do profissional é importante para
• Afirmaram significativamente mais a importância do seu próprio sexo os critérios que utilizam na avaliação/diagnóstico (CS = 2.66, Hos = 2.11;
Centros de Saúde
na forma como conduzem o atendimento/consulta, comparativamente t (229) = 2.898, p= .004) e no processo terapêutico (CS = 2.63, Hos = 2.17;
aos profissionais hospitalares. No entanto, a sua pontuação média t (228) = 2.254, p= .025).
situou-se em torno do ponto 3 (pouca importância) (CS = 3.12, Hos = 2.54; 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
t (238) = 2.276, p= .024). • O padrão de resposta foi semelhante em termos da relevância que os cole-
Gráfico 8. Para os colegas da mesma especialidade, o sexo do gas de outras áreas profissionais associam ao sexo do profissional no plano
próprio profissional tem importância na forma como con- • Também foi aquele grupo que desvalorizou significativamente menos a da relação com o utente (CS = 3.19, Hos = 2.45; t (220) = 3.316, p= .001).
duzem o atendimento/consulta
importância daquela dimensão em termos dos critérios que são utilizados
Contexto de trabalho
para a avaliação/diagnóstico (CS = 2.45, Hos = 1.95; t (240) = 2.420, p= .016). Tal como fizemos para a dimensão ‘sexo do utente’, introduzimos um outro
Quadro 9. Resultados do Teste Binomial
item que permitisse analisar com mais detalhe se os participantes conside-
Hospitais
• Comparativamente aos profissionais que actuam nos hospitais, os Existe alguma especialidade em que considere que o sexo ravam a existência de especialidades onde o sexo do profissional pode assumir
do/a utente tenha importância?
Centros de Saúde
profissionais dos centros de saúde também indicaram significativamente maior importância.
mais que, os colegas da mesma especialidade consideram a relevância Não Sim Total
do sexo do profissional na forma como conduzem a consulta/atendi- N 118 123 241 Os resultados não mostraram diferenças significativas na distribuição de
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 mento, apesar de, mais uma vez, as pontuações continuarem em torno Proporção 15 .49 .51 1,00
do ponto 3 (CS = 3.02, Hos = 2.34; t (225) = 2.847, p= .005). ns
15 A proporção testada foi de .50.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 60 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 61

Quadro 10. Especialidades onde o sexo do profissional tem proporções das duas categorias, o que indica que as posições dos partici- Gráfico 11. O sexo do estudante é importante na escolha da portância do sexo do estudante na escolha da especialidade e interesse em re-
relevância, de acordo com a opinião de enfermeiros e médicos especialidade
pantes quanto a esta questão se encontram relativamente divididas. ceber formação complementar na área do género aplicada à saúde.
Sexo
Especialidades Enfermeiros Médicos
De maneira a clarificar os resultados relativos às respostas afirmativas, tam- Feminino Na primeira questão, embora ambos os grupos discordassem quanto à im-
Cirurgia Geral 0 3
bém solicitámos a indicação dessas especialidades e realizámos uma cate- portância do sexo do estudante na escolha da especialidade, as mulheres
Medicina Geral e Familiar 1 5
gorização sobre as respostas, cruzando as especialidades referidas com o Masculino foram significativamente mais discordantes do que os homens (M= 3.24, F=
Ortopedia 1 0
grupo profissional dos respondentes. 2.61; t (238) = 2.404, p= .017).
Endocrinologia 0 2

Otorrinolaringologia 0 1 Tal como aconteceu para a dimensão ‘sexo do utente’, estes resultados in- 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 Para a questão seguinte, homens e mulheres diferiram significativamente
Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia 42 60 dicam que, quer médicos, quer enfermeiros, salientaram a importância do de opinião, uma vez que os primeiros discordaram um pouco quanto ao in-
Saúde Infantil/Juvenil/Pediatria 3 1 sexo do profissional ao nível das especialidades de Saúde Materna/Gine- teresse em receber formação complementar naquela área, enquanto elas se
Saúde Mental/Psiquiatria 4 15 cologia/Obstetrícia e Urologia. No entanto, neste caso, foram os médicos a aproximaram mais de uma posição neutra (não concordo nem discordo) (M=
Especialidades Cirúrgicas 0 2
destacar mais as duas especialidades, enquanto que no plano do sexo do 2.84, F= 3.72; t (235) = -2.949, p= .004).
Gráfico 12. Estou interessado em receber formação comple-
Urologia 20 47
utente haviam referenciado mais a Urologia, comparativamente aos en- mentar nesta matéria
fermeiros. Relativamente à variável profissão emergiram aspectos de diferenciação sig-
Gastrenterologia 0 3
Sexo nificativa entre as respostas de médicos e enfermeiros para um conjunto de
Outras Especialidades 4 1
Feminino questões que passamos a enunciar.
C. A abordagem diferencial da saúde dos homens e das mulheres no contexto
da formação académica Masculino As respostas dos dois grupos divergiram significativamente, já que os médi-
Nesta secção do questionário focalizámos as ideias dos profissionais de cos revelaram alguma discordância face à presença da abordagem diferen-
saúde quanto à representatividade que esta abordagem assume no plano da cial das questões de saúde dos homens e mulheres nos currículos
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
formação académica e complementar, bem como a influência do sexo do es- académicos da sua formação, enquanto que os enfermeiros se aproximaram
tudante na escolha de especialidade. Por outro lado, também contemplá- mais da posição “não concordo nem discordo” (Enf = 3.63, Med = 2.88; t (237)
mos as suas opiniões quanto à necessidade de dar mais atenção a esta = 3.002, p= .003).
temática nos currículos académicos, tal como o seu interesse em receber for-
mação complementar no domínio do género em saúde. Os dois grupos apresentaram opiniões significativamente diferentes quanto
Gráfico 13. Aquando da minha formação, esta perspectiva à presença desta abordagem nos currículos académicos actuais da sua área
estava presente nos currículos académicos
A análise dos itens foi realizada com base em Testes T, de modo a verificar de especialidade, uma vez que os enfermeiros se posicionaram mais em
possíveis aspectos de diferenciação entre os seguintes grupos: homens/mu- Grupo profissional
torno do ponto “não concordo nem discordo”, enquanto que os médicos reve-
lheres, Enfermagem/Medicina e Centro de Saúde/Hospital (VI’s – sexo, profis- laram alguma discordância face a essa presença (Enf = 3.66, Med = 3.02;
Médico/a
são, contexto trabalho). Observaram-se efeitos significativos associados às t(234) = 2.540, p= .012).
três variáveis, que passamos a apresentar. Enfermeiro/a
Relativamente à importância que o sexo do estudante assume na escolha
As comparações entre mulheres e homens (variável sexo) revelaram diferen- de especialidade, também emergiram diferenças significativas entre as res-
ças significativas entre as suas respostas relativamente às questões im- 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 postas nos dois grupos: os enfermeiros afirmaram a sua discordância face à
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 62 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 63

Gráfico 14. Estou interessado em receber formação com- influência desta dimensão, enquanto que os médicos discordaram um pouco Gráfico 17. Estou interessado em receber formação comple- mente menor interesse em recebê-la, comparativamente aos profissionais
plementar nesta área mentar nesta área
menos (Enf = 2.45, Med = 3.14; t(238) = -2.829, p= .005). dos centros de saúde, que se posicionaram no ponto médio da escala (CS=
Grupo profissional Contexto de trabalho
4.05, H= 2.90; t(239) = 4.268, p< .001).
Finalmente, quanto ao interesse em receber formação complementar na
Médico/a Hospitais
área do género aplicada à saúde, emergiram novas distinções significativas
Enfermeiro/a
a nível das posições dos dois grupos, uma vez que enfermeiros “não concordam Centros de Saúde
D. O campo das relações entre profissionais
nem discordam”, enquanto que os médicos revelaram alguma discordância Nesta secção concentrámos a atenção na influência do género no contexto
face a essa possiblidade (Enf = 4.01, Med = 2.93; t (235) = 3.962, p< .001). das relações dos profissionais de saúde com os seus pares. Tal como fizemos
0 1 2 3 4 5 0 1 2 3 4 5 anteriormente, a análise dos itens foi conduzida com base em Testes T, de
Relativamente à variável contexto de trabalho foram observados aspectos modo a verificar possíveis aspectos de diferenciação entre os grupos
de diferenciação significativa entre as respostas dos profissionais dos centros ‘homem/mulher’, ‘enfermagem/medicina’ e ‘centro de saúde/hospital’ (VI’s
de saúde e hospitais em quatro dimensões, que passamos a apresentar. – sexo, profissão, contexto trabalho).

Gráfico 15. Aquando da minha formação, esta perspectiva


estava presente nos curriculos académicos
A primeira diz respeito à presença da abordagem diferencial da saúde de Apesar de terem emergido algumas diferenças a nível das respostas dos
homens e mulheres nos currículos académicos da formação dos partici- participantes, não se observaram quaisquer efeitos significativos daquelas
Contexto de trabalho pantes, onde os profissionais dos centros de saúde tenderam a “não con- variáveis nos itens deste grupo. As pontuações atribuídas situaram-se em
Hospitais cordar nem discordar” com essa perspectiva, enquanto que os profissionais torno do ponto 2 (muito pouca importância).
dos hospitais manifestaram alguma discordância (CS= 3.69, H= 2.82; t (241)
Centros de Saúde = 3.542, p< .001).
E. O desenvolvimento da carreira
O padrão de resposta anterior emergiu novamente face à presença da pers- A última parte do questionário foi dedicada ao contexto da carreira profis-
0 1 2 3 4 5
pectiva diferencial da saúde de homens e mulheres nos currículos académi- sional e contemplou vários domínios relacionados, especificamente: aspec-
cos actuais da área de intervenção dos participantes (CS= 3.66, H= 3.04; t(238) tos de igualdade e/ou discriminação entre homens e mulheres, diferenciação
= 2.467, p= .014). entre especialidades médicas/enfermagem em função do sexo dos profis-
sionais, barreiras associadas ao sexo dos profissionais, grau de autoridade
O terceiro aspecto diferenciador entre os dois grupos refere-se à necessidade de homens e mulheres no contexto da profissão e diferenciações de prestí-
Gráfico 16. Deveria ser dada mais atenção a esta temática
de dar mais atenção a esta temática nos currículos académicos actuais: en- gio a nível das especialidades médicas/enfermagem.
nos curriculos académicos da minha área
quanto que os profissionais dos centros de saúde se posicionaram no ponto
Contexto de trabalho médio da escala - “não concordo nem discordo”, os profissionais dos hospi- Foi utilizada a mesma metodologia de análise para os vários itens (Testes T)
Hospitais tais não consideraram importante integrar esta temática nos programas e com base nas três VI’s em estudo, emergiram efeitos significativos associ-
académicos (CS= 4.32, H= 3.48; t(238) = 3.228, p= .001). ados aos grupos de sexo e profissional, que passamos a apresentar.
Centros de Saúde
Finalmente, também se observaram diferenças significativas entre os dois Relativamente às comparações associadas à variável sexo, na questão da
grupos quanto ao interesse em receber formação complementar nesta igualdade de oportunidades de carreira entre mulheres e homens, obser-
0 1 2 3 4 5 matéria, com os profissionais dos hospitais a manifestarem significativa- varam-se as seguintes diferenças: em média, os homens afirmaram existir
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 64 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 65

Gráfico 18. Existe igualdade de oportunidades entre igualdade de oportunidades de carreira entre sexos, ao passo que as mulhe- Quando focalizámos a importância do sexo do utente no contexto das práti-
homens e mulheres
res se posicionaram no ponto médio da escala – “não concordo nem dis- cas clínicas, foram os enfermeiros que apresentaram, para todos os itens,
Sexo cordo” (M= 5.57, F= 4.38; t(242) = 4.373, p< .001). pontuações mais elevadas quando comparadas com as dos médicos – ainda
Feminino que pouco expressivas, estas diferenças foram estatisticamente significati-
De igual modo, foram observadas diferenças nos padrões de resposta de vas. Também foi possível observar o mesmo tipo de padrão quando analisá-
Masculino homens e de mulheres quanto à existência de igualdade na aplicação de mos o contexto de trabalho, uma vez que os profissionais dos centros de
critérios para a progressão na carreira de indivíduos de ambos os sexos: en- saúde valorizaram mais a importância daquela dimensão, comparativa-
quanto que os homens concordaram com esta afirmação, as mulheres mente aos colegas em contexto hospitalar. Em contrapartida, a variável sexo
0 1 2 3 4 5 6 salientaram, mais uma vez, maior aproximação a uma posição de neutrali- não produziu quaisquer efeitos diferenciadores entre homens e mulheres, o
dade (não concordo nem discordo) (M= 5.56, F= 4.48; t(238) = 3.879, p< .001). que nos sugere uma elevada proximidade a nível das respostas em termos
da fraca importância associada a esta dimensão. Tal parece sugerir serem o
Quanto ao grau de autoridade profissional entre homens e mulheres, verifi- grupo profissional e o contexto de trabalho mais diferenciadores nestas
Gráfico 19. Existe igualdade na aplicação de critérios para a
cou-se um padrão de resposta semelhante: as mulheres adoptaram, em matérias.
progressão na carreira de homens e mulheres média, a posição “não concordo nem discordo”; os homens afirmaram a
existência de graus de autoridade profissional equivalentes (M= 5.15, F= 4.36; No que respeita à relevância que o sexo do profissional assume no plano das
Sexo
t(238) = 2.677, p= .008). práticas clínicas emergiram os mesmos padrões de resposta: pontuações
Feminino
baixas, tendo em conta que as respostas foram mantidas entre os pontos 2
Para a variável profissão, emergiu um único resultado significativamente e 3 da escala; respostas significativamente mais elevadas entre os enfer-
Masculino
diferenciador entre médicos e enfermeiros. Enquanto os primeiros tenderam meiros e os profissionais dos centros de saúde, comparativamente aos médi-
a mostrar alguma concordância face à existência de diferenças ao nível do cos e profissionais dos hospitais, respectivamente; e ausência de efeitos
0 1 2 3 4 5 6 prestígio que é atribuído às diferentes especialidades, os enfermeiros aproxi- diferenciadores entre homens e mulheres.
maram-se mais da posição “não concordo nem discordo” (Enf = 3.73, Med=
4.35; t(234) = -2.057, p= .041). Também podemos constatar que, segundo as percepções e representações
expressas pelos respondentes, não é reconhecida às relações de género qual-
quer influência no contexto das relações profissionais entre pares, uma vez
que se salientou uma discordância generalizada e uma total ausência de
Os resultados obtidos a partir do questionário revelaram, na sua globalidade, efeitos das variáveis sexo, profissão e contexto de trabalho.
Conclusões uma fraca orientação dos profissionais inquiridos para a temática do sexo e
- Pistas para discussão do género no contexto da saúde. Com a excepção de algumas respostas in- Relativamente à secção dedicada à abordagem diferencial das questões rela-
seridas na parte dedicada ao contexto da carreira profissional, as pontuações cionadas com a saúde de homens e mulheres no campo da formação, ob-
médias oscilaram entre o 2 e 3 (muito pouca e pouca importância ou dis- servámos pouco interesse por parte dos participantes do sexo masculino
cordo muito e discordo pouco), numa escala de 7 pontos. Analisando estes re- relativamente a esta temática, a atribuição de pouca importância ao sexo
sultados em função dos grupos ‘sexo’, ‘profissão’ e ‘contexto de trabalho’, do estudante na escolha de especialidade, por parte das mulheres, e uma
emergiram alguns padrões de diferenciação. maior orientação dos enfermeiros e dos profissionais dos centros de saúde
para essa temática.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 66 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 67

Contudo, apesar das diferenças observadas, as respostas foram mantidas Estudo 2 Este segundo estudo voltou a incidir sobre a temática que nos ocupou na in-
nos pontos menos elevados da escala (em torno de 3 e 4). vestigação anterior, mas envolveu uma abordagem qualitativa, de modo a
permitir uma análise com maior profundidade das dimensões de resposta
Por último, também nas questões relativas à carreira profissional emergiram que aí emergiram. Por outro lado, optámos também por uma exploração
diferenças entre sexos, com os homens a apresentar sempre maior con- mais sistemática de outros aspectos que considerámos pertinente salientar
cordância quanto à presença de igualdade entre sexos neste contexto. Cu- neste domínio (por exemplo, as representações dos profissionais sobre a
riosamente, as mulheres revelaram uma posição de relativa neutralidade população de utentes no geral, e homens e mulheres, em particular, de
nas suas respostas, uma vez que se posicionaram sistematicamente no acordo com um conjunto de parâmetros relevantes para a prática clínica; a
ponto “não concordo nem discordo”, denotando um não comprometimento análise da realidade nacional quanto à distribuição dos sexos pelas espe-
em relação a estas questões. cialidades em medicina/enfermagem). Assim, nesta segunda fase empírica,
focalizámos as ideias, percepções e narrativas dos mesmos grupos profis-
De modo a aprofundar a análise destas temáticas, e das dimensões de res- sionais face à problemática do sexo e do género no contexto da saúde, com
posta que foram mobilizadas em torno dos conceitos ‘sexo’ e ‘género’ no con- base em entrevistas em profundidade.
texto da saúde, desenvolvemos um segundo estudo, de cariz qualitativo, que
passamos a apresentar. Esta estratégia metodológica reflecte uma abor-
dagem onde a comunicação de ideias e a construção de narrativas sobre ex-
periências significativas se torna possível, o que nos permitiu explorar, de Participantes Neste estudo participaram 16 profissionais de saúde enquadrados nos dois
forma menos condicionada, as representações dos profissionais de saúde contextos de trabalho que haviam sido contemplados anteriormente – hos-
face aos temas e objectivos que orientaram o nosso projecto de partida. pitais e centros de saúde –, tendo em conta a sua área de intervenção. Foram
Quadro 11. Distribuição dos participantes por grupo
profissional
seleccionados de forma balanceada pelos grupos profissionais, sexo e área de
intervenção. Os quadros 11 e 12 permitem caracterizá-los em termos da sua
Grupo Profissional N distribuição por estas três dimensões.
Médicos 8

Enfermeiros 8

Total 16

Quadro 12. Distribuição dos participantes por sexo

Sexo N

Feminino 8

Masculino 8

Total 16
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 68 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 69

Quadro 13. Distribuição dos participantes por área de 1. Relevância do sexo do utente, onde se focalizou a importância que os
intervenção
profissionais atribuem a esta dimensão em termos dos padrões de utiliza-
Área de Intervenção Médicos Enfermeiros Total ção dos serviços de saúde, tipo e forma de queixas apresentadas, adesão à
Especialistas Hospitalares 4 4 8 terapêutica e forma de comunicação/relação; por outro lado, a valorização
Clínicos gerais/Enfermeiros generalistas 4 4 8 que os profissionais associam às queixas e seus sinais objectivos, pedidos
Total 8 8 16
de exames complementares e terapêutica, em função do sexo do utente; fi-
nalmente, a percepção que os profissionais têm sobre a importância que os
seus colegas atribuem ao sexo do utente no desempenho das suas
funções.

Procedimentos As entrevistas foram realizadas individualmente, no local de trabalho dos 2. Relevância do sexo do profissional, centrada na importância que os par-
profissionais, mediante marcação prévia. Tal como na abordagem quanti- ticipantes associam ao sexo do profissional no exercício das suas funções,
tativa, o anonimato dos participantes, e das respectivas instituições, foram quer com os utentes, quer com os seus pares; por outro lado, também foi
garantidos. Seleccionámos médicos de medicina geral e familiar e enfer- apresentada a distribuição das mulheres e homens profissionais por dife-
meiros generalistas no contexto dos centros de saúde, e profissionais es- rentes áreas de intervenção médica e de enfermagem com desigualdades
pecialistas, médicos e enfermeiros, no contexto hospitalar. na distribuição numérica entre sexos, com base na interpretação de dados
nacionais16 (INE, 2005) (Apêndice IV); por último, o enfoque incidiu na
análise da apropriação do sexo do profissional às especialidades médi-
cas/enfermagem, tendo em conta a sua natureza e especificidade.
Instrumento O instrumento que adoptámos para este segundo estudo foi a entrevista
em profundidade semi-estruturada (Apêndice III). Esta opção permitiu de- C. Questões de Igualdade/Discriminação – esta dimensão foi orientada para
linear um guião inicial, standardizado para todos os participantes, de modo o contexto profissional e a carreira em medicina e enfermagem, nomeada-
a conduzi-los ao longo dos vários tópicos que pretendíamos abordar. Para- mente, em termos das oportunidades de progressão de homens e mulhe-
lelamente, a natureza semi-estruturada da metodologia garantiu a possi- res, situações de discriminação positiva e negativa no contexto do trabalho
bilidade de focalizar novos conteúdos pertinentes, que emergiram ao longo e o poder/autoridade profissional, comparando a situação entre os dois
da própria situação de entrevista. sexos; finalmente, aspectos de diferenciação no prestígio atribuído às dife-
rentes especialidades em medicina/enfermagem, bem como as conse-
As dimensões que estruturaram o guião inicial foram as seguintes: quências dessas dinâmicas ao nível do contexto profissional.

A. Biografia dos participantes – centrada nas razões que levaram à escolha O guião completo é apresentado no Apêndice III.
do curso e da especialidade, para o caso dos profissionais hospitalares;

B. Prática Clínica – foi desdobrada em duas secções, em virtude das especi-


ficidades abordadas: 16 As especialidades escolhidas para a interpretação de dados foram as seguintes: medicina – cirurgia geral,

cardiologia, pediatria, medicina geral e familiar; enfermagem – generalista, de reabilitação, saúde infantil e
pediátrica, saúde mental e psiquiátrica.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 70 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 71

Variáveis do estudo A operacionalização das variáveis do estudo reflecte um tratamento sis- Os resultados foram obtidos a partir do método de classificação descen-
temático dos tópicos apresentados para o guião da entrevista. dente hierárquica operacionalizado pelo Alceste, segundo o qual se consti-
Procedemos agora à sua descrição, em termos das dimensões de análise tuíram as classes lexicais (ou conjuntos de palavras co-ocorrentes)
que as constituíram: emergentes a partir dos discursos e narrativas dos profissionais de saúde.
• Profissão: Med (médicos), Enf (enfermeiros) É de salientar que a natureza estatística do método levou à redução da vari-
• Sexo: Fem (feminino), Mas (masculino) abilidade do corpus de material resultante do conjunto de entrevistas, o que
• Formação académica e complementar: A1 e A2 significa que algum material com menor representatividade foi eliminado da
• Importância que o próprio profissional atribui ao sexo do utente na prática análise. Deste processo resultou uma análise efectuada com 87.07 % do cor-
clínica (padrões de utilização dos serviços de saúde, tipo e forma de pus de dados inicial. Os resultados da análise Alceste revelaram uma es-
queixas, adesão à terapêutica, forma de comunicação/relação, etc.): B11 trutura temática centrada em três classes lexicais:
• Percepção da importância que os colegas atribuem ao sexo do utente no
desempenho das suas funções: B12
• Importância do sexo do profissional no exercício das funções (com os Quadro 14. Estrutura Temática das Representações de CLASSE 1 - 22.34% das UCE´s CLASSE 2 - 27.91% das UCE’s CLASSE 3 - 49.75 % das UCE’s
Médicos e Enfermeiros Palavra X2 Palavra X2 Palavra X2
utentes e os pares): B21
altura+ 97.07 pediatria+ 85.27 doente+ 73.62
• Distribuição das mulheres e homens profissionais por algumas áreas de medicina 70.18 reabilitacão 63.10 queix+ 41.50
curso+ 60.67 cardiologia 51.95 doença+ 31.95
especialidade médica/enfermagem (com base na interpretação de dados
escolh+ 56.49 saúde mental 49.78 consulta+ 31.80
nacionais - INE, 2005): B22. Apropriação do sexo do profissional às espe- especialidade+ 35.90 mais homens 47.23 patologia+ 29.34
hospit+ 33.44 sociedade+ 40.82 terapêutica+ 27.67
cialidades em medicina/enfermagem: B23 clínica geral 33.44 mais prestígio 34.64 homem 25.27
• Oportunidades de homens e mulheres ao nível da progressão na carreira: C1 vaga+ 32.29 especialidade+ 30.90 utente+ 20.32
concurso+ 31.45 saúde infantil 26.80 médico+ 18.01
• Discriminação positiva e/ou negativa no contexto do trabalho: C2 carreira hospitalar 31.45 medicina geral fami 24.56 sexo+ 17.50
• Poder/autoridade profissional de mulheres e homens: C3 carreira+ 30.02 chefia+ 23.36 diagnóstico+ 16.30
início 30.00 apetência+ 23.36 tratamento+ 15.81
• Diferenças de prestígio entre as especialidades médicas/enfermagem:C4 estágio 27.94 psiquiátrica 22.83 dor+ 14.25
área saúde 20.93 cargo+ 18.00 profission+ 13.43
ciência+ 20.93 mais força 16.72 conversar 12.50
Principais Resultados Os resultados que apresentamos a seguir foram analisados com o software acaso 19.17 cirurgia cardíaca 15.66 diferença+ 11.33
Alceste 4.7 (IMAGE, 2000). Este programa é uma metodologia de análise de enfermagem 18.73 enfermeiros homens 15.63 noto 10.15
licenciatura+ 17.43 disponibilidade 15.55 doença crónica 9.48
dados qualitativos, que incide na composição lexical e estruturação liceu+ 17.43 enfermeiros reabili 15.55 aderem 9.13
temática do material de entrevista. Com base nas técnicas estatísticas uti- nunca senti 16.02 machista 15.55 comunicar 9.13
alun+ 13.94 igualdade 15.55 igual 9.09
lizadas, permite isolar classes lexicais17, de acordo com a co-ocorrência de cirurgia plástica 13.94 força física 13.57 não diferença+ 9.09
palavras nos contextos discursivos produzidos pelos participantes. Deste maioritariamente 12.91 matern+ 13.31 diabético+ 8.11
percurso 12.91 directoras serviço 12.95 sintoma+ 7.10
modo, é possível reter categorias de vocabulário que remetem para as re- cirurgia+ 11.97 mais mulheres 11.29 Variáveis
presentações que lhe estão subjacentes, tornando possível a sua explici- segurança 10.45 papel 11.18 *b11 429.65
Variáveis poucas mulheres 10.36 *b12 51.54
tação (Reinert, 1986). Por outro lado, a especificidade do vocabulário dos *a2 264.65 pré concebido 10.36 *mas 7.65
contextos lexicais emergentes revela as dimensões de significado que são *a1 150.07 progressão 9.19 A influência do sexo do utente nas
*med 5.57 Variáveis situações de consulta
pertinentes para a interpretação do discurso e das representações sociais *fem 5.51 *b22 100.75
que estiveram implicadas na sua organização (Soares & Jesuino, 2004). Percursos Académicos *c4 66.94
*b23 55.37
17 As classes lexicais constituem classes de palavras retidas a partir dos discursos em análise. *c1 27.36
Aspectos de diferenciação: homens,
mulheres e especialidades profissionais
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 72 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 73

CLASSE 1 Esta classe concentra 22.34% das UCE’s18 em análise, focalizando, essen- Por outro lado, questões de segurança laboral, estabilidade monetária e
Percursos académicos
cialmente, os motivos que conduziram os participantes à escolha do seu boas saídas profissionais:
curso e da sua especialidade (medicina ou enfermagem). As razões que
fundamentam o percurso académico reflectem diferentes vectores orga- “porque, por razões familiares, eu tive que vir para a clínica geral, porque,
nizadores ao nível das suas narrativas, nomeadamente: naquela altura, era uma carreira que dava segurança e, bom, dava segurança
a nível laboral e a nível económico”.
No caso da escolha de especialidade, a experiência anterior em serviços
hospitalares e as situações de estágio foram factores de influência na área “portanto, fiz o curso de enfermagem na x, já acabei em sessenta e cinco e es-
de opção, tal como exemplificam as seguintes UCE’s19: colhi enfermagem, naquela altura, pronto, era uma boa saída. E também
porque gostava. Havia a hipótese de ser professora ou ser enfermeira, preferi
“fiz o meu curso de medicina sempre muito satisfeito, depois esperávamos enfermagem. E, depois, mais tarde, fiz a especialidade de saúde pública”.
cinco anos, quatro, cinco anos até escolhermos uma especialidade, porque
havia muito poucos concursos. Portanto foram mais quatro, cinco anos de
experiência, prática, em que deu para ver muitas especialidades e eu depois Também a escolha do curso determinada pela alternativa mais próxima a
tinha uma primeira prioridade, a minha primeira prioridade era a cirurgia uma preferência não concretizada:
plástica”.
“eu vim para enfermagem porque acabei na altura o sétimo ano e depois
“eu fiz a especialidade enquanto estava no serviço de urgência, a trabalhar e acabei o propedêutico e não tinha notas para entrar na faculdade. Eu na al-
simultaneamente a fazer a especialidade. Depois fui, já como enfermeiro es- tura não sabia bem o que é que queria, para ser muito sincera. Tentei entrar
pecialista, para um serviço de cirurgia. Ainda como especialista estive durante na faculdade, só queria medicina ou veterinária e como não entrei achei que
dois anos e meio, penso, a chefiar um serviço de medicina interna. Voltei para o mais parecido com essas áreas de saúde era a enfermagem”.
o serviço de cirurgia já como enfermeiro chefe”.

“era precisamente a ortopedia, dentro da cirurgia a ortopedia. Portanto estou E ainda, um percurso consolidado pelo acaso e pela necessidade de obter
exactamente onde queria e continuo a gostar e não estou arrependida. O es- uma formação académica de duração relativamente curta:
tagio que eu fiz, o estagio influenciou. O ano que eu estive no Hospital x, eu
estive no Hospital x durante um ano, pronto estive noutras especialidades “a enfermagem acabou por surgiu por um acaso, por mero acaso. Porque como
durante um ano, escolhi ir para lá e realmente gostei imenso”. a minha idade indica, não sou propriamente dos cursos mais recentes. Depois
do quinto ano fui estudar à noite, portanto fiz o curso complementar naquela
altura. Monetariamente os meus pais na altura não podiam muito e eu tinha
que ir para qualquer coisa que fosse assim tipo um curso mais rápido”.

18 As UCE’s (Unidades de Contexto Elementar) referem-se à unidade de análise que o método Alceste operaciona- “foi por acaso, foi. Eu já tinha essa perspectiva, tanto que eu tinha concor-
liza; corresponde à ideia de frase ou parágrafo, e é nesse contexto que a co-ocorrência de palavras é identificada.
19 As UCE’s que são apresentadas ao longo desta secção foram seleccionadas através do processo de análise Al- rido para entrarno curso de enfermagem antes de vir para cá, mas depois foi
ceste, constituindo exemplos representativos das dimensões que integram cada uma das classes lexicais. Pelo
próprio automatismo da metodologia não é possível identificar com precisão as especificidades sociode- por mero acaso abrir o curso cá e eu fazê-lo”.
mográficas dos sujeitos que as verbalizaram.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 74 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 75

Uma outra dimensão que também emergiu nesta classe, embora com uma
expressividade bastante ténue, diz respeito à ausência de discriminação du- “sinceramente eu acho que se calhar aqui, serão mais homens, se calhar por
rante a formação: causa disso, penso eu. Em termos de reabilitação é um bocadinho também
isso, porque é assim a reabilitação, é vista como algo que exige de nós tam-
“não, penso que não houve discriminação. Embora eu tenha calhado no curso bém mais alguma força física, não é?”
de enfermagem numa turma, numa turma maioritariamente feminina, nós
éramos para aí uns quarenta e éramos para aí uns sete homens, não senti “também é uma questão disso, força física superior, não é? Talvez por isso. Acho que
nada”. tem a ver com a constituição física, talvez, e o próprio gosto, se calhar, não sei”.

As variáveis principais que estiveram na origem desta classe foram a A1 e Por outro lado, os participantes também justificaram os desequilíbrios com
A2, respeitantes à biografia académica; por outro lado, também se observou base numa estratégia de naturalização de diferenças ao nível de determi-
a presença daquelas que representam o grupo profissional dos médicos nadas características masculinas ou femininas que consideram ser mais
(Med) e as mulheres (Fem), apesar das suas contribuições serem bastante adequadas para o exercício de algumas especialidades:
mais ligeiras. Este resultado indica alguma orientação destes dois grupos
para os domínios de significado que aqui emergiram, contudo a fraca ex- “não sei se terá a ver com isso, e os homens talvez tenham mais predisposição,
pressividade estatística das duas variáveis sociodemográficas aponta tam- e não se emocionam tanto como as mulheres, talvez sejam mais frios na ac-
bém num sentido de alguma generalização destas narrativas entre os tuação, sinceramente, eu aí é a única explicação, mas realmente, se formos
vários participantes. ver há mais homens e poucas mulheres cardiologistas, isso é um facto, penso
que terá que ver com isso”.

“lá está, medicina geral e familiar muito mais mulheres, pediatria, a questão
CLASSE 2 Esta classe concentra 27.91% das UCE’s e articula-se em torno das reflexões da maternidade envolvida”.
Aspectos de diferenciação:
homens, mulheres e
que os participantes elaboraram acerca das distribuições de profissionais
especialidades profissionais homens e mulheres por algumas das especialidades mais desequilibradas “a saúde infantil e pediátrica, eu acho se calhar porque as mulheres como
ao nível dos grupos de sexo. Por outro lado, as diferenciações de prestígio são mães têm mais aquela afinidade, eu acho que deve ser por isso”.
que são atribuídas ao nível das próprias especialidades médicas e de en-
fermagem, e ainda as condições ligadas à progressão na carreira e o acesso Também associaram os padrões de género que emergem na medicina às
ao poder. próprias condições da sociedade, e do senso comum, e preconizaram uma
tendência para a mudança:
Relativamente aos desequilíbrios entre o número de profissionais homens
e mulheres em algumas especialidades, os participantes evocaram aspec- “mas isso é uma questão do senso comum, isso traduz o que é a sociedade
tos ligados à especificidade física dos dois sexos. A capacidade física é um desde há uns tempos, desde há vários anos para cá, eu acho que isto tam-
factor relevante para justificar a predominância masculina na especiali- bém vai ter tendência a mudar, não estou a dizer que vão ficar mais mulhe-
dade de reabilitação em enfermagem: res na cirurgia do que homens”.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 76 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 77

“na cardiologia, isto vai-se modificar, isto vai-se modificar, neste momento, CLASSE 3 A última classe é mais representativa, uma vez que concentra 49.75% das
A influência do sexo do utente
acontece isto, mas isto vai-se modificar”. nas situações de consulta
UCE’s. Foi construída em torno dos efeitos que o sexo do utente produz ao
nível das situações de consulta. Apesar de emergir um ponto de vista que
Numa outra óptica, justificaram as diferenças de prestígio entre as várias es- preconiza aspectos de indiferenciação entre sexos, as diferenças entre
pecialidades, recorrendo a condições simbólicas: homens e mulheres marcaram os discursos dos profissionais.

“penso que poderá ter a ver com esse peso, quer dizer, dos grandes mestres, As especificidades das mulheres em situação de consulta são elaboradas
quer dizer a cardiologia portuguesa é uma especialidade com um grande peso com base nos seguintes aspectos:
internacional e, pronto, temos grandes nomes, se calhar tem a ver com isso”.
Relações de maior intimidade, maior orientação para a comunicação:
“não sei como é noutros hospitais, mas aqui passa-se assim. Porque eu acho
que devia ser tudo por igual, cada um tem o seu poiso, por exemplo, não vejo “portanto, são pessoas que estão disponíveis, acima de tudo, para conversar,
um enfermeiro de saúde mental a andar com cartazes a dizer que trata dos conversar de assuntos pessoais, íntimos, muitas vezes querem conversar, e as
maluquinhos”. melhores conversas que tive foram com mulheres”.

Maior prevalência de subjectividade sintomatológica, injustificada do ponto


Finalmente, quanto às diferenças ao nível da progressão na carreira, de vista dos sinais objectivos:
emergiu, uma vez mais, a estratégia da naturalização das diferenças entre
homens e mulheres relativamente à orientação para as relações de poder: “é completamente diferente, completamente diferente, as mulheres são
muito mais fixadas nas mãos, muito mais fixadas em dores que não têm jus-
“talvez, talvez. Eu acho que sim. Eu acho que os homens aspiram mais a car- tificação nenhuma, mulheres mais jovens dramatizam muito mais a nível
gos de chefia do que as mulheres, se quer que lhe diga muito sinceramente. da mão os seus problemas”.
Mas isso tem a ver com o perfil dos dois géneros. As mulheres são ambiciosas,
talvez às vezes até sejam mais ambiciosas do que os homens, mas não sei se Novamente a questão das queixas implícitas:
as mulheres querem ser directoras de serviço, ou chegar a cargos de chefia
muito importantes”. “ou percebemos imediatamente que está cheia de um floreado que não tem
a ver com uma doença orgânica, tem a ver com uma coisa funcional, com
Nesta classe não emergiram quaisquer associações particulares em ter- queixas implícitas, não são queixas explícitas”.
mos das variáveis sociodemográficas, o que significa uma contribuição
geral dos participantes. A principal variável temática que esteve na sua
origem foi aquela que diz respeito às interpretações da distribuição de Por outro lado, apontam-se algumas especificidades ao grupo de homens
homens e mulheres pelas especialidades genderizadas (B22). A questão das no plano das consultas e da intervenção:
diferenças de prestígio entre as especialidades (C4), a atribuição das espe-
cialidades a homens ou mulheres (B23) e as oportunidades ao nível da pro- Maior resistência na adesão às terapêuticas:
gressão na carreira (C1) também contribuíram para a constituição desta
classe lexical, embora de forma menos expressiva.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 78 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 79

“tenho uma maior dificuldade em fazer aderir a uma terapêutica crónica um


homem. Convencer um homem, que é hipertenso, a ter que tomar umas
pastilhas, é muito difícil, convencer um homem que é diabético, que tem que A principal variável que esteve na origem desta classe, diz respeito aos dis-
tomar umas pastilhas e fazer umas dietas, é muito difícil”. cursos que os participantes construíram em torno da importância do sexo
do utente para a prática clínica (B11).
Maior objectividade na verbalização das queixas, mas mais problemáticos Os conteúdos associados à percepção da importância do sexo do utente
em determinadas circunstâncias: para os outros profissionais também mostram alguma associação, embo-
ra muito pouco expressiva (B12), bem como uma ténue orientação do sexo
“sem dúvida, sem dúvida. Os homens são muito mais organicistas, isto é, a masculino para estas dimensões de significado.
queixa do homem é orgânica. Normalmente, delimita muito mais facilmente
a sua queixa. Mas uma coisa é certa, quando é neurótico, é pior do que as
mulheres todas, quer dizer, os piores doentes que eu tenho, os doentes mais
maçadores que eu tenho, ao contrário do que possa parecer, não são mulhe- Conclusões Os resultados da análise Alceste permitiram identificar três contextos
res, são homens”. temáticos centrais, ao nível das representações dos profissionais de saúde.
O primeiro diz respeito às narrativas académicas, centradas nos motivos
que orientaram as escolhas de curso e especialidade. Neste plano, não se
Também emergiu a ideia da similitude entre homens e mulheres ao nível salientam quaisquer sinais da influência das dimensões de género no con-
da consulta e dos pedidos de exames: texto da saúde.

“não, não noto diferenças. Nas consultas, eu faço consultas de diabetes com A segunda classe temática integra diferentes dimensões associadas a as-
homens e com mulheres; acho que há diabéticos muito complicados, mas não pectos de diferenciação entre homens/mulheres e especialidades em
é pelo facto de ser homem ou mulher, não vejo diferença nenhuma do sexo”. medicina/enfermagem. Por um lado, os seus conteúdos permitiram
racionalizar a assimetria entre o número de profissionais de ambos os sexos
“se quero fazer aquelas chamadas rotinas que se fazem de dois em dois anos, ao nível de algumas especialidades médicas e de enfermagem genderi-
peço as mesmas a um homem e a uma mulher. Agora, tenho em atenção os zadas. Por exemplo: o argumento da condição física justifica a predomi-
estilos de vida”. nância masculina no contexto da enfermagem de reabilitação; a
naturalização das diferenças psicológicas entre homens e mulheres explica
a dominância masculina na área profissional da cardiologia (maior racionali -
Finalmente, a percepção que os participantes apresentam sobre a im- dade e menor emotividade dos homens, comparativamente às mulheres); a
portância que os outros profissionais de saúde atribuem ao sexo do utente influência das condições sociais e das ideias do senso comum salientam-
aponta no sentido da diferenciação de tratamento entre mulheres e homens: -se na argumentação que é desenvolvida acerca da marcada presença mi-
noritária feminina ao nível da cirurgia. A maternidade é a justificação central
“ah, está-me a dizer em relação ao sexo do utente, em relação aos enfer- para predomínio das profissionais mulheres no domínio da saúde infantil e
meiros e outros médicos? Eu acho que eles tratam diferentemente sendo pediatria.
homens ou sendo mulheres”.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 80 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 81

Por outro lado, as dimensões desta segunda classe destacam condições nos discursos dos participantes. Este resultado leva-nos a colocar as
simbólicas quando se trata de justificar as diferenças de prestígio entre es- seguintes questões: estariam os profissionais motivados para a exploração
pecialidades (por exemplo, a acentuação do prestígio da cardiologia). Fi- deste tema? Ou será que o próprio contexto da saúde se encontra, real-
nalmente, afirmam aspectos de distintividade nas progressões da carreira mente, isento de situações de discriminação profissional? Os resultados
de homens e mulheres e justificam-nos a partir de uma estratégia que sobre concepções ligadas às desigualdades na progressão na carreira não
naturaliza as diferenças entre sexos quanto à orientação para as relações parecem corroborar a última hipótese.
de poder e autoridade – os homens estão naturalmente mais orientados
para cargos de chefia.

Contrariamente aos resultados obtidos no estudo 1, as representações


sobre a influência que o sexo do utente adquire nas situações de consulta
foram aquelas que mais se salientaram no contexto deste segundo estudo
– tendo em conta a expressividade da terceira classe lexical no conjunto
dos resultados (cerca de 50% das UCE’s analisadas). Reflectem um posi-
cionamento que distingue entre especificidades das mulheres (elevada ori-
entação para relações mais intimistas e para a comunicação, maior
prevalência de queixas implícitas e subjectividade na expressão da sin-
tomatologia) e homens (maior resistência à terapêutica, maior objectivi-
dade nas queixas, mas mais problemáticos em determinados casos).
Apesar de também ter emergido a perspectiva da indistintividade entre
sexos, esta foi menos expressiva.

As dimensões de análise associadas à importância do sexo do profissional,


bem como o grau de adequação ao exercício das diferentes especialidades
em medicina/enfermagem, não constituíram um aspecto significativo dos
discursos dos profissionais. Este resultado não deixa de ser curioso: por um
lado, parece contradizer, em certa medida, o afirmado a propósito dos mo-
tivos da representatividade de homens e mulheres nas várias especiali-
dades; por outro, por não surgirem no discurso as tradicionais respostas
ligadas à Ginecologia/Obstetrícia e Urologia. Contrariamente a este padrão,
no estudo 1, os profissionais destacaram essas duas categorias de resposta
no conjunto das especialidades.

Os episódios de discriminação positiva/negativa, baseada no sexo, no con-


texto profissional, também não constituíram um domínio representativo
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 82 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 83

CAPÍTULO III
Género e políticas de saúde

Análise documental Em pontos anteriores foram clarificados os conceitos fundamentais que


justificam aferir da ponderação das especificidades ligadas ao sexo e da
perspectiva de género nos documentos orientadores das políticas de saúde.

Questionaremos, portanto, vários textos, procurando a presença e as for-


mas de expressão acerca do sexo e do género, nomeadamente, na identi-
ficação da causalidade dos problemas de saúde, na apresentação e análise
de indicadores de saúde e na formulação de orientações para a prestação
de cuidados.

Instrumento de orientação Como suporte e inspiração desta fase do trabalho, identificámos algumas
da análise equipas de investigadores, técnicos e instituições que, nos últimos anos,
investiram na análise crítica dos documentos e políticas de saúde dos seus
países, sob a óptica do género e da diversidade. São os seguintes: Swedish
International Development Cooperation Agency, Health Canada e The
Women's Health Council (Irlanda).

A razão desta opção residiu na partilha de pontos de partida ideológicos e


conceptuais com este projecto e também por estas instituições explici-
tarem e divulgarem as perguntas que têm formulado nas suas análises
(Health Canada, 2000, 2003; Swedish International Development Coopera-
tion Agency, 1997; The Women's Health Council, 2007).

Como método, identificámos um conjunto de 23 perguntas de orientação20


(Apêndice V), organizadas pelas seguintes dimensões de análise:

20 Adaptação e organização realizadas por António Manuel Marques.


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 84 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 85

• Apresentação e análise de dados estatísticos e epidemiológicos em função níveis de saúde e dos padrões de doença e de mortalidade nacionais (ao
do sexo longo do ciclo vital) torna possível a realização da análise pretendida.
• Referência explicita às necessidades e problemas de saúde específicos
de cada sexo Dado o carácter exploratório do nosso trabalho e as limitações do mesmo,
• Representações sociais, estereótipos e papéis sociais associados a cada sexo abstivemo-nos de analisar outros documentos também ricos e impor-
• Adopção da perspectiva de género na definição de políticas de saúde tantes, uma vez que o seu alcance e aprofundamento é menor, ainda que
estejam directamente relacionados com este Plano Nacional, como é caso
Embora naturalmente relacionadas e complementares, as questões colo- de alguns Programas Nacionais de Intervenção Integrada.
cadas e as dimensões que considerámos para a sua agregação terão como
função auxiliar e facilitar a análise documental.

Realização da análise Sob orientação das dimensões de análise e das questões antes referidas,
– procedimentos debruçar-nos-emos sobre o documento21 em causa, procurando assinalar se
Selecção dos documentos analisados Os documentos que, potencialmente, poderiam ser objecto da análise pre- e de que forma a perspectiva de género está presente na sua concepção e
vista neste projecto são inúmeros. Desde os que são produzidos a nível cen- redacção.
tral pelo Ministério da Saúde até aos que resultam do investimento de
outros Ministérios ou entidades públicas e privadas, é fácil identificar e Há que referir, contudo, de uma forma explícita que, no nosso trabalho, não
aceder a documentos – legislativos, normativos, técnico-científicos, educa- pretendemos adoptar qualquer posição avaliativa da qualidade global do
tivos, informativos, entre outros – cujos temas e objectivos estão rela- documento nem das ideias fundamentais que nele são expressas. O nosso
cionados com a saúde e o bem-estar. Por isso, impôs-se a necessidade de objectivo é, sinteticamente, usar as ‘lentes do género’ (Sen et al., 2002, p. 6)
identificar critérios de selecção dos documentos que seriam objecto de para identificar diferentes versões discursivas e ideológicas acerca da dife -
análise neste estudo. rença entre os sexos, quando estão em causa problemáticas relacionadas
com a saúde e a doença.
Assim, a nossa escolha recaiu sobre o “Plano Nacional de Saúde 2004-2010:
mais saúde para todos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
2004a, 2004b), pela centralidade e importância do próprio documento, uma Apresentação e análise de dados Na análise desta dimensão tomámos, assim, por referências as questões
vez que este representa “(…) um ‘fio condutor’ para que as instituições do estatísticos e epidemiológicos em 1 a 4 do conjunto apresentado no apêndice V. Em primeiro lugar, daremos
Ministério da Saúde, outros organismos do sector da Saúde – governamen- função do sexo atenção à desagregação (ou não) de dados estatísticos e epidemiológicos
tais, privados e de solidariedade social – e de outros sectores de actividade, respeitantes a cada sexo bem como à análise das diferenças existentes.
possam assegurar ou contribuir para a obtenção de ‘Ganhos em Saúde, de
2004 a 2010, orientados pela promoção da saúde e pela prevenção da doença” Apresentação dos dados São vários os exemplos em que essa desagregação existe, outros em que
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.13). esta está ausente e outros ainda em que, no mesmo quadro, se apresentam
as duas situações.
Além disso, a explicitação dos princípios filosóficos, dos objectivos, das es-
tratégias e dos principais dados estatísticos e epidemiológicos acerca dos Neste trabalho de análise e reflexão considerámos o Plano Nacional de Saúde como um único documento, ainda
21

que o mesmo se apresente em dois volumes e que a cada um deles corresponda uma referência bibliográfica própria.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 86 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 87

Assim, nas ‘Metas Prioritárias para “Crescer em Segurança – pós-neonatal aos A mesma tendência para não considerar a predominância numérica do sexo
9 anos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.54), o indi- masculino, do abuso e consumo de álcool, bem como de doenças e da mor-
cador “Risco de Morrer até aos 5 anos” é apresentado sem discriminação talidade associada e a esse consumo (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
dos sexos. Neste período da vida, nomeadamente, pela influência directa do Saúde, 2004b, p.101, 203 e 208) orienta-se pelo mesmo princípio da homo-
valor respeitante às mortes por causas externas, já são nítidas as diferenças geneização dos sexos, pelo que se utilizam indicadores e rácios baseados no
entre rapazes e raparigas (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, termo ‘pessoa’ (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.60).
2004b, p. 197-8), um facto que não é valorizado na apresentação dos dados.

Já no caso das ‘Metas Prioritárias para “Uma juventude à procura de um fu- Análise dos dados Genérica e tendencialmente, os dados relativos a cada sexo, bem como as
turo saudável – dos 10 aos 24 anos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da diferenças significativas e patentes, não são objecto de análise interpreta-
Saúde, 2004a, p.54) alguns indicadores são apresentados de modo agre- tiva ou mesmo de comentários apreciativos. Essa constatação é notória
gado, enquanto noutros se discriminam os sexos. Também aqui, as taxas de tanto no volume de definição de prioridades (Ministério da Saúde. Direcção-
mortalidade no intervalo de idades em causa surgem agregadas quando, Geral da Saúde, 2004a) como no de definição de estratégias (Ministério da
de forma evidente, as diferenças entre os sexos são ainda mais notórias Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b).
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.201 e ss)22, sobre-
tudo se considerarmos as suas causas e o peso das mortes por causas ex- Com efeito, à apresentação dos dados não se associa um esforço interpre-
ternas23. No entanto, este facto é destacado no Volume II do documento tativo das diferenças assinaladas, nem é mobilizada a investigação que, po-
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.31) da seguinte tencialmente, sustentaria a compreensãodos fenómenos, como é claro nos
forma: exemplos seguintes:

“Começam a emergir as diferenças significativas entre as principais causas de “(…) as mulheres consideram o seu estado de saúde como “mau” ou “muito
morte para adolescentes do sexo masculino e feminino, particularmente no mau” mais frequentemente do que os homens, podendo observar-se uma
que se refere às causas externas.” diminuição entre os dois INS.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
2004a, p. 31; destacado nosso).
Os acidentes de viação constituem-se como um domínio em que os dados
por sexo são extremamente pertinentes, dada a esmagadora prepon- “A mortalidade por cancro em Portugal estabilizou. A mortalidade global por
derância estatística de mortes e lesões no sexo masculino (Ministério da cancro é mais elevada nos homens do que nas mulheres. Portugal representa
Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.207). Tal facto é menosprezado na UE, para a mortalidade por cancro nos homens, uma das excepções à
na apresentação de indicadores e definição de metas, uma vez que se tendência actual, que é de crescimento.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral
recorre à figura de ‘indivíduos’ em lugar da desagregação por sexos (Mi- da Saúde, 2004a, p. 30; destacado nosso).
nistério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.60).
“O consumo de tabaco em Portugal tem vindo a diminuir, situando-se em
19,5% a prevalência de fumadores na população com mais de 15 anos (…),
22 Uma constatação que se aplica também às Metas Prioritárias para “Uma vida adulta produtiva – dos 25 aos 64
anos” e Metas Prioritárias para “Um envelhecimento Activo – 65 ou mais” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da sendo o sexo masculino o principal responsável por esta diminuição (com ex-
Saúde, 2004a, p.55-6, 2004b, p.206 e ss), ainda que, noutro capítulo, se valorize a preponderância numérica do sexo
masculino (op.cit., p.32).
cepção do grupo etário dos 35-44 anos, onde se regista um aumento da
23 Fenómeno analisado por Prazeres (2003) e por Laranjeira e Prazeres (2005).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 88 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 89

prevalência de fumadores). Está, no entanto, a aumentar o consumo de tabaco mente, pelas várias fases do ciclo vital, é muito variável o grau de explici-
no sexo feminino de forma preocupante.” (Ministério da Saúde. Direcção- tação do valor reconhecido à especificidade dos sexos.
Geral da Saúde, 2004b, p.101; destacado nosso).
Tomemos como exemplo o excerto mais explícito, o qual procura sintetizar
Salienta-se, uma vez mais, que nesta apreciação não desvalorizamos os os principais problemas de saúde dos adultos de ambos os sexos e que
propósitos e o carácter específico do Plano Nacional de Saúde, pois estes carecem de intervenção prioritária (op.cit., p.32)24 :
podem justificar, ainda que parcialmente, o não aprofundamento da
análise de dados e a fundamentação conceptual das medidas de acção. To- “Problemas específicos das mulheres”
davia, paradoxal e justamente, julgamos que são as características próprias Os problemas específicos das mulheres, nomeadamente os relativos à repro-
desse documento e a sua importância na orientação das políticas de saúde, dução, menopausa e outros problemas que parecem afectar as mulheres de
aos níveis nacional, regional e local, que justificam, no futuro, um investi- uma forma diferente, como as doenças do aparelho circulatório, a SIDA, per-
mento analítico adequado. turbações nutricionais, a osteoporose, o cancro da mama, o abuso sexual, a vi-
olência doméstica e outras IST, não têm tido estas especificidades reconhecidas
explicitamente nos diversos programas de acção.
Referência explícita às necessidades e problemas de saúde específicos de
cada sexo Para as mulheres, são os tumores malignos a principal causa da mortalidade
Sob a orientação desta dimensão de análise (questões 5 a 10 da lista do observada, que se mantém estável, seguida das causas externas, que mostram
apêndice V), procuraremos analisar como são explicitadas as necessidades uma tendência decrescente.
e os problemas de saúde relativos a cada um dos sexos.
“Problemas de saúde que prevalecem nos homens”
Como vimos no estudo da dimensão de análise anterior, são numerosas as As causas externas permanecem a principal causa da mortalidade observada
referências às diferenças entre os indivíduos dos dois sexos no que respeita nos adultos do sexo masculino, no grupo etário dos 25 aos 44 anos, seguidas
a vários indicadores e metas de saúde. Neste ponto, trata-se, contudo, de das doenças infecciosas e parasitárias, ambas reflectindo uma tendência para
uma tentativa de aproximação ao modo como as mulheres/raparigas e os diminuir.
homens/rapazes são objecto de explicitação e destaque no documento
referido. De notar que nas doenças infecciosas e parasitárias se inclui a mortalidade
por SIDA, que, em 2001, representava 85,5% da mortalidade observada por
Importa-nos, sobretudo, questionar os modos e os contextos em que esta causa. Para o grupo etário dos 45-64 anos, a mortalidade entre os homens
surgem análises e definições de estratégias de acção que pretendam agir é também superior à verificada para as mulheres, apresentando uma tendên-
positivamente sobre a saúde de cada um dos sexos. cia decrescente.”

As necessidades de saúde de homens/rapazes e de mulheres/raparigas Constata-se o desejo de sublinhar, de modo sintético, os indicadores de
aparecem com alguma insistência no documento em análise. Ao percorrer saúde e de doença apresentados no documento, salientando dois padrões
o item “Estratégias Para Obter Mais Saúde Para Todos” (Ministério da Saúde. definidos em função do sexo. Enumeram-se as principais causas de morbi-
Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.25 e ss.), o qual se organiza, nomeada-
24 Adaptação gráfica nossa, nomeadamente o uso de sublinhado.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 90 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 91

mortalidade em cada sexo, reconhecendo as diferenças principais, o que No item relativo à juventude (op.cit., p. 30-1), é patente alguma preocu-
pode ser interpretado como uma vontade de não homogeneização do ser pação em caracterizar os principais problemas de saúde de raparigas e ra-
adulto e de uma provável sustentação das estratégias de intervenção. pazes, reconhecendo o que os distingue.

Todavia, a sinalização dos padrões de saúde e de doença de cada sexo não Assim, quanto às raparigas, “(…) verifica-se um aumento do sedentarismo,
é sujeita à complexificação analítica de género, ainda que deva ser subli- de desequilíbrios nutricionais” (…) e, quanto aos rapazes, constata-se a im-
nhada a reflexão crítica acerca do fraco investimento, em algumas áreas portância “(…) da morbilidade e mortalidade por acidentes (…)” (Ministério
específicas das mulheres, “nos diversos programas de acção”25. Em con- da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 30).
sonância com essa avaliação, no tópico ‘Orientações estratégicas e inter- Por outro lado, os “(…) comportamentos potencialmente aditivos, relaciona-
venções necessárias”, defende-se a seguinte ideia: dos, nomeadamente com o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas (…)” são di-
rectamente associados à categoria ‘jovens’, sem fazer referência à
“Deverão ser explicitadas nos programas e intervenções, particularmente ao incidência e prevalência distintas em cada sexo, as quais não são menos
nível dos cuidados de saúde primários e das acções dos serviços de saúde prezáveis (op.cit., p.202-3).
pública, especificidades na acção sensíveis às diferenças entre os géneros.26”
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.32). A “(…) maternidade e paternidade precoces, em particular, em adolescentes
com menos de dezassete anos (…)” são referidas como uma das áreas proble-
Tal facto pode ser encarado como um indício da adopção – ainda não sufi- máticas quanto a esta fase do ciclo de vida (op.cit., p.30). Neste domínio es-
ciente, parece-nos – da perspectiva de género no trabalho dos profissio- pecífico, assume-se que este é, potencialmente, um problema que envolve
nais com responsabilidades no estudo das problemáticas da saúde e na ambos os sexos, mas não se distingue como este afecta diferentemente ra-
definição das políticas do sector. pazes e raparigas. Posteriormente, um estudo nacional viria a pôr em evi-
dência a não sobreposição entre as idades de pais e mães adolescentes
No comentário ao excerto anterior, chamámos a atenção para a insuficiên- (Prazeres, Laranjeira, & Oliveira, 2005, p. 14-6), um aspecto que, na caracteri-
cia da aplicação do ‘olhar do género’ sobre os fenómenos da saúde e da zação do problema, na definição de estratégias e na adopção de medidas,
doença. Na globalidade deste item de definição de estratégias, a partir dos deve ser tido em conta, para que se possa considerar a sua máxima com-
principais problemas de saúde, deve ainda assinalar-se a inconstância, a in- plexidade e o género seja encarado e assumido como um determinante da
consistência ou mesmo a ausência absoluta desse olhar. saúde.

Esta afirmação é baseada na análise da orientação ideológica e da obser- A expressão ‘criança’ é sistematicamente utilizada no item “Crescer em Se-
vação dos problemas de saúde e da projecção de intervenções quanto às gurança” (op.cit., p.28 e ss), assumindo-a como uma categoria que homo-
restantes fases do ciclo de vida, como sejam, a infância, a juventude e a ve- geneíza rapazes e raparigas, anulando, portanto e em absoluto, todo o
lhice (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 28-32, 33-36). conhecimento acerca das diferenças estatística e epidemiologicamente
Vejamos com atenção alguns dos exemplos. observadas (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.54),
ainda que nenhum dos sexos seja assumido como norma27.

Ver excerto sublinhado.


25

Interrogamo-nos, contudo, se o sentido atribuído a ‘género’ não se sobrepõe ao de ‘sexo’, um fenómeno já


26
27 Uma forma de introduzir viéses de género no campo da saúde, como dizem Alexanderson e colegas (1998).
descrito e comentado neste texto.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 92 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 93

Desta forma, é lícito afirmar-se que a diferença entre as necessidades e Como referem Alexanderson e colegas (1998, p.154), as afirmações e as
problemas de saúde de raparigas e rapazes (até aos 10 anos) não é conside- mensagens acerca da saúde que são aparentemente neutras do ponto de
rada como pertinente. Como se opta pela construção de um grupo ho- vista do género têm, muitas vezes, como referente implícito um dos sexos,
mogéneo e desgenderizado, lesa-se, a nosso ver, a possibilidade de sobretudo o masculino. O excerto anterior pode ser interpretado nesse sen-
organizar estratégias que melhor respondam a problemas multidetermi- tido, uma vez que, no nosso entendimento, é o ser masculino que está a
nados como seja, por exemplo, a mortalidade por causas externas. ser, simbolicamente, visado.

Não deixa de ser interessante que a complexidade desse problema con- Por um lado, a ética do trabalho e a representação de ‘trabalhador’ tem man-
creto é, aparentemente, tida em conta, mas o que é afirmado pode ser dis- tido ao longo dos anos uma associação mais próxima dos homens do que
cutível do ponto de vista ideológico e conceptual: das mulheres (Cheng, 1996a; Collinson & Hearn, 2001; Hearn & Collinson,
1994); por outro, a investigação tem mostrado que os efeitos negativos da
“As causas externas envolvem questões sociais difíceis de prevenir entre as cri- aposentação na saúde em geral e na saúde mental são tendencialmente
anças e têm vindo a adquirir menor peso relativo na morbimortalidade re- mais severos para o sexo masculino (Clarke, Marshall, & Ballantyne, 2001;
conhecida neste grupo etário” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Lobeck, Thompson, & Shankland, 2005)30; por último, quanto a Portugal e
Saúde, 2004b, p.29). nesta fase da vida, o suicídio é manifestamente superior nos homens (Minis-
tério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.211).
Tratando-se, de facto, de um problema com raízes sociais potencialmente
complexas, julgamos que, mesmo assim, ou por isso, mereceria uma Na caracterização da situação actual dos cuidados de saúde a idosos, é de-
atenção maior ao nível da prevenção, até por se tratar de uma das princi- fendido o seguinte: “É indispensável uma maior atenção às particularidades
pais causas de morte nestas idades e por esta ser claramente marcada pelo em função do género (as mulheres vivem mais anos que os homens, mas o
efeito do género (op.cit., p.196). sexo feminino tem uma esperança de vida sem incapacidades mais reduzida
que o sexo masculino” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
A expressão ‘idosos’ tem, no contexto do documento em análise, a função 2004b, p.34).
de anulação das diferenças entre os sexos, o que é conseguido pela quase
ausência de atenção às necessidades e problemas particulares dos homens A nosso ver, não são apenas as diferenças na esperança de vida e nos
e das mulheres28. Atentemos no seguinte parágrafo, quanto a nós, signi- padrões de morbilidade de ambos os sexos o único argumento para a
ficativo: adopção da perspectiva de género na saúde, mas assinalamos esta referên-
cia como um indicador de alguma preocupação com o tema. Todavia, é pre-
“Sai-se do mercado de trabalho sem planeamento de actividades alternati- ciso notar que, neste excerto, o conceito de género é assumido como
vas e cai-se no isolamento físico e psicológico e na perda de relações sociais, sobreponível ao de sexo, não havendo, efectivamente, uma assumpção
surgindo a depressão e o suicídio.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da analítica de que, como já vimos, o primeiro carece. Por essa linha de pen-
Saúde, 2004b, p.33)29. samento, corre-se o sério risco de associar a causalidade dos fenómenos
de saúde apenas ao sexo (Kim & Nafziger, 2000).

28 Com uma excepção que referiremos adiante. 30 Ainda que a relação entre a vivência da aposentação e o impacte específico na saúde mental não seja linear,

29 Sublinhado nosso. dada a rede complexa de factores em interacção (e.g. Drentea, 2002).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 94 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 95

Representações, estereótipos e papéis sociais Deve assinalar-se, contudo, uma das raras excepções em que, no PNS, se
Nesta dimensão de análise, orientamo-nos pelas questões 11 a (ver afirma peremptoriamente a necessidade de proceder ao cruzamento con-
apêndice V), procurando no documento já citado a presença de represen- ceptual e estratégico entre a estratificação social e a saúde das mulheres:
tações sociais e estereótipos de género. Não assumimos, contudo, como
pressuposto que iríamos, forçosamente, identificar a expressão de repre- “Subsistem franjas da população com cuidados de saúde reprodutiva inadequa-
sentações sociais e estereótipos de género, uma vez que as questões de dos: em particular as mulheres com baixa escolaridade e fracos recursos económi-
partida precederam a análise e, como dissemos, advêm da revisão de lite- cos, onde permanece elevada a percentagem de gravidezes com vigilância
ratura e da inspiração de estudos semelhantes. inadequada.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.27)31.

Não esquecemos que a natureza e os objectivos do Plano Nacional de Trata-se de um domínio específico da saúde e, como se aprecia no excerto
Saúde podem determinar um fraco grau de explicitação das represen- anterior, diz respeito às mulheres que se reproduzem. Outro excerto, ainda,
tações, estereótipos e papéis sociais associados às raparigas/mulheres e mas com um carácter implicitamente mais abrangente, refere-se também
aos rapazes/homens. Ou seja, a forma como são expressas as prioridades ao domínio da saúde reprodutiva:
e as estratégias de saúde talvez não suscite facilmente o uso de discursos
claros e determinados do ponto de vista das concepções acerca dos sexos, “Continuar-se-ão a desenvolver acções dirigidas a públicos específicos, como, por
mas essa possibilidade existe. exemplo, adolescentes e os grupos mais vulneráveis – minorias pobres urbanas –
que apresentam piores indicadores na área da saúde reprodutiva” (op.cit., p.28).
Com essa condicionante, inviabilizando análises profundas e exaustivas,
assinalaremos em seguida alguns tópicos que têm sido objecto de outros Na nossa óptica, valeria a pena tomar estes exemplos como uma forma de
trabalhos e que, em nossa opinião, deverão merecer alguma reflexão futura. pensamento aplicável a outros domínios da saúde e, em simultâneo, à
análise da heterogeneidade dos indivíduos e das populações.
A “prioridade aos mais pobres” é, expressamente, uma das estratégias gerais
São feitas várias alusões às necessidades de saúde particulares das popu-
orientadoras deste Plano (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
lações migrantes e à intenção de adoptar estratégias de acção a elas di-
Saúde, 2004a, p.39), mas a possível relação entre as desigualdades sociais
rigidas (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.43,
e a estratificação social com o género, enquanto determinante da saúde, é
2004b; p.39-40). Estas alusões não consideram, contudo, a possibilidade de
estabelecida de forma ténue.
efeitos do género nos níveis de saúde e nos padrões de doença.
Esta é, com efeito, uma relação raramente focalizada por investigadores
A orientação sexual é expressamente referida quando se alude, diversas
nacionais e tem sido pouco valorizada nas intervenções de saúde. Porém,
vezes, a pessoas de orientação homossexual (Ministério da Saúde. Di-
vários autores internacionais têm apelado à necessidade de a considerar
recção-Geral da Saúde, 2004b, p. 40, 42-3, 45- 6). Genericamente, no docu-
nos estudos sobre a construção social do género, uma vez que os contex-
mento em causa, a alusão a outras orientações sexuais é, portanto, residual,
tos de vida e o posicionamento social criam padrões, manifestações e
ficando implícitos os comportamentos heterossexuais na identificação de
processos distintos nessa construção (e.g. Bromley, 2000; Connell, 1987;
problemas de saúde ou projecção de intervenções32.
Knights & Willmott, 1986a).
Sublinhado nosso.
31

A título de exemplo, nos itens “Nascer com Saúde” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 26),
32

“Uma Juventude à Descoberta de um Futuro Saudável” (maternidade e paternidade) (op.cit., p.30-1).


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 96 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 97

É, justamente, no domínio dos comportamentos de risco face às IST que, a gundos como figuras fundamentais do processo de socialização e, logo,
nosso ver, conviria introduzir alguma reflexão acerca da ideologia difundida como agentes activos na prevenção da doença e adopção de comporta-
através do texto e da incoerência de algumas afirmações. Referimo-nos, em mentos promotores de saúde. Do ponto de vista linguístico, não há, por-
concreto à inclusão insistente dos ‘homossexuais’ como fazendo parte das tanto, espaço para questionar os papéis atribuídos a cada sexo, ainda que,
“(…) populações específicas, classicamente relacionadas com a aquisição de IST do ponto de vista simbólico, nos interroguemos se, efectivamente, esses
(…), a par de (…) migrantes, sem-abrigo, toxicodependentes, trabalhadores do termos englobam, em igualdade, homens e mulheres.
sexo, (…) adolescentes, jovens adultos e reclusos.” (op.cit., p.40).
É numa referência ao período pré-concepcional que surge claramente uma
Parece-nos que o conceito de ‘grupo de risco’ está subjacente à catego- orientação estratégica que preconiza o envolvimento masculino, através
rização das pessoas de orientação homossexual como uma ‘população es- do uso da expressão ‘casais’:
pecífica’ caracterizada por um risco acrescido de contrair uma IST. Para além “Aumentar-se-á o número de casais que efectua uma consulta médica no
desse conceito ter sido abandonado há vários anos, por se ter assumido período pré-concepcional com o objectivo de preparar a gravidez.” (op.cit., p.
que estão em causa os comportamentos e não os ‘grupos’, os dados epi- 27)35.
demiológicos com data aproximada à do PNS já destacavam os comporta-
mentos heterossexuais como ‘categoria de transmissão’ altamente É também no campo da saúde reprodutiva que se identifica um dos poucos
preocupante (Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmis- sinais de adopção de uma perspectiva ideológica que procura contrariar a
síveis, 2007, p.8)33. associação exclusiva dos direitos sexuais e reprodutivos ao universo femi-
nino, através da seguinte afirmação:
Quando se pretende questionar o envolvimento masculino em domínios “Assegurar-se-ão condições de exercício da autodeterminação sexual de
como a saúde infantil, regulação da fertilidade e prevenção das IST34, aceita- mulheres e homens, assente num processo educativo integrado e na progres-
-se como pressuposto que estes tendem a ser associados às mulheres, pelo siva adequação dos serviços prestadores de cuidados.” (op.cit., p. 28)35.
menos em termos das representações e das práticas dominantes na so-
ciedade portuguesa (Marques, 2002; Nodin, 2001; Roque, 2001). Ou seja, a O conceito de família é usado inúmeras vezes ao longo do PNS mas, como
possibilidade desses domínios da saúde não serem encarados como res- não é clarificada a diversidade dos seus significados, julgamos não ser pos-
ponsabilidade exclusiva (ou quase total) das mulheres, mas sim como ne- sível avaliar que tipo de família é considerado. Do ponto de vista gráfico,
cessitando de partilha com os homens, sugerirá que, no documento em porém, o documento é ilustrado, no interior e no exterior, por um agrupa-
estudo, se deseja contrariar a acentuação das diferenças e a manutenção mento de quatro figuras humanas, um homem, uma mulher, um rapaz e
das desigualdades entre os sexos. uma rapariga, uma forma vulgar de representação da família nuclear. Esta
ilustração pode ser interpretada em sentido diverso, mas parece-nos im-
Os termos ‘família’ e ‘pais’ surgem intimamente associados ao domínio da portante que seja dada atenção aos aspectos simbólicos, pois estes são di-
saúde infantil e juvenil (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, fusores de ideologias, neste caso, acerca do género.
2004b, p. 28-9; 32), realçando a primeira como setting prioritário e os se-

O que também é reconhecido no PNS, quando se realça que a (…) população heterossexual (actualmente o princi-
33
35 Sublinhado nosso.
pal motor da epidemiologia desta infecção [VIH]” (…) (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 45-6).
Uma das questões incluídas nesta dimensão de análise (ver apêndice V).
34
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 98 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 99

das partes do texto;


Adopção da perspectiva de género na definição de políticas • Os conceitos de ‘sexo’ e de ‘género’, como já fizemos notar, são usados
Esta dimensão de análise inclui sete questões (17 a 23, ver apêndice V) que, como sobreponíveis ou, aparentemente, de forma inconsequente, pre-
de certa forma, sintetizam aquelas que orientaram as análises anteriores. dominando a sua assumpção como sinónimos ou o segundo como uma
Ainda que estejam em causa aspectos mais globais acerca da inclusão do versão modernizada do primeiro;
‘olhar do género’ no Plano Nacional de Saúde, as questões colocadas são • Quando a caracterização dos fenómenos de saúde e de doença se baseia
bastante incisivas. Seguiremos, com proximidade, essas questões na em dados estatísticos e epidemiológicos desagregados por sexo, as dife-
análise que se segue. renças observadas entre ambos são muitas vezes omitidas e pratica-
mente desvalorizadas em termos analíticos;
Parece-nos que as apreciações anteriores nos autorizam a afirmar que, • A projecção de estratégias de acção baseadas nessa caracterização segue
genericamente, o Plano Nacional de Saúde não incorpora a perspectiva de no mesmo sentido, sendo pontuais os exemplos em que se ensaia a
género no seu ponto de partida. Mesmo que, de modo subjacente, exista al- alusão à necessidade de considerar o que é distinto em cada sexo;
guma relação entre esta e os valores orientadores do documento, como (…) • A neutralidade face ao sexo e ao género não parece ser deliberadamente
procurada, mas o menosprezo pela sua importância acaba por produzir
“a justiça social, a universalidade, a equidade, o respeito pela pessoa humana, esse efeito.
a solicitude e a solidariedade” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
2004a, p. 25), não nos parece bastante para uma verdadeira integração da A presença de efeitos directos do sexo e do género foi identificada, assi-
perspectiva de género. nalada e comentada em alguns excertos e itens do documento, mas as nos-
sas análises sustentam a afirmação de que, globalmente, o género não é
Para que tal ocorra, é preciso uma atenção efectiva, patente e sistemática tratado como um dos determinantes da saúde.
à interacção dos factores biológicos e sociais, uma visão genderizada das
desigualdades que determinam os níveis de saúde e os padrões de doença A perspectiva da multideterminação da saúde é, claramente, uma das linhas
de cada sexo, da distribuição dos recursos, das formas de organização e das de orientação do Plano Nacional de Saúde, ainda que com graus de expli-
práticas dos profissionais (Sen et al., 2002; Theobald et al., 2006). citação variáveis consoante os problemas de saúde em causa, os contextos
ou as sub-populações. Como também antes referimos, julgamos que, em
No documento em apreço, não diríamos que existe uma total insensibili- termos gerais, não é salientada a influência do género noutros determinantes
dade face ao género, mas sim uma fraca reflexão e pouco aprofundamento da saúde (por exemplo, a estratificação social, a exclusão social, factores
de conceitos, o que resulta numa clara indecisão, assimetria e incongruên- demográficos, geográficos, económicos e políticos).
cia no seu uso. Como base dessa observação e, possivelmente, sendo uma
das causas subjacentes, está a não mobilização do já vasto conhecimento Pensamos que a explicitação no documento36 de princípios e conceitos
existente acerca das diferenças de género, tanto em termos genéricos sobre género e saúde e uma sistematização, ainda que sintética, do conhe-
como no domínio da saúde, o que é nítido nas fontes bibliográficas citadas. cimento disponível acerca da influência do mesmo nos fenómenos de
saúde e de doença facilitariam o enquadramento de grande parte dos
As nossas afirmações são sustentadas pelas análises seguintes:
• O conceito de género não é definido, nem de forma sucinta, em qualquer
36 Por exemplo, no item “Ponto de Partida” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p. 29).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 100 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 101

dados e indicadores relacionados com esse domínio.


De modo mais claro, se os conceitos de sexo e de género tivessem sido ob-
CAPÍTULO IV
jecto de clarificação prévia37 e se o género tivesse sido assumido como um
dos determinantes da saúde38, a atribuição de significado às diferenças Considerações finais
sinalizadas nos dados ou observações respeitantes a homens e mulheres e
raparigas e rapazes teria sido facilitada e promoveria o adopção da pers-
pectiva de género. Por esse caminho, mesmo sem aprofundar esse tipo de Diversas matérias relevantes no domínio das semelhanças e diferenças na
análise, assumir-se-ia, pelo menos implicitamente, o não esquecimento ou saúde de homens e mulheres ficaram por abordar neste documento. A este
desvalorização dos factores psicossociais associados ao género que aju- propósito, refira-se, a título de exemplo, as questões ligadas ao universo da
dam a interpretar as diferenças entre sexos para que os dados apontam. A sexualidade e das relações íntimas, em particular o das disfunções sexuais,
mera constatação dessa diferença e a sua assumpção como um facto, pos- ou o estudo do perfil de procura de cuidados por parte de homens e mulheres.
sivelmente associado ao primado do biológico, seriam, assim, contrariadas.
Por outro lado, não foi explorada, na íntegra, a riqueza dos testemunhos
Assumir essa outra perspectiva nos documentos orientadores das novas prestados pelos profissionais de saúde, aquando da realização dos estudos
políticas de saúde ou na revisão dos actuais afigura-se, assim, como uma empíricos levados a cabo, insuficiência que se deseja poder resolver num
tarefa de grande relevância. futuro próximo.

É possível, contudo, deixar expressas, à guisa de conclusão, algumas ideias


que estimulem o desenvolvimento do gender mainstreaming na concepção
das políticas de saúde, na dinâmica funcional dos serviços e na adequação
e qualidade dos cuidados prestados a homens e mulheres.

• As desigualdades em saúde são o resultado de um complexo sistema que


intervém a nível global, nacional e local e que marca a forma como as so-
ciedades se organizam e geram diferentes posicionamentos e hierarquias
entre os cidadãos. O lugar ocupado por cada indivíduo no tecido social
condiciona o impacte, positivo ou negativo, que nele podem ter as de-
terminantes da saúde, ao nível de exposição a factores de risco, à vulne-
rabilidade à doença e às consequências que desta advêm (Marmot, 2007).

• Muitas das desigualdades em saúde entre populações, e no interior das


mesmas, são evitáveis. Não existem, necessariamente, razões biológicas
para que, por exemplo, se verifique uma diferença de cerca de 48 anos
na esperança média de vida entre Japão e Serra Leoa, ou de 20 anos entre
37
diferentes comunidades australianas.
Como é discutido, entre outros, por Kim & Nazfzieger (2000, p.1) e como descrevemos anteriormente.
38 No sentido que revimos anteriormente (e.g. Davidson et al., 2006; Doyal, 2002).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 102 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 103

• A resolução deste tipo de diferenças na saúde (frequentemente evitáveis tação dos traços biológicos, como também as características biológicas
e, por isso, injustas, consubstanciando iniquidades) pode, e deve, ser equa- ligadas ao sexo podem, em alguns casos, gerar ou amplificar diferenças
cionado também quando se estratificam as populações por sexo, onde de género em saúde. Também por isso, há que ter melhor entendimento
um numeroso contingente de diferenças, quer biológicas, quer social- e ponderação acerca de quando, e em que medida, o género, a biologia,
mente construídas, necessita de ser melhor investigado, valorizado e pon- ambos, ou nenhuma, condicionam a saúde de homens e mulheres
derado nas decisões políticas, nas medidas de saúde pública e nos (Krieger, 2003).
procedimentos clínicos tomados. Trata-se de uma verdadeira questão de
direitos humanos e, por isso, de justiça social (Marmot, 2005). • Tal complexidade constitui uma das razões essenciais para que o género,
mediador da acção da generalidade das outras determinantes da saúde,
• Assim, o desafio é, em primeiro lugar, o de assegurar igualdade de opor- simultaneamente subtil e poderoso, seja devidamente ponderado nas in-
tunidades na procura e no usufruto dos recursos e dispositivos que ambos tervenções, neste domínio.
os grupos necessitam para a realização dos respectivos potenciais de
saúde (Doyal, 2000). • A reflexão sob uma perspectiva de género, enquanto princípio organi-
zador e ferramenta que permite aprofundar a concepção e análise da in-
• Para tal, torna-se necessário, não somente identificar, por si sós, as ne- formação, contribui para clarificar as diferenças e semelhanças entre
cessidades próprias de cada um dos dois grupos (e as comuns), mas tam- sexos no que respeita a padrões relacionais, realidades sociais, expecta-
bém o modo através do qual as formas correntes de organização social tivas de vida e circunstâncias económicas. Permite identificar melhor os
colocam constrangimentos diferentes a homens e mulheres, no que res- mecanismos pelos quais estas variáveis condicionam a saúde de homens
peita à satisfação das mesmas (Doyal, 2000). e mulheres, o acesso aos sistemas de saúde, o usufruto de cuidados e as
interacções com os profissionais (Health Canada, 2000).
• Assim, homens e mulheres beneficiarão de novas abordagens das
questões da saúde baseadas no reconhecimento das influências de sexo • O género, enquanto determinante da saúde, intervêm na vida de mulhe-
e de género nos factores sociais, económicos, culturais, geográficos e res e homens de forma diferente, condicionando: a exposição a factores
comportamentais que marcam a saúde dos indivíduos (Pinn, 2003). de risco; o acesso à informação e o entendimento sobre a prevenção, o
controlo e a vivências das doenças; a experiência subjectiva da doença e
• Mas, embora se verifique que os indivíduos com estatuto socio- o significado social da mesma; as atitudes pessoais em relação à preser-
económico menos privilegiado detêm, em média, níveis de saúde mais vação da própria saúde e à dos outros elementos da família; os padrões
precários, deve evitar-se uma leitura simplista que atribua a tal facto a de utilização dos serviços e a percepção sobre a qualidade dos cuidados;
justificação única para os indicadores de saúde menos favoráveis que o processo de prestação de cuidados; a efectividade e a qualidade de res-
mulheres e homens possam apresentar. Por outro lado, se a assimetria posta às necessidades específicas dos utilizadores, de ambos os sexos
entre sexos face ao eixo do poder redunda, em termos genéricos, em (Women’s Health Association of Victoria, 2001).
benefício dos homens, não deixa de ser verdade que, no campo específico
da saúde, essa vantagem nem sempre se manifesta. • Para desenvolver o planeamento e as práticas em saúde mais adequadas
é necessário, cada vez mais, a nível das tomadas de decisão e dos proces-
• Não só as relações de género podem influenciar a expressão e interpre- sos, ter em conta as desigualdades entre homens e mulheres e as ini-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 104 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 105

quidades de género. Para tal, estabelecer um perfil de saúde das popu- tudo, os educadores médicos podem tomar em mãos uma muito
lações que assente na desagregação por sexo dos dados epidemiológicos necessária melhoria curricular em matéria de saúde, sexo e género (Zelek,
encontrados, sempre que possível e apropriada, constitui um instru- Philips & Lefebvre, 1997).
mento de trabalho incontornável.
• Para incrementar uma perspectiva de género na educação médica
• É colocando questões sobre os efeitos, previsíveis ou constatados, de uma afigura-se necessário que os professores, de um sexo e do outro, par-
política, um programa, um serviço, um recurso ou uma intervenção nos ticipem no processo e assumam-no como importante. Para facilitá-lo, e
homens e nas mulheres que a resposta adequada às necessidades de para cativar os docentes para este envolvimento, há que motivar, em par-
saúde em ambos os sexos poderá ser acautelada. ticular, os do sexo masculino (Risberg, 2003).

• Uma abordagem baseada no género é um instrumento que contribui, Deseja-se assim, que, o presente documento possa constituir um estímulo
para conhecer melhor a saúde de homens e mulheres e para tomadas de para que o estudo mais aprofundado das semelhanças e diferenças na
decisão “baseadas na evidência”, assentes numa perspectiva de análise saúde de mulheres e homens, mediante uma perspectiva crítica de género,
mais ampla e interdisciplinar (Women’s Health Council, 2007). O con- reverta em benefício de ambos os sexos, com a obtenção de mais ganhos
ceito interdisciplinar de medicina do género tem que ser encarado em saúde. É para isso que aponta a Organização Mundial de Saúde, ao
através da integração de estudos sociais e culturais na investigação e aprovar, no decurso da 57.ª Sessão do Comité Regional para a Europa, ocorrida
prática médica (Kampf, 2006). em Setembro último, uma resolução sobre “Integrating gender analysis and
actions into the work of WHO: draft strategy”, na qual se exorta os Estados
• Constatada uma aparente anomia dos profissionais para as questões de Membros a:
sexo e género na saúde, conforme os estudos atrás relatados sugerem, há
que reforçar a sensibilização e a preparação técnica em tais matérias, nas • Integrarem considerandos sobre género no planeamento estratégico e
diferentes carreiras, nomeadamente, nas da Medicina e da Enfermagem. operacional, assim como no orçamento das acções;
• Contemplar as questões de género nas políticas de saúde;
• Para que tal seja viável, há que estimular nos curricula académicos e • Assegurar que uma perspectiva de igualdade de género está presente nos
profissionais o desenvolvimento de abordagens sensíveis ao género, nos serviços prestadores de cuidados de saúde, incluindo os destinados a ado-
respectivos conteúdos, linguagens e processos. É necessário assegurar lescentes e jovens;
que, neles, mulheres e homens se encontram igualmente representados, • Colectar e analisar dados informativos em saúde desagregados por sexo;
quando apropriado, que os homens não são retratados como o protótipo • Concretizar progressos no sentido da igualdade de género no sector da
da normalidade (e as mulheres como desviantes em relação à norma), Saúde (OMS, 2007).
que a linguagem usada é inclusiva para ambos os sexos e que a saúde
das mulheres não se restringe à esfera reprodutiva. É nesse mesmo sentido que, na monografia Health in Portugal 2007, se
afirma, no sumário executivo, que “(…) as gender is now recognized as a de-
• Através da eliminação ou, pelo menos, da tomada em consideração das terminant factor and a priority in the health agendas, the challenge turn out
subtis estereotipias, frequentemente não intencionais, empregues nos to be to develop innovative strategies to endorse gender mainstreaming in
suportes didácticos (textos e ilustrações) e nos exemplos clínicos para es- health programmes (…)” (DGS, 2007).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 106 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 107

Referências

Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: Theory of gendered organizations. Gender & Society, 4,
139-158.

Acker, J. (1998). The future of ‘gender and organizations’: Connections and boundaries. Gender,
Work and Organization, 5 (4), 195-206.

Acker, J. (2006). Inequality regimes. Gender, class, and race in organizations. Gender & Society, 20
(4), 411-464.

Alexanderson, K. (1999). An assessment protocol for gender analysis of medical literature.


Women & Health, 29 (2), 81-98.

Alexanderson, K., Wingren, G., & Rosdahl, I. (1998). Gender analysis of medical textbooks on der-
matology, epidemiology, occupational medicine and public health. Education for Health: Change
in Learning & Practice, 11 (2), 151-163.

Amâncio, L. (1993a). Níveis de análise no estudo da identidade social. Análise Psicológica, XI, 213-221.

Amâncio, L. (1993b). Stereotypes as ideologies, the case of gender categories. Aprendizage - Re-
vista de Psicologia Social, 8 (2), 163-170.

Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino. A construção social da diferença. Porto: Edições Afronta-
mento.

Amâncio, L. (1995). Social identity and social change. The case of gender categories. In L. Amân-
cio & C. Nogueira (Eds.), Gender, management and science. Braga: Universidade do Minho, Insti-
tuto de Educação e Psicologia.

Amâncio, L. (2001). O género na psicologia: Uma história de desencontros e rupturas. Psicologia,


XV (1), 9-25.

Amâncio, L. (2003c). O género nos discursos das ciências sociais. Análise Social, xxxviii (168), 687-714.

Amâncio, L. (2004). Aprender a ser homem. Construindo masculinidades. Lisboa: Livros Horizonte.

Bandura, B., & Kickbusch, I. (1991). Health promotion research: Towards a new social epidemiology.
Copenhaga: WHO European series n.º 37.

Barreto, M. L. (1998). Por uma epidemiologia da saúde colectiva. Revista Brasileira de Epidemiolo-
gia, 1 (2), 104-122.

Bedinghaus, J., Leshan, L., & Diehr, S. (2001). Coronary artery disease prevention: What's different
for women. American Family Physician, 63 (7), 1393-1400.

Bennett, J. C. (1993). Inclusion of women in clinical trials: Policies for population subgroups. The
New England Journal of Medicine, 329 (4), 288-292.

Berkman, L. F., & Kawachi, I. (2000). Social epidemiology. Nova Iorque: Oxford University Press.

Best, A., Stokols, D., Green, L. W., Leischow, S., Holmes, B., & Bucholz, K. (2003). An integrative frame-
work for community partnering to translate theory into effective health promotion strategy.
American Journal of Health Promotion, 18 (2), 168-176.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 108 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 109

Blackless, M. et al. (2000). How sexually domorphic are we? Review and Synthesis. American Jour- Direcção-Geral da Saúde (2006). Risco de morrer em Portugal 2004, Volume I. Lisboa: Direcção-
nal of Human Biology, 12, pp. 151-166. Geral da Saúde.

Braveman, P. (2006). Health Disparities and Health Equity: Concepts and Mesurement. Annu Direcção-Geral da Saúde (2006). Risco de morrer em Portugal 2004, Volume II. Lisboa: Direcção-
Rev.Public Health, 27, 167-194. Geral da Saúde.

Braveman, P., & Gruskin, S. (2003). Poverty, equity, human rights and health: Bulletin of the World Dong, W., Ben-Shlomo, Y. et al. (1998). Gender differences in accessing cardiac surgery across Eng-
Health Organization, 81 (7), pp. 539-545. land: a cross-sectional analysis of the health care service for England, Soc Sci Med, 47, 11, 1773-
1780.
Bromley, R. (2000). The theme that dare not speak its name. In S. R. Munt (Ed.), Cultural studies
and working class: Subject to change (pp. 51-68). Londres: Cassell. Doyal, L. (2000). Gender equity in health: debates and dilemmas. Social Science and Medicine, 51,
931-939.
Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge.
Doyal, L. (2001). Sex, gender, and health: The need for a new approach. British Medical Journal,
Cameron, C., & Bernardes, J. (1998). Gender and disadvantage in health: Men's health for a 323, 1061-1063.
change. Sociology of Health and Illness, 20 (5), 673-693.
Doyal, L. (2002). Putting gender into health and globalisation debates: New perspectives and old
Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis (2007). Infecção VIH/SIDA. A challenges. Third World Quarterly, 23 (2), 233-250.
situação em portugal. Lisboa: Ministério da Saúde. Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge.
Doyal, L. (2003). Sex and gender: The challenges for epidemiologists. International Journal of
Charlton, B. (1997). Epidemiology as a toolkit for clinical scientists. Epidemiology, 8 (4), 461-463. Health Services, 33 (3), 569-579.
Cheng, C. (1996a). Introduction. In C. Cheng (Ed.), Masculinities in organizations (pp. i-xxii). Thou- Doyal, L. (2004). Gender and the 10/90 gap in health research. Bulletin of the World Health Or-
sand Oaks, CA: Sage Publications. ganization, 82 (3), 162.
Clarke, P. J., Marshall, V. W., & Ballantyne, P. J. (2001). Instability in the retirement transition. Re- Doyal, L. (2005). Gender, health, and the Millennium Development Goals: a briefing document and
search on Aging, 23 (4), 379-409. resource guide. Global Forum for Health Research.
Cline, B. L. (1995). The slow fix: Communities, research, and disease control. American Journal of Doyle, S., Kelly-Schwartz, A., Schlossberg, M., & Stockard, J. (2006). Active community environ-
Tropical Medicine and Hygiene, 52, 1-7. ments and health. Journal of American Planning Association, 72 (1), 19-31.
Collinson, D., & Hearn, J. (2001). Naming men as men: Implications for work, organization and Drentea, P. (2002). Retirement and mental health. Journal of Aging and Health, 14 (2), 167-194.
management. In S. M. Whitehead & F. J. Barrett (Eds.), The masculinities reader (pp. 144-169). Cam-
bridge: Polity Press. Dunn, F. L., & Janes, C. R. (1986). Introduction: Medical anthropology and epidemiology. In C. R.
Janes, R. Stall & S. M. Gifford (Eds.), Anthropology and epidemiology. Interdisciplinary approaches
Connell, R. W. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Standford: Stand- to the study of health and disease (pp. 3-34). Dordrecht, Holanda: D. Reidel.
ford University Press.
Elson, D. (1998). Integrating gender issues into national budgetary policies and procedures: Some
Connell, R. W. (2002). Gender. Cambridge: Polity Press. policy options. Journal of International Development, 10 (7), 929-942.
Connell, R. W., Hearn, J., & Kimmel, M. S. (2005). Introduction. In M. S. Kimmel, J. Hearn & R. W. European Partners for Equity in Health (2006). Position Paper on “Tackling Health Inequalities”.
Connell (Eds.), Handbook of studies on men and masculinities (pp. 1-12). Thousand Oaks, Califor- (www.eurohealthnet.org).
nia: Sage Publications.
Ewing, R., Schmidt, T., Killingsworth, R., Zlot, A., & Raudenbush, S. (2003). Relationship between
Cotton, P. (1992). Women's health initiative leads way as research begins it fill gender gaps. JAMA, urban sprwal and physical activity, obesity, and morbidity. American Journal of Health Promo-
267 (4), 469-470. tion, 18 (1), 47-57.
Courtenay, W. H. (2000). Behavioural factors associated with disease, injury and death among Fausto-Sterling, A. (1993). The five sexes: why male and female are not enough. The Sciences, 33
men: Evidence and implications for prevention. Journal of Men's Studies, 9, 81-142. (2), pp. 20-25.
Danielsson, U., & Johansson, E. E. (2005). Beyond weeping and crying: A gender analysis of ex- Fausto-Sterling, A. (1999). Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. New
pression of depression. Scandinavian Journal of Primary Care, 23, 171-177. York: Basic Books.
Davidson, K. W., Trudeau, K. J., van Roosmalen, E., Stewart, M., & Kirkland, S. (2006). Gender as a health Fausto-Sterling, A. (2000). Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality.
determinant and implications for health education. Health Education & Behavior, 33 (6), 731-743. New York: Basic Books.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 110 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 111

Fernandes, A. A., Perelman, J., & Mateus, C. (2007). Health and Health Care in Portugal: Does Gen- Hearn, J., & Collinson, D. L. (1994). Theorizing unities and differences between men and between
der Matter? Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública. masculinities. In H. Brod & M. Kaufman (Eds.), Theorizing masculinities (pp. 97- 118). Thousand
Oaks: Sage Publications.
Frohlich, K. L., & Potvin, L. (1999). Health promotion through the lense of population health: To-
ward a salutogenic setting. Cirtical Public Health, 9, 211-222. Hertzman, C., Frank, J., & Evans, R. G. (1993). Heterogeneities in health status and the determinants
of population health. In R. G. Evans, M. L. Barer & T. R. Marmor (Eds.), Why are some people healthy and
Gale, E. A., & Gillespie, K. M. (2001). Diabetes and gender. Diabetologia, 44 (1), 3-15. others not. The determinants of health in populations (pp. 67-92). Nova Iorque: Aldine de Gruyter.
Gandhi, M., Aweeka, F., Greenblatt, R. M., & Blaschke, T. (2004). Sex Differences in Pharmacoki- Holland, C., & Hill, R. (2007). The effect of age, gender and driver status on pedestrians' inten-
netics and pharmacodynamics. Annual Review of Pharmacology and Toxicology, 44, 499-523. tions to cross the road in risky situations. Accident Analysis & Prevention, 39, 224- 237.
Garlick, S. (2003). What is a man? Heterosexuality and the technology if masculinity. Men & Mas- Holter, O. G. (2005). Social theories for researching men and masculinities. In M. S. Kimmel, J.
culinities, 6 (2), 156-172. Hearn & R. W. Connell (Eds.), Handbook of studies on men and masculinities (pp. 15-34). Thousand
Gideon, J. (2006). Integrating gender interests into health policy. Development and Change, 37 (2), Oaks, California: Sage Publications.
329-352. Hu, G., Jousilahti, P., Qiao, Q., Peltonen, M., Katoh, S., & Tuomilehto, J. (2005). The genderspecific im-
Gjerberg, E. (2001). Medical women – towards full integration? An analysis of the speciality pact of diabetes and myocardial infarction at baseline and during follow-up on mortality from
choices made by two cohorts of Norwegian doctors, Soc Sci Med, 52, 331-343. all causes and coronary heart diseases. J Am Coll Cardiol, 45 (9), 1413-1418.

Goldacre, M. J., Davidson, J. M. et al. (1999). Career choices at the end of the pre-registration year Huxley, R., Barzi, F., & Woodward, M. (2006). Excess risk of fatal coronary heart disease associated
of doctors who graduate in the United Kingdom in 1996, Medic Edu, 33, 12, 882-889. with diabetes in men and women: meta-analysis of 37 prospective cohort studies. BMJ, 332, 73-78.

Goldenberg, P., Schenkman, S., & Franco, L. J. (2003). Prevalência de diabetes mellitus: diferenças III Plano Nacional para a Igualdade – Cidadania e Género (2007-2010). Resolução do Conselho de
de género e igualdade entre sexos. Rev. Bras. Epidemiol., 6 (1). Ministros n.º 82/2007, de 22 de Junho (DR, I série, n.º 119).

Graham, H. (2007). Unequal Lives: Health and Socioeconomic Inequalities. Open University Press. IMAGE (1986-2005). Alceste, version 4.7. Analyse de Données Textuelles. Toulouse: CNRS.
(http://www.mcgraw-hill.co.uk/html/0335213693.html). Inhorn, M. C. (1995). Medical anthropology and epidemiology: Divergences or convergences? So-
Gregg, E. W., Gu, Q., Cheng, Y. J., Narayan, K. M. V., & Cowie, C. C. (2007). Mortality trends in men cial Science and Medicine, 40, 285-290.
and women with diabetes, 1971 to 2000. Annuals of Internal Medicine, 147 (3), 149-156. Inhorn, M. C., & Janes, C. R. (2007). The behavioural research agenda in global health: An advo-
Hafner-Burton, E., & Pollack, M. (2002). Mainstreaming gender in global governance. European cate's legacy. Global Public Health, 2 (3), 294-312.
Journal of International Relations, 8, 339-373. Inhorn, M. C., & Whittle, K. L. (2001). Feminism meets the 'new' epidemiologies: Toward an ap-
Hamberg, K., & Johansson, E. E. (2006). Medical students’ attitudes to gender issues in the role and praisal of antifeminism biases in epidemiological research on women's health. Social Science
career of physicians: a qualitative study conducted in Sweden. Medical Teacher, 28 (7), 635-641. Medicine, 53, 553-567.

Hamberg, K., Risberg, G. et al. (2002). Gender bias in physicians’ management of neck pain: a Instituto Nacional de Estatística (vários anos). Estatísticas da Saúde. Lisboa: INE
study of the answers in a Swedish national examination, J Wom Health & Gender-Based Medicine, Irwin, A., & Scali, E. (2007). Action on the social determinants of health: A historical perspective.
11 (7), 653-666. Global Public Health, 2 (3), 235-256.
Hamberg, K., Risberg, G., Johansson, E. E., & Westman, G. (2002). Gender bias in physicians’ man- Jadad, A. R., & Meryn, S. (2005). The future of men's health: Trends and opportunities to watch in
agement of neck pain: a study of the answers in a Swedish national examination. J Women’s the age of the internet. The Journal of Men's Health & Gender, 2 (2), 124-128.
Health Gend Based Med., 11 (7), 653-666.
Jochmann, N., Stangl, K., Garbe, E., Baumann, G., & Stangl, V. (2005). Female-specific aspects in the
Harrison, W. C. (2005). The shadow and the substance. The sex/gender debate. In K. Davis, M. Evans pharmacotherapy of chronic cardiovascular diseases. European Heart Journal, 26, 1585-1595.
& J. Lorber (Eds.), Handbook of gender women's studies (pp. 35-52). Londres: Sage Publications.
Juutilainen, A., Kortelainen, S., Lehto, S., Rönnemaa, T., Pyörälä, K., & Laakso, M. (2004). Gender dif-
Health and Consumer Protection (2003). The health status of the European Union – narrowing ferences in the impact of type 2 diabetes on coronary heart disease risk. Diabetes Care, 27, 2898-
the health gap. Luxembourg: European Commission. 2904. (http://care.diabetesjournals.org/cgi/content/abstract/27/12/2898).
Health Canada. (2000). Health canada's gender-based analysis policy. Ottawa: Health Canada. Kabeer, N. (1994). Reversed realities. Gender hierarchies in development thought. Londres: Verso.
Health Canada. (2003). Exploring concepts of gender and health. Ottawa: Women's Health Bu- Kampf, A. (2006). Report on the conference on “Men, Women, and Medicine: a new view of the
reau-Health Canada. biology of sex/gender differences and aging” held in Berlin, 24-26th February 2006. Philosophy,
Ethics, and Humanities in Medicine, 1, 11. (http://www.peh-med.com/content/1/1/11).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 112 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 113

Kashuba, A. D. M. & Nafziger, A. N. (1998). Physiological Changes During The Menstrual Cycle and Low, M. D., Low, B. J., & Huynh, P. T. (2005). Can education policy be health policy? Implications of
Their Effects on the Pharmacokinetics and Pharmacodynamics of Drugs. Clinical Pharmacoki- research on the social determinants of health. Journal of Health Politics, 30 (6), 1131-1162.
netics, 34 (3), pp. 203-218.
Lupton, D. (1995). The imperative of health. Public health and the regulated body. Londres: Sage
Kawachi, I., Kenedy, B. P., & Glass, R. (1999). Social capital and self-rated health: A contextual analy- Publishers.
sis. American Journal of Public Health, 89 (8), 1187-1193.
Lynch, J., Davey, S., Harper, S., & Hillemeir, M. (2004). Is income inequality a determinant of pop-
Kim, J. S., & Nafziger, A. N. (2000). Is ir sex or is gender? Clinical Pharmacology & Therapeutics, 68 ulation health? Part 2. U.S. National and regional trends in income inequality. The Milbank Quar-
(1), 1-3. terly, 82 (2), 355-400.

Knights, D., & Willmott, H. (1986a). Introduction. In D. Knights & H. Willmott (Eds.), Gender and the MacIntyre, S., Ellaway, A., & Cummins, S. (2002). Place effects on health: How can we conceptu-
labour process (pp. 1-13). Aldershot: Gower. alize, operationalise and measure them. Social Science and Medicine, 55, 125-139.

Krieger, N. (1990). Racial and gender discrimination: Risk factors for high blood pressure? Social Mackenbach, J. P. (2005). Genetics and health inequalities: hypotheses and controversies. Journal
Science and Medicine, 30 (12), 1273-1281. of Epidemiology and Community Health, 59, 268-273.

Krieger, N. (1994). Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Social Sci- Mackenbach, J.P. (2006). Health Inequalities: Europe in Profile. Roterdam: Erasmus MC.
ence Medicine, 39 (7), 887-903.
Mark, D. B. (2000). Sex bias in cardiovascular care. Should women be treated more like men?
Krieger, N. (2003). Genders, sexes, and health: what are the connections – and why does it mat- JAMA, 283, 5, 659-661.
ter? Int J of Epidemiol, 32, 652-657.
Marmot, M. (1986). Social inequalities in mortality: The social environment. In R. Wilkinson (Ed.),
Krieger, N., & Fee, E. (1994). Man made medicine and women's health: The biopolitics of sex/gen- Class and health: Research and longitudinal data (pp. 21-33). Londres: Tavistock.
der and race/ethnicity. International Journal of Health Services, 24 (2), 265-283.
Marmot, M. (2005). Social determinants of health inequalities. Lancet, 365, 1099-1104.
Krieger, N., & Zierler, S. (1995). Accounting for the health of women. Current Issues in Public Health,
1, 251-256. Marmot, M. (2007). Achieving health equity: from root causes to fair outcomes. Lancet, 370, 1153-
1163.
Krieger, N., & Zierler, S. (1996). What explains the public's health? A call for epidemiologic theory.
Epidemiology, 7 (1), 107-109. Marmot, M., & Wilkinson, R. (2003). Social determinants of health: The solid facts (2ª ed.). Com-
penhaga: WHO.
Krieger, N., Rowley, D., Hermann, A. A., Avery, B., & Philips, M. T. (1993). Racism, sexism, and social
class: Implications for studies of health, disease, and well being. American Journal of Preventive Marques, A. M. (2002). Problemas e necessidades de saúde sexual e reprodutiva em bairros de ar-
Medicine, 9 (supl.), 82-122. rendamento público. Sexualidade e Planeamento Familiar, 29/30, 7-16.

Laqueur, T. (1992). La fabrique du sexe. Essai sur le corps et le genre en occident. Paris: Gallimard. Marques, A. M. (2007). Profissões masculinas. Discursos e resistências. Unpublished Tese de
doutoramento, ISCTE, Lisboa.
Laranjeira, A. R., & Prazeres, V. (2005). Mortalidade em idades jovens - relatório (1992-2003). Lisboa:
Direcção-Geral da Saúde. Marques, A. M., & Amâncio, L. (2004). Medicina e masculinidade: Da predominância numérica à
dominação simbólica. In J. Vala, M. Garrido & P. Alcobia (Eds.), Percursos da investigação em psi-
Lawson, J., & Floyd, J. (1996). The future of epidemiology: A humanist response. American Journal cologia social e organizacional (pp. 201-220). Lisboa: Edições Colibri.
of Public Health, 86 (7), 1029.
McCollum, M., Hansen, L. B., Lu, L., & Sullivan, P. W. (2005). Gender differences in diabetes melli-
Le Breton, D. (2007). Compreender a dor. Cruz Quebrada: Estrela Polar. tus and effects on self-care activity. Gender Medicine, 2 (4), 246-254.

Legato, M. J. (2006). But What About Men? Gender Medicine, 3 (1), 2-4. McGinnis, J. M. (2006). Can public health and medicine partner in the public interest? Health Af-
fairs, 25 (4), 1044-1052.
Link, B. G., & Phelan, J. C. (1996). Editorial: Understanding sociodemographic differences in health
- the role of fundamental social causes. American Journal of Public Health, 86, 471-473. Meibohm, B., Beierle, I., & Derendorf, H. (2002). How Important are Gender Differences in Phar-
macokinetics? Clinical Pharmacokinetics, 41 (5), 329-342.
Link, B., & Phelan, J. C. (1995). Social conditions as fundamental causes of disease. Journal of Health
Social Behavior, (extra), 80-94. Mendelsohn, D. K., Nieman, L. Z., Isaacs, K., Lee, S., & Levison, S. P. (1994). Sex and Gender Bias in
Anatomy and Physical Diagnosis Text Illustrations. JAMA, 272 (16), 1267-1270.
Lobeck, M., Thompson, A. R., & Shankland, M. C. (2005). The experience of stroke for men in re-
tirement transition. Qualitative Health Research, 15 (8), 1022-1036. Miaskowski, C. (2004). Gender differences in pain, fatigue, and depression in patients with can-
cer. Journal of the National Cancer Institute Monographs, 32, 139-143.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 114 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 115

Migeon, B. R. (2007). Why females are mosaics, X-chromosome inactivation, and sex differences Pinn, V. W. (2003). Sex and gender factors in medical studies – implications for health and clini-
in disease. Gender Medicine, 4 (2), 97-105. cal practice. JAMA, 289 (4), 397-400.

Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde. (2004a). Plano nacional de saúde 2004-2010: Mais Porter, D. (1999). Health, civilization and the state. A history of public health from ancient to mo-
saúde para todos (Vol. I - Prioridades). Lisboa: Direcção-Geral da Saúde. dern times. Londres: Routledge.

Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde. (2004b). Plano nacional de saúde 2004-2010: Mais Potvin, L., Gendron, S., Bilodeau, A., & Chabot, P. (2005). Integragting social theory into public
saúde para todos (Vol. II - Orientações Estratégicas). Lisboa: Direcção-Geral da Saúde. health practice. American Journal of Public Health, 95 (4), 591-595.

Mosca, L. et al (2004). Evidence-based guidelines for cardiovascular disease prevention in women. Prazeres, V. (2003). Saúde juvenil no masculino. Género e saúde sexual e reprodutiva. Lisboa:
J Am Coll Cardiol, 43, 900-921. Direcção-Geral da Saúde.

Moynihan, C. (1998). Theories of masculinity. BMJ, 317, 1072-1075. Prazeres, V., Laranjeira, A. R., & Oliveira, V. (2005). Saúde dos jovens em Portugal: Elementos de
caracterização. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde.
National Institutes of Health Osteoporosis and Related Bone Diseases (2006). Osteoporosis in
men. USA: Department of Health and Human Services. Regional Committee for Europe (2007). Matters arising out of resolutions and decisions of the
World Health Assembly and the Executive Board. World Health Organization (EUR/RC57/5).
Naugler, W. E., Sakurai, T., Kim, S., Maeda, S., Kim, K., Elsharkawy, A. M., & Karin, M. (2007). Gender
disparity in liver cancer due to sex differences in MyD88-dependent IL-6 production. Science, 317, Reinert, M. (1986). Un logiciel d’analyse lexicale: Alceste, Les Cahiers de l’Analyse des Données,
121-124. Vol. XI, nº 4, 471-84.

Needleman, C. (1997). Applied epidemiology and environmental health: Emerging controversies. Rhudy, J. L., & Williams, A. E. (2005). Gender differences in pain: do emotions play a role? Gender
American Journal of Infection Control, 25 (3), 262-274. Medicine, 2 (4), 208-226.

Nodin, N. (2001). Os jovens portugueses e a sexualidade em finais do século XX. Lisboa: APF. Risberg, G., Hamberg, K., & Johansson, E. E. (2006). Gender perspective in medicine: a vital part
of medical scientific rationality. A useful model for comprehending structures and hierarchies
Nunes, E. (2006). Consumo de Tabaco. Efeitos na Saúde. Rev Port Clin Geral, 22, 225-244. within medical science. BMC Medicine, 4: 20. (http://www.biomedcentral.com/1741-7015/4/20)
Nunes, E. (2007). Tabaco e Saúde. In Editorial do Ministério da Educação, Consumo de Substâncias Risberg, G., Johansson, E. E., Westman, G., & Hamberg, K. (2003). Gender in medicine - an issue for
Psicoactivas e Prevenção em Meio Escolar (pp. 19-37). Lisboa: Ministério da Educação. women only? A survey of physician teachers' gender attitudes. International Journal for Equity in
Nutbeam, D. (2004). Getting evidence into policy and practice to address health inequalities. Health, 2, 10-17.
Health Promotion International, 19, 137-140. Risberg, G., Johansson, E. E., Westman, G., & Hamberg, K. (2003). Gender in medicine – an issue
Nye, R. A. (2005). Locating masculinity: Some recent work on men. Journal of Women in Culture for women only? A survey of physician teachers’ gender attitudes. International Journal for
and Society, 30 (3), 1937-1962. Equity in Health, 2 (10).

Oppenheimer, G. M. (1995). Comment: Epidemiology and the liberal arts - toward a new para- Riska, E. (1993). Introduction. In E. Riska & K. Wegar (Eds.), Gender, work and medicine. Women and
dign? American Journal of Public Health, 85, 918-920. the medical division of labour (pp. 1-12). Londres: Sage Publications.

Pan American Health Organization. Gender Equity in Health. New York: Fact Sheet of the Program Riska, E. (2003). Gendering the medicalization thesis. Advances in Gender Research, 7, 59-87.
in Women, Health and Development. (www.paho.org/english/hdp/hdw/GEHFactSheet.pdf) Roger, V. L., Farkouh, M. E. et al. (2000). Sex differences in evaluation and outcome of unstable
Pearce, N. (1996). Traditional epidemiology, modern epidemiology, and public health. American angina, JAMA, 283, 5, 646-652.
Journal of Public Health, 86, 678-683. Roque, O. (2001). Semiótica da cegonha: Jovens, sexualidade e risco de gravidez não desejada. Lisboa:
Philips, S. P. (2005). Defining and measuring gender: A social determinant of health whose time APF.
has come. Int J Equity Health, 4 (11). (http://www.equityhealthj.com/content/4/1/11). Rosser, S. V. (1993). Female friendly science: Including women curricular content and pedagogy on
Phillips, S. P. (1997). Problem-based learning in medicine: new curriculum, old stereotypes. Soc. science. Journal of General Education, 42 (3), 191-220.
Sci. Med., 45 (3), 497-499. Roter, D. L., Hall, J. A., & Aoki, Y. (2002). Physician gender effects in medical communication. A
Phillips, S. P. (2006). Risky business: explaining the gender gap in longevity. JMHG, 3 (1), 43-46. meta-analytic review. JAMA, 288 (6), 756-764.

Phillips, S. P., & Ferguson, K. E. (1999). Do students’ attitudes toward women change during med- Rubin, R., & Peyrot, M. (1998). Men and diabetes: psychosocial and behavioural issues. Diabetes
ical school? CMAJ, 160 (3), 357-361. Spectrum, 11. (http://www.diabetic-lifestyle.com/articles/sep98_whats_1.htm).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 116 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 117

Rydén, L., Standl, E., Bartnik, M., Van den Berghe, G., Betteridge, J., Boer, M., Cosentino, F., Jönsson, demiology, 13 (1), 110-112.
B., Laakso, M., Malmberg, K., Priori, S., Östergren, J., Tuomilehto, J., & Thrainsdottir, I. (2007). Guide-
lines on diabetes, pre-diabetes and cardiovascular diseases: executive summary. European Heart The Women's Health Council. (2007). A guide to creating gender-sensitive health services (2.ª ed.).
Journal, 28, 88-136. Dublin: The Women's Health Council.

Sampaio, A. (1960). Perspectivas e tendências em Saúde Pública. O Médico, 277-284. Theobald, S., Simwaka, B. N., & Klugman, B. (2006). Gender, health and development iii: Engen-
dering health research. Progress in Development Studies, 6 (4), 337-342.
Sarton, E., Olofsen, R., Romberg, R., den Hartigh, J. B., Nieuwenhuijs, D., Burm, A., & Teppema, L.
(2000). Sex differences in morphine analgesia: an experimental study in healthy volunteers. Theobald, S., Tholhurst, R., Elsey, H., & Sanding, H. (2005). Engendering the bureaucracy? Chal-
Anesthesiology, 93 (5), 1245-1254. lenges and opportunities for mainstreaming gender in ministries of health under sector-wide
approaches. Health Policy and Planning, 20 (3), 141-149 (doi:10.1093/heapol/czi019).
Scambler, G., & Higgs, P. (1999). Stratification, class and health: Class relations and health
inequalities in high modernity. Sociology, 33 (2), 275-296. Vaccarino, V., Parsons, L., Every, N. R., Barron, H. V., & Krumholz, H. M. (1999). Sex-based differences in
early mortality after myocardial infarction. The New England Journal of Medicine, 341 (4), 217-225.
Schenck-Gustafsson, K. (2006). Are the synptomes of myocardial infarction different in men and
women? If so, will there be any consequences? Scand Cardiovas J, 40 (6), pp. 325-326. Varanka, J., Närhinen, A., & Siukola, R. (2006). Men and Gender Equality – Towards Progressive Poli-
cies – conference report. Helsinki: Ministry of Social Affairs and Health.
Schwartz, J. B. (2003). The influence of Sex on Pharmacokinetics. Clinical Pharmacokinetics, 42 (2),
107-121. Verbrugge, L. (1995). Gender and health: An update on hypotheses and evidence. Journal of
Health and Social Behavior, 26 (3), 1156-1182.
Sen, G., George, A., & Öslin, P. (2002). Engendering international health: The challenge of equity.
Cambridge, Massachusetts: MIT Press. Weed, D. L. (1995). Epidemiology, the humanities, and public health. American Journal of Public
Health, 85, 914-918.
Soares, C. & Jesuino, J. C. (2004). Memória social e representações sobre o descobrimento do
Brasil: análise dos manuais portugueses de história. Psicologia, Vol. XVII, 2, pp. 321-337. Wenger, N. K. (2007). Heightened cardiovascular risk in diabetic women: can the tide be turned?
Annuals of Internal Medicine, 147 (3), 208-210.
Standing, H. (1997). Gender and equity in health sector reform programmes: A review. Health
Policy and Planning, 12 (1), 1-18. Wenger, N. K., Seeroff, L., & Packard, B. (1993). Cardiovascular health and disease in women. The
New England Journal of Medicine, 329 (4), 247-256.
Stramba-Badiale M., & Priori, S. G. (2005). Gender-specific prescription for cardiovascular disea-
ses? European Heart Journal, 26, 1571-1572. West, C. (1993). Reconceptualizing gender in physician-patient relations. Social Science and Medi -
-cine, 36 (1), 57-66.
Stramba-Badiale M., Fox, K. M., Priori, S. G., Collins, P., Daly, C., Graham, I., Jonsson, B., Schenck-
Gustafsson, K., & Tendera, M. (2006). Cardiovascular diseases in women: a statement from the West, C., & Zimmerman, D. H. (1987). Doing gender. Gender & Society, 1 (2), 125-151.
policy conference of the European Society of Cardiology. European Heart Journal, 27, 994-1005. White, A., & Cash, K. (2003). A report on the state of men’s health across 17 European countries.
Susser, M. (1994a). The logic in ecological: I - the logic of analysis. American Journal of Public Health, Brussels: The European Men’s Health Forum.
84, 825-829. White, A., & Holmes, M. (2006). Patterns of mortality across 44 countries among men and women
Susser, M. (1994b). The logical in ecological: Ii - the logic of design. American Journal of Public ages 15-44 years. JMHG, 3 (2), 139-151.
Health, 84, 830-835. Whitehead, M. (1990). The concepts and principles of equity and health. Copenhagen: World
Susser, M., & Susser, E. (1996a). Choosing a future for epidemiology: I. Eras and paradigms. Health Organization Regional Office for Europe.
American Journal of Public Health, 86 (5), 668-673. Whittle, K. L., & Inhorn, M. C. (2001). Rethinking difference: A feminist reframing of
Susser, M., & Susser, E. (1996b). Choosing a future for epidemiology: Ii. From black box to chinese gender/race/class for the improvement of women's health research. International Journal of
boxes and eco-epidemiology. American Journal of Public Health, 86 (5), 674-677. Health Services, 31 (1), 147-165.

Swedish International Development Cooperation Agency. (1997). A gender perspective in the Wing, S. (1994). Limits of epidemiology. Medicine and Global Survival, 1, 74-86.
health sector. Estocolmo: SIDA - Department for Democracy and Social Development. Health Di- Wing, S. (1998). Whose epidemiology, whose health? International Journal of Health Services, 28
vision. (2), 241-252.
Syme, S. L. (2005). Historical perspective: The social determinants of disease - some roots of the Women’s Health Association of Victoria (2001). Position paper on gender & practice. Women’s
movement. Epidemiologic Perspectives & Innovations, 2, doi: 10.1186/1742-5573-1182-1182. Health Association of Victoria.
Syme, S. L., & Frohlich, K. L. (2001). The contribution of social epidemiology: Ten new books. Epi-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 118 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 119

Women’s Health Bureau (2000). Health Canada’s Gender-based Analysis Policy. Minister of Health.

Women’s Health Council (2007). A Guide to creating gender-sensitive health services. Women’s
APÊNDICES
Health Council.

Wood, J., Hennell, T., Jones, A., Hooper, J., Tocque, K., & Bellis, M. A. (2006). Where wealth means
health – illustrating inequality in the North West. Liverpool: North West Public Health Observatory.

World Health Organization (2007). Gender and genetics. World Health Organization.
(http://www.who.int/genomics/gender/en/print.html).

World Health Organization (2007). World Health Statistics 2007. France: World Health Organization.

World Health Organization. (1986). Ottawa charter for health promotion. Paper presented at the
F irst International Conference on Health Promotion. Ottawa, Ontario, Canada.

World Health Organization. (2002). Gender and road traffic injuries. Gender & Health, 1-4.

Zelek, B., & Phillips, S. P. (2003). Gender and power: nurses and doctors in Canada. International
Journal for Equity in Health, 2 (1).

Zelek, B., & Phillips, S. P., & Lefebvres, Y. (1997). Gender sensitivity in medical curricula. Can Med
Assoc J, 156 (9), 1297-1300.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 120 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 121

APÊNDICE I
Questionário do Estudo 1

No âmbito de uma investigação mais alargada, a Direcção-Geral da Saúde está a realizar um estudo de
opinião junto dos profissionais de saúde de diferentes áreas e especialidades sobre algumas questões
relacionadas com os utentes, no contexto da preparação técnica e das práticas profissionais.

Procuramos assim contribuir para um melhor conhecimento sobre estas temáticas, solicitando a sua
opinião sincera sobre o assunto. Reafirma-se tratar-se de um estudo de opinião, pelo que não existem
respostas certas ou erradas. Este questionário é anónimo e confidencial e destina-se, exclusivamente,
ao trabalho de investigação supra mencionado.

Agradecemos a sua colaboração.


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 122 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 123
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 124 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 125

APÊNDICE II
Gráficos dos resultados do Estudo 1

1. Gráficos dos resultados apurados na Secção A - O papel do sexo do utente no âmbito das práticas
clínicas
3,2

processo terapêutico
- Sexo do utente

relação que
3,1

do - Sexo do
3,25 3,2

com o/a utente


Resultados para a

Noterapêutico
3

do utente

Na relaçãoNaque
3,1
variável PROFISSÃO

próprio
3,25

tem importância:
próprio
2,9

com o/a utente


of Para-oSexo
Gráfico 20 | 21 3

of Para-oSexo
No processo
3

tem importância:

estabeleceestabelece
2,8

o próprio
importância:
o próprio
2,9

3 2,7

Mean
tem importância:
Mean
2,8

Mean of Para
utente temutente
2,75

Mean of Para
2,6

2,7

2,5
2,75
2,6
Enfermeiro/a Médico/a Enfermeiro/a Médico/a

Profissão 2,5 Profissão

Enfermeiro/a Médico/a Enfermeiro/a Médico/a


Gráfico 17 Profissão Gráfico 18 Profissão

Gráfico 17 Gráfico 18

- Sexo do - Sexo do
3,2

processo terapêutico
3,3
Gráfico 22 | 23

mesma especialidade
3,1 3,2

tem importância:

de outra especialidade
3,2

Noterapêutico
3,3

especialidade

processo terapêutico
3 3,1

3,1 3,2

importância:

outra especialidade
2,9 3

Noterapêutico

No processo
mesmada
3 3,1

tem importância:
temutente
dacolegas
2,8
2,9

decolegas
2,9 3

- Sexo do
No processo
of Para
2,7

importância:
- Sexo do utente
2,8

colegas
2,8
2,9

of Para
colegas
2,6

Mean

utente temutente
2,7

Mean of Para
2,7
2,8

Mean
2,5

Mean of Para
2,6
2,6
2,7
Enfermeiro/a Médico/a
Enfermeiro/a Médico/a
2,5 Profissão 2,6 Profissão
Enfermeiro/a Médico/a
Gráfico 19 Profissão Gráfico 20Enfermeiro/a Médico/a

Profissão

Gráfico 19 Gráfico 20
Gráfico 25
Gráfico 24

TRABALHO
Resultados para a
Resultados para a
variável PROFISSÃO

variável CONTEXTO
Mean of Para colegas de outras
Mean áreas colegas de outras
of Paraprofissionais - Sexo áreas profissionais - Sexo colegas de outras
utente tem importância: Mean of Para colegas de outras
Mean áreas
of Paraprofissionais - Sexo áreas profissionais - Sexo
do utente tem importância:do Nos critérios que utiliza Nos critérios que utiliza utente tem importância:
para avaliação / diagnóstico
para avaliação / diagnóstico do utente tem importância:do No processo terapêutico No processo terapêutico
2,6
2,8
2,9
3,1
3,2

2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2

2,73

2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
3,3
3,4

2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
3,3
3,4

Gráfico 22
Gráfico 21

Gráfico 22
Gráfico 21
Enfermeiro/a

Enfermeiro/a

Centros de Saúde

Centros de Saúde
Profissão

Profissão
Médico/a

Médico/a

Hospitais

Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais

Locais de recolha: centros e hospitais


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 126

Gráfico 26 | 27

Gráfico 28 | 29
Resultados para a
variável PROFISSÃO

Mean ofMean of Para colegas


Para colegas de outras outras especialidades
deespecialidades - - Mean ofMean of Para colegas
Para colegas da mesmada mesma especialidade
especialidade - Sexo do
- Sexo do
do próprio
próprio
Sexo doSexo profissional
profissional tem importância:
tem importância: próprio próprio profissional
profissional tem importância:
tem importância: Nos critérios
Nos critérios que que
No processo
No processo terapêutico
terapêutico utiliza
utiliza para para avaliação
avaliação / diagnóstico
/ diagnóstico
2,2
2,4
2,6

2,2
2,4
2,6

2,2
2,4
2,6
2,8

2
2,2
2,4
2,6
2,8

2
cas clínicas

Gráfico 25
Gráfico 23

Gráfico 25
Gráfico 23
Enfermeiro/a

Enfermeiro/a

Enfermeiro/a

Enfermeiro/a
Profissão

Profissão

Profissão

Profissão
Médico/a

Médico/a

Médico/a

Médico/a

Mean ofMean of Para colegas


Para colegas de outras outras especialidades
deespecialidades - Sexo do
- Sexo do Mean ofMean of Para colegas
Para colegas da mesmada mesma especialidade
especialidade - -
próprio próprio profissional
profissional tem importância:
tem importância: Na relação
Na relação que que Sexo doSexo do próprio
próprio profissional
profissional tem importância:
tem importância:
estabelece
estabelece com o/acom o/a utente
utente No processo
No processo terapêutico
terapêutico
2,75

2,5
3

2,75

2,5
3
2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6

2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6

Gráfico 26
Gráfico 24

Gráfico 26
Gráfico 24
Enfermeiro/a

Enfermeiro/a

Enfermeiro/a

Enfermeiro/a
Profissão

Profissão

Profissão

Profissão
Médico/a

Médico/a

Médico/a

Médico/a
2. Gráficos dos resultados apurados na Secção B - O papel do sexo do profissional no âmbito das práti-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 127
Gráfico 30

Gráfico 31 | 32
TRABALHO
Resultados para a
Resultados para a
variável PROFISSÃO

variável CONTEXTO
especialidade - Sexo do Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional Mean of Para colegas de outras áreas profissionais -
tância: Na relação que temimportância: Na forma como conduz Sexo do próprio profissional tem importância:
a utente o/a atendimento/consulta No processo terapêutico

2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7

2,8
2,9
3
Gráfico 28
Gráfico 27
Enfermeiro/a

Centros de Saúde
Profissão
Médico/a

Hospitais

Locais de recolha: centros e hospitais


Mean
specialidades - Sexo doMean of Para o próprio - Sexo próprio
doof Para oprofissional
próprio - Sexo do próprio profissional Mean of Para colegas de outras áreas profissionais -
ância: Nos critérios que temimportância: Na formatem como
importância:
conduz Nos critérios que utiliza para Sexo do próprio profissional tem importância:
/ diagnóstico o/a atendimento/consulta avaliação / diagnóstico No processo terapêutico

2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7

1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5

2,5
2,6
2,7

Gráfico 28
Gráfico 27

Gráfico 29
Centros de Saúde
Enfermeiro/a

Centros de Saúde
Profissão

Hospitais
Médico/a

Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais

Locais de recolha: centros e hospitais


SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 128

Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional


tem importância: Nos critérios que utiliza para
avaliação / diagnóstico

1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5

Gráfico 29
Centros de Saúde
Gráfico 33 | 34

Gráfico 35 | 36
TRABALHO
Resultados para a

Hospitais
variável CONTEXTO

Locais de recolha: centros e hospitais

Mean of Para colegas de outas áreas profissionais Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional Mean of Para colegas de outras áreas profissionais -
Mean of Para
Sexo do próprio
colegasprofissional especialidade
da mesma tem - Sexo do
importância:
próprio profissional importância: Na relação que temimportância: Na forma como conduz Sexo do próprio profissional tem importância:
Nos critérios que utiliza
tempara
estabelece com avaliação
o/a utente/ diagnóstico o/a atendimento/consulta No processo terapêutico
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7

2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6

2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
2,73

Gráfico 30
Gráfico 28

32
Gráfico 27

Centros

Locais
Centros de

Locais de
Enfermeiro/a

Centros de Saúde

de Saúde
Saúde

de recolha:
Profissão

recolha: centros
Médico/a

Hospitais

Hospitais
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais

centros ee hospitais
hospitais

Mean
Mean of Para
of Para colegas
colegas dede outras
outras áreas profissionais
especialidades - Sexo do Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional
próprio do próprio profissional
Sexoprofissional tem importância:
tem importância: Nos critérios que tem importância: Nos critérios que utiliza para
utiliza processo
Nopara terapêutico
avaliação / diagnóstico avaliação / diagnóstico
1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5

2,2
2,4
2,6
2,8

2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
Gráfico 29

Gráfico 3331
Centros

Locais
Centrosde

Locais de
Centros de Saúde

deSaúde
Saúde

de recolha:
recolha: centros
Hospitais

Hospitais
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais

centros ee hospitais
hospitais
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 129
2,6

Sexo do próprio profissional tem importâ


Mean of Para colegas de outas áreas profi

Mean of Para colegas de outras áreas profi


Sexo do próprio profissional tem import
Nos critérios que utiliza para avaliação / di

Mean of Actualmente, esta perspectiva está presente


2,6 3,7

No processo terapêutico
2,5

nos currículos académicos da minha área


3,6

2,4 2,4
3,5
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 130 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 131
2,3
3,4

2,2

2,2 3,3

3,2
2,1 2

Centros de Saúde Hospitais Centros de Saúde Hospitais 3,1

Locais de recolha: centros e hospitais Locais de recolha: centros e hospitais


3

Centros de Saúde Hospitais


Gráfico 32 Gráfico 33 Locais de recolha: centros e hospitais

Gráfico 36

3. A abordagem diferencial da saúde dos homens e das mulheres no contexto da formação académica 4. O desenvolvimento da carreira
Mean of Actualmente, esta perspectiva está presente

Mean of O grau de autoridade, no contexto da profissão,


Resultados para a 3,7 Resultados para a 5,2

Mean of O sexo do/a estudante é importante na


nos currículos académicos da minha área

variável PROFISSÃO variável SEXO

é equivalente entre homens e mulheres


3,6

Gráfico 37 | 38 3 Gráfico 40

escolha da especialidade
5
3,5

3,4

4,8
2,75
3,3

3,2
4,6

3,1 2,5

4,4
3

Enfermeiro/a Médico/a Enfermeiro/a Médico/a

Profissão Profissão Masculino Feminino


Sexo

Gráfico 34 Gráfico 35 Gráfico 37


Mean of Actualmente, esta perspectiva está presente

Resultados para a 3,7 Resultados para a 4,4

Mean of Existem diferenças ao nível do prestígio que é


nos currículos académicos da minha área

variável CONTEXTO 3,6


variável PROFISSÃO
4,3
TRABALHO

atribuído às diferentes especialidades


Gráfico 41
3,5
Gráfico 39 4,2

3,4
4,1

3,3
4

3,2

3,9

3,1

3,8

Centros de Saúde
126
Hospitais 3,7

Locais de recolha: centros e hospitais Enfermeiro/a Médico/a


Profissão

Gráfico 36 Gráfico 38
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 132 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 133

APÊNDICE III
Guião das entrevistas realizadas no Estudo 2

A. Biografia
1. Trajectória académica:
• escolha de medicina/enfermagem;
• escolha de especialidade;
• o impacto do próprio sexo na escolha de especialidade;

B. Prática Clínica
1. Relevância do Sexo do Utente
• Em termos da sua prática clínica, se tivesse que caracterizar os seus utentes como o faria?
• Em termos gerais como caracterizaria os utentes homens e mulheres segundo:
• os sintomas (tipo de queixas) que referem e o modo como os apresentam (a forma da queixa);
• a adesão à terapeutica;
• o tipo de relação/comunicação estabelecida (difere consoante esteja perante um homem ou uma
mulher?);
• o padrão de utilização dos serviços de saúde.

SÓ PARA MÉDICOS:
Perante um utente homem ou mulher como valoriza:
• as queixas apresentadas;
• os sinais objectivos;
• o pedido de exames complementares (é igual independemente do sexo do utente?);
• a terapeutica (os medicamentos são os mesmos, as doses são as mesmas?).

SÓ PARA ENFERMEIROS:
Perante um utente homem ou mulher como valoriza:
• a avaliação da situação (o diagnóstico de enfermagem);
• o processo de acompanhamento/cuidar dos utentes.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 134 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 135

PARA TODOS:
• Qual é a sua percepção sobre a importância geral que esta dimensão assume entre outros médi-
APÊNDICE IV
cos/enfermeiros? Gráficos utilizados na entrevista com a distribuição do n.º
de homens e mulheres por algumas especialidades médicas/
2. Relevância do Sexo do Profissional
• Qual é a importância que atribui ao sexo do profissional de saúde no exercício da sua função (nas enfermagem
práticas com os utentes e no ambiente de trabalho com os pares)?
DISTRIBUIÇÃO
3. Interpretação de dados empíricos sobre a realidade nacional ao nível da distribuição de homens e DE ALGUMAS Cirurgia Geral Cardiologia
mulheres por algumas especialidades genderizadas: ESPECIALIDADES
POR SEXO
PARA MÉDICOS - MEDICINA (2005) 18%
82% 22%
a) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em cirurgia geral 78%
b) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em medicina geral e familiar
c) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em cardiologia
d) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em pediatria

PARA ENFERMEIROS
e) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem generalista
f) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de reabilitação
g) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de saude infantil e pediátrica
h) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de saude mental e psiquiatrica
Pediatria Medicina Geral e Familiar
PARA TODOS
• Concorda quanto à existência de especialidades mais apropriadas para homens ou mulheres?
40% 43%
C. Questões de Igualdade/Discriminação no contexto profissional e da carreira
• Como caracteriza as oportunidades entre mulheres e homens ao nível da profissão e da progressão
na carreira?
• Tem conhecimento de aspectos de discriminação positiva ou negativa no contexto profissional
(vividos pelo próprio e/ou casos de outros colegas)?
60% 57%
• Considera que os aspectos de autoridade/poder são semelhantes entre homens e mulheres no con-
texto da sua profissão?
• Considera que existem aspectos de diferenciação ao nível do prestígio atribuído a diferentes espe-
cialidades médicas/enfermagem? Consequências desses efeitos diferenciadores?
Homem Mulher
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 136 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 137

APÊNDICE V
Questões orientadoras da análise documental

Apresentação e análise de dados estatísticos e epidemiológicos em função do sexo


1. Os dados são desagregados por sexos?
DISTRIBUIÇÃO 2. Os dados são analisados por sexo?
DE ALGUMAS Enfermagem Generalista Enfermagem de Reabilitação 3. Mulheres/homens e rapazes/raparigas são total e apropriadamente representados nos dados, con-
ESPECIALIDADES siderando a especificidade da fase do ciclo de vida?
POR SEXO 4. Na apresentação e análise dos dados, os homens e as mulheres são assumidos como grupos
19%
- ENFERMAGEM homogéneos em situações em que o impacto na saúde é diferente nos dois sexos?
78% 35%
(2005)
Referência explicita às necessidades e problemas específicos de cada sexo
5. Há referências explícitas à saúde das mulheres?
6. As referências às mulheres reforçam a sua homogeneidade?
7. Há referências explícitas à saúde dos homens?
81% 8. As referências aos homens reforçam a sua homogeneidade?
65%
9. Um dos sexos é assumido como norma para os dois sexos?
10. Existe sobre-generalização das diferenças entre os sexos?

Representações sociais, estereótipos e papéis sociais associadas a cada sexo


e Familiar Enfermagem Saúde Infantil Enfermagem Saúde Mental 11. Os papeis de género ou as identidades são vistas em termos absolutos?
e Pediátrica e Psiquiátrica 12. As políticas dirigidas às necessidades das mulheres consideram-nas como indivíduos ou sobre-
tudo como mães e cuidadoras?
43% 6% 13. Os homens não são focalizados nas iniciativas relacionadas com a saúde infantil, regulação da
32%
fertilidade, prevenção das IST e educação e promoção da saúde
14. São perpetuados/reforçados estereótipos acerca das mulheres/raparigas e homens/rapazes?
15. Os diferentes tipos de família são considerados?
16. Foi considerada a influência do género na saúde das mulheres e dos homens em situações de
baixos rendimentos, deficiências, imigração, orientações sexuais?
94% 68%

Homem Mulher
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 138

Adopção da perspectiva de género na definição de políticas


17. A perspectiva de género é incorporada nas políticas nacionais e programas e são explicitados
os pontos de partida conceptuais?
18. Sexo e género são tratados como sinónimos?
19. Existe insensibilidade face ao género?
20. Procura-se a neutralidade face ao sexo e ao género?
21. É considerado o efeito do género como determinante da saúde?
22. Foi considerada a influência do género noutros determinantes da saúde?
23. É usado conhecimento existente acerca das diferenças de género?
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Brazil

 Table of contents
Revista Estudos Feministas 
Abstract Text (PT)  PDF
Artigos Temáticos: Masculinidade, Diferenças, Hegemonias • Rev. Estud. Fem. 21 (1) • Abr 2013 •
https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014

COPIAR
Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Hegemonic masculinity: rethinking the concept

Robert W. Connell

James W. Messerschmidt

Resumos
O conceito de masculinidade hegemônica tem influenciado os estudos de gênero em vários
campos acadêmicos, mas ao mesmo tempo tem atraído um sério criticismo. Os autores traçam
a origem do conceito a uma convergência de ideias no início dos anos 1980 e mapeiam as
formas através das quais o conceito foi aplicado quando os estudos sobre homens e
masculinidades se expandiram. Avaliando as principais críticas, os autores defendem o
conceito de masculinidade como fundamental, uma vez que, na maioria das pesquisas que o
opera, seu uso não é reificador nem essencialista. Entretanto, as críticas aos modelos
assentados em características de gênero e às tipologias rígidas são sólidas. O tratamento do
sujeito em pesquisas sobre masculinidades hegemônicas pode ser melhorado com a ajuda dos
recentes modelos psicológicos, mesmo que os limites à flexibilidade discursiva devam ser
reconhecidos. O conceito de masculinidade hegemônica não equivale a um modelo de
reprodução social; precisam ser reconhecidas as lutas sociais nas quais masculinidades
subordinadas influenciam formas dominantes. Por fim, os autores revisam o que foi confirmado
por formulações iniciais (a ideia de masculinidades múltiplas, o conceito de hegemonia e a
ênfase na transformação) e o que precisa ser descartado (tratamento unidimensional da
hierarquia e concepções de características de gênero). Os autores sugerem a reformulação do
conceito em quatro áreas: um modelo mais complexo da hierarquia de gênero, enfatizando a
agência das mulheres; o reconhecimento explícito da geografia das masculinidades,
enfatizando a interseccionalidade entre os níveis local, regional e global; um tratamento mais
específico da encorporação¹ em contextos de privilégio e poder; e uma maior ênfase na
dinâmica da masculinidade hegemônica, reconhecendo as contradições internas e as
possibilidades de movimento em direção à democracia de gênero.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Masculinity; Hegemony; Gender; Social Power; Agency; Embodiment; Globalization
OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 1/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Brazil
The concept of hegemonic masculinity has influenced gender studies across many academic
fields but has also attracted serious criticism. The authors trace the origin of the concept in a
convergence of ideas in the earlyRevista
1980s andEstudos Feministas
map the ways it 
was applied when research on
men and masculinities expanded. Evaluating the principal criticisms, the authors defend the
underlying concept of masculinity, which in most research use is neither reified nor essentialist.
However, the criticism of trait models of gender and rigid typologies is sound. The treatment of
the subject in research on hegemonic masculinity can be improved with the aid of recent
psychological models, although limits to discursive flexibility must be recognized. The concept of
hegemonic masculinity does not equate to a model of social reproduction; we need to recognize
social struggles in which subordinated masculinities influence dominant forms. Finally, the
authors review what has been confirmed from early formulations (the idea of multiple
masculinities, the concept of hegemony, and the emphasis on change) and what needs to be
discarded (onedimensional treatment of hierarchy and trait conceptions of gender). The authors
suggest reformulation of the concept in four areas: a more complex model of gender hierarchy,
emphasizing the agency of women; explicit recognition of the geography of masculinities,
emphasizing the interplay among local, regional, and global levels; a more specific treatment of
embodiment in contexts of privilege and power; and a stronger emphasis on the dynamics of
hegemonic masculinity, recognizing internal contradictions and the possibilities of movement
toward gender democracy.

Masculinity; Hegemony; Gender; Social Power; Agency; Embodiment; Globalization

ARTIGOS TEMÁTICOS

Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Hegemonic masculinity: rethinking the concept

Robert W. ConnellI; James W. MesserschmidtII

IUniversity of Sydney

IIUniversity of Southern Maine

RESUMO

O conceito de masculinidade hegemônica tem influenciado os estudos de gênero em vários


campos acadêmicos, mas ao mesmo tempo tem atraído um sério criticismo. Os autores traçam
a origem do conceito a uma convergência de ideias no início dos anos 1980 e mapeiam as
formas através das quais o conceito foi aplicado quando os estudos sobre homens e
masculinidades se expandiram. Avaliando as principais críticas, os autores defendem o
conceito de masculinidade como fundamental, uma vez que, na maioria das pesquisas que o
opera, seu uso não é reificador nem essencialista. Entretanto, as críticas aos modelos
assentados em características de gênero e às tipologias rígidas são sólidas. O tratamento do
sujeito em pesquisas sobre masculinidades hegemônicas pode ser melhorado com a ajuda dos
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
recentes modelos psicológicos, mesmo que os limites à flexibilidade discursiva devam ser
reconhecidos. O conceito de masculinidade hegemônica
OK não equivale a um modelo de
reprodução social; precisam ser reconhecidas as lutas sociais nas quais masculinidades

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 2/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

subordinadas influenciam formas dominantes. Por fim, os autores revisam o que foi confirmado
por formulações iniciais (a ideia de masculinidades múltiplas, o conceito de hegemonia e a
Brazil
ênfase na transformação) e o que precisa ser descartado (tratamento unidimensional da
hierarquia e concepções de características de gênero). Os autores sugerem a reformulação do
conceito em quatro áreas: um modelo mais
Revista complexo
Estudos da hierarquia de gênero, enfatizando a
Feministas 
agência das mulheres; o reconhecimento explícito da geografia das masculinidades,
enfatizando a interseccionalidade entre os níveis local, regional e global; um tratamento mais
específico da encorporação 1 em contextos de privilégio e poder; e uma maior ênfase na
dinâmica da masculinidade hegemônica, reconhecendo as contradições internas e as
possibilidades de movimento em direção à democracia de gênero.

Palavras-chave: masculinidade; hegemonia; gênero; poder social; agência; encorporação;


globalização.

ABSTRACT

The concept of hegemonic masculinity has influenced gender studies across many academic
fields but has also attracted serious criticism. The authors trace the origin of the concept in a
convergence of ideas in the early 1980s and map the ways it was applied when research on
men and masculinities expanded. Evaluating the principal criticisms, the authors defend the
underlying concept of masculinity, which in most research use is neither reified nor essentialist.
However, the criticism of trait models of gender and rigid typologies is sound. The treatment of
the subject in research on hegemonic masculinity can be improved with the aid of recent
psychological models, although limits to discursive flexibility must be recognized. The concept of
hegemonic masculinity does not equate to a model of social reproduction; we need to recognize
social struggles in which subordinated masculinities influence dominant forms. Finally, the
authors review what has been confirmed from early formulations (the idea of multiple
masculinities, the concept of hegemony, and the emphasis on change) and what needs to be
discarded (onedimensional treatment of hierarchy and trait conceptions of gender). The authors
suggest reformulation of the concept in four areas: a more complex model of gender hierarchy,
emphasizing the agency of women; explicit recognition of the geography of masculinities,
emphasizing the interplay among local, regional, and global levels; a more specific treatment of
embodiment in contexts of privilege and power; and a stronger emphasis on the dynamics of
hegemonic masculinity, recognizing internal contradictions and the possibilities of movement
toward gender democracy.

Keywords: Masculinity; Hegemony; Gender; Social Power; Agency; Embodiment;


Globalization.

O conceito de masculinidade hegemônica formulado há duas décadas influenciou


consideravelmente o pensamento atual sobre homens, gênero e hierarquia social. 2 Esse
conceito possibilitou uma ligação entre o campo em crescimento dos estudos sobre homens
(também conhecidos como estudos de masculinidade e estudos críticos dos homens),
ansiedades populares sobre homens e meninos, posição feminista sobre o patriarcado e
modelos sociais de gênero. Encontrou uso em campos aplicados que variam desde a educação
ao trabalho antiviolência até a saúde e o aconselhamento.

Pesquisas em bancos de dados mostram mais de 200 artigos que usam o termo exato
"masculinidade hegemônica" em seus títulos ou resumos. Artigos que usam uma variante ou
que se referem à "masculinidade hegemônica" no texto chegam a centenas. Um interesse
contínuo é visto em conferências. No início de maio de 2005, a conferência "Masculinidade
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
hegemônica e política internacional" ocorreu na Universidade de Manchester, Inglaterra; em
2004, uma conferência interdisciplinar em Stuttgart
OK focou no tópico "Hegemoniale
Männlichkeiten". 3

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 3/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

O conceito também atraiu um sério criticismo de várias direções: sociológico, psicológico, pós-
estruturalista e materialista. 4 Fora do meio acadêmico foi atacado como - para citar um post
Brazil
com grande repercussão na internet - "uma invenção dos psicólogos New Age" determinados a
mostrar que os homens são muito machos.
Revista Estudos Feministas
Esse é um conceito contestado. Ao mesmo tempo, os assuntos de que trata continuam
presentes nas lutas contemporâneas sobre poder e liderança política, violência pública e
privada, transformações na família e na sexualidade. Uma reavaliação compreensiva do
conceito de masculinidade hegemônica parece valer a pena. Caso prove ser útil, o conceito
deve ser reformulado em termos contemporâneos. Almejamos ambas as tarefas neste artigo.

Origem, formulação e aplicação

Origem

O conceito de masculinidade hegemônica foi primeiro proposto em relatórios de um estudo de


campo sobre desigualdade social nas escolas australianas; 5 em uma discussão conceitual
relacionada à construção das masculinidades e à experiência dos corpos de homens; 6 e em
um debate sobre o papel dos homens na política sindical australiana. 7 O projeto nas escolas
forneceu a evidência empírica de múltiplas hierarquias - de gênero e ao mesmo tempo de
classe - entrelaçadas com projetos ativos de construção do gênero. 8

Os estudos pioneiros foram sistematizados no artigo "Towards a New Sociology of Masculinity",


9 que criticou extensivamente a literatura sobre o "papel sexual masculino" e propôs um

modelo de masculinidades em múltiplas relações de poder. Por sua vez, o modelo foi
sistematicamente integrado a uma teoria de gênero sociológica. As seis páginas resultantes em
Gender and Power 10 sobre "masculinidade hegemônica e feminilidade enfatizada" se
tornaram a fonte mais citada para o conceito de masculinidade hegemônica.

O conceito articulado por grupos de pesquisa australianos representou a síntese de ideias e


evidência de fontes aparentemente díspares. Mas a convergência de ideias não foi acidental.
Assuntos intimamente ligados foram sendo tratados por pesquisadores e ativistas também em
outros países; o tempo era, em certo sentido, maduro para uma síntese dessa natureza.

As fontes mais básicas foram as teorias feministas do patriarcado e os debates sobre o papel
dos homens na transformação do patriarcado. 11 Alguns homens da nova esquerda tentaram
se organizar em apoio ao feminismo, e essa tentativa chamou atenção para as diferenças de
classe na expressão da masculinidade. 12 Além disso, as mulheres de cortais como Maxine
Baca Zinn, 13 Angela Davis 14 e Bell Hooks 15 - criticaram os preconceitos raciais que
ocorrem quando o poder é unicamente conceitualizado em termos de diferenças de sexo,
preparando, desse modo, o terreno para o questionamento de quaisquer reivindicações
universalizantes sobre a categoria de homem.

O termo gramsciniano de "hegemonia" foi corrente, no período, em tentativas de compreender


a estabilização das relações de classe. 16 No contexto da teoria dos sistemas duais, 17 a
ideia foi facilmente transferida para o problema paralelo das relações de gênero. Essa
transferência teve significativo risco de mal entendimento. Os escritos de Gramsci focam nas
dinâmicas da mudança estrutural envolvendo a mobilização e a desmobilização de classes
inteiras. Sem um foco claro nesse tópico da mudança histórica, a ideia de hegemonia teria sido
reduzida a um modelo simples de controle cultural. E, em boa parte do debate sobre gênero, a
mudança histórica em larga escala não está em foco. Aqui vemos uma das fontes das últimas
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
dificuldades com o conceito de masculinidade hegemônica.
OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 4/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Mesmo antes do Movimento de Liberação das Mulheres, a literatura sobre o "papel sexual do
homem" na psicologia social e na sociologia reconheceu a natureza social da masculinidade e
Brazil
as possibilidades de transformação da conduta dos homens. 18 Ao longo dos anos 1970
houve uma explosão de escritos sobre o "papel masculino", nitidamente criticando as normas
sobre papéis como origem do comportamento opressivo
Revista Estudos dos homens. 19 A crítica à teoria
Feministas 
dos papéis forneceu a base conceitual principal para o primeiro movimento de homens
antissexistas. A debilidade da teoria dos papéis sexuais foi, entretanto, cada vez mais
reconhecida. 20 Esses autores incluíram a desfocagem característica do comportamento e da
norma, o efeito homogeneizador do conceito de papel e suas dificuldades em acessar o poder?
Considerar a questão do poder? Dar conta da questão do poder? Incorporar a concepção de
poder?

Por outro lado, o poder e a diferença foram conceitos centrais no movimento de liberação gay,
o qual desenvolveu uma análise sofisticada da opressão do homem, assim como da opressão
pelo homem. 21 Alguns teóricos perceberam a liberação gay como ligada a um ataque aos
estereótipos de gênero. 22 A ideia de uma hierarquia das masculinidades cresceu
diretamente a partir da experiência de homens homossexuais com a violência e com o
preconceito dos homens heterossexuais. O conceito de homofobia originou-se nos anos 1970 e
já estava sendo atribuído ao papel masculino convencional. 23 Teóricos desenvolveram
contribuições cada vez mais sofisticadas sobre as relações ambivalentes entre os homens gays
e o patriarcado e com a masculinidade convencional. 24

Uma fonte igualmente importante foi a pesquisa social empírica. Um corpus em crescimento de
estudos de campo estava documentando hierarquias locais de gênero e culturas locais de
masculinidades nas escolas, 25 em locais de trabalho dominados por homens 26 e em
comunidades populares. 27 Esses estudos acrescentaram o realismo etnográfico de que a
literatura de papéis sexuais carecia, confirmando a pluralidade de masculinidades e as
complexidades da construção do gênero para os homens, e trazendo evidências à luta ativa
pela dominância, que é implícita ao conceito gramsciniano de hegemonia.

Por fim, o conceito foi influenciado pela psicanálise. O próprio Freud produziu a primeira análise
de biografias de homens e, na história do caso do "Homem dos Lobos", mostrou como a
personalidade adulta era um sistema sob tensão, com contracorrentes reprimidas, mas não
obliteradas. 28 O psicanalista Stoller 29 popularizou o conceito de "identidade de gênero" e
mapeou suas variações no desenvolvimento de meninos, sendo as mais famosas aquelas que
levam ao transexualismo. Outros autores influenciados pela psicanálise dedicaram-se aos
temas do poder dos homens, do espectro de possibilidades do desenvolvimento do gênero e da
tensão e contradição dentre masculinidades convencionais. 30

Formulação

O que emergiu dessa matriz em meados dos anos 1980 foi análogo, em termos de gênero, às
pesquisas na sociologia sobre estruturas de poder, dando centralidade ao grupo dominante. A
masculinidade hegemônica foi entendida como um padrão de práticas (i.e., coisas feitas, não
apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que possibilitou que a
dominação dos homens sobre as mulheres continuasse.

A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades, especialmente das


masculinidades subordinadas. A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num
sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é
Estenormativa.
site usa cookies para agarantir
Ela incorpora quehonrada
forma mais você obtenha uma
de ser um melhor
homem, ela experiência deos
exige que todos navegação.
outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação
global das mulheres aos homens. OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 5/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Homens que receberam os benefícios do patriarcado sem adotar uma versão forte da
dominação masculina podem ser vistos como aqueles que adotaram uma cumplicidade
Brazil
masculina. Foi em relação a esse grupo, e com a complacência dentre as mulheres
heterossexuais, que o conceito de hegemonia foi mais eficaz. A hegemonia não significava
violência, apesar de poder ser sustentada pela força;
Revista Estudos significava ascendência alcançada
Feministas 
através da cultura, das instituições e da persuasão.

Esses conceitos eram abstratos em vez de descritivos, definidos em termos da lógica do


sistema patriarcal de gênero. Assumiam que as relações de gênero eram históricas e, dessa
forma, as hierarquias de gênero eram sujeitas a mudanças. Nesse sentido, as masculinidades
hegemônicas passaram a existir em circunstâncias específicas e eram abertas à mudança
histórica. Mais precisamente, poderia existir uma luta por hegemonia e formas anteriores de
masculinidades poderiam ser substituídas por novas. Esse foi um elemento de otimismo numa
teoria de outra forma bastante sombria. Talvez fosse possível que uma maneira de ser homem
mais humana, menos opressiva, pudesse se tornar hegemônica como parte de um processo
que levaria à abolição das hierarquias de gênero.

Aplicação

O conceito de masculinidade hegemônica, formulado nesses termos, encontrou uso imediato.


No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, pesquisas sobre homens e masculinidade
estavam se consolidando como um campo acadêmico, apoiado por uma série de conferências,
pela publicação de livros 31 e revistas acadêmicas, e rapidamente expandiu a agenda de
pesquisas nas ciências sociais e humanidades.

O conceito de masculinidade hegemônica foi usado em estudos na educação para


compreender as dinâmicas da vida em sala de aula, incluindo os padrões de resistência e
bullying entre meninos. Foi usado para explorar as relações com o currículo e as dificuldades
da pedagogia neutra de gênero. 32 Foi usado para entender as estratégias e as identidades
de professores em grupos, tais como os de instrutores de educação física. 33

O conceito também influenciou a criminologia. Todos os dados refletiam que os homens e os


meninos perpetravam mais os crimes convencionais - e os mais sérios desses crimes - que as
mulheres e as meninas. Para além, os homens mantinham um monopólio virtual sobre
determinadas formas de crime, como crimes em sindicatos e crimes de colarinho-branco. O
conceito de masculinidade hegemônica contribuiu na teorização da relação entre
masculinidades e uma série de crimes, 34 e foi também usado em estudos sobre crimes
específicos de homens e meninos, tais como estupro na Suíça, assassinato na Austrália,
hooliganismo no futebol americano e crimes do colarinho-branco na Inglaterra, além da
agressão violenta nos Estados Unidos. 35

O conceito também foi usado nas pesquisas sobre as representações do homem na mídia, por
exemplo, nas interconexões entre o esporte e os imaginários de guerra. 36 Como o conceito
de hegemonia ajudou a dar sentido tanto à diversidade como à seletividade das imagens na
mídia de massa, os estudiosos da mídia começaram a mapear as relações entre diferentes
representações de masculinidades. 37 Esportes comerciais são um foco das representações
midiáticas da masculinidade, e o campo em desenvolvimento da sociologia do esporte também
encontrou um uso significativo do conceito de masculinidade hegemônica. 38 Foi implantado
na compreensão da popularidade dos esportes de contato e confronto - que funcionam como
uma renovação contínua do símbolo da masculinidade - e na compreensão da violência e
39
Estehomofobia frequentemente
site usa cookies presentes
para garantir queemvocê
meios esportivos.
obtenha uma melhor experiência de navegação.

OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 6/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Os determinantes sociais da saúde dos homens foram levantados anteriormente, mas o


conceito de papel sexual estava muito difuso para ser considerado útil. Os conceitos de
Brazil
múltiplas masculinidades e de masculinidade hegemônica foram progressivamente mais
usados para compreender as práticas de saúde dos homens, tais como "jogar ferido" 40 e
comportamentos que envolvem risco. 41 Os conceitos de masculinidade hegemônica e
Revista Estudos Feministas
subordinada ajudaram a compreensão da exposição dos homens a situações de risco, como
também acerca de suas dificuldades para lidar com as próprias incapacidades e ferimentos.
42

O conceito de masculinidade hegemônica também se mostrou significativo nos estudos


organizacionais, em que o caráter generificado das burocracias e dos locais de trabalho foi
cada vez mais reconhecido. Estudos etnográficos e com entrevistas traçaram a
institucionalização das masculinidades hegemônicas em organizações específicas 43 e seu
papel nos processos organizacionais de tomada de decisões. 44 Um foco particular dessas
pesquisas foi a instituição militar, em que padrões específicos de masculinidade hegemônica
costumam ser dominantes, mas têm se tornado cada vez mais problemáticos. 45

Discussões sobre prática profissional envolvendo homens e meninos também utilizaram o


conceito. Tais práticas incluem a psicoterapia com homens, 46 programas de prevenção à
violência para a juventude 47 e programas de educação emocional para meninos. 48

Esses foram os campos primários em que o conceito de masculinidade hegemônica foi aplicado
na década posterior à sua formulação. Mas também houve uma vasta gama de aplicação, em
discussões de arte, 49 por exemplo, em disciplinas acadêmicas como Geografia 50 e
Direito, 51 e em discussões mais gerais sobre as políticas de gênero dos homens e a relação
com o feminismo. 52 Podemos razoavelmente concluir que a análise das múltiplas
masculinidades e o conceito de masculinidade hegemônica serviram como quadro para muitos
dos esforços das pesquisas em desenvolvimento sobre homens e masculinidade, substituindo a
teoria do papel sexual e os modelos categoriais da psiquiatria.

Eventualmente os esforços em crescimento de pesquisas tendiam a expandir o conceito. Essa


imagem pode ser vista em quatro formas principais: pela documentação sobre as
consequências e os custos da hegemonia, pelo desvelamento dos mecanismos da hegemonia,
pela demonstração da vasta diversidade de masculinidades e pelo delineamento das
transformações nas masculinidades hegemônicas.

No que tange aos custos e às consequências, pesquisas em criminologia mostraram como


padrões particulares de agressão eram ligados com a masculinidade hegemônica, não como
um efeito mecânico do qual ela fosse a causa, mas através da busca pela hegemonia. 53
Além disso, a pesquisa pioneira de Messner 54 mostrou que a colocação em ato da
masculinidade hegemônica nos esportes profissionais, ao mesmo tempo que reproduz
hierarquias exageradas, também vem com custos consideráveis para os vitoriosos, em termos
de danos emocionais e físicos.

Pesquisas têm sido frutíferas na revelação dos mecanismos de hegemonia. Algumas são
altamente visíveis, como aquelas sobre a "ostentação" da masculinidade nos programas
televisivos de esportes, 55 assim como aquelas sobre mecanismos sociais que Roberts 56
chama de "censura" direcionada a grupos subordinados - variando desde xingamentos
informais por crianças à criminalização da conduta homossexual. Ainda outros mecanismos de
hegemonia operam por invisibilidade, removendo a forma dominante da masculinidade da
Estepossibilidade
site usa cookies para garantir
de censura. que você
57 Consalvo, 58 obtenha umaa mídia
examinando melhor experiência
sobre o massacre denanavegação.
Escola Columbine, nota como a questão da masculinidade foi retirada do escrutínio, deixando a
OK
mídia sem outra forma de representar os atiradores, senão como "monstros".

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 7/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Pesquisas internacionais confirmaram fortemente o insight inicial de que ordens de gênero


constroem masculinidades múltiplas. Valdés e Olavarría 59 mostram que, mesmo em países
Brazil
culturalmente homogêneos como o Chile, não há uma masculinidade unitária, uma vez que os
padrões variam por classe e geração. Em outro famoso país homogêneo, o Japão, Ishii-Kuntz
60 traça a "emergência de masculinidades diversas" na história social recente, com
Revista Estudos Feministas
mudanças nas práticas de cuidado das crianças como desenvolvimento-chave. Diversidade de
masculinidades também é encontrada em instituições particulares como a instituição militar.
61

Gutmann, 62 na mais bela observação etnográfica moderna da masculinidade, estudou um


caso no qual existe uma identidade masculina pública bem definida - o "machismo" mexicano.
Ele mostra como o imaginário do machismo se desenvolveu historicamente e foi entrelaçado
com o desenvolvimento do nacionalismo mexicano, mascarando a enorme complexidade nas
vidas dos homens mexicanos. O autor traz à tona quatro padrões de masculinidade nos
ambientes da classe trabalhadora urbana que ele estuda, insistindo que mesmo esses quatro
padrões são transversalizados por outras divisões sociais e são constantemente renegociados
na vida cotidiana.

Finalmente, um corpo considerável de pesquisas mostra que as masculinidades não são


simplesmente diferentes entre si mas também sujeitas a mudanças. Desafios à hegemonia são
comuns, e o são também os ajustes em face desses desafios. Morrell 63 mostra evidências
sobre as transformações de gênero na África Meridional associadas com o fim do Apartheid,
um sistema de patriarcados segregados e concorrentes. Ferguson 64 analisa o declínio dos
ideais de longa duração de masculinidade na Irlanda - o padre celibatário e o homem de família
que trabalha duro - e sua substituição por modelos mais modernizados e orientados pelo
mercado. Dasgupta 65 pesquisa as tensões no modelo de masculinidade do "assalariado"
japonês, especialmente depois da "bolha econômica" dos anos 1980, quando apareceu a figura
cultural do "salaryman escaping". Taga 66 documenta respostas diversas à mudança entre
homens jovens da classe média japonesa, incluindo novas opções de parceria doméstica com
as mulheres. Meuser 67 estuda mudanças geracionais na Alemanha, parcialmente dirigidas
pelas respostas dos homens às transformações ocorridas com as mulheres. Muitos (apesar de
não serem todos) homens jovens, que agora se deparam com a rejeição das mulheres às
relações sociais patriarcais, estão elaborando um "igualitarismo pragmático" próprio. Morris e
Evans, 68 estudando imagens da masculinidade e da feminilidade rurais na Grã-Bretanha,
encontram um ritmo mais lento na mudança, mas uma sutileza e fragmentação crescentes na
representação da masculinidade hegemônica.

Dessa forma, a partir de meados dos anos 1980 até o início dos anos 2000, o conceito de
masculinidade hegemônica passou de um modelo conceitual com uma base empírica bastante
restrita para um quadro vasto muito usado nas pesquisas e nos debates sobre homens e
masculinidades. O conceito foi aplicado em contextos culturais diversos e a uma gama
considerável de questões. Não é surpreendente, então, que o conceito tenha atraído criticismo,
aspecto no qual focaremos a partir de agora.

Críticas

Cinco principais críticas têm sido avançadas desde que o debate sobre o conceito começou no
início dos anos 1990. Nesta seção avaliaremos cada crítica esperando descobrir o que vale a
pena reter da concepção original de masculinidade hegemônica e o que necessita ser
reformulado.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
O conceito subjacente de masculinidade
OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 8/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Que o conceito subjacente de masculinidade é falho já foi argumentado a partir de dois


diferentes pontos de vista, realista e pós-estruturalista. Para Collinson e Hearn 69 e Hearn,
Brazil
70 o conceito de masculinidade é turvo, é incerto no seu significado e tende a desenfatizar

questões de poder e dominação. É fundamentalmente desnecessário para a tarefa de


compreender e contestar o poderRevista
dos homens.
EstudosO conceito
Feministasde masculinidades múltiplas tende a

produzir uma tipologia estática.

Para Petersen, 71 Collier 72 e MacInnes 73 , o conceito de masculinidade é falho porque


ele essencializa o caráter dos homens ou impõe uma unidade falsa a uma realidade fluida e
contraditória. Algumas versões desse argumento criticam as pesquisas sobre masculinidades
porque essas não adotaram um kit de ferramentas pós-estruturalistas específico - que seria, por
exemplo, a ênfase na construção discursiva das identidades. 74 O conceito de masculinidade
é criticado por ter sido enquadrado no seio de uma concepção heteronormativa de gênero que
essencializa a diferença macho - fêmea e ignora a diferença e a exclusão dentro das categorias
de gênero. Ao conceito de masculinidade é atribuído o fato de esse permanecer logicamente
numa dicotomização do sexo (biológico) versus gênero (cultural), dessa forma marginalizando
ou naturalizando o corpo.

Nenhuma mente responsável pode negar que, em grande parte da literatura preocupada com a
masculinidade, há uma grande quantidade de confusão conceitual, assim como uma grande
quantidade de essencialização. Isso é certamente comum em abordagens da masculinidade na
psicologia pop, na mitopoética do movimento de homens e nas interpretações jornalísticas das
pesquisas sobre a diferença biológico-sexual. É uma outra questão, entretanto, reivindicar que
o conceito de masculinidade deva ser confundido com essencialismo ou até mesmo que seja
tipicamente esse o uso que os pesquisadores fazem do conceito.

Diríamos que as pesquisas sobre masculinidades floresceram em ciências sociais e nas


humanidades durante os últimos 20 anos, precisamente porque o conceito subjacente
empregado não é reificante ou essencialista. A noção de que o conceito de masculinidade
essencializa ou homogeneiza é um tanto quanto difícil de reconciliar com a tremenda
multiplicidade das construções sociais que etnógrafos e historiadores têm documentado com o
auxílio desse conceito. 75 O que distancia o conceito do essencialismo é o fato de que
pesquisadores exploraram as masculinidades postas em ato por pessoas com corpos
femininos. 76 A masculinidade não é uma entidade fixa encarnada no corpo ou nos traços da
personalidade dos indivíduos. As masculinidades são configurações de práticas que são
realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de
gênero em um cenário social particular.

A ideia de que o reconhecimento de múltiplas masculinidades necessariamente se torna uma


tipologia estática também não é confirmada pelo desenvolvimento de pesquisas. Um exemplo
paradigmático é a etnografia mexicana de Gutmann, 77 já mencionada. Gutmann é capaz de
desvendar diferentes categorias de masculinidade - por exemplo, o macho e o mandilón - , ao
mesmo tempo que reconhece, mostrando em detalhes, que essas não são identidades
monádicas, mas sempre relacionais e constantemente transversalizadas por outras divisões e
projetos. As observações de Warren 78 numa escola primária inglesa nos fornecem um outro
exemplo. Diferentes construções de masculinidade são encontradas, as quais produzem efeitos
na vida da sala de aula, mesmo que muitos meninos não se encaixem exatamente nas
categorias principais; de fato, os meninos demonstram relações complexas de aderência e
rejeição a essas categorias.

EsteEmbora
site usaseja
cookies para familiar
atualmente garantir que você
a crítica obtenha
de que uma
o conceito demelhor
gênero experiência
traz embutida de
a navegação.
heterossexualidade como norma, 79 essa é uma crítica contestada. 80 Enquanto identifica
OK
corretamente um problema nos modelos categoriais de gênero, não é um criticismo válido dos

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 9/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

modelos de gênero relacionais 81 ou das abordagens históricas em que a construção da


categoria de gênero é objeto de investigação. No desenvolvimento do conceito de
Brazil
masculinidade hegemônica, divisões entre os homens - especialmente a exclusão e a
subordinação dos homens homossexuais - foram geralmente questões centrais. 82 O
policiamento da heterossexualidade tem sido
Revista um tema
Estudos recorrente nas discussões sobre
Feministas 
masculinidade hegemônica desde então.

A ideia de que o conceito de masculinidade marginaliza ou naturaliza o corpo (porque se supõe


que ele se assenta numa dicotomia sexo - gênero) é talvez a mais alarmante das reivindicações
dessa crítica. Alarmante porque o atravessamento entre corpos e processos sociais foi um dos
temas centrais da pesquisa sobre masculinidades, desde seu início. Um dos primeiros e mais
influentes programas de pesquisa no novo paradigma foi a abordagem de Messner 83 sobre
a masculinidade de atletas profissionais, na qual o uso de "corpos como armas" e a
permanência de danos nos corpos dos homens foram examinados. A construção da
masculinidade em um contexto de incapacidade, 84 os corpos laborais de homens da classe
trabalhadora, 85 a saúde e a doença dos homens 86 e a violência interpessoal de meninos
87 estão dentre os temas de pesquisas que demonstram como os corpos são afetados por

processos sociais. Discussões teóricas exploraram a relevância de uma "nova sociologia do


corpo" para a construção da masculinidade. 88

Críticas ao conceito de masculinidade fazem mais sentido quando apontam uma tendência,
tanto nas pesquisas como na literatura popular, de dicotomizar as diferenças entre homens e
mulheres. Como Brod 89 precisamente observa, há uma tendência no campo de estudos
sobre homens de presumir "esferas separadas", de proceder como se as mulheres não fossem
uma parte relevante da análise e, dessa forma, estudar as masculinidades através do olhar
exclusivo sobre os homens e sobre as relações entre homens. Como Brod também argumenta,
isso não é inevitável. A cura reside em tomar uma abordagem consistentemente relacional do
gênero, não em abandonar os conceitos de gênero ou masculinidade.

Ambiguidade e sobreposição

As primeiras críticas do conceito levantaram a questão de quem concretamente representa a


masculinidade hegemônica. É familiar que muitos homens que detêm grande poder social não
encorporam o ideal de masculinidade. Por outro lado, Donaldson 90 declara que não parecia
haver muita substância masculina naqueles homens identificados por pesquisadores como
modelos hegemônicos. Ele discute o caso dos surfistas esportivos australianos "iron man"
descritos por Connell, 91 um exemplo popular da masculinidade hegemônica. Mas o status
hegemônico regional dos jovens homens na realidade alerta para que eles façam as coisas que
seu grupo de pares local define como masculinas - enlouquecer, se mostrar, dirigir bêbado,
entrar em uma briga, defender seu próprio prestígio.

Martin 92 critica o conceito por levar a aplicações inconsistentes, algumas vezes referindo a
um tipo fixo de masculinidade e em outras ocasiões referindo ao tipo qualquer que seja
dominante em um tempo e em um lugar particulares. Similarmente, Wetherell e Edley 93
afirmam que o conceito falha na especificação de como a conformidade à masculinidade
hegemônica realmente se objetiva na prática. E Whitehead 94 sugere que há uma confusão
sobre quem é realmente um homem hegemonicamente masculino - "É John Wayne ou
Leonardo DiCaprio; Mike Tyson ou Pelé? Ou talvez, em diferentes momentos, todos eles?" - e
também sobre quem na realidade pode pôr em ato práticas hegemônicas.

EstePensamos
site usa cookies para garantir
que os críticos que
apontaram devocê
formaobtenha uma
correta as melhor experiência
ambiguidades de navegação.
do uso do conceito. É
desejável eliminar qualquer uso da masculinidade hegemônica como fixa, como um modelo
OK
trans-histórico. Esse uso viola a historicidade do gênero e ignora a evidência massiva das

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 10/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

transformações nas definições sociais da masculinidade.

Brazil
Mas, em outros aspectos, a ambiguidade em processos de gênero talvez seja importante de ser
reconhecida como um mecanismo de hegemonia. Considere-se como uma definição idealizada
de masculinidade é constituída em um processo social. Num nível societal mais amplo (ao qual
Revista Estudos Feministas
chamaremos de "regional" na continuidade), há uma circulação de modelos de conduta
masculina admirável, que são exaltados pelas igrejas, narrados pela mídia de massa ou
celebrados pelo Estado. Tais modelos se referem (mas também em vários sentidos as
distorcem) às realidades cotidianas da prática social. Um exemplo clássico é a celebração, pelo
regime soviético, do trabalhador industrial nomeado Stakhanovite, em homenagem ao
minerador de carvão Aleksandr Stakhanov, que, em 1935, bateu o recorde mundial ao escavar
102 toneladas de carvão em um único dia, provocando uma corrida para bater seu recorde.
Parte da distorção aqui foi de que os famosos "trabalhadores de choque" alcançaram seus
números com grande ajuda, não reconhecida, de seus colegas de trabalho.

Desse modo, as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não
correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos
expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem
modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero.
Ademais, eles se articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como
formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem isso, contribuem
para a hegemonia na ordem de gênero societal. Não é surpreendente que homens que
funcionam como exemplos no nível regional, como os "iron man" discutidos por Donaldson,
95 exibam contradições.

No nível local, padrões de hegemonia da masculinidade estão embutidos em ambientes sociais


específicos, tais como as organizações formais. Existem, por exemplo, padrões bem definidos
de masculinidade gerencial nas corporações britânicas estudadas por Roper 96 e Wajcman.
97 Modelos hegemônicos de masculinidade socialmente legitimados estão também em jogo

nas famílias. Por exemplo, as estratégias de gênero dos homens definem negociações em
torno do trabalho doméstico e da "dupla jornada" nas famílias norte-americanas estudadas por
Hochschild. 98 Padrões hegemônicos de masculinidade são tanto envolvidos como
contestados, à medida que as crianças crescem. O gênero é produzido nas escolas e nas
vizinhanças através de estrutura de grupos de pares, controle do espaço escolar, padrões de
encontros afetivossexuais, discursos homofóbicos e assédio. 99 Em nenhum desses casos
esperaríamos que a masculinidade hegemônica se sobressaísse como um padrão nitidamente
definido separado de todos os outros. Um grau de sobreposição e indefinição entre as
masculinidades hegemônica e cúmplice é extremamente provável se a hegemonia é efetiva.

A sobreposição entre masculinidades também pode ser vista em termos dos agentes sociais
construindo masculinidades. Cavender 100 mostra como os modelos de masculinidade
hegemônica foram construídos diferentemente em filmes de longa-metragem nos anos 1940,
em comparação com os dos anos 1980. Não é apenas uma questão de personagens descritos
em scripts. A prática no nível local - quer dizer, a interação face a face ao filmar um filme como
ator - em última análise constrói a fantasia dos modelos de masculinidade hegemônica (nesse
caso de "detetives") no nível societal mais amplo ou no nível regional. (Exploraremos essa
questão das relações entre níveis na seção "Revisão e reformulação" deste artigo.)

O problema da reificação

EsteQue
site ousa
conceito de masculinidade
cookies para garantirhegemônica reduza, na
que você obtenha prática,
uma a uma
melhor reificação do
experiência depoder ou
navegação.
a uma intoxicação de seu uso também já foi argumentado em diferentes pontos de vista. Holter,
101 na crítica conceitualmente mais sofisticada
OK de todas, argumenta que o conceito constrói
o poder masculino a partir da experiência direta das mulheres em vez da base estrutural da
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 11/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

subordinação das mulheres. Holter acredita que nós devemos distinguir entre o "patriarcado",
uma estrutura de longo termo da subordinação das mulheres, e o "gênero", um sistema
Brazil
específico de trocas que surgiu no contexto do capitalismo moderno. É um equívoco tratar a
hierarquia das masculinidades construídas no seio das relações de gênero como um contínuo
lógico com a subordinação patriarcal das mulheres. Holter 102 significativamente aponta as
Revista Estudos Feministas
evidências de um survey norueguês que mostram que as identidades de gênero dos homens
não colocam em ato tão prontamente as práticas relacionadas com a igualdade, como o fazem
com aquelas relacionadas à violência.

Holter 103 certamente está certo ao dizer que é um equívoco deduzir relações entre as
masculinidades a partir do exercício direto do poder pessoal pelos homens sobre as mulheres.
Também devemos levar em questão a institucionalização das desigualdades de gênero, o papel
das construções culturais e a ação combinada das dinâmicas de gênero com a raça, a classe e
a região.

Na verdade, são as pesquisas sobre essas questões que mostram que o conceito de
masculinidade hegemônica não está preso à reificação. No seio dos frutíferos estudos sobre
masculinidades institucionais, encontramos aqueles que revelam variações um tanto quanto
sutis, por exemplo, entre diferentes ramos de uma força militar, a U.S. Navy. 104 Há estudos
sobre masculinidades hegemônicas locais específicas construídas em espaços como um pub
neozelandês, em que vemos o entrelaçamento da masculinidade com a identidade rural. 105
Outras pesquisas, especialmente aquelas feitas em salas de aula, 106 mostram a produção
refinada e a negociação das masculinidades (e feminilidades) como configurações de prática.

Collier 107 critica o conceito de masculinidade hegemônica através de seus usos típicos na
contabilização da violência e do crime. Na "virada da masculinidade" na criminologia, Collier
sugere que a masculinidade hegemônica se tornou associada somente a características
negativas que retratam os homens como não emocionais, independentes, não cuidadores,
agressivos e não passionais - as quais são vistas como causas do comportamento criminal.
Martin, 108 similarmente, observa um movimento em direção a uma visão da masculinidade
hegemônica não apenas como um tipo, mas como um tipo negativo, por exemplo, ao "dizer que
defender o porte de armas é uma defesa da masculinidade hegemônica".

Essa crítica tem força. Ela se assenta na análise precisa de McMahon 109 sobre o
psicologismo em muitas discussões sobre homens e masculinidade. O comportamento dos
homens é reificado em um conceito de masculinidade que, em um argumento circular, se torna
a explanação (e a desculpa) para o comportamento. Isso pode ser visto em várias discussões
sobre a saúde dos homens e os problemas na educação dos meninos - de fato, assim ocorre
com qualquer dos problemas contemporâneos definidos sob a consígnia "crise da
masculinidade". Na psicologia pop, a invenção de novos tipos de personalidade é endêmica (o
macho alfa, o rapaz new age sensível, o homem cabeludo, o novo homem, 110 o "homem
rato" etc.). Nesse ambiente, a masculinidade hegemônica pode se tornar o sinônimo (com um
tom científico) de um tipo de homem rígido, dominador, sexista e "macho" (segundo o uso
anglo-saxão, por exemplo). 111

Devido ao fato de o conceito de masculinidade hegemônica ser baseado na prática que permite
a continuidade da dominação coletiva dos homens sobre as mulheres, não é surpreendente
que em alguns contextos a masculinidade hegemônica realmente se refira ao engajamento dos
homens a práticas tóxicas - incluindo a violência física - que estabilizam a dominação de gênero
em um contexto particular. Entretanto, a violência e outras práticas nocivas não são sempre as
Estecaracterísticas
site usa cookies para garantir
definidoras, uma vezque
quevocê obtenhatem
a hegemonia uma melhor experiência
numerosas configurações.de navegação.
Para tal,

OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 12/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

como Wetherell e Edley 112 ironicamente observam, uma das mais efetivas formas de "ser
um homem" em certos contextos locais pode ser a demonstração da distância da
Brazil
masculinidade hegemônica regional.

Collier 113 vê como um defeito crucial no conceito de masculinidade hegemônica o fato de


Revista Estudos Feministas
que esse exclui o comportamento "positivo" por parte dos homens - quer dizer, o
comportamento que talvez sirva aos interesses e aos desejos das mulheres. Esse não é um
problema uma vez que nós avancemos a marca rígida da teoria da personalidade. Muitas
abordagens sobre a masculinidade hegemônica incluem ações "positivas", como trazer para a
casa um ordenado, sustentar uma relação sexual e ser um pai. De fato, é difícil enxergar como
o conceito de hegemonia seria relevante se apenas as características do grupo dominante
fossem a violência, a agressão e o egocentrismo. Tais características talvez signifiquem
dominação, mas raramente constituiriam hegemonia - uma ideia que embute certas noções de
consenso e participação dos grupos subalternos.

Collier 114 está certo em comentar que o que está realmente sendo discutido em muitas
abordagens da masculinidade hegemônica e do crime (e nós acrescentaremos a saúde e a
educação) é "uma gama de ideologias populares do que constitui um ideal ou verdadeiras
características do que é 'ser um homem'". O que falta em Collier, entretanto, é que pesquisas
consistentemente sofisticadas prossigam na exploração da relação dessas idealizações com as
vidas diárias de meninos e homens - incluindo os desajustes, as tensões e as resistências.

As relações práticas de homens e meninos com as imagens coletivas ou os modelos de


masculinidades, em vez de uma simples reflexão sobre elas, são centrais para a compreensão
das consequências generificadas nos processos de violência, saúde e educação. Isso tem sido
evidente desde que Messerschmidt 115 formulou a ideia de que diferentes crimes são usados
por diferentes homens na construção das masculinidades. Collier considera essa ideia
inaceitável, por ser tautológica e universalizante ou excessivamente multitudinal naquilo que
explica. Mas não há nada surpreendente sobre a ideia de práticas diversas sendo geradas em
modelos culturais comuns; não há nada conceitualmente universalizante sobre a ideia de
masculinidade hegemônica. Coordenação e regulação ocorrem nas práticas sociais da vida de
coletividades, instituições e sociedades inteiras. O conceito de masculinidade hegemônica não
busca abarcar tudo e muito menos ser uma causa primeira; é uma forma de entender certa
dinâmica no seio de um processo social.

O sujeito masculino

Muitos autores têm argumentado que o conceito de masculinidade hegemônica se baseia em


uma teoria não satisfatória do sujeito. Wetherell e Edley 116 desenvolvem essa crítica a partir
do ponto de vista da psicologia discursiva, argumentando que a masculinidade hegemônica não
pode ser entendida como uma estrutura estabelecida de caráter de qualquer grupo de homens.
Devemos questionar "como os homens se acomodam a um ideal e se tornam tipos que são
cúmplices e resistentes, sem que qualquer um incorpore exatamente aquele ideal".

Whetherell e Edley 117 sugerem que deveríamos compreender as normas hegemônicas


como definindo posições de sujeito no discurso que é levado a cabo estrategicamente por
homens em circunstâncias particulares. A masculinidade hegemônica tem múltiplos significados
- um ponto que alguns autores têm afirmado como uma crítica, mas que Wetherell e Edley
tomam como um ponto de partida positivo. Os homens podem se esquivar dentre múltiplos
significados de acordo com suas necessidades interacionais. Os homens podem adotar a
Estemasculinidade hegemônica
site usa cookies quandoque
para garantir é desejável, mas os uma
você obtenha mesmos homens
melhor podem se de
experiência distanciar
navegação.
estrategicamente da masculinidade hegemônica em outros momentos. Consequentemente, a
OK
"masculinidade" representa não um tipo determinado de homem, mas, em vez disso, uma
forma como os homens se posicionam através de práticas discursivas.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 13/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Whitehead 118 argumenta que o conceito de masculinidade hegemônica "enxerga" apenas a


estrutura, tornando o sujeito invisível: "o individual se perde no interior de um aparato ideológico
Brazil
ou, em termos althusserianos, sujeito a ele e a uma vontade inata de poder". Para Whitehead, o
conceito falha em especificar como e por que alguns homens heterossexuais legitimam,
reproduzem e geram sua dominação e o Estudos
Revista fazem como uma minoria social vis-à-vis às mulheres
Feministas 
e a outros homens. Consequentemente, o uso do conceito resulta em "uma ofuscação, na
fusão de masculinidades fluidas com uma estrutura abrangente e, por fim, em uma 'dinâmica
estrutural abstrata'". 119 Para Whitehead, é preferível concentrar no discurso como as formas
através das quais os homens conhecem a si mesmos para praticar o "trabalho de identidade" e
para exercitar o poder de gênero e a resistência.

Uma crítica relacionada deriva da psicanálise. De acordo com essa visão, o modelo de
masculinidade hegemônica presume um sujeito unitário; mas a psicologia profunda revela um
sujeito multifacetado e dividido. 120 Jefferson (2002) critica a "visão excessivamente
socializada do sujeito masculino" em estudos de masculinidade, a qual tem resultado em uma
falta de atenção sobre como os homens de fato se relacionam psicologicamente com a
masculinidade hegemônica. Dadas as múltiplas masculinidades, ele argumenta que
pesquisadores deveriam perguntar "como homens concretos, com suas biografias e formações
psíquicas particulares, se relacionam com as várias masculinidades". O autor sugere que
meninos e homens escolhem essas posições discursivas que os auxiliam a afastar a ansiedade
e evitar sentimentos de ausência de poder.

O argumento da psicologia discursiva é bem aceito e bem integrado com uma abordagem
investigativa frutífera. Um bom exemplo é o estudo de Lea e Auburn 121 sobre a história
contada por um estuprador condenado em um programa para infratores sexuais, o qual mostra
como o infrator narrador se move entre ideologias conflituosas da interação sexual que, de
certa forma, reduzem sua responsabilidade pelo estupro. Outro exemplo é a análise que Archer
122 faz da fala de jovens homens muçulmanos na Grã-Bretanha sobre identidade,

mostrando como eles usam um modelo específico de masculinidade hegemônica ("com


ausência de poder patriarcal") para posicionarem-se em relação a homens afro-caribenhos,
homens brancos e mulheres muçulmanas. A partir desse trabalho, podemos aprender não
apenas como as masculinidades são construídas no discurso, mas também como são usadas
no discurso. Especificamente, nós aprendemos como uma versão local da hegemonia da
masculinidade pode ser usada para promover o respeito de si diante do descrédito, por
exemplo, da difamação racista.

Perspectivas discursivas enfatizam a dimensão simbólica, ao passo que o conceito de


masculinidade hegemônica foi formulado dentro de uma compreensão multidimensional do
gênero. Embora qualquer especificação da masculinidade hegemônica necessariamente
envolva a formulação de ideais culturais, essa não deve ser considerada apenas como uma
norma cultural. Relações de gênero também são constituídas através de práticas não
discursivas, incluindo trabalho assalariado, violência, sexualidade, trabalho doméstico e
cuidado com as crianças, assim como através de ações rotineiras não refletidas.

Reconhecer o não discursivo e as dimensões não refletidas do gênero nos permite perceber
alguns sentidos dos limites da flexibilidade discursiva. Que existem tais limites é um ponto forte
no estudo de Rubin 123 sobre homens transexuais feminino-para-masculino. Uma pessoa
não é livre para adotar qualquer posição de gênero em interação, simplesmente como um
movimento discursivo ou reflexivo. As possibilidades são massivamente limitadas pelos
processos de encorporação, pelas histórias institucionais, pelas forças econômicas e pelas
Esterelações
site usafamiliares
cookies epara garantir
pessoais. que você
Os custos de seobtenha
fazeremuma melhor experiência
determinadas de navegação.
escolhas discursivas
podem ser muito altos - como mostrado pelos índices de suicídio dentre pessoas envolvidas em
OK
mudanças transexuais.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 14/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

A coerção também emerge no interior da própria pessoa. Os informantes de Rubin 124 atuam
como o fazem e enfrentam os custos, porque têm uma convicção inabalável de serem homens,
Brazil
apesar de começarem com corpos femininos e terem sido criados como meninas. Eles estão
convictos de serem sujeitos unitários, embora vivam uma contradição que Jefferson 125
parece exemplificar ao argumentar sobre Estudos
Revista o sujeitoFeministas
dividido. Concordamos com Jefferson que a

prática e a teoria psicanalíticas são recursos importantes para a compreensão do sujeito
complexo da prática de gênero. Entretanto, a abordagem psicanalítica particular de Jefferson
não existe sem problemas, 126 e é importante reconhecer a diversidade e a riqueza da
tradição psicanalítica. Abordagens como a psicanálise existencial de Sartre são úteis na
compreensão das masculinidades como projetos e a identidade masculina como tendo sempre
sido uma realização provisional no período de uma vida. A psicanálise adleriana, com sua
ênfase nas consequências emocionais das relações de poder generificadas na infância, fez
emergir a ideia do "protesto masculino", o qual ainda ressoa nas discussões contemporâneas
sobre a juventude marginalizada.

O conceito de masculinidade hegemônica foi originalmente formulado com uma forte


consciência de argumentos psicanalíticos acerca do caráter multifacetado e contraditório da
personalidade, da contestação cotidiana como parte da vida social e da mescla de estratégias
necessárias a qualquer tentativa de sustentar a hegemonia. 127 É um tanto quanto irônico
que o conceito seja criticado por simplificar por demais o sujeito, mas com certeza é verdadeiro
o fato de que muitas vezes foi empregado de formas simplificadas.

O conceito realmente apaga o sujeito? Nós terminantemente não concordamos com a


reivindicação de Whitehead 128 de que o conceito de masculinidade hegemônica reduz ao
determinismo estrutural. A masculinidade é definida como uma configuração de práticas
organizadas em relação à estrutura das relações de gênero. A prática social humana cria
relações de gênero na história. O conceito de masculinidade hegemônica embute uma visão
histórica dinâmica do gênero na qual é impossível apagar o sujeito. É por isso que os estudos
de história de vida se tornaram um tipo característico de trabalho sobre masculinidade
hegemônica.

O conceito homogeneiza o sujeito apenas se ele é reduzido a uma dimensão única das
relações de gênero (usualmente o simbólico) e se ele é tratado como uma especificação da
norma. Tão logo se reconheçam a multidimensionalidade das relações de gênero 129 e a
ocorrência das tendências de crise nas relações de gênero, 130 é impossível perceber o
sujeito no seio dessas relações como unitário. Há, claro, diferentes maneiras de se representar
a incoerência do sujeito. A linguagem conceitual do pós-estruturalismo é apenas uma forma de
fazê-lo; a psicanálise e o modelo da agência no seio de estruturas sociais contraditórias são
outras.

O padrão das relações de gênero

Nas teorias sociais do gênero, há comumente uma tendência em direção ao funcionalismo -


que significa entender as relações de gênero como autônomas, um sistema autorreprodutor e
explanatório de todos os elementos em termos de suas funções na reprodução do todo.
Hawkesworth 131 detecta essa tendência na maioria das teorias modernas de gênero e a
última intervenção de Bourdieu 132 para explicar que a dominação masculina deu novo lugar
à vida do funcionalismo na análise de gênero.

A dominação dos homens e a subordinação das mulheres constituem um processo histórico,


Estenão
siteum
usasistema autorreprodutor.
cookies para garantirA que
"dominação masculina"
você obtenha umaé aberta
melhorà contestação
experiênciae de
requer um
navegação.
esforço considerável na sua manutenção. Apesar de se ter dado destaque a esse ponto em
OK
declarações iniciais sobre o conceito de masculinidade hegemônica, essa não é apenas uma
ideia teórica. Há uma série detalhada de trabalhos que mostram as táticas de manutenção da
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 15/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

dominação através da exclusão das mulheres, que variam do trabalho sobre


homossociabilidade de Bird 133 à pesquisa organizacional de Collinson, Knights e Collinson,
Brazil
134 Cockburn 135 e Martin. 136

Há evidências consideráveis de que a masculinidade hegemônica não é uma forma


Revista Estudos Feministas
autorreprodutora, seja através de habitus ou outros mecanismos. Para se sustentar um dado
padrão de hegemonia é necessário o policiamento de todos os homens, assim como a exclusão
ou o descrédito das mulheres. Evidências de tais mecanismos variam do descrédito de opções
"soft" num mundo de relações internacionais "hard", desde as ameaças à segurança e à guerra,
137 a violências e assassinatos homofóbicos, 138 chegando aos constrangimentos de

meninos nas escolas por "bichices". 139

Na cuidadosa crítica de Demetriou 140 sobre o conceito de masculinidade hegemônica, a


historicidade do gênero é reconhecida. Ele, entretanto, sugere que outra forma de simplificação
tenha ocorrido. Identifica duas formas de hegemonia, interna e externa. A "hegemonia externa"
se refere à institucionalização da dominação dos homens sobre as mulheres; e a "hegemonia
interna" se refere à ascendência social de um grupo de homens sobre todos os outros homens.
O autor argumenta que a relação entre as duas formas é pouco clara na formulação original do
conceito e não especificada nos usos correntes. Para além, a hegemonia interna foi entendida
como uma forma tipicamente "elitista". Isso quer dizer que masculinidades subordinadas e
marginalizadas são vistas como não tendo nenhum impacto na construção da masculinidade
hegemônica. Masculinidades não hegemônicas existem em tensão com, mas nunca penetram
ou impactam a masculinidade hegemônica. Há, então, uma representação dualística das
masculinidades.

Tal conceitualização, Demetriou 141 argumenta, deixa escapar o "pragmatismo dialético" da


hegemonia interna, pela qual a masculinidade hegemônica se apropria de outras
masculinidades, não importando o quanto pareça pragmaticamente útil na continuidade da
dominação. O resultado dessa dialética não é um padrão unitário da masculinidade
hegemônica, mas um "bloco histórico" envolvendo uma rede de padrões múltiplos, dos quais o
hibridismo é a melhor estratégia possível para a hegemonia externa. Um processo constante
em que ocorrem negociação, tradução e reconfiguração.

Essa conceitualização leva a uma visão diferente da transformação histórica nas


masculinidades. A masculinidade hegemônica não se adapta simplesmente às condições de
transformação histórica. Em vez disso, o bloco masculino hegemônico é uma hibridização cuja
apropriação de elementos diversos o faz "capaz de se reconfigurar e adaptar às especificidades
de novas conjecturas históricas". 142 Como um exemplo desse processo, Demetriou 143
discute o crescimento da visibilidade da masculinidade gay nas sociedades ocidentais. Isso fez
com que se tornasse possível para muitos homens heterossexuais se apropriarem de "partes e
pedaços" dos estilos e das práticas de homens gays e construírem uma nova configuração
híbrida de prática de gênero. Tal apropriação enfumaça a diferença de gênero, mas não
enfraquece o patriarcado.

A conceitualização acerca do pragmatismo dialético de Demetriou 144 sobre a "hegemonia


interna" é útil e constrói uma argumentação convincente de que certas representações da
masculinidade e práticas diárias de gênero de alguns homens heterossexuais têm apropriado
aspectos das masculinidades gays. Práticas masculinas específicas talvez sejam claramente
apropriadas dentro de outras masculinidades, criando um híbrido (como o estilo hip-hop, a
linguagem adotada por alguns adolescentes brancos da classe trabalhadora e a composição
Esteúnica
site usa
de umcookies para
estilo de garantir
"clones" que
gays). você
Ainda obtenha
não estamosuma melhor de
convencidos experiência de navegação.
que a hibridização
que Demetriou 145 descreve seja hegemônica, pelo menos para além de um sentido local.
OK
Mesmo que a masculinidade e a sexualidade gay estejam em um processo de crescente

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 16/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

visibilidade nas sociedades ocidentais - testemunhado pela fascinação com personagens gays
masculinos em programas de televisão como Six Feet Under, Will and Grace e Queer Eye for
Brazil
the Straight Guy - , há pouca razão em pensar que a hibridização se tornou hegemônica nos
níveis regional ou global.
Revista Estudos Feministas
O conceito de um bloco hegemônico traz o foco para a questão de múltiplas masculinidades
hegemônicas. Jefferson 146 e outros têm criticado a tendência de se falar de apenas um
padrão - "a masculinidade hegemônica é sempre usada no singular". Há aqui um paradoxo.
Devido ao fato de que toda etnografia descobre uma cultura de gênero distinta, de que todo
estudo de histórias de vida desvela trajetórias únicas de vidas de homens e de que toda análise
estrutural define novas intersecções de raça, classe, gênero e geração, é logicamente possível
definir "mil e uma" variações da masculinidade. 147 Isso também é certamente verdadeiro
para os reivindicadores da hegemonia. O ponto é fortemente sustentado pelo mapeamento de
Messner 148 das políticas de masculinidade nos Estados Unidos, que revelou uma gama de
movimentos com agendas contrastantes. Ainda quando examinados de perto, muitos desses
movimentos apresentam uma reivindicação de serem a maneira correta de como os homens
devem pensar e viver. Não importando a diversidade empírica das masculinidades, a
contestação pela hegemonia implica que a hierarquia de gênero não possui nichos múltiplos no
topo. Voltaremos a essa questão, que é importante para o entendimento das políticas de
gênero.

Revisão e reformulação

Neste momento desenharemos esses tópicos conjuntamente para sugerirmos como o conceito
de masculinidade hegemônica deve ser reformulado. Indicaremos aquelas características do
conceito original que se sustentaram diante da luz das pesquisas e das críticas, aquelas
características que deveriam ser descartadas e, detalhadamente, aquelas áreas em que o
conceito necessita de uma reformulação contemporânea.

O que deve ser mantido

A característica fundamental do conceito continua a ser a combinação da pluralidade das


masculinidades e a hierarquia entre masculinidades. Essa ideia básica se manteve firme nos
últimos 20 anos de experiência investigativa. Padrões múltiplos de masculinidade têm sido
identificados em muitos estudos, em uma variedade de países e em diferentes contextos
institucionais e culturais. Também é resultado de pesquisa bastante difundido o fato de que
certas masculinidades são socialmente mais centrais ou mais associadas com autoridade e
poder social do que outras. O conceito de masculinidade hegemônica presume a subordinação
de masculinidades não hegemônicas, e esse é um processo que agora tem sido documentado
em muitos contextos, em nível internacional.

Também muito apoiada é a ideia de que a hierarquia das masculinidades é um padrão de


hegemonia, não um padrão de uma hegemonia simples baseada na força. O consenso cultural,
a centralidade discursiva, a institucionalização e a marginalização ou a deslegitimação de
alternativas são características amplamente documentadas de masculinidades socialmente
dominantes. Também muito apoiada é a ideia original de que a masculinidade hegemônica não
necessita ser o padrão comum na vida diária de meninos e homens. Em vez disso, a
hegemonia trabalha em parte através da produção de exemplos de masculinidade (como as
estrelas dos esportes profissionais), símbolos que têm autoridade, apesar do fato de a maioria
dos homens e meninos não viver de acordo com eles.

EsteAs
site usa cookies
formulações para depositaram
originais garantir quealguma
você obtenha
ênfase na uma melhor de
possibilidade experiência de navegação.
transformação das
relações de gênero e na ideia de que um padrão
OKdominante de masculinidade estava aberto à
contestação - da resistência das mulheres ao patriarcado, e dos homens como portadores de

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 17/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

masculinidades alternativas. Pesquisas confirmaram fortemente a ideia da construção histórica


e da reconstrução das masculinidades hegemônicas. Tanto no nível local como nos níveis
Brazil
societais mais amplos, as situações nas quais as masculinidades foram elaboradas mudam ao
longo do tempo. Essas mudanças podem suscitar novas estratégias nas relações de poder (por
exemplo, os contratos conjugais entre pessoas
Revista doFeministas
Estudos mesmo sexo) e resultam em redefinições da

masculinidade socialmente admirada (como o parceiro doméstico, em vez do patriarca
vitoriano).

O que deve ser rejeitado

Duas características das formulações iniciais sobre a masculinidade hegemônica não se


sustentaram perante as críticas e devem ser descartadas. A primeira é um modelo muito
simples das relações sociais em torno das masculinidades hegemônicas. A formulação em
Gender and Power se esforçou em localizar todas as masculinidades (e todas as feminilidades)
em termos de um padrão único de poder, a "dominação global" dos homens sobre as mulheres.
149 Na medida em que isso foi útil durante um tempo na prevenção da ideia de múltiplas

masculinidades se confrontarem em um conjunto de estilos de vida em competição, agora é


claramente inadequado para nosso entendimento das relações entre grupos de homens e
formas de masculinidade, e das relações das mulheres com as masculinidades dominantes.
Por exemplo, a dominação nas relações de gênero envolvem uma interação entre custos e
benefícios, desafios à masculinidade hegemônica emergem das "masculinidades de protesto"
dos grupos étnicos marginalizados e mulheres burguesas podem se apropriar de aspectos da
masculinidade hegemônica ao construírem carreiras profissionais ou corporativas. Claramente,
melhores formas de compreender as hierarquias de gênero são necessárias.

Apesar da crítica do traço psicológico em Gender and Power e do apelo às ideias psicanalíticas
sobre a motivação inconsciente, declarações iniciais sobre a masculinidade hegemônica,
quando tentaram caracterizar o conteúdo de fato das diferentes configurações de
masculinidade, muitas vezes caíram numa terminologia classificatória de traços - ou na melhor
das hipóteses, fracassaram em apresentar alternativas a ela. A noção de masculinidade como
um conjunto de traços, que abriu caminho para o tratamento da masculinidade hegemônica
como um tipo de caráter fixo, já causou muitos problemas e foi altamente criticada nos escritos
psicológicos recentes. Não apenas o conceito essencialista de masculinidade, mas também,
em geral, a abordagem dos traços para compreender o gênero necessitam ser completamente
transcendidos.

O que deve ser reformulado

À luz das pesquisas e das críticas discutidas anteriormente, argumentamos que o conceito de
masculinidade hegemônica precisa ser reformulado em quatro grandes áreas: a natureza das
hierarquias de gênero, a geografia das configurações de masculinidade, o peso do social no
processo de encorporação da masculinidade e a dinâmica das masculinidades. Nos subtópicos
a seguir ofereceremos uma linha de pensamento e algumas sugestões de pesquisa sobre cada
um desses eixos.

Hierarquia de gênero

Comparadas com as formulações originais do conceito, pesquisas contemporâneas mostraram


a complexidade das relações entre diferentes construções da masculinidade. A pesquisa
recente em psicologia discursiva indica como diferentes construções da masculinidade no nível
local podem servir como alternativas táticas. Relações estruturadas entre masculinidades
Esteexistem
site usaemcookies
todos ospara garantir
contextos quenovocê
locais; obtenha
entanto, uma melhor
a motivação experiência
em direção de navegação.
a uma versão
hegemônica específica varia de acordo com o contexto local e tais versões locais de
OK
masculinidade inevitavelmente diferem entre si. A noção de Demetriou 150 de pragmatismo

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 18/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

dialético captura a influência recíproca das masculinidades umas sobre as outras; padrões de
masculinidade hegemônica podem mudar ao incorporarem elementos de outras
Brazil
masculinidades.

Análises das relações entre masculinidades, agora mais claramente, reconhecem a agência
Revista Estudos Feministas
dos grupos subordinados e marginalizados - comumente condicionados por sua especificação
local (como discutido abaixo). A "Masculinidade de protesto" 151 pode ser entendida neste
sentido: um padrão de masculinidade construído em contextos locais de classes trabalhadoras,
algumas vezes entre homens etnicamente marginalizados que encorporam a reivindicação de
poder típica de masculinidades hegemônicas regionais em países ocidentais, mas carecem de
recursos econômicos e autoridade institucional para sustentar os padrões regional e global
dessa forma de masculinidade.

Pesquisas também documentaram a durabilidade ou a capacidade de sobrevivência de


padrões de masculinidade não hegemônica, os quais podem representar respostas bem
trabalhadas à marginalização racial/étnica, à deficiência física, à desigualdade de classe ou à
sexualidade estigmatizada. A hegemonia pode se realizar pela incorporação de tais
masculinidades em uma ordem de funcionamento do gênero, em vez de uma opressão ativa na
forma de descrédito ou violência. Na prática, tanto a incorporação como a opressão podem
ocorrer juntas. Isso quer dizer que, por exemplo, a posição contemporânea das masculinidades
gays nos centros urbanos ocidentais, onde comunidades gays têm um espectro de experiências
variando da violência homofóbica e difamação cultural, à tolerância e mesmo à celebração
cultural e à representação política. Processos similares de incorporação e opressão podem
ocorrer dentre meninas e mulheres que constroem masculinidades. 152

O conceito de masculinidade hegemônica foi originalmente formulado em relação ao conceito


de feminilidade hegemônica - prontamente renomeada de "feminilidade enfatizada" para
reconhecer a posição assimétrica das masculinidades e das feminilidades em uma ordem
patriarcal do gênero. No desenvolvimento de pesquisas sobre homens e masculinidades, essa
relação saiu de foco. Isso é lastimável por mais de uma razão. O gênero é sempre relacional, e
os padrões de masculinidade são socialmente definidos em oposição a algum modelo (quer
real ou imaginário) da feminilidade.

Talvez mais importante, focando-se apenas nas atividades dos homens que ocluem as práticas
das mulheres na construção do gênero dentre homens. Como é bem mostrado pelas pesquisas
com histórias de vida, as mulheres são centrais em muitos dos processos de construção das
masculinidades - como mães, colegas de classe, namoradas, parceiras sexuais e esposas;
como trabalhadoras na divisão sexual do trabalho, e assim por diante. O conceito de
feminilidade enfatizada põe o foco sobre a complacência em relação ao patriarcado, e isso
continua a ser altamente relevante na cultura de massa contemporânea. Ainda, as hierarquias
de gênero também podem ser afetadas pelas novas configurações das identidades e das
práticas das mulheres, especialmente mulheres mais jovens - configurações que estão
crescentemente sendo reconhecidas pelos homens jovens. Consideramos que as pesquisas
sobre masculinidade hegemônica agora precisam estar mais atentas às práticas das mulheres
e à ação histórica recíproca entre feminilidades e masculinidades.

Sugerimos, portanto, que nossa compreensão da masculinidade hegemônica precisa incorporar


um entendimento mais holístico da hierarquia de gênero, reconhecendo a agência dos grupos
subordinados, tanto quanto o poder dos grupos dominantes e o condicionamento mútuo das
dinâmicas de gênero e outras dinâmicas sociais. Pensamos que isso tenderá, ao longo do
Estetempo, a reduzir
site usa cookieso isolamento dos estudos
para garantir que vocêsobre homens
obtenha e enfatizará
uma melhor aexperiência
relevância das
de navegação.
dinâmicas de gênero para os problemas - que variam dos efeitos da globalização à questão da
violência e da promoção da paz - explorados emOKoutros campos das ciências sociais.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 19/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

A geografia das masculinidades

Brazil
Mudanças em construções locais específicas da masculinidade hegemônica têm sido tema de
pesquisas nas duas últimas décadas. Mas a crescente atenção dada à globalização e à
significância das arenas transnacionais para a construção da masculinidade também tem sido
Revista Estudos Feministas
argumentada. Hooper 153 descreve o desenvolvimento da  masculinidade hegemônica e de
outras formas de masculinidades nas arenas das relações internacionais, e Connell 154
propõe o modelo da "masculinidade coorporativa transnacional" dentre executivos
corporativistas conectados com agendas neoliberais de globalização.

Se, ou o quanto, tais processos ultrapassam dinâmicas de gênero mais locais e regionais, é
questão ainda em debate. Pease e Pringle, 155 em uma coletânea internacional recente,
argumentam por um foco contínuo no entendimento regional e comparativo das
masculinidades. No mínimo devemos entender que construções regionais e locais da
masculinidade hegemônica são conjuradas pela articulação desses sistemas de gênero com
processos globais. Nessa veia, Kimmel 156 examinou recentemente como os efeitos de uma
masculinidade hegemônica global estão incorporados na emergência de masculinidades "de
protesto" regionais (supremacistas brancos nos Estados Unidos e na Suécia) e global (o Al
Qaeda do Oriente Médio).

Consideramos que essas questões são agora inevitáveis para os estudos de masculinidade e
sugerimos a seguinte estrutura simples. Masculinidades hegemônicas existentes
empiricamente podem ser analisadas em três níveis:

1. local: construídas nas arenas da interação face a face das famílias, organizações e
comunidades imediatas, conforme acontece comumente nas pesquisas etnográficas e de
histórias de vida;

2. regional: construídas no nível da cultura ou do estadonação, como ocorre com as pesquisas


discursivas, políticas e demográficas; e

3. global: construídas nas arenas transnacionais das políticas mundiais, da mídia e do comércio
transnacionais, como ocorre com os estudos emergentes sobre masculinidades e globalização.

As ligações entre esses níveis não apenas existem, mas podem ser importantes nas políticas
de gênero. Instituições globais pressionam ordens de gênero regionais e locais, ao passo que
ordens de gênero regionais fornecem materiais culturais adotados ou retrabalhados em arenas
globais e também modelos de masculinidade que podem ser importantes para as dinâmicas de
gênero locais.

Consideremos especificamente a relação entre masculinidades regionais e locais. A


masculinidade hegemônica no nível regional é simbolicamente representada através da ação
recíproca de práticas masculinas locais específicas que têm significância regional, como
aquelas construídas por atores de filmes de longa-metragem, por atletas profissionais e por
políticos. O conteúdo exato dessas práticas varia ao longo do tempo e nas diferentes
sociedades. Ainda, a masculinidade hegemônica regional dá forma a um sentido de realidade
masculina em nível societal amplo e, portanto, opera no domínio cultural como material à
disposição para ser atualizado, alterado e desafiado através da prática, em uma gama de
circunstâncias locais diferentes. Uma masculinidade hegemônica regional fornece, então, uma
estrutura cultural que pode ser materializada nas práticas e nas interações cotidianas.

EsteComo umacookies
site usa ilustração dessa
para ação regional
garantir que vocêe local recíproca
obtenha uma entre masculinidades
melhor experiênciahegemônicas,
de navegação.
consideremos o exemplo do esporte. Nas sociedades ocidentais, as práticas no nível local -
OK
como o engajamento em eventos esportivos - constroem modelos masculinos hegemônicos
("estrelas do esporte") no nível regional, o qual, em retorno, afeta outras configurações locais.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 20/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Pesquisas sobre o ensino fundamental e médio fornecem um exemplo paradigmático, indicando


que a participação bem-sucedida no esporte é comumente uma prática masculina hegemônica
Brazil
em um contexto local particular. 157 Por exemplo, Light e Kirk 158 examinaram uma escola
de elite australiana, descobrindo que uma clara estrutura de masculinidades existia nessa
escola, na qual uma forma hegemônica
Revistaespecífica foi conjurada através da prática de
Estudos Feministas 
encorporação do rugby - um código que certamente não está confinado a essa escola -
centrado em dominação, agressão, competição implacável e em dar tudo pela escola.
(Comparem-se descobertas similares de Burgess, Edwards e Skinner.) 159 Desse modo,
modelos regionais exemplares influenciam - apesar de não determinarem completamente - a
construção das relações de gênero e as masculinidades hegemônicas no nível local.

É tentador assumir uma hierarquia simples de poder e autoridade, circulando do global ao


regional e ao local, mas isso poderia levar ao erro. Nas discussões sobre globalização, o poder
determinante do "global" é muitas vezes superestimado, ao passo que a resistência e a
capacidade daquilo que estamos chamando de "regional" não são reconhecidas. 160 As
limitadas pesquisas que até agora foram feitas sobre masculinidades em arenas globais 161
não sugerem uma formulação eficaz, com capacidade de prevalecer sobre masculinidades
regionais ou locais. Até o momento as evidências sobre dinâmicas globais de gênero estão
crescendo, e fica claro que processos como a reestruturação econômica, a migração de longa
distância e a turbulência das agendas de "desenvolvimento" têm o poder de remodelar padrões
locais de masculinidade e feminilidade. 162 Temos todas as razões para pensar que as
interações envolvendo masculinidades globais irão se tornar cada vez mais importantes nas
políticas de gênero e que essa é uma arena-chave para pesquisas futuras sobre hegemonia.

Adotando uma estrutura analítica que distingue as masculinidades nos níveis local, regional e
global (e os mesmos pontos se aplicam às feminilidades), podemos reconhecer a importância
do território sem cairmos em um mundo monádico de independência cultural e discursiva total.
Essa perspectiva também projeta alguma luz no problema das múltiplas masculinidades
hegemônicas, levantado anteriormente. Apesar de os modelos locais de masculinidade
hegemônica poderem se diferenciar uns dos outros, eles geralmente se sobrepõem. A ação
recíproca entre dinâmicas de gênero societais mais amplas é parte da explanação. Além disso,
as masculinidades hegemônicas são, em graus significantes, como já argumentamos,
constituídas nas interações entre homens e mulheres; portanto, os aspectos comuns nas
práticas de gênero das mulheres também produzem convergência. Consequentemente, as
construções locais da masculinidade hegemônica têm certa "semelhança familiar", para usar
um termo de Wittgenstein, em vez de uma identidade lógica. Nesse sentido, a pluralidade local
é compatível com a singularidade da masculinidade hegemônica nos níveis regional ou societal
amplo. A "semelhança familiar", dentre as variantes locais, é comumente representada por um
modelo simbólico no nível regional, nunca por múltiplos modelos.

Encorporação social

Que a masculinidade hegemônica está relacionada com formas particulares de representação e


uso dos corpos dos homens já foi reconhecido desde as formulações iniciais do conceito.
Mesmo assim o padrão de encorporação envolvido na hegemonia ainda não foi teorizado de
forma convincente.

A importância da encorporação masculina para a identidade e para o comportamento emerge


em muitos contextos. Na juventude, as habilidades corporais se tornam um indicador primeiro
de masculinidade, conforme vemos no esporte. Essa é uma forma-chave de ligação entre a
Estemasculinidade e a heterossexualidade
site usa cookies para garantir quena cultura
você ocidental,
obtenha umacom prestígio
melhor dado aos meninos
experiência de navegação.
com parcerias heterossexuais e o aprendizado sexual imaginado como exploração e conquista.
OK
Práticas corporais, tais como comer carne e assumir riscos na estrada, também se tornam
ligadas às identidades masculinas. Logicamente isso resulta na promoção de estratégias de
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 21/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

saúde que atuam nos estados de degeneração física - contestando a masculinidade


hegemônica ou levando os homens para uma direção mais andrógina. Mas as dificuldades dos
Brazil
processos degenerativos também são parcialmente baseadas na encorporação, como, por
exemplo, no compromisso com práticas de risco como significantes para o estabelecimento da
reputação masculina em um contexto grupal
Revista de pares.
Estudos Feministas

As leituras sobre corpos como objeto de processos de construção social, habituais nas ciências
sociais, são agora amplamente consideradas inadequadas. Os corpos estão envolvidos mais
ativamente, mais intimamente e mais intrinsecamente em processos sociais do que a teoria
usualmente lhes permitiu. Os corpos participam na ação social ao delinearem os cursos da
conduta social - o corpo como participante da geração de práticas sociais. É importante que
não apenas as masculinidades sejam entendidas como encorporadas, mas também que sejam
tratados os entrelaçamentos das encorporações com os contextos sociais.

A necessidade de um tratamento mais sofisticado dos processos de encorporação na


masculinidade hegemônica é tornada visível a partir da questão das práticas trans que são
difíceis de entender dentro de um modelo simples de construção social. Essa questão foi
reformulada pela ascensão da teoria queer, a qual tratou os cruzamentos de gênero como uma
subversão da ordem de gênero ou, ao menos, como uma demonstração da sua vulnerabilidade.
Debates acalorados sobre o transexualismo emergiram quando alguns psiquiatras levantaram a
questão da possibilidade mesma da mudança de gênero. Não é, portanto, fácil estar seguro
sobre as implicações da prática trans para a hegemonia. Com Rubin 163 e Namaste, 164
consideramos que as masculinidades construídas durante as vidas de pessoas transexuais
fêmea-para-macho não são inerentemente contra-hegemônicas. "Homens feitos por si próprios"
podem buscar a igualdade de gênero ou se oporem a ela, como qualquer homem não
transexual. O que a experiência transexual destaca é a forma como a modernidade trata o
corpo como um "meio através do qual indivíduos interagem uns com os outros". 165

Para entender a encorporação e a hegemonia, precisamos compreender que os corpos são


tanto objetos da prática social como agentes na prática social. 166 Existem circuitos de
práticas sociais ligando processos corporais e estruturas sociais - muitos desses circuitos se
somam ao processo histórico no qual a sociedade é encorporada. Esses circuitos de
encorporação social podem ser muito diretos ou simples, ou podem ser longos e complexos,
passando por instituições, relações econômicas, símbolos culturais, e assim por diante - não
cessando de envolver os corpos materiais. Isso pode ser facilmente ilustrado ao pensarmos
sobre os padrões de gênero na saúde, na doença, no tratamento médico.

Dentre grupos dominantes de homens, os circuitos de encorporação social constantemente


envolvem as instituições nas quais seus privilégios permanecem. Isso é dramaticamente visto
no estudo pioneiro de Donaldson e Poynting 167 sobre as vidas cotidianas de homens da
classe dominante. Esse estudo mostra, por exemplo, como os esportes característicos, as
práticas de lazer e a alimentação desses homens publicizam sua riqueza e estabelecem
relações de distância e dominação sobre os corpos de outros homens. Um campo rico de
pesquisa se abre aqui, especialmente quando consideramos como as tecnologias de alto custo
- sistemas computacionais, viagens aéreas globais, comunicações seguras - amplificam os
poderes físicos dos corpos de homens de elite.

A dinâmica das masculinidades

Apesar de há muito tempo reconhecida, a complexidade interna das masculinidades apenas


Estegradualmente começa a se tornar uma questão de pesquisa. Como indicado em uma discussão
site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
anterior sobre o sujeito na prática de gênero, devemos reconhecer agora explicitamente a
estratificação, a potencial contradição interna, OK
dentre todas as práticas que constroem
masculinidades. Tais práticas não podem ser lidas simplesmente como expressando uma
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 22/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

masculinidade unitária. Elas podem, por exemplo, representar formações comprometidas por
desejos contraditórios ou emoções, ou por resultados de cálculos incertos sobre os custos e os
Brazil
benefícios de diferentes estratégias de gênero.

Pesquisas com histórias de vida apontaram para uma outra dinâmica das masculinidades, a
Revista Estudos Feministas
estrutura de um projeto. Masculinidades são configurações da prática que são construídas,
reveladas e transformadas ao longo do tempo. Uma literatura menos abundante sobre
masculinidade e envelhecimento, e uma maior produção sobre infância e juventude enfatizam
essa questão. A análise cuidadosa das histórias de vida podem detectar compromissos
contraditórios e transições institucionais que refletem diferentes masculinidades hegemônicas e
também sustentam sementes de transformação.

As masculinidades hegemônicas tendem a envolver padrões específicos de divisão interna e


conflito emocional, precisamente por sua associação com o poder generificado. Relações com
os pais são mais comumente focos de tensão, dada a divisão sexual do trabalho no cuidado
das crianças, a "cultura das longas horas" em profissões e gerenciamentos, e a preocupação
dos pais ricos no manejo de sua riqueza. A ambivalência em direção aos projetos de mudança
por parte das mulheres é comumente outro foco de tensão, levando a oscilações da aceitação e
rejeição da igualdade de gênero por esses homens. Qualquer estratégia de manutenção do
poder é mais comumente envolvida na desumanização de outros grupos e num correspondente
definhamento da empatia e do envolvimento emocional subjetivo. 168 Sem tratar os homens
privilegiados como objeto de pena, devemos reconhecer que a masculinidade hegemônica não
necessariamente se traduz em uma experiência de vida satisfatória.

As transformações ao longo do tempo, na medida em que são certamente moldadas por


contradições no seio das masculinidades, também podem ser intencionais. As crianças, assim
como os adultos, têm a capacidade de desconstruir binarismos de gênero e criticar a
masculinidade hegemônica, e essa capacidade é a base de muitas intervenções educativas e
programas de transformação. Ao mesmo tempo, titulares da masculinidade hegemônica não
são necessariamente "entorpecidos culturais", eles podem tentar ativamente modernizar as
relações de gênero e remodelar as masculinidades como parte de contratos. Um bom exemplo
é o "novo gerenciamento público" em organizações do setor público, as quais rejeitam a
burocracia do estilo antigo e acreditam em organizações "horizontais", em igualdade de
oportunidades e em políticas de emprego familiares e amistosas. Mas mesmo a modernização
das masculinidades talvez não resolva os problemas. Isso também, como argumentou Meuser,
169 gera contradições que podem levar a transformações adicionais.

Relações de gênero são sempre arenas de tensão. Um dado padrão de masculinidade é


hegemônico enquanto fornece uma solução a essas tensões, tendendo a estabilizar o poder
patriarcal ou reconstituí-lo em novas condições. Um padrão de práticas (isto é, uma versão de
masculinidade) que forneceu soluções em condições anteriores, mas não em novas situações,
é aberto ao questionamento - ele, de fato, será contestado.

Tal contestação ocorre continuamente, através dos esforços do movimento de mulheres (nos
níveis local, regional e global), entre gerações em comunidades de imigrantes, entre modelos
de masculinidade gerencial, entre rivais por autoridade política, entre reivindicadores por
atenção na indústria de entretenimento, e assim por diante. A contestação é real, e a teoria de
gênero não prevê qual prevalecerá - o processo é historicamente aberto. Em consequência, a
hegemonia pode fracassar. O conceito de masculinidade hegemônica não se assenta em uma
teoria da reprodução social.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Colocada de outra maneira, a conceitualização da masculinidade hegemônica deveria
explicitamente reconhecer a possibilidade da democratização
OK das relações de gênero e da
abolição de desigualdades de poder, e não apenas a reprodução da hierarquia. Um movimento

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 23/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

transicional nessa direção requer uma tentativa de estabelecer como hegemônica dentre os
homens ("hegemonia interna" no sentido de Demetriou) 170 uma versão da masculinidade
Brazil
aberta à igualdade com as mulheres. Nesse sentido, é possível definir uma masculinidade
hegemônica completamente "positiva" (no sentido de Collier). 171 A história recente mostrou
a dificuldade de se atingir essa prática.
RevistaUma hegemonia
Estudos positiva permanece, todavia, como
Feministas 
uma estratégia-chave para os esforços contemporâneos de reforma.

Conclusão

Os conceitos nas ciências sociais emergem como respostas a problemas práticos e intelectuais
específicos, e são formulados em linguagens e estilos intelectuais específicos. Mas eles
também têm a capacidade de viajar e talvez recebam novos significados enquanto viajam. Isso
certamente aconteceu com o conceito de masculinidade hegemônica, o qual tem sido
apropriado em diferentes campos, variando da educação à psicoterapia, à questão da violência
e às relações internacionais. Algumas das suas ambiguidades despertaram uma reação crítica
a vários usos que o conceito encontrou e às formas como foi flexibilizado em resposta a novos
contextos.

Esse é talvez um problema geral sobre a conceitualização nas ciências sociais e nas
humanidades. Como uma formulação teórica encontra aplicação em outros contextos e por
outras mãos, o conceito deve se mutar - e deve fazê-lo em diferentes direções e em diferentes
ambientes. Um conceito específico pode se transformar em uma generalização para se falar de
algo, um estilo de análise ou uma figura característica em um argumento. Não há nada de
errado nesse processo como tal - é a forma comum através da qual o conhecimento em
ciências sociais e humanidades se desenvolve. Mas isso significa que os novos usos também
devem estar abertos à crítica, pois talvez careçam da substância ou da justificação presente na
formulação original.

Desse modo, ao mesmo tempo que acolhemos muitas das aplicações e das modificações do
conceito de masculinidade hegemônica como contribuições à compreensão das dinâmicas de
gênero, rejeitamos aqueles usos em que ficou implícito um tipo fixo de caráter ou um conjunto
de traços tóxicos. Esses usos não são triviais - eles tentam nomear questões significantes
sobre gênero, tais como a persistência da violência ou as consequências da dominação. Mas
esses usos são feitos de uma maneira que entra em conflito com as análises da hegemonia nas
relações de gênero e são, portanto, incompatíveis (e não apenas uma variação) tanto com as
declarações iniciais como com os principais desenvolvimentos do conceito.

Uma análise renovada das masculinidades hegemônicas, do tipo sugerido anteriormente, tem
uma relevância crescente no momento presente das políticas de gênero. Nos países ricos da
metrópole global, o deslocamento do neoliberalismo (a agenda radical do mercado formulada
nos anos 1970) para um neoconservadorismo (incluindo apelos populistas para religião,
etnocentrismo e segurança) tornou a reação de gênero uma questão política e cultural muito
importante. Nos países desenvolvidos, os processos de globalização abriram as ordens de
gênero regionais e locais para novas pressões por transformações e também abriram caminhos
para novas coalizões entre grupos de homens poderosos. Nas arenas globais das corporações
transnacionais, das mídias e dos sistemas de segurança, novos padrões de hegemonia estão
sendo forjados. A produção e a contestação da hegemonia em ordens de gênero
historicamente mutáveis são um processo de enorme importância para o qual continuaremos
precisando de ferramentas conceituais.

Tradução: Felipe Bruno Martins Fernandes


Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.

OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 24/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

ALTMAN, D. Homosexual: Oppression and Liberation Sydney, Australia: Angus and


Brazil Robertson, 1972.

ARCHER, L. "Muslim Brothers, Black Lads, Traditional Asians: British Muslim Young Men's
Revista
Constructions of Race, Religion Estudos Feministas
and Masculinity." Feminism
 & Psychology, v. 11, n. 1, p. 79-
105, 2001.

BACA ZINN, M. "Chicano Men and Masculinity." Journal of Ethnic Studies, v. 10, n. 2, p. 29-
44, 1982.

BARRETT, F. J. "The Organizational Construction of Hegemonic Masculinity: The Case of


the U.S. Navy." Gender, Work and Organization, v. 3, n. 3, p. 129-142, 1996.

BELTON, R. J. The Beribboned Bomb: The Image of Woman in Male Surrealist Art Calgary,
Canada: University of Calgary Press, 1995.

BERG, L. D. "Masculinity, Place and a Binary Discourse of 'Theory' and 'Empirical


Investigation' in the Human Geography of Aotearoa/New Zealand." Gender, Place and
Culture, v. 1, n. 2, p. 245-260, 1994.

BIRD, S. R. "Welcome to the Men's Club: Homosociality and the Maintenance of Hegemonic
Masculinity." Gender & Society, v. 10, n. 2, p. 120-132, 1996.

BOURDIEU, P. Masculine Domination Stanford, CA: Stanford University Press, 2001.

BRANNON, R. "The Male Sex Role: Our Culture's Blueprint of Manhood, and What It's Done
for us Lately." In: DAVID, D. S.; BRANNON, R. (Ed.). The Forty-nine Percent Majority: The
Male Sex Role. Reading, MA: Addington-Wesley, 1976.

BROD, H. The Making of Masculinities: The New Men's Studies Boston: Allen and Unwin,
1987.

______. "Some Thoughts on Some Histories of Some Masculi nities: Jews and Other
Others." In: DAVID, D. S.; BRANNON, R. (Ed.). Theorizing Masculinities. Thousand Oaks,
CA: Sage, 1994.

BROKER, M. "'I may be a queer, but at least I am a man': Male Hegemony and Ascribed
Versus Achieved Gender." In: BARKER, D. L.; ALLEN, S. (Ed.). Sexual Divisions and Society
London: Tavistock. 1976.

BROWN, D. "Complicity and Reproduction in Teaching Physical Education." Sport, Education


and Society, v. 4, n. 2, p. 143-159, 1999.

BUFKIN, J. L. "Bias Crime as Gendered Behavior." Social Justice, v. 26, n. 1, p. 155-176,


1999.

BURGESS, I.; EDWARDS, A.; SKINNER, J. "Football Culture in an Australian School


Setting: The Construction of Masculine Identity." Sport, Education and Society, v. 8, n. 2, p.
199-212, 2003.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
CAMPBELL, H. "The Glass Phallus: Pub(lic) OKMasculinity and Drinking in Rural New Zealand."
Rural Sociology, v. 65, n. 4, p. 562-581, 2000.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 25/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

CARRIGAN, T.; CONNELL, R. W.; LEE, J. "Toward a New Sociology of Masculinity." Theory
Brazil and Society, v. 14, n. 5, p. 551-604, 1985.

CAVENDER, G. "Detecting Masculinity." In: FERRELL, J.; WEBSDALE, N. (Ed.). Making


Revista
Trouble: Cultural Constructions Estudos
of Crime, Feministas
Deviance and Control.
 New York: Aldine de
Gruyter, 1999.

CHENG, C. "'We choose not to compete': The 'Merit' Discourse in the Selection Process, and
Asian and Asian American Men and their Masculinity." In: CHENG, C. (Ed.). Masculinities in
Organizations. Thousand Oaks, CA: Sage, 1996.

COCKBURN, C. Brothers: Male Dominance and Technological Change London: Pluto, 1983.

______. In the Way of Men: Men's Resistance to Sex Equality in Organizations London:
Macmillan, 1991.

COLLIER, R. Masculinities, Crime and Criminology: Men, Heterosexuality and the


Criminal(ised) Other London: Sage, 1998.

COLLINSON, D.; HEARN, J. "Naming Men as Men: Implications for Work, Organization and
Management." Gender, Work and Organization, v. 1, n. 1, p. 2-22, 1994.

COLLINSON, D.; KNIGHTS, D.; COLLINSON, M. Managing to Discriminate London:


Routledge, 1990.

CONNELL, R. W. Ruling Class, Ruling Culture Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1977.

______. "Class, Patriarchy, and Sartre's Theory of Practice." Theory and Society, v. 11, p.
305-320, 1982.

______. Which Way is up? Essays on Sex, Class and Sulture Sydney, Australia: Allen and
Unwin, 1983.

______. Gender and Power Sydney, Australia: Allen and Unwin, 1987.

______. "An Iron Man: The Body and some Contradictions of Hegemonic Masculinity." In:
MESSNER, M.; SABO, D. (Ed.). Sport, Men and the Gender Order. Champaign, IL: Human
Kinetics, Books, 1990.

______. Masculinities Cambridge, UK: Polity Press, 1995.

______. "Masculinities and Globalization." Men and Masculinities, v. 1, n. 1, p. 3-23, 1998.

______. Gender Cambridge, UK: Polity Press, 2002.

______. "Masculinities, Change and Conflict in Global Society: Thinking about the Future of
Men's Studies." Journal of Men's Studies, v. 11, n. 3, p. 249-266, 2003.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.

______. "Globalization, Imperialism, and Masculinities."


OK In: KIMMEL, M. S.; HEARN, J.;
CONNELL, R. W. (Ed.). Handbook of Studies on Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA:

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 26/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

Sage, 2005.

Brazil
CONNELL, R. W. et al. Making the Difference: Schools, Families and Social Division Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1982.

Revista Estudos Feministas


CONNELL, R. W.; WOOD, J. "Globalization and Business Masculinities." Men and
Masculinities, v. 7, n. 4, p. 347-364, 2005.

CONSALVO, M. "The Monsters Next Door: Media Constructions of Boys and Masculinity."
Feminist Media Studies, v. 3, n. 1, p. 27-46, 2003.

DASGUPTA, R. "Performing Masculinities? The 'Salaryman' at Work and Play." Japanese


Studies, v. 20, n. 2, p. 189-200, 2000.

DAVIS, A. Women, Race, and Class New York: Vintage, 1983.

DEMETRIOU, D. Z. "Connell's Concept of Hegemonic Masculinity: A Critique." Theory and


Society, v. 30, n. 3, p. 337-361, 2001.

DENBOROUGH, D. "Step by Step: Developing Respectful and Effective Ways of Working


with Young Men to Reduce Violence." In: McLEAN, C.; CAREY, M.; WHITE, C. (Ed.). Men's
Ways of Being. Boulder, CO: Westview, 1996.

DINGES, M.; RÜNDAL, E.; BAUER, D. "Programm." In: PROGRAM FOR THE
HEGEMONIALE MÄNNLICHKEITEN CONFERENCE, 24-26 June 2004, Stuttgart, Germany.

DONALDSON, M. Time of Our Lives: Labor and Love in the Working Class Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1991.

______. "What is Hegemonic Masculinity?" Theory and Society, v. 22, p. 643-657, 1993.

DONALDSON, M.; POYNTING, S. "The Time of their Lives: Time, Work and Leisure in the
Daily Lives of Ruling-class Men." In: HOLLIER, N. (Ed.). Ruling Australia: The Power,
Privilege & Politics of the New Ruling Class. Melbourne: Australian Scholarly, 2004.

EISENSTEIN, Z. R. Capitalist Patriarchy and the Case for Socialist Feminism New York:
Monthly Review Press, 1979.

FERGUSON, H. "Men and Masculinities in Late-modern Ireland." In: PEASE, B.; PRINGLE,
K. (Ed.). A Man's World? Changing Men's Practices in a Globalized World. London: Zed
Books, 2001.

FREUD, Sigmund. From the History of an Infantile Neurosis. Complete Psychological Works
Standard ed. London: Hogarth, 1955. v. 17.

FRIEDMAN, R. M.; LERNER, L. "Toward a Newpsychology of Men: Psychoanalytic and


Social Perspectives." Psychoanalytic Review, v. 73, n. 4, 1986. Special issue.

GERSCHICK, T. J.; MILLER, A. S. "Gender Identities at the Crossroads of Masculinity and


Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Physical Disability." Masculinities, v. 2, n. 1, p. 34-55, 1994.
OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 27/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

GOODE, W. "Why Men Resist." In: THORNE, B.; YALOM, M. (Ed.). Rethinking the Family:
Brazil Some Feminist Questions. New York: Longman, 1982.

GUTMANN, M. C. The Meanings of Macho: Being a Man in Mexico City Berkeley: University
of California Press, 1996. Revista Estudos Feministas

HACKER, H. M. "The New Burdens of Masculinity." Marriage and Family Living, v. 19, n. 3, p.
227-233, 1957.

HALBERSTAM, J. Female Masculinity Durham, NC: Duke University Press, 1998.

HANKE, R. "Redesigning Men: Hegemonic Masculinity in Transition." In: CRAIG, S. (Ed.).


Men, Masculinity, and the Media. Newbury Park, CA: Sage, 1992.

HAWKESWORTH, M. "Confounding Gender." Signs: Journal of Women in Culture and


Society, v. 22, n. 3, p. 649-685, 1997.

HEARN, J. "Is Masculinity Dead? A Critique of the Concept of Masculinity/Masculinities." In:


MAC AN GHAILL, M. (Ed.). Understanding Masculinities: Social Relations and Cultural
Arenas. Buckingham, UK: Open University Press, 1996.

______. "From Hegemonic Masculinity to the Hegemony of Men." Feminist Theory, v. 5, n. 1,


p. 49-72, 2004.

HERDT, G. H. Guardians of the Flutes: Idioms of Masculinity New York: McGraw-Hill, 1981.

HIGATE, P. R. Military Masculinities: Identity and the State London: Praeger, 2003.

HOCHSCHILD, A. The Second Shift: Working Parents and the Revolution at Home New
York: Viking, 1989.

HOLTER, Ø. G. Gender, Patriarchy and Capitalism: A Social Forms Analysis Oslo, Norway:
University of Olso, 1997.

______. Can Men do It? Men and Gender Equality: The Nordic Experience Copenhagen,
Denmark: Nordic Council of Ministers, 2003.

HOOKS, B. Feminist Theory: From Margin to Center Boston: South End, 1984.

HOOPER, C. "Masculinist Practices and Gender Politics: The Operation of Multiple


Masculinities in International Relations." In: ZALEWSKI, M.; PARPART, J. (Ed.). The "Man"
Question in International Relations. Boulder, CO: Westview, 1998.

______. "Masculinities in Transition: The Case of Globalization." In: MARCHAND, M. H.;


RUNYAN, A. S. (Ed.). Gender and Global Restructuring, London: Routledge, 2000.

______. Manly States: Masculinities, International Relations, and Gender Politics New York:
Columbia University Press, 2001.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
HUNT, P. Gender and Class Consciousness
OKLondon: Macmillan, 1980.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 28/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

ISHII-KUNTZ, M. "Balancing Fatherhood and Work: Emergence of Diverse Masculinities in


Brazil Contemporary Japan." In: ROBERSON, J. E.; SUZUKI, N. (Ed.). Men and Masculinities in
Contemporary Japan. London: Routledge Curzon, 2003.

Revista
JANSEN, S. C.; SABO, D. "The Estudos
Sport-war Feministas
Metaphor: Hegemonic
 Masculinity, the Persian-
Gulf War, and the New World Order." Sociology of Sport Journal, v. 11, n. 1, p. 1-17, 1994.

JEFFERSON, T. "Theorizing Masculine Subjectivity." In: NEWBURN, T.; STANKO, E. A.


(Ed.). Just Boys doing Business? Men, Masculinities and Crime. London: Routledge, 1994.

______. "Subordinating Hegemonic Masculinity." Theoretical Criminology, v. 6, n. 1, p. 63-88,


2002.

KESSLER, S. J. et al. Ockers and Disco-maniacs Sydney, Australia: Inner City Education
Center, 1982.

KIMMEL, M. S. "Rethinking 'Masculinity': New Directions in Research." In: KIMMEL, M. S.


(Ed.). Changing Men: New Directions in Research on Men and Masculinity. Newbury Park,
CA: Sage, 1987.

______. "Globalization and Its Mal(e)contents: The Gendered Moral and Political Economy of
Terrorism." In: KIMMEL, M. S.; HEARN, J.; CONNELL, R. W. (Ed.). Handbook of Studies on
Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage, 2005.

KIMMEL, M. S.; MAHLER, M. "Adolescent Masculinity, Homophobia, and Violence: Random


School Shootings, 1982-2001." American Behavioral Scientist, v. 46, n. 10, p. 1439-1458,
2003.

KUPERS, T. A. Revisioning Men's Lives: Gender, Intimacy, and Power New York: Guilford,
1993.

LEA, S.; AUBURN, T. "The Social Construction of Rape in the Talk of a Convicted Rapist."
Feminism & Psychology, v. 11, n. 1, p. 11-33, 2001.

LIGHT, R.; KIRK, D. "High School Rugby, the Body and the Reproduction of Hegemonic
Masculinity." Sport, Education and Society, v. 5, n. 2, p. 163-176, 2000.

MAC AN GHAILL, M. The Making of Men: Masculinities, Sexualities and Schooling


Buckingham, UK: Open University Press, 1994.

MacINNES, J. The End of Masculinity: The Confusion of Sexual Genesis and Sexual
Difference in Modern Society Buckingham, UK: Open University Press, 1998.

MARTIN, P. Y. "Why can't a Man be more like a Woman? Reflections on Connell's


Masculinities." Gender & Society, v. 12, n. 4, p. 472-474, 1998.

______. "'Mobilizing Masculinities': Women's Experiences of Men at Work." Organizations, v.


8, n. 4, p. 587-618, 2001.

Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
MARTINO, W. "Boys and Literacy: Exploring the Construction of Hegemonic Masculinities
and the Formation of Literate Capacities forOK
Boys in the English Classroom." English in
Australia, v. 112, p. 11-24, 1995.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 29/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

McMAHON, A. "Male Readings of Feminist Theory: The Psychologization of Sexual Politics


Brazil in the Masculinity Literature." Theory and Society, v. 22, n. 5, p. 675-695, 1993.

MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinities and Crime: Critique and Reconceptualization of


Revista
Theory Lanham, MD: Rowman Estudos
& Littlefield, Feministas
1993.

______. "Managing to Kill: Masculinities and the Space Shuttle Challenger Explosion."
Masculinities, v. 3, n. 4, p. 1-22, 1995.

______. Crime as Structured Action: Gender, Race, Class and Crime in the Making
Thousand Oaks, CA: Sage, 1997.

______. Nine Lives: Adolescent Masculinities, the Body, and Violence Boulder, CO:
Westview, 2000.

______. Flesh & Blood: Adolescent Gender Diversity and Violence Lanham, MD: Rowman &
Littlefield, 2004.

______. "Men, Masculinities, and Crime." In: KIMMEL, M. S.; HEARN, J.; CONNELL, R. W.
(Ed.). Handbook of Studies on Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage, 2005.

MESSNER, M. A. Power at Play: Sports and the Problem of Masculinity Boston: Beacon,
1992.

______. Politics of Masculinities: Men in Movements Thousand Oaks, CA: Sage, 1997.

______. Taking the Field: Women, Men, and Sport Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2002.

MESSNER, M. A.; SABO, D. (Ed.). Sport, Men, and the Gender Order: Critical Feminist
Perspectives Champaign, IL: Human Kinetics Books, 1990.

MEUSER, M. "'This doesn't Really Mean she's holding a Whip': Transformation of the
Gender Order and the Contradictory Modernization of Masculinity." Diskurs, v. 1, p. 44-50,
2001.

______. "Modernized Masculinities? Continuities, Challenges and Changes in Men's Lives."


In: ERVØ, S.; JOHANNSON, T. (Ed.). Amongmen: Moulding Masculinities. Aldershot, UK:
Ashgate, 2003.

MEUSER, M.; BEHNKE, C. "Tausendundeine Männlichkeit? Männlichkeitsmuster und


Socialstrukturelle Einbindungen". Widersprüche, v. 67, p. 7-25, 1998.

MIELI, M. Homosexuality and Liberation: Elements of a Gay Critique. Translated by D.


Fernbach. London: Gay Men's Press, 1980.

MITTELMAN, J. H. Whither Globalization? The Vortex of Knowledge and Ideology London:


Routledge, 2004.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
MORIN, S. F.; GARFINKLE, E. M. "Male Homophobia." Journal of Social Issues, v. 34, n. 1,
p. 29-47, 1978. OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 30/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

MORRELL, R. "Of Boys and Men: Masculinity and Gender in Southern African Studies."
Journal of Southern African Studies, v. 24, n. 4, p. 605-630, 1998.
Brazil

MORRELL, R.; SWART, S. "Men in the Third World: Postcolonial Perspectives on


Masculinity." In: KIMMEL, M.Revista
S.; HEARN, J.; CONNELL,
FeministasR.
Estudos W. (Ed.). Handbook of Studies on
Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage, 2005.

MORRIS, C.; EVANS, N. "'Cheese Makers are Always Women': Gendered Representations
of Farm Life in the Agricultural Press." Gender, Place and Culture, v. 8, n. 4, p. 375-390,
2001.

MOSHER, D. L.; TOMKINS, S. S. Scripting the Macho Man: Hypermasculine Socialization


and Enculturation. Journal of Sex Research, v. 25, n. 1, p. 60-84, 1988.

NAMASTE, V. K. Invisible Lives: The Erasure of Transsexual and Transgendered People


Chicago: University of Chicago Press, 2000.

NEWBURN, T.; STANKO, E. A. Just Boys doing Business? Men, Masculinities, and Crime
New York: Routledge, 1994.

PEASE, B.; PRINGLE, K. (Ed.). A Man's World? Changing Men's Practices in a Globalized
World London: Zed Books, 2001.

PETERSEN, A. Unmasking the Masculine: "Men" and "Identity" in a Sceptical Age London:
Sage, 1998.

______. "Research on Men and Masculinities: Some Implications of Recent Theory for
Future Work." Men and Masculinities, v. 6, n. 1, p. 54-69, 2003.

PLECK, J. The Myth of Masculinity Cambridge, MA: MIT Press, 1981.

PLUMMER, K. (Ed.). The Making of the Modern Homosexual London: Macmillan, 1981.

POYNTING, S.; NOBLE, G.; TABAR, P. "Intersections" of Masculinity and Ethnicity: A Study
of Male Lebanese Immigrant Youth in Western Sydney University of Western Sydney, 2003.
Unpublished manuscript.

ROBERTS, P. "Social Control and the Censure(s) of Sex." Crime, Law and Social Change, v.
19, n. 2, p. 171-186, 1993.

ROPER, M. Masculinity and the British Organization Man Since 1945 Oxford, UK: Oxford
University Press, 1994.

RUBIN, H. Self-made Men: Identity and Embodiment Among Transsexual Men Nashville, TN:
Vanderbilt University Press, 2003.

SABO, D.; GORDON, D. F. (Ed.). Men's Health and Illness: Gender, Power and the Body
Thousand Oaks, CA: Sage, 1995.

Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
SABO, D.; JANSEN, S. C. "Images of Men in Sport Media: The Social Reproduction of
OK
Gender Order." In: CRAIG, S. (Ed.). Men, Masculinity, and the Media. Newbury Park, CA:
Sage, 1992.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 31/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

SALISBURY, J.; JACKSON, D. Challenging Macho Values: Practical Ways of Working with
Brazil Adolescent Boys Washington, DC: Falmer, 1996.

SCHWALBE, M. "Male Supremacy and the Narrowing of the Moral Self." Berkeley Journal of
Revista Estudos Feministas
Sociology, v. 37, p. 29-54, 1992.

SCOTT, J. W. "Comment on Hawkesworth's 'Confounding Gender'." Signs: Journal of


Women in Culture and Society, v. 22, n. 3, p. 697-702, 1997.

SEGAL, L. Slow Motion: Changing Masculinities, Changing Men London: Virago, 1990.

SKELTON, A. "On Becoming a Male Physical Education Teacher: The Informal Culture of
Students and the Construction of Hegemonic Masculinity." Gender and Education, v. 5, n. 3,
p. 289-303, 1993.

SNODGRASS, J. (Ed.). For Men against Sexism: A Book of Readings Albion, CA: Times
Change Press, 1977.

STOLLER, R. J. Sex and Gender: On the Development of Masculinity and Femininity New
York: Science House, 1968.

TAGA, F. "Rethinking Male Socialization: Life Histories of Japanese Male Youth." In: LOUIE,
K.; LOW, M. (Ed.). Asian Masculinities. London: Routledge Curzon, 2003.

THORNE, B. Gender Play New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1993.

THORNTON, M. "Hegemonic Masculinity and the Academy." International Journal of the


Sociology of Law, v. 17, p. 115-130, 1989.

TOLSON, A. The Limits of Masculinity London: Tavistock, 1977.

TOMSEN, S. Hatred, Murder and Male Honour: Antihomo-sexual Homicides in New South
Wales, 1980-2000 Canberra: Australian Institute of Criminology, 2002. v. 43.

VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. "Ser hombre en Santiago de Chile: a pesar de todo, un mismo
modelo." In: VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. (Ed.). Masculinidades y equidad de género en
América Latina. Santiago, Chile: FLACSO/UNFPA, 1998.

WAJCMAN, J. Managing Like a Man: Women and Men in Corporate Management Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1999.

WALBY, S. Gender Transformations London: Routledge, 1997.

WARREN, S. "Who do these Boys think they are? An Investigation Into the Construction of
Masculinities in a Primary Classroom." International Journal of Inclusive Education, v. 1, n. 2,
p. 207-222, 1997.

WETHERELL, M.; EDLEY, N. "Negotiating Hegemonic Masculinity: Imaginary Positions and


Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Psycho-discursive Practices." Feminism and Psychology, v. 9, n. 3, p. 335-356, 1999.
OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 32/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

WHITEHEAD, S. M. "Hegemonic Masculinity Revisited." Gender, Work, and Organization, v.


Brazil 6, n. 1, p. 58-62, 1998.

______. Men and Masculinities: Key Themes and New Directions Cambridge, UK: Polity,
2002. Revista Estudos Feministas

WILLIS, P. Learning to Labor: How Working Class Kids Get Working Class Jobs
Farnborough, UK: Saxon House, 1977.

ZARETSKY, E. "Male Supremacy and the Unconscious." Socialist Revolution, v. 4, p. 7-55,


1975.

1
N. T.: termo utilizado para traduzir a categoria "
embodiment" usada pelos autores.

2
Este artigo foi publicado originalmente na revista
Gender & Society, v. 19, n. 6, p. 829-859, Dec. 2005.

3
DINGES, RÜNDAL e BAUER, 2004.

4
e.g., DEMETRIOU 2011; e WETHERELL e EDLEY, 1999.
5
KESSLER et al., 1982.

6
Raewyn CONNELL, 1983.

7
CONNELL, 1982.

8
CONNELL et al., 1982.

9
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985.

10
CONNELL, 1987.

11
GOODE, 1982; e SNODGRASS, 1977.

12
TOLSON, 1977.

13
Maxine Baca ZINN, 1982.
14
Angela DAVIS, 1983.

15
Bell HOOKS, 1984.
Este site
16 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
CONNELL, 1977.
OK
17

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 33/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

EISENSTEIN, 1979.

18
Brazil
HACKER, 1957.

19
BRANNON, 1976. Revista Estudos Feministas

20
KIMMEL 1987; e PLECK, 1981.

21
ALTMAN, 1972.
22
MIELI, 1980.

23
MORIN e GARFINKLE, 1978.

24
BROKER, 1976; e PLUMMER, 1981.

25
WILLIS, 1977.

26
COCKBURN, 1983.

27
HERDT, 1981; e HUNT, 1980.

28
FREUD, 1955.

29
STOLLER, 1968.

30
FRIEDMAN e LERNER, 1986; e ZARETSKY, 1975.
31
e.g., BROD, 1987.

32
MARTINO, 1995.

33
SKELTON, 1993.

34
MESSERSCHMIDT, 1993.

35
NEWBURN e STANKO, 1994.

36
JANSEN e SABO, 1994.

37
HANKE, 1992.

38
Este site usa cookies
MESSNER, 1992. para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.

39 OK
MESSNER e SABO, 1990.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 34/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

40
N. T.: no original "
Brazil
playing hurt", expressão de língua inglesa usada para várias situações em que o sujeito, mesmo
lesionado ou com dor, dá continuidade a determinada prática. Expressão muito ligada aos
esportes e às práticas sexuais masculinas.
Revista Estudos Feministas
41
SABO e GORDON, 1995.

42
GERSCHICK e MILLER, 1994.

43
CHENG, 1996; e COCKBURN, 1991.
44
MESSERSCHMIDT, 1995.

45
BARRETT, 1996.

46
KUPERS, 1993.

47
DENBOROUGH, 1996.

48
SALISBURY e JACKSON, 1996.

49
BELTON, 1995.

50
BERG, 1994.

51
THORNTON, 1989.

52
SEGAL, 1990.
53
BUFKIN, 1999; e MESSERSCHMIDT, 1997.

54
MESSNER, 1992.

55
SABO e JANSEN, 1992.

56
ROBERTS, 1993.

57
BROWN, 1999.

58
CONSALVO, 2003.

59
VALDÉS e OLAVARRÍA, 1998.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
60
ISHII-KUNTZ, 2003. OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 35/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

61
HIGATE, 2003.
Brazil
62
GUTMANN, 1996.
Revista Estudos Feministas
63
MORRELL, 1998.

64
FERGUSON, 2001.
65
DASGUPTA, 2000.

66
TAGA, 2003.

67
MEUSER, 2003.

68
MORRIS e EVANS, 2001.

69
COLLINSON e HEARN, 1994.

70
HEARN, 1996 e 2004.

71
PETERSEN, 1998 e 2003.

72
COLLIER, 1998.

73
MacINNES, 1998.
74
WHITEHEAD, 2002.

75
CONNELL, 2003.

76
HALBESRTAM, 1998; e MESSERSCHMIDT, 2004.

77
GUTMANN, 1996.

78
WARREN, 1997.

79
HAWKESWORTH, 1997.

80
SCOTT, 1997.

81
CONNELL, 2002; e WALBY, 1997.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
82
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985. OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 36/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

83
MESSNER, 1992.
Brazil
84
GERSCHICK e MILLER, 1994.
Revista Estudos Feministas
85
DONALDSON, 1991.

86
SABO e GORDON, 1995.
87
MESSERSCHMIDT, 2000.

88
CONNELL, 1995, cap. 2.

89
BROD, 1994.

90
DONALDSON, 1993.

91
CONNELL, 1990.

92
MARTIN, 1998.

93
WETHERELL e EDLEY, 1999.

94
WHITEHEAD, 1998, p. 58; e 2002, p. 93.

95
DONALDSON, 1993.
96
ROPER, 1994.

97
WAJCMAN, 1999.

98
HOCHSCHILD, 1989.

99
MAC AN GHAILL, 1994; e THORNE, 1993.

100
CAVENDER, 1999.
101

HOLTER, 1997 e 2003.

102
HOLTER, 1997.

103
HOLTER, 1997 e 2003.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
104
BARRETT, 1996. OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 37/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

105
CAMPBELL, 2000.
Brazil
106
MARTINO, 1995; e WARREN, 1997.
Revista Estudos Feministas
107
COLLIER, 1998.

108
MARTIN, 1998, p. 473.
109
McMAHON, 1993.

110
N. T.: no original "
new lad" diz respeito a uma subcultura masculina que surgiu na Inglaterra no início dos anos
1990.

111
MOSHER e TOMKINS, 1988.

112
WETHERELL e EDLEY, 1999.

113
COLLIER, 1998.

114
COLLIER, 1998, p. 21.

115
MESSERSCHMIDT, 1993.

116
WETHERELL e EDLEY, 1999, p. 337.

117
WHETHERELL e EDLEY, 1999.
118
WHITEHEAD, 2002, p. 93.

119
WHITEHEAD, 2002, p. 92-94.

120
COLLIER, 1998; e JEFFERSON, 1994, p. 73.

121
LEA e AUBURN, 2001.

122
ARCHER, 2001.

123
RUBIN, 2003.

124
RUBIN, 2003.

125 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Este site
JEFFERSON, 1994 e 2002.
OK
126

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 38/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

MESSERSCHIMIDT, 2005.

127
Brazil
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985; e CONNELL, 1987.

128
WHITEHEAD, 2002. Revista Estudos Feministas

129
CONNELL, 2002.

130
CONNELL, 1995.
131
HAWKESWORTH, 1997.

132
BOURDIEU, 2001.

133
BIRD, 1996.

134
COLLINSON, KNIGHTS e COLLINSON, 1990.

135
COCKBURN, 1991.

136
MARTIN, 2001.

137
HOOPER, 2001.
138

TOMSEN, 2002.

139
KIMMEL e MAHLER, 2003; e MESSERSCHIMIDT, 2000. N. T.: no original "
sissiness".
140
DEMETRIOU, 2001.

141
DEMETRIOU, 2001.

142
DEMETRIOU, 2001, p. 355.

143
DEMETRIOU, 2001.

144
DEMETRIOU, 2001.

145
DEMETRIOU, 2001.

146
JEFFERSON, 2002, p. 71.

147 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Este site
MEUSER e BEHNKE, 1998.
OK
148

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 39/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

MESSNER, 1997.

149
Brazil
CONNELL, 1987, p. 183.

150
DEMETRIOU, 2001. Revista Estudos Feministas

151
POYNTING, NOBLE e TABAR, 2003.

152
MESSERSCHMIDT, 2004.
153
HOOPER, 1998 e 2000.

154
CONNELL, 1998.

155
PEASE e PRINGLE, 2001.

156
KIMMEL, 2005.
157

MESSNER, 2002.

158
LIGHT e KIRK, 2000.

159
BURGESS, EDWARDS e SKINNER, 2003.

160
MITTELMAN, 2004.

161
CONNELL e WOOD, 2005; e HOOPER, 2001.
162
CONNELL, 2005; e MORRELL e SWART, 2005.

167
DONALDSON e POYNTING, 2004.

163
RUBIN, 2003.

164
NAMASTE, 2000.

165
RUBIN, 2003, p. 180.

166
CONNELL, 2002.

168
SCHWALBE, 1992.

169
Este site usa cookies
MEUSER, 2001. para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.

170 OK
DEMETRIOU, 2001.

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 40/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito

171
COLLIER, 1998.
Brazil

Datas de Publicação Revista Estudos Feministas


» Publicação nesta coleção
09 Maio 2013
» Data do Fascículo
Abr 2013

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License.

Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da


Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55
48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br

SciELO - Scientific Electronic Library Online


Av. Onze de Junho, 269 - Vila Clementino 04041-050 São Paulo SP - Brasil
E-mail: scielo@scielo.org

Read our Open Access Statement

Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.

OK

https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 41/41
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar
e o Museu de Reinata que é ou não uma mulher emancipada?
(porque ninguém se lembraria de perguntar
se a Paula Rego é ou não uma mulher emancipada)

Teresa Cunha
2010

O Cabo dos Trabalhos: Revista Electrónic a dos Programas de Mestrado e


Doutoramento do CES/ FEUC/ FLUC. Nº 4, 2010
http://cabodostrabalhos/ces.uc.pt/n4/ensaios.php
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

RESUMO

NEVER T RUST WOMEN mantinha as suas qualidades fosforescentes a qualquer hora


do dia ou da noite. A frase colada no vidro traseiro do chapa - NEVER T RUST W OMEN
– impõe, persistentemente à rota entre o Museu e o Zimpeto, a evocação da
rebeldia e da suspeita de que a cada opressão se segue uma fúria e a
transgressão.
Neste trabalho procuro ensaiar e dar corpo ao conceito de aprender com o Sul,
no sentido de encontrar outros ângulos de compreensão e de teorização – de
retaguarda - sobre feminismos e a emancipação, exercitando uma epistemologia
pós-colonial.
Com base no trabalho de campo realizado em Maputo em 2008 e 2009 com
vendedeiras e lideranças femininas dos mercados informais e de associações de
base popular, tenho como objectivos, por um lado, discutir aquilo que designo
pela poli-racionalidade da emancipação das mulheres, e por outro lado, a
importância das capulanas tecidas, a urdidura que sustenta e faz a teia; os fios
que vão e voltam, unindo na desigualdade de cores, texturas, grossuras e
desenhos.
A pluri-versatilidade de projectos de emancipação ou de conseguimentos
emancipatórios das mulheres coloca-me um conjunto de questionamentos que
pretendo reflectir e tematizar: a) O que fazer com a pretensão de uma teoria
universal da emancipação das mulheres com base no atávico e planetário
patriarcado?; b) Como lidar, sem desperdiçar a herança e subversão que aí
também está contida, com as categorias gerais da emancipação das mulheres e o
processo narrativo que lhe corresponde?; c) Procurar, reconhecer e pensar, como
emancipatórias, experiências díspares, diferentes, não-alinhadas, demasiado
locais, demasiado biográficas não pode resultar numa fractura conservadora e de
reforço da hegemonia masculina?
A reflexão sobre estes três questionamentos suscita-me um ensaio teorizador
com base nas seguintes ferramentas: a) Uma Sociologia dos Resgates que pensa o
lugar do passado no presente e a ecologia da enunciação da emancipação -
porque esta tem que ser compreensível, concreta e resultar na felicidade das
pessoas; b) Uma Sociologia da Ambiguidade que sustente e suporte percursos e
projectos desalinhados e incertos quanto aos métodos e aos resultados; c) Uma
Sociologia das Caixas de Ressonância que pensa as formas de amplificação de
cada uma das vozes e gritos para que nenhuma pessoa se possa sentir
desamparada; procura formas e teares simbólicos, imateriais e físicos de união,
cooperação, questionamento e compaixão.

Palavras-chave: género; colonialismo; feminismo; pós-colonialismo

1. Introdução

Conhecer é uma operação de conjunção e uma estratégia e tarefa reflexiva de


articulação, de procura de ligações nas contradições, de inter-acção com harmonias
e tensões. A auto-reflexividade, do meu ponto de vista, apresenta dois movimentos e

2
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

duas dificuldades respectivas. Por um lado, representa um movimento de


internalização do que é apreendido do real; é pensar sobre o que se lê, experimenta,
realiza, se descobre e se aprende. A dificuldade é a exigência de um constante
escrutínio pessoal, ou seja, uma elevada capacidade crítica e analítica para que a
reflexividade não se transforme em apenas mais uma descrição da mesma coisa. O
segundo movimento, defino-o como um exercício de apropriação, de organização,
criatividade e de produção de inéditos. Neste sentido, reflectir é um exercício
autoral que marca, indelevelmente, o conhecimento sem o tornar exclusivo e
excludente mas mantendo o seu carácter profundamente relacional e comunicativo.
A dificuldade está em saber devolver o reflectido, isto é, saber como torná-lo
inteligível, útil e significativo para o auditório que o recebe. A auto-reflexividade não
é, pois, um acto solipsista da mente mas uma apropriação criativa, um aumento da
consciência da complexidade da produção do conhecimento que não evita a
indeterminação, o contingente de subjectividades, as biografias e os riscos de uma
economia de interpretação que subjaz ao acto de definir e conceptualizar. A auto-
reflexividade não é o conhecimento mas é uma das componentes do seu
processamento e, como os lugares de enunciação ensinam, é uma possibilidade
fecunda de aumentar a objectividade ampliando os campos de confrontação e de
argumentação uma vez que se admite a intrusão e a presença do observado, do
emocional, daquilo que faz parte, enfim, da corrente quente do pensamento de que
Santos (2007: 58) nos fala, ou seja, as condições e a vontade de ultrapassar os
desafios e as dificuldades.

Sendo as raízes ainda coloniais, as opções deste trabalho são pós-coloniais pois
sabem da sua incompletude, da potencial violência epistémica exercida sobre quem
ainda não exerceu o poder de suspender a minha memória para a criticar, limitar e
amplificar com a sua própria, com os seus conhecimentos e com a maneira como
quer e pensa ser apropriado comunicá-los. A minha abordagem sendo qualitativa não
pretende realizar generalizações, inferir tendências aplicáveis a uma realidade social
tão complexa e vasta. Pelo contrário, a minha opção é trabalhar na intensidade que
as narrativas e as auto-reflexões de que elas são epifanias, trazem para o
conhecimento e para a problematização dos tópicos em discussão. Nesta
apresentação procuro ensaiar e dar corpo ao conceito de aprender com o Sul, no
sentido de encontrar outros ângulos de compreensão e de teorização sobre
feminismos e a emancipação das mulheres, exercitando, o quanto possível, uma
epistemologia pós-colonial.

3
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

Com base no trabalho de campo realizado em Maputo em 2008 e 2009 com


vendedeiras e lideranças femininas dos mercados informais e de associações de base
popular, tenho como objectivo reflectir sobre aquilo que designo pela poli-
racionalidade e pluri-versalidade da emancipação das mulheres, ou, por outras
palavras, dos conseguimentos emancipatórios das mulheres. Esta discussão remete-
me para um conjunto de questionamentos que pretendo enunciar e argumentar aqui,
ainda que, necessariamente, de uma forma muito breve.

Em primeiro lugar, colocar a seguinte pergunta, parece-me como crucial:

- Quem e como se define o que é uma mulher emancipada, ou melhor, em que


termos se dá a emancipação das mulheres individual e colectivamente?

Em segundo lugar, há uma outra pergunta que se impõe:

- A emancipação das mulheres é, ou não, uma contra-narrativa ao poder dito atávico


e planetário do patriarcado?

Finalmente, é-me suscitada uma questão sensível e difícil:

- Procurar, reconhecer e pensar como emancipatórias, experiências díspares,


diferentes, não-alinhadas, demasiado locais, demasiado biográficas não pode
resultar numa fractura conservadora do acervo mundial da emancipação das
mulheres e, portanto, do reforço da hegemonia masculina que prevalece ainda?

1- Todas as pessoas têm, com certeza, imagens, representações do que é ou o que


pode ser uma mulher emancipada ou uma sociedade onde as suas mulheres se julgam
e são emancipadas. A nossa imaginação sociológica contemporânea sobre a
emancipação das mulheres está repleta de ícones, imagens, comportamentos e
clichés. Não é meu propósito neste trabalho definir ou limitar o conceito de
emancipação, e, em particular, a emancipação das mulheres. Para tal reservo-me a
certeza do extenso património conceptual, representativo e imagético com que cada
uma e cada um percebe e critica esta reflexão. Porém, a pergunta mantém -se: como
e quem define o que é uma mulher emancipada?

O ‘Movimento pela Aprovação da Lei contra a Violência Doméstica’ (2008: 5) de


Moçambique afirma que:

“- Hoje em dia, nós as mulheres, exigimos os nossos direitos como seres humanos e
queremos viver uma vida livre de violência, dormindo em paz e sem temer agressões
constantes do marido ou companheiro, que devem ser quem presta apoio e
solidariedade.

4
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

- Hoje em dia, nós as mulheres, denunciamos a violência doméstica como um dos mais
graves atentados aos direitos humanos das mulheres e como uma forma de controle
para manter a dominação feminina.”

Depreendo destes excertos que a emancipação das mulheres, segundo as suas autoras
Moçambicanas, está, intrinsecamente relacionada com, a ausência de violência sobre
si, os seus direitos humanos e o fim do controlo das mulheres pelos homens. Atrevo-
me a afirmar que, até aqui, parece estarmos partilhando, sem percalços de maior,
ideias, conceitos e representações.

No ‘Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos Relativo aos Direitos
da Mulher Africana’ (Fórum Mulher, 2006: 101) declara-se solenemente no preâmbulo
que:

“- Reafirmando o princípio da promoção da igualdade entre os homens e as mulheres


consagrado no Acto constitutivo da União Africana, na NEPAD e noutras pertinentes –
Declarações, Resoluções e Decisões, que realçam a determinação dos Estados Africanos
em garantir a plena participação das mulheres africanas no desenvolvimento de África,
como parceiras em pé de igualdade;
- Reconhecendo o papel crucial das mulheres na preservação dos valores africanos, com
base nos princípios de igualdade, paz, liberdade, dignidade, justiça, solidariedade e
democracia;”

Mais uma vez, podemos considerar transparente que a emancipação das mulheres é
definida em termos de igualdade, plena participação e preservação dos valores
africanos. Temos assim, uma amplificação relevante dos termos em que uma mulher
é e é reconhecida como emancipada: não sofre e não teme qualquer tipo de
violência, não é exercido controlo sobre ela, participa plena e igualmente na
sociedade e na preservação dos seus valores próprios. Creio que podemos concordar
que esta é uma imagem, que contém uma definição de emancipação que ainda nos
governa e, atrevo-me mais uma vez a dizer, que nos une no seu essencial.

Então, chegou a hora de perguntar, o que é que o Zimpeto, mercado abastecedor da


arte de pensar de muitas maneiras, traz de novo, de dissenso e de pluri-versalidade?
Para continuar esta discussão, vou-me socorrer, como disse acima, dos desafios que
me foram sendo feitos pelo meu trabalho de campo em Maputo. O primeiro resumo-o
num parágrafo que escrevi ao regressar de mais um dia de trabalho no mercado de
Xipamanine (Amal, 2009: 91):

“Vai ser um rodopio na minha cabeça porque ali as coisas estão muito mais próximas
do que conseguimos saber e sequer imaginar.
Imaginem um labirinto que não é. Imaginem trinta lojas de medicamentos como
incensos, gorduras, tónicos, cascas, madeiras, óleos, amuletos e muitas outras coisas
que não sei nomear. De repente, nas estruturas palafíticas (paus finos e escuros e
ainda por cima totalmente irregulares, exactamente como as árvores os deram)
surgem televisões de último modelo ligadas e, defronte, a secção das malas de viagem
iguais a de uma qualquer loja em que cada uma e um de vós costuma comprar as suas.

5
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

É uma impertinência até porque os corredores de terra têm para aí metro e meio de
largura e estão apinhados de pessoas que podem comprar ou encomendar qualquer
coisa.
Ali, nos mercados, as mulheres falam três e quatro línguas, fazem cálculos em várias
bases passaram e conhecem vários regimes políticos, ajustamentos estruturais, neo-
liberalismo, partido único e pluri-partidarismo, colonialismo, revolução e desilusão; a
maioria passou por muita terra, duas guerras e têm várias profissões. É preciso
pedalada.
Afinal não resisti e comecei a falar de Xipamanine.”

Parece-me assim apropriado aumentar o campo de foco da lente sobre a


emancipação: mulheres empresárias, poliglotas, com experiência relevante em vários
regimes de opressão e de libertação, diversificada experiência profissional e domínio
de operações matemáticas de aplicação essencial à gestão quotidiana dos recursos.
Talvez seja, neste momento, que comecem a surgir, entre nós, alguns danos
irrecuperáveis nas películas das nossas imagens.

Em segundo lugar, gostaria de ter o prazer de vos apresentar a Esmeralda,


empresária de serviços domésticos em Maputo e residente no Bairro de Mangoanine
na periferia da capital na estrada de Marracuene.

A Esmeralda tem dois filhos, Tomazito e Pedro e uma filha, a Edna. A Esmeralda é
uma das três esposas do seu marido. A cerimónia de anelamento – casamento – foi
um dos momentos mais importantes da sua vida porque escolheu aquele homem para
marido e está testemunhada em fotos lá em casa em lugar de destaque. Junto à casa
tem uma machamba onde planta milho, batata doce, m’boa e tudo o mais que
precisa. Tem casa de banho devidamente perto da torneira e longe do resto da casa.
A Esmeralda trabalha desde que terminou os estudos e é independente
economicamente da família desde os 15 anos de idade. Fala, escreve e lê três
línguas. Não quer ter mais filhos e por isso toma, rigorosamente, a pílula anti-
concepcional e é apoiada pelos conselhos dos médicos e vizinhas. A Esmeralda
define-se assim (Ibidem: 189):

“- Eu sofro de alegria!”

Mas conhecer a Esmeralda é mais do que isto. É a metamorfose, digo melhor, é o


exercício permanente e clarividente do escrutínio entre as raízes e as opções, para
usar uma expressão feliz de Boaventura. Permitam-me voltar a um pequeno excerto
das minhas notas de campo (Ibidem: 371-379).

“Sempre com calma e com tranquilidade a Esmeralda foi pedindo a cada um dos filhos
pequenos serviços e quando me dei conta havia uma mesa cá fora com pratos colheres
salada condimentos cerveja e copos. Veio a xima nos pratos a fumegar e a cheirar a
coco, a galinha grelhada num prato coberto e, antes de tudo, uma bacia, água e
sabonete para lavar as mãos. Pedrito com 17 anos organizava dentro de casa e,
seguindo as suaves indicações da mãe, ia aparecendo com tudo, recolhendo pratos e

6
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

acessórios, colocando mais cerveja fresca na mesa. Tomazito dava o apoio de


retaguarda dentro de casa. Saía e colocava as chinelas, entrava e tirava as chinelas
para prevenir lixos e outras coisa mal-vindas em casa. Pedrito foi quem organizou e
serviu o almoço com toda a delicadeza e silenciosamente, enquanto a mãe estava
sentada comigo depois de se lavar e mudar de roupa. A mãe era uma senhora. Não se
levantou nem só uma vez nem precisou pois Pedrito, Tomazito e Edna conhecem bem o
protocolo e as regras da boa educação.
(...)
Francisco, o marido, telefonou dizendo que não podia vir almoçar. Estava a trabalhar
mas mandava cumprimentos.
(...)
A Esmeralda não tinha frio na sua blusa verde relva. Tocou o telefone dela e ela tirou
o telefone do seio e falou com o papá mais uma vez que pedia desculpa mas ainda
estava retido no trabalho. Não faz mal disse ela. Nós estamos aqui, eu e a minha
amiga Tetê em casa da Joana. Já vira fazer aquilo no mercado à Mamã Alice: a
perfeita combinação entre o que nos convém da tecnologia mais modernaça e dos
hábitos mais decalcados de geração em geração. Assim a mamana de lenço na cabeça
que há bocado, junto ao fogão de brasas, mexia a xima com uma colher de pau é
também a jovem mãe de dois filhos e uma filha em jeans, blusa de seda com
sandalinhas a condizer usando celular, poliglota, agricultora, empresária dos seus
serviços, gestora de casa e de sentimentos. É a mesma que fala ronga, maxangane e
português e sabe como usar ortografia para tentar traduzir, pelo menos para mim,
aquele assobio que está dentro da palavra uswa, ou seja, xima. Também é a mesma
que é a terceira mulher de uma família polígama e que diz e reitera que sofre de
alegria.
Ora ali estava a harmonia poli-racional sem confrontos apenas a lucidez de um espírito
aprendente e pragmático a funcionar no seu pleno juízo.”

Será que a Esmeralda cumpre os requisitos de uma mulher emancipada segundo o


Protocolo e Movimento acima citado? Será que a Esmeralda desconstrói e reconstrói
os conceitos e as imagens que transferimos dessas palavras e das nossas
epistemologias feministas, ou vai mais longe, acrescentando, rompendo,
amplificando, mostrando que há versões não incluídas de liberdade e poder das
mulheres que é, como eu argumento, o núcleo duro da sua emancipação? Corro o
risco de deixar a pergunta por responder, por agora.

A terceira personagem que gostaria de evocar é Reinata. Reinata é uma conhecida


artista Maconde que agora vive e trabalha em Maputo. O seu atelier é no Museu de
História Natural, lugar onde começa a carreira do chapa que vai até ao mercado do
Zimpeto. Ela coze as suas peças nos fornos do Núcleo de Arte que fica numa rua
contígua. Essas ruas e esses espaços são habitados pela Reinata e pela sua arte
Maconde, no coração da cidade Xangane. Cada peça feita por ela pode custar entre
3000 a 6000 meticais, ou mais. Há quem diga que ela é explorada pela família que
acaba por lhe tirar todo o dinheiro que consegue com as suas peças de arte. Não sei
se é verdade ou não; mas sei que a imaginação artística dela é muito mais potente
do que qualquer rumor e transtorna a nossa estreiteza conceptual de emancipação
(Ibidem: 173).

7
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

“Figura impressiva. Claro que compreende português mas faz de conta que só
compreende e fala Maconde. Contudo ela tem realmente peças muito bonitas na sua
oficina super simples e mesmo pobre. Sabe negociar e o negócio fica ainda mais
interessante porque ela usa a Dª Judite como intérprete como se não entendesse nada
das propostas que lhe são feitas. Um mimo de tradição na rudeza do barro numa
mistura indelével com os hábitos modernos de se deixar capturar para ser fotografada
como a autora daquela peça ‘exótica’ de arte que se coloca em casa, sinal do longe, do
diferente, do que não se entende nem é preciso.
A Reinata é uma grande artista e uma grande actriz.”

2- A segunda questão prende-se com o poder, ou seja, a emancipação das mulheres


está, irremediavelmente, ligada aos seus poderes. Por um lado, há quem argumente
que a emancipação das mulheres é o exercício de um contra-poder, o do atávico e
omnipresente patriarcado. Por outro lado, eu argumento que se trata mais do que
um contra-poder mas o efectivo e quotidiano exercício dos poderes das mulheres –
porque, mais uma vez, este conceito deve ser plural.

Como aprender com o Sul implica o esforço da poli-racionalidade, vejo na obra de


Foucault, a respeito de um pensamento sobre poder, algumas virtualidades que são
bastante produtivas para este meu ensaio. Foucault alerta-nos para a ideia de que o
poder vem-de-baixo, que a estrutura de dominação presente na sociedade depende e
opera através de um circuito capilar constitutivo das relações de poder. Ele ainda
sublinha que o poder não pode ser visto nem entendido como uma entidade, uma
possessão ou uma instituição separada ou independente de um conjunto de relações
onde ele é exercido. Este aspecto relacional e capilar do poder, ou dos poderes, é
interessante para poder pensar a emancipação das mulheres porque nos obriga a
situar, a descortinar lugares e tempos de enunciação que têm geografias
epistemológicas, memórias e representações diferentes do sempre presente poder
patriarcal. A abordagem contida nas seguintes palavras de Foucault permite
aprofundar os tópicos e a análise que ensaio aqui (Faubion, 2002: 329).

“I would like to suggest another way to go further toward a new economy of power
relations, a way that is more empirical, more directly related to our present situation,
and one that implies more relations between theory and practice. It consists in taking
the forms of resistance against different forms of power as a starting point. To use
another metaphor, it consists in using this resistance as a chemical catalyst so as to
bring to light power relations, locate their position, find out their point of application
and the methods used. Rather than analyzing power from the point of view of its
internal rationality, it consists of analysing power relations through the antagonism of
strategies.” 1

1
Gostaria de sugerir uma outra maneira de prosseguir uma nova economia das relações de poder, uma
forma mais empírica, mais directamente relacionada com a nossa presente situação e que implique
mais relações entre a teoria e a prática. Consiste em tomar as formas de resistência contra diferentes
formas de poder, como ponto de partida. Usando uma outra metáfora, consiste em usar esta
resistência como um catalisador químico que permita trazer à luz relações de poder, localizar a sua
posição, descobrir as suas aplicações e os seus métodos. Mais do que analisar o poder do ponto de vista

8
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

Deste modo, sugiro que tomemos como ponto de partida, as palavras, os termos com
que elas próprias definem os seus poderes. Os termos que emergem da narração das
suas biografias imersas na complexa capilaridade de relações de poder assentes em
idade, género, raça ou estatuto social. Elas usam estratégias em que se sobrepõem
padrões de idealismo e pragmatismo e que são povoadas de aceitação, oposição,
humildade e raiva, mas que constituem, quase sempre, dinâmicas de antagonismo.
Com uma forte capacidade de infiltração nas comunidades, estas mulheres têm
sabido submeter-se, resistir, encontrar alternativas, pensar sobre si mesmas e
exercer os seus poderes. Maria Lúcia designa, assim, esta realidade (Amal, 2009:
753):

“O poder das mulheres é aguentarem o sofrimento, o poder para aguentar a dor e as


dificuldades. Esse é uma enorme poder das mulheres. As mulheres ocidentais
deprimem e é muito diferente de nós que temos muito mais poder para aguentar.
(...)
Para resolver os conflitos e educar as pessoas é preciso falar sempre baixinho e com
ternura. Nunca levantar a voz. Ou seja, levantar a voz dizer ser firme e frontal sem
levantar a voz em termos de tom e volume.”

As palavras de Maria Lúcia, empresária de fritos, como se gosta de chamar, estão a


ser, certamente, controversas e a multiplicar os questionamentos. Mas elas
concretizam de uma maneira clara, a meu ver, o que Hanna Arendt diz serem as duas
características do poder, em contraposição à violência: poder é energia e vigor
(Arendt, 2001: 13-14). Energia para aguentar; o vigor necessário à firmeza para
ensaiar o levantamento da voz sem a levantar.

Fátima Gomes, pastora evangélica de uma pequeníssima comunidade da Ilha do


Ataúro, propõe uma análise dos poderes das mulheres ainda mais difícil. Contudo,
podemos ver que as palavras de Fátima dizem que, num contexto concreto de um
enorme desequilíbrio das relações de poder, trazem à luz as estratégias de
resistência de que nos fala Foucault, os seus métodos e as suas aplicações. Nas
palavras dela (Ibidem: 755):

“É certo que há coisas que as mulheres conseguem fazer e os homens não. Não me
refiro apenas àquelas que parecem inevitáveis como dar à luz e amamentar; mas sim
manter a calma, a serenidade, ser capaz de ir aonde todos têm medo para negociar
alguma coisa, não se excitar e colocar tudo a perder em caso de conflito grave, não
usar a força como meio de resolver as coisas.
(...)
Alguns homens vieram falar comigo para tentar continuar a viver com a memória de
terem aberto as barrigas das mulheres para tirarem de dentro dos úteros as crianças e
matá-los contra as pedras ou estrangulando mãe e filho. Também contam como
mataram homens e jovens inocentes estrangulando-os depois de os ferirem de catana.

da sua racionalidade interna, consiste em analisar as relações de poder através das estratégias de
antagonismo.

9
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

Só uma mulher pode ouvir estas coisas sem ficar a odiar e sem perder, de novo e logo,
a cabeça.
(...)
As mulheres, sim, são fortes. De uma força visível nos seus actos de reconstruir sempre
as casas, procurar alimento e distribuir alimento mesmo quando escasseia muito. As
mulheres é que são fortes pois suportam todas as dificuldades e sofrimentos e nunca
desistem das suas famílias.”

Como já afirmei anteriormente, o meu argumento é que a emancipação das mulheres


está intrinsecamente relacionada com os seus poderes. Poder enquanto energia e
força; poder enquanto competência e capacidade; poder enquanto autoridade,
legitimidade e reconhecimento; poder enquanto resistência ao sofrimento; poder
enquanto antagonismo à dominação e às dificuldades. Ainda que uma parte relevante
destes poderes se exerça nos obscuros e ambíguos espaços da família e da
espiritualidade.

Não é de espantar que muitas tenham aprendido a obliquidade e a saber usar a


obscuridade e a ambiguidade para construir as suas manhas, os seus disfarces
desenvolvendo competências de estreito relacionamento com a clandestinidade e
aprendido a evitar o olhar e a visão. Porém, uma das mais preciosas contribuições do
pensamento feminista quando proclamou que o privado também é político resgata,
no meu entendimento, o valor eminentemente político destes poderes, considerados
ainda de sombra porque forjados na esfera do privado por sistemas de opressão,
vulnerabilização, silenciamento e violência. Mas é, aqui neste ponto, que os estes
poderes se transfiguram em competências de antagonismo, resistência, alternativa e
emancipação quebrando essa dicotomia terrível entre privado e público, familiar e
político. Os poderes das mulheres não se subsumem na plena participação política e
no desenvolvimento preconizados por valores com base nos princípios de igualdade,
paz, liberdade, dignidade, justiça, solidariedade e democracia. Os poderes de
muitas mulheres também nem sempre estão ligados à idade, ao sexo, e ao género. A
Liazzat Bonate (Ibidem: 27) sublinha que muitas mulheres são muito poderosas
porque:

“- Sabem escrever
- Sabem ler as cartas na comunidade
- Fazem requerimentos
- Sabem lidar com as instituições – mediar os poderes
- Têm um negócio e têm acesso a certos bens
- Emprestam dinheiro
- Têm casas de ‘descanso’ para os homens.”

Ou seja, na sua versatilidade, as mulheres e os poderes que engendram vão criando


fracturas, dissensões, transgressões, tanto no pensamento como na prática e na
teoria. Creio que disto é bem elucidativo a estória da entrevista à Vovó Betuxa,

10
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

empresária informal e vendedeira de verduzes no Bazar de Xipamanine em Maputo


(Ibidem: 120-122).

“Então a partir de um certo momento estávamos com umas sete mulheres e a Vovó
Betuxa sentada na cadeira principal (...). A conversa começou e logo aí a Vovó
começou a dizer que não queria falar português primeiro porque não sabia e depois
porque estava cansada. Ela falava e fazia uma pergunta em ronga a que todas as
mulheres respondiam dando o seu assentimento ou mostrando a sua concordância num
coro bem afinado. Às perguntas não havia respostas a não ser, não entendo, não sei...
seguidas de um coro de mulheres que de caras fechadas corroboravam as frases da
líder. Num certo momento e com alguma impaciência a conversa começou a ter o tom
da vitimização: somos as mais pobres dos pobres, não temos nada, o que precisamos é
de apoio, é de dinheiro, não precisamos de conversas. O encontro estava a tornar-se
impossível. (...) Naquele momento o que me moveu, principalmente, foi ter a noção
de que a sua pobreza era de facto absoluta e as suas necessidades eram reais. Ponderei
durante alguns minutos sobre as regras das entrevistas e, como sempre me pareceu um
pouco estúpido - digo mesmo assim - pretender que entrevistadora e entrevistada se
devem desocupar uma da outra, que a objectividade não se emociona nem se deixa
influenciar, que a ciência precisa tanto de pureza e desprendimento como de
disciplina, acabei por resolver arriscar dar dinheiro com o assentimento tímido e
precipitado da Telma.
Nesse momento escutei a Vovó dizer:
- Eu sou esperta!
Ela tinha conseguido e, nesse mesmo momento, experimentei do seu poder. Se eu
quero perceber que poderes e como os usam as mulheres que os têm ali se passou uma
peça brilhante de observação participante e deixei-me render ao poder e à inteligência
daquela Mamana. Ela usou o discurso, o cenário, o coro das mulheres para obter aquilo
que queria e tinha-me avaliado muito bem.
Se estou arrependida de lhe ter oferecido 500 mt? Nem um pouco. Estou certa que
compreendi com aquilo que se passou muito mais sobre os poderes, as subtilezas, as
manobras das mulheres que com as entrevistas purificadas que poderia ter feito a cada
uma delas.
Em seguida houve palavras e respostas que bem vistas as coisas não acrescentaram
muitas ideias; cantaram e abriram os rostos em sorrisos. O ambiente transformou-se e
a mamã Rabeca, ou Vovó Betuxa, continuou a controlar a situação mas naquela altura
com o meu consentimento e com o meu entendimento, pelo menos parcial, do que se
estava ali a passar.
Então que poderes descobri, ou pelo menos vislumbrei?
esconder
vitimizar
controlar
negociar
fazer alianças temporárias e as alianças necessárias
controlar o conhecimento dos espaços
controlar a informação
jogar com os sentimentos e os desconhecimentos de quem não faz parte da
comunidade
falar e compreender várias línguas e saber que se está em vantagem por isso
Controlar o fluxo de informação
Liderar um grupo de forma a estabelecer uma caixa de ressonância das suas posições
reforçando-as e tornando-as dominantes
Usar da autoridade formal e da autoridade da idade
Poderei ainda encontrar outras formas de auto-determinação, de afirmação de
vontade, de força, vitalidade, de energia e de pensamento próprio. Creio que tudo isto
constitui a noção de poder e quero problematizar e tematizar na minha tese.”

Talvez só não seja claro para mim. Mas, do meu ponto de vista, todos estes poderes
são políticos e são essenciais às comunidades humanas contrariando, sem pudor, um

11
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

certo e moderno imaginário e pensamento de poder epitomizado, mantido e


memorizado em figuras como são todos os heróis da libertação e da pátria. Os
continuum entre privado e público, presentes nos termos, nos métodos, nos
conceitos pensados e utilizados, são, precisamente, o que cada destas mulheres não
tematiza porque lhes é dispensável e irrelevante.

3- O meu terceiro questionamento é, do meu ponto de vista, o mais difícil de tratar e


de analisar. Ou seja, procurar, reconhecer e pensar, como emancipatórias,
experiências díspares, diferentes, não-alinhadas, demasiado locais, demasiado
biográficas não pode resultar numa fractura conservadora do acervo mundial da
emancipação das mulheres e do reforço da hegemonia masculina?

A esta pergunta junto a estória das vendedeiras de rua de Maputo e que é a seguinte
(Ibidem: 217-218):

“Pode-se argumentar que a pobreza empurra aquelas mulheres para as beiradas dos
passeios muitas vezes em cima de charcos fétidos e de lama preta. Estão ali a vender
alguns tomates e umas quantas tangerinas. Se passarmos às oito da manhã elas estão
lá com o seu pano estendido e os seus produtos arrumados. Se voltarmos a passar às
cinco da tarde, não é incomum vê-las no mesmo sítio e com os mesmos tomates e
tangerinas, igualmente arrumados nos montinhos ainda por vender.
Pode-se dizer que a pobreza destas mulheres as fixa aos charcos nojentos da cidade e
que as beiradas que ocupam são mais do que um buraco no passeio: são realmente a
margem, o limite, o único lugar que encontraram para si.
Mas também há uma outra forma de pensar sobre a mesma coisa.
O artista de batik Martin disse-me que arranjara uma banquinha para uma das irmãs ir
vender laranjas. Sem dinheiro para continuar na escola, sem casa para cuidar, sem
arroz para cozinhar, esta foi uma estratégia não só de sobrevivência mas também de
realização pessoal. Ela prefere sair de casa; prefere o passeio e os montinhos de
laranja do que ficar a ver passar as horas junto de uma casa sem nada, sem machamba
para trabalhar e produzir.
Algumas mulheres dizem que assim saem das suas casas, aprendem a lidar com a
cidade, podem ganhar algum dinheiro, arranjam-se o melhor que podem para não
perderem a dignidade junto das outras. Assim convivem, conversam e algumas
começam a pensar em voltar para a escola quando as oportunidades surgem. Ali vêm
passar os carros engolem os fumos, contraem doenças, podem ser escorraçadas e
batidas pelas polícias ou ladrões mas a insistência com que permanecem ali talvez nos
conte uma história de pobreza, de trágico ganha pão mas também uma escolha
arriscada, corajosa e determinada.
É esta ambivalência que é intrigante. Aparentemente sem escolhas, pode-se dizer que
algumas destas mulheres afirmam ter conseguido dar passos de qualidade nas suas
vidas. E quando conseguem um metro quadrado no mercado informal, um lugar nos
xitiques semanais e um avental de vendedeira, o caminho realizado é muito mais do
que as nossas pobres cabeças estão treinadas para pensar e imaginar. Não fecho os
olhos à pobreza e à injustiça estruturante do modelo económico e de desenvolvimento
capitalista. Nem tão pouco me passa pela cabeça encontrar justificações para este
estado de gentes. Não me conformo nem desisto de pensar que crise, a verdadeira
crise, é deixar tudo como está. A violência está visível e é incontornável. Mas o olhar
de Zumurrud impõe-se inevitável e fala:
- Hei-de conseguir!”

12
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

Estas minhas notas de campo não resolvem o assunto. Pelo contrário, lançam ainda
mais perplexidades e problemas analíticos para a discussão. O meu propósito é
mostrar como se pode tornar contraditória e infindável esta discussão. Contudo, o
meu grande objectivo é contribuir para um pensamento feminista aprendente e
humilde que não se satisfaz com as categorizações e definições que tanto têm vindo
a ser usadas. Do meu ponto de vista, não são apenas os contextos, os lugares de
enunciação que exigem um pensamento refrescado e uma nova teorização. São
também os limites endógenos das nossas teorias de vanguarda, modernas e
prescritivas que povoam os livros, as mentes, os imaginários, os slogans e que,
indelevelmente, vão decidindo quem é, ou não é, uma mulher emancipada. A
Reinata é uma mulher emancipada? E Dona Isabel Senhorinha? E Mariana? E Delfina
(Ibidem: 795-797; 798-801; 809-810)?

O trabalho de campo de desenvolvi em Maputo em 2008 e 2009 consolidou a minha


convicção de que o pensamento feminista, nas suas diferentes versões, também pode
ser imperial e colonial convertendo as pluri-versalidades em prescrições
universalizantes. No entanto, não se trata de desperdiçar ou contrapor uma nova
norma ou prescrição feminista. Neste momento, com base num pensamento que está
sempre a rodar dentro de mim, interpelado por todas estas mulheres de Maputo e de
Dili com quem estive e trabalhei nestes dois últimos anos, apenas vos proponho três
chaves teóricas para começar a construir aquilo que o professor Boaventura tem
vindo a chamar as teorias de retaguarda.

a) Uma SOCIOLOGIA DOS RESGATES que pensa o lugar do passado no presente e uma
ecologia da enunciação da emancipação - porque esta tem que ser compreensível,
concreta e resultar na felicidade das pessoas. Uma sociologia dos resgates
pretende redescobrir e resgatar do tecido social e dos imaginários tudo aquilo que
tem sido encoberto e olvidado mas que já mostrou ser útil, eficaz e capaz de se
transfigurar em novos conhecimentos e tecnologias de emancipação pessoal e
colectiva. É, particularmente, importante em sociedades marcadas por episódios
de grande violência e destruição e cujas políticas de memória nem sempre
respeitam as vítimas nem os ganhos emancipatórios de antes. Pensar assim a
emancipação das mulheres através desse resgate sociológico remete-me para o
seu carácter performativo e exemplar: umas para as outras, umas das outras,
umas com as outras, as mulheres constroem as suas próprias formas de
emancipação.

13
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

b) Uma SOCIOLOGIA DA AMBIGUIDADE que sustente e suporte percursos e projectos


desalinhados e incertos quanto aos métodos e aos resultados. Ou seja, tornar a
instabilidade numa categoria das categorias sociológicas. As vendedeiras da lama,
as Delfinas, as mulheres que não querem perder os seus maridos por causa da
carreira, das crianças ou outros motivos; as mulheres que sustentam as casas, as
famílias e inventam ciclos de agricultura familiar no quintal de trás, mais negócios
e projectos de vida, onde estão, na literatura? Ainda que não saibam discursar ou
escrever ensaios, lembro-me que sabem línguas, matemática, gestão e economia,
e muitas vezes são peritas na resolução de conflitos. Algumas são as que usam as
mais bem sucedidas técnicas de harmonia hostil e greves de silêncio dentro de
casa mas nem sempre gostam de intervir numa discussão pública ou participam
numa campanha. Aquela ambiguidade que sentimos nas suas escolhas e métodos
não será, sobretudo, o nosso medo de não entender, de não controlar, categorizar
e arrumar nas nossas tão claras teorias feministas?

c) Uma SOCIOLOGIA DAS CAIXAS DE RESSONÂNCIA que pensa as formas de amplificação de


cada uma das vozes e gritos para que nenhuma pessoa se possa sentir
desamparada; procura formas e teares simbólicos, imateriais e físicos de união,
cooperação, questionamento e compaixão. O grande desafio permanece então no
diálogo, no sentido mais profundo do termo, ou seja, como colocar duas ou mais
racionalidades em inter-acção, a ler-se, a interpretar-se, a apaixonar-se sem que
uma ou outra se mostre interessada e activa em se impor. As caixas de
ressonância precisam de hermenêuticas de responsabilidade mútua e compaixão.
Compaixão não no sentido de piedade mas no sentido de saber sentir com, ou
seja, a competência humanizadora e plurilógica de não separar a investigação da
acção, a mão do pensamento, a ética da vida, os princípios da existência concreta
das criaturas.

2. Notas de arremate

Neste trabalho procurei dar corpo a algumas das interpelações que o trabalho de
campo realizado no âmbito da minha pesquisa de doutoramento me suscitou.
Formulei-as em três questões de partida: quem é uma mulher emancipada? O que são
os poderes das mulheres? Localizar, biografar não pode reforçar a discriminação e a
dominação sobre as mulheres? O meu exercício foi argumentar através de outros
termos e de outras formas de entender e de exercitar a razão ou a desrazão das
coisas. Contei para isso com as estórias e as lições aprendidas com as mulheres e

14
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

homens com quem tenho vindo a trabalhar e a conversar e ainda com as muitas
reflexões que fui fazendo e faço. Quero acabar este ensaio com uma última reflexão
e que considero o texto deste texto.

Aprendi em Moçambique, com uma mulher, que o professor dela já dizia há vinte
anos:

“- A guerra em Moçambique, não serve apenas para destruir as pessoas, as infra-


estruturas, a economia e fazer transferência de poder entre grupos e interesses. A
guerra serve sobretudo para destruir a memória da revolução, do que juntos
conseguimos fazer, com tão pouco e com tão pouco respeito de quem nos observava,
cinicamente.”

Ao chegar a Dili, repetiu-se o mesmo amargo de boca que tivera em Maputo. A cada
mulher a quem perguntei quais eram os momentos em que ser mulher era
importante, que poderes tinham dentro e fora da família, a mesma hesitação e o
mesmo silêncio. Tornara-se impensável e impronunciável. Claro, pensei eu. As
mulheres e as meninas são as mais pobres, as maiores vítimas de violência em tempo
de guerra ou fora dela, em casa ou na rua, são as que trabalham mais e menos
rendimentos têm. Elas são, sem dúvida, as subalternas, as margens das margens, as
silenciadas. Passados alguns dias comecei a ver. E vi o quê?

Vi duas cidades cheias de vítimas tematizadas de todas as maneiras nos cartazes, nos
anúncios das conferências internacionais, nos programas de televisão, na propaganda
dos governos, nas iniciativas da UNIFEM e da UNICEF, nos ‘perfis de género’, nas
igrejas, nos centros de recurso e também nos Centros de Estudos do Género.

Até que vi e compreendi a frase:

15
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?

Eu posso.

Eu compreendo que me odeiem pelo resto dos vossos dias mas será que vermos
tanto, falarmos tanto, escrevermos, estudarmos tanto, sublinharmos as vítimas que
elas são - e como são! - não pode ser como a guerra? Destrói a memória, destrói as
palavras, destrói o poder das mulheres para se emanciparem, pensarem-se e
fazerem-se feministas do seu tempo, do seu lugar e da sua imaginação social?

“- O soldado (...) fazia só o seu trabalho dele que era matar. Os maburros esses eram
maus. Além de matar e matavam melhor (...) que é o trabalho da guerra, eles partiam
as panelas” (Ibidem: 123).

Referências Bibliográficas

Amal, Teresa (2009), Never Trust Sindarela. Diário de Campo (mimeo).


Arendt, Hanna (2001), Sobre a Violência. Relume Dumará: Rio de Janeiro.
Faubion, James D. (2002), Michel Foucault. Power Essential Works of Foucault 1954 –
1984. Volume 3. London: Penguin Books.
Fórum Mulher (2006), “Compilação de Instrumentos Internacionais e regionais de
defesa dos direitos Humanos das Mulheres”. Maputo: Fórum Mulher – Coordenação
para a Mulher no Desenvolvimento.
Santos, Boaventura de Sousa (2007), Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a
Emancipação Social. São Paulo: Boitempo Editorial.

Nota biográfica
Teresa Cunha nasceu no Huambo em Angola. Estudou Filosofia, Ciências da Educação
e Sociologia. Tem vários trabalhos publicados em vários países sobre Feminismos,
Timor-Leste e Educação dos quais se destacam os mais recentes: Tecendo margens
no oceano Índico: Paz, Justiça Social e Mulheres de Moçambique e Timor-Leste e
Challenging International ‘Rationales: Another understanding to Timor-Leste and
Mozambique publicados pela Universidade de Vitória, Austrália; Against the Waste of
Experiences in Intercultural Learning, publicado pelo Conselho da Europa;
Reconnaître l’inconnu. Vers un dialogue interculturel en Europe, publicado pelo
Observatório das Políticas Culturais de França e Critérios para avaliar organizações
não lucrativas ou nove teses para aprofundar a democracia do Terceiro Sector
publicado pela Universidade Metodista, Brasil.
É doutoranda do CES estando a terminar a sua dissertação cujo título é: Para além de
um Índico de desesperos e revoltas. Uma análise feminista pós-colonial sobre as
estratégias de vida e de poder de mulheres de Moçambique e Timor-Leste. As suas
áreas de interesse em termos de investigação são: feminismos e pós-colonialismos no
Oceano Índico em particular Timor-Leste e Moçambique; estudos para a paz;
emancipação social. É Professora na Escola Superior de Educação do Instituto
Politécnico de Coimbra, Portugal.
Contacto: tahine@ces.uc.pt

16
Teresa Cunha
24/06/2021 Vista do Mulheres especialmente marginalizadas: uma entrevista com Dolores Juliano. DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0010

 Mulheres especialmente marginalizadas: uma entrevista com Dolores Juliano. DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0010

https://revistas2.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/8043/Artigo 1/1
Redalyc
Sistema de Información Científica
Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

Piscitelli, Adriana
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
Sociedade e cultura, Vol. 11, Núm. 2, julio-diciembre, 2008, pp. 263-274
Universidade Federal de Goiás
Brasil

Disponible en: http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=70311249015

Sociedade e cultura
ISSN (Versión impresa): 1415-8566
robertolima@fchf.ufg.br
Universidade Federal de Goiás
Brasil

¿Cómo citar? Número completo Más información del artículo Página de la revista

www.redalyc.org
Proyecto académico sin fines de lucro, desarrollado bajo la iniciativa de acceso abierto
Interseccionalidades, categorias
de articulação e experiências
de migrantes brasileiras
Adriana Piscitelli
Doutora em Ciências Sociais - Unicamp
Pesquisadora do Pagu - Unicamp
adriana.piscitelli@pq.cnpq.br

Resumo Neste texto apresento alguns comentários sobre o surgimento de categorias que alu-
dem à multiplicidade de diferenciações que, articulando-se a gênero, permeiam o so-
cial. São as categorias de articulação e/ou as interseccionalidades (intersectionalities).
Analiso o conteúdo atribuído a esses conceitos e considero como eles contribuem para
analisar uma problemática relevante no Brasil contemporâneo: a feminização da mi-
gração internacional. Na primeira parte do artigo, situo a emergência desses conceitos
no marco da história do pensamento feminista. Na segunda parte, considero como
suas utilizações adquirem conotações distintas no que se refere à conceitualização das
diferenças, das maneiras como o poder opera e das margens de agência (agency) con-
cedidos aos sujeitos em distintas abordagens teóricas. Finalmente, na terceira parte,
refl ito sobre esses conteúdos levando em conta aspectos vinculados à integração de
migrantes brasileiras no mercado global de trabalho e no mercado matrimonial.

Palavras-chave: interseccionalidades; gênero; feminismo; migração; mercado glo-


bal de trabalho; mercado matrimonial.

Introdução

N este texto trato de conceitos que estão adquirindo centrali-


dade no debate feminista. O pensamento feminista, expressão de
idéias que resultam da interação entre desenvolvimentos teóricos e prá-
ticas políticas, está longe de constituir um todo unificado. Na história
desse pensamento, algumas categorias ou conceitos foram particular-
mente relevantes em momentos específicos. Nas diferentes perspectivas
que o integram, conceitos elaborados em certas épocas têm persistido
ao longo do tempo. Entretanto, é possível aludir a momentos, caracte-
rizados pela relevância concedida a algumas conceitualizações.
No debate internacional, o final da década de 1990 está marcado
pela emergência de categorias que aludem à multiplicidade de diferen-
ciações que, articulando-se a gênero, permeiam o social. São as catego-
rias de articulação e as interseccionalidades (intersectionalities). Algumas
autoras optam por um desses conceitos (McKlintock, 1995; Crenshaw,
2002). Outras utilizam alternativamente ambos (Brah, 2006). Na dé-
cada de 2000, a utilização dessas categorias está amplamente difundida.
Contudo, assim como aconteceu com o conceito de gênero, essas cate-
gorias adquirem conteúdos diferentes segundo as abordagens teóricas
das autoras que com elas trabalham.
Nesse texto apresento alguns comentários sobre o surgimento e o
conteúdo atribuído a esses conceitos – categorias de articulação e in-

Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263 a 274


264 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

terseccionalidades – e considero que algumas de suas óricas feministas explicavam a situação de subordinação
vertentes contribuem para analisar uma problemática das mulheres utilizando simultaneamente ambos con-
relevante no Brasil contemporâneo: a feminização da ceitos. Vale lembrar que, embora o Patriarcado sempre
migração internacional. Na primeira parte do artigo, seja considerado como sistema de dominação masculi-
situo a emergência desses conceitos no marco da histó- na, há diferenças entre as maneiras de concebê-lo em
ria do pensamento feminista. Depois considero como correntes feministas radicais e socialistas. Às primeiras
suas utilizações adquirem conotações distintas no que atribui-se a disseminação da idéia de Patriarcado como
se refere à conceitualização das diferenças, das maneiras sistemas de opressão presentes ao longo do tempo e
como o poder opera e das margens de agência (agency) mediante as culturas, implicando que, universalmente,
concedidos aos sujeitos em distintas abordagens teóri- as mulheres compartilham uma realidade separada dos
cas. Finalmente, reflito sobre esses conteúdos levando homens. Nas correntes socialistas, o patriarcado adqui-
em conta aspectos vinculados à integração de migrantes re uma dimensão histórica (variando no tempo) e uma
brasileiras no mercado global de trabalho. base material, intimamente ligado aos modos de pro-
dução e reprodução – embora sua existência em modos
de produção muito diferentes evoque os pressupostos
radicais sobre a dominação masculina transhistórica
Debate feminista, gênero, (Heinen, 2000; Grant, 1993; Mohanty, 1991).
diferenças e poder Diversas autoras, porém, passaram a questionar
o caráter transhistórico e/ou a fi xidez desse conceito
(Apfelbaum, 2000). Elas se perguntaram seriamente
Para situar a emergência dessas categorias é im- em que consistia a dominação masculina, como se
portante pensar em um momento, no final da década media? Seria possível pensar essa dominação como
de 1980. É o grande momento em que várias autoras, universal? Seria possível considerar como equivalen-
trabalhando no âmbito de diferentes tradições discipli- tes aspectos tais como o lugar das mulheres na divisão
nares, publicaram textos críticos sobre gênero que se sexual do trabalho, sua desvalorização nos mitos ou o
tornaram referências clássicas nas discussões contempo- controle das mulheres mediante um estupro coletivo?
râneas. Refiro-me a Scott (1988) entre as historiadoras, (Rubin, 1975; Reiter, 1975).
a Strathern (1988) na antropologia, a Haraway (1991) Nos escritos críticos de finais da década de 1980
na história da ciência, a Butler (1990), na filosofia. Al- há sérias problematizações a noções correntes no pen-
gumas dessas autoras esperavam, valendo-se do traba- samento feminista sobre as operações do poder, parti-
lho com gênero, produzir deslocamentos nos paradig- cularmente à universalização do quadro ideológico do
mas disciplinares no marco dos quais trabalhavam. poder e das relações de poder presentes no paradigma
Por que textos críticos? Porque essas obras ques- ocidental das relações de gênero. Algumas antropó-
tionaram os pressupostos embutidos nas primeiras for- logas chamaram a atenção para o fato de que a com-
mulações de gênero, as perspectivas sobre poder que preensão do gênero ocidental, incluindo o pensamento
estavam informando várias linhas de análises feminis- feministas, está ligada não apenas às relações entre os
tas e, também, a centralidade concedida ao gênero em sexos, mas a idéias mais gerais sobre como a cultura é
termos das forças sociais que oprimem às pessoas. diferente de e superior à natureza. No centro desse pa-
A partir da segunda metade da década de 1970, radigma haveria uma teoria do poder e o político, que
o conceito de gênero, pensado como construção cul- inclui noções muito específicas sobre relações de do-
tural e arbitrária, variável, de aspectos vinculados ao minação e subordinação, exploração, coerção, controle
sexo biológico, tido como natural é imutável, tinha se e desigualdade (Overing, 1986; Strathern, 1988). Es-
difundido de maneira extraordinária. Esse conceito, sas autoras contestaram a universalidade da hierarquia
pensado no marco da distinção entre sexo e gênero, e da subordinação feminina com base em leituras de
era considerado como um avanço em relação à ca- sistemas nativos de moralidade e de concepções nativas
tegoria mulher (Piscitelli, 2002). Os escritos críticos do poder e o político. De acordo com elas, a dominân-
de finais da década de 1980, porém, questionaram os cia masculina, nos contextos nos quais ela se apresenta,
pressupostos presentes na distinção sexo/gênero. Um não poderia ser universalmente pensada em termos da
dos motivos foi a fi xidez e unidade que essa distinção lógica ocidental, ancorada em pressupostos de proprie-
conferia às identidades de gênero, ao formular a exis- dade, à maneira como se possui uma mercadoria.
tência de uma base biológica imutável que dividia a Esses questionamentos foram realizados por meio
humanidade em dois sexos e, consequentemente, em de um deslocamento nos referenciais teóricos utiliza-
dois gêneros. Outro dos aspectos problematizados foi dos. As autoras passaram a se ancorar em aproxima-
a universalidade atribuída a essa distinção. ções desconstrutivistas. Refiro-me ao procedimen-
Embora as primeiras formulações da distinção entre to de olhar criticamente para os supostos sustentados
sexo e gênero foram pensadas como alternativa possível por diversas disciplinas, examinando e desmontando
ao trabalho com o conceito de Patriarcado, muitas te- sua lógica discursiva. A produção crítica sobre gêne-
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
265 Adriana Piscitelli (Unicamp)

ro possibilita perceber uma convergência no que se com outras diferenças têm sido tensa, uma vez que
refere a problematizar os modelos teóricos totalizan- algumas correntes consideravam que dar peso a elas
tes. As autoras contestam a validade dos modelos que debilitava um pressuposto político relevante: a iden-
buscam analisar e explicar as transformações históricas tidade entre mulheres. Os escritos críticos de finais
pressupondo, por exemplo, a continuidade de certas da década de 1980 tendem a reconhecer essas dife-
estruturas e/ou instituições. Elas questionam, tam- renças. Entretanto, esse reconhecimento nem sempre
bém, as abordagens que formulam uma compreensão se expressou no plano analítico e, quando ele existiu,
da diferença tendo como referência um Outro exóge- muitas vezes privilegiou uma única diferença articu-
no, externo, procedimento que mantém o princípio lada a gênero1.
de uma unidade e coerência cultural interna. Essas Algumas das autoras que se envolveram nas refor-
teóricas trabalham com a idéia de dissolução do sujeito mulações críticas do conceito de gênero enunciaram a
universal autoconsciente; valorizam a linguagem e o importância de considerar conjuntamente classe, raça
discurso como práticas relacionais, que produzem e e gênero. Entretanto, elas continuaram privilegiando
constituem as instituições e os próprios sujeitos como a categoria gênero. Joan Scott (1988), por exemplo,
sujeitos históricos e culturais e compreendem, enfim, afirma que, como feminista, seu compromisso é, so-
a produção de saber e significação como ato de poder bretudo, com o saber sobre a diferença sexual. Nesse
(Bessa, 1995). sentido, segundo ela, com base em sua proposta ana-
Nessa produção é visível a tendência a trabalhar lítica, seria possível fazer emergir uma nova história
com uma noção pulverizada de poder, à maneira de que redefiniria novas questões, em conjunção com
Foucault (1977). Um exemplo é oferecido por Joan uma visão da igualdade que também incluísse classe e
Scott (1988) que, rejeitando a noção de Patriarcado, raça. Entretanto, ela não faz uma tentativa maior de
propõe explorar as distribuições diferenciadas de po- elaboração que articule essas diferenciações.
der permeando contextos históricos específicos. Com Outras autoras ratificam a importância de pensar
esse objetivo, a autora propõe substituir a noção de em diversas categorias de diferenciação, contudo aca-
que o poder social é unificado, coerente e centraliza- bam prestando particular atenção à articulação entre
do por uma idéia de poder como constelações disper- algumas diferenças específicas. Uma delas é a relação
sas de relações desiguais. entre gênero e sexualidade. Judith Butler, uma das
críticas mais radicais do conceito de gênero, oferece
um exemplo dessa posição.
A autora pensa gênero como o mecanismo se-
Diferença sexual e outras diferenças gundo o qual se produzem e naturalizam noções do
masculino e feminino, mas também como o mecanis-
mo mediante o qual esses termos são desconstruídos
Essas leituras críticas do conceito de gênero, for- e desnaturalizados (Butler, 2002). A radicalidade de
muladas no plano teórico, coincidem com intensas sua formulação consiste em que gênero para ela é re-
reivindicações, internas ao movimento feminista, re- lacional, não no sentido de tratar-se de relações entre
lativas à diferença, formuladas por mulheres negras, homens e mulheres, ou entre masculino ou feminino,
do Terceiro Mundo e por feministas lésbicas (Hara- mas porque pensa em gênero como um fazer, como
way, 1991). Entretanto, as reelaborações teóricas não uma atividade que é performada para alguém, mes-
incorporaram as exigências de prestar atenção a outras mo que esse alguém seja inteiramente imaginário. Ela
diferenças, para além da sexual, de maneira homogê- propõe afastar o gênero de idéias como a relação entre
nea. Na história do pensamento feminista, a relação masculinidade e feminilidade, pois o binário mascu-

1 O pensamento feminista vinculado ao marxismo e ao socialismo sempre levou em conta as diferenças de classe. Vale lembrar a força concedida
a essa distinção nos escritos das primeiras décadas do século XX (Goldman, 1917) e também as infinitas discussões, no âmbito do feminismo
da “segunda onda”, durante a década de 1970, entre as radicais que concediam primazia ao patriarcado e as socialistas, que se centravam na
articulação entre patriarcado e capitalismo, prestando séria atenção às diferenças de classe entre as mulheres (Beechey, 1979). O feminismo ra-
dical da segunda onda, ao contrário, caracterizou-se por minimizar diferenças que não fossem as sexuais, às quais conferiam absoluta primazia.
Assim, as discriminações vinculadas à classe e raça não encontravam abrigo nessas formulações. Nesse sentido, são significativos os comentários
de Shulamith Firestone (1976), no que se refere ao racismo. A autora afirma que o racismo está limitado ao âmbito da cultura ocidental. Mas, a
luta das feministas deveria ir além dessa cultura específica, questionando a própria organização da cultura e da natureza, nas quais se ancora a
desigualdade das mulheres. Essas idéias são relevantes porque remetem à centralidade concedida à diferença sexual, em termos universais, por
algumas correntes do pensamento feminista. Observe-se, porém, que a raça é tratada como se apenas oferecesse elementos para estabelecer
analogias, comparações entre formas de opressão, em diversas formulações feministas. Neste sentido, vale a pena prestar atenção à maneira
como Gayle Rubin (1975) trata das diferenças raciais. Quando a autora formula a idéia de sistema de sexo e gênero, estabelece paralelismos entre
diferentes movimentos de oprimidos que deveriam unir-se: feministas; negros americanos; pessoas do terceiro mundo; indígenas americanos, mas
não há tentativas de articular as diferenças nas quais se ancoram essas opressões.
266 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

lino/feminino não esgotaria o campo semântico do e nacionalidade (Shohat, 1992; MacKlintock, 1992;
gênero. Em um diálogo múltiplo com aspectos do Mohanty, 1991). Com esse último termo elas aludiam
pensamento feminista, do pensamento queer e com os ao posicionamento desigual, em escala global, propi-
movimentos da Nova Política do Gênero que reivin- ciado pela nacionalidade. Isso que, à falta de um nome
dicam direitos sexuais, incluindo os direitos de pessoas melhor, chamo de localização, para aludir à posição
intersex e trans, a autora afirma que a existência de estrutural das nacionalidades que estão interagindo.
transgêneros sugere que o gênero se desloca além des- Finalmente, outras autoras concedem relevância
se binarismo naturalizado. à análise conjunta de uma constelação de diferenças.
No que se refere à relação entre gênero, sexua- No entanto, consideraram que para analisar de ma-
lidade e raça, Butler assume uma posição ambígua. neira adequada a operação conjunta dessas diferenças é
Ela afirma reiteradamente a necessidade de analisar necessário criar categorias alternativas a gênero e tam-
essa relação. Em Gender Trouble (1990) alega que gê- bém à raça. Donna Haraway, bióloga e historiadora da
nero estabelece interseções com modalidades raciais, ciência, oferece um exemplo dessa posição.
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades Segundo ela, ao insistir no caráter de construção
discursivamente constituídas. Essas interseções não social do gênero, nem o sexo nem a natureza foram
poderiam ser hierarquizadas nos termos de alguma historicizadas e, com isso, ficaram intactas idéias pe-
condição primária de opressão. Contudo, ela só reali- rigosas relacionadas com identidades essenciais tais
za uma tentativa de análise articulando esse conjunto como mulheres ou homens. Ela considera que, traba-
de diferenças em um capítulo de uma obra posterior, lhando com a distinção sexo/gênero, seria impossível
Bodies that Matter (1993). desconstruir como os corpos, sexualizados e racializa-
Nesse livro, a autora considera sexo e raça como dos, aparecem como objetos de conhecimento e espa-
efeito de regimes de produção reguladora que operam ços de intervenção na biologia. E, sobretudo, consi-
na produção dos contornos corporais. Além de con- dera que a centralidade concedida à categoria gênero
testar a idéia de que a diferença sexual seja a diferen- obscurece ou subordina todas as outras, como raça e
ça da qual podem ser derivadas as outras diferenças, classe, outras, que emergem nitidamente das ‘políticas
Judith Butler afirma que a reprodução da heterosse- da diferença’, em um movimento imperalista do femi-
xualidade assume formas diferentes segundo como nismo branco e ocidental.
se entendam a raça e a reprodução da raça. Entretan- Como saída, ela propõe trabalhar com um con-
to, excetuando o capítulo mencionado desse livro, ceito diferente, os aparatos de produção corporal,
os restantes lidam exclusivamente com sexualidade e que historicizando categorias como sexo, carne, cor-
gênero, que certamente é a articulação central para a po, biologia, raça e natureza, permitiria pensar na
autora. Não é por acaso que toda a sua formulação so- emergência de corpos marcados por diferenças, em
bre a abjeção, designando as zonas inabitáveis da vida uma perspectiva na qual a natureza não fosse ima-
social, está ancorada na relação entre gênero e sexua- ginada como um recurso para a cultura, ou como o
lidade, na produção dos gêneros não inteligíveis que sexo para o gênero.
desestabilizam a harmonia binária e linear entre sexo, Os questionamentos presentes nas formulações
gênero e desejo. dessas autoras continuaram sendo elaborados com
Outras autoras privilegiaram a articulação entre intensidade durante a década de 1990, sob a intensa
raça e gênero, em linhas de discussão que denunciam pressão dos movimentos políticos. No bojo desse mo-
as exclusões do pensamento feminista da segunda vimento, na procura de categorias analíticas alterna-
onda, que já não é mais pensado apenas como pen- tivas, surge a formulação dos conceitos categorias de
samento feminista, mas como pensamento feminis- articulação e/ou interseccionalidades.
ta branco (Bhavnani, 2001; Haraway, 1991). Nessa
discussão, algumas teóricas questionam, com base
em experiência como mulheres negras em contex-
tos marcados pelo racismo, a centralidade concedida Interseccionalidades e/ou
à sexualidade como diferença em algumas linhas do categorias de articulação
pensamento feminista (Amos e Parmar, 1984). Nessa
linha de debate, há autoras que chegam até mesmo
a privilegiar, a priori, a raça entre outras diferenças A proposta de trabalho com essas categorias é
possíveis (Baca Zinn/Dill, 1996). oferecer ferramentas analíticas para apreender a ar-
As insatisfações com a centralidade concedida à ticulação de múltiplas diferenças e desigualdades. É
categoria gênero suscitaram ainda outras problemati- importante destacar que já não se trata da diferença
zações. As feministas do Terceiro Mundo e/ou que sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gêne-
trabalham com teoria pós-colonial chamaram a aten- ro e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo
ção para a necessidade de articular gênero não ape- para dar cabida às interações entre possíveis diferenças
nas a sexualidade, raça, classe, mas também a religião presentes em contextos específicos.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
267 Adriana Piscitelli (Unicamp)

O debate sobre as interseccionalidades permite situação das mulheres de castas inferiores na Índia.
perceber a coexistência de diversas abordagens. Di- As mulheres dalit, espancadas em espaços públicos
ferentes perspectivas utilizam os mesmos termos para quando realizam suas responsabilidades femininas,
referir-se à articulação entre diferenciações, mas elas como buscar água na fonte. Os abusos ocorrem em
variam em função de como são pensados diferença e contextos em que a suposta condição de intocável as
poder. Essas abordagens divergem também em termos deixa vulneráveis à violência das castas mais altas.
das margens de agência (agency) concedidas aos sujei- Essa violência não seria apenas discriminação de cas-
tos, isto é, as possibilidades no que se refere à capaci- ta, mas intersecional. Segundo a autora, as mulheres
dade de agir, mediada cultural e socialmente. estão situadas em uma posição na qual as responsa-
Essas discordâncias podem ser percebidas contra- bilidades marcadas por gênero as posiciona de forma
pondo as formulações de autoras relevantes no deba- que elas absorvam as conseqüências da discriminação
te. Uma delas é Kimberlé Crenshaw, cujos textos se de casta na esfera pública (Crenshaw, 2002).
tornaram leitura obrigatória na primeira metade da Uma das minhas principais questões em relação
década de 1990. A revista Estudos Feministas (2002) à generalização dessa abordagem, pensada para ca-
publicou em português seu Documento para o en- sos de graves violações dos direitos humanos, é que,
contro de especialistas em aspectos da discriminação em uma perspectiva antropológica, essa formulação
racial relativos ao gênero. A autora é uma advogada apresenta uma séria fragilidade: ela funde a idéia de
que procura oferecer elementos para formular polí- diferença com a de desigualdade. As leituras críticas
ticas com o objetivo de evitar a violação dos direitos sobre interseccionalidade consideram essa leitura de
humanos das mulheres, em escala global. Crenshaw expressiva de uma linha sistêmica, que des-
taca o impacto do sistema ou a estrutura sobre a for-
mação de identidades. Nesse sentido, problematizam
outros aspectos dessa formulação. Questionam o fato
Kimberlé Crenshaw – de que gênero, raça e classe são pensados como siste-
leituras sistêmicas mas de dominação, opressão e marginalização que de-
terminam identidades, exclusivamente vinculadas aos
efeitos da subordinação social e o desempoderamento
Segundo Crenshaw, as interseccionalidades são (Prins, 2006).
formas de capturar as conseqüências da interação en- Outro problema apontado nessa abordagem é que
tre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, ra- nela o poder é tratado como uma propriedade que uns
cismo, patriarcalismo. Essa noção de ‘interação’ entre têm e outros não, e não como uma relação. De acordo
formas de subordinação possibilitaria superar a noção com Baukje Prins (2006), as linhas que se inserem no
de superposição de opressões. Por exemplo, a idéia enfoque sistêmico sobre interseccionalidades às vezes
de que uma mulher negra é duplamente oprimida, à trabalham com o referencial oferecido por Foucault,
opressão por ser mulher deve ser adicionada a opressão mas utilizam seletivamente sua noção de poder. Elas
por ser negra. A interseccionalidade trataria da forma ignorariam o fato de que esse autor pensa em poder
como ações e políticas específicas geram opressões que não apenas em sentido repressivo, mas também pro-
fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas con- dutivo, que não apenas suprime, mas produz sujeitos.
fluências constituiriam aspectos ativos do desempo- Finalmente, não consideram que as relações de poder
deramento. A imagem que ela oferece é a de diversas se alteram constantemente, marcadas por confl itos e
avenidas, em cada uma das quais circula um desses pontos de resistência.
eixos de opressão. Em certos lugares, as avenidas se
cruzam, e a mulher que se encontra no entrecruza-
mento tem que enfrentar simultaneamente os fluxos
que confluem, oprimindo-a. Anne McKlintock e Avtar Brah –
Essa formulação retoma a idéia de patriarcado. abordagens construcionistas
Na verdade, a linguagem parece remeter aos tex-
tos da década de 1970: patriarcalismo, experiência,
subordinação. Diferentemente das formulações fe- Uma segunda linha de abordagem, denominada
ministas da segunda onda, porém, na elaboração de pela autora de construcionista, destaca, sobretudo, os
Crenshaw, gênero não é o único fator de discrimina- aspectos dinâmicos e relacionais da identidade social.
ção. Outros fatores estão operando conjuntamente. Nessa abordagem são marcantes a visão de poder de
A autora utiliza reiteradamente termos como vul- Gramsci, em termos de lutas contínuas em torno da
nerabilidade, desempoderamento, o que faz sentido hegemonia, e o trabalho com a noção de articulação
quando se pensa em seu objetivo. Os exemplos que entendida como prática que estabelece uma relação
ela oferece são extremos, como os estupros coletivos, entre elementos, de maneira que sua identidade se
por motivos étnicos, em Ruanda e na Bósnia, ou a modifica como resultado da prática articulatória. Nes-
268 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

sa abordagem se traçam distinções entre categorias de contradições é possível encontrar estratégias para a
diferenciação e sistemas de discriminação, entre dife- mudança. A articulação seria perceptível ao conside-
rença e desigualdade. Por exemplo, há um questiona- rar como, no âmbito imperial, gênero está vinculado
mento à fusão entre raça e racismo, considerando que à sexualidade, mas também ao trabalho subordinado
nessa fusão há uma visão estática do significado da e raça é uma questão que vai além da cor da pele,
categoria raça e se trata o racismo como um sistema incluindo a força de trabalho, atravessada por gênero.
único. Ao analisar as categorias articuladas, McKlintock ex-
De acordo com Prins (2006), na primeira linha plora políticas de agência diversificadas, que envolvem
de abordagem (sistêmica), a agência não é negada coerção, negociação, cumplicidade, recusa, mimesis,
aos sujeitos. A idéia é contribuir para o empodera- compromisso e revolta.
mento dos grupos subordinados. Entretanto, a inter- A noção de articulação e uma leitura ampla das
seccionalidade aparece voltada para revelar o poder políticas de agência estão presentes também no tra-
unilateral das representações sociais e as conseqüên- balho Brah (2006), que rejeita o conceito de patriar-
cias materiais e simbólicas para os grupos atingidos cado, preferindo pensar em relações patriarcais nos
pelos sistemas de subordinação. Os sujeitos apare- casos específicos em que as mulheres ocupam posi-
cem como constituídos por sistemas de dominação e ções subordinadas. Essa autora, após uma trajetória
marginalização e, nesse sentido, carentes de agência. marcada pelo deslocamento por diversos contextos,
Na segunda linha de abordagem (construcionista), se envolveu com o trabalho com a articulação entre
os processos mediante os quais os indivíduos se tor- gênero, raça, etnicidade e sexualidade, no feminis-
nam sujeitos não significam apenas que alguém será mo negro, na Inglaterra 2 . A autora publicou um li-
sujeito a um poder soberano, mas há algo mais, que vro, em 1996, Cartographies of Diaspora, que se tornou
oferece possibilidades para o sujeito. E os marcadores uma referência, um de cujos capítulos foi traduzido
de identidade, como gênero, classe ou etnicidade não nos Cadernos PAGU (2006). Nesse livro, faz uma
aparecem apenas como formas de categorização ex- série de formulações inovadoras no seio do movi-
clusivamente limitantes. Eles oferecem, simultanea- mento feminista. Em algumas dessas formulações ela
mente, recursos que possibilitam a ação. segue Hall (1996) 3. Entretanto, diferentemente dele,
Nesta segunda linha podemos situar autoras como ela se situa no bojo da discussão do feminismo negro
McKlintock (1995) e Brah (2006). A primeira delas, e concede um lugar relevante a gênero.
no marco dos estudos culturais, em Estados Unidos, A autora propõe uma análise macro, consideran-
analisa o poder imperial afi rmando que raça, gêne- do simultaneamente subjetividade e identidade para
ro e classe não são âmbitos diferentes de experiência compreender as dinâmicas de poder na diferenciação
que existem isoladamente uns dos outros, nem podem social. Este é um aspecto característico das feminis-
ser simplesmente montados em conjunto como se fos- tas do Terceiro Mundo e que trabalham como teorias
se um lego. Essas categorias existem em e por meio pós-coloniais, porque as preocupações políticas que
das relações entre elas. Por esse motivo são catego- as orientam requerem que as análises compreendam
rias articuladas. As categorias de diferenciação não são a produção de subjetividades no marco da história do
idênticas entre sim, mas existem em relações, íntimas, imperialismo e do capitalismo. Avtar Brah levanta vá-
recíprocas e contraditórias. Nas encruzilhadas dessas rios pontos importantes.

2 Avtar Brah nasceu na Índia, cresceu em Uganda de onde fugiu com a família antes que Idi Amin expulsasse os asiáticos do país, estudou nos
Estados Unidos e morou depois na Inglaterra, onde se envolveu nos movimentos feministas, anti-racistas e nas tentativas socialistas de imaginar
um mundo democrático.
3 Hall (1996) estava interessado em entender as relações entre classe social e racismo em um momento no qual considerava não existir elemen-
tos teóricos que possibilitassem fazê-lo. Trabalhando com tradições marxistas e seguindo Foster Carter, explora as possibilidades das categorias
de articulação. A articulação seria uma metáfora utilizada para indicar relações de conexões e eficácia entre diferentes níveis de todo tipo de
coisas. Essas coisas estariam conectadas, mas não haveria uma identidade entre elas. A unidade formada por essa articulação é uma estrutura
complexa que as relaciona por suas diferenças e semelhanças. Segundo Hall, o importante é desvendar qual é o mecanismo que conecta as
coisas e a natureza das relações entre as partes. Considerando que o econômico não determina outros níveis da formação social nem sua
forma de operação, Hall afirma que ao analisar as relações entre diversos níveis de uma formação social, seriam necessários outros conceitos,
além dos níveis econômicos do modo de produção. O autor recorre também a Gramsci, particularmente ao conceito de hegemonia, como
estado de total autoridade social que em conjunturas específicas possibilita o domínio de uma classe sobre toda uma formação social, por
uma mistura de coerção e consentimento, não apenas no nivel econômico, mas também político e ideológico, na vida civil, intelectual e moral
assim como no aspecto material. Mas, essa autoridade está sujeita a relações de forças sociais, das quais o equilibrio instável é um resultado
provisório. Para sustentar-se, a hegemonia exige ser continuamente trabalhada e reconstruída. A luta de classes não assumiria a forma de um
ataque frontal, mas de lugares estratégicos, tácticas, explorando diferentes contradições. E o que interessa seria entender como as ideologias
existentes, que são contraditórias, podem ser trabalhadas para transformar-se na base de uma luta mais consciente, uma form de intervenção
no processo histórico.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
269 Adriana Piscitelli (Unicamp)

A autora afi rma que a procura de grandes teorias as percepções sobre essas migrantes incidem em suas
especificando as interconexões entre racismo, gênero inserções no mercado global de trabalho e no merca-
e classe tem sido pouco produtiva. Essas intercone- do matrimonial.
xões seriam melhor compreendidas como relações
contextuais e dependentes/contingentes (contingents),
em termos históricos. Ela considera que analisar as
interconexões entre racismo, gênero, classe, sexuali- Brasileiras no cenário global
dade etc. requer levar em conta a posição de diversos
racismos, um em relação aos outros. No que se re-
fere aos processos de racialização, assinala que não A experiência de migrantes (e viajantes) bra-
sempre têm lugar em uma matriz simples de bipola- sileiras é afetada por aspectos que não podem ser
ridades, de negatividade ou positividade, de inclusão compreendidos considerando uma ou duas catego-
ou exclusão. Em um contexto racializado, todas as rias de diferenciação, tais como gênero e nacionali-
sexualidades estão inscritas em matrizes racializadas dade, por exemplo. Esclareço que estou pensando,
de poder, mas os encontros racializados também têm à maneira de Scott (1998), não em indivíduos ‘que
lugar em espaços de profunda ambivalência, admira- têm’ experiências, mas em ‘sujeitos constituídos
ção, inveja, desejo. mediante a experiência’. Essas migrantes são afe-
A proposta de Avtar Brah é trabalhar, não com tadas pela imbricação entre noções de sexualidade,
gênero como categoria analítica, como, por exem- gênero, raça, etnicidade e nacionalidade. Refi ro-
plo, Scott, mas com ‘diferença’ como categoria ana- me às noções sexualizadas e racializadas de femini-
lítica. Essa idéia remete à análise de como as formas lidade pelo fato de serem brasileiras. Independente-
específicas de discursos sobre a diferença se consti- mente de serem consideradas no Brasil, brancas ou
tuem, são contestados, reproduzidos e (re)significa- morenas, nos fluxos migratórios para certos países
dos, pensando na diferença como experiência, como do Norte as brasileiras são racializadas como mesti-
relação social, como subjetividade e como identida- ças. No lugar desigual atribuído ao Brasil no âmbito
de. A autora afi rma que há discursos que apresentam global, a nacionalidade brasileira, mas do que a cor
diferenças, como o racismo, que traçam limites fi xos. da pele, confere-lhes essa condição. E essa raciali-
Entretanto, outras diferenças podem ser apresentadas zação é sexualizada. Nos últimos anos, o fato de o
como relacionais, contingentes. Como a diferença Brasil ter sido incluído nos circuitos mundiais de
nem sempre é um marcador de hierarquia nem de turismo sexual e das brasileiras adquirirem visibili-
opressão, uma pergunta a ser constantemente feita é dade na indústria do sexo em países dos Sul da Eu-
se a diferença remete à desigualdade, opressão, ex- ropa, tem acentuado essas relações entre categorias
ploração. Ou, ao contrário, se a diferença remete a no cenário global (Piscitelli, 2004; 2007).
igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas A maioria das brasileiras que viaja não tem vin-
de agência política. culação com esse setor de atividade. Entretanto, essa
Algumas discussões sobre interseccionalidade articulação entre marcadores de diferença é ativada
consideram que essa conceitualização é problemá- independentemente de que as mulheres estejam ou
tica porque coloca excessiva ênfase nos eixos classi- não vinculadas à indústria do sexo. A idéia de que
ficatórios não prestando suficiente atenção à expe- elas são portadoras de uma disposição naturalmente
riência. Assim, poderia ser pensado que o trabalho intensa para fazer sexo e uma propensão à prosti-
com categorias de articulação se diferencia da aná- tuição, combinadas com noções ambíguas sobre seus
lise das interseccionalidades, pois as autoras que tra- estilos de feminilidade, tidos como submissos, com
balham com categorias articuladas concedem lugar uma alegre disposição para a domesticidade e a ma-
de destaque à experiência. Contudo, nesse debate ternidade tende a atingir indiscriminadamente essas
as visões sobre diferença, poder e agência presen- migrantes.
tes nas diversas abordagens são mais importantes do Essas conceitualizações variam, claro, em contex-
que os termos que designam esses conceitos (inter- tos migratórios que têm diferentes relações históricas
seccionalidade ou categorias de articulação). Brah com o Brasil e também de acordo com a classe so-
(2006; 2004), por exemplo utiliza alternativamente cial e, em certos casos, a cor das mulheres (quando
a idéia de categorias de articulação e de intersec- fenotipicamente não são percebidas como mestiças/
cionalidades. mulatas, mas como negras). No entanto, nos fluxos
Essa última linha de pensamento sobre a interse- para países ricos da América do Norte e Europa, a
ção entre diferenciações é sugestiva para pensar como tradução cultural da posição subalterna ocupada pelo
construções de diferença e distribuições de poder Brasil nas relações transnacionais é um dos aspectos
incidem no posicionamento desigual dos sujeitos no principais que afetam as experiências dessas mulheres.
âmbito global. Tomo como exemplo as recentes mi- E essa tradução é realizada mediante uma articulação
grações internacionais de mulheres brasileiras, e como entre diferenciações.
270 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

Em termos de migração internacional, Brasil foi nas empresárias (Cavalcanti, 2006). Entretanto, como
considerado um país predominantemente receptor em outras mulheres do Terceiro Mundo, desempenham
um passado muito recente4. Na década de 1980, pela atividades especialmente em serviços domésticos:
primeira vez, no contexto de uma séria crise econô- limpando, cuidando de crianças ou idosos (Oliveira,
mica, o país apresentou uma emigração significativa. 2006; Messias, 2001). E, particularmente em países
A partir de então, a falta de oportunidades laborais e do Sul da Europa, também trabalham na indústria do
de possibilidade de mobilidade social, sobretudo para sexo (Mayorga 2006; Piscitelli, 2007). Apesar de que
alguns setores das classes médias, alimentaram os flu- apenas uma parte das brasileiras está ocupada nesse se-
xos de migração ao exterior. tor, a relevância dessa atividade é amplificada por uma
Em 2006, relatórios do governo estimavam que cobertura de imprensa que freqüentemente funde os
em torno de 3.000.000 de brasileiros estavam moran- deslocamentos internacionais para trabalhar na indús-
do no exterior, (1,7 % do total da população)(Mag- tria do sexo com o tráfico internacional de pessoas.
no, 2006) 5. Parte significativa desse contingente vive A presença feminina é particularmente relevante
como irregular fora, e isso torna difícil ter estatísticas nas comunidades brasileiras nos países do Sul da Eu-
precisas. A escassa atenção prestada ao sexo ao coletar ropa. Em 2006, elas eram em torno do 60% na Espa-
os dados coloca ainda maiores dificuldades para esti- nha e aproximadamente metade da população brasileira
mar o número de mulheres migrantes no exterior. En- vivendo em Portugal (Instituto Nacional de Estadísti-
tretanto, o deslocamento das mulheres aparece como ca, 2006; Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 2005).
significativo. De acordo com dados da Polícia Federal Nesses países, assim como na Itália, as brasileiras são
Brasileira, em 2005 elas constituíam em torno de 30% consideradas uma presença relevante na indústria do
do total de pessoas devolvidas de países estrangeiros, sexo e também integram os principais contingentes de
incluindo deportadas e uma vasta maioria de mulheres esposas estrangeiras casadas com homens nacionais. E,
não admitidas, cujo ingresso é recusado em países que nesses países, os escassos casamentos transnacionais en-
não requerem vistos de turistas brasileiros, especial- volvendo homens brasileiros sugerem que as mulheres
mente nos aeroportos europeus. adquirem um valor particular no mercado matrimo-
Recentes relatórios governamentais sugerem que nial6. Ter ou não visto de permanência, direito a tra-
a maioria das mulheres deportadas é de classe média balhar legalmente, oportunidades laborais, casar com
baixa. Trata-se, majoritariamente de solteiras ou di- homens residentes dos países receptores e ter filhos nos
vorciadas na casa dos 20 e 30 anos, a metade tem fi lhos contextos migratórios são aspectos que marcam dife-
e se consideram majoritariamente morenas ou pardas renças significativas nas experiências dessas migrantes
(Secretaria Nacional de Justiça 2006; 2005). As mo- brasileiras.
tivações econômicas aparecem como a principal razão Afirmar que mulheres de diversas origens de clas-
para migrar, seja em razão de estratégias familiares ou se e níveis de escolaridade são afetadas pela recriação de
pessoais. Contudo, esses perfis não podem ser genera- imagens racializadas e sexualizadas vinculadas a estilos
lizados. Pesquisas sobre migrantes internacionais bra- de feminilidade brasileiros requer considerar dois aspec-
sileiras apontam para uma diversificação em termos tos. Embora as mulheres de países do Sul estejam confi-
das origens de classe, escolaridade e cores da pele. Es- nadas em ocupações específicas, elas não constituem um
ses aspectos interferem na inserção social dessas mu- todo homogêneo nos países de origem nem nos de desti-
lheres em suas trajetórias migratórias. no. No marco das desigualdades entre Norte e Sul, essas
Em diferentes contextos migratórios, as brasilei- diferenças são freqüentemente traduzidas por fronteiras
ras trabalham no comércio, em serviços administrati- etno-sexuais (Nagel, 2003), delimitações traçadas na
vos, educacionais e de saúde e também como peque- interação entre sexualidade e etnicidade que, de acordo

4 De acordo com os estudos sobre migração, entre a década de 1890 e a Primeira Guerra Mundial, Brasil era o terceiro país receptor em América,
depois dos Estados Unidos e Argentina, recebendo imigrantes, sobretudo, de Itália, Portugal e Espanha (Menezes 2001). Entre 1908 e 1940
houve também fluxo significativos de japoneses e de cidadões de outros países europeus (Seyferth 2001). No momento atual, o país recebe,
sobretudo, imigrantes de outros países latino-americanos.
5 Segundo o Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito de Emigração, em 2006, os principais países receptores eram Estados Unidos
(1,800,000), Paraguai (450,000), Japão (250,000), Portugal (100,000), Reino Unido (100,000). Nos últimos três anos, os migrantes brasileiros cres-
ceram rapidamente em algumas partes do mundo, particularmente nos países do Sul da Europa. Desde 2005 México exige visto dos cidadãos
brasileiros, dificultando o acesso à fronteiras dos Estados Unidos. Os efeitos dessa exigência são o aumento nas vinculações transnacionais entre os
traficantes de migrantes e a elevação dos custos e o aumento dos riscos dessas viagens ao tentar atravessar clandestinamente mais de uma fronteira.
Como resultado, o fluxo migratório voltado para os países europeus tem aumentado (Secretaria Nacional de Justiça, 2007). Agentes consulares na
Espanha e a Itália afirmam estar oferecendo serviços a um número muito mais elevado de brasileiros que três anos atrás. (Piscitelli 2005; 2007).
6 Em 2006 as brasileiras integravam o Segundo coletivo nacional de estrangeiras que casaram com homens espanhóis (Instituto Nacional de
Estadística 2006; 2005). Na Itália, de acordo com as analises do censo de 2001, Brasil foi o principal país latino-americano que forneceu esposas
aos italianos. Istituto Nazionale de Statistica: Gli stranieri in Italia: analisi dei dati censuari, 2005. In: www.istat.it.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
271 Adriana Piscitelli (Unicamp)

com o contexto, afetam mulheres de regiões e países de para a sensualidade, se tornam parte do arsenal que essas
maneiras diferenciadas. Tendo como referência a posição mulheres utilizam na luta por um lugar melhor nesses
ocupada pelas mulheres latino-americanas nos Estados cenários (Pinto 2004; Beserra, 2007; Piscitelli, 2005).
Unidos, seria possível pensar que as tropicalizações (Apa- Essas negociações são descritas em estudos realiza-
ricio; Chávez-Silverman, 1997), imagens sexualizadas e dos em Boston, que mostram como alguns desses atribu-
racializadas associadas aos trópicos, impingem em qual- tos são utilizados para obter, por exemplo, acesso a níveis
quer mulher dessa região do mundo. privilegiados de trabalho doméstico pago (Assis, 2004).
Estudos realizados nos Estados Unidos e em países A suposta abertura das brasileiras, sua alegria e propen-
do Sul da Europa mostram, porém, que essas noções são ao cuidado são exibidos para atrair clientes para suas
tropicalizadas de feminilidade afetam, sobretudo, mu- próprias firmas de limpeza. Esses atributos étnicos são
lheres de certos países. Trata-se de países como Brasil, ativados para abrir firmas, nas quais muitas vezes elas são
Cuba e Colômbia, associados com misturas raciais que as chefes dos homens de suas redes de parentesco. Es-
evocam misturas raciais, particularmente, com traços ses trabalhos alteram as dinâmicas de gênero familiares e
africanos. O serviço doméstico e de cuidados absorve oferecem a essas mulheres o que elas consideram como
latino-americanas de diversas nacionalidades. Entre- uma atividade autônoma e bem paga.
tanto, nos países do Sul da Europa, cubanas, colom- Em diversos meios, as migrantes brasileiras rejeitam
bianas e brasileiras são as mulheres que adquirem vi- abertamente a conexão entre sensualidade e brasilida-
sibilidade nos mercados do sexo e matrimonial. Nos de. Ao mesmo tempo, em certas situações essa conexão
processos de racialização que as atingem há, às vezes, aparece como sendo estrategicamente performada. O
um racismo aberto. No entanto, e aqui vale a pena sex appeal étnico é utilizado como um bem por mulhe-
lembrar a relevância que Avtar Brah concede à inte- res que trabalham na indústria do sexo, que acreditam
ração entre racismos, nos países do Sul da Europa, o que é útil para atrair clientes. No entanto, esse sex appeal
racismo atinge com mais suavidade as brasileiras, par- também é percebido como oferecendo benefícios para
ticularmente as que não são vistas como negras, que a brasileiras de classe média, que trabalham em setores
mulheres de outras nacionalidades. acadêmicos em Los Angeles (Beserra, 2007), e traba-
A interseção entre nacionalidade, gênero e sexuali- lhadoras nos serviços públicos em Lisboa (Pinto 2004).
dade e o particular estilo de racialização permeado por Entretanto, os principais benefícios obtidos mediante a
essas diferenças incide em um racismo etnicizado, dis- corporificação da sensualidade por mulheres que não
tante da intensidade daquele que atinge, entre as latino- trabalham na indústria do sexo estão relacionados, so-
americanas, a mulheres tidas como negras e àquelas cuja bretudo, com o mercado matrimonial. Nesses casos, as
nacionalidade é associada a traços considerados indíge- mulheres combinam sensualidade com outros atribu-
nas e pouco sensualizados. Essas últimas não integram tos, performando a imagem de esposas sensuais, doces,
as comunidades nacionais nas quais os homens nativos domésticas, dedicadas e ávidas por serem mães.
escolhem esposas. Esposos estadounidenses e dos países do Sul da
Os efeitos dessas noções são mais atenuados entre Europa parecem perceber os relacionamentos com es-
mulheres que obtêm melhores posições, em termos de sas mulheres como uma oportunidade para recriar, em
classe, nos países receptores. No entanto, brasileiras de algum ponto, padrões tradicionais de masculinidade,
diversas origens são afetadas por essas idéias. A relação com o tempero adicional de desfrutar de um estilo
dessas migrantes com a articulação entre diferenças que particular de sexualidade (Beserra, 2007; Assis, 2004;
as sexualiza e racializa não é estável. Há movimentos Piscitelli, 2005). Para as brasileiras, performar essa
de resistência e rejeição. Entretanto, situacionalmente, combinação de noções abre caminhos, às vezes estra-
também assumem posições de cumplicidade utilizan- tégicos, para desejados casamentos. Essas uniões mis-
do aspectos das imagens sobre elas para negociar seus tas às vezes expõem as mulheres a riscos, particular-
posicionamentos nos contextos migratórios nos quais mente àquelas com menos recursos, sujeitas a um grau
estão em situação de desigualdade. É um jogo que re- mais intenso de desigualdade e racismo. Entretanto,
força certos estereótipos ao passo que debilita outros. esses casamentos, que oferecem a principal via para
Tanto no mercado de trabalho como no mercado de a obtenção de vistos de residência no marco de polí-
casamento as conexões da feminilidade brasileira com ticas migratórias cada vez mais restritivas, são alme-
a idéia de serem amigáveis, de terem um compromisso jados por diversos motivos. Eles são particularmente
com a domesticidade, de serem muito limpas e de te- valorizados como recursos simbólicos que contribuem
rem uma natural propensão para o cuidado e também a obter cidadania cultural (Ong, 1996) no exterior7.

7 Na pesquisa sobre migrantes brasileiras que realizei na Itália (Piscitelli, 2007) o casamento representa mais do que a possibilidade de ‘papéis’. Anali-
sando os processos mediante os quais os migrantes procuram obter acesso à ‘cidadania cultural’, Aiwa Ong destaca a importância de práticas culturais
e crenças nas negociações com critérios relativos à ‘pertença’ a um território e população nacional. O valor concedido pelas entrevistadas ao casamento
mantém vinculações com essas idéias. Entre minhas entrevistadas, o casamento representa a materialização do sonho da ascensão social que, indo além
da mobilidade em termos de classe social, envolve a ilusão da plena inclusão na Europa através da via legitimadora da inserção numa família italiana.
272 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

Além disso, esses casamentos freqüentemente possi- tes para compreender a produção de sujeitos na nova
bilitam alterar a posição social no Brasil, por diversas ordem global.
ações mediadas pelo poder econômico e tingidas pelo Nos contextos migratórios acima comentados,
prestígio conferido por morar na Europa. pensar nas articulações entre gênero, sexualidade,
raça e etnicidade/ nacionalidade contribui para com-
preender as experiências das migrantes brasileiras. As
interseções entre essas categorias dotam de sentido a
Conclusão percepção que se tem das brasileiras e as ações dessas
mulheres, jogando com as interseções entre diferen-
ças que elas corporificam nos cenários descritos.
A história do feminismo está marcada pela pro- A princípio, essas articulações situam essas mi-
cura de ferramentas analíticas para compreender as grantes em posições inferiorizadas, com efeitos con-
distribuições diferenciadas de poder que situam as cretos na inserção no mercado de trabalho. Ao mesmo
mulheres em posições desiguais e, com base no co- tempo, as ambigüidades e contradições envolvendo
nhecimento, modificar essas posições. Os conceitos esses processos de racialização/sexualização articula-
de interseccionalidade e categorias articuladas fazem dos a gênero e nacionalidade, abrem brechas para as
parte dessa história. Para além de situar a emergência negociações nesses contextos migratórios. Essas nego-
desses conceitos, nesse texto procurei mostrar como, ciações só podem ter lugar se consideramos, à maneira
no momento atual, certas abordagens que trabalham de Brah, que as formas de categorização podem limi-
com interseccionalidades oferecem recursos relevan- tar, mas também abrem possibilidades para a agência.

Referências

AMOS, Valerie; PARMAR, Pratibha. Challenging Impe- visting Intersectionality. Journal of International Women’s
rial Feminism, Feminist Review, n. 17, p. 3-19, 1984. Studies, 5, 3, may, p.75-86, 2004.
APARICIO, Frances R.; CHÁVEZ-SILVERMAN, Su- BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação, Ca-
sana (ed.). Tropicalizations. Transcultural Representations dernos Pagu 26, p.329-365, 2006.
of Latinidad. Hanover, University Press of New England, BUTLER, Judith. Gender Trouble. New York, Routledge,
1997. 1990.
APFELBAUM, Érika. “Domination”. In: HIRATA, Hele- BUTLER, Judith. Undoing Gender, New York, Routledge,
na; LABORIE, Françoise; DE DOARÉ, Hèléne; SENO- 2002.
TIER, Danièle (coord): Dictionnaire critique du féminisme. CASA DO BRASIL EM LISBOA. “A 2° vaga da imigra-
Presses Universitaires de France, Paris, 2000. ção brasileira para Portugal (1998-2003): Estudo de opi-
ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: rear- nião a imigrantes residentes nos distritos de Lisboa e Se-
ranjos familiares e de gênero nas vivências dos novos migran- túbal – Informação estatística e elementos de análise”. In:
tes brasileiros. Phd Dissertation, Campinas, Unicamp, 2004. Imigração Brasileira em Portugal (ed.). Jorge Macaísta Malhei-
AZEVEDO, Débora B. Brasileiros no exterior, Nota Téc- ros, Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo
nica, Consultoria Legislativa da Área XVIII, Congresso Intercultural, 227-245, 2007.
Nacional, Brasília, 2004. URL (accessed in August, 2007. CAVALCANTI, Leonardo. “O protagonismo empresarial
Disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/pu- imigrante a partir de uma perspectiva de gênero: o caso das
blicacoes/estnottec/tema3/pdf/2004_3518.pdf. brasileiras nas cidades de Madri e Barcelona”. Paper deli-
BACAZINN, Maxine; DILL, Bonnie Thornton. Theo- vered at the Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, Santa
rizing difference from multiracial feminism. Feminist Stud- Catarina, 2006.
ies, 22, n. 2, p. 321-331, 1996. COSTA, Maria Tereza Paulino da. “Algumas considera-
BEECHEY, Veronica. On Patriarchy. Feminist Review, n. ções sobre imigrantes brasileiros na jurisdição do Consu-
3, p. 66-83, 1979. lado Brasileiro de Nova York”. In: Brasileiros no exterior:
BESERRA, Bernadete. Sob a sombra de Carmen Miranda Caminhos da Cidadania, ed. Bela Feldman-Bianco and
e do carnaval: brasileiras em Los Angeles, Cadernos Pagu Carlos Vianna, Campinas, Papirus. No prelo.
38, Campinas, Unicamp, 313-344, 2007. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de
BESSA, Karla. Pós-modernismo. Mimeo, IFCH, 1995. especialistas em aspectos da discriminação racial relativos
BHAVBANI, Kum Kum. Feminism and Race. Oxford ao gênero, Estudos feministas 1, p.171-189, 2002.
University Press, 2001. FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo. Labor, Rio
BRAH, Avtar; PHOENIX, Ann. “Ain’t I a Woman? Re- de Janeiro, 1976.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
273 Adriana Piscitelli (Unicamp)

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade Seres Humanos no Brasil, Brasília, 2004.
de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977. MOHANTY, Chandra Talpade. Under Western Eyes. In:
GOLDMAN, EMA. Trafi co de mujeres: y otros ensayos so- MOHANTY, Chandra Talpade; RUSSO, Ann; TOR-
bre feminismo, Buenos Aires,/ Anagrama, 1977 [1917]. RES, Lourdes: Third World Women and the Politics of Femi-
GRANT, Judith. Fundamental Feminism. Contesting the Core nism, Indiana University Press, p. 51-80, 1991.
Concepts of Feminist Theory. Routledge, New York, 1993. NAGEL, Joane. Race, Ethnicity and Sexuality. Intimate In-
HALL, Stuart. Race, articulation and societies structured tersections, Forbidden Frontiers. Oxford, Oxford Univer-
in dominance. In: HOUSTON Baerk; DIAWARA, Man- sity Press, 2003.
tha; LINDEBORG, Ruth. Black British Cultural Studies, OLIVEIRA, Adriana Capuano de. “Mulheres Imigrantes
The University of Chicago Press, p. 16- 58, 1996. no Sul da Florida: Um estudo de caso revelando diferen-
HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women. The ças”. Paper delivered at the Seminário Internacional Fazendo
reinvention of nature. Routledge, New York, 1991. Gênero 7, Santa Catarina, 2006.
HEINEN, Jacqueline. “Patriarcat”. In: HIRATA, Hele- ONG, Aiwa. Cultural Citizenship as Subject-Making.
na; LABORIE, Françoise; DE DOARÉ, Hèléne; SENO- Current Anthropology, v. 37, n. 5, Dec. p.737-762, 1996.
TIER, Danièle (coord.): Dictionnaire critique du féminisme, OVERING, Joanna. “Men Control Women? The
Presses Universitaires de France, Paris, pp. 142-143, 2000. Catch-22 in Gender Analysis”, International Journal of Moral
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA, ESPAÑA. and Social Studies, v. 1. n. 2, p. 135-156, 1986.
Base de datos INEbase, Año, URL: www.ine.es., 2006. PADILLA, Beatriz. Integração dos “imigrantes brasileiros
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA, ES- recém-chegados” na sociedade portuguesa: problemas e
PAÑA: Base de datos INEbase, Año 2005. URL: www. possibilidades. Um mar de identidades, a imigração brasileira
ine.es. em Portugal (ed.). Igor José de Renó Machado, São Carlos,
ISTITUTO NAZIONALE DE STATISTICA 2005: Gli Edufscar, p. 19-42, 2006.
stranieri in Italia: analisi dei dati censuari. In: : www.istat. PINTO, Luciana Pontes. Mulheres brasileiras na mídia
it, 2005. portuguesa, Cadernos Pagu, n. 23, cara, cor, corpo. Campi-
JUNCKS, Kátia Regina. La formación história de la clase obre- nas, Unicamp, p. 229-257, 2004.
ra en la Barcelona del siglo XXI. Un pequeño diálogo con E.P. PISCITELLI, Adriana. On Gringos and Natives, Gender
Thompson. Dissertation, Departamento de Humanidades, and Sexuality in the Context of International Sex Tour-
Universidad Autónoma de Barcelona, 2004. ism, Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology 1, p. 87–114.
MACHADO, Igor. “Introdução”. In: Um Mar de Identida- URL (accessed in June 2007). Disponível em:http://www.
des a imigração brasileira em Portugal, (ed.) Igor José de Reno vibrant.org.br/portugues/artigos2004.htm, 2004.
Machado, São Carlos, Edufscar, p. 7-19, 2006. PISCITELLI, Adriana. Intérêt et sentiment: migration de
MAGNO, João. Relatório final da Comissão Parlamentar de Brésiliennes em Italie dans le contexte du tourisme se-
Inquérito. Congresso Nacional, Brasília, Comissão Parla- xuel international. Migrations Societe; Le grand tournant: De
mentar Mista de Inquérito de Emigração, 2006. l’emigration à l’immigration (Colloque de Cerisy). v. 17,
MARTES, Ana Cristina Braga; SOARES, Weber. Re- n. 102, p. 105-125, 2005.
messas de recursos dos imigrantes. Estudos Avançados, v. 20, PISCITELLI, Adriana. Brasileiras na indústria transnacio-
n. 57, p. 41-57, 2006. nal do sexo, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 7. Disponível
MAYORGA, Claudia. “Identidade, Migração e Gênero: em http://nuevomundo.revues.org/document3744.html,
O caso de mulheres brasileiras prostitutas em Madrid”. Pa- 2007b.
per delivered at the Seminário Internacional Fazendo Gênero PISCITELLI, Adriana. Shifting Boundaries: Sex and
7, Santa Catarina, 2006. Money in the North-East of Brazil, Sexualities, v. 10, n. 4,
McKLINTOCK, Anne. Imperial leather, Race, gender and p. 489-500, 2007.
sexuality in the colonial contest. Routledge, 1995. PRINS, Baukje. Narrative accounts of origins: a Blind
McKLINTOCK, Anne. The Angel of Progress: Pitfalls Spot in the Intersectional Approach? European Journal of
of the term “pos-colonialism”. Social text, n. 31/32, Third Women’s Studies, v. 13, n. 3, p. 277-290, 2006.
World and Post-Colonial Issues, p. 84-98, 1992. REITER, Rayna. Introduction. In: REITER, Rayna. To-
MENEZES, Lená Medeiros de. “Movimentos e políticas ward an Anthropology of Women. Monthly Review Press,
migratórias em perspectiva histórica: um balanço do século New York, 1975.
XX”. In: Migrações Internacionais: Contribuições para Políti- RIOS-NETO, Eduardo. Managing migration: the Brazilian
cas (ed.). Mary Garcia Castro, 123-137. Brasília: Comissão case. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2005.
Nacional de População e Desenvolvimento/CNPD, 2001. RUBIN, Gayle. “The traffic in Women: Notes on the
MESSIAS, DeAnne K. Hilfi nger. Transnational Perspecti- ‘Political Economy of Sex’”. In: REITER, Rayna. Toward
ves on Women’s Domestic Work: Experiences of Brazilian an Anthropology of Women. Monthly Review Press, New
Immigrants in the United States. Women and Health, v. York, 1975.
33, n. ½, p. 1-20, 2001. SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. Columbia
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/NAÇÕES UNIDAS/ES- University Press, 1988.
CRITÓRIO CONTRA DROGAS E CRIME. Tráfi co de SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Projeto His-
274 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008

tória. Cultura e Trabalho. PUC-SP. São Paulo, n. 16, fev/98, 2005. Lisboa, 2006.
p. 297-327, 1998. SEYFERTH, Giralda. Imigração no Brasil: os preceitos de
SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisas em exclusão. Com ciência, revista eletrônica de jornalismo científi co,
Tráfico de Pessoas, parte 2, Relatório: Indícios de tráfico n. 16. Disponível em: www.comciencia.br/reportagens/
de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que migracoes/migr19.htm (accessed in August, 2007), 2001.
regressam ao Brasil via o aeroporto de Guarulhos, Brasília, SHOHAT, Ella. Notes on the “Post-Colonial”, Social Text
Ministério da Justiça, 2005. n. 31/32, Third World and Post-Colonial Issues, p. 99-113,
SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório: 1992.
Tráfico internacional de pessoas e tráfico de migrantes STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. University
entre deportados(as) e não admitidos(as)que regressam ao of California Press, 1988.
Brasil via o aeroporto internacional de São Paulo, Brasília, ZINGAROPOLI, Silvia. n/d Intervista a Rosa Mendes,
Ministério da Justiça, 2007. Tutela per le brasiliane in Italia. L’Associzaione donne bra-
SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS siliane in Itália é stata fondata a Roma da um gruppo di
(SEF). Estatísticas: População Estrangeira Residente em immigrate brasiliane. Disponível em: http://www.musi-
Portugal, por nacionalidade segundo o sexo, dados de brasil.net (accessed in May, 2004).

Intersectionalities, Articulations and Experiences of Brazilian Migrants


Abstract

In this text, I present some comments on the categories dealing with the multiple differentiations, which, articulating with
those of gender, cross the social realm: the categories of articulation and/or intesectionalities. I also analyze the contents attri-
buted to those concepts and make considerations on how they contribute I the analyses a relevant problem in contemporary
Brazil: feminization of international migration. In the first part of the article, I situate those notions in the frame of the history
of feminist thought. In the second, I consider how their use acquires distinct connotations in relation to conceptualization of
differences and of the manners through which the power and agency operate. Finally I reflect on how those notions contri-
bute to understand the integration of Brazilian female migrants in the global labor and marriage markets.

Keywords: intersectionalities; gender; feminism; migration; global labor market; marriage market.

Data de recebimento do artigo: 30-05-2008


Data de aprovação do artigo: 05-09-2008
Disponibilizado por Leandro Moura dos Reis

1934
As Técnicas Corporais

Você também pode gostar