Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ENCICLOPÉDIA DE ANTROPOLOGIA
OBRA
As técnicas do corpo
Em As técnicas do corpo (1934), comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia, o antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950)
trata de um domínio até então nublado pela noção tradicional de tecnologia, entendida como instrumento envolvido no ato de
manipulação. Às técnicas dos instrumentos, Mauss opõe um conjunto de técnicas do corpo, ao qual confere um papel preliminar: o
corpo é o primeiro instrumento do homem, e ainda, o primeiro objeto e meio técnico do homem. Atribuindo à noção de técnica o que
chama de ato tradicional eficaz, Mauss afirma não existir técnica nem transmissão se não houver tradição. Técnicas do corpo referem-se
então aos modos pelos quais as pessoas sabem servir-se de seus corpos de maneira tradicional, o que varia de uma sociedade a outra.
Ao analista, segundo ele, caberia partir do estudo e descrição detalhada das técnicas do corpo em diferentes contextos, de modo a
alcançar o conceito abstrato e constituir uma teoria da técnica do corpo. De modo a localizar o caráter específico de cada técnica
corporal, ele parte da observação das mudanças presenciadas por sua geração, por exemplo, nas técnicas de nado, e nos seus modos de
ensino e aprendizagem: enquanto em um momento aprendia-se, primeiro, a nadar e depois a mergulhar, posteriormente ensina-se,
antes, a mergulhar e a familiarizar-se com a água para, depois disso, nadar. Este e outros exemplos amparam a afirmação feita pelo
autor de que cada sociedade possui hábitos próprios, que são de natureza social, variando não apenas de um indivíduo a outro, mas com
as formas de educação e convenções sociais. Neste sentido Mauss prefere o termo habitus (em latim) a hábito, pois ele expressaria
melhor a “exis” [hexis], denotando o que é adquirido e sublinhando não existir maneira natural nos atos corporais de um adulto. Ao
afirmar a predominância da educação sobre os atos corporais, o autor defende que para analisar tais atos é preciso levar em conta os
pontos de vista biológicos, sociológicos e psicológicos, de modo a realizar o estudo do que chama de “homem total”.
Mauss sugere quatro princípios para classificar o conjunto das técnicas do corpo: a divisão das técnicas entre os sexos; sua variação de
acordo com as idades; também em relação aos rendimentos e ordem de eficácia; e ainda em termos de sua transmissão, levando em
consideração as tradições que os impõem. Outra forma de classificação sugerida é a enumeração das técnicas em função do
acompanhamento do trajeto de um indivíduo no decorrer da sua vida, observando por exemplo: (1) técnicas do nascimento e da
obstetrícia: formas de parto e reconhecimento da criança; (2) técnicas da infância: modos de carregar o bebê, de mamar e desmamar;
https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo 1/2
24/06/2021
p ç ;As( técnicas
) do corpo | Enciclopédia de Antropologia
g , ;
(3) técnicas da adolescência: contextos de iniciação dos jovens; (4) técnicas da idade adulta: modos de dormir e de repouso; técnicas de
atividade e movimento: dança, corrida, salto, escalada, descida, nado; técnicas de cuidados do corpo: esfregar, lavar, ensaboar; técnicas
de consumo: modos de comer e beber; técnicas da reprodução: posições sexuais; e técnicas de medicação.
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em sua Introdução à obra de Marcel Mauss (1950), aponta o caráter programático da análise de
maussiana sobre as técnicas do corpo, que reverbera em toda a antropologia posterior. Ao contrário do que sugeriam certas concepções
racistas que viam no homem o produto do seu corpo, o inventário e a descrição das técnicas corporais propostos por Mauss, destaca
Lévi-Strauss, demonstram que o homem, sempre e em toda parte, soube fazer de seu corpo o resultado de suas técnicas e de suas
representações. Destacando fenômenos que colocam em relação aspectos fisiológicos e sociais, e mostrando o rendimento teórico de
uma análise que sublinha as relações entre os indivíduos e os grupos sociais, Mauss aproxima ainda a etnologia da psicanálise,
estendendo a influência de suas teses para outras disciplinas. Por fazer do corpo um objeto de reflexão da análise social e cultural, o
ensaio tornou-se uma referência incontornável para os debates posteriores sobre o tema, nos mais diversos domínios.
T
de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/técnicas-do-corpo>
DATA DE PUBLICAÇÃO
02/05/2016
AUTORIA
Alice Haibara e Valéria Oliveira Santos
PALAVRAS-CHAVE
antropologia francesa, ciências sociais francesas, comparação, corpo, tecnologia.
BIBLIOGRAFIA
LÉVI-STRAUSS, Claude, “Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss” In: Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, Les Presses
universitaires de France, Quatrième édition, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003)
MAUSS, Marcel, “Les techniques du corps”, Journal de Psychologie, XXXII, ne, 3-4, 15 mars - 15 avril 1936. (Trad. Bras. Paulo Neves.
São Paulo, Cosac Naify, 2003)
https://ea.fflch.usp.br/obra/tecnicas-do-corpo 2/2
DISCURSOS DO RACISMO
EM PORTUGAL:
ESSENCIALISMO E INFERIORIZAÇÃO
NAS TROCAS COLOQUIAIS SOBRE
CATEGORIAS MINORITÁRIAS
EDITE ROSÁRIO
TIAGO SANTOS
SÍLVIA LIMA
Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação
PROMOTOR
OBSERVATÓRIO DA IMIGRAÇÃO
www.oi.acidi.gov.p t
COORDEN ADOR OI
ROBERTO CARNEIRO
AUTORES
EDITE ROSÁRIO
TIAGO SANTOS
SÍLVIA LIMA
EDIÇÃO
ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAÇÃO
E DIÁLOGO INTERCULTURAL (ACIDI, I.P.)
RUA ÁLVARO COUTINHO, 14, 1150-025 LIS BOA
TELEFONE: (00351) 21 810 61 00 FAX: (00351) 21 810 61 17
E-MAIL: acidi@acidi.gov.p t
EXECUÇÃO GRÁFICA
PROS - PROMOÇÕES E SERVIÇOS PUBLICITÁRIOS, LDA.
PRIMEIRA EDIÇÃO
750 EXEMPLARES
ISBN
978-989-685-009-8
DEPÓSITO LEG AL
324065/11
(2) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
ÍNDICE GERAL
NOTA DE ABERTURA 7
NOTA DO COORDENADOR 9
INTRODUÇÃO 19
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (3)
CAP.6. METODOLOGIA 95
1. AMOSTRA E RECRUTAMENTO 95
2. SALA E EQUIPAMENTO 101
3. GUIÃO E MODERAÇÃO 102
4. ANÁLISE DE DISCURSO 108
(4) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.3. Representações sobre integração 162
3.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias 163
3.5. Aspetos positivos e negativos da imigração 170
3.6. Portugal, país de brandos costumes 171
3.7. Valorização de atributos e sentimentos de discriminação 171
3.8. Conclusões gerais 176
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (5)
LISTA DE TABELAS
(6) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
NOTA DE ABERTURA
O preconceito está no olhar
O ACIDI tem por missão a integração dos imigrantes e das minorias étnicas, bem como a promo-
ção da diversidade cultural e do combate à discriminação racial e religiosa em Portugal.
É nesse contexto que o ACIDI tem entre as suas múltiplas atribuições a presidência da Comissão
para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), e o respetivo acompanhamento jurídico
das queixas que esta comissão acolhe (mais em www.cicdr.pt). Em 2010 foram 89 as queixas
recebidas por esta Comissão.
Entre 2008 e 2010, o ACIDI participou no projeto europeu Living Together – European Citizenship
Against Racism and Xenophobia,1 juntamente com outros cinco Estados-Membros e um consórcio
de 13 instituições, que teve como principal objetivo monitorizar o discurso das sociedades euro-
peias em torno da tolerância e da discriminação. Da identificação de alguns “ideais tipo” de dis-
cursos do racismo, o projeto teve como ambição – muito à filosofia do Observatório da Imigração
de desconstruir mitos com factos científicos de forma a “conhecer mais para agir melhor” – a
definição de um corolário de argumentos baseados em factos que pudessem contrariar alguns dos
mitos e estereótipos que estão subjacentes a muitos dos discursos identificados um pouco por
todas as sociedades europeias e que conduzem, em alguns casos, a práticas de discriminação.
Na sequência deste projeto europeu, coordenado em Portugal pelo ACIDI, desafiámos os autores
deste livro a identificarem e analisarem alguns dos discursos do racismo em Portugal, com o
intuito de ter uma ferramenta importante de trabalho para as ações da CICDR.
Em rigor, nenhum país pode afirmar que está imune ao racismo e Portugal não é exceção. Se
bem que este é sempre um problema de escala e, nesse senti-
1 Projeto co-financiado pelo programa de
do, não seremos dos países mais preocupantes face aos ventos ação Fundamental Rights and citizenship,
na prioridade do combate ao racismo e à
xenofobia (mais em http://livingtogether.
oberaxe.es).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (7)
que vamos sentindo nalguns países europeus. Estes fenómenos vão sendo agravados pela crise
internacional, o desemprego, os riscos de deflação e a correspondente tentação do protecionismo
económico em prejuízo dos trabalhadores migrantes.
Olhar os outros sem ver as pessoas e a sua inalienável dignidade humana, mas as imagens e
estereótipos que gravamos na nossa mente fruto de mitos e preconceitos, acumulados muitas
vezes por anos de ignorância, constitui a principal causa da discriminação.
O conhecimento é por isso fundamental no combate ao preconceito e, por essa via, no combate
à discriminação.
É por isso que agradeço aos autores deste livro, Edite Rosário, Tiago Santos e Sílvia Lima, o co-
nhecimento que nos proporcionam, mostrando que embora de uma forma mais subtil, o racismo
existe em Portugal.
Termino por citar o universal Fernando Pessoa quando escrevia não ser do tamanho da sua altura
mas do tamanho daquilo que via. Saibamos, pois, educar o nosso olhar e libertá-lo da escravidão
que impede a verdadeira interculturalidade.
Acima de tudo, não podemos esquecer a máxima de Karl Popper: Nunca sabemos o suficiente
para sermos intolerantes.
ROSÁRIO FARMHOUSE
ALTA CO M I S S Á R I A PA R A A I M IGRAÇÃO E DIÁLOGO INTERCULTURAL E
PR E S I D E N T E DA CO M I S S ÃO PARA A IGUALDADE E CONTRA A DISCRIMIN AÇÃO RACIAL
(8) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
NOTA DO COORDENADOR
A publicação agora divulgada representa um facto singular no nosso país: trata-se de um estudo
científico sobre o racismo produzido por um centro de investigação, o qual conhece a luz do dia
através de um Observatório da Imigração (OI) que se preocupa igualmente com o diálogo inter-
-cultural, na justa e exata medida em que funciona no âmbito do ACIDI, Alto Comissariado para
a Imigração e Diálogo Intercultural. Lembramos ainda que esta investigação foi desenvolvida sob
os auspícios do OI/ACIDI e enquadrada num projeto europeu (Living Together: Citizenship against
Racism and Xenophobia, financiado pelo programa Direitos Fundamentais e Cidadania [referência
JLS/2007/FRC/036]).
Esta extensa e bem documentada análise foi levada a cabo por Edite Rosário, Tiago Santos e
Sílvia Lima, no quadro da Númena – Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas,
e visa responder com elevado valor acrescentado à relativa escassez de trabalhos que versem
especificamente sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitismo, a islamofobia e práticas conexas
em Portugal.
Com lúcida objetividade, o estudo denuncia o mito dos “brandos costumes” e a tese conexa de
uma proverbial facilidade de relacionamento dos portugueses com o “outro diferente”. Estamos,
assim, em presença de uma pesquisa corajosa que é produzida a contra-corrente do pensamento
“politicamente correto” que é alimentado por uma certa elite nacional.
Na verdade, o estudo evidencia que a evolução das crenças racistas em Portugal não é diferente
daquela que ocorre nos demais países da Europa Ocidental. Por analogia, na sociedade portugue-
sa a norma anti-racista não evita o alastramento do racismo subtil, uma espécie de icebergue do
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (9)
qual só se descortina uma pequena parcela sem se lobrigar a maior parte da extensa volumetria
que se encontra submersa.
A União Europeia encontra-se ferida de contradições insanáveis. Sendo lesta na crítica a terceiros
sempre que considera postos em causa direitos fundamentais no caso de países como o Irão ou
a Coreia do Norte, ela raramente consegue o consenso para se afirmar como um exemplo para o
mundo de integração inter-étnica ou de convivência com diferentes.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 (ou seja, há apenas
62 anos), enuncia um vasto conjunto de direitos fundamentais da pessoa humana. É oportuno
lembrar algumas passagens dessa histórica Declaração que foi elaborada e aprovada no termo de
um vasto conflito mundial em cujas raízes grassavam o estereótipo e o patológico desejo de uma
“limpeza étnica”.
Artigo 1°
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão
e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Artigo 2°
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de
religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento
ou de qualquer outra situação.
(10) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou in-
ternacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território
independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.
Artigo 13°
1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior
de um Estado.
2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o
direito de regressar ao seu país.
Artigo 25°
1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família
a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento,
à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à
segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos
de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças,
nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.
Artigo 26°
1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a corres-
pondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino
técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar
aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direi-
tos humanos e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância
e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o
desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (11)
Num contexto de acentuada contradição e de perigosa deriva extremista, importa proceder, como é
o caso, ao diagnóstico sereno das condições históricas em que o racismo velado e subterrâneo vem
alastrando a sua venenosa infiltração junto das representações, atitudes e preferências do cidadão
comum. Dado ser um fenómeno global, os autores quiseram integrar o contexto português numa
abordagem de horizonte vasto da temática, descrevendo designadamente o cenário ocidental.
O estudo que agora se divulga recorre a metodologias qualitativas de trabalho de campo vul-
garmente denominadas “grupos de discussão” ou “grupos focais”. Embora esses métodos se
encontrem totalmente consagrados no entendimento das comunidades científicas não quiseram
os autores abster-se de as discutir com objetividade e rigor.
Os autores concluem com uma extensa análise comparativa dos resultados dos quatro grupos de
discussão. Nela se conclui que “os negros, brasileiros e ciganos são as categorias mais visadas
pelos discursos racistas”(p.200) sendo que “os brandos costumes do passado vão desaparecendo
sob o atrito da pressão migratória” (p.199) evidenciando-se a emergência de estereótipos já que
“a diferença é cada vez mais sentida como uma ameaça, tanto em termos de integridade física
(negros, ciganos, brasileiros) como de decência (mulheres brasileiras) ou valores fundamentais
(muçulmanos)” (p.200). Acresce que “em todos os estratos a imigração é consensualmente as-
sociada à violência e criminalidade”, que “a opinião em geral é a de que os ciganos são parasitas
da sociedade e nada fazem para não ser alvo de discriminação” (p. 198), tornando-se claro que “a
relação entre imigrantes e portugueses é percecionada nos estratos sociais inferiores como sendo
fundamentalmente uma competição por recursos escassos” (p.199).
A circunstanciada investigação de Edite Rosário, Tiago Santos e Sílvia Lima reveste-se de grande
oportunidade.
Agradecemos aos três autores, e à Númena, a lucidez colocada na sua conceção e a coragem tida
na perscrutação intensa a que procederam do pulsar profundo nacional em matéria tão sensível
e delicada.
(12) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Resta-nos esperar que esta obra tenha a leitura alargada que merece e que seja o detonador de
um debate aberto e rigoroso sobre a temática, debate imprescindível na medida em que, sem
a sua oportuna condução, dificilmente se exorcizarão os fantasmas racistas e xenófobos a que,
infelizmente, os portugueses não são imunes.
ROBERTO CARNEIRO
CO O R D E N A D O R D O O B S E R VATÓRIO DA IMIGRAÇÃO
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (13)
(14) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
DISCURSOS DO RACISMO EM PORTUGAL:
ESSENCIALISMO E INFERIORIZAÇÃO
NAS TROCAS COLOQUIAIS SOBRE CATEGORIAS
MINORITÁRIAS
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (15)
(16) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
AGRADECIMENTOS
Agradecemos, antes de mais, a todos os que na Númena de alguma forma contribuíram para
a realização deste estudo sem contudo dele virem a ser autores, a saber: Ana Isabel Guerreiro,
Ana Oliveira, Bruno Dias, Carmen Ponte, Inês Possante, Mónica Catarino, Mónica Frechaut, Nuno
Medeiros, Pedro Soares, Roopanjali Roy, Susana Varatojo e Verónica Metello.
A nossa gratidão visa ainda todos os peritos que sobre este estudo opinaram quando ele era ainda
um trabalho em curso, nomeadamente: Assunção Sousa (Apoio ao Estudante Africano), Catarina
Reis de Oliveira (ACIDI), Duarte Miranda Mendes (ACIDI), Gustavo Behr (Casa do Brasil), João
Filipe Marques (Universidade do Algarve), João Paiva (Comissão para a Igualdade de Género),
João Pereira (Comissão para a Igualdade de Género), João Silva (Olho Vivo), Jorge Vala (Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), José Falcão (SOS Racismo), Maria Helena Oliveira
(representante do Parlamento na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial),
Roberto Carneiro (Observatório da Imigração), Rosa Cabecinhas (Universidade do Minho), Rosário
Farmhouse (ACIDI), Teresa Tito Morais (Conselho Português para os Refugiados), Vanda Cruz
(UGT) e Vasco Malta (ACIDI).
A Beatriz Capaz (GfK) e a Joana Azevedo (CIES) não desperdiçaram a oportunidade de confirma-
rem amplamente a justeza da estima e apreço que lhes dedicamos, facultando-nos contactos e
informações particularmente úteis e pertinentes para o desenvolvimento deste estudo.
Agradecemos ao Gonçalo Moita a grande cortesia com que articulou connosco o arranque deste
projeto, que acompanhou na sua então condição de colaborador do ACIDI.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (17)
Tendo reservado o melhor para o fim, resta-nos ainda agradecer à Cristina Silva da Representação
em Portugal da Comissão Europeia o uso, a título gracioso e conseguido com curtíssimo aviso
prévio, de uma sala para a primeira reunião de um grupo de discussão e ao Hugo Alves e à Teresa
Garcia Marques, ambos do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, a generosidade profissional
de nos terem facultado, também a título gracioso, o usufruto do laboratório de Psicologia desta
instituição para a realização de grupos de discussão.
(18) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
INTRODUÇÃO
Nestas condições, Portugal tornou-se simultaneamente país de emigração – fenómeno que terá
sofrido um eclipse mas de modo algum desaparecido enquanto tendência plurissecular (Peixoto,
2007: 452) – e de imigração, sobretudo de nacionais de países terceiros, ou seja, não pertencentes
à União Europeia. Um resultado líquido destes processos tem sido o aumento da diversidade da
população residente e da perceção dessa diversidade pela opinião pública, uma vez que até à dé-
cada de 80 do século XX, para além da presença dos ciganos e de uma comunidade cabo-verdiana
pouco expressiva, Portugal era um país etnicamente muito homogéneo (Marques, 2004: 79).
Ao tornar-se também um país de imigração – e de imigração percebida como tal, não de “ex-
-patriados” ou de “estrangeiros” que, em função da sua origem geográfica, diferença cultural,
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (19)
diferença fenotípica ou classe conseguem escapar a tal rótulo –, Portugal adquiriu o potencial
para ser palco de fenómenos racistas e xenófobos similares aos registados no conjunto dos países
industrializados. Aliás, vários desses países são – por uma ironia que não deixa de ser aprovei-
tada pelo movimento anti-racista – destinos tradicionais da emigração portuguesa, onde os seus
protagonistas por vezes enfrentam reações xenófobas. Tal foi o caso no recente episódio dos “em-
pregos britânicos para trabalhadores britânicos”, lema que figurava em cartazes empunhados por
trabalhadores petroquímicos britânicos no contexto de uma greve que em janeiro de 2009 servia
de protesto face à pressão para a baixa de salários resultante do recrutamento pelas refinarias de
cidadãos de outros países da União Europeia, nomeadamente italianos e portugueses.
Nesta nova conjuntura, em que Portugal se torna também país de imigração, o Estado sentiu a
necessidade de fazer evoluir tanto o aparato de controlo como o de integração de imigrantes, o
que veio a dar origem ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e ao Alto Comissariado para
a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) tal como os conhecemos hoje. Alinhando-se com o
paradigma comunitário de exercício tecnocrático do mandato público sobre o tema da imigração
(Boswell, 2008), ambas as organizações têm vindo a produzir conhecimento que capacita ou legi-
tima as respetivas atuações. O ACIDI procedeu em 2002 à criação do Observatório da Imigração
(OI), que pretende ser uma rede de colaboração entre centros de investigação sob cuja chancela
este instituto público empreende, entre outras atividades, a encomenda de estudos e respetiva
edição e a manutenção de um sítio de atualidade científica sobre as áreas que cabem no seu
portefólio. Por sua vez, o SEF, a par dos relatórios que anualmente sistematizam a informação
sobre imigração e asilo em Portugal, veio desde 2002 a desenvolver, em crescendo, a atividade no
contexto da Rede Europeia das Migrações, atividade essa que compreende não apenas a elabora-
ção de relatórios estatísticos, mas também a de relatórios sobre políticas e de estudos temáticos
sobre as áreas de imigração e asilo.
(20) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
sado, antes de mais, por questões de integração, de quantificação de impactos na sociedade de
acolhimento e de evolução da ordem jurídica. Veja-se a propósito o conjunto dos 43 estudos já
promovidos e editados pelo OI à data de redação deste texto, pois embora alguns destes incidam
em matérias conexas com o racismo e a xenofobia, como por exemplo, as representações –
aferidas quer através de fontes documentais, quer através de inquéritos (Cunha et al., 2004 e
2006; Cunha e Santos, 2008; Lages e Policarpo, 2003; Lages et al., 2006) –, o presente volume
constitui a primeira ocorrência de um estudo expressamente sobre o racismo produzido por um
centro de investigação a pedido de um instituto público. Esta relativa escassez de trabalhos que
versem especificamente sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitismo, a islamofobia e práticas
conexas, é provavelmente devida às condições que enformam os interesses públicos, políticos e
académicos e, eventualmente, resultado da fraca visibilidade que as manifestações racistas têm
tido na sociedade portuguesa. Embora durante a década de 1990 alguns episódios de índole
racista – o mais emblemático dos quais ocorreu em 1995, quando um grupo de skinheads atacou
doze pessoas negras no Bairro Alto, uma das quais, Alcindo Monteiro, morreu em consequência
das agressões – tenham provocado acesos debates na sociedade civil e no contexto político, resul-
tando então numa grande exposição mediática do assunto, esta foi a exceção mais do que a regra
e, na ausência de factos com grande potencial mediático que promovessem o seu agendamento,
o tema tem vindo a ser relegado para segundo plano. O próprio aparelho jurídico responsável pela
monitorização de atos discriminatórios, representado pela Comissão para a Igualdade e Contra
a Discriminação Racial (CICDR), regista, como veremos adiante, um número de queixas e de
subsequentes sanções muito baixo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (21)
que sistematiza as tendências e os desenvolvimentos a nível do combate à discriminação étnica e
racial e à promoção da igualdade na União Europeia entre 1997 e 2005 (FRA, 2007) refere uma
série de acontecimentos que levaram à exacerbação dos debates em torno de questões como a ex-
clusão, a discriminação, a islamofobia ou o anti-semitismo à escala europeia. São exemplo destes
acontecimentos os motins contra os imigrantes marroquinos em Espanha, em 2000; o impacto
dos ataques de 11 de Setembro de 2001 na Europa, os ataques terroristas em Madrid, em 2004,
e em Londres, em 2005; a morte do realizador de cinema Theo van Gogh em Amesterdão, em
2004, a controvérsia sobre os cartoons de Maomé, na Dinamarca, em 2005 e os distúrbios em
bairros de residência maioritária de imigrantes em França, em 2005. Apesar de todos estes even-
tos terem originado o debate na sociedade portuguesa, não são conhecidos atos discriminatórios
ou racistas em sua consequência.
Esta ideia, de que Portugal é um país de “brandos costumes”, confere inclusive um “traço distin-
tivo da nossa identidade nacional” (Vala, Brito e Lopes, 1999: 2) e resulta – pelo menos no que
concerne ao trato com o Outro – de uma sobrevivência muito atual da ideologia luso-tropicalista
fabricada por intelectuais ao serviço do Estado Novo como forma de legitimar a sobrevivência do
colonialismo português num contexto em que a opinião pública internacional viera a condenar
essa modalidade de exploração (Castelo, 1998). Mas, não obstante a ausência de atos recorrentes
de violência racista e a imagem difundida de país tolerante (Alexandre, 1999), não se pode afirmar
que a sociedade portuguesa seja imune ao racismo. Em termos históricos, a evolução das crenças
(22) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
racistas em Portugal não é diferente daquela que ocorre no resto dos países da Europa Ocidental.
Na sociedade portuguesa, tal como no conjunto das sociedades europeias contemporâneas em
que vigora a norma anti-racista, o racismo explícito é por esta inibido, mas não o racismo subtil
(Vala, Brito e Lopes, 1999a: 55).
Os trabalhos que em Portugal se centram no tema do racismo ou, pelo menos, o tratam em
passagem têm por base metodologias tão diversas como as tarefas experimentais (Vala e Lima,
2002; Cabecinhas e Amâncio, 2004a e 2004b), o inquérito por questionário (Vala, Brito e Lopes,
1999b; Lages et al., 2006; Santos et al., 2009), a análise documental (Cunha, 1994; Cunha et al.,
2004 e 2006) e a entrevista em profundidade (Machado, 2001; Marques, 2004). Fernando Luís
Machado (2001) faz a apologia desta última abordagem apontando que “ao contrário das sonda-
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (23)
gens de opinião e dos inquéritos conduzidos junto da população em geral em que a verbalização
de atitudes explícitas de racismo só existe como exceção (…) e em, que, mesmo os portadores
de preconceitos têm uma contenção verbal no sentido da sua negação ou subvalorização” (2001:
56), em contexto de entrevistas o discurso surge espontâneo e fácil. No presente estudo, procu-
rámos exatamente usar uma metodologia baseada no discurso direto em contexto de interação,
que permite uma abordagem mais focada na forma como as representações sociais e discursos
relacionados com racismo e xenofobia são atualizados nas interações quotidianas: os grupos de
discussão.
Esta é uma metodologia que, como veremos no capítulo 6, pretende reproduzir o contexto de
interações quotidianas entre as pessoas e promove uma análise da dinâmica de grupo patente no
fluir de argumentos e representações sociais que vão sendo mobilizados pelos participantes no
encenar da sua relação. Os grupos de discussão revelam em que medida a interação do grupo
constrange ou permite, limita ou exacerba, censura ou potencia os discursos sobre racismo, ou
seja, como é que racismo e norma anti-racista são operacionalizados e se expressam em contexto.
(24) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 1.
BREVE HISTÓRIA DO RACISMO NO OCIDENTE
1. DE PRÁTICA ATÁVICA A CONCEITO ILUMINISTA
Ainda que o conceito de racismo tenha emergido na era moderna, os fenómenos que hoje classifi-
camos sob esta designação precedem-no (Wieviorka, 2002: 19): a perseguição dos judeus, a caça
às bruxas, a escravatura, as cruzadas e outras formas de discriminação ou exploração presentes
ao longo da história, embora não derivassem de uma “consciência de espécie” (Fredrickson,
2004: 14) ou de doutrinas racistas, são manifestações de um “racismo sem raça” (d’Appollonia,
1998: 13), uma vez que aparecem geralmente associadas à crença na superioridade de determi-
nadas categorias em relação a outras.
De acordo com Raymond Williams (1983: 248), o termo raça era já utilizado no século XIV, época
em que se verifica o alargamento do contacto entre populações de origens diversas, embora com o
sentido de linhagem. Só no século XVII o termo aparece já na aceção que tem por base uma repre-
sentação do Outro que opõe uma raça superior (brancos) a uma raça inferior (africanos, asiáticos,
índios da América, habitualmente chamados de selvagens). As diferenças entre a “raça superior”
e a “raça inferior”, que legitimavam diversas formas de discriminação – exploração, escravatura,
colonização –, eram entendidas como resultantes de aspetos culturais, do meio ambiente, do grau
de civilização ou da religião.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (25)
2. O PENSAMENTO ILUMINISTA
O pensamento científico do Iluminismo foi uma condição prévia para o crescimento do racismo
baseado numa tipologia física (Fredrickson, 2004: 51; Cabecinhas, 2008: 166), desenvolvendo-
-se durante esse período teorias várias de classificação racial. A primeira tentativa de classificar
cientificamente os tipos humanos foi da autoria do naturalista sueco Carlos Lineu, que em 1735
publicou Systema Naturae, a obra fundadora da taxonomia científica moderna. Lineu inclui os
humanos na sua taxonomia dos seres vivos como sendo uma espécie, integrada no género prima-
tas, que divide em quatro diferentes categorias geograficamente definidas: europeus, americanos,
asiáticos e africanos. Lineu descreveu os europeus como “brancos, vivos, inventivos, claros, go-
vernados por leis”; os americanos como “vermelhos, tenazes, alegres, coléricos e governados por
hábitos”; os asiáticos como “amarelos, austeros, avaros, altivos e governados por opiniões”; e os
africanos como “indolentes, fleumáticos e governados por caprichos” (Lineu em Cohen, 1980:
7). A descrição de Lineu das diferentes raças é elucidativa da latente hierarquização de atributos
associada a cada uma delas.
Também Buffon – naturalista francês que publicou, entre 1749 e 1804, uma Histoire Naturelle
(26) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
em 44 volumes – defendeu a ideia de que o meio ambiente, o clima e outras condições físicas
seriam responsáveis pela diferença entre as espécies humanas. Assim, justificava que a pretensa
superioridade dos europeus sobre os africanos se deveria a fatores relacionados com as condições
naturais de origem como, por exemplo, as terras áridas onde habitam os primeiros dificultarem
a subsistência e exigirem dos seus habitantes maior inteligência e capacidade de fazer face a
obstáculos, enquanto os africanos, vivendo num meio generoso, tenderiam a tornar-se “grandes,
gordos e bem feitos mas… simples e estúpidos” (Fredrickson, 2004: 53).
3. O RACISMO CIENTÍFICO
A herança das classificações raciais serviu de base às teorias do chamado “racismo científico”
que se desenvolveram durante o século XIX. Os trabalhos de Gobineau – diplomata, escritor e
sociólogo francês que publicou em 1853 um Essai sur l’inégalité des races humaines –, nos quais
atribuiu a uma suposta “raça ariana” uma pretensa superioridade sobre as demais supostas
raças, revelam que este considerava que a mistura de raças era causa de degeneração mas, pa-
radoxalmente, inevitável. Enquanto embaixador de França no Brasil, deixou alguns escritos sobre
as suas experiências que deixam claro o que sentia face às misturas raciais: “Uma população
toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo… Nenhum brasileiro é de
sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se
a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e
nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto” (Gobineau in Raeders, 1988: 90).
Outro pilar da história do ”racismo científico” foi Francis Galton, antropólogo, matemático e es-
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (27)
tatístico que em 1869 publicou Hereditary Genius e é apontado como o fundador da eugenia.
Galton criou uma escala gradativa onde situou as diferentes raças em função do seu grau de
inteligência. De acordo com essa escala, os atenienses seriam os mais inteligentes, seguidos dos
cidadãos britânicos. Os africanos e os aborígenes australianos apareciam no final da escala de in-
teligência. Os conceitos de superioridade racial de Galton tornaram-se muito populares na Europa
e nos Estados Unidos e, nestes últimos, chegaram mesmo a fundamentar políticas de restrição
à imigração (Cohen, 1980: 7). A sua teoria de aperfeiçoamento da espécie humana defendia,
através da seleção artificial, a eugenia positiva – selecionar os indivíduos mais aptos e incentivá-los
a reproduzir-se de forma a melhorar a espécie humana nas gerações seguintes – e a eugenia
negativa – proibição de casamentos “inter-raciais” e esterilização dos indivíduos considerados
indesejáveis. Anos depois, as práticas decorrentes da ideologia nazi durante a Segunda Guerra
Mundial – o genocídio de pessoas com necessidades especiais, judeus, ciganos, homossexuais,
comunistas e testemunhas de Jeová – forneceram ao mundo exemplos de processos de eugenia
negativa.
(28) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
participantes 81 vezes – 7 vezes por participantes de estatuto social médio-alto, 27 vezes por
participantes de estatuto social médio-médio, 12 vezes por participantes de estatuto social médio-
baixo e 35 vezes por participantes jovens de estatuto social médio-médio –, a maioria das quais
associada aos negros e, em menor número, aos ciganos. A associação do termo raça aos negros
e aos ciganos está, provavelmente, relacionada com a representação que os participantes têm
destas categorias, que descrevem com atributos mais deterministas do que as restantes – mais
presente do que o determinismo biológico surgem descrições relativas a um determinismo cultural
– e resulta, eventualmente, da cristalização de crenças que outrora encontraram uma justificação
científica.
A crença na diferença e inferioridade do Outro, oferece uma base racional para tornar a relação
estabelecida desigualitária, “para que possamos usar a nossa vantagem em termos de poder para
tratar o Outro etno-racial de maneiras que consideraríamos cruéis ou injustas se fossem aplicadas
a membros do nosso próprio grupo” (Fredrickson, 2004: 16). Em termos coletivos, as ações
decorrentes dessa crença, podem levar à discriminação social, a formas de segregação, opressão
colonial e escravização, entre outras. É nesse sentido que alguns autores apontam para um apro-
veitamento dos argumentos produzidos no âmbito do “racismo científico” para fundamentar as
políticas coloniais europeias na África, Ásia e Pacífico (Fredrickson, 2004: 87; Cabecinhas, 2008:
169). “Do ponto de vista estritamente científico poder-se-ia dizer que tais leituras são simples-
mente ingénuas, na medida em que se apoiam em elementos de parca importância. Podemos
de facto aceitar a existência de uma ingenuidade científica que só a anatomia dos séculos XIX
e XX conseguirá enfim resolver, mas ela é mais perversa do que ingénua, na medida em que a
sua grelha do saber tem como objectivo reforçar as condições de dominação, negando qualquer
qualidade ao africano colonizado. Não se trata apenas de lhe recusar a possibilidade de algum
dia poder integrar os valores civilizacionais do branco, mas antes de provar a sua selvajaria”
(Henriques, 2004: 20).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (29)
4. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, MUDANÇAS NO QUADRO DA
TERMINOLOGIA “RÁCICA”
Somente após a Segunda Guerra Mundial é que a tese das hierarquias raciais começou a ser
desconstruída. O extermínio de judeus, ciganos e outras minorias perpetrado pelo regime nazi em
nome da pureza racial levou à problematização do conceito de raça e, a nível científico e político,
desenharam-se então as bases para a igualdade entre todos os seres humanos (Cabecinhas,
2008: 170). Neste aspeto, assumiram particular relevância a divulgação da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, e de
documentos oficiais publicados por especialistas em estudos raciais, promovidos pela UNESCO.
Dos trabalhos lançados pela UNESCO, resultou a proclamação de quatro Declarações que procu-
raram sustentar a ideia de igualdade entre seres humanos e erradicar o racismo motivado por teo-
rias pretensamente científicas acerca da superioridade de uns povos sobre os outros. A Declaração
sobre a Raça, de 1950, afirma que todos os seres humanos pertencem a uma mesma espécie
– Homo sapiens – e defende a necessidade de substituir o termo “raça” pela expressão “grupos
étnicos”: “Os erros graves decorrentes da utilização da palavra «raça» na linguagem corrente,
tornam desejável que se abandone completamente o termo quando aplicado aos seres humanos
e que se adote a expressão «grupos étnicos». (…) É necessário que se distinga entre «raça», facto
biológico, e o «mito da raça». Na realidade, a «raça» é menos um fenómeno biológico que um
mito social. Este mito provocou um mal imenso nos planos social e moral e, ainda recentemente,
custou inumeráveis vidas e causou sofrimentos incalculáveis” (UNESCO, 1973: 362-364).
Esta Declaração não reuniu consensos dentro da comunidade científica (na origem da dissensão
esteve a linguagem usada pelo campo da biologia e da antropologia), o que levou a UNESCO
a organizar uma outra reunião de peritos da qual resultou a Declaração sobre a Natureza da
Raça e das Diferenças Raciais, de 1951. Ambas as Declarações defendem, no entanto, conteúdos
idênticos: rejeitam a equivalência dos conceitos de “raça” e “cultura”, desvalorizam a ideia de
determinismos biológicos ou genéticos associados às diferenças culturais e asseguram que as
(30) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
classificações raciais devem considerar exclusivamente características físicas e não psicológicas,
culturais ou intelectuais.
Em 1964 surge a Declaração sobre Aspetos Biológicos da Raça, que afirma que as desigualdades
que se observam no mundo de hoje não são o resultado de diferenças genéticas entre os homens
(Rex, 1968: 4): “Os povos da terra parecem dispor hoje de potencialidades biológicas iguais para
aceder a qualquer nível de civilização. As diferenças entre as realizações dos diversos povos pare-
cem dever explicar-se inteiramente pela sua história cultural” (UNESCO, 1973: 377).
Em 1967 veio a lume a Declaração sobre a Raça e sobre os Preconceitos Raciais, que identifica
causas económicas e sociais para o racismo e indica algumas medidas de combate ao problema,
tais como a sensibilização no domínio público em meios como a escola, a implementação de
legislação de combate ao racismo, a responsabilização dos cientistas no uso dos produtos das
suas investigações sobre a temática, entre outros (UNESCO, 1973: 374-385).
Ainda assim, o documento revelou-se eficaz, uma vez que, de facto, desde então o termo “raça”
passou a ser substituído por “grupo étnico”, categoria essa que, como veremos de seguida, é hoje
igualmente questionada quanto à sua utilização.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (31)
5. NOVOS RACISMOS
O racismo assume, pois, hoje novos contornos: aspetos como a hereditariedade, a genética e os
traços fenotípicos deixam de fundamentar o discurso sobre o Outro sociológico, dando lugar a
referências como os modos de viver e de pensar, a cultura, os costumes ou os traços identitários.
(32) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A emergência de uma nova doutrina racista na Europa ocorre em paralelo com o aumento da
imigração em alguns países – sobretudo na Grã-Bretanha e em França – durante as décadas de
1960 e 1970. A diversidade crescente impele a direita conservadora a veicular discursos políticos
acerca das ameaças à homogeneidade e identidade nacionais. Este racismo renovado ou “novo
racismo”, como lhe chamou Barker (1981), procura legitimar-se “menos pela invocação de uma
desigualdade das «raças» que pela ideia da irredutibilidade e da incompatibilidade de certas espe-
cificidades culturais, nacionais, religiosas ou outras” (Wieviorka, 2002: 38).
Tanto ao nível do discurso doutrinário como do popular, a cor de pele ou o termo “raça” deixam de
constituir de forma assumida o denominador comum da diferença. Os Outros aparecem descritos
em função da forma como é representada a sua adesão a valores sociais considerados fundamen-
tais, como a ética do trabalho, a auto-disciplina, a responsabilidade, entre outros. Por exemplo:
os ciganos não causam repulsa por causa da cor da pele, mas por não quererem assimilar os
valores da sociedade maioritária. Este processo de distinção cultural reproduz de forma idêntica
aquilo que era considerado o olhar estanque sobre “raças diferentes”: “O não reconhecimento das
classificações socioculturais e étnicas como construções sociais, a sua naturalização difusa, e a
cegueira em torno da sua eficácia como forma de dominação torna-as, funcionalmente, equivalen-
tes das classificações raciais. (…) Diferenças raciais e (…) diferenças culturais (…) têm o mesmo
tipo de consequências sobre a discriminação” (Vala, Lopes e Brito, 1999: 147-148).
É interessante notar que estas novas roupagens do racismo – onde o argumento das diferenças
culturais ou “civilizacionais” (Huntington, 1993 e 1996) surge como reduto de diferenças que se
pretendem dizer, afinal, raciais – parecem cristalizar-se nas atitudes islamofóbicas que os ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001 (Nova Iorque), 11 de março de 2004 (Madrid) e 7 de julho
de 2005 (Londres) despertaram no designado “mundo Ocidental”. Com o pano de fundo da
imigração, a islamofobia do período pós-ataques terroristas de inícios do século XXI não é mais do
que a expressão de classificações raciais em que aqui o Outro é também ele um estrangeiro, cultu-
ralmente diferente, marcado fisicamente por traços estereotipados (e facilmente caricaturáveis…).
Assentes em “teses culturalistas em que a religião ou a cultura aparecem como a causa directa
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (33)
dos atentados”, as crenças islamofóbicas do pós-11 de setembro associam ao Islão “ideias como
«cultura de morte» ou «ódio ao Ocidente», em que o reforço da pertença a uma suposta cultura
ocidental é feito através do estereótipo do outro religioso e cultural, neste caso o muçulmano”
(Peixe et al., 2008: 5).
Note-se, todavia, que estas são as grandes linhas de uma tendência histórica que conhece ex-
ceções notáveis, senão mesmo infames, como é o caso das declarações que James D. Watson
– sumidade científica galardoada com o Nobel pela co-descoberta do ADN – prestou ao Sunday
Times em 2007 acerca da existência de um diferencial de inteligência entre brancos e negros.
Por outro lado, embora a narrativa da emergência de novos racismos seja a ortodoxia vigente no
campo dos estudos sobre este fenómeno, há vozes que a contestam, sustentando existir maior
continuidade histórica no racismo do que a ideia de novos racismos permite considerar (Leach,
2005).
(34) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 2.
DELIMITAÇÃO DO CONCEITO/OPÇÕES DO ESTUDO
Na literatura sobre esta transição encontra-se uma profusão de classificações: racismo moderno
(McConahay, 1986; Pederson e Walker, 1997), racismo simbólico (Sears e Kinder, 1971), neo
racismo (Barker, 1981), racismo aversivo (Gaertner e Dovidio, 1986), racismo ambivalente (Katz e
Hass, 1988), racismo subtil (Pettigrew e Meertens, 1995), racismo cordial (Turra e Venturi, 1995),
entre outras. Apesar da nomenclatura e das especificidades que marcam as diferenças entre tais
teorias, um aspeto comum a todas elas é a substituição de expressões do racismo mais primárias
por “formas altamente eufemizadas” (Bourdieu, 2003: 278), ou seja, a ideia de que o racismo
tem vindo a assumir uma forma velada em substituição das suas expressões tradicionais mais
flagrantes (Lima e Vala, 2004: 408).
Mas será ainda racismo? As novas teorias que procuram isolar o racismo baseado em diferenças
biológicas daquele que se cinge às diferenças culturais suscitam a discussão da delimitação do
conceito de racismo. A confusão entre a utilização do termo e a de outros conceitos como racia-
lização, heterofobia, etnocentrismo, etnicização, etnicismo, desigualdade social ou discriminação
étnica é questionada por diversos autores (Miles, 1989; Essed, 1991; Dijk, 1993; Memmi, 1993;
Cabral, 1998; Vala, Brito e Lopes, 1999b; Fenton, 1999; Burguière e Grew, 2001). A este propósi-
to, Taguieff (1997), entre outros, critica a banalização da palavra racismo. Alerta, no entanto, para
os efeitos indesejáveis de uma utilização restrita à doutrina científica da desigualdade entre raças
humanas, desvalorizando as formulações atuais mais veladas e subtis (Cabecinhas, 2008: 175),
manifestações estas particularmente desafiantes no que respeita à sua identificação e combate
(Lima e Vala, 2004).
Há, pois, grande hesitação entre inflacionar e esvaziar o conceito. Em nosso entender, tal pode ser,
em última análise, atribuído ao seu uso não apenas em diferentes campos científicos – o que já de
si minaria a sua univocidade – mas também no campo do ativismo. Justifica-se por isso perguntar
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (35)
“o que é o racismo, afinal?” A esta questão, que foi o título provocador de um encontro realizado
a 8 e 9 de março de 2010 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL),
poderíamos responder que o racismo é, cada vez mais, uma metonímia. Há um conjunto de pro-
cessos de categorização-desigualdade que tem o seu pior exemplo no levar do racismo científico às
consequências finais pelos Nazis, reduzindo-o não ao absurdo mas ao horror. O fascínio, o trauma
foram tamanhos que acabámos chamando racismo a tudo. Não dizemos “o horror à espreita nas
identidades coletivas, seja qual for o acidente com base no qual estas são imaginadas”, dizemos
“racismo” e ganhamos em concisão o que perdemos em precisão. Tomamos o todo pela parte, o
que é a marca da variante da metonímia à qual por vezes se chama sinédoque. O termo tal como é
comummente utilizado é simultaneamente demasiado lato para ter utilidade analítica e demasiado
relevante, em termos de lastro histórico e utilidade (leverage) social, para ser descartado.
A ciência é, entre outras coisas, reducionismo impenitente. Um cientista que, enquanto tal, tivesse
a frieza de apenas se preocupar com o que diz estritamente respeito ao seu portefólio usaria o ter-
mo racismo para designar fenómenos relacionados com a crença na pretensa validade científica
da existência de raças humanas e trataria os fenómenos conexos sob outros rótulos, cunhando
eventualmente uma designação mais englobante que a todos cobrisse sem desvirtuar. Mas tal
cientista não é mais do que um tipo ideal de um certo positivismo ingénuo e o que temos na
prática é um número de propostas de terceiras vias. Fernando Luís Machado (2000), por exemplo,
propõe uma visão equilibrada entre as diferentes formas de expressão, como a defendida por
Collette Guillaumin, que combina na definição de racismo comum, o somático e o simbólico, o
biológico e o cultural (2000: 22). A solução a adotarmos deverá levar em conta esta preocupação
de inclusividade, ainda que, como se verá na análise dos dados, o racismo biológico puro e duro
se tenha manifestado em todos os contextos sociais que viemos a auscultar.
(36) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
deparamos com uma série de opções clássicas nas ciências sociais: teoria ou prática, estrutura
ou ação, etc. Philomena Essed distingue três níveis conceptuais nos quais podemos falar de
racismo: o ideológico, o estrutural e o processual (1991: 43-44). Seria tentador dizer que, dada a
natureza da recolha empírica na qual nos estamos a basear nesta investigação, nomeadamente
transcrições de discussões de grupo, seria este último o nível que nos iria interessar. Contudo, a
análise de discurso presta-se tanto a perceber como são encenadas as estruturas e objetivadas as
ideologias como, pelo contrário, a compreender como estas são reproduzidas ao nível da interação
quotidiana. Ou seja, a ferramenta utilizada é, neste sentido em particular, neutra. Temos, pois, de
procurar outra base para a escolha que importa fazer.
Neste sentido, parece-nos persuasivo o argumento desenvolvido por Wetherell e Potter em favor da
circunscrição das ambições de teorização ao discurso racista, prescindindo de teorizar o racismo
como um todo (1992: 59), e do desenvolvimento de uma perspetiva sobre o discurso que o trata
enquanto elemento de construção da realidade social. Passando em revista a literatura existente
sobre o tema, estes autores concluem que a explicação do discurso requer que o coloquemos
em relação com um qualquer contexto. Grosso modo, esse contexto pode ser a “realidade”, a
“sociedade” ou a “identidade”. O contraste entre discurso e realidade baseia-se na assunção de
uma clara dicotomia entre estes relatos verdadeiros e falsos e versa sobretudo a correspondência
entre facto e representação. A ancoragem do discurso na sociedade remete para uma análise
do tipo “as ideias dominantes são as ideias das classes dominantes”, ou seja, a interrogação é,
sobretudo, quem beneficia? A abordagem pela identidade trata o discurso como sintomático de
dimensões subjetivas (1992: 6-7). O discurso racista pode assim ser uma simples falsidade, uma
ideologia, uma patologia, uma limitação do entendimento ou uma fatalidade da condição humana,
conforme o referente seja a realidade, a sociedade, a identidade segundo a teoria da personalidade
autoritária, a identidade segundo o cognitivismo ou a teoria da identidade social (de Tajfel, por
exemplo), respetivamente. Insatisfeitos com tais abordagens, Wetherell e Potter (1992) optam por
não tratar o discurso como reflexo ou indício seja do que for nem postular qualquer dualismo entre
relações discursivas e relações materiais. Ao invés de procurarem ver de onde o discurso racista
vem, procuram ver onde vai dar. Aliás, para eles o discurso não é qualificável como racista em fun-
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (37)
ção da sua origem ou propriedades formais mas sim das consequências que acarreta (1992: 70).
O seu objetivo é procurar ver como é operada a construção retórica e ideológica das categorias
sociais (1992: 9). Quanto ao discurso racista, este é identificável não pela sua proveniência, forma
ou conteúdo, mas por ter como efeito o estabelecimento, sustentação e reforço de relações de
poder opressivas entre as categorias sociais que constrói (1992: 70). Determinado discurso pode
ser racista nas suas consequências, sem que estas tenham sido desejadas ou sequer previstas,
no que, aliás, Wetherell e Potter (1992) são secundados por Wellman (1993). Sob esta definição o
discurso racista revela-se em situações e locutores insuspeitos, produzindo resultados interessan-
tes e surpreendentes. Mas talvez mais importante ainda é o facto de com a proposta teórica de
Wetherell e Potter deixar de fazer sentido a questão de saber se determinado indivíduo é ou não
racista, que afinal não passa ela própria de essencialismo e rotulagem.
(38) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 3.
CONTEXTO NACIONAL
A ideologia que orientou a política colonial portuguesa fez, a seu tempo, amplo uso do racismo
científico. Durante a primeira metade do século XX, a doutrina política dominante baseava-se
numa visão etnocêntrica e desigualitária que justificava “o papel de Portugal no Ultramar, como
portador dos valores universais da civilização face aos povos primitivos” (Alexandre, 1999: 140).
A pretensa função civilizadora da colonização, entendida como missão, decorria das teorias que
advogavam uma rígida hierarquia racial, com os arianos no topo e “condenando irremediavel-
mente as supostas raças inferiores, nomeadamente os Negros, à subalternidade, quando não ao
extermínio” (Alexandre, 1996: 201).
A discussão política acerca do regime de exploração das colónias e da atribuição aos indígenas de
algum grau de cidadania que atravessou o período colonial levou à tomada de posição de diversos
políticos e intelectuais sobre a matéria. Entre estes conta-se, por exemplo, o eminente historiador
e político Oliveira Martins, que afirmava ser absurda a aplicação da Carta Constitucional do Código
Civil e Lei Eleitoral à “pretaria de Angola” (Martins, 1888, citado em Alexandre, 1996: 200).
Segundo o autor em questão, o destino das colónias portuguesas dependia da capacidade de ex-
ploração das mesmas, pelo que se tornava necessário capitalizá-las, descobrindo: “… um meio de
tornar forçado o trabalho do negro, sem cair no velho tipo condenado da escravidão. Poderíamos
talvez assim explorar em proveito nosso o trabalho de uns milhões de braços, enriquecendo-nos à
custa deles. De tal modo se fez o Brasil” (Martins, citado em Alexandre, 1996: 201).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (39)
semibárbaras, mas também como depositário do poder social, não deve ter escrúpulo de obrigar
e, sendo preciso, de forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo
trabalho meios de existência mais feliz, a civilizarem-se trabalhando, esses rudes negros da África,
esses ignaros párias da Ásia, esses meios selvagens da Oceânia, a que o mesmo Estado impõe
também, até com pena de extermínio, tantas outras obrigações que lhes aproveitam bem menos e
nem sempre são legitimadas pelos interesses da civilização” (Ennes, citado em Henriques, 2004:
295).
Tais posições de Oliveira Martins e António Ennes, surgiam em reação às pressões exercidas
pelas sociedades antiesclavagistas que no final do século XIX protestavam contra a expansão da
influência portuguesa na África Austral e denunciavam a prática da escravatura nas colónias. Os
governantes procuravam, assim, legitimar a colonização como sendo uma missão civilizadora,
mostrando em simultâneo que a abolição da escravatura não significava o direito de não trabalhar.
Na realidade, o Decreto de Abolição da Escravatura de 1836 e a posterior extinção do trabalho
servil nas colónias revelaram-se “inoperantes” (Torres, 1990), uma vez que o trabalho escravo ou
semiescravo esteve presente nos territórios ultramarinos ainda durante o século XIX e princípios
do século XX.
O sistema colonial não poderia ter persistido sem a contribuição do trabalho escravo, apesar
das pressões internacionais de que era alvo. Para contornar essas mesmas pressões, o Estado
português encontrou vias astuciosas para organizar o trabalho do africano (Jerónimo, 2010). Para
o efeito criou a figura legal do “indígena”, também esta descrita através de um conjunto de
marcadores de inferiorização baseados no determinismo biológico e com uma argumentação jus-
tificativa de uma ferocíssima imposição do trabalho (Henriques, 2004: 287-288): “O trabalho foi
o instrumento civilizador fundamental mobilizado pelas autoridades portuguesas nas suas posses-
sões coloniais, forma estruturadora das relações quotidianas entre o colonialismo português e as
populações colonizadas. Só pelo trabalho poderiam as populações indígenas aspirar a entrar no
«grémio da civilização», expressão recorrentemente utilizada por políticos, publicistas ou pensado-
res comprometidos com a causa colonial. A colonização das almas assentava na colonização dos
(40) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
corpos. Os estereótipos raciais e civilizacionais, herança antiga refinada pela articulação histórica
do positivismo com o evolucionismo e com o racismo dito científico, reforçaram e justificaram
modelos de recrutamento e utilização de mão-de-obra africana. Não foram, porém, a sua causa.
Funcionaram, pelo contrário, como eficazes recursos de legitimação, tanto da persistência da
escravatura como da necessidade e da justeza da expansão e consolidação colonial” (Jerónimo e
Domingos, 2007).
Para além do argumentário legitimador dos trabalhos forçados e da ocupação territorial, os estere-
ótipos raciais serviam ainda de base à contestação da miscigenação. Este processo era entendido
ora como estratégia para reforçar a presença humana nas colónias, ora como indesejável pelo
consequente resultado de “impureza racial” a ele associado.
Francisco Silva Telles, principal organizador do I Congresso Colonial realizado em 1901, defendia
que o povoamento e a fixação de populações nas colónias era o único meio que restava aos
portugueses para salvarem os territórios das cobiças dos ingleses e dos alemães. Segundo o mé-
dico antropólogo, os portugueses, sobretudo os do Sul, tinham facilidade em se adaptar aos climas
tropicais devido ao seu fundo étnico já formado pela miscigenação. Este processo de “colonização
mista”, em que “a raça invasora funde-se com a indígena a diversos graus, mas conserva grupos
de famílias na maior pureza de sangue” visava capitalizar a multiplicação proporcionada pela
mestiçagem e salvaguardar a hegemonia portuguesa (Ramos, 2000: 143).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (41)
“… prolongamento da nacionalidade, brilhante receptáculo da nossa língua, campo vastís-
simo à expansão da nossa civilização (…) abençoada pelos povos primitivos que a História
nos entregou para os elevarmos até nós” (Norton de Matos, 1926, citado em Alexandre,
1999: 139-140).
Embora defensores da assimilação dos negros numa grande província portuguesa, através da
partilha da língua e dos costumes, ambos os governadores entendiam que nos primeiros tempos
de ocupação era necessário evitar a mestiçagem. A separação racial ia permitir, por um lado, o
desenvolvimento gradual dos negros – uma vez que estavam muito atrasados em relação aos
brancos – e, por outro lado, que os colonos portugueses preservassem o seu estado puro e esti-
vessem, por isso, em melhores condições de resistir aos influxos estrangeiros. A fusão das raças
só faria sentido uma vez estabelecida a hegemonia da civilização nacional (Alexandre, 1999: 140;
Ramos, 2000: 145).
O Estado Novo promoveu a valorização das colónias enquanto elemento fundamental de capital
simbólico associado ao regime fascista vigente desde 1926. O espírito de “missão civilizadora”
das “raças inferiores” foi reforçado durante este período e integrava os discursos oficiais e políticos
que procuravam marcar a determinação do regime na preservação do império colonial – “É da
essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar do-
mínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo
também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente” (Constituição Política da
República Portuguesa & Acto Colonial, 1933).
Segundo Oliveira Salazar, instituidor do Estado Novo e presidente do Conselho de Ministros entre
1932 e 1968, “devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das raças
inferiores cujo chamamento à nossa civilização cristã é uma das conceções mais arrojadas e das
mais altas obras da civilização portuguesa” (Salazar, citado em Torgal e Homem, 1982: 1451).
As representações raciais dominantes durante o Estado Novo aparecem bem patentes nos diver-
sos congressos coloniais onde cientistas, académicos, políticos, militares e religiosos discutiam
(42) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
a “missão civilizadora” de Portugal. Numa altura em que na maioria dos países europeus e nos
Estados Unidos da América, a antropologia física era já seriamente contestada (Cabecinhas e
Cunha, 2003: 166-169). No palco do Congresso do Mundo Português, realizado em 1940, tiveram
lugar comunicações sobre a mestiçagem, grupos sanguíneos, pigmentação, pureza bioquímica,
entre outras. As teses apresentadas procuravam refutar as teorias de cientistas europeus acerca
do nível intelectual de diversos grupos raciais que desvalorizavam os portugueses face a outras
nacionalidades. É curioso notar que o esforço é posto em negociar uma posição mais favorável
aos lusitanos dentro da “hierarquia das raças” e não em questionar a validade deste tipo de
constructo.
O teor das comunicações é brevemente ilustrado pelos trechos seguintes: “Não é exacto o que
sobre a pretensa decadência de Portugal afirma Henri Decugis no seu livro «Le Destin des Races
Blanches». Essa decadência seria devida, segundo aquele autor, à infecundidade das famílias
dirigentes, à pululação de elementos inferiores, a um abastardamento da raça pelo mestiçamento
intenso com gente de cor, ao abaixamento do nível intelectual da população, à escassez de indi-
víduos de escol, que de há três séculos a esta parte quási não permitiria a Portugal participar no
prodigioso movimento intelectual da Europa. (…) Limitar-nos-emos a registar com desvanecimento
que a simples realização deste Congresso é um protesto contra a asserção dos que nos dizem
decadentes, na mais lamentável ignorância do nosso brilhante movimento intelectual do século
XVIII, da nossa acção no Brasil colonial, dos nossos modernos esforços para a valorização das co-
lónias, do labor de alguns dos nossos institutos científicos, do verdadeiro milagre de ressurgimento
operado sob a direcção firme e esclarecida de Salazar” (Mendes Corrêa, 1940a: XIV-XV).
Eusébio Tamagnini, numa comunicação intitulada “Os grupos sanguíneos dos portugueses”, afir-
ma, “por muito que custe ao espírito liberal e aos internacionalistas”, a “desigualdade natural dos
homens, mas também dos povos e nações” existe. O cientista, principal dirigente da escola de
Antropologia de Coimbra e Ministro da Instrução Pública e Belas Artes, entende que a essa desi-
gualdade humana está subjacente uma hierarquia a que necessariamente “se têm de subordinar
todos os inferiores, quer no que toca aos indivíduos, quer no que afecta os agregados populacio-
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (43)
nais”. E continua: “Pode todavia afirmar-se, sem receio de contestação, que os europeus, no seu
conjunto, ocupam o primeiro lugar entre os povos progressivos, tendo marcado sempre a sua
nítida superioridade seja qual for o aspecto sob que os comparemos com os outros povos existen-
tes. Sabe-se porém que a construtura étnica um povo, duma nação, está em contínua evolução.
(…) A importância do facto apreende-se imediatamente se, considerando a nossa posição de povo
colonizador, pensamos um pouco nas enormes facilidades de mestiçagem que concedem os
múltiplos e prolongados contactos com elementos étnicos inferiores em regime de subordinação
política e social. Ora, precisamente, é-nos feita a acusação de termos absorvido em demasia
quantidade considerável de sangue negro, em consequência de mestiçagem intensa com escravos
negros importados da África. (…) Parece-nos, pois, que neste Congresso, que se realiza para fes-
tejar a data histórica da nossa origem como nação europeia, e a da nossa definitiva consolidação
nacional como povo ibérico independente, não será descabida a prova da inexatidão da tese dos
«portugueses negróides». Limitar-me-ei à consideração dos grupos sanguíneos, embora se possa
chegar à mesma conclusão pelo estudo de outros aspectos da questão” (Tamagnini, 1940: 4-5).
Defende que embora alguns portugueses estejam já afetados por sangue negro, em virtude de
processos de miscigenação, o povo tem conseguido manter a pureza racial própria dos povos
superiores – “Como se verifica, os portugueses ficam bem enquadrados no âmbito das popu-
lações europeias. A frequência do grupo A manifesta-se inferior à dos suecos, mas é superior à
dos dinamarqueses; concomitantemente, a frequência do grupo O, mais alta que nos suecos, é
sensivelmente inferior à dos dinamarqueses. Quanto ao grupo B, os portugueses manifestam uma
frequência inferior quer à dos suecos quer à dos dinamarqueses. (…) Verifica-se que, não obstante
certos desvairos, temos conseguido manter a pureza étnica relativa da massa populacional, e, se
é certo que as origens do tipo nórdico se têm de rebuscar num conjunto de mutações dum ante-
passado dolicocéfalo moreno, nós portugueses, como representantes desse antepassado comum,
não poderemos ser acusados de termos abastardado a família” (Tamagnini, 1940: 20-22).
Também Ayres de Azevedo, cientista que esteve na vanguarda dos estudos eugénicos em Portugal
e que, em meados da década de 1940, viria a trabalhar na Alemanha em colaboração com os
(44) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
cientistas que deram corpo à política racial do nazismo (Castanheira, 2010), na sua comunicação
sobre “A pureza bioquímica do Povo Português”, procura demonstrar que a contaminação pos-
sível da raça portuguesa em resultado dos contactos coloniais é praticamente nula e que o povo
português se encontra num estado de pureza bioquímica semelhante ao dos povos da Europa do
Norte – “O índice biológico racial europeu eleva-se muito nos pontos relativamente isolados, de
difícil acesso: a segregação é sempre acompanhada dum aumento da pureza racial. Em Portugal
verifica-se que a percentagem de B cresce de norte para sul, acréscimo que traduz a infiltração,
geograficamente mais fácil e historicamente bem conhecida, da raça Árabe no sul do país, en-
quanto que o norte esteve exposto às invasões dos povos nórdicos. (…) Analisando no quadro I
as percentagens da distribuição do nosso povo pelos diferentes grupos sanguíneos e o número
de indivíduos classificados, vemos que do estudo de 3 757 portugueses foi possível calcular para
índice bioquímico o valor de 4,3. (…) É este que, incluído na lista dos índices de Hirszfeld (quadro
2), mostra o alto lugar que o nosso povo ocupa entre os povos de tipo europeu. (…) Classificações
recentes dos ingleses estabeleceram para este povo um índice inferior ao dos franceses, ficando
portanto os portugueses na situação do povo mais europeu, como dizem Prates e Fraga, sob este
ponto de vista” (Azevedo, 1940: 557-559).
O médico defendia que “a estrutura bioquímica do sangue é um elemento do mais alto valor que
nunca deverá ser dispensado na definição e estudo duma raça” e que a “infiltração das raças
coloniais” poderia contribuir para a impureza do povo português: “Ora, verifica-se que tal não
sucede, continuando o povo português, a despeito da intensa e persistente actividade coloniza-
dora prosseguida durante cinco séculos, a manter-se num estado de grande pureza, maior que
a quási totalidade dos povos da Europa. (…) É muito grande a pureza bioquímica da população
portuguesa, o que coloca o nosso povo, sob este aspecto, no mais alto lugar da lista das raças de
tipo europeu (Classificação de Ottenberg). (…) A influência das raças coloniais (nomeadamente
Hindu e Negra) na pureza bioquímica do povo português, é praticamente nula” (Azevedo, 1940:
560-563).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (45)
Porto ao Congresso do Mundo Português, onde apresentou comunicações intituladas “Factores
degenerativos na população portuguesa e seu combate” e “O mestiçamento nas colónias
portuguesas”. Resistindo tanto a qualquer tentativa de incentivar a miscigenação como estratégia
para a manutenção e crescimento do poderio colonial como à defesa da capacidade dos portu-
gueses se cruzarem harmonicamente com outros povos do mundo, Corrêa alega que “a pureza
do sangue português metropolitano é uma condição essencial da continuidade histórica e moral
da Nação”. Não obstante verificar-se no Brasil e nas colónias “um mestiçamento relativamente
intenso de portugueses com raças exóticas, no Portugal metropolitano, nos últimos decénios,
o fenómeno é felizmente mais raro, tendo-se eliminado muitos antigos elementos alienígenas”
(Mendes Corrêa, 1940b: 587).
Considera o cientista que, embora não se conheçam estudos conclusivos acerca da inferioridade
decorrente da mestiçagem, o otimismo acerca do processo “constitui uma perigosa utopia” e
não pode, de todo, “constituir a base de uma política colonial subordinada a um princípio de
continuidade histórica da nação”, sob pena do desaparecimento “da superfície do globo o povo
português, ainda que este nome sobrevivesse, mesmo aplicado a muito mais vasta massa endé-
mica” (Mendes Corrêa, 1940c: 133). E faz o alerta: “É intuitivo que, quanto mais intenso e variado
for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa,
mais rápida e fortemente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o
que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multissecu-
lar, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa” (Mendes Corrêa, 1940c: 130-131).
Extremadas as comparações, Mendes Corrêa alerta para o risco da miscigenação produzir seres
idênticos aos rafeiros, em palavras que ilustram a aversão que sente relativamente ao processo
biológico: “Dificilmente se encontrarão hoje grupos raciais homogéneos. Mas o mestiçamento
generalizado e sem restrições só poderá conduzir a um confuso melting pot de que sairá uma
humanidade biologicamente comparável, no seu profuso polimorfismo individual, na sua varieda-
de caprichosa e incongruente, na infiltração germinal de todos os factores degenerativos – senão
letais – e de todas as insuficiências individuais, aos atípicos e lazarentos «cães da rua» (…)
(46) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Leclainche considera a manutenção de barreiras de raça como «geradora de cataclismos de que
a humanidade acabará por se cansar». Não resultará igual ou maior cataclismo da abolição total
dessas barreiras? Não sucederiam a alguns conflitos inter-raciais miríades de conflitos endémicos
entre indivíduos e até de dramáticos conflitos interiores em cada indivíduo?” (Mendes Corrêa,
1940c:122).
Verificamos assim que, antes da Segunda Guerra Mundial, na ideologia dominante do Estado
português, subsistem imagens do negro como “inferior”, “selvagem”, “subalterno”, que vigoram
em paralelo com as teorias pseudo-científicas promovidas para justificar a dominação colonial. As
imagens inversas, em que ao negro aparecem associados traços positivos, são geralmente as de-
correntes da influência civilizadora do Homem Branco: a transformação de um negro “selvagem”
num negro “civilizado”, isto é, “assimilado” (Cunha, 1994: 27-28).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (47)
(Henriques, 2004: 305). Essas teses assentavam na ideia de que os portugueses tinham uma
especial aptidão para lidar com os povos dos trópicos e essa vocação conferia uma especificidade
ao colonialismo português distinguindo-o das restantes potências colonizadoras.
Narrativas que hoje quase podemos apelidar de “românticas” descreviam a relação entre coloni-
zados e portugueses com recurso a termos como “família, irmãos, fraternidade humana, comuni-
dade, fusão, multiracialismo”, enfim, configurações de uma “cultura portuguesa igualitária e as-
similadora” (Siegfried, 1951, citado em Santos, 1966: 234). Descrições relativas à “amplitude do
ânimo melanistamente democrático dos portugueses” apareciam por oposição à colonização de
outras potências europeias, “tão cruelmente desdenhosa, até há pouco, das populações de cor”
(Freyre, citado em Santos, 1966: 214) – “Sendo assim, como se admitir como justa a campanha
que se vem fazendo nos últimos dois anos, metodicamente, tecnicamente, e dispendiosamente
contra Portugal, em livros, em jornais e em revistas de vários países – até em revistas como o
excelente The New Leader, de Nova Iorque – e com repercussão no próprio Brasil, sob a alegação
de que as chamadas províncias de Portugal no Oriente e na África são colónias do mesmo tipo das
até há pouco colónias inglesas, holandesas, francesas, belgas; ou das que restam a esses poderes
europeus, hoje impérios em dissolução, no Oriente, na África e na própria América? Como dizer-se
que nessas províncias se humilham populações de cor e se conservam as suas culturas à parte
ou à distância das europeias, com o mesmo rigor sistemático com que os ingleses, holandeses,
belgas e mesmo franceses vinham praticando nos trópicos sua política como que profilática de
minorias europeias intransigentemente «superiores», em suas atitudes e em seu procedimento, a
maioria de gentes de cor consideradas «inferiores»?” (Freyre, citado em Santos, 1966: 215).
Em 1954 foram introduzidas alterações à Lei Orgânica do Ultramar e a aplicação dos princípios
(48) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
da Constituição Política previu, através do Decreto-Lei n.º 39666, de 20 de maio, a possibilidade
de extinção da condição de indígena e da aquisição da cidadania. Assim, os indígenas, “indivíduos
de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não
possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplica-
ção do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (Art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 39666,
Boletim Oficial de Angola, 1954: 374) puderam, a partir de então, perder essa condição e adquirir
a cidadania, desde que provando satisfazer cumulativamente os seguintes requisitos:
c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento
próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo
fim;
e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor
(Art.º 56.º do Decreto-Lei n.º 39666, Boletim Oficial de Angola, 1954: 377).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (49)
de Mendes Corrêa. O governo português procurou apagar da legislação os indícios mais evidentes
da discriminação racial e a retórica do regime passou a dar ênfase à formação de “sociedades
multiraciais” no Ultramar (Alexandre, 1999, 142-143): “É sempre difícil a um português tratar
problemas raciais perante um auditório estrangeiro, porque na realidade tal problema não existe
em Portugal. A antinomia Schwarz und Weiss4 (preto e branco) não faz sentido para nós, a não ser,
em pequeníssima escala, nas regiões onde o convívio com vizinhos estrangeiros exerce alguma
influência nas nossas populações. O que sucede é, muitas vezes, dar-se uma certa coincidência
entre cor e nível social, podendo, à primeira vista, parecer, ao olhar desprevenido de um estranho,
que se trata de diferenciação racial. (…) O rápido desenvolvimento económico e industrial, que
se está a operar na nossa terra, deve ter a sua repercussão no convívio dos homens, e é possível
que haja por vezes nele certa tendência – aliás natural – para que as classes sociais tendam a
coincidir um pouco com diferenças de cor. Mais grave é talvez o exemplo dado por outros povos
que tende a exercer uma certa acção nos cidadãos recém-chegados, sobretudo nos mais simples
e menos cultos, que podem ser tentados a sentirem-se superiores pelo facto de serem brancos.
É tão agradável a gente sentir-se superior, que nos serve até um mito! Mas dada a nossa tradição
e a orientação dos governantes é de esperar que isso seja passageiro” (Dias, citado em Santos,
1966: 204-210).
(50) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Face ao racismo branco, ao racismo negro, ao racismo amarelo, os portugueses de todas as cores
afirmaram-se assim dispostos a manter o seu convívio, a continuar o seu labor, a unir-se num
comum esforço de progresso e de aumento do bem-estar. Trata-se bem no seu sentido plurirracial,
em face dos ódios que separam os povos, de continuar uma tradição que tende a constituir de
algum modo uma nova humanidade. Tendo no passado contribuído para dar «novos mundos
ao mundo» parece caber aos portugueses de todas as cores unir-se para dar novos homens ao
homem” (Barata, citado em Santos, 1966: 230-233).
Porém, a representação do negro e das “relações raciais” “mudou mais à superfície que em
profundidade, tendo permanecido o paternalismo, que devia continuar a ser exercido sobre os
povos das províncias ultramarinas” (Cunha, 1994: 22), como aliás nos exemplificam as palavras
de Freyre que não resistimos a citar: “Certa vez fui recebido com a melhor das hospitalidades pelo
já velho patriarca de uma pequena fazenda do interior da Angola que me informou, dando sinais
de profundamente triste, ter a mão direita um tanto intumescida: precisara na manhã daquele dia,
disciplinar um jovem servo africano, seu afilhado. Disse-me o nome do jovem – algum António ou
Manuel – pois o português ou o descendente ou continuador de português patriarcal, na África ou
no Oriente, não trata nunca um nativo, simples e impessoalmente, como boy, à maneira inglesa
e de outros europeus; e sim, afectuosamente, cristãmente, pelo nome de cada um. Imaginei o
assombro de um dos meus colegas de universidade dos Estados Unidos – o professor Melville
Herskovits, africanologista ilustre, por exemplo – em face de uma confissão daquela espécie: a
de um português branco da Angola que não hesitava em informar a um estranho ter castigado
com vigorosos golpes um dos seus jovens servos africanos. Eu, porém, lembrei-me imediatamente
dos meus dias de menino: dos castigos físicos que eu próprio recebera de um pai patriarcal às
vezes severo com os filhos; dos castigos que vi serem aplicados pelos velhos da casa ao jovem
Severino, preto afilhado de minha Mãe e companheiro de brinquedos do meu irmão mais velho.
Patriarcalismo. Familismo” (Freyre, citado em Santos, 1966: 217).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (51)
tendo lugar sequencialmente, entre 1974 e 1975.5 Segundo Alexandre, a perda das ex-colónias e
a queda do Império não levaram à dissipação do luso-tropicalismo. Os seus temas continuaram
a circular de forma difusa, herança dos aparelhos ideológicos do Estado Novo – em particular da
escola – que reivindicou um modo de estar no mundo específico dos portugueses, mas também
de um nacionalismo português que incorporou essa especificidade no quadro de valores próprios
da identidade nacional imaginada e construída (Alexandre, 1999:143). A imagem do país de “bran-
dos costumes” tornou-se um lugar comum na sociedade portuguesa e constitui um elemento do
seu imaginário coletivo. A perda das colónias não feriu a imagem nacional (Miranda, 2001, referido
em Cabecinhas e Cunha, 2003:182). Aliás, segundo Eduardo Lourenço, “cultivamos, oniricamen-
te, um Império de quinhentos anos como se nunca de lá tivéssemos saído. (…) O Quinto Império
está em nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente na feira dos mitos extintos” (Lourenço,
1999: 67- 86).
Através da análise dos discursos do quotidiano que nos propusemos fazer neste trabalho, procu-
raremos perceber em que medida persistem no senso comum perceções do Outro baseadas num
imaginário com raízes históricas, bem como imagens dos portugueses associadas a uma maneira
particular de estar no mundo, imagens essas ideologicamente veiculadas no país desde há cerca
de três ou quatro décadas.
2. HISTORIAL MIGRATÓRIO
(52) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
As primeiras décadas do século XX foram marcadas pela saída de um grande número de pessoas
do país. Os destinos de eleição nesse período foram o Brasil, a Venezuela, o Canadá e os Estados
Unidos da América. A partir dos anos 1960, a emigração transatlântica foi cada vez mais substi-
tuída pela emigração para a Europa Ocidental. O crescimento das economias europeias e a sua
proximidade geográfica levaram a uma mudança na direção dos fluxos migratórios portugueses.
Embora a tradicional migração transatlântica não tenha desaparecido por completo, assistimos a
um novo ciclo na história da emigração portuguesa. França passou a ser o destino principal dos
portugueses que se mudavam para outro país. Seguiram-se fluxos de população (correspondendo
a cerca de um terço da população laboral) para países como a Alemanha, Bélgica, Suíça, Holanda,
Inglaterra e Luxemburgo. O fluxo de emigração para a Europa entre 1960 e 1974 é estimado em
1.500.000 pessoas, o que equivale a cerca de 100.000 emigrantes por ano (Ferrão, 1996).
No entanto, o primeiro choque petrolífero teve efeitos imediatos e duradouros sobre os padrões
migratórios. As medidas de controlo foram apertadas e as fronteiras fechadas, principalmente na
Europa. A maior parte dos países impôs restrições a novos contingentes de imigrantes e encorajou
o regresso de residentes estrangeiros aos seus países de origem. Neste período, os tradicionais
destinos não-europeus – nomeadamente os Estados Unidos da América, o Canadá, a Venezuela e
a Austrália – foram os que mostraram maior permeabilidade à imigração portuguesa.
Ao mesmo tempo que na economia mundial se encerra o ciclo dos trinta gloriosos anos de cres-
cimento do pós-guerra, em Portugal dá-se um golpe militar que põe fim ao Estado Novo (28 de
maio de 1926 – 25 de abril de 1974) e conduz a uma mudança de regime no sentido de uma de-
mocracia parlamentar de pendor semi-presidencialista, realizando-se as primeiras eleições livres
exatamente um ano depois do golpe militar. Esta situação levou ao regresso dos exilados políticos
e abriu caminho para uma série de mudanças sociais que ajudaram a estancar a saída de po-
pulação do país. Na sequência da descolonização, em 1975, muitos portugueses que viviam nas
ex-colónias regressaram a Portugal. Estima-se, com base no recenseamento de 1981, que cerca
de meio milhão de portugueses tenham sido repatriados, o que constitui o maior movimento de
população na história portuguesa moderna (Pires, 2003). Podemos considerar que 1986 marca o
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (53)
fim deste período de turbulência, com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia
(CEE) a conduzir a um declínio inequívoco na emigração.
A conjuntura que emergiu após 1986 foi palco não apenas numa redução da emigração mas
também num aumento da imigração. Foi principalmente no final dos anos 1980 e inícios dos anos
1990 que a imigração para Portugal se tornou um fenómeno importante. Para além do aumento
no número de imigrantes, pudemos ainda assistir a uma diversificação na origem dos fluxos. Essa
diversificação resulta principalmente de um abrandamento da imigração oriunda das ex-colónias
africanas – que decorria desde os anos 1960, compensando a escassez de mão-de-obra derivada
do recrutamento militar de população autóctone para as guerras coloniais, dos exílios políticos
e da emigração económica –, de um ligeiro crescimento nos números de imigrantes indianos e
chineses e de um aumento significativo dos imigrantes oriundos do Brasil. Esta primeira vaga de
imigrantes brasileiros chegou a Portugal para trabalhar em ocupações altamente especializadas,
como a medicina dentária, o marketing, a publicidade, entre outras.
Mas foi em 2000 que o panorama geral da imigração portuguesa se alterou significativamente.
O número de imigrantes tinha vindo a aumentar, mas registaram-se mudanças qualitativas e
quantitativas nos fluxos migratórios que, até então, tinham permanecido relativamente constantes.
Um súbito influxo em massa de ucranianos fez deles, nos meados da década, uma das cinco
nacionalidades de imigrantes mais numerosas, a par dos brasileiros, cabo-verdianos, angolanos e
guineenses. Em 2007, os grupos mais representativos da imigração em Portugal eram, segundo
dados do SEF os brasileiros (66.354), os cabo-verdianos (63.925), os ucranianos (39.480), os
angolanos (32.728) e os guineenses (23.733) (SEF, 2007: 18). Correlativamente, o perfil dos imi-
grantes registou algumas alterações e assistiu-se a um marcado aumento do nível de qualificações
académicas e profissionais dos imigrantes em geral e da sua respetiva integração ocupacional.
Este efeito só foi mitigado pelo facto da segunda vaga de imigrantes brasileiros, que também se
manifestou por esta altura, ter sido composta na sua maioria por trabalhadores pouco qualificados
que ocuparam posições no setor dos serviços (hotéis, restaurantes e comércio). Mas, embora
os imigrantes da Europa de Leste que começavam a entrar em Portugal tivessem, regra geral,
qualificações superiores à maioria dos imigrantes que já se encontravam no país, a verdade é que
(54) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
se integraram em setores do mercado que precisavam, principalmente, de grandes quantidades
de trabalho não qualificado. É também de referir o facto de, por essa altura, terem começado a
emergir novos padrões de dispersão geográfica em correlação com oportunidades de emprego
em mercados de trabalho locais. Até meados dos anos 1990, a distribuição geográfica dos imi-
grantes estava relativamente concentrada na área da Grande Lisboa (essencialmente africanos),
com alguma presença no Algarve (europeus, na sua maioria) e no Litoral Norte (brasileiros, contra-
-fluxo resultante de emigração prévia para o Brasil). Esta distribuição refletia a concentração de
oportunidades de emprego nas principais áreas metropolitanas do país e a importância das redes
migratórias para a fixação de recém-chegados. No entanto, por volta do ano 2000, emergiu um no-
vo padrão, com a dispersão dos imigrantes por todo o território nacional. Isto deveu-se à dinâmica
de desenvolvimento regional e à necessidade de remediar a escassez de mão-de-obra em algumas
das regiões mais despovoadas do país (como o interior), bem como a investimentos públicos e pri-
vados em infra-estruturas e instalações (a barragem do Alqueva, o desenvolvimento da rede viária,
os estádios para o Euro 2004, etc.). Os imigrantes da Europa de Leste, no entanto, evidenciaram
uma dispersão geográfica mais ampla do que os brasileiros e os dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa.
Na viragem do milénio, Portugal tinha, assim, invertido a sua posição no sistema migratório in-
ternacional. Até aos anos 1970, a emigração foi predominante, mas desde então registou um
abrandamento significativo e, em particular desde os anos 1990, a imigração tornou-se uma força
muito mais significativa. Ainda assim, Portugal está, quando comparado com o resto da Europa,
longe de ser um dos países europeus com maior percentagem de imigrantes, e é mesmo um
dos países com menor afluxo anual. Num recente relatório do Eurostat (2010: 1-2), o peso médio
dos cidadãos de nacionalidade estrangeira no conjunto da população da União era em 2009 de
6,4%, linha média que Estados-membros como o Luxemburgo (43,5%), a Letónia (17,9%), o Chipre
(16,1%), a Estónia (16%), a Espanha (12,3%), a Irlanda (11,3%) e a Áustria (10,3%) ultrapassaram
em larga medida. Em Portugal, a percentagem média de população de nacionalidade estrangeira
não foi além de 4,2%, significativamente abaixo da média europeia e muito aquém dos pesos
médios dos Estados-membros referidos.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (55)
Contudo, as mudanças na conjuntura nacional e internacional podem estar a devolver a Portugal
o seu antigo papel de país predominantemente emissor. Uma análise aprofundada dos dados do
Eurostat mostra, por exemplo, que o número de imigrantes portugueses permanentes a chegar
aos países do Eurostat que facilitam estes dados é agora superior ao número de imigrantes que
chega a Portugal. Se os tradicionais destinos não-europeus da emigração portuguesa também
fossem tidos em conta, esta clivagem seria ainda mais acentuada.
3. OS CIGANOS
O presente estudo versa as questões do racismo, cuja abordagem não pode circunscrever-se às
suas conexões com a questão da imigração. Portanto, é apropriado contemplar na descrição do
contexto nacional uma breve resenha sobre os ciganos, que embora sendo portugueses, são,
de acordo com um inquérito recente às perceções subjetivas de racismo aplicado a amostras
representativas dos cabo-verdianos, guineenses, brasileiros, ucranianos e ciganos residentes em
Portugal, uma das minorias que mais se sente discriminada e alvo de racismo em Portugal (Santos
et al., 2009).
Para contextualizar a reflexão sobre os ciganos, importa conhecer algumas das condicionantes
históricas que têm marcado a diferenciação da comunidade cigana, procurar entender em que
medida a sua integração na sociedade portuguesa tem sido enquadrada e como é produzida e
reproduzida a estigmatização, os estereótipos e as representações sobre o Outro (Magano, 2007).
Julga-se que a presença dos ciganos em Portugal remonta ao século XV com uma primeira re-
ferência documental do início do século XVI (1510), no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Durante o reinado de D. João III, o alvará de 13 de Março de 1526, que se refere à recusa de
entrada e expulsão dos ciganos em território português, é o diploma legislativo mais antigo que
se conhece em Portugal relativo à presença dos ciganos (Costa, 1995, citado em Cortesão et al.,
2005: 17). As primeiras fontes documentais são, então, acerca de medidas persecutórias e da
(56) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
hostilidade da população portuguesa para com o povo cigano, então nómada (Magano, 2007).
De facto, a legislação produzida sobre os ciganos ao longo dos séculos evidencia a perseguição a
que estes estiveram sujeitos desde longa data, tanto em Portugal como no resto da Europa (Tong,
1989, citado em Magano, 2007). Correia (2007: 13-15) faz uma compilação das leis, regulamen-
tos e deliberações administrativas iniciadoras de práticas persecutórias sobre os ciganos que vão
desde a interdição para entrar e expulsão, sob pena de açoites públicos e degredo para as galés
(D. João III em 1538 e 1557, respetivamente) à execução com a pena de morte “sem apelação
nem agravo”, àqueles que se recusarem a abandonar o território nacional (D. Filipe I, 1592). Em
1614 Filipe II exclui a pena de morte mas mantém medidas duras para os ciganos que entrem no
Reino. D. João IV promulga alvarás que mandam retirar os filhos aos ciganos a partir dos 9 anos
de idade (1647), e aplica penas de 3 anos de degredo para Castro Marim ou África às pessoas que
acolherem ou alugarem casas aos ciganos (1649). A partir da Lei 1686, Portugal passa a tolerar a
presença de ciganos naturais, filhos e netos de portugueses, desde que com residência fixa. Pedro
II, na segunda metade do século XVI, retoma a pena de morte aos ciganos que entrem no reino.
Em 1800 D. Maria reforça as proibições de nomadismo já vigentes no século XVII. A Constituição
da República de 1822 e a Carta Constitucional eliminam a desigualdade em função da raça e reco-
nhecem a cidadania aos ciganos nascidos em território nacional. A perseguição aos ciganos passa
a ser permitida, tal como aos outros cidadãos, unicamente aos que cometem crimes. No Código
Penal de 1852 ser cigano já não constitui crime. Não obstante, os ciganos continuam a ser alvo
de medidas administrativas e de “vigilância especial”, conforme se lê no Regulamento da GNR de
1920 e, ainda mais tarde, no de 1985 (IGAI, 1998: 20-21). Em termos institucionais e administra-
tivos, outros episódios marcaram o século XX, como a ordenação da Câmara Municipal de Ponte
de Lima aos “indivíduos de etnia cigana (…) que abandonassem o Concelho no prazo de oito dias
e que de futuro apenas permanecessem 48 horas”, de 10 de Maio de 1993. Esta medida veio a
ser impedida por reação do procurador da República e do Provedor de Justiça (Correia, 2007: 15).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (57)
a multiplicidade de recolha de dados, a dispersão dos registos e a falta de sistematização de
elementos fiáveis de caracterização dos ciganos portugueses constituem, todos eles, elementos de
incerteza sobre esta comunidade (Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura, s.d.: 12).
Quanto ao número de ciganos, as estimativas variam consoante a fonte: 20.000 (Nunes, 1981),
50.000 (Vasconcelos, 1998) 30.000 a 92.000 (Mendes, 1998), 50.000 a 100.000 (Machiels,
2002). De acordo com o Relatório do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos
(GTIIC), de 1998, existiam à data cerca de 40.000 cidadãos portugueses suscetíveis de serem
considerados como ciganos.
Como razões para a escassez de informação sobre os ciganos são apontadas o facto de as es-
tatísticas portuguesas não integrarem registo quanto à etnia, dificultando o conhecimento mais
aprofundado dos números e condições de vida desta população; o desconhecimento mútuo entre
ciganos e não ciganos, que gera dinâmicas simbólicas que contribuem para a generalização de re-
presentações sociais negativas; e ainda as reações defensivas de fechamento dos próprios ciganos
(Dias et al., 2006: 11; Mendes, 2005: 38; Casa-Nova, 2006: 165; Vasconcelos, 1998: 37).
Nos últimos anos o ACIDI tentou colmatar esse desconhecimento e, através do Projeto Ciga-nos,6
tem vindo a promover, entre outras atividades, a produção e divulgação de estudos sobre os
ciganos, como aqueles que integram a Coleção Olhares.
6 Acessível a partir de
http://www.ciga-nos.pt/Home.aspx.
(58) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os trabalhos sobre ciganos, especialmente do foro académico, incidem sobretudo nas temáticas
da exclusão social, racismo, etnicidade e representações sociais. Convergem numa caracterização
desta população – fortemente associada a situações de marginalização social, taxas de analfa-
betismo elevadas, abandono escolar precoce, qualificações profissionais baixas, dificuldades de
inserção no mercado de trabalho formal – de onde surgem as dificuldades de relacionamento com
as instituições e as limitações no acesso a recursos sociais disponíveis, nomeadamente em ma-
téria de segurança social, emprego, habitação, saúde, educação, entre outras (Dias et al., 2006;
Casa-Nova, 2003; Correia et al., 2001; Pinto, 2000; Mendes, 1998; Vasconcelos, 1998). Trata-se
sobretudo de estudos de caso, ou seja, trabalhos de campo efetuados em zonas localizadas como
bairros de habitação social ou bairros de barracas, e trabalhos com públicos específicos de as-
sociações, Organizações Não Governamentais e projetos de intervenção social (Dias et al., 2006;
Silva, 2005; Mendes, 2005; Duarte et al., 2005). Daqui resulta que o conhecimento existente não
permita uma abordagem nacional efetiva, mas apenas a extrapolação de análises regionais ou resi-
denciais, que constatam a repetição de padrões de vida, sobretudo em situações de precariedade.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (59)
levado a cabo pela Obra Pastoral dos Ciganos (Comunidade Cigana na Diocese de Lisboa) e com
uma comunicação de Manuel Xarepe relativa à concentração de ciganos na área do Alentejo. Da
análise destes resultados pôde concluir-se que a população cigana se encontra concentrada nas
regiões do litoral mais densamente povoadas e nas zonas fronteiriças (SOS Racismo, 2001: 22).
Outro tipo de estudos são os que abordam a frequência de crianças ciganas no sistema escolar
português. A existência de uma base de dados gerida pelo Entreculturas,7 que permite a “clas-
sificação” dos alunos por “grupo cultural”, possibilitando a sua análise e o conhecimento do
percurso escolar das crianças ciganas, confere fiabilidade aos dados dos estudos nesta temática.
Sustentados nesta fonte de informação, alguns autores aferem sobre a distribuição regional dos
ciganos (Bastos e Bastos, 1999) e muitos têm sido os trabalhos que focam sobretudo a proble-
mática da educação das crianças ciganas (Cortesão et al., 2005; Casa-Nova, 2004b; Liégeois,
2001; Montenegro, 1999), e a caracterização dos seus percursos escolares onde, em média, se
destacam as grandes taxas de insucesso, o absentismo e o abandono escolar precoce: “[Para o
cigano] O trabalho não é um valor ou um aspecto da vida em que se pode obter realização pessoal,
mas uma condição indispensável à sobrevivência quotidiana” (Mendes, 2005: 123).
(60) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
a segurança social (Mendes, 2005: 17). A situação dos ciganos, do ponto de vista da noção de
exclusão social, reside na dificuldade adicional de pensarmos em emprego ou proteção social
para indivíduos que sustentam a sua identidade pessoal e social em bases bem distintas das
do cidadão das sociedades onde vigora o modelo de sociedade salarial (Dias et al., 2006: 35). A
realização de trabalho sem a respetiva prestação pecuniária para a segurança social vulnerabiliza
os indivíduos ciganos no acesso ao subsídio de desemprego ou à obtenção de reforma, o que
é muitas vezes atenuado pelas redes de solidariedade familiar e comunitária e pelo recurso ao
Rendimento Social de Inserção9 ou à Pensão de Velhice (Casa-Nova, 2003: 256). A relação com
o trabalho e a “dependência” de subsídios do regime não contributivo da segurança social da po-
pulação cigana são aspetos frequentemente focados pelos participantes dos grupos de discussão,
conforme poderemos ver adiante.
A maior parte dos estudos de caso sobre comunidades ciganas testemunha a incidência desta
população em atividades económicas excluídas do mercado formal de trabalho (a grande maioria
é vendedora ambulante) e desvinculadas da segurança social, e a sua dependência de subsídios
de assistência social (Dias et al., 2006: 64; Mendes, 2005:122; GTIIC, 1998: 24). A literatura
existente sublinha ainda que as dificuldades se têm vindo a acentuar devido à mudança econó-
mica que afeta o comércio ambulante e a atividade de “feirante”10, e ao papel central da escola
e formação no mercado de trabalho (Gonçalves, Garcia e Barreto, 2006: 72; GTIIC, 1998: 26),
urgindo assim uma intervenção concertada, nomeadamente nas
áreas de educação, emprego, formação profissional, habitação e
9 Foi instituído em 1996 – então
segurança social (Vasconcelos, 1998: 37). Por parte da socieda- denominado Rendimento Mínimo Garantido
– com o objetivo de contribuir para o
de dominante, as políticas de formação profissional e de empre- combate à pobreza e exclusão social.
Trata-se da atribuição de um subsídio
go não têm contribuído para o sucesso da inserção profissional pecuniário acompanhado por medidas
complementares, como programas de
pela sua falta de adaptação às especificidades da cultura cigana inserção profissional e escolar, iniciativas
(Silva, 2005: 17). no âmbito da saúde (como vacinação
e planeamento familiar) e qualificação
profissional. Acessível a partir de
http://www1.seg-social.pt/left.asp?03.06.06.
Os ciganos, em Portugal, estão dispersos em grupos de maior 10 As grandes superfícies comerciais vão
ou menor dimensão, na sua grande maioria sedentarizados. afastando as feiras dos centros urbanos e
os espaços existentes para a venda nesses
mercados vão diminuindo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (61)
Embora muitos deles tenham um modo de vida “semi-itinerante” – marcado por frequente procura
de trabalho, deslocações a feiras e festas, visitas a familiares, ou encontros de família alargada
– isso não exclui a sedentarização entendida como local de referência a que se regressa e com
a qual se identifica a residência (Silva, 2005: 34). A problemática da habitação é muitas vezes
focada em estudos de caso (em bairros de habitação social, zonas de barracas ou acampamen-
tos), mas o desconhecimento da realidade social dos ciganos emerge novamente quanto aos seus
bairros de concentração ao longo do país (Bastos e Bastos, 1999: 156).
Num trabalho sobre as minorias étnicas pobres em Lisboa (Costa e Pimenta, 1991), no que refere
às condições de habitabilidade dos alojamentos, os ciganos apareciam em último lugar em todos
os indicadores, a uma muito grande distância de todas as restantes minorias étnicas (Bastos e
Bastos, 1999: 150). Estima-se que cerca de 31% vivam em situação de habitação precária, em
condições particularmente graves nos distritos de Viana do Castelo, Castelo Branco, Coimbra e
Évora (SOS Racismo, 2001: 22). A intervenção para a resolução de problemas habitacionais é
claramente a que mais motiva as autarquias portuguesas que realizam processos de realojamento
e apoiam a recuperação de casas ou a criação de infra-estruturas nos bairros de residência destas
comunidades (ao abrigo do Programa Especial de Realojamento,11 de protocolos com instituições
do Estado12 ou de outras medidas dos planos nacionais de luta contra a pobreza). Esta intervenção
não se planifica exclusivamente para a comunidade cigana, é sim abrangente às franjas da po-
pulação que vivem em condições de habitabilidade degradadas, não havendo, portanto, medidas
diferenciadas das restantes categorias socialmente vulneráveis.
(62) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
conta especificidades culturais das diversas etnias14 e não promove a convivência intercultural,
dando origem a situações de conflito e rejeição dentro do próprio bairro. Outro dos problemas é o
da integração inadequada dos bairros no tecido urbano, relegando-os, muitas vezes, para zonas
afastadas dos centros urbanos e produzindo formas de guetização. Para além disso, alguns destes
bairros sofreram uma rápida degradação das construções sem que se proceda à sua reabilitação,
carecendo também de infra-estruturas nas áreas de educação, lazer, acessibilidades entre outras.
Na sequência destas constatações, o Relatório do GTIIC aponta como prioridades, na área da habi-
tação, garantir o acesso dos ciganos à habitação social sem qualquer discriminação relativamente
aos restantes cidadãos, evitar a concentração de ciganos no mesmo prédio ou no mesmo bairro,
como aliás é insistentemente pedido pelos ciganos que desejam viver lado a lado com cidadãos
não ciganos, e sensibilizar os técnicos para o problema dos casais ciganos que por falta de meios
se vêem obrigados a partilhar o mesmo apartamento com a família mais alargada, nomeadamente
com outros casais (1998: 27).
Sobre a temática da saúde, a bibliografia remete-nos para uma relação mútua de desconfiança
entre os ciganos e os técnicos das instituições sanitárias, motivada, geralmente, pela falta de
informação e pelas diferentes representações sociais de saúde e doença (Silva, 2005; Duarte et
al., 2005).
Em suma, todas estas condições – relação com as instituições, inserção no mercado de trabalho,
acesso à habitação, à educação e aos serviços de saúde – marcam um modo de vida que, no
plano social da sua relação com a sociedade maioritária, contribui para a reprodução de represen-
tações que tendem a considerar os ciganos como Outros mais distantes.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (63)
da população imigrante no início do século XXI e o relativo crescimento nos anos seguintes, moti-
vou a realização de estudos acerca dos discursos sobre as minorias, nomeadamente os veiculados
nos media (Cádima e Figueiredo, 2003; Cunha et al. 2004; Cunha et al., 2006; Ferin e Santos,
2008; ERC, 2009), as representações do Outro (Lages e Policarpo, 2003; Lages et al., 2006) e
experiências de discriminação e racismo percecionadas pelas minorias (Santos et al., 2009).
Os media, em particular, têm um papel fundamental na formação da opinião pública, pelo que
se revela de extrema importância perceber de que forma os conteúdos veiculados podem ser
portadores de estereótipos e mensagens que contribuem para sentimentos racistas e atitudes
discriminatórias (Peixe et al., 2008: 44). Mecanismos capazes de monitorizar de que forma os
assuntos relacionados com estas temáticas são relatados nos meios de comunicação podem
contribuir para a perceção das atitudes da sociedade de acolhimento face à imigração (Entzinger,
2003: 37) e para a análise dos discursos produzidos em torno das minorias.
O primeiro dos trabalhos efetuados sobre esta matéria (Cádima e Figueiredo, 2003) teve como
principal objeto de estudo a análise da imagem da imigração, imigrantes e minorias, transmitida
e configurada pela imprensa portuguesa. O universo do estudo incidiu sobre notícias publicadas
em jornais e revistas de distribuição nacional e regional, entre o período de 1 de Janeiro de 2001
e 31 de Março de 2002. Esse período coincidiu com dois momentos principais na imigração
portuguesa, por um lado a entrada de um grande contingente de imigrantes da Europa do Leste,
que viria a reconfigurar as características geográficas e socioprofissionais da imigração portu-
guesa, por outro, a introdução do novo regime legal de autorizações de permanência (entretanto
extintas), com entrada em vigor em 2001. A influência destes fatores fez-se também sentir sobre
a agenda dos media (Cádima e Figueiredo, 2003: 32). A metodologia de análise do estudo em
questão consistiu no uso de técnicas quantitativas da análise de conteúdo.
(64) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
grantes dos principais países de proveniência do antigo Bloco de Leste (Ucrânia, Moldávia, Rússia
e Roménia) aumentou de 1.629 para 68.641. Só durante o ano 2001 foram atribuídas 66.700
autorizações de permanência a imigrantes dessas origens (Oliveira, Rosário e Santos, 2007: 83).
Das fontes de informação mais referidas nas notícias analisadas ressaltam as institucionais e/
ou oficiais, sobretudo da Sociedade Civil e as Instituições Privadas seguidas das associadas
aos Poderes do Estado e das Instituições Públicas. Os temas que aparecem mais associados à
Imigração e Minorias Étnicas apresentam distribuições diferentes na imprensa nacional e regional.
No cômputo global o tema dos Delitos (unidades de texto que relacionam imigração, imigrantes ou
minorias com atos judiciais e delitos) surge como a temática mais tratada pela imprensa, seguida
pela temática do Acolhimento (as ações humanitárias, como atos de solidariedade, e medidas
de acolhimento desenvolvidas, tanto pela sociedade civil como pelo Estado, para a promoção da
integração dos imigrantes). De seguida, em igual proporção, aparece o tratamento de temas sobre
Convivência (iniciativas sociais e públicas que favorecem a convivência multiracial e multicultural)
e Exploração de Máfias (a exploração, o abuso e atos de criminalidade e delinquência infligidos
aos imigrantes). As temáticas tratadas pela imprensa nacional têm um forte peso sobre esta
distribuição e apresentam a mesma tendência. Já a imprensa regional parece focar-se numa visão
mais positiva. A maior parte dos conteúdos sobre imigração é relacionada com o Acolhimento e
o ensino de cursos de português. Os autores do trabalho analisam ainda a agregação dos temas
constantes nas peças em quatro fatores fundamentais de tematização – Avanços na integração
dos imigrantes (agregação dos descritores que configuram, tendencialmente, referências a situa-
ções de maior dificuldade na integração dos imigrantes e minorias, bem como situações de pro-
cessos irregulares associados à imigração: e.g. imigração irregular, exploração e máfias, delitos,
etc.); Dificuldades na integração dos imigrantes (situações de maior dificuldade na integração dos
imigrantes e minorias, bem como situações de processos irregulares associados à imigração: e.g.
imigração irregular, exploração e máfias, delitos, etc.); Acidentes de Trabalho (relacionados com
habitação, realojamento e más condições de vida, dificuldades no acesso a serviços de saúde
e legislação); e Debate sobre a imigração, imigrantes e minorias (agregando os descritores que
promovem a discussão sobre esta temática: dados e informação; multiculturalismo, cidadania e
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (65)
direitos humanos; delinquência e segurança; Lei da Imigração/legislação; diferenças culturais,
étnicas e racismo; mercado e condições de trabalho; condições de vida, habitação e realojamento;
redes ilegais, exploração e escravatura). Daqui concluem que a imprensa de distribuição nacio-
nal e regional seguem tendências diametralmente opostas no que diz respeito à incidência de
temas sobre imigração. Na primeira destacam-se as notícias relacionadas com as Dificuldades
na integração dos imigrantes, seguidas daquelas sobre Avanços na integração dos imigrantes. Ao
invés, a imprensa de distribuição regional é a que mais veicula notícias no sentido de apresentar
os Avanços na integração de imigrantes. Os resultados obtidos sobre o total da amostra derivam
numa distribuição de cerca de quarenta e três por cento para notícias relacionadas com Avanços,
quarenta e um por cento sobre Dificuldades, dezasseis por centos sobre Debate e um valor bas-
tante residual sobre outros temas. Os resultados do cruzamento entre as temáticas cobertas pela
imprensa e os imigrantes mostram que os da Europa do Leste e os imigrantes em geral são
os protagonistas da generalidade dos conteúdos, no entanto há algumas exceções. Os temas
relacionados com Delitos, apesar de encabeçados pelos imigrantes do Leste, aparecem também
muito associados aos imigrantes africanos. O mesmo acontece com as questões relacionadas com
habitação, más condições de vida e dificuldade de convivência. O tema do Racismo e Xenofobia é
sobretudo protagonizado pelos africanos.
Nas conclusões deste trabalho são levantadas duas questões que nos parecem fundamentais
acerca do papel dos media na formação da opinião pública. A primeira é sobre a importância de
redirecionar o seu papel para o levantamento de novas questões relacionadas com a problemática
da imigração, em vez de reforçar a estereotipização da diferença. A outra é sobre a importância
de se refletir se deve ou não existir um código deontológico jornalístico, no sentido não só de
promover a integração, como de não acentuar a diferença entre “minoria” e “maioria” (Cádima e
Figueiredo, 2003: 59).
Outros trabalhos sobre Media, Imigração e Minorias Étnicas (Cunha, et al., 2004; Cunha, et
al.,2006; Ferin et al., 2008), também eles publicados pelo Observatório da Imigração (OI), incidem
sobre a análise de dados da Imprensa e Televisão e têm como período de referência quatro mo-
(66) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
mentos diferentes: 2003, 2004, 2005 e 2006. Numa análise comparativa, os autores concluem
que ao longo dos anos analisados, se registaram alterações no formato de cobertura ao tema da
imigração e minorias. Em 2003 e 2004, as referências preponderantes foram sobre a temática do
Crime, os Atores Institucionais as Vozes que davam corpo a essas notícias e, as Fontes citadas,
as Oficiais. Em 2005 e 2006, apesar de se manter a temática do Crime, há uma distinção entre
o autor e a vítima do crime e há um crescente recurso a Fontes provenientes da sociedade civil e
aos imigrantes. Também o Tom e a Argumentação da informação registaram mudanças no padrão
de cobertura dos temas: em 2003 e 2004 a Imprensa e a Televisão recorriam mais a um Tom
negativo, a uma Argumentação predominantemente securitária e a um Enquadramento policial
e, nos anos seguintes, o Tom usado é predominantemente neutro, a Argumentação assertiva e o
Enquadramento factual.
A perda de protagonismo dos imigrantes da Europa do Leste, observada no estudo que teve como
referência os anos de 2001 e 2002 (Cádima e Figueiredo, 2003), em prol de um papel de maior
relevo assumido pelos brasileiros, entende-se em virtude do contexto migratório (os nacionais
do Brasil, vieram, desde então, a ocupar posições de liderança no ranking dos imigrantes em
Portugal) e da própria agenda da imprensa e da televisão, que durante o ano 2003 incluiu vários
acontecimentos ligados à comunidade brasileira: o chamado Movimento das Mães de Bragança
– organizado por mulheres de Bragança contra a proliferação da prostituição na zona; as cidadãs
brasileiras apareceram frequentemente visadas em notícias sobre esta temática –, e a visita ofi-
cial do Presidente do Brasil, Lula da Silva, a Portugal e consequente abertura de um período de
legalização destinado exclusivamente a imigrantes brasileiros em situação irregular. Outros temas
marcaram a disseminação de notícias sobre imigração, imigrantes e minorias, designadamente
o caso do “arrastão de Carcavelos”, em 2005, e a discussão da Lei da Nacionalidade, em 2006.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (67)
Os autores constatam que a identificação da nacionalidade ou etnia, aparece mais frequentemente
quando o tema das notícias se relaciona com o Crime, do que, de uma maneira geral, na totalidade
das peças.
(68) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
e o ACIDI (então ACIME) tiveram um papel fundamental na elucidação dos acontecimentos. Uma
compilação de documentos, publicada pelo ACIME, assim como pesquisa complementar, serviram
de base ao esclarecimento factual desse caso.15
A aliviar a conotação negativa aos imigrantes e minorias, os trabalhos sobre os media constatam
a introdução de temáticas como a integração, a interculturalidade, os benefícios económicos e de-
mográficos da imigração, entre outros. Para tal, contribuiram certamente a divulgação de estudos
aprofundados sobre estas matérias (e.g. Corrêa d’Almeida e Silva, 2003; Valente Rosa, Santos e
Seabra, 2004) e uma maior sensibilização dos jornalistas para novas leituras sobre o fenómeno
migratório. O aumento do número de jornalistas especializados na área das migrações é disso
exemplo. Sobre este aspeto atente-se o papel do ACIDI que, para além das iniciativas desenvolvi-
das no âmbito do Observatório para a Imigração, promoveu o Prémio Imigração e Minorias Étnicas
– Jornalismo pela Tolerância.16
Aliás, uma das conclusões do trabalho comparativo da análise de conteúdos dos media entre
2003 e 2006, refere que as mudanças relativas ocorridas no padrão de cobertura noticiosa sobre
imigração e minorias devem ser contextualizadas tendo em conta os mecanismos de regulação
internos e externos às redações e aos meios de comunicação (Ferin e Santos, 2008a: 4).
Investigações desta natureza, sobre os conteúdos veiculados nos media, podem contribuir para
um melhor enquadramento dos discursos sobre racismo como aqueles que serão abordados nos
capítulos 7 e 8 do presente trabalho.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (69)
CAPÍTULO 4
ENQUADRAMENTO POLÍTICO-LEGAL
1. LEGISLAÇÃO ANTI-RACISTA17
(70) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os princípios da igualdade e da equiparação de direitos e deveres estão inscritos em outras nor-
mas constitucionais, como as que consagram o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
(artigo 20.º), os “outros” direitos pessoais, para além do direito à vida e à integridade pessoal,
como sejam “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade
civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da
vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” (artigo 26.º),
a proteção contra a utilização da informática para tratamento de dados referentes a “convicções
filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica”
(artigo 35.º/3), a proibição de organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista (artigo
46.º/4), e um conjunto de direitos no trabalho, sem distinção de “idade, sexo, raça, cidadania,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas” (artigo 59.º/1).
As normas anti-racistas, que visam prevenir ou proibir a discriminação com base na “raça”, origem
étnica ou nacional, estão também inscritas num conjunto alargado de outros diplomas legais
importantes e anteriores às “Diretivas de 2000”. Embora a transposição destes instrumentos
possa ser considerada um marco no reforço do quadro legal português em matéria de combate à
discriminação, este é um desenvolvimento que não pode deixar de ser remetido para a integração
do país, pós-revolução, nos sistemas jurídicos internacional e comunitário. A concretização de
discursos como os da igualdade ou dos direitos humanos na ordem jurídica interna, e que vemos
refletidos nos exemplos que aqui iremos elencar em relação à proibição da discriminação, derivam
em boa medida de desenvolvimentos internacionais onde agora, findo o período “imperial” e
mudado o paradigma de relações com o mundo, Portugal participa inteiramente. Assim, e antes
mesmo das Diretivas referidas atrás, podemos encontrar normas anti-discriminação em diplomas
como:
- A Lei dos Partidos Políticos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de novembro: no seu
artigo 7.º, al. a), estipula que a organização interna de cada partido deve satisfazer, entre outras,
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (71)
a condição de “não poder ser negada a admissão ou fazer-se exclusão por motivo de raça ou de
sexo”;19
- O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83,
de 25 de fevereiro: o artigo 5.º/2, determina que os beneficiários das IPSS “devem ser respeitados
na sua dignidade e na intimidade da vida privada, e não podem sofrer discriminações fundadas em
critérios ideológicos, políticos, confessionais ou raciais”;
- O Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro, com as altera-
ções introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 6/95, de 17 de janeiro, pelo
19 O Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de
Decreto-Lei n.º 61/97 de 25 de março, pela Lei n.º 31-A/98, de
novembro, foi revogado pela Lei Orgânica 14 de julho, e pelo Decreto-Lei 275/98, de 9 de setembro, defen-
n.º 2/2003, de 22 de agosto. Neste novo
diploma a disposição relativa à liberdade de no artigo 7.º que: 1 - É proibida a publicidade que, pela sua
de filiação alargou os fundamentos da
proibição de discriminação: “A ninguém forma, objecto ou fim, ofenda os valores, princípios e instituições
pode ser negada a filiação em qualquer
partido político ou determinada a
fundamentais constitucionalmente consagrados; 2 - É proibida, no-
expulsão, em razão de ascendência, meadamente, a publicidade que: a) Se socorra, depreciativamente,
sexo, raça, língua, território de origem,
religião, instrução, situação económica ou de instituições, símbolos nacionais ou religiosos ou personagens
condição social.” (artigo 20.º/2). Ainda
no mesmo artigo são consagrados direitos históricas; b) Estimule ou faça apelo à violência, bem como a qual-
de participação a estrangeiros e apátridas
legalmente residentes em Portugal em
quer actividade ilegal ou criminosa; c) Atente contra a dignidade da
compatibilidade com o estatuto de direitos pessoa humana; d) Contenha qualquer discriminação em relação à
políticos que lhes for reconhecido (artigo
20.º/4). Na Lei Orgânica n.º 2/2008, raça, língua, território de origem, religião ou sexo.”;20
de 14 de maio, que constituiu a primeira
alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, o
artigo 20.º, agora artigo 19.º, manteve a - O Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-
redação anterior.
20 O Código da Publicidade foi
Lei n.º 442/91, de 15 de novembro: o artigo 5.º/1 dispõe que “nas
posteriormente alterado pelo Decreto-Lei suas relações com os particulares, a Administração Pública deve
n.º 51/2001, de 15 de fevereiro, Decreto-
Lei n.º 332/2001, de 24 de dezembro, Lei reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, bene-
n.º 32/2003, de 22 de agosto, Decreto-Lei
n.º 224/2004, de 4 de dezembro, Lei n.º ficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer
37/2007, de 14 de agosto, e Decreto-Lei
n.º 57/2008, de 26 de Março.
dever nenhum administrado em razão de ascendência, sexo, raça,
21 O Código do Procedimento língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológi-
Administrativo foi alterado pelo Decreto-Lei
n.º 6/96 de 31 de janeiro, e parcialmente cas, instrução, situação económica ou condição social”;21
revogado pelas Lei n.º 18/2008 de 29 de
janeiro e Lei n.º 30/2008, de 10 de julho.
(72) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
- A Lei do Asilo, Lei n.º 70/93, de 29 de setembro, que no seu artigo 2.º/2 reconhece o direito
de asilo a “estrangeiros e os apátridas que, receando com razão ser perseguidos em virtude da
sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não
possam ou, em virtude desse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da
sua residência habitual;”22
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (73)
ciadas ao desporto (vejam-se os artigos 6.º/3 e 21.º alínea f)), da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro,
conhecida por “Lei da Proteção de Dados Pessoais” (ver, por exemplo, o artigo 7.º), do Despacho
do Ministro da Administração Interna n.º 8684/99 (2.ª série), que aprova o Regulamento das
Condições Materiais de Detenção em Estabelecimentos Policiais (ver o ponto 10.2 que estabelece
o princípio do tratamento humano, digno e não discriminatório da pessoa detida),25 e de um
importante estatuto profissional, o dos jornalistas, aprovado pela
25 Três anos depois, o Código
Deontológico do Serviço Policial, Lei n.º 1/99 de 13 de janeiro (veja-se o artigo 14.º, que define
aprovado pela Resolução do Conselho
de Ministros n.º 37/2002, de 28 de
os deveres do jornalista).
fevereiro, veio dispor no seu artigo 3.º
que “No cumprimento do seu dever,
os membros das Forças de Segurança
Em matéria de direito penal, o Código Penal português tipifica
promovem, respeitam e protegem a crimes de índole racista ou xenófoba. Na sua primeira versão,26
dignidade humana, o direito à vida, à
liberdade, à segurança e demais direitos de 1982, definia como homicídio qualificado também o que pu-
fundamentais de toda a pessoa, qualquer
que seja a sua nacionalidade ou origem, desse ser determinado por ódio racial ou religioso, revestindo por
a sua condição social, as suas convicções
políticas, religiosas ou filosóficas…”. Ainda isso especial censurabilidade ou perversidade (artigo 132.º/1 e
no seu artigo 7.º o diploma estipula que
“Os membros das Forças de Segurança
2, al. d)), e previa ainda o crime de genocídio e discriminação
devem comportar-se de maneira a racial (artigo 189.º).
preservar a confiança, a consideração
e o prestígio inerentes à função policial,
tratando com cortesia e correção todos Muito embora, na sua versão atual, o Código Penal não conte-
os cidadãos, nacionais, estrangeiros ou
apátridas, promovendo a convivencialidade nha já disposições relativas ao genocídio, permanece previsto
e prestando todo o auxílio, informação ou
esclarecimento que lhes for solicitado, no o crime de homicídio qualificado, especialmente censurável e
domínio das suas competências”.
26 O Código Penal foi aprovado pelo
perverso se motivado por ódio racial, religioso, político ou gerado
Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação
setembro, e foi sucessivamente alterado,
sendo a última versão a que resultou sexual da vítima (artigo 132.º/1 e 2, al. f)), e o crime de discri-
da sua vigésima terceira alteração e
que foi aprovada pela Lei n.º 59/2007, minação racial, religiosa ou sexual (artigo 240.º), tendo-se alar-
de 4 de setembro. A Assembleia da
República aprovou, a 22 de abril de gado também a este respeito as motivações (incluindo causas
2010, a vigésima quarta alteração ao fundadas na raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo
Código Penal, ainda não publicada em
Diário da República, mas as alterações ou orientação sexual), as formas e os meios que determinam a
introduzidas não relevam para as matérias
em apreço (http://www.parlamento. prática deste crime.
pt/ActividadeParlamentar/Paginas/
DetalheIniciativa.aspx?BID=35212,
informação consultada a 19 de maio de
2010).
(74) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Assim, de acordo com o artigo 240.º, incorre num crime de discriminação racial, religiosa ou se-
xual quem constituir uma organização ou desenvolver ou encorajar atividades de propaganda que
incitem ou encorajem a discriminação, o ódio ou a violência contra pessoa ou categoria de pessoas
– ou nelas participar ou prestar assistência –, por causa da sua raça, cor, origem étnica, religião,
sexo ou orientação sexual, e quem provocar atos de violência, difamar ou injuriar e ameaçar uma
pessoa ou categoria de pessoas – em reunião pública, por escrito com fins de divulgação ou atra-
vés de meios de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação – por causa
da sua raça, cor, origem étnica, religião, sexo ou orientação sexual. Para efeitos de condenação
no quadro deste crime, o diploma prevê que possam ser responsabilizadas as pessoas coletivas
e entidades equiparadas, outras pessoas coletivas públicas, que não o Estado, e organizações
internacionais de direito público, no termos dispostos nos artigos 11.º e 12.º.
Numa figura menos grave prevista pelo atual Código Penal, a ofensa à integridade física qualificada
é também enquadrável nas motivações de discriminação racial quando se dispõe (artigo 145.º/2)
que há especial censurabilidade ou perversidade do agente quando as ofensas são praticadas nas
circunstâncias previstas no artigo 132.º/2. Noutra vertente das normas criminais que enquadram
a discriminação racial, nomeadamente na suspensão de direitos políticos a quem praticou tais
crimes, o Código Penal estipula ainda que quem tiver sido condenado pelo crime de discriminação
racial, religiosa ou sexual, entre outros, pode perder, ainda que por um período determinado entre
dois e dez anos, a capacidade eleitoral ativa e/ou passiva (artigo 246.º).
As disposições atrás enunciadas não constituem, no entanto, uma norma autónoma que permita
a consideração da motivação racista como circunstância agravante em todos os crimes tipificados
pelo Código Penal. Assim sendo, e excluindo as normas enunciadas, caberá aos tribunais conside-
rar ou não esta agravante, nomeadamente em aplicação do artigo 71.º/2, al. c): “Na determinação
concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de
crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: (…) c) Os
sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (75)
A introdução de uma norma geral deste tipo é, aliás, uma das recomendações feitas pela Comissão
Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), no seu terceiro relatório sobre Portugal, e que
assume especial relevância dada a pouca aplicação das disposições dos artigos 132.º, 145.º e
240.º do Código Penal, conforme constata o mesmo documento (2007: 9-10).
Resta ainda acrescentar que no âmbito destes crimes, a Lei n.º 20/96, de 6 de julho, introduziu
a possibilidade de se constituírem como assistentes em processo penal as comunidades de imi-
grantes e demais associações de defesa dos interesses em causa, como sejam as associações de
imigrantes, anti-racistas e de defesa dos direitos humanos, salvaguardada a recusa expressa por
parte do ofendido.
No que concerne à aprovação de diplomas legais com o intuito de prevenir, proibir e sancionar a
discriminação racial e xenófoba, e ainda previamente à adoção e transposição das diretivas comu-
nitárias de 2000, cabe assinalar a aprovação, em 1999, da Lei n.º 134/99, de 28 de agosto, que
proíbe as discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade
ou origem étnica, e a respetiva regulamentação pelo Decreto-Lei n.º 111/2000, de 4 de julho. No
âmbito da Lei n.º 134/99, aplicável a pessoas singulares e coletivas, públicas ou privadas (artigo
2.º), é definido o conceito de discriminação racial (artigo 3.º), são elencadas as práticas discrimi-
natórias puníveis no âmbito da lei (artigo 4.º) e o regime sancionatório aplicável (artigos 9.º a 12.º
e os artigos 3.º e 4.º do diploma regulamentador, que especificam, nomeadamente, o conjunto de
sanções acessórias aplicáveis). Para acompanhamento da aplicação deste diploma foi criada, jun-
to do organismo governamental competente em matéria de imigração e minorias étnicas, no caso
o/a Alto/a Comissário/a para a Imigração e as Minorias Étnicas (atual Alto/a Comissário/a para
a Imigração e Diálogo Intercultural), a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial
(CICDR) (artigo 5.º). Cabe a esta Comissão o registo e a organização dos dados das entidades
a quem foram aplicadas coimas e sanções acessórias (artigo 10.º do diploma regulamentador).
Conforme estipula o Decreto-Lei n.º 111/2000, que regulamenta a mencionada lei anti-discrimi-
nação, qualquer pessoa singular ou coletiva que tenha conhecimento de uma situação que possa
(76) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
constituir uma contra-ordenação deve comunicá-la ao membro do governo responsável pela área
da Igualdade, ao ACIDI, à CICDR ou à inspeção-geral competente. Caberá a esta última a instrução
do processo, que posteriormente é enviado à CICDR, cabendo ao Alto(a) Comissário(a) a definição
da medida da contra-ordenação e a aplicação da coima e das sanções acessórias, após consulta
à comissão permanente da CICDR (artigos 6.º, 7.º e 8.º).
De referir ainda que em 1995 havia já sido criada a figura do/a Alto/a Comissário/a para a
Imigração e as Minorias Étnicas, nomeado e exonerado pelo Primeiro-Ministro, cujas competências
passariam, entre outras, por “contribuir para que todos os cidadãos legalmente residentes em
Portugal gozem de dignidade e oportunidades idênticas, de forma a eliminar as discriminações e
a combater o racismo e a xenofobia”, conforme estipula o artigo 2.º/2, al. b) do Decreto-Lei n.º
3-A/96, de 26 de janeiro, que conferiu enquadramento normativo à figura criada pela Lei Orgânica
do Governo de 1995.27 Hoje sob a forma de Alto-Comissariado para o Diálogo Intercultural e a
Imigração, I.P. (ACIDI, I.P.), por força do Decreto-Lei n.º 167/2007 de 3 de maio, a estrutura
mantém o essencial da organização e das atribuições originárias, nomeadamente as adquiridas
aquando da sua transformação em Alto-Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas, na
sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 251/2002 de 22 de novembro, e as que lhe foram
atribuídas no quadro da transposição da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, conforme se fará
referência adiante.
Muito embora, decorrente do seu papel de Estado-membro da União Europeia e de fazedor, di-
reto ou indireto, de instrumentos legais mais ou menos vinculativos, Portugal já tenha aderido
previamente a normas de proibição da discriminação racial e xenófoba (tais como as previstas no
Tratado de Amesterdão,28 na Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia,29 e na Resolução sobre a Luta Contra o 27 Veja-se o nr.º 7 do artigo 6.º do
Decreto-Lei n.º 296-A/95.
Racismo e a Xenofobia na União Europeia), a verdade é que
30
28 Assinado em 2 de outubro de 1997
e que entrou em vigor em 1 de maio de
só em 2000, por força das já mencionadas “Diretiva Raça” e 1999.
“Diretiva Emprego”, se transpuseram para a ordem jurídica 29 Aprovada em dezembro de 2000 pelo
Conselho, pelo Parlamento Europeu e pela
Comissão.
30 Aprovada pelo Parlamento Europeu a
16 de março de 2010.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (77)
interna normas tipificadoras e sancionadoras daquele tipo de discriminação, reforçando assim o
quadro jurídico vigente sobre a matéria.31
(78) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
estrangeiro que esteja autorizado a exercer uma atividade profissional subordinada em território
português goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres do trabalhador com
nacionalidade portuguesa”.
As discriminações raciais ou étnicas que possam ocorrer nas restantes esferas da vida social,
nomeadamente no acesso à segurança social, à saúde, aos benefícios sociais, à educação e
no acesso ao fornecimento de bens e serviços, como a habitação, ficaram consagradas na Lei
n.º 18/2004, que, como foi referido, transpôs parcialmente a Diretiva 2000/43/CE. No artigo
2.º/1 são abrangidos aqueles domínios e as entidades públicas e privadas que possam tutelar
ou fornecer tais bens ou serviços, e no artigo 3.º/2 são definidas e elencadas as práticas dis-
criminatórias. De notar a introdução de conceitos inovadores nesta matéria, como a distinção
entre discriminação direta e indireta (artigo 3.º/3), o assédio (artigo 3.º/4), a inversão do ónus
da prova (artigo 6.º, introduzido também no Código do Trabalho, nos termos referidos atrás) e a
designação de um órgão especializado, no caso português o então ACIME, para a promoção da
igualdade de tratamento entre todas as pessoas, a recomendação de medidas legislativas, regu-
lamentares e administrativas que considere adequadas para prevenir práticas discriminatórias e
a prestação “às vítimas de discriminação [d]o apoio e [d]a informação necessários para a defesa
dos seus direitos” (artigo 8.º). Nos termos da Diretiva comunitária, e da Lei n.º 18/2004, cabe
ao/à Alto/a Comissário/a para a Imigração e Diálogo Intercultural a definição e a aplicação das
contra-ordenações e das sanções acessórias (artigo 13.º). Quanto à tramitação das denúncias,
o legislador nacional adotou na transposição da Diretiva as mesmas disposições que a Lei n.º
134/99 e o Decreto-Lei n.º 111/200 já haviam estipulado.
Para concluir este ponto, é de referir que no enquadramento jurídico anti-racista em Portugal
devem também ser incluídos os vários instrumentos legais resultantes da adesão portuguesa a
convenções, protocolos e outros textos internacionais sobre a matéria (onde também se incluem,
tacitamente, os instrumentos legais sobre os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana,
mas que não cabem aqui referir), no âmbito da sua participação em organizações internacionais
e europeias.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (79)
É o caso da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial, incluindo o mecanismo previsto no seu artigo 14.º, a que Portugal aderiu em 2001,36 da
Convenção n.º 97 da OIT relativa aos Trabalhadores Migrantes, da Convenção n.º 111 da OIT sobre
Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, a Convenção da UNESCO relativa à luta contra
a Discriminação no Campo do Ensino e o Protocolo Adicional à Convenção do Conselho da Europa
sobre a Cibercriminalidade e relativo à criminalização de atos de natureza racista e xenófoba
através dos sistemas informáticos (ratificado em 24 de março de 2010).
Saliente-se ainda que outros instrumentos legais internacionais existentes – que reforçariam o
quadro normativo do combate à discriminação racial e étnica e conforme recomendações da
ECRI sobre Portugal (2007) –, se encontram ainda por assinar e/ou ratificar, designadamente o
Protocolo n.º 12 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que visa tomar novas medidas
para promover a igualdade de todas as pessoas através da implementação coletiva de uma inter-
dição geral de discriminação prevista na Convenção (assinado em 2000, mas não ratificado), e os
textos não assinados nem ratificados da Carta Europeia das Línguas Minoritárias e Regionais, da
Convenção sobre a Participação de Estrangeiros na Vida Pública a Nível Local37 e da Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das
suas Famílias.
36 A declaração de adesão foi publicada
no Aviso n.º 95/2001, onde se pode
ler: O Governo de Portugal reconhece a
competência do Comité, estabelecida no
artigo 14.º da Convenção Internacional
2. Aplicação das normas anti-racistas:
sobre a Eliminação de Todas as Formas denúncias e sanções
de Discriminação Racial, para receber
e examinar comunicações emanadas
de pessoas ou de grupos de pessoas
submetidas à sua jurisdição que se Conforme acaba de se expor, os diversos dispositivos legais
queixem de ser vítimas de violação, por
parte do Estado Português, de qualquer adotados em finais dos anos 1990 e inícios de 2000 – desig-
dos direitos consagrados na Convenção.
O então ACIME foi o órgão designado para
nadamente a Lei n.º 134/99, de 28 de agosto, e o diploma
receber e examinar as queixas de pessoas regulamentador, Decreto-Lei n.º 111/2000, de 4 de julho, a Lei
ou de grupos de pessoas que aleguem ter
sido vítimas de violação de qualquer dos n.º 99/2003, de 27 de agosto, e a Lei n.º 18/2004, de 11 de
direitos consagrados na Convenção.
37 Acessível a partir de http://con- maio – introduziram não só normas de prevenção e proibição
ventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/
Html/144.htm.
(80) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
da discriminação com base em fatores raciais, de origem étnica ou nacional, como estabeleceram
mecanismos para a denúncia de atos discriminatórios e respetivos regimes sancionatórios – para
além dos previstos no Código Penal e que se regem por normas de direito penal.
Enquanto que no quadro da Lei n.º 99/2003 (atual Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), que aprova o
Código do Trabalho, o regime sancionatório aplicável à violação dos princípios da igualdade e da não
discriminação (artigo 23.º/1, atual artigo 24.º/5) é o contra-ordenacional previsto no diploma e no re-
gime geral das contra-ordenações, sob a competência da Inspeção Geral do Trabalho (o artigo 642.º
estipula que a violação do disposto naquele artigo constitui uma contra- -ordenação muito grave), as
Leis n.º 134/99 e 18/2004, preveem um regime específico, embora também contra-ordenacional,
em que outras entidades são intervenientes.
Assim, na Lei n.º 134/99 estabelece-se que a já mencionada CICDR, instituição criada junto do ACIDI
e presidida pelo/a Alto/a Comissário/a, é o órgão competente para acompanhar a aplicação das
normas anti-discriminatórias inscritas naquele diploma, além de lhe competir igualmente a recolha
de “toda a informação relativa à prática de actos discriminatórios e à aplicação das respectivas
sanções”, a recomendação de “medidas legislativas, regulamentares e administrativas que considere
adequadas para prevenir a prática de discriminações por motivos baseados na raça, cor, naciona-
lidade ou origem étnica”, a promoção de estudos e trabalhos de investigação sobre a matéria, a
publicitação de casos de violação daquela lei e a elaboração e divulgação de “um relatório anual
sobre a situação da igualdade e da discriminação racial em Portugal” (artigo 5.º/2, al. b) a f)).
As práticas discriminatórias definidas por aquela Lei estão sujeitas a contra-ordenação punível com
coimas de valor variável, trate-se o perpetrador de pessoa singular ou coletiva, e não prejudicando a
eventual responsabilidade civil ou a aplicação de qualquer outra coima. As penas acessórias estão
também previstas – como a publicidade da decisão ou a advertência ou censura públicas dos autores
da prática discriminatória (artigo 10.º), além de outras definidas no diploma regulamentador (artigo
4.º do Decreto-Lei n.º 111/2000) –, e em caso de a infração ser simultaneamente um ilícito penal e
uma contra-ordenação, o agente é sempre punido a título penal.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (81)
Em todo o caso, a instrução do processo cabe à inspeção-geral competente na matéria que é objeto
da infração – após a denúncia efetuada por pessoa singular ou coletiva –, que depois de concluído é
enviado à CICDR para a sua Comissão Permanente emitir parecer. Com base no relatório daquela e do
parecer desta, cabe à/ao Alto/a Comissário/a para a Imigração e Diálogo Intercultural a definição da
medida das sanções e a aplicação das coimas e medidas acessórias (artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º
111/2000).
De notar que a denúncia poderá ser feita por pessoa singular ou coletiva que tenha conhecimento de
uma prática discriminatória, podendo dirigir essa queixa ao membro do Governo responsável pela área
da igualdade, o ACIDI, a CICDR e a inspeção-geral competente na matéria. As três primeiras entidades,
tomando conhecimento de uma contra-ordenação nos termos desta legislação, deverão encaminhar o
processo para a inspeção-geral competente, que fará a instrução do processo (artigo 5.º do Decreto-Lei
n.º 111/2000).
A Lei n.º 18/2004 introduziu ainda um dever de comunicação por parte de todas as entidades públicas,
de qualquer situação de que tomem conhecimento e que constitua discriminação, direta ou indireta, em
razão da origem racial ou étnica. Essa informação, nos termos do artigo 9.º daquela lei, deve ser feita à
CICDR. No que diz respeito ao quadro sancionatório e aos trâmites para a denúncia e a definição/apli-
cação das coimas, a Lei n.º 18/2004 segue os mesmos parâmetros do diploma citado anteriormente.
Previsto na legislação, tal como se acaba de referir, a CICDR, para além de tomar conhecimento das
denúncias que vão sendo instruídas pelas inspeções-gerais competentes, congrega toda a informação
sobre as práticas discriminatórias denunciadas e sobre as sanções aplicadas. Neste sentido, cabe,
portanto, analisar os dados disponibilizados pela CICDR para uma
38 A UAVIDRE foi criada em 2005 pela
perspetiva sobre a aplicação efetiva das normas anti-racistas em
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima Portugal – não esquecendo, no entanto, que outras instâncias co-
(APAV), em protocolo com o ACIDI, de
forma a dar apoio específico a imigrantes mo o Provedor de Justiça, as autoridades policiais, ou a Unidade
e vítimas de discriminação. Nesta unidade,
os cidadãos podem informar-se acerca de Apoio à Vítima Imigrante e de Discriminação Racial ou Étnica
dos seus direitos e a forma de os exercer,
ter apoio psicológico, emocional e social,
(UAVIDRE)38 acolhem igualmente denúncias dos cidadãos nesta
e receber apoio na elaboração de queixas matéria, dados que serão também considerados.
e outros documentos legais, de forma
gratuita e confidencial.
(82) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
À perceção – confirmada por vários estudos e trabalhos académicos (Araújo, 2007; Carrilho,
2007; Marques, 2007; Cabecinhas, 2002, 2007; Machado, 2008; Santos et al., 2009, entre
outros) – de que as atitudes e práticas discriminatórias são uma realidade em Portugal, que se
enquadra, sobretudo mas não só, numa matriz que combina, por um lado, fluxos migratórios e
presença de população imigrante em território nacional e, por outro, a história colonial portugue-
sa, deveria corresponder um volume significativo de queixas e processos contra-ordenacionais e
judiciais relacionados com a discriminação racial.
O número de denúncias e sanções aplicadas encontra-se, porém, muito aquém deste racismo
percecionado e experienciado. Entre 2005 e 2010, a CICDR recebeu na sua totalidade 399 queixas
de discriminação racial, das quais apenas 114 deram origem a processos de contra-ordenação
(ver Tabela 1), o que corresponde a cerca de 29% de contra-ordenações no conjunto das queixas
formalizadas naquele período. Um número muito aproximado de queixas foi remetido para outras
entidades, na maioria para a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para abertura de
processos de contra-ordenação em matéria laboral. No período em questão, o ano de 2007 foi o
que apresentou o número mais elevado de queixas à CICDR e, concomitantemente, o que registou
maior percentagem de processos de contra-ordenação abertos por aquele organismo. No ano
seguinte, as queixas diminuíram substancialmente, para aumentarem ligeiramente em 2009 e
2010, anos em que se verificou um acréscimo de queixas reenviadas à ACT.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (83)
Tabela 1. Denúncias à CICDR
Fonte: CICDR/ACIDI, IP. Para 2005 e 2006 apenas estão disponíveis dados agregados para os dois anos. Os processos incompletos e/ou
que aguardam esclarecimentos constituem apuramentos efetuados em janeiro seguinte ao ano de referência.
Um dos processos da CICDR, aberto em 2008, que resultou recentemente numa condenação pelo
Tribunal Judicial de Santarém foi o de uma queixa apresentada por uma encarregada de educação
contra um professor que se dirigiu de forma imprópria a um aluno negro. No entanto, o Tribunal
não condenou o professor por um crime de xenofobia ou racismo, por se tratar, no seu entender,
de uma situação pontual. Configurando a expressão usada pelo professor (“Entra lá, ó preto”) um
crime de injúrias, o professor foi condenado pelo Tribunal a pagar uma coima de 1.000 euros e
as custas judiciais.39
39 Artigo do jornal Público, acessível
a partir de http://www.publico.pt/ No caso acima, as testemunhas, colegas do aluno, parecem ter
Educa%C3%A7%C3%A3o/professor-
condenado-a-multa-por-chamar-preto-a- sido fundamentais para a apreciação do Tribunal, mas a difícil
aluno_1438441# (consultado em 24 de
maio de 2010).
(84) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
apresentação de provas e testemunhos num caso de discriminação poderá constituir um obstácu-
lo à formalização de denúncias, contribuindo para a descredibilização – para lá do eventual desco-
nhecimento – pública deste mecanismo. Tal como refere a ECRI, para além de todo o processo ser
demorado, envolver uma série de entidades (o que propicia frequentes conflitos de competências),
que nem sempre, no caso das inspeções-gerais, têm formação adequada à instrução de processos
de discriminação racial, as denúncias feitas à CICDR são muitas vezes arquivadas por falta de
provas (2007: 14-15). Em processos penais e ações em que cabe aos Tribunais a averiguação dos
factos, o princípio do ónus da prova não é aplicado, nos termos da Lei, o que contribui grandemen-
te para a ineficácia dos processos de discriminação racial. Acresce a isto o facto da CICDR, na sua
qualidade de órgão presidido pelo/a Alto/a Comissário/a, não ser uma instituição independente
nem ter poderes próprios de investigação (ECRI, 2007: 15).
No que diz respeito ao Provedor de Justiça, instituição também competente para receber queixas
relativas à discriminação racial, étnica, nacional ou outra, tem-se constatado o pouco recurso a esta
instância, apesar do papel determinante que a sua intervenção pode assumir na modificação de
uma dada medida legislativa ou prática administrativa ilegal ou injusta. De facto, em 2007, 2008 e
2009 a grande maioria das queixas submetidas ao Provedor de Justiça coube no âmbito dos atra-
sos nos processos de atribuição da nacionalidade e de concessão de visto ou título de residência,
visando a Conservatória dos Registos Centrais, o SEF e os consulados portugueses no estrangeiro.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (85)
foram apresentadas 674 queixas contra a Conservatória dos Registos Centrais e o SEF, no âmbito
de atrasos na aquisição da nacionalidade, e 21 queixas contra aquele organismo e os consulados
portugueses no estrangeiro, no âmbito de atrasos na concessão de vistos (Provedoria de Justiça,
2008: 716). Já na área 6 enquadraram-se 164 queixas, sendo que 116 estiveram relacionadas
com demoras nos processos de concessão ou renovação de títulos de residência (Provedoria de
Justiça, 2008: 732). Ainda no relatório anual de 2007, o Provedor de Justiça chamou a atenção
para um potencial foco de conflito na questão de concessão de atestados de residência pelas
juntas de freguesia, que nuns casos pareciam confundir esta certificação com a verificação da
regularidade da permanência em território nacional, e em outros diferenciavam taxas consoan-
te a nacionalidade para a atribuição dos referidos atestados (Provedoria de Justiça, 2008: 743-
744). Em duas situações específicas, uma na Junta de Freguesia da Ericeira e outra na Junta
de Freguesia do Coração de Jesus em Viseu, o Provedor de Justiça interveio recomendando a
correção das práticas em vigor, o que foi acatado.
(86) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
O relatório de 2009 registou tendências semelhantes às dos anos anteriores, apesar de terem
diminuído as queixas relativas à nacionalidade no âmbito da já mencionada questão da transcrição
dos nascimentos no antigo Estado Português da Índia. No contexto global das queixas apresen-
tadas ao Provedor de Justiça, as que se relacionaram com o direito da nacionalidade e o direito
de estrangeiros – enquadradas na área 5 – referiram-se a atrasos na concessão de vistos, na
maioria para efeitos de reagrupamento familiar e relativamente à Secção Consular da Embaixada
Portuguesa em Bissau, a atrasos na concessão de autorizações de residência e na aquisição da
nacionalidade (Provedoria de Justiça, 2010: 60-65). No relatório de 2009 não foi referida qualquer
situação de discriminação racial.
Por seu turno, a UAVIDRE, gabinete de apoio de uma organização amplamente difundida pelo
público e cuja missão e número de representações aproxima mais facilmente os cidadãos que se
consideram vítimas de algum crime abarcado pelas atividades da APAV, deveria, teoricamente,
acolher um número mais significativo de queixas no âmbito da discriminação racial e étnica.
Na verdade, a UAVIDRE registou 1.429 processos de apoio41 entre 2005 e 2009, constituindo a
sua maioria situações de crime. No entanto, como revelam os dados que adiante se referem, a
esmagadora maioria das queixas apresentadas só muito indiretamente se relaciona com situações
de discriminação racial, étnica ou nacional, apesar do gabinete se direcionar para o atendimento
de vítimas imigrantes e de discriminação racial ou étnica.
Segundo o relatório da APAV sobre a atividade da UAVIDRE para 2005-2009, em termos de tipolo-
gia de crimes apurados, registou-se, para o ano de 2005, um total de 277 crimes, estando cerca
de oitenta por cento tipificado na categoria de violência doméstica, como os maus-tratos físicos e
psíquicos, as ameaças/coação e a difamação/injúrias (APAV, 2010a). Nos crimes contra as pes-
soas e a humanidade (ver Tabela 2), com expressão muito mais reduzida no conjunto dos crimes
registados (cerca de dezanove por cento), apuraram-se apenas
13 casos de discriminação, enquanto o número de crimes de
41 No período 2005 a 2009, segundo
ofensa à integridade física e de ameaça/coação variaram entre dados do Relatório da APAV sobre a
UAVIDRE (APAV, 2010a), foram abertos os
seguintes processos de apoio: 131; 249;
300; 372; e 377.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (87)
os 11 e os 10 casos, respetivamente. Em 2006, para um total de 675 crimes, destacaram-se
igualmente, e em proporções idênticas às do ano anterior, os crimes que constituem violência
doméstica. No conjunto, menos significativo, dos crimes contra as pessoas e a humanidade,
registou-se um ligeiro aumento dos crimes de ofensa à integridade física e de ameaça/coação
e uma significativa redução da discriminação no conjunto dos crimes desse ano (ver Tabela 1).
Em 2007, ao contrário dos anos anteriores, o peso dos tipos de crime que configuram a violên-
cia doméstica sofreu uma diminuição, ao mesmo tempo que a proporção dos crimes contra as
pessoas e a humanidade aumentou significativamente. A confirmar esta tendência, os crimes de
discriminação registaram nesse ano um incremento substancial – foram os mais representativos
na tipologia dos crimes contra as pessoas e a humanidade –, para nos anos seguintes voltarem
a decrescer. Assim, à exceção do ano 2007, que no período analisado se destacou pelo aumento
deste tipo de crimes, o peso relativo da discriminação no conjunto dos crimes apurados pela
UAVIDRE é bastante reduzido, representando, em média, cerca de 4% do total (APAV, 2010a).
(88) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Em suma, os dados revelam-nos que apesar de vocacionada para o apoio de vítimas imigrantes e
de discriminação racial ou étnica, a UAVIDRE tem vindo a gerir sobretudo processos de apoio que,
sendo na sua grande maioria de vítimas de nacionalidade estrangeira, se enquadram em situações
de crimes de violência doméstica.
De referir ainda que, em termos globais, a APAV apurou em todos os seus gabinetes de apoio, no
âmbito dos crimes contra as pessoas e a humanidade, um número muito reduzido de crimes de
discriminação racial (ver Tabela 3).
Em termos de peso relativo destes crimes na totalidade apurada no âmbito dos processos de apoio
abertos pela APAV, a discriminação racial variou, no período de 2005 a 2010, entre os 0,1% e os
0,4%, percentagem máxima alcançada em 2007.
Assim, quer nos atendimentos da UAVIDRE, quer nos processos abertos em todos os gabinetes
da APAV, as vítimas apresentaram sobretudo situações de crimes de violência doméstica e só
residualmente expuseram situações de discriminação em função da cor da pele, origem étnica
ou nacional.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (89)
Já no que diz respeito aos dados das autoridades policiais, registaram-se igualmente números bas-
tante residuais de crimes de discriminação racial: em dez anos, de 2000 a 2009, as autoridades
policiais identificaram apenas 59 crimes de discriminação racial ou religiosa.42
Neste cenário de diminuto recurso aos mecanismos de defesa anti-discriminação, como a apre-
sentação de denúncia ou queixa à CICDR, ao Provedor de Justiça, à UAVIDRE ou às autoridades
policiais, o número de processos de racismo ou xenofobia conduzidos para os tribunais é, como
seria de esperar, igualmente reduzido.
Entre os mais mediatizados processos, encontra-se o que foi aberto na sequência de atos de
violência racista na noite lisboeta, em 1995, de que resultou o assassinato de um jovem negro,
Alcindo Monteiro. Os dezanove arguidos constituídos, todos de um grupo de cabeças-rapadas,
foram acusados dos crimes de genocídio, homicídio e ofensas corporais – tratou-se da primeira
vez em Portugal que alguém foi acusado do crime de genocídio, muito embora não tenha havido
uma condenação por esta figura penal. Mário Machado, um dos condenados neste processo,
dirigente da Frente Nacional e líder do movimento Hammerskin Nation em Portugal foi, no início
de 2010, condenado a oito meses de prisão efetiva por difamação agravada contra a magistrada
Cândida Vilar, que havia conduzido as investigações no âmbito de um processo inédito de discri-
minação racial, em 2007-2008.43 Neste processo iniciado em sequência da investigação efetuada
pela Polícia Judiciária, 36 indivíduos pertencentes àquele movimento foram acusados de crimes
como a prática continuada de discriminação racial, a difusão de mensagens – através da Internet,
em concertos e outras concentrações – de racismo, xenofobia e anti-semitismo, com incitação ao
ódio e à violência (Peixe et al., 2008: 18). A decisão judicial que
42 Dados do Sistema de Informação de resultou deste processo acabou por condenar os acusados a
Estatísticas da Justiça, da Direção-Geral de
Política da Justiça, acessíveis a partir de penas de prisão efetivas.
http://www.siej.dgpj.mj.pt/webeis/index.
jsp?username=PublicoepgmWindowNam
e=pgmWindow_633918141195530467 Poucos outros casos chegaram aos tribunais e, sobretudo, resul-
(consultado em 2 de junho de 2010).
taram em condenações por discriminação racial, muito embora
43 Artigo do jornal Público, acessível a
partir de http://www.publico.pt/Socieda- nos meios de comunicação social nacionais surjam, periodica-
de/sos-racismo-satisfeita-com-condenacao-
de-mario-machado_1423568 (consultado
em 24 de maio de 2010).
(90) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
mente, relatos de discriminação vivida no trabalho, no acesso à habitação, nas instituições de
ensino, nos estabelecimentos comerciais,44 confirmada também por estudos e trabalhos de inves-
tigação, tal como referimos inicialmente.
Dada a existência do fenómeno, por um lado, e o reduzido recurso aos mecanismos existentes e
correspondentes resultados, por outro, cabe questionar a extensão da sua divulgação pelo público
e, acima de tudo, a sua adequação à especificidade das situa-
ções de discriminação e a eficácia das molduras legais e dos 44 Sem preocupações de representa-
tividade ou exaustividade, vejam-se os
procedimentos implementados. seguintes exemplos: artigo de 3 de abril
de 2006 do jornal Diário de Notícias sobre
situação de discriminação racial vivida por
estudante negra num estabelecimento
comercial (http://dn.sapo.pt/inicio/
interior.aspx?content_id=638499); artigo
de 8 de maio de 2006 da TSF online
sobre o caso das declarações racistas e
xenófobas do presidente do Sindicato dos
Profissionais da Polícia (http://tsf.sapo.
pt/paginainicial/interior.aspx?content_
id=877097); artigo de 21 de março de
2007 do semanário Sol sobre várias
situações de racismo vividas por negros na
Área Metropolitana de Lisboa (http://sol.
sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.
aspx?content_id=26338); artigo de 22 de
setembro de 2008 do semanário Sol sobre
discriminação contra brasileiros e negros
no arrendamento de quartos (http://sol.
sapo.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.
aspx?content_id=110249); artigo de 30
de julho de 2008 do Jornal de Notícias
sobre alegada discriminação racial sentida
por funcionária de uma junta de freguesia
(http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Interior.
aspx?content_id=973414); artigo de 17 de
março de 2009 do jornal Público sobre si-
tuação de discriminação contra ciganos de
uma Escola Básica (http://www.publico.
pt/Educa%C3%A7%C3%A3o/pais-acusam-
escola-de-discriminar-ciganos_1369539);
artigo de 21 de abril de 2010 do Jornal
de Notícias sobre a venda de casas,
exclusivamente a cidadãos nacionais,
por uma câmara municipal (http://
jn.sapo.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.
aspx?content_id=1549323).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (91)
CAPÍTULO 5.
ESTADO DA ARTE
A mais recente bibliografia sobre imigração e minorias étnicas (Machado, Azevedo e Matias,
2009) integra várias listas temáticas de relevo sobre esta matéria. Entre estas há uma dedicada
ao tema: coexistência e representações interétnicas, e racismo. O acervo bibliográfico aí listado
consiste em 88 títulos, de livros científicos, capítulos de livros, artigos, documentos de trabalho,
atas de encontros científicos, teses académicas, relatórios, documentos institucionais e livros de
testemunhos ou de opinião, produzidos ou publicados entre os anos 2000 e 2008. Este quanti-
tativo de trabalhos sobre racismo e xenofobia, representações do Outro e coexistência étnica tem
ganho particular destaque nas últimas décadas. Até meados da década de 1990 eram escassos
os estudos sobre a problemática da imigração e do racismo em Portugal (Machado, 1992:134;
Cabecinhas, 2002:104). À exceção da minoria cigana e de alguns cabo-verdianos, Portugal era,
até então, muito homogéneo. É sobretudo a partir dessa época, quando se torna também um país
de imigração, que a evidência de uma real convivência multiétnica (Marques, 2007: 15) mobiliza
um conjunto de interesses, académicos e políticos, e favorece as condições institucionais para a
realização de estudos sobre estas temáticas (Machado, Azevedo e Matias, 2009: 3).
(92) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
económica severa – foi demonstrado por historiadores e outros cientistas sociais (Boxer, 1977;
Almeida, 2000). Mas a sua permanência acaba por ter um duplo efeito: por um lado, é facilitador
da perpetuação de preconceitos e sentimentos paternalistas e de superioridade em relação aos
negros (Stoer e Cortesão, 1999) e da difusão de um racismo subtil (Vala, Brito e Lopes, 1999a),
por outro, é limitativo da apropriação política de discursos racistas ou anti-imigração (Wieviorka,
1994; Stoer e Magalhães, 1998).
Nestes termos, estudar o racismo “em sociedades formalmente anti-racistas, implica saber des-
cortinar as manifestações mais civilizadas deste fenómeno, aquelas que não questionam a autoi-
magem anti-racista” (Vala, 1999: 3), procurando saber se “as expressões dos racismos, abertas
ou veladas, em Portugal, correspondem a configurações de crenças, atitudes e predisposições
comportamentais discriminatórias semelhantes àquelas que têm sido identificadas noutros países
europeus” (Vala, 1999: 3).
Na mais extensiva análise realizada em Portugal acerca das perceções e atitudes dos portugueses
brancos face aos negros que residem em Portugal, os resultados obtidos foram semelhantes aos
encontrados noutros países europeus. A norma anti-racista vigente na sociedade impede os inqui-
ridos de exprimirem formas de discriminação flagrante (isto é, rejeição e perceção do exogrupo
como ameaça e recusa de relações íntimas com os seus membros). As suas respostas apontam,
no entanto, para formas de discriminação subtis (ou seja, acentuação de diferenças culturais entre
o exogrupo e o endogrupo e dificuldade em exprimir emoções positivas para com os membros do
exogrupo). Tal como noutros países europeus, a norma anti-racista bloqueia o racismo flagrante
mas é permeável ao racismo subtil (Vala, Brito e Lopes, 1999a).
No entanto, outros trabalhos evidenciam que as atitudes dos portugueses face a certas catego-
rias, nomeadamente os ciganos, se pautam pela existência de um racismo flagrante (Correia et
al., 2001) ou diferencialista. O racismo diferencialista é entendido quando o grupo racizado é
percebido como uma ameaça endógena que urge afastar, não lhe sendo admitido qualquer lugar
no sistema social. Pelo contrário, a esta forma de racismo corresponde um desejo de rejeição,
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (93)
de exclusão, de distanciamento e, nas situações extremas, de expulsão ou destruição. Trata-se de
uma forma de racismo que, para além de acentuar os particularismos culturais, sublinha funda-
mentalmente a sua irredutibilidade (Marques, 2004: 81).
De acordo com Fernando Luís Machado (2001), a expressão do racismo depende dos contrastes
e continuidades, sociais e culturais, da minoria ou minorias em questão com a sociedade envol-
vente. Maiores contrastes favorecem o aumento de racismo, mais continuidades favorecem a sua
redução. O facto de os ciganos serem uma das minorias que mais contrastes – sociais e culturais
– acumula com a sociedade envolvente, poderá estar na base de uma maior manifestação de
racismo face a esta categoria social, como aliás sugerem os resultados de vários trabalhos (Correia
et al., 2001; Silva e Silva, 2002; GTIIC, 1998; Bastos, Correia e Rodrigues, 2006; Faísca e Jesuíno,
2006) e das discussões de grupo organizadas no âmbito do presente estudo.
Num trabalho sobre a perceção das próprias minorias acerca das experiências de racismo e dis-
criminação em diversos contextos, entre cinco minorias residentes em Portugal – cabo-verdianos,
guineenses, brasileiros, ucranianos e ciganos – são precisamente estes últimos, única minoria
nacional, que mais se sentem alvo de racismo e discriminação (Santos et al., 2009).
Importa, no entanto, frisar que os resultados encontrados nos trabalhos desenvolvidos não res-
pondem diretamente à questão “Os portugueses são racistas?” ou “Portugal é um país racista?”.
Colocar as questões nestes termos corresponde a essencializar um povo e os seus atributos, uma
falácia também ela racista (Vala, 1999: 3; Marques, 2007: 15).
(94) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 6.
METODOLOGIA
Atendendo a que o estudo teve por objetivo mapear o discurso racista que surge espontanea-
mente nas conversas quotidianas, optámos em termos metodológicos pela utilização de grupos
de discussão, uma metodologia de investigação qualitativa cuja genealogia passa notavelmente
por Ernest Dichter – discípulo de Paul Lazarsfed que foi o mais famoso pioneiro na transição da
psicologia clínica para os estudos de mercado (Stewart, Shamdasani e Rook, 2006: 6) – e que
consiste na promoção de uma discussão informal sobre determinado tópico no seio de um grupo
de participantes, geralmente entre 8 e 12. A discussão é guiada por um moderador qualificado
que, procurando não influenciar o resultado, garante que todas as temáticas são discutidas pelo
grupo e que as perspetivas dos participantes são tão clarificadas quanto possível.
1. AMOSTRA E RECRUTAMENTO
A realização deste estudo decorreu do apoio que a equipa de investigação prestou ao ACIDI para o
projeto Living Together: European Citizenship Against Racism and Xenophobia.45 O mesmo projeto
previa a realização de três grupos de discussão com 24 participantes com características diferen-
ciadas a nível social, profissional, educacional e de género. Para efeitos de elaboração do presente
trabalho, alargámos o número de participantes em grupos de discussão visando uma maior diver-
sificação da amostra e um acréscimo dos discursos analisados.
45 Projeto europeu co-financiado pelo
A análise aqui apresentada resulta, portanto, dos discursos pro- Programa Direitos Fundamentais e
duzidos em quatro grupos de discussão, homogéneos entre si, Cidadania. Em Portugal, foi levado a
cabo pelo ACIDI e decorreu em parceria
que contaram com o total de 33 participantes. com instituições de outros quatro países:
Finlândia, Suécia, Irlanda, Espanha. Teve
como principais objetivos identificar e
O desenho original da amostra resultou de uma amostra inten- caracterizar discursos racistas expressos
por adultos e jovens da população
cional – um tipo de amostra não probabilística, isto é, sem repre- maioritária; e identificar modelos de
coexistência e estratégias que possam ser
consideradas boas práticas no combate
contra o racismo e a xenofobia.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (95)
sentatividade estatística, muito utilizado em estudos qualitativos, caracterizado por a seleção dos
indivíduos participantes ser feita com base em determinadas características definidas à partida
como sendo desejáveis no contexto do estudo.
Sendo este estudo acerca de eventuais manifestações de racismo nos discursos do quotidiano
e sobre as representações do Outro, a característica fundamental a garantir seria visar a parti-
cipação de pessoas pertencentes à maioria da população portuguesa, tanto em termos fenotípi-
cos como culturais,46 distribuídas equitativamente pelos dois géneros. Em termos demográficos,
importou ainda contemplar a variável idade, integrando nos grupos de discussão a participação
de jovens (dos 18 aos 25 anos) e adultos (dos 35 aos 55 anos). As outras variáveis escolhidas
aparecem geralmente testadas como preditores do racismo (Pettigrew referido em Vala, Brito e
Lopes, 1999b; Lages et al., 2006) e foram: estatuto social – aferido pelo nível de educação e
situação na profissão –, dimensão do habitat (centro urbano, periferias das áreas metropolitanas e
zonas urbanas degradadas) e a relação com imigrantes e “minorias étnicas” (moderada ou direta).
Para efeitos do presente estudo, havia interesse em trabalhar com grupos de discussão homogéne-
os entre si: por um lado facilitam a identificação entre os presentes – propiciando uma discussão
mais participada –, por outro, permitem resultados comparáveis entre estratos sociais, fases do
ciclo de vida e gerações diferentes.
2. O segundo grupo de discussão formado por pessoas com idades compreendidas entre os
18 e os 25 anos, pertencentes a um estatuto social designado
46 Note-se que, no presente contexto, o
“Outro” é, quase por definição, minoritário.
(96) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
de médio-médio (algumas empregadas com qualificação média e outras estudantes a tempo
integral ou parcial), que residissem em zonas sortidas das periferias das áreas metropolitanas
e tivessem contacto moderado com imigrantes no emprego ou vizinhança;
3. O terceiro grupo de discussão constituído por pessoas com um intervalo etário dos 35 aos
55 anos, pertencendo a um estatuto social dito médio-baixo (trabalhadores precários ou de-
sempregados com baixa qualificação) que, residindo em zonas urbanas degradadas sortidas,
tivessem grande contacto com imigrantes no emprego ou vizinhança;
4. O quarto grupo de discussão composto por pessoas com idades entre os 35 e os 55 anos,
empregadas com qualificação média, que residiam em zonas sortidas das periferias das áre-
as metropolitanas e tinham contacto moderado com imigrantes no emprego ou vizinhança.
Na medida em que – ao contrário do que se passa com o segundo grupo de discussão descrito
– o posicionamento no ciclo de vida dos participantes neste grupo de discussão não varia face
aos participantes nos grupos de estatuto social inferior e superior, este quarto grupo de discussão
permite uma melhor comparação em termos de estratificação social com os grupos de discussão
de adultos de estatutos médio-alto e médio-baixo.
Dada a relativa facilidade com que a equipa de pesquisa foi capaz de recrutar participantes de
estatuto social médio-alto com idades entre os 35 e os 55 anos através das suas próprias redes so-
ciais – tendo o cuidado de selecionar apenas candidatos relativamente ingénuos face às ciências
sociais e, desse modo, evitar que a amostra espelhasse os posicionamentos de quem a coligiu –,
esse foi o primeiro dos quatro grupos de discussão a ter condições para se realizar.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (97)
Tabela 4. Atributos dos participantes de estatuto social médio-alto
Relação com
Género Idade Profissão Situação na profissão Área de residência categorias
minoritárias
Feminino 47 Empresária Por conta própria Lisboa Profissional
Feminino 41 Consultora Por conta própria Oeiras Profissional
Feminino 38 Investigadora Por conta própria Paço de Arcos Profissional
Feminino 38 Tradutora-intérprete Por conta de outrem Carnaxide Sem relação
Masculino 47 Dirigente Por conta de outrem Lisboa Sem relação
Masculino 44 Engenheiro Por conta de outrem Odivelas Vizinhança
Masculino 37 Diretor Por conta de outrem Paço de Arcos Sem relação
Masculino 40 Analista de Qualidade Por conta de outrem Arroios Pessoal
Também os jovens provaram poder ser, pelo menos em parte, recrutados desta forma. A aborda-
gem ao recrutamento de participantes de estatuto social dito médio-médio e com idades compre-
endidas entre os 18 e os 25 anos baseou-se em contactos diretos, em contactos com organizações
que lidam com este público e na publicação de um anúncio na Internet, mais especificamente
no Facebook, uma rede social popular entre as pessoas jovens. A equipa de pesquisa usou as
suas redes sociais para chegar ao contacto de pessoas com as características desejadas e que
ficassem, pelo menos, a dois graus de separação dos investigadores. Por exemplo, perguntámos
a jovens conhecidos por contactos de pares seus com os quais não tivéssemos relação e, partindo
daí, prosseguimos sucessivamente, utilizando a abordagem conhecida na teoria da amostragem
por “bola de neve”. Neste processo tivemos sempre o cuidado de assegurar a inexistência de
conhecimento prévio entre os jovens selecionados e de, dentro da homogeneidade imposta pela
amostra intencional, garantir a maior heterogeneidade possível no que respeita a outros traços.
Este foi indubitavelmente o método de recrutamento que deu melhores resultados. Os contactos
institucionais revelaram-se particularmente ineficazes, uma vez que decorreram durante o período
de férias, o que limitou o acesso tanto aos técnicos que poderiam intermediar os contactos como
aos próprios jovens. Por fim, a colocação de um anúncio no Facebook provou ser uma tática
(98) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
interessante, sobretudo porque as definições do software permitem que o anúncio seja apenas
visualizado por pessoas que pertencem ao escalão etário desejado.47 Ainda assim, a maior parte
das pessoas que se candidataram revelou-se inelegível por ser sobrequalificada ou por ter uma
nacionalidade, fenótipo ou cultura que a colocariam fora da amostra intencional desenhada para
este estudo. Acabámos, assim, por recrutar 11 jovens com o perfil desejado. Contudo, registaram-
-se duas faltas de comparência, pelo que o grupo de discussão acabou por ser composto por 9
pessoas.
Tendo feito um esforço continuado por recrutar de igual forma nos demais estatutos sociais, a
equipa de pesquisa viu-se finalmente confrontada com o facto de os resultados estarem a levar
demasiado tempo a materializar-se. Optámos então por realizar uma aquisição de serviços externa
no que respeitava ao recrutamento de participantes. Contratámos para esse efeito uma empresa
de estudos de mercado que dispõe de uma extensa base de dados com os contactos de pessoas
de todos os quadrantes da sociedade que se manifestaram disponíveis para participar em grupos
de discussão. Tendo trabalhado com esta companhia noutras
47 O anúncio esteve online durante dois
dias, período durante o qual ocorreram
371 visionamentos do mesmo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (99)
ocasiões, sabemos que têm o cuidado de filtrar pessoas que pudessem ter por ambição fazer da
participação neste tipo de investigação um modo de vida, isto porque neste tipo de metodologia é
comum os participantes receberam incentivos. No presente caso estes assumiram a forma de va-
les – redimíveis em lojas FNAC ou, em alternativa, do grupo Sonae – e do custear de transportes.
No seu conjunto, estas componentes perfizeram o valor de trinta euros.
O recrutamento para o grupo de discussão com pessoas de estatuto social médio-baixo seguiu
as mesmas linhas que o realizado para o grupo de discussão com pessoas de estatuto social
médio-médio.
(100) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Tabela 7. Atributos dos participantes de estatuto social médio-baixo
Dado tratar-se de um trabalho sobre racismo e não querendo enviesar os resultados que iríamos
obter, divulgámos o tema como sendo as representações dos imigrantes e demais minorias e
discursos sobre os mesmos que existem em diversos setores da sociedade de acolhimento.
2. SALA E EQUIPAMENTO
O autor de um dos mais citados manuais sobre grupos de discussão explica que as salas próprias
se assemelham a laboratórios de dinâmica de grupo confortavelmente mobilados, com microfones
embutidos, câmaras de vídeo e uma sala de visualização por detrás de um espelho de uma só via
(Morgan, 1997: 54-55). Os autores de um outro manual, mais recente mas também muito citado,
concordam que o mais comum é os grupos de discussão serem realizados em salas próprias
com espelhos unidirecionais por detrás dos quais é possível observar a discussão em progresso
sem interferir com a mesma (Stewart, Shamdasani e Rook, 2006: 37). Contudo, estes aspetos
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (101)
assumem maior importância no contexto de outros trabalhos, como estudos de mercado, por
exemplo, em que o cliente que contrata o estudo pretende assistir à discussão dinamizada por
técnicos especializados sem interferir ou enviesar os resultados simplesmente por estar presente.
Tivemos contudo a felicidade de, para os grupos de discussão com participantes adultos de esta-
tuto social médio-médio e médio-baixo, conseguirmos assegurar o uso do laboratório de psicologia
do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) e, desse modo, beneficiar de condições ideais.
Atendendo a que geralmente não é aconselhável identificar a organização ou o título dos observa-
dores, ou a razão por que o fazem, na medida em que tal pode revelar demasiado acerca da natu-
reza da discussão e, desse modo, enviesar as respostas dos participantes (Stewart, Shamdasani
e Rook, 2006: 93), foi assim possível ao então responsável pelo acompanhamento do estudo no
ACIDI observar as reuniões em curso sem que isso interferisse nos resultados.
A dinamização dos restantes dois grupos de discussão – com adultos de estatuto social médio-alto
e com os jovens de estatuto social médio-médio – decorreu em salas diferentes, ambas num con-
texto neutro, sem qualquer tipo de conotação que porventura pudesse influenciar os resultados: a
primeira teve lugar numa sala de reuniões da representação da Comissão Europeia em Portugal e
a segunda numa sala de aula do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).
Ambas as salas reuniram as condições essenciais à realização dos grupos de discussão: neutras,
credíveis e centrais, bem como ofereceram a privacidade e o silêncio necessários.
Em todas as reuniões foi servida comida e bebidas, com vista a manter os níveis de açúcar no
sangue dos participantes e propiciar um ambiente informal e descontraído.
3. GUIÃO E MODERAÇÃO
Os três grupos de discussão com adultos foram moderados por uma profissional, com mais de dez
anos de experiência nesta área, que procurou criar um ambiente recetivo à participação de todos,
assegurando que o uso da palavra seria partilhado, que não haveria lugar a excursos e que todos
(102) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
os diversos pontos do guião seriam focados. O grupo de discussão com jovens foi moderado pelos
autores do presente estudo.
A existência de um guião nos grupos de discussão visa sobretudo a orientação das conversas para
temas que importam abordar, procurando o moderador fazê-lo de uma forma fluida e não imposta.
A elaboração do guião teve por base a escolha de tópicos relativos à temática do racismo, abordan-
do questões que aparecem frequentemente a ele associados, seja nos discursos do senso comum,
seja nos trabalhos académicos ou mesmo nos discursos políticos (imigração, relacionamento com
imigrantes e/ou pessoas de outras etnias, integração, privação relativa, entre outros). O guião
seguido foi, então, o seguinte:
A ideia de reunir e conversar com um conjunto de pessoas permite perceber diversos pontos de
vista sobre algumas questões e, por isso, é muito importante que TODOS participem, ok? Aqui
não há respostas certas nem erradas, trata-se apenas de partilhar opiniões, falar sobre assuntos
relacionados com o nosso dia-a-dia e debater as experiências de cada um de nós.
É importante que saibam que a vossa participação é totalmente anónima, ou seja, a vossa identida-
de não figurará em qualquer resultado do projeto. Vamos pedir-vos – se ninguém se opuser – para
gravar a reunião para podermos trabalhar sobre o que foi dito, e não termos que estar sempre a tirar
notas. Serve apenas para facilitar o trabalho e não haverá qualquer tipo de divulgação identificada.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (103)
Por isso pedimo-vos que fale um de cada vez. Se houver muitas vozes a falar ao mesmo tempo não
vamos conseguir perceber a gravação. (Aproveito ainda para vos pedir que desliguem os telemóveis,
ou os coloquem em silêncio, para não causar interferências na gravação).
Se tiverem alguma dúvida podem colocá-la agora ou interromper a qualquer momento, se sentirem
necessidade disso (sintam-se à vontade porque vamos ter tempo para conversar).
Para começar, gostaria que cada um de vós fizesse uma pequena apresentação, para nos ficarmos
a conhecer um pouco melhor. O vosso nome, idade, de onde são, onde moram, em que trabalham
ou estudam, o que gostam de fazer nos vossos tempos livres, enfim… o que entenderem. Peço-vos
ainda que coloquem o vosso nome nos papelinhos que se encontram diante de vós para facilitar
tratarmo-nos pelo nome.
Eu posso dar o mote, começando por fazer uma breve apresentação minha.
…
Relações com pessoas de outras etnias (10’)
Diga-nos, por favor, o que vos ocorre quando pensam em pessoas com outra religião, outra cor de
pele ou que nasceram noutros sítios?
(104) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
manifesta(m) como mais presente(s) nas vivências das diferentes pessoas. Fazer uma síntese dos
resultados no flip chart.48 No final deste exercício, devemos induzir o máximo de diversidade. Ou
seja, se os participantes não se referirem a um número alargado de grupos, devemos nós alargar
o leque]
[Explorar - escola, trabalho, vizinhança, transportes, relações de amizade, relações amorosas, etc.]
Dos conjuntos de pessoas que identificaram, quais aqueles com os quais sentem maior empatia?
[Em função das respostas, explorar com base na Escala de Bogardus, os seguintes graus de
eventual afinidade:]
Aceitaria que uma pessoa pertencente a um destes grupos fosse sua amiga?
Considera improvável ser amigo de uma pessoa pertencente a algum destes grupos em particular?
Aceitaria que uma pessoa pertencente a um destes grupos casasse com um filho seu?
De entre estas diversas pessoas/grupos (de que falámos anteriormente) quais consideram que se
estão a sair melhor em Portugal? E porquê?
E os outros que não se estão a sair assim tão bem, quais são? E porquê?
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (105)
Discursos sobre caracterização/atributos dos diferentes grupos (15’)
É comum comparar-se os portugueses a outros povos e dizermos que uns são “mais isto ou mais
aquilo”. Na medida em que achem que faz sentido fazer este tipo de comparação, quais são as
características/atributos que vocês diriam que distinguem os portugueses?
[Deixar discurso espontâneo. Ao longo do exercício vamos anotando os atributos associados aos
portugueses no flip chart]
Recordando agora os grupos que temos aqui [usar como referência os grupos listados na questão
2 no flip chart], pedíamo-vos agora que fizessem o que acabaram de fazer para os portugueses.
Isto é, digam-nos os atributos que associam a cada um destes grupos.
Acham que a relação dos portugueses com os imigrantes é mais de competição ou de coope-
ração? Vocês, ou alguém que conheçam, já viveram alguma situação em que competissem ou
cooperassem com imigrantes?
[Se necessário, dinamizar a conversa com exemplos habitualmente apontados como favoráveis e
desfavoráveis à imigração, para perceber o lado para o qual os participantes pendem. Exemplo: às
vezes em Portugal ouvimos na televisão pessoas que se queixam de que os imigrantes lhes ficam
com o trabalho, etc. Por outro lado, há quem diga que os imigrantes vêm só fazer os trabalhos que
não interessam aos portugueses por serem demasiados árduos e mal pagos, como é o caso das
limpezas ou da construção civil, etc.]
(106) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Portugal, país de brandos costumes (15’)
Há quem diga que os portugueses sempre tiveram, ao longo dos séculos, uma forma muito própria
de lidar com os povos dos países por onde iam passando, caracterizada por ser relativamente
benévola e pacífica, levando a trocas comerciais e culturais e à mistura de gentes. Acham que há
alguma verdade nesta ideia, ou que somos iguais a outros povos que tiveram histórias semelhan-
tes, nomeadamente ao nível da expansão marítima, como os ingleses ou os espanhóis?
Exercício final:
Pegando agora nesta lista de atributos [questões 6 e 7] que vocês criaram, vamos tentar hierarqui-
zá-los de acordo com as três características que vocês valorizam mais numa pessoa.
Vamos assim, em conjunto, tentar chegar a um consenso e escolher a primeira característica mais
importante.
[Se não surgirem espontaneamente referência a estes grupos, perguntar explicitamente por agru-
pamentos como africanos, ciganos, islâmicos, judeus, etc.]
Considera que os ciganos em Portugal têm as mesmas oportunidades que as outras pessoas?
Porquê?
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (107)
Discutir frases (10’ cada)
- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas recebem mais do que contribuem para este país.
- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas devem manter a sua identidade e cultura de
origem.
4. ANÁLISE DE DISCURSO
A análise das transcrições dos grupos de discussão foi feita de forma exaustiva, no sentido de
termos procurado assinalar todos os matizes de posicionamento dos diversos participantes, sem
nada omitir. O guião seguido na moderação dos grupos de discussão, que apresentámos na sec-
ção imediatamente precedente, tinha já por base uma estrutura temática que facilitou o arrumar
dos discursos mas que não tratámos como monolítica nos casos em que nos apercebemos de
que a conjunção de enunciados produzidos em secções diferentes poderia contribuir para a com-
preensão da dinâmica do discurso.
(108) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
CAPÍTULO 7.
ANÁLISE GRUPO A GRUPO
1. GRUPO DE DISCUSSÃO COM PARTICIPANTES DE ESTRATO SOCIAL
MÉDIO-ALTO
Depois de feitas as apresentações, quando foi perguntado aos participantes de estrato médio-alto
o que associam espontaneamente à noção de pessoas de outras religiões, origens étnicas, cores
da pele ou naturalidades, as duas primeiras palavras por eles proferidas foram “diferenças” e
“conflitos”. Ambos os conceitos expressam uma demarcação forte do exogrupo, quer no que se
refere à não identificação entre os elementos (são pessoas “diferentes”), quer à associação a
sentimentos negativos (“conflitos”). Note-se que, por esta altura da discussão, não tinha ainda sido
identificada qualquer categoria de pessoas característica da alteridade previamente referida, pelo
que este posicionamento espontâneo decorreu exclusivamente da categoria abstrata os Outros.
De resto, a tendência geral dos participantes foi identificar pessoas tendo por base diferentes proveni-
ências geográficas, cores de pele, etnias e religiões. As categorias assinaladas foram: muçulmanos,
negros, asiáticos, budistas, ciganos, indianos, brasileiros, chineses e europeus de Leste.
Os graus de contacto com imigrantes e outras categorias minoritárias variam consoante os par-
ticipantes do grupo de discussão. Esses contactos ocorrem em menor escala no contexto de
vizinhança e a nível pessoal, sendo referidos apenas por dois indivíduos:
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (109)
E no contexto profissional, havendo aqui uma maior referência aos contactos com pessoas de
outras origens:
Estive envolvida em projetos internacionais, de modo que envolvia gente de todos os lados,
etnias, religiões. Por isso estou habituada a lidar, isto é, a trabalhar com estas pessoas.
O teor destas declarações parece refletir o lugar-comum de que os participantes de estatuto social
superior são mais cosmopolitas. Contudo, estas afirmações evidenciam um maior contacto com
estrangeiros no plano laboral fora de Portugal. Das relações tidas em contexto profissional em
território nacional, foram referidas as seguintes situações:
O Instituto onde trabalho tem pessoas do Oriente, chineses. Anteriormente também vivi nou-
tros países e o campo da investigação era muito mais internacional do que aqui em Portugal.
Três participantes de estatuto social médio-alto afirmaram que, de uma forma geral, não têm qual-
quer contacto com pessoas de outras religiões, antecedentes culturais, cores da pele ou de outros
países. É interessante referir que uma dessas participantes trabalha para a Comissão Europeia,
ocupando um cargo que envolve viagens semanais ao estrangeiro e o contacto frequente com
pessoas de todos os 27 Estados-membros e com nacionais de países terceiros que se relacionam
com a Comissão. A sua própria perceção – de não ter contacto com pessoas vistas como Outras –
parece apontar para uma visão do Outro como alguém que tem uma condição de classe diferente
da sua. Este é, segundo Machado, o elemento principal de contraste social (2002: 446). Quanto
(110) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
maior for o contraste – a nível das condições socioeconómicas, por exemplo – maior será a perce-
ção das diferenças étnicas ou culturais.
A importância do estatuto social na perceção da alteridade foi também visível quando o moderador
pediu aos participantes que indicassem, de entre as pessoas de origem diferente que haviam
previamente referido,49 aquelas com as quais tendem a sentir mais empatia.
Eu acho que a questão é mais complexa, porque eu acho que isso tem a ver com valores, com
posturas que cada pessoa, independentemente da religião e da origem étnica, tem. Portanto,
podemos empatizar, mais ou menos, em função do estatuto, no sentido do que é que essas
pessoas têm. Portanto, eu, à partida, não descarto nenhuma dessas possibilidades, também
não quero entrar naquele cliché “ah, é preto, é de África, é atrasado”, não faz sentido no
mundo atual (…). Mas, eu acho que essa empatia que se forma, tem a ver com o estatuto
económico, com o estatuto social, tem a ver com educação e portanto é transversal a tudo.
Eu acho que não tem a ver com o grupo, eu não tinha problema nenhum em me dar com toda
a gente que está aí, depende de…
Eu conheço uma série de pessoas muçulmanas que vivem no prédio onde eu vivo, com as
quais eu me dou muito bem. Apesar de ter esta opinião do muçulmano extremista. (…) Eu
tenho no meu prédio pessoas que trabalham na Embaixada com embaixadores, negros, que
têm um nível completamente diferente. (…) É completamente diferente de outro tipo de negro
que a gente encontra aí na rua.
No que respeita a sentimentos de simpatia, os participantes evitam optar por uma categoria em
detrimento de outra, defendendo geralmente que o estabele-
cimento de relações depende das pessoas e da existência de
49 Nesta fase da discussão, os mode-
interesses partilhados. radores apontaram aos participantes,
no flip chart, as categorias relativas a
pessoas de outras origens que estes
haviam identificado no início da discussão:
muçulmanos, negros, asiáticos, budistas,
ciganos, indianos, brasileiros, chineses e
europeus de Leste.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (111)
Penso que ficou mais ou menos claro, todas as pessoas concordam mais ou menos, é que, de
facto, nós damo-nos com toda a gente em função dos interesses, enfim, como nos identificamos
com essas pessoas.
Ainda assim, é evidente nos seus discursos que alguns aspetos são referidos como obstáculos ao es-
tabelecimento de uma relação mais profunda. Aqueles geralmente assinalados como mais distintivos
nas práticas da vida quotidiana, são os aspetos religiosos:
Tem mais a ver com o afastamento que a gente tem com a nossa maneira social em relação
como essas pessoas vivem no seu ambiente social. Há uns com um choque maior, outros não.
Por exemplo, eu teria muita dificuldade em conseguir adaptar a minha vida e o meu dia-a-dia e a
minha maneira de ser a alguém que fosse budista, porque eu acho que é totalmente extremista
em relação aos princípios que eu tenho. (…) O meu problema não era adaptar-me às pessoas,
era adaptar-me ao meio dele e ele adaptar-se ao meu para termos um meio-termo e vivermos em
sociedade os dois. Porque é totalmente díspar.
Se calhar, eu teria mais dificuldade em conviver com aquele muçulmano extremista, que anda
todo escondido ou obriga a mulher a fazer certas coisas que já não fazem sentido nenhum, coisas
assim.
A igualdade de género, eu creio que marca bastante uma definição do afastamento, não é? As
religiões, nós estamos abertos a diversas religiões ou a hábitos culturais e assim, pelo menos falo
do meu caso, a igualdade de género para mim, transcende-me um bocado. Ou seja, não haver
igualdade, para pegar na questão dos muçulmanos.
Sim, mas nós estamos aqui, não é? E combina-se: “Olhe, vamos tomar café”. Se calhar, com
pessoas como muçulmanos extremistas ou budistas ou ortodoxos, provavelmente, entre nós e es-
sas pessoas nunca haveria uma ponte, uma ligação, uma afinidade que permitisse essa ligação.
(112) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A questão da simpatia, acho que é complicado. Eu, por exemplo, [penso que a] dificuldade de
comunicação não é só na língua, é nos costumes. Os costumes são completamente diferen-
tes. Já trabalhei com pessoas da Indonésia, japoneses, chineses (…).
Eu tenho algumas dificuldades de comunicação com africanos. (…) [Esta dificuldade tem que
ver] com a falta de instrução do outro lado. Com a falta de instrução. (…) É difícil particularizar
isto.
Depois da primeira abordagem, acerca da identificação e dos eventuais laços emocionais com pes-
soas pertencentes a diferentes categorias, o moderador perguntou aos participantes quais aqueles
que se estão a sair melhor ou pior em Portugal. Foi opinião consensual do grupo de discussão
de estrato médio-alto que os europeus de Leste conseguem integrar-se melhor do que os outros
grupos de nacionalidades imigrantes em Portugal:
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (113)
(…) as pessoas de Leste que também tentam e conseguem, de facto, se integrarem e con-
seguem por elas próprias, chegando aqui sem quaisquer afinidades culturais, linguísticas
e etc., e conseguem se integrar. Temos exemplo de pessoas que começaram nas obras e
conseguiram ficar muito bem.
Bem, quando estamos a falar de integração é Leste. Acho que o pessoal de Leste se integrou
muito bem.
No extremo oposto do espectro, os ciganos, apesar de serem portugueses, são vistos como forte-
mente não-integrados.
Enquanto a comunidade cigana que vive aqui há centenas de anos, está completamente
desintegrada e, provavelmente se formos a ver, até a nível de diplomas académicos e etc.,
está muito atrás de todos outros.
No seu discurso, os participantes não distinguem os imigrantes originários dos vários países da
antiga União Soviética,50 estes são considerados como um todo, e há uma atitude positiva a seu
respeito: são percecionados como fazendo um esforço para se integrarem na sociedade e existe
uma ideia geral de que são pessoas mais qualificadas do que os outros imigrantes. Quando se fala
sobre brasileiros, é possível identificar uma atitude de desaprovação relativa ao facto de “não faze-
rem um esforço para se adaptarem à sociedade”, geralmente associado à sua “falta de vontade de
trabalhar”. A experiência da equipa de investigação noutros projetos (e na vida quotidiana) indica
que a atitude de “insatisfação” relativa aos ciganos é comum, tida como socialmente aceitável e
assumida com facilidade.
50 O que, aliás, se verifica em todos os
grupos de discussão, como poderemos
ver no Capítulo 8, relativo à análise
comparativa.
(114) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Estes resultados corroboram alguns estudos sobre racismo que revelam que a norma anti-racista
em vigor na sociedade impede os participantes de expressar formas de discriminação flagrante
– isto é, a rejeição e perceção dos exogrupos como uma ameaça e a recusa de um relaciona-
mento íntimo com os seus membros – embora as suas respostas apontem para formas subtis de
discriminação.
1.4.1. Portugueses
A enunciação dos atributos associados aos portugueses evidencia bem a tendência incutida pela
dinâmica de grupo. Há uma afetação inicial de atributos negativos ao endogrupo, que se esbate à
medida que um dos participantes enuncia aspetos positivos:
Quando eu fui viver mesmo para fora, a ideia com que fiquei é que o pessoal em Portugal
é mesmo muito pequenino, não consigo explicar. (…) Não sei bem, mas com falta de visão
geral. Tipo, aparece uma pessoa no autocarro de cabelo cor de laranja e toda a gente olha.
Em Inglaterra um cabelo laranja é normalíssimo.
Racistas, xenófobos.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (115)
Tacanhos.
Fado.
Flexíveis.
Capacidade de desenrasque. É verdade! Nós fazemos coisas numa semana, chegamos aos
alemães e eles ficam pasmados “que output é aquele, já cá estamos há 3 meses e foi preciso
muita planificação…”.
1.4.2. Muçulmanos
Os atributos e emoções acerca dos muçulmanos são geralmente neutros ou negativos e palavras
como religião ou tolerância são frequentemente verbalizadas quando os participantes se referem
a eles.
(…) acho que somos muito influenciados pelos media. Os muçulmanos não têm nada a ver
com aquilo que a gente vê na televisão. Aliás, nós é que fizemos as cruzadas.
Tolerância, mas eu estava a pensar mais no aspeto da religião. Eu vejo numa perspetiva mais
comparativa com as outras religiões, mas acho que esta é mais interessante. Eu fui educada
como católica, mas não sou. Eu acho que eles são mais tolerantes porque aceitaram integrar
os outros, apesar de cobrarem coisas, mas gosto mais do espírito.
(116) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os muçulmanos fazem-me sentir:
Abaixo de cão.
1.4.3. Negros
Tal como acontecera antes relativamente aos imigrantes da Europa de Leste, os participantes não
diferenciaram os negros segundo a sua proveniência, descrevendo-os como um todo. Estes são
alvo de uma caracterização que se relaciona particularmente com a sua expressividade e exotismo.
Os atributos específicos que os participantes lhes associam são semelhantes aos encontrados e
expressos em diversos estudos distintos sobre a perceção que os portugueses têm dos negros.
Nesses estudos, os portugueses não atribuem muitas características negativas aos negros, embo-
ra lhes tenham negado alguns atributos valorizados nas sociedades ocidentais, como a autonomia,
a responsabilidade e a competência. Tendem a ver os negros como desempenhando um papel
mais decorativo e lúdico, caracterizando-os, por exemplo, como “cheios de ritmo”, musicais e
sensuais (Cabecinhas, 2002; Lima e Vala, 2004). Neste grupo de discussão, as características
associadas às pessoas negras foram:
Lentidão.
Alegria de viver.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (117)
Por acaso, eu acho-os honestos. Todas as pessoas com quem lido, tanto cá como em Angola,
África do Sul e tudo mais, acho-os honestos.
Fazem-me confusão quando se misturam com a raça branca. Entre eles não faz, mas se vir
um casal, um negro e um branco faz-me confusão. A mim faz-me confusão.
1.4.4. Ciganos
Segundo a perceção do grupo de discussão de estrato médio-alto, os ciganos são, definitivamente,
a minoria que reúne mais atributos negativos e que cria um maior impacto emocional negativo. No
entanto, são também caracterizados com atributos “leves” e exóticos. Os ciganos são perceciona-
dos com base em sinais físicos externos diferenciadores (reais ou imaginados), e esses atributos
são depois reformulados em termos de uma marca cultural intrínseca.
Problemáticos.
Violentos.
Feira.
Música. Desonestidade.
Festa.
Insubmissão, no sentido de não estarem interessados, ou pelo menos, não tentarem entrar
dentro do padrão social.
(118) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Espírito de grupo.
Código de honra.
Clã.
Inseguros.
1.4.5. Indianos
Os atributos associados aos indianos são muito dispersos e, de uma forma geral, neutros.
Curiosamente aparecem associados ao conhecimento e as alusões feitas sobre indianos durante
a discussão, mesmo sem uma referência explícita, remetem para um referencial da Índia como
economia emergente e competitiva fortemente associada às tecnologias de informação.
Informática.
Matemática.
Muitas línguas.
Muitas religiões.
Caril.
Tradição. História.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (119)
1.4.6. Chineses
O discurso espontâneo associado aos chineses evidencia um certo distanciamento, em parte
justificado pelos participantes pela reserva e dificuldade de comunicação com os mesmos.
Ameaça.
Dificuldades de comunicação.
Os chineses são muito esquemáticos, têm tendência para fazerem como acham que deve ser
feito e não como foi imposto naquele caso particular.
Reserva, no sentido em que não são pessoas muito abertas no que dizem, ou a própria
expressão corporal e facial muitas vezes não é tão adequada ao que nós estamos habituados,
aos sinais que lemos nos outros.
Linguagem corporal.
É um pouco escravidão, para eles trabalhar 24 horas seguidas sem descanso, é normal.
Persistência.
Competitividade.
(…) pequeno.
Invadida.
1.4.7. Brasileiros
Os atributos expressos pelo grupo de discussão de estrato médio-alto são, de uma forma geral,
pouco favoráveis aos brasileiros:
(120) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Cansativos.
Indisciplina.
Biliões.
Frivolidade.
Matreiros.
Sacanice.
Alegria, vivacidade.
Samba.
Depende das alturas, às vezes, alegre, quando há festa, mas, se for por outras coisas…
Acho que nós somos muito paternalistas com os brasileiros e eles detestam isso.
A descrição dos negros e dos brasileiros feita pelos participantes neste grupo de discussão, mostra
o legado dos aspetos históricos na perceção das categorias sociais. É curioso aqui encontrar ex-
pressões como “crianças adultas” (a respeito dos brasileiros) que coincidem com aquelas usadas
nas teorias do darwinismo social e da antropologia física, veiculadas por Oliveira Martins, e que
serviam de argumentário à política esclavagista do domínio colonial no Portugal de 1870: “Sempre
o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A precocidade, a mobilidade, a
agudeza próprias das crianças não lhes faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam
em faculdades intelectuais superiores” (citado em Alexandre, 1999: 136).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (121)
Há, contudo, manifestações mais óbvias da crença num determinismo biológico semelhante à
expressão “está-lhes no sangue” que se vulgarizou no quotidiano a propósito da descrição de
terceiros, designadamente sobre os brasileiros:
(…) lá está, os valores são diferentes. Matam assim como quem bebe um copo de água e é
do feitio deles…
O moderador explora o impacto negativo e positivo da imigração na perspetiva pessoal dos parti-
cipantes de estrato médio-alto. De uma forma geral, os aspetos positivos expressos pelo grupo de
discussão suplantam os negativos.
(…) o trabalho que desenvolvem quando chegam, na primeira geração pelo menos, maiori-
tariamente é um trabalho não qualificado, que nós não queremos e isto também poderia ter,
mas não tem, o aspeto positivo de nos catapultar para os trabalhos mais qualificados.
Acho que há um aspeto positivo para a economia, que é mal aproveitado pelos sucessivos
governos, que é não legalizar as pessoas, não permitindo por esse motivo que os benefícios
dos mesmos sejam em benefício do nosso país e dos restantes portugueses. Isso transforma
e vai sendo uma bola de neve para a situação se deteriorar em lugar de se ver o contrário.
(…) a multiculturalidade, a culinária, coisas novas com que nos deparamos no dia-a-dia. Na
simpatia, de agradar o próximo, porque acho que há um cuidado e uma atenção das pessoas
imigrantes de agradar.
(122) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
(…) sendo que a taxa de natalidade de um país como Portugal só pode crescer por aí e esse
é um aspeto positivo. No aspeto negativo, nós não conseguimos integrar as crianças que vão
nascendo.
Embora alguns participantes tenham classificado os portugueses como racistas e xenófobos quan-
do lhes perguntam que perceção têm da recetividade aos imigrantes em Portugal, todos tendem a
concordar que a sociedade portuguesa é relativamente aberta, em particular as novas gerações,
nas quais se incluem.
Pelos mais jovens, eu acho que sim. Eu acho que quem tem contacto com o exterior. Agora,
das pessoas que não tiveram tanto contacto e para quem Portugal está tão mais fechado e
tudo mais, acho que é muito mais difícil. Eu vejo pelas gerações passadas, em comparação
à minha…
Eu acho que na geração dos meus pais, eles são menos tolerantes mas mais indiferentes. Ou
seja, para eles ser negro ou asiático é tudo igual, está tudo no mesmo saco e aquilo não os
afeta muito. Esta é a minha leitura, as gerações mais novas, algumas e a grande maioria, e eu
concordo, somos, de forma geral, mais tolerantes. Temos, de facto, gerações mais novas com
uma postura muito mais tolerante, há muitos mais casamentos mistos, (…) está a mudar. O
problema que eu vejo também, é que os casos de intolerância, nas gerações mais novas, são
mais graves e mais extremistas do que naquelas gerações mais velhas que não querem saber
muito disto. Eu acho que disse a palavra certa, indiferença. Eu acho que, se calhar, o que eu
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (123)
tenho visto de intolerância são meia dúzia de miúdos de gerações mais novas. Eu acho que
é isso, há uma indiferença face ao desconhecido nas gerações mais velhas, eventualmente
poderá haver manifestações de tipo racista, agora…
A minha mãe já tem mais de 60 anos. Foi preciso arranjar-lhe uma empregada e eu é que fui
tratar disso. E ela disse: “Vê lá na empresa que não sejam nem brasileiras, nem lá de Leste,
nem não sei o quê”. E a minha mãe é uma pessoa com curso superior e, portanto, é pela
idade, só pode ser. Mas, ela queria uma branca e portuguesa.
Acho que Portugal é uma sociedade tolerante. A mim não me parece que em Portugal ha-
ja fenómenos de racismo, quando o fenómeno de racismo mais presente é um cartaz no
Marquês de Pombal,51 está tudo dito. Eu estive em Viena há uns anos, onde sistematicamente
havia cartazes nas campanhas políticas a dizer “Viena não é
51 Em março de 2007, o Partido Nacional Istambul”. Milhares. Temos ataques violentíssimos, temos movi-
Renovador, ou PNR (um partido populista
de extrema-direita sem representação mentos constituídos na Europa contra judeus, contra africanos,
parlamentar), colocou um outdoor com contra não sei o quê. Portugal obviamente não é a sociedade
uma mensagem anti-imigração numa
das principais praças de Lisboa. O cartaz perfeita, obviamente que eventualmente marginaliza, discrimina,
continha a frase “Basta de Imigração –
Nacionalismo é a solução”, e ainda “boa mas é uma sociedade, nesse aspeto, tolerante e pacífica.
viagem” no regresso a casa, ao lado de
uma fotografia de um avião em voo. Em
outubro de 2009, outro outdoor com uma Relativamente à perceção sobre a forma como os imigrantes
mensagem do mesmo cariz foi colocado
noutra praça central da cidade. Este são recebidos em Portugal, apenas dois participantes emitiram
cartaz exibia uma ovelha negra e várias
ovelhas brancas – identificada com rótulos
opiniões menos otimistas, embora não tenham contestado os
como “desemprego”, “salários baixos”, argumentos levantados contra a sua perspetiva.
“multiculturalismo”, “fronteiras abertas”
e “criminalidade”; nele estava escrito
“Imigração? Nós dizemos não!”. Ambos Mas tem havido casos graves. Como o daquele rapaz que foi
os outdoors foram muito controversos e
deram origem a um enorme debate sobre morto no Bairro Alto por ser negro.52
a inconstitucionalidade deste tipo de
propaganda.
52 Alcindo Monteiro era um jovem negro, Eu não menosprezo, só acho que são casos pontuais, não tem
português, assassinado em 1995 no Bairro
Alto (o Bairro Alto é o coração da vida
nada a ver com o que se passa nos outros países da Europa.
noturna e da cultura juvenil lisboetas). O
seu assassinato levou à condenação de 15 A imigração é sempre um problema.
skinheads conforme ficou já exposto na
secção 3.5.
(124) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
No âmbito do impacto da imigração na sociedade portuguesa e nas vidas quotidianas dos par-
ticipantes, o moderador introduz uma questão sobre a natureza do relacionamento entre os
portugueses e os imigrantes: competição ou cooperação?
Em geral, as ideias expressas pelo grupo de discussão levam mais em conta a competição do que
a cooperação.
Começam a surgir ameaças ou riscos, desafios ao nível da competição, ao nível mais qualifi-
cado. Nomeadamente na questão dos indianos.
Ainda assim, é curioso que a questão sobre cooperação ou competição tenha levado à enunciação
de assuntos como a integração de imigrantes.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (125)
sei se estamos a acolher os que temos poder de acolher, se não.
No caso de uma colega minha, vive num sítio onde no prédio dela e noutros, integraram várias
pessoas de vários sítios diferentes, negros e… e ela, ao princípio, estava muito satisfeita. Ela
pensava: “assim é que é”, porque não devia haver os tais guetos e não sei o quê. Agora,
passado uns anos que vive ali, diz: “bolas para a integração”. E já está farta, porque depois
em termos práticos, o que está a acontecer é tem música até às não sei quantas da manhã,
kizomba e não sei quê, não consegue dormir e tem imensos casos que ela vai contando. Lá
está o lado mau da integração.
Os meus pais vivem aqui perto de Lisboa numa zona mais recatada, uma zona mais rural já,
com alguma história. (…) Agora, começaram a chegar lá os primeiros imigrantes de Leste,
os primeiros brasileiros, que alugam as casas que estavam vazias e que se integraram na
comunidade, mais ou menos bem, a fazer algum trabalho que as pessoas não faziam, (…)
os nativos, a comunidade de lá, a vários níveis, social, monetário. Eu não sei se houve uma
integração também porque é um meio mais pequeno. Eu não sei se eles estão integrados, eu
sei que as pessoas cooperam, não sei se os integram.
[Em relação à existência de imigrantes no prédio] eu também gosto de ter a minha zona de
conforto. Não tenho nada contra os imigrantes, nem contra a maior parte das raças, mas
também gosto de… Já me basta quando vou a Angola, ou quando vou à Ásia estar integrado
nas suas sociedades. Cá gosto de ter pessoas com quem mais facilmente me dou, não tenho
de ter o medo de alguém me por o pé na porta, como já me aconteceu.
A ideia de integração parece estar ligada à cooperação com os imigrantes. Enquanto processo,
todavia, a integração tende a ser conjugada na terceira pessoa e de modo unilateral, ou seja, os
respondentes tendem a dizer que os imigrantes devem fazer ou não fazer algo para se integrar,
mais do que a enunciar o papel da sociedade portuguesa no processo.
(126) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
1.6. Portugal, país de brandos costumes
Depois das perguntas sobre as representações e relações entre Portugal e os seus imigrantes, o
moderador procurou elucidar se os participantes acreditam na imagem mítica de Portugal como
país de brandos costumes, e se acham que o racismo existe ou não em Portugal.
Os participantes do grupo de discussão de estrato médio-alto referem como alvo de mais discrimi-
nação em Portugal os negros. Os participantes não só o deram como facto assente como também
procuraram racionalizar sobre o assunto:
Foi o único grupo de imigração que tivemos nos últimos 30 anos. Só na última década é que
se abriu a imigração a outros grupos, não é?
Eu vivo numa zona extremamente calma, onde até há pouco tempo não havia problemas, e
agora a polícia anda constantemente com problemas com os negros. Porque eles resolveram
que aquilo era um sítio porreiro para ir buscar as coisas para levar, depois arranjam proble-
mas aos miúdos nas escolas, causam problemas na rua, causam problemas à noite, criou-se
um clima de insegurança que não é controlável. E também não vamos começar a matar os
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (127)
negros que lá aparecem, não é? Porque também não é a solução. Mas, eu vivo ali há 8 anos, e
há 4 anos aquilo era um paraíso. Atualmente é um desatino. E não é só ali, eu falo com colegas
meus e é um pouco generalizado.
(…) em Lisboa e à volta de Lisboa, e não sei se têm conhecimento disso, mas há escolas
onde noventa e muito por cento da escola é exclusivamente constituída por miúdos africanos,
exclusivamente. E isso, não é nada positivo em nenhum aspeto. (…) Não há escolas só com
os miúdos de Leste, escolas só com miúdos brasileiros e com africanos é muito complicado.
(…) quem tem miúdos não africanos, evita ao máximo pô-los nessas escolas, e por isso, são
cada vez menos os não-africanos e depois os professores não querem ir dar aulas para aí.
Eu acho que os brasileiros são, de alguma forma, discriminados de uma forma mais surda.
Os brasileiros. Vou explicar. Os brasileiros é o primeiro grupo a dizer que é muito discriminado
e não sei o quê, mas um exemplo do nosso dia-a-dia: nós tivemos aqui aquela miúda Alexandra
e tivemos uma reação da comunidade. Eu nunca vi uma reação da comunidade brasileira, que
é muito alargada e muito expressiva cá, afirmando-se relativamente a nada do que se passa.
Inclusivamente, eventos muito maus que se passam com a comunidade brasileira. Eu acho
que nesse sentido, a comunidade brasileira, enquanto comunidade, não faz o esforço de dizer
“alto, nós estamos aqui, nós somos uma comunidade séria”.
Os brasileiros, de maneira geral, como é que vou dizer isto, os brasileiros têm uma postura que
não é muito a portuguesa.
Nos restaurantes, os empregados são todos brasileiros e as pessoas comentam “só brasileiros”.
(128) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
No cômputo geral, o grupo de discussão não relata muitas manifestações significativas de racismo
na vida quotidiana. Refere insultos e provocações ouvidas ocasionalmente em locais públicos e
apenas um dos elementos se lembra da existência de um partido político que manifesta com
frequência opiniões contra os imigrantes. Esta ideia foi imediatamente contrariada por outro parti-
cipante, que disse que, hoje em dia, há demasiado “politicamente correto” e que, quando se fala
sobre minorias, temos sempre de tentar medir as nossas palavras, sob pena de sermos acusados
de desrespeito para com os valores de outras pessoas.
(…) hoje em dia, se houver qualquer diferenciação que atinja uma pessoa imigrante, seja
negro ou o que for, isso é evitado, é erodido, eliminado dos discursos. Voltando ao que dizia,
é uma coisa absolutamente herética, alguém defender que a civilização ocidental é superior
às outras. Isto é herético.
À medida que a discussão avançou, tornou-se evidente que embora o grupo de discussão tenha
adotado, de início, um tom mais controlado e cuidadoso, evitando prudentemente quaisquer co-
mentários que pudessem ser interpretados como racistas, quando a discussão “aqueceu”, emer-
giram intervenções mais espontâneas que acabaram por contradizer opiniões expressas anterior-
mente. Aproveitando-se deste desenvolvimento, o moderador passou a fazer perguntas diretas
que, embora mantendo a viabilidade da discussão, fizeram com que os participantes assumissem
posições inequívocas.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (129)
E até há ciganos políticos, mas não são aceites.
- Deverão existir quotas no mercado de trabalho para colmatar as desigualdades de acesso para
os ciganos? Embora o grupo de discussão concorde que os ciganos não possuem as mesmas
oportunidades do que os restantes portugueses, rejeita unanimemente as quotas argumentando
que elas são uma forma de discriminação.
- A imigração é uma ameaça aos valores culturais portugueses? A opinião é de que essa ameaça
não existe, de que os valores estão sempre a mudar e a imigração pode mesmo enriquecer esses
valores culturais.
- “A cor da pele não me interessa”. Concorda? Quando foi pedido ao grupo de discussão que
comentasse esta frase, a maioria dos seus elementos defendeu que a cor da pele não interessa.
Colocando a questão de uma forma mais pragmática, o moderador perguntou então se os par-
ticipantes veriam como problemático o casamento de um(a) filho(a) com alguém de outra cor
de pele. Só um dos participantes referiu que não gostaria que tal acontecesse, alegando fatores
relacionados com mistura de raças, e o resto do grupo de discussão reagiu com comentários
paralelos, surpresa e gargalhadas.
Não evitava, mas importava-me muito. (…) Eu não considero racismo este tipo de coisa. O
facto de eu achar que as raças não se devem misturar a nível físico. Eu não considero isso
racismo. Eu dou-me muito bem com os pretos e não tenho problema rigorosamente nenhum.
Agora, a nível humano, o convívio em si, a criação de algo que é a mistura de duas raças,
faz-me confusão.
(130) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Outro participante procurou confirmar o teor desta afirmação perguntando: “a um nível biológi-
co?”, ao que o primeiro participante respondeu: “sim, a um nível biológico”.
Nas sociedades formalmente anti-racistas é politicamente incorreto assumir este género de posi-
ção, o que explica a reação do resto do grupo de discussão a um tipo de discurso que configura a
manifestação do racismo: a rejeição da intimidade e a imagem do exogrupo como geneticamente
inferior são características do chamado racismo flagrante. Note-se que, nos dias de hoje, a for-
ma de racismo mais frequentemente encontrada é a subtil, tal como evidenciam investigações
realizadas em Portugal e noutros países da Europa. As novas formas de racismo são geralmente
encapotadas e indiretas. Caracterizam-se pela intenção de não violar o padrão de igualdade e de
não ameaçar o auto-conceito de pessoa igualitária (Lima e Vala, 2004), pelo que assumir posições
mais radicais entra na esfera anti-normativa e causa um maior impacto em contextos como este,
do grupo de discussão.
Aí, é que eu digo: depende. Se entender religião como uma seita completamente radical (…)
no que respeita à liberdade da mulher.
Se estamos a falar do Islamismo de uma pessoa do Paquistão, que tem uma mentalidade
terrorista, se calhar … Se estivéssemos a falar de uma pessoa do Tibete, ou de uma coisa
totalmente diferente, se calhar já não fazia.
Se ela aderisse ao islamismo e aceitasse ser mulher com outras todas do mesmo homem, se
calhar, isso chocaria, um bocado, com os nossos valores, não é?
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (131)
1.8. Conclusões gerais
• A questão do esforço surge repetidamente na acusação de que algumas minorias não que-
rem trabalhar ou integrar-se na sociedade portuguesa;
• Embora algumas minorias sejam vistas como potenciais fontes de ameaça física (sobretudo
os negros e os ciganos), um conjunto completamente diferente de categorias é encarado pe-
los participantes de estatuto médio-alto como constituindo uma ameaça económica (indianos
e chineses);
• Apesar de neste estrato social, detentor de elevadas habilitações académicas, ser expectável
uma maior subtileza, pudemos aqui encontrar um discurso de racismo flagrante;
• Foi expressa uma crítica que denuncia ressentimento em relação ao politicamente correto e
ao multiculturalismo;
Feitas as apresentações e aberta a discussão, a moderadora pediu aos participantes que referis-
sem quais as pessoas que lhes ocorrem quando pensam sobre outras etnicidades, religiões, cores
da pele e locais de origem. O grupo de discussão mencionou as seguintes categorias: negros,
africanos, chineses, indianos, asiáticos em geral, brasileiros e europeus de Leste.
(132) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Aparentemente, a compreensão da questão, apesar de colocada de modo bastante lato, concen-
trou-se na origem migratória. Apenas numa fase mais adiantada da discussão os participantes se
referiram aos muçulmanos e aos ciganos.
Quando questionados sobre as relações quotidianas com pessoas das categorias enunciadas,
a maioria dos participantes mencionou ter colegas – na escola, no local de trabalho ou em ou-
tros contextos (por exemplo, numa equipa de basquetebol) – de origem minoritária, geralmente
africana.
A título de contactos com pessoas de outras origens foram ainda referidos outros exemplos:
Eu tenho, sei lá, amigos chineses, uns três ou quatro (…) e o rapaz por acaso até é um grande
amigo.
Tal como aconteceu no grupo de discussão de estatuto social mais elevado, os jovens afirmaram
que a pertença a uma ou outra categoria de indivíduos não é condição moldadora do estabe-
lecimento de relações pessoais, uma vez que o que aproxima as pessoas são fatores como a
educação e os interesses partilhados.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (133)
[Sobre a amizade] Isso já tem a ver com a educação que lhes é dada em casa também, parte
muito das escolas, parte da educação familiar.
Eu posso ser amiga de qualquer pessoa (…) eu, para mim, o racismo é social, não tem a ver
com a cor ou de onde é que vêm, é o social.
Embora o discurso revele uma abertura ao estabelecimento de relações pessoais com pessoas
de outras etnicidades, quase todos os participantes mencionaram fatores que levantam entraves
a esta hipótese. Se, por um lado, afirmam que os interesses partilhados são mais importantes do
que o fenótipo e as diferenças culturais e religiosas, por outro, indicam que ter uma etnicidade
ou “cultura” diferente faz com que as pessoas tenham mais dificuldade em encontrar pontos de
contacto em termos dos interesses e maneiras de ser. Para o exemplificarmos, salientamos o
recurso frequente a casos de jovens de ascendência africana que nasceram em Portugal e têm
nacionalidade portuguesa:
Acho que essa diferença vai-se esbatendo, mas acho que acaba por se manter um bocadinho
porque os pais vieram de fora e mantêm as mesmas culturas.
Não sei, eu acho que aquilo que falava ainda há bocado dos filhos dos que vieram para cá,
torna-se, não generalizando, um problema da adaptação, porque eles não são de lá, porque
muitos deles nunca foram à terra, ao país de origem, ouvem os pais a falar de como é que
era a vida lá em África e como é que era e… [outro participante conclui o pensamento]. Mas
não o viveram.
(…) não se sentem bem em lado nenhum. E além de terem nascido cá, acho que cresceram
com o estigma de serem diferentes, porque apesar de tudo são vistos como diferentes, por-
que apesar de tudo estão num sítio que é o deles, mas ao mesmo tempo não é.
(134) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Este foi o único dos quatro grupos de discussão em que os participantes levantaram a questão da
identidade da chamada “segunda geração” de uma forma significativa. Provavelmente, tal deve-se
ao facto de, em resultado do seu escalão etário, terem um maior contacto e proximidade com os
indivíduos que compõem essa geração.
Os jovens centraram por completo a discussão sobre graus de afinidade com pessoas de outras
origens nos negros. Ao reparar nesse facto, a moderadora perguntou por que razão isso acontecia.
Se calhar em Portugal é, mas noutro país pode ser outra comunidade qualquer, por exemplo
em França, nós os portugueses éramos muito estereotipados, havia muita xenofobia, em
relação aos portugueses em França, na altura Bidonville e não sei quê… a gente fomos…
(…) a comunidade africana tá na nossa história por causa da guerra colonial e isso e acho que
a gente olha um bocado de lado por causa disso.
Eu falei mais na raça negra, porque é com quem eu tenho ligações e amizades e etc., de
resto não tenho…
Quando questionados sobre a possibilidade de um hipotético filho seu casar com alguém de outra
etnia, nacionalidade ou religião, os participantes responderam muito prontamente que, hoje em
dia, isso não coloca qualquer problema, tudo depende do caráter da pessoa em questão e não
dessas características.
Acho que a pergunta assim é estar mesmo a pôr um rótulo nessas pessoas, porque é a
mesma coisa que se me perguntassem, deixavas um branco casar com um filho teu dizia
depende, depende da pessoa, tal como com essa pergunta, depende da pessoa em questão.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (135)
Não me importava desde que eu como pessoa, visse ele como uma pessoa decente, não
havia problema nenhum. Decente, pronto…
Estas respostas são muito semelhantes às dadas pelos participantes de estatuto social mais
elevado. A semelhança vai ao ponto dos participantes mencionarem os mesmos aspetos como
possíveis obstáculos a um casamento inter-étnico dos seus hipotéticos filhos:
Em relação a filhos casarem com pessoas de culturas diferentes, eu por mim só tenho
um problema que é aquele problema de ser mulher, ter uma filha mulher casada com um
muçulmano, levar lá para o meio do Afeganistão e que tenha aqueles filmes todos, ou que
case com alguém de raça cigana e que tenha exatamente os mesmos problemas, era… a
liberdade…
Mas quando os costumes da outra raça entram em conflito com os nossos costumes, aí acho
que poderá haver problemas.
Eu é mais pelo lado da minha tia, a minha tia é racista e ela assume-se mesmo como racista.
Tudo o que seja diferente, ela não gosta, que é uma coisa que em pequenina me fazia muita
impressão. Agora acho que ela tá melhor, mas é um assunto em que eu não posso falar com
ela porque senão, há discussão. Mas é, por exemplo, estavam a construir um bairro novo ao
pé da casa dela e ela tava em pânico porque iam para lá ciganos e pretos e… e tia, qual é o
mal? Tipo, se se souberem comportar e forem como deve ser, qual é o mal? Ela assim: “Era só
o que me faltava, não me vais dizer agora a seguir que vais namorar com um preto”. Seria um
problema, por isso! E até mesmo a minha mãe, já uma vez me disse: “ai, por favor, netinhos
escurinhos é que não, cabritinhos não”, já me saiu com essa, cabritinhos não.
(136) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Foi só nesta altura do debate que os participantes fizeram as primeiras referências aos ciganos
e aos muçulmanos, categorias que tinham sido esquecidas aquando da enumeração inicial.
Questionados diretamente sobre a sua afinidade com pessoas dessas minorias, o grupo de dis-
cussão assumiu uma postura de relativa indiferença para com os muçulmanos e de hostilidade
perante os ciganos. Tal como nos restantes grupos de discussão, esta relação – ou a sua ausência
– com os ciganos é justificada como consequência direta da postura dessa minoria, e não assu-
mida como uma rejeição pessoal do Outro.
Na minha experiência pessoal eu não gosto muito deles, mas eu sei que não são todos, por
isso não vou generalizar, tive más experiências com eles quando era mais pequeno, ainda ho-
je não gosto da maior parte deles, mas sei que deve haver ali alguém que é bom, de certeza.
Não se trata de ter dificuldade em relacionar-me com eles, acho que eles é que têm dificulda-
de, alguns deles, em relacionar-se com as outras pessoas, eles têm uma cultura muito forte,
eles têm costumes muito fortes mesmo.
Após a abordagem inicial à identificação de pessoas de outras etnicidades, aos laços emocionais
e afinidades dos participantes para com essas minorias, a moderadora introduziu a questão da
integração das minorias na sociedade dominante. Começou por perguntar qual das categorias já
mencionadas se estava a sair melhor em Portugal.
Economicamente, os chineses.
Eu acho é que os chineses também vêm muito para cá com uma perspetiva comercial, eles
vêm para cá fazer comércio, é mais esse o objetivo deles, enquanto que se calhar nas outras
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (137)
raças, vá, vêm para cá numa outra perspetiva, se calhar que é mais de carreira, criar qualquer
coisa, mas não necessariamente a nível comercial, de comércio, e os chineses é muito mais
para essa vertente, acho que há aí uma diferença.
Eu acho que ainda só vi chineses mesmo na loja dos chineses, acho que nunca vi chineses
a passear na rua.
Eu acho é que em termos de integração, se calhar os grupos que vêm da Europa de Leste,
são os que se estão a conseguir integrar melhor. Na minha opinião eles vêm de países muito
pobres e viviam muito mal, e então quando chegam aqui, encaram isto como uma mudança
de vida, uma oportunidade. Exatamente, são os miúdos que vão para a escola e ao fim de
três meses aprendem a falar português, que os pais, tipo, eram médicos na terra deles, mas
que vêm para cá, dispostos a fazerem qualquer coisa nem que seja limpar o chão mas que
mesmo assim não desistem, se calhar, de se tentar integrar de forma a conseguirem exercer a
profissão deles cá. Eu acho que em termos de integração são os que se estão a safar melhor.
Um dos participantes mencionou os ciganos. Embora isso tenha sido dito em tom irónico, corres-
ponde a uma ideia que surgiu no grupo de discussão com pessoas de estatuto social mais baixo.
(138) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
É assim, os ciganos também vivem bem, andam de feira em feira, se calhar, se formos a ver,
têm brutos Mercedes e Volvo, e em termos económicos também estão muito bem, se calhar
melhor do que muitos de nós em termos financeiros…
A moderadora perguntou então aos participantes se achavam possível associar diferentes atribu-
tos aos portugueses etnicamente maioritários e às várias minorias e nacionalidades estrangeiras
mencionadas até então, e, em caso afirmativo, quais as características que atribuiriam a cada
categoria.
2.4.1. Brasileiros
Embora fosse pedido para caracterizar os portugueses em primeiro lugar, o início da discussão foi
marcado pelos atributos associados aos brasileiros. Esta categoria reuniu mais atributos negativos
do que positivos.
Eu acho que, só uma opinião, eu acho que nós estamos a falar dos brasileiros, mas se calhar,
acho que é por haver muitos, porque, não sei, da maneira como nós estamos a falar dos ou-
tros por serem diferentes e assim, e os brasileiros não são assim tão diferentes. É um bocado
como se… Vão muitos portugueses com cursos superiores para o estrangeiro, vêm para cá
muitos brasileiros, acho que por exemplo (…), não sei, acho que os brasileiros se calhar são
um bocado um pouco à parte em relação aos outros.
Eu não concordo muito, porque normalmente quando dizem brasileiros, e não leves a mal
por ter uma namorada brasileira, mas normalmente, até porque há brasileiros e brasileiros, lá
está, é o nível social, eu, para mim, o racismo é social, não tem a ver com a cor ou de onde
é que vêm, é o social. Mas normalmente quando dizem assim “ah não sei quê, é brasileiro
ou brasileira” … as brasileiras associo-as logo, como é que eu hei-de explicar [risos], posso
falar assim um bocado mais à-vontade? São assim, muito oferecidas, pelo menos, e eles são
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (139)
muito malandrecos, percebes? Metem-se muito, são muito comunicativos, é o social deles,
eles dão-se todos muito bem uns com os outros e aquilo é tudo um “forró”.
Tal e qual, é uma mentalidade mais aberta e acho que é um bocado por isso que estão ali os
brasileiros, é, tem a ver com esses brasileiros.
Aquilo que eu já ouvi dizer, muitas vezes, em relação a eles é que eles são falsos.
Exato, sim.
Pois [falsos], (…) eles fazem-se assim muito amigos, muito, vamos ser todos amigos e depois
vão a outro lado e já falam mal de ti e coisas assim do género.
E oportunistas.
2.4.2. Chineses
Com base nas categorias identificadas pelos participantes assinaladas no flip chart, estes optaram
por seguir a discussão com uma abordagem sumária aos atributos associados aos chineses.
Também este género de caracterização evidencia algum distanciamento face a esta minoria:
Trabalhadores.
Comerciantes.
(140) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
2.4.3. Africanos
Os africanos, barulhentos, eles gostam de falar alto (…) eles juntam-se em grupo e falam
muito, estejam onde estiverem.
Estrilhosos mesmo.
Festivos.
Festivos, sim, era isso que eu ia dizer, eles são muito alegres, e os brasileiros também, nesse
aspeto, também são pessoas muito alegres, muito para a festa.
Às vezes, ouve-se falar da raça negra que são um bocado… preguiçosos (risos). (…) Eu, por
exemplo acho isso, porque farto-me de ouvir as pessoas dizerem isso.
Isso tem muito a ver, lá está, com a cultura das pessoas. Por exemplo, a raça negra, muitos
dos países africanos têm um calor insuportável. É impossível eles terem o mesmo empenho
a nível… não é, se calhar… como é que hei-de explicar… é impossível uma pessoa que esteja
em África com 40 graus conseguir fazer o mesmo que uma que está com muito… muito me-
lhores condições cá em Portugal, ou noutro sítio qualquer. Portanto, acho que isso também
tem a ver com… com outras características e com a envolvência.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (141)
Os participantes dos outros grupos de discussão também atribuíram aos negros uma propensão
para atividades festivas e para a formação de grupos numerosos. O grupo de discussão de estatuto
social médio-alto atribuiu também aos negros uma tendência para a preguiça associada à sua
origem geográfica.
2.4.3. Muçulmanos
Os jovens não dedicaram muito tempo à “descrição” dos muçulmanos e todas as referências so-
bre esta categoria relacionaram-se com o aspeto religioso. Os outros grupos de discussão também
fizeram essas associações, embora tenham sido de cariz mais negativo do que as aqui analisadas,
que provêm de um escalão etário diferente.
Bastante religiosos.
Religiosos, acaba por ser também um bocado fechados por causa disso, nós não somos uma
boa influência para eles.
2.4.4. Portugueses
Por esta altura, um dos participantes sugeriu que retomassem a questão dos atributos associados
aos portugueses, que até então só tinham sido caracterizados pelo seu desembaraço.
Preguiçosos.
(142) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
preguiça aos portugueses. É também de referir que os participantes não associam quase nenhu-
ma característica positiva ao endogrupo, e que a única exceção é apresentada não como um auto
atributo mas como uma perceção por parte de pessoas estrangeiras.
2.4.5. Ciganos
Entretanto, os participantes começaram a falar sobre os ciganos, sempre com algum grau de
distanciamento, quase como se os ciganos não fossem “verdadeiros” cidadãos portugueses:
Quer dizer, se considerarmos que a raça cigana vem da Roménia, acho que podemos distin-
guir [os imigrantes de Leste].
Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam… tipo, se pensarmos nos africanos, em
África eles estão no sítio deles. Pronto… enquanto os ciganos, não têm o sítio deles… ou seja,
são sempre estranhos onde quer que estejam.
Sim, até porque eles têm o grupo deles a defender, os ciganos, normalmente não se pode…
por exemplo, uma cigana não pode casar com um português.
Os jovens atribuem aos ciganos traços que também foram associados a esta minoria por partici-
pantes dos outros grupos de discussão, particularmente no que concerne à sua atividade mercan-
til, à desonestidade e ao forte sentido de clã com que são percecionados.
Bons negociantes.
Eu acho que os ciganos são muito a nível familiar, acho que em relação a “grupos” acho que
os ciganos, ainda são mais, têm laços mais fortes.
Porque senão qualquer dia a raça deles deixa de existir e há uma coisa a manter, e então,
minha querida, tens catorze anos vais casar aqui com o Lelo, que é para isto não acabar, eles
têm muito essa coisa.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (143)
(…) aos sábados à tarde, grandes festas à porta das prisões, vão visitar as famílias.
Eu associo aos ciganos barulho, porque eles são muito barulhentos, muito intensos nas coi-
sas, se estão chateados gritam, se estão a chorar, choram baba e ranho.
Associo um bocado também com pedintes, quando andam as mães com as crianças todas
e há aquelas histórias que as crianças que são alugadas e passadas de mão em mão e não
sei quê, para andar a pedir.
À semelhança do grupo de discussão de estrato médio-alto (bem como dos outros grupos de
discussão, conforme o leitor terá oportunidade de verificar nas análises das restantes discussões),
os jovens caracterizam os europeus de Leste como muito trabalhadores. São a única categoria em
relação à qual os participantes insistem na ideia de sacrifício pessoal na esfera do trabalho. Isto
pode ser fruto da ideia muito difundida segundo a qual os europeus de Leste são sobrequalificados
para os cargos que ocupam em Portugal.
Eu acho que até os da Europa de Leste, concretamente, são os mais humildes, são mais
sujeitados.
Sacrificados.
Por experiência pessoal, diria que as pessoas da Europa de Leste são, se calhar um bocado
oportunistas, mas não queria estar a generalizar muito, porque foi uma experiência particular,
específica.
(144) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
portuguesa e as minorias em questão é de cooperação ou de competição. Resumindo as inter-
venções daí resultantes, a ideia principal é a de que há mais competição do que cooperação.
Para estes jovens, os migrantes chegam principalmente para ocupar postos de trabalho que não
interessam aos portugueses.
Eu concordo com essa ideia que fazem muitos trabalhos que os portugueses simplesmente
não aceitam e recusam esse tipo de trabalhos.
(…) fala-se muito na mão-de-obra que é mais barata e não sei quê, eu acho que isso também
é um fator importante, eu acho que não podemos dizer que os portugueses não aceitam
esses trabalhos, porque grande parte dos construtores e isso, vão buscar os imigrantes de
Leste, que são baratos em termos de salários.
Por exemplo, em termos das brasileiras, eu ouço muito a trabalhar nas lojas dos centros
comerciais e assim, acho que isso também se deve um bocado, tudo bem que elas se calhar
não têm formação para fazer outros trabalhos, mas muitas vezes não têm, são raparigas
novas que não têm família cá, por isso sujeitam-se àquele tipo de horários, trabalhar aos
domingos, aos sábados, à noite, se calhar também não têm aquela casa com família para
onde ir, têm o dinheiro para mandar ao fim do mês, para casa, para os irmãos mais novos,
muitas vezes.
Face a tais afirmações, a moderadora insistiu numa resposta clara: é a competição ou a coopera-
ção que melhor descreve a relação entre os portugueses e os imigrantes?
Depende dos setores, também. (…) Sim, acho que num setor mais primário, como construção
civil e isso, trabalhos sujos, como se pode dizer, acho que aí há uma competição, porque
como sabem as taxas de desemprego também são bastante elevadas, e acho que há uma es-
tagnação nesse setor e (…) há uma competitividade grande e talvez uma colaboração depois
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (145)
mais tarde a um setor mais elevado, de empresas e assim.
Eu acho que eles [imigrantes] são um bocado ignorados, acho que ficam com os restos e
acho que nós andamos, ainda os criticamos por causa disso.
Eu digo que não é competir, porque nós reclamamos muito deles, mas se calhar eles estão
com trabalhos que nós não aceitaríamos, ou seja, eu digo que não é competir por causa
disso, não nos estão a tirar trabalho a nós, penso eu.
Estão sem trabalho, pelo menos uma parte deles, porque o Estado dá um forte apoio, dá ren-
dimentos suficientes. (…) Há aqueles que não se sujeitam ao trabalho que nós não fazemos
e há aqueles que se sujeitam, e há aqueles que não se sujeitam e preferem viver um bocado
à custa do contribuinte.
Só um dos participantes expressou esta ideia de privação relativa. Nas restantes discussões essa
ideia emergiu entre os participantes de estatuto social médio-baixo. Por outro lado, a ideia de que
os imigrantes não competem, limitando-se a ficar com os trabalhos dos níveis inferiores do merca-
do laboral, foi previamente expressa pelos participantes de estatuto social médio-alto.
Pelo menos acho que é isso que somos levados a acreditar na escola, nas aulas de História.
Como não podemos voltar atrás no tempo e ver se isso era mesmo verdade, acho que é aquilo
que nos levam a acreditar.
(146) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Nessa época, se calhar, provavelmente foi assim, hoje em dia não se nota tanto essa diferen-
ça. Acho que não somos assim tão diferentes dos ingleses em relação a outras raças, porque
há muita mistura de raças em todos os países, não há um país que nós possamos dizer que
aqui não há uma diferença enorme de raças desde africanos, chineses, da lista toda, acho
que há um pouco de tudo em todo o lado.
(…) estava a falar da época da expansão, dos descobrimentos dos portugueses. Acho que,
pelo contrário, acho que foram os outros povos que tentaram aprender alguma coisa connos-
co. Nessa altura, pelo menos, nós criámos bastantes colónias, nós fomos até ao outro lado
do mundo, acho que, se alguém aprendeu, não fomos nós, foram os ingleses, acho que os
ingleses eram assim mais bárbaros, acho talvez, ou os franceses.
Eu acho que não houve uma preocupação tão grande de Portugal, como houve, por exemplo
com os ingleses e com os franceses, pronto, e as colónias deles, nós respeitámos até bas-
tante, as culturas dos sítios onde chegámos, por exemplo, se pensarmos que os espanhóis
chegaram ao México e deram cabo daquelas pessoas que viviam ali e os Aztecas e os Maias
que já não existe nada hoje em dia, porque eles exterminaram tudo, acho que nós até nem
fomos assim…
Os aspetos enunciados pelos jovens relativamente aos brandos costumes são todos eles focados
no passado colonial. A situação presente foi abordada quando a moderadora perguntou aos jovens
se consideram que há pessoas discriminadas em Portugal, e se sim, quais.
A maioria dos jovens começa por referir os negros como os mais discriminados em Portugal. Ao
tentarem perceber as razões, evocam fatores como a sua expressão na sociedade portuguesa,
seja em termos numéricos, seja no que se refere à sua maior visibilidade. Apesar de o número de
nacionais de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa que se encontram entre os imigrantes
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (147)
mais representativos em Portugal em 200853 ser inferior ao número de brasileiros, por exemplo, a
perceção dos jovens é de que há mais africanos. Este aspeto encontra, provavelmente, explicação
no facto de os jovens residirem na Área Metropolitana de Lisboa, que coincide com a região de
maior concentração de imigrantes oriundos do continente africano.
Quando estava em Coimbra acho que as pessoas da Europa de Leste eram em maioria. Não há
assim tantos negros como isso. E por isso sentia que eles é que eram os marginalizados. Eles é
que eram a minoria. “Ah… foi um ucraniano”, visto como racismo. Enquanto que, se calhar, em
Lisboa as pessoas de raça negra são muito mais e, por isso, são essas que são mais apontados.
Os jovens referem ainda como causa de discriminação dos negros o facto de estes serem aqueles
que “arranjam mais problemas”. Note-se que este aspeto foi também sugerido pelos participantes
do grupo de discussão de estrato médio-alto. Ambos os grupos de discussão encontram uma justifi-
cação intrínseca ao exogrupo para a sua própria discriminação, isto é, a responsabilidade é atribuída
à vítima.
(148) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
É curioso notar que este argumento, de culpabilidade do discriminado, aparece em paralelo com
a importância dos media na difusão de imagens associadas ao Outro. A esse propósito os jovens
fazem notar que em Portugal os muçulmanos não são alvo de muita discriminação por haver
poucos, porque a imagem que a televisão passa deles não é nada positiva.
Aí, se calhar entra um bocado os media, não é? Aquilo que eles nos transmitem. O racismo
que poderá haver, eu falo por mim, dos indianos e dos muçulmanos, das outras pessoas, é
aquilo que vêem na televisão, daquilo que eles fazem nos outros países… e não cá. É essa a
razão maioritária que a gente tem para dizer seja o que for deles.
Mas se houver um dia em que dois muçulmanos vão para um banco e sequestrem as pesso-
as que lá estão, acho que se calhar a partir desse dia… a atenção para eles…
A Europa de Leste e os de raça negra, também. Acho que estamos a ser constantemente
bombardeados com notícias com eles, como os maus da fita.
Há uma data de assaltos por Portugal inteiro associados a pessoas, a grupos de Leste, à
máfia de Leste e essas coisas…
Basicamente, é em função de onde cada um de nós vem que tem a sua opinião em termos
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (149)
de qual é a raça que é crucificada, entre aspas.
Filmes, séries e isso tudo. Se calhar, sempre que… acho que é aquilo que é mais universal, é
o racismo mais universal, se calhar é o dos brancos contra os negros.
Se calhar, também os negros são os mais inadaptados, digamos assim, à nossa cultura.
Entretanto, questionados acercas dos discursos racistas que costumam presenciar no quotidiano,
os jovens referiram estar normalmente associados a aspetos relacionados com a criminalidade e
a desordem pública:
Criminalidades.
Sim, normalmente dizem: “Só fazem cá porcaria, que vão mas é para a terra deles”. Eu, pelo
menos, é o que eu ouço mais: “Ah, pois, já andaram aí a bater não sei em quem, assaltaram
isto, eles que vão mas é fazer porcaria para a terra delas”. Há muito essa coisa de que se é
para fazerem porcaria que façam na vossa terra. Deixem a minha sossegadinha. Há muito
essa ideia.
É só mesmo dos assaltos. Que eles vem para cá para roubar as coisas… tipo que os nossos
pais têm trabalho em ganhar. Que fazem esforços para nos dar e eles vêm e roubam.
É um bocado isso: “vão para a vossa terra fazer a porcaria que quiserem que aqui não” (…).
O que eu ouço mais é mesmo isso, a criminalidade e de não quererem a criminalidade cá
em Portugal.
Também se referiram a discursos racistas que têm por base a privação relativa, acerca dos benefí-
cios sociais e o desequilíbrio entre aquilo que os imigrantes dão ao país e que recebem em troca:
(150) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
[Alguém disse que os imigrantes vêm para cá para trabalhar, e que não se podem dar ao luxo
de ser preguiçosos. Mas há esse discurso de que eles vêm para cá viver à nossa custa…]. Os
da raça negra acho que sim (…), porque nós damos casas, damos tudo e eles não nos dão
nada, entre aspas. Não dão nada positivo para o país.
São eles que nos constroem as nossas casas, quer dizer, eu acordo todos os dias à 6 da
manhã e vejo um prédio em construção. É só raça negra que trabalha predominantemente.
Acho que têm algumas facilidades sociais, também. Também isso favorece um bocado a
indisciplina dos imigrantes (…). Mais do que, por exemplo, os nacionais. Basta olhar para a
faculdade: o imigrante paga metade das propinas que o nacional paga. Têm mais facilidades
e nem sempre as aproveitam.
Sim, e há muitos acordos com os PALOP (…) que precisam de 10 para entrar na faculdade…
em qualquer curso não mas na minha faculdade entram com 10, 11 e as outras pessoas
entram com 14, 15, 16.
É um contingente especial.
Também ouvimos muito, normalmente às pessoas com mais idade: “Ah, essas brasileiras
são umas ordinárias.”
Eu acho que também [se deve] é um bocado à comunicação, que é aquela coisa das boites e
das brasileiras que roubam os maridos.
Muito sensacionalista. Acho que também os media não são muito bons, neste momento (…). Há
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (151)
muito sensacionalismo, na televisão. Acho que já se perdeu um pouco a objetividade.
Nesta fase da discussão os participantes jovens de estrato médio-médio concentraram muito a ideia
de discursos racistas sobre a população imigrante. À medida que iam apresentando as suas ideias
iam defendendo que não se trata daquilo que pensam, mas daquilo que costumam ouvir. No caso
particular da privação relativa, e do acesso dos imigrantes à universidade, o discurso apareceu mais
na primeira pessoa.
A moderadora avançou então para as questões diretas, procurando a opinião dos próprios participan-
tes sobre diversos assuntos.
[Sobre os ciganos arranjarem emprego] Mas isso depende. Depende, se calhar, aliás nós todos
ligamos os ciganos vestidos de preto, cabelo comprido, chapéu. E assim não podem ir concorrer
a um cargo, sei lá, de chefia, com um chapéu.
Claro, claro. Sim, mas até pela cor de pele. Eu tenho a cor de pele, acho eu, de um cigano
[risos]. Sou meio escurinho, não é bem escuro mas pronto… e, às vezes, se calhar sinto-me um
bocado discriminado em relação a isso. Já ouvi professoras minhas a chamarem-me cigano,
quando não sou, não é. A sério, são vivências. E não tenho nada a ver com os ciganos. Só se
for por falar alto [risos].
Eu andei com vários deles na escola e a minha opinião é a mesma da dele. Eles fazem as
oportunidades deles. Eles estão na escola enquanto é preciso. E depois vão à vida deles. Eles
próprios não estão interessados, na sua maioria, nas mesmas oportunidades que nós estamos.
(152) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Eles, como crianças, não são levados a ter objetivos. Objetivo no nosso entender de objetivos.
Os objetivos deles, da cultura deles, não se inserem nos nossos e não passam por ter o
género do emprego que estamos a falar, por ir para a universidade, tirar um curso superior,
não passam por aí.
Além disso, o discurso dos participantes do grupo de discussão composto por jovens remete ainda
para a “não portugalidade” dos ciganos. Esta expressão de alteridade surgiu também noutros
grupos de discussão.
Mas, por exemplo, se nós formos a ver, se eles, deixa cá ver, se eles forem concorrer a um
emprego, numa empresa. Claro não chegam lá, se calhar. Não chegam lá. Não conseguem
ter os estudos para isso. Mas se eles fossem concorrer, eu tenho quase a certeza absoluta
que se eles tivessem entre, não vou dizer um português normal, não é assim que se deve
dizer, e um cigano, eles iam escolher o português normal. Quase de certeza.
Mas eu acho que o que acontece com os ciganos é que eles são, digamos, estrangeiros em
qualquer sítio onde estejam. Ou seja, eles não têm o espaço deles, eles estão num mundo
à parte.
Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam, tipo, se pensarmos nos africanos, em
África eles estão no sítio deles. Pronto, enquanto os ciganos, não têm o sítio deles, ou seja,
são sempre estranhos onde quer que estejam.
Neste contexto surgiu a questão da discriminação de que os ciganos são alvo. À semelhança do
que verificámos anteriormente relativamente à perceção dos jovens sobre os negros, a responsa-
bilidade da discriminação é atribuída aos ciganos. Esta visão, de que os indivíduos desta minoria
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (153)
são vítimas de racismo porque merecem, ou porque não se esforçam por não ser, é comum a
todos os grupos de discussão.
Sobre os ciganos, os jovens referiram ainda um aspeto interessante que, do ponto de vista da
formação de estereótipos é de extrema importância, designadamente a forma como a cultura
popular incute na sociedade o medo dos ciganos:
Eu acho que as pessoas associam aos ciganos um bocado, o medo. Desde pequeninos que,
por exemplo os nossos pais, havia muito aquela coisa: “Ah, se não comes, olha que eu chamo
o cigano” [risos]. Mas era, os meus avós faziam muito isso mas, por exemplo, a minha avó
fazia isso ao meu pai e resultava. O meu pai comia tudo. (…) Mas as pessoas continuam a
associar muito o medo aos ciganos.
Eu lembro-me de andar na escola e dizerem-me: “Ah, não faças nada àquele que ele é cigano
depois até vem a avó com a bengala”.
- A cor da pele é de grande importância para a convivência. O que é que acham? O grupo de
discussão foi unânime na resposta que, para eles, a cor de pele não é uma condição para estabe-
lecer relações de convivência. Contudo, admitem que existe discriminação e racismo em função
da mesma e que, por exemplo, em situações de entrevistas de emprego esta pode ter o seu peso.
- Tanto os imigrantes, como as minorias étnicas, recebem mais do que contribuem para este país.
As opiniões dos jovens sobre esta matéria foram muito divididas: cerca de cinco pareceram con-
cordar com a afirmação, dando vários exemplos dos benefícios
54 A esse propósito, veja-se, por que os imigrantes recebem em detrimento dos portugueses, e
exemplo, a definição de cigano, no
dicionário Priberam online. Consultado
os quatro restantes elementos mostraram ter muitas dúvidas em
em 12 de julho de 2010, a partir de: relação a isso, tentando apresentar argumentos contra a ideia.
http://www.priberam.pt/DLPO/default.
aspx?pal=cigano.
(154) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Eu acho que todos os casos de que já falámos, das casas que recebem, os casos da facilidade
que têm na Universidade, acho que em tudo fica, não sei, acho que são postos à parte e dão-
-lhe vantagens, muitas vezes. Tudo bem que também dão coisas ao país, só que dão coisas
boas, mas também dão coisas más.
Grande parte das vezes, acabam por se acomodar à qualidade a que têm direito, e depois
quanto mais tiverem, quanto maior for o agregado familiar, mais direitos têm à casa, mais
recebem e acabam por se acomodar, em vez de produzir. (…) Os portugueses, mesmo ha-
vendo estes apoios à natalidade, os portugueses não é por aí, por ter mais um filho ou dois
que vai entrar mais dinheiro em casa. Acho que não é tanto por aí. (…) Os imigrantes pensam
mais no dinheiro que concretamente no seu agregado familiar. Criam um filho durante 2 ou
3 anos e depois entregam-no à vida. O português tem mais consciência que um filho é para
toda a vida.
Acho que estou dividida. Porque o que é que querem dizer com recebem? É monetário ou é
outra coisa? É porque não sei o que eles recebem. Não faço ideia do que é que eles recebem.
Se recebem ajudas, se recebem em relação ao resto, se eles trabalham, então estão a contri-
buir para alguma coisa no país e, nesse caso, então têm direito, também têm direito. Agora,
não sei até que ponto é que as coisas que eles recebem, se é igual àquilo que eles fazem,
porque não faço ideia daquilo que eles recebem.
Há portugueses que não têm casa. Quer dizer, acho que, nesse caso, então, há racismo entre
nós. Se estão a dar prioridade aos imigrantes, em relação a cá, então acho que…
Pois infelizmente acho que sim. Por exemplo, uma casa, por exemplo. Se for um português,
ficará sempre para trás de, por exemplo um cigano. Um cigano é capaz de ter aquele poder de
persuadir a assistente social, por exemplo, e consegue ter casa. O português não consegue.
É um facto.
Sim, eu acho que há uma data de ajudas que recebem e os portugueses não tanto.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (155)
Eu não concordo muito com a afirmação. Mas eu acho que a partir do momento em que eles
dão alguma coisa, têm o direito de receber algo em troca.
Só que se assim fosse (…) também não havia tanta gente, tantos imigrantes brasileiros, e da
Europa de Leste a viverem nas ruas. Essas ajudas podem existir, e de certeza que existem,
mas não são assim ajudas tão significativas para fazer deles o melhor.
Mas eles têm um prazo para estarem cá. Do género: “Estás cá, mas se não te der emprego,
e se tu não contribuíres em nada para a sociedade vais-te embora.”
E essas pessoas, se calhar, que estão na rua são pessoas que não estão cá legalizadas e, por
isso, não recebem essas ajudas.
Não sei e também acho, por exemplo nas igrejas (…) quando começaram a vir imigrantes
europeus, da Europa de Leste (eu volto a falar de Coimbra porque era onde eu vivia e assisti
a isso), quando eles chegaram, começou a haver nas igrejas, criaram mesmo um instituto
à parte, construíram de novo para as pessoas irem lá doar roupas e para eles terem aulas
de português. Apareceram aulas de português para os imigrantes de Leste, por todo o lado,
gratuitas e depois (…) aquilo era para dar roupa aos imigrantes. Então e os portugueses que
não tinham? Para dar comida aos imigrantes. E os portugueses que não tinham? Onde é que
iam buscar? Não sei, começámos a focalizar demasiado nos que vêm de fora e esquecemos
as pessoas que cá estão.
Por acaso não concordo. Eu acho que existe muita gente, muitos portugueses com dificulda-
des e etc. Mas quer dizer, os estrangeiros vêm para cá, vêm tentar e vêm esforçar-se. E os
portugueses também têm que se esforçar, as coisas também não caem do céu, não é? E, se
por um lado, são criadas condições ou são dadas condições especiais para os estrangeiros,
também existem cá coisas para os portugueses, como as casas, essas coisas todas.
(156) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Quando questionados acerca das minorias a quem se aplica o desequilíbrio entre “dar e receber”
algo à sociedade, os jovens que concordam com essa visão optaram por excluir os chineses, assu-
mindo que estes não são dos imigrantes que se “aproveitam” de benefícios sociais sem trabalhar.
- Tanto os imigrantes como as minorias étnicas devem manter a sua identidade e cultura de origem.
Qual a vossa opinião? A ideia unanimemente defendida pelos jovens foi que todas as pessoas
devem manter a sua cultura original, fazendo, no entanto, esforços para que esta não interfira na
convivência com as outras pessoas. Assim, no caso dos imigrantes, deve haver uma adaptação dos
hábitos culturais ao país de acolhimento. Esta questão levou a uma acesa discussão sobre o uso
da burca das mulheres muçulmanas em países como Portugal. As opiniões foram muito díspares:
alguns jovens mostraram-se favoráveis à sua proibição – por ver na burca uma limitação à liberdade
feminina – outros optaram por uma visão de maior relativismo cultural defendendo que, não pode-
mos, à luz dos nossos valores, impor normas que interferem com as crenças de outras pessoas.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (157)
• De acordo com o discurso dos jovens, a educação e o status social são fatores mais impor-
tantes na constituição de relações com terceiros do que os traços fenotípicos;
A discussão teve início com a apresentação dos participantes. De seguida, o moderador apresen-
tou o exercício em que pedia aos participantes que apontassem as pessoas que lhes ocorriam
imediatamente ao pensarem em pessoas de diferentes nacionalidades, etnias, culturas, religiões,
na sociedade portuguesa. As primeiras menções foram os africanos e os brasileiros. Para além
destas categorias, foram ainda mencionados os europeus de Leste, indianos, ciganos, chineses,
ucranianos, romenos e russos.
À semelhança do que havíamos já verificado nos grupos de discussão anteriores há uma refe-
rência aos africanos sem particularização da sua origem. Já no caso dos europeus de Leste,
este grupo de discussão refere-os em bloco, mas em simultâneo individualiza as categorias de
ucranianos, russos e romenos.
(158) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.2. Relacionamento com imigrantes e minorias étnicas
No que se refere à socialização com pessoas de origem minoritária, as respostas dos participantes
de estatuto médio-médio, permitem concluir que a maioria dos elementos tem alguma relação
com minorias, quer num contexto profissional, quer num contexto de vizinhança.
Todos os dias.
Em relação a mim, na minha casa (…). No meu prédio, tenho vizinhos brasileiros. Comunidade
brasileira.
No meu bairro, no Prior Velho, quando ando no comboio, na Linha de Sintra (…). São mais
negros.
Eu também vejo mais negros, na linha de Sintra, em Massamá. E tenho amigos brasileiros.
Eu trabalho com uma pessoa negra, africana, tem filhos negros. É cabo-verdiana.
Mulatos. Eu, por acaso, aliás, não é por acaso, mas tenho irmãos que são mulatos. Tenho
uma relação, foram criados pequenos e, portanto, não podia deixar de falar neles.
Apenas dois dos participantes, um fabricante de selas e um cozinheiro, alegaram não ter quais-
quer relações com imigrantes ou outras minorias.
Quando lhes foi perguntado com quais das pessoas previamente referidas simpatizam mais ou
menos, os participantes deram respostas bastante diversas. Ainda assim, a conclusão geral que
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (159)
nos é permitido tirar indica que os negros são o agrupamento que suscita menos simpatia, estan-
do relacionado, na mente dos participantes, com a criminalidade e a violência, um conjunto de
associações que também se verifica no caso dos ciganos, acusados de não fazer qualquer esforço
de integração.
Eu vivo há 48 anos no Prior Velho. Havia o primeiro grupo de ciganos, só viviam ciganos no
Prior Velho. Se calhar havia 2000 ou 3000 ciganos, hoje existe 1 ou 2. Criavam-nos proble-
mas nos cafés, então se bebiam ou qualquer coisa… Não assaltavam as pessoas porque
eram fixos, viviam lá, estudavam, andavam nas escolas. Agora, vimo-nos livres dos ciganos
quando foi feita a Expo, foram feitas obras, deram-lhes casa noutros sítios, aliviaram nesse
período. Entretanto, entrou a raça negra que, para mim, é duas vezes pior. Até agora nunca
me criaram problemas, mas dentro do bairro têm criado sérios problemas. São assaltos
constantes, desordens todos os dias, não há hipótese. Emprego zero, são assaltos constan-
tes. (…) Está a tornar-se muito difícil viver no bairro. Não são aqueles mais velhos, esses não
criam problemas, são os mais novos, é a juventude. É um grupo que falta ao respeito a toda
a gente, até aos próprios da raça deles. Eles reuniram, há poucos dias, connosco também, no
pavilhão, também foi o Presidente da Câmara de Loures lá e o próprio presidente sentiu que
os próprios da raça deles já não estão a aceitar aquela juventude.
Em relação aos negros, eu vivo e trabalho muito próximo da antiga Quinta do Mocho. Eles
estavam a dar muitos problemas ali.
Eu não tenho nada contra ninguém. Diria que, às vezes, como não gosto de conflitos, fico com
uma pequena dúvida ao nível dos ciganos, embora não tenha…
Para mim, os ciganos é a pior raça. São os parasitas da sociedade, não fazem nada. 90% de-
les ganham aqueles subsídios que dão agora e muitos deles com bom cabedal para trabalhar.
Não gosto muito de negros. O meu filho também já foi assaltado no Campo Pequeno, só
não foi de arrasto, porque não calhou. Não conseguiu identificá-los porque eram dois. Ele ia
ao telemóvel, eles vinham com um pau, deram-lhe um abanão e foi assaltado. Desde esse
momento…
(160) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Na primeira declaração podemos encontrar contradições muito frequentes no discurso do senso
comum. O participante refere-se à “raça negra” como sendo “duas vezes pior” do que os ciganos,
de quem se conseguiram “ver livres”. Generaliza os aspetos negativos à “raça”, sublinhando os
problemas que têm causado no bairro. Contudo, conclui a exposição da sua ideia destacando a
particularidade de os distúrbios serem causados exclusivamente pelos jovens que desrespeitam
e envergonham “até os da raça deles”. Aquilo que é descrito com características idênticas a situ-
ações de delinquência juvenil – processos independentes da origem étnica dos jovens – aparece
como motivo de antipatia para com os negros em geral.
Para alguns participantes, os brasileiros surgem como a categoria mais atraente, enquanto
que, para outros, como a que causa mais aversão. Apesar desta polarização, ou talvez por
causa dela, foi esta a categoria mais discutida.
Os que simpatizo mais são os brasileiros, porque acho que são um povo muito alegre e
divertido. Deve haver bons e maus, como tudo, mas parecem ser um tipo de pessoas alegre.
Eu, ao contrário, acho que os brasileiros não gostam de trabalhar. Independentemente não
conheço, mas acho que os brasileiros quando estão em grupo agem de forma diferente do
que individualmente. Se nós conhecermos um casal, podemos dar-nos perfeitamente bem
com eles, sejam brasileiros, negros ou de outra raça, mas quando estão em grupo são uma
massa diferente.
A convivência que eu tenho com os brasileiros, com alguns brasileiros, é boa e o comporta-
mento deles é completamente diferente.
Ainda no contexto das manifestações de empatia, os participantes referiram-se aos chineses e aos
muçulmanos.
Os que eu gosto mais são os chineses. Não dão problemas nenhuns. Eles só trabalham,
trabalham e não levantam problemas a ninguém.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (161)
Os participantes concebem os muçulmanos como uma comunidade distante e fechada. Alguns
dos comentários, porém, foram explicitamente hostis para com esta categoria.
Nunca tive convivência com nenhum, mas a forma como eles reagem é diferente de tudo.
São indiferentes, nem nunca tive curiosidade em entrar na mesquita, para conhecer. Eles têm
os Deuses deles, nunca tive curiosidade de lá entrar.
Para mim e para eles deve haver uma parede. Só vejo notícias, não tenho nenhum diálogo
com eles.
Também pela religião deles, não é? Acho que foi o bispo de Lisboa que disse alguma coisa em
relação à sociedade deles e deve ter algum conhecimento de causa para ter dito o que disse.
(…) Disse que era complicado na sociedade deles quando uma mulher portuguesa se casava
com um muçulmano. Eu concordo perfeitamente que eles são esquisitos, têm uma sociedade
esquisita e daí a minha indiferença para com eles.
No que respeita a esta dimensão, tentámos elucidar quais as minorias que, para os participantes,
aparecem como melhor ou pior integradas.
A resposta quase unânime é que os chineses são a minoria que alcançou um melhor nível de
integração, principalmente devido à atividade económica em que estão envolvidos e ao poder de
compra que, aos olhos dos participantes, os chineses possuem. Os participantes também referem
os europeus de Leste como estando relativamente bem integrados, possuindo algum poder de
compra e um maior acesso ao alojamento.
Os chineses a nível de se vingarem na vida, são trabalhadores. Acho que realmente têm
(162) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
casas, casas mais sobre casas, porque, realmente, eles podem trabalhar ao fim-de-semana.
Trabalham aos fins-de-semana, feriados…
Concordo. Eu não tenho muita informação sobre isso, mas por aquilo que eu tenho ouvido, os
chineses para se implementarem no comércio do nosso país recebem subsídios do governo
deles.
Acho que são os ucranianos, digamos assim. Os pretos já cá estavam, os ucranianos vêm lá
de fora e conseguem falar muito melhor português do que os pretos, que já cá estavam. Eles
conseguem falar melhor, a gente entende-os bem.
Eu acho que são os ciganos. São os que estão há mais tempo no nosso país e nunca se
integraram.
Por exemplo, as brasileiras, eu acho que não se esforçam, eu não encaixo as brasileiras…
Porque quando os negros quando vêm para cá, têm cá um familiar ou um primo e é um
quarto para 5 ou 6. Com a falta de emprego ou arranjam trabalho nas obras ou perdem o
visto. Também é difícil, se calhar não têm dinheiro ao fim do mês. Não estão integrados, não
conseguem arranjar casa, não conseguem fazer nada. Portanto, eu penso que são, neste
ponto, os piores.
Entretanto, foi pedido aos participantes que referissem os atributos que lhes vêm à cabeça quando
pensam nos portugueses e em pessoas das diferentes categorias que foram enunciando.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (163)
3.4.1. Portugueses
Nota-se uma discriminação de classe, evidenciada pela valorização dos portugueses que fazem
parte do “povo” – trabalhadores, honestos – em detrimento dos que estão no poder – esperta-
lhões, desonestos. De resto, em termos gerais surgem atributos também referidos pelos outros
grupos de discussão, como os relacionados com o fado e a hospitalidade.
Coitadinhos.
Vigaristas.
Somos hospitaleiros, desenrascados.
Já fomos mais alegres.
Pessimistas.
3.4.2. Brasileiros
De seguida, os participantes de estatuto médio-médio esboçaram um retrato dos brasileiros. A
maioria dos atributos, negativos ou positivos, aparecem relacionados com a ideia de festividade.
De início referiram a festa, a música e a dança; contudo, o seu discurso assumiu rapidamente
uma conotação negativa, com menções à embriaguez e ao volume elevado da música a horas
tardias da noite.
Festa.
Dança, música.
Bebedeiras, cerveja.
Dos que cá temos, diria que é tudo fatela. Muito pobre.
Convivem muito uns com os outros, há qualquer coisa e vai a família toda. É muito como a
raça negra.
(164) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Acho que não se conseguem integrar muito bem na sociedade. Já estive nessa situação, lá
no prédio. Começou por vir 1 depois 2 e 3, 4, 5, 6 e não respeitam ninguém. É música aos
altos berros durante a noite e acho que não se integram bem na sociedade, não respeitam.
Não estão habituados às nossas regras.
3.4.3. Negros
Quanto aos negros, os retratos foram claramente negativos. As principais características referidas
foram que estes são racistas e desconfiados. Para além disso, os participantes também associam,
de modo quase direto, os negros à violência e à criminalidade.
Para mim, os de 40 e 50 e poucos anos da raça negra são muito diferentes dos jovens de
hoje, que têm 20 anos. Esses são uma desgraça completa, comportam-se mal, não estudam.
Portanto, vai ser muito difícil. De há 20 anos para cá, mudaram muito…
Eles próprios são racistas em relação aos brancos. Nós podemos ser, mas eles também são.
São muito desconfiados.
Assaltos. Feridos. Violações.
3.4.4. Indianos
Tal como os negros, também os indianos são considerados desconfiados pelos participantes. A
sensação de distanciamento em relação a esta categoria é evidente no facto dos participantes
referirem que os indianos se isolam e se fecham. E, embora os participantes não façam qualquer
referência negativa explícita – afirmando, por exemplo, que os indianos não se metem em sari-
lhos –, a alegação de que os membros desta categoria não se dão ao trabalho de usar a língua
portuguesa parece denunciar algum ressentimento.
Desconfiados.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (165)
Se uma pessoa não compra alguma coisa, ficam lá na língua deles…
É um povo que não cria problemas. Moram ali na Portela de Sacavém, dominam ali bastante.
Nunca ouvi ninguém falar deles assaltarem ou fazerem isto ou aquilo. Isolam-se.
No Centro Comercial de Santo António, o primeiro andar é tudo deles. São lojas, DVDs, biju-
terias, telemóveis, produtos para a casa.
3.4.5. Chineses
Relativamente aos chineses, os participantes encaram-nos como muito trabalhadores, pouco
sociáveis, desconfiados e algo isolados. Esta é possivelmente a categoria a que são atribuídas
características mais neutras. O distanciamento que os participantes demonstram em relação aos
chineses não põe em questão as suas relações quotidianas com esta minoria.
Trabalhadores.
Têm uma grande cabeça, sabem os preços de tudo o que têm na loja.
Pouco sociáveis.
(166) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.4.6. Ciganos
O retrato dos ciganos não é consensual. Uma primeira vaga de atributos continha epítetos como:
descontentes, charlatães, traficantes de droga e desordeiros. No entanto, uma segunda vaga de
observações, baseada em experiências pessoais, contraria a tendência estabelecida pelos primei-
ros comentários. Podemos assim concluir que, ao contrário do que aconteceu com as representa-
ções dos participantes sobre as restantes minorias, o retrato dos ciganos é subtilmente moldado
pela experiência pessoal.
Não pagam transportes públicos. Em Santo António dos Cavaleiros, ninguém paga transpor-
tes públicos.
Também há uma zona [?], vivem lá ciganos e não há problema nenhum com eles. Não há ne-
nhum problema. Falam, convivem com a gente (…). Não há problema nenhum. Mas, naquela
parte mais em cima, ao pé da Junta…
Temos de ver que estão isolados. Estando divididos, não há problema, quando estão em
grupo é que são terríveis. Estou a falar de Macedo dos Cavaleiros, estou a falar de Sacavém,
sei lá, em muitos sítios, quando fizeram aquelas casas ali, as pessoas tiveram de sair daquela
zona do bairro. Eles estão espalhados por aí. Eles próprios corriam as pessoas que lá viviam.
Eles próprios também não os queriam lá. Tiveram de sair dali e eles próprios corriam os sítios,
porque são desordeiros, eles próprios criam o conflito.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (167)
3.4.7. Ucranianos
No que respeita às representações dos participantes sobre os ucranianos, podem ser considera-
das as mais positivas entre todas as categorias sobre as quais incidiu a discussão. São descritos
como muito trabalhadores, esforçados e de fácil relacionamento:
Aqueles que eu conheço esforçam-se muito em termos de linguagem, acaba por ser difícil,
alguns têm um nível cultural um bocadinho superior. Aqueles que eu tive lá a trabalhar eram
todos licenciados.
São fáceis de relacionamento. O único problema é que ao final do dia, com o problema do ál-
cool, aquelas Vodkas e Red Bulls e não sei o quê para aquecer, mas tirando isso, são calmos.
Não conheço nenhum, o que eu conheço é do que eu ouço falar. O que ouço falar é que são,
de facto, trabalhadores. Vêm para cá e aceitam qualquer trabalho.
Mas, também há aqui uma coisa que têm de ter em consideração, é que muitos deles não
pagavam impostos. Os portugueses pagam.
Ao fim de 5 anos, mudam de nome e não pagam impostos durante 5 anos. Ao fim dos 5
anos, chegavam aos sócios e era “agora vais ter de ter mais um nome”. De 5 em 5 anos, eles
acrescentam um nome. Como não estão cá, não pagam impostos há 5 anos. Ou seja, eles só
ficavam cá 5 anos com o mesmo nome.
E trabalham muito mais barato do que os brancos. Em Sacavém, eles para fazerem os muros
da Junta de Freguesia levavam 3 euros à hora ou assim, os portugueses era 6.
O leitor poderá reparar que um dos participantes nega aos ucranianos o acesso ao estatuto de
“branco”. Embora possa causar alguma perplexidade, isso pode ser interpretado como uma estra-
tégica de fechamento social baseada na assimilação dos imigrantes aos não-brancos.
(168) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
3.4.8. Romenos
Quanto aos romenos, os participantes consideram-nos a minoria menos integrada e aquela com
que sentem menos empatia. São considerados traiçoeiros, mendigos e inspiradores de sentimen-
tos de piedade. Observa-se ainda alguma associação desta categoria aos ciganos que, como vimos
anteriormente, suscitam uma resposta ambígua.
As senhoras que estão nos semáforos, com bebés ao colo, a lavar os vidros, a pedir e a gente
tem de ter troco se não…
Pedinchões.
Eu sinto pena.
Acho que é uma descendência dos ciganos. É uma ramificação dos ciganos.
Não são mendigos, que é o caso dos romenos. As raças podem vir todas para cá, vêm
trabalhar, vêm seguir as regras normais do país, tudo bem que sejam bem aceites, mas
depois também se têm de comportar como tal. Tudo o que vem para cá para estar nos sítios
a dormir, a viver nos carros, a causar problemas, cheios de piolhos, para ver como a gente os
vê a entrar nos comboios, completamente… romenos. Eles andam ali às carradas porque eles
dormem ali nos descampados, no Areeiro. Aquilo é terrível. Porque é que essa raça veio para
cá? Fez esses quilómetros todos e veio para este país? Para criar mais miséria.
3.4.9. Muçulmanos
Quando questionados sobre os muçulmanos, os participantes mostraram alguma indiferença e
distanciamento. Ainda assim, a imagem formada à distância é claramente negativa. Os participan-
tes consideram os muçulmanos fanáticos e associam-nos ao terrorismo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (169)
Não concordo com os ideais deles. São muito fanáticos.
Não tenho relacionamento nenhum com eles, não tenho nenhuma ideia. Ao pensar neles
vem-me uma má imagem.
O desenvolvimento em certas áreas da construção, éramos capazes de não nos termos de-
senvolvido tanto. O baixo custo de mão-de-obra fez com que muitos empreiteiros construís-
sem coisas que, se calhar, na altura não fariam porque eram preços muito elevados. Acho
que é bom por esse aspeto.
Os negros são um povo muito forte, têm muita resistência, o cabedal deles, acho que são
muito fortes. A maioria das construções, acho que é tudo negros.
Por outro lado, o consenso acerca de uma imagem negativa global da imigração é esmagador. Um
dos participantes chegou mesmo a referir que as suas consequências são “terríveis”. O argumento
principal para justificar essa opinião é o facto de os imigrantes competirem diretamente com os
nacionais no mercado de trabalho e conduzirem a taxas de desemprego mais elevadas na popula-
ção autóctone, para além da associação direta à criminalidade e à violência.
Em princípio, tiram muitos empregos, principalmente aos jovens. Porque lá está, foi o que
eu disse há bocado, eles sujeitam-se a ordenados mais baixos e eles chegam e dizem: “Meu
senhor, eu procuro trabalho, por menos 100 euros, faço esse trabalho”.
Antes a imigração valia a pena, havia muitas obras públicas para fazer, a maior parte que
(170) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
imigrava era para a construção civil. Agora, como não há emprego, toda a gente que vem para
cá, o mais certo é vir para roubar.
Desta forma, quando foi perguntado aos participantes se a relação entre os portugueses e os
imigrantes é melhor caracterizada pelo termo cooperação ou competição, a resposta não foi
surpreendente:
Há alguns dias, ouvimos falar que fechou uma fábrica, fechou outra, já é para nós difícil
manter os nossos empregos. Eu, pessoalmente, penso assim, vêm aqueles agora e o pouco
que já há, já vêm tirar.
Acerca da ideia de Portugal ser um país de brandos costumes, a maioria dos participantes de
estatuto médio-médio afirmou que sim, independentemente do significado conferido ao termo:
Mesmo as leis para os imigrantes são de brandos costumes. Quando um imigrante pratica
um crime qualquer grave, é notificado para ir para o país dele, é notificado, mas ele nem
sequer lá aparece. Muda de casa, vai para outro lado qualquer, continua a fazer os mesmos
crimes e o pessoal não o manda embora. Continua a ser um país de brandos costumes.
De entre os atributos associados às diferentes categorias, o moderador pediu ao grupo que in-
dicasse quais os que valoriza mais numa pessoa. Destacaram-se aqueles relacionados com a
honestidade, o trabalho e o respeito pela cultura dos outros.
O moderador perguntou então aos participantes se crêem que em Portugal algumas pessoas
são vítimas de racismo. As respostas foram unanimemente afirmativas. As pessoas consideradas
mais vítimas de racismo são, na opinião dos participantes, os ciganos, os negros e os brasileiros.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (171)
Relativamente a estes últimos as opiniões dividiram-se:
Os brasileiros não, porque os brasileiros também são brancos. Os negros é que são…
No caso dos ciganos, à semelhança do que aconteceu nos grupos de discussão compostos de
adultos de estatuto médio-alto e de jovens de estatuto médio-médio, a responsabilidade da discri-
minação é dos próprios.
Mas, se o filho quisesse uma negra, já importava a cor de pele. Se calhar ia tentar evitar o
casamento. (…) Se calhar, não gostava por causa dos filhos deles. (…) De manhã, tomam
banhinho, mas depois transpiram e ficam com um cheiro…
(172) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Agora que há um cheiro da raça, há!
Eu estive em África em pequenina, dos 3 aos 8 anos, não apanhei o 25 de abril. Via e lembro-
me bem, pelas coisas que eu via, eles são porcos. Pelas coisas que eu via, comem com as
mãos, pronto, uma pessoa fica sempre com aquela ideia, no fundo, deles. Mas, eu lembro-me
de um miúdo escuro fazer queixa à minha mãe: “Ela chamou-me preto”. E a minha mãe:
“Não chames preto ao preto, coitado”. Já desde pequena que não tinha aquelas…
Era-me indiferente. Até porque uma grande amiga é de raça negra, está casada com um
branco e não me faz diferença.
Não me fazia diferença. Eu tenho uma afilhada escura e gosto muito dela. Se os meus filhos
decidissem arranjar uma pessoa de raça negra, porque não? Desde que gostassem. Se fosse
brasileiro, já pensava duas vezes, mas era a escolha deles, eu aceitava na mesma.
Nunca pensei realmente no assunto. Aos ciganos não achava muita piada. Agora passo por
brancas acompanhadas por pretos, que já se vêem tanto, antigamente era ao contrário. Por
acaso, tenho dois irmãos, já falei deles há bocado, porque eles eram pequenos quando fica-
ram sem mãe e foi a minha mãe que os criou. Portanto, aí realmente eu ter… Tenho um certo
receio à raça negra quando os vejo em grupo, porque vejo muita coisa na televisão. Mas, se
eu tivesse algum contratempo, também lidava com pretos.
Não via com bons olhos, de facto. Já convivi mais do que convivo hoje. Quando andei no liceu
convivia com rapazes de raça negra, principalmente com 2, cheguei a ir a festas de música
africana, em Cascais, sempre bem recebido, mas isto foi há 30 anos. Hoje, tornei-me mais ra-
cista. De facto, há problemas que surgem ao meu lado e eu não posso ficar indiferente a eles.
Para mim, isso não é racismo. Na minha ideia, eu não me junto com um preto, porque depen-
de da atitude dele. A mesma coisa que eu faço a um português, quando não gosto da atitude
dele, também não me junto com ele… Portanto, eu acho que isso não é racismo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (173)
Era um atentado suicida. Era um bombista. Ainda levavam o meu filho lá para um sítio de
bombas… Não [em relação aos muçulmanos].
Os ciganos. Muçulmanos também não. As ideias que eles têm, não encaixavam bem comigo.
Esta última observação conduz-nos às respostas dadas pelos participantes quando lhes foi pergun-
tado se aceitariam que um dos seus filhos se convertesse ao Judaísmo ou ao Islão. As respostas
demonstraram que, para os participantes, isso seria um motivo de grande preocupação. Para
alguns, seria alegadamente o pior que podia acontecer, e equivaleria à perda de um filho.
Perdia um filho.
Acho que sim [fazia diferença], são muito fanáticos. É uma religião muito fanática.
De fazer notar que, à semelhança dos restantes grupos de discussão, também junto destes parti-
cipantes se destaca a total invisibilidade do judaísmo ao longo da discussão. Os participantes não
se referiram aos judeus em momento algum e, mesmo na questão direta induzida pelo moderador
relativamente à religião, as respostas centram-se todas na aversão ao Islamismo.
Também foi perguntado aos participantes o que achavam do recurso a medidas proativas, no-
meadamente através de quotas no mercado de trabalho, para promover a integração da minoria
(174) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
cigana. Os participantes rejeitaram esta ideia de imediato e justificaram essa opção com a alegada
indiferença dos ciganos para com a integração.
Eles próprios se afastam da nossa cultura. Ao afastarem-se da nossa cultura, também não
são capazes de ter os mesmos hábitos que nós temos. Logo a partir daí e pelas coisas que
praticam, nem são capazes de serem rejeitados. Agora essa ideia de haver uma vaga de
trabalho para o cigano, acho que era uma vaga que nunca seria preenchida.
Eles trabalham para eles, com eles, por eles, é deles, é tudo para eles. Não se vê ciganos
a trabalhar numa loja ou num restaurante que não seja deles. É a cultura deles, é mesmo
assim.
O moderador perguntou ainda aos participantes se, na perspetiva deles, os ciganos são mais ou
menos discriminados do que os homossexuais. Os participantes disseram que os ciganos são
claramente a minoria mais discriminada devido à relativa facilidade com que um homossexual
pode passar despercebido, enquanto que uma pessoa cigana é sempre identificada como tal.
Olha-se para um homem ou para uma mulher e não está lá escrito. Mas olha-se para um
cigano e é um cigano.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (175)
3.8. Conclusões gerais
• Este grupo de discussão tende a revelar maior desconfiança e menor abertura à imigração.
Embora os participantes considerem que a contribuição da mão-de-obra imigrante é ne-
cessária para as grandes obras públicas, focaram essencialmente os aspetos negativos da
imigração, que identificaram como sendo: a competição dos imigrantes com os nacionais
por postos de trabalho, o consequente aumento do desemprego para a população autóctone,
a criminalidade e a violência;
• Os ciganos e os negros são as categorias pelas quais os participantes do estrato social mé-
dio-médio nutrem menos simpatia. Ambos aparecem associados à insegurança e ao crime;
• Os chineses e os ucranianos são vistos como as minorias que se estão a sair melhor em
Portugal. Os chineses por causa da sua forte incorporação no mercado nacional e os
ucranianos devido à sua perseverança na aprendizagem da língua e no esforço para se
integrarem.
Quando questionados acerca do que lhes ocorre quando pensam em pessoas de outras nacio-
nalidades, etnias, religiões, as categorias referidas pelos participantes do grupo de discussão de
(176) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
estatuto médio-baixo foram: pessoas de cor, ciganos, chineses, brasileiros, romenos, moldavos,
indianos, africanos, PALOP e angolanos. Os muçulmanos não foram espontaneamente referidos
nesta fase, mas acabam por ser abordados ao longo da discussão. Relativamente aos outros
grupos de discussão, destaca-se a referência a pessoas de cor, PALOP e angolanos, categorias que
não tinham sido previamente enunciadas na identificação do Outro.
Este grupo de discussão evidencia níveis distintos de relacionamento com as minorias. Quando
lhes foi perguntado que tipos de relação estabelecem com as minorias previamente identificadas,
começaram por referir contactos que revelam algum distanciamento:
Entretanto, a moderadora insiste na questão relativa aos graus de proximidade com pessoas de
outras nacionalidades, etnias, religiões, etc., e os participantes vão referindo relações de vizinhan-
ça, de intimidade e de parentesco.
Eu nasci no meio deles, por isso (…). No meio da etnia cigana. Graças a Deus, não tenho
nenhuma razão de queixa deles.
Na minha vida profissional relaciono-me com as etnias todas. No sítio em que trabalho, é uma
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (177)
mais-valia relacionada.
O sítio que frequento, aquilo é quase uma família e há muitas pessoas a trabalhar nas obras
que são ucranianos. Não são relações íntimas, mas prontos, vai-se falando, eles falam tam-
bém da terra deles. Até porque ciganos e pretos convivo pouco, como moro mais cá em cima,
na parte da Coxôa, também há ali, mas são poucos.
Entretanto, a moderadora perguntou aos participantes se sentem maior empatia com algumas
das pessoas que atrás referiram. À semelhança do que aconteceu em todos os outros grupos de
discussão, há uma tendência inicial para não revelar simpatias por uma ou outra categoria:
Eu não sei dizer. Para mim, qualquer um, logo que não me falte ao respeito, dou-me bem com
eles todos. Eu gosto de fazer amizades, gosto de conversar com toda a gente. Só é preciso é
que não me faltem ao respeito, se faltar ao respeito…
Contudo, com o desenrolar da discussão, as revelações foram-se tornando mais profundas, mercê
da dinâmica de grupo e da exploração da moderadora, resultando em afirmações de desagrado
pessoal em relação a certas categorias. Embora estes resultados não surjam de forma muito defi-
nida, os chineses e os ciganos parecem, numa primeira análise, ser as minorias menos estimadas.
Eu dou-me muito bem com os africanos e dou-me muito mal, entre aspas, com os ciganos
(…). Porque os ciganos são muito falsos.
Eu acho que os indianos, para mim, são pessoas que eu não era capaz nem sequer de tomar
[um café/ uma bebida]… Não tenho nada contra, mas não têm nada a ver. Sou capaz de me
dar bem com os ucranianos, com os pretos também, com os brasileiros, até com os ciganos.
(178) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Mas, é muito mais fácil para mim falar com um cigano ou com uma cigana, nem todos, não
é? (…) Não sei. É interior. (…) [ainda relativamente aos indianos] Não sei se é por causa da
religião, que são diferentes de nós, é possível.
Sou sincera, não gosto muito desses muçulmanos. Gosto muito dos indianos, adoro os
indianos. (…) Não gosto, não sei. Lá a religião deles, aquela coisa das torres gémeas. São
bombistas, associo-os a terrorismo, não gosto.
Eu não simpatizo com os ciganos nem com os romenos. Porque o romeno é um bocado
cigano e o cigano um bocado romeno. Para mim, vai dar tudo à mesma coisa. Os romenos ou
os ciganos (…). O feitio de não trabalhar, viver à custa da sociedade, enganarem as pessoas.
Embora não possamos controlar se foi efeito da moderação ou dos participantes, esta acabou por
ser a discussão em que a simpatia ou antipatia sentida em relação a pessoas de outras origens
foi mais referida. Houve inclusive participantes que foram muito exaustivos na descrição dos seus
sentimentos e mostraram, na generalidade, grande afastamento em relação ao exogrupo, fosse
este qual fosse:
Pretos. A noção de africanos, há pessoas com quem me dou extremamente bem, mas por
outro lado, acho que são um pouco arrogantes, acho que é esse o termo. No sítio onde moro,
por exemplo, eles estão na passadeira, estamos a tentar ir trabalhar e temos de esperar que
eles passem, a olharem e parece que pensam: “Agora, esperas! Eu faço como entender”.
Esse género de superioridade, de arrogância, é uma característica dos africanos. Não são
todos, mas eu sinto muito isso. Com os ciganos, também fico sempre de pé atrás, porque são
pessoas muito misteriosas, conflituosas. Também, há o outro lado, há quem seja acessível,
simpático e fácil de lidar. Mas, acho que também têm esse lado. Em relação aos brasileiros,
também acho que há um pouco essa parte da superioridade, de chegar e… É um sentimento
assim de superioridade. Os chineses, eles são um povo muito fechado, realmente não há mui-
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (179)
to a dizer, porque, pronto, tirando a parte de ir às lojas, mas também não simpatizo nem deixo
de simpatizar, porque são muito fechados. Sempre no mundo deles, na língua deles. A vida
deles é o trabalho, e são, realmente, muito fechados. Isso, eu sinto. No lado dos romenos,
também me sinto distante.
Em relação aos africanos, não simpatizo muito, mas não posso generalizar, porque alguns são
bons. Em relação aos ciganos, acho que são uma comunidade que podem ser muito bons
quando estão sozinhos, mas quando estão em grupo tornam-se maus. Eles sozinhos não
fazem mal a uma mosca, quando se juntam em grupo são os maiores de todos. Talvez, aí são,
de facto, eles. Também não simpatizo muito com os moldavos, há uns bons outros não, como
em todas as raças, acho que há um bocadinho de tudo, há uma mistura do bom e do mau.
Tal como ilustram estes fragmentos, estas expressões de desagrado são pouco articuladas, apa-
recendo geralmente misturadas com a ressalva que há pessoas boas e más em “todas as raças”,
mas “esse lado”, geralmente o mau, é facilmente generalizado.
Para além disso, é bastante interessante o facto de uma das participantes ser casada com uma
pessoa de origem mista que, apesar dessa relação de intimidade pessoal, ela perceciona com um
certo grau de alteridade.
Não tenho, nesse aspeto, uma imagem, desde que… Claro nota-se uma diferença, até mes-
mo na raça do meu marido. Noto que ali há uma pequena diferença, mas dou-me bem
com a família, com amigos e conheço muita gente. Até porque lá está, também já trabalhei
com ciganos numa loja, há muitos anos, era eu uma miúda, no meu primeiro emprego. (…)
Sempre me dei bem. Até porque eu tive um problema, numa firma onde estava, com ciganos.
Na altura, telefonei para eles para Carcavelos e pedi para eles me virem ajudar porque eu
estava a ser completamente ameaçada. Eles vieram falar com estes ciganos e até hoje nunca
(180) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
tive problemas. Com brasileiros, também tive colegas a trabalhar comigo, nunca tive proble-
mas, até os ajudei. É conforme, tal como há brasileiros, há portugueses, há de tudo bom e
mau. Há de tudo.
Os chineses e os brasileiros.
Os ucranianos e outros europeus de Leste são referidos como a minoria menos bem sucedida e
a que aufere piores salários. Para interpretarmos estes resultados, devemo-nos lembrar que os
participantes se referiam principalmente à dimensão económica.
Por seu turno, os negros são vistos como uma minoria que usufrui de uma crescente aceitação por
parte da sociedade dominante. Embora um dos participantes tenha expressado a opinião de que
esta minoria era uma das menos integradas, esta ideia foi contrariada pelo resto dos participantes,
que argumentaram que, hoje em dia, os negros são muito mais aceites do que no passado.
Não. Conheço pessoal a pedir trabalho e dizem: “Não lhe dou trabalho, por ele ser preto”.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (181)
Acho isso mal.
Acho que hoje em dia, pelo menos é a ideia que eu tenho, já não é assim.
Os romenos, a par dos ciganos, são mencionados com uma das minorias menos integradas.
Os ciganos, em particular, são vistos como rejeitando a integração e desperdiçando generosas
oportunidades que lhes são concedidas pelo Estado. Quando lhes foi perguntado se os ciganos
gozam das mesmas oportunidades do que alguém que pertence à faixa maioritária da população
portuguesa, os participantes sugerem que os ciganos não só gozam das mesmas oportunidades
como até usufruem de privilégios e oportunidades que são recusados aos restantes cidadãos
portugueses.
Este constructo é facilmente discernível nos comentários dos participantes, especialmente quando
lhes foi perguntado se concordam com o estabelecimento de quotas no mercado de trabalho para
a minoria cigana. Os participantes dizem que não se oporiam a essa medida, mas que as quotas
seriam inúteis tendo em conta que esta minoria não tem qualquer desejo de integração.
O discurso em redor dos privilégios da segurança social e da indiferença para com a integração
também emerge a respeito dos homossexuais, que alguns participantes referem como mais discri-
minados do que os ciganos, embora façam um esforço claro e visível no sentido da integração. De
uma forma geral, são os próprios ciganos que, para os participantes, são culpados do seu défice
de integração.
No que se refere à discriminação dos ciganos, a culpabilidade da vítima foi uma constante em
todos os grupos de discussão, independentemente da idade, género ou estatuto dos participantes.
(182) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
4.4. Discursos sobre a caracterização/atributos das diferentes categorias
Quando lhes foi pedido que caracterizassem espontaneamente algumas minorias culturais e re-
ligiosas que residem em Portugal, os resultados para cada categoria foram muito homogéneos,
eventualmente devido à dinâmica de grupo.
Na sua globalidade, as representações são negativas. O que aliás tivemos oportunidade de referir
quando os participantes revelaram a simpatia ou antipatia sentida por pessoas de origens nacio-
nais, culturais, religiosas ou étnicas diferentes das suas.
4.4.1. Portugueses
A moderadora lançou a discussão sobre atributos, solicitando aos participantes que referissem o
que lhes vem à cabeça quando pensam nos portugueses. Os primeiros atributos são positivos,
mas a partir do momento em que um dos elementos do grupo lança um atributo negativo, estes
ganham maior expressividade.
Simpático. Acolhedor.
Humano.
Corruptos.
Não pensa no outro. Egoísta (…). Sim, mais agora, com estas coisas do trabalho, mais agora.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (183)
e as pessoas envolvidas em lugares de poder de corruptos.
4.4.2. Ucranianos
Os ucranianos não suscitaram muita conversa por parte dos participantes.
Não gosto dessa gente. (…) São frios. Não têm sentimentos, nem expressão sequer.
Trabalhadores.
4.4.3. Moldavos
Isto parece ser uma representação generalista que também abrange várias outras nacionalidades
europeias de Leste como, por exemplo, os moldavos. Estes últimos constituem a minoria mais po-
sitivamente valorizada, embora os participantes pareçam ter tendência para não fazer julgamentos
se não tiverem algo negativo para dizer.
Tudo o que seja de Leste, acho todos muito parecidos (…). Os moldavos, já os deixo ir entran-
do, com uma certa precaução.
É quase como a relação dos ucranianos (…). Os moldavos conseguem ser mais simpáticos
do que os ucranianos.
4.4.4. Indianos
A caracterização negativa dos exogrupos é igualmente manifestada quando a moderadora pergun-
ta aos participantes do grupo o que pensam de imediato relativamente aos indianos.
(184) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os pretos ainda falam o português, não é? Agora os indianos… Uma pessoa entra numa loja
de telemóveis, eles estão sempre ao telefone e bem podem estar a combinar um assassinato
para mim, que eu não percebo nada. Aliás, acho que é falta de respeito. Vêm para cá, têm
de falar a língua.
Mais uma vez, a autoexclusão e o caráter reservado da categoria em apreço são invocados como
justificação para a suspeita e para a hostilidade:
4.4.5. Muçulmanos
À semelhança do que aconteceu nos restantes grupos de discussão, e como tivemos oportunidade
de referir numa secção anterior, também entre os participantes do grupo de estatuto médio-baixo
houve associação entre muçulmanos e terrorismo. Nesta fase da discussão, as expressões revela-
ram algum distanciamento face a esta minoria.
Fechados.
Só agora há meia dúzia de dias, um vizinho disse-me “eu sou muçulmano”. E eu fiquei parva
porque já falava há muito tempo com ele, mas lá está, eu nem sabia. Ele contou-me uma
história porque a família é também muçulmana, que dizia que escondia. E eu fiquei, “mas,
é muçulmano?”
4.4.6. Chineses
Os participantes tendem a apresentar uma visão mais positiva dos chineses. As piores caracterís-
ticas atribuídas aos chineses são, pelo menos, mais neutras do que as usadas para descrever as
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (185)
outras minorias:
Língua complicada.
Por outro lado, os chineses são vistos como pessoas muito trabalhadoras, embora pareça que,
para os participantes deste grupo de discussão, esse zelo se possa tornar excessivo:
Isso aí há qualquer coisa. Também depende, porque as lojas não fecham. Tem muita coisa.
Eles próprios vivem dentro das lojas. Eles habitam lá…
Por fim, talvez o traço mais positivo atribuído a uma minoria neste grupo de discussão tenha sido
referido a propósito dos chineses:
Educados.
4.4.7. Negros
Quando questionados especificamente sobre os negros, os principais atributos negativos men-
cionados denotam uma imagem em que o fechamento e o racismo são diagnosticados, embora
pareçam coexistir paradoxalmente com epítetos característicos de sociabilidade como “vistosos”,
“vaidosos” ou “exibicionistas”.
São muito racistas. São muito racistas entre eles e em relação a nós. São mais racistas
connosco do que nós com eles.
Também são muito fechados no seu próprio grupo. Apesar de se darem mais connosco (…)
(186) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
nota-se que há ali… Não nos podemos fiar. Acho que somos muito mais abertos e puros em
relação a eles.
Não gostam de trabalhar. Estou a falar no geral.
Vaidosos. Exibicionistas.
Gostam de dar nas vistas. Eles vão sempre às marcas.
No meu modo de ver, acho que eles gostavam mais de ser brancos do que ser pretos. É o que
eu tenho na minha ideia.
4.4.8. Brasileiros
De uma forma geral, as características atribuídas aos brasileiros são idênticas às expressas pelos
outros grupos de discussão. Os participantes dos três grupos realizados anteriormente caracteri-
zam os brasileiros como sendo alegres, calculistas e traiçoeiros.
Falsos.
Traidores.
Mentirosos.
À semelhança do que aconteceu com os participantes dos grupos de discussão de jovens e adultos
de estatuto médio-médio, foram feitas referências relativamente às mulheres brasileiras como
sendo exuberantes e sedutoras.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (187)
Elas, cuidado com os maridos. É verdade.
Sedutoras.
4.4.9. Ciganos
Na generalidade, os participantes têm uma perceção negativa da minoria cigana:
Mentirosos.
Embora de forma menos exaustiva que os participantes nos outros grupos de discussão, atribuem
igualmente uma valoração positiva àquilo que é percecionado como o sentido de clã ou a solida-
riedade intraétnica dos ciganos:
No entanto, estas características não compensam os aspetos negativos encontrados nos ciganos.
A representação global dos participantes a respeito dos ciganos torna-se bastante clara à luz de
um comentário que descreve os romenos como sendo:
(188) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Os participantes consideram os romenos com uma minoria irredimível. Os atributos que lhes
aparecem associados são todos negativos e mesmo a língua materna é alvo de criticismo por parte
de um dos participantes.
Parasitas da sociedade.
Porque eles vivem à custa da sociedade. Agredindo, roubando, burlando. Não fazem nada.
Tudo o que é ali daquela zona… porque eles até se lixam a si próprios, para ganhar dinheiro.
Os romenos são iguais aos ciganos. A fisionomia. A língua dos ciganos é que é diferente.
Em função da análise dos atributos associados às pessoas das minorias previamente identificadas
pelos participantes dos diferentes grupos de discussão, apercebemo-nos que é entre estes, de
estatuto médio-baixo, que existe uma maior carga negativa face ao Outro. No discurso dos parti-
cipantes as minorias são alvo de duras críticas e há mais manifestações de antipatia para com o
Outro do que nos restantes grupos. Esta especificidade é acompanhada por uma menor abertura
à imigração, fator que analisamos de seguida.
Esta dimensão diz respeito às perceções positivas e negativas dos participantes em relação às con-
sequências da imigração. Os aspetos positivos tendem a agrupar-se em torno do aumento da mão-
-de-obra e do intercâmbio cultural que emerge do estabelecimento destas pessoas em Portugal:
Mais mão-de-obra.
A troca de culturas é importante. Nós ficamos aqui fechados. Também vem tanta gente traba-
lhar, não sei porque é que o nosso país está neste estado. Não há lugar para nós, nós temos
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (189)
que sair, eles estão a ocupar tudo e trabalham tanto, isto devia estar uma maravilha.
Por outro lado, uma sensação de ameaça e competição económica – porque os imigrantes estão
alegadamente dispostos a trabalhar por salários mais baixos – é o aspeto negativo mais notório:
Muito sinceramente, eu não gosto de rodeios, eu gosto de ser muito sincera. E devia mesmo,
se fosse possível, dizer ao nosso primeiro-ministro que as fronteiras foram abertas, muito para
este povo todo. Vieram sufocar o nosso país, Portugal é muito pequenino.
Pois, os ordenados são baixíssimos, com esta mão-de-obra, não sei porque é que não está
bem o país…
A muita mão-de-obra estrangeira que vem para Portugal, vem baixar os vencimentos dos
portugueses.
Neste mesmo contexto, da competição económica, surge uma série de referências ao acesso dos
imigrantes a regalias sociais marcadas por manifestações de privação relativa. Os participantes
sentem-se “discriminados” e atribuem responsabilidades ao Estado pela situação:
Os patrões não passam recibos, a mão-de-obra é mais barata e eles vão buscar. O mal cá
está, é Estado.
Mas, é que o Estado dá-lhes subsídios e tudo. Já passei por uma fase em que não tinha
dinheiro para pagar a renda, fui à segurança social e disseram-me para ir às Câmaras que
podia ser que conseguisse uma habitação. Eu não queria subsídio, eu queria uma casa mais
barata. Não consegui arranjar uma casa para alugar, não havia. É tudo “vendo”. Queria uma
casa mais pequena, nem que fosse fora do sítio onde eu estava habituada a viver, não me
importava nada, mas não havia nada. Queria uma casa mais pequena, mas queria meter os
meus filhos lá dentro. Então, fui à Câmara de Oeiras. Fui lá, a senhora: “Neste momento,
(190) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
só estamos a dar ajuda para essas casas às pessoas que vêm de África”. Quer dizer, disse:
“Não há casas, neste momento, e eu não sei”. Nem me encaminharam, nem para aqui, nem:
“Olhe, só se for noutra freguesia”.
As casas mais baratas, são só eles que lá estão. Têm leite da Agros, têm apoios, têm tudo. As
pessoas que estão cá deviam estar à frente das que vêm de fora. Mesmo que as pessoas não
queiram, acabam por se sentir discriminadas e acabam por discriminar também. Chegamos
a ser discriminados, racistas. Primeiro devia haver para quem está cá.
Enquanto eles pagam uma renda baixa num bairro social, nós não, somos obrigados a pagar
a renda normal.
Desta forma, algumas das complexidades da equação racista tornam-se percetíveis: a questão
identitária, a sensação de ameaça ontológica, entre outros, vêem os seus efeitos exacerbados pelo
ressentimento desta classe subordinada para com o status quo.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (191)
Somos aqueles cães que ladram muito mas não mordem. Depois fazem-nos uma festinha e
a pessoa fica ali…
Quando os elementos do grupo foram diretamente questionados se, na sua opinião, em Portugal
há racismo, a resposta foi praticamente unânime: o sentimento de privação relativa tende a au-
mentar atitudes discriminatórias e racistas:
A exceção foi um participante que disse que o racismo é, em grande medida, uma questão familiar
e não pode ser generalizado como um atributo da sociedade:
Eu não concordo. Hoje em dia não há racismo. Os racistas que há é porque os pais eram.
- Como reagiria se um dos seus filhos manifestasse a intenção de casar com alguém que per-
tence a uma minoria? Todos os participantes afirmaram que se importariam com esta situação.
Espontaneamente falaram de imediato da hipótese de os filhos casarem com alguém de ascen-
dência africana, “por causa da cor”, justificam.
(192) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Houve uma vez que o meu filho teve uma namorada preta, eu não permiti e disse: “Que foi?
Queres ter filhos mulatos e não sei o quê…”. É estupidez, não é? Se fosse eu, custava que
não me aceitassem. E a rapariga era impecável, mas pronto. (…) Eu tive medo, eu não quis…
É assim, eu acho que ninguém nota que o meu filho é mulato. Mas, se ele aparecesse em
casa com uma mulata, se calhar, era um bocado um choque. E eu casei com um mulato,
não é? Mas acho que se aparecesse assim mesmo um preto, aquele mesmo “rebimba”, os
da Guiné são mesmo rebimba, pronto. Eu ia de reagir “mas…”, mas depois também pensava
“que estupidez”. Mas, se calhar, até ia reagir assim. Porque nós dizemos que não somos
racistas, mas depois cá dentro toca um bocadinho.
De resto, mostram ainda pouca aceitação face a um hipotético casamento entre um filho e alguém
de etnia cigana.
- A cor de pele tem alguma importância para a maioria dos participantes do grupo de discussão
de estatuto médio-baixo. Mesmo uma única participante que refere que “assim à partida, nós
dizemos logo que não”, acaba por aceitar que é um fator importante no estabelecimento de
relações com o Outro.
Eles não querem. Eles não iam. Estão em casa, têm subsídios. Têm casa e subsídio, vai
trabalhar para quê? Dar cabo do corpo. Ficam em casa com os subsídios.
Retomando o tema da imigração, através de questão direta, o moderador pergunta aos elementos
do grupo se esta constitui uma ameaça aos valores culturais de um país. As opiniões dividem-
-se entre os fatores maléficos da “mistura” e da perda de identidade, e a riqueza que as trocas
culturais podem originar:
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (193)
Eu acho que é prejudicial [a mistura] porque destrói tudo o que nós tínhamos. Mesmo na
comida…
Por último, o moderador pede que os participantes se posicionem face à questão – Em Portugal
é pior ser pobre ou pertencer a uma minoria étnica? Em termos gerais, a resposta tendeu para
a pobreza como fator preferencial à pertença minoritária, por motivos relacionados com a discri-
minação. A questão da privação relativa de regalias sociais emerge novamente neste contexto
relativamente aos ciganos:
Há muitas minorias étnicas que têm mais regalias do que uma pessoa pobre. Os ciganos são
uma minoria, não é? Têm mais regalias do que os pobres. A nível de subsídios, habitação.
O benefício de direitos sociais aparece assim associado à pertença étnica e não à condição de
quem os recebe. No caso dos ciganos, o discurso aponta para que estes tenham certas “regalias”
em função da sua pertença étnica e não de eventuais situações de pobreza.
• O discurso “politicamente correto” não é frequente. Pelo contrário, nota-se uma exacerbação
no que concerne a manifestações de simpatia ou antipatia face ao Outro, através de expres-
sões como “gosto muito dos…”, “adoro os…”, “uma raça que eu não gosto são os…”, “de
quem não gosto mesmo é dos…”, “não gosto nada dos…”;
(194) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
• Todas as minorias, sem exceção, foram alvo de atributos negativos, fator que se destacou
fortemente ao longo da discussão;
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (195)
CAPÍTULO 8.
ANÁLISE COMPARATIVA
1. CONCLUSÕES GERAIS
A tendência geral dos participantes dos grupos de discussão foi enunciar categorias de pesso-
as percebidas como Outras tendo principalmente por base diferentes proveniências geográficas,
cores de pele e etnias. As categorias nomeadas espontaneamente pelos participantes em todos
os grupos de discussão foram as seguintes: negros, africanos, “pretos”; brasileiros; chineses;
indianos; europeus de Leste, ucranianos. Os ciganos foram referidos espontaneamente pelos três
grupos de discussão compostos por adultos, mas não pelo dos jovens. Ao longo das conversas
com os participantes das diferentes discussões tornou-se bastante claro no seu discurso que
a maioria não distingue os imigrantes originários dos vários países da antiga União Soviética
e usa, geralmente, a designação lata “imigrantes de Leste”. Contudo, a presença destes em
Portugal é, em termos quantitativos, bastante diferenciada (ver SEF, 2010: 27-29). Provavelmente
devido à maior visibilidade dos nacionais da Ucrânia, nos grupos de discussão apercebemo-nos
também que os termos “imigrantes de Leste” e “ucranianos”, são usados sistematicamente de
forma alternada, quase como sinónimos. Da mesma forma, os participantes não diferenciaram os
africanos segundo a sua proveniência, não obstante a presença destes em Portugal – resultante
essencialmente da imigração de países africanos de língua portuguesa – apresentar também
quantitativos significativamente diferentes em função do país de origem (ver SEF, 2010: 28). A
categoria “asiáticos” aparece também referenciada pelos participantes de estatuto social médio-
alto e pelos jovens de estatuto médio-médio, normalmente sempre na sequência da referência aos
chineses. Contudo, estes últimos apareceram como uma categoria autonomizada em todos os
grupos de discussão. Nesta fase inicial, de identificação do Outro, só no grupo de estatuto social
médio-alto houve referência a pessoas categorizadas com base na religião, designadamente os
muçulmanos e os budistas. Os judeus não foram mencionados em nenhum dos grupos, o que
pode estar relacionado com a fraca visibilidade destes na sociedade portuguesa ou com o facto
(196) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
dos sujeitos não os percecionarem como Outros. Os muçulmanos são a categoria com a qual
os participantes parecem encontrar-se menos familiarizados e face à qual parece haver maior
distância social, não havendo contacto ou curiosidade. Esta quase invisibilidade social é similar
à registada a propósito dos judeus, embora menor em grau. Contudo, ainda que os participantes
assumam conhecer pouco os muçulmanos, estes aparecem geralmente associados ao fanatismo,
fundamentalismo e terrorismo.
Quanto às relações sociais com indivíduos categorizados como Outros, pudemos identificar a
existência de níveis de contacto pessoal distintos (até porque a nossa amostra intencional assim
o pressupunha): inexistente, moderado e mais direto. Os diversos contextos de sociabilidade em
que ocorre o contacto com pessoas de origem diferente são as relações casuais do quotidiano;
laborais; de amizade e de parentesco. Das relações estabelecidas ao nível da comunidade local,
houve em todos os grupos de discussão participantes que referiram ter contacto com pessoas de
pertença minoritária em contexto de vizinhança ou nos transportes públicos, sendo que aqui se
constata uma maior proximidade nos adultos do estrato médio-médio e médio-baixo. No grupo de
discussão de estrato médio-alto a maioria dos participantes afirmou não ter, na sua esfera de so-
ciabilidades, relações próximas com pessoas de outras origens étnicas. Já na esfera ocupacional,
o contacto com as categorias percecionadas como Outros foi relatado principalmente neste grupo.
Note-se, porém, que as afirmações decorrentes desses relatos evidenciam um maior contacto
com estrangeiros no plano laboral fora de Portugal, resultando pois diretamente de uma maior
mobilidade internacional deste estrato social, tanto ao nível do turismo como dos negócios. Deve
ser referido que houve menção a relações íntimas ou de parentesco com minorias em todos os três
estratos sociais: no grupo de estrato médio-baixo há dois participantes com familiares “mulatos”
(irmãos e marido), no grupo de estrato médio-alto um dos elementos é casado com uma “pessoa
mestiça, europeia e asiática” e no grupo dos jovens um participante tem uma namorada brasileira.
Numa primeira abordagem a sentimentos de simpatia por pessoas de origem diferente, em to-
das as discussões houve participantes que responderam que depende das pessoas e não da
sua pertença étnica. Não obstante, acabam por fazer associações de atributos mais positivos ou
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (197)
negativos de uma forma generalista. Os participantes de estatuto social médio-alto revelam uma
maior abertura face à imigração e têm contacto profissional frequente com pessoas pertencentes
a categorias minoritárias que partilham do mesmo estatuto social. Os participantes de estatuto
social médio-médio e médio-baixo revelam menor abertura e maior desconfiança. No seu discurso
repisam aspetos negativos que associam à imigração, tais como o aumento do desemprego e da
criminalidade. O estatuto social e a educação, enquanto elementos de contraste moldadores de
interesses e afinidades com o Outro, foram referidos unicamente por participantes dos grupos de
adultos de estatuto médio-alto e de jovens de estatuto médio-médio.
Entre os participantes grassa a convicção de que o racismo tem vindo a aumentar de forma legí-
tima face ao aumento da criminalidade em geral e das ofensas mais sérias em particular (sendo
as últimas tendencialmente atribuídas aos brasileiros), face ao aumento do desemprego e face à
(198) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
perceção de que os imigrantes recebem mais apoios sociais do que os portugueses. Esta última
ligação é sobretudo avançada pelos participantes de estatuto social médio-médio e médio-baixo,
que partilham ainda noções como a de que a imigração levou a uma contração dos salários
para os portugueses autóctones; de que os imigrantes recebem mais apoio do Estado do que
os cidadãos portugueses; ou de que o Estado serve mal os interesses dos cidadãos ao permitir
que imigrantes como os romenos entrem no país sem quaisquer condições de contribuir para o
desenvolvimento socioeconómico do país. Tais cognições levam a sentimentos de estarem a ser
traídos pelas elites políticas e de privação relativa face aos próprios imigrantes, o que por sua vez
constitui um caldo de cultura que fomenta o racismo. A relação entre imigrantes e portugueses é
percecionada nos estratos sociais inferiores como sendo fundamentalmente uma competição por
recursos escassos. Ainda assim, os participantes de estatuto social médio-baixo consideram que é
melhor ser pobre do que pertencer a uma categoria minoritária.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (199)
(negros, ciganos, brasileiros) como de decência (mulheres brasileiras) ou valores fundamentais
(muçulmanos). Em todos os estratos a imigração é consensualmente associada à violência e cri-
minalidade. As categorias mais associadas com estes aspetos são os negros, a quem é apontada
responsabilidade por delitos menores, e os brasileiros, aos quais é imputada a criminalidade mais
violenta. Os ucranianos também são mencionados a este propósito, embora menos frequente-
mente. Neste contexto, os participantes vêm ainda a classe política como facilitadora da entrada
de imigrantes e, por conseguinte, principal responsável pela insegurança que sentem. Os negros,
brasileiros e ciganos são as categorias mais visadas pelos discursos racistas que fomos capazes
de escrutinar com esta metodologia. O racismo face aos ciganos escapa à norma anti-racista,
sendo facilmente assumido.
2. QUADROS SÍNTESE
2.1. Comparação dos grupos
Estatuto médio-alto Estatuto médio-médio Estatuto médio-baixo Estatuto médio-médio
[35,55] [35,55] [35,55] [18,25]
Negação do papel do Os obstáculos à Os obstáculos à Negação do papel do
fenótipo e afirmação do convivialidade são convivialidade são fenótipo e afirmação do
papel da educação ou definidos em termos definidos em termos papel da educação ou
estatuto social. comportamentais. comportamentais. estatuto social.
Hostilidade para com a Hostilidade para com a Hostilidade para com a Hostilidade para com a
perceção de hostilidade perceção de hostilidade perceção de hostilidade perceção de hostilidade
da parte dos ciganos. da parte dos ciganos. da parte dos ciganos. da parte dos ciganos.
(200) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
A sistematização dos resultados permite entender similitudes entre os participantes dos grupos
de estatuto médio-alto e jovens de estatuto médio-médio. Ambos os grupos tendem a produzir dis-
cursos menos essencialistas e a valorizar as afinidades sociais enquanto elementos fundamentais
para a convivialidade. Em termos gerais, a grande diferença centra-se na valorização de dimensões
divergentes do processo de integração de imigrantes.
Um aspeto comum a todos os grupos é a hostilidade aos ciganos argumentada como reação à
própria hostilidade destes para com a população maioritária.
Com base na análise dos discursos dos participantes nos grupos de discussão, procurámos apurar
quais os principais argumentos racistas, no sentido de terem como efeito o estabelecimento,
sustentação e reforço de relações de poder opressivas entre as categorias sociais que constroem
(Wetherell e Potter, 1992: 70). Classificámos os discursos produzidos de acordo com a lógica
de argumentação em diferentes categorias: Parasitismo; Indolência; Normatividade territorial;
Criminalidade; Privação relativa; Culpabilização da vítima; Discriminação dupla; Efeitos de classe;
Fanatismo e Competição económica. A sistematização da argumentação é, desta feita, esquema-
tizada e ilustrada com declarações típicas de cada um dos argumentos usados:
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (201)
Argumento Discurso dos participantes
Para mim, os ciganos é a pior raça. São os parasitas da sociedade, não fazem nada.
90% deles ganham aqueles subsídios que dão agora e muitos deles com bom cabedal
Parasitismo: para trabalhar.
O ponto deste argumento é
que as minorias gostam de
viver à custa da população Muitos deles estão cá a viver às nossas custas [imigrantes].
maioritária
Os da raça negra acho que sim (…). Porque nós damos casas, damos tudo e eles não
nos dão nada, entre aspas. Não dão nada positivo para o país.
Para mim, vai dar tudo à mesma coisa. Os romenos ou os ciganos (…). O feitio de não
trabalhar, viver à custa da sociedade, enganarem as pessoas.
Indolência:
O ponto deste argumento é
que algumas minorias não Acho que os brasileiros não gostam de trabalhar.
gostam de trabalhar
Não gostam de trabalhar. Estou a falar no geral [Africanos].
Normatividade Porque é que essa raça veio para cá? Fez esses quilómetros todos e veio para este
territorial: país? [Romenos]
O ponto deste argumento é
que todos viveriam melhor Num mundo à parte em qualquer sítio que estejam… tipo se pensarmos nos
se ninguém deixasse o seu africanos, em África eles estão no sítio deles. Pronto… enquanto os ciganos, não têm
país de origem o sítio deles… ou seja, são sempre estranhos onde quer que estejam.
(202) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Argumento Discurso dos participantes
Matam assim como quem bebe um copo de água e é do feitio deles… [dos brasileiros]
As casas mais baratas, são só eles que lá estão. Têm leite da Agros, têm apoios, têm
tudo. As pessoas que estão cá deviam estar à frente das que vêm de fora. Mesmo
que as pessoas não queiram, acabam por se sentir discriminadas e acabam por
discriminar também. Chegamos a ser discriminados, racistas. Primeiro devia haver
Privação Relativa: para quem está cá [Imigrantes].
O ponto deste argumento
é que as minorias Há portugueses que não têm casa. Quer dizer, acho que, nesse caso, então, há
recebem, regra geral, mais racismo entre nós. Se estão a dar prioridade aos imigrantes, em relação a cá, então
privilégios que a população acho que…
maioritária
Se for um português, ficará sempre para trás de, por exemplo um cigano. Um cigano
é capaz de ter aquele poder de persuadir a assistente social, por exemplo, e consegue
ter casa. O português não consegue. É um facto.
São muito racistas. São muito racistas entre eles e em relação a nós. São mais
Culpabilização da racistas connosco do que nós com eles [Negros].
vítima:
O ponto deste argumento Os ciganos? São [discriminados], mas também muitos deles fazem por isso.
é que as minorias
são, de alguma forma,
responsáveis pela sua Não se trata de ter dificuldade em relacionar-me com eles, acho que eles é que têm
discriminação dificuldade, alguns deles, em relacionar-se com as outras pessoas, eles têm uma
cultura muito forte, eles têm costumes muito fortes mesmo [Ciganos].
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (203)
Argumento Discurso dos participantes
Discriminação dupla: Isso é muito relativo. Eu tenho no meu prédio pessoas que trabalham na Embaixada
efeitos de classe com embaixadores, negros, que têm um nível completamente diferente. (…) É
O ponto deste argumento completamente diferente de outro tipo de negro que a gente encontra aí na rua.
é que a discriminação não
é orientada pelos traços Isso já tem a ver com a educação que lhes é dada em casa também, parte muito das
fenotípicos ou pela cultura, escolas, parte da educação familiar [em relação às minorias].
no sentido antropológico
do termo, mas antes
por outras propriedades [A dificuldade em comunicar com os africanos prende-se] Com a falta de instrução do
sociais, tais como a outro lado. Com a falta de instrução.
educação
Por exemplo, eu teria muita dificuldade em conseguir adaptar a minha vida e o meu
dia-a-dia e a minha maneira de ser a alguém que fosse budista, porque eu acho que
é totalmente extremista em relação aos princípios que eu tenho. (…) O meu problema
não era adaptar-me às pessoas, era adaptar-me ao meio dele e ele adaptar-se ao meu
para termos um meio-termo e vivermos em sociedade os dois. Porque é totalmente
Fanatismo: díspar.
O ponto deste argumento
é que as minorias de Se calhar, com pessoas como muçulmanos extremistas ou budistas ou ortodoxos,
determinadas religiões são provavelmente, ente nós e essas pessoas nunca haveria uma ponte, uma ligação,
fundamentalistas uma afinidade que permitisse essa ligação.
Sou sincera, não gosto muito desses muçulmanos (…). Não gosto, não sei. Lá
a religião deles, aquela coisa das torres gémeas. São bombistas, associo-os a
terrorismo, não gosto.
Em princípio, tiram muitos empregos, principalmente aos jovens. Porque lá está, foi o que
eu disse há bocado, eles sujeitam-se a ordenados mais baixos e eles chegam e dizem:
“Meu senhor, eu procuro trabalho, por menos 100 euros, faço esse trabalho” [Imigrantes].
Competição económica:
O ponto deste argumento Há alguns dias, ouvimos falar que fechou uma fábrica, fechou outra, já é para nós
é que as minorias tiram difícil manter os nossos empregos. Eu, pessoalmente, penso assim, vêm aqueles
o emprego/provocam agora e o pouco que já há, já vêm tirar.
a descida de salários à
população maioritária
E devia mesmo, se fosse possível, dizer ao nosso primeiro-ministro que as fronteiras
foram abertas, muito para este povo todo. Vieram sufocar o nosso país, Portugal é
muito pequenino [em relação aos imigrantes].
(204) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
RECOMENDAÇÕES PARA POLÍTICA PÚBLICA
Nos últimos anos Portugal tem assistido a uma aumento de meios e medidas de combate ao racis-
mo e xenofobia. O ACIDI inventariou as boas práticas existentes em matéria de combate à discri-
minação e ao racismo no Technical Report on Identifying Best Practices to Combat Discrimination
(Frechaut e Rosário, 2009) que produziu no âmbito do Projeto Europeu Living Together: European
Citizenship against Racism and Xenophobia.55 Não obstante, as conclusões deste trabalho apon-
tam para a persistência de discursos racistas na sociedade portuguesa, independentemente da
pertença de género, escalão etário, estatuto sócio-económico ou nível de educação das pessoas
que vão atualizando esses discursos.
Dado não estarmos a trabalhar com base na oposição convencional entre discurso e prática, mas
sim a considerar o discurso como prática social de pleno direito, não se nos coloca a questão de
saber se o discurso tem tradução prática. Sendo pois certo que à igualdade de jure que vigora
em Portugal não corresponde sempre uma igualdade de fato, importa todavia saber que aperfei-
çoamentos poderão ser introduzidos a nível legal, ainda que estejamos conscientes de antemão
que estes não bastam, por si só, para produzir resultados. Relatórios de nível europeu, como os
da ECRI ou da Rede Europeia de Peritos Legais em Matéria de Anti-discriminação,56 alertam para
a pertinência de constituir a discriminação racial como circunstância agravante geral de todas as
infrações, nomeadamente dos crimes previstos no Código Penal, e ratificar instrumentos legais
internacionais em matéria de anti-discriminação.
55 Acessível em: http://livingtogether.
oberaxe.es/livingtogether/.
De forma conexa, e atendendo a que a discriminação racial, 56 No âmbito desta rede fundada pela
étnica, religiosa, linguística e outras são pouco frequentemente Comissão Europeia em 2004, consulte-se,
para uma revisão das medidas anti-
operacionalizadas em processos administrativos ou judiciais em discriminatórias em Portugal, o relatório
de 2008 referente a este país (acessível
Portugal, é ainda pertinente evitar quaisquer perdas que possam em: http://www.non-discrimination.net/
content/media/2008-PT-Country%20
ocorrer já na própria máquina judicial, nomeadamente sensibi- Report%20final.pdf) e, para uma perspetiva
lizando os seus agentes para a discriminação racial mediante comunitária, o estudo comparativo dos 27
Estados-membros (acessível em: http://
www.non-discrimination.net/content/
media/Comparitive%20EN.pdf).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (205)
ações de formação orientadas especificamente para polícias, procuradores e juízes.
Dada a dupla hostilidade detetada para com os imigrantes, fundada na perceção de uma privação
relativa, e para com as elites políticas, vistas como abrindo mão de controlar os influxos, seria
também pertinente o Estado tornar-se proativo no evidenciar da universalidade dos apoios sociais,
nomeadamente junto dos estratos sociais subordinados. Ainda que um eventual aumento dos
candidatos e, por conseguinte, das prestações possa provocar alguma tensão financeira, tal é
certamente preferível à alternativa.
Também o público em geral carece de disseminação das normas e mecanismos anti-racismo. Tal
pode passar por ações diretas como a circulação de brochuras como Imigração – Mitos e Factos,
publicada pelo ACIDI, junto de escolas, institutos públicos, serviços de saúde e outros com um
público alargado. Ainda na mesma lógica de ataque direto à questão, é também possível pensar
na promoção de campanhas publicitárias alusivas à temática (por exemplo, o que seria da seleção
nacional de futebol sem Eusébio ou da literatura universal sem Dumas?). Contudo, parece-nos
também interessante considerar ações mais subtis, como a concertação com os media para colo-
cação de conteúdos em ficção popular, integrando a luta contra o racismo nas próprias narrativas
(telenovelas, séries juvenis), ou, no caso da televisão pública, a passagem de séries documentais
como City Folk57 ou 6 Millards d’Autres58 em horário nobre.
Como observámos, em Portugal parece não existir ainda um corpo consolidado de estudos ou,
sequer, uma área de investigação relativamente autónoma.
57 Veja-se http://www.ebu.ch/en/
eurovisiontv/documentary/city_folk.php.
58 Veja-se www.6milliardsdautres.org.
(206) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Importa, por isso, encetar análises objetivas acerca, por exemplo, das práticas e do comporta-
mento de senhorios e empregadores quando a um mesmo anúncio respondem candidatos com
perfis semelhantes e fenótipos diferentes, à semelhança do que se faz há décadas num conjunto
significativo de países e se designa convencionalmente por metodologia da OIT.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (207)
BIBLIOGRAFIA E FONTES
BIBLIOGRAFIA
ALEXANDRE, V. (1999), “O Império e a ideia de raça (séculos XIX e XX)”, in VALA, J. (org.), Novos
Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora, pp. 133-144.
ALMEIDA, M. V. (2000), Um Mar Cor de Terra: Raça, cultura e política da identidade, Oeiras: Celta
Editora.
ALY, G. e ROTH, K. H. (2004), The Nazi Census. Identification and Control in the Third Reich,
Filadélfia: Temple University Press.
(208) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
BARKER, M. (1981), The New Racism: Conservatives and the ideology of the tribe, Londres:
Junction Books.
BASTOS, J. G. P., CORREIA, A. C., e RODRIGUES, E. (2006), Sintrenses Ciganos: uma abordagem
estrutural-dinâmica, Sintra: Câmara Municipal de Sintra.
BOSWELL, C. (2008), “The political functions of expert knowledge: knowledge and legitimation in
European Union immigration policy”, in Journal of European Public Policy, n. º15, pp. 471-488.
BURGUIÈRE, A., e GREW, R. (orgs.) (2001), The construction of minorities: Cases for comparison
across time and around the world, Michigan: University of Michigan Press.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (209)
sobre minorias raciais e étnicas”, in Actas do V Congresso Português de Sociologia – Sociedades
Contemporâneas: Reflexividade e acção, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de maio de 2004.
CÁDIMA, R., e FIGUEIREDO, A. (2003), Representações (Imagens) dos Imigrantes e das Minorias
Étnicas nos Media, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.
CASA-NOVA, M. J. (2004b), “Etnicidade e educação familiar: o caso dos ciganos”, in Actas dos
Ateliers do V Congresso Português de Sociologia – Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e
(210) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Acção. Atelier: Famílias, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de maio de 2004
(Disponível em: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628d0520279d_1).
CASA-NOVA, M. J. (2006), “A relação dos ciganos com a escola pública: contributos para a
compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional”, in Interacções, n.º2, pp.
155-182 (Disponível em: http://nonio.eses.pt/interaccoes/artigos/B7.pdf).
CORREIA, A. (2007), «Filhos da estrada e do vento… e da miséria. Porque estas terras são todas
deles». Danos de um relacionamento desigual de longa data, ECT: ISCTE
(disponível em: http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=216&cf=3).
CORREIA, I., BRITO, R., VALA, J., e PEREZ, J. A. (2001), Normes antiracistes et persistance du
racisme flagrant: analyse comparative des attitudes face aux tziganes et face aux noirs au Portugal.
Working Paper 1/01, Lisboa: Centro de Investigação e de Intervenção Social.
CORTESÃO, L., STOER, S., CASA-NOVA, M. J, e TRINDADE, R. (2005), Pontes para Outras Viagens.
Escola e comunidade cigana: Representações recíprocas, Lisboa: ACIME e FCT.
COSTA, A. B., e PIMENTA, M. (coord.) (1991), Minorias Étnicas Pobres em Lisboa, Lisboa: Centro
de Reflexão Cristã.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (211)
CUNHA, I. F., SANTOS, C. A., SILVEIRINHA, M. J., e PEIXINHO, A. T. (2004), Media, Imigração e
Minorias Étnicas, Lisboa: ACIME.
CUNHA, I. F., SANTOS, C. A., VALDIGEM, C., e FILHO, W. S. (2006), Media, Imigração e Minorias
Étnicas II, Lisboa: ACIME/ Observatório da Imigração.
CUNHA, L. (1994), A Imagem do Negro na Banda Desenhada do Estado Novo, Relatório de aula
teórico-prática – Provas de Aptidão Pedagógica, Braga: Universidade do Minho.
D’APPOLLONIA, A. C. (1998), Les racismes ordinaires, Paris: Les Presses de Sciences Po.
DIAS, E. C., ALVES, I., VALENTE, N., e AIRES, S. (2006), Comunidades Ciganas. Representações
e dinâmicas de exclusão/integração, Coleção Olhares n.º 6, Lisboa: ACIME
(Disponível em: http://www.ciga-nos.pt/UserFiles/Files/ciganos6.pdf).
DUARTE, I., CASTRO, A., AFONSO, J., SOUSA, M., ANTUNES, M. S., e ANTUNES, M. J. L. (2005),
Coexistência Inter-Étnica, Espaços e Representações Sociais: os ciganos vistos pelos outros,
Coleção Olhares, n.º 4, Lisboa: ACIME.
ESTEVES, M. C. (Org.) (1991), Portugal, País de Imigração, Lisboa: Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento.
(212) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
FAÍSCA, L., e JESUÍNO, J. C. (2006), Representações Sociais da Comunidade Cigana na Sociedade
Portuguesa, Lisboa: ACIME.
FENTON, S. (1999), Ethnicity: Racism, class and culture, Hong Kong: Rowman e Littlefield
FERIN, I., e SANTOS, C. A. (2008), Media, Imigração e Minorias Étnicas 2005-2006, Lisboa:
ACIDI/ Observatório da Imigração.
FERIN, I., e SANTOS, C. A. (2008a), Resumo do Estudo: Media, Imigração e Minorias Étnicas
2005-2006. Lisboa: ACIDI/ Observatório da Imigração
(Disponível em: http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Estudos_OI/Resumo_Estudo_OI28_.pdf).
FERRO, M. (1994), Histoire des colonisations. Des conquêtes aux indépendances – XIIIe-XXe
siècles, Paris: Seuil.
FREDRICKSON, G. M. (2004 [2002]), Racismo. Uma breve história, Porto: Campo das Letras.
GAERTNER, S. L., e DOVIDIO, J. F. (1986), “The aversive form of racism”, in DOVIDIO, J.F. e
GAERTNER, S.L. (orgs.) Prejudice, discrimination, and racism, Orlando: Academic Press, pp.
61-89.
GONÇALVES, A., GARCIA, O., e BARRETO, P. (2006), Tradição e Prospectiva nos Meandros da
Economia Cigana. Circuitos peri-económicos na Grande Lisboa, Coleção Olhares, n.º5, Lisboa:
ACIME.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (213)
HUNTINGTON, S. P. (1993), “The clash of civilizations?”, in Foreign Affairs, vol. 3, n.º72, pp.
22-49.
HUNTINGTON, S. P. (1996), The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Nova
Iorque: Simon & Schuster.
KATZ, I., e HASS, R. G. (1988), „Racial ambivalence and American value conflict: Correlational
and priming studies of dual cognitive structures”, in Journal of Personality and Social Psychology,
n.º55, pp.893-905.
LAGES, M., e POLICARPO, V. (2003), Atitudes e Valores perante a Imigração, Lisboa: ACIME/
Observatório da Imigração.
LAGES, M., POLICARPO, V., MARQUES, J. C., MATOS, P. L., e ANTÓNIO, J. (2006) Os Imigrantes e
a População Portuguesa. Imagens recíprocas. Lisboa: ACIME/ Observatório da Imigração.
LEACH, C. W. (2005), “Against the notion of a «New Racism»”, in Journal of Community & Applied
Social Psychology, n.º15, pp. 432-445.
LIÉGEOIS, J-P. (2001), Minorias e Escolarização: o rumo cigano, Lisboa: Centre de Recherches
Tsiganes/Secretariado Entreculturas.
LIMA, M. E. O., e VALA, J. (2004), “As novas formas de expressão do preconceito e do racismo”,
in Estudos de Psicologia, vol. 9, n.º3, pp. 401-411.
(214) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
LOPES, P. (1999), Portugal: Holograma da mobilidade humana, Lisboa: Rei dos Livros.
LOURENÇO, E. (1999), Portugal como Destino; Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa: Gradiva.
MACHADO, F. L., AZEVEDO, J., e MATIAS, A. R. (2009), Bibliografia e Filmografia sobre Imigração
e Minorias Étnicas em Portugal (2000/2008), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
MCCONAHAY, J. B. (1986), “Modern racism, ambivalence, and the modern racism scale”, in
DOVIDIO, J. F. e GAERTNER, S. L. (orgs.), Prejudice, discrimination and racism, Nova Iorque:
Academic Press, pp. 91-125.
MAGANO, O. (2007), “A reprodução das desigualdades sociais dos ciganos em Portugal”, in Actas
da Conferência First International Conference of Young Urban Researchers (Ficyurb), Lisboa, 11-12
de Junho 2007 (Disponível em: http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=166&cf=3)
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (215)
MARQUES, J. F. (2000), “O neo-racismo europeu e as responsabilidades da Antropologia”, in
Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º56, pp.35-60.
MARQUES, J. F. (2004), “Os dois racismos dos portugueses”, in Actas dos Ateliers do V Congresso
Português de Sociologia – Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção. Atelier: Migrações
e Etnicidades, Braga: Universidade do Minho, 12-15 de Maio de 2004
(Disponível em: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628e42e3f7b8_1.pdf).
MARQUES, J. F. (2007), Do «Não Racismo» Português aos Dois Racismos dos Portugueses,
Lisboa: ACIDI/ Observatório da Imigração.
MACHIELS, T. (2002), Garder la distance ou saisir les chances. Roms et gens du voyage en Europe
occidentale, Bruxelles: Réseau Européen contre le Racisme.
MENDES, M. M. (2005), Nós, os Ciganos e os Outros: Etnicidade e exclusão social, Lisboa: Livros
Horizonte.
(216) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
MENDES CORRÊA, A. A. (1940c), “O mestiçamento nas Colónias Portuguesas”, in COMISSÃO
EXECUTIVA DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 14, Tomo
1.º, Secção I. Memórias e comunicações apresentadas ao Congresso Colonial (IX Congresso),
Porto: Imprensa Portuguesa, pp. 113-133.
MORGAN, D. L. (1997), Focus Groups as Qualitative Research, Thousand Oaks, Londres e Nova
Deli: Sage.
NOGUEIRA, F. (1985), Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1964-1970), Porto: Livraria Civilização.
PEDERSEN, A., e WALKER, I. (1997), “Prejudice against Australian Aborigines: Old-fashioned and
modern forms”, in The European Journal of Social Psychology, n.º27, pp. 561-587.
PEIXE, B., ROSÁRIO, E., SILVA, E., SOARES, P., KUMAR, R., RALHA, T., e SANTOS, T. (2008), O
Racismo e a Xenofobia em Portugal (2001-2007), Oeiras: Númena
(Disponível em: http://www.amnistia-internacional.pt/dmdocuments/Estudo_Racismo_Portugal.pdf).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (217)
PETTIGREW, T. F., e MEERTENS, R. W. (1995), “Subtle and blatant prejudice in Western Europe”,
European Journal of Social Psychology, n.º25, pp. 57-75.
RAMOS, R. (2000), “Um novo Brasil de um novo Portugal. A história do Brasil e a ideia de
colonização em Portugal nos séculos XIX e XX”, in Penélope, n.º23, pp.129-152
(Disponível em: http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_23/23_10_RRamos.pdf).
REX, J., e MOORE, R. (1967), Race, Community and Conflict: a study of Sparkbrook, Londres e
Nova Iorque: Oxford University Press.
ROSA, M. J., SEABRA, H., e SANTOS, T. (2004), Contributos dos Imigrantes na Demografia
Portuguesa, Lisboa: ACIME/Observatório da Imigração.
ROSÁRIO, E., di SCIULLO, L., ABRANCHES, M., e SANTOS, T. (2008), Medir a Integração: o caso
de Portugal. Indicadores regionais de inserção socioeconómica dos nacionais de países terceiros,
Lisboa: OIM.
SALZANO, F. M. (2005), “Raça, racismo e direitos humanos”, Horizontes Antropológicos, n.º 23,
pp.225-227 (Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/a15v1123.pdf)
(218) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
SANTOS, A. M. (1966), Mitificação da Cor. Perspectivas de psicologia social, Lisboa: LIAM.
SANTOS, T., OLIVEIRA, C. R., ROSÁRIO, E., KUMAR, R., e BRIGADEIRO, E. (2009), Research
Survey on Migrants’ Experiences of Racism and Discrimination in Portugal. Oeiras: Númena.
SEARS, D. O., e KINDER, D. R. (1971), “Racial tensions and voting in Los Angeles”, in HIRSCH,
W. Z. (org.), Los Angeles: viability and prospects for metropolitan leadership, Nova Iorque: Praeger,
pp. 51-88.
SILVA, M. C., e SILVA, S. (2002), “Práticas e representações sociais face aos ciganos. O caso
de Vila Verde”, in Sociedade Portuguesa. Passados Recentes, Futuros Próximos. Actas do IV
Congresso Português de Sociologia, Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia.
SOS RACISMO (2001), Ciganos: Números, abordagens e realidades, Lisboa: SOS Racismo.
STEWART, D. W., SHAMDASANI, P. N., e ROOK, D. W. (2006), Focus Groups. Theory and practice,
Londres: Sage.
TAJFEL, H. (1983), Grupos humanos e categorias sociais: estudos em psicologia social II, Lisboa:
Livros Horizonte.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (219)
TAMAGNINI, E. (1940), “Os grupos sanguíneos dos portugueses, in COMISSÃO EXECUTIVA
DOS CENTENÁRIOS, Congresso do Mundo em Português Publicações: Vol. 8, Tomo 1.º. Actas,
memórias e comunicações do Congresso Nacional de População, Porto: Imprensa Portuguesa,
pp. 3-27.
TAGUIEFF, P. A. (1997), Le racisme. Un exposé pour comprendre. Un essai pour réfléchir, Paris:
Flammarion.
TORRES, A. (1990), “As colónias: da perda do Brasil à luta contra a escravatura”, in Portugal
contemporâneo, Vol. I, Lisboa: Alfa, pp. 137-150.
TURRA, C. e VENTURI, G, (1995), Racismo cordial: a mais completa análise sobre preconceito de
cor no Brasil, São Paulo: Ática.
VALA, J. (org.) (1999), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora.
VALA, J., BRITO, R., e LOPES, D. (1999a), “O racismo subtil e o racismo flagrante em Portugal”,
in.VALA, J. (org.), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras: Celta Editora, pp. 31-59.
VALA, J., BRITO, R., e LOPES, D. (1999b), Expressões dos racismos em Portugal: Perspectivas
psicossociológicas, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.
VALA, J., LOPES, D., e BRITO, R. (1999), “A construção social da diferença. Racialização e
etnicização das minorias”, in VALA, J. (org.), Novos Racismos. Perspectivas comparativas, Oeiras:
(220) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Celta Editora, pp. 145-167.
VALENTE ROSA, M., SANTOS, T. e SEABRA, H. (2004), Contributos dos “imigrantes” na Demografia
Portuguesa: o papel das populações de nacionalidade estrangeira, Lisboa: ACIME/ Observatório
da Imigração.
WELLMAN, D. (1993), Portraits of White Racism, Nova Iorque: Cambridge University Press.
WETHERELL, M., e POTTER, J. (1992), Mapping the Language of Racism: Discourse and the
legitimation of exploitation, Nova Iorque: Columbia University Press.
WILLIAMS, R. (1983 [1976]), Keywords: a vocabulary of culture and society, Nova Iorque: Oxford
University Press.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (221)
LEGISLAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO OFICIAL
AGÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA (FRA) (2007). Trends and
Developments 1997-2005 – Combating Ethnic and Racial Discrimination and Promoting Equality
in the European Union, Viena: FRA
(disponível em: http://fra.europa.eu/fraWebsite/attachments/Trends_en.pdf).
APAV (2006), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2005, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/totais_nacionais_2005.pdf).
APAV, (2007), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2006, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/totais_nacionais_2006.pdf).
APAV, (2008), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2007, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/APAV_Totais_Nacionais_2007.pdf).
APAV, (2009), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2008, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/APAV_Totais_Nacionais_2008.pdf).
APAV (2010), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2009, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/estatisticas_apav_2009.pdf).
(222) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Racial ou Étnica [UAVIDRE], 2005/2009, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV (disponível em:
http://www.apav.pt/portal/pdf/Estatisticas_UAVIDRE_2005-2009.pdf).
APAV (2011), Estatísticas APAV. Totais nacionais 2010, Lisboa: Unidade de Estatística da APAV
(disponível em: http://www.apav.pt/portal/pdf/Estatisticas_APAV_2010.pdf)
“Aviso n.º 95/2001”, in Diário da República, n.º 196, Lisboa: Imprensa Nacional, p. 5440.
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2001/08/196A00/54405440.pdf).
“Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01)”, in Jornal Oficial
das Comunidades Europeias, n.º C 364, 18 de dezembro de 2000, Luxemburgo: Serviço das
Publicações da União Europeia, pp. 1-22
(disponível em: http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf).
COMISSÃO EUROPEIA (2009), Eurobarómetro 71.2. Resultados para Portugal. (disponível em:
http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_317_fact_pt_pt1.pdf)
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (223)
Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976. VII Revisão Constitucional. (2005).
(disponível em: http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.
aspx.)
Constituição Política da República Portuguesa & Acto Colonial, 1945, Edição Oficial: Lisboa.
Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura relativa à
luta contra a discriminação no campo do ensino, 14 dezembro 1960. (disponível em: http://
www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-cdiscriminacao-
ensino.html).
Convention on the Participation of Foreigners in Public Life at Local Level, 5 de fevereiro 1992,
Estrasburgo: Conselho da Europa
(disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/144.htm).
Decreto-Lei n.º 3-A/96 de 26 de Janeiro” in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 22, Lisboa: Imprensa
Nacional, p. 142-(2) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1996/01/022A01/00020002.pdf).
(224) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Decreto-Lei n.º 111/2000 de 4 de Julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 152, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 2885-2887
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2000/07/152A00/28852887.pdf).
Decreto-Lei n.º 119/83 de 25 de fevereiro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 46, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 643-656 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1983/02/04600/06430656.pdf).
Decreto-Lei n.º 167/2007 de 3 de maio, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 85, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2950-2954 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2007/05/08500/29502954.pdf).
Decreto-Lei n.º 296-A/95 de 17 de novembro, in.Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 266, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 7084-(2)-(7)
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1995/11/266A01/00020007.pdf).
Decreto-Lei n.º 251/2002 de 22 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 270, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 7328-7331
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2002/11/270A00/73287331.pdf).
Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 221, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 3006-(2)-(64) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1982/09/22101/00020064.pdf).
Decreto-Lei n.º 442/91 de 15 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 263, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5852-5871 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1991/11/263A00/58525871.pdf).
Decreto-Lei n.º 595/74 de 7 de novembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 259, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 1344-1346. (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1974/11/25900/13441346.pdf).
Decreto-Lei n.º 39666 de 20 de maio de 1954, in Boletim Oficial de Angola, 1.ª série, n.º 22,
Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 374-378.
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (225)
Despacho do Ministério da Administração Interna n.º 8684/99 (2.ª Série) de 20 de abril, in Diário
da República, 2.ª Série, n.º 102/99, Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 6520-6522. (disponível em:
http://dre.pt/pdfgratis2s/1999/05/2S102A0000S00.pdf).
Diretiva do Conselho Europeu n.º 2000/43/CE de 29 de junho de 2000, in Jornal Oficial das
Comunidades Europeias, n.º L 180, 19 de julho de 2000, Luxemburgo: Serviço das Publicações
da União Europeia, pp. 22-26
(disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32000L0043:PT:HTML).
European Charter for Regional or Minority Languages, 5 novembro 1992, Estrasburgo: Conselho
da Europa. (disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/148.htm).
EUROSTAT (2010), “Foreigners living in the EU are diverse and largely younger than the nationals
of the EU Member States”, in Statistics in Focus, 45/2010 (disponível em:
http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_OFFPUB/KS-SF-10-045/EN/KS-SF-10-045-EN.PDF).
GRUPO DE TRABALHO PARA A IGUALDADE E INSERÇÃO DOS CIGANOS (GTIIC) (1998), Relatório
do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, Lisboa: ACIME.
(226) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
GRUPO DE TRABALHO PARA A IGUALDADE E INSERÇÃO DOS CIGANOS (GTIIC) (2000), Relatório
do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, Lisboa: ACIME.
International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of
Their Families, 18 dezembro 1990.
(disponível em: http://www2.ohchr.org/english/law/cmw.htm).
Lei n.º 1/99 de 13 de janeiro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 10, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 198-201 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/01/010A00/01980201.pdf).
Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 30, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 926-1029 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2009/02/03000/0092601029.pdf).
Lei n.º 15/98 de 26 de março, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 72, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 1328-1335 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/03/072A00/13281335.pdf).
Lei n.º 16/2004 de 11 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 110, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 2962-2971 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2004/05/110A00/29622971.pdf).
Lei n.º 18/2004 de 11 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 110, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2971-2974 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2004/05/110A00/29712974.pdf).
Lei n.º 20/96 de 6 de julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 155, Lisboa: Imprensa Nacional,
p. 1754 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1996/07/155A00/17541754.pdf).
Lei n.º 27/2008 de 30 de junho, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 124, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 4003-4018 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2008/06/12400/0400304018.pdf).
Lei n.º 31-A/98 de 14 de julho, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 160, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 3384(2)-(13) (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/07/160A01/00020013.pdf).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (227)
Lei n.º 32/2003 de 22 de agosto, in Em Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 193, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5329-5344 (disponível em:: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/193A00/53295344.pdf).
Lei n.º 38/98 de 4 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 178, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 3731-3737 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/08/178A00/37313737.pdf).
Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 146, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 4876-4886 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2009/07/14600/0487604886.pdf).
Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série, n.º 170, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 6181-6258 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2007/09/17000/0618106258.pdf).
Lei n.º 67/98 de 26 de outubro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 247, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 5536-5546 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1998/10/247A00/55365546.pdf).
Lei n.º 70/93 de 29 de setembro, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 229, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5448-5453 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1993/09/229A00/54485453.pdf).
Lei n.º 99/2003 de 27 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 197, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 5558-5656 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/197A00/55585656.pdf).
Lei n.º 134/99 de 28 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 201, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 5945-5947 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/08/201A00/59455947.pdf).
Lei n.º 144/99 de 31 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 203, Lisboa: Imprensa Nacional,
pp. 6012-6040 (disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/1999/08/203A00/60126040.pdf).
Lei Orgânica n.º 2/2003 de 22 de agosto, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 193, Lisboa:
Imprensa Nacional, pp. 5306-5310
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2003/08/193A00/53065310.pdf).
Lei Orgânica n.º 2/2008 de 14 de maio, in Diário da República, 1.ª Série-A, n.º 93, Lisboa: Imprensa
Nacional, pp. 2633-2637
(disponível em: http://www.dre.pt/pdf1sdip/2008/05/09300/0263302637.pdf).
(228) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
OBRA NACIONAL DA PASTORAL DOS CIGANOS (2000), Projecto Dignidade. Relatório, Lisboa:
Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos [Texto policopiado].
Protocol No. 12 to the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms,
4 novembro 2000, Roma: Conselho da Europa
(disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/177.htm).
Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, in Diário da República, 1.ª Série-B, n.º 50,
Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 1669-1671
(disponível em: http://dre.pt/pdf1sdip/2002/02/050B00/16691671.pdf).
Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias (229)
SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (2007), Relatório de Actividades 2007. Imigração,
fronteiras e asilo, Lisboa: SEF (disponível em: http://www.sef.pt/documentos/56/RA%202007_.
pdf#1).
TNS OPINION & SOCIAL (2009), Special Eurobarometer 317. Discrimination in the EU in 2009,
Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia
(disponível em: http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_317_en.pdf).
Tratado de Amesterdão. Versão Consolidada, in Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n.º C
340, 10 de novembro de 1997, Luxemburgo: Serviço de Publicações da União Europeia, pp. 145-
172 (disponível em: http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/dat/11997D/htm/11997D.html).
(230) Discursos do racismo em Portugal - Essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias
Ecología y género en diálogo interdisciplinar
ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR
Directores de la colección Moral, Ciencia y Sociedad (MCS) en la Europa del Siglo XXI: Roberto R.
Aramayo, Txetxu Ausín y Concha Roldán.
Esta obra se publica bajo una licencia libre Creative Commons Reconocimiento-NoComercial-
CompartirIgual 2.0. Se permite la copia, distribución, reproducción, préstamo y modificación
total o parcial de la misma por cualquier medio, siempre y cuando sea sin ánimo de lucro, se acre-
dite la autoría original y la obra resultante se distribuya bajo los términos de una licencia idéntica
a esta. Para usos comerciales, se requiere la autorización del editor.
Plaza y Valdés, S. L.
Murcia, 2. Colonia de los Ángeles.
28223, Pozuelo de Alarcón.
Madrid (España).
(34) 918126315
madrid@plazayvaldes.com
www.plazayvaldes.es
Plaza y Valdés, S. A. de C. V.
Manuel María Contreras, 73. Colonia San Rafael.
06470, México, D. F. (México).
(52) 5550972070
editorial@plazayvaldes.com
www.plazayvaldes.com.mx
ISBN: 978-84-16032-43-3
e-ISBN: 978-84-16032-62-4
DOI: 10.5211/9788416032624
D. L.: M-23696-2014
ÍNDICE
I. CUERPOS
II. TERRITORIOS
10. Una lectura ecofeminista de la novela de anticipación actual, Eva Antón ... 171
8 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
11. Utopías feministas: las dualidades rotas, Ángela Sierra González ............ 187
III. RESISTENCIAS
20. Más allá del mecanicismo: heroínas ecológicas del imaginario actual,
Angélica Velasco Sesma .................................................................................. 341
23. El ecofeminismo y sus compañeros de ruta. Cinco claves para una re-
lación positiva con el ecologismo, el ecosocialismo y el decrecimiento, Ali-
cia H. Puleo ...................................................................................................... 387
E
cología y Ecologismo designan un campo de saber y un movimiento social
de redefinición de la realidad que cobran impulso a finales del siglo XX y
principios del XXI al constatarse la insostenibilidad del modelo de desarrollo
vigente. Hoy remiten a una temática de vanguardia que está cada vez más presente
en el centro del debate público. La progresiva irrupción de la ecología y el ecolo-
gismo en la conciencia humana requiere transformaciones del modelo social y po-
lítico, económico y cultural. Para hacer frente a los problemas medioambientales y
limitar los daños del cambio climático que se anuncia, no basta con la búsqueda de
nuevas tecnologías. Indudablemente, estas son indispensables para alcanzar una
gestión energética más eficaz, pero la renovación tecnológica ha de ser acompañada
del despliegue de una cultura de la sostenibilidad en sus múltiples dimensiones: fi-
losófica, artística, científica… en las que las humanidades y las ciencias sociales co-
bran un papel esencial.
¿Por qué relacionar ecología y género? Varias son las razones. La igualdad efec-
tiva entre hombres y mujeres, así como la construcción de una cultura de la soste-
nibilidad y de un modelo de desarrollo realmente sostenible ocupan un lugar central
entre los retos pendientes del siglo XXI. Así lo reconocía su inclusión entre los Ob-
jetivos del Milenio. Por otro lado, como ya en 1995 señalaba la Declaración final
de la Conferencia de la Mujer de Pekín, la degradación del medio ambiente y los
desastres «naturales» asociados a ella repercuten negativamente en toda la pobla-
ción pero especialmente en las niñas y mujeres ya que aumentan la cantidad de tra-
bajo no remunerado que realizan, un trabajo imprescindible para la supervivencia
de la comunidad. La crisis ecológica dificulta y multiplica las tareas que recaen
sobre las mujeres, dada la tradicional división sexual del trabajo.
La vinculación de ecología y género no se limita a su inclusión conjunta en torno
a problemas específicos sin resolver en documentos internacionales de la importancia
de los señalados. Tiene motivaciones de orden epistemológico, ético y político que
animaron el inicio del Proyecto de Investigación Fundamental no orientada La igual-
dad de género en la cultura de la sostenibilidad: Valores y buenas prácticas para el
10 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
desarrollo solidario1 que he dirigido y que da origen a este libro. La idea rectora
que lo preside es que los instrumentos conceptuales desarrollados en la Ética eco-
lógica y en los Estudios Feministas, de las Mujeres y de Género pueden potenciarse
mutuamente. Así, hemos buscado combinar la fuerza analítica de las nociones de
ambos campos para realizar un análisis crítico de la desigualdad de género y de las
formas destructivas de relación con la naturaleza que están vinculadas a ella. Du-
rante siglos, la mayor parte de las culturas conocidas han identificado a las mujeres
con la Naturaleza y han establecido un orden jerarquizado por sexos en el que el
colectivo femenino quedaba, salvo raras excepciones, excluido de las instancias de
decisión políticas, económicas y religiosas, así como de los ámbitos de la filosofía,
la ciencia y el arte. Esta marginación, además de ser injusta con la mitad de los seres
humanos, estableció una rígida polarización por la que ciertos papeles, trabajos,
aptitudes y actitudes emocionales fueron considerados masculinos y superiores
mientras que los concebidos como femeninos eran vistos como subsidiarios e infe-
riores. Esta clasificación jerarquizada, en ocasiones explícita, y, en todo caso, siem-
pre presente, se convirtió en hegemónica a pesar de que, sin las devaluadas labores
y atenciones afectivas adscritas a lo femenino, las tareas consagradas como mascu-
linas, y hasta la vida humana misma, habrían sido imposibles.
Independientemente de los intensos debates aún no clausurados que generaron
las tesis de las éticas del cuidado y a pesar de sus graves problemas y deficiencias,
es posible afirmar que abrieron un amplio campo de comprensión con respecto a
ciertas prácticas tradicionalmente femeninas que, en el marco contemporáneo, pue-
den ser vinculadas a la preocupación medioambiental y universalizadas como po-
tencialidades propias de todo ser humano. A partir de esta hipótesis, nuestras
investigaciones se han orientado a cuatro objetivos fundamentales: El primero de
ellos consiste en realizar un análisis crítico de los aspectos sexistas y androcéntricos
del pensamiento y la cultura que sean negativos para las personas e incompatibles
con una ética ecológica a la altura de nuestro tiempo; el segundo, en contrastar los
elementos analizados con producciones culturales alternativas y buenas prácticas
orientadas a la sostenibilidad, en especial con las que provengan de mujeres, bus-
cando visibilizar a estas últimas como sujetos de cambio; el tercero, en integrar la
dimensión intercultural en la búsqueda de soluciones a los retos ecológicos y so-
ciales del presente y del futuro próximo, atendiendo a las visiones del mundo de
los pueblos originarios. La finalidad última de nuestra tarea consistía en avanzar
hacia un marco teórico generador de prácticas orientadas a la igualdad real entre
mujeres y hombres, el desarrollo humano, la educación en valores, la sostenibilidad
ambiental y el respeto a la Naturaleza no humana.
1
FEM2010-15599, concedido por el Ministerio de Ciencia e Innovación en el marco del VI Plan Na-
cional I+D+I.
INTRODUCCIÓN 11
Este libro recoge los últimos trabajos realizados por el equipo del proyecto, así
como otros provenientes de especialistas que colaboraron puntualmente como in-
vitados/as a las reuniones científicas organizadas por el mismo. No expresa, por lo
tanto, un único punto de vista que sería representativo de la totalidad de partici-
pantes, sino que, por el contrario, presenta una diversidad de planteamientos que
corresponden a los debates y a las diferencias de posicionamiento que han tenido
lugar a lo largo de los tres años de trabajo. Se divide en tres grandes partes: Cuerpos,
Territorios y Resistencias. Las dos primeras aluden a los espacios en los que Natu-
raleza y Cultura mantienen complejas relaciones que, desgraciadamente, tienden a
ser de dominio, explotación y saqueo por la conjunción de antiguos paradigmas
dualistas de fuerte signo patriarcal y nuevos modelos de globalización neoliberal
que se han construido sobre ellos. La tercera reúne estudios sobre algunas formas
de resistencia frente a la destrucción de la Naturaleza, un proceso que amenaza las
bases de la vida en la Tierra.
Cuerpos se inicia con el ineludible tema de la incidencia de la contaminación
ambiental en la salud humana. La endocrinóloga Carme Valls-Llobet («Sesgos de
género en medioambiente y salud») ilustra, con datos de estudios médicos recientes,
la peligrosa acción de los disruptores endocrinos en el cuerpo de las mujeres, acción
que va desde la alteración del ciclo menstrual, la prevalencia de la pubertad precoz,
el síndrome de ovario poliquístico y la mastopatía fibroquística hasta el inquietante
aumento del cáncer de mama de los últimos años. Ante este panorama, recuerda la
necesidad tanto de realizar cambios en las políticas sanitarias y medioambientales,
como de introducir una formación docente actualizada, libre de sesgos de género
y atenta a la relación entre medio ambiente y salud.
Con respecto al sesgo androcéntrico de la cultura y su interpretación del cuerpo
femenino, la psicoanalista Pilar Errázuriz («De lo anatómico a lo simbólico: el
cuerpo femenino en el diván psicoanalítico») muestra el salto epistemológico pro-
ducido en la teoría psicoanalítica a partir de Lacan, quien sustituye el concepto de
pene por el de falo (significante referencial del sistema sexo-género), lo cual facilitaría
la comprensión de los procesos psíquicos como parte de un contexto civilizatorio y
cultural en el cual se ha instalado la Ley del Padre. Observa que la teoría lacaniana,
quizás a su pesar, da cuenta de un recorrido de la especie a dos vías —psíquica y po-
lítica— articuladas por la dialéctica naturaleza/cultura.
Cómo vestimos nuestros cuerpos despojando a otros seres vivos de los suyos es
el tema tratado por Lucile Desblache («Las otras víctimas de la moda»). Su estudio
parte de datos empíricos que revelan la importancia acordada por las mujeres a la
moda y subraya la paradoja de que el colectivo de género que se muestra más sen-
sible a la crueldad hacia los animales manifieste tan poca preocupación hacia el ori-
gen siniestro de muchos de los productos de cosmética, ropa y accesorios que le
ofrece el mercado globalizado. Su reflexión se cierra con una llamada a renovar «el
12 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
ALICIA H. PULEO
I. CUERPOS
1. Sesgos de género en medio ambiente y salud
Carme VALLS-LLOBET
Programa de Mujeres, Salud y Calidad de Vida de Barcelona
L
a relación del medio ambiente con la salud de los seres humanos que pobla-
mos el planeta Tierra es un ejemplo concreto de la interdisciplinariedad que
debería impregnar la Ecología cuando analiza los problemas en relación a
las Ciencias de la Salud. El medio ambiente puede afectar a la salud a través de la
toxicidad de determinadas sustancias químicas o minerales que se introducen en el
cuerpo a través de la piel, del agua y de los alimentos, o de partículas en suspensión
en el aire que se introducen a través de la respiración. También las radiaciones ioni-
zantes (Rayos X, radiactividad), o no ionizantes (electromagnetismo, telefonía móvil,
antenas) afectan al cuerpo humano por el efecto directo en los tejidos.
Se calcula que, actualmente, el desarrollo industrial ha introducido en la vida
cotidiana de la población unas 80 000 sustancias químicas, de las que entre 4 000
y 8 000 están bajo sospecha de toxicidad, y se conjetura que hasta un 45 % de los
alimentos que consumimos contienen residuos tóxicos, en especial, pesticidas. Y
lo que es más alarmante, no se conoce la toxicidad del 85 % de los 3 000 productos
químicos que utilizamos en mayor cantidad.
La constatación de que algo extraño estaba pasando con los seres humanos se
empezó a conocer gracias al libro de Rachel Carson La primavera silenciosa (1962).
La divulgadora y conservacionista norteamericana padeció cáncer de mama y murió
después de enfrentarse a él y denunciar el papel de los productos químicos en la
presencia de esta enfermedad. Señaló que la suya era la primera generación de seres
humanos nacida en un medio ambiente repleto de contaminantes químicos desde
la cuna: «Por primera vez en la historia del mundo, todo ser humano está ahora su-
jeto al contacto con peligrosos productos químicos desde su nacimiento hasta su
muerte» (Carson, 2005: 15)
Durante la década de 1970 se empezó a constatar la creciente feminización de
peces y cocodrilos en el agua de los grandes lagos contaminados por vertidos tóxi-
cos. No se desarrollaban los caracteres del macho y se producía atrofia del pene y
22 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Los efectos de algunos agentes químicos en la salud —como los pesticidas, disol-
ventes, gases anestésicos, derivados de los ftalatos, dioxinas, bifenilos policlorados
y productos derivados de la combustión de la gasolina— se han ido conociendo a
través de los múltiples trabajos de investigación que se han publicado en los últimos
treinta años. La salud ambiental es una ciencia muy reciente todavía y que tiene
grandes dificultades —supone investigaciones costosas— para demostrar las rela-
ciones del medio ambiente con la salud por la complejidad de las puertas de entrada
en el cuerpo humano de las sustancias tóxicas y por la diversidad de productos y
radiaciones que pueden afectar a la salud. Asimismo, hay que tener en cuenta que
cada tóxico ambiental puede tener efectos sinérgicos con otros, potenciándose mu-
tuamente cuando actúan en conjunto sobre los seres humanos.
Los efectos sobre la salud humana se producen en varios momentos del desa-
rrollo y con distinta intensidad y duración según el sexo. Ante una misma exposi-
ción tóxica, mujeres y hombres pueden padecer efectos diferentes, siendo la edad
además un factor de riesgo. Efectos como la afectación a la carga genética de óvulos
y espermatozoides, para empezar. Desde el momento de la concepción y durante el
desarrollo fetal, el medio ambiente en que están inmersos los padres y madres puede
influir en el sexo del embrión, en el peso y desarrollo cerebral de la criatura, y puede
llegar a tener incluso efectos teratógenos, causando malformaciones congénitas.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 23
la división de tareas, que hacen que las mujeres estén más expuestas que los hom-
bres a agentes químicos potencialmente tóxicos, porque realizan más tareas de lim-
pieza o de proximidad con exposición a pesticidas, como en el caso de la jardinería.
Una excelente revisión publicada en 2006 por Reini R.W. Breetveld y colabora-
dores —del Departamento de Epidemiología y Bioestadística de la Radboud Uni-
versity Nijmegen Medical Centre en Holanda—, demuestra el efecto de la
exposición a pesticidas en las alteraciones del sistema reproductivo de las mujeres
(Bretveld, Thomas, Scheepers, Zielhuis, Roeleveld, 2006). Este mismo grupo de in-
vestigación señala los altos niveles de pesticidas hallados en empleadas que trabajan
en jardinerías y que, al tocar las plantas o plantarlas, acaban inhalando o captando
a través de la piel su contenido en pesticidas (Bretveld, Zielhuis, Roeleveld, 2006).
En España, el investigador Nicolás Olea (Botella, Crespo, Rivas, Cerrillo, Olea-Se-
rrano, Olea, 2004) coordinó un estudió en 2003 en el que se midieron los niveles
de pesticidas en la sangre y tejido adiposo de 200 mujeres de Andalucía, y en ellas
encontró niveles elevados de metabolitos de DDT (DDE) y aldrín, dieldrín, endrín,
lindano, metoxicloro y endosulfán.
La disrupción puede presentarse en todas las fases de la regulación hormonal:
en la síntesis, cuando las hormonas se forman en el interior de las células; en la li-
beración de las hormonas desde las células a la sangre; en el almacenamiento de di-
chas hormonas en el interior de las glándulas endocrinas; en el transporte de las
hormonas cuando circulan en la sangre unidas a unas proteínas; en el reconoci-
miento de la hormona y su receptor celular que es el modo como realiza su función
en las células del cuerpo; y también pueden interferir en la activación hormonal ce-
lular después de que se haya activado el receptor.
Los efectos en la salud de las mujeres que se han podido evaluar, en relación a
productos que están en el medio ambiente, han sido el incremento de los siguientes
trastornos o enfermedades:
- Pubertad precoz.
- Metrorragias y alteración del ciclo menstrual con déficit de fase luteínica.
- Síndrome de ovario poliquístico, entre el 4 y el 8 % de la población femenina.
- Endometriosis, entre el 5 y el 8 % de la población femenina, y con una inci-
dencia que no cesa de aumentar.
- Fibromas uterinos.
- Trastornos de implantación del feto: abortos, placenta previa, madurez de la
placenta.
- Mama fibroquística por exposición en la vida adulta y también por exposición
fetal.
PUBERTAD PRECOZ
ENDOMETRIOSIS
FIBROMAS UTERINOS
MAMA FIBROQUÍSTICA
Aunque el Plan de Acción sobre Medio Ambiente y Salud 2004-2010 que la Unión
Europea puso en marcha —de obligado cumplimiento para todos los estados miem-
bros— no se ha cumplido en la mayoría de sus propuestas, ha servido para que se
constaten al menos de forma fehaciente las relaciones de los contaminantes am-
bientales con la salud puestas en duda anteriormente. La revisión intermedia del
Plan hace las siguientes consideraciones:
32 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AKSGLAEDE, L., OLSE L. W., SORENSEN, T. I. A., JUUL, A. (2008): «Forty years trends
in timing of pubertal growth spurt un 157 000 Danish school childre», PluS One,
3(7).
—, SORENSEN, K., PETERSEN J. H., SKAKKEBAEK, N. E., Juul, A. (2009): «Recent
decline in age at breast development. The Copenhagen puberty study», Pediatrics,
123(5), pp. 932-939.
SESGOS DE GÉNERO EN MEDIO AMBIENTE Y SALUD 33
BRETVELD, R., THOMAS, C., SCHEEPERS, P., ZIELHUIS, G., y ROELEVELD, N. (2006):
«Pesticide exposure: the hormonal function of the females reproductive system
disrupted», Reproductive Biology and Endocrinology 4, pp. 30-57.
—, ZIELHUIS, G. A. y ROELEVELD, N. (2006): «Time to pregnancy among female
greenhouse workers», Scand J Work Environ Health, 32(5), pp. 359-367.
BOTELLA, B., CRESPO, J., RIVAS, A., CERRILLO, I., OLEA-SERRANO, M. F., OLEA, N.
(2004): Exposure of women to organochlorine pesticides in Southern Spain, En-
vironmental Research 96, 1, pp. 34-40.
CAKMAK, H., TAYLOR, H. S. (2010): «Molecular mechanism of treatment resistance
in endometriosis: the role of progesterone-hox gene interactions». Seminars in
Reproductive Medicine, 28(1), pp. 69-74.
CARSON, Rachel (2005): Primavera silenciosa, edición y traducción Joandomènec
Ros, Barcelona, Crítica.
CRAIN, A. et al. (2008): «Female reproductive disorders; the roles of endocrine-dis-
rupting compounds and developmental timing», FertilSteril, 90(4), pp. 911-940.
DIAMANTI-KANDARAKIS, E., PIPERI, C., SPINA, J., ARGYRAKOPOULOU, G., PAPANAS-
TASIOU, L., BERGIELE, A., PANIDIS, D. (2006): «Polycystic ovary syndrome: the in-
fluence of environmental and genetic factors», Hormones (Athens), 5(1), pp.
17-34.
FARR, S.L., COOPER, G. S., CAI J., SAVITZ, D. A., SANDLER D. P. (2004): «Pesticide use
and menstrual cycle characteristics among premenopausal women in the Agricul-
tural Health Study», American Journal of Epidemiology, 160(12), pp. 1194-1204.
KORTENKAMP, A., MARTIN, O., FAUST, M., EVANS, R., MCKINLAY, R., ORTON, F.,
ROSIVATZ, E. (2012): «State of the Science of Endocrine Disrupting Chemicals»,
Final report, OMS.
FERNÁNDEZ, M. O., BOURGUIGNON, N., LUX-LANTOS, V., LIBERTUN, C. (2010):
«Neonatal exposure to bisphenol A and reproductive and endocrine alterations
resembling the polycystic ovarian syndrome in adult rats», Environmental Health
Perspectives, Sep., 118(9), pp. 1217-1222.
GIUDICE, L.C. (2010): «Endometriosis», New England Journal of Medicine,
362(25): pp. 389-2398.
GUO, S.W. (2009): «Epigenetics of Endometriosis», Molecular Human Reproduc-
tion, 15(10), pp. 587-607.
HODGES HODGES, L. C., BERGERSON, J. S., HUNTER, D. S., WALKER, C. L. (2000):
«Estrogeniceffects of organochlorine pesticides on uterine leiomyoma cells in
vitro», Toxicological Sciences, 54(2): pp. 355-364.
JACKSON, L. W., ZULLO, M. D. et al. (2008) «The association between heavy metals,
endometriosis and uterine myom as among premenopausal women», National
Health and Nutrition Examination Survey 1999-2002, Human Reproduction,
23(3): pp. 679-687.
34 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
P
ensar el cuerpo humano desde disciplinas tales como la filosofía, el psicoa-
nálisis, la psicología, el feminismo, la ecología y los estudios de género remite
inevitablemente al viejo conflicto entre naturaleza y cultura, en otras palabras,
a la construcción discursiva e imaginaria que ha efectuado el sistema sexo-género
con los datos biológicos/anatómicos, conformando lo que hoy entendemos como
cuerpos sexuados. De manera que, hablar de cuerpos desde una perspectiva psico-
analítica de género, precisa delimitar los órdenes que vamos a abordar: el orden de
lo dado biológica/anatómicamente, y aquellos definidos por la trilogía lacaniana
R. S. I.: lo Real,1 lo Simbólico, lo Imaginario,2 órdenes inseparables para la teoría
psicoanalítica en lo que se refiere a la constitución del sujeto, la construcción del
inconsciente y del psiquismo.
Es necesario detenerse en este punto. Desde el momento en que la reflexión de
Lacan sitúa explícitamente el orden simbólico en el registro de la Ley del Padre, es
decir, en un ordenamiento patriarcal secular, nos encontramos reducidas a la her-
menéutica hegemónica de un discurso dominante por la cual la diferencia de los
sexos se jerarquiza y lo masculino pasa a ser el referente por excelencia del Uno
universal. El mérito de la teoría lacaniana consiste en sutilizar los preceptos freu-
dianos más próximos a las diferencias anatómicas entre los sexos, insertando a estas
últimas explícitamente en el orden simbólico.
1
En este texto consideramos lo Real como lo no simbolizado, es decir aquello del ámbito de la
psicosis, por eso lo distinguimos de lo bio-anatómico.
2
Jacques Lacan teoriza sobre este tema hasta llegar a una concepción de entrelazamiento entre tres
elementos: lo real, lo simbólico y lo imaginario para dar cuenta del funcionamiento psíquico. Lo real
es aquello que escapa a la simbolización, el lugar de la locura que desafía los otros órdenes. Lo simbólico
es definido como el lugar del significante y de la función paterna. El imaginario, conjunto de represen-
taciones inconscientes, constituye el lugar de las ilusiones del Yo (Roudinesco y Plon, 2000).
38 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
LO IMAGINARIO DE LO ANATÓMICO
3
Numerosos estudios arqueológicos que se remontan siglos antes de la era cristiana, en particular
antes de la aparición de la escritura, remiten a hallazgos que dejan suponer otro orden simbólico,
aquel de un referente femenino, entre el año 7 000 A.C. hasta el 500 a. C. a partir de cuando desaparece
todo vestigio. Incluso autores sugieren que dicho orden dataría desde el Paleolítico Superior, 25 000
años a. C. (Stone, 1993; Lerner, 1990).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 39
civilizatorio por parte de los dominantes sobre las dominadas poco aptas, según
aquellos, para compartir la conducción política y social de una comunidad (Bacho-
fen, 1861; Harrison, 1927; Graves, 1968; Lerner, 1990; Stone, 1993; Rodríguez, Se-
rrano, 2005). Uno de los principales argumentos a los que se recurrió para justificar
la dominación del colectivo masculino sobre el femenino se basó en la teoría de la
cercanía mayor de la mujer con la naturaleza versus aquella del varón con la cultura,
la que, por definición, ordena y subyuga a la primera.
La Modernidad Occidental, provista ya de todos los datos de las diferencias bio-
lógicas, anatómicas y funcionales entre los sexos que contradijeron la distorsión
con respecto al sexo de la mujer, se vio en la obligación de aceptar el dualismo se-
xual, reemplazando al monismo histórico que primó en el discurso médico y filo-
sófico hasta el siglo XVII: un sexo único con diferentes grados de perfección, siendo
el varón el modelo acabado con excelencia. Sin embargo, el sistema sexo-género
con su capacidad de metaestabilización,4 no dudó en construir nuevos argumentos
a favor de la superioridad del colectivo de varones sobre aquel de las mujeres. Los
nuevos argumentos siguieron el mismo patrón jerarquizante, tal como hemos com-
probado en nuestra investigación sobre la misoginia decimonónica, en todas las dis-
ciplinas, desde la Medicina hasta el arte y en especial el estudio de las subjetividades
con la psicología y el psicoanálisis (Errázuriz, 2012).
La teoría psicoanalítica de la mano de Freud y discípulos coadyuvó con entu-
siasmo a explicar la diferencia sexual de una manera subjetiva: retomó el monismo
sexual, no ya en clave anatómica sino psíquica. El ser humano, sujeto incipiente,
hombre o mujer, se encuentra poseedor/a de una libido igual para ambos, caracte-
rizada como activa, masculina, o en el mejor de los casos, indeterminada.5 Según
su teoría, desde este origen psíquico común e idéntico se construirá una diferencia
sexual en las subjetividades de hombres y mujeres como consecuencia de la per-
cepción de una diferencia anatómica previamente calificada: tener pene, siendo lo
óptimo; no tenerlo, lo adverso. Solo se necesitó una metáfora para designar la dife-
rencia entre los cuerpos: la castración. Esta aparente y falsa castración del cuerpo
femenino fue el último eslabón de la misoginia decimonónica en tanto coartada
para seguir perpetuando la dominación masculina, así justificada.
4
«El patriarcado es el conjunto metaestable de pactos, asimismo metaestables entre los varones»
(Amorós, 1992: 52), pactos explícitos o implícitos para perpetuar el sistema androcéntrico material y
simbólico. «El patriarcado es un sistema milenario que va adaptándose a cada nueva estructura eco-
nómica y política» (Puleo, 1998: 41).
5
Libido significa deseo en latín y fue re-conceptualizado por Freud como manifestación de la
pulsión sexual en la vida psíquica y, por extensión, en la sexualidad humana en general (Roudinesco
y Plon, 2000).
40 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
6
El término de mutilación fue usado por Karl Abraham, discípulo y amigo de Freud, para des-
cribir la falta de pene en la niña, añadiendo incluso una suerte de confirmación de ella, a posteriori,
en el momento de la menarquia, resignificando la supuesta mutilación original (Mitchell, 1981).
7
La segunda tópica de la teoría freudiana sobre la conformación del aparato psíquico designa dos
lugares: el Ello primigenio, concebido como un conjunto de naturaleza pulsional, y el Yo, que aparece
como lugar de apoyo para la autoconservación, como posible objeto de amor para el sujeto y como
asiento de la instancia moral que se denomina el Superyó (Roudinesco y Plon, 2000).
8
El Maestro se refiere al clítoris.
9
Durante mi práctica clínica con niños desde 1979 en adelante, nunca pude constatar semejante
fantasía en niñas. Aparecieron, en cambio, representaciones de inequidad producto de normas de gé-
nero y de rebeldía proyectadas o incluso explicitadas sobre tratamiento desigual con sus coetáneos
varones por parte de las instituciones (familia, escuela…).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 41
ciones […] que determinarán permanentemente sus relaciones con la mujer: el ho-
rror ante esa criatura mutilada, o bien el triunfante desprecio de la misma» (Freud,
1925/1981: 2899).10
Estamos aún en la etapa de la interpretación desde el orden de lo imaginario de
un dato anatómico que en este caso es un «no órgano» o la ausencia de un supuesto
órgano universal. Cabe enriquecer el pensamiento freudiano con una cita de Judith
Butler: «… un perfil corporal vacila entre la materialidad y lo imaginario y, en reali-
dad, es esa vacilación misma» (Butler, 2002: 40). Lo que sostiene Butler se relaciona
con lo que señalaba Laqueur en cuanto a que se percibe lo que ya se representa
desde un imaginario colectivo y se afirma desde el discurso: las primeras experien-
cias de disección de cadáveres en las escuelas europeas de Medicina, en los siglos
XVI y XVII, aportaban pruebas de la existencia de órganos diferentes en las mujeres,
sin embargo, estas evidencias eran negadas y los científicos creían percibir lo hasta
entonces pregonado, o sea, la mismidad sexual con dos categorías, cuerpo mascu-
lino desarrollado versus cuerpo femenino inmaduro. La percepción influida a tal
punto por el discurso hegemónico encegueció a los anatomistas por más de un siglo.
Se resistieron a las novedades que presentaba el aparato reproductor y sexual fe-
meninos (trompas, vulva, útero, vagina…) y que algunos médicos quisieron dar a
conocer. Las reacciones fueron variadas y tuvieron un espectro expresivo desde la
cólera a la burla entre científicos. ¿Será solo en lo anatómico, real e imaginario el
registro en el cual se juega la jerarquización entre los sexos?
10
La cursiva es mía para subrayar el concepto de creencia. Sería una creencia, es decir, tener por
cierto algo que no se sabe si lo es. Esta creencia constituiría la base del andamiaje del desprecio por
parte de los hombres hacia las mujeres, empezando por la madre cuando se le desprecia por su su-
puesta castración. Es decir, esta creencia sobre la inferioridad de quien no tiene pene apela a la creencia
complementaria, la superioridad de quien tiene pene. ¿Sobre esta conjetura que data de la infancia se
afirma el sistema patriarcal?
11
La cursiva es mía para subrayar el subtexto implícito en estas frases: la niña advierte la signifi-
cación de la diferencia que es, en el orden simbólico, una jerarquía en virtud de la cual la feminidad
(la mujer) está en situación de inferioridad. Este hecho, añade Freud, «es preciso confesarlo». O sea,
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 43
ha llegado la hora de la verdad, hay que confesar que la significación de no tener pene es sinónimo de
inferioridad. Si hay que confesar dicha «verdad» es porque se mantenía oculta. ¿Qué es lo que el Maestro
mantenía oculto y por qué un repliegue culposo?: solo se confiesan las faltas y pecados… Esto nos
confirma que el Maestro está muy al corriente de que el sistema patriarcal ha construido un discurso
en detrimento de lo femenino. Y ¿por qué se culparía («es preciso confesarlo») a no ser que conside-
rara esta jerarquización como arbitraria?
44 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
12
Lo cual sucede en el tercer año de vida y como consecuencia de la prohibición del incesto, con-
sistente para el infans en renunciar a su objeto sexual adulto (padre/madre), correlativo del complejo
de castración y del establecimiento de la diferencia sexual (Roudinesco y Plon, 2000: 757).
13
«Meme» sería el correlato cultural del «gen» (gene) perpetuado por imitación de generación
en generación, lo que sería «filomemético» en contrapartida con lo «filogenético» (Chavalarias y Coin-
tet (2013).
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 45
dos entidades, cuerpo materno e infans, imaginado como cuerpo materno y pene?
Sería la castración primigenia que no puede ser ni imaginada ni simbolizada, resig-
nificada por la diferencia sexual (castración edípica) gracias a un recubrimiento de
lo imaginario sobre lo real: es el Yo quien toma el relevo de la angustia del «Je»,
para gran alivio del sujeto, puesto que el Yo puede jugar sus señuelos ilusorios de
completitud y de satisfacción total del deseo.14 Este malabarismo solo es posible
gracias al sostén simbólico que le provee el orden androcéntrico: la pérdida de algo
del cuerpo de la madre/mujer significada como castración (¿pérdida de un supuesto
pene o pérdida de su producto, el hijo/a? ) y, por lo tanto, como falta, como imper-
fección, toma el relevo de una pérdida más difusa y profunda que se confunde entre
una nostalgia posiblemente cenestésica (Anzieu, 1998) y el corsé de frustración que
pone el lenguaje a toda demanda acerca de un retorno imposible al no deseo (Au-
lagnier, 1975). Todo ello en un confuso intento proyectivo a la vez que especular
para explicarse el displacer de la falta.
14
En francés, existen dos términos para designar el Yo. Yo como ser sujeto = Je, y la instancia
imaginaria del lugar por excelencia del Yo = Moi, con sus fenómenos de ilusión y de señuelo (Roudi-
nesco y Plon, 2000: 500). El Moi lacaniano correspondería al Yo freudiano, y para traducir el Je re-
curriremos al sí mismo sin la intención de que se lea este término en su traducción inglesa de self,
propio de la teoría psicoanalítica de Winnicott.
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 47
activa en la maternidad, o, por último, protestar frente al sistema que no proveyó para
ellas el sostén simbólico para constituirse en sujeto sustantivo (Freud, 1931/1981).
Esto último es denominado elegantemente por la teoría psicoanalítica como la envidia
de pene.
Desde esta interpretación podríamos incursionar en terrenos arcaicos más con-
trovertidos, como por ejemplo la sustitución por dioses masculinos, eventualmente
un dios único, de las deidades femeninas que ordenaron por siglos el sistema sim-
bólico, como exhaustivamente lo demuestra el estudio de Merlin Stone, Cuando
Dios fue una mujer (Stone, 1993). Podemos pensar que el andamiaje del sistema
sexo-género androcéntrico ha sido una maniobra defensiva psicopolítica útil para
sostener el deseo y correr detrás del señuelo. El deseo (libido) en ambos sexos parte
de una pérdida primigenia que es común a todo humano. Como expresa Soler, «la
paridad [entre los sexos] en la falta resulta restablecida» (Soler, 2006: 42). Pero no
es suficiente para debilitar el andamiaje que transforma esta pérdida simbólica en
imaginaria, basado en una creencia de un órgano universal que unos conservan y
otras pierden. Y si esta conceptualización en términos de tener/no tener, fálico/cas-
trado, remite, como señala Ravinovich, a una «privación de algo inscripto en el
orden simbólico», ya está todo develado. Retomamos la cita de Lacan ya mencio-
nada acerca de que la castración es «…una relación del sujeto con el falo que se es-
tablece independientemente de la diferencia anatómica de los sexos y que es, por
ello, una interpretación especialmente espinosa en la mujer y con relación a la
mujer» (Lacan, 1985: 666, en Ravinovich, 1995/2009: 19), y pensamos que lo espi-
noso no solo es la falsa interpretación de una mutilación de un supuesto pene fe-
menino, sino que más bien lo espinoso es el exilio de lo femenino del orden
simbólico. El ejemplo por excelencia lo constituye el mito del nacimiento de Atenea
de la cabeza de Zeus sin mediación de un cuerpo de mujer, cuerpo que a su vez
había sido devorado por el mismo Zeus. Robert Graves sugiere que este mito re-
presenta cómo el culto a los Olímpicos y a Zeus sustituyó el antiguo culto a la diosa,
en este caso Metis, que quedó incorporada dentro de Zeus, cuyo producto, Atenea,
es propiedad solo del dios en clara subordinación (Graves, n. d.).15
Lo que la teoría psicoanalítica denuncia, a pesar suyo, es la construcción imagi-
naria de un sistema de valoración sexo-genérica que durante siglos ensalzó la pose-
sión de un órgano con el fin de delimitar dos colectivos, uno dominante y otro
15
Jane Ellen Harrison (1850-1928), académica e investigadora de la mitología griega en Cam-
bridge, considera que el mito del nacimiento de Atenea de la cabeza de Zeus fue un modo de subor-
dinar la figura de la diosa de Atenas a un dios varón superior. Atenea era la representante de la
sabiduría y el conocimiento perteneciente al culto de los Titanes (Metis, la inmortal, estaría en el
origen de la existencia de la diosa). Fue despojada de parte de sus cualidades cuando dicho culto fue
suprimido por los aqueos, quienes impusieron la veneración de Zeus, en tanto el dios más poderoso.
48 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORÓS, Celia (1992): «Notas para una teoría nominalista del patriarcado», en As-
parkía, Universitat Jaume I, Castellón, pp. 41-58.
ANZIEU, Didier (1998): El yo piel, Madrid, Biblioteca Nueva.
AULAGNIER, Piera (1975): La violence de l’Interprétation, Paris, PUF.
BACHOFEN, Johan Jacob (1861): Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gy-
naikokratie der alten Welt nach ihrer religiösen und rechtlichen Natur, Stuttgart.
BUTLER, Judith (2002): Cuerpos que importan, Buenos Aires, Paidós.
CHAVALARIAS, David, COINTET, Jean-Philippe (2013): «Phylomemetic patterns in science
evolution. The rise and fall of scientific fields», Plos.One, February 11, 2013, DOI:
10.1371/journal.pone.0054847http://www.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1
371%2Fjournal.pone.0054847 (consultado el 17 de diciembre de 2013).
ERRÁZURIZ, Pilar (2012): Misoginia romántica, psicoanálisis y Subjetividad feme-
nina, Zaragoza, Prensas Universitarias.
FREUD, Sigmund (1912-1913): Tótem y Tabú, Obras Completas (1981), Madrid,
Biblioteca Nueva.
— (1931): Sobre la sexualidad femenina, Obras Completas (1981), Madrid, Biblio-
teca Nueva.
— (1933): La feminidad, Obras Completas (1981), Madrid, Biblioteca Nueva.
GRAVES, Robert (1968): Greek Myths and Legends, Londres, Cassell.
HARRISON, Jane Ellis (1927/2010): Themis: A Study of the Social Origins of Greek
Religion, New York, Cambridge University Press.
IRIGARAY, Luce (1974): Ce sexe qui n’en est pas un, Paris, Minuit.
LACAN, Jacques (1985): «La Significación del falo», Escritos, tomo II, Buenos Aires,
Siglo XXI.
LERNER, Gerda (1990): La creación del patriarcado, Barcelona, Crítica.
DE LO ANATÓMICO A LO SIMBÓLICO: EL CUERPO FEMENINO EN EL DIVÁN... 49
E
l carácter intrínsecamente efímero de la moda, limitado al ámbito de la ropa
o más allá de él, facilita la adaptación a las mutaciones constantes de las cul-
turas contemporáneas y es muy apreciado por las sociedades de mercado.
Este fenómeno consumista otorga a los individuos, y particularmente a las mujeres
cuya expresión identitaria se halla más fuertemente ligada a la moda, el sentimiento
de estar en una transformación perpetua. Sugiere la posibilidad de infinitas meta-
morfosis, de modelos de crecimiento económico a esos seres en devenir que somos,
los humanos que «deseamos sin fin» (Vaneigem, 1996). Si bien el impacto de la vo-
rágine de la moda es cada vez más visible, esta valoración de lo nuevo y de lo mo-
mentáneo está creciendo desde la implantación de la moda industrial en los países
occidentales. Gilles Lipovetsky ha trazado un retrato completo de ello desde 1987.
No obstante, si esta moda hoy omnipresente es muy estudiada como fenómeno de
sociedad, ha sido poco conceptualizada, en particular con respecto a lo que su pro-
ducción implica. hasta ahora, la inmensa mayoría de los productos de maquillaje
y de toilette son experimentados en animales1 y muchos de ellos contienen ingre-
dientes de origen animal. además, un gran porcentaje de la vestimenta utiliza pro-
ductos extraídos de animales vivos o a los que se ha dado muerte para ese uso, de
la lana a la seda, de la piel a las plumas y los duvets.
Querría considerar aquí a la moda en ese contexto particularmente «no pensado»
de lo que Roland barthes habría podido llamar el triángulo «combinatorio»2 de la
moda, las mujeres y los animales, centrándome esencialmente en el caso de la Fran-
1
El Reglamento (CE) nº 1223/2009 del Parlamento Europeo y del Consejo de 30 de noviembre
de 2009 sobre los productos cosméticos prohíbe en Europa, a partir del 11 de julio de 2013, toda
venta de productos cosméticos que hayan sido experimentados en animales.
2
Puede encontrarse a lo largo de todo su Système de la mode (1967) la idea de que el sistema de la
moda, como una lengua, está ligado por una combinatoria de signos. Ver en particular las páginas 93,
203 y 206.
52 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
cia de hoy en día. No nos puede sorprender que los animales no sean tenidos en
cuenta en la óptica de la corriente dominante de la moda, mercantilizada y masifi-
cada. Sin embargo, en el siglo xxi, numerosos movimientos alternativos tratan de
pensar la moda como plataforma ética, como metamorfosis social que desafía a la
producción de masas. Cuando estos movimientos están vinculados a la ecología o
al desarrollo sostenible, a perspectivas feministas o a filosofías que preconizan un
retorno a una mejor calidad de vida, como el movimiento lento (slow), por no citar
más que uno, cualesquiera sean las orientaciones de sus miradas, resulta aún más
sorprendente que la reflexión sobre los animales —que contribuyen de manera tan
fundamental en la vestimenta, los accesorios y el maquillaje, y que son tan frecuen-
temente víctimas de esta aportación— esté prácticamente ausente.
Mi objetivo será, pues, reflexionar sobre esta ausencia desde el contexto del
triángulo «combinatorio» mencionado anteriormente. al haber elegido explorar
la paradoja de la negación de los animales, principalmente entre las mujeres, mi
objetivo, ciertamente, no es esencializar la diferencia de los sexos en lo que con-
cierne a sus actitudes con respecto a los animales. hombres y/o mujeres pueden
apoyarlos, explotarlos o ser indiferentes a su suerte. además, la moda, si bien sigue
siendo altamente «generizada» y puede constituir casi una obsesión para algunas
mujeres, interesa cada vez más a los hombres. Traduce un deseo de «estética de
un nuevo comienzo» (baudrillard, 1976) y de aceptación social para ambos sexos
que es inherente a las sociedades occidentales actuales. No obstante, histórica y
culturalmente, las mujeres mantienen a la vez relaciones estrechas con la moda
—sus maneras de vestir, de peinarse y el hecho de maquillarse responden, en
efecto, a ciertas tendencias, presiones o códigos sociales que forman parte de sus
hábitos— y con los animales, que se han incorporado siempre a su vida cotidiana
de manera quizás más sistemática que en la de los hombres, como señalaré en el
siguiente apartado. Esta paradoja, que les lleva en la mayor parte de los casos a ig-
norar la explotación animal sobre la que se funda la moda, a no reflexionar sobre
esta última, es, pues, reveladora de una ambigüedad silenciada y que es necesario
examinar.
MUjERES y aNiMaLES
3
Para un listado de artículos universitarios que señalan la tendencia de las mujeres a sentirse más
concernidas que los hombres por la crueldad hacia los animales, ver Kruse (1999), en particular la
página 180. Puede consultarse online. En lo que se refiere al impacto femenino en el estudio científico
de los animales, nos referiremos en concreto a la obra de Donna haraway, a una plétora de trabajos
de primatólogas de las que jane Goodall ha sido la más célebre; y a las publicaciones de Vinciane
Despret. Esta última resume los rasgos esenciales de ese impacto de las mujeres en el capítulo «Les
animaux rendent les hommes intelligents», en Karine Lou Matignon, a l’écoute du monde sauvage.
Pour réinventer notre avenir, Paris, albin Michel, pp. 149-169. También puede consultarse las obras
de Val Plumwood y Carol adam; en particular, el libro de Carol adams y josephine Donovan animals
and Women.
4
«They [women supporting the animal rights movement] saw symbolic connections between
the status of women and animals in society, but also identified personal experiences they considered
to be similar to those of animals, including violence, disempowerment, lack of voice and treatment
as objects». (Gaarder, 2011: 149).
5
Sobre temas controvertidos, los porcentajes varían según la página de que se trate. En las corres-
pondientes a simpatizantes de los animales, como « Mes opinions », un sondeo sobre las pieles recoge
un 99 % de votos contra el uso de pieles de un total de 19 576 participantes, hombres y mujeres. En
un portal más neutro, como 1001-votes.com, el resultado del sondeo de 2006 « Êtes-vous pour ou
contre l’usage de la fourrure» dio los siguientes resultados : 87, 1 % contrarios, 12,9 a favor. Ver
http://www.1001-votes.com/vote/sondage__pour_ou_contre_la_fourrure__21948.html (consultado
el 5 de mayo de 2013).
6
Ver la página de la liga RoC: http://www.roc.asso.fr/non-chasseur/sondage-chasse-femme.html
(consultado el 5 de mayo de 2013).
7
Sondeo efectuado por la Comisión Europea: http://ec.europa.eu/public_opinion/archi-
ves/ebs/ebs_340_en.pdf (consultado el 5 de mayo de 2013).
54 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
sagran, por cierto, una hora y cuarenta minutos más que ellos de media por día, los
momentos que más aprecian de esas tareas, después de ocuparse del jardín, son los
consagrados a los cuidados a los animales (igual que el tiempo que pasan con los
niños).8 además, a nivel mundial, las veterinarias son más numerosas que los hom-
bres y en algunos países como Estados Unidos y Francia esta tendencia se ha incre-
mentado en veinte años, con un 75 % de mujeres en los colegios veterinarios en la
actualidad.9 Podría continuar exponiendo este palmarés de afinidades de las mujeres
con los animales pero estos pocos ejemplos bastan para ilustrar la tendencia general.
Sin embargo, el mercado textil y cosmético es inseparable de un uso abusivo de
los animales. Del conejo de angora al gusano de seda, del mutón a la cabra, de los
avestruces a los jabalíes, de los zorros a las gamuzas, de la foca a la llama, la mayor
parte de los mamíferos no humanos y ciertos no mamíferos son cazados o criados
y matados para obtener su piel u otra sustancia. La moda, tanto de la ropa como
de la cosmética, es uno de los sectores de la industria más floreciente, y uno de los
que más explotan a los animales. ¿Por qué se da la prioridad al objeto en vez de
dársela al ser vivo? ¿Por qué se aceptan objetos obtenidos a través de un proceso
cruel a menudo condenado por las consumidoras?
algunas respuestas a estas preguntas tienen orígenes históricos y culturales. Las ac-
titudes francesas con respecto a los animales siguen siendo mayoritariamente las de
una población católica «campesina» en la que el papel de los animales es servir a los
seres humanos. Como muestra Catherine Paysan en una de sus obras autobiográficas
(Paysan, 1997), el ochenta por ciento de los franceses proviene del pequeño campe-
sinado, de ahí que existan más actitudes ecológicas que animalistas en la mayor parte
de los franceses para quienes, tradicionalmente, los animales eran, antes que nada,
instrumentos de subsistencia que formaban parte del medio de subsistencia. Cuando
la vida es difícil para los humanos, lo es aún más para los animales, a quienes se
otorga un estatus inferior: un animal (y sus productos) es algo que se transforma en
dinero, que se utiliza como auxiliar de trabajo o se come. Quizás esto explique el
hecho de que, según ciertos sociólogos, «la tradición francesa se caracteriza por una
ruptura más acentuada entre la vida biológica y la vida social»10 (Despret, 2009: 74).
8
insee, Enquête emploi du temps 2010, «Les moments agréables de la vie quotidienne»
http://insee.fr/fr/themes/document.asp?reg_id=0&ref_id=ip1378 (consultado el 5 de mayo de 2013).
9
Esta tendencia es mundial. En Francia, se constata que «la tasa de mujeres admitidas en el con-
curso de entrada a los colegios veterinarios ha pasado del 60 % al 75 % entre 2000 y 2008» (Langford,
2010) (consultado el 5 de mayo de 2013).
10
La autora retoma aquí una idea de Gilles Le Pape (1993).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 55
11
«agricultura Quedan menos de un millón de agricultores en Francia. Según el último censo
agrícola, en diez años, una de cada cuatro explotaciones ha desaparecido», France-Soir, 15 de sep-
tiembre de 2011.
http://www.francesoir.fr/actualite/societe/agriculture-il-reste-moins-d-un-million-d-agriculteurs-
en-france-137428.html (consultado el 5 de mayo de 2013).
12
Ver especialmente el capítulo V del primer tomo: «Du lin et du chanvre», p. 208.
56 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
plo, en la asistencia médica y familiar necesaria para una persona que quiere dejar
de fumar. ahora bien, si las costumbres de las abuelas o de las madres de las jóvenes
consumidoras proponen modelos en que los animales son meros recursos naturales
considerados como propios, todo en la sociedad refuerza esa actitud. Se anima a
las mujeres a seguir las corrientes de la moda, a «consumir» tendencias sin plantearse
preguntas sobre lo que la compone. algunos llegan a decir que ellas se pliegan a
una «dictadura de la apariencia» según la cual estar «bien» vestida genera respeto
y «si es verdad que estar maquillada da más confianza en una misma, parecería que
los otros tengan también más confianza en nosotras con un toque de rubor o un
poco de maquillaje» (Schneider, 2012). aunque la moda actual ofrece un amplio
abanico de posibilidades de elección, el «32 % (de las francesas) consideran la be-
lleza o cuidarse como un deber, una obligación social y necesaria en su relación con
los demás» (berger, 2012). Un sondeo británico de 2012 revela que el 70 % de las
mujeres tendría miedo de ir a trabajar sin maquillaje (Stevens, 2012).13 Más allá del
deseo de sentirse bien y de agradar a los demás, parece presente la presión del con-
formismo social. además, como para otros productos, numerosas mujeres perma-
necen fieles a su marca, en particular con los perfumes. En lo que concierne a la
ropa, a excepción de las pieles, pocas son las que rechazan los productos fabricados
a partir de animales (zapatos de cuero, americanas de lana…), a lo que hay que aña-
dir que, a menudo, las alternativas de calidad son costosas y se encuentran con di-
ficultad. Si bien las mujeres, según un sondeo europeo de octubre de 2012,14 leen
las etiquetas de composición de los artículos más sistemáticamente que los hombres,
no parecen querer informarse más que ellos sobre el proceso que ha llevado a la fa-
bricación del producto terminado. Como escribía Marguerite yourcenar, amante
de los animales y siempre un poco misógina, las mujeres no tienen al respecto nin-
gún «trapo como excusa» (yourcenar, 1991: 333).
13
Este sondeo ha sido realizado a 3 000 mujeres para Vitality Show, un salón de belleza británico.
14
« There […] is a very clear trend for women to check the ingredients or composition of products
before buying them more than men. Women are particularly likely to check the following products
more than men: cosmetics and beauty products, clothes, food, toys, cleaning products and furniture
». http://ec.europa.eu/public_opinion/flash/fl_361_en.pdf (consultado el 6 de mayo de 2013).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 57
lo que se refiere a la ropa y otros accesorios, los animales continúan siendo objetiva-
dos, pero de una manera distinta. Mientras que la gran mayoría de las mujeres estaba
implicada en ciertos procesos de elaboración necesarios al vestido y a la perfumería
(trabajaban la lana, el cuero o la seda, recogían y cardaban el lino y el cáñamo, u
otros vegetales) ahora son en su mayor parte, desde hace unos cien años, únicamente
consumidoras de estos productos. De ahí deriva una indiferencia generalizada con
respecto al proceso de fabricación de lo que se lleva. Los criterios esenciales son la
disponibilidad, el confort, el precio, la estética y el prestigio.
Por tomar el ejemplo de los textiles, ¿quién conoce ahora la diferencia entre fi-
bras sintéticas y artificiales?15 ¿Quién puede pretender cultivar esas fibras o incluso
conocer su proceso de fabricación, sin hablar del origen vegetal de las telas que se
llevan? Una creciente diversificación de los materiales, ligada a la ignorancia del
público en lo que se refiere a los productos naturales, contribuye a cierta confusión
entre consumidores y consumidoras, que ya no saben muy bien lo que compran.
En un número especial consagrado a las fibras naturales, L’écologiste16 propone
un artículo de fondo sobre la seda. ahora bien, este artículo, rico en informaciones
históricas sobre la manufactura de la seda, no dice nada sobre los procedimientos
utilizados para confeccionarla ni de los animales vivos que constituyen su materia
prima. Una escisión semejante parece existir entre las mujeres interesadas por el
producto terminado de la moda, que lo consumen sin preguntar, y las que trabajan
en la industria del vestido, del textil y de los cosméticos, en la mayor parte de los
casos como obreras.17
Esta indiferencia y esta falta de toma de conciencia con respecto al mundo na-
tural es más visible y sorprendente en el caso de los animales. Evidentemente, por
poner un ejemplo, todo el mundo ha visto una vaca, pero la asociación de esa vaca
con el cuero del que provienen los zapatos y los bolsos es, aunque real, distante,
percibida como vagamente inevitable y, por lo tanto, no cuestionada. En lo que
concierne a las pieles, cuyo uso es condenado por la mayor parte de las francesas,
su integración en la ropa es a menudo insidiosa. así, en el caso de ciertos animales
como los zorros, tanto salvajes como de criadero, el 90 % de la piel utilizada está,
15
Las fibras artificiales, como la viscosa, son fabricadas a partir de materias primas naturales, mien-
tras que las fibras sintéticas son el producto de reacciones químicas (polyester, acrílico, nylon…).
16
«La soie d’hier à aujourd’hui», L’écologiste n° 29, julio de 2009 (pp. 29-39).
17
Para más precisiones, ver el siguiente informe del iNSEE : « Las mujeres son muy mayoritarias
en el vestido y el cuero, en menor medida en la farmacia, perfumería y productos de limpieza, y ocupan
casi la mitad de los empleos en la industria textil. [...] En dos de los tres sectores más feminizados,
vestido y cuero, y en menor medida, la industria textil, las mujeres son muy frecuentemente obreras ».
Le 4 pages des statistiques industrielles, n° 200, enero de 2005, «L’emploi des femmes dans l’industrie.
La qualité plutôt que la quantité», http://www.insee.fr/sessi/4pages/pdf/4p200.pdf (Consultado el 6
de mayo de 2013).
58 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
EL PLaCER DE Lo EFíMERo
18
«Fashion is essentially concerned with novelty. We are a neophilic species and you can’t be se-
riously innovative as a species without enjoying the thrill of the new discoveries. […] So the fashion
world (clothing, make-up, pop songs, dances, etc.) constantly throws new ideas at us and adopting
these makes us feel good because it suits the character of our species». (Morris, 2011)
60 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
que poseen».19 Puesto que la ropa y los cosméticos no son más que accesorios efí-
meros y reemplazables, comprados bajo un impulso y a menudo inmediatamente
relegados al armario, es comprensible que pocas consumidoras quieran investigar
a partir de qué son fabricados o se pregunten sobre el proceso de fabricación y sus
consecuencias. ahora bien, contrariamente a lo que podría pensarse, en Francia las
mujeres gastan, de promedio, menos en ropa que los hombres.20 Estas estadísticas
pueden sorprender y sugerir que las francesas no son ni las víctimas sistemáticas
de la moda (Emer, 2006) descritas por tantos sociólogos, ni las consumidoras exa-
geradas y narcisistas cuya imagen estereotipada dibujan los media.
Efectivamente, el sector comercial de la ropa y la cosmética está interesado en
perpetuar esa imagen. En lo que respecta a la moda de los cosméticos (maquillaje,
mantenimiento…), lo que está en juego es particularmente importante para Francia.
La industria de los cosméticos es el tercer exportador neto (después de la aeronáu-
tica y las bebidas).21 incluso en Francia, aunque los países emergentes son mejores
consumidores, un gigante de la cosmética como L’oréal ha continuado su creci-
miento en período de crisis (Vulser, 2013). El sub-sector del maquillaje, en parti-
cular, no ha mostrado ningún signo de estancamiento y se desarrolla en valor y
volumen. a pocos meses de la prohibición europea de experimentación animal
sobre productos cosméticos,22 todas las grandes compañías de cosméticos, incluso
las que apoyan la abolición de la experimentación animal como L’occitane,23 se en-
cuentran presionadas para aceptar las exigencias chinas de experimentar sus pro-
ductos con animales a fin de abrirse a los mercados emergentes. Si las mujeres son
las consumidoras deseosas de informarse y preocupadas por el bienestar animal
que las encuestas públicas revelan, es difícil aceptar que sus elecciones estén deter-
minadas por impulsos hiperconsumidores y que no sean éticas más frecuentemente.
19
Cifras del institut Français de la Mode citadas en «Les Françaises élégantes mais avec peu de
vêtements», 20minutes.fr, 31 de agosto de 2011. http://www.20minutes.fr/article/778670/francaises-
elegantes-peu-vetements (consultado el 6 de mayo de 2013).
20
«y entre 25 y 30 años, consumen incluso más que las mujeres y son más fieles a las marcas».
«Mode: les hommes achètent autant que les femmes», TF1 News, 23 de junio de 2010.
http://lci.tf1.fr/economie/consommation/2010-06/mode-les-hommes-achetent-autant-que-les-
femmes-5897026.html (consultado el 4 de mayo de 2013).
21
Cifras del portal del Ministère du Redressement Productif, marzo de 2013.
http://www.redressement-productif.gouv.fr/semaine-industrie/activites-industrielles/beaute-cos-
metique
22
Ver nota 1.
23
a pesar de las informaciones controvertidas según las cuales el certificado humane Cosmetics
Standard que garantiza la ausencia de experimentación con animales le habría sido retirado, L’oc-
citane mantiene su compromiso a no experimentar sus productos con animales. Ver: http://au.loc-
citane.com/l’occitane’s-position-on-animal-testing,23,1,4230,250580.htm (consultado el 4 de mayo
de 2013).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 61
¿DESobjETiVaR EL objETo?
24
La última frase de la cita es recogida como epígrafe en brown (2001).
62 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
REFERENCiaS bibLioGRáFiCaS
aDaMS, Carol, DoNoVaN, josephine (1995): animals and Women, Durham, NC,
Duke University Press.
baUDRiLLaRD, jean (1978): Le Système des objets [1er ed. 1968], Paris, Gallimard.
— (1970): La Société de consommation, Paris, Gallimard.
baRThES, Roland (1967): Système de la mode, Paris, Seuil.
25
« […] modernity artificially made an ontological distinction between inanimate objects and
human subjects, whereas in fact the world is full of «quasi-objects «and “quasi-subjects”» (brown,
2001: 12).
LaS oTRaS VíCTiMaS DE La MoDa 63
bENNETT, jane (2010): Vibrant Matter. a Political Ecology of Things, Durham, NC,
Duke University Press.
bENjaMiN, Walter (1989): Paris, Capitale du xixe siècle. Le Livre des Passages
[1935], traduction jean Lacoste, Paris, Editions du Cerf.
— (1991): écrits français, Paris, Gallimard.
bERGER, Stéphanie (2012): «Female beauties, observatoire des Femmes CSP+ et
de leur rapport à la beauté», 30 de noviembre de 2012, Express Roulata Services.
http://www.expressroulartaservices.fr/2012/11/female-beauties-observatoire-des-
femmes-csp-et-de-leur-rapport-a-la-beaute-2/ (consultado el 30 de mayo de 2013)
bRoGLio, Ron (2011): Surface Encounters, Thinking with animals and art, Min-
neapolis, University of Minnesota Press.
bRoWN, bill (2001): «Thing theory», Critical inquiry 28 (autumn 2001), pp. 2-16.
jEaN-aNToiNE ChaPTaL, jean-antoine (1819): De l’industrie française (1819),
online, Source gallica.bnf.fr / bibliothèque nationale de France, http://ga-
llica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k437500.r=jean-antoine+chaptal+De+l%27in-
dustrie.langFR (consultado el 6 de mayo de 2013).
CoLLaRD DUTiLLEUL, François (2013, 17/18 de febrero): «indigeste viande de che-
val», Le Monde, p. 16.
DESPRET, Vinciane (2012): «Les animaux rendent les hommes intelligents», en
Matignon, Karine Lou, Cyrulnik , boris (eds.) (2012): a l’écoute du monde
sauvage. Pour réinventer notre avenir, Paris, albin Michel, pp. 149-169.
— (2009): Penser comme un rat, Versailles, éditions Quae.
ERNER, Guillaume (2006): Victimes de la mode. Comment on la crée, pourquoi on
la suit, Paris, Editions de La Découverte.
GaaRDER, Emily (2011): Women and the animal Rights Movement, Chapel hill, N.C.,
Rutgers University Press, Guilbert, Cécile (2011a): «Le Désir d’être enfin soi», Les
Femmes et la mode, France, Europe, 2011, Cahier études femmes, pp. 7-10.
GUiLbERT, Cécile (2011b): «Cécile Guilbert en entretien. Les Femmes et la mode»,
institut Français de la Mode, http://www.youtube.com/watch?v=zPbE-Tkxe-0
(consultado el 4 de mayo de 2013). http://issuu.com/ifm-paris/docs/cahieretu-
defemmesParis, institut Français de la Mode.
KRUSE, Corwin (1999) «Gender, views of nature and support for animal rights», en
Society and animals, vol. 7, n° 3, pp. 179-198. http://www.animalsandsociety.net/as-
sets/library/399_s731.pdf
iNSEE (2005) : «L’Emploi des femmes dans l’industrie», en Le 4 pages des statisti-
ques industrielles, janvier 2005, http://www.insee.fr/sessi/4pages/pdf/4p200.pdf
(consultado el 6 de mayo de 2013).
LaNGFoRD, alexandra, (2010): origines, motivations et souhaits d’orientation pro-
fessionnelle des étudiants vétérinaires, Thèse d’exercice vétérinaire, Université
de Toulouse. http://oatao.univ-toulouse.fr/4228/1/hartmann_4228.pdf, (consul-
64 ECoLoGía y GéNERo EN DiáLoGo iNTERDiSCiPLiNaR
L
as representaciones audiovisuales, omnipresentes en los medios de comuni-
cación de masas y de la sociedad de la información, constituyen el principal
mecanismo de normalización y de legitimación de las prácticas masculinas
de sujeción de las mujeres. El discurso fragmentado y esquemático que proyectan
los diversos mecanismos informacionales produce una apariencia de naturalidad
en aquellas identidades que representa, más aún cuando estas se construyen me-
diante estereotipos y prejuicios tradicionales, como es el caso de la femineidad y la
masculinidad. Ambas identidades se representan conforme a los cambios sociales
y las dinámicas socioeconómicas del capitalismo global. Así, nos encontramos con
imágenes de masculinidad y de femineidad que representan a sujetos de éxito social
y laboral bajo las ficciones de la igualdad y la meritocracia. Es decir, a mujeres y
hombres que triunfan en sociedades donde aparentemente existe igualdad entre
los sexos y donde cada persona tiene lo que le corresponde en función de sus pro-
pios méritos. Ahora bien, el éxito social representado por los media se caracteriza
por ubicaciones asimétricas y desiguales en relación con el género: mientras que
los hombres se encuentran posicionados en la esfera social pública y representados
como agentes sociales y/o protectores heroicos de la sociedad y de las mujeres (es
decir, como sujetos de poder); estas son ubicadas en la esfera social privada y obje-
tualizadas desde la mirada y el deseo masculinos. Por lo tanto, este escenario genera
una apariencia de igualdad, bajo la cual el patriarcado juega a reinventarse, desvir-
tuando a menudo las consignas de la libertad sexual.
A través de la construcción de este imaginario virtual y mediático no solo se re-
producen los estereotipos e identidades de género hegemónicas, sino que se induce
el deseo de mujeres y hombres de emularlos mediante la re-articulación de los cá-
nones de belleza de femineidad y masculinidad (Puleo, 1995). De esta forma, el
66 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
todos los seres humanos y que sostienen el imperativo moral (e incluso legal) de es-
tablecer relaciones justas e igualitarias entre las personas. Mientras que, de otra,
son estimulados e inducidos a confirmar su identidad de género, autodesignándose
como sujetos de poder de las modernas sociedades capitalistas en base a la estruc-
tura social de discriminación de las mujeres.
Esta hipótesis explica la realidad existencial de la gran mayoría de los hom-
bres occidentales, admitiendo la diversidad de la interiorización del modelo he-
gemónico de masculinidad en función de otros ejes de identificación como la
clase social, la etnia y la cultura, reconociendo, por lo tanto, la pluralidad de
masculinidades existentes.
Entendemos que la forma fundamental a través de la cual los hombres han sub-
jetivado el modelo hegemónico de masculinidad a lo largo de la historia de la cultura
occidental es la pragmática masculina del control (Sambade, 2010). Este concepto
refiere a un conjunto de prácticas de gobierno de sí mismo, legitimadas por los dis-
cursos hegemónicos de cada época histórica, a partir de las cuales los hombres ad-
quieren la disposición y la aptitud para permanecer ubicados en la esfera social
pública.
La pragmática del control se ha desarrollado dentro del paradigma mecanicista,
la asociación de los dualismos jerarquizados Cultura/Naturaleza y Hombre/Mujer
y los procesos de racionalización de las modernas sociedades occidentales (Sam-
bade, 2012). Esta lógica androcéntrica legitimó la dominación sobre las mujeres a
partir de la su identificación con la Naturaleza, relacionando a los hombres con la
Razón y la Civilización (Beauvoir, 1998). Ahora bien, el cuerpo y la emotividad de
los hombres también fueron definidos como parte de la Naturaleza, por lo que la
masculinidad hegemónica pasó a tener que ser constituida a través del disciplina-
miento del primero y el autocontrol de la segunda. En síntesis, la socialización mas-
culina en la pragmática del control dispone y prepara al hombre para desarrollar
distintas formas de control/dominación de las mujeres, siempre bajo el objetivo ex-
plícito de su definición como agente social y con la condición previa de la instru-
mentalización de su propia subjetividad.
Si ahora observamos los atributos tradicionales de la masculinidad, podemos
comprobar que algunos como la dureza emocional, la templanza y la objetividad
confirman la identificación del hombre hegemónico con la Razón, mientras que otros
como la independencia, la valentía y la iniciativa le inducen hacia la acción adecuada
para sus fines. Es decir, los primeros legitiman su posición en la esfera social pública
y su autoridad en la privada, mientras que los segundos disponen el recurso de la
violencia siempre que se considere necesario. En todo caso, estos atributos requieren
sin excepción un proceso de disciplinamiento del cuerpo y de represión de la emo-
tividad que se producen en la socialización patriarcal del varón: el hombre fuerte es
aquel que desprecia sus sentimientos de dolor físico y emocional.
68 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Esta mística de la masculinidad articula toda una cultura del riesgo y de la vio-
lencia. Para ser un hombre verdadero hay que ser duro física y emocionalmente,
competitivo, valiente, autoritario, prestigioso, el sostén económico de la familia,
una máquina sexual… A diferencia de la racionalidad, la masculinidad de un hom-
bre se encuentra siempre cuestionada. Todas estas normas culturales se concretan
en una serie de conductas de autoexposición física y de disposición hacia la violencia
que conllevan que los hombres tengan menor esperanza y calidad de vida que las
mujeres (Clare, 2002). Pero, además, los hombres también ejercen la violencia que
constituye uno de los primeros factores de mortandad de las mujeres.
En la actualidad, la violencia de género y el sexismo en general son considerados
políticamente incorrectos por la opinión pública de las sociedades occidentales.
Pero la violencia no ha desaparecido de la cultura hegemónica de la masculinidad.
Se mantiene subyacente como reverso dialéctico del autocontrol, de modo que
cuando las prácticas de gobierno de sí mismo no constituyen medios efectivos para
la consecución de los fines sociales deseados, las frustraciones ocasionadas por la
represión emocional se canalizarán mediante el recurso de la violencia.
En la sociedad de la información, los hombres son socializados en un sistema
que bajo la apariencia formal de igualdad, reproduce veladamente los valores de la
supremacía masculina. Los modelos tradicionales de la masculinidad hegemónica
están siendo masivamente reproducidos por los medios de comunicación de masas,
lo que induce el deseo de identificación con los mismos entre los hombres. Esto se
debe a que los media constituyen un discurso fragmentado, plural y aparentemente
neutral en el que se combina información, entretenimiento y publicidad. Así, los
media proyectan la idea de que la igualdad entre los sexos es un hecho y mantienen
un discurso políticamente correcto en el que no tiene cabida la afirmación explícita
de la supremacía masculina, al mismo tiempo que reproducen los desiguales e in-
justos modelos de género, adaptados de acuerdo a las tendencias sociales del pre-
sente. De este modo, nos encontramos con toda una pluralidad de modelos de
masculinidad que pueden llegar a ser incluso contradictorios entre sí. Ahora bien,
todos ellos tienen una característica en común: todos son sujetos de éxito social o,
en el peor de los casos, siguen siendo los sujetos del relato.
Los modelos actuales de masculinidad han sido redefinidos desde la significación
que el cuerpo y sus cánones de belleza han alcanzado en la sociedad de consumo
(López y Gauli, 2000). En general, podemos clasificar las representaciones de la
masculinidad en relación con el cuerpo en dos tendencias fundamentales: 1) el hom-
bre de cuerpo inexistente; 2) el hombre de cuerpo bello: los modelos del metrose-
xual y del übersexual.
El primer modelo encuentra sus raíces en el pensamiento Ilustrado de filiación
judeo-cristiana, de modo que la negación del cuerpo se corresponde con la plena
identificación de Razón y masculinidad. En este sentido, nos encontramos con es-
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 69
tereotipos como el del experto, representado mediante una voz en ausencia del
cuerpo. Pero la masculinidad hegemónica vigente se caracteriza fundamentalmente
por la representación del cuerpo conforme a los nuevos cánones de belleza.
El canon de belleza masculina remite al hombre de morfotipo atlético originado
en la Antigüedad grecolatina y difundido, actualmente, por la práctica deportiva y
los media, a través tanto de los prototipos cinematográficos del héroe masculino,
como de la explotación de la imagen de deportistas profesionales en el discurso pu-
blicitario.
El héroe masculino es un hombre de honor que exhibe un obsceno uso de la
violencia para conseguir sus fines, los cuales están justificados ya sea en función de
su bien o su justicia. En consecuencia, el héroe se caracteriza por su dureza. No es
empático con las personas que le rodean, pues actúa por puro deber, y no se siente
emocionalmente ligado a nada. Esto le haría vulnerable. Ensalza, por lo tanto, el
mito de la independencia masculina (incluso el héroe romántico). Así, la dureza
emocional dispone al héroe hacia el ejercicio de la violencia en el caso en que esta
sea necesaria. Se hace patente, por lo tanto, la vinculación entre la masculinidad y
la violencia, asociación que encuentra su origen en uno de los juegos de honor más
básicos y primarios: la guerra; juego en el que se pone de manifiesto que el honor
es el principio de reproducción social del poder masculino (Bourdieu, 2000).
La representación de héroes masculinos por parte de culturistas profesionales
como Arnold Schwarzenegger normalizó el modelo atlético hipertrófico en la so-
ciedad occidental como modelo de belleza basado en la hipervirilidad. Este modelo
ha producido la generalización de la práctica del bodybuilding entre los hombres
occidentales en tales proporciones que hacen de este hecho un fenómeno social de
gran envergadura. La propia noción de bodybuilding implica la presencia de un
sujeto que, significado como ser racional, concibe su cuerpo como materia natural
que dominar y conformar estéticamente conforme a la consecución de los objetivos
de la belleza y el éxito social. Esta práctica puede conllevar diversas y graves con-
secuencias para la salud de los hombres cuando estos se obsesionan por alcanzar la
perfección del modelo. Así, los bodybuilders pueden padecer trastornos obsesivo-
compulsivos como la vigorexia e incluso exponer su integridad física mediante el
consumo de Esteroides Anabolizantes Androgénicos. Esta predisposición hacia el
peligro es parte de una cultura del riesgo que, inducida en la subjetividad masculina
por la socialización de género, se ve potenciada por los efectos secundarios psico-
lógicos de los EAA (Parkinson y Evans, 2006).
El otro icono de la representación de la mística de la masculinidad lo encontra-
mos en la explotación publicitaria de la imagen de deportistas profesionales. De
hecho, los deportes competitivos de equipo se han convertido en un símbolo de la
guerra en el que se han proyectado sus valores (Elías y Dunning, 1992). Así, pode-
mos observar cómo estos deportes alimentan ideologías y conflictos nacionalistas,
70 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
en los que algunos profesionales del deporte, ostentando una posición mediática
de prestigio, se erigen como los nuevos protectores de la nación, sus intereses y los
suyos. Pero, además, el deporte de equipo es un espacio de socialización de los
hombres en el disciplinamiento del cuerpo y el autocontrol de los sentimientos de
miedo y dolor. Por ejemplo, es fácil observar cómo incluso en la iniciación de niños
de seis a ocho años en los deportes de equipo como el fútbol (hegemónico en nues-
tra cultura), sus entrenadores les inculcan la idea de que deben soportar el dolor y
reprimir sus emociones si quieren jugar como «verdaderos hombres y no como
niñas». Todo esto sin aún considerar que, en muchos de estos deportes, el uso vio-
lento del cuerpo frente al contrario es un medio instrumental racionalizado para
los fines dispuestos.
En síntesis, no existe un espacio en el discurso mediático en el que los hombres
puedan concebir su propia debilidad. La omnipresencia de un modelo de mascu-
linidad caracterizado por el control racional del cuerpo y de la emotividad como
condición sine qua non del éxito social pone de manifiesto que la pragmática mas-
culina del control sigue profundamente inscrita en la socialización de los hombres
occidentales del presente.
Existe otro aspecto de la masculinidad que parece estar presente tanto en sus
modelos «positivos» como en sus modelos negativos o antisociales. Me refiero a la
idea de que los hombres son personas libidinosas, sin control de su sexualidad, que
utilizan a las mujeres para su satisfacción sexual, sin establecer ningún vínculo emo-
cional con ellas. Este modelo es un constructo correlativo al modelo hipersexualizado
de femineidad y, de acuerdo con los nuevos cambios sociales, no tendría tanto la
función de culpabilizar a las mujeres de las conductas sexuales de los hombres como
de normalizar estas últimas, banalizando la violencia sexual en general y la explota-
ción sexual de las mujeres en particular. De hecho, el hogar marital es, junto con las
calles y los locales donde las mujeres son prostituidas, el lugar donde más violaciones
no denunciadas se producen (Walter, 2010). El hecho de que tanto los modelos como
los contra-modelos de masculinidad entrañen esta característica pone de manifiesto
la dialéctica constitutiva de la pragmática masculina del control: autocontrol para
los fines sociales e instrumentalización y violencia para los personales.
Por último, si analizamos el uso y la autorrepresentación que los hombres hacen
de sí mismos en las redes sociales, podemos comprobar que tanto los adolescentes
como los hombres jóvenes ya tienen una previa socialización en la pragmática del
control.
En este caso, los hombres jóvenes no muestran prácticamente sus cuerpos en
las redes, o bien, si lo hacen, es para representarse afines a los modelos de belleza
mediante su auto-fotografía. De nuevo, aparecen aquí los dos modelos mencionados
(la inexistencia del cuerpo masculino o el cuerpo masculino bello) en relación con
el autocontrol de las emociones y el disciplinamiento del cuerpo. Esto concuerda
CUERPO E IDENTIDAD DE GÉNERO EN LA SOCIEDAD DE LA INFORMACIÓN 71
con el uso general que los hombres hacen de las redes: un uso controlado e instru-
mental (Estébanez y Vázquez, 2013).
El control de las emociones se observa en que los chicos no suelen expresar sus
estados expresivos, a no ser que sean de enfado, ni suelen subir fotos o auto-fotos
y etiquetarse. También es frecuente encontrarse con contenidos de índole deportiva
en sus cuentas, lo que confirma una vez más la función socializadora del deporte
competitivo en la masculinidad.
Correlativamente, los chicos muestran también un uso instrumental del cuerpo
de las mujeres, así como diferentes conductas de control de las mismas a través de
Internet. En el primer caso, es fácil observar la gran circulación de pornografía que
realizan los hombres a través de las redes sociales, o el hecho común de que para
establecer relaciones con ellas suelen pedir fotografías que, llegado el momento,
podrían tener connotaciones sexuales. En el segundo, es frecuente el uso de la men-
sajería instantánea en las redes o del WhatsApp con el objetivo de controlar el
tiempo y las relaciones de sus parejas, hasta el punto de que soliciten conocer sus
contraseñas ejerciendo diversas formas de chantaje emocional. Pero, lo más defini-
tivo en este caso, es que, tal y como acontece en la vida real, el acoso y la violencia
en las redes sociales los suelen ejercer los hombres. Así el grooming, el sexting y la
sextorsión son nuevos fenómenos sociales básicamente masculinos con consecuen-
cias nada novedosas: el abuso y la discriminación de las mujeres.
En conclusión, el uso que los hombres hacen de las redes sociales muestra una
socialización previa en la masculinidad hegemónica que resulta exacerbada y este-
reotipada por las características del medio, generando nuevas formas de discrimi-
nación y violencia de género en relación con el mismo.
Finalmente, es importante señalar que, como identidad pragmática, la masculi-
nidad es el correlato simbólico de un conjunto de prácticas de autodesignación en
serie de los hombres que estos realizan (consciente o inconscientemente) como
grupo social que mantiene una situación estructural de discriminación de otro
grupo concreto: las mujeres (Amorós, 2005). Estas prácticas están regladas por pac-
tos patriarcales, de entre los cuales el primero es valorar la masculinidad, lo que,
junto con la presión ejercida por el grupo de iguales, incitará a los hombres a iden-
tificarse con el arquetipo de masculinidad. Asimismo, las prácticas de autodesig-
nación masculinas tienen un reverso complementario: la heterodesignación de las
mujeres. Dado que el colectivo masculino es un conjunto práctico, precisa de una
unidad ontológica para obtener su ilusión de identidad natural: la mujer; objeto de
negación y desmarque. Y, en la medida en que la mujer es el ámbito transaccional
de los pactos patriarcales (Amorós, 2005), las mujeres en particular son heterode-
signadas como los objetos de las prácticas de control y sujeción de los hombres.
72 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
xual, que podemos encontrar en las TIC. En realidad, estas nuevas heroínas ciber-
néticas no hacen sino emular los valores androcéntricos que se han impuesto en
nuestra sociedad. Su agresividad no es una amenaza para el imaginario patriarcal,
porque se relaciona, una vez más, con esa sexualidad instrumentalizada que ha sido
definida por y para los hombres (Ruthven, 2010).
Pero ¿cómo se traslada todo este imaginario a los cuerpos de las mujeres? El poder
simbólico se incorpora en la subjetividad, para convertirse en un ideal que modela el
deseo y se encarna en el propio cuerpo a través de tres vías: la actitud natural hacia
las diferencias sexuales, la objetualización y la fragmentación (Pastor, 2004).
Como vimos al principio, se socializa a las niñas desde su nacimiento en ese «yo
en relación» que se internaliza como algo natural en la definición de su identidad.
Son educadas para ser princesas, lo que significa gustar, agradar al otro, ser queri-
das... En este contexto, las empresas no dudan en recurrir a modernas técnicas de
marketing para dar un paso más y convencer a las menores de las ventajas de con-
vertirse en réplicas vivientes de sus muñecas (Walter, 2010). Disfraces, complemen-
tos, videojuegos… contribuyen a que la identificación física se lleve al extremo.
Además, esas muñecas que pretenden imitar se caracterizan sobre todo por la hi-
persexualización de sus cuerpos: con grandes pechos, cuerpos esbeltos, maqui-
llaje… Proponen un modelo de feminidad artificial y exagerada, que se caracteriza
por el atractivo sexual, el cuidado obsesivo de la imagen y las compras compulsivas;
valores y actitudes que se hallan en la base de la sociedad de mercado y la industria
del sexo (Walter, 2010).
Las mujeres proyectan sus energías en asemejarse a ese cuerpo imposible que
transmiten los medios, como referente ideal de comparación. La anatomía se con-
vierte entonces, en una fatalidad heredada que es necesario someter mediante la
depilación, las dietas, la cirugía... Para Naomi Wolf (1991), estas exigencias consti-
tuyen una nueva «Doncella de Hierro», una bella cárcel, que bloquea el legado del
feminismo y aprisiona a las mujeres, obstaculizando el desarrollo de su propio pro-
yecto de vida.
Nos hemos referido también a la fragmentación como estrategia de control in-
cardinada en el cuerpo (Pastor, 2004). Las mujeres se someten a una serie de rutinas
de cuidado corporal, que implican su segmentación en elementos mínimos. Por
ejemplo, el maquillaje del rostro exige dividir la cara en distintas zonas: ojos, meji-
llas, boca… Estas rutinas les impiden tomar conciencia del propio cuerpo como
un todo (Bernárdez, 2009).
Por lo que respecta a la objetualización, hemos aludido anteriormente al proceso
por el que las mujeres se convierten en «objeto de la mirada masculina». Las mujeres
se acostumbran a ver su cuerpo como un objeto social, susceptible de ser evaluado
por otras personas. Bajo este prisma, su valía como seres humanos parece depender
estrictamente del valor conferido a su apariencia física. No es extraño, entonces, que
76 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
CONCLUSIONES
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORÓS, Celia (2005): La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las
luchas de las mujeres, Madrid, Cátedra.
ANTÓN, Eva y TORRES, Laura (2006): Lo que Vd. Debe saber sobre: violencia de
género, León, Obra Social de Caja España.
BEAUVOIR, Simone de (1998): El segundo sexo. Vol I. Los hechos y los mitos, Ma-
drid, Cátedra.
BENJAMIN, Jessica (1996): Los lazos del amor. Psicoanálisis, feminismo y el problema
de la dominación, trad. Jorge Piatigorsky, Barcelona, Paidós.
BERGER, John (2000): Modos de ver, Barcelona, Gustavo Gili.
BERNÁRDEZ, Asunción (2009): «Representaciones de «lo femenino» en la publici-
dad. Muñecas y mujeres entre la materia artificial y la carne», CIC: Cuadernos de
información y comunicación, 14, Ejemplar dedicado a corrientes de investigación
en Comunicación Interpersonal, pp. 269-284.
BERNÁRDEZ, Asunción, n. d.: «Cuerpos imaginarios de lo visible y lo invisible del cuerpo
de las mujeres en la publicidad», http://pendientedemigracion.ucm.es/info/per3/pro-
fesores/abernardez/pdfs/Cuerpos_imaginarios.pdf (consultado el 17 de enero de
2014).
BOURDIEU, Pierre (2000): La dominación masculina, trad. Joaquín Jordá, Barcelona,
Anagrama.
CABELLO, Patricio y FERNÁNDEZ, Icíar (2010): La tecnología en la preadolescencia y
adolescencia: Usos, riesgos y propuestas desde los y las protagonistas, Save The
Children, http://www.deaquinopasas.org/docs/estudio_riesgos_internet.pdf (con-
sultado el 10 de enero de 2014)
CASTELLS, Manuel (2006): La sociedad red, Alianza Editorial.
CLARE, Anthony (2002): La masculinidad en crisis, trad. Irene Cifuentes, Madrid,
Taurus.
CONNELL, Robert W. (1997): «La organización social de la masculinidad», trad.
Oriana Jiménez, en Valdés, Teresa y José Olavarría (eds.), Masculinidad/es:
poder y crisis, Santiago de Chile, ISIS-FLACSO: Ediciones de las Mujeres Nº 24,
pp. 31-48.
DE MIGUEL, Ana (2012): «La prostitución de mujeres, una escuela de desigualdad
humana», Revista europea de derechos fundamentales, 19, pp. 49-74.
ELÍAS, N. y DUNNING, E. (1992): Deporte y ocio en el proceso de la civilización,
Madrid, Fondo de cultura económica.
ESTÉBANEZ, Ianire y VÁZQUEZ, Norma (2013): La desigualdad de género y el se-
xismo en las redes sociales, Donostia-San Sebastian, Vitoria-Gasteiz, Eusko Jauur-
laritzaren Argitalpen Zerbitzu Nagusia, Servicio central de publicaciones del
Gobierno Vasco.
80 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
U
na de las afirmaciones más citadas de Paul Klee es aquella de que el arte
hace visible lo invisible, o en sus propias palabras, el arte «no reproduce lo
visible; vuelve visible» (2007: 35). El arte nos permite mirar a través de otros
ojos, y esto sin lugar a dudas nos descubre elementos o fenómenos que antes no
habíamos visto. lo que me gustaría mostrar a través de esta exposición textual es
que la práctica artística es en sí una estrategia de exploración, una herramienta en
la aventura fenomenológica de la vida, un útil de visión y percepción que va más
allá de lo visual. El dibujo es, tal y como aquí se concibe, un agente de empatía.
El arte es una suerte de escritura y de entre todas las técnicas utilizadas en las
prácticas artísticas, el dibujo posiblemente sea la que se sitúa más próxima a la gra-
fía, al acto de escribir. El filósofo Jacques Derrida, que estudió pormenorizadamente
el sentido de la escritura, afirmó en una entrevista realizada dos años antes de su
muerte: «diga lo que diga, aquí y ahora, tan brevemente y con esta escenografía un
poco extraña y artificial, será selectivo, finito, y en consecuencia, tan marcado por
la exclusión, por el silencio, por lo no dicho, como por lo que diré».1 Derrida des-
taca en esta afirmación una cuestión clave en el acto voluntario de escribir: el texto
está compuesto por lo que está (ahí, explícito) pero también por lo que no está
(aquello que excluimos o callamos). Defendió la imposibilidad de una biografía,
pero afirmó a su vez la escritura como búsqueda de identidad;2 escribir nos define,
podríamos entender, a sabiendas de que esta empresa toma la forma de una bús-
queda interminable. El dibujo también nos define: por lo que enfatizamos, por lo
que solo insinuamos y también por lo que decidimos omitir. Donde la escritura
ayuda a pensar(nos), el dibujo ayuda a ver(nos) y mostrar(nos).
1
«Quoi que je dise, ici et maintenant, si brièvement et dans une scénographie étrange et artificielle,
ça sera sélectif, fini et par conséquent autant marqué par l’exclusion, par le silence, par le non-dit que
par ce que je dirais». Extracto del film D’ailleurs Derrida (2000), dirigido por Safaa Fathy.
2
«Je peux donc, dans un contexte bien déterminé dire que j’écrivais pour rechercher une identité»
(idem).
82 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
a finales de 2009 empecé a trabajar en una serie de dibujos en torno a una imagen
utópica, la de la reconciliación de las nuevas generaciones con flora y animales no
humanos. coincidió con un momento especial en mi vida personal, tras el naci-
miento de mi hija Kotodama un año y medio antes; necesitaba encontrar un espacio
para la meditación, espacio que había perdido con su llegada. Mientras realizaba
un dibujo en el que hibridaba la imagen de una cría gorila con la de mi propia hija,
me sobrevino la evidencia: ¿es acaso más importante mi felicidad que la de la madre
de esta cría? ¿Mi existencia más importante que la suya? ¿Mi sentimiento materno
más fuerte que el de ella? Una de las cosas que aprendí al ser madre es la dimensión
del amor que mi madre siente por mí. ahora sé lo que es el amor materno, qué es
amamantar a una cría, el estado de alerta permanente y la «animalidad» de la pul-
sión de protección. cuando oigo al activista Gary Yourofsky decir que el sonido
más terrible que ha oído nunca es el de una vaca cuando le arrebatan a su ternero,3
no tengo ni la menor duda de que dice la verdad. la vaca desgarrada en sus mugi-
dos es una realidad diaria; ninguna madre puede cuestionar este sufrimiento.
En 2008, trabajé dentro del colectivo transnational temps4 —del que soy parte
fundadora— en el proyecto Simiomobile5 y me había percatado de la falta de re-
presentación de las hembras en la construcción de la imagen de la especie Gorilla-
Gorilla. cuando uno busca imágenes de gorilas en internet, casi la totalidad del
material gráfico que encuentra corresponde a fotografías de machos de esta especie.
Este fenómeno es aún más frecuente en las especies en las que el macho es física-
mente más voluminoso que la hembra. además, las hembras aparecen, la mayor
parte de las veces, representadas al lado de sus crías y, de manera excepcional, solas.
Esta cuestión es notable, ya que las hembras pasan por períodos no vinculados a la
reproducción o al cuidado de las crías y desarrollan otras tareas importantes para
la supervivencia del grupo. Su representación se construye, como en el caso de las
mujeres, a partir y en torno a la maternidad. Esta especie de muralla visual eclipsa
cualquier otro mérito. El macho, representante de la virilidad, tiene su propia iden-
3
Gary Yourofsky es un activista por los derechos de los animales en américa. Ha sido arrestado
en numerosas ocasiones por acciones reivindicativas y ha estado en una prisión de máxima seguridad
en canadá en 1997, después de asaltar una granja de pieles y liberar a más de 1 500 visones preparados
para ser sacrificados por la industria peletera. Puede accederse a una de sus célebres conferencias en:
https://www.youtube.com/watch?v=ZzvK5ulu7F0 (consultado el 15 de febrero de 2014).
4
http://transnationaltemps.net/
5
http://simiomobile.com/. Simiomobile es un proyecto artístico que evidencia los vínculos entre
la producción de elementos de alta tecnología (teléfonos móviles principalmente, aunque también
otros dispositivos tecnológicos que implican la miniaturización de sus partes) y la desaparición de los
últimos gorilas de montaña en la República Democrática del congo.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 83
lo QUE no VEía
El proyecto se extendió durante dos años, tenía que encontrar el hueco para poder
hacer los viajes a los diferentes zoos y una vez allí me quedaba dos o tres días para
establecer con las gorilas una relación más allá de la del disparo de un aparato fo-
tográfico. tomaba apuntes en mi cuaderno; apuntes sobre detalles diferenciadores
entre ellas (cicatrices, lesiones en sus dígitos, distribución del vello, particularidades
en las orejas…), notas sobre sus comportamientos y cualquier dato que me ayudase
a definir a cada una de ellas potenciando sus diferencias. Solicité hablar con los cui-
dadores de los primates en cada zoo, me interesé por las experiencias relevantes de
cada gorila hembra (si habían nacido en ese mismo zoo, quiénes eran sus progeni-
tores, sus hermanos de sangre, crías vivas, crías fallecidas…). no siempre tuve
suerte, en algunos de ellos, como el del Zoo aquarium de Madrid, nunca tuve res-
puesta; en otros, como el Parque de cabárceno, la acogida fue muy cálida; las cui-
dadoras estaban realmente implicadas con los animales y dispuestas a colaborar en
84 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
el proyecto. Una vez de vuelta en el estudio, analizaba las tomas y trabajaba la com-
posición enfatizando los rasgos característicos de cada una de las gorilas. Me des-
cubrí dibujando los ojos de las gorilas, para que pudiesen verme y acercarse, tal y
como ocurría en las visitas a los zoos. cuando lo hacían, era emocionante, estába-
mos allí, unidas por las pupilas. Dos años más tarde, recibí numerosas felicitaciones
al exponer los dibujos. Yo los miraba y sentía que lo más importante ya había pa-
sado, mostraban muy a duras penas la experiencia que yo había vivido.
Verónica Perales Blanco «coco. Stud#:1351 (Born in the wild), Zoo de Madrid» (2011).
Pierre noire sobre madera tratada, 150x105cm.
Hay ciertas cuestiones que «no veía» cuando empecé el proyecto y otras a las
que había decidido no mirar. Sabía que encontraría muchas barreras si convertía el
proyecto en una crítica hacia los zoos y otros lugares de encerramiento. De esta
cuestión hablé largo y tendido con Pedro Pozas, director del Proyecto Gran Simio
en España. Pedro Pozas aprobó y apoyó el proyecto desde su inicio (ya contábamos
con su ayuda para el proyecto Simiomobile), pero siempre dejó constancia de que
el Proyecto Gran Simio estaba en contra de cualquier tipo de cautiverio de primates,
a menos que fuesen santuarios donde no estuviesen exhibidos ante el público y pu-
diesen llevar una vida similar a la que tienen en libertad. El Great ape Project es
un movimiento internacional creado en 1994, a partir de las ideas desarrolladas en
un libro que lleva el mismo nombre y cuyos autores son los filósofos Paola cavalieri
y Peter Singer. El objetivo principal del movimiento es garantizar tres derechos bá-
sicos para los grandes primates no humanos (chimpancés, gorilas, orangutanes y
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 85
bonobos), parientes más próximos del ser humano. Estos tres derechos básicos, re-
servados hasta ahora exclusivamente a individuos de nuestra especie, son: el dere-
cho básico a la vida, derecho a la libertad individual y a no ser torturados.6
Una constante que percibí en mis visitas a los zoos es que los gorilas (como el
resto de los animales allí encerrados) están acostumbrados a «ver pasar manchas»
detrás de los cristales, manchas que gritan, que hacen burla o que incluso, golpean
violentamente la superficie para llamar su atención; pero manchas pasajeras o fu-
gaces al fin y al cabo. cuando te conviertes en una «mancha permanente», entonces
devienes sospechoso. Había leído el famoso libro de Dian Fossey —Gorilas en la
niebla—, y seguía las pautas de comportamiento que ella explica en él: no situarse
de frente (ya que podrían traducirlo como un reto o desafío), encogerse y cubrirse
la cabeza si un macho dominante se acerca, no mirar nunca fijamente a los ojos…
Pero pronto descubrí que para estos gorilas el hecho de que me comportase de esta
forma, «más respetuosa» podríamos decir, me convertía en doblemente sospechosa.
Busqué un punto intermedio en mis movimientos y opté por seguir uno de los con-
sejos de Fossey en el libro, la estimulación de la curiosidad de los gorilas (1985: 12).
Sacaba objetos que llevaba en mi bolso para llamar su atención y también me des-
calzaba. comprobé que los gorilas sienten bastante curiosidad por vernos los pies.
Frecuentemente, las que se acercaban antes eran las hembras, pero también tuve la
respuesta positiva de algún macho, como el apuesto Malabo que se sentó detrás de
mí, espalda contra espalda en postura de tres cuartos. con algunas de las gorilas,
como mi querida Dorle, la relación fue entrañable. le gustaba acercarse lentamente,
tranquila, como en busca de un intercambio simple de calor. Dorle comunicaba
mucho con los visitantes, tanto o más que con los otros gorilas, lanzaba besos y
hacía burlas para provocar las risas; transmitía una calma excepcional. Dorle no
tuvo ninguna cría, murió con 38 años «por causas desconocidas»7 mientras yo ter-
minaba su retrato. también murió Virunga, una de las hijas de Snowflake (el famoso
gorila albino del Zoo de Barcelona) con un año menos, por disentería bacteriana
aguda. En el Zoo de Barcelona las enfermedades intestinales han sido muy frecuen-
tes, dato que constatamos al revisar el historial; shigellosis, infecciones intestinales,
casos agudos de disentería… aparecen como causa de muerte de los gorilas de
forma reiterada. En estos últimos tres años, Banga, que estaba en el Zoo de Madrid,
ha sido trasladada al Romagne Zoo en la Vallee, Francia. Parque de cabárceno ha
6
El GaP tiene representaciones en varios países y continentes; en España, Pedro Pozas fue el res-
ponsable de la presentación en 2006 del proyecto ante el congreso, en el año 2008 el congreso Español
aprobó una Proposición no de ley para otorgar algunos derechos fundamentales a los Grandes Simios.
Para saber más sobre dicha proposición, mirar: http://www.proyectogransimio.org/noticias/ultimas-
noticias/los-grandes-simios-en-el-congreso
7
Según la base de datos creada y actualizada por James R. Davis desde 2004: http://www.dewar-
wildlife.org/jrdavis-gorilla-studbook/ (consultado el 25 de abril de 2013).
86 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
importado a una hembra de Praga llamada Moja. Un año más tarde de la muerte
de Wima, madre de chelewa (tenía solo 11 años, no se detalla la causa de la muerte).
Madrid Zoo ha traído a Yangu de Zúrich, de la que ha nacido Yuba. El Bioparc de
Valencia importó a ali, del Ramat Gan Zoo de tel aviv, algo más de un año después
de la muerte de Dorle. En el Zoo de Barcelona ha nacido una nueva hembra, hija
de Batanga. las gorilas son desplazadas siguiendo acuerdos entre diferentes zoos a
nivel mundial. la cuestión clave en estos intercambios, a veces temporales, es el
aumento de la reproducción; la convivialidad entre los diferentes miembros de un
grupo es también importante y por ello se aplican períodos de adaptación. Según
María teresa abelló, conservadora del Zoo de Barcelona, lo que procura la felicidad
de una gorila es tener una familia, un buen macho y descendientes8 (al margen de
que al menos los dos primeros le sean impuestos, como lo es en las situaciones de
cautiverio).
Un dato que llamó mi atención desde que inicié la exploración de la base de datos
de J. R. Davis9 es que las y los gorilas nacidos en libertad son mucho más longevos
que los nacidos en cautiverio, incluso cuando los gorilas nacidos en libertad fueron
alimentados a mano en los zoos desde edad temprana. la prueba está en que, ac-
tualmente, los gorilas de mayor edad son gorilas nacidos en libertad (nos referimos,
evidentemente, a la edad de los gorilas recluidos en zoos). El primer gorila registrado
en una base de datos se remonta a 1930. Si analizamos los listados que contienen los
individuos descubrimos que aquellos de fecha de nacimiento más antigua son gorilas
de los que se desconocen los progenitores, gorilas que una vez estuvieron en libertad.
El gorila más viejo del continente europeo (insisto, cautivo en zoo) es una hembra
llamada Fatou (1957) que se encuentra en el zoo de Berlín. igualmente en alemania,
aunque en el zoo de Francfort, encontramos a Jule (1964), hembra nacida igualmente
en libertad. la mayor de las gorilas en España es Kim (1969), una hembra que se
encuentra en el Bioparc de Fuengirola. En Francia, las gorilas más mayores se en-
cuentran en el zoo de Saint Martin la Plaine, se trata de tres hembras: Hyasmina
(1979), Pamela (1978) y Fatou10 (1977), todas ellas nacidas en libertad. Parece por
tanto que el período de gestación es muy relevante para su salud y probablemente
también lo sean las defensas naturales que la madre transmite a su cría. Podríamos
preguntarnos si las limitaciones del medio en el que viven los gorilas cautivos afectan
significativamente su capacidad de respuesta inmunológica.
8
«Virunga, la conmovedora vida íntima de una gorila del zoo de Barcelona», en El País, 6 de fe-
brero de 2012. http://ccaa.elpais.com/ccaa/2012/02/06/catalunya/1328485155_063565.html (ccon-
sultado el 26 de abril de 2013)
9
http://www.dewarwildlife.org/jrdavis-gorilla-studbook/ (consultado 26 de abril de 2013)
10
Encontramos dos Fatou registradas: Fatou (Stud #: 0720) en St. Martin la Plaine; Fatou (Stud
#: 0082) en el Zoo de Berlín.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 87
Verónica Perales Blanco «Muni. Stud#:1560, Zoo de Barcelona» (2011). Pierre noire
sobre madera tratada (detalle), 150x105cm.
88 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
pacios abiertos han de estar en montante, de otro modo, solo los visitarán cuando
están a solas y por espacios cortos de tiempo. Bajar es colocarse en una posición de
desventaja, algunas instalaciones no tienen en cuenta este detalle.
lo pernicioso del encierro es obvio, el gorila en libertad puede «escapar» de las
situaciones que le violentan, puede huir, respuesta instintiva en todos los seres vivos;
en cautiverio los espacios son terriblemente limitados y están tremendamente ex-
puestos, al público y también a los otros miembros de su grupo. En el Zoo de Bar-
celona, Muni hubiese huido lejos del macho dominante con el que compartía
espacio, antes de reducir su alimentación (anorexia) y Fossey tal vez se hubiese li-
brado del ataque de uno de los machos si el espacio de su «celda» hubiese sido
mayor. los gorilas en libertad se desplazan varios kilómetros por día. los enfren-
tamientos, represalias, disputas… también existen, pero las acotaciones de los zoos
convierten el espacio cotidiano en un ring: no exit access.
El zoo es la privación, pero supone también la imposición. los comportamientos
derivados del estrés al que están sometidos se ven reflejados con claridad en un es-
tudio reciente de los antropólogos lucy P. Birket y nicholas E. newton-Fisher, de
la Escuela de antropología y conservación de la Universidad de Kent en Gran Bre-
taña.11 Encontramos un largo listado de acciones significativas, como repetir com-
pulsivamente un movimiento sin razón aparente, golpearse reiteradamente, morder
partes de su cuerpo, dejar de comer o reducir drásticamente la ingestión de comida,
beber su propia orina, la coprofagia (ingestión de heces propias o ajenas) y arrancar
su propio pelo, entre otras. Estas dos últimas las he visto —personalmente— en
gorilas de los zoos españoles. Dian Fossey menciona en su libro la coprofagia como
un fenómeno que se da en gorilas en libertad al término de los prolongados perío-
dos de reposo diarios propios de la estación lluviosa, época en se reduce el tiempo
dedicado a viajar y alimentarse (1985: 52). Pero la repetición compulsiva de este
fenómeno es claramente patológica, acaba extendiéndose dentro de los grupos,
donde los más pequeños imitan los movimientos de los mayores. Es el caso de la
coprofagia en el Zoo de Barcelona. Wima arrancaba el pelo de sus antebrazos y el
del rostro hasta las sienes; su hija chelewa, aunque no tenía calvicies tan pronun-
ciadas, imitaba esta estereotipia materna convirtiéndola en propia. algunas gorilas
presentaban varios síntomas listados en el estudio de Birket y newton-Fisher, como
Banga del Zoo aquarium de Madrid.
Sabrina Krief, profesora asistente en la Unidad de Eco-antropología y Etnobio-
logía del Museo nacional de Historia natural de Francia, ha estudiado el comporta-
miento de los chimpancés durante años, desde el uso de utensilios a la búsqueda de
alimentos-medicina para curarse (Mankoto, 2006). Explica cómo los chimpancés des-
11
Esta investigación está accesible online: http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/jour-
nal.pone.0020101 (consultado el 10 de febrero de 2014).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 89
cubren el potencial «químico» del medio en el que viven y utilizan estos recursos en
la cotidianeidad de sus vidas.12 De forma concreta, Krief ha investigado la manera en
que los grupos de chimpancés en libertad curan enfermedades mortales para otros
de su misma especie y en estado de cautiverio. En el capítulo titulado «Du congo à
l’ouganda: découverte de la pharmacopée des chimpanzés», publicado en el libro
ilustrado por François Desbordes Primates, Krief detalla sus experiencias. cuenta
cómo los primates descubrieron sofisticadas técnicas del uso de las plantas, tanto
desde el punto de vista químico como físico y supone que, además, estos primates
son capaces de transmitir dichos avances entre ellos. Por ejemplo, los chimpancés
que tenían parásitos plegaban cuidadosamente un determinado tipo de hojas que al
pasar por el intestino arrastraban los gusanos, pegados a su superficie. Este y otros
descubrimientos sorprendentes —entre ellos un medicamento contra el paludismo—,
pueden llevarnos a una aproximación de la relación de estos primates con el medio
en el que viven. Entonces surge la pregunta: ¿con qué riqueza natural cuenta el chim-
pancé que vive recluido en un zoo? ¿Qué potencial de descubrimiento tiene ese
medio? Pensemos en esos centros que incluyen «mobiliario tropical en cartón piedra»,
acompañado de sonidos de selva que «van a juego». no es de extrañar que muchos
animales desarrollen conductas patológicas cuando su vida se limita a no hacer nada.
12
En la conferencia: Médecine naturelle chez les grands singes en afrique, impartida el martes 4
de octubre de 2011. accesible en la web dentro del ciclo de conferencias Habiter la forêt de la cité
des Sciences et de l’industrie, la Villette, París.
90 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
FoRMaS DE REtRataR
Durante las horas de visita en los zoos hablé con muchas personas interesantes, no
solo los cuidadores y el personal de los zoos, sino también personas que acudían
de manera asidua a ver a los gorilas. Estos grandes primates son capaces de suscitar
vínculos muy fuertes con seres humanos que terminan por visitarlos como el que
pasa de vez en cuando a hablar con un buen amigo. Me sorprendió cuando leí en
un texto del científico Yves coppens que siempre ha tenido la impresión de que
«podríamos dividir a los humanos en dos categorías, aquellos que adoran a los pri-
mates, y los que, por las mismas razones, los detestan»13 (coppens, 2010: 10).
la razón por la que decidí retratar gorilas y no miembros de otra familia tiene
que ver con esta facilidad para suscitar empatía. Dentro del ámbito de la ética ani-
mal hay ciertos especialistas que dan prioridad a especies que además de ser sensi-
bles tienen ciertas capacidades cognitivas, frecuentemente los grandes primates y
otras como elefantes y delfines. Jeangène Vilmer, filósofo y especialista en Derecho
internacional, dice que detrás de esta selección puede haber una intención estraté-
gica. los grandes simios dice, son como un «caballo de troya»,14 podrían ejercer
como cuña para desintegrar la frontera entre el hombre «sacro-santo» dice, y el
otro saco donde metemos a todos los seres vivos, «desde el bonobo hasta la es-
ponja».15 Si conseguimos derribar la barrera, aunque en un principio solo sea para
con los grandes simios, se producirá un efecto de bola de nieve, afirma Vilmer. la
mirada de los grandes simios puede ser una puerta, la puerta a una nueva forma de
mirar el mundo, la clave para adoptar una perspectiva que nos lleve al equilibrio.
la fotógrafa y filósofa chris Herzfeld publicó hace relativamente poco Petite
Histoire des Grands Singes, obra en la que hace una revisión de cómo han sido
percibidos y tratados los grandes primates en el mundo occidental. Mundialmente
conocida por los retratos fotográficos realizados a grandes simios, años antes, había
participado en la obra colectiva les Grands Singes. l’humanité au fond des yeux.
En esta, dedica un capítulo16 a Victoria, una gorila que encontró en el Zoo d’anvers.
13
Mi traducción.
14
Mi traducción. Jean-Baptiste Jeangène Vilmer: éthique animale: les animaux ont-ils des droits?
Mercredi, 23 de mayo de 2012, cycle de conférences les bêtes et nous, conférences du collège, cité
des Sciences, la Villette, Paris.
15
idem.
16
chris Herzfeld ilustra además la obra completa, que es una muestra de fotografías realizadas
entre 1996 y 2004 en diferentes países.
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 91
17
Mi traducción.
92 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
proyecto. Por otro lado, aunque usé la fotografía como documentación, la considero
únicamente parte procesual. Berger sostiene que la imagen fotográfica se vincula
con la conservación, mientras que «la imagen dibujada contiene la experiencia de
mirar» (2011: 55). El dibujo es la herramienta principal en Grandes Simios en Fe-
menino; es, más allá de las connotaciones plásticas, vehículo de la obra.
Verónica Perales Blanco «nadia. Stud#:0787 (Born in the wild), cabárceno nature Park
(cantabria)» (2011). Pierre noire sobre madera tratada, 150x105cm.
todo aquel que haya dibujado un animal, incluso cuando con él tiene una re-
lación muy estrecha, se habrá dado cuenta de que no es tan fácil como parece. la
imagen del modelo aparece como impronta en nuestra memoria, pero cuando en-
tramos en detalles —distancia entre los ojos y las orejas, altura de las orejas, de las
cejas…— nos damos cuenta de que nos faltan muchos datos, de que nuestro re-
gistro es muy fugaz y difuso. Para poder dibujar a alguien es necesario interiori-
zarlo, conocer profundamente su volumen, la dinámica de sus movimientos, el
gesto, todo aquello que no parece estar en las partes, pero que existe en la globa-
lidad… Este aspecto analítico en el acto de dibujar, que me interesaba particular-
mente, conduce al conocimiento pormenorizado del modelo. El primatólogo
Sabater Pi (1922-2009), famoso por descubrir a copito de nieve —el mundial-
mente conocido gorila albino del Zoo de Barcelona—, afirmaba que el dibujo era
la mejor técnica para captar a los primates. Sabater fue un gran dibujante y algunos
de los numerosos dibujos de primates que realizó pueden ser vistos en el centro
de documentación del Zoo de Barcelona. creo que tal vez el dibujo no es la mejor
de las herramientas para representar a un animal, pero no hay la menor duda de
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 93
que es una buena técnica para conocer. Dibujar es, por otro parte, una manera de
«sintonizar». En el prefacio a la segunda edición del tao de la física, Fritjof capra
afirma que, en algunas ocasiones durante la escritura del libro, sintió que era úni-
camente un transcriptor: «sentí que el libro estaba siendo escrito a través de mí,
más que por mí» (1997: 11).18 Durante el desarrollo del proyecto Grandes Simios
en Femenino me sumergía en esta sensación de «no estar», solo ser.19 «Ser el di-
bujo», ser en la confluencia del dibujado y el que dibuja, ser en un punto, ser en
la vacuidad y la plenitud del todo.
cuando Derrida dice «l’animal nous regarde et nous sommes nus devant lui»
(2006: 50), habla de la falta de vestimenta, de la «vergüenza original» de ese estar
desprovisto de lo que nos cubre «las vergüenzas». Delante de las gorilas en el zoo,
tomando notas, asombrada ante muchos de sus comportamientos… y delante de
las gorilas cuando las dibujaba, sentía otro tipo de vergüenza; la de la actitud hu-
mana para con los no humanos, sentía una desnudez que no se refiere a la apariencia
de nuestro cuerpo, sino a lo que no se ve, o que llevamos dentro. Me avergüenza
terriblemente el egocentrismo cruel de nuestra especie, que nos recorta la capacidad
de ver, que nos impide ponernos en el lugar del otro, de sentir compasión.20 ¿cómo
esconderse de nuestra propia evidencia? la estampa revela que no hemos entendido
lo que Bruno latour expresó de forma muy sintética «sin no humano, no hay hu-
mano»21 (2004: 135).
lucile Desblache ha escrito varias obras sobre la presencia y la representación
de los animales en la literatura. Es, creo, una forma de dibujar también. Muchos
de los animales que aparecen en literatura y en el cine también nos miran, aunque
lo hagan desde la ficción. El tigre Richard Parker de life of Pi (Yann Martel, 2002)
o el gorila de ishmael (Daniel Quinn, 1992) por citar algunos, nos miran fijamente.
Estos animales, según Desblache, «son más que nunca, portadores de sabiduría,
porque hacen saltar nuestros propios límites, nos hacen conscientes de la estrechez
y los peligros de una visión piramidal de los seres en la que el ser humano se en-
cuentra en la cima» (2011: 51). Estos dibujos animalistas son líneas que escriben
18
corresponde a la página en la primera edición del libro en español, por Editorial Sirio, tal y
como aparece en la bibliografía.
19
cuando realizaba el retrato de Banga, en la tercera sesión de dibujo anoté: «de repente una
energía fractal se desencadena y salgo corriendo a decir a Fred: Banga est venu me voir! Y he enten-
dido en ese mismo instante por qué yo buscaba sus ojos con mi lápiz en la superficie blanca; necesitaba
que ella me viera, tenía que verme para acercarse, tal y como ocurría en el zoo». inicié este proyecto
de dibujo después de llevar diez años sin tocar un lápiz. El dibujo surge de una conexión profunda;
más que un «saber hacer» consciente dibujar es un dejarse llevar. Eso sí, con el conocimiento apren-
dido de que si la apertura es buena, el dibujo vendrá. Dibujamos con la cabeza, y con el corazón.
20
En el sentido búdico del término; sentir compasión por otro es diluir la frontera entre uno y él,
tener en cuenta las condiciones que afectan a cada uno.
21
Mi traducción.
94 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
nuestro paso, líneas que como dice Marián lópez Fdez. cao, definen el mundo a
la vez que nos definen (2011: 82).
En 2010 se estrenó el film né-
nette, del realizador nicolas Phili-
bert, un «retrato» de la orangután
estrella de la Ménagerie, el zoo
del Jardin des Plantes de París.
todas mis proyecciones sobre el
mismo resbalaron sobre su super-
ficie de hielo. ¿cómo es posible re-
tratar a alguien sin ponerse en su
lugar? cómo perfilar una sombra
proyectada en un cristal, fotogra-
fiar un reflejo, escuchar un eco…
sin preocuparse del lugar donde
surgió. la estrategia de Philibert
es radical, extremadamente indi-
recta. Podemos plantear diferentes
formas de suscitar una conversa-
ción, la más utilizada posiblemente
sea la de exponer datos relevantes
que conducen a un diálogo poste-
rior. Quizá podríamos asociarlo a
lo que en España se llama «poner
Verónica Perales Blanco «Virunga. Stud#:0696, Zoo de las cartas sobre la mesa». Pero de-
Barcelona» (2011), Pierre noire sobre madera tratada bemos valorar también que la omi-
(detalle), 150x105cm. sión forzada de una cuestión —un
tema evidente en un contexto determinado— es, asimismo, una forma de inducir
o provocar su aparición. Sin lugar a dudas, la segunda estrategia será menos certera
que la «española», corremos el riesgo de que los datos relevantes no salgan a la luz
y también de que el conjunto sea valorado de una forma superficial, pero la eficacia
de una u otra queda pendiente de pruebas. En el film de Philibert, la disyunción
entre imagen y sonido, los planos de los orangutanes acompañados de los comen-
tarios —a menudo insustanciales— de los visitantes, favorece la reflexión, es como
si los sonidos de los animales estuvieran, por momentos, doblemente silenciados: a
través de su inexistencia y mediante el ruido (en tanto que información no relevante)
del factor humano. nenette interpela justamente por lo que no dice, permitiendo
que veamos lo que no está en el film. En el 2012 Philibert retoma la Ménagerie du
Jardin des Plantes para hacer un nuevo film, más corto que el anterior, un docu-
mental provocativamente corto podríamos decir. la nuit tombe sur la ménagerie;
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 95
la noche nos alumbra y nos muestra claramente lo que está omitido en las dos obras:
la voz animal, la voz de ese «continente negro»22 ocupa entonces el cielo de París.
Philibert no mira en ningún momento desde los ojos de nénette, se sitúa siempre al
otro lado del cristal, no hay rastro de empatía alguna en la realización cinematográ-
fica. El cristal parece más bien un muro de contención; no separa animales y visi-
tantes, sino humanos y no humanos. la aproximación de este realizador parte de la
distinción y separación radical, como la existencia misma de los zoos.23 Desde mi
lectura de las obras, el retrato que subyace en estas dos películas de Philibert es el
nuestro propio, el de un grupo de animales que miran algo sin llegar a comprenderlo
enteramente, demasiado limitados como para imaginarse en el lugar del otro e in-
tentar experimentar desde ese que no es él. El reconocido primatólogo Frans de
Waal afirma que somos capaces de empatizar cuando «vemos directamente»24 (2009:
221), pero debemos entender que no es únicamente una cuestión visual. no basta
con imaginar ser un animal u otro, es necesario ponerse en su lugar y sentir, dice la
psicóloga y ecologista americana Gay Bradshaw25 que ha explorado los paralelismos
entre animales humanos y no humanos desde el ámbito de la neuropsicología.
las relaciones que se pueden establecer, no únicamente de paralelismo sino tam-
bién de reciprocidad entre animales humanos y no humanos nos revelan datos que
con frecuencia no queremos oír. Esto sale a relucir abruptamente en la controvertida
obra de la artista Samantha Sweeting.26 En la obra in came the lamb (2009), Swee-
ting muestra imágenes fotográficas de ella misma amamantando a un pequeño cor-
dero. Su obra produce un impacto directo en el público, interpelando sobre la
reciprocidad y también sobre la empatía; parece nivelar en la escena lo que de ma-
nera profunda tenemos inscrito como dos tipos de existencia. la filósofa Florence
Burgat aborda en Une autre existence. la condition animale las diferentes aproxi-
maciones al concepto de existencia, las diferencias entre simplemente vivir o existir.
22
«la mujer… ese continente oscuro» es una célebre expresión de Freud. la frase completa es : «la
vie génitale de la femme adulte restera longtemps un “dark continent” pour notre psychologie». Sigmund
Freud, la question de l’analyse profane (1926), Œuvres complètes xViii, Paris, PUF, 2002, p. 22.
23
Sobre este tema, es recomendable escuchar la emisión «Que se passe-t-il dans les jardins zoolo-
giques?» con Jean Estebanez, profesor en l’ école normale Supérieure. Emisión disponible en el sitio
web de France culture. canal «Planète terre» del 11 de julio de 2012. accesible en: http://www.fran-
ceculture.fr/emission-planete-terre-que-se-passe-t-il-dans-les-jardins-zoologiques-2012-07-11 (consul-
tado el 26 de abril 2013).
24
Mi traducción.
25
Gay Bradshaw, «Pas de deux» en antennae, issue 22, otoño 2012, p.49. accesible en:
http://www.antennae.org.uk/antEnnaE%20iSSUE%2022.docx.pdf (consultado 26/04/2013).
Gay Bradshaw es autora del libro Elephants on the Edge: What animals teach Us about Humanity
,Yale University Press, 2009. Se puede consultar más información sobre esta autora en: http://www.ga-
bradshaw.com (consultado 26/04/2013).
26
Sitio web de Samantha Sweeting, http://samanthasweeting.com (consultado el 26 de abril de 2013).
96 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
afirmar que los animales existen puede ser una fuerte provocación para todos aque-
llos que se niegan a ver la «multiplicidad de formas de vida y de comportamientos
y no una única existencia tallada a la medida del hombre»27 (2012: 338). Sin lugar
a dudas, y esto podría abrir un extenso diálogo, hay muchos intereses materiales y
económicos detrás de la objetualización de los animales no humanos (una gran parte
de los animales «han desaparecido» (2011: 143), reducidos a lo más bajo de sim-
plemente vivir: ser carne). aun así, no podemos perder de vista que formamos parte
del mundo por estar integrados a través de nuestro cuerpo, no de nuestro pensa-
miento, y que tal y como escribe Burgat citando a Merleau-Ponty «la comunicación
con el mundo más antigua que el pensamiento»28 (339) no es exclusivamente hu-
mana sino también —o más bien—, de los animales no humanos.
El porvenir de los animales no humanos, digamos porvenir y no futuro pensando
en la significación particular de cada uno de estos términos según Derrida (el futuro
es predecible, mientras que el porvenir es incierto), depende en gran parte de los
animales humanos. Es inexorable «pensar» de nuevo lo humano dentro del reino
de lo animal, «no tanto para atentar contra su dignidad, sino para abrir su huma-
nidad» (PicQ, 2008: 15).
la perspectiva que ofrece capra cuando publica en 1975 the tao of Physics es
fundamental para entender las conexiones entre las teorías científicas más relevantes
del siglo pasado y las ideas básicas de las tradiciones místicas orientales,29 en general
de marcado carácter holístico. En su obra las fronteras entre los diferentes modos
de conocer se hacen porosas. En Sabiduría insólita, el libro que siguió al tao de la
Física, capra cita una de las numerosas frases que tejen la inspiradora visión de uno
de los pensadores más importantes del siglo pasado, a saber, Gregory Bateson: «la
metáfora está en la propia raíz de la vida» (1994: 87). la metáfora es sin duda una
de las herramientas más potentes de comunicación y transmisión de conocimiento:
la vía más rápida —posiblemente la más certera—, una vía indirecta que traza el
trayecto más corto, «autopista sin peaje, luz sin impuestos, como el sol».30 la me-
táfora, que como describe amalia Quevedo «insinúa sin presentar, sugiere sin ex-
27
Mi traducción.
28
Mi traducción.
29
cuando habla de misticismo oriental capra se refiere a hinduísmo, budismo y taoísmo.
30
Extracto de la voz en off del vídeo Biometrics (2003) de transnational temps (http://transna-
tionaltemps.net/ehes/biometrics/movie.html).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 97
plicitar, evoca sin nombrar, alude sin decir; la metáfora habla en forma oblicua,
apela a connotaciones laterales».31
la población está demasiado aturdida con el incesante torrente de mensajes que
dictan la realidad que nos venden, «lo que tú debes ser, lo que tú debes tener, lo
que tú debes parecer… lo que tú eres»; condicionados por estos mensajes surgen
nuestros deseos. Deseos reales en busca de elementos de una ficción. compramos
una realidad, y prescindimos de la que ya tenemos. autores como Debord y Bau-
drillard han reflexionado sobradamente sobre el poder hipnótico y colonizador de
la ficción mediática. inyectar un nuevo mensaje de tono imperativo en este perverso
canal dudosamente se traducirá en un cambio de conciencia, un cambio en la ma-
nera de pensar(se), pensar(nos) en el mundo. Es necesario buscar medios hábiles
que operen de forma alternativa, medios que actúen de manera indirecta, metafó-
rica; lo que necesitamos (el deseo) no es un asentimiento más (comparable a una
nueva forma consumo sistemático, del tipo eco-chic),32 sino un cambio significativo,
clave, una disrupción. Es el momento de concebir nuevas herramientas; o tal vez,
de retomar, hibridar y repensar algunas antiguas. Es, creo, el caso del dibujo. Di-
bujar nos interpela, nos obliga a conocer y cuando conocemos, nos desplazamos
(en el caso de Grandes Simios en Femenino de lo que somos hacia lo otro). las he-
rramientas han de procurarnos un ver mejor, oír mejor, conectar mejor… con ese
mundo «más antiguo que el pensamiento» de Ponty. Deberían permitirnos dibujar
lo que no vemos; lo que hay detrás del cristal (el del techo y tantos otros que rodean
nuestra experiencia de lo que es la vida).
En Sabiduría insólita, capra afirma que la sensibilización ecológica es, en su
nivel más profundo, la concienciación intuitiva de la unicidad de toda la vida, de la
interdependencia de sus manifestaciones múltiples y de sus ciclos de cambio y trans-
formación. cito sus propias palabras: «el concienciamiento ecológico, en su esencia
más profunda, es espiritual» (1994: 126). El crecimiento del que adolecemos, el
crecimiento que nos debemos, es interior. tendríamos por tanto, que producir agen-
tes que cuestionen nuestro nivel de evolución y desarrollo interior, así como poner
en valor aptitudes y saberes vinculados al crecimiento interno más que al producto
interior bruto. los avances tecnológicos son primordiales, es incuestionable; pero
no a costa de una conciencia ecológica paupérrima. capra lo muestra claramente
en su obra, existen múltiples accesos al conocimiento desde el descubrimiento in-
terior. Somos el conocimiento.
31
En De Foucault a Derrida. Pasando fugazmente por Deleuze y Guattari, lyotard, Baudrillard. Edi-
ciones Universidad de navarra, navarra, 2001. Edición digital de Derrida en castellano (http://www.jac-
quesderrida.com.ar/comentarios/quevedo_2.htm)
32
El mercado deforma iniciativas ecológicas en manifestaciones «eco-fashion». El Green-Glamour
o Eco-chic es un nuevo estilo de vida que demarca un estrato social económicamente pudiente.
98 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
33
Mujeres en las artes Visuales (MaV), por ejemplo, ha realizado numerosos informes que reflejan
la enorme desproporción que existe entre la presencia femenina y la masculina en museos, galerías,
pero también, congresos, grupos editoriales y un largo etcétera. Estos informes son herramientas va-
liosas que ponen números nítidos a una imagen pretendidamente turbia. Marian lópez Fdez.cao ha
realizado una importante labor de difusión a este respecto, remarcando la relación que establecemos
entre memoria y museos y el reflejo que tiene sobre las mujeres. Véase: http://ujiapps.uji.es/com/noti-
cies/2014/04/1q/congres-genere/, Más información sobre MaV puede verse en: http://www.mav.org.es/
(consultados el 26 de abril de 2013).
REFlExionES DE Una REtRatiSta DE GoRilaS 99
plica también valorar la ausencia, porque tenemos una marcada tendencia a analizar
lo que vemos, pero no lo que no vemos; lo que está, pero no lo que no está. la au-
sencia cuenta, y entiendo por ausencia los nombres, los logros, el capital humano
y no humano. Desplazar el punto de fuga es cuestionar el antropocentrismo y an-
drocentrismo imperantes, presentes no solo en los textos y las imágenes, sino en el
prisma mismo a través del cual miramos el mundo, «we have seen the world too
long through the eyes of men» (1988: xi), dice collard. Esta frase debería leerse
como lo que es: una certeza, y no una amenaza; la lectura que todos conocemos se
hace desde la visión androcéntica y eurocéntrica patriarcal. Esta visión deformada,
gravemente disminuida, que nos ha guiado hasta ahora, debería ser afrontada clara
y llanamente como una enorme pérdida que podemos corregir.
REFEREnciaS BiBlioGRáFicaS
alaRio, María teresa (2008): arte y Feminismo, San Sebastián, Ed. nerea.
BERGER, John (2001): Mirar, traducción de Pilar Vázquez, Barcelona, Ed. Gustavo
Gili.
BERGER, John (2011): Sobre el dibujo, traducción de Pilar Vázquez, Barcelona, Ed.
Gustavo Gili.
BRaDSHaW, Gay (2012): «Pas de deux», en antennae, otoño de 2012, 22, pp. 44-52.
BURGat, Florence (2011): «la disparition», en la question animale. Entre science,
literature et philosophie, Rennes, Pur éditions.
BURGat, Florence (2012): Une autre existence. la condition animale. Entre science,
literature et philosophie, Paris, albin Michel.
caPRa, Fritjof (1990): Sabiduría insólita, Barcelona, Ediciones Kairós.
— (1997): El tao de la Física, Málaga, Ediciones Sirio.
collaRD, andrée (with Joyce contrucci) (1988): Rape of the Wild. Man’s violence
against animals and the Earth. indiana, University Press.
coPPEnS, Yves (2010): «Préface» dans Primates, Petter, Jean-Jacques; coppens,
Yves (2010): Primates, Paris, nathan.
DERRiDa, Jacques (2006): l’animal que donc je suis, Paris, éditions Galilée.
DESBlacHE, lucile (2011): la Plume des Bêtes. les animaux dans le roman, Paris,
l’Harmattan.
EStEBan, Mari luz (2011): crítica del pensamiento amoroso, Barcelona, Ediciones
Bellaterra.
FoSSEY, Dian (1985): Gorilas en la niebla. trece años viviendo entre los gorilas.
Barcelona, Editorial científica Salvat.
HaRaWaY, Donna J. (1995): ciencia, cyborgs y mujeres. la reinvención de la natu-
raleza, traducción de Manuel talens, Madrid, Ediciones cátedra.
100 EcoloGía Y GénERo En DiáloGo intERDiSciPlinaR
HERZFElD, chris (2012): Petite Histoire des grands singes, Paris, Seuil.
KlEE, Paul (2007), teoría del arte moderno, Buenos aires, Editorial cactus, serie
Perenne.
latoUR, Bruno (2004): Politiques de la nature. comment faire entrer les sciences
en démocratie, Paris, éditions la Découverte.
lóPEZ FERnánDEZ, Marián (2011): Memoria, ausencia e identidad. El arte como
terapia. Madrid, Eneida.
ManKoto, Mambaele (2006): «Sabrina Krief: are humans just another Great ape?
dans. a World of SciEncE, Vol. 4, nº 1, January-March 2006, pp. 13-15.
PEttER, Jean-Jacques; coppens, Yves (2010): Primates, París, nathan
PicQ, Pascal; lestel, Dominique; Despret, Vinciane; Herzfeld, chris (2005): les
Grands Singes. l’humanité au fond des yeux, París, odile Jacob.
— (2008): nueva Historia del hombre, Barcelona, Ediciones destino.
PERalES Blanco, Verónica (2010): «Práctica artística y ecofeminismo». creatividad
y Sociedad. 15.
PUlEo, alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, cátedra.
VilMER, Jeangène J. B. (2006): «De l’anti-animalisme primaire» le Devoir, 30 mars
2006, p. a7.
b) Recursos electrónicos
A Rocío Orsi
A
nne Finch, conocida por «Lady Conway» desde su matrimonio a los
diecinueve años de edad con el vizconde Edward Conway, es un ejemplo
paradigmático de «excepcionalidad» en el ejercicio de la filosofía y de la
ciencia en los orígenes de la modernidad como he escrito ya en otros lugares,2 el
saber estaba relegado «de pleno derecho» a los varones de clases acomodadas,
pudiendo acceder a él solo aquellas mujeres de la aristocracia —excepción dentro
de la excepción— que tenían padres, hermanos o esposos permisivos, generalmente
ellos mismos dedicados al cultivo del conocimiento y de la ciencia, esto es, quienes
hoy calificaríamos como «pertenecientes al mundo de la cultura».
Esto es algo que choca con los presupuestos mismos de la modernidad en sus
orígenes, sobre todo en el campo de la historia de las ideas y de la reflexión
filosófica. Si hemos de creer sus alegatos contra el escolasticismo, la filosofía
moderna que culminaría en el movimiento ilustrado se alza contra los prejuicios de
todo tipo, enarbolando la emancipación del género humano.3 Sin embargo, en la
práctica la modernidad en su conjunto se olvidó de aplicar sus consignas al colectivo
1
Este trabajo se ha realizado en el marco de los proyectos de investigación «Enlightenment and
Global History» (ENGLOBE: Marie Curie Inicial Training Network: FP7-PEOPLE-2007-1-1-ITN),
«Leibniz en español II» (FFI2010-15914) y «Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS:
FFI2013-42935-P).
2
Cf. sobre todo los artículos dedicados a Anna Maria van Schurman y Marie Winckelmann von
Kirch, C. Roldán (1993), (1994), (1997), (2001). Cf. también C. Roldán (2008ª) y (2008 b).
3
No otro sentido es el del «Sapere aude!» que entona Kant en su ensayo Respuesta a la pregunta:
Qué es la Ilustración (1784, Ak. VIII 33-42: versión cast. de R. R. Aramayo en loc. cit. nota 2).
102 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
4
Como ha puesto Celia Amorós de manifiesto en sus escritos; cf. Tiempo de feminismo (1997),
cap. II.
5
Como botón de muestra de escritos en los que aparecen desarrolladas estas cuestiones, cf. sobre
todo: ángeles Jiménez Perona (1992), Alicia Puleo (1993) o (1995) y (2013b).
6
Leyes que se remontan al Edicto de ulpiano (aprox. año 192): Edictum de adtemptata pudicitia,
heredero ya de edictos anteriores, datados en el siglo III a. C., según Plauto.
7
Los pietistas Francke y Spener apostaron a finales del siglo xVII por las escuelas públicas para
niños (y en la misma medida también para niñas, aunque para estas se reservaban tareas propias de
su sexo). No olvidemos que Rousseau incluirá en su famoso libro sobre la educación, Emilio, un ca-
pítulo especial dedicado a la educación también «especial» de Sofía. Cf. Cobo (1995).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 103
8
He desarrollado estos aspectos en C. Roldán (2002) y (2009). Cf. también C. Roldán (2008a) y
(2013a).
9
Cf. P. dibon, «échanges épistolaires dans l’Europe savante du xVIIe siècle», en Revue de Syn-
thèse, janvier-juin 1976, 31-50. A comienzos del siglo xVII el intercambio intelectual y epistolar era
sumamente especializado y se realizaba en latín, con lo que la influencia en un público no-científico
era prácticamente imposible. Tras una fase de transición, caracterizada por los intercambios epistolares
semipúblicos —recordemos el papel del padre Mersenne como «cartero intelectual de Europa», esto
comenzó a cambiar con la aparición de libros en idiomas nacionales (descartes, Vico, Wolff), con la
traducción de las versiones latinas (Newton) y, sobre todo, con el surgimiento de publicaciones cien-
tíficas (Acta Eruditorum, Miscellanea Berolinensia, Journal de sçavants, Journal de Trévoux, Monatlicher
Auszug, etc.), que también dan fe de la evolución del latín hacia los idiomas nacionales.
10
Será en este contexto en el que tanto G. W. Leibniz como W. von Humboldt —los últimos ge-
nios universales entre los eruditos de la época, propugnaron la fundación de academias y sociedades
científicas por una parte y, por otra, la construcción de grandes bibliotecas como vehículos para fa-
vorecer en primera instancia el intercambio de pensamientos e informaciones de los especialistas,
pero sin olvidar su extensión a un público interesado más amplio.
11
Las mujeres científicas o filósofas fueron toleradas, e incluso admiradas, por sus coetáneos como
excepciones (que no engendraban peligro si no constituían norma) calificadas de «milagro de la na-
turaleza» o de «espíritus masculinos en cuerpos femeninos», a quienes solo les faltaba la barba para
restablecer el equilibrio y armonía naturales, ya que habían osado robar los saberes que los dioses ha-
104 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
bían entregado a los varones para su custodia. En este sentido se refirió Kant —conocido como el
«padre de la ética moderna»— a Madame de Châtelet; cf. Observaciones sobre el sentimiento de lo
bello y lo sublime: «a una mujer con la cabeza llena de griego, como la señora dacier, o que sostiene
sobre mecánica discusiones fundamentales, como la marquesa de Châtelet, parece que no le hace falta
más que una buena barba» (AA II, 229). Cf. C. Roldán, «un gineceo en el Reino de los fines» (1995),
«La escritura robada» (2008b) y «Ni virtuosas ni ciudadanas» (2013b).
12
Tomo la expresión de Oliva Blanco (1992: 77).
13
En este contexto, surgirán en Inglaterra el Spectator de Addison, y en Alemania die vernünftige
Tadlerinnen (dirigido expresamente a un público femenino) o der Biedermann de Gottsched. Cf.
C. Roldán 2008ª (apartado 2: «Filosofía popular y filosofía para damas»), donde disiento de la tesis
«galante» de u. P. Jauch (1990) y hago un comentario crítico de las tesis de Jean école (1983) y Werner
Schneiders (1991). Cf. también C. Roldán (2007).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 105
de las «filosofías para damas» que los galantes intelectuales de la época escribían
para ellas como un intento más de que permanecieran en su minoría de edad. La
ausencia de las mujeres de las historias «oficiales», que Celia Amorós ha caracteri-
zado de «razones de los olvidos de la razón», se sustentan en una concepción pa-
triarcal de la historia (Amorós, 1997: cap. II), de forma que solo fragmentariamente
(y tras ardua indagación bibliográfica) podemos tener conocimiento de que exis-
tieron unas pensadoras llamadas Anna Maria van Schurman, Anne Finch Conway,
Marie Winckelmann von Kirch o Emilie du Châtelet, que tuvieron una extraordi-
naria producción literaria, filosófica o científica, de la que solo una pequeña muestra
ha llegado a nuestras manos, pues el resto desapareció borrado como las huellas en
la arena de la playa (O’Neil, 1998). Pero no olvidemos, que es también durante el
siglo xVII cuando surgen los primeros escritos «feministas» reivindicando la igual-
dad entre los sexos y defendiendo las aptitudes intelectuales de las mujeres para
poder dedicarse al estudio de las ciencias;14 «filosofías de mujeres», que reaccionan
frente a las «filosofías para damas».
Cada vez fueron más los pensadores varones que, en los albores de la moderni-
dad, se sumaron a la corriente creciente de «defensores de las mujeres», para apoyar
la incipiente «querelle des femmes»,15 que defendía la idea de igualdad para com-
batir la inferioridad tradicional de las mujeres y que no hacía de la diferencia sexual
un motivo de exclusión de las más elevadas tareas de la humanidad, entre las que
sin duda se encontraban la aproximación a la ciencia y al pensamiento. General-
mente se trata de los pensadores varones que constituyeron esa «otra» Ilustración
(Puleo, 1993, 2ª ed. 2011; Seoane, 1998), heterodoxa y lamentablemente olvidada,
que poco antes de la precipitación posmoderna dimos también en llamar Ilustración
«inacabada» o «insatisfecha» y que desde el feminismo ha sido reivindicada por
muchas pensadoras como la verdadera seña de identidad de la igualdad emancipa-
toria, algo que Amelia Valcárcel convierte en lema poniéndolo en boca de Mme.
de Stäel: «las luces solo se curan con más luces».16
Entre los defensores o amigos de las mujeres en los albores de la modernidad
hay que contar, sin duda, a Poullain de la Barre (Poullain de la Barre, 1674; Amorós,
1992b), que inicia una corriente argumentativa que se apoya en el dualismo
cartesiano para demostrar que —frente a la extensión de la materia— «el
pensamiento no tiene sexo», algo que empleará profusamente Anna Maria van
Schurmann en sus escritos (Roldán, 1997, 2001, 2008b). Aunque son menos
14
Podemos citar como escritos paradigmáticos el de la francesa Marie de Gournay Egalité des
hommes et des femmes (1622) y el de la alemana afincada en Holanda Anna Maria van Schurmann
de capacitate ingenii mulieris ad scientias (1638).
15
He desarrollado estos aspectos en C. Roldán (2008a) y (2013a). Sobre la querelle des femmes
en Europa, cf. Oliva Blanco (1992) y G. Bock y M. Zimmermann, (1997).
16
Cf. A. Valcárcel (1997). Recordermos las polémicas de fin de siglo xx: Habermas, Foucault…
106 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
conocidos, también fueron defensores de las mujeres a comienzos del siglo xVII
otros pensadores de raíces neoplatónicas y con clara vocación de superar el
dualismo cartesiano, defendiendo la unidad de los individuos a partir de principios
tanto materialistas (atomistas) como espiritualistas (vitalistas); entre ellos, podemos
contar a Henry More, Ralph Cudworth —padre de lady Mashams—, Mercurius
van Helmont, Jakob Thomasius —padre de Christian— o el propio Leibniz, con
quienes se relacionó Anne Finch Conway.
17
Cf. entre otros Hagengruber (1998), Hutton (2004), Nicolson (1930) y Orio (2004).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 107
18
En honor de la verdad, hay que decir que Anne Conway aparece casi siempre mencionada en las
Enciclopedias más populares entre los seguidores más jóvenes de la escuela platónica de Cambridge,
junto a George Rust (m. 1670), y John Norris (1657-1711); cf. por ej. de Filosofía: http://plato.stan-
ford.edu/entries/conway/
19
Boyle formaba parte de lo que por aquel entonces se denominaba «Nueva Filosofía» o «Filosofía
Experimental», participando de unas reuniones filosóficas semanales en Londres, en lo que él
denominaba «Colegio Invisible» (o «Colegio Filosófico»), que tuvieron lugar desde 1645 y que en 1661
dieron lugar a la constitución «oficial» de la Royal Society, a la que años después también pertenecerían
pensadores y científicos destacados como Wallis, Leibniz, Newton y darwin, entre otros.
108 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
Por último, una de las características más relevantes de este grupo de pensadores
de Cambridge será el trasfondo teológico de sus reflexiones, convencidos de la
compatibilidad de la razón y la fe, y de la filosofía como preocupación legítima de
los teólogos, que otorgan a la razón humana un papel preeminente, algo que
caracterizara el «racionalismo inglés».20 Así, preocupados del tratamiento filosófico
de las cuestiones religiosas —como la defensa de la existencia de dios y la
inmortalidad del alma, uno de los principales objetivos de su pensamiento fue la
formulación de una ética práctica, que sirviera de fundamento a la conducta
cristiana, para lo que defendieron la existencia eterna (innata) tanto de los
principios de la razón (verdades) como de la moral, a los que la mente humana
tiene la capacidad de acceder—. de esto se deducía su visión optimista de la
naturaleza humana, poniendo su énfasis en la libertad de la voluntad y en un anti-
determinismo que les lleva a proponer argumentos para la autonomía humana,
repudiando la filosofía natural mecanicista a favor de la opinión de que el espíritu
es el principio causal fundamental en las operaciones de la naturaleza; sin embargo,
frente a la opción monista original de Conway —anticipadora en esto de Leibniz,
siempre se mantuvieron dualistas, defendiendo que la mente (espíritu) es
ontológicamente anterior a la materia.
En 165121 se casó Anne con Edward Conway, tercer vizconde Conway, heredero
de Warwickshire —cerca de Alcester, donde estaba la residencia principal de los
Conway, Ragley Hill— y también del condado de Antrim en Irlanda, y cuya familia
poseía una de las mejores bibliotecas privadas de la época, algo que fascinó a la joven
filósofa y le hizo más llevadera la entrada en su nuevo estado,22 junto con el hecho
de que su marido no la hiciera desistir de su interés por el estudio, sino que la
animara a cultivar sus intereses intelectuales. Aquejada de unas frecuentes e intensas
migrañas, que la sometían a ataques periódicos y que se hicieron más agudas y más
frecuentes con los años, los libros habían sido los mejores aliados de Anne Finch
durante su infancia y adolescencia, y también se convirtieron en el refugio de la joven
Lady Conway tras la pérdida de su único hijo, Heneage, que nació en 1658 y murió
20
Tampoco debemos olvidar que fueron los primeros filósofos que defendieron y practicaron la
publicación de sus escritos en la lengua vernácula (inglés). Cf. la obra de R. Cudworth, True Intellec-
tual System of the univers (London, 1678), que tanto impacto produjo en Leibniz en su primera lec-
tura en 1689, y en cuyo ejemplar anotara una referencia a las «mónadas» pitagóricas. Cf. Wilson 1990:
39, donde refiere al manuscrito leibniziano: LH Phil II, 3c.
21
del 5 de mayo de este año data una carta de More a Conway, donde este señala la necesidad de
mantener correspondencia durante su ausencia para paliar en la medida de lo posible la imposibilidad
de sus ricas conversaciones; esta carta no fue editada por Nicolson: cf. Gabbey (1977) y Hutton (1980).
22
de la posterior correspondencia que Anne mantuvo con su suegro Lord Conway, sabemos que
ya antes de relacionarse con Henry More y de «entrar en la familia» Conway, Anne conocía a Copér-
nico, Pitágoras y Herodoto, y que había empezado a reflexionar sobre la «disputa entre antiguos y
modernos». Cf. al respecto Nicolson (1930: 16-17 y 31-32); cf. también Orio (2004: 11).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 109
23
Pero al parecer solo llegaron a abrirle las yugulares; cf. Nicolson (1930: 116) y Orio (2004: 13).
24
El movimiento cuáquero se introdujo en Inglaterra a comienzos de 1650 y las mujeres fueron
pioneras activas. Sobre la importancia de los cuáqueros en el pensamiento político de esta época y el
110 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
papel jugado por las mujeres en su seno, cf. Broad y Green (2009), cap. 7 «Quaker women», pp. 162-
179. desde 1675, los cuáqueros, ilustrados y cultos, empezaron a frecuentar Ragley y a entrar al ser-
vicio de Lady Conway.
25
Sobre el clima intelectual de Ragley Hill y las discusiones mantenidas por Lady Conway con More,
van Helmot y Rosenroth, sobre la divinidad y la emanación de los espíritus, cf. Orio (2002: 57-87).
26
En Orio (2004, 20) podemos encontrar un amplio comentario de Nicolson.
27
Javier Echeverría aventura a decir en su edición de los Nuevos Ensayos de Leibiz (1992, I, 1,
nota 19) que el traductor al inglés de los Principia en 1692 (J. C.) fue J. Crull —Jodocus Crull, químico
de origen alemán, traductor de Puffendorf en 1695 y miembro de la Royal Society—, mientras Nicolson
(1930, 453) y Orio (2004, 24) la atribuyen a John Clark, discípulo y admirador de van Helmont.
28
El texto latino de Conway formó primero parte de un volumen colectivo anónimo que contenía
otras dos obras: Philosophia Vulgaris Refutata y los Problemata de Revolutione Animarum Humano-
rum —esta última del propio van Helmont. Cf. Orio (2004, 23).
29
El texto inglés del prefacio de More puede leerse en Loptson (1982, 240ss), Coudert-Corse
(1996, 3-6) y Orio (2004, 103ss); trad. castellana en Orio (2004, 99-102).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 111
capítulos, de los que solo el primero recibió un título específico («Sobre dios y sus
propiedades divinas») junto a la descripción de su contenido; los demás solo están
precedidos de un exhaustivo índice, ordenados por parágrafos los distintos aspectos
metafísicos a tratar. y en el último capítulo se ocupa de diferenciar su filosofía de la
de descartes, Hobbes y Spinoza,30 facilitando una especie de resumen de sus tesis
principales. No es difícil adivinar que parte de la precisión terminológica original
de la autora se habrá perdido entre tanta traducción y retraducción —por lo que es
de lamentar que nadie conservara el manuscrito original—, pero lo que todos los
testimonios transmiten es que a pesar de las manipulaciones31 el libro que se publicó
recogía las tesis originales de Lady Conway, siguiendo un potente hilo argumental
desde el primero al último capítulo: aportar una nueva solución (monismo vitalista)
al problema de la relación mente-cuerpo, superando el dualismo cartesiano y apar-
tándose del materialismo de Spinoza —cuya propuesta, también monista, conduciría
al ateísmo, para compatibilizar su teoría con las fundamentales verdades cristianas.
Anne Finch Conway pretende conciliar en su obra —como se desprende del mismo
título— dos fuerzas en principio contrarias: la doctrina de la emanación y el vita-
lismo de los antiguos (sobre todo de los griegos, de los cabalistas y de Filón de Ale-
jandría), de un lado, con el mecanicismo de la cosmovisión moderna, de otro, y a su
vez hacer compatibles ambos con la teología cristiana, muy en la órbita de los plató-
nicos de Cambridge. Por ello, al comienzo de su obra acepta la existencia de dios
como evidente (sin prueba de demostración) y subraya el papel de Cristo como «me-
diador» entre dios y las criaturas en el proceso de emanación y creación. Sin embargo,
y aquí radica su originalidad frente a sus maestros —a quienes hace una crítica velada32
en su obra (PR PH Ix, 2, 214)—, propugna una ontología del espíritu, derivada de
los atributos de dios, que se establece en oposición a las interpretaciones filosóficas
30
En 1982, Loptson publicó una edición bilingüe (latín-inglés) y disponemos de una tradución
castellana a cargo de (2004), acompañada de la versión latina. Para más detalles sobre la historia y vi-
cisitudes sufridas por el manuscrito, puede consultarse Hutton (2004), Anne Conway, pp. 5-6, y La
filosofía de lady Anne Conway, un proto-Leibniz (2004, 21 y ss).
31
Orio (2004, 22) sostiene que van Helmont dio forma al libro de Conway, introduciendo algunas
citas en las «Anotaciones cabalísticas» que aparecen como apéndice del capítulo I de los PR PH, pero
sin que ello suponga merma en la originalidad.
32
«Este grave error debe imputárseles también a quienes sostienen que cuerpo y espíritu son cosas
contrarias, mutuamente inconvertibles entre sí, al decir esto, privan al cuerpo de toda vida y percep-
ción, lo que es radicalmente contrario a los fundamentos de nuestra Filosofía». Crítica que aparece
también en PR PH VII, 4, y que va dirigida contra More y Cudworth. Cf. Orio (2004: 53ss y notas
143-145 de la trad.).
112 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
33
El título completo de su tratado era Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy
concerning God, Christ, and Creation, that is, concerning the Nature of Spirit and Matter, thanks to
which all the Problems can be resolved which could not be resolved by Scholastic Philosophy nor by
Modern Philosophy in general, whether Cartesian, Hobbesian, or Spinozian.
34
un clásico al respecto es el artículo de 1979 escrito por Carolyn Merchant bajo el sugerente
título «The Vitalism of Anne Conway: Its Impact on Leibniz’s Concepto f the Monad», donde intenta
poner de manifiesto la original aportación de también duran (1989) y (1994).
35
Cf. Carta de Leibniz a Sofía, septiembre de 1696, en Correspondance de Leibniz avec l’Electrice
Sophie de Brunswicke-Lunebourg, ed. O. Klopp (Hannover, 1974), vol. 2, p. 8. Cf. GP III, 176, 180.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 113
36
En 1688 visitó Leibniz a Knorr von Rosenroth en Sulzbach. Cf. A. Foucher de Careil (1861),
Leibniz, la philosophie juive et la cabale, Auguste durand, Paris, 56-59. Cf. (2002) y (2009).
37
En (1982: 48-50) ve un anticipo de la filosofía de Hume e incluso de Wittgenstein.
114 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
contra descartes que la materia inerte no puede existir. Frente a otro gran monista,
Spinoza, que presenta un sistema basado en un absolutismo determinista, donde
dios y la naturaleza se identifican —deus sive natura—, Conway empieza en su
obra por distinguir entre dios (intemporal e inmutable, PR PH I, 1-6) y «la Cria-
tura» o esencia creada,38 compuesta por el conjunto de las cosas y con un único
atributo definitorio, la mutabilidad (PR PH, VI, 1), sosteniendo a su vez que «todo
individuo creado permanece inalterable en su individuación, a fin de que se man-
tenga el orden divino inteligible» (PR PH, VI, 3-4). Con otras palabras, nos encon-
tramos ante un nominalismo metafísico en el que el «ser» o propiedad esencial de
cada cosa «se define» por su esencial mutabilidad que, sin embargo, mantiene inal-
terable su individuación, de manera que no hay ontológicamente especies distintas,
sino que cada ser es una naturaleza singular, un existente mutable individual, esto
es, «una mónada» (Loptson, 17-18, 23; Orio, 27-28) que puede adoptar diversos
grados de «corporalización» o «espiritualización»; y como el conjunto de todos los
individuos constituye una única «Criatura» o Esencia —esentia mundi— unos y
otros están comunicados entre sí —sin perder su individuación— y «se emiten con-
tinuamente partículas sutiles, imágenes o emanaciones aun a la máxima distancia»
(PR PH, III, 10). Esto es lo que significa para Conway precisamente la creación,
«dar la esencia a la Criatura aportando la Voluntad a la Idea» (PR PH, 1, 7, p. 114);39
frente a la idea de una «creatio ex nihilo», Conway defiende, pues, una especie de
emanación en una modalidad de panenteísmo con el que pretende salvar la conti-
nuidad y a la vez la distinción entre dios y la Criatura, recurriendo a la figura del
«Cristo-Medio» en quien todas las cosas subsisten, ensamblando todos los eslabo-
nes de la cadena del ser, y que es lo que introduce mayor dificultad a su doctrina
(Orio 2004, p. 28).
No voy a entrar ahora en disquisiciones metafísicas, sino concluir este punto
con la idea fundamental de la ontología de Conway que me interesa para dar el
paso a la perspectiva ética y a un posible fundamento de los principios de la ecología
actual. Me refiero a la idea de «convertibilidad», con la que Conway hace «un bri-
llante rechazo del materialismo» (Popkin, 111), distinguiendo entre espíritus-cuer-
pos más densos o más volátiles, y que —lo más genial de todo— se encuentran en
continua mutabilidad, de manera que todos «podemos adoptar todas las formas,
salvo la de dios o Cristo (V. PR PH, IV y V), espiritualizándonos o corporeizándo-
nos, pero manteniendo nuestra identidad»; algo que Conway explica con su famoso
38
En la que puede rastrearse la noción de «Adam Kadmon» de la Cábala. Cf. Orio de Miguel
(2004: 2).
39
En este punto aporta Conway una interpretación de la Trinidad, que deberían poder aceptar
judíos y turcos, y que es un alegato de tolerancia. Cf. Hutton 2011, con carta inédita de John Finch a
su hermana.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 115
40
Sobre «perfeccionamiento moral», cf. White 2008, parte I.
116 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
41
Sin embargo, Conway negará la eternidad del infierno, ya que le parece que sería muy injusto
por parte de dios castigar pecados finitos de manera infinita y eterna.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 117
se curen las criaturas enfermas y sean restablecidas a un estado mejor que el que
antes tenían» (PR PH VI, 10, 170). Por último, Conway sugiere que a medida que
las criaturas se vuelven metafísicamente mejores, también aumenta el grado de su
conocimiento, entendiendo progresivamente más sobre la unidad de las cosas y
sobre su justicia. Como criaturas, se vuelven más vitales y más conscientes de la
unidad entre ellos y el resto de las criaturas; y a medida que se vuelven más cons-
cientes de esta unidad, comienzan a comprender la justicia en el mundo: «la justicia
de dios se muestra admirablemente en todo su esplendor en la transformación de
las cosas de una especie en otra» (PR PH VI, sumario 7, p. 155). En efecto, somos
capaces de captar el «principio de la verdadera justicia», porque «dios dotó al hom-
bre con el instinto por la justicia…» (PR PH VI, 7).
Leibniz estará de acuerdo con Conway en que se obtienen beneficios morales y
cognitivos del sufrimiento —al verlo como parte del orden racional del mundo cre-
ado por dios—. Pero, a diferencia de la pensadora inglesa, no cree que tales bene-
ficios provengan del sufrimiento mismo; por sí misma, la pasión no puede tener
ningún beneficio moral o cognitivo: cualquier beneficio que derivaría de una pasión
debe venir de lo que se aprende en la transición de un estado de sufrimiento a uno
de no-sufrimiento. Esta transición puede ofrecer tres tipos de beneficios. El bene-
ficio más básico derivado de dicha transición es el placer de alivio, en tanto que el
movimiento del sufrimiento al no-sufrimiento conduce así a una mayor apreciación
de la ausencia de dolor, de forma que «una disonancia dota de mayor relieve a la
armonía» (Teodicea § 12). un segundo beneficio producido por la transición del
sufrimiento al no-sufrimiento se produce cuando hay un sentido de «victoria» sobre
la pasión; esto sucede cuando la víctima se ha negado a ceder ante el dolor o la ten-
tación de la pasión y se siente la fuerza de haberlo conseguido; Leibniz sugiere que
los beneficios morales siguen estas pequeñas victorias: se obtiene sentido de la
fuerza y el deseo de adquirir más (Teodicea § 329). y en tercer lugar, cuando con-
tribuye a una mayor perfección del que sufre (Teodicea § 23); cuando alguien ha
reunido la «fuerza de la mente» para superar las pasiones, ha dado un paso hacia
el perfeccionamiento moral y puede comprender la armonía y justicia universales.
Leibniz no piensa que el sufrimiento sea por sí mismo suficiente para obtener
un perfeccionamiento moral, aunque sin sufrimiento tampoco puede haber una
transición del sufrimiento al no-sufrimiento y, sin transición, no habrá una verda-
dera toma de conciencia de la armonía del mundo de dios. Por lo tanto, el sufri-
miento es una condición necesaria para dicha comprensión, por lo que en la
Teodicea afirma que todos los seres humanos —sin importar la religión— pueden
encontrar un camino hacia dios; pueden hacerlo porque todos ellos sufren y, por
lo tanto, todos tienen la oportunidad de aprender acerca de la justicia y la armonía
del mundo de dios. Cuando se pasa de un estado de sufrimiento a no sufrir, no
solo se siente el placer por no sufrir más, sino que también se está motivado para
118 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
42
Cf. Carta a Sofía del 28 de octubre de 1696 (A I, 13, 83-93) o Teodicea I &9. Cf. también Orio
(2004, 52-53) y Fernández (1998).
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 119
REFERENCIAS BIBLIOGRáFICAS
43
Sobre la idea de compensación en el Renacimiento y los inicios de la Modernidad es interesante
consultar Th. Leinkauf: «’diversitas identitate compensata’. Ein Grundtheorem in Leibniz’s denken
und Seine Voraussetzungen in der frühen Neuzeit», St. Leibnitiana 28, 1, 1996, 58-83, y 29, 1, 1997,
81-102.
120 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
BOCK, Gisele, y ZIMMERMANN, Margarete (1997): «die Querelle des Femmes in Eu-
ropa. Eine Begriffs- und Forschungsgeschichtiliche Einführung», en Querelles,
Jahrbuch für Frauenforschung, 2 vols., pp. 9-38.
BROAd, Jacqueline (2002): Women Philosophers of the Seventeenth Century, Cam-
bridge Cambridge university Press.
BROWN, Stuart (1990): «Leibniz and Henry More’s», en S. Hutton (ed.), Henry More
(1614-1687): Tercentenary Studies. dordrecht: Kluwer Academic Publishers.
COBO, Rosa (1995): Fundamentos del patriarcado moderno: J. J.Rousseau, Cátedra,
Madrid.
CONWAy, Anne Finch (1690), The principles of the most Ancient and Modern Phi-
losophy. Eds.: Loptson, P. (The Hague, 1982) y A. Coudert and T. Corse (Cam-
bridge Texts, Cambridge uP, 1996). Trad. cast. de (2004, pp. 97-334), por la que
citaré como PR PH.
COudERT, Allison (1998): The Impact of the Kabbalah in the Seventeenth Century.
The Life and Work of Francis Mercury van Helmont, 1614-1698: Brill.
duRAN, Jane (1989): «Anne Viscountess Conway: A Seventeenth Century Ratio-
nalist», Hypatia 4 (1), pp. 64-79.
ÈCOLE, Jean (1983): «A propos du projet de Wolff d’écrire une Philosophie des
dames», Studia Leibnitiana xV/1, pp. 46-57.
ENGEL, F., HASSAuER, B., RANG, H. Wunder (eds.) (2004) : Geschlechterstreit am
Beginn der europäischen Moderne. die Querelle des Femmes, u. Helmer Verlag,
Königstein/Taunus.
FEMENíAS, María Luisa (1996): Inferioridad y exclusión, Buenos Aires, Nuevohacer.
FERNáNdEZ, Francisco José (1998): Leibniz, el filósofo del océano, Iralka, Irún.
GABBEy, Alan (1977): «Anne Conway et Henry More: Lettres sur descartes (1650-
1651)», Archives de Philosophie 40, pp. 379-388.
GOuRNAy, Marie de (1641), Escritos sobre la igualdad y en defensa de las mujeres
(ed. de Montserrat Cabré), Clásicos del Pensamiento, CSIC, 2014.
GOuGy-FRANçOIS, Marie (1965): Les grands salons féminis, ed. debresse, Paris.
HAGENGRuBER, Ruth (1998): Klassische philosophische Texte von Frauen, dtv,
München.
HuTTON, Sarah (1995): «Anne Conway critique de Henry More: l’esprit et la na-
ture», Archives de Philosophie, 58, pp. 371-384.
— (2004): Anne Conway. A Woman Philosopher: Cambridge university Press.
— (2011): «Sir John Finch and Religious Toleration: an unpublished letter to Anne
Conway», in del dubbio. un Progetto di Antonio Rotondo, Luisa Simonutti and
Camilla Hernanin (eds.), 2 vols., Florence: Olschki, pp. 287-304.
JAuCH, ursula Pia (1990): damenphilosophie und Männermoral, Passagen Verlag,
Wien. Trad. cast. de (1995): Filosofía de damas y moral masculina, Alianza univ.,
Madrid.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 121
JIMéNEZ PERONA, ángeles (1992): «Sobre incoherencias ilustradas: una fisura sin-
tomática en la universalidad», en C. Amorós (1992a), pp. 237-246.
JOLLEy, Nicholas (1998) «The Relation between Theology and Philosophy», in:
daniel Garber / Michael Ayers (eds.), Cambridge History of Seventeenth Century
Philosophy, pp. 363-92.
LASCANO, Marcy P. (2013): «Anne Conway: Bodies in the Spiritual World», Phi-
losophy Compass 8 (4), pp. 327-336.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm (1923-), Sämtliche Schriften und Briefe, ed. Citado
como A, por serie, volumen y página.
— (1875-1890) die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Ed.
por C. I. Gerhardt. Berlin. 7 vols. Citado como GP, por volumen y página.
LEINKAuF, Thomas: «“diversitas identitate compensata”. Ein Grundtheorem in
Leibniz’s denken und Seine Voraussetzungen in der frühen Neuzeit», Studia Leib-
nitiana 28, 1, 1996, pp. 58-83, y Studia Leibnitiana 29, 1, 1997, pp. 81-102.
MARTíN-GAMERO, Amalia (1975): Antología del feminismo, Alianza, Madrid.
MCROBERT, Jennifer (2000): «Anne Conway’s Vitalism and Her Critique of
descartes», International Philosophical Quarterly 40 (1), pp. 21-35.
MERCHANT, Carolin (1979): «The vitalism of Anne Conway: its impact on Leibniz’s
concept of Monad», in Journal of Historiy of Philosophy 17, pp. 255-269.
MERCER, Christia (2012): «Platonism in Early Modern Natural Philosophy: The
Case of Leibniz and Conway,» Ch. Horn-J. Wilberding (eds.), Neoplatonic Nat-
ural Philosophy.
NICOLSON, Marjorie H. (1930): Letters. The correspondence of Anne, Viscountess
of Conway, Henry More and their friends: 1642-1684. Oxford. u. P. (-& Hutton,
Sarah, Ibid., 1980, Clarendon Press).
ORIO dE MIGuEL, Bernardino (2002): Leibniz y el Hermetismo, Ed. de Ad. de la
universidad Politécnica de Valencia (uPV), Valencia, 2 vols.
— (2004): La filosofía de Lady Anne Conway, un proto-Leibniz, Colección Leib-
nizius Politechnicus nº 11, Editorial de la uPV, Valencia.
— (2009) «Leibniz y la tradición hermética», en Thémata, 42, pp. 107-22.
OWEN, Gilbert Roy (1937): «The Famous case of Lady Anne Conway», Annals of
Medical History 9, pp. 567-71.
POPKIN, R. H., 1990, «The Spiritualistic Cosmologies of Henry More and Anne
Conway», in S. Hutton (ed.), Henry More (1614-1687): Tercentenary Studies:
Kluwer, pp. 98-113.
POuLLAIN dE LA BARRE, Francois (1674): de l’egalité des deux sexes. discours phy-
sique où l’on voit l’importance de se défaire des Préjuguez, Paris (Nachdr. 1984).
POSAdA KuBISSA, Luisa (1992): «Cuando la razón práctica no es tan pura (Aporta-
ciones e implicaciones de la hermenéutica feminista actual. A propósito de Kant)»,
en Isegoría. Revista de Filosofía moral y política 6, noviembre 1992, pp. 17-36.
122 ECOLOGíA y GéNERO EN dIáLOGO INTERdISCIPLINAR
PuLEO, Alicia (1992): «La radical universalización de los derechos del hombre y
del ciudadano»: Olympe de Gouges», en C. Amorós (1992a), pp. 217-222.
— (1993): La Ilustración olvidada. La polémica de los sexos en el siglo xVIII, Ma-
drid, Anthropos.
O’NEILL, Eileen (1998): «disappearing Ink. Early Modern Women Philosophers
and their Fate in History», in J. A. Kourany (ed.) Philosophy in a Feminist Voice:
Critiques and Reconstructions, Princeton: Press.
REyNIER, Gustave (1929): La femme au xVIIe siècle, Paris.
RILEy, Patrick (2006), Leibniz’ universal Jurisprudence: Justice as the Charity of
the Wise, Cambridge, MA: Harvard university Press.
ROLdáN, Concha (1994): «Anne Finch Conway», en Meyer, u. I. y Bennent-Vahle,
H. (ed.), Philosophinnen Lexikon, ein-FACH-verlag, Aachen (1996, Reclam,
Leipzig), pp. 131-134.
— (1993): «Marie Winckelmann von Kirch: un agujero negro en la historia de la
astronomía», Actas del I Congreso de la Sociedad de Lógica, Metodología y Fi-
losofía de la ciencia en España., uNEd, Madrid, pp. 506-509.
— (1995): «El reino de los fines y su gineceo: las limitaciones del universalismo
kantiano a la luz de sus concepciones antropológicas», en El individuo y de la he-
rencia moderna, ed. de R.R. Aramayo, J. Muguerza y , Paidós, Barcelona, Buenos
Aires, México, pp. 171-185.
— (1997): «Crimen y castigo: la aniquilación del saber robado (El caso de Anna
Maria van Schurman», en Theoría (Revista del Colegio de Filosofía, Fac de Fil. y
Letras de Autónoma de México), nº 5, dic., pp. 49-59.
— (1999): «El sujeto se hizo verbo», en Mariflor Aguilar (coord), Límites de la sub-
jetividad, Fontamara, México, pp. 207-220.
— (2001): «Ana Maria van Schurmann: heteronomía y autodestrucción», en Ciencia
y Género, E. Pérez Sedeño y P. Alcalá (coord.), Philosophica Complutensia, Edi-
torial Complutense, Madrid, pp. 213-222.
— (2002): «El ideal del sabio en la construcción de moderna», en Ciencia, tecno-
logía y bien común: la actualidad de Leibniz (, J. Echeverría y C. Roldán, eds.),
uPV, Valencia, pp. 378-388.
— (2007): «damenphilosophie und europäische Querelle des Femmes zur Zeit
Wolffs», en Christian Wolff und die europäische Aufklärung (hrsg. von J. Stol-
zenberg und O-P Rudolph), Georg Olms Verlag, pp. 145-161.
— (2008a): «Transmisión y exclusión del conocimiento en : Filosofía para damas y
Querelle des femmes», ARBOR. Ciencia, Pensamiento y Cultura nº 731, mayo-
junio, pp. 82-94.
— (2008 b): «Mujer y razón práctica en alemana», en El reto de la igualdad de gé-
nero: nuevas perspectivas en ética y filosofía política (comp. Alicia H. Puleo), Bi-
blioteca Nueva, pp. 219 -237.
LA FILOSOFíA dE ANNE FINCH CONWAy 123
— (2008 c) «La escritura robada: literatura filosófica contra las “malas costum-
bres”», en La mujer de letras o la letraherida. Textos y representaciones del dis-
curso médico-social y cultural sobre la mujer de letras en el siglo xIx, dirección y
edición de Pura Fernández y Marie-Linda Ortega, Madrid-Toulouse, Servicio de
Publicaciones del CSIC-université de Toulouse de Mirail, pp. 51-72.
— (2009): «La difusión de los conocimientos en la república de las letras», en Thé-
mata. Revista de Filosofía Vol. 42, pp. 183-193.
— (2013a): «Philosophy for Ladies: diffusion or exclusion of knowledge in Enlight-
enment. The exclusion of women from institutionalised knowledge and the role
of the salons in the dissemination of learning», en Images of/from Enlightenment,
dariusz dolański, Anna Janczys (eds.), Zielona Góra, 117-135.
— (2013b): «Ni virtuosas ni ciudadanas: inconsistencias prácticas en la teoría de
Kant», en Ideas y valores. Revista colombiana de filosofía, LxII, Suplemento 1,
pp. 185-203.
ROSSI, Paolo (1997) : die Geburt der Moderne Wissenschaft in Europa, Beck, Mün-
chen.
RuLLMANN, Marit (1998): Philosophinnen, 2 vols. Suhrkamp, Memmingen.
RuTHERFORd, donald (1995), Leibniz and the Rational Order of Nature, New york.
SCHNEIdERS, Werner (1991): «das philosophische Frauenzimmer», en: Tradition
und Emanzipation, ed. por Claude Weber y Frank Grunert, Münster, pp. 50-94.
SCHROEdER, Steven (2007): «Anne Conway’s Place: A Map of Leibniz», The Plu-
ralist 2 (3), pp. 77-99.
STEIN, Ludwig (1890), Leibniz und Spinoza, Georg Reimer, Berlin.
VALCáRCEL, Amelia (1991): Sexo y filosofía, Horas y Horas (reed. 2014).
— (1997): La política de las mujeres, Cátedra, Madrid (3ª ed. 2004).
WARd, Richard (1710): The Life of the Learned and Pious dr. Henry More, Late
Felow of Christ’s College in Cambridge, London.
WOLLSTONECRAFT, Mary (1792), A Vindication of the Rights of Women, edited by
Sylvana Tomaselli, university Press, Cambrigde, 1995. Versión cast. de Elisa Ve-
lasco en debate, 1998.
WHITE, Carol Wayne (2008), The Legacy of Anne Conway (1631-1679): Reverber-
ations from a Mystical Naturalism, Albany Ny.
WILSON, Catherine / Clarke, desmond (eds.) (2011), The Handbook of Philosophy
in Early Modern Europe.
7. Los cuerpos colonizados: las religiones con-
tra las mujeres
Margarita Mª Pintos de Cea-naharro
asociación para el diálogo interreligioso en Madrid (adiM)
Juan José taMayo-aCosta
Cátedra de teología y Ciencias de las religiones
Universidad Carlos iii de Madrid
L
as religiones son uno de los últimos, más resistentes e influyentes bastiones
legitimadores del patriarcado en las diferentes sociedades del planeta. y den-
tro de ellas las corrientes fundamentalistas son las más beligerantes defenso-
ras del protagonismo de masculinidad hegemónica. se trata de un fenómeno de
especial significación y relevancia al que el pensamiento feminista y los estudios de
género no pueden ser ajenos y del que han de ocuparse tanto en su agenda de in-
vestigaciones como en sus propuestas alternativas. dicho fenómeno tiene repercu-
siones negativas en diferentes ámbitos.
el primero es el de las propias religiones que siguen ejerciendo una gran influen-
cia en la conformación de la conciencia de no pocas personas, grupos humanos y
sociedades enteras. tres cuartas partes de la humanidad están vinculadas, de una u
otra forma, a diferentes sistemas de creencias que predican mensajes androcéntri-
cos, exigen creer en doctrinas elaboradas por los varones, justifican comportamien-
tos machistas, legitiman prácticas patriarcales, fomentan actitudes misóginas, incitan
a la violencia contra las mujeres y proclaman textos discriminatorios de las mujeres.
el segundo ámbito donde se deja sentir la influencia negativa —muchas veces
perniciosa— de las religiones en la esfera social y política, es en los países de religión
única o privilegiada por la identificación entre los códigos morales religiosos y la
moral cívica, la mayoría de las veces represiva contra las mujeres y permisiva con
los varones. Pero influyen también en no pocos países no confesionales —en es-
paña, especialmente—, cuyos legisladores, gobernantes y jueces son rehenes de la
religión dominante. en definitiva, el patriarcado religioso legitima, refuerza y pro-
longa al patriarcado social y político en todas las esferas de la vida, empezando por
el lenguaje, siguiendo por la familia, las relaciones humanas, la legislación, las rela-
ciones humanas, etc. y llegando hasta la vida cotidiana.
126 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
Las religiones o, mejor dicho, los dirigentes religiosos han declarado la guerra
— a veces incluso no solo metafóricamente, sino de forma cruenta— al feminismo,
al que se refieren despectivamente no como teoría de género, sino como «ideología
de género», a la que responsabilizan del avance en la autonomía y la libertad de las
mujeres y se muestran insensibles hacia la violencia de género contra ellas.
en el catolicismo, por ejemplo, son numerosos los documentos papales y epis-
copales contra el aborto, al que consideran un asesinato, contra el divorcio, al que
acusan de destruir la familia, contra los métodos anticonceptivos, a los que respon-
sabilizan de la obstrucción a la vida y del descenso del control de la natalidad, contra
las relaciones prematrimoniales, la píldora del día después, la fecundación in vitro,
los derechos sexuales y reproductivos, etc. y muestran su oposición no solo en do-
cumentos, sino también participando en manifestaciones junto a los sectores más
conservadores de la sociedad. no se prodigan tanto o, mejor, nada, en documentos
contra la violencia de género, el patriarcado, el sexismo, el androcentrismo, etc.
Uno de los campos de análisis de las investigaciones feministas es el del discurso
androcéntrico y de la organización patriarcal de las religiones. es por eso que con-
sideramos necesaria la elaboración de una teoría crítica feminista de las religiones,
cuyas líneas queremos trazar a continuación.
en contra de lo que intenta mostrar la cultura patriarcal y las religiones, las mu-
jeres no son víctimas indefensas y silenciosas, sino que tienen una larga historia de
lucha y de resistencia frente al patriarcado, que está radicalizándose en nuestro
tiempo.
a) Las mujeres en las religiones no son reconocidas como sujetos morales: se las
considera menores de edad que necesitan guías espirituales varones que les con-
duzcan por la senda de la moralidad, les digan lo que es bueno y lo que es malo,
lo que pueden y no pueden hacer, sobre todo en materia de sexualidad, de re-
laciones de pareja y en la educación de sus hijos. Las normas morales a cumplir
por las mujeres —alejadas, cuando no contrarias, la mayoría de las veces, a las
orientaciones igualitarias de los fundadores y fundadoras— son dictadas por los
varones, que se las imponen como de obligado cumplimiento.
en el imaginario patriarcal religioso, influido por los clérigos, imames, rabinos,
lamas, gurús, pastores y maestros espirituales, las mujeres son consideradas ten-
tadoras, ligeras de conducta, amorales, etc. esa imagen se ha elaborado a partir
de determinados textos de algunos libros sagrados escritos en lenguaje patriarcal,
considerados válidos en todo tiempo y lugar y leídos con ojos fundamentalistas
y mentalidad misógina.
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 127
b) Las mujeres casi nunca son reconocidas como sujetos religiosos. en no pocas
religiones, la divinidad suele ser masculina y tiende a ser representada solo por
varones. de lo que Mary daly deduce que si dios es hombre, el hombre es dios
(daly, 1985: 69-97). así, los varones se sienten legitimados divinamente para im-
poner su omnímoda voluntad a las mujeres y el patriarcado religioso —dios, en
definitiva— legitima el patriarcado en la sociedad. Precisamente porque solo
los varones pueden representar a dios, solo los varones pueden acceder al ám-
bito de lo sagrado, al mundo divino, entrar en el sancta sanctorum; subir al altar,
ofrecer el sacrificio, dirigir la oración comunitaria en la mezquita, presidir el ser-
vicio religioso en las sinagogas (con algunas excepciones).
solo los varones pueden ser sacerdotes en la iglesia Católica, imames en el
islam y rabinos en el judaísmo ortodoxo, sin que haya texto sagrado alguno que
excluya a las mujeres. en la iglesia católica la ordenación sacerdotal de mujeres
es considerada delito grave al mismo nivel que la pederastia, la herejía, la apos-
tasía y se castiga de manera más severa que la pederastia: con la excomunión.
La oración comunitaria de los viernes presidida por mujeres es calificada de pro-
fanación de lo sagrado. en la iglesia católica las mujeres pueden consagrar su
vida a dios, pero, en razón de su sexo, no pueden representar a dios. en las
mezquitas, las mujeres suelen estar separadas de los hombres —¿para no con-
taminar?—, son colocadas en la parte superior tras una celosía, e incluso a veces
tienen que entrar por una puerta distinta de la de los hombres.
c) Las mujeres difícilmente son reconocidas como sujetos teológicos. Las insti-
tuciones religiosas suelen poner a las mujeres todo tipo de trabas para el estudio
y la docencia de la teología, para la interpretación de los textos sagrados, para
la reflexión sobre la fe, etc. y cuando deciden u osan pensar la fe y hacer teología
desde sus experiencias de sufrimiento y de lucha, e interpretar los textos de sus
respectivas religiones desde la propia subjetividad, desde sus experiencias vitales,
suelen ser acusadas de entrar en un terreno que no les corresponde y de caer en
el subjetivismo. ¡Como si los varones no lo fueran en sus lecturas e interpreta-
ciones! en la mayoría de las religiones, la teología está escrita con caracteres
masculinos.
d) La organización de las religiones se configura, la mayoría de las veces, patriar-
calmente: todos los sacerdotes católicos y todos los imames son varones; el dalai
Lama es varón; la mayoría de los rabinos y de los lamas son hombres. Por ello,
las religiones bien pueden definirse como perfectas patriarquías. hay, con todo,
honrosas excepciones en las iglesias de tradición protestante, que ordenan pas-
toras, sacerdotisas y obispas a las mujeres. Práctica que debería generalizarse para
terminar con la discriminación de género en el acceso a los ministerios ordenados.
e) Las mujeres acceden con dificultad a puestos de responsabilidad en las co-
munidades religiosas. el poder suele ser detentado por varones. a las mujeres
128 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
les corresponde acatar las órdenes; lo que tiende a justificarse por el discurso
androcéntrico de las religiones apelando a la voluntad divina: es dios quien en-
comienda el poder y la autoridad a los varones. en el caso del cristianismo, se
apela a Jesús para cerrar el paso a la ordenación sacerdotal de las mujeres. Lo
afirmaba el papa Benedicto Xvi en el libro-entrevista con el periodista Peter
seewald: «La formulación de Juan Pablo ii es muy importante: la iglesia no tiene
“en modo alguno” la facultad de ordenar a mujeres. no es que, digamos, nos
guste o no nos guste, sino que no podemos. el señor dio a la iglesia una figura
con los doce, y después, en sucesión de ellos, con los obispos y los presbíteros
(los sacerdotes). esta figura de la iglesia no la hemos hecho nosotros, sino que
es constitutiva desde él» (Benedicto Xvi, 2010: 158-159). en otras palabras,
que solo ordenó sacerdotes a hombres. ¡Machismo duro y puro y lectura andro-
céntrica de la Biblia para legitimar la organización patriarcal de la iglesia!
nosotros nos preguntamos: ¿las iglesias cristianas, cada vez más numerosas,
que ordenan a mujeres y les reconocen funciones sacerdotales y episcopales,
están transgrediendo el mandato de Cristo o aplican en sus comunidades el prin-
cipio evangélico y democrático de igualdad entre hombres y mujeres?
Con la Biblia cristiana en la mano y desde una hermenéutica de género hay
que decir dos cosas: a) que lo que pone en marcha Jesús de nazaret no es una
iglesia jerárquico-patriarcal como la actual, sino un movimiento igualitario de
hombres y mujeres; b) que Jesús de nazaret no ordenó sacerdotes ni a hombres
ni a mujeres. todo lo contrario: excluyó directa y expresamente de la nueva re-
ligión el sacerdocio y eliminó el templo como lugar de culto proponiendo como
alternativa la adoración «en espíritu y en verdad». el cristianismo, como dijera
lúcidamente díez-alegría, es una religión ético profética, no ontológico-cultural.
Con la historia de la iglesia en la mano y las investigaciones arqueológicas puede
afirmarse que, durante varios siglos, las mujeres ejercieron funciones sacerdotales
y episcopales. ¿no es la historia, para la iglesia, «maestra de la vida»?
f) Las religiones legitiman de múltiples formas la exclusión de las mujeres de la
esfera pública, de la vida política, de la actividad intelectual, del campo cientí-
fico; y limitan sus funciones al ámbito doméstico, a la esfera de lo privado, a la
educación de los hijos e hijas, a la atención al marido, al cuidado de los enfermos,
personas mayores, etc. Cualquier tipo de presencia de las mujeres en la actividad
política o social es considerado ajeno a la «identidad femenina» (¿?) y un aban-
dono de su verdadero campo de operaciones, que es el hogar, con la consiguiente
culpabilización. a lo sumo defienden que la mujer pueda realizarse en el hogar
y en el trabajo, lo que no se aplica a los hombres.
h) La mayoría de las religiones niegan a las mujeres el reconocimiento y el ejer-
cicio de los derechos reproductivos y sexuales:
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 129
- Las mujeres no son dueñas de su propio cuerpo, que es controlado por los
confesores, directores espirituales, esposos, etc.
- a las mujeres no se les permite planificar la familia: deben tener los hijos y
las hijas que dios quiera, los que dios les mande, no los que ellas libremente
decidan.
- no pueden ejercer la sexualidad fuera de los límites impuestos por la reli-
gión (matrimonio, heterosexualidad). La práctica de la sexualidad fuera del
matrimonio o con personas del mismo sexo es prohibida y condenada ex-
presamente.
- son consideradas impuras por la menstruación.
- si deciden interrumpir el embarazo, incluso ateniéndose a la ley, son acu-
sadas de pecadoras y criminales y se pide para ellas incluso penas de cárcel.
en la condena y criminalización del aborto coinciden los líderes religiosos,
por ejemplo, del catolicismo y del islam.
- Las mujeres no pueden utilizar métodos anticonceptivos, porque eso im-
plica poner obstáculos a la vida.
Un día, sin planificarlo, nos damos cuenta de que unos se apropian del trabajo, del
cuerpo, de los sueños de unas personas, del ecosistema planetario, de los espacios
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 131
Como afirma la teóloga Mary hunt: «los cuerpos no mienten» (2009). Las mujeres
con sus cuerpos dañados, los niños y niñas subsaharianos muertos abrazados a sus
madres en la ruta hacia europa, los ecocidios que vemos cada día nos reclaman ac-
ciones. Parece que la aportación desde las religiones en algunos campos es insufi-
ciente, y en el de la sexualidad es coercitivo y opresor.
Cuando reclamamos derechos sexuales y reproductivos, hablamos de un estado
general de bienestar que afecta a todos los individuos. excede al mero hecho de
tener acceso a métodos anticonceptivos o a servicios de planificación familiar, que
son un elemento clave para el empoderamiento de las mujeres. Por eso, sería mejor
utilizar el término «justicia procreativa», que abarca el antes (si tener hijos o no,
cuándo, cómo…) y el después.
132 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
sin embargo las jerarquías de muchas tradiciones religiosas, siempre tan empe-
ñadas en cuestiones de fe, se carnalizan cuando se trata de hablar de las mujeres.
Mientras la pureza de los hombres se manifiesta en los hechos, la de las mujeres se
sitúa en el himen. ya desde el helenismo tardío existe un vínculo entre virginidad
y espiritualidad. en el judaísmo se valoraba por encima de todo la fecundidad y
morir virgen era una desgracia (María aparecerá como la engendradora de lo divino,
es la pureza premiada).
Llegar virgen al matrimonio ha sido y sigue siendo en muchas personas y países
un valor imprescindible. en muchos casos equivale a un documento de propiedad
privada y exclusiva. si una mujer no ha descubierto el placer, el hombre no tiene
miedo a ser comparado con otro y pierde la angustia ante la posibilidad de no poder
satisfacer los deseos de su cónyuge. así, la mujer pensará que todos son iguales,
creerá que el horizonte sexual es lo que su marido le ofrece y la ignorancia sexual
de las esposas asegura su fidelidad. Las religiones son el soporte ideológico de estos
principios patriarcales.
en este mundo en el que todo se compra y se vende, también la reconstrucción
del himen es una realidad y, aunque parezca novedosa, ya la encontramos en La
Celestina («cosía virgos»). hoy se compra por internet el llamado «kit de la virgi-
nidad» de fabricación china (cuyo uso es condenado con pena de muerte en países
como arabia saudí). o lo reconstruye el cirujano plástico.
en algunas culturas, la violación se castiga muy duramente, incluso con la pena
de muerte, pero siempre y cuando la víctima fuese virgen. Las relaciones extrama-
trimoniales son objeto de lapidación o asesinato, etc. Con estas imposiciones, ¿se
pretende proteger a las mujeres? Claramente no. es el honor del padre o del esposo,
o la preservación del linaje y la certeza de la paternidad, los objetivos determinantes
en el castigo de este tipo de delitos. en cualquier caso, la mujer como ser humano
vejado y humillado, no tiene demasiada importancia. es más, su prestigio y valor
social se reduce a cero después de sufrir una violación. esta baja estima de la mujer
violada se ha mantenido a través de los tiempos a causa de esa mitificación de la
virginidad.
tradición, religión e historia han exigido a la mujer la defensa de su honestidad
hasta la muerte si fuera necesario. Un ejemplo lo encontramos en el proceso de
beatificación de María goretti, en el que Pío Xii (1939-1958) argumentaba y des-
cribía en sus páginas la violación, no como un ataque brutal que en buena lógica
repugnaba a María, una niña de doce años, sino como ejemplo del camino a la san-
tidad que «le hizo renunciar a un atractivo placer» por defender su honestidad.
según esta interpretación, lo esperado de la agresión era la producción de placer:
solo la resistencia de la víctima explicable porque atentaba contra su virginidad,
convierte dicha agresión en especialmente indeseable.
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 133
además, la segregación de las mujeres del ámbito sagrado está casi siempre re-
lacionada con la sangre. La sangre de las mujeres las hace impuras, mientras que la
sangre masculina está repleta de valor, entrega y servicio y se celebran rituales en
su honor. durante el tiempo de la menstruación, y también después del parto, las
mujeres son consideradas impuras y contaminantes. aunque en la actualidad nadie
se atrevería a usar este argumento para apartar a las mujeres de determinados ser-
vicios en las organizaciones religiosas, no hay duda de que esta convicción perma-
nece en el inconsciente colectivo como freno invisible pero real que impide el acceso
de las mujeres a la esfera de lo sagrado (en las mezquitas las mujeres menstruantes
se separan ellas mismas de las demás y en la tradición católica los ministerios orde-
nados están reservados solo a los varones).
otro asunto son los límites del derecho al aborto, que están directamente rela-
cionados con las creencias religiosas y no solo con razones culturales o motivaciones
socio-económicas. todas las religiones establecen el principio general del respeto a
la vida y en la iglesia católica, el aborto, siempre es un crimen y la mujer es automá-
ticamente excomulgada. el feto es persona desde el mismo momento de la concep-
ción, por tanto se mata a una persona.
en resumen, si la mujer no cumple con el papel que las jerarquías le han asig-
nado, estará cometiendo un acto de rebeldía contra la voluntad divina y su cuerpo
se convertirá en obstáculo definitivo para su salvación.
sentación de la divinidad, mientras que a las mujeres se les niega el derecho a la in-
terpretación de dichos textos alegando subjetividad y arbitrariedad, incluso se les
ordena silencio mientras se proclaman.
Las religiones siguen considerando a los varones como pater familias conforme
a los viejos códigos domésticos que les reconocen superioridad y autoridad sobre
el resto de los miembros de la familia: esposa, hijos, hijas, etc. Citaremos tres ejem-
plos: la incorporación de los códigos domésticos romanos en los textos de las Cartas
Pastorales de la Biblia cristiana; el repudio en el judaísmo por esterilidad de la
mujer; el repudio y poligamia en el islam en algunas tradiciones musulmanas. Las
religiones legitiman la familia patriarcal.
hay una conexión, que el patriarcado considera intrínseca y necesaria, entre
masculinidad y violencia. a su vez, la búsqueda de formas de gestionar pacífica-
mente los conflictos consiste con frecuencia en aplicar buena parte de las enseñan-
zas de las mujeres en lo privado.
La redefinición del papel de las mujeres debería provocar un efecto «rebote»
en la re-definición del papel de los hombres en las religiones.
Los textos sagrados dejan constancia de ello. Justifican pegar a las mujeres, lapi-
darlas, ofrecerlas en sacrificio para cumplir una promesa y para aplacar la ira de los
dioses, dejarlas encerradas en casa hasta que mueran, imponerles silencio, no reco-
nocerles autoridad, no valorar su testimonio en igualdad de condiciones que a los
varones, etc. Las prácticas religiosas vienen a ratificarlo. a las mujeres no se les re-
conoce la presunción de inocencia, sino que se las presume culpables mientras no
se demuestre lo contrario. son ellas las que caen en la tentación y tientan a los va-
rones, y por eso merecen castigo.
algunos Padres de la iglesia las consideran «la puerta de satanás» y la «causa
de todos los males». Para un teólogo tan influyente en el cristianismo como agustín
de hipona, la inferioridad de la mujer pertenece al orden natural. otro teólogo tan
decisivo en la teología cristiana como tomás de aquino define a la mujer como
«varón imperfecto». Lutero habla de las mujeres como inferiores de mente y cuerpo
por haber caído en la tentación y afirma que las mujeres han sido creadas sin otro
propósito que el de servir a los hombres y ser sus ayudantes.
La violencia de los hombres de iglesia contra las mujeres, incluidos los santos
como agustín de hipona, es descrita con toda su crudeza y realismo en una escena
de la novela de Jostein gaarder vita brevis, en la que floria emilia le recuerda a
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 135
aurelio agustín, con quien había vivido en concubinato doce años, su comporta-
miento violento con ella:
Una tarde, cuando habíamos compartido de nuevo los regalos de venus, te volviste de
pronto airado hacia mí y me golpeaste. ¿recuerdas que me golpeaste? ¡tú, precisamente
tú que antaño fuiste un respetable profesor de retórica, me pegaste brutalmente porque
te habías dejado tentar por mi ternura! sobre mí recayó la culpa de tu deseo... obispo,
pegaste y gritaste porque me había convertido de nuevo en una amenaza para la salvación
de tu alma. Cogiste una vara y me golpeaste de nuevo. Pensé que querías acabar con mi
vida porque eso hubiera sido para mí lo mismo que castrarte. Pero yo no temía por mi
vida, solo estaba destrozada, tan decepcionada y avergonzada de ti que recuerdo
claramente que deseé que me mataras de una vez. (gaarder, 1997: 112-113)
tras relatar la agresión, floria comenta que no fue a ella a quien golpeó agustín,
sino a eva, a la Mujer, y le recuerda, citando a Publio sirio, que quien se comporta
injustamente con una persona, amenaza a muchas personas. al final de la carta le
confiesa al obispo de hipona con justificado dramatismo: «siento escalofríos
porque temo que lleguen tiempos en los que las mujeres sean asesinadas por
hombres de la iglesia de roma» (gaarder, 1997: 126). y sigue planteando una
pregunta escalofriante: «Pero, ¿por qué se las habría de matar, honorable obispo?
Porque os recuerdan que habéis renegado de vuestra propia alma y atributos,
pensáis. ¿y en favor de quién? en favor de un dios, decís, en favor de él que ha
creado el firmamento que os cubre y la tierra sobre la que viven las mujeres que os
dan a luz» (gaarder, 1997: 126-127).
La antigua compañera de agustín dice a los hombres de iglesia que, si dios
existe, los juzgará por los placeres a los que han dado la espalda y por negar el amor
entre hombre y mujer. floria aurelia termina la carta comunicando al obispo que
si fue él quien se ocupó de hacerle llegar sus Confesiones para que se bautizara, no
le va a dar esa satisfacción.
veamos otro ejemplo, este, actual. Mohamed Kamal Mustafa, imán de la
mezquita sohail de fuengirola, que se presentaba como teólogo musulmán y
experto en la materia, escribió en 1997 el libro La mujer en el islam, de distribución
gratuita. en el capítulo titulado «Cuestiones dudosas», el autor se pregunta: «¿tiene
el hombre derecho a pegar a su mujer?». La respuesta es todo un ejemplo de
apología de malos tratos contra las mujeres, que dice justificarse en diferentes textos
del Corán, entre los cuales está el siguiente:
Los hombres tienen autoridad sobre las mujeres en virtud de las preferencias que dios
ha dado a unos más que a otros y de los bienes que gastan. Las mujeres virtuosas son
devotas. y cuidan, en ausencia de sus maridos, de lo que dios manda que cuiden.
136 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
¡amonestad a aquellas que temáis que se rebelen, dejadlas solas en la cama. ¡Pegadles!
si os obedecen, no os metáis con ellas. (Kamal, 1997: 35)
nunca se debe pegar en una situación de furia exacerbada y ciega para evitar males
mayores. no se debe golpear las partes sensibles del cuerpo (la cara, el pecho, el vientre,
la cabeza, etc.). Los golpes se han de administrar a unas partes concretas del cuerpo
como los pies y las manos, debiendo utilizarse una vara no demasiado gruesa, es decir,
que ha de ser fina y ligera para que no deje cicatrices o hematomas en el cuerpo. Los
golpes no han de ser fuertes y duros, porque la finalidad es hacer sufrir psicológicamente
y no humillar y maltratar físicamente. (Kamal, 1997: 87)
sin eMBargo, Las MUJeres sUeLen ser Las Más fieLes segUidoras de Las reLigiones
hay quienes consideran que la orientación femenina hacia la religión es innata, más
aún, genética, que las mujeres son por naturaleza más crédulas y, por eso, son más
asiduas a las actividades religiosas. ninguna investigación genética lo demuestra.
se trata de un estereotipo cuyo objetivo es someter a la mujer a las restrictivas y re-
presivas orientaciones religiosas establecidas por los varones. Quienes así piensan,
se olvidan de que tradicionalmente ha sido a las mujeres a quienes más se ha incul-
cado el sentimiento religioso. se trata, por tanto, de un proceso inducido que res-
ponde a una determinada educación y aprendizaje.
Con frecuencia, bajo la presión del poder religioso patriarcal, las mujeres son
las mejores transmisoras de las enseñanzas religiosas a sus hijos en la familia y a los
niños y niñas en los espacios religiosos a través de la educación religiosa. ellas son
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 137
solo hay una manera de limar aristas. tendrás que aprender a ser sumisa, como dice san
Pablo. o sea, ponerte debajo, porque tú serás la base de vuestra familia. tú serás los ci-
mientos. tú sostendrás a todos, a tu marido, y a tus hijos adaptándote, aceptando, de-
jando pasar las cosas, dirigiendo con dulzura. Quien sostiene el mundo es el que está
debajo, no el que se pone por encima de los demás. (Miriano, 2013:35)
someteos unos a otros en atención al Mesías. Las mujeres a los maridos como al señor,
pues el marido es cabeza de la mujer como el Mesías es cabeza de la iglesia, él que es el
salvador del cuerpo. Pues como la iglesia se somete al Mesías, así las mujeres a los ma-
ridos en todo. Maridos, amad a vuestras mujeres, como el Mesías amó a la iglesia y se
entregó por ella, para limpiarla con el baño del agua y la palabra, y consagrarla... así
tienen los maridos que amar a sus mujeres, como a su cuerpo... ame cada uno a su mujer
como a sí mismo y la mujer respete a su marido.
estas expresiones del apóstol quizás puedan causar perplejidad e irritación en el lector
—y especialmente en la lectora de hoy— que solo se contente con una lectura superficial
138 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
del texto. Parece como si las exhortaciones no pusieran a ambos esposos en pie de igual-
dad. al hombre se le pide «amor» y a la mujer «sometimiento», palabra que repugna a
nuestra sensibilidad y, si se trata del sometimiento de la mujer, todavía más. Para la Biblia
del Peregrino, los condicionamientos culturales de la época del autor, que son también
los suyos, no pueden ser «palabra de dios». si el autor hubiera vivido hoy, hubiera de-
fendido los derechos de la mujer y no hubiera hablado de «sometimiento. (schökel,
2011: 1884)
en las últimas décadas, asistimos a una auténtica rebelión de las mujeres en el ám-
bito de las religiones, tanto a nivel personal como colectivo, tanto en el interior de
las religiones como en la sociedad.
d) La rebelión de las mujeres dentro de las religiones constituye uno de los he-
chos mayores, de más profunda significación en la historia del fenómeno reli-
gioso, y de importantes repercusiones políticas y sociales. supone un avance en
la lucha por la emancipación de las mujeres y por la liberación de los marginados
y excluidos. Por eso, la rebelión feminista de las mujeres creyentes debe ser apo-
yada no solo por los colectivos y las personas religiosas, sino por todos los ciu-
dadanos y ciudadanas comprometidos en la lucha por la emancipación de los
pueblos sometidos a las distintas formas de opresión.
teoLogía feMinista
fruto de esta rebelión ha surgido una nueva manera de vivir y de pensar la fe reli-
giosa desde la propia subjetividad de las mujeres en las diferentes religiones, sobre
todo cultivada por mujeres: la teología feminista, que:
desde eva, los cuerpos de las mujeres han sido controlados, colonizados por rí-
gidos comportamientos sexuales. se insiste en las fronteras que no se deben tras-
pasar, en las decisiones que no es lícito tomar, en las tendencias ocultas que no se
pueden revelar. esta moral sexual restrictiva es el reflejo de cómo se ignoran las ex-
periencias y reflexiones de las mujeres. a las mujeres las cuentan, pero no cuentan.
de ellas se dice que, si algo aportan, son problemas. así queda de manifiesto la ri-
gidez institucional. Podemos decir que las jerarquías de las tradiciones religiosas
han perdido la credibilidad para las mujeres.
tenemos que seguir aprendiendo a escuchar nuestro cuerpo, descubrir las zonas
colonizadas que todavía tenemos, para liberar los miedos que le encadenan. nece-
sitamos seguir pensando y creando nuevos modelos antropológicos, teológicos y
espirituales para que no se establezcan mecanismos sociales que subordinen en fun-
ción del sexo y de su utilización. es más fácil ofrecer teologías que un condón, y
desarrollar pedagogías que ofrecer atención infantil pública y gratuita.
el poder sobre un trozo de pan para convertirlo en cuerpo de Cristo en el cato-
licismo les ha sido negado a las mujeres, porque el poder sobre los cuerpos es una
prerrogativa patriarcal. Cuando el control de los recursos esté en manos femeninas
las mujeres también tendrán el poder sobre sus cuerpos y acabaremos con la vio-
lencia contra ellas.
Practicar conductas significativas que comuniquen el paradigma del ecofemi-
nismo desde donde adelantar la reconciliación de todo lo que existe es una manera
de situarnos y de interpretar todo lo que vive en el amplio universo que nos rodea
y que puede cambiar nuestras conductas en los grupos que nos movemos. es, ante
todo, una experiencia corporal, comunitaria, local, nacional y planetaria. es situar-
nos desde nuestro yo individual en el gran útero del universo y respetar, alentar y
animar todo lo que sea fuente de vida. ¡necesitamos coraje, no licencias, ni permisos
ni leyes restrictivas!
Las mujeres no son minoría silenciosa y silenciada, sino mayoría resistente y con-
trahegemónica. es necesario poner en valor sus luchas por la emancipación de los
oprimidos y su capacidad de innovación política en los diferentes escenarios donde
Los CUerPos CoLonizados: Las reLigiones Contra Las MUJeres 141
ConCLUsión
en el siglo XiX las religiones perdieron a la clase obrera porque se colocaron del
lado de los patronos que la explotaban y condenaron las revoluciones sociales que
luchaban por una sociedad más justa, igualitaria y solidaria. Los trabajadores dieron
la espalda a las religiones porque se sintieron traicionados por ellas, alejándose, la
mayoría de las veces, del mensaje igualitario y solidario de sus fundadores en los
orígenes.
en el siglo XX, las religiones perdieron a los jóvenes y a los intelectuales por sus
posiciones filosóficas y culturales integristas, alejadas de los nuevos climas de la
modernidad.
si continúan por la senda patriarcal por la que ahora caminan, en el siglo XXi las
religiones perderán a las mujeres, hasta ahora sus mejores y más fieles seguidoras.
sin la clase trabajadora, sin los jóvenes, sin los intelectuales y sin las mujeres, las
religiones habrán llegado a su fin. y no podrán echar la culpa de su fracaso a nadie.
ellas mismas se habrán hecho el harakiri.
escribe eduardo galeano: «La iglesia dice: el cuerpo es una culpa. La ciencia
dice: el cuerpo es una máquina. La publicidad dice: el cuerpo es un negocio. el
cuerpo dice: yo soy una fiesta» (galeano, 1993: 138).
142 eCoLogía y género en diáLogo interdisCiPLinar
referenCias BiBLiográfiCas
aLonso sChöKeL (2011): Luis, Biblia del Peregrino, ediciones Mensajero, Bilbao.
BeaUvoir, simone de (1957): el segundo sexo. Los hechos y los mitos, Buenos
aires.
BenediCto Xvi (2010): Luz del Mundo. el Papa, la iglesia y los signos de los tiem-
pos. Una conversación con Peter seewald, herder, Barcelona.
daLy, Mary (1985): Beyond god the father. toward a Philosophy of Women’s Lib-
eration, Beacon Press, Boston, 1985).
gaarder, Jostein (1997): vita brevis. La carta de floria emilia a aurelio agustín,
siruela, Madrid.
hUnt, Mary (2009): «Los cuerpos no mienten». Conferencia pronunciada en el iii
foro Mundial de teología y Liberación, celebrado en Belem de Pará (Brasil) en
enero de 2009: http://www.wftl.org/default.php?lang=pt—brö&t=padrao&p=pos-
forum01&m=padrao
MUstafa, Mohamed (2000): La mujer en el islam, Casa del Libro árabe, Barcelona,
2ª ed.
Miriano, Constanza (2013): Cásate y sé sumisa. experiencia radical para mujeres
sin miedo, nuevo inicio, granada.
II. TerrITorIos
8. Cuatro tesis sobre la asimetría de género en
la percepción y actitudes ante los problemas
ecológicos
Isabel Balza MúgICa y Francisco garrIdo Peña
Universidad de Jaén
l
a teoría feminista y los estudios de género han abierto un enorme campo de
análisis y de trabajos empíricos sobre fenómenos sociales que aparecían como
ajenos a la división sexual. estos nuevos campos no solo nos han mostrado
la presencia del sesgo de género, sino que nos han ayudado a comprender de ma-
nera más amplia y compleja el fenómeno mismo. de esta forma, podemos entender
que las investigaciones realizadas desde la perspectiva de género nos han permitido
hacer visible la invisible división sexual de los hechos sociales, mejorando además
la calidad científica de estas investigaciones.
Un ejemplo de esto son las investigaciones sobre la asimetría de género en las
opiniones y actitudes ante los problemas ambientales. la novedad y la gravedad de
la crisis ecológica han escondido durante demasiado tiempo las diferencias y con-
flictos que atraviesan cualquier percepción y conducta de los actores sociales. la
poderosa y atractiva contradicción humanidad/naturaleza ha ocultado otras con-
tradicciones como las de clase, étnicas o de género. Pareciera que la responsabilidad
de la destrucción de los equilibrios ambientales se repartiera por igual entre todos
los miembros de la especie sin valorar su estatus social, territorial o sexual.
Pero han sido los estudios empíricos los que han deshecho el hechizo de la ase-
xualidad de los estudios ambientales. los datos nos dicen que hombres y mujeres
enfrentados ante un conjunto común de problemas y de actitudes ambientales tie-
nen una respuesta distinta y desigual. estas diferencias de género empíricamente
son consistentes con los presupuestos teóricos de la teoría feminista sobre la natu-
raleza constitutiva del género en la percepción y la acción individual y social en so-
ciedades sometidas a la dominación masculina y a la división sexual del trabajo. No
hay excepciones ni campos neutrales para las diferencias de género. esta consis-
tencia entre los resultados de las investigaciones empíricas y los enunciados teóricos
146 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar
Mientras que, para los hombres, los grandes problemas ambientales son más valo-
rados en la escala de importancia, para las mujeres son otros los problemas más va-
lorados, como aquellos que tienen que ver con la escala local y cotidiana o con la
salud y con el bienestar de las generaciones futuras. la orientación de género inclina
a las mujeres a percibir y a valorar más los problemas relacionados con la escala
micro (local, cotidianeidad, salud) y a los hombres a valorar y percibir más los pro-
blemas asociados con la escala macro (grandes cambios mundiales, problemas pla-
netarios o de fuerte significación política o social, grandes catástrofes como los
incendios forestales, desbordamiento de ríos).
¿en qué medida cree que el estado del medio ambiente perjudica su salud?
de las tres asimetrías mostradas, esta es la más significativa: los hombres tienen más
opiniones proambientales y las mujeres más actitudes y conductas proambientales.
las prácticas más sostenibles son realizadas en mayor medida por mujeres. de seis
indicadores de prácticas cotidianas sostenibles, en cinco de ellas (reciclaje, ruido,
uso de la bicicleta, uso del transporte público y agua) las mujeres tienen actitudes
más sostenibles que los hombres, mientras que solo en un indicador (energía) los
hombres mejoran a las mujeres.
las mujeres tienen menos información, reciben la información por canales apa-
rentemente menos fiables, confían más en las instancias micro (locales y sociales),
y opinan menos; pero así y todo, hacen más por la sostenibilidad. las prácticas co-
tidianas de las mujeres generan menos impactos ambientales que la vida y la con-
ducta de los hombres.
¿Cuál es la explicación para estos resultados tan paradójicos? quizás, tal como
ha apuntado la teoría feminista, se trate de descolonizar los marcos cognitivos pa-
triarcales dominantes que han definido conceptos duales como sociedad/política,
ciencia/experiencia, razón/emoción, público/privado, universal/local, opinión/ac-
ción, teoría/práctica o naturaleza/cultura (haraway, 1995). Como en la crítica de
Carol gilligan a la escala del desarrollo moral de Kohlberg, posiblemente estos re-
sultados paradójicos sean el producto de una «falsa medida» inserta en esos pares
de conceptos dicotómicos (gilligan, 1982). Una mirada diferente a una voz dife-
rente nos arrojaría una conceptualización de la política, del espacio público, de la
150 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar
que esta se alza. solo así es posible entender la emancipación como superación dia-
léctica de las condiciones preexistentes dadas (Beauvoir, 1998).
esta ambivalencia de la asimetría de género que los estudios de opinión delatan
con respecto a los problemas ambientales tiene su nudo gordiano en la divergencia
entre opinión y práctica. si la asimetría de género describiera exclusivamente unas
condiciones de marginación de la mujer, ¿cómo es posible que estas condiciones
motiven con mayor fuerza prácticas y conductas de cambio hacia la sostenibilidad
más potentes y autónomas que aquellas que motivan a los hombres? Creemos que
la explicación a estas paradojas y ambivalencias de la asimetría de género, junto con
la inserción en una teoría dialéctica de la emancipación, pueden ser comprendidas
en función de tres marcos teóricos, como son: la ética del cuidado de Carol gilligan;
la teoría de la voz y la salida de albert hirschman; y la teoría de la aversión al riesgo
como estrategia conservadora de optimización de las oportunidades en contexto
adversos y de gran incertidumbre (gilligan, 1982; hirschman, 1977; Jianakoplos y
Bernasek, 1998).
la asimetría de género en asuntos ecológicos no es una excepción en las con-
ductas, actitudes y valores más frecuente, descritos desde los análisis provenientes
de la perspectiva de género. los datos que la asimetría de género arroja son cohe-
rentes con las actitudes, valores y perspectivas que la ética del cuidado describe
(gilligan, 2013). en este sentido, hay un equilibrio reflexivo entre estos datos y las
hipótesis feministas amparadas por el marco teórico de la ética del cuidado. la
orientación hacia lo micro, hacia la informalidad de las redes horizontales de co-
municación y colaboración social; el peso de la vida y de la salud en las decisiones;
la consideración proactiva y práctica de los valores son, entre otras, características
descritas en la ética del cuidado, que los datos de los estudios de opinión sobre la
percepción de los problemas ambientales corroboran. Por tanto, las opiniones, ac-
titudes y conductas que resultan de las diferencias de percepción de los conflictos
ecológicos por motivos de género son comprensibles en el marco teórico (explica-
tivo) y axiológico (valores) de la ética del cuidado.
la aversión al riesgo es un concepto proveniente de la psicología financiera y
nos indica la propensión negativa que tienen determinados agentes a tomar deci-
siones (inversiones) en contextos de mucha incertidumbre y de alto riesgo (Isaac y
James, 2000). en la abundante literatura científica que existe sobre esta conducta,
hay un rasgo que llama la atención y es la unanimidad, empíricamente contrastada,
sobre una mayor y significativa prevalencia de la aversión al riesgo en las mujeres
frente a los hombres (Jianakoplos y Bernasek, 1998). esta brecha de género solo se
ve reducida hasta niveles insignificantes a partir de grupos de edad comprendidos
entre 55 y 75 años (ruiz-Tagle y Tapia, 2012). las tesis primera y segunda encuen-
tran una explicación si son vistas como conductas orientadas hacia la minimización
de costes y riesgos (en este caso los costes son de malgasto de tiempo y de esfuerzos)
152 eCología y géNero eN dIálogo INTerdIsCIPlINar
en un contexto patriarcal, el cuidado es una ética femenina. Cuidar es lo que hacen las
mujeres buenas, y las personas que cuidan realizan una labor femenina; están consagra-
das al prójimo, pendientes de sus deseos y necesidades, atentas a sus preocupaciones;
son abnegadas. en un contexto democrático, el cuidado es una ética humana. Cuidar es
lo que hacen los seres humanos; cuidar de uno mismo y de los demás es una capacidad
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 153
humana natural. la diferencia no estaba entre el cuidado y la justicia, entre las mujeres
y los hombres, sino entre la democracia y el patriarcado. (gilligan, 2013: 50-51)
3. Una mayor sensibilidad ante los descuentos intertemporales de los costes am-
bientales futuros. Uno de los grandes problemas que tiene la promoción de
la conciencia y la acción ecologista es el hecho de que los costes de la acción
ambiental son inmediatos y personales (no usar el automóvil, por ejemplo)
mientras que los beneficios son futuros y difusos (disminución de las emisio-
nes de Co2, ahorro de energía). Pearce (1990) (2003). al fijar los daños di-
fusos y futuros en objetos cercanos e inmediatos y emocionalmente muy
valorados frente a aquellos costes ambientales que los discursos científico y
político describen como remotos, futuros e inconmensurables, el proceso de
subjetivización de la crisis ecológica favorece una sensibilidad directa y per-
sonalizada y en un tiempo cotidiano e inmediato.
desde esta comprensión política y social de las asimetrías de género en la
percepción de los problemas ambientales que la teoría feminista y ecofemi-
nista nos aporta, podemos valorar, en una dimensión más adecuada, la fun-
ción no complementaria sino central que el ecofeminismo cumple para la
superación de los bloqueos que el ecologismo social y la ecología política
arrastran. el ecofeminismo no es un ecologismo de o para mujeres sino que
como ocurre con el feminismo, lleva en su adN, como ningún otro discurso,
la semilla de la universalidad; y deviene, así, ecologismo a escala humana.
esta humanización, que no es sino socialización y, como socialización, natu-
ralización, al resituar el conflicto ecológico en una escala personal y cotidiana,
favorece el compromiso individual y social en el cambio ecológico sistémico.
reFereNCIas BIBlIográFICas
aMorós, Celia (1985): hacia una crítica de la razón patriarcal, Barcelona, anthropos.
BeaUvoIr, simone (1998): el segundo sexo, Madrid, Cátedra.
BUTler, Judith (2007): el género en disputa. el feminismo y la subversión de la
identidad, Barcelona, Paidós.
CarrasCo, Cristina (2009): «Tiempos y trabajo desde la experiencia femenina», Pa-
peles de relaciones ecosociales y cambio global, 108, pp. 45-54.
CIs (2010): «estudio 2837. Medio ambiente (II)», Madrid.
CIs (2007): «estudio 2682. ecología y Medio ambiente (III)», Madrid.
Fox Keller, evelyn (2002): Making sense of life: explaining Biological development
with Models, Metaphors, and Machines, Cambridge, harvard University Press.
gIl garCía, eugenia (2004): la percepción social de los problemas ambientales
en andalucía. límites y oportunidades de la educación ambiental, sevilla, Con-
sejería de Medio ambiente, Junta de andalucía.
CUaTro TesIs soBre la asIMeTría de géNero eN la PerCePCIóN y aCTITUdes aNTe.... 155
INTRODUCCIÓN
¿Q
ué significa «cuidar de lo natural» o «cuidar la naturaleza»? Estas ex-
presiones, ¿se refieren a prácticas bien definidas y en contextos espe-
cíficos o a algo distinto? Este capítulo analiza el significado del cuidado
en su aplicación a los no humanos y al medio ambiente, tomando en cuenta tres as-
pectos: (1) la escala o nivel de aplicación son relevantes, por eso el cuidado tiene
ciertos límites; (2) los agentes comprometidos con la protección de especies, los re-
cursos y el medio natural encuentran limitaciones para generalizar las buenas prác-
ticas, debido a que estas no son lo mismo que las políticas públicas. Por eso,
convendría hablar más de «responsabilidad» que de «cuidado»; (3) para extender
el cuidado —de lo concreto a lo general— habría que contar, entonces, con la di-
mensión institucional, pública, de las actuaciones, ya que «lo natural es político».
El Decreto del año 2013 tiene por objetivo la protección de los no humanos, re-
gulando su uso con fines de experimentación:
1. El objeto del presente real decreto es establecer las normas aplicables para la protec-
ción de los animales utilizados, criados o suministrados con fines de experimentación y
otros fines científicos, incluyendo la educación y docencia.
Para ello, regula lo siguiente:
El reemplazo y reducción de la utilización de animales en procedimientos y el refi-
namiento de la cría, el alojamiento, los cuidados y la utilización de animales en tales pro-
cedimientos
(Real Decreto 53/2013, de 1 de febrero, por el que se establecen las normas básicas
aplicables para la protección de los animales utilizados en experimentación y otros fines
científicos, incluyendo la docencia, art.1)
158 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
los animales domésticos, menos en «la naturaleza». Por todo ello, cuidar en ge-
neral, como actitud, y las prácticas de cuidado, en concreto, requieren interven-
ciones diferentes y, tal vez, otro tipo de instancias.
(2) Los agentes comprometidos con la protección de especies, recursos y con el
medio natural en sentido amplio, suelen encontrar limitaciones importantes a
la hora de aplicar medidas específicas para resolver problemas de largo alcance.
Normas como el Real Decreto del año 2013, sobre protección de animales em-
pleados en investigación, ejemplifican este estado de cosas, con medidas en favor
del bienestar animal, vigentes para un área, la investigación, pero solo para tal
área. Por lo común, no es fácil que las buenas prácticas se generalicen y funcio-
nen de forma correcta a otros niveles. Al final, estas prácticas, individuales o de
grupo, no son lo mismo que las políticas públicas, en lo ambiental como en cual-
quier ámbito. Por eso, convendría hablar más bien de actuaciones que respon-
den a las necesidades y tienen en cuenta posibles consecuencias. Es decir, sería
mejor hablar de «responsabilidad» que de «cuidado» a este nivel, con el com-
promiso de agentes sociales, grupos e instituciones, a fin de garantizar la pro-
tección de bienes públicos.
(3) De ser cierto que las prácticas del cuidado deben ir más allá de lo cercano y lo
concreto, a fin de tener resultados eficaces, si tales prácticas han de extenderse
a la protección o al bienestar de otras especies y, en general, a la preservación
del medio natural, si los planes de intervención han de estar a la altura de los
riesgos, muy elevados, si las actuaciones han de tener, al fin, una dimensión ins-
titucional, pública, entonces la conclusión sería clara. Habrá que asumir, a todos
los efectos, que «lo natural» es «político».
EL CUIDADO. LO CONCRETO
Cuidado y alojamiento
1. Los Estados miembros velarán, en lo que se refiere al cuidado y al alojamiento de
los animales, por lo siguiente:
a) a todos los animales se les proporcionará alojamiento, un entorno, alimentos, agua
y cuidados adecuados a su salud y bienestar.
(Directiva 2010/63/UE del Parlamento Europeo y del Consejo de 22 de septiembre
de 2010 relativa a la protección de los animales utilizados para fines científicos, art. 33)
«ética del cuidado». A su vez, el principio general puede tener una interpretación
tanto convencional como no convencional, pudiendo aplicarse a distinta escala y a
distintos objetivos. Por lo tanto, las propuestas sobre cómo cuidar el ambiente, las
especies y lo natural tienen sentido, cada vez más; ganarían quizás en precisión in-
tegrando los resultados del largo debate sobre el cuidado, la ética del cuidado, la
justicia en el cuidado, la perspectiva de género (Puleo, 2008), también o sobre todo
en lo que concierne a la atención de las necesidades y de la salud y, en fin, las di-
mensiones social y política del cuidado. Además, estaría pendiente la posible tra-
ducción del principio a planes, programas, medidas, actuaciones, políticas destinadas
a proteger especies y medio ambiente.
¿Quién ha de cuidar? ¿Cómo lo hará? ¿Dónde? ¿Por cuánto tiempo? ¿Con qué
recursos? ¿Para quién, quiénes serán los destinatarios? ¿Quién tendrá la última res-
ponsabilidad? De nuevo, convendría transitar entre lo general y lo concreto; por
eso, la Directiva europea del año 2010 se refería tanto a cuidados específicos —ali-
mentación, alojamiento, entorno, alimentos, agua, salud, etc.— como a la responsa-
bilidad de los Estados en la protección de los no humanos en actividades científicas.
Esto es, cuidar en general, como actitud, y las prácticas de cuidado requieren inter-
venciones diferentes y, casi siempre, otro tipo de instancias y agentes.
RESPONSABILIDAD. LO GENERAL
La utilización de animales en los procedimientos solo podrá tener lugar cuando persiga
alguno de los siguientes fines:
a) Investigación fundamental.
b) Investigación traslacional o aplicada, y los métodos científicos con cualquiera de
las finalidades siguientes:
1º. La prevención, profilaxis, diagnóstico o tratamiento de enfermedades, mala salud
u otras anomalías o sus efectos en los seres humanos, los animales o las plantas.
(Real Decreto 53/2013, de 1 de febrero, por el que se establecen las normas básicas
aplicables para la protección de los animales utilizados en experimentación y otros fines
científicos, incluyendo la docencia, art. 5)
no está desarrollada de la misma manera para otras actividades con seres vivos y
con recursos naturales; prueba de ello serían las leyes sobre transporte, tenencia de
animales peligrosos y animales en explotaciones ganaderas. A día de hoy, los avances
se han concentrado en la protección de los no humanos —en determinadas áreas—,
menos en la protección del medio natural. Esto indica no solo que la investigación
científica es todavía una isla en cuanto a protección de derechos (López de la Vieja,
2013: 161-182) sino que, además, existen límites importantes para la extensión de
los cuidados. Tampoco los modelos enfocados hacia lo natural, biocéntricos y no
antropocéntricos, han logrado romper las barreras que aún persisten para extender
la atención a las necesidades más allá de la esfera propia. Por todo ello, vale la pena
preguntarse, una vez más, ¿qué quiere decir «cuidar» de lo natural?
(a) Algunas contribuciones en favor de la extensión de los cuidados —como la
de D. Curtin (1991)— abogan por otro tipo de conexión entre humanos y no hu-
manos, a la vez que rechazan la universalización del principio. El cuidado es enten-
dido ahí como una actividad contextual, ligada a la experiencia, relacional, alejada
también del formalismo de los derechos, con todo lo que esto puede significar. Por
razones similares, el rechazo de la dominación sobre otros seres —paralela a la do-
minación que tanto ha marcado la existencia de las mujeres— llevaría a prestar
mayor atención y asumir el cuidado de los no humanos (Donovan, Adams, 2007:
1-15). En tal sentido, la liberación animal no sería considerada como una cuestión
de justicia sino como resultado de algunos de los cambios producidos en la relación
entre humanos y otras especies (Luke, 2007). En otras propuestas análogas, se in-
siste en la necesidad de fomentar actitudes de simpatía (Donovan, 2007a), compasión
(Adams, 2007) o empatía (Gruen, 2007). Según esto, el cuidado sería muy positivo
pero no sería generalizable, sería difícilmente regulable, dependería de la voluntad,
la buena voluntad de los agentes. Esto es, no llegaría a ser una obligación, en sentido
estricto.
(b) Las ventajas de este enfoque del cuidado, entendido como atención a seres
y necesidades concretas, se convierten en limitaciones si se repara en su posible ex-
tensión y en la obligatoriedad. Atender a las necesidades es una práctica muy exi-
gente, requiere considerable tiempo, muchas energías, recursos, además de buena
disposición y, sin duda, tiene elevados costes personales. ¿Quién está dispuesto a
pagarlos? ¿Por qué motivo lo haría? ¿Es una decisión personal o un deber? Cuidar
siempre y a otra escala puede ser una decisión valiosa, meritoria, heroica y, por
tanto, nunca será obligatoria. Al mismo tiempo, como práctica o conjunto de prác-
ticas, el cuidado es del todo imprescindible para el mantenimiento de grupos y so-
ciedades, puesto que está orientado a los demás, a su bienestar. ¿Ha de convertirse
en obligación? La pregunta es si esa atención, respeto, interés genuino, relación in-
terpersonal, consideración hacia otros, etc., ha de quedar a criterio individual, según
sean las actitudes personales y la disponibilidad de cada persona. Las actitudes de
164 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
cuidado siempre son positivas, merecen reconocimiento y apoyo, sin duda alguna.
Ahora bien, conviene examinar la cuestión desde el otro ángulo. De no ser un
«deber» (Engster, 2005), de no ser algo a demandar, algo exigible en mayor o menor
medida, si no hubiera criterios conocidos y equitativos para distribuir el cuidado,
¿qué podrían esperar aquellas personas y aquellos seres que requieren atención o
asistencia? Esto vale para seres humanos en situación de necesidad o dependencia,
al igual que para los no humanos, sujetos a preferencias y decisiones de los huma-
nos, en una relación muy desigual (Engster, 2006). Los límites del cuidado aparecen
entonces, al intentar ampliarlo para ir más allá de la esfera de las relaciones inter-
personales y más allá de las actividades voluntarias. Las consecuencias serían poco
alentadoras.
(c) El cuidado de los animales plantea, además, dilemas específicos, nada simples.
En situaciones de escasez, urgencia o necesidad, ¿quién tendrá preferencia? ¿Estará
antes una persona cercana, un ser humano, o un no humano? ¿Quién va primero,
mi perro o mi hija? (Slicer, 2009). Muchas de las respuestas son bastante previsibles.
Pero hay más, el interés y cuidado de especies ¿se refiere a animales domésticos o a
todos los animales? ¿Incluye a las especies salvajes? (Clement, 2007) ¿Qué decir o
qué hacer con insectos o con aquellas especies que provocan temor o aversión? Re-
conocer el valor intrínseco de los seres vivos sería un paso fundamental; no obstante,
dejaría abierta la cuestión de la jerarquía entre las especies y, en consecuencia, la je-
rarquía del valor intrínseco, ¿cuál tiene prioridad? Es decir, el cuidado no obligado,
voluntario, estaría sujeto a distintas condiciones, grados y espacios. Será difícil ex-
tenderlo más allá del radio de acción de cada agente. Por último, es muy significativo
que la actitud y las prácticas del cuidado se concentren, por lo general, en la atención
o la mejora del bienestar de los no humanos; el Decreto del año 2013 —derechos y
obligaciones— sobre investigación y docencia con animales es una muestra de ello:
la finalidad ha de ser el diagnóstico o el tratamiento de enfermedades en los seres
humanos, los animales o las plantas, en este orden (art. 5). Si esto es así, ¿qué decir
del cuidado del los recursos, el medio ambiente, el medio natural, la naturaleza?
¿Qué queremos decir cuando hablamos de cuidar «lo natural»?
En la práctica, los temas ambientales son insoslayables, hacen falta medidas y
soluciones que no deberían aplazarse mucho más tiempo, en interés de otras espe-
cies y de la misma especie humana. Está en juego el futuro, nada menos que un fu-
turo mejor (Puleo, 2004). Por eso mismo, es posible preguntarse si, al hablar del
cuidado de los seres vivos y del medio ambiente, en realidad no estamos intentando
decir eso mismo, hace falta, es urgente «dar respuestas» ante los riesgos para la su-
pervivencia. Responder, actuar poniendo atención y cuidado, tener presentes las
posibles consecuencias de las acciones y, en fin, ser responsables o conducirse con
«responsabilidad» es algo diferente al cuidado. Lo es, sobre todo si se hace hincapié
en el enfoque social y político del principio. Es decir, se trataría de mostrar que los
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 165
LO NATURAL ES POLÍTICO
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAMS, Carol (2007): «The War on Compassion», Donovan, J., Adams, C.: The
Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press,
pp. 21-36.
CALLICOT, J. Baird (2005): «The Pragmatic Power and Promise of Theoretical En-
vironmental Ethics», Galston, A., Peppard, Ch.: Expanding Horizons in
Bioethics, Dordrecht, Springer, pp. 185-208.
CLEMENT, Grace (2007): «The Ethics of Care and the Problem of Wild Animals»,
Donovan, J., Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New
York, Columbia University Press, pp. 2301-2315.
CURTIN, Deane (2007): «Towards an Ecological Ethics of Care», Donovan, J.,
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 87-104.
— (1991): «Towards an Ecological Ethics of Care», Hypatia, 6, pp. 60-74.
DONOVAN, Josephine (2007): «Animal Rights and Feminist Theory», Donovan, J.,
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 58-86.
— (2007a): «Attention to Suffering», Donovan, Josephine, Adams, Carol: The Fem-
inist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press, pp.
174-197.
168 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
—y ADAMS, Carol (2007): The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York,
Columbia University Press.
—y ADAMS, Carol (2007): «Introduction», Donovan, J., Adams, C.: The Feminist
Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia University Press, pp. 1-15.
ENGSTER, Daniel (2006): «Care Ethics and Animal Welfare», Journal of Social Phi-
losophy, 37, pp. 521-536.
— (2005): «Rethinking Care Theory: The Practice of Caring and the Obligation to
Care», Hypatia, 20, pp. 50-74.
FRASER, David (2001): «The “New Perception” of Animal Agriculture: Legless
Cows, Featherless Chicken, and a Need for Genuine Analysis, Journal of Animal
Science, 79, pp. 634-641.
— (1999): «Animal Ethics and Animal Welfare Science. Bridging the Two Cul-
tures», Applied Animal Behavior Science, 65, pp. 171-189.
GILLIGAN, Carol (1995): «Hearing the Difference: Theorizing Connection», Hypa-
tia, 10, pp. 120-127.
— (1987): «Moral Orientation and Moral Development», Kittay, D., Meyers, D.:
Women and Moral Theory, New York, Rowman and Littlefield, pp. 19-33.
— (1982): In a Different Voice, Cambridge, Harvard University Press.
— (1977): «In a Different Voice: Women´s Conception of Self and of Morality»,
Harvard Educational Review, 17, pp. 481-517.
GRUEN, Lori (2007): «Empathy and Vegetarianism», Donovan, Josephine, Adams,
Carol: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia Uni-
versity Press, pp. 333-343.
LÓPEZ DE LA VIEJA, Mª Teresa (2013): «Investigación con no humanos», Bioética y
literatura, Madrid, Plaza y Valdés, pp. 161-182.
— (2008): «Los «derechos» de los animales», Bioética y ciudadanía, Madrid, Bi-
blioteca Nueva, pp. 211-236.
— (2008a): «Justicia y cuidado», Puleo, A.: El reto de la igualdad de género, Ma-
drid, Biblioteca Nueva, pp. 238-257.
— (2007): «Lo ambiental es político», García Gómez-Heras, J. M., Velayos, C.: Res-
ponsabilidad política y medio ambiente, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 77-105.
— (2004): La mitad del mundo. Ética y Critica feminista, Salamanca, Universidad
de Salamanca.
LUKE, Brian (2007): «Justice, Caring, and Animal Liberation», en Donovan, J. y
Adams, C.: The Feminist Care Tradition in Animal Ethics, New York, Columbia
University Press, pp. 125-152.
NUSSBAUM, Martha (2004): «Beyond «Compassion and Humanity»», Sunstein, C.,
Nussbaum, M.: Animal Rights, (pp. 299-320) New York, Oxford University Press.
PULEO, Alicia (2008): «Introducción. El concepto de género en la Filosofía», El
reto de la igualdad de género, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 15-42.
CUIDADO Y RESPONSABILIDAD 169
Es hora de ecofeminismo para que otro mundo sea posible, un mundo que no esté ba-
sado en la explotación y la opresión. Esta sociedad del futuro se vislumbra ya en la lucha
contra todas las denominaciones, las antiguas y las nuevas, las de los antiguos patriarca-
dos de coerción y las del patriarcado de consentimiento que impone sus mandatos en la
desmesura neoliberal. transformar el modelo androcéntrico de desarrollo, conquista y
explotación destructivos implica tanto asumir una mirada empática sobre la naturaleza
como un análisis crítico de las relaciones de poder.
AliCiA H. PUlEo
¿C
ómo imaginamos la sociedad del futuro? la literatura distópica, al pre-
sentar ese «lugar malo por venir», ofrece puntos de reflexión sobre ame-
nazas y creencias que cada autor o autora percibe y expresa del mundo
en crisis en el que vive.
Partiendo de las claves conceptuales que ofrece el ecofeminismo crítico soste-
nido por Alicia H. Puleo (2011), y tomando como base el análisis comparativo de
cuatro novelas distópicas recientes, exploraré coincidencias y diferencias aprecia-
bles entre los mundos futuros concebidos por autoras y autores, buscando desvelar
si se vislumbran las habituales posiciones hegemónicas de androcentrismo, antro-
pocentrismo y especismo que conforman la base de una ideología patriarcal y ne-
oliberal, o, si por el contrario, se advierten enfoques críticos que manifiestan una
ética ecológica, animalista, igualitaria e inclusiva, que integra la justicia social y de
género.
El ecofeminismo crítico de herencia ilustrada formulado por Alicia H. Puleo
demuestra que la teoría y la praxis analítica feminista pueden contribuir central-
mente a configurar una «crítica ecológica de la igualdad». Pone en conexión la pro-
bada capacidad adaptativa del patriarcado con las temáticas y conceptualizaciones
integradas en el debate sobre los límites del ecosistema en relación al modelo eco-
172 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
... la distopía novelada del siglo xx es la afirmación de un mundo en crisis: gobierno to-
talitario global (o desgobierno), anarquía institucional, corrupción política y adminis-
trativa, individualismo, segregación, neutralización de la subjetividad y la alteridad,
contaminación ambiental, sociedad de control, tecnificación y desarrollo a gran escala
de tecnología y ciencia al servicio de la economía y no del ser humano, represión y limi-
tación de las libertades individuales y societarias, globalización, dominio absoluto de los
mass media, incomunicación, urbanocentrismo, elites invisibles e impalpables, fragmen-
tación social política y cultural, mercenarismo, agotamiento de los bienes naturales (agua,
combustible, tierras de cultivo), pérdida de la cultura letrada a causa de la implantación
del soporte multimedial, tribalización y fanatismo, abolición de la democracia, manipu-
lación genética del hombre, entre otras. (Araya Grandón, 2010: 32)
1
El adjetivo «sintiente» es utilizado actualmente en la Filosofía Moral para referirse a la capacidad
de sufrir de los animales no humanos y reclamar consideración moral hacia ellos.
174 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
2
En adelante, la posibilidad.
3
«la conciencia de un determinismo integral era sin duda lo que más claramente nos diferenciaba
de nuestros antepasados humanos. Como ellos, no éramos sino máquinas pensantes; pero a diferencia
de ellos, teníamos conciencia de ser tan solo máquinas» (Houellebecq, 2005: 425).
4
En adelante, El mundo.
5
«imaginó por un instante que sus informes llegaban a hacerse conocidos y alguien decidía que
ianus era accesible a la colonización humana. El pensamiento le dio náuseas. los hermosos iloi lavados,
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 175
mundo convertido en un lugar de ocio para millonarios que invadirían los bosques
y lagos, dominando a la especie humanoide como criaturas subalternas reducidas a
objetos de placer, creando reservas para las otras especies... Esa visión le produce
una gran amargura. En veinte años, cuando regresasen a por él, sería catalogado
como «planeta colonizable» (Barceló, 1994: 98). y cree que solo él puede hacer algo
por detenerlo, ahora. «Ahora que aún era el dueño absoluto de su mundo» (Barceló,
1994: 98).
rosa Montero muestra en lágrimas en la lluvia6 su preocupación por la justicia
medioambiental, denunciando en su narrativa futurista que las consecuencias de la
crisis ecológica las sufren acusadamente los grupos más desfavorecidos (Prádanos,
2012). lágrimas, que se sitúa en el Madrid del 2109, escenifica la degradación am-
biental, apuntando la responsabilidad humana, especialmente de los gobiernos, tras
un siglo xxi que sufrió fenómenos planetarios como el calentamiento global, sus
derivaciones en cambios climáticos extremos, deshielos polares e inundaciones
junto a desórdenes, conflictos y migraciones económicas y ecológicas, todo conca-
tenado.7 situación que ha empujado a una humanidad que convive con otros seres
(tecnohumanos, replicantes o reps, y los «otros», alienígenas o «bichos»), a buscar
planetas habitables y a producir plataformas siderales. En la tierra, el sistema neo-
liberal ha agrandado las desigualdades sociales, continuando la explotación ilimi-
tada de la naturaleza. Elementos básicos para la supervivencia como el aire y el
agua se han privatizado. la tarjeta para acceder al agua purificada se compra en el
supermercado. las zonas de aire purificado son un recurso al alcance solo de grupos
privilegiados, mientras en las «zonas de Aire Cero», derredores urbanos «hiper-
contaminados y marginales», habitan los excluidos sociales. Esta privatización su-
cedió durante el siglo xxi: «diversos países empezaron a implantar el cobro del aire
y los ciudadanos con menos recursos se vieron obligados a emigrar en masa a las
zonas más contaminadas» (Montero, 2011: 128). reaccionando demasiado tarde,
el gobierno por fin ha entendido la relación entre el consumo masivo de carne a
partir de las explotaciones industriales de animales y la emisión de Co2, y lo de-
sincentiva tímidamente, «obligando a sacar una carísima licencia para comer carne»
(Montero, 2011: 69). las compañías petrolíferas se sirven de operaciones publici-
tarias para ofrecer «soluciones» a problemas que han generado ellas mismas, finan-
perfumados y bien vestidos, se convertirían en animales de lujo, en muñecos vivientes para ricos ciu-
dadanos ociosos, con la ventaja, además, de que su corta vida les haría enormemente deseables. ni
los más aburridos de sus conciudadanos podrían cansarse de un nuevo juguete que dura apenas unos
meses» (Barceló, 1994: 97).
6
En adelante, lágrimas.
7
«Aunque el calentamiento global comenzó a deshacer los casquetes polares ya en el siglo xx y el
nivel del mar había ido subiendo de forma progresiva durante varias décadas, lo cierto es que sus de-
vastadores efectos sociales parecieron estallar súbitamente en torno a 2040» (Montero, 2011: 226).
176 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
que tiene en cuenta el sufrimiento animal. Además, las de Barceló y Montero re-
crean sociedades futuras en que se han extendido derechos a seres no humanos; en
El mundo a otras especies inteligentes, en lágrimas a «seres sintientes»:
Ante la necesidad de acuñar un término que definiera a los nuevos compañeros del Uni-
verso y nos identificara con ellos, se aceptó la expresión seres sintientes, proveniente de
la tradición budista. los sintientes […] conforman un nuevo escalón en la taxonomía
de los seres vivos. si el ser humano pertenecía hasta ahora al reino Animalia, al Phylum
Chordata, a la clase Mammalia, al orden Primates, a la Familia Hominidae, al género
Homo y a la especie Homo sapiens, a partir de los Acuerdos se ha añadido un nuevo
rango, la línea sintiente, situada entre la clase y el orden, porque, curiosamente, todos
los extraterrestres parecen ser mamíferos y poseer pelo de una manera u otra. (Montero,
2011: 55)
8
«Puede que en una época anterior las mujeres se encontrasen en una situación comparable: se-
mejante a la de un animal doméstico» (Houellebecq, 2005: 11).
178 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
Viendo a las iloi, con sus cabellos de cobre y sus largos cuerpos blancos que ningún sol
parecía ser capaz de broncear, todas las mujeres de su vida se confundían en una sola,
una única forma femenina sin nombre y sin rostro que ponía un ahogo en su pecho»
[…] (y recuerda) «todas las veces en que un cuerpo de mujer le había hecho feliz» (Bar-
celó, 1994: 63-64)
9
«Vida animal. Vida inteligente. ¿Con qué criterios? ¿Con qué derechos podía decidirse? se había
dado cuenta demasiado tarde» (Barceló, 1994: 10).
10
yarek denomina iloi a la especie humanoide, «en un vago homenaje a un oscuro escritor del
siglo xix» (Barceló, 1994: 54), tributo a la obra futurista de H. G. Wells, la máquina del tiempo
(1895). interpreta que carecen de inteligencia («“son cretinos totales», pensó yarek», p. 57), aunque
destacan por su capacidad de cuidarse entre sí y cuidar a otros seres. Es evidente el sesgo conceptual
de yarek en lo que entiende por «inteligencia», frente a otras dimensiones de la inteligencia (emocio-
nal, social...), despreciando la interdependencia y cuidado mutuo de los iloi.
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 179
11
«Echó atrás la cabeza y gritó: un alarido largo, profundo, poderoso, casi un rugido de fiera. los
machos agacharon la cabeza y se alejaron sin contestarle. En la oscuridad, yarek dio los pasos finales
hacia la hembra que sería suya por derecho, apretó los brazos en torno a su cuerpo, cerró los ojos, y
el mínimo rastro de mente civilizada que aún parpadeaba débilmente en su consciencia se apagó como
una luz» (Barceló, 1994: 68).
12
«yarek se acostumbró a su figura inmóvil junto a la ventana [...]. y se acostumbró a hablar con
ella sin esperar respuesta. En las noches, cada vez más oscuras y más frías, se instalaba en la cama
junto al cuerpo cálido y oloroso de Jara y le contaba su vida [...]. y ella callaba, se arrebujaba contra
él, que a veces sentía en la espalda el movimiento del cachorro que llevaba en su vientre...» (Barceló,
1994: 80).
13
«tenía grandes esperanzas en ese niño. nacido fuera del grupo, sin nadie a quien imitar más
que a él, quizá fuera posible convertirle en un ser civilizado» (Barceló, 1994: 81).
14
«En la historia jamás escrita de los iloi no debía haber existido nunca un caso igual, digno de fi-
gurar en la categoría de mito: un poderoso dios caído del cielo que se une a la elegida y engendra una
hija en ella antes de volver a su reino en las estrellas» (Barceló, 1994: 82).
180 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
suya»15 (Barceló, 1994: 84), es decir, no tendría que compartirla con una madre con
derechos. Pero la realidad de una convivencia desigual rompe el espejismo de familia
perfecta. A los llantos de la niña, yarek responde con gritos y manotazos, y ellas
(madre e hija iloi) se ovillan en una esquina, espantadas. la relación asimétrica de
género ha traspasado las fronteras especistas, la violencia de género también.
yarek vive la felicidad doméstica, si no fuera por su condición de ser racional,
que se interpone constantemente...16 Porque los iloi eran animales, sí, pero en el sen-
tido en que lo pueden ser los pueblos naturales, primitivos, como deben ser los seres
angelicales en el Paraíso (Barceló, 1994: 97). Entonces se da cuenta; si son animales,
están en peligro. Muestra repulsa porque ahora tiene un vínculo con ellos, a través
de sus «hembras» (su hija nova y su compañera Jara). yarek elige una vida pre-ci-
vilizada en compañía del grupo de humanoides, decisión en la que resulta funda-
mental el papel mediador con la naturaleza otorgado a las mujeres de ese grupo
(«hembras» iloi, metáforas del rol social predeterminado genéricamente, al repre-
sentar la sexualidad, la maternidad, la compañía domesticada, sumisa y callada).
Aún subsiste su identificación con la civilización, que sigue considerando supe-
rior: mantiene el estatus del dios (científico). Busca una salida y la encuentra. se
trata de «construir la civilización iloi… un trabajo de demiurgo» (Barceló, 1994:
100), que bosqueja en su delirio mesiánico y proteccionista: «En toda la historia de
la humanidad era la primera vez que un hombre, un solo hombre, fuera del mito y
la literatura, iba a construir un mundo. El mundo de yarek» (Barceló, 1994: 100).
El mundo del científico que mantiene el poder sobre la naturaleza, tanto para ex-
plotarla como para preservarla.
Cambia el escenario narrativo. sobre una pantalla, las juezas y jueces integrantes
del tribunal supremo ven la realidad tecnoinducida del mundo virtual de yarek.17
15
la elección del nombre (nova), remite a un clásico de la ciencia ficción distópica, El planeta de
los simios (1963), novela del escritor francés Pierre Boulle llevada al cine con éxito en varias ocasiones.
desde una lectura crítica animalista deja entrever la explotación y violencia que conlleva el especismo,
por la vía de transferir a los simios comportamientos usuales de los humanos hacia los animales: vio-
lencia, maltrato, encierro, explotación, o negación a los otros de capacidades consideradas exclusivas
de su especie. inspirada en ella, la película El origen de los simios (rupert Wyatt, 2011, EE UU) revela
de manera explícita el componente especista, aunque no el de género.
16
«se sentía tan feliz que casi lamentaba ser humano y que su raciocinio se interpusiera constan-
temente entre sus sensaciones y sus sentimientos» (Barceló, 1994: 91).
17
Una imagen de intertextualidad múltiple de diversos clásicos de la ciencia ficción: «En un tanque
cilíndrico de cinco metros de altura cruzado en todas direcciones por un sutil entramado de finísimos
cables casi transparentes que terminaban en cada milímetro de su piel, el cuerpo desnudo de yarek
vibraba imperceptiblemente [...] todo su mundo estaba contenido allí: la primavera paradisíaca, el
invierno interminable, los iloi, los sherta, Jara, nova. y todo su mundo, interior y exterior, era ince-
santemente recogido e interpretado por sistemas como n. o. para ser entregado a sus jueces...» (Bar-
celó, 1994: 111-112).
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 181
18
«... el derecho a la salvaguarda de la propia percepción de la realidad estaba tan anclado en sus
mentes y sus corazones después de casi quinientos años de haber sido incluido en la declaración de
derechos Humanos que todos sentían la monstruosidad de lo que estaban contemplando y la repul-
sión de participar en ello de algún modo» (Barceló, 1994: 112).
19
«yarek ha desactivado el localizador, renunciando con ello a ocupar de nuevo un puesto en
nuestra sociedad. A todos los efectos, yarek ha muerto para la Federación de Mundos Humanos»
(Barceló, 1994: 116).
20
«yarek ha elegido. Está construyendo su propio mundo. Vive en la naturaleza una parte del
año, en la civilización la otra. tiene un campo inacabable para desarrollar sus actividades profesionales,
tiene compañía, tiene todo lo que puede desear» (Barceló, 114: 118).
21
«…desde su atalaya privilegiada [...] destral se daba unos paseos alucinantes por la superficie
terrestre, aquella máquina le hacía sentirse como un ángel» (Bueso, 2012: 11).
22
«le gustaba su nueva vida social. Que le palmearan la espalda, lo recibieran todos los días como
un mesías postcenital y le sonrieran junto al río cada amanecer. sumergirse en el baño matutino sa-
biendo que le querían. Que lo necesitaban» (Bueso, 2012: 25).
182 EColoGíA y GénEro En diáloGo intErdisCiPlinAr
clutó a sus habitantes, quien instó a defenderla con las armas y sin piedad. Es el
que selecciona a quien entra y el único con libertad para salir del recinto amura-
llado. Quiere ser «un líder tribal distinto» y se cree ungido para fundar una «nueva
humanidad» (Bueso, 2012: 270). Verónica, una de sus captoras, es la única que le
discute su condición de líder,23 a lo que responde con desprecio misógino. Al salir
triunfante tras el combate con Máximo y demás captores, como botín de guerra se
llevará a Verónica, «arrastrándola por los pelos» (Bueso, 2012: 277-278).
Esa «nueva humanidad» que aspira a construir en una «ecoaldea alternativa»
está, sin embargo, cimentada sobre la vieja división sexual del trabajo, como muestra
el repertorio de personajes individualizados en la nueva sociedad, que son, entre
otros: M1gue1, el alfarero; Marko, el herrero, sapote, el médico, teo, el religioso y
maestro, Agro, el ingeniero agrónomo; el interventor; dispo, el francotirador…
resulta paradójico que en la nueva sociedad de la ecoaldea se apueste por una edu-
cación religiosa. Así, en el reparto de tareas, destral encarga de la educación al
único religioso, a quien «confiaron el cuidado de los hijos. la educación. Que él
los modelizara, para algo era el hombre más bueno del poblado» (Bueso, 2012:
168). será quien efectivamente los modele, instalando en ellos el culto al líder pro-
pio de las dictaduras.
¿y las mujeres? Aparecen individualizadas tres: iriña, la recicladora; Crestas, la
cocinera; y Braqui, la discapacitada que sobrevive tras haber sufrido un salvaje ata-
que sexual (del que la salva destral). no aparecen en la superficie del relato más
mujeres, aunque es de suponer que en esa sociedad que en la narración aparece tan
masculinizada sí que haya más mujeres, porque la superpoblación supone un pro-
blema, aunque no tanto como para que los líderes prioricen la obtención de méto-
dos de anticoncepción. incluso se menciona la «contraconcepción» como un
producto de consumo más de la sociedad capitalista y contaminada que ya no im-
portaba,24 lo que refleja unos valores sin duda no consensuados con las mujeres.
En ConClUsión
Es posible establecer convergencias en las obras de los dos autores (Michel Houe-
llebecq y Emilio Bueso), que presentan de forma más acusada los sesgos androcén-
trico y antropocéntrico (fuerte) y rearman el imaginario patriarcal. la posibilidad
23
«tú lo que eres es un iconoclasta provocador al que las circunstancias han encumbrado» (Bueso,
2012: 229).
24
«Había muchas cosas que ya no importaban. Que habían sido dejadas atrás, como los empleos,
los relojes de pulsera, las cuentas bancarias, la publicidad, la contraconcepción, los fines de semana y
las alergias» (Bueso, 2012: 24).
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 183
rEFErEnCiAs BiBlioGráFiCAs
A) Fuentes literarias
BArCEló, Elia (1994): El mundo de yarek. Madrid: lengua de trapo. Edición re-
visada de 2005.
BUEso, Emilio (2012): Cenital. Madrid: salto de Página.
HoUEllEBECQ, Michel (2005): la posibilidad de una isla. Madrid: Alfaguara. tra-
ducción de Encarna Castejón. Edición original, la possibilité d’une île, librairie
Arthème Fayard, 2005.
MontEro, rosa (2011): lágrimas en la lluvia. Barcelona: Ediciones seix Barral.
AMorós, Celia (1997): la gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las
luchas de las mujeres, Madrid, Cátedra.
ArAyA Grandón, Juan Gabriel (2010): «distopía y devastación ecológica en 2010:
Chile en llamas (1998) de darío oses», Acta literaria (40), pp. 29-44.
UnA lECtUrA ECoFEMinistA dE lA noVElA dE AntiCiPACión ACtUAl 185
Fox KEllEr, Evelyn (1991): reflexiones sobre género y ciencia, Valencia, Alfons
el Magnànim.
GAldón rodríGUEz, ángel (2011): «Aparición y desarrollo del género distópico
en la literatura inglesa. Análisis de las principales antiutopías». En Prometeica -
revista de Filosofía y Ciencias. Año ii, 4. http://www.prometeica.com.ar (con-
sultado el 20 de diciembre de 2013).
lóPEz KEllEr, Estella (1991): «distopía: otro final de la utopía», en reis, 55/91,
pp. 7-23.
MillEt, Kate (1975): Política sexual. México: Aguilar. traducción de Ana Mª Bravo
García. Edición original de 1969.
PrádAnos, luis i. (2012): «decrecimiento o barbarie: ecocrítica y capitalismo glo-
bal en la novela futurista española reciente», Ecozona, (3), pp. 71-92.
PUlEo, Alicia H. (1992): dialéctica de la sexualidad. Género y sexo en la filosofía
contemporánea. Madrid, Cátedra, Colección Feminismos.
— (1995): «Patriarcado», en AMorós, Celia (dir.) (1995): diez palabras clave sobre
mujer, Estella (navarra), Editorial Verbo divino, pp. 21-54.
— (2000): Filosofía, género y pensamiento crítico. Valladolid, Universidad de Va-
lladolid, servicio de Publicaciones.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible. Madrid, Cátedra, Colección
Feminismos.
11. Utopías feministas: las dualidades rotas
Ángela SIERRA GONZÁLEZ
Universidad de La Laguna
E
s un lugar común decir que vivimos «en una sociedad post-utópica», así que
reflexionar sobre el carácter utópico de ciertos discursos feministas parece
un contrasentido, habida cuenta de que la reflexión filosófica últimamente
más que versar sobre la utopía, lo ha hecho sobre la distopía.1 De hecho, los análisis
contemporáneos de las utopías giran sobre la idea de que, con independencia de la
bondad de sus propósitos, toda utopía desemboca en una distopía. Sin embargo,
la reaparición en las últimas décadas de paradigmas utópicos, representativos de
una ética ecológica, como instrumento de creación de un orden social que hace po-
sible un «buen vivir» y una «sociedad buena» en conexión con la naturaleza con-
fieren cierto interés a la cuestión. Particularmente, tienen interés ciertos relatos de
mujeres, como sucede con las visiones utópicas de Marge Piercy2 y de Ursula K. Le
1
La utopía del siglo XX ha sido fundamentalmente negativa. Se la ha llamado contrautopía, antiu-
topía o distopía, distintos nombres para referirse a lo mismo. La distopía es una manera figurada de
no creer en un futuro mejor. Como tales, se han de considerar El talón de hierro (1907) de Jack Lon-
don, Nosotros (1920) de Yevgeni Ivánovich Zamiatin, Un mundo feliz (1932) de Aldous Huxley, 1984
(1949) de H. G. Orwell, La naranja mecánica (1962) de Anthony Burgess, Incordie a Jack Barron
(1969) de Norman Spinrad, Congreso Futurología (1971) de Stanislav Lem o La carretera (2006) de
Cormac McCarthy, La posibilidad de una isla (2005) de Michel Houellebecq, Tokio ya no nos quiere
(2008) de Ray Loriga, entre otras. Estas ficciones tienen en común un carácter pesimista. El futuro de
la sociedad aparece marcado por el exterminio violento, el desastre ecológico, la destrucción de cul-
turas, el consumismo devastador, en definitiva, la pérdida de los valores morales.
2
Marge Piercy, nacida en Detroit (Michigan), ha publicado varias novelas representativas de pa-
radigmas utópicos, tales como Él, Ella y Ello (1991), La mujer al borde del tiempo (1976). En Él, Ella
y Ello describe un mundo arruinado y un medio ambiente dominado por extensas y destructivas me-
galópolis. Ha participado en algunas de las principales batallas progresistas de nuestro tiempo, como
la guerra contra Vietnam y el movimiento de mujeres. Más recientemente ha participado, activamente,
en la resistencia a las guerras en Irak y Afganistán libradas por Estados Unidos.
188 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
3
Ursula K. Le Guin, nacida en Berkeley (California) el 21 de octubre de 1929, ha publicado fun-
damentalmente obras de ciencia ficción. Sus obras más celebradas han sido La mano izquierda de la
oscuridad (1969) y Los desposeídos: una utopía ambigua (1974).
4
Para algunos, pueden calificarse de utopías las del mundo antiguo como la de Hipodamo de Mi-
leto, que Aristóteles transmite en el libro II de la Política, y la República de Platón. Tal vez también
las Leyes y la narración de la Atlántida en el Timeo y en el Critias. En sentido estricto, la utopía tiene
una fecha precisa de nacimiento, 1516, y un padre, Tomás Moro. Él descubrió la tierra de utopía, y
su libro fue el primero en denominarla y describirla como un lugar más allá de los límites de lo real.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 189
5
Manuel, Frank E. (1982): Utopías y pensamiento utópico. Espasa Calpe, Madrid, p. 104.
6
Los individuos han sido víctimas de grandes proyectos colectivos que han violado sus derechos
individuales apelando a futuros beneficios colectivos.
7
Platón: República, IV.
190 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
utopías y que ha permitido a toda una corriente de pensamiento liberal una ca-
racterización indiscriminada de la utopía como una amenaza para la democracia.
Es decir, presentan a la utopía como expresión de una sociedad totalitaria,8 en la
medida que está inspirada, a su juicio, en principios universalistas, que ignoran
los «particularismos» sociales. La idea de un concepto de «bien común» general
es considerada por algunos teóricos liberales como contraria al pluralismo. Desde
su punto de vista, tanto la justicia, como el reconocimiento de bienes sociales y
virtudes no es posible sin la previa posesión de una idea del bien, pero esta no
puede universalizarse,9 pues, el conjunto de la sociedad no tiene la misma idea
de bien. Un caso de invalidación del universalismo lo constituye el particularismo
culturalista10 y el comunitarismo.11 Pero no son los únicos. Para algunos sujetos
colectivos o «grupos de interés»12 de las sociedades occidentales no está ni si-
quiera claro que, en el seno de las estructuras democráticas, exista una organiza-
ción social compatible con todas y cada una de las culturas y sus pueblos, menos
aún con un paradigma social construido en torno a un concepto único de «bien
común», así que un paradigma social fundamentado en un concepto universalista
de «bien común» sería atentatorio para las libertades, a juicio de sus críticos más
representativos, como Popper,13 Hayek,14 Talmon,15 Cioran16 y Berneri,17 entre
otros. En términos generales, para estos, la libertad individual no puede conci-
liarse con la supremacía de un solo objetivo al que toda la sociedad se subordine
de forma permanente.
8
Ciertas tendencias del liberalismo vinculan el socialismo utópico con las formas del autoritarismo
y, más precisamente, con el fascismo —socialismo y fascismo son agrupados en una misma categoría.
9
La idea de bien únicamente se genera e internaliza en la convivencia comunitaria, por lo tanto
depende de los valores de la comunidad de pertenencia.
10
El particularismo multiculturalista reivindica la bandera de las minorías dentro del estado mul-
ticultural y exige para ellas reconocimientos grupales o étnicos —o, aún discriminaciones positivas-
bajo el argumento, a menudo atendible, que de no ser concedidos, esa omisión podría llevar a la de-
saparición de las culturas minoritarias, absorbidas por la hegemonía de la cultura dominante.
11
La crítica comunitarista, emblematizada por figuras como Alasdair McIntyre, Michael Sandel
o Charles Taylor, reivindica expresamente los valores del particularismo y ataca, una vez más, los fun-
damentos básicos del universalismo.
12
Existen varias definiciones relativas al concepto de «Grupos de Interés» o «Stakeholders» (tam-
bién llamados «partes interesadas»), pero todas tienen en común el tratarse de aquellas personas o
colectivos que se organizan en defensa de sus intereses propios que pueden verse afectados, de forma
directa o indirecta, por las actividades o decisiones del Estado y de las instituciones.
13
Popper, Kart (1945): The Open Society and Its Enemies, Routledge, London.
14
Hayek, Friedrich (1944): The Road to Serfdom, Routledge Press, University of Chicago, London.
15
Talmon, Jacob (1955): The Origens of Totalitarian Democracy, Secker and Warburg, London.
16
Cioran, Emil (1987): Histoire et Utopie, Gallimard, Paris.
17
Berneri, Marie Louise (1939-1948): Viaje a través de la utopía: http://kclibertaria.comyr.com/lpdf/l200.pdf
(consultado el 24 de enero de 2014).
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 191
En este contexto, habría que señalar como una característica específica de la so-
ciedad contemporánea la constante demanda por la diferencia de individuos y so-
ciedades y la invalidación de un universalismo, formal y abstracto. En todo caso,
parece, si no imposible, al menos extremadamente difícil pensar que pueda existir
un solo y único mundo que sea el mejor para todos los seres humanos, sin distin-
ción. Y me inclino por la idea de que no puede existir un solo modelo social capaz
de generar «el mejor de los mundos posibles». Si supusiéramos que hay una clase
de realidad que es la mejor para todos, sobrevendría otro problema: a saber, el de
decidir qué criterio se aplica para saber que es la mejor.
En este contexto, la cuestión fundamental es determinar si las teorías feministas,
en su dimensión teórica y como guías de acción, tienen encaje en el concepto de
utopía, aún siguiendo la concepción extensiva de utopía de Frank E. Manuel. Así,
pues, ¿dónde ubicaríamos las utopías feministas? ¿En el discurso político, en la no-
vela, en el paradigma futurista? ¿Hay algunos de estos modelos de utopía que de-
bamos excluir cuando se piensa en términos de teoría feminista? ¿Se han creado
otros modelos? La complejidad de la cuestión obliga a establecer algunas distin-
ciones para poder dilucidar en qué medida se sostiene la dimensión utópica de las
teorías de género. Pero, en particular, en qué medida novelas de ciencia ficción
como las de Marge Piercy y Ursula K. Le Guin constituyen utopías, en sentido pro-
pio. Al respecto Marge Piercy señala algunas cuestiones a tener en cuenta, Así, dice
«Básicamente, las utopías de las mujeres se preocupan mucho con superar la sole-
dad, porque, ¿qué es la utopía? La utopía es aquello que no tienes. Son las fantasías
sobre lo que nos falta y lo que le falta a la sociedad».18
Para empezar a practicar estas distinciones, un paso previo es abordar las caracte-
rísticas de la utopía. Esta suele ser la descripción de una sociedad tan disímil de la
realidad presente que, por contraste en relación a la misma, se vuelve casi inimagi-
nable. O, mejor aún, en tanto discurso, la utopía encierra, a veces, una dimensión
crítica, subversiva y, otras, una visionaria o constructiva, que son, a menudo, inter-
dependientes. Dicho de otra manera, la utopía se convierte en la posibilidad de ver
los males presentes y poder cambiarlos de acuerdo a un paradigma que se propone
como modelo a imitar, mediante la acción social, porque entre lo verdaderamente
realizable y lo imposible existe —en principio— un margen intermedio de práctica
política. Una de las características tradicionales de los proyectos de emancipación
18
Piercy, Marge: entrevista grabada en un vídeo de O. Ressler, en Cape Cod, EE UU, con una du-
ración de 24 min., 2003, traducción: MediaLabMadrid, Centro Cultural Conde Duque, Madrid.
192 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
19
Cada época ha tenido sus propios modelos de utopía que mantienen la promesa de la perfecti-
bilidad social. La relación con la realidad y con la época proviene del hecho de que la utopía es una
alternativa del poder existente. Pero, también, puede ser una alternativa al poder o una forma alter-
nativa de poder.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 193
LAS TEORÍAS FEMINISTAS COMO DISCURSO POLÍTICO Y SU RELACIÓN CON LOS PARA-
DIGMAS UTÓPICOS
20
En 1968 comenzará la denominada «tercera ola feminista». Las obras de cabecera de este período
serán Política Sexual de Kate Millet (hay varias traducciones castellanas, la usada en el presente trabajo
es la realizada por la Editorial Cátedra, Valencia, 2010, y Dialéctica del Sexo de Sulamith Firestone
(edición de la Editorial Kairós, Barcelona, 1976). En los años sesenta comienza el feminismo deno-
minado «radical» que se centra en su análisis de las relaciones entre mujeres y hombres, dentro del
nicho político que fue la izquierda contracultural sesentaiochista. Fue una época en la que feministas
como Shulamith Firestone pidieron el aborto y la libertad de información anticonceptiva como formas
de control de sus propios cuerpos por parte de las mujeres.
194 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
21
Los movimientos de izquierda entendieron que los «problemas de la mujer» se solucionarían
automáticamente con el fin del sistema capitalista.
22
La Revolución francesa, al igual que otras revoluciones, marcaba como objetivo primordial la
consecución de la igualdad jurídica y de las libertades y de los derechos políticos, sin embargo, hacia
1794 se prohibió explícitamente la presencia de las mujeres en cualquier actividad política. De manera
que la consecución de la igualdad de derechos entre los sexos ha sido el histórico frente de batalla de
los discursos feministas desde sus orígenes ilustrados. Precisamente, una de las características de la
crítica feminista al discurso de la igualdad ilustrada consistió en demostrar su contenido de desigual-
dad y exclusión, en la medida en que las mujeres no estaban incluidas en los derechos básicos de ciu-
dadanía reconocidos a los hombres, tales como el derecho de ser elegibles y elegir. El frente de la
igualdad de derechos fue abierto al discurso feminista, dado que el discurso ilustrado era un discurso
universalista e incluyente pero se excluía como sujetos de pleno derecho a las mujeres. Por ello, los
argumentos feministas apelaron a la universalidad del principio de igualdad para reclamar los derechos
de ciudadanía desde una oposición moral a la dominación masculina.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 195
23
El concepto de diferencia ha sido reivindicado para definir una estrategia de liberación de las
mujeres arraigada en su identidad histórica y social. Es un cambio significativo dado que lo femenino
se había siempre entendido como negativo e inferior. La idea básica es señalar que diferencia no sig-
nifica desigualdad, subrayando que lo contrario de la igualdad no es la diferencia, sino la desigualdad.
Ello no significa que el feminismo de la diferencia haya reivindicado la desigualdad respecto de los
derechos, sino una igualdad que atienda a la diferencia.
24
De este proceder resulta ilustrativo el pensamiento de Alessandra Bocchetti cuando afirma que
hay que «pensarse a sí misma a través de la propia experiencia, la propia historia, no medirse con el
hombre y su razón y su historia para encontrar una medida de sí» Bocchetti, 1995: 237.
196 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
observan las huellas de las teorías feministas como ámbitos de producción simbólica
que cuestionan no solo prácticas discursivas, sino también imágenes y representacio-
nes referidas a mujeres para proponer otras nuevas. En muchos sentidos, las teorías
feministas producen representaciones que contribuyen a modificar el orden de sen-
tido de lo femenino transformando las categorías mediante las cuales este es percibido.
25
Aristófanes, fue un dramaturgo griego que vivió entre el 444 y el 385 a. C. Nació en Atenas y
fue el comediógrafo más significativo de Grecia. Rivalizó en su género con Eurípides, el gran trágico.
Fue un conservador. Estuvo en contra de la sofística y del propio Sócrates. Su oposición a los cambios
se manifiesta en Las Nubes, donde Sócrates es ridiculizado, como representante radical de las nuevas
corrientes filosóficas.
26
En la polis, los ciudadanos tenía los mismos derechos, pero estaban excluidos de ellos, las mu-
jeres, los esclavos y los niños. Las mujeres no tenían derechos civiles, pero participaban en algunos
cultos religiosos. La mujer se reducía al ámbito del oikos, la casa, y el hombre tenía a su cargo los
asuntos de la polis, lo común.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 197
27
La protagonista de Lisístrata es la primera heroína femenina del teatro de Aristófanes, que imita
en la comedia a Eurípides. Este había situado mujeres como protagonistas en el centro de sus tragedias.
28
La obra trata sobre un grupo de mujeres encabezado por Praxágora, que ha decidido que las
mujeres deben convencer a los hombres para que les cedan el control de Atenas, pues ellas podrán
gobernarla mejor que como lo han hecho ellos. Las mujeres, disfrazadas de hombres, se cuelan en la
asamblea y votan la medida, convenciendo a algunos hombres para que voten por ella debido a que
es la única cosa que no han probado aún.
198 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
son radicales los cambios representados en la Asamblea de las mujeres, pues cuando
estas toman el poder,29 se da un cambio total del gobierno y de la sociedad. Pero la
trama de las dos comedias no es la expresión de un proto-feminismo por parte de
su autor, sino que expresa su convicción acerca de la degradación del gobierno de
los hombres, en esta época de caos político y social ocasionado por la guerra del
Peloponeso.30
Desde esta mirada masculina, es obvio que si la pacificación social es una de las
características del cambio que las mujeres representarían en el poder, también hay
que señalar el hecho de que todas las utopías, en cuanto sociedades ideales, suponen
una estructuración social e institucional que aleje toda posibilidad de conflicto entre
los sujetos colectivos que la configuran, de modo que la caracterización de una uto-
pía como feminista implicaría proponer un modelo distinto de «vida buena», ade-
más de la universalización de la paz. Pero hay que señalar que uno de los aspectos
más significativos de La mano izquierda de la oscuridad consiste en la afirmación
más provocadora de Le Guin: a su juicio, un mundo en el que no existiera la dua-
lidad implícita en las divisiones de género no tendría una historia de guerra. Les
faltaría el sentido del nosotros contra ellos, componente básico de todo proceso
bélico.
29
Aparentemente, la posición de Aristófanes se asemeja —salvadas las distancias— a la suposición,
sostenida por algunas feministas, de que la sociedad mejoraría solo con el acceso de las mujeres a la
esfera pública. ¿Por qué mejoraría? Porque algunas feministas atribuyen a las mujeres una superiori-
dad moral intrínseca respecto de los hombres. Pero la cuestión no es esa, sino que la ausencia de las
mujeres de la vida pública o su infrarrepresentación es paradigmática de un déficit democrático.
30
La guerra del Peloponeso (431 a 401 a. C.) fue un conflicto bélico en el que se involucraron,
por una parte, Atenas al frente de la confederación de Delos y, por otra, la Liga del Peloponeso lide-
rada por Esparta. La guerra devastó extensos territorios y destrozó ciudades enteras. Fue el fin de la
época dorada de Atenas. Aristófanes gestó gran parte de su obra en el contexto de esta guerra y trató
de poner en evidencia las consecuencias de la misma para la sociedad. De hecho, la guerra del Pelo-
poneso supuso para Atenas no solo el inicio de su decadencia como potencia hegemónica en el mar
Egeo (y, en cierto modo, en el Mediterráneo), sino también el inicio de una serie de procesos de de-
gradación en el terreno político, social y económico que el tiempo demostró irreversibles.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 199
de sociedad ideal? No es fácil responder a estas preguntas. Por ello se debe empezar,
en primer lugar, por responder a otra: ¿a qué se podría llamar utopías feministas?
Podrían llamarse «utopías feministas» a la constitución de un modelo propio y
autónomo de «vida buena» formulado por mujeres, pero no necesariamente por y
para mujeres. El carácter utópico del feminismo también abordaría una dimensión
transformadora de la realidad. Así, la ruptura de los estereotipos generaría por sí
misma un nuevo orden pero, asimismo, se cambiaría el orden por una nueva re-
conceptualización de los territorios y de los espacios de acción. Esto es precisamente
lo que caracteriza a la utopía feminista. De este modo, la dicotomía público y pri-
vado ha sido desarticulada por el discurso feminista en el último tercio del siglo
XX, mediante la invención simbólica «lo personal es político», que no se limitó a
invertir la vieja dicotomía de lo «privado es público»,31 sino que realiza una re-va-
luación de cada uno de esos territorios y su significado. Ahí reside, precisamente,
su potencial de cambio, pero, también, en la aparición de una crítica explícita al
carácter conflictivo y destructivo de ciertas formas de progreso, cuyos efectos se
manifiestan en la cotidianeidad social y en la naturaleza.
Precisamente, uno de los aspectos históricamente característicos de las utopías
consiste en trascender el topos, viajar al otro lado del entorno, cruzar el espejo de
lo dado. La ruptura de la «territorialidad» existente es una de las características del
pensamiento utópico y la teoría filosófica de género se caracteriza por cuestionar
el lugar y el no-lugar de los seres humanos. A veces la utopía ha cristalizado como
una ensoñación que se ubica en un espacio distinto, en un territorio que no existe.
De hecho, utopía (outopia) significa lugar que no existe, utopía es un no-lugar, pero
ese no-lugar puede ser también un buen lugar (eutopia). Pero la utopía no es un
problema de deslocalización, sino de transformación. Si bien se caracteriza el pen-
samiento utópico por su extraterritorialidad, desde ese ningún lugar puede mirarse
de otro modo a nuestra realidad que súbitamente parece extraña e injusta. El espa-
cio en el cual se dan en el sistema patriarcal las relaciones de género son espacios
estereotipados. Los cambios que introduce el discurso feminista configuran un lugar
que todavía es un no-lugar, pues las fronteras entre lo público y lo privado presentan
la densidad de las resistencias opuestas a los peligros de crear un nuevo orden o un
tiempo histórico que trastoque la continuidad de la dominación. ¿Por qué sigue
siendo un no-lugar? Cambiar o transformar ese lugar supone transformaciones pro-
fundas que tienen que ver con la identidad personal, elecciones sexuales, ordena-
miento de la familia, costumbres de crianza de los niños y niñas o patrones
educativos. También en las utopías feministas se dan las mismas circunstancias que
31
Lo personal no es, sin embargo, inmediatamente político: en cada circunstancia histórica es ne-
cesario encontrar las mediaciones que hagan, de lo personal, algo político.
200 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
en otras del socialismo utópico y del socialismo romántico, la sociedad que propo-
nen está aquí, si bien no ahora.
Pero ante ese potencial de cambio universalmente reconocido cabe hacerse una
doble pregunta: ¿han sido los diversos discursos feministas,32 discursos políticos
transformadores, construidos desde la «tradición de los oprimidos»,33 desde las víc-
timas que padecen los efectos negativos de la modernidad y los sistemas de domi-
nación? Y, si esto es así, ¿ha habido en su seno una tendencia utópica manifiesta?
Para empezar, si se entiende el discurso político como aquel que está producido
por aparatos de instituciones especializadas relacionadas con el poder, obviamente
habría que descartarlo. Pero si, por el contrario, se le entiende como una práctica
política de carácter estratégico, es decir, definidora de propósitos, medios y anta-
gonistas, habría que pensarlo un poco más, puesto que el feminismo como discurso
político se ha articulado en torno a la oposición dialéctica en el seno del sistema
patriarcal entre los hombres (del lado de la dominación) y las mujeres (del lado de
las víctimas). Las vías de cambio no son coincidentes, en la medida en que, también,
en ciertos modelos ideales de sociedad se sigue perpetuando el yugo jurídico y dis-
cursivo del patriarcado y, por tanto, la continuidad del poder masculino. De hecho,
las utopías históricamente más significativas no tienen como finalidad proponer un
mundo de transformación del sistema de género, aunque no necesariamente tengan
la pretensión de reafirmarlo.
La orientación hacia la consecución de la emancipación de las mujeres, como
valor social, caracteriza al feminismo como discurso político, a la vez que configura
a este, como la expresión de un compromiso que se asume ante una experiencia de
dominio y de sumisión. Pero, ¿es esto suficiente para caracterizar este discurso como
utópico? ¿Se inscribiría dentro del mismo marco conceptual que define a los para-
digmas utópicos? ¿Remite a las estructuras fundamentales del imaginario social y
cultural generado por el género político-literario denominado utopías?
La reversión de esta situación de sumisión, como objetivo político, a veces in-
voluntariamente, se disfraza y se fragmenta en una pluralidad representada por as-
pectos significativos y parciales de la vida cotidiana. Los modelos de sociedad ideal
32
Dada la multiplicidad de los enfoques feministas, el discurso se puede definir como una estruc-
tura representativa de una forma de interacción a la que otorga un sentido distintivo. Tanto el discurso
hablado como el discurso escrito (texto) se considera, hoy en día, como una forma de interacción
contextualmente situada.
33
Foucault, Michael (2002): «Clase de 28 de enero de 1976», p. 68. En este texto Foucault habla
de la «tradición del oprimido» un concepto también usado por Walter Benjamin.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 201
A MANERA DE CONCLUSIÓN
34
El cambio del sujeto de emancipación define nuevos territorios del discurso feminista y enfrenta
los peligros de las hegemonías. Por ello, desde el llamado Tercer Mundo se ha criticado el paradigma
de emancipación feminista tradicional del Primer Mundo. La mujer blanca, protestante, de clase
media, de cultura occidental y heterosexual es puesta en cuestión como modelo por las mujeres negras,
lesbianas, pobres, musulmanas o de otras culturas, religiones y áreas geográficas.
202 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
En los últimos años, con las mujeres bajo tanto ataque y esforzándose por mantener los
avances que hemos conseguido, no ha habido suficiente energía para crear utopías.
Ahora bien, cuando me enfrenté a «Él, ella y ello», no se trataba una novela de tipo «si
hubiera», no es una novela utópica, es más del tipo de «como esto siga así...35
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORÓS PUENTE, Celia (1990): Mujer; participación, cultura política y Estado, Bue-
nos Aires, Ediciones de la Flor.
ARISTÓFANES (2013): Comedias. Volumen III, Madrid, Gredos.
BOCCHETTI, Alexandra (1995): Lo que quiere una mujer: historia, política, teoría.
Escritos 1981-1995. Valencia, Cátedra.
BONDI, Liz (1996): «Ubicar las políticas de la identidad», Debate feminista, nº 14,
octubre.
DIETZ, Mary G. (1990): «El contexto es lo que cuenta. Feminismo y teorías de la
ciudadanía», Debate feminista, nº 1, marzo.
FIRESTONE, Sulamith (1976): Dialéctica del Sexo, Barcelona, Editorial Kairós.
35
Piercy, Marge: entrevista grabada en un vídeo de O. Ressler, en Cape Cod, EE UU, con una du-
ración de 24 min., 2003, traducción: MediaLabMadrid, Centro Cultural Conde Duque, Madrid.
UTOPÍAS FEMINISTAS: LAS DUALIDADES ROTAS 203
L
os modos de habitar humanos nos enfrentan a lógicas de dominio y convi-
vencia. Como indica Val Plumwood (1996), las mismas se descubren a partir
de la dinámica de sus interacciones. En las líneas que siguen indagaré en este
complejo cruce en la Patagonia argentina un espacio que oficialmente se ha restrin-
gido al sitio de naturaleza a dominar. Alicia Puleo (2011) reconoce este sitio de
pavor con que la Modernidad presenta la naturaleza indómita, evidenciando en la
reflexión ecofeminista el área de emancipación como para indagar el espacio vin-
cular en una clave más igualitaria.
En el espacio que nos ocupa, la diversidad de la geografía y la interpretación
cambiante del paisaje, han operado como disciplinadores sociales (Núñez y Núñez,
2012; Conti y Núñez, 2012). Así, diferentes políticas públicas han invisibilizado
muchas de las prácticas que, desde otra perspectiva, pueden verse como la base de
una alternativa posible. La construcción territorial de la Patagonia argentina, atra-
vesada por valoraciones diferenciadas del paisaje, abre interrogantes sobre los fun-
damentos y la materialidad de las políticas públicas, llevando a la pregunta por la
sostenibilidad hacia la revisión de la historia del entramado de valores que se pro-
yectaron en el territorio, y en vinculación directa con sus habitantes.
La historia escrita sobre la Patagonia parece circunscribirse a una épica que vin-
cula al paisaje con la tragedia. Por el contrario, las memorias orales remiten a una
historia vivida, con sitios para afectos, alegrías y logros, que reconocen en el paisaje
un potencial de emancipación. De allí que citemos relatos y concepciones de los ha-
bitantes de ese espacio, recuperados a través de una serie de treinta encuentros,
realizados entre 2010 y 2013, con diferentes herramientas (talleres, encuestas, pre-
sentaciones de divulgación, cursos).1 Las voces marcaron un fuerte contraste, no
1
Los proyectos fueron: «Capacitación en Gestión Pública y Organizacional». Área Extensión
Universitaria. UNRN. Lugar de dictado Comallo, Río Negro. 2010. Sierra Colorada. Río Negro. 2011.
206 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
solo en cuanto a la interpretación del paisaje, sino también respecto del relato del
espacio promovido desde las esferas oficiales y los documentos públicos. El análisis
de esta diferencia, entre lo planificado y lo vivido, nos permitirá reflexionar sobre
las dinámicas de integración social y desarrollo sostenible, debatiendo prácticas y
valores productivos del espacio. Evidenciando que hay sentidos profundos que no
terminan de coordinarse, en cuanto al espacio, sus habitantes y sus capacidades.
LA TERRITORIALIZACIÓN DE PATAGONIA
LA HUMANIDAD DE LA PATAGONIA
2
Esta dicotomía fue explicitada desde 1845 por el influyente pensador Domingo Sarmiento en su
texto Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga. Aspecto físico, costumbres y ámbitos
de la República Argentina, donde sostiene que por el mero hecho de vivir en el desierto la población
evoluciona en las antípodas del progreso. Los trabajos de Puleo citados, así como las reflexiones eco-
feministas y decoloniales cuya cita excede los objetivos de este trabajo, abundan en la crítica a esta
perspectiva que tan fuertemente se arraigó en este escenario latinoamericano.
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 209
Frente a este relato, que con matices pervive hasta la actualidad, la experiencia de
subsistencia y comercio de pequeños/as productores de la región de la estepa rio-
negrina, permite poner en entredicho el determinismo que se desprende del relato
oficial. Es aquí donde la pregunta por la sostenibilidad nos lleva a la articulación
de niveles. La historia del paisaje mencionada resulta altamente disciplinadora y,
de hecho, se mantiene en propuestas oficiales. Pero la vivencia de ese paisaje da
cuenta de un relato diferente. Como se mencionaba al principio, parte de las fuentes
que se han revisado para este trabajo son las memorias y valoraciones de varios de
los/as pequeños/as productores/as.
En los relatos, el punto de inicio de los pueblos puso en evidencia la tensión en
las memorias como representativa de las tensiones sobre los relatos de la tierra. Uno
de los registros más emblemáticos fue el de uno de los pueblos de la región rione-
grina, el municipio de Comallo. Porque a pesar de reconocerse una fecha de inicio,
el 30 de marzo de 1918, vinculado a los galpones que se establecieron por un tren
que llegaría un par de lustros más adelante, las referencias del pasado llevan a pensar
que no hay un registro específico del inicio. Las historias remiten a un tiempo an-
terior a la específica fundación del poblado. Las fechas no parecen ser tan impor-
tantes en la memoria local, se recuerda más desde la producción, el intercambio y
el modo en que las personas se movían, donde los elementos del pasado registran
antecedentes mucho más largos que una fecha. Los datos oficiales son específicos,
además de la fundación reconocida, el ejido municipal se determinó por el Decreto
Nacional N° 92.659, de 19 de octubre de 1936. Comallo forma parte de la línea de
PATAGONIA ARGENTINA, RELATOS SOBRE NATURALEZA Y HUMANIDAD 213
pueblos que se vinculan por el tren actualmente conocido como «tren patagónico».
La estación de Comallo se crea como parte de este ramal de principios del 30, por
ello no sorprende que el Estado Nacional decrete la creación del pueblo en 1936.
Pero el pueblo, o su memoria, no comienza aquí, sino que las memorias tomadas
en los talleres registran poblamientos previos, en «Comallo abajo», donde estaban
varias familias antes, que después se mudan por el tren, pero que igualmente está
cerca. Desde esta memoria podemos pensar que los cambios que se introducen des-
pués de la institucionalización son muy pocos. Los primeros recuerdos remiten a
un camino «Se traían piñones de la cordillera, ruta que venía por laguna blanca y
se hacían trueques» (cita taller «Memorias de Actividades y Desarrollo de Alterna-
tivas»). El anclaje temporal se pierde, y la memoria apela al recuerdo de varias ge-
neraciones, de abuelas que contaron a las abuelas. En el principio del pueblo está
el movimiento y el intercambio, pero esto no aparece en la historia, sino en el re-
cuerdo doméstico, en lo que se cuenta en la cocina, en la memoria femenina que
refiere a todas las estrategias que hicieron posible la subsistencia.
Los principales recuerdos recuperados hablan de historias de producciones, de
intercambios, de vínculos familiares y afectivos de larga data. Es el pasado de una
tierra ya poblada a donde llega el Estado Nacional en los papeles más que en las
prácticas. «Antes había carretas, todo se movía con bueyes» «La lana se veía de
lejos en las carretas», «había carretas por todo el campo». «La comida era lo que
se producía en el campo, con los animales y las huertas, en verano había más huevos,
había más agua, papas. También se cultivaba trigo y alfalfa» (cita taller «Memorias
de Actividades y Desarrollo de Alternativas»). En el antes están las acciones, las di-
námicas, las vinculaciones; en el ahora, la institucionalidad que cierra la posibilidad
a ese «antes».
Antes, incluso antes de la llegada del ferrocarril, Comallo ya existía. Había po-
bladores en Comallo abajo. La fundación del pueblo, de hecho, se refiere a estos
pobladores, las familias inmigrantes o pertenecientes a familias mapuche que, tras
la campaña del desierto, cubrieron la identidad étnica por una menos perseguida,
la de paisanos. Sea cual fuera el origen, estas familias se reconocen asentadas en lo
que hoy se denomina «Comallo abajo», en un tiempo antes del siglo XX.
Los textos de historia sobre la región no se han ocupado del pueblo, pero es
claro que antes de las citadas campañas militares en la región, este era un punto de
producción de ganado, pastos y alimentos en general. Las memorias de la conquista
registran la zona donde hoy está el pueblo como un centro de abastecimiento de
víveres, con pobladores que figuran como referentes y responsables de obtener su-
ficiente alimento para las fuerzas que llegaban. Esto nos sitúa en un espacio de tem-
pranas producciones, cuyas memorias aparecen en las respuestas actuales, cuando
se reflexiona sobre nuevas posibilidades. El futuro no se inscribe en la incertidum-
bre de una nueva tecnología, sino en la valoración de lo ancestral, que es un modo
214 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
de presentarse con una voz propia, de valorar aquello históricamente ocultado como
«trabajo femenino». «Yo sé todo lo que tengo que saber, a mí, mi mamá ya me en-
señó, yo no necesito que de la universidad me digan qué hacer» nos señaló una pro-
ductora cuando nos presentamos en el Taller.
Las memorias personales recuerdan un pasado con una gran diversidad de ani-
males de granja, se menciona ganado vacuno, yeguarizo, ovino, caprino, además de
las huertas que se añoran. En un territorio presentado como desierto por el Estado,
la memoria de los/as pequeños/as productores/as aparece como «verde» (Conti y
Núñez, 2013). Las memorias, en estas personas, fundamentan en por qué es posible
pensar en actividades sostenibles que permitan postular la producción a escala do-
méstica, porque «antes» se hacía. Ese pasado folklorizado y lejano, el camino de
los piñones, las huertas, las historias de las abuelas, remite hoy a la concepción de
una producción alternativa, donde resulta legítimo luchar a favor de una comer-
cialización justa, donde humanidad y naturaleza se presentan con voz propia. Las
artesanías, la cría de animales, la comercialización inter-regional, hasta ahora casi
inexistente por las trabas de las normativas nacionales de sanidad, se están revisando
a partir de considerar estas actividades, históricamente femeninas, en una línea de
acciones hacia la autonomía, donde falta mucho por recorrer pero que, desde su
inicio, pone en evidencia el problema estructural de un relato de dominio que se
tomó como destino.
REFLEXIONES FINALES
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
L
a planificación de las ciudades fue un tema de extremo interés en la antigüe-
dad y, como se sabe, no ha sido sino hasta tiempos relativamente recientes
en que el aumento poblacional ha desbordado a la mayoría de ellas, cons-
truidas y ampliadas durante los dos últimos siglos.1 El ejemplo de México Df o de
nuestras propias ciudades, especialmente Buenos Aires, La Plata, rosario y Cór-
doba, son más que obvios. La noción de los «límites de la ciudad» (en los múltiples
sentidos de «límites») se nos escapan y parece una actividad tan necesaria como ur-
gente comenzar de nuevo a reflexionar filosóficamente sobre al menos dos cuestio-
nes: la primera la plantea Aristóteles, en pocas líneas, en el epígrafe de esta
introducción; se trata de i) la relación forma de vida/ciudad en la que vivimos. o
dicho en otros términos, no podemos volver a pensar la ciudad si no examinamos
al mismo tiempo nuestra forma «occidental» y «moderna» de vida. La segunda
cuestión se vincula con ii) el subtexto jerárquico dominador/dominado, que ha
hecho desde el dictum de francis Bacon en más, a la naturaleza «objeto» del do-
minio del ser humano, entendido fundamentalmente como «racional». Esto último
implica dos maniobras: ii.a) mostrar cómo ese supuesto se comparte con la situación
1
Este trabajo se inscribe en el proyecto La igualdad de género en la cultura de la sostenibilidad:
valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario, Proyecto I+ D dirigido por la Dra. Alicia Puleo
(Universidad de Valladolid - Ministerio de Ciencia e Innovación, España, fEM 2010-15599, período:
2011-2013) y el proyecto Contribuciones para un análisis interdisciplinar de la violencia de sexo-gé-
nero. Estrategias para su abordaje (H.592) dirigido por la Dra. María Luisa femenías (CInIg-IdIHCs,
Universidad nacional de La Plata, Argentina, período 2011-2014).
220 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr
general e histórica de las mujeres como «lo otro» subordinado y, bajo la misma
estructura conceptual, de todo aquello que se constituya como «lo otro» del
varón hegemónico paradigmático. La segunda, ii.b) implica la revisión de la no-
ción de «racionalidad» moderna, considerada mayoritariamente como «razón
instrumental».2
La organización de la vida ha ido —lo queramos o no— separándose poco a
poco de la reflexión sobre la forma de vida en que vivimos, tal como lo alentaba la
filosofía clásica. sin embargo, nuestra propuesta no se ve motivada por la añoranza
de la candidez perdida tras el aumento desmedido de las ciudades. significa sim-
plemente apelar a la filosofía, nuestra disciplina de origen, para analizar, revisar,
meditar y examinar los supuestos que están en la base de la situación actual que
pone en crisis a la ciudad y, sobre todo, a la vida y la salud integral de sus habitantes.
Por tanto, nos vemos impulsadas a dar cuenta de que las condiciones de posibilidad
del pensamiento y, en sentido estricto, de la actividad filosófica, deben estar, más
que en ningún otro período, en estrecha vinculación con el mundo en el que vivi-
mos. Por cierto, no accedemos ni nos vinculamos al mundo como un todo, sino a
través del medio-ambiente o de los medio-ambientes específicos en los que nos mo-
vemos, donde se desarrolla la vida humana y no-humana, gracias a las representa-
ciones que tenemos de ellos.
La contaminación atmosférica, el riesgo hídrico y la vulnerabilidad social, la falta
de espacios verdes silvestres de calidad y en cantidad suficiente para quienes habi-
tamos en las ciudades, o la alarma ante el calentamiento global son algunos de los
desastres naturales socio-ambientales cada vez más difíciles de negar.3 Entendemos
estos «desastres» como el «resultado de acciones humanas; no se trata solo de un
acontecimiento físico, sino de un proceso social, económico y político desencade-
nado por un fenómeno natural» (Herzer citada por Andrade, Lucioni e Iezzi, 2012).
Estos factores se deben incorporar al análisis tradicional ya que el resultado de un
desastre sobre la sociedad depende del grado de vulnerabilidad de esta. En efecto,
ocurre un desastre cuando se «supera la capacidad material para absorber, amorti-
2
Dicho brevemente, vamos a entender «razón instrumental», en sentido amplio, como un modo
de razón que prioriza la utilidad de las acciones y el uso de objetos, siguiendo un esquema medio-fin:
Lo importante es el fin sobre el/los medios para obtenerlo/s. se la suele considerar regida por el criterio
de utilidad y, en general, se la une a la técnica y al progreso. sin embargo entraña un doble peligro: i)
objetiva la realidad; ii) la acepta de modo acrítico como una totalidad definitiva que se impone a los
seres humanos. Cf. Horkheimer, Max (1969): Crítica de la razón instrumental, Buenos Aires, sur.
3
Las apreciaciones que realizamos se fundan en un conjunto de investigaciones e informes
realizados por la facultad de Ingeniería (Ingeniería hidráulica) y la facultad de Humanidades y
Ciencias de la Educación (Especialidad geografía) de La Plata, Argentina, disponibles en
http://www.ing.unlp.edu.ar/sphider/search.php?query=inundaciones&search=1 y en http://re-
dargentinadegeografiafisica.files.wordpress.com/2013/04/02-andrade-lucioni-iezzi_factores-de-
riesgo-hc3addrico.pdf, entre otros, respectivamente. Consultados: 24 y 26 de febrero de 2014.
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 221
Un ProBLEMA UrBAno-AMBIEntAL
4
Permítasenos recordar que en Argentina la lluvia se mide en milímetros de agua caída por unidad
de superficie en términos de metros cuadrados; es decir, que 1 milímetro de agua de lluvia equivale a
1 litro de agua por m².
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 223
2/04/13; La nación 2/04/13, entre otros).5 La noticia se repite con cierta variabili-
dad en los datos, según el perfil general del periódico en cuestión, pero lo cierto es
que «el trágico temporal que azotó la ciudad de La Plata» marcó un valor récord
histórico diario de precipitación superando el anterior del 14 de mayo de 1980,
considerando un período que va de 1956 a 2013 (Habitat y territorio, 25/06/13).
En numerosas jornadas de trabajo realizadas por la Universidad nacional de La
Plata, u otros organismos de investigación, se elevaron Informes a las autoridades
nacionales y provinciales en los que se advertía sobre los riesgos y las zonas poten-
cialmente inundables si el caudal de lluvias superaba las marcas históricas, como
podía preverse que sucedería (Andrade, Plot, et. al., 2003). En tales trabajos se
identifican las relaciones entre los procesos naturales y los procesos sociales de las
inundaciones y se establecen criterios para la construcción de una metodología de
evaluación de riesgo de inundación, teniendo en cuenta un modelo de análisis a
partir de algunos componentes básicos: peligrosidad, exposición, vulnerabilidad e
incertidumbre. A partir de ahí, se proyectaron resultados y se definieron pautas
para establecer niveles de vulnerabilidad. Como parte integral del trabajo, se pre-
sentaron mapas de ocurrencia de inundaciones y se identificaron prioridades de in-
tervención.
En pocas palabras, había información suficiente pero no se la tomó en cuenta
para accionar los recaudos mínimos que hubieran mitigado el desastre. El desastre
fue entonces indicador de la falta de soluciones a problemas preexistentes, por
ejemplo, la pobreza y la vulnerabilidad social como variables externas. Los reclamos
de la población pusieron el acento en la imprevisión, producto de lo que para otros
contextos silvia rivera Cusicanqui denominó el «maldesarrollo», concepto que
también utiliza Vandana shiva (rivera Cusicanqui y Barragán, 2007; shiva, 1998).
Pero lo cierto es que independientemente de la imprevisión gubernamental a
diferentes niveles, la explicación es insuficiente. tomar en cuenta el deterioro am-
biental constituye un factor central en la búsqueda de explicaciones y soluciones a
los problemas que planteamos, porque la inundación del 2 de abril no constituyó
un fenómeno climático aislado; ese mismo día, extensas zonas de Buenos Aires tam-
bién se inundaron. Durante el presente verano, otras áreas del país han padecido
sequías inusuales, perdiéndose más del 70 % de las cosechas; ha habido tormentas
de granizo e incluso tornados en zonas no habituales. En el verano de 2013-2014
también se batió el récord de altas temperaturas y de actividad eléctrica, según es-
tadísticas registradas desde la fundación del servicio Meteorológico nacional), a
5
Imágenes y filmaciones caseras y periodísticas pueden consultarse en youtube: «Inundación en
La Plata 2/04/2013». Dejar constancia de los relatos en primera persona de la experiencia de la inun-
dación excede los objetivos de este trabajo, pero estos constituyen una fuente invalorable de infor-
mación y de visualización del dramatismo del desastre.
224 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr
BUsCAnDo ExPLICACIonEs
nos interesa subrayar que el paradigma explicativo del desastre encubre los ver-
daderos factores que lo produjeron, «culpando» metalépticamente a la tormenta o
a la falta de «desagües» adecuados. si bien lo segundo es cierto, una lluvia de la in-
tensidad de la caída en tan poco tiempo, no se hubiera podido evacuar aún con de-
sagües en buenas condiciones de mantenimiento: el desastre hubiera sido menor
respecto de la pérdida de vidas humanas y no-humanas en general; pero la lluvia
caída hubiera sido igualmente inusual y es precisamente eso lo que debe ser expli-
cado y lo que debe llamar la atención general de la población y de los expertos.
nos interesa señalar que una ideología basada en el género proyecta un conjunto
de categorías sociales qua «naturales» y biológicamente determinadas, que exigen
al «hombre» (= varón), que «domine», «domestique» o «controle» la naturaleza y
que ese esquema encubre u obstaculiza la comprensión más profunda de la causas
reales (shiva, 1998).
Veamos. ¿Qué «causas» no toman en cuenta las explicaciones previas?
los agrotóxicos, una vez depositados en los cultivos, se dispersan llegando a los
acuíferos subterráneos, lagunas, napas, ríos y arroyos, viajando largas distancias
desde su punto de origen (Malpartita, 2001). otro peligro son los emprendi-
mientos inmobiliarios que urbanizan zonas (rezonificación), alterando el valor
catastral original de uso del suelo, favoreciendo desmontes que hubieran sido
ilegales e incumpliendo las leyes de protección con la complicidad de algunos
funcionarios de turno o simplemente por inacción de los organismos públicos
de control.
6
En el original: «In both Western and non-Western cultures, nature was traditionally feminine.
In Latin and the romance languages of medieval and early modern Europe, nature was a feminine
noun, and hence, like the virtues (temperance, wisdom, etc).personified as female. (Latin: natura, -
ae; german: die natur; french: la nature; Italian: la natura; spanish: la natura). the greek word
physis was also feminine». salvo que se indique lo contrario, las traducciones del inglés son nuestras.
ProBLEMátICAs UrBAno-AMBIEntALEs: Un AnáLIsIs DEsDE EL ECofEMInIsMo 229
7
Cf. «Central to the organic theory was the identification of nature, especially the earth, with a
nurturing mother: a kindly beneficent female who provided for the needs of mankind in an ordered,
planned universe. But another opposing image of nature as female is also prevalent: wild and uncon-
trollable nature that could render violence, storms, droughts, and general chaos. Both were identified
with the female sex and were protections of human perception onto to external world».
8
freud habla de una «pulsión de dominio» o «sádica», propia de los varones, sobre la que basa
su posición sobre la imposibilidad de evitar las guerras en su famosa discusión con A. Einstein.
230 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr
CIUDAD Vs. AMBIEntE o CULtUrA Vs. nAtUrALEzA: Dos ConCEPtos VIEJos PArA for-
MAs UrBAnAs nUEVAs
Desde las últimas décadas del siglo pasado, tanto en Buenos Aires como en otras
grandes ciudades del mundo, la expansión urbanística, especialmente la privada,
está generando modificaciones en la configuración de los territorios metropolitanos
(ríos, 2012: 4). El cambio en el régimen de acumulación capitalista, desde el fordista
al flexible, influye el mercado inmobiliario incorporado al financiero. Así, oficinas
corporativas, edificios y hoteles de lujo, urbanizaciones cerradas, proyectos de re-
novación urbana, mega-emprendimientos de diverso tipo, se producen como cual-
quier otro bien financiero. De ese modo, con más fuerza reproducen y legitiman
los dualismos: sociedad vs ambiente, ciudad vs ambiente, cultura vs naturaleza, pro-
greso vs atraso, desarrollo vs estancamiento. Las zonas más buscadas para la reali-
zación de estos mega-emprendimientos suelen ser los bordes de agua (lagunas,
humedales, frentes costeros, ríos):
En momentos de mayor difusión del discurso ambiental (utilizado por distintos grupos
de las sociedades modernas con intereses contrapuestos) y de concientización sobre el
deterioro de ciertos elementos naturales, la asociación verde + agua se ha tornado un
bien escaso y valorado positivamente en los ámbitos urbanos, permitiéndole a los lotes,
predios, departamentos con vista/uso del «preciado elemento líquido», la obtención de
rentas diferenciales. […] Últimamente, el avance de la urbanización sobre áreas próxi-
mas a frentes marítimos, fluviales o lacustres, se ha constituido como una caracterización
por demás difundida. Los emprendimientos residenciales, turísticos o recreacionales,
en los que se entrelazan tierra y agua de ciudades tales como Miami (Estados Unidos),
Dubai (Emiratos árabes Unidos) o Ciudad del Cabo (sudáfrica) son ejemplo de lo an-
terior. Parecería que ese modelo no cesa de reproducirse y expandirse en nuevos lugares
de todo el mundo. (ríos, 2012: 5)
CErrAnDo EL CírCULo
Corregir no es destruir. […] Erosionar las bases ilustradas de la Modernidad sin distin-
ción de sus componentes prepara el terreno al retorno a las cadenas. El sueño de la razón
produce monstruos […] necesitamos una reconceptualización ecofeminista de lo hu-
mano que se haga cargo de la responsabilidad moral que conlleva el nuevo poder tec-
nológico de la especie. Huérfanos de guías providenciales y despojados de coartadas
teológicas, descubrimos nuestra insignificancia en la infinitud del cosmos. En el universo
desencantado de la ciencia, la técnica y la filosofía, solo una mirada empática hacia hu-
manos y no humanos puede rescatarnos del nihilismo. (Puleo, 2011: 433)
tal, ello significó estar del lado de lo animal; es decir, de lo irracional, lo instintivo
y lo emocional. En otras palabras, de lo que puede ser inferiorizado, cosificado,
instrumentalizado y dominado por un ser «racional», entendido como «superior»
(shiva, 1998).
Ese esquema jerárquico subyacente, este subtexto de género, nos lleva a encon-
tramos a principios del siglo xxI con una crisis ecológica a escala mundial producto,
en gran medida, de la razón que ha instrumentalizado y cosificado análogamente
tanto a las mujeres cuanto a la naturaleza. Así, si tradicionalmente solo se evaluó a
las mujeres por su capacidad procreativa, a la naturaleza se la ha visto como un
mero «recurso». Al hacerlo, se destruyó y se dejó fuera de toda consideración moral,
a aquello que no representa ni interesa al varón hegemónico. siguiendo con nuestra
analogía, se dejó fuera de consideración moral a los ecosistemas, la flora, la fauna,
las poblaciones de campesinos y pueblos originarios y las mujeres en general, todos
asimilados bajo esta lógica, a lo «femenino» devaluado; a lo otro por excelencia.
ConCLUsIonEs
paga la sociedad como un todo, al punto de poner en jaque a los mismos sistemas
que son la base material de su existencia. Emprendimientos de ese tipo se realizan
sin ningún tipo de análisis previo y confiable de impacto ambiental (ronco, 2009).
si bien cuando son a gran escala requieren de la previa realización de un «Estudio
de Impacto Ambiental» (EIA), generalmente son las mismas empresas las que los
llevan a cabo, minimizando el impacto a partir de la manipulación de los datos o
interviniendo los parámetros a nivel local. se trata de estudios sin rigor científico
que, denunciados por los grupos ecologistas, igual se aceptan.
no se miden los riesgos de las distintas especies y de las comunidades humanas;
ambos se deteriorarán a corto, mediano o largo plazo, terminando por destruir la
misma vida que dicen proteger.
El hombre occidental, que en general se piensa a sí mismo separado de la natu-
raleza, capaz de dominarla con sus fuerzas y redirigirla, erige la fantasía tecnócrata
de su potencia ilimitada. sin embargo, ya se muestran las fisuras de este modelo,
cuyas consecuencias estamos sufriendo a un ritmo que se acelera constantemente:
uno de los ejemplos más palpables es el cambio climático, que da por resultado si-
tuaciones catastróficas como la que hemos señalado al comienzo de este trabajo.
En esa dimensión a escala global, más bombas hidráulicas son un paliativo, no un
principio de solución.
se trata entonces, de replantearnos la relación entre nuestra forma de vida con
las ciudades en las que vivimos y sus relaciones con los ecosistemas en las que están
emplazadas. no se trata de modernidad o atraso; se trata de ecología o ecocidio.
Para ver cómo se ha producido la relación jerárquica según la cual la ciudad pre-
tende someter a su entorno, es preciso desentrañar el subtexto jerárquico domina-
dor/dominado que ha hecho de la naturaleza el «objeto» del dominio del ser
humano. Esto último implicó mostrar que ese supuesto es afín a la situación general
e histórica de las mujeres como «lo otro» inferiorizado y, bajo la misma estructura
conceptual, de todo aquello que se constituya como «lo otro» del varón hegemónico
paradigmático. Por eso, nos interesó subrayar también que la modernidad que se
impone parcializa la razón (como lo hace con la naturaleza), entendiéndola signifi-
cativamente en términos de «razón instrumental».
Paradójicamente, si bien hay excepciones, en general, la mayoría de las ciudades
se han desarrollado y se siguen desarrollando sin una planificación «racional» ur-
bano-ambiental. Por el contrario, siguen la lógica del mercado inmobiliario, mer-
cantilizando los espacios de modo acelerado bajo la ilusión de la infinitud de
«recursos». En consecuencia, la acción antrópica está a la vista: inundaciones, ele-
vación de la temperatura, falta de espacios verdes silvestres, degradación ambiental
y contaminación en general. Urge, por ende, poner en práctica medidas que revier-
tan la aceleración actual del imaginario occidental de «dominación» de la natura-
leza, reconsiderando el valor per se de los sistemas de la vida, preexistentes al ser
238 ECoLogíA y génEro En DIáLogo IntErDIsCIPLInAr
rEfErEnCIAs BIBLIográfICAs
En los oscuros momentos en que todo estaba por descubrir, el hilo —un simple hilo
como símbolo de la evolución inteligente— fue un invento estratégico
MArGAriTA riVièrE
l
os estudios feministas pusieron pronto en evidencia que la relación estable-
cida por el patriarcado entre Naturaleza y Feminidad ponía a las mujeres en
una situación de inferioridad simbólica respecto a los hombres, a quienes se
asociaba con «la cultura» y «la historia». Por ello, como dice Mª luisa Cavana, aún
en nuestra cultura «humano significa lo masculino por oposición a lo femenino, la
raza blanca por oposición a otras razas, la cultura por oposición a la naturaleza»
(2004: 13). Como consecuencia se establece no solo un dualismo sino, como afirma
Val Plumwood, una relación dicotómica (mujer-naturaleza frente a hombre-cultura)
que implica «una relación de separación y dominación inscrita y naturalizada en la
cultura y caracterizada por la exclusión radical, el distanciamiento y oposición entre
los órdenes construidos como superior e inferior» (1993: 43).1
si el hombre ha construido la cultura a base de dominar y forzar a la naturaleza,
concebida como materia, es evidente cómo se llega a la legitimación simbólica de
la relación de dominación hombre-mujer. A lo largo de los siglos se ha justificado
el dominio del hombre-cultura sobre la mujer-naturaleza,2 pues el hecho de partir
de la superioridad de la razón y la cultura frente a la naturaleza justifica que esta ha
de ser sometida con objeto de «culturizar la naturaleza», en palabras de la antro-
póloga sherry ortner. En este sentido dice Jane Blocker que «la tierra, dada su im-
bricación simbólica con lo femenino, es un concepto tan construido culturalmente,
1
Mi traducción.
2
Así, por ejemplo, sostenía Fray Martín de Córdoba: «En ellas no es tan fuerte la razón como en
los varones [...] las mujeres son más carne que espíritu y por ende son más inclinadas a ella que al es-
píritu» (Goldberg, 1974: 210).
242 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
3
«Ella es toda la fauna, toda la flora terrestre…» escribía simone de Beauvoir en el análisis que
hace de los Mitos en El segundo sexo (2005: 244).
4
Mi traducción.
5
En este sentido, dice irene lópez que «el simbolismo animal pondera la naturaleza dual de la
mujer, que se mueve entre el plano instintivo (animal) y el racional (humano)» (lópez rodríguez, i.,
2009: 54).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 243
posición refuerzan la figura del hombre como esencia de «lo humano». Esta aso-
ciación mujer-animal generalmente ha sido utilizada para presentar los aspectos
más negativos del género femenino: temibles arpías, esfinges, sirenas, aviesas mu-
jeres gatunas, tigresas… por no referirnos a la íntima relación entre la mujer y la
malvada serpiente. Estas figuras aparecen en las obras artísticas una y otra vez, es-
pecialmente entre las últimas décadas del siglo xix y las de comienzos del xx. En
esos momentos la ciencia ratificó lo que ya formaba parte de los saberes y las tradi-
ciones de la mayoría de las culturas «que aunque se quisiera separar a la mujer de
los animales socializándola y pretendiendo que se la podía adaptar al mundo inte-
lectualmente evolucionado del hombre, al final se revelaría con toda probabilidad
que era imposible eliminar al animal que había dentro de ella» (dijkstra, 1986: 282-
283). Algunas de imágenes de esta relación presentan un fuerte contenido sexual
como en el caso de Sensualidad, obra que el alemán Franz von stuck realizó a finales
del siglo xix o —ya en el xx— la jovencita con el gato en la habitación bañada por
la luna pintada por Balthus en El gato ante el espejo.
A pesar de la difícil herencia histórica que supone para las mujeres esta relación
simbólica entre naturaleza y mujer, algunas de las líneas más recientes de los estu-
dios feministas, fundamentalmente vinculados al ecofeminismo, han planteado nue-
vas preguntas sobre esta relación al recordar la doble pertenencia de la humanidad
—y por tanto de ambos géneros— tanto a la naturaleza como a la cultura (Puleo,
2011). En este sentido cabe citar que uno de los motivos que señala sandra Harding
por los cuales el punto de vista feminista es privilegiado para encarar el conoci-
miento es su posición de mediadoras ideológicas naturaleza/cultura, ya que las mu-
jeres al haber sido heterodesignadas como naturaleza ponen en relación ambos
mundos.
se ha producido además un cambio significativo, ya que se invierten los valores
asociados al pensamiento ilustrado, pues tanto en el sistema de pensamiento que
Alicia Puleo define como primer ecofeminismo occidental, como en el ecofeminismo
espiritualista surgido en los países del sur en la década de los ochenta, se recupera
«el tradicional dualismo naturaleza/cultura que identificaba a las mujeres con el
mundo natural y a los varones con la civilización para, ahora, invertir los valores y
sostener la superioridad de la Naturaleza frente a la Cultura» (Puleo, 2004: 25).
En este contexto, el feminismo posibilita nuevas lecturas en la representación
artística de la asociación simbólica entre la feminidad y algunos animales, de modo
que la marca negativa asignada por la sociedad patriarcal se invierte al reivindicarse
por parte de las artistas feministas. identificarse con los animales no es ya un signo
de alteridad, sino una forma de rebelarse frente al patriarcado, al identificarse con
esos «otros» no humanos.
Tomemos como ejemplo la araña, un animal que en la mayor parte de las culturas
y desde las épocas más remotas no ha despertado demasiadas simpatías, sino más
244 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
al uso del tejido como técnica artística relacionada con los principios del feminismo.
la técnica textil se convirtió de este modo en una forma de reivindicación, a la vez
que se rompía la división entre artes mayores y menores, abriéndose nuevas posi-
bilidades y líneas de investigación formal y de contenido.6 se revitalizaron así algu-
nos mitos clásicos de la cultura occidental como el de Aracné, el de Penélope o el
de Filomena, convocadas de nuevo para ocupar su espacio en el arte y en la historia.
Ellas volvieron a primer plano porque, como escribía Margarita riviere las mujeres
«guardan aún el hilo de la vida, aunque ya cosen las máquinas y los robots» (Blis-
niewski, 2009: 7).
la reivindicación de la araña por parte de los Feminismos no se reduce a la re-
cuperación y reivindicación del tejido como técnica artística, sino que se entiende
como una forma de narrar y crear otros textos. No podemos olvidar que entre las
definiciones que los diccionarios recogen del término «tejer» se incluye la acción
de «formar en el telar un tejido con la trama y la urdimbre», junto con «formar
ciertos animales sus telas y capullos», y también «discurrir, formar planes o ideas».
Partiendo de esta última acepción Barthes identifica tejido y texto:
Texto quiere decir tejido […] ahora destacamos en ese tejido la idea generativa según la
cual el texto se hace, se elabora en un perpetuo entretejimiento; perdido este tejido —su
textura— el sujeto se deshace a sí mismo, como araña que se disuelve en las secreciones
subjetivas de su tela. si fuésemos aficionados a los neologismos podríamos definir la teoría
del texto como hyfología (hyfos es el tejido y la tela de araña) (Barthes, 1974: 104).
6
«Tejer es más que un símbolo del lenguaje [...] es también un símbolo de la naturaleza del len-
guaje, determinada por el género, y un medio de resistencia» (scheuing, 1998: 327).
7
Hija de Pandión, rey de Atenas, quien tras ser violada por su cuñado, este le cortó la lengua para
que no lo contara. Pero ella teje un manto en que narra lo sucedido, logrando así que llegue a cono-
cimiento de su hermana.
246 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
jedora silenciosa [...] que dejaba sin voz a la tejedora Aracné. El poder comunicador
de su trabajo de tejer ha desaparecido» (scheuing, 1998: 326). El Feminismo, al in-
terpretar la obra de algunas artistas según su revisión de los mitos de Aracné, Filo-
mena o Penélope, ha puesto el acento en el acto de desafío y el control sobre su
destino que implica la relación entre tejer y narrar (scheuing, 1998).
Partimos, por tanto, de que en la base de nuestra cultura —como en otras mu-
chas—8 el hilo y la palabra, tejer y narrar, son una sola cosa. y por ello cuando al-
gunas artistas quieren mostrar que son poseedoras de la palabra, vuelven al tejido
y se identifican con la figura de la araña, la gran tejedora. Por tanto, la utilización
del tejido en las creaciones feministas desde las últimas décadas del siglo xx no res-
pondió únicamente a la reivindicación de las actividades femeninas tradicionales,
haciendo borrosa la frontera entre arte y artesanía, sino a la búsqueda de la recu-
peración de la palabra, al deseo de narrarse como artistas y mujeres a partir del te-
jido. Aunque son muchas las obras que aquí podrían citarse, cabe recordar a modo
de ejemplo Cogito, ergo sum de rosemarie Trockel, o las realizadas por Ghada
Amer, artista egipcia que borda sobre fondos pictóricos figuras de mujer, muchas
veces tomadas de las revistas pornográficas, pero también en escenas de trabajo o
acciones domésticas con la intención de recordarnos, como dice Frank Frangen-
berg, que la identidad femenina parece pender de un delgado hilo. También rela-
cionada con la figura de la araña está Permanent Demonstration (1976), acción
artística de Annegret soltau en la cual enredaba su cuerpo en una maraña de hilos.
la fusión entre el tejido y el cuerpo está presente también en las obras de Mona
Hatoum, en algunas de las cuales teje su propio cabello entrecruzando el paso del
tiempo, la identidad de género y la cultural con referencias autobiográficas. sería
imposible no citar también aquí a louise Bourgeois y su concepto sanador del arte
a partir del uso de la aguja, que cierra y sutura heridas.9 Para ella, la araña, aunque
también a veces temible, es la gran Mamá, poderosa, protectora y constructora de
la vida: «¿por qué la araña? Porque mi mejor amiga fue mi madre, y ella era cuida-
dosa, lista, pacientemente pulcra y útil como una araña. Ella también sabía defen-
derme a mí y a sí misma».10
Toda esta carga simbólica del tejido hace que no sea casual que partir del desa-
rrollo de internet, en el mundo del ciberespacio términos como hilo, tejer, red o
araña se han asociado a feminismo, como en el caso de Mujeres en Red en España,
Les Penélopes en Francia o La araña feminista en Venezuela.
8
Por ejemplo, cuenta Marcel Griaule en el libro Dios del agua que según la religión tradicional
del País dogón (Mali) «la tela se llame soy, que significa Es lA PAlABrA».
9
«Art is a guaranty of sanity», escribe en una de sus obras.
10
Bourgeois, l. (2002): Destrucción del padre-reconstrucción del padre: escritos y entrevistas
1923-1997. síntesis Editorial, Madrid.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 247
11
A pesar del salto que supuso la exposición Genealogías feministas en el arte español: 1960-2010 ,
realizada entre los años 2011 y 2012 en el MusAC de león y comisariada por Juan Vicente Aliaga y
Patricia Mayayo, así como la posterior publicación del catálogo.
248 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
12
la ley de Educación Primaria de 1945 establecía que «la educación primaria femenina prepa-
rará especialmente para la vida en el hogar, artesanía e industrias domésticas».
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 249
dicionalmente a las mujeres en nuestro ámbito cultural.13 Como dice la artista Teresa
lanceta, aún hoy «los tejidos no suelen estar en los libros de arte si no van acom-
pañados de un adjetivo que matice su cualidad artística». solo así puede entenderse,
por ejemplo, que la obra de Aurelia Muñoz (1926-2011), la gran renovadora del
arte del tapiz en España, vinculada con el minimalismo, las instalaciones y el arte
conceptual, haya quedado en una especie de terreno de nadie en la historiografía
del arte español. o que pocas personas recuerden que Magda Bolumar (Caldas de
Estrach, Barcelona, 1936) es algo más que la viuda del gran escultor informalista
Moisés Villelia. Como dice Marta Mantecón «la historia del arte es, como cualquier
otra disciplina, un cúmulo de elecciones relatadas» (2011: 18), por ello, en esta re-
flexión, hemos optado por detenernos en primer lugar en la figura de esta artista
catalana, una Aracne injustamente olvidada por nuestra literatura artística, de quien
Cirici Pellicer escribió: «Magda Bolumar ha hecho algo más simple y más puro de
lo que nadie había hecho jamás. dejar hablar al tejido en sí mismo» (1970: 3).
las «xarpelleres» que Magda Bolumar, cuya obra se contextualiza en las van-
guardias catalanas de las décadas centrales del siglo xx,14 expuso por vez primera
en el año 1960 en varias salas de Barcelona tienen un sentido esencialmente cons-
tructivista, pues a pesar del papel innegable que en ellas tiene la materia y la textura
que las conectan en cierto modo con el informalismo, la estructura adquiere el pro-
tagonismo principal a partir de las tensiones generadas por los hilos, tal como des-
tacaba Cirici:
otros artistas como Burri o Millares, se dedicaban entonces a la obra basada en mate-
riales textiles, pero uno y otro dejaban de lado el material para centrar la atención sobre
las dramáticas vicisitudes en las cuales el material hacía el papel de víctima. romperlo,
coserlo, apedazarlo, atarlo, mancharlo de gotas o goteos. Magda Bolumar, a diferencia
de ellos dejó que fuera el material mismo el protagonista de su obra. Que asumiese su
significado, que tomase una actitud, que realizara un acto.
En esta dinámica, vemos cómo los hilos de la misma tela se dividen o se agrupan; cómo
destejen para liberar un calado y se retejen para cubrir un campo; se separan en haces
divergentes como palmitas, o convergen hacia un punto de ataque; [...] las fibras adop-
tan todo tipo de papeles estructurales, solas, retorcidas en cuerdas u entretejidas en
trama (Cirici Pellicer, 1970, 4).
13
«Curiosamente, el hombre contemporáneo cree que lo que él llama artesanía, donde supuesta-
mente predomina la habilidad manual y el patrón establecido sobre el talento creativo, es como un
arte de mentirijilla. y, claro, quien teje un tapiz ha de ser, por fuerza, un artesano, porque no puede
campar libremente por sus respetos y, sobre todo, es algo doméstico, popular y funcional; vamos, por
decirlo así, la apoteosis de lo femenino» (Calvo serraller, 1996).
14
Estuvo vinculada al grupo de Arte Actual de Mataró y más indirectamente con algunos artistas
de Dau al set. Colaboró estrechamente con la revista Inquietud artística, manteniendo amistad con
Joan Brossa y Cirici Pellicer, entre otros.
250 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
En este texto se destaca la diferencia de significados del uso del textil en el con-
texto de la versión hispana del informalismo: frente al dramatismo y la denuncia de
la podredumbre que latía en las arpilleras de Millares, la idea de la construcción de
un nuevo cosmos está en la base de las obras de Magda Bolumar. una idea bajo la
que se esconde la necesidad de «reordenar» el mundo, ya que la trama de los hilos
le sirve para construir «su mundo», un cosmos organizado lleno de ecos orgánicos.
la artista siempre ha negado que su obra pueda considerarse estrictamente
como informalista.15 la confusión procede de la simplificación y superficialidad
con que es tratada la obra de gran parte de las artistas, y con la tendencia ancestral
de convertirlas en seguidoras de los grandes nombres masculinos, considerados por
la historia canónica como los verdaderos renovadores. En el caso de la obra de
Magda Bolumar la historia del arte de un único carril a la que estamos acostum-
brados forzó el significado de la relación materia-vanguardia, haciéndola pasar ex-
clusivamente por una lectura desde el informalismo.
lo cierto es que las «xarpelle-
res» que Magda Bolumar realizó
ente las décadas de 1960 y 1990,
aunque presentan diferencias a lo
largo del tiempo que son conse-
cuencia de una evolución, siempre
muestran una fuerza esencial-
mente cerebral, como ha puesto
también de manifiesto la crítica Mª
lluïsa Borràs: «las magníficas
“xarpelleres” de esta artista mani-
fiestan una arrolladora liberación
de fuerzas, cerebrales en su mayo-
ría, que desembocan en tensiones
de urdimbre en trama, estrellados
o paralelismos reveladores de una
liberación intelectiva, de ingenio y
rigor constructivo».
El teñido de las arpilleras, el
uso de colores jugosos y vivos, de
Magda Bolumar. Xarpellera (1962) esos «verdes alternativamente de
15
En una entrevista que realicé a la artista en 2008, me respondía así a la pregunta sobre la relación
de su obra con el informalismo hispano de las décadas centrales del siglo xx: «No creo que mi obra
pueda ser considerada informalismo. En aquella época estaba trabajando en mis xarpelleres que tienen
un sentido constructivista».
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 251
16
Es licenciada en Historia Moderna y Contemporánea y está doctorada en Historia del Arte. En
la actualidad vive en Alicante.
252 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
17
A finales de la década de 1980 Victoria Combalia destacaba que los tejidos de lanceta suponían
una reconsideración de las labores femeninas. Victoria Combalia (1989).
18
María Escribano ha relacionado la investigación plástica que subyace en la obra de Teresa lan-
ceta con la pintura abstracta de artistas como Newman, stella, scully o Blekner. Sobre la exposición
«La alfombra roja». El País, 9/12/1989.
19
Web de Teresa lanceta: http://www.teresalanceta.com/es/index.php (consultado el 29 de di-
ciembre de 2013).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 253
que titula El Cabo de las Huertas,20 que se refiere a un lugar de la costa alicantina.
la artista hace en ella una clara defensa del medio ambiente y llama al respeto por
una naturaleza cotidiana, que «no es salvaje ni sublime ni exige admiración», frente
a la privatización y a la ocupación inmobiliaria insensata y destructora que ha des-
truido nuestras costas. los colores de los lienzos que se entretejen remiten a los co-
lores intensos y mediterráneos: el azul, el intenso amarillo, el color de las plantas
que florecen espontáneamente en el roquedal.
Así, en la obra de Teresa lanceta, nuevamente el hilo, el tejido, deviene palabra
que denuncia. El sentido crítico que subyace en la Aracnología está claramente pre-
sente en la obra abstracta de lanceta, que nos habla muy claro de cosas muy cer-
canas a nuestra vida:
20
obra fechada en 2003, que forma parte de los fondos de la Fundación Alberto Jiménez-Arellano
Alonso (universidad de Valladolid).
21
Web de Teresa lanceta: http://www.teresalanceta.com/es/index.php (consultado el 29 de di-
ciembre de 2013)
22
Podríamos aplicar a la obra de estas artistas la frase de Elena del rivero: «con este vocabulario
secreto y ancestral voy hilvanando ideas y pensamientos».
23
Web de Andrea Milde: http://www.andreamilde.com/Espa%F1ol/TextoTolentino.html (con-
sultado el 29 de diciembre de 2013).
254 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
24
Es muy expresiva la forma en que Andrea Milde cuenta cómo «nace un tapiz». El paralelismo
con la idea de parto es evidente cuando se refiere al corte de los hilos como si se refiriese al cordón um-
bilical, y describe el modo en que siente todo el peso del tapiz enrollado en sus brazos por vez primera.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 255
Cada pieza representa a una mujer rural con una técnica minuciosa que permite
recrearse en todos los detalles de rostros, manos, vestimentas, poses… son mujeres
de pueblo sentadas al sol que conversan; figuras potentes, mujeres-montaña por los
volúmenes casi geológicos de sus cuerpos y los pliegues de sus ropas. El origen de
esta obra, según cuenta la artista, es una vieja fotografía familiar que le sugirió la
necesidad de hacer «genealogía», de recordar las raíces rurales de su abuela y su
madre. Pero tras ese primer nivel de lectura hay aún un segundo, más sutil y menos
evidente que introduce complejidad en esta obra. En la esquina inferior derecha
de la segunda pieza comienzan a verse unos pequeños personajes que aparecen,
como si de una secuencia se tratara, a lo largo del resto de las piezas y que cuentan
una historia. son figuras solo perfiladas que cuentan una dura historia de maltrato,
hablan de esa violencia soterrada en lo cotidiano que es la violencia de género, lo
silenciado, lo sabido y contado en voz baja, lo sufrido sin palabras. Porque quizá
no era únicamente de cosas cotidianas e intrascendentes de lo que hablaban las an-
cianas mujeres representadas en los tapices.25
25
Así describe Andrea Milde en su blog cómo introduce la referencia a la violencia de género:
«Había terminado el primero de los siete tapices cuando ocurrió el asesinato de Ana orantes, en di-
ciembre de 1997. Ella fue quemada viva por su marido tras relatar su historia en televisión. la difu-
sión del suceso a través de los medios de comunicación puso de manifiesto el drama de las víctimas
del terrorismo doméstico en toda su crueldad. desde entonces, las cifras revelan una tendencia cre-
ciente». https://amilde.wordpress.com/obra-work-werke/human-textile/las-siete-marias-1996-2001/
(consultado el 29 de diciembre de 2013).
256 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
Andrea Milde sigue realizando magníficos gobelinos, pero ha dado un paso más
apoyándose en el tejido para investigar nuevas formas ecoartísticas a través del land
art, la performance y las instalaciones.26 El proyecto 410 días es un magnífico ejem-
plo de proyecto ecofeminista en el ámbito artístico en que se mezclan el fiber art y
la performance. Milde inició este proyecto en junio de 2012, cuando le faltaban 410
días para cumplir 50 años, un número significativo en la vida de todo ser humano
y especialmente en el de las mujeres que sienten cercanos muchos cambios con la
llegada de la menopausia.
Como en sus tapices, este es un proyecto complejo que tiene varias «capas» en
las que el tiempo es el elemento de conexión, como se refleja incluso en los elemen-
tos que constituyen el proyecto. Por una parte, está la obra textil, un tejido que fue
creciendo y formando una gran bola a lo largo de los 410 días. El objetivo era «tejer
[…] 120 metros de este hilo de Ariadna, lo que hace una media de 30 centímetros al
día [...] 410 días en los que me quiero conceder el tiempo para reflexionar sobre
mi andar por el laberinto de la vida…»,27 escribía la artista al comenzar el proyecto.
El segundo de los elementos es una video-instalación que documenta el desarrollo
del proyecto y que día a día pudo seguirse por internet: nuevamente el tiempo, en
solitario a veces, compartido en otras ocasiones… tiempo en que se teje la vida. Fi-
nalmente el tercer elemento de esta obra lo constituye una performance que cerró
el proyecto y que se llevó a cabo por vez primera el 20 de julio de 2013 cuando se
cumplían los 410 días del inicio que dan título al proyecto.
una segunda capa en este proyecto es lo que a lo largo de ese tiempo unía el
dentro y el fuera, el «yo» con el «nosotras». Por ello, los 30 centímetros de tejido
que diariamente salían de las manos de la artista —solas o acompañadas— variaban
de color, pasando del rojo en los días de su ciclo menstrual al morado el día que se
producía una muerte por violencia de género, y al blanco del resto de días. una
mancha negra rompía el ritmo, señalando la marcha minera en que las mujeres de
la cuenca del norte caminaron junto a sus compañeros en protesta por el cierre de
las minas. Así, un proceso biológico y vital individual adquiría conciencia de género.
la gran bola de tejido fue creciendo con sus diversos colores hasta poder des-
plegarse formando un laberinto univiario que Andrea Milde creó en la última fase
del proyecto, la performance. Así describía su sentido la artista unos días antes:
... muchos meses de soledad y compañía, de interior y exterior, tristes y alegres, quedan
«atrapados» en esta bola. En julio se extenderá para formar un pequeño laberinto tran-
sitable de 12 x 12 m como invitación a reflexionar conjuntamente sobre todo aquello
26
En la Montaña Palentina, Andrea lleva también desde 2013 el proyecto Ku(nst) & Ku(ltur)
(Kunst und kultur in der natur- Arte y cultura en la naturaleza).
27
https://amilde.wordpress.com/ (consultado el 29 de diciembre de 2013).
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 257
que ha influido en su creación: el ciclo anual de la naturaleza, el ciclo vital de una mujer
al borde de la menopausia, la vida cotidiana en un territorio rural en el norte de Es-
paña…. y el contexto cultural y espiritual de este símbolo existencial…28
28
https://amilde.wordpress.com/ (consultado el 29 de diciembre de 2013).
29
Varias artistas, como Angels ribé o Mónica sjöö, han utilizado las formas laberínticas como
forma de vincular lo particular con lo universal en la vida de las mujeres
258 EColoGíA y GéNEro EN diáloGo iNTErdisCiPliNAr
rraman desordenados por la hierba, recordando que ese era el número de mujeres
muertas por la violencia de género durante los 410 días que duró el proyecto.
En el caso de estas tres artistas pertenecientes a distintas generaciones, el tejido
ha recuperado así su capacidad de narrar, de denunciar, que le había sido arreba-
tado a Aracné como castigo. se atribuye a Jean lurçat, promotor de la prestigiosa
Bienal de Tapicería de lausana, una frase que dice: «Tened cuidado con esas chi-
quillas que hacen punto» (Thomas, 1985)… y parece que tenía razón.
rEFErENCiAs BiBlioGráFiCAs
BArTHEs, roland (1974): El placer del texto, Buenos Aires, siglo xxi.
BEAuVoir, simone de (2005): El segundo sexo, Cátedra, Madrid.
BlisNiEWsKy, Thomas (2009): Las mujeres que no pierden el hilo, Maeva, Madrid.
BloCKEr, Jane (2002): «Tierra», en Cordero reiman, Karen, sáenz, inda (comp.)
Crítica feminista de la Historia del Arte, México, universidad iberoamericana,
pp. 377-400.
BrossA, Joan (1965): «dos cuadres de Magda Bolumar», Inquietud artística nº 32,
Vich, p. 6.
CAlVo sErrAllEr, Francisco, «El Tapiz volador», El País, 5/ 5/1996.
CAPMANy, María Aurelia (1975): De profesión, mujer, Barcelona, Plaza & Janés,
col. Testigos de España.
CAVANA, María luisa (2004): «la relación instrumentalizadora con la Naturaleza»,
en Cavana, María luisa; Puleo, Alicia H. y segura, Cristina (coords.), Mujeres y
Ecología: Historia, Pensamiento, Sociedad, Madrid, Asociación Cultural Al-Mu-
dAyNA.
CiriCi PElliCEr, Alexandre (1970): Magda Bolumar, Barcelona, sala Gaspar.
— (1982): «Magda Bolumar, El 81», Barcelona, Caixa laietana.
CoMBAliA, Victoria (1989): «Teresa lanceta. El tapiz revisado», en página web de
Teresa lanceta http://www.teresalanceta.com/ca/publicacions.php (consultado
el 29 de diciembre de 2013).
diJKsTrA, Bram (1986): Ídolos de perversidad, Madrid, debate.
GoldBErG, Harriet (ed.) (1974): Jardín de las doncellas, Fray Martín de Cordoba.
A critical Edition and Study, Chapel Hill, North Carolina studies en romance
langages and literatures.
JErFFEriEs, J. (1998): «Texto y tejidos: tejer cruzando fronteras», in deepwell, Katy
(ed.) (1998): Nueva crítica feminista de arte. Estrategias críticas, Madrid, ed. Cá-
tedra/universidad de Valencia/ instituto de la Mujer, pp. 281-296.
TEJEr y NArrAr EN lA PlásTiCA EsPAñolA CoNTEMPoráNEA 259
lóPEz rodríGuEz, irene (2009): «la animalización del retrato femenino en el Libro
del buen amor», Lemir nº 13, pp. 53-84.
MANTECóN Moreno, Marta (2011): «Mujeres, feminismos y género en España», en
Exít nº 58, pp. 15-29.
MAyAyo, Patricia (2013): «imaginando nuevas genealogías. una mirada feminista
a la historiográfica del arte español contemporáneo», Genealogías feministas en
el arte español: 1960-2010. MusAC/ Junta de Castilla y león, pp. 21-38.
MillEr, Nancy (1988): Subject to Change: Reading Feminist Writing, New york,
Columbia university Press.
PluMWood, Val (1993): Feminism and the Mystery of Nature, london and New
york, routledge.
PulEo, Alicia H. (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, ed.
Cátedra.
sCHolTMEiJEr, Marian (1995): «The Power of otherness: Animals in Women´s Fic-
tion», en C. J. Adams y J. donovan (eds.) Animals & Women. Feminist Theory
Explorations. duke university Press. durham and london, pp. 231-262.
sCHEuiNG, ruth (1998): «Penélope y la historia desenmarañada», en deepwell, K.
(ed.) (1998): Nueva crítica feminista de arte. Estrategias críticas, Madrid, Cátedra,
universidad de Valencia/ instituto de la Mujer, pp. 319-331.
THoMAs, M. (1985): Textile Art: Embroideries, Tapestries, Fabrics, Sculptures,
Ginebra, Albert skira s. A.
TolENTiNo, Javier (1998): «Andrea Milde. Tapices». Textilforum 1/98, March.
III. RESISTENCIAS
15. Aportaciones de las mujeres indígenas al
diálogo entre filosofía y ecología
Georgina AIMÉ TAPIA GONZÁLEZ
Universidad de Colima, México
A
lgunas líderes indígenas están vindicando un lugar importante para las mu-
jeres dentro de las cosmovisiones de sus pueblos. Su punto de partida no
es una conciencia desencarnada, sino que sus ideas y valores están corpo-
reizados, son sentidos, vividos y expresados a través de prácticas concretas. El eje
del pensamiento indígena que ellas incorporan a sus vindicaciones es la comunidad
integrada por todos los seres que conforman el cosmos, es decir, una filosofía cen-
trada en el «nosotros», que incluye a los seres humanos, las plantas, los animales y
todo lo que vive sobre la Tierra.
De acuerdo con el pensamiento nosotrocéntrico de pueblos amerindios como el
maya-tojolabal (Lenkersdorf, 2008),1 en el conocimiento no existe el binomio su-
jeto-objeto, sino dos sujetos: uno que conoce y otro que participa del acto cognos-
citivo. Ambos se vinculan de forma horizontal porque son igualmente necesarios: se
complementan y se influyen uno al otro.2 Pero, ¿cómo es posible el conocimiento
sin objetividad? Esta cuestión está planteada desde el contexto de la epistemología
occidental hegemónica, sin embargo, a partir de otras perspectivas podría pregun-
tarse: ¿cómo puede darse el conocimiento sin la participación de dos o más sujetos?
Nótese que si se profundiza en la idea indígena de que todos los seres son su-
jetos porque poseen corazón, es decir, valor, dignidad y espíritu, entonces, las for-
1
En el pensamiento maya-tojolabal pueden encontrarse algunos de los fundamentos del zapatismo
que surgió a finales del siglo XX en el sureste mexicano. La importancia del movimiento zapatista ha
sido esencial dentro de los procesos de reconstitución de los pueblos indígenas.
2
«En el contexto tojolabal, el conocimiento no se realiza por la acción del sujeto conocedor que
somete al objeto a su acción de conocer. Este tipo de conocimiento es unidireccional. El objeto por
conocer es pasivo. Para los tojolabales, en cambio, el conocimiento así como las demás acciones son
bidireccionales. Se exigen las aportaciones tanto del sujeto conocedor como del sujeto por conocer»
(Lenkersdorf, 2008: 57).
264 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
mas de vida no humanas que existen sobre la tierra también tienen su propio modo
de racionalidad. Con esto se pone en cuestión la definición tradicional del hombre
como un ser superior a otros debido a su razón. Más aún, diversas culturas indíge-
nas coinciden en sostener que: «el pensamiento no se refiere a la capacidad de ra-
ciocinio, sino a la de relacionarse los unos con los otros con dignidad y respeto para
vivir en comunidad» (Lenkersdorf, 2008: 107).
Ahora bien, las indígenas que participan en los movimientos en defensa del te-
rritorio y de los derechos específicos de género, consideran que la sobrevivencia
de sus pueblos es inseparable del reconocimiento de la paridad entre los sexos.
Conciben sus cuerpos en interconexión con el resto de los seres. Son conscientes
de que la justicia requiere del equilibrio entre todas las formas en que se manifiesta
la vida, sean humanas o no. Saben que ningún pensamiento que sea verdaderamente
universal podría excluirlas.
Desafiando la lógica dominante,3 algunas mujeres pobres y sin escolaridad se
han convertido en las portadoras de un discurso feminista fundado en la filosofía
nosotrocéntrica de las culturas indígenas. Estas mujeres bien pueden ser llamadas
«ecofeministas», aunque, según la cosmovisión que está en la base de sus prácticas,
tal afirmación representa una redundancia porque, lo que entienden como «femi-
nismo», es decir, la búsqueda de igualdad, reciprocidad y respeto, para ser cohe-
rente, debe extenderse no solo a las relaciones entre los sexos, sino también a las
formas de vida no humanas. Así como las demandas de reconocimiento, justicia y
democracia de los pueblos originarios resultan vacías si no toman en cuenta al co-
lectivo femenino, un feminismo que sea indiferente ante la destrucción de la natu-
raleza y de las comunidades indígenas se queda a la mitad del camino.4 Tanto en
sus discursos como en la vida cotidiana, las indígenas zapatistas están recuperando
el sentido originario de la palabra «nosotros», «ke‘ntik».5 Ellas dicen «nosotras y
nosotros» o feminizan términos que tienen género gramatical masculino, como
cuando hablan de «insurgentas» y «jóvenas». Asimismo, están trabajando para lo-
grar que las mujeres participen en las asambleas comunitarias en las mismas condi-
ciones que los varones, y que estos comiencen a desempeñar tareas que habían sido
consideradas «femeninas».
Sylvia Marcos ha señalado que cuando las mujeres dicen que sienten tristeza en
sus corazones, se refieren a las funciones de pensamiento y memoria que corrien-
temente adjudicamos al cerebro o la mente (2010). Para las culturas indígenas, el
3
En Occidente también han existido, y existen actualmente, discursos y prácticas alternativos
ante el modelo de desarrollo etnocéntrico, sexista y ecocida.
4
Sobre género, medio ambiente y mujeres indígenas, véase: Velázquez, Margarita (coord.) (1996);
Vázquez García, Verónica y Velásquez Gutiérrez, Margarita (coords.) (2004); VVAA (2011).
5
Ke‘ntik: palabra maya-tojolabal que no tiene género gramatical.
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 265
corazón, que cumple las funciones del teyolía, abarca «la razón, la inteligencia, los
recuerdos, la vida» (2010: 82). Al aludir a su corazón, las mujeres indígenas vindican
su humanidad compartida con los varones, es decir, su capacidad de pensar, decidir,
trabajar, enseñar y hacer cualquier cosa a la par que ellos.
Los pueblos indígenas tienen una historia que ha comenzado a ser interpretada
a partir de los estudios feministas desarrollados desde las cosmovisiones mesoame-
ricanas y a través de la mirada de las mujeres indígenas. Los discursos de género
que están elaborando las zapatistas ubican el problema de la desigualdad en una
dimensión histórico-política que rebate las visiones naturalistas. Afirman que es en
las malas costumbres (sexistas) y no la naturaleza donde hay que buscar las causas
de la subordinación femenina. Esta se habría producido por el proceso de coloni-
zación, el alcoholismo de los varones y una serie de conductas equivocadas. Lo que
puede considerarse como la «metodología» de los feminismos indígenas es preci-
samente el diálogo. En efecto, ha sido la confluencia entre modernidad y tradición,
feminismos occidentales y cosmovisiones amerindias, la que ha hecho posible el
surgimiento de reivindicaciones de género en los movimientos de resistencia de las
comunidades indígenas y campesinas.
En el presente trabajo abordaré la aparición de estas reivindicaciones a través de
la historia de vida de una mujer indígena: María de Jesús Patricio Martínez, médica
nahua,6 feminista y zapatista. Espero mostrar, así, la importancia que tienen los co-
nocimientos de las indígenas que protagonizan movimientos en defensa del territorio
y de los derechos de las mujeres para los estudios de género y la ética ecológica.
6
Durante la entrevista realizada, María de Jesús Patricio Martínez se definió como «médica tra-
dicional», por ello utilizo esa forma para nombrarla.
266 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Las historias de vida al resaltar las experiencias vitales de los individuos en su acción
dentro de la sociedad, descubren la relevancia de las vivencias personales en los marcos
institucionales y el impacto de las decisiones personales en los procesos de cambio y es-
tructuración social. Es por ello que pueden servir para probar teorías, hipótesis y pro-
posiciones conceptuales, y pueden funcionar como el «caso negativo» frente a un cuerpo
teórico establecido […]. Permiten asimismo generar nuevas hipótesis en campos que
parecían agotados, puesto que aportan evidencia que de otra manera […] no sería po-
sible obtener (1997: 13).
Durante la entrevista que tuvimos, una de las palabras que más se repitió en las
respuestas de la médica nahua fue «origen». Por ello, me parece pertinente co-
menzar señalando las alusiones que hace sobre su propia infancia. María de Jesús
Patricio recuerda que, cuando era niña, veía que su abuela y sus tías recurrían a
infusiones de plantas para sanar sus enfermedades, así fue como comenzó a apren-
der medicina tradicional. Siendo aún muy joven, estaba encargada de atender las
necesidades de las/os más pequeñas/os de la casa. Aunque todavía no tenía con-
ciencia de género ni de pertenencia étnica, ya desde su adolescencia, como ella
misma sostiene: «Anhelaba participar en un proceso de cambio en mi comunidad
7
Los nahuas constituyen un conjunto de pueblos originarios de Mesoamérica.
8
Sobre feminismo indígena, véase las distintas posiciones de: Lagarde, 1999; Sánchez Néstor,
2005; Millán, 2006: Hernández Castillo, 2008; Marcos, 2010; Gargallo, 2012, entre otras.
268 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Asesorada por ella y por otras personas, continué cuidándola. Se levantó en tres meses
[...]. Después de que mi mamá se levantó, comenzaron a venir otros enfermos que se
fueron recuperando con los tratamientos que les daba, esto trajo cada vez más gente
que buscaba sanarse y que creía en mi trabajo al ver que otros se restablecían. Por eso,
la comunidad me dio el cargo de médica tradicional, lo que para mí ha significado la
responsabilidad de cuidar la salud de quienes integran el tejido comunitario (2011).
noce el valor positivo de una racionalidad alternativa que opera a través de sueños
e indicios, al mismo tiempo que se enfatiza una de las principales exigencias éticas
de la medicina indígena, esto es, que la salud no puede ser mercantilizada. Su prin-
cipal preocupación ha sido atender las causas de las enfermedades sin considerar
la posibilidad de convertir el quehacer terapéutico en un medio de lucro. Asimismo,
su vocación le fue abriendo un espacio de autonomía que no era común para una
mujer pobre y además indígena. Tales son los antecedentes que pueden ayudarnos
a comprender el desarrollo posterior de la médica indígena que ha llegado a con-
vertirse en una agente social clave en el proceso de reconstitución de su pueblo.
Mi ser indígena lo definí más cuando se dio el levantamiento zapatista. Fue un sacudir
para todos los pueblos indios de México. No era solamente esta comunidad, porque yo
pensaba que nada más nosotros éramos indígenas. Pero, cuando conocí el movimiento
zapatista, me di cuenta que existían miles de indígenas por todo el país y muchas comu-
nidades lejanas que tenían los mismos problemas. Esto hizo que pudiéramos identifi-
carnos como hermanos (Patricio, 2011).
más comunidades indígenas, y que los problemas que teníamos en Tuxpan: discri-
minación, pérdida de nuestra lengua, robo de conocimientos tradicionales, eran algo
que nos identificaba con los demás pueblos indios» (2011). La lección recibida le
había mostrado que la guerra de exterminio contra los pueblos originarios llevaba
más de 500 años de historia, abarcaba a cada uno de los estados de la República Me-
xicana y, más allá de las fronteras, se extendía por todo el continente americano.
Lo que la médica indígena encontró en Chiapas fueron las raíces del «México
profundo» (Bonfil, 2005), pero también a las mujeres zapatistas. Algunas de ellas te-
nían puestos de mando en el EZLN, hablaban con libertad, daban discursos, eran res-
petadas y tomadas en cuenta por los varones. Esto la impresionó tan hondamente
como el descubrimiento de las/os otras/os indígenas. No había llegado a un territorio
dividido por la guerra, sino a la promesa de un mundo más justo y solidario. Como
ella misma lo expresa: «Me animó ver que comunidades mucho más pobres que la
mía seguían resistiendo con dignidad. Sentí mucha fuerza al conocer a las mujeres
zapatistas y verlas participar, pues constituían la prueba de que sí era posible vivir el
respeto y la dignidad» (2011). En lugar de ser obligada a incorporarse a un ejército
lejos de su familia, lo que recibió fue el mensaje de regresar a su comunidad para
continuar trabajando como médica y, desde ahí, poder defender los saberes tradi-
cionales nahuas, pero no de manera aislada, sino junto con otros pueblos.
Cuando volvió a Tuxpan, la esperaban impacientes su madre y sus tías: «Había
llegado agotada —relata la médica indígena— con ganas de irme a descansar, pero
no me dejaban, me preguntaban cómo me había ido, qué cosas había conocido. Era
como un ir y venir de la palabra entre nosotras» (2011). Llama la atención este her-
moso testimonio de sororidad. María de Jesús Patricio tenía el apoyo incondicional
de las mujeres de su familia, en quienes encontró fuerza, confianza y una complicidad
capaz de superar las diferencias, pues ellas seguían viviendo subordinadas a esquemas
de desigualdad en sus relaciones con los varones. En sus palabras: «La lucha cons-
tante como mujeres también ha sido una fuente de fuerza para mí. Recuerdo que le
decía a mi mamá que no permitiera que mi papá la hiciera como quisiera» (2011).
Conforme se multiplicaron los viajes de María de Jesús Patricio a distintas co-
munidades, su madre, sus hermanas y sus tías también quisieron salir para conocer
otros horizontes. Paralelamente, su padre y sus hermanos se hicieron más flexibles
ante las nuevas situaciones, y ya no les parecía imposible realizar algunas tareas do-
mésticas mientras las mujeres estaban fuera de la casa.
dos por el colectivo femenino urbano, así como identificar las semejanzas y dife-
rencias entre las mujeres de la ciudad y las del ámbito rural. Sin embargo, lo que
no pudo entender fue la desvinculación del feminismo urbano de los contextos co-
munitarios de las mujeres indígenas y campesinas. Le parecía absurdo haber viajado
tantas horas hasta la Ciudad de México para escuchar lo que vivía todos los días:
que las condiciones de vida de las indígenas son muy duras, sus jornadas extenuan-
tes y el valor económico de su trabajo no es reconocido. Ella estaba de acuerdo en
que esos temas eran importantes pero pensaba que, en el caso específico de las mu-
jeres indígenas, tenía que reflexionarse también sobre lo que está sucediendo en
los pueblos originarios:
Al igual que las indígenas zapatistas de Chiapas, María de Jesús Patricio consi-
dera que el problema de fondo es el sistema de dominación que hoy se presenta
con el nombre de capitalismo neoliberal. Según ella, el feminismo indígena debe
incluir a mujeres y hombres, promover el trabajo comunitario y buscar unir esfuer-
zos. Esto no significa que se invisibilicen los problemas específicos que afectan a
las mujeres. Las culturas indígenas no perciben la realidad como un conjunto de
esferas separadas, sino dependientes unas de otras. Las mujeres, los hombres, las/os
niñas/os, las/os ancianas/os, los seres vivos no humanos, la tierra, todo forma una
unidad en equilibrio.
Sin embargo, la reciprocidad entre los distintos seres vivos se ha deformado en
una relación jerárquica que genera desigualdad entre los sexos y destrucción de la
naturaleza. En palabras de la médica indígena «Juntos, mujeres y hombres es como
debemos trabajar, no chocando. El problema no son los hombres, sino el capita-
lismo neoliberal. Para hacerle frente, tenemos que conjuntar nuestras fuerzas y
proponer alternativas que nos permitan sobrevivir. De otra forma, no vamos a lo-
grar nada más que pelearnos entre nosotros mientras mueren nuestras raíces» (Pa-
tricio, 2011). Estas reflexiones son muy similares a las expuestas por la ecofeminista
Vandana Shiva, quien, al teorizar sobre lo que denomina el «mal desarrollo» ge-
nerado por el crecimiento económico del Norte global, considera que: «En la prác-
tica, esta perspectiva fragmentada, reduccionista y dualista viola la integridad y
armonía del hombre con la naturaleza, y la armonía entre el hombre y la mujer»
(Shiva, 1995: 35).
272 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Las mujeres indígenas no solo padecen la desigualdad de género, sino que además
ven amenazada la supervivencia misma de las comunidades a las que pertenecen.
Ahora bien, aunque es innegable que el impacto del capitalismo globalizado del Oc-
cidente hegemónico ha sido muy destructivo, especialmente para las poblaciones
originarias, hasta el punto de poder afirmar su incompatibilidad con la aspiración
ecofeminista de construir un mundo justo y sostenible, existen numerosos ejemplos
de culturas respetuosas de la naturaleza que, no obstante, subordinan al colectivo
femenino (Amorós, 2012). Como apunta Alicia Puleo: «Es necesario aprender de la
interculturalidad sin olvidar los derechos de las mujeres» (2011: 317).
Si bien el neoliberalismo, por todas las razones expuestas, es antifeminista y
ecocida, no puede ser considerado como la única explicación del androcentrismo
presente en las diferentes culturas estudiadas hasta hoy. El testimonio de la médica
tradicional muestra que es consciente de que para las mujeres indígenas hay otra
lucha además de la que se libra contra el capitalismo globalizado. Su situación es
tan compleja, que no pueden centrarse en hacer distinciones entre conceptos que
pertenecen a referentes culturales distintos a los suyos. Durante la entrevista, María
de Jesús Patricio no pronunció términos como «patriarcado», «androcentrismo»
o «género», aunque lo que expresan sus palabras no deja lugar a dudas de que el
significado de cada uno de ellos le es conocido. Consciente de la influencia que
aún ejercen las tradiciones opresivas, subraya que los derechos de las mujeres no
pueden pedirse, sino que tienen que imponerse. Como zapatista, coincide en este
punto con sus compañeras de Chiapas al declarar que: «los hombres no están dis-
puestos tan fácilmente a decirnos: “ahí están sus derechos, los respetamos y los
reconocemos”. Somos las mujeres las que tenemos que proponernos hacer valer
nuestros derechos y asumirlos en la práctica. Los debemos ir tomando desde
donde estemos» (2011).
Para la médica nahua, el feminismo indígena es un proceso de descubrimiento
a través del cual ella misma está caminando. En su comunidad, ha podido compro-
bar que las resistencias no solo provienen de los varones, sino también de muchas
mujeres. Algunas sienten vergüenza de hablar en público, tienen miedo, piensan
que no pueden desempeñar las mismas tareas que sus compañeros. Esto se acentúa
cuando a las reuniones de las comunidades indígenas asisten personas que no per-
tenecen a ellas. En ocasiones, se hacen juicios externos sobre la escasa participación
de las mujeres sin llegar a comprender lo que sucede en el interior de los pueblos
originarios. María de Jesús Patricio recuerda el caso de Ostula, comunidad nahua
de la costa de Michoacán, México, que se levantó para luchar por el reconocimiento
de su autonomía en 2008, y que actualmente sigue resistiendo: «Las mujeres eran
las que iban adelante, la mayoría casi ni hablaba, pero estaban dispuestas a arriesgar
sus vidas para defender su territorio» (2011). Algo similar está sucediendo en Che-
rán, municipio que también forma parte del estado de Michoacán, y que tiene un
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 273
Para María de Jesús Patricio, las enfermedades que padecen los seres humanos están
vinculadas con el entorno social y ambiental. En sus propias palabras: «Hay una re-
lación de todo con todo. La salud de las personas tiene que ver con el cuidado del
agua, los árboles, los animales y la tierra» (2011). Sin embargo, a pesar de que cada
día mueren miles de seres humanos a causa de males relacionados con la contami-
nación producida por el capitalismo globalizado, los conocimientos indígenas siguen
siendo subvalorados en casi todas partes. A la medicina indígena se le acusa de ser
atrasada, poco científica e, incluso, nociva para la salud. Paralelamente, científicos
occidentales están patentando plantas medicinales y técnicas médicas ancestrales.
Como saber propio de los pueblos originarios, se le desprecia, pero como mercancía
para el mercado mundial, se exaltan sus beneficios. A este robo de saberes tradicio-
nales que denuncia nuestra médica nahua se le conoce como biopiratería.9
9
De acuerdo con Joan Martínez Alier este concepto se refiere a «la apropiación de los recursos
genéticos (silvestres o agrícolas) sin pago adecuado o sin reconocer a los campesinos o indígenas como
sus dueños (incluyendo el caso extremo del Proyecto Genoma Humano)» (2009: 325).
274 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Hay una relación especial de la mujer con la tierra. Así como la mujer da hijos, los cuida
y los protege, así también la naturaleza da alimento, medicinas y cobijo a los seres hu-
manos. Si esta se contamina o se destruye, sus habitantes no tienen posibilidades de so-
brevivir. En mi familia existe la costumbre de que cuando un niño nace se tiene que
enterrar su ombligo para que la tierra reconozca que ya hay un hijo más, es como enrai-
zarlo y, aunque vaya adonde vaya, siempre va a regresar a su raíz. En muchas creencias
se muestra que las mujeres tienen confianza de encontrar en la naturaleza remedios para
sus enfermedades. En Tuxpan, se creía que, cuando una mujer estaba en peligro de abor-
tar, tenía que ir a un nacimiento de agua, hacer un pocito y beber de ahí. Esa era la cu-
ración. Ahora, el río está tan contaminado que ya no es posible (2011).
Las afirmaciones de María de Jesús Patricio parecen coincidir con los ecofemi-
nismos esencialistas, según los cuales las mujeres mantienen una relación especial
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 275
CONSIDERACIONES FINALES
Resulta significativo que María de Jesús Patricio haya decidido tener una familia
pequeña, además de no haberse casado muy joven. Durante la entrevista, en nin-
gún momento exaltó los valores tradicionales de la «madre cuidadora» como ho-
rizontes del feminismo indígena. Aunque hizo algunas alusiones que podrían
interpretarse como argumentos esencialistas, sus testimonios giraron principal-
mente en torno a sus viajes, a sus intervenciones en espacios públicos, al trabajo
compartido con su esposo en la atención de las/os hijas/os y a sus contribuciones
al cuidado de la salud comunitaria. Más que una ecofeminista esencialista, nuestra
médica nahua puede ser considerada como una expresión del «sujeto mujer» que
la lucha de género, etnia y clase de las/os indígenas zapatistas está dando a luz. En
sus experiencias vitales se conjuntan feminismo, ecologismo y defensa de los pue-
blos originarios. Como mujer, exige la igualdad de derechos entre los sexos y la
participación de los varones en las tareas del cuidado de los seres humanos y no
humanos. El ecofeminismo que vindica es indígena, y debe ser comprendido desde
sus propias coordenadas culturales: la filosofía nosotrocéntrica de los pueblos ori-
276 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
ginarios y el feminismo de las indígenas zapatistas que están trazando caminos al-
ternativos para un futuro solidario, sostenible y plural.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACEVES LOZANO, Jorge (1997): «Un enfoque metodológico de las historias de vida»,
en Garay, Graciela (coord.): Cuéntame tu vida. Historia oral: historias de vida,
México, Instituto Mora, pp. 9-28.
AMORÓS, Celia (2012, 31 de marzo): «¿Hay un ecofeminismo crítico?», El País
(http://blogs.elpais.com/tormenta-de-ideas/2012/03/hay-un-ecofeminismo-cri-
tico.html) (consultado el 8 de octubre de 2012).
BONFIL BATALLA, Guillermo (2005): México profundo. Una civilización negada,
México, Debolsillo.
GARGALLO, Francesca (2012): Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones
de mujeres de 607 pueblos en nuestra América, Colombia, Desde abajo.
HERNÁNDEZ CASTILLO, Rosalva (ed.) (2008): Etnografías e historias de resistencia.
Mujeres indígenas, procesos organizativos y nuevas identidades políticas, México,
Publicaciones de la Casa Chata, CIESAS, UNAM.
LAGARDE, Marcela (1999): «Insurrección Zapatista e identidad genérica: una visión
feminista», en Lovera, S. y Palomo, N. (coords.): Las Alzadas, México, Comuni-
cación e Información de la Mujer y Convergencia Socialista, pp. 183-217.
LENKERSDORF, Carlos (1999): «El género y la perspectiva en tojolabal», en Estudios
de la Cultura Maya, Vol. XX, México, UNAM-IIFI, pp. 291-231.
— (2005): Filosofar en clave tojolabal, México, Miguel Ángel Porrúa.
— (2008): Los hombres verdaderos. Voces y testimonios tojolabales, México, Siglo
XXI.
MARCOS, Sylvia (2010): Cruzando fronteras: Mujeres indígenas y feminismos abajo
y a la izquierda, México, Cideci-Unitierra, Chiapas.
MARTÍNEZ ALIER, Joan (2009): El ecologismo de los pobres. Barcelona, Icaria.
MILLÁN, Márgara (2006): Participación política de mujeres indígenas en América
Latina: El movimiento Zapatista en México, República Dominicana, INTRAW.
PATRICIO, María de Jesús (2011): Entrevista realizada por la autora, material inédito.
PULEO, Alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Madrid, Cátedra.
SÁNCHEZ NÉSTOR, Martha (2005): «Ser mujer indígena en México: una experiencia per-
sonal y colectiva en el movimiento indígena en la última década», en Sánchez Néstor,
M. (coord.), La doble mirada. Voces e historia de mujeres indígenas latinoamericanas,
UNIFEM, México, Instituto de Liderazgo Simone de Beauvoir, pp. 89-103.
SHIVA, Vandana (1995): Abrazar la vida. Mujer, ecología y desarrollo, Traducción
de Ana Elena Guyer y Beatriz Sosa Martínez, Madrid, horas y HORAS.
APORTACIONES DE LAS MUJERES INDÍGENAS AL DIÁLOGO ENTRE FILOSOFÍA Y ECOLOGÍA 277
L
a participación creciente de mujeres que se reivindican feministas —o que
tienen prácticas que las sitúan en el campo del feminismo— en los movi-
mientos agroecológicos brasileños torna oportuna una reflexión sobre la
aproximación entre esos movimientos y los desafíos que esa convivencia ha traído,
en la práctica, para ambas fuerzas de la lucha social. Muchas de esas mujeres, a
pesar de sus distintos orígenes y prioridades —pues vienen de organizaciones tan
diversas como movimientos campesinos, de los sin-tierra y asociaciones y coopera-
tivas de producción ecológica, entre otras— están construyendo identidades co-
munes en cuanto agricultoras y militantes de los movimientos de mujeres que tienen
como base su compromiso en acciones cuestionadoras de las desigualdades de gé-
nero en el medio rural y del modelo productivo depredador del ambiente. Entre
tanto, por ser agricultoras familiares, están sumergidas en realidades opresivas en
el interior de las familias, viviendo la contradicción de criticar el modelo productivo
y de organización familiar y al mismo tiempo luchar para su reproducción —exac-
tamente porque lo consideran el más justo y adecuado para el desarrollo rural equi-
librado y equitativo.
El surgimiento público de los movimientos de mujeres agricultoras remonta, en
Brasil, a la década de 1980. Han sido muchas décadas de movilización y articulación
en torno al reconocimiento de su profesión, del derecho a la sindicalización, a ser
dueñas de la tierra, buscando la garantía de su autonomía financiera y productiva.
En el inicio del año 2000 tiene lugar la organización de la primera Marcha de
las Margaridas, una articulación de agrupaciones de mujeres de todo el país, lide-
radas por una confederación sindical de agricultores, que llevó cerca de veinte mil
mujeres a Brasilia para presionar al Gobierno por sus reivindicaciones. A partir de
ahí, otros movimientos —como los vinculados a La Vía Campesina— también em-
piezan a llevar a cabo acciones públicas lideradas por mujeres. Un nuevo escenario
280 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
El feminismo puede ser visto, al mismo tiempo, como una teoría crítica y como un
movimiento social que se dedica a desvelar los mecanismos de coacción estructural
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 281
responsables de la histórica subordinación de las mujeres por los hombres. Esos me-
canismos serán descritos como un sistema sexo-género, también llamado patriar-
cado, presente en la gran mayoría de las sociedades conocidas y que se sustenta sobre
raíces materiales, pero también ideológicas y simbólicas, perpetuando la creencia de
que las diferencias biológicas entre hombres y mujeres justificarían las desigualdades
sociales.
A lo largo de la historia, las mujeres no siempre se conformaron con esa situación
y buscaron formas de resistencia a la opresión. Sea en las grandes olas del feminismo
a nivel mundial, sea en momentos de menor agitación política, en diferentes épocas,
hombres y mujeres tuvieron que hacer esfuerzos intelectuales y políticos muy gran-
des para tornar visibles los «marcos de injusticia»1 en que se encontraban inmersos,
así como para poder obtener legitimidad para sus reivindicaciones de transforma-
ción social.
El feminismo llegó a los temas ecológicos ya en los años 60 del siglo pasado.
Había muchos elementos en común entre la crisis ambiental, que se avecinaba con
el avance de la industrialización y de la urbanización, y la percepción de los movi-
mientos feministas sobre el lugar destinado a las mujeres en esas sociedades emer-
gentes. A finales de los años 1970 surge el ecofeminismo, una teoría que buscaba
asociar la opresión que la humanidad ejercía sobre la naturaleza a la forma desigual
con que los hombres trataban a las mujeres.
Las ecofeministas europeas y norteamericanas destacaron en esos debates,
siendo su principal contribución la percepción de la existencia de un «marco opre-
sivo androcéntrico» (Warren, 1998), caracterizado por la postura arrogante que
orientaba las relaciones de los seres humanos con el medio natural y los demás seres.
Esa postura, además de antropocéntrica, era también androcéntrica y etnocéntrica,
porque reflejaba un desdén para con las condiciones de supervivencia del planeta,
así como en relación a las mujeres y otras categorías sociales que no fuesen hombres
blancos y adultos tomados como referencia de estándar moral. Vandana Shiva, con
su libro Abrazar la vida (1991), en que cuenta la historia de resistencia del movi-
miento de mujeres Chipko, en la India, destacó como una ecofeminista tercermun-
dista por haber cuestionado también el uso de la ciencia moderna en la destrucción
de los sistemas comunitarios de producción agrícola y forestal.
Entre esas diversas propuestas, destacamos aquí aquellas del ecofeminismo cons-
tructivista, que reconocen la necesidad de la organización de las mujeres en cuanto
sujetos políticos que tienen especificidades en las luchas sociales y, particularmente
en las cuestiones ambientales, considerándose igualmente los demás colectivos opri-
midos. Rescatan, así, el lenguaje de los derechos y de la igualdad como orientadora
de esta lucha, en la cual no puede haber espacio para ningún tipo de esencialismo
1
Expresión de Celia Amorós y Ana de Miguel, en su obra Teoría Feminista (2005).
282 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
ontologizante (Puleo, 2008). Para esa corriente, las alianzas entre los movimientos
feministas y ecologistas tendrían que darse a partir de algunos supuestos, entre ellos,
el de que es imprescindible el reconocimiento mutuo de la igualdad en términos
de dignidad y derechos entre hombres y mujeres y de la necesidad de posturas res-
ponsables de la humanidad ante el medio natural y los demás seres vivos. Esas serían
las condiciones para la construcción de utopías en las que el feminismo y ecologismo
tendrían un papel fundamental.
Diversos textos que describen las premisas y los métodos de la Agroecología se re-
fieren a las desigualdades de género como fuente de prejuicios contra las mujeres
y como aspectos que deberían ser considerados en la elaboración de sus programas
de investigación y propuestas de intervención.2 Sin embargo, no existe profundiza-
ción sobre esa problemática, que es fundamental para la comprensión de cómo se
expresan las relaciones de poder en el medio rural y qué determina, por ejemplo,
el vínculo de una fracción significativa de la población campesina (las mujeres) a
los medios de producción y a los recursos ambientales.
A pesar de esa ausencia de abordaje sobre el tema, es innegable que las relaciones
de poder determinan las condiciones de participación de los hombres y mujeres en
los espacios de decisión sobre el rumbo de la sociedad y por tanto, en la construc-
ción del desarrollo rural sostenible. Parece, de hecho, existir un vacío de análisis
entre el nivel micro enfocado por las teorías agroecológicas (el agro ecosistema) y
el nivel macro (las comunidades rurales, campesinas, indígenas y la agricultura fa-
miliar), un espacio que merece ser analizado, puesto que allí es donde se encuentran
las personas concretas, hombres y mujeres, que trabajan en la agricultura.
En Brasil, los primeros textos reivindicando una mayor atención a la participación
de las mujeres en la construcción de la Agroecología aparecerán a mediados de la
década de 1990, en la autoría de María Emilia Lisboa Pacheco, antropóloga vincu-
lada a una organización no gubernamental de asesoría a movimientos populares.3
2
Ver, por ejemplo, Hecht (2002); Caporal (1998); Sevilla Guzmán (1999).
3
Diversas investigadoras e investigadores (Paola Cappelin, Lena Lavinas, Leonilde Medeiros,
Zander Navarro, Cândido Gribowski, entre otros) ya venían refiriéndose al resurgimiento de los mo-
vimientos de mujeres agricultoras en Brasil, ocurrido durante la década de 1980. Esos movimientos
luchaban por el reconocimiento de las mujeres en cuanto trabajadoras rurales (buscando obtener de-
rechos sociales y seguridad social) y por el acceso a políticas productivas específicas (como tierra, cré-
dito, asistencia técnica) y comenzaban a ganar espacio en el conjunto de las luchas campesinas. María
Emilia Pacheco, sin embargo, fue la primera autora que se refirió específicamente a la participación
de las mujeres en la construcción de experiencias agroecológicas.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 283
Hay eslabones a establecer entre los debates sobre sostenibilidad y las relaciones sociales
de género. Ambas nociones se oponen a una visión productivista y economicista. Por
un lado, la noción de sostenibilidad se refiere al campo de las luchas sociales, a nuevas
relaciones entre sociedad y naturaleza, en una perspectiva democrática, para la denuncia
de la explotación de clase y de la injusticia social y ambiental. Por otro lado, la crítica al
paradigma dominante de la economía, hecha por el pensamiento feminista, quiere insistir
en la perspectiva según la cual un examen del desarrollo sostenible debe tener en cuenta
las dimensiones sociales y de género e integrar en ese concepto una distribución justa
de los recursos materiales, los conocimientos y el poder, un sistema de valoración eco-
nómica adecuado a la sustentabilidad del medio ambiente. (Pacheco, 2002: 8)
284 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
... las relaciones entre hombres y mujeres en el ámbito familiar y la forma en que la
familia es constituida y reproducida son tan importantes como las relaciones de clase
cuando se trata de explicar las diferencias sociales del campesinado, así como su repro-
ducción social. (Pacheco, 2005a: 2)
Uno de los puntos más difíciles sería justamente la desconstrucción del mito de
la familia como un conjunto armónico e integrado en el que todos ejercen papeles
complementarios, gestionados por el hombre. Esa visión idealizada escondía, en
realidad, que la familia era también un espacio donde se reproducían relaciones
desiguales de poder entre los hombres y las mujeres. No obstante, en un momento
en que se buscaba, justamente, afirmar la bondad intrínseca del modelo de agricul-
tura familiar, esa cuestión se tornaba delicada.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 285
4
Una excelente presentación de esa discusión puede ser encontrada en Abramovay (1992).
286 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
A partir del año 2000, comenzaron a realizarse algunas investigaciones sobre la par-
ticipación de las mujeres agricultoras en las luchas sociales rurales, así como en las
experiencias productivas vinculadas al movimiento agroecológico.5 Por primera
vez, eran enfocados los cambios ocurridos en los sistemas productivos de las pro-
piedades rurales desde el punto de vista de género, lo que llevó a concluir que, de
manera general, participar de experiencias agroecológicas proporcionaba la am-
pliación del espacio de actuación de esas mujeres, más allá de sus redes de sociabi-
lidad habituales.
Se señalaron algunos factores en los sistemas de producción agroecológicos que
favorecían la mejora de la situación de las mujeres
5
Ver Pastore (2003); Karam (2004); Mourão (2004); Burg (2005), entre otras.
UNA MIRADA ECOFEMINISTA SOBRE LAS LUCHAS POR LA SOSTENIBILIDAD... 287
6
Magalhães (2005) analiza un caso semejante también en el sur de Brasil: la masculinización de la
producción lechera en el oeste paranaense, mostrando como esa actividad, tradicionalmente consi-
derada femenina, pasa al control de los hombres cuando la leche se integra en un mercado más es-
tructurado y comienza a generar más renta para las familias. Queda claro que el factor de éxito
económico alcanzado con las actividades desarrolladas tradicionalmente por mujeres, por sí solo, no
explicaría una tendencia de la agricultura ecológica a abrir espacios para una mayor autonomía de las
agricultoras. Otros factores tendrían que ser analizados para entender mejor lo que favorecería o di-
ficultaría esas transformaciones.
288 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
U
no de los enfoques más vanguardistas y lúcidos de la crítica literaria en estos
tiempos de cambio climático es la Ecocrítica. Hay que remontarse a los
años sesenta del siglo xx para encontrar los orígenes de la toma de concien-
cia actual frente al deterioro medioambiental. En ese sentido, como certeramente
señala Greg Garrad (2004), el libro de Rachel Carson, Silent Spring, publicado en
1962, abrió tempranamente los ojos a la eco-catástrofe, poniendo el acento en el
hecho de que la destrucción de la naturaleza es obra del ser humano y nada tiene
que ver con fenómenos inexplicables. Este libro científico que denunciaba la acción
devastadora de los pesticidas tiene un arranque literario-poético en el cual se pre-
senta una maravillosa pintura de la campiña norteamericana. En «a Fable for To-
morrow», su primer capítulo, la narración pone el énfasis en la belleza de un lugar
que visita la gente para observar la variedad de pájaros que por allí pasan en su re-
corrido migratorio.1 Pero, casi sin transición, el mundo bucólico de la fábula se
convierte en el centro de una catástrofe que, de manera inexplicable, rompe ese
equilibrio armonioso, acarreando enfermedades y muerte. así, el canto de pájaros,
auténtica sinfonía natural, se torna en silencio de muerte que cubre los campos y
bosques. «Los pocos pájaros que se podían ver estaban moribundos, temblaban
violentamente y no podían volar. Fue una primavera silenciosa» (Carson, 1962,
2002: 2).2 Más adelante, en el capítulo tercero, «Elixirs of Death» nos muestra que
el causante de ese desastre será el DDT, un pesticida muy eficaz utilizado después
1
«The countryside was, in fact, famous for the abundance and variety of its bird life, and when
the flood of migrants was pouring through in spring and fall people traveled from great distances to
observe them» (Carson, 1962, 2002: 2)
2
Mi traducción.
292 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
de la Segunda Guerra Mundial para erradicar plagas, pero, al mismo tiempo, alta-
mente perjudicial para el medio natural y para sus moradores, humanos y no hu-
manos. Rachel Carson denunciaba que estos productos químicos se encuentran
hasta en los ecosistemas más remotos, están almacenados en los cuerpos de los ani-
males y llegan hasta el ser humano en todas sus edades, incluso a través de la leche
materna y los tejidos placentarios,3 hipótesis esta última posteriormente compro-
bada de manera irrefutable. Silent Spring es recordado como un texto pionero por
el movimiento ecologista.
3
«[...] have been found in fish in remote mountain lakes, in earthworms burrowing in soil, in the
eggs of birds-and in man himself. For these chemicals are now stored in the bodies of the vast majority
of human beings, regardless of age. They occur in the mother´s milk, and, probably in the tissues of
the unborn child» (Carson, 1962, 2002: 16).
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 293
4
Mi traducción.
5
Mi traducción.
294 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
que quien se acerca a su obra transite por nuevas formas de relación con el entorno
natural. Sin duda, la ecología está muy presente en el horizonte de expectativas de
Marguerite Yourcenar, una escritora pionera en dar la alerta sobre las catástrofes re-
lativas al deterioro de nuestro planeta. En esa línea, estudios como el coordinado
por andrea Padilla y vicente Torres en 2007, Marguerite Yourcenar y la Ecología,
un combate ideológico y político, son un instrumento valioso para conocer el alcance
del compromiso ecológico de nuestra autora. Como escribe Michèle Goslar en uno
de los artículos de este estudio: «Si lo político puede ser definido como voluntad de
incidir en el comportamiento de un grupo de individuos, puede decirse entonces
que la preocupación constante de Marguerite Yourcenar por el porvenir de los ani-
males y la naturaleza fue de carácter político. Esta preocupación por el respeto de
la vida humana y no humana se manifestó desde sus primeros escritos y en todos los
géneros que cultivó: novela y poesía, teatro y ensayos, traducciones y discursos, en-
trevistas y correspondencia» (Goslar, 2007: 37). Una amplia antología relativa a la
presencia del pensamiento ecológico de Yourcenar puede encontrarse igualmente
en la publicación de 1990 realizada por el CiDMY (Centre international de Docu-
mentation Marguerite Yourcenar) titulada Marguerite Yourcenar et l’Ecologie.
Efectivamente, un enfoque ecocrítico de su obra revela que en la mayoría de sus
creaciones siempre hay un resquicio para un compromiso real con respecto a la na-
turaleza y a los seres vivos, animales humanos y no humanos que la habitan. Pero,
ciertamente, además de los criterios temáticos, la obra de Yourcenar nos ofrece su
visión de la naturaleza a partir de una escritura con una gran fuerza estética, por lo
que se podría estudiar desde la ecopoética.
Marguerite Yourcenar (1903-1987) fue la primera mujer que ocupó un sillón en
la academia Francesa de la lengua. Su nombramiento, a propuesta de Jean d’or-
messon, tuvo lugar en 1981, no sin reticencias por parte de algunos «inmortales».
En efecto, fueron muchos los que opusieron gran resistencia a que una mujer en-
trara en ese recinto exclusivo, entre ellos Lévi-Strauss. El reconocido antropólogo
apoyó su negativa en el argumento de que «no se cambian las leyes de la tribu».
Yourcenar fue una escritora comprometida con la ecología. Manifestó también
su apoyo a la Declaración Universal de los Derechos de los Animales proclamada
por la Liga internacional de los Derechos del animal en 1978 y aprobada poste-
riormente por la onU y por la UnESCo. Siempre sostuvo que la ecología formaba
parte de su vida y que fue una de sus principales preocupaciones. En el capítulo
«Un écrivain dans le siècle», incluido en Les Yeux ouverts (Yourcenar, 1980), res-
ponde a las preguntas de Matthieu Galey sobre la ecología refiriéndose al sombrío
panorama que, ya a principios del siglo xx, pintaban algunas mentes clarividentes
como el geógrafo Schrader. Yourcenar considera que todas las catástrofes que en-
tonces se vaticinaban serán aún peores dado que a finales de siglo el panorama es
terrorífico: lluvia ácida, contaminación de ríos y mares por el mercurio y los residuos
296 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
6
Mi traducción.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 297
lume de las tierras y de las islas del norte del continente americano. Esta naturaleza
es mucho más que un escenario adecuado para el héroe. Se trata de una presencia
con realidad propia. nathanaël se siente maravillado por esta naturaleza no hete-
rodesignada y desde el barco percibe las costas hasta las cuales descienden «selvas
impenetrables». En esos momentos recuerda sus lecturas, los bosques al borde de
los santuarios de los que habla virgilio. al final de la historia la fusión de nathanaël
con la naturaleza será total.
no es de extrañar que Marguerite Yourcenar describa con fascinación, por
medio de su personaje, esos paisajes desprovistos de toda semantización cultural o
literaria. El ecocrítico Jonathan Bate, en su libro The Song of the Earth (Bate, 2000),
realiza el primer estudio con enfoque ecocrítico de la literatura inglesa, mostrando
la importancia que la poesía tiene en el nuevo milenio frente a la sociedad tecnoló-
gica, subrayando la capacidad de los escritores para devolvernos a la tierra que es
nuestro hogar. Esa capacidad la encontramos, sin duda, en buena parte de la lite-
ratura de Marguerite Yourcenar. incansable viajera, la escritora desarrolla un ima-
ginario de los lugares marcado por un compromiso que la lleva a denunciar los
desastres que afectan a los seres que habitan el planeta Tierra. En un ensayo de
gran calado ecocrítico, Writing for an endangered world, Laurence Buell acuña el
concepto de «place-connectedness» para hablar del vínculo con los lugares. En
concreto, habla de cinco formas de vinculación. Por su actividad y pensamiento,
Yourcenar podría ser adscrita a una de ellas, la tercera, que Buell denomina «lugares
no estables», es decir los que han cambiado su estructura por las fuerzas interiores
o exteriores que los han vulnerado.7 Cuando en 1942 la escritora descubre la isla
de Monts Deserts, en el estado de Maine, nace el vínculo que la llevará a vivir en
ella hasta el final de sus días. En ese lugar abierto al mar, declara: «uno tiene la im-
presión de estar en una frontera entre el universo y el mundo humano» (Yourcenar,
1982: 134).8 En el prólogo de uno de sus primeros textos, la obra de teatro La Petite
sirène (La Sirenita, de 1942), Yourcenar cuenta que, a partir de esa época, su gusto
por los paisajes del pasado fue dando paso a su interés creciente por los lugares
cada vez más escasos en los que todavía no había dejado su huella la horrorosa aven-
tura humana (Yourcenar, 1971: 176). En su trilogía autobiográfica Le Labyrinthe
du Monde (escrita entre los años 1974 y 1988 y recogida en Gallimard-La Pléiade
en el volumen de Essais et Mémoires (1991), la autora constata la degradación de
los idílicos lugares de su infancia. En la primera entrega, Souvenirs pieux (1974) (Re-
cordatorios) (Yourcenar, 1991) se centra en la investigación de sus raíces maternas.
7
«Just as modern place attachment, such as it is, tend to be more or less dispersed, so, conversely,
to introduce a third consideration, the places themselves are no stable, free-standing entities but con-
tinually shaped and reshaped by forces from both inside and outside.» (Buell, 2001: 67).
8
Mi traducción.
298 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
Con el fin de ser fiel a la realidad, la narradora visita los lugares que fueron testigos
del pasado familiar. De esta manera, completa con viajes a Bélgica, la tierra de sus
ancestros, lo aprendido en los documentos consultados que le sirven de guía. Du-
rante uno de ellos, en 1956, se detiene en el castillo de Flémalle. Marguerite Your-
cenar considera de vital importancia visitar las mansiones porque esas piedras y esos
interiores, que vieron pasar la vida de las gentes que los habitaron, también ayudan
a reconstruir la memoria. al recorrer ese lugar, que ya conocía y que le había llamado
la atención en un grabado de su posesión, Yourcenar constata de qué manera mueren
los símbolos de la Historia. El lugar virgen que mostraba el grabado era ahora un
lugar sin hierba ni árboles, una zona industrial con su «topografía de infierno» (Your-
cenar, 1991a: 763). Del castillo, solo quedaban unas ruinas. La mansión había sido
adjudicada a una empresa de derribos. La parte mejor conservada era una barandilla
con sus hierros del siglo xviii. Yourcenar llega el día del cierre antes del derribo y al
verla piensa, como en los grabados de Piranesi, que también esa escalera parecía
subir alegremente hasta el cielo (Yourcenar, 1991a: 764).
En un viaje posterior, esta vez en 1971, Yourcenar constata la degradación del
lugar. nubes malolientes y amarillas que llegaban al cielo ahogaban al visitante. El
paisaje estaba salpicado de minas de carbón cerradas y de edificios abandonados
que le recuerdan el castillo en ruinas del negro encantador que aparece al final de
un acto de Parsifal. Su grabado «Las Delicias de la comarca de Lieja» se había trans-
formado en un «apocalipsis» (Yourcenar, 1991a: 766) provocado por los errores
del ser humano que se mete a aprendiz de brujo. al presentar la desfiguración in-
dustrial de la región de sus padres, Marguerite Yourcenar deja, a la vez, constancia
de su compromiso ecológico. Recupera los vestigios de su pasado familiar para juz-
gar el mundo que la rodea.
En el segundo libro de la trilogía familiar titulado Archives du Nord (1977)
(Archivos del Norte) (Yourcenar, 1991), la escritora bucea en los orígenes fami-
liares paternos. «Despega» de la noche de los tiempos imaginando cómo sería
antes del nacimiento del mundo el lugar en que vivió su familia. Con esa visión,
rememora ese tiempo en que el hombre no existía todavía (Yourcenar, 1991: 954)
e imagina una naturaleza virgen que cambia según las estaciones aún no ampu-
tadas por calendarios ni relojes. La autora nos devuelve el silencio solo interrum-
pido por los ruidos de los animales libres en su entorno natural. acto seguido,
en contraste con la idílica paz descrita, aparece el «depredador-rey […] el leñador
de los animales y el asesino de los árboles, el cazador que dispone de sus trampas
en donde se estrangulan los pájaros» (Yourcenar, 1991: 957), en suma, el hombre
con sus poderes que vienen a ser una anomalía dentro del conjunto de las cosas.
Su aparición no será beneficiosa para ese jardín primitivo. Yourcenar lo concibe
en toda su brutalidad: «Los cómics y los manuales científicos populares nos
muestran a ese adán sin gloria bajo el aspecto de un bruto peludo blandiendo
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 299
una porra: nos hallamos lejos de la leyenda judeo-cristiana para la cual el hombre
original deambula en paz por la sombra de un hermoso jardín» (Yourcenar,
1991b: 958).9
Situando la ficción de Un hombre oscuro en el siglo xvii, Yourcenar nos alerta
del peligro que se cierne sobre los espacios naturales con el advenimiento de la Mo-
dernidad. nathanaël admira la inmensa belleza de la naturaleza virgen y su pensa-
miento transmite a los lectores la fragilidad de las selvas que ya empiezan a ser
destruidas por la desmesura humana. Una desmesura que, según Yourcenar, nació
con el hombre (Yourcenar, 1982: 296). Sin embargo, en cierta medida, Yourcenar
denuncia desde la literatura, como también lo haría Carolyn Merchant en su ensayo
The Death of Nature (Merchant, 1983), la filosofía mecanicista que despoja a la
naturaleza de su antigua dignidad en tanto poseedora de energía espiritual. Como
se evidencia también en la elección de la figura del alquimista en tanto personaje
principal de la novela «L’Oeuvre au Noir»10 (Yourcenar, 1982b), Yourcenar se siente
atraída por el animismo renacentista que sucumbió más tarde a los embates del me-
canicismo. En su obra encontraríamos la crítica a una modernidad tecnológica, que
pasó a considerar la Terra Mater como una materia prima pasiva, inerte y atomística.
Una modernidad que inicia el «desencantamiento del Mundo», preparando así la
instalación de la explotación intensiva y la guerra contra la naturaleza que denun-
ciará tres siglos después Rachel Carson con su Primavera silenciosa.
9
Mi traducción.
10
Cuyo título fue traducido en una de las versiones en español justamente como El Alquimista.
11
«Le sens d’une vie enfermée dans une forme différente» (Yourcenar, 1974: 298).
12
«Je vous félicite d’avoir eu le courage de traiter ce sujet (il en est peu de plus graves) et de dé-
daigner d’avance le reproches de sentimentalité que les sots ne manqueront pas de vous adresser»
(Yourcenar, 1995: 165).
300 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
SEnSoCEnTRiSMo Y BioCEnTRiSMo
13
Mi traducción.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 303
enorme cantidad de textos que nos muestran su pensamiento y nos explican el mé-
todo de creación yourcenariana. Como subraya Rémy Poignault, estos textos «te-
nían ante todo un objetivo personal, a saber, el de la meditación cotidiana a la
manera de los estoicos, los cristianos o los filósofos orientales» (Poignault, 2007:
49). Uno de los apartados lleva por título «Souhaits» (anhelos). En él habla de sus
deseos con relación al mundo en que querría vivir: «Un mundo donde todo objeto
viviente, árbol, animal, fuera sagrado y jamás destruido, salvo con aflicción y en
caso de necesidad» (Yourcenar, 1999: 240). Por otro lado, Yourcenar escribe en
«L’Homme qui aimait les pierres», uno de los ensayos incluidos en el libro En Pelerin
et en Étranger (1991) (Peregrina y Extranjera) y dedicado al escritor Roger Caillois,
que la piedra es anterior al hombre, es «un alfabeto inconsciente» (Yourcenar, 1991:
552), una sorda vibración secular. La autora llega incluso a hablar de la amistad de
las piedras, de su significado, de su importancia, porque como ya vio el místico me-
dieval Eckhart, «la piedra es Dios, y el hecho de no saberlo la determina como pie-
dra» (Yourcenar, 1991: 550). Uno de sus últimos libros —La voix des choses
(Yourcenar, 1987)— insiste en los mensajes que un objeto puede transmitirnos. Su
título hace alusión al sonido que emite una placa de malaquita de antigüedad inme-
morial, proveniente de la india, que se le cae de las manos y se rompe cuando la es-
critora estaba hospitalizada y con gran debilidad. Yourcenar se siente consternada
por la destrucción de un mineral de dibujo perfecto y casi tan antiguo como la Tierra.
no obstante, observa, el sonido que emite al romperse es muy bello, es un ejemplo
de la voz de las cosas que nos hablan. Como en otros pensadores biocéntricos, en
Yourcenar, lo animado va incluso más allá de lo que llamamos «seres vivos».
Comparando su pensamiento con el de los teóricos ecocéntricos actuales, ¿po-
dríamos decir que Yourcenar estaría en la línea de un biocentrismo holístico que
solo concede valor a los ecosistemas sin otorgarlo a ningún individuo en sí mismo?
Considero que no. Creo haber dejado claro a través de los ejemplos anteriores que
Yourcenar adoptaría más bien un biocentrismo en el que no esté ausente una ética
de la responsabilidad hacia todos y cada uno de los seres vivos no humanos. En
todo caso, su ecocentrismo respondería a un espiritualismo anti-violento de mar-
cado acento místico, a un sentido de comunicación con la Totalidad. Por ello, para
Yourcenar, las plantas y las piedras practican la reciprocidad, nos agradecen por
nuestros cuidados o nos envían oscuras vibraciones cuando las tocamos (Yourcenar,
1980: 322). Esta idea la encontramos también en Un hombre oscuro, donde se puede
observar cómo nathanaël rechaza toda violencia contra cualquier forma de vida
animal o vegetal: «El chico amaba asimismo a los árboles; los compadecía, por muy
altos y majestuosos que fueran, por ser incapaces de huir o de defenderse entrega-
dos al hacha del más débil leñador» (Yourcenar, 1982: 990).
304 ECoLoGía Y GénERo En DiáLoGo inTERDiSCiPLinaR
a MoDo DE ConCLUSión
Yourcenar siempre declaró que sus libros caminaron a la par que su propia evolu-
ción vital. al final de su vida, su gran anhelo consistía en que el planeta estuviera
libre de violencia y contaminación. Por esa razón nunca dejó de manifestarse en
contra de los que llamó «asesinos de la naturaleza» y «verdugos» de los animales.
En Yourcenar, la literatura no solo es una composición estética, sino un compromiso
ecoético pionero que, como tal, no ha sido suficientemente reconocido.
La Ecocrítica, como enfoque analítico, ha de ser también, sin duda, un compro-
miso literario y político, pues no se pueden cortar los lazos entre la ficción y el con-
texto del cual emana. La crisis ambiental global no es ninguna metanarrativa. En
suma, sería pertinente señalar que la autonomía total de los textos no existe. Por
eso, cuando hacemos estudios con este enfoque innovador hay que buscar las hue-
llas de las ideas y de las representaciones de la naturaleza e intentar evaluar los tex-
tos, como declara Kerridge, «en términos de su coherencia y utilidad como
respuesta a la crisis medioambiental» (Kerridge, 1998: 5). Ello no obsta para que
también desde la ecopoética, para la cual existe, indudablemente, excelente material
en la obra yourcenariana, lleguemos a sensibilizarnos del terrible peligro que ame-
naza la supervivencia de nuestro planeta. a la luz de una lectura ecocrítica, enri-
quecida por la ecopoética, del temprano pensamiento ecológico de Marguerite
Yourcenar, podemos decir que esta innovadora corriente de la crítica literaria nos
ofrece una herramienta preciosa de análisis literario desde un compromiso ecoético
abarcador.
REFEREnCiaS BiBLioGRáFiCaS
BaTE, Jonathan (2000): The Song of the Earth, Cambridge, Harvard University Press.
BEaUvoiR, Simone de (2008): El Segundo sexo, prólogo de Teresa López Pardina,
trad. Elena Martorell, Madrid, Colección «Feminismos», Cátedra.
BLanC, nathalie, Chartier, Denis, Pughe, Thomas, (2008) : «Littérature et Ecologie:
vers une écopoétique», Revue Ecologie et Politique, nº 36, La Ferté Saint aubain,
pp. 15-28.
BUELL, Laurence (1995): The Environmental Imagination, Cambridge, Harvard
University Press.
CaRSon, Rachel (2002): Silent Spring , Boston-new York, Mariner Books.
CiDMY, (1990): Marguerite Yourcenar et l’Ecologie, Bulletin, nº 2, Bruxelles.
GaaRD, Greta (ed.) (1993): Ecofeminism. Women, Animals, Nature, Philadelphia,
Temple University Press.
GaRRaD, Greg (2004): Ecocriticism, London and new York, Routledge.
La ECoCRíTiCa, vanGUaRDia DE La CRíTiCa LiTERaRia 305
E
l crítico William Rueckert (1978), ya en la década de los años setenta, se pre-
guntaba por el papel de la teoría y crítica literaria. Se preguntaba si simple-
mente eran modas académicas o si tenían una relevancia significativa para
el mundo en el que vivimos. Afirmaba que era necesario que surgiera una escuela
de crítica literaria que abordara el medio ambiente, pues nada podía ser más urgente
y relevante que la crisis medioambiental que se avecinaba. Su anhelo tardó en llegar.
Surgieron escuelas de crítica literaria asociadas al feminismo, a las minorías raciales
y al poscolonialismo. Pero hasta la década de los noventa, la crítica literaria perma-
necía aparentemente indiferente a los crecientes problemas medioambientales. En
estas líneas, pretendo resumir el surgir de la ecocrítica y mostrar el fructífero diálogo
que mantiene con la filosofía ecofeminista.
La ecocrítica, como escuela de crítica literaria, nace formalmente en la década
de los noventa en el Oeste americano con la fundación en 1992 de la Asociación
para el Estudio de la Literatura y Medio Ambiente (ASLE en sus siglas en inglés).
Esta asociación, que en la actualidad cuenta con más de 1800 socios, tiene filiales
directas o bien asociadas en Canadá, Oceanía, Japón, India, Taiwán, Brasil, Reino
Unido y en otros países europeos con la asociación EASLCE. En 1993, Patrick Murphy
fundó la revista ISLE (Estudios Interdisciplinarios de Literatura y Medio Ambiente),
que pasó pronto a ser la revista de la asociación y, hoy en día, es gestionada por Ox-
ford University Press con 4 números al año y una altísima demanda. El desarrollo
en Europa ha sido algo más lento y liderado por el Reino Unido con la revista Green
Letters, fundada en 1999. En 2004 se funda la asociación europea y en 2010 Eco-
1
La investigación para este trabajo fue financiada por el proyecto CLYMA (Ref. IF 2011-009) del
Instituto Franklin de la Universidad de Alcalá y por el proyecto I+D (HAR2011-23678).
308 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
del momento, a partir del 2000 surge la necesidad de desarrollar teorías propias.2
Muestra de ello es la sección especial de la revista ISLE, dedicada al debate teórico
como consecuencia de los arduos debates que se venían dando (17.4, 2010). A partir
del año 2009, con la publicación del número especial de MELUS (2009, 34.2) sobre
la etnicidad y el medio ambiente, del volumen Ecocríticas. Literatura y medio am-
biente (2010) y la fundación de Ecozon@, empiezan a proliferar estudios de otras
literaturas y regiones y tímidamente el uso de otros idiomas. En esta década, la eco-
crítica ha vuelto su mirada hacia la globalización y su implicación para el medio
ambiente. Se está cuestionando la desaparición o re-definición del concepto tradi-
cional del sentido del lugar y arraigo con las crecientes diásporas y se está desarro-
llando el concepto del eco-cosmopolitismo. Asimismo, los conceptos de la justicia
medioambiental, los ecologismos del sur, la eco-justicia y el decrecimiento se con-
vierten en ejes centrales de la ecocrítica. La filosofía feminista materialista ha co-
brado gran interés con su lógica extensión hacia la ecocrítica materialista. De forma
resumida, esto podría constituir la vertiginosa evolución de la ecocrítica en la que
las tres tendencias conviven.
¿Qué hace un ecocrítico? En primer lugar, la metodología que usa suele ser la
ya tradicional de la crítica literaria, una lectura detenida y detallada del texto, el lla-
mado «close reading». Lo que diferencia esta escuela de otras es el enfoque, los as-
pectos del texto que interesan. Por una parte, podríamos decir que le da la vuelta
a la crítica tradicional al interesar tanto o más aquello del exterior que lo del interior.
Se fija en las imágenes de la naturaleza y del entorno, no como un telón de fondo
sobre el cual los seres humanos actúan, sino como un agente más, un personaje más
que se interrelaciona con los seres. Se fija en ese entorno y sus implicaciones para
el texto, sea como fuente de recursos para unos exploradores o la inspiración para
la mente. ¿El entorno condiciona a los seres humanos o es el humano quien pre-
tender controlar su entorno? El ecocrítico estudia la representación de la naturaleza
y su referente material (i.e. ¿la tormenta es una tormenta meteorológica real, o una
metáfora o símbolo?). ¿Esa representación es fiel a la realidad material o un arque-
tipo? Las implicaciones de esas imágenes y sus referentes materiales reflejan la ac-
titud del autor o personaje y permite al crítico extraer las actitudes culturales y sus
consecuencias para el medio ambiente. El ecocrítico también busca la sabiduría
ecológica de un texto (o su ausencia) y analiza las implicaciones. Analiza las actitu-
des alternativas que puede plantear un autor. El ecocrítico, sin dejar de lado los
pensamientos y el espíritu humano, también enfatiza el entorno, lo más-que–hu-
mano que nos condiciona. En este sentido, su análisis no es antropocéntrico, me-
ramente enfocado hacia el ser humano, sino eco-céntrico, atento a la realidad
2
Esto constituye una de las críticas más frecuentes a la ecocrítica, promoviendo cierto rechazo
por parte de las instituciones académicas (ver Barry, 2009).
310 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
material y física de ese organismo tan complejo que es el mundo. El ecocrítico cues-
tiona las dicotomías falsas de nuestra cultura como pueden ser cultura/naturaleza,
humano/animal, mente/cuerpo. Estos términos no pueden ser opuestos y mutua-
mente excluyentes, ya que están íntimamente imbricados, existiendo en un continuo
con diferentes gradaciones. Un paisaje puede ser «naturaleza salvaje» si no se per-
cibe la mano humana (aunque con los temas de contaminación y lluvia ácida es pro-
bable que tal paisaje no exista) o bien casi totalmente cultural como pueden ser los
parques en cualquier ciudad.
Diversos ecocríticos también utilizan conceptos eco-céntricos para analizar otras
realidades. Por ejemplo, se podría hablar del proceso de crecimiento y desarrollo
de un texto, o la cultura como un sistema ecológico. William Rueckert hace esto en
su «experimento» ecocrítico. Sugiere que consideremos un poema como energía
almacenada que se libera con cada lectura. Ve la poesía como una vía energética, el
equivalente verbal de los combustibles fósiles pero renovables ya que procede de
dos matrices generativas: el lenguaje y la imaginación. Cada lectura constituye una
transferencia energética que fluye desde la poesía hacia los centros lingüísticos e
imaginativos de los lectores. La docencia y el discurso crítico amplían e intensifican
la energía, creando el medio idóneo para que fluya hacia la comunidad (1978: 108-
110). La ecocrítica también analiza la denuncia (o su falta) hacia problemas medio-
ambientales que figuran en los textos culturales y reivindica una responsabilidad
ética hacia el mundo más allá de lo humano. Analiza y resalta las actitudes alterna-
tivas, más sostenibles, que aparecen en las obras de algunos autores.
Si bien la ecocrítica norteamericana tiende a celebrar la naturaleza y la impor-
tancia de buscar cierta paz y sosiego en ella, la ecocrítica británica, cuyas fuentes
principales yacen en el romanticismo inglés, tiende a denunciar los desastres.
Abundan los estudios sobre el cambio climático y un cierto tono apocalíptico. Al
igual que la incipiente ecocrítica española, los temas de la globalización, de los ex-
cesos del capitalismo, los alimentos transgénicos y la obsesión con el crecimiento
llenan sus páginas. En Europa parece importar más la sostenibilidad y el decreci-
miento que la conservación de parques o reservas naturales, siendo ambas cosas
importantes.
Hecho este pequeño resumen de las bases de la ecocrítica, quisiera dirigirme
ahora a la filosofía ecofeminista. El ecofeminismo surge con Françoise d’Eaubonne
en 1974. Como señalan Alicia Puleo (2011), Val Plumwood (1993) o Karen Warren
(1996), entre otras, hay muchos tipos de ecofeminismos y no es el objeto aquí de
resumirlo y menos aún en un foro donde el conocimiento del ecofeminismo es
obvio. Lo que pretendo es ilustrar cómo la filosofía ecofeminista ha influenciado a
un sector de la ecocrítica, dando lugar a unos análisis literarios muy interesantes.
Ya en 1995, Patrick Murphy publica su clásico Literature, Nature, and Other: Eco-
feminist Critiques, quizás el primer estudio amplio de las relaciones entre la natu-
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 311
raleza y la otredad en textos literarios. En 1998 co-edita con Greta Gaard Ecofe-
minist Literary Criticism and Pedagogy, y continúa publicando libros y artículos
relacionados con el tema. Murphy recoge las teorías ecofeministas y las aplica a la
crítica literaria. Con esto sembró unos de los diálogos más fructíferos entre la filo-
sofía y la crítica literaria.
Scott Slovic y Paul Slovic, ecocrítico y psicólogo, respectivamente, afirman que
para interiorizar conceptos complejos o abrumadores como la crisis medioambien-
tal, el hambre y el desarrollo a nivel global, hacen falta tanto los números como lo
experiencial. Puesto que no todos podemos experimentar las vivencias de otros países
o seres, el arte, la metáfora, la imagen sirven para acercarnos, y en muchas ocasiones
con mayor efectividad que los números que nos llegan a dejar insensibles
(2004/2005: 14). Karen Warren reivindica la narrativa en primera persona, pues
permite que la ética emerja de una experiencia contextualizada, no impuesta, que
distinga entre diferentes actitudes y experiencias (1996: 27). Jim Cheney afirma que
una narración es esencial desde el punto de vista argumentativo, ya que desarrolla
el contexto en el cual se produce el dilema ético y la solución a la que se llega (1987,
144). Como nos explica Brian Boyd, la narrativa y los relatos nos permiten multi-
plicar e imaginar las posibles opciones que tenemos y cómo reaccionar ante cual-
quier evento (2009, loc. 4675). Lisa Zunshine afirma dentro de su «teoría de la
mente» que la ficción cumple tres funciones esenciales: nos permite organizar y ma-
tizar nuestras emociones y percepciones; nos confiere conocimiento o mayor en-
tendimiento, desarrollando un sentido ético más agudo; y crea nuevas formas de
entender nuestra existencia diaria (Zunshine, 2006, loc. 3571-75). Joseph Meeker,
un ecologista humano y especialista en estudios comparados entre comportamiento
animal y humano, afirma en Comedy of Survival que la literatura puede ser inter-
pretada como filosofía y utilizada para influenciar las vidas de varias generaciones
ya que, de forma consciente o inconsciente, la gente frecuentemente imita perso-
najes literarios y tienden a recrear en sus propias vidas aquello que han «vivido» en
los textos literarios. De tal manera, afirma que los relatos nos dan un modelo de re-
laciones entre seres humanos y no-humanos que pueden influenciar la percepción
humana de la naturaleza y sus reacciones ante ella (1977).
Así pues, mi premisa es que algunos textos literarios no solo pueden ilustrar
principios éticos, sino también señalar el proceso de deliberación y el contexto para
que el lector entre en diálogo hipotético con el texto, planteando sus propias dudas
y reflexiones. Como afirma Mª Teresa López de la Vieja, los relatos nos dan una
ilusión de cercanía, plantean nuevas posibilidades y soluciones imaginarias que
muestran al lector una amplia gama de experiencias (2003).
Por tanto, propongo recoger algunas ideas del ecofeminismo social (o de inte-
gración crítica, como lo denomina Alicia Puleo, 2000) de Val Plumwood y Karen
Warren e ilustrar cómo pueden ser aplicadas a la crítica literaria para el análisis de
312 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
3
Las traducciones de los textos literarios son propias, ya que no se han traducido al español. El
original figura en la nota: «when the land was worn out, the beaver and wolf gone, mostly dead, the
men moved on to what hadn’t yet been destroyed, leaving their women and children behind, as if
they too were used-up animals» (1995: 28).
4
«This was one more thing they had done to her body without her consent and supposedly for
her own good. “We used to treat animals that way”, she muttered bitterly» (1987: 31).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 313
mily and Place, en el cual establece el paralelo entre su vida, la muerte por cáncer
de mama tanto de su abuela como de su madre, con la crecida de nivel del Gran
Lago Salado que inunda el refugio de pájaros migratorios donde trabajaba. Esta-
blece la relación entre el cáncer, que ella también ha padecido, con las pruebas nu-
cleares que las tres presenciaron en los desiertos de Nevada. Y reflexiona:
«Hablamos de rabia. De mujeres y el paisaje. Cómo nuestros cuerpos y el cuerpo
de la tierra habían sido minados».5 Ann Pancake, cuya novela Strange as This Weather
Has Been denuncia la voladura de las montañas de los Apalaches para extraer el
carbón en minas a cielo abierto, equipara el paisaje a las personas y su sufrimiento.
La protagonista, al ver el vacío de las montañas que ya no se elevaban, dice «Era
como ver fotos pornográficas… como ver fotos de gente desnuda. Como ver fotos
de cadáveres».6 Otro ejemplo muy politizado, pero que claramente aporta la pers-
pectiva de los ecologismos del sur y la dominación paralela de las mujeres, indígenas
y la naturaleza, es el breve texto «I’m on Nature’s Side» de Aurora Levins Morales,
dentro de su libro, co-escrito con su madre, Getting Home Alive.
Pero yo soy del Tercer Mundo, mujer nacida de clase obrera. Veo las cosas desde el
punto de vista de la naturaleza, desde el punto de vista del insecto, el insecto en el maizal
chupando el jugo de la dulce y crujiente caña o la rica carne tierna de grano de maíz re-
cién salido…
[...]
Esos bichos allí en nuestros campos de trigo, maíz, huertos y jardines, ellos quieren
lo mismo que nosotros —la tripa llena de grano y el corazón de alegría… Eso los convierte
en pestes. Para controlarlos, jardineros y escuelas agrícolas, granjeros y multinacionales
rocían venenos, distribuyen mantas envenenadas, sueltan depredadores y ejércitos, des-
truyen nidos y pueblos y barrios. Y morimos. Muchos de nosotros morimos.7
En este texto, Morales pasa de un sujeto en primera persona del singular a adop-
tar el plural, uniéndose ella a los «bichos» que sufren la opresión. Combina la opre-
sión de los insectos por plaguicidas con la opresión de los pobres con mantas
5
«We spoke of rage. Of women and landscape. How our bodies and the body of the earth have
been mined» (2001: 10).
6
«But it was like dirty pictures I was seen […] Looking at pictures of naked people. Like looking
at pictures of dead bodies» (Pancake, 2007, loc. 840-843).
7
«But I’m a Third World, born working class woman. I look at it from nature’s point of view, from
the insects point of view, the insect out in the cornfield sucking the sweet juice of the crunchy cane or
the nourishing mealiness of the newly plumped kernel… Now those bugs out there in our wheatfields,
cornfields, orchards and gardens, they’re out for the same things we are—for a stomach full of grain
and a heart full of joy… That makes them pests. To control them, gardeners and agricultural schools,
farmers and multinationals spray poisons, distribute infected blankets, unleash predators and armies,
demolish nesting sites and villages and neighborhoods. And we die. Many of us die» (1986: 68).
314 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Estas ideas de Karen Warren son claramente compartidas por Val Plumwood.
Esta última no solo denuncia esa opresión, sino que en su último libro, Environ-
8
«I stopped there to make sure, tugging after my breath, the gnats wavering in, and it was, the
distance was shutting. A feeling closer to the trees all around. I took off again, really running this
time, the curve and dip of the ground echo-shaping the curve and dip of my body the way a flat road
never did, and the more the distance shut, the faster the badness dropped away» (2007, loc. 544-547).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 315
mental Culture, da un paso más, articulando una ética inter-especies. Afirma que
debemos emplear una metodología dialógica, recíproca, que implica el considerar
al otro como potencialmente comunicativo y como sujeto-no objeto (2002: 190).
Ella destaca varias estrategias para contrarrestar la hegemónica lógica de la domi-
nación. Estas estrategias son: el reconocimiento de la continuidad entre lo humano
y lo no-humano para derribar las barreras creadas por la dicotomía excluyente hu-
mano/naturaleza; reconstruir la identidad humana de forma que se reconozca nues-
tra animalidad, desplazando el excesivo valor atribuido al raciocinio; reconocer la
diferencia de los seres no-humanos como otras «naciones» de forma positiva y no
jerárquica; hacer el esfuerzo de no homogenizar las categorías humana y naturaleza;
mostrar actitudes de apertura hacia el ser no-humano como un ser potencialmente
intencionado y comunicativo, o sea, sujeto y no objeto; hacer el esfuerzo de escuchar
al otro; invitar de forma activa a la posible comunicación e interacción; estar dis-
puestos a redistribuir los recursos; otorgar una consideración ética hacia estas clases
excluidas; dejar de categorizar las especies de forma jerárquica, valorando los con-
textos; adoptar una actitud reflexiva y autocrítica en los dilemas éticos; estar abierto
hacia la negociación y el ajuste mutuo con otros seres; y reconocer la complejidad
del otro y nuestras limitaciones en su conocimiento (2002: 194). Estas estrategias
apuntan claramente unas pautas a seguir, precisamente para lograr lo que Karen
Warren afirmaba como la octava característica de una ética ecofeminista, la re-con-
cepción de lo que implica ser humano y de lo que puede ser un comportamiento
ético hacia los demás.
Estas estrategias teóricas pueden ser claramente reflejadas en textos literarios
con ejemplos de actitudes y comportamientos, más fáciles de entender. Por ejemplo,
Williams, en su novela Refuge, enfatiza la continuidad entre los pájaros y las perso-
nas (además del lago en otros fragmentos): «Los pájaros y yo compartimos una his-
toria natural. Es cuestión de arraigo, de raíces, de vivir en un lugar tanto tiempo
que la mente y la imaginación se fusionan».9 El escritor chicano, Rudolfo Anaya
constata que «el paisaje cambia al hombre y el hombre se convierte en paisaje».10
Linda Hogan en todas sus novelas afirma la continuidad entre los seres humanos y
los demás seres. Angela, protagonista de Solar Storms, se da cuenta de que ella «era
parte de la misma ecuación que los pájaros y la lluvia».11 Tal y como sugiere el crítico
Randy Malamud, el objetivo de los textos literarios sobre animales debiera ser, a
través de la imaginación empática, situar al poeta/lector y al animal en el mismo
término, como co-habitantes, simultáneos y, por tanto, ecológicamente y experien-
9
«The birds and I share a natural history. It is a matter of rootedness, of living inside a place for
so long that the mind and imagination fuse» ((2001: 21).
10
«The landscape changes man, and the man becomes landscape» (1977: 41).
11
«[W]as part of the same equation as birds and rain» (1995: 79).
316 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
cialmente iguales (2003: 33) y esto lo podríamos extender a todos los seres de la
tierra.
Otra estrategia que esboza Plumwood es mantener una actitud abierta, dispuesta
a la comunicación con el otro. Los textos literarios abundan en ejemplos. Como no
podía ser de otra manera, las novelas de Hogan lo muestran. En la novela Power,
vemos a la protagonista Omishto y su tía Ama siguiendo a una pantera. En un mo-
mento la pantera se para y ven que: «El gato nos mira. No huye. En la oscuridad,
sus ojos brillan y es lo que veo. Ojos. Parece mirar más allá de nosotras. Su mirada
nos atraviesa. Entonces, con calma, como si estuviera segura de que seguiríamos,
lentamente se aleja. Nos está llamando… ese brillo de los ojos es su testimonio. Su
voz, sus palabras». A continuación, Ama les presenta: «el gato levanta la cabeza y
mira y [Ama] me muestra al gato y lo que hace es que me presenta al gato y el gato
a mí. Dice mi nombre al mirarme, como si fuera tanto una ofrenda como una
amiga».12 En este fragmento no solo se reconoce la capacidad comunicativa de la
pantera sino su agencialidad, su condición de sujeto al mismo nivel que Omishto y
Ama. Omishto se muestra abierta a aceptar esa realidad y reconocer una comuni-
cación con la pantera, aunque no sea ni verbal ni racional.
Los personajes de las novelas aprenden a escuchar y oír a la naturaleza, como Án-
gela que dice «Creí oír las voces del mundo, de todo aquello que nos rodeaba —las
piedras, las aguas fluyendo hacia su desembocadura, las águilas pescadoras con sus
garras en un pez, incluso los pececillos y huevas. Oía los árboles con sus raíces aga-
rrando el suelo»,13 o Lila que era «escuchadora de la voz del agua, una mujer que
interpretaba la historia del río para su pueblo. Un río nunca miente. A diferencia de
los humanos, no tenía la necesidad de distorsionar la verdad, y ella oía la voz del río
fluyendo como su agua por la tierra».14 Reconocen que la naturaleza les observa y
que tiene su capacidad actante: La «tierra se negaba a ser moldeada por los que ha-
cían los mapas. La tierra tenía su propia voluntad».15 Estos ejemplos hacen que el
lector cuestione sus actitudes y le pueden inducir a abrir su perspectiva.
12
«The cat looks back at us. It doesn’t run. In the darkness its eyes shine and this is what I see.
Eyes. It seems to look right through us. It sees through us. Then, at ease, as if certain we will follow,
it moves slowly away. It is calling us forward… That eyeshine is its testimony. Its voice, its words»
(1998, 64)... «cat looks up and she shows me to the cat, and what she does is, she introduces me to it,
it to me. She says my name as she looks at me, as if I am both an offering and a friend» (1998, 65).
13
«I thought I heard the voices of the world, of what was all around us —the stones, the waters
flowing toward their ends, the osprey with its claws in fish, even the minnows and spawn. I heard
trees with their roots holding ground» (1995: 181).
14
«[W]as a listener to the voice of water, a woman who interpreted the river’s story for her people.
A river never lied. Unlike humans, it had no need to distort the truth, and she heard the river’s voice
unfolding like its water across the earth» (1990: 5).
15
«[L]and refused to be shaped by the makers of maps. Land had its own will» (1995: 123).
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 317
La novelista Ursula Le Guin también desmonta las barreras entre seres humanos
y no humanos, particularmente la barrera de los nombres. En un breve relato, «She
Unnames Them», que alude al Génesis cuando Adán nombra los animales, Eva de-
cide quitar los nombres a los animales y luego devuelve el suyo y se marcha con los
animales. Al quitarles el nombre:
... parecían mucho más cercanos que cuando su nombre habían estado entre nosotros
como una barrera: tan cercanos que mi miedo de ellos y su miedo a mí se convirtió en
un mismo miedo. Y la atracción que muchos de nosotros sentíamos, el deseo de oler el
olor de los otros, de sentir o frotar o acariciar nuestras escamas o piel o plumas o pelo,
probar nuestra sangre o carne, calentarnos mutuamente —esa atracción se mezclaba
con el miedo y el cazador no se distinguía de la presa, ni el que comía de la comida.16
Este texto alude al poder que ejerce aquel que nombra a aquellos silenciados.
Al dejar de tener nombres, Eva, que ha renunciado a su poder, se siente más cercana
a los otros. Ahora todos se ven obligados a explorar la nueva relación. Le Guin
rompe la dicotomía humano/no-humano al afirmar que la piel, las escamas o las
plumas son meramente distintos tipos de «ropa», reconociendo la diversidad pero
restando la jerarquía de valor. Al final del relato, Eva se marcha con ellos, pero se
da cuenta de la dificultad de expresar la nueva relación ya que implica una nueva
perspectiva: «mis palabras ahora deben ser tan lentas, tan nuevas, tan singulares,
tan tentativas como los pasos que tomé bajando por el camino alejándome de la
casa…».17 Pero Eva se ve comprometida con la búsqueda de un cambio de valores,
de buscar una nueva forma de relacionarse con el mundo no-humano en la cual
todas las especies fueran valoradas de igual forma y otorgadas una dimensión ética.
Estos son tan solo algunos ejemplos, pero ilustran las posibilidades de los textos
literarios para hacer más claras y asequibles las teorías filosóficas. Como afirmaba
Rueckert, la crítica literaria contribuye a que la energía, la sabiduría del texto, llegue
a la comunidad de forma más eficaz. Podríamos abordar muchos más textos en los
que se muestran distintas formas de lenguaje para la comunicación con el otro, tex-
tos donde la naturaleza nos devuelve la mirada y nos observa, invirtiendo el sentido
habitual de la observación, textos donde la plantas reflejan y perciben nuestros sen-
timientos, ejemplos de todas las estrategias que plantea Val Plumwood.
16
«[S]eemed far closer than when their names had stood between myself and them like a clear
barrier: so close that my fear of them and their fear of me became one same fear. And the attraction
that many of us felt, the desire to smell one another’s smells, feel or rub or caress one another’s scales
or skin or feathers or fur, taste one another’s blood or flesh, keep one another warm, —that attraction
was now all one with the fear, and the hunter could not be told from the hunted, nor the eater from
the food» (1990: 235).
17
«[M]y words now must be as slow, as new, as single, as tentative as the steps I took going down
the path away from the house…» (1990: 236).
318 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Estos ejemplos literarios nos muestran esa imaginación empática de los autores,
a la vez que unas estrategias que hacen al lector reconocer la condición de sujeto
de los seres no-humanos. Vemos que todos estos textos muestran una ética de cui-
dado y respeto a los seres humanos y no-humanos, considerándonos a todos parte
de un todo, distintos pero igualmente dignos de consideración ética. Establecen
esa relación dialógica donde todos los seres interactúan y se afectan. La reciprocidad
no es cuestión de medida, ni un quid pro quo, sino que está en el reconocimiento
mutuo de la condición de sujeto: la naturaleza no es pasiva ni un objeto. La mirada
afectuosa no exige a los seres no-humanos que sean como nosotros, sino que se re-
conozca que cada uno tiene valor en sí. Los personajes, a través de la narración,
muestran una actitud ética hacia la naturaleza y muestran cómo puede ser esta ac-
titud para el lector. De esta forma, los autores nos dan esa respuesta ética narrativa
que sugiere Plumwood (2002). Esta actitud puede ser apreciada por los lectores y
puede iniciar un cambio de paradigma cultural, ya que con solo aceptar la posibi-
lidad de una comunicación, la mirada arrogante antropocéntrica de nuestra cultura
se desvanecería. Scott y Paul Slovic concluyen que es necesario desarrollar nuevos
modos de discurso, nuevas formas de describir la experiencia y traducir las esta-
dísticas y la ciencia en discursos que lleguen al corazón. Afirman que los relatos tie-
nen el poder de ayudarnos a entender problemas y teorías complejas (2005: 18).
Estos relatos pueden ejemplificar esos contextos éticos que plantean los filósofos
de una forma más sencilla para que llegue a muchos lectores, no solo a unos cuantos
especializados. Ursula Le Guin concluye que solo la imaginación nos puede sacar
del presente inmediato, sea inventando o planteando nuevos caminos que pueden,
luego, ser desarrollados en miles de opciones, al estilo del hilo de oro que nos ayuda
a salir del laberinto. El relato nos puede llevar a la libertad, la libertad de aceptar
algo no real, pero imaginarlo para que llegue a ser real (1989: 45). Este diálogo entre
la ecocrítica y la filosofía ecofeminista se nos presenta como una forma de llegar a
la comunidad humana y sugerir el cambio de paradigma cultural que propugnan
las ecofeministas.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANAYA, Rudolfo (1977): «A Writer Discusses His Craft», CEA Critic, Vol 40.1, nov.
1977, pp. 39-43.
BARRY, Peter (2009): Beginning Theory: An Introduction to Literary and Cultural
Theory, 3rd ed., Manchester University Press.
BOYD, Brian (2009): On the Origin of Stories: Evolution, Cognition and Fiction.
Belknap Press of Harvard University Press, Kindle E-Book.
BUTLER, Octavia (1987): Dawn. New York, Warner.
ECOCRÍTICA Y ECOFEMINISMO: DIÁLOGO ENTRE LA FILOSOFÍA Y LA CRÍTICA LITERARIA 319
SLOVIC, Scott y SLOVIC, Paul (2004-2005): «Numbers and Nerves: Toward an Ef-
fective Apprehension of Environmental Risk», Whole Terrain. Reflective Envi-
ronmental Practice, Vol. 13, Risk, pp. 14-18.
WARREN, Karen (1996): «The Power and Promise of Ecological Feminism», en
Warren, K. (ed.), Ecological Feminist Philosophies, Bloomington and Indianapo-
lis, Indiana University Press, pp. 19-41.
WILLIAMS, Terry Tempest (1992): Refuge. An Unnatural History of Family and
Place, Vintage.
ZUNSHINE, Lisa (2006): Why We Read Fiction: Theory of Mind and the Novel,
Ohio State University Press, Kindle E-Book.
19. Por una genealogía de contra-subjetividades
alternativas
Carmen GARCÍA COLMENARES
Cátedra de Estudios de Género
Universidad de Valladolid
Sin raíces, desde luego, nos secamos. Pero demasiado apegadas a nuestras raíces
no crecemos [...] una identidad sin subjetividad es ciega y una
subjetividad sin identidad es vacía.
CELIA AMORÓS
H
istóricamente, las mujeres han sido consideradas inferiores a los varones y
causantes de los males de la humanidad, fraguándose el arquetipo de la
feminidad subordinada al varón. A través del simbolismo de género se han
ido transmitiendo modelos de feminidad que podemos encontrar reencarnados en
la actualidad a través de la cultura popular (publicidad, moda, cine, televisión, vi-
deojuegos) y que se multiplican de manera instantánea a través de las redes sociales.
Revisar estos imaginarios, en tanto que configuran modelos identitarios tradicio-
nalmente asignados, nos puede ayudar a re-conocer su vigencia e incidencia en la
formación de subjetividades femeninas de la posmodernidad. La confluencia de las
políticas neoliberales con los planteamientos de la postmodernidad está dando lugar
a la aparición de identidades femeninas emergentes que nos remiten, a pesar de sus
máscaras, a los modelos tradicionales; por lo que se hace cada vez más necesario
potenciar el desarrollo de herramientas conceptuales que refuercen el carácter
emancipatorio de los feminismos en las jóvenes generaciones que, si bien se han
beneficiado de las conquistas feministas, desconocen la historia del movimiento.
Como señala Celia Amorós (2010), las mujeres han sido consideradas portadoras
y guardianas de identidad, mientras los varones lo han sido de subjetividad. La
identidad supone deber y pasado, mientras la subjetividad permite una mayor
libertad a la hora de seleccionar y redefinir los bagajes simbólicos tradicionales.
Pero el cuestionamiento sobre el sujeto hegemónico ilustrado desde posicionamientos
322 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
contactos del movimiento feminista español con las redes internacionales, al contar
por primera vez con representación en ese congreso.1
El paso siguiente será incorporar desde configuraciones políticas críticas las
identidades emergentes en la era de la globalización, asumiendo que «la cultura
popular impregna el mundo en el que viven las mujeres jóvenes hoy, y el rostro del
feminismo actual, para bien o para mal, está siendo escrito a través de la cultura de
masas» (Rowe, 2005: 45). Como señala esta autora, la desconexión entre los diferentes
feminismos tiene graves consecuencias para el mantenimiento de logros, en estos
momentos en precario, como el derecho al aborto, a la educación y a la sanidad.
En las páginas siguientes, voy a intentar presentar una visión polifónica de las
diferentes voces tanto reales como de ficción que al igual que un caleidoscopio «a
medida que gira(n) sus varios aspectos reflejan y responden a las circunstancias
circulares en mutación. Ya que cada aspecto habla según el eje central, cada una y
todas las respuestas separadas son legítimas, integradas y verdaderas» (Asthon-
Warner, 1967, cit. por Vasconcelos, 2001: 9).
1
A pesar de haber desplegado una intensa consulta bibliográfica y documental, no he encontrado
ningún dato sobre la misma, salvo la escueta referencia a la «représentante espagnole Mme. J. M. Gay.
Calle Claris 102.Barcelona» en la página 251 de las actas del Congreso Internacional de La Haya (1915).
htp://www.archive.org/details/berichtrapportreOOwomerich (consultado el 20 de diciembre de 2013).
324 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Cada uno debe ser responsable de coser su patchwork. Téngase en cuenta que al coser la
colcha, los fragmentos deben encajar muy bien, si no se deben deshacer y volver a coser.
Los fragmentos dispares de nuestras experiencias de vida deben integrarse de forma
coherente […] a pesar de la heterogeneidad (Rodrigo, 2009: 294).
La narración no lineal y la hiperficción exigen unos modos de lectura que no son los de
quienes contemplan un mosaico o una alfombra. Las lecturas que permite el hipertexto
(pero también un texto convencional) nos llevan no solo a seguir una ruta secuencial,
sino todo un haz de distintos itinerarios posibles, como si ese tapiz pudiera transformarse
en otros por medio de relaciones paradigmáticas; la parodia, sin ir más lejos, es siempre
el juego entre un texto y un hipotexto en donde se establecen relaciones asociativas, no
lineales (Martos, 2007: 10-11).
2
Seudónimo empleado por María Lejárraga.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 325
habla. Otro ejemplo desde el mundo de la costura es utilizado por María José
Majado en la exposición de Las Pelonas (2012), que presenta la tediosa tarea del
punto de cruz, utilizando como hilo el pelo de las mujeres que realizan la costura.
La comisaria de la exposición, Verónica Perales, plantea la Costura Subversiva como
un «contra-tejer, recuperar la inercia mecánica y potencial de la práctica y modificar
su dirección a nuestro favor, afectando así al sentido» (Perales, 2012).
3
Exposición Luz y Tinieblas en la catedral de Burgos. Diario de Burgos, 12 de junio de 2008.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 327
ocultos. Escritoras inglesas como Angela Carter y Antonia Byatt han recreado
personajes de ficción femenina desde esos planteamientos.
En la inquietante obra La Pasión de la Nueva Eva, Angela Carter relata de
manera distópica la situación de las mujeres arrojadas del paraíso y desprovistas de
voz, evidenciando la pervivencia de los mitos culturales asentados en las
instituciones y en las prácticas sociales. El valor subversivo de la novela se manifiesta
en el protagonista masculino al que se ha encerrado en un cuerpo de mujer. De esa
manera irá conociendo la historia silenciada de las mujeres, a través de un fascinante
y doloroso viaje iniciático. Al final de la obra se vislumbra la esperanza a través del
alumbramiento del protagonista de una nueva vida que permitirá un mundo mejor.
Un carácter más utópico tendrá Noches de Circo, ambientada en el siglo XIX, donde
la protagonista es la reencarnación de Leda, el cisne (Suarez, 1996).
El mito de Melusina lo encontramos en la novela Posesión de Antonia Byatt,
mito que se con-funde entre la protagonista histórica, Cristabel Lamotte y la
protagonista en tiempo real, la investigadora Maud Waley. Junto a ellas aparecen
otras voces como las de Cristina Rosseti, Emily Dickinson y Virgina Woolf (Hidalgo,
1991). Los protagonistas masculinos tienen papeles secundarios y, al igual que
Remondín, irán descubriendo de manera más o menos oculta el secreto de las dos
protagonistas. La principal característica de Posesión es la multiplicidad de voces,
la parodia y el pastiche.
... pueden admitir sin mayores problemas que la desigualdad existió, pero antes, como
en un país lejano y remoto. Sin embargo carecen de un conocimiento esencial: esa desi-
gualdad ha ido cediendo por la lucha organizada de millones de mujeres y solo para con-
seguir el derecho al voto se necesitó más de un siglo de lucha tenaz y continuada. Y no
eran marcianos eran hombres los que se resistían también tenazmente a que las niñas, en
definitiva sus esposas, madres, hijas y hermanas pudieran estudiar, ser autónomas y votar.
En general, cuando las chicas se enteran de lo que en el feminismo se denomina nuestra
genealogía se mueven inicialmente entre la indignación y el «no me lo puedo creer», para
terminar finalmente como Simone de Beauvoir, en el feminismo (De Miguel, 2008: 35).
La preocupación por la naturaleza y por los efectos negativos del alejamiento de ella
va a ser una constante en las librepensadoras que abogarán por el respeto a los prin-
cipios de la misma. Preocupación que manifestarán tanto en su vida cotidiana como
en sus planteamientos educativos. Rosario de Acuña dejará constancia en sus escritos
de su relación íntima con la vida en el campo, así como de la preocupación por el
maltrato animal, siendo considerada como «ecologista avant la lettre» (Ramos, 2011:
29). La naturaleza será para ella una vía de conocimiento y regeneración (Hibbs-
Lissorgues, 2012). Cotidianidad que también se manifiesta en los espacios domésti-
cos cuando se describe la casa de Amalia Domingo en la que «… resultaba difícil
separar el salón en que se celebraban las sesiones mediúmnicas del hogar propia-
mente dicho, o delimitar las fronteras entre el patio de la escuela y el pequeño
huerto doméstico situado casi siempre en la parte trasera de la casa» (Ramos, 2005:
37). A través de la influencia espiritista, también crearon balnearios donde hacían
ensayos de terapias relacionadas con la homeopatía, la hidroterapia, el vegetaria-
nismo, el naturismo, entre otras (Ramos, 2011).
A comienzos del siglo XX irán apareciendo grupos y asociaciones contra el mal-
trato animal de las que formarán parte un interesante número de maestras feminis-
tas coetáneas y posteriores a las educadoras laicistas mencionadas. Entre las
330 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
primeras destaca Isabel Muñoz Caravaca, que denunciará la crueldad con los ani-
males en las fiestas populares, entre ellas las corridas de toros. Durante el período
de la II República, en la Federación Ibérica de Sociedades Protectoras de Animales
y Plantas, participarán maestras y profesoras como María de Maeztu y Regina Lago.
Esta última escribió un artículo titulado El amor a los animales.4
El modelo educativo de la escuela racionalista tendrá una gran influencia en
Ángeles López de Ayala, Ana Carvia y Consuelo Alvarez, colaboradoras y coautoras
de textos pedagógicos junto a Ferrer y Guardia (Muina, 2008). También hay que
citar a maestras como Amparo Lorente y Elena Just, de la Asociación General
Femenina y la Sociedad Bien de Obreras de Valencia, Soledad Areales, de Córdoba,
y Amalia Pérez Congiu, directora de la Escuela Moderna para niñas en Málaga
(Ramos 2008). A diferencia de Ferrer y Guardia, además de escribir y crear escuelas,
intervinieron en su dirección y desarrollo directo, siendo más que meras transmisoras
de conocimientos, al traducir en clave pedagógica las abstracciones teóricas,
ensamblando teoría y experiencia.
Mención especial merece, por su implicación en la educación naturista, la
maestra racionalista anarquista Antonia Maymón. Pacifista, miembro del Comité
Nacional Contra la Guerra de Marruecos, será encarcelada junto a Teresa
Claramunt. Durante el período de la II República creará una escuela propia. Su
pensamiento pedagógico se manifiesta en Esbozo Racionalista (1931). Partidaria
de la coeducación, considera la maternidad eje de la de la identidad femenina,
aunque ella no fue madre, y propone la asignatura de maternología para las niñas:
«Dejad que vuestras hijas destrocen muñecos, hagan aparatitos, manejen hilos,
alambres y telas, pregunten cosas que ignoran, discutan acaloradamente, verifiquen
experimentos. Pensando aprenderán a pensar. No hay otro modo» (Maymón, 1931,
cit. en Ruano, 2013: 120).
La educación racionalista como elemento emancipador se caracteriza por la
experimentación, la observación, la coeducación, el respeto a la naturaleza, la
autoeducación y el aprender sin premios ni castigos. La educación por el ambiente
(nature study) constituirá uno de los pilares básicos de este modelo educativo. A
través del mismo se intentará desarrollar en la infancia el interés por la naturaleza,
provocando su conocimiento. Supone la conexión entre la escuela y la vida real,
facilitando la transformación de la escuela en un organismo vivo que permitirá la
aprehensión integral del mundo y de la vida (Pratelle, 1976).
Esta visión de la escuela se verá enriquecida por las influencias de maestras
teósofas, a través de su conexión con los movimientos de renovación pedagógica.
Es el caso de María Solá de Sellares, representante española de la Liga Internacional
4
Se publicó en el periódico El Progreso de Lugo, el 4 de febrero de 1928 (p. 3).
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 331
... fueron verdaderas funámbulas con el orgullo y la poética del riesgo de moverse entre
los roles construidos como contradictorios por el imaginario social y científico patriarcal:
el de «ser mujeres», con las ideas sobre la feminidad; el de «ser científicas», según la
idea de qué quería decir hacer ciencia, y el de ser feministas, voluntariamente o
accidentalmente, por las redes a las cuales pertenecían o por el simple hecho de provocar
las relaciones instauradas con su activa presencia (Cabruja, 2010: 93).
Por otra parte, todavía se mantienen una serie de resistencias externas e internas
que ralentizan el avance de la equidad de género como señaló la Presidencia Sueca
del Consejo de la Unión Europea en 2010 (Fernández Villanueva, 2010). Las ba-
rreras persisten en el trabajo, el ámbito educativo y el familiar, la administración de
332 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Para ellas el culto a la imagen, al cotilleo y al amor romántico. Para ellos la triada fútbol-
motor-pornografía. Ellas, como la mayor parte de las mujeres del mundo sigue-seguimos
interpretando la coacción como libre elección, tanto en los taconazos de aguja, como
en el culto al cuerpo, como en la elección de estudios no tecnológicos, como en la
asunción de los trabajos domésticos o el abandono del empleo porque alguien tendrá
que cuidar a los niños (De Miguel, 2008: 36).
En las mujeres, todo lo referente al amor constituye el eje central en el que gira
su vida, mientras que en ellos lo es el reconocimiento social (Boch, Ferrer, Ferreiro
y Navarro, 2013). Por lo que respecta a las jóvenes, se podría hablar de códigos
románticos, códigos domésticos, códigos de moda y códigos de la música pop que
aparecen reflejados en las revistas femeninas de moda y canciones (MacRobbie,
1991). Los códigos domésticos son evidentes y siguen sin cuestionar aspectos como
la doble tarea. El ámbito de lo doméstico se idealiza como un lugar de paz y donde
«… descubrimos otro poderoso fundamento ideológico en la represión cultural del
apetito. La idea de que a las mujeres les satisface más alimentar a otros que así
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 333
mismas» (Bordo, 1999: 130). El control social del hambre femenino y la negación
de la alimentación es una micropráctica de la autolimitación y contención.
Con relación al modelo de hiperfeminidad que aparece en las revistas dentro
del mundo de la moda, Angela MacRobbie (2010) retoma el trabajo de Joan Rivière
para señalar la estrategia de la mascarada postfeminista donde la incorporación de
esa hiperfeminidad se utiliza «… para evitar la ansiedad y las represalias que temen
de los hombres» (2007: 19). Pero tanto ese modelo como el puritano del ángel del
hogar siguen siendo proyecciones del deseo masculino (Puleo, 1997). Sin embargo
otras autoras son particularmente críticas con esta visión de la feminidad
hegemónica de las jóvenes al resaltar tanto la diversidad de situaciones como de
interpretación. El Girl Power no puede interpretarse ni reducirse exclusivamente
a un único efecto sobre las consumidoras más jóvenes (Rowe, 2005; Carrington y
Bennett, 1999).
El debate se encuentra entre las investigaciones que consideran a las mujeres
como víctimas pasivas de la cultura hegemónica de la feminidad, puesto que tras la
mascarada de la feminidad se esconde un control biopolítico basado en el consumo
y no en la emancipación ni la independencia (MacRobbie, 2010) y las posturas que
señalan que los efectos de la moda, las revistas y las series no pueden reducirse a
un efecto único que considere a las jóvenes imbéciles culturales (Rowe, 2005;
Carrington y Bennet, 1999). No hay que olvidar que, a través de la cultura de la
comunicación, está cambiando nuestra manera de pensar y que la vida para las y
los más jóvenes se convierte en una pantalla más (Turkle, 1996).
Teniendo en cuenta lo anterior, ¿es posible educar en la sostenibilidad sin caer
en un modelo de vida de consumo insaciable? ¿Cómo competir con el sexismo, el
racismo y la violencia de los videojuegos y series televisivas que configuran las mentes
infantiles desde los primeros años? ¿Y aunar razón y sentimientos en aras de una
educación ambiental no androcéntrica? Me interesa detenerme en esta última
pregunta, responder a todas ellas excedería los límites de este trabajo. Existe una
interesante reivindicación de lo afectivo en la educación ambiental a través de la
literatura (Puleo, 2005) y en la expresión plástica (artistas como Verónica Perales)5
que puede favorecer lo que el escritor J. M. Coetzee denomina «imaginación
compasiva».6 Buen ejemplo de ello son la Biblia Envenenada de Barbara Kingsolver
y el Barón Rampante de Italo Calvino.
En la lectura del Barón Rampante, Italo Calvino resuelve, a mi juicio, la
dicotomía individualidad versus comunidad a través del protagonista Cósimo
Rondó, al que su decisión de no volver a pisar la tierra no le impide ser «amigo al
mismo tiempo del prójimo, de la naturaleza y de sí mismo, aunque no por ello el
5
Ver, en este libro, el trabajo de Verónica Perales titulado «Reflexiones de una retratista de gorilas».
6
Elizabeth Costello, Mondadori, Barcelona, 2004, p. 87.
334 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
autor deja de ser crítico al plantear que «… bastó con la llegada de generaciones
con menor criterio, de imprevista avidez, gente no amiga de nada, ni siquiera de sí
misma, y ya todo ha cambiado, ningún Cósimo podrá avanzar por los árboles»
(1990: 130).7
La Biblia Envenenada permite conocer el proceso de independencia de la
República Democrática del Congo desde los ojos de las cuatro hijas de un pastor
baptista y la incidencia de los factores políticos y económicos en la destrucción de
la naturaleza.8 Destrucción que continúa en la actualidad con la extracción del
coltán, importante componente de baterías de móviles, videojuegos y portátiles. El
conflicto bélico que ha desencadenado ha costado desde 1997 más de cuatro
millones de muertos y la desaparición de poblaciones enteras de gorilas. Los dibujos
de Grandes Simios en Femenino de Verónica Perales que pueden apreciarse en este
libro refuerzan esa imaginación compasiva.
7
El Barón Rampante, Ediciones Siruela, 1990, 3ª edición.
8
La Biblia envenenada, Norma Ediciones, Barcelona, 2008.
9
A vueltas con el sujeto del feminismo. Revista Con la a, nº 28, Disponible en: http://numero28.con-
laa.net/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=61. Consultado el 4 de enero
de 2014.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 335
narraciones de las que forma parte y esto supone cambiar la mirada en relación con
la cultura popular, desterrando perjuicios.
Con relación a la recuperación genealógica, la investigación narrativa supone
una estrategia metodológica que ha permitido un acercamiento reflexivo para la re-
creación de subjetividades subversivas. Bien a través de la ficción, bien a través de
la historia del feminismo es posible articular discursos que sirvan de referencia para
el presente.
Las vidas se construyen; por lo tanto más vale que nos convirtamos en buenos artesanos
junto con los otros actantes mundanos del relato. Hay una enorme reconstrucción por
hacer, empezando por un poco más de cartografía con la ayuda de los artefactos ópticos
provistos de filtros rojos, verdes y ultravioletas (Haraway, 1999: 125).
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAR, Carlos (1992): «Prólogo», en D’Arras Jean: Melusina (IX-XVII), Madrid, Siruela.
AMORÓS, Celia (2010): «Feminismo e interculturalismo», en Amorós, Celia y de
Miguel, Ana (eds.): Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización, (pp. 217-
264), Tomo 3, Madrid, Minerva.
ATWOOD, Margaret (2006): La maldición de Eva, Barcelona, Lumen.
BALZA, Isabel (2013): «Tras los monstruos de la biopolítica», Dilemata, 12, pp. 27-46.
BOSCH, Esperanza; FERRER, Victoria; FERREIRO, Virginia y NAVARRO, Capilla (2013):
La violencia contra las mujeres. El amor como coartada, Madrid, Anthropos.
BORDO, Susan (1999): «El hambre como ideología», en Luke, Carmen (comp.):
Feminismo y pedagogías en la vida cotidiana, Madrid, Morata, pp. 119-143.
BRAIDOTTI, Rossi (2009): Transposiciones, Barcelona, Gedisa.
— (2005): Metamorfosis. Hacia una teoría materialista del devenir, Madrid, Akal.
CABRUJA, Teresa (2010): «Las mujeres de la psicología y la psicología de las muje-
res», en Doctas doctoras y catedráticas. Cien años de acceso libre de la mujer a la
Universidad, Barcelona, Generalitat de Catalunya, Consell Interuniversitari de
Catalunya, pp. 89-100.
— y FERNÁNDEZ VILLANUEVA, Concepción (2011): «Psicología social feminista.
Perspectivas críticas, postmodernas y radicales», en Ovejero, Anastasio y Ramos,
Júpiter (coords.): Psicología social critica, Madrid, Biblioteca Nueva, pp. 81-95.
CARRINGTON, Kerry y BENNETT, Anna (1999): «Las revistas de chicas y la formación
pedagógica de la chica», en Luke, Carmen (comp.): Feminismo y pedagogías en
la vida cotidiana, Madrid, Morata, pp. 144-159.
CENDRAN, Susana (2013): «Todo tiene que ver con los monstruos», International
Contemporary, nº 53-54, pp. 78-86.
CREED, Barbara (1987): «From here to Modernity: Feminism and Postmodernism»,
Screen, vol. 28, nº 2, Spring, pp. 47-67.
D’ARRAS, Jean (1992). Melusina, Madrid, Siruela. 6ª ed.
DE MIGUEL, Ana (2008): «Feminismo y juventud en las sociedades formalmente
igualitarias», en Aguinaga, Josune (coord.), Revista de Estudios de Juventud, nº
83, pp. 30-45.
— (2014): «A vueltas con el sujeto del feminismo». Revista Con la A, nº 28, dispo-
nible en: http://numero28.conlaa.net/index.php?option=com_content&view=ar-
ticle&id=56&Itemid=61 (consultado el 4 de enero de 2014).
FAGOAGA, Concha (1985): La voz y el voto de las mujeres. El sufragismo en España
1877-1931, Barcelona, Icaria.
— (1996): «De la libertad a la igualdad: laicistas y sufragistas», en Segura, Cristina
y Nielfa, Gloria (eds.): Entre la marginación y el desarrollo mujeres y hombres
en la historia, Madrid, Ediciones del Orto, pp. 171- 198.
POR UNA GENEALOGÍA DE CONTRA-SUBJETIVIDADES ALTERNATIVAS 337
S
e ha dicho que el surgimiento de la Filosofía constituye el paso del mito al
logos, es decir, el cambio hacia la aceptación de las explicaciones racionales
en lugar de las procuradas por la imaginación. Los poemas homéricos han
sido elegidos por los filósofos de la Escuela de Frankfurt Max Horkheimer y The-
odor Adorno (1998) para analizar el rumbo del pensamiento occidental. Estos au-
tores reinterpretan la odisea de Homero, partiendo de la tesis de que el mito es
Ilustración. Por «Ilustración» no solo se refieren al pensamiento de la época de las
Luces, sino a todo proceso de racionalización del mundo, para transformarlo en
algo manipulable, sometido al dominio del hombre. En este poema encuentran ya
los orígenes del dominio ilustrado de la naturaleza. Afirman, asimismo, que, a pesar
de que la Ilustración se había propuesto destruir los mitos y alimentar la imagina-
ción con el saber científico, la razón instrumental ha terminado convirtiéndose ella
misma en un mito. Sin la reflexión sobre los fines últimos de la vida humana, la ra-
cionalidad termina imponiendo nuevos límites al pensamiento.
Los mitos poseen, tal vez, una fuerza especial que escapa al razonamiento lógico.
Pueden generar sentimientos poderosos que mueven a la acción en un sentido de-
terminado. Las narraciones fantásticas configuran un imaginario cargado de valores
que marcan generaciones. A lo largo de la historia, se ha empleado la figura del
otro idealizado como un recurso crítico con el que se pretende corregir la propia
cultura (Puleo, 2011). Durante el Renacimiento, se instauró el mito de una edad de
oro en la que se vivía armónicamente. Los viajes de descubrimiento de nuevas tie-
rras facilitaron la aparición de esta creencia. Los indígenas que describe Américo
1
Este trabajo ha sido realizado en el marco del proyecto I+D La Igualdad de Género en la cultura
de la sostenibilidad: Valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario (FEM2010-15599). Sub-
programa de Proyectos de Investigación Fundamental no orientada. Se ha beneficiado, asimismo, del
programa de becas FPI de la Universidad de Valladolid.
342 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
Vespucio en Mundus novus (1503), como individuos libres que no obedecen a nin-
gún gobernante, que no conocen la propiedad privada y que tienen tantas esposas
como deseen, contribuyeron a forjar el imaginario europeo constructor de otros
mundos posibles. La crítica a las estructuras políticas y sociales del Antiguo Régi-
men vino favorecida por los elementos que los filósofos del Barroco y de la Ilustra-
ción extrajeron de la cultura china, de la Polinesia o del nuevo Mundo. «La mirada
del otro fue utilizada para poner de relieve los defectos propios, para juzgar y ri-
diculizar a la sociedad europea» (Puleo, 2011: 323). Los viajes a la Polinesia y a las
Américas, a diferencia de lo que sucedió con las antiguas civilizaciones orientales,
contribuyeron a forjar la idea de que se estaba descubriendo el pasado originario
de la humanidad. Jean-Jacques Rousseau, en el Discurso sobre el origen de la desi-
gualdad entre los hombres (1755), presenta al buen salvaje compasivo y viril como
contrapuesto al filósofo civilizado que cultiva su egoísmo valiéndose de la razón.
Alicia Puleo ha llamado la atención sobre el surgimiento, en la actualidad, de
un nuevo imaginario en el que la figura del buen salvaje de Rousseau reaparece,
aunque en este caso en versión femenina. Las mujeres cercanas a la naturaleza y de-
fensoras de culturas preindustriales sostenibles son un recurso frecuente de algunas
corrientes ecofeministas y ecologistas. Este proceso es el resultado de la influencia
de la antropología, la etnopsicología, el multiculturalismo y los movimientos indi-
genistas y se emplea para llevar a cabo una crítica del complejo tecno-científico mo-
derno. Es imprescindible analizar esta imagen para encontrar las ventajas y los
inconvenientes que implica tanto para las mujeres como para la naturaleza y para
comprobar si realmente facilita el diálogo intercultural. La mujer-naturaleza aparece
como una alternativa al hombre tecnológico causante de la destrucción medioam-
biental. Esta autora acepta que la figura de la alteridad femenina natural positiva-
mente connotada puede llegar a ser políticamente eficaz en algunas ocasiones, pues
se fundamenta en emociones de la infancia que comparten básicamente todas las
personas. Esta figura de la alteridad, vinculada a la madre protectora, permite ob-
servar de forma crítica el complejo técnico-científico occidental. Igualmente, invita
a la universalización en el sentido de que muestra la necesidad de que todas las per-
sonas y todas las culturas examinen sus identidades de género y su relación con el
mundo natural.
Puleo comienza la introducción de su libro Ecofeminismo para otro mundo po-
sible reinterpretando el mito griego del Minotauro.2 En la versión que propone, la
aportación femenina no se reduce a una colaboración secreta. Ariadna no adopta
un rol pasivo, entregando a Teseo un ovillo para que este pueda matar al Minotauro
y regresar por el laberinto guiándose con el hilo, sino que, por el contrario, entra
en el laberinto del mundo junto a Teseo y se convierte en protagonista del cambio.
2
Véase Puleo, Alicia (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible. Madrid, cátedra, p. 7.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 343
3
Elegimos, siguiendo la concepción de Puleo, el término «naturaleza», pues posee unas conno-
taciones filosóficas, literarias, artísticas y emocionales más ricas que el concepto de «medio ambiente»
que utilizan las éticas antropocéntricas extremas.
4
considero que las producciones cinematográficas poseen una relevancia fundamental en la ac-
tualidad dado que constituyen un poderoso discurso de legitimación de género. Estos discursos son
sistemas de creencias que muestran los motivos de la diferenciación entre las personas de sexo mas-
culino y las de sexo femenino, así como la manera en que estos se diferencian (Puleo, 2000b). Las pe-
lículas, dependiendo de los valores que transmitan, pueden llegar a ser una eficaz forma de inculcar
los roles y los estereotipos de género, determinando la identidad sexuada de las personas.
5
El director, productor y guionista de Avatar, James cameron, reconoció la influencia que La prin-
cesa Mononoke (1997) —largometraje de animación de Hayao Miyasaki— tuvo en esta producción.
A pesar de las diferencias, debidas, tal vez, a los elementos propios de la tradición japonesa, encontra-
mos en La princesa Mononoke muchas similitudes con las tres películas mencionadas. no obstante,
en el film japonés, obra de culto en todo el mundo para aficionados a este tipo de cine, aparece un ele-
mento que se aleja de la tradicional vinculación de la mujer con la naturaleza, pues el personaje que re-
presenta la industria y la tecnología es una mujer. Por el contrario, en las películas que vamos a analizar,
no hallamos ningún personaje principal femenino con actitudes de explotación y dominio. Todas se
acercan a la naturaleza desde el respeto y la empatía y tratan de cuidarla y protegerla.
344 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
En cada una de las obras fílmicas citadas, el conflicto que surge entre la sociedad
nativa y el grupo colonizador se debe a la diferencia de visiones y actitudes con
respecto a la naturaleza. Unos la conciben como algo sagrado, que alimenta la vida
y posibilita la supervivencia, y otros la ven únicamente como un recurso a su dis-
posición. crysta, Pocahontas y neytiri, nuestras protagonistas femeninas, mostra-
rán a Zak, John Smith y Jake, respectivamente, la importancia del cambio de
actitud hacia el mundo natural no humano. Su papel es imprescindible en la trama,
pues ponen de manifiesto los efectos destructivos de la devastación del entorno y
la necesidad de concebir la naturaleza como algo de lo que formamos parte. Estas
enseñanzas adquieren importancia vital en nuestro mundo actual en el que los
efectos de la destrucción medioambiental —contaminación, pérdida de biodiver-
sidad, desertificación, cambio climático, etc.— adquieren, cada día más, un as-
pecto dramático.
ya antes de la evidente crisis ecológica actual, Horkheimer y Adorno (1998)
habían desarrollado una crítica a la colonización tecnológica del mundo natural y
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 345
tidumbre intelectual y como base racional para la estabilidad social. ya que lo que
se pretendía es restablecer el orden moral e intelectual, se rechaza la imagen de la
naturaleza como un organismo vivo, pues está relacionada con las ideas de cambio,
incertidumbre e imprevisibilidad. Se desarrolla, así, una filosofía fundada en ideas
compatibles con el orden, el control y la manipulación. De este modo, «el mecani-
cismo transformó el cuerpo del mundo y su alma femenina, fuente de actividad en
el cosmos orgánico, en un mecanismo de materia inerte en movimiento, convir-
tiendo el espíritu del mundo en un éter corpuscular, eliminando los espíritus cor-
pusculares de la naturaleza y transformando las simpatías y antipatías en causas
eficientes»6 (Merchant, 1981: 195). La metáfora de la máquina sirvió para la reor-
ganización del mundo, de forma que el cosmos, la sociedad y el ser humano pasan
a concebirse como sistemas ordenados de partes mecánicas gobernados por la ley
y sujetos a razonamientos deductivos.
Según esta autora, las metáforas de género que se encuentran en diferentes textos
de la ciencia moderna esconden un trasfondo político de dominación sexual. Francis
Bacon establece el método científico a seguir, determinando la necesidad de torturar
a la naturaleza para que muestre sus secretos. Se impone, así, una imagen de la natu-
raleza reducida a mera máquina cuyas piezas se pueden —y deben— manipular para
adquirir el conocimiento. Por el contrario, la imagen renacentista de la Madre Tierra,
muy similar a las cosmovisiones premodernas caracterizadas por el holismo, implicaba
determinados límites a las prácticas de explotación de las riquezas naturales.
Las epistemólogas feministas Evelyn Fox Keller y Sandra Harding han mostrado
la parcialidad de género de la ciencia moderna. Harding (1996) sostiene que las re-
glas de investigación científica también son normas morales, por lo que no es ex-
traño que, tanto en el método científico como en la racionalidad científica, se
encuentren concepciones masculinas en cuanto a las relaciones entre los humanos
y la naturaleza. La ciencia moderna se entiende como dominación de un objeto que
se reduce a las características exclusivamente relevantes para la finalidad de la in-
vestigación (Puleo, 2000a). Implica, por tanto, el distanciamiento emocional que
permite la manipulación sin interferencia de los juicios morales y el pensamiento
dualista que elimina la afectividad y la dependencia con respecto al objeto de estu-
dio.7 Esto puede relacionarse, sin duda, con la identidad masculina que estudian
las teóricas de las relaciones objetales.
El racionalismo moderno del siglo xVII determina la separación entre la divini-
dad y la naturaleza. Esta deja de concebirse como un organismo animado. Por el
contrario, se la percibe como mera extensión mensurable, regida por leyes racio-
6
Mi traducción.
7
como afirma Puleo, la vivisección se muestra como el ejemplo más sangrante de estos supuestos
científicos.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 347
8
no obstante, tal y como nos señala Puleo (2011), esta idea mecanicista no fue unánimemente
aceptada. Los neoplatónicos de cambridge se opusieron a ella, defendiendo la visión renacentista del
cosmos unitario y habitado por el espíritu. Así, encontramos durante el siglo xVII diferentes intentos
de reencantamiento del mundo natural. Del mismo modo, en el siglo xVIII, la corriente naturalista —
o materialismo energetista— representada por Maupertuis, también se resistirá a la doctrina mecani-
cista. Diderot termina desarrollando este tipo de teoría, defendiendo la tesis de que la materia tiene
sensibilidad y apostando por la observación empírica como el método adecuado para comprender el
devenir de la naturaleza. Vemos, pues, que la cosmovisión mecanicista de la naturaleza desarrollada
en los siglos xVII y xVIII convive con la postura contraria que defiende la existencia de un principio
vital incluso en la materia aparentemente inanimada.
9
Sostengo la tesis de Puleo en cuanto a la utilización de la figura de la mujer natural. Según esta
autora, la figura de la ecologista natural tiene que cumplir tres condiciones: «que las mujeres con-
cretas que inspiran su imagen no queden ocultas y silenciadas; que sus buenas prácticas y sus buenas
causas no sean utilizadas para legitimar y reforzar subtextos de género opresivos; y que […] la ho-
nestidad dé cabida, junto al elogio de la excelencia, a las reivindicaciones de igualdad y libertad»
(Puleo, 2011: 341).
10
Posteriormente, estudios etnográficos y antropológicos han demostrado que esta universalidad
no es tal, pues el concepto de naturaleza ha ido variando a lo largo de la historia y existen algunas
348 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
culturas etnológicas en las que se invierten los valores, de forma que los hombres se identifican con
la naturaleza salvaje considerada lo superior y la cultura es lo considerado femenino e inferior
(Strathern, 1980). En las sociedades totémicas, lo perecedero son los artefactos, mientras que lo eterno
y trascendente es la cadena genealógica (Puleo, 2000a). Por estos motivos, la hipótesis de ortner será
rechazada como errónea universalización etnocéntrica, con lo que, en 1996, reduce la universalidad
de su teoría, aunque se reafirma en sus líneas generales. A pesar de todo, y como afirma Puleo (2011),
la hipótesis de ortner puede aplicarse a la tradición occidental y a gran parte de la oriental.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 349
los demás seres y elementos naturales, y generando, así, la crisis ecológica. También
Vandana Shiva (1995), basándose en las tesis de Merchant, ha señalado los aspectos
negativos del paso de la concepción de la naturaleza como terra mater a su reduc-
ción a mera máquina de la que se extraen materias primas. Según Shiva, el dualismo
hombre/naturaleza y la visión cartesiana de esta última —según la cual la naturaleza
está separada del hombre, de forma que este puede someterla y dominarla, conci-
biéndola de manera mecanicista como un recurso explotable— ha dado origen a
un paradigma de desarrollo que, al mismo tiempo, perjudica a la naturaleza, a las
mujeres y a los pueblos colonizados. El mal desarrollo, que ve al varón colonizador
como el modelo del desarrollo, ha dado lugar a una ontología de la dominación
sobre la naturaleza y las personas y ha generado una nueva fuente de desigualdad
entre hombres y mujeres, pues se elimina la interdependencia y complementación
de los ámbitos de trabajo masculino y femenino que, según la autora, existe en las
sociedades de subsistencia.11
Encontramos este modelo del mal desarrollo en los tres films que estamos ana-
lizando. El varón colonizador impone sus ideas de progreso, ignorando los benefi-
cios que los modos de vida tradicionales tienen para el entorno natural. En
Ferngully, los personajes que manejan la máquina de talar árboles no tienen en
cuenta las repercusiones ambientales de la tarea que realizan. Solo les importan los
beneficios económicos que obtendrán de su labor. Los colonizadores que aparecen
en Pocahontas desprecian el modo de vida de los indios. La afirmación de John
Smith («Enseñaremos a tu gente a emplear esta tierra como Dios manda, a aprove-
charla al máximo […]. construiremos carreteras y casas decentes») demuestra que
el paradigma del mal desarrollo está arraigado en su mentalidad. Es más, está con-
vencido de que su actitud es la correcta, y que Pocahontas cree que sus casas están
bien porque no conoce la civilización. Desde su arrogancia, sostiene que tienen
mucho que enseñarles y que ya han mejorado la vida de otros salvajes por el mundo.
Esta misma actitud la encontramos en los colonos de Avatar. A los personajes que
11
Sin embargo, y a pesar de que puede afirmarse, como hace Shiva, que las sociedades tradicio-
nales tienen una concepción más respetuosa de la naturaleza y viven de una forma más sostenible que
las sociedades capitalistas, la supuesta igualdad de género de las sociedades tradicionales a la que se
refiere Shiva ha sido criticada y rechazada. Así, por ejemplo, Puleo considera que Shiva idealiza la
vida de las comunidades originarias, omitiendo toda crítica a las costumbres y prejuicios que en ellas
se mantienen, y condenando únicamente el patriarcado capitalista occidental. Para esta autora, esta
actitud puede tener eficacia estratégica alterglobalizadora, pero pierde legitimidad al aplicar la mirada
crítica de forma desigual. como afirma Puleo: «En general, las mujeres poco podemos rescatar a nues-
tro favor del pasado y de las tradiciones referentes a los roles e identidades de género» (Puleo, 2008:
45), por lo que será necesario criticar todas las costumbres basadas en prejuicios patriarcales, aunque
sean ecológicamente sostenibles. En este sentido, Martínez-Alier (2004: 268) señala que, a pesar de
que la producción campesina preserve la biodiversidad y sea respetuosa con el entorno, «las sociedades
campesinas son lastimosamente patriarcales».
350 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
están tratando de invadir el nuevo planeta solo les interesa llevar a cabo la extrac-
ción del valioso mineral. no les importa la destrucción del mundo natural ni la de-
saparición de la cultura y de la sociedad nativa. De hecho, no entienden cómo es
posible que los habitantes de Pandora no se hayan interesado por los adelantos tec-
nológicos ni por los productos culturales que les han ofrecido a cambio del mineral.
Sus modos de vida y sus prácticas ecológicamente sostenibles no se consideran ren-
tables y, por ello, se rechazan y minusvaloran. La naturaleza no importa más que
como recurso a disposición del hombre, que permitirá conseguir beneficios econó-
micos, incluso a costa de la estabilidad social y ambiental.
Desde el ecofeminismo deconstructivo de Val Plumwood (1991) se resalta la ne-
cesidad de redefinir el yo propio del racionalismo y del instrumentalismo, desta-
cando tanto nuestras diferencias con el resto de la naturaleza como nuestra
continuidad e interrelación. Así, se logra una concepción del yo en relación con los
otros distintos. Karen Warren también defiende la necesidad de aceptar nuestra
interconexión con el mundo natural no humano. Señala que es necesario cambiar
nuestra actitud con la naturaleza, pasando de la percepción arrogante —que pre-
supone una identidad entre todos los humanos, de forma que solo podrán perte-
necer a la comunidad moral aquellos que sean iguales o similares a ellos— a la
percepción afectiva del mundo no humano. La percepción afectiva se basa en un
reconocimiento tanto de las similitudes como de las diferencias entre lo humano y
lo no humano, y apuesta por valorar al otro tal y como es.
El ecofeminismo, como vemos, nos ofrece distintas teorías que, a pesar de sus
diferencias, pueden contribuir al establecimiento de la justicia ambiental. Ivone
Gebara (2000), por su parte, propone una teología ecofeminista que vea el conjunto
de la naturaleza como un Todo interrelacionado. y Puleo (2011), desde su ecofe-
minismo crítico, apuesta por un cambio desde el antropocentrismo extremo al an-
tropocentrismo moderado, para reconocer la importancia de todos los seres vivos.
La ética antropocéntrica moderada en la que se apoya incorpora los sentimientos
empáticos y compasivos sin rechazar el lenguaje de los derechos. Igualmente, acepta
la necesidad de concebir los sistemas naturales de forma holista, basándose en los
conocimientos científicos de la ecología, y de aceptar como relevante tanto la cos-
movisión de otras culturas como la experiencia emocional ecocéntrica, ya que apor-
tan nuevas ideas sobre la conceptualización del mundo.
Las diferentes autoras ecofeministas coinciden en afirmar que es necesario trans-
formar nuestra visión de la naturaleza para establecer una relación respetuosa que
no se base en la dominación. Las aportaciones del ecofeminismo resultan impres-
cindibles para la construcción de una sociedad ecológica e igualitaria, pues permiten
la redefinición de nuestra relación con el mundo no humano, así como de las rela-
ciones entre los sexos.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 351
nuestras tres heroínas forman parte de sociedades que los colonizadores consideran
extrañas. Estas comunidades son vistas como el otro al que se teme y al que se pre-
tende someter. Para justificar la dominación del otro, se recurre a la animalización
y bestialización de sus características. Este recurso a la bestialización de las socie-
dades extrañas ha sido empleado frecuentemente. Algunos autores han afirmado
que se debe a la desvalorización previa de los animales no humanos, que se ha tras-
ladado, posteriormente, a determinados grupos humanos.12 Así, charles Patterson
(2008: 53) afirma que «la gran divisoria entre humanos y animales propició la apa-
rición de una norma con la que juzgar a las demás personas, tanto dentro del ámbito
cultural propio como en sociedades extrañas». Por su parte, Armelle Le Bras-cho-
pard (2003) sostiene que, desde los inicios de la humanidad, el hombre ha intentado
situarse en la cima de todo lo existente. Para ello, ha degradado la imagen de los
animales, considerándolos inferiores. Esta desvalorización de los animales ha con-
tribuido a la animalización del otro humano. El asociar al oprimido con caracte-
rísticas bestiales y demoníacas permite la justificación de la discriminación y la
explotación, pues su peligrosidad legitima la dominación (Puleo, 2011). Este pro-
ceso constituye la base sobre la que se asienta el colonialismo, el sexismo y el an-
tropocentrismo extremo. Las características del otro se ontologizan y se convierten
en prueba de la inferioridad y la peligrosidad, legitimando, así, el sometimiento.
observamos cómo el odio y el miedo al otro desembocan en la legitimación de
la violencia como único método para solucionar los problemas. También el ecofe-
minismo aporta elementos interesantes en relación al tema de la violencia. La ecofe-
minista pacifista Petra Kelly (1992) sostiene que, en la resolución de los conflictos,
el uso de la violencia imposibilita la reconciliación. Lo que se consigue, por el con-
trario, es someter al adversario. La violencia, pues, no es emancipatoria, sino que es
autoritaria. Esta autora ha afirmado (1997: 29) que «hay una relación clara y pro-
funda entre militarismo, degradación ambiental y sexismo». Por este motivo, pode-
mos entender que nuestros esfuerzos por alcanzar la igualdad de género, el respeto
por la naturaleza, la justicia y la paz, deben centrarse en superar la lógica de la do-
minación que subyace tanto a la dominación de la naturaleza como a la dominación
de las personas en virtud del género, la raza, la clase o la orientación sexual.
12
Lévi-Strauss (1973), citado en Le Bras-chopard (2003: 224), sostiene que «el hombre occidental
nunca ha comprendido mejor que en los últimos cuatro siglos de su historia que al arrogarse el derecho
de separar radicalmente la humanidad de la animalidad, al dar a uno todo lo que retiraba al otro,
abría un círculo maldito, y que esa frontera, en continuo retroceso, servía para separar a unos hombres
de otros».
352 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
13
Warren (1997) considera que la narrativa en primera persona es un elemento imprescindible
tanto para el feminismo como para la ética medioambiental, por varias razones. Primeramente, esta
narrativa suple las carencias del discurso ético analítico tradicional, incluyendo una sensibilidad que
permite concebirse como un ser interconectado con los otros, entre los que se incluye a los no huma-
nos. En segundo lugar, muestra determinadas actitudes, como la actitud del cuidado, que no se han
tenido en cuenta en la ética occidental predominante, y las antepone a los comportamientos de con-
quista. En tercer lugar, posibilita que la ética surja de las situaciones particulares de los agentes mo-
rales. y, finalmente, la narrativa en primera persona es importante por su relevancia argumentativa,
pues sugiere que aquello que se cuenta es importante para la situación ética.
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 353
parten con ellos su experiencia personal de afecto por todo lo que les rodea. Se
convierten en el factor del cambio. Son el elemento fundamental en la transforma-
ción de la percepción arrogante de sus compañeros varones, que terminan adop-
tando la percepción afectiva del mundo no humano.
Las características que tradicionalmente se han asociado a los varones han sido
aceptadas por las mujeres como necesarias para el ámbito del trabajo, la cultura y
la política. Por el contrario, las características femeninas han sido asumidas por los
hombres en mucha menor medida. como afirma Puleo (2011: 423):
Las virtudes del cuidado, que históricamente han estado atribuidas a las mujeres,
tienen que convertirse en valores universalizables. Para ello, como mantiene Puleo,
será necesario predicarlas especialmente a los varones, para no reforzar los hábitos
de sacrificio femeninos. Desde el ecofeminismo crítico se ha defendido también la
necesidad de ampliar los valores empáticos al mundo no humano. Entendemos,
pues, la importancia de la creación de personajes femeninos protagonistas que en-
señen a los varones a asumir como propias las labores del cuidado, responsabili-
zándose tanto de los humanos como de la naturaleza.
14
En este sentido hablará de «superestructura económica».
MáS ALLá DEL MEcAnIcISMo: HERoínAS EcoLóGIcAS DEL IMAGInARIo AcTUAL 355
jeres, el amor entre los sexos se caracteriza por la corrupción que presenta el amor
romántico.
no sostengo que las relaciones amorosas de nuestras heroínas con sus compa-
ñeros se desarrollen en circunstancias de igualdad. Es evidente que seguimos mo-
viéndonos en contextos patriarcales. Sin embargo, su historia de amor no se
convierte en el centro de su existencia. Ellas se enamoran pero mantienen un obje-
tivo trascendente que las define. Su voluntad no se reduce a ser amadas. Es más,
son un elemento decisivo para el cambio en la concepción del mundo del amado.
Encontramos un amor en el que ellas no quedan en una situación de alienación,
sino que les permite conseguir el resto de sus objetivos. De hecho, representan el
modelo activo del que ellos aprenden.
Según la interpretación de Firestone, el amor solo adquiere connotaciones ne-
gativas en el contexto de desigualdad de poder entre los sexos. El amor no corrom-
pido enriquece a ambas partes. Se trata, entonces, de buscar relaciones que nos
potencien, de buscar un amor que, como señala Platón en El Banquete, nos eleve
hacia el Bien y nos impulse a buscar la belleza, la sabiduría y la felicidad. Si aten-
demos a estas observaciones, podemos ver a nuestras heroínas como modelos po-
pulares de un amor que no se reduce a la dependencia y a la atención del ser amado.
Ellas cuidan su relación pero no se limitan exclusivamente a ello. Aunque estas his-
torias respetan el tradicional protagonismo masculino, invierten en algún momento
los consabidos roles de género. Los relatos en que el príncipe mata a la bestia para
salvar a la princesa son sustituidos por un desarrollo de la acción en que la bestia
es buena y lucha junto con los protagonistas. Finalmente la heroína salva la vida
del héroe en su enfrentamiento con la máquina que es el verdadero monstruo. Apa-
recen en ellas mujeres con poder sacerdotal, otras que participan en los enfrenta-
mientos bélicos, también incluyen científicas y la heroína tiene conocimientos
tradicionales de la naturaleza. Son obras que no limitan a las mujeres a las tareas
del cuidado, sino que las presentan enseñando la actitud del cuidado a varones que
no la practicaban. Muestran heroínas de firmes convicciones ecológicas capaces de
llevar adelante la defensa activa de la naturaleza. El profundo amor que suscitan
no se debe solo a su belleza ni surge de la atracción por la pasividad, sino a su per-
sonalidad decidida y su pasión por una causa.
REFEREncIAS BIBLIoGRáFIcAS
AMoRóS, celia (2010): «“La dialéctica del sexo” de Shulamith Firestone: modula-
ciones feministas del freudo-marxismo», en Amorós, celia, de Miguel, Ana (eds.):
Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización. Vol. 2. Del feminismo liberal
a la posmodernidad, Madrid, Minerva Ediciones, pp. 69-105.
coLLARD, Andreé y conTRUccI, Joyce (1988): Rape of the wild, Great Britain, The
Women’s Press.
FIRESTonE, Shulamith (1976): Dialéctica del sexo, trad. de Ramón Ribé, Barcelona,
Kairós.
GEBARA, Ivone (2000): Intuiciones ecofeministas. Ensayo para repensar el
conocimiento y la religión, trad. Graciela Pujol, Madrid, Trotta.
GILLIGAn, carol (1985): La moral y la teoría. Psicología del desarrollo femenino,
trad. Juan José Utrilla, México, Fondo de cultura Económica.
HARDInG, Sandra (1996): ciencia y feminismo, trad. Pablo Manzano, Madrid,
Morata.
HoRKHEIMER, Max y ADoRno, Theodor (1998): Dialéctica de la Ilustración. Frag-
mentos filosóficos, trad. de Juan José Sánchez, Madrid, Trotta.
KELLy, Petra (1992): «Llevar el derecho a las naciones», en Kelly, Petra: Pensar con
el corazón. Textos para una política sincera, Trad. Joan Parra contreras, Barce-
lona, círculo de Lectores, pp. 263-271.
— (1997): Por un futuro alternativo, trad. Agustín López y María Tabuyo,
Barcelona, Paidós.
LE BRAS-cHoPARD, Armelle (2003): El Zoo de los filósofos. De la bestialización a
la exclusión, traducción de María cordón, Madrid, Editorial Santillana.
MARTínEZ-ALIER, Joan (2004): El ecologismo de los pobres. conflictos ambientales
y lenguajes de valoración, Barcelona, Icaria.
358 EcoLoGíA y GénERo En DIáLoGo InTERDIScIPLInAR
E
l lema dominante hoy en día en los regímenes neoliberales es TINA: «There
is no alternative».1 El objetivo de mi trabajo es combatir esta nueva forma
de dogma monoteísta motivado por intereses económicos. Planteo el imagi-
nario del don y otras formas de resistir a TINA como alternativas formuladas teórica
y empíricamente ante el culto neoliberal corriente al Becerro de Oro. Considero el
imaginario del don como una matriz psico-espiritual de valores internalizados del
don, maneras de relacionarse con el mundo y formas de ser y vivir sostenibles eco-
socialmente. Como noción filosófica enraizada en mi reinterpretación feminista de
los «imaginarios» masculinizados teorizados por Jacques Lacan y otros académicos
patriarcales (p. e. Althusser, 1971), entiendo este concepto y las acciones-valores a
los que conduce como otro paso inherente al Decrecimiento (no necesariamente
para los que ya viven con sus principios). En tanto otra brújula de «realidad», mi
concepto desafía el centro psico-social y subliminal de la mentalidad hegemónica
en el mundo que es el imaginario del Dominio con su énfasis en el consumo y la
competitividad en vez de una identidad ecológica y orientada hacia lo vivo. «Ima-
ginario» es un término que algunos teóricos, desde las ciencias sociales a la literatura
y las ciencias de la educación, han tomado de Lacan. Entre los diferentes usos del
término, Louis Althusser define la ideología como «la relación imaginaria de los in-
dividuos con sus condiciones reales de existencia» (1971: 52). Sostiene que el ima-
ginario es aquella imagen o representación de la realidad que enmascara las
condiciones históricas y materiales de la vida. Para mí, «el imaginario» condensa
precisamente todos los símbolos, rituales, políticas institucionales y valores cultu-
1
No hay alternativa. Este acrónimo era usado por la primera ministra conservadora británica Mar-
garet Thatcher para sostener su política de privatizaciones, libre mercado y capitalismo globalizado.
N.d.T.
360 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Mientras que todos los machos anatómicamente intactos tienen un pene, nadie tiene un
falo —el mítico, el permanentemente erecto monolito arquetípico de la omnipotencia
masculina que significa crecer sin impedimento, la invulnerabilidad y la libertad con
respecto a cualquier dependencia. El que parece poseer el falo es visto como alguien a
quien no le falta nada ni nadie. Parece manejar un talismán que protege contra todo pe-
ligro femenino, en especial contra el que se cierne desde dentro. (Ducat 2004, 2)
riesgo para convertirse en el «número uno», «el primer espada». En lo que concierne
a la protección contra el «peligro femenino», incluyendo la Naturaleza, multitud de
teorías tratan de encontrar sus raíces en las aportaciones de los estudios críticos de
la masculinidad y el género. El «peligro» puede ser interpretado como la revelación
sobre la realidad de una larga era de historia femenina y de modos de vida matriar-
cales que desafían la naturalización del «patriarcado universal». Psicológicamente,
el peligro puede ser también la irrupción de la vergüenza y la culpa asociados a la
violencia sistémica, feminicida (e interseccionalmente étnica y clasista) que ha co-
nocido alternativas y puede, por lo tanto, ser transformada. Las profundas raíces
psico-sociopolíticas, económicas y sexuales del imaginario del Amo incluyen los pro-
cesos del patriarcado capitalista «alquímico» (Von Werlhof, 2001, 2013) que lo fer-
tiliza y apoya psíquica, lingüística y semióticamente, así como de otros modos que
tenemos que comprender mejor. De ahí las palabras clave de mi título.
Las ecofeministas están en lo cierto al considerar que puede que nos dirijamos hacia
una hipnosis colectiva, hacia la eterna búsqueda de chivos expiatorios útiles a la
élite financiera. Después de todo, rara vez son los dueños del Falo (FMI, UE, Banco
Mundial, Banco Central Europeo y los Estados nación) quienes son culpados y vi-
tuperados por los jóvenes furiosos. Es en los seres más vulnerables, en los animales,
por ejemplo en los perros, en las mujeres y en los inmigrantes en quienes los grupos
neoconservadores y fascistas descargan su ira. En Irlanda, 8 000 perros fueron ma-
sacrados tras el empobrecimiento de la gente con la crisis de los préstamos subprime
y la pérdida de puestos de trabajo. En Grecia, numerosos hombres airados se des-
fogan con los perros, torturándolos y linchándolos.
En estas líneas, me centraré en la tensión entre los imaginarios del don y del
amo como sutiles estructuras profundas de género y de culturas específicas que
hoy crean «guerras» epistémico-económicas. Tales imaginarios son la lente a tra-
vés de la cual la vida es percibida y experimentada afectivamente, y son parte de
las relaciones de poder asimétricas junto con el último ab/usar y des/conocer el
sustrato anterior de la ética y economía doméstica del cuidado. Este es un ámbito
de vida no monetarizada sobre el que descansa la economía de mercado. El pa-
triarcado capitalista no prosperaría sin los dones gratuitos que crean el valor aña-
dido que beneficia a la élite. El amplio abanico del don va desde lo que la
naturaleza da libremente hasta el don forzado que personas responsables del cui-
dado en ámbitos claramente feminizados proporcionan a la vida pública. Teorizo
sobre este imaginario con el fin de llamar la atención sobre el hecho de que el
cambio en la superestructura política de las sociedades y en los regímenes de
362 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
poder no es suficiente; el cambio tiene que darse en un nivel más profundo psico-
espiritual y perceptivo.
... [la] creación a través de la destrucción es el poco apropiado nombre capitalista pa-
triarcal para «el desarrollo del subdesarrollo». Nos hacen creer que el mundo mejora
para el desarrollo de la «sobreexplotada» Asia, África y otros continentes no superindus-
triales una vez que adoptan el dogma del misionero económico neoliberal (2013, 17).
Por razones de espacio no puedo exponer aquí la convincente forma en que Von
Wehrlhof relaciona los esfuerzos por convertir «alquímicamente» a la Naturaleza y
a las mujeres en «el oro» o la piedra filosofal pero recojo algunas de sus observa-
ciones clave:
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 363
2
Las actitudes, prácticas, lógica, visión del mundo, rituales e ideas sobre los acuerdos a los que
ahora nos referimos como Economía Feminista del Don (e.g. Vaughan 1997, 2004, 2007), Filosofía
364 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
de la Compensación (Caffyn, 1992), Imaginario del Don (Kailo, 2008) o Economía/Episteme Indígena
del Don (Kuokkanen, 2007) emergen en cierto nivel como un ethos de construcción de relaciones
comunitarias ecoéticas, transnacionales y transgénero.
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 365
Shiva, 1993). Estoy de acuerdo en que el imaginario dominante junto con las polí-
ticas de la vida real para poseer el Falo mítico-concreto explica la negación de los
problemas de raíz. En palabras de Von Werlhof: «Si hoy el patriarcado constituye
lo que Jung llamó el inconsciente colectivo (1995; 1984 de Erdheim), o lo modela
de manera decisiva, entonces no será fácil anularlo» (2013, 80).3
Algunos ejemplos de mi Finlandia Natal nos servirán para ejemplificar el pa-
triarcado alquímico como un proceso destructivo para convertir la Naturaleza en
«Oro alquímico», en ganancia. En Finlandia, en el Norte lejano, con su aura de
magia y sus animales exóticos, su aurora boreal, su paisaje y su pueblo Sami, Lapo-
nia representa el paraíso nacional, el sitio privilegiado del deseo colectivo. Es tam-
bién donde, gracias a los promotores inmobiliarios, se destruye la misma cultura
(el originario sami) y el paisaje que los turistas esperan. Es el sitio primario para la
posesión, aunque sea brevemente, del Falo imaginario como una fantasía de vaca-
ciones. Construir enormes torres hoteleras que compiten con los árboles más altos
en medio de la pureza de los «fells»4 con renos vagando en libertad produce un ex-
traño contraste que recrea el régimen fálico. Al mismo tiempo, los turistas y la élite
buscan «paz», «tranquilidad», naturaleza pura y muchos otros elementos de los
cuales Jürgen Kremer (2008) cree que nos hemos enajenado por una «esquismogé-
nesis disociativa» (1997: 10-11). Kremer enfatiza que todos los pueblos tienen raíces
indígenas (prepatriarcales) cuya recuperación podría, en esta coyuntura histórica,
causar más efectos ecológicamente importantes que los que algunas corrientes post-
modernas son capaces de descubrir o aceptar. Veo una contradicción mayor en esta
tensión entre la fantasía colonial-colonizadora y la verdadera necesidad que siente
la gente de un modo de participación en una realidad no-alquímica cercana a la na-
turaleza cuando se la imagina en su virginidad, en su forma pura (¡agua fresca y
pura, aire limpio, espacio, animales en libertad, una pausa en la «carrera» por la
3
Un erudito pro-feminista especializado en estudios indígenas e identidad ecológica humana, Jür-
gen Kremer, ha definido la trayectoria evolutiva del llamado proceso de civilización como «esquis-
mogénesis disociativa» (Kremer, 1997: 10-11). Este concepto alude a la escisión de la psique en el
modo masculinizado de relacionarse y vivir separados de la Naturaleza. Afirma: «La gente de ascen-
dencia europea o la que ha entrado en el proceso eurocentrado del conocimiento se ha separado a sí
misma de la interacción entre el lugar, los ancestros, los animales, las plantas, el o los espíritus, la co-
munidad, la historia, la ceremonia, los ciclos de la vida, y los ciclos de las estaciones y las edades. Esta
disociación ha creado una conceptualización de la evolución social cuyo principal cambio tuvo lugar
en el paso de la prehistoria a la historia, de la tradición oral a la escritura de la civilización, de la pre-
sencia inmanente del espíritu(s) a la transcendencia de Dios(es)» (Kremer, 2008). Afirma, además,
que la Filosofía de la Ilustración europea culminó el desarrollo del proceso no participativo, de diso-
ciación mental, entronización de la causalidad lineal y apropiación imperial de las apariencias de re-
alidad en una reducción cuantitativa globalizadora (llegando, presumiblemente, al control de lo que
es concebido como la realidad objetiva en sí (Kremer, 2008).
4
Fell, del antiguo nórdico fjall, «montaña». N.d.T.
366 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Llevar a un primer plano el trabajo del don como el pilar material y espiritual sobre
el que se han construido los ámbitos masculinos dominantes de la tecnología, la in-
dustria y la economía implica hacer visible el fondo de la vida pública que se da
368 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
por hecho. También requiere la exposición de las raíces y las corrientes subterráneas
militaristas disfuncionales de la economía hegemónica y los elementos primarios
del PIB en sí mismo. Los miembros de nuestro grupo de Economía del Don han in-
vestigado y publicado un gran número de evidencias científicas que fundamentan
una alternativa. «Otra cosmovisión es posible» ha sido uno de nuestros lemas en
nuestro Mumbai Feminar. El grupo de Economía del Don otorga esperanza contra
la esperanza. No se trata solo de criticar al patriarcado, sino de ofrecer alternativas
profundas como la formulada por von Wehrhof u otros/as expertos/as en matriar-
cados. La investigación de Barbara Mann (2000) en el matriarcado iroqués y su ter-
giversación es un ejemplo que muestra no solo los errores acumulados de la
investigación patriarcal, sino cuál era el ideal de la economía del don democrática
iroquesa durante su vigencia. El Camino de la Abundancia fue creado por equilibrio
cósmico y por relaciones de género supervisadas por abuelas de los clanes. Debido
a la influencia de la ciencia patriarcal que oculta sus negaciones conscientes y su
deformación en cuanto a otros campos de estudios sobre los iroqueses, los eruditos
hoy desacreditan los tratados más científicos sobre las economías del don igualita-
rias y orientadas hacia la vida. Sin embargo, las pruebas aplastantes reunidas ac-
tualmente por la Red de Economía del Don, entre otros grupos, lo hacen cada vez
más difícil.
No obstante, persiste la creencia de que matriarcado significaba «gobierno de
las mujeres» en vez de «gobierno de los hombres». No es así nunca en la sociedad
matriarcal, pero sí puede serlo en la sociedad patriarcal, en cambio. Como Von
Werlhof señala:
ción creativa» —una escuela económica que legitima procesos sociales negativos y
guerras económicas como la tierra positiva de nuevas oportunidades… La combi-
nación del Falo como Desarrollo y los remanentes subconscientes de la dominación
desde la naturalización darwiniana de la vida depredadora —«la supervivencia del
más apto»— explican la aceleración drástica de la destrucción planetaria a la que
estamos asistiendo.
El regalo imaginario puede ser visibilizado nuevamente ya que todavía existe
(aunque a menudo como una cultura liminal secundaria o una economía doméstica
oculta sobre la que se apoya la pública) pero también necesitamos ecomitologías
como medio por el cual la infancia y la juventud podrían ser apoyadas y re-sociali-
zadas/condicionadas para imaginar alternativas ecosociales sanas (Kailo, 2008). No
entiendo por tales narrativas dominantes de conquista y violencia, sino historias
que se concentren en el modo ecosocial sostenible de vida de la prehistoria y de
eras posteriores cuyo rastro podemos encontrar en cuentos de hadas y cuentos po-
pulares, así como en las historias culturales reescritas de pueblos como el cabil (Ma-
kilam, 1999) o en las diversas economías del Don que aún existen en India, Asia e
incluso en el continente americano del norte y del sur.
La lengua no es solo un vehículo para el esfuerzo comunicativo. Forma parte de
los caminos a través de los cuales nos percibimos mutuamente y percibimos la na-
turaleza. La alternativa ecofeminista profunda que necesitamos es lingüística, dis-
cursiva, política y psicológica. Podemos trazar la carta del camino hacia las
afinidades del don a través del género, las especies y la cultura solo combinando
los diversos niveles y las estrategias multidimensionales de transformación. La len-
gua cultural orientada hacia el don está basada en nuevos/prehistóricos símbolos
del árbol de la vida, rituales dirigidos a asegurar la renovación de la vida y el ciclo
de las estaciones, un tesoro de rituales que aseguraron el círculo bueno del don.
Como Mary B. Kelly (2012; El Heiskanen, Kailo, 2013), entre otros, ha demostrado,
implica artesanías femeninas, bordados y ornamentos que apuntaron a la promo-
ción/protección de los ciclos de vida, renacimiento y transmisión del conocimiento
ecológico. Estas artesanías femeninas participaron del ethos basado en la protección
y la reciprocidad de las eras matriarcales a través de un imaginario que no es la ima-
gen especular de la dominación patriarcal. Por el contrario, como muestran estudios
recientes sobre los bordados homeopáticos matriarcales, transmitían la sabiduría
histórica significativa en cuanto al mantenimiento de la fertilidad, la renovación de
la vida y los modos chamanísticos de honrar las uniones cósmicas. Esta sabiduría
específica de las mujeres y esta identidad ecológica surgieron del otro imaginario y
de una práctica basada en la magia que asegura la suerte. Terminaré con dos visio-
nes, una pesimista, otra más optimista en cuanto al potencial que reside en los ima-
ginarios ecológicos profundos del don, la economía del don:
DEL PATRIARCADO COMO SISTEMA ALQUÍMICO A LA ALTERNATIVA: EL IMAGINARIO DEL DON 371
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis (1971): Lenin and Philosophy and other essays, trad. de Ben
Brewster, New York, Monthly Review. Bachelard, Gaston and Maria Jolas
(Translator) (1994): The Poetics of Space, New York, Orion Press.
CHOMSKY, Noam (1999): Profit over People. Neoliberalism and Global Order, New
York: Seven Stories Press.
DUCAT, Stephen J. (2004): The Wimp Factor. Gender Gaps, Holy Wars, and the
Politics of Anxious Masculinity, Boston, Beacon Press.
GIMBUTAS, Maria (1991): The Civilization of the Goddess, San Francisco, Harper.
GÖTTNER-ABENDROTH, H. (ed.) (2008): Societies of Peace, Past and Present, To-
ronto, Inanna Press & Education.
KAILO, Kaarina y Irma HEISKANEN (2013): Näyttelyesite, «Esiäitien elämänvoiman
juurilla-perinnetietoa Pohjolan myyttiemojen ja haltioiden maa-ilmasta», julk.
Myyttikehrä, Kaarina Kailo ja Irma Heiskanen. 2013, Oulu, pohjolan painotuote.
34 s. (Exhibition booklet, At the Roots of the Foremothers’ Life Force-Traditional
Knowledge regarding the Worldview of mythic totemistic female guardians and
haltias).
KAILO, Kaarina (2009): «Sustainable Cultures of Life and Gift Circulation: A New
Model for the Green/Postcolonial Restructuring of Europe?», Sustainable Soci-
eties. Ed. Jarno Pasanen and Marko Ulvila. Ympäristö ja kehitys ry (Environment
and Development Association), Finnish Ministry of Exterior, pp.1-16.
— (2008), Wo/men and Bears. The Gifts of Nature, Culture, Gender Revisited,
Inanna Press & Education, Toronto.
— (2007): «Cyber /Ecofeminism», Encyclopedia of Gender and Information Tech-
nology: Exploring the Contributions,Challenges, Issues, and Experiences of
Women in Information Technology.Idea Group Reference. Ed. EileenM. Trauth.
Hershey: Pennsylvania State University, pp. 172-177.
— (2004): «Globalisation Revisited. Ecospiritual Movements Reviving the Gift Imag-
inary», In Search of a Humanised Globalisation. The Contribution of Spirituali-
372 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
— (2011): The Failure of Modern Civilization and the Struggle for a «Deep» Al-
ternative, Frankfurt am Main, Peter Lang.
— (2012): The failure of the «Modern World System» and the new paradigm», en
Babones, Salvatore y Chase-Dunn, Christopher (eds.), Routledge Handbook of
WorldSsystems Analysis, Oxon and New York, Routledge, pp. 172-180.
22. Ecofeminismos materialistas. Política de la
vida y política del tiempo en Mary Mellor1
María José GUERRA
Universidad de La Laguna
MARY MELLOR
M
i objetivo en este texto es explorar las propuestas y perspectivas de una
de las vetas más interesantes de la ramificada familia de enfoques ecofe-
ministas, la de los ecofeminismos materialistas. Los ecofeminismos han
sido marginales, y marginalizados, tanto en el horizonte de las teorías y prácticas
del ecologismo como del feminismo. Su carácter híbrido, desarrollado al hilo del
debate ético y político entre dos de los movimientos sociales más decisivos de los
últimos cincuenta años, el ecologista y el feminista, supone, por un lado, una falta
de encaje en los discursos hegemónicos de ambos movimientos, a la vez que propi-
cia una fructificación mutua, a través de la crítica entrecruzada, a la que creo que
es interesante atender. Hoy encontramos, por ejemplo, que las ideas ecofeministas
son un ingrediente esencial de los discursos sobre la justicia global, donde se funde
tanto con teorías liberacionistas de la tecnología como alimenta los fenómenos de
los feminismos postcoloniales y de los ecologismos de los pobres. Afrontaremos,
pues, la exposición y comentario crítico de algunas tesis de una de las ecofeministas
materialistas más afamadas, la británica Mary Mellor. Destacaremos de sus pro-
puestas, enraizadas y a la vez críticas con la raíz marxiana, cuatro aspectos decisivos
que la cualifican para pasar el test que Alicia Puleo establece para engrosar la familia
de los ecofeminismos críticos (Puleo, 2008 y 2011).2 Las notas materialistas y cons-
1
Este trabajo está inserto en el Proyecto I+D «Justicia, ciudadanía y género: feminización de las
migraciones y derechos humanos» (FFI2011-24120) del Ministerio de Economía y Competitividad
del Gobierno de España.
2
He comentado las tesis de Puleo en M. José Guerra Palmero en «La nueva Ariadna y las Ilustra-
ciones olvidadas. Crítica, sensibilidad y utopía para el siglo XXI», Daimon. Revista Internacional de
Filosofía, nº 57, 2012, pp. 169-172.
376 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
que no se monetariza. De hecho, con Arlie Russell Hochschild podemos decir que,
como fuerza social y cultural, el actual capitalismo pugna por mercantilizar ámbitos
antes ajenos a sus reglas, incluso la vida íntima (Russell Hochschild, 2008). Un ejem-
plo sería la patentabilidad de la vida, al hilo de la revolución biotecnológica que se
está traduciendo en la apropiación del patrimonio genético común por parte de las
Corporaciones, pero también la entrada en el mercado global de los servicios de
cuidado y de los llamados «servicios sexuales». La dimensión transnacional, cadenas
globales de cuidado o el tráfico de mujeres, es la novedad por su alcance y magni-
tud, que abre la posibilidad de hablar de un sistema sexo/género global (Fraser,
2009). El elemento básico de la extracción de plusvalía, traducido como extenua-
ción física y agotamiento emocional, mantiene a las mujeres como cuidadoras so-
ciales —atadas por el mecanismo motivacional del deber o del amor— a la vez que
las redes transnacionales de la globalización, encarnadas en las migraciones, fuerzan
nuevos modelos de explotación capitalista tanto por la feminización de la mano de
obra internacional —el fenómeno de las maquilas— como por la creación de nuevas
formas de servidumbre que se suman a las antiguas.
La cuestión es, además, que el capitalismo de mercado, aún con modificaciones
ad hoc, no puede resolver los problemas ambientales globales. Su motor, el obtener
beneficios a corto plazo es incompatible con la conservación ecológica a largo plazo.
Las regulaciones medioambientales —moratorias, límites a la contaminación, im-
plementación del principio de precaución, protección del territorio y de las especies,
etc.— chocan con el objetivo del capitalismo, no son compatibles con la expansión
irrestricta del libre mercado. Es más, requieren de instituciones políticas, locales,
nacionales y transnacionales, que las implementen y hagan cumplir. El neolibera-
lismo, por lo tanto, no puede tener un rostro verde.
Este hecho, además —el de la incompatibilidad entre capitalismo global y soste-
nibilidad—, en la argumentación de Mellor, impacta en el feminismo: «… el femi-
nismo que aboga por la “igualdad de oportunidades” siempre estará muy limitado si
no advierte la insostenibilidad de las sociedades consumistas contemporáneas. No
sería un gran logro conseguir la igualdad en un barco que se está hundiendo» (Blasco,
2002: 21). Pero el ecologismo tiene también que enfrentar el hecho de que si no
atiende a la asimetría de género que estructura y sostiene la economía de mercado
será responsable de trasladar «asunciones patriarcales» a sus alternativas verdes.
La economía capitalista no es neutral desde el punto de vista del sexo/género. No
solo porque en las élites económicas las mujeres brillen por su ausencia, la preocupa-
ción del feminismo liberal es meramente esta, sino porque el trabajo no remunerado
de las mujeres «subsidia» la economía global y su tendencia, agudizada en los últimos
tiempos, a bajar salarios y precarizar el trabajo haciendo retroceder en los países eu-
ropeos, o impidiendo que avancen en el Sur Global, los derechos de los trabajadores
y de las trabajadoras.
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 379
son descartados por la economía neoliberal como «externalidades». Esto es, las mu-
jeres y la naturaleza no cuentan tras decretarse su carácter ajeno, su alteridad radical
con respecto a la soberanía absoluta del mercado. Revisemos ahora sus aportaciones
críticas sobre el homo economicus y la intelección de las diversas temporalidades
en conflicto en nuestra vida material y social.
Este asunto nos va a permitir ver cómo opera la apuesta por la inmanencia y la ma-
terialidad concreta del pensamiento de Mellor (1997). Este constructo ficticio re-
mite al pretendido sujeto de las supuestas decisiones racionales en una sociedad de
mercado, donde los individuos son responsables de construir su propio bienestar
mediante elecciones reflexivas y calculadas. El homo economicus se presenta como
«maximizador» de sus opciones, racional en sus decisiones y egoísta en su compor-
tamiento. Dado que la génesis de tal constructo coincide con la operación social y
política de la separación de las esferas, se entiende que, en un primer momento, las
mujeres fueron entendidas como lo «Otro» del homo economicus. Las mujeres,
como reproductoras sociales, aparecen así como seres al servicio de los otros. Rous-
seau, ideólogo del patriarcado moderno, fustigará el egoísmo y las aspiraciones cul-
turales de las aristócratas para alumbrar a la obediente Sofía, una mujer atenta a
las necesidades de Emilio. Las mujeres serán presentadas como intensamente emo-
cionales, todo sentimiento, y en consecuencia, como irreductiblemente irracionales.
Esta última característica las inhabilitará para la esfera pública, para la economía y
la política. La atribución social del altruismo con los más próximos sellará su «en-
trega» al trabajo doméstico y al cuidado. Este altruismo es además, «inmediato»,
no admite dilaciones, hay que responder al momento a las necesidades de los demás
y esto va a privar a las mujeres no solo de la habitación propia, que reclamaba Vir-
ginia Woolf, sino de tiempo propio.
A pesar de los cambios sociales, respecto a las relaciones de género, ocurridos en
el siglo XX, Mellor puntualiza que «En una sociedad dominada por el hombre eco-
nómico en la que la responsabilidad por las decisiones productivas descansa en las
compañías, laboratorios y gobiernos (mayoritariamente masculinos), no puede haber
voz para las mujeres y para la naturaleza» (Mellor, 2000: 137). En la esfera pública,
se espera que las mujeres «incorporadas» se asimilen y acomoden al constructo —el
estereotipo de la ejecutiva agresiva que pierde, a cambio, su feminidad—, pero dado
que la ética del cuidado sigue vigente, se espera de ellas que sus prioridades con-
cuerden con esta última. De este modo, las disonancias y tensiones se multiplican.
La traducción material de este conflicto, encarnado en la doble jornada, es una asi-
metría notable entre los sexos en la carga de trabajo —en las sociedades desarro-
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 381
lladas, con sus bajas tasas de natalidad, la presión ha pasado al cuidado de los an-
cianos—. Las tensiones que generan las dos lógicas, la de la competencia profesional
y la realización familiar como atención a las necesidades de los otros hace que las
mujeres apresadas en estos dilemas sociales estén no solo exhaustas, sino también
hambrientas del tiempo para aspirar a lo que el ideal de autonomía y de autorrea-
lización de la Modernidad prometía: alzarse sobre la red intersubjetiva como dis-
positivo terminal único y protagonista.
La construcción androcéntrica del homo economicus descansa, dice Mellor, en
la existencia de otro destinado a «absorber los aspectos subordinados de la vida»
(Mellor, 2000: 134). Frente a los aspectos subordinados de la vida, el cuidado de
los otros, principalmente, se destacan las prioridades de una agenda económica y
política caracterizada como letal por Mellor, en la estricta tradición ecofeminista.
Por decirlo con uno de los ejemplos de los años ochenta, se prefieren las armas nu-
cleares a las guarderías. La lógica de la guerra domina el lenguaje económico y po-
lítico de la competencia y la acuñación masculinista del poder duro.
Las agendas económicas y políticas se diseñan dejando atrás el carácter corporal
y necesitado de la humanidad. No se piensa sobre los imperativos de la biología ni
de la ecología. No se entiende lo humano como encarnado e incardinado en el eco-
sistema.
El homo economicus opaca la niñez, la enfermedad, el hambre, la necesidad de
descanso y sueño, la ropa sucia, las preocupaciones cotidianas, la maternidad y la
paternidad, el envejecer y las responsabilidades. En este corte operado por la ficción
del homo economicus las mujeres soportan las cargas y las tensiones entre las dos
lógicas sociales: la de la competencia y la maximización del beneficio y la del al-
truismo inmediato debido a los más próximos. Mellor parafrasea a Ynestra King:
«Este es el “pequeño sucio secreto”: la humanidad procede de la naturaleza no hu-
mana» (Mellor, 2000: 130).
La ficción del homo economicus ha forjado el imaginario social moderno del
individualismo posesivo sobre la premisa del individuo hecho y derecho que fun-
ciona independientemente, responsable solo de lo suyo, libre para toda iniciativa
económica, se ha hipertrofiado en el neoliberalismo. Su carácter burgués, su an-
drocentrismo, la identificación con la experiencia masculina del mundo y su etno-
centrismo son sus notas. Esta falsa «libertad económica» ignora los parámetros
ecológicos y biológicos que constriñen las opciones de las sociedades y la humani-
dad. Pondremos un ejemplo de su innegable y funesto éxito neoliberal en las polí-
ticas del desarrollo. Todos hemos sido testigos de la retórica triunfal de los
microcréditos como estrategia contra la pobreza. La bancarización de los y las po-
bres ha sido concebida bajo el patrón del homo economicus a partir de asunciones
neoliberales y patriarcales: —el que los mercados no están construidos socialmente
y el de que los individuos y las familias aisladas son unidades de análisis viables.
382 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
Así, hemos inventado al pobre endeudado hasta la médula, sobre todo a las mujeres
por ser más fiables al devolver el dinero. Las concepciones individualistas del em-
poderamiento femenino en contextos de pobreza están siendo atacadas duramente
porque descuentan las dimensiones de ciudadanía a las que las mujeres tienen de-
recho. Se opta por «sálvese quien pueda» antes que por políticas públicas igualita-
ristas de empleo, asumiendo el empequeñecimiento del Estado en consonancia con
el credo neoliberal. El caso reciente de Brasil demuestra cómo reducir las desigual-
dades es una cuestión de políticas públicas redistributivas y políticas de empleo y
desarrollo capitaneadas por el Estado. Eso no resta para que, a pesar de contar con
voces críticas sobre la sostenibilidad, no se esté revisando el carácter insostenible
del crecimiento.
Por último, aunque Mellor no lo explicita, el homo economicus es una cons-
trucción trasplantada a todo el globo con el fin de romper los lazos de reciprocidad
comunitaria vigentes en gran parte de las culturas del planeta. Adelman y Taft, en
un artículo que evaluaba políticas del desarrollo, llegaban a pedir directamente a
los antropólogos, como economistas, indicaciones para ver cómo quebrar las soli-
daridades tradicionales en pos de la emergencia de la psicología ventajista y com-
petitiva del homo economicus. El rechazo al constructo, a la ficción normativa
occidentalizadora, forjada por el capitalismo, es hoy motivo de resistencia cultural,
económica y política en muchas comunidades que intentan ensayar modelos de eco-
nomía social y cooperativa. El reciente premio Nobel de economía a una mujer he-
terodoxa, Elinor Ostrom (Aguilera, 2009), debería azuzar el debate sobre otros
mitos correlativos como el de la Tragedia de los Comunes, en un momento en que
es urgente, por imperativo ecológico, establecer los usos de bienes comunes globales
como la atmósfera o los mares. Los abusos y expolios ya sabemos a dónde nos han
conducido.
Las mujeres son las generadoras primarias de plusvalía en forma de tiempo social.
MELLOR (Blasco, 2002: 23)
Abordemos, ahora, la analítica del tiempo que nos expone Mellor. El dato histórico
de partida es que la Revolución Industrial se originó a partir del mecanismo básico
del control del tiempo en el mismo momento en que la producción se desplazaba
de la casa familiar o de la comunidad a la fábrica disociando trabajo y hogar. Así,
se inventaba un dispositivo básico para organizar el trabajo: el pago por el tiempo
trabajado en forma de salario. El tiempo social originado por esta revolución está
guiado por la extracción de la plusvalía, por la aceleración y la rapidez, que van a
ECOFEMINISMOS MATERIALISTAS 383
ensayarse con la mecanización y con los sistemas cada vez más «racionales» de tra-
bajo. Nunca olvidaremos al genial Chaplin en Tiempos Modernos burlándose de
la apuesta por la velocidad del fordismo. El caso es que el tiempo social del trabajo
colisiona, choca, con lo que Mellor va a caracterizar como tiempo biológico —el
de las necesidades humanas, el del cuidado y la reparación del cuerpo— y el aún
más reposado tiempo ecológico referido a la escala de tiempo de la sostenibilidad,
de la renovación y la regeneración de la naturaleza. Las mujeres se sitúan en las lí-
neas de choque de estas temporalidades, sobre todo en la referida al cuidado, más
en el Norte del planeta, y a la supervivencia, más en el Sur, que suma todo. El re-
sultado es el hambre femenina de tiempo que es paralela a la feminización de la po-
breza. Las jornadas de trabajo de las mujeres son extensas y extenuantes, más aún
en tiempos de más y más desregulación laboral o de trabajo intensivo en la economía
sumergida y/o informal. En los países enriquecidos, además, esta segunda jornada
se transfiere a otras mujeres en los trabajos mal pagados y precarios de las trabaja-
doras domésticas procedentes de la migración internacional.
Mellor afirma que centrarse en el trabajo de las mujeres no es esencialista, sino
materialista. Así se logra exponer una construcción del mundo material, ligado a
las necesidades biológicas y a los límites ecológicos, que tiene su base en el trabajo
y el tiempo proporcionado por las mujeres a los otros de manera gratuita. Aquí se
habla de un materialismo corporeizado, noción que toma de Ariel Salleh.
Si el objetivo es pensar una sociedad igualitaria y sostenible, habrá que revisar
la pulsión a la velocidad del capitalismo global —consuma más y más veces, pro-
duzca más de forma inmediata— y revisar el tiempo social puesto que su enajena-
ción es lesiva para la satisfacción de necesidades humanas y para la buena marcha
del planeta. La nueva organización social debe pensar la política del tiempo por
encima de la obtención del beneficio inmediato y del mero crecimiento, debe situar
a la justicia social, especialmente en sus dimensiones de clase, género y etnicidad,
y a la sostenibilidad como criterios prioritarios. Mellor habla de que sea posible
tener tiempo para crecer, para jugar, para estar enfermo, para disfrutar de la familia
y los amigos puesto que somos seres sociales con necesidades afectivas que no cubre
el consumo compulsivo con que nos seduce el aparato de marketing capitalista. La
sostenibilidad y no las fuerzas del mercado —salarios bajos, jornadas extensivas,
energía barata y polución externalizada— deben ser las rectoras (Mellor, 2000: 137).
Se trataría, por tanto, de reconectar al reloj, a la medida del tiempo con la vida
y la naturaleza, para efectivamente reconocernos en nuestra corporalidad necesitada
y en nuestra pertenencia al ecosistema local y global. Desgraciadamente, las tecno-
logías de la comunicación, tan útiles para tantas cosas, se están ensamblando en el
sistema económico para servir a la disponibilidad completa de los trabajadores, con
la exigencia de responder al instante. Con esta incursión en el tiempo de descanso,
de ocio, en alternativas incluso presentadas al servicio de la conciliación como el
384 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
La posición por la que abogo es un ecofeminismo materialista profundo que analice las
relaciones materiales de sexo/género en términos de la confrontación de la inmanencia
humana, la corporeidad física y la inserción ecológica. (Mellor, 2000: 225)
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUILERA, Federico (2009): «Una nota sobre la Nobel de Economía Elinor Os-
trom», Revista de economía crítica, nº 8, segundo semestre, pp. 4-7.
BRAIDOTTI, Rosi (2005): Metamorfosis, Madrid, Akal.
— (2009): Transposiciones, Barcelona, Gedisa.
BLASCO, Jaume (2002): «Ecologismo, feminismo y socialismo. De la intergración
ideológica a la transformación social. Una conversación con Mary Mellor» Eco-
logía Política, nº 23, pp. 19-24.
DALLA COSTA, Mariarosa (2009): Dinero, perlas y flores en la reproducción femi-
nista. Madrid, Akal.
FRASER, Nancy (2009): «El feminismo, el capitalismo y la astucia de la historia»,
New Left Review, nº 56, pp. 87-103.
GUERRA PALMERO, María José (2012): «La nueva Ariadna y las Ilustraciones olvi-
dadas. Crítica, sensibilidad y utopía para el siglo XXI», Daimon. Revista Interna-
cional de Filosofía, nº 57, pp. 169-172.
MELLOR, Mary (1997): «Women, nature and the social construction of economic
man», Ecological Economics, 20, pp. 129-140.
386 ECOLOGÍA Y GÉNERO EN DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR
L
a memoria feminista conserva un pasado de esperanzas defraudadas y apoyos
no recíprocos en relación con otros movimientos sociales. El presente trabajo
pretende contribuir a lo que me gusta llamar «Pactos de Ayuda Mutua» entre
los movimientos sociales contemporáneos, en este caso, entre el ecofeminismo y el
ecologismo en sus diversas variantes, en un tiempo de crisis múltiples y desesperada
necesidad de alternativas viables y solidarias. Nada más adecuado, para comenzar,
que recordar unas palabras de la malograda Petra Kelly, cofundadora de Los Verdes
alemanes (Die Grünen): «Nosotras queremos trabajar con nuestros hermanos del
movimiento verde, pero no queremos estar sometidas a ellos. Ellos deben demostrar
su buena voluntad para abandonar sus privilegios de miembros de la casta mascu-
lina» (Kelly, 1997: 29).
En el primer apartado recordaré algunas de las numerosas decepciones históricas
que sufrieron las feministas en su contacto con otros movimientos por la libertad y
la igualdad. En el segundo, realizaré una breve aproximación al ecofeminismo, esa
corriente del feminismo que actualmente despierta tantas expectativas en un mundo
que se enfrenta a una crisis ecológica de dimensiones crecientes. Finalmente, en el
tercero, abordaré lo que considero cinco escollos en la relación entre (eco)feministas
y ecologistas con el objetivo de señalar las vías de su superación y el consiguiente
éxito de los Pactos de Ayuda Mutua a corto, medio y largo plazo.
1
Este trabajo se ha realizado en el marco de los proyectos de investigación La igualdad de género
en la cultura de la sostenibilidad. Valores y buenas prácticas para el desarrollo solidario (FEM2010-
15599) y «Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS: FFI2013-42935-P). Una versión anterior
ha sido publicada en italiano con el título de Donne e mutamento sociale: uno sguardo ecofeminista,
en Cacciari (2014).
388 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
2
Su discurso, que fue seguido por el decreto de la Convención Nacional que prohibía todo club
político de mujeres, tuvo lugar en la sesión del 9 Brumario, que corresponde a la fecha del 30 de oc-
tubre de 1793. Fue publicado en el periódico revolucionario Le Moniteur universel (tome 18, n°40,
p. 164).
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 389
que reconocía en las bases del sistema patriarcal no solo aspectos jurídicos y eco-
nómicos, sino también afectivos y simbólicos ((Puleo, 2005; De Miguel, 2008b).
Autodenominadas «radicales» en alusión al sentido etimológico de «ir a la raíz» de
un problema,3 estaban redefiniendo lo que se consideraba una buena vida (en tanto
anhelo de felicidad), la vida buena (como ideal ético) y la sociedad justa (u organi-
zación política basada en principios, virtudes y valores éticos). De ahí que se incluya
al feminismo, a pesar de su larga trayectoria, dentro de los llamados «nuevos mo-
vimientos sociales» junto con el ecologismo (Dalton y Kuechler, 1992). Ambos tu-
vieron similares desencuentros con teóricos y militantes de la izquierda que tardaron
bastante en aceptar (quienes lo han hecho, que no son todos) que la economía no
era la única clave explicativa de todo fenómeno social y que una industrialización
devastadora basada en el mito del crecimiento indefinido no era la meta indiscutible
que aportaría un bienestar sin sombras a la humanidad.
Pero el ecologismo, como movimiento emergente, a pesar de tener unas bases
altamente feminizadas, no ha estado exento de reproducir los viejos errores de
otros movimientos progresistas con respecto a las mujeres. Cierto es que los par-
tidos verdes fueron pioneros en la aplicación de la paridad en sus listas e integraron
al feminismo ya en sus inicios, impulsados en este aspecto tan innovador por el
pensamiento de figuras de la talla de Petra Kelly (Riechmann, 1991, 1992; Velasco
Sesma, 2010 y 2014). Pero las ecofeministas materialistas Ariel Kay Salleh (1994)
y Mary Mellor (1997) tuvieron que criticar la devaluación del trabajo reproductivo
realizado por las mujeres en que incurrían hasta los mismos teóricos ecosocialistas.
Val Plumwood (1993) mostró la exclusión de la experiencia femenina del cuidado
empático del otro en la noción de «yo expandido» de la Deep Ecology. Mary Judy
Ress (2006) se lamentó de lo poco que se escuchaba a las ecofeministas espiritua-
listas latinoamericanas en el seno de la propia teología de la Liberación a la que
se adscribían. Estos reproches apuntan a un problema compartido que, después
de una rápida aproximación al ecofeminismo, analizaré, sin pretensiones de ex-
haustividad, en cinco puntos clave.
EL ECoFEMINISMo
3
y no por emplear la violencia, como parece sugerir ahora este término debido a su interesado
uso como arma de descalificación en las últimas décadas.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 391
surgida en el último cuarto del siglo XX. Por lo general, no se reconoce la autoría
de tal proeza, pero es incontestable. La tarea emancipatoria no ha terminado y las
mujeres conservan el entusiasmo y la fuerza de los sujetos sociales emergentes. El
análisis feminista de las relaciones de poder y de la construcción de las identidades
de género se ha extendido a múltiples aspectos sociales y culturales. Con mucha
propiedad, el feminismo podría hacer suya la afirmación «nada de lo humano me
es indiferente». y si atendemos a su implicación ecológica a través de la corriente
llamada ecofeminismo, agregaremos: «ni de lo no humano». En sus diferentes for-
mas, el ecofeminismo aborda los nuevos problemas derivados del desarrollo indus-
trial; analiza las relaciones entre patriarcado y dominio sobre la naturaleza;
revaloriza las actitudes y virtudes de la ética del cuidado históricamente propias de
las mujeres; denuncia los graves problemas de salud sufridos por las mujeres a causa
de la contaminación;4 revela la miseria y la multiplicación de las tareas de las mujeres
más pobres debido al deterioro medioambiental y sostiene que el modelo neoliberal
tecnocapitalista depredador ha de ser reemplazado por una relación armónica con
el medio que, en vez de buscar el beneficio mercantil a corto plazo, conserve los
recursos naturales, respete a los demás seres vivos y atienda al bien común.
Minoritario dentro del feminismo, el ecofeminismo es hoy una fuerza emergente
que atrae sobre todo a las jóvenes, genera estilos de vida ecológico-feministas, se
concreta en acciones precisas ecológicas y animalistas, se difunde en las redes so-
ciales a través del ciberactivismo y se expresa con diversos enfoques en las Huma-
nidades y las Ciencias Sociales. Como en toda corriente de pensamiento vivo, el
núcleo de ideas compartidas —en este caso, la tesis de una relación entre patriar-
cado, subordinación de las mujeres y dominio sobre la Naturaleza no humana—
no impide la existencia de posturas diferentes y hasta radicalmente opuestas entre
las distintas pensadoras. Algunas teóricas se han decantado por el esencialismo con
respecto a la identidad de género, otras optan por el constructivismo. El materia-
lismo histórico ha inspirado ciertas investigaciones, las teorías postmodernas, otras.
Hay quien ha partido de hipótesis antropológicas de difícil comprobación sobre la
existencia de un supuesto matriarcado primitivo que, sostienen, subsistiría en al-
gunos pueblos actuales,5 afirmación que —no puedo dejar de señalar— suscita mi
escepticismo. Algunas pensadoras se han centrado en el análisis de la estructura so-
4
Los pesticidas y herbicidas actúan como xenoestrógenos, causando un notable incremento del
cáncer de mama y del Síndrome de Hipersensibilidad Química múltiple tanto en productoras como
en consumidoras. Sobre la incidencia de los productos químicos en la salud de las mujeres, ver, en
este libro, el capítulo «Sesgos de género en medio ambiente y salud», de la endocrinóloga Carme
Valls-Llobet.
5
Para un ejemplo de esta posición, ver en este libro el trabajo de Kaarina Kailo «Del patriarcado
como sistema alquímico al imaginario del don».
392 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
cioeconómica del capitalismo desde una perspectiva ecofeminista.6 otras han de-
sarrollado sus tesis ecofeministas desde la teología (p. e. Gebara, 2000) o la Filosofía
(p. e. Plumwood, 1993), o desde cosmovisiones no occidentales (p. e. Shiva, 1988).
también existe diversidad en la interpretación de la historia de la Filosofía y en las
consideraciones en torno a la ética animal (Adams y Donovan, 1995; Warren, 1996;
Puleo, 2011).
Por último, cabe destacar que la interrupción voluntaria del embarazo y hasta
el control de la natalidad parecen suscitar reparos a algunas ecofeministas (p. e.
Mies, 1998), lo cual me ha llevado a sostener que un ecofeminismo que parte de la
idea de «santidad de la vida» conlleva un alto riesgo de alejamiento con respecto a
las reivindicaciones de libertad y de decisión sobre el propio cuerpo del feminismo.
Existe también lo que puede considerarse una praxis ecofeminista en la que sus
agentes no se auto-aplican ese calificativo. Como forma del llamado «ecologismo
de los pobres» (Martínez Alier, 2004), esa praxis ecofeminista tiene una presencia
creciente en la resistencia a lo que la ecofeminista y altermundialista Vandana Shiva
ha llamado «el mal desarrollo» (Shiva, 1988). Los grupos de mujeres en lucha contra
proyectos locales devastadores del medio ambiente se han multiplicado en las últi-
mas décadas. Este incremento responde principalmente a la intensificación del
ritmo de la globalización neoliberal. La disminución de los recursos naturales de-
bido a la sobreexplotación y el fenómeno de la deslocalización de las empresas han
ampliado los límites espaciales y la profundidad de implantación del modelo que
algunos han llamado, con demasiado optimismo, «capitalismo desmaterializado».
Lejos de hacerse independiente de los bienes naturales, esta fase globalizada co-
rresponde a la liquidación final de la Naturaleza y a la inclusión forzada de la tota-
lidad de humanos y no humanos en los engranajes implacables de la economía de
mercado.
El sistema de producción agrícola hegemónico destruye la biodiversidad, genera
pobreza y exclusión social. Empeora notablemente las condiciones de la vida coti-
diana de las campesinas del Sur, haciendo más difícil su labor de obtención de ali-
mentos, de leña o de agua. ya en los años ochenta del siglo XX, V. Shiva denunciaba
que las mujeres rurales de la India que vivían en una economía de subsistencia eran
las primeras víctimas de la llegada de la explotación intensiva «racional» dirigida
al mercado internacional (Shiva, 1988). El avance de la deforestación les condenaba
a recorrer a pie grandes distancias para encontrar la leña que antes recogían junto
al pueblo. organizadas en torno a los principios de respeto a los demás seres vivos
propios de la tradición de la India y de las enseñanzas de Gandhi, las mujeres
6
Para una exposición del ecofeminismo materialista de Mary Mellor, ver en este mismo libro el
capítulo de María José Guerra «Ecofeminismos materialistas. Política de la vida y política del tiempo
en Mary Mellor».
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 393
7
La conciencia de la importancia del trafkintu ha llevado a la Carta de Kurarrewe: Proclamación
por el cuidado de la semilla y la soberanía alimentaria del wallmapu de mayo de 2012. Puede consul-
tarse en Internet.
8
Campesinas se transforman en Guardianas para asegurar la defensa de la Amazonia. Entrevista
a Inés Fajardo, en «Cimacnoticias. Periodismo con perspectiva de género», 21/02/2014. Puede con-
sultarse en: http://www.adital.com.br/?n=cdfs (consultado el 30 de noviembre de 2013).
394 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
cuerdan también que son quienes producen el 80 % de los alimentos en los países
más pobres. Enumeran los daños causados por la agricultura industrial, reclaman
para las mujeres el acceso a la tierra, a los recursos y servicios esenciales y piden la
participación política. Rechazan explícitamente tanto la opresión moderna del mer-
cado como la antigua de las sociedades tradicionales. Por su parte, el Documento
Final del Noveno Encuentro Internacional de la Marcha Mundial de las Mujeres
(MMM, 2013), preparatorio de la Cuarta Acción Internacional de la Marcha Mundial
de las Mujeres de 2015, reivindica una «cultura feminista contra-hegemónica» que
incluye entre sus objetivos la lucha contra el agronegocio, el hidronegocio, el ex-
tractivismo, los cultivos transgénicos y la expropiación de tierras a la vez que de-
nuncia la violencia sexista y el conservadurismo crecientes que están vinculados a
estas nuevas formas de dominio del mundo. Vemos, pues, que la lucha por la So-
beranía Alimentaria abre nuevas vías de reivindicación de la dignidad y la autono-
mía de las mujeres.9 En el medio rural, un ámbito difícil para las reivindicaciones
feministas, se comienza a tomar conciencia de la subordinación femenina y de la
violencia patriarcal. Las mujeres ya no se resignan a ser productoras invisibles y re-
claman reciprocidad.
De los llamados nuevos movimientos sociales se ha afirmado que son praxis cogni-
tiva que opera una redefinición de la realidad. En este sentido, el feminismo, a pesar
de su larga historia, puede ser incluido entre los nuevos porque ha redefinido lo
que es ser hombre y mujer al cuestionar y transformar las relaciones entre los sexos
(De Miguel, 2003). El ecologismo y el animalismo, en sus diversas formas, redefinen
también al ser humano y a la naturaleza no humana. Los movimientos gay y lésbico,
el LGtB y, recientemente, el movimiento asexual han propuesto nuevas visiones del
amor y la sexualidad. En la estela del ecologismo, son también redefiniciones de la
realidad aquellos paradigmas que, como el decrecimiento, la ecología social, el eco-
socialismo y el ecofeminismo, a pesar de las diferencias que los separan, coinciden
en transformar el criterio con el que se mide la calidad de vida, abandonando la ti-
ranía del mercado o dogmas tales como «más siempre es mejor».
tanto en su teoría como en su praxis, el ecofeminismo comparte numerosos
principios y metas con los demás paradigmas alternativos a los dogmas actuales del
9
Sobre las tensiones provocadas por las demandas de las mujeres en la práctica de la Agroecología,
una disciplina ligada a la meta de la Soberanía Alimentaria, ver el capítulo de este libro titulado «Una
mirada ecofeminista sobre las luchas por la sostenibilidad en el mundo rural» de la investigadora bra-
sileña Emma Siliprandi.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 395
10
Un ejemplo de ello es la excelente novela de ciencia ficción de Ursula Le Guin El nombre del
mundo es bosque (the Word for World Is Forest) cuya publicación en inglés data de 1976.
11
Sobre el protagonismo de las mujeres en esta tarea, ver, en este libro, el capítulo «Aportaciones
de las mujeres indígenas al diálogo entre filosofía y ecología», de la profesora mexicana Georgina
Aimé tapia González; y el ya citado de la especialista brasileña en mujeres y Agroecología, Emma
Siliprandi.
396 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
1) Mujeres invisibles
En las relaciones entre la teoría feminista y las teorías ecologistas (en sus muy diversas
variantes) se suele reproducir la falta de reciprocidad y reconocimiento que se ob-
serva entre los sexos en el conjunto de la sociedad patriarcal. Las feministas estudian
y citan a teóricos de todo origen pero la inversa es mucho menos frecuente. Pocos
son los autores que, desde el ecologismo, el ecosocialismo o el decrecimiento, reco-
nocen las aportaciones del feminismo.12 Así, por ejemplo, un famoso pensador de la
teoría del decrecimiento no tiene problemas en reconocer parentescos con la Eco-
logía Social de Murray Boockin, la Deep Ecology de Arne Naess, el neozapatismo
de Chiapas, el sumak kausay (buen vivir) de los pueblos originarios de Latinoamérica
pero reduce la gran diversidad existente de expresiones del ecofeminismo (populares
y académicas, filosóficas y sociológicas, etc.), a una irónica y peyorativa mención a
las «grandes sacerdotisas ecofeministas de los cultos neopaganos sincréticos y new
age» (Latouche, 2007: 156). Asimismo, es asombroso que logre el prodigio de hablar
de control demográfico y reproducción humana sin mencionar siquiera una sola vez
la palabra «mujeres» o referirse de alguna otra manera a su existencia (Latouche,
2007: 46-50). En otros autores, existe una tendencia a subsumir la pluralidad de
las mujeres en la categoría «la mujer», lo cual es también una forma de invisibilidad
de todas y cada una en tanto personas diversas. Esta invisibilidad no solo suele ser
algo común en los textos, también se da en la dinámica cotidiana de grupos de jó-
venes por la sostenibilidad. En ocasiones, algunas activistas me han comentado su
decepción por haber descubierto que se contaba siempre con las mujeres para las
12
Son honrosas excepciones a esta regla del total olvido y el silencio: Andrew Dobson (1997),
Paolo Cacciari (2008), Jorge Riechmann (2012, 2013), Joan Martínez Alier (2007) y Florent Marcellesi
(2012), entre otros.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 397
tareas cotidianas de infraestructura pero pocas veces las elegían cuando surgía la
oportunidad de enviar un portavoz a los medios de comunicación, por ejemplo.
Asimismo, en la estructura de numerosas oNG ambientales puede advertirse la co-
nocida pirámide de bases femeninas y cúspide masculina.
2) Emancipación en diferido
Esta es una antigua y recurrente exigencia que se ha hecho a las mujeres desde
movimientos sociales progresistas distintos al feminismo. Se les llama a postergar
sus intereses como colectivo de género y a plegarse a un objetivo general que, su-
puestamente, solucionará en el futuro todos los problemas del «segundo sexo».
Como ya hemos visto, tal fue el mensaje que Engels envió a las mujeres con res-
pecto al sufragismo: la lucha sufragista no tenía sentido ya que la sociedad comu-
nista que emergería tras la revolución no sería patriarcal. Por ello, las mujeres
debían olvidar sus propias reivindicaciones y dedicar todos sus esfuerzos a acelerar
el proceso revolucionario. La historia demostró después que no se cumpliría tal
promesa. Este no es el único caso de promesa incumplida. Los ejemplos históricos
son innumerables. En los procesos de lucha social y política se suele aceptar la
participación de las mujeres mientras se está en el momento de la lucha y se nece-
sita sumar energías. Cuando se alcanza el poder, las demandas de las mujeres son
generalmente ignoradas. Recordar este triste fenómeno no implica aconsejar que
las mujeres se abstengan de participar en otra lucha social que no sea el feminismo
pero sí que lo hagan desde la autoconciencia de pertenecer a un colectivo de sexo
que ha padecido y padece un tipo especial de opresión. La emancipación en dife-
rido no es más que una promesa vana si no se acompaña de una praxis igualitaria
en el seno del grupo desde el presente. Este gran escollo de la emancipación en
diferido está estrechamente ligado a la invisibilización de las mujeres, a su percep-
ción como «idénticas» y a su no reconocimiento pleno como sujetos en igualdad.
El ecofeminismo ha de cumplir, al respecto, la función de una necesaria negocia-
ción preventiva con el ecologismo.
3) Ilustración olvidada
13
El fundador de la revista, Edward Goldsmith (1928-2009), ya sostenía en sus escritos que solo
se salvaría la naturaleza si se santificaba la familia y se adoptaba una organización social tradicional
en que las mujeres volvieran a sus tareas de cuidado del hogar.
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 399
4) Multiculturalismo beato
que ser capaces de reconocer en lo propio algo que ofrecer a los demás. A través de
la autocrítica y de la crítica, avanzaremos. El objetivo ha de ser construir en conjunto
una cultura ecológica de la igualdad, no venerar toda costumbre solo por ser parte
de la tradición cultural nuestra o de la ajena. todas las culturas han sido y continúan
siendo injustas con las mujeres y con los animales no humanos y el feminismo tiene
una larga historia olvidada de defensa conjunta de ambos (Rodríguez Carreño, 2012;
VVAA., DEP, 2013). Los criterios mínimos de comparación que he propuesto para pre-
sidir la ayuda mutua intercultural del ecofeminismo crítico (Puleo, 2011) son la sos-
tenibilidad, los derechos humanos, con especial atención a los de las mujeres por
ser los más ignorados transculturalmente y el trato dado a los animales.
toda interpretación del mundo que busque mejorarlo suele tener una propuesta
de «hombre nuevo». Sin duda, un cambio social de este tipo requiere la construc-
ción de un anthropos éticamente mejorado. Los paradigmas ecológicos no son una
excepción al respecto. Pero, ¿puede hacerse esta gran transformación sin una pers-
pectiva (eco)feminista que permita deconstruir el aner? A esta altura del acontecer
histórico, con la potencia tecnológica de que se dispone y la estructura económica
capitalista basada en el crecimiento infinito, la consigna de la construcción social
del varón en torno a la idea de poder implica la liquidación del ecosistema global a
medio plazo. Evidentemente, no se puede obviar la denuncia de los intereses eco-
nómicos implicados en la devastación medioambiental contentándose con una crí-
tica a las identidades de género. Sin embargo, esta también es imprescindible si
queremos una transformación ético-política profunda que no se quede en mera ges-
tión racional de los «recursos». Habrá que proceder a una visibilización y crítica
del androcentrismo que hace del varón (andros) la medida de todo valor. «Andro-
centrismo» es un concepto clave para la comprensión de la ideología del dominio.
El sesgo androcéntrico de la cultura proviene de la bipolarización histórica extrema
de los papeles sociales de mujeres y varones. En la organización patriarcal, la dureza
y carencia de empatía del guerrero y del cazador se convirtieron en lo más valorado,
mientras que las actitudes de afecto y compasión relacionadas con las tareas coti-
dianas del cuidado de la vida fueron asignadas exclusivamente a las mujeres y fuer-
temente devaluadas. En el mundo moderno capitalista, bajo la búsqueda insaciable
de dinero y el omnipresente discurso de la competitividad, late el antiguo deseo de
poder patriarcal. De ahí que una mirada crítica a los estereotipos de género sea
también necesaria para alcanzar una cultura de la sostenibilidad. El guerrero, el ca-
zador y el broker no son las únicas formas de cristalización de la voluntad de poder
patriarcal, desde luego. El ámbito intelectual y el activista tienen las suyas. Por ello,
402 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
REFERENCIAS BIBLIoGRáFICAS
ADAMS, Carol y DoNoVAN, Josephine (eds.) (1995): Animals & Women, Duke Uni-
versity Press, Durham and London.
AMoRóS, Celia (2005a): La gran diferencia... y sus pequeñas consecuencias para las
luchas de las mujeres, Colección Feminismos, Cátedra, Madrid.
— (2005b): «La Dialéctica del Sexo de Shulamith Firestone: Modulaciones femi-
nistas del freudo-marxismo», en Amorós, Celia, De Miguel, Ana (2005), Historia
de la teoría feminista. De la Ilustración a la globalización, volumen II, Minerva
Ediciones, Madrid, pp. 69-105.
CACCIARI, Paolo (2010): Decrecimiento o barbarie. Para una salida no violenta del
capitalismo, trad. S. Puddu Crespellani, Icaria, Antrazyt, Barcelona.
— (ed.) (2014): La decrescita tra passato e futuro: fonti e soggetti, Jaca Book, Mi-
lano.
DELPHy, Christine (1982): «Por un feminismo materialista. El enemigo principal y
otros textos», La Sal-Cuadernos Inacabados 2-3, Barcelona.
DE MIGUEL, Ana (2003): «El movimiento feminista y la construcción de marcos de
interpretación», Revista internacional de Sociología (RIS), tercera época, nº 35,
mayo-agosto, pp. 127-150.
— (2008a): «Movimientos sociales y polémicas feministas en el siglo XIX: Funda-
mentos ideológicos y materiales», en Puleo, Alicia H. (ed.) (2008): El reto de la
igualdad de género. Nuevas perspectivas en ética y Filosofía Política, Biblioteca
Nueva, Madrid, pp. 85-100.
— (2008b): «Dimensiones filosófico-políticas de los movimientos sociales», en Que-
sada, Fernando (ed.) (2008): Ciudad y ciudadanía. Senderos contemporáneos de
la Filosofía Política, (pp. 279-300), trotta, Madrid.
DoBSoN, Andrew (1997): Pensamiento político verde. Una nueva ideología para el
siglo XXI, trad. J. P. tosaus, Paidós, Barcelona.
EzQUERRA, Sandra (2012, 27 de enero): «Discursos y prácticas feministas en el mo-
vimiento 15-M: avances y asignaturas pendientes», Ameco Press, Puede consul-
tarse online.
GARCíA FoRéS, Estefanía (2012): «Madres contra fumigaciones», en revista Sobe-
ranía Alimentaria, 11 (nov.). Puede consultarse online.
GEBARA, Ivone (2000): Intuiciones ecofeministas. Ensayo para repensar el conoci-
miento y la religión, trad. Graciela Pujol, trotta, Madrid.
GREtA GAARD (ed.) (1993), Ecofeminism. Women, Animals, Nature, temple Uni-
versity Press, Philadelphia.
GUERRA PALMERo, Mª José (2014): «Feminismo transnacional, globalización y dere-
chos humanos», en Dilemata nº 15, 2014, pp. 161-169.
404 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INtERDISCIPLINAR
HARtMANN, Heidi (1979): «the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: to-
wards a more Progressive Union», Capital & Class Summer, 1979, 3, pp. 1-33.
DALtoN, R, Kuechler, M. (comps.) (1992): Los nuevos movimientos sociales, Edi-
cions Alfons El Magnànim, Valencia.
LAtoUCHE, Serge (2007): Petit traité de la décroissance sereine, éditions Mille et
une Nuits, Fayard, Paris.
— (2009): La apuesta por el decrecimiento. ¿Cómo salir del imaginario dominante?,
trad. P. Astorga, Icaria.
MARCELLESI, Florent (2012): Cooperación al posdesarrollo. Bases teóricas para la
transformación ecológica de la cooperación al desarrollo, Bakeaz, Bilbao.
MMM (Marcha Mundial de las Mujeres) (2013): Declaración Feminismo en Marcha para cam-
biar el mundo, disponible en: http://encontrommm.wordpress.com/2014/02/20/declara-
cion-feminismo-en-marcha-para-cambiar-el-mundo/ (consultado el 30 de diciembre de
2013).
MARtíNEz ALIER, Joan (2004): El ecologismo de los pobres. Conflictos ambientales
y lenguajes de valoración, Icaria, 2004.
MELLoR, Mary (1997): Feminism and Ecology, Polity Press, Cambridge University
Press, New york.
MIES, María y SHIVA, Vandana (1998): La praxis del ecofeminismo. Biotecnología,
consumo y reproducción, trad. Mireia Bofill y Daniel Aguilar, Icaria, Barcelona.
MoLINA PEtIt, Cristina (2005): «El feminismo socialista estadounidense desde la
Nueva Izquierda. Las teorías del sistema dual (capitalismo +patriarcado), en Amo-
rós, Celia y De Miguel, Ana (2005): Historia de la teoría feminista. De la Ilustración
a la globalización, volumen II, Minerva Ediciones, Madrid, pp. 147-187.
PLUMWooD, Val (1993): Feminism and the Mastery of Nature, London-New york,
Routledge.
PULEo, Alicia H. (2005): «Lo personal es político. El surgimiento del feminismo
radical», en Amorós, Celia y De Miguel, Ana (2005): Historia de la teoría femi-
nista. De la Ilustración a la globalización, volumen II, Minerva Ediciones, Madrid,
pp. 35-67.
— (2011): Ecofeminismo para otro mundo posible, Cátedra, Madrid.
— (2012): «La filosofía como cuestionamiento de la vida cotidiana», en Spadaro,
María Cristina (coord.) (2012), Enseñar filosofía, hoy, Editorial de la Universidad
Nacional de La Plata (EDULP), Argentina, pp. 91-108.
RESS, Mary Judy (2006): Ecofeminism in Latin America, orbis Books, New york.
RIECHMANN, Jorge (1991): ¿Problemas con los frenos de emergencia? Movimientos
ecologistas y partidos verdes en Alemania, Holanda y Francia, Ed. Revolución, Madrid.
— (1992): «tras la muerte de Petra Kelly y Gert Bastian: desinformaciones e
interrogantes», En pie de paz nº 26, pp. 54-57.
— (2012): Interdependientes y ecodependientes. Ensayos desde la ética ecológica
EL ECoFEMINISMo y SUS CoMPAñERoS DE RUtA 405
(y hacia ella), Cànoves i Samalús, Proteo, Colección Siglo XXI ética Actual.
— (2013): Para una caracterización del ecosocialismo en diez rasgos, FUHEM Ecosocial.
Disponible en: http://www.fuhem.es/ecosocial/articulos.aspx?v=9292&n=0 (consultado el
12 de diciembre de 2013)
RoDRíGUEz CARREño, Jimena (2012): «Frances Power Cobbe y la lucha contra la
vivisección como causa femenina en la Inglaterra del siglo XIX», en Rodríguez
Carreño, Jimena (ed.) (2012): Animales no humanos entre animales humanos,
Plaza y Valdés (Dilemata), Madrid, pp. 85-115.
SALLEH, Ariel (1994): «Naturaleza, Mujer, trabajo, Capital: La más profunda con-
tradicción», en Ecología Política. Cuadernos de Debate Internacional nº 2, Icaria.
SHIVA, Vandana (1988): Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India, zed
Books, London. Hay traducción castellana (1995): Abrazar la vida. Mujer,
ecología y desarrollo, trad. Instituto del tercer Mundo de Montevideo (Uruguay),
Madrid, Cuadernos inacabados 18, ed. horas y HoRAS.
VELASCo SESMA, Angélica (2010): «Petra Kelly. Cuando el pacifismo es ecofemi-
nista», EcoPolítica nº 3. http://www.ecopolitica.org/index.php?option=com_con-
tent&view=article&id=106%3Apetra-kelly-cuando-el-pacifismo-es-ecofeminista&
catid=25%3Aecofeminismo&Itemid=1 (consultado el 10 de diciembre de 2013)
— (2014): «Resistencia no violenta para una sociedad igualitaria y sostenible: el
pensamiento de Petra Kelly», Daimon. Revista Internacional de Filosofía, nº 63
(septiembre-diciembre).
WARREN, Karen (ed.) (1996): Ecological Feminist Philosophies, Hypatia Book, In-
diana University Press.
VVAA. (2012): «La Revolución calostral ha empezado», Monográfico de la revista
the Ecologist para España y Latinoamérica, nº 48.
VVAA., «Femminismo e questione animale», monográfico de DEP. Deportate, esuli,
profughe. Rivista telematica di Studi sulla Memoria Feminile, Università Ca’Fos-
cari Venezia, nº 23, luglio 2013.
Sobre autoras y autores
Eva Antón
Máster en Género y Políticas de Igualdad por la Universidad Rey Juan Carlos de
Madrid y licenciada en Filología Hispánica por la Universidad de Valladolid. Es
Agente de Igualdad (UVA) y forma parte de la Cátedra de Estudios de Género de la
UVA. Se encuentra finalizando su tesis doctoral titulada ¿Cambio de roles de género
en el cambio de siglo? Análisis comparativo de la literatura francesa y española ac-
tual (1990-2010) en la Universidad de Burgos bajo la dirección del Dr. Teo Sanz.
Es coautora de Lo que Usted debe saber sobre violencia de género.
Email: eva.anton.2010@gmail.com
Micaela Anzoátegui
Profesora de Filosofía por la Universidad Nacional de La Plata, Argentina. Secre-
taria del Centro Interdisciplinario de Investigaciones en Género (CINIG), Facultad
de Humanidades y Ciencias de La Educación, UNLP. Sus líneas de investigación se
centran actualmente en la ecología política y en el ecofeminismo en particular, la
filosofía del giro animal y los desafíos que presentan estas nuevas perspectivas para
la región.
Email: micaeanz@gmail.com
408 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INTERDISCIPLINAR
Lucile Desblache
Es profesora y directora del Centre for Translation and Transcultural Studies en la
University of Roehampton, Londres. En el ámbito de la ecocrítica, desde una pers-
pectiva comparatista, su investigación se centra en la representación de los animales
en las culturas contemporáneas. Entre las numerosas obras que ha dedicado a este
tema, cabe citar Women and Apes in Twenty-First-Century French Writing: New
Narratives of Experience, Bestiaire du roman contemporain d’expression française
y La Plume des Bêtes. Su último libro es Souffrances animales et traditions humai-
nes: rompre le silence (2014). Es, asimismo, redactora en jefe de JoSTrans, The
Journal of Specialised Translation.
Email: l.desblache@roehampton.ac.uk
Pilar Errázuriz
Es doctora en Estudios de Género por la Universidad de Valladolid y psicóloga
psicoanalista por la Université de la Sorbonne. Dirige el Centro de Estudios de Gé-
nero y Cultura en América Latina de la Facultad de Filosofía de la Universidad de
Chile e imparte docencia como profesora de Psicoanálisis y Género en el Magister
de Género y Cultura de esa misma Universidad. Su último libro es Misoginia ro-
mántica, psicoanálisis y subjetividad femenina.
Email: pilarerraz@gmail.com
Carmen Flys
Es doctora en Filología Inglesa y profesora titular de Literatura Norteamericana
de la Universidad de Alcalá. Fue pionera de la ecocrítica en España y presidenta
de la Asociación Europea (EASCLE) en el bienio 2010-2012. Es fundadora y editora
general de la revista Ecozon@. Dirige el grupo de investigación GIECo del Instituto
Franklin en la Universidad de Alcalá y el proyecto CLyMA (Ref. IF 2011-009). Es
coeditora de Ecocríticas. Literatura medio ambiente y de Paisajes culturales: he-
rencia y conservación.
Email: carmen.flys@uah.es
Kaarina Kailo
Es doctora en Filosofía por la University of Toronto. Ha sido profesora de Women’s
Studies and Multiculturalism y directora de la primera Cátedra de Estudios de las
Mujeres en la Universidad de oulu, Finlandia. Ha liderado campañas para la igual-
dad, la paz y la democracia global y ambiental en Canadá, país en el que ha desa-
rrollado parte de su actividad docente universitaria. Ha introducido y practicado
las nociones de «eco-mitología» y «ciberecofeminismo». Entre sus publicaciones
destacan «Indigenous Women, Ecopolitics and Healing. Women who Marry
Bears», «Pandora revisited» y «Cyber/Ecofeminism».
Email: kaarina.kailo@gmail.com
Alicia H. Puleo
Es doctora en Filosofía y profesora titular de Universidad de Filosofía Moral y
Política de la Universidad de Valladolid. Forma parte del Consejo de la Cátedra de
Estudios de Género de la misma Universidad y del Consejo del Instituto de
Investigaciones Feministas de la Universidad Complutense de Madrid. Cuenta con
numerosas publicaciones en Europa y América. Su último libro es Ecofeminismo
para otro mundo posible. Ha dirigido el proyecto de investigación I+D. La igualdad
de género en la cultura de la sostenibilidad. Valores y buenas prácticas para el
desarrollo solidario y, desde septiembre de 2014, es directora de la Colección
Feminismos que la Editorial Cátedra publica en colaboración con la Universitat de
València.
Email: aliciahelda.puleo@uva.es
Concha Roldán
Profesora de investigación en el Instituto de Filosofía del CSIC, del que es actual-
mente directora. Preside la Sociedad Española Leibniz (SeL) y la Asociación Espa-
ñola de ética y Filosofía Política (AEEFP), y es vocal en la Junta Directiva de la Red
de Género GENET y de la Red Española de Filosofía (REF). Investigadora principal
del proyecto europeo «Philosophy of History and Globalisation of Knowledge.
412 ECoLoGíA y GéNERo EN DIáLoGo INTERDISCIPLINAR
Cultural Bridges Between Europe and Latin America» (WoRLDBRIDGES) y del I+D
«Prismas filosófico-morales de las crisis» (PRISMAS). Ha sido becaria Humboldt,
DAAD y DFG, y profesora invitada en Mainz (1991), Berlín (1998-99) y Múnich
(2004-2005). Tiene numerosas publicaciones sobre filosofía moderna e Ilustración,
ética, feminismo y filosofía de la historia.
Email: roldan@ifs.csic.es
Teo Sanz
Catedrático de Literatura Francesa en la Universidad de Burgos y Vicepresidente
de l’Association Internationale de la Critique Littéraire (AICL). Doctor en Filología
y musicólogo formado en Francia, es autor de Música y Literatura. La poesía fran-
cesa en la obra de Maurice Ravel, Cómo leer a Marguerite yourcenar y de nume-
rosos artículos de Literatura Comparada publicados en Francia, Bélgica, Inglaterra,
España, EEUU, Canadá, Argentina, Portugal, Grecia, Italia y otros países. En los úl-
timos años ha desarrollado su investigación en el marco de la Ecocrítica.
Email: teosanz@ubu.es
Ángela Sierra
Doctora por la Universidad de Barcelona, es profesora titular de Filosofía de la
Universidad de La Laguna y miembro del Instituto de la Mujer de la Universidad
de La Laguna. Ha sido eurodiputada, es docente e investigadora del Instituto de
Estudios de la Mujer de la Universidad de La Laguna y directora del Centro de Es-
tudios Interdisciplinares Latinoamericanos (CEILAM) y de la Cátedra Cultural y
Científica de Hermenéutica Crítica. Entre otras obras, es autora de Las utopías, del
estado real a los estados soñados y La filosofía ante el ocaso de la democracia re-
presentativa.
Email: asierrgo@ull.es
SoBRE AUToRAS y AUToRES 413
Emma Siliprandi
Doctora en Desarrollo Sostenible por la Universidad de Brasilia, es investigadora
del Núcleo de Estudios e Investigaciones en Alimentación (NEPA) de la Universidad
Estatal de Campinas (UNICAMP), Brasil. Autora de numerosos estudios sobre las
mujeres en el medio rural. Entre los más recientes cabe citar «Agricultura familiar
e o atendimento à demanda institucional das grandes cidades», «As mulheres agri-
cultoras e sua participação no Programa de Aquisição de Alimentos», «Mujeres y
Agroecología: nuevos sujetos políticos en la agricultura familiar».
Email: emma.siliprandi@gmail.com
Géneros e
Sexualidades:
Interseções e
Tangentes
FICHA TÉCNICA
Edição
Centro de Investigação e de Intervenção Social (CIS-IUL)/Lisboa
Âmbito
Linha temática Género, Sexualidades e Intersecionalidade
Organização
João Manuel de Oliveira & Lígia Amâncio
Edição
2017
Comissão científica
João Manuel de Oliveira (ISCTE-IUL)
Lígia Amâncio (ISCTE-IUL)
Conceição Nogueira (U. Porto)
Maria Juracy Filgueiras Toneli (U. Federal de Santa Catarina)
Nuno Santos Carneiro (U. Porto)
Impressão
Gráfica Maiadouro
ISBN
978-989-732-986-9
Depósito Legal
423904/17
Financiado por
2
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Índice
Das intersecções e tangentes João Manuel de Oliveira e Lígia Amâncio. . . . . 5
3
JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA E LÍGIA AMÂNCIO
Das intersecções
e tangentes
6
INTERSEÇÕES E TANGENTES
7
GÉNEROS E SEXUALIDADES
8
INTERSEÇÕES E TANGENTES
9
GÉNEROS E SEXUALIDADES
10
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Referências
• Butler, Judith (1990). Gender Trouble. New York: Routledge.
• Butler, J. (2004). Undoing Gender. New York: Routledge.
• Collins, Patricia Hill (2000). Black Feminist Thought-knowledge,
consciousness, and the politics of empowerment. New York:
Routledge.
• Davies, Brownym & Petersen, Eva B. (2005). Neoliberal discourse in
the academy: the forestalling of collective resistance. Learning and
Teaching in the Social Sciences, 2, 77-98
• Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e
esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim.
11
GÉNEROS E SEXUALIDADES
12
Parte 1
Género:
Ordem e
desordens
LÍGIA AMÂNCIO
Assimetria Simbólica
Breve história de um conceito
O Contexto
Em Portugal os estudos de género iniciaram-se num período
em que a afirmação das ciências sociais coincidiu com as
profundas transformações da sociedade portuguesa, que
GÉNEROS E SEXUALIDADES
18
INTERSEÇÕES E TANGENTES
1. A CCF daria origem à Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres na dé-
cada de 90 e, já neste século, à Comissão para a Igualdade de Género.
19
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Da diferença à distância ao
referente
A distinção entre os sexos, presente em todas as culturas,
embora traduzida numa grande diversidade de expressões
constitui, segundo alguns autores, uma distinção fundadora
de muitas outras distinções sociais (Moscovici, 1972/1994;
Heritier,1996). Na sua forma de expressão binária, é esta
distinção que sustenta a diversidade de crenças e compor-
tamentos que dão sentido ao que é ser homem e ao que é
ser mulher, os seus territórios e espaços próprios e os seus
destinos individuais e que se exprimia nas ilhas do pacífico
de formas diversas, nas sociedades observadas por Mead
(1949/1968) e também de forma diferente da que assumia na
sociedade americana da altura. Mas a existência desta distin-
ção era, e é, uma constante no pensamento social, tal como
o sentido da diferença que a acompanha e a centralidade do
corpo e da sexualidade / reprodução nos seus significados. A
mitologia grega e as grandes religiões oferecem abundantes
exemplos desta diferenciação fundadora que, em nome da
função reprodutora do corpo feminino, afasta as mulheres
da relação com deus, impondo-lhes a intermediação vigilante
e disciplinadora dos homens (Toldy, 1998; Garcia, 1999), seja
nos ritos e nas práticas religiosas, seja no acompanhamento
e controlo que as mudanças sociais cruciais, como foi o
acesso das mulheres à educação no século XIX, podem ter
na posição que é reservada às mulheres (Giorgio, 1991/1994;
Baubérot, 1991/1994; Green, 1991/1994, Garcia, 1999). Mas esta
20
INTERSEÇÕES E TANGENTES
21
GÉNEROS E SEXUALIDADES
22
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Assimetria simbólica no
pensamento sobre o masculino
e o feminino
As distinções entre categorias sociais que alimentam repre-
sentações largamente difundidas nas sociedades assentam
em estereótipos. Este conceito surge no início do século
XX, numa obra dedicada à formação da opinião pública, da
autoria de Walter Lippmann (1922/1929), escritor e jornalista.
A definição proposta por Lippmann irá caracterizar a abor-
dagem empírica dos estereótipos pela psicologia social, nas
décadas seguintes, na medida em que acentua o seu pendor
psicológico, de ‘imagens mentais’, resultantes do sistema de
valores dos indivíduos, que desempenham funções adaptati-
vas e, por isso mesmo, são resistentes à mudança. A redução
do conceito à técnica de medida, baseada em listas de traços
– tecnicamente, um estereótipo constitui o menor número de
traços que um maior número de pessoas atribui a determi-
nado grupo social – e das explicações ao plano individual,
caracterizou os primeiros estudos sobre minorias nacionais
e étnicas nos EUA (Katz e Braly, 1933) e também os numerosos
estudos sobre as categorias de sexo que são feitos nos anos
70, acompanhando a emergência do movimento feminista
23
GÉNEROS E SEXUALIDADES
24
INTERSEÇÕES E TANGENTES
25
GÉNEROS E SEXUALIDADES
26
INTERSEÇÕES E TANGENTES
27
GÉNEROS E SEXUALIDADES
28
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Assimetria simbólica
e mudança social
Tendo presente a condicionante ideológica que a assimetria
simbólica introduz nos processos de mudança das relações
de género, esta linha de investigação orientou-se para as cha-
madas profissões masculinas, devido à prevalência numérica
dos homens, numa altura em que a presença das mulheres no
ensino superior e a sua entrada nas profissões qualificadas
surgiam como um dos sinais de modernização da sociedade
portuguesa (Barreto, 1996). Ao acentuar o sucesso do percurso
escolar das mulheres, ignorando as formas de discrimina-
ção de que eram vítimas no mundo do trabalho, esta visão
sociológica da evolução do Portugal democrático ignorava a
investigação de género e feminista e tornava as políticas para a
igualdade, como por exemplo as acções positivas, no mínimo
controversas, porque desnecessárias. Ora, o interesse por este
tema tinha sido suscitado pelo primeiro inquérito à comu-
nidade científica portuguesa, onde a análise das carreiras de
homens e mulheres nas diferentes disciplinas tinha permitido
mostrar que: “Ambos os sexos deram o seu contributo para o
29
GÉNEROS E SEXUALIDADES
30
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Conclusão
A investigação sobre a assimetria simbólica permitiu ques-
tionar o quadro conceptual subjacente aos estudos sobre as
categorias de sexo (Amâncio, 1993b) e o alcance dos seus
31
GÉNEROS E SEXUALIDADES
32
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Referências
• Amâncio, Lígia (1992). Asimetrias nas representações de género.
Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 34, 9-22
• Amâncio, Lígia (1993a). Género: representações e identidades.
Sociologia. Problemas e Práticas, nº 14, 127-140
• Amâncio, Lígia (1993b). Stereotypes as ideologies. The case of gender
categories. Revista de Psicologia Social, vol.8, 2, 163-170
• Amâncio, Lígia (1994). Masculino e feminino. A construção social da
diferença. Porto, Afrontamento
• Amâncio, Lígia (1995). Social identity and social change. In Lígia
Amâncio e Conceição Nogueira (orgas.) Gender, Management and
Science. Braga, Universidade do Minho, Instituto de Educação e
Psicologia, pp. 33-42
• Amâncio, Lígia e Ávila, Patrícia (1995). O género na ciência. In Jorge
Correia Jesuíno (org.) A Comunidade Científica Portuguesa nos
finais do século XX. Oeiras, Celta, pp. 135-162
• Amâncio, Lígia e Oliveira, João Manuel (2006). Men as individuals and
women as a sexed category. Implications of symbolic asymmetry for
feminist practice and feminist psychology. Feminism & Psychology,
vol.16 (1), 35-43
33
GÉNEROS E SEXUALIDADES
34
INTERSEÇÕES E TANGENTES
35
GÉNEROS E SEXUALIDADES
36
ANTÓNIO MANUEL MARQUES
Estudos da
masculinidade e
teoria feminista3
40
INTERSEÇÕES E TANGENTES
41
GÉNEROS E SEXUALIDADES
5. Ver, a este propósito, as reflexões de Caroline New (2001) e de Ross Haenfler (2004)
acerca destes movimentos, como Promise Keepers, Million Man March, Mythopoets.
Ver também em Lígia Amâncio (2004, p.16-7) a análise dos fundamentos e do impacto
da obra do neoconservador e masculinista Robert Bly (Iron John: A book about Men),
datada de 1990, e a Dissertação de Ana S. Fonseca (1998), completamente focalizada
na análise dessa obra.
42
INTERSEÇÕES E TANGENTES
6. Ou, como diz Miguel Vale de Almeida (1995, p.130), (…) “um corte nas metáforas
verticais de estrutura, hierarquia ou níveis” (…).
43
GÉNEROS E SEXUALIDADES
44
INTERSEÇÕES E TANGENTES
45
GÉNEROS E SEXUALIDADES
46
INTERSEÇÕES E TANGENTES
47
GÉNEROS E SEXUALIDADES
48
INTERSEÇÕES E TANGENTES
7. Isabel do Carmo e Lígia Amâncio (2004, p.11) sintetizam essa necessidade ao re-
ferirem a uma forma de posicionamento ideológico ainda difundido: “Feminismo,
palavra maldita. Um termo que suscita reacções indignadas, risos ou um presunçoso
comentário de que “isso já passou de moda””. No entanto, em clara contradição, os
valores feministas têm sido socialmente incorporados, enquanto as feministas e o mo-
vimento feminista são vulgarmente rejeitados (Riley, 2001).
49
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Almeida, M. V. (1995). Senhores de Si. Uma interpretação
antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século.
• Amâncio, L. (1994). Masculino e Feminino. A construção social da
diferença. Porto: Edições Afrontamento.
• Amâncio, L. (2003a). O género nos discursos das ciências sociais.
Análise Social, xxxviii(168), 687-714.
• Amâncio, L. (2003b). Implicações teóricas e epistemológicas dos
estudos de género para a teoria feminista. Faces de Eva, 9, 29-34.
• Amâncio, L. (2004). A(s) masculinidade(s) em que-estão. In L.
Amâncio (Ed.), Aprender a Ser Homem. Construindo masculinidades
(pp. 13-27). Lisboa: Livros Horizonte.
• Berggren, K. (2014). Sticky masculinity post-structuralism,
phenomenology and subjectivity in critical studies on men. Men and
Masculinities, 17(3,) 231-252.
• Brod, H. (2002). Studying masculinities as superordinate studies.
In J. K. Gardiner (Ed.), Masculinity Studies & Feminist Theory. New
directions (pp. 161-175). New York: Columbia University Press.
• Butler, J. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of
identity. New York: Routledge.
• Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”.
New York: Routledge.
• Carmo, I., & Amâncio, L. (2004). Vozes Insubmissas. A história
das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos
quando era crime fazê-lo. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
50
INTERSEÇÕES E TANGENTES
51
GÉNEROS E SEXUALIDADES
52
INTERSEÇÕES E TANGENTES
53
MARIA HELENA SANTOS
Desigualdades de
género em profissões
qualificadas e resis-
tências à mudança
Um percurso de investigação8
8. Agradecimentos: Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia (Ref.: SFRH/BPD/78150/2011).
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Aproximação à Investigação -
Género, Política, Ação Positiva
e In/justiça Social
Este percurso começou, no início do século, enquanto bol-
seira de investigação em dois projetos coordenados por Lígia
Amâncio (“A igualdade injusta: uma abordagem psicossocio-
lógica das desigualdades de género” e “Elites discriminadas”),
altura em que contactámos, pela primeira vez, com a litera-
tura sobre medidas de ação positiva destinadas a promover a
igualdade.
56
INTERSEÇÕES E TANGENTES
9. Proposta pelo Governo de António Guterres, foi chumbada pelo PSD, CDS, PCP e PEV.
57
GÉNEROS E SEXUALIDADES
58
INTERSEÇÕES E TANGENTES
59
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Um “Mergulho” no Género
na Política e as Resistências
à Mudança
A relevância do género na análise destas questões, revelada nos
estudos anteriores, determinou a opção de dar continuidade
a esta investigação no âmbito do projeto de doutoramento10,
com o objetivo de fornecer um conhecimento aprofundado
sobre os fatores explicativos das desigualdades de género
na política e dos obstáculos às medidas que se destinam a
reduzir as mesmas, integrando também grupos internos à
política. Procurámos, desta forma, conhecer o que pensam as
mulheres, enquanto grupo dominado, as mulheres políticas,
enquanto membros do grupo dominado que conseguiram
ascender ao grupo dominante, e os homens, enquanto grupo
dominante.
60
INTERSEÇÕES E TANGENTES
61
GÉNEROS E SEXUALIDADES
62
INTERSEÇÕES E TANGENTES
63
GÉNEROS E SEXUALIDADES
64
INTERSEÇÕES E TANGENTES
65
GÉNEROS E SEXUALIDADES
66
INTERSEÇÕES E TANGENTES
67
GÉNEROS E SEXUALIDADES
68
INTERSEÇÕES E TANGENTES
69
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: A theory of gendered
organizations. Gender and Society, 4, 139-158.
• Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino: Construção social da
diferença. Porto: Edições Afrontamento.
• Amâncio, L. (2007). “Género e divisão do trabalho doméstico - O caso
português em perspectiva”. In K. Wall & L. Amâncio (Eds.), Família
e género em Portugal e na Europa: Atitudes sociais dos portugueses
(pp. 181-210). Lisboa: ICS
• Bacchi, C. L. (1996). The politics of affirmative action: Women,
equality and category politics. New Delhi: SAGE.
• Barreto, M., Ellemers, N., & Palacios, M. S. (2004). The backlash of
token mobility: The impact of past group experiences on individual
ambition and effort. Personality and Social Psychology Bulletin, 30,
1433-1445.
• Blasi, G., & Jost, J. T. (2006). System justification theory and research:
Implications for law, legal advocacy, and social justice. California
Law Review, 94, 1119-1168.
• Bergmann, B. (1996). In defense of affirmative action. New York:
BasicBooks.
• Bettencourt, A. M., & Pereira, M. M. S. (1995). Mulheres políticas: As
suas causas. Lisboa: Quetzal Editores.
• Connell, R. W. (2002). Gender. Cambridge: Polity Press.
• Crosby, F., & Cordova, D. (1996). Words worth of wisdom: Toward an
understanding of affirmative action. Journal of Social Issues, 52, 33-49.
• Doise, W. (1980). Levels of explanation in the European Journal
of Social Psychology. European Journal of Social Psychology, 10,
213-231.
• Doise, W. (1982). L’explication en psychologie sociale. Paris: PUF.
• Floge, L., & Merrill, D. M. (1986). Tokenism reconsidered: Male nurses
and female physicians in a hospital setting. Social Forces, 64, 925-947.
• Holloway, F. A. (1989). What is affirmative action? In F. A. Blanchard
& F. J. Crosby (Eds.), Affirmative Action in Perspective (pp. 9-19). New
York: Springer-Verlag.
• Jost, J. T., Banaji, M. R., & Nosek, B. A. (2004). A decade of system
justification theory: Accumulated evidence of conscious and
unconscious bolstering of the status quo. Political Psychology, 25,
881-919.
• Kanter, R. M. (1977). Some effects of proportions on group life:
70
INTERSEÇÕES E TANGENTES
71
GÉNEROS E SEXUALIDADES
72
GRACIA TRUJILLO
13. Este texto es parte de una investigación más amplia, actualmente en curso, y ha
sido publicado con anterioridad en un número especial de la revista Viento sur con
el título “Sexualidades diversas, múltiples debates”, editado por Tino Brugos y Josué
González (número 146, Junio 2016, pp. 45- 85).
GÉNEROS E SEXUALIDADES
14. Entrevista realizada por Úrsula del Águila en 2009, “Judith Butler et Beatriz Precia-
do en entretien”, disponible en https://tallerdeteoriaqueer.wordpress.com/2012/10/17/
entrevista-judith-butler-y-beatriz-preciado-conversan/ (consultado el 7 de Septiem-
bre de 2016).
76
INTERSEÇÕES E TANGENTES
77
GÉNEROS E SEXUALIDADES
El parentesco no es sólo
heterosexual
Kath Weston, en el prefacio de la nueva edición de su libro
Familias elegidas (1991), aquellas basadas no en los lazos de
sangre sino en la amistad y el afecto, nos recuerda de dónde
78
INTERSEÇÕES E TANGENTES
79
GÉNEROS E SEXUALIDADES
80
INTERSEÇÕES E TANGENTES
81
GÉNEROS E SEXUALIDADES
82
INTERSEÇÕES E TANGENTES
83
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Demandas y movilizaciones
interconectadas
La propuesta de Weston sobre las “familias elegidas” subra-
yaba la idea de que la familia no es una institución estática
sino una categoría flexible, cultural, que debería representar
para la comunidad lgtbi un reto más que una herramienta
para la asimilación en el sistema. La función del matrimonio
en el capitalismo neoliberal es del todo menos progresista:
se trata de privatizar el bienestar social, de desplazar los
cuidados al ámbito doméstico en lugar de considerarlos un
proyecto colectivo. La ampliación del matrimonio a gays
y lesbianas extiende la capacidad de esta institución priva-
tizadora de absorber funciones sociales. Esto explicaría, al
menos en parte, que en estos últimos años, mientras se está
consiguiendo el matrimonio para gays y lesbianas en algunos
contextos (con o sin el derecho a adoptar), el aborto no está
ni en la agenda (pensemos en Irlanda, en Argentina…) por no
hablar de los derechos de las trabajadoras sexuales. No digo
con esto que la consecución de los avances legales sea fácil
o nos la regalen en ningún sitio, pero el hecho de que unos
derechos sean más funcionales o menos incómodos para el
sistema que otros debería hacernos pensar en los porqués,
cuando menos.
84
INTERSEÇÕES E TANGENTES
85
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Borrás, Vicente (ed.) (2014). Familias también. Diversidad familiar,
familias homoparentales. Barcelona: Bellaterra.
• Butler, Judith (2004/2006). “¿El parentesco es siempre heterosexual
de antemano?” en Deshacer el género. Barcelona: Paidós, págs
149- 187.
• Preciado, Paul (2013) “Qui defend l´enfant queer?” Liberation, 14
de Enero de 2013. http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/
qui-defend-l-enfant-queer_873947. Traducción al castellano
disponible en el siguiente enlace: http://paroledequeer.blogspot.com.
es/2014/08/quien-defiende-al-nino-queer-por.html
• Rubin, Gayle (1984). “Reflexionando sobre el sexo: notas para una
teoría radical de la sexualidad”, en Carole Vance (comp.): Placer y
peligro. Explorando la sexualidad femenina. Madrid: Talasa.
• Trujillo, Gracia (2009). Deseo y resistencia. Treinta años de
movilización lesbiana en el Estado español (1977- 2007). Madrid y
Barcelona: Egales.
86
INTERSEÇÕES E TANGENTES
87
PABLO PÉREZ NAVARRO
Cisheteromonor-
matividad y Orden
Público©
The time has come to think about queering the state.
Lisa Duggan
15. Este trabajo ha sido desarrollado en el marco del proyecto “INTIMATE – Ciudada-
nía, Cuidados y Derecho a Elegir: Micropolíticas de la Intimidad en Europa del Sur”
- Starting Grant n. 338452 (2014-2019), coordinado por Ana Cristina Santos en el Cen-
tro de Estudios Sociales de la Universidad de Coimbra. Véase al respecto el detallado
análisis de los “archivos de vagos y maleantes” de los juzgados de Cataluña y Baleares
realizado por Geoffroy Huard (2015).
90
INTERSEÇÕES E TANGENTES
91
GÉNEROS E SEXUALIDADES
16. «On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux dispositions qui in-
téressent l’ordre public et les bonnes mœurs», Code civil des Français (1804), Art. 6.
17. En cuya tipificación destacan las llamadas Public Order Acts del Reino Unido y
otros países.
18. Diseñada ad hoc para criminalizar formas emergentes de la protesta social tras la
irrupción del Movimiento 15-M. Según un editorial del New York Times, se trataría
de una vuelta a los “tiempos oscuros del franquismo” (“Spain’s Ominous Gag Law”,
22-4-2015, http://www.nytimes.com/2015/04/23/opinion/ spains-ominous-gag-
-law.html?_r=0). Esta asociación resulta especialmente acertada si tenemos en cuenta
que vino a endurecer otra ley de seguridad ciudadana (la llamada ley Corcuera) que
sucedió, por su parte, a la Ley de Orden Público franquista (Sol, 2012).
92
INTERSEÇÕES E TANGENTES
93
GÉNEROS E SEXUALIDADES
21. El uso de la marca “©” o “copia registrada” sirve aquí para indicar su pertenencia,
en tanto que copia, a una cadena histórica de iteraciones en instancias judiciales, tan-
to como la pretensión de cada una de esas citas de consolidar los límites de una cierta
identidad que es, como veremos, cultural y legislativa a un tiempo.
22. Entendido como “conjunto de normas jurídicas de derecho privado que regulan la
familia en todos sus aspectos” (García Presas, 2010: 240).
23. 24 de septiembre de 1987 (cfr. Acedo, 388).
94
INTERSEÇÕES E TANGENTES
95
GÉNEROS E SEXUALIDADES
96
INTERSEÇÕES E TANGENTES
97
GÉNEROS E SEXUALIDADES
30. Juzgado de Primera Instancia N°. 15 de Valencia, 15 Sep. 2010. Cursivas mías.
31. STS 6 febrero 2014. En general, se entiende por “orden público internacional”
aquella dimensión del orden público propia del Derecho Internacional Privado que
impide el reconocimiento de los efectos de cualquier ley extranjera (en este caso, la
que permitió la inscripción de la filiación de nacimiento) cuando esta perturba en
demasía lo que aquí hemos venido llamando Orden Público (Monreal, 1976: 122-123).
32. Al parecer, las subrogaciones heterosexuales (entre el 70 y el 80 por ciento del total,
según algunas estimaciones; “Papá, mamá y la tía Samantha” 2015) resultan invisibles
para los funcionarios y juzgados españoles, incluso cuando, como explican desde Son
Nuestros Hijos, las fechas de nacimiento y las de entrada de sus progenitores en el país
de destino ponen frecuentemente en evidencia la mediación de la subrogación (http://
sonnuestroshijos.blogspot.pt/p/nuestros-hijos-son-espanoles.html).
33. Pero que alcanza un espectro de cuestiones administrativas relacionadas, como
las negativas al disfrute de la llamada baja por “maternidad” en ausencia de una figura
materna.
98
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Un nombre propio
Por supuesto, el alcance disciplinario del Orden Público©
sobre la diversidad genérica, deseante y relacional está lejos
de limitarse a la consolidación del biopolítico nexo entre
“madres” y “gestantes”. E incluso esta requiere, como toda la
inercia heterosexualizante del dicho orden en su conjunto, de
un gesto fundante que permita articular los mimbres legales
de esa articulación normativa entre sexos, géneros y deseos
que Butler denominó “matriz heterosexual” (Butler, 2007: 36).
99
GÉNEROS E SEXUALIDADES
100
INTERSEÇÕES E TANGENTES
37. El Mundo, “Autorizan a una niña de cuatro años cambiar de nombre por moti-
vos de transexualidad en Gipuzkoa”, 2-2-2016, http://www.elmundo.es/pais-vas-
co/2016/02/02/56b0b133ca474161538b45ab.html
101
GÉNEROS E SEXUALIDADES
La troika cisheteromonormativa
Así disciplinado, nombre y marca de género mediante, el
binarismo queda listo para organizar el campo de las uni-
dades familiares y reproductivas. Siempre dentro, claro está,
de un marco jurídico que añade, a la infraestructura hetero-
sexual de la filiación, al menos otro ingrediente clave para la
regulación del ámbito genérico, deseante y relacional. Uno
que se mantiene en la actualidad en un estupendo estado de
salud, a saber, ese ubicuo elemento cuyas implicaciones no
sólo jurídicas, sino sociales y culturales en sentido amplio
reúne Brigitte Vasallo bajo la denominación de “marco monó-
gamo” (Vasallo, 2015).
102
INTERSEÇÕES E TANGENTES
103
GÉNEROS E SEXUALIDADES
39. Ver por ejemplo las sentencias del Tribunal Supremo 6358/2002 y 4764/2009, o la
de la Audiencia Nacional de 14 de marzo de 2013.
40. Idem.
104
INTERSEÇÕES E TANGENTES
41. Las ordenanzas hablan del “trouble à l’ordre public” (sentido material del orden
público) pero lo hacen en la práctica indistinguible de este sentido universalista y
xenófobo del Orden Público propiamente dicho, tanto en la arbitrariedad de unas
ordenanzas que combinan la prohibición con apelaciones a las “buenas costumbres”
como, sobre todo, en sus explicaciones políticas. La teniente alcalde de Niza, por
ejemplo, ha explicado que se trata de mantener “nuestro ideal de la relación social”
y de luchar “contra el comunitarismo” (Huffington Post, 19-08-2016 “Avant Nice,
les communes françaises qui ont interdit le burkini sur leurs plages”; http://www.
huffingtonpost.fr/2016/08/19/burkini-plages-interdiction-nice-_n_11604624.
html), mientras que la presidenta del Frente Nacional, Marine Le Pen, considera
que se trata de una cuestión “de orden público, ciertamente; pero más allá, se trata
de la esencia de Francia” (20Minutos, 16-08-2016, “Una docena de municipios ya
prohíben el burkini en Francia”; http://www.20minutos.es/noticia/2818216/0/
mujeres-multa-cannes-francia-burkini-playa/#xtor=AD-15&xts=467263).
105
GÉNEROS E SEXUALIDADES
106
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Referencias
• Acedo Penco, Á. (1997). El orden público actual como límite a la
autonomía de la voluntad en la doctrina y la jurisprudencia. Anuario
de La Facultad de Derecho, 14-15, 323–392.
• Ascensión, E. (2008). Libertad de circulación y orden público en
España. Revista Para El Análisis Del Derecho, (2), 1–19.
• Blanco-Morales Limones, P. (2015). Una filiación: tres modalidades
de establecimiento. La tensión entre la ley, la biología y el afecto.
Bitácora Millennium DIPr., 1, 1-16.
• Butler, J. (2007). El género en disputa. Barcelona: Paidós.
• Calvo Caravaca, A. L., & Carrascosa González, J. (2007). Los matri-
monios entre personas del mismo sexo en la Unión Europea. Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario, 700, 443–475.
• Campiglio, C. (2012). Los conflictos normo-culturales en el ámbito
familiar, 4(Octubre), 5–21.
• Campos, R. (2014). Pobres, anormales y peligrosos en España (1900-
1970): De la “mala vida” a la ley de peligrosidad y rehabilitación social.
En XIII Coloquio Internacional de Geocrítica. El control del espacio y
los espacios de control. Barcelona, 5-10 de mayo. Barcelona. http://
www.ub.edu/geocrit/coloquio2014/Ricardo Campos.pdf (accedido
el 26-08-2016).
• Caravaca, A.-L. C., & González, J. C. (2005). Derecho internacional
privado y matrimonios entre personas del mismo sexo. Revista de
Instituciones Europeas, vol. 1, 758–824. http://eprints.ucm.es/7864/
(accedido el 26-08-2016).
107
GÉNEROS E SEXUALIDADES
108
INTERSEÇÕES E TANGENTES
109
GÉNEROS E SEXUALIDADES
110
Parte 2
Desesta-
bilizar os
géneros e
as sexua-
lidades
JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA
Trânsitos de Género
leituras queer/trans* da potência do
rizoma género42
0. Desidentificações e primeiras
impressões
Comecemos pelo detrás do título, do avesso, como se queer43
fosse português e quisesse dizer deslizar categorias, géneros,
identidades e desejo que se complexificam, tornando-se mais
tortas, mais invertidas, deslizando como ácido numa pedra
e corroendo-a um pouco, deixando rasto, marcando a pedra.
Um queer antes demais sensibilidade e traço, não identidade,
mas antes um traço de uma desidentificação (Muñoz, 1999):
um modo de apropriar e reconstruir um texto culturalmente
42. Este texto foi anteriormente publicado na obra de Leandro Colling (2016). Ativis-
mos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA e é republicado aqui com
alterações.
43. E por isso não vou o grafar em itálico. Vou mantê-lo como se fosse português.
GÉNEROS E SEXUALIDADES
116
INTERSEÇÕES E TANGENTES
117
GÉNEROS E SEXUALIDADES
118
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Necropolíticas, potência e
potestade de género: Espinosa
polindo nossas lentes
Antonio Gramsci (1992: 371), a partir da prisão, avisa:
119
GÉNEROS E SEXUALIDADES
120
INTERSEÇÕES E TANGENTES
121
GÉNEROS E SEXUALIDADES
45. Sobre quem Maria Bethânia canta “A Balada de Gisberta”. A história cruel de Gis-
berta com espancamento, tortura e afogamento da qual resultou a morte, deu origem
a uma campanha quer nacional, quer internacional, “Justiça para Gisberta”, que será
uma das primeiras de Transgender Europe contra violência anti-trans.
122
INTERSEÇÕES E TANGENTES
123
GÉNEROS E SEXUALIDADES
124
INTERSEÇÕES E TANGENTES
125
GÉNEROS E SEXUALIDADES
126
INTERSEÇÕES E TANGENTES
127
GÉNEROS E SEXUALIDADES
128
INTERSEÇÕES E TANGENTES
129
GÉNEROS E SEXUALIDADES
130
INTERSEÇÕES E TANGENTES
131
GÉNEROS E SEXUALIDADES
46. Esse prefixo é usado por grupos dentro do movimento trans* com determinadas
dimensões políticas. Contudo no espaço desta teoria, a ideia de cis esconde mais do
que revela, dado que as pessoas não trans* também recorrem a tecnologias de género
e viajam no espetro dos géneros.
132
INTERSEÇÕES E TANGENTES
133
GÉNEROS E SEXUALIDADES
134
INTERSEÇÕES E TANGENTES
135
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Balzer, Carsten & Hutta, Jan Simon (2012). Transrespect versus
transphobia worldwide - A Comparative Review of the Human-
rights Situation of Gender-variant/Trans People. Berlim:
Transgender Europe.
• Beauvoir, Simone de (1975). O Segundo Sexo. Lisboa: Bertrand
• Bento, Berenice (2014). Brasil, país do transfemínicidio. Artigos e
resenhas do Centro Latino-Americano em sexualidade e direitos
humanos. link: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/
Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf
• Braidotti, Rosi (2011). Nomadic theory: the portable Rosi Braidotti.
New York: Columbia University Press.
• Butler, Judith (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion
of identity. New York: Routledge.
• Butler, J. (1992). Bodies that matter: on the discursive limits of sex.
New York: Routledge.
• Butler, J. (1997). The psychic life of power: theories on subjection.
Stanford: Stanford University Press.
• Butler, J. (2005). Undoing Gender. New York: Routledge.
• Butler, J. (2015). Senses of the subject. New York: Fordham University
Press.
• Chauí, Marilena (2006). Espinosa, poder e liberdade. In Atilio Boron
(ed.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. São Paulo:
Universidade de São Paulo.
• Colling, Leandro & Pelúcio, Larissa (2015). Deslocamentos
antropofágicos ou de como devoramos Judith Butler. Periódicus, 3,
1-6.
• Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e
esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim.
• Fanon, Frantz (1967). Black skin, white masks. London: Pluto.
• Fausto-Sterling, Anne (2000). Sexing the body: gender politics and
the construction of sexuality. New York: Basic books.
• Gordon, Avery (2008). Ghostly matters: haunting and sociological
imagination. Minneapolis, MN: Minnesota University Press.
• Gramsci, Antonio (1992). Selections from the Prison’s Notebooks.
New York: International Publishers.
• Haraway, Donna (2002). O manifesto ciborgue: a ciência, a tecnologia
e o feminismo socialista nos finais do século XX. In Ana Gabriela
136
INTERSEÇÕES E TANGENTES
137
GÉNEROS E SEXUALIDADES
138
RITA GRAVE, JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA E CONCEIÇÃO NOGUEIRA
Limbos da
normatividade
Reflexões sobre o género humano nas
experiências de cross-dressing
142
INTERSEÇÕES E TANGENTES
143
GÉNEROS E SEXUALIDADES
144
INTERSEÇÕES E TANGENTES
145
GÉNEROS E SEXUALIDADES
47. Em 1492, Cristóvão Colombo e a sua tripulação na sua invasão das Américas quan-
do deparados com as práticas culturais das tribos nativo-americanas (incluindo as
146
INTERSEÇÕES E TANGENTES
tradições das pessoas Two-Spirit), por serem incompatíveis com a bíblia cristã, mani-
festaram uma atitude condenatória, sacrificaram muitas vidas e procuraram eliminar
tais tradições com opressão e violência (Bullough & Bullough, 1993). A tradição Two-
-Spirit permanece até aos dias de hoje, contudo com reduzida saliência.
147
GÉNEROS E SEXUALIDADES
148
INTERSEÇÕES E TANGENTES
149
GÉNEROS E SEXUALIDADES
150
INTERSEÇÕES E TANGENTES
151
GÉNEROS E SEXUALIDADES
152
INTERSEÇÕES E TANGENTES
153
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Allen, S. (2014). Whither the transvestite? Theorising male-to-female
transvestism in feminist and queer theory. Feminist Theory, 15 (1)
51-72. doi: 10.1177/1464700113515171
• Amâncio, L. (2003). O género no discurso das ciências sociais. Análise
Social, XXXVIII (168), 687-714
• American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical
manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: Author
• Braun, V., & Clarke, V. (2013). Successful qualitative research:
A practical guide for beginners. Los Angeles|London|New
Delhi|Singapore|Washington, DC: Sage Publications
• Brandão, A. M. (2009). Queer, mas não muito: género, sexualidade e
identidade nas narrativas de vida de mulheres. ex aequo, 20, 81-96
• Bullough, V. L., Bullough, B. (1993). Cross Dressing, Sex and Gender.
Pennsylvania: University of Pennsylvania Press
• Burt, S. (2012). My life as a girl. VQR, 88 (4) 203-211
• Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”.
New York: Routledge
154
INTERSEÇÕES E TANGENTES
155
GÉNEROS E SEXUALIDADES
156
GEORGIA GRUBE MARCINIK E AMANA ROCHA MATTOS
Branquitude e
racialização do
feminismo
Um debate sobre privilégios48
160
INTERSEÇÕES E TANGENTES
A branquitude da categoria
“mulher”: tensionando discursos
no movimento feminista
A diversificação das concepções e práticas políticas
que a ótica das mulheres dos grupos subalterniza-
dos introduzem no feminismo é resultado de um
processo dialético que, se, de um lado, promove
a afirmação das mulheres em geral como novos
161
GÉNEROS E SEXUALIDADES
162
INTERSEÇÕES E TANGENTES
163
GÉNEROS E SEXUALIDADES
52. “A partir da década de 1990, os estudos sobre raça e racismo nos Estados Unidos
começam a mudar seu enfoque, e novos olhares sobre o tema começaram a surgir.
O movimento de mudança nesses estudos deu-se quando os olhares acadêmicos das
ciências sociais e humanas se deslocaram dos “outros” racializados para o centro so-
bre o qual foi construída a noção de raça, ou seja, para os brancos. Esses novos en-
foques foram chamados de estudos críticos sobre a branquitude (critical whiteness
studies). Apesar de os Estados Unidos serem pioneiros nos estudos sobre branquitu-
de, encontramos produções acadêmicas sobre essa temática na Inglaterra, na África
do Sul, na Austrália e no Brasil” (Schucman, 2014, p. 45). No Brasil, os estudos sobre
branqueamento e branquitude no campo da psicologia emergem a partir da década
de 1990, através de Jurandir Freire Costa, Iray Carone, Maria Aparecida Bento e Edith
Pizza (Santos, Schucman, & Martins, 2012).
164
INTERSEÇÕES E TANGENTES
165
GÉNEROS E SEXUALIDADES
53. As minorias raciais variam nas diferentes partes do mundo. No Brasil, em função
do processo colonizador promovido por Portugal, as raças negra e indígena consti-
tuem os principais grupos raciais que vêm sofrendo racismo, extermínio, marginali-
zação e invisibilização em diferentes níveis, desde o século XVI.
166
INTERSEÇÕES E TANGENTES
167
GÉNEROS E SEXUALIDADES
168
INTERSEÇÕES E TANGENTES
169
GÉNEROS E SEXUALIDADES
55. Conferir, por exemplo, o texto de Giovana Xavier, “Branquidade, que horas ela
chega?”, disponível em: http://pretadotora.blogspot.com.br/2015/10/ler-tantos-
-pontos-de-vista-diversos-e.html, e de Stephanie Ribeiro, “Afinal, o que leva os
Brancos adorarem Que horas ela volta?”, disponível em: http://www.geledes.org.br/
afinal-o-que-leva-os-brancos-adorarem-que-horas-ela-volta/
170
INTERSEÇÕES E TANGENTES
171
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Considerações finais
Neste texto, discutimos como o silenciamento de questões
raciais, que não explicitam a branquitude nos saberes e prá-
ticas do feminismo branco, excluem reflexões sobre hierar-
quias raciais presentes no movimento, contribuindo para a
marginalização de experiências de mulheres não-brancas em
diferentes âmbitos.
172
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Referências
• Bento, M. A. S. “Branqueamento e branquitude no Brasil” Em I.
Carone, M. A. S. Bento (Orgs.) Psicologia Social do Racismo: Estudos
sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-57). Petrópolis,
RJ: Vozes.
• Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cardernos
Pagu, 26, 329-376.
• Carneiro, S. (2003). Mulheres em movimento. Estudos Avançados,
17(49), 117-132.
• Crenshaw, K. (1994). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity
Politics andViolence Against Wmen of Color. Em M. A. Fineman, &
R. Mykitiuk, The Public Nature of Private Violence (pp. 93-118). Nova
York: Routledge.
• Haraway, D. (2004). “Gênero” para um dicionário marxista: a política
sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, 22, 201-246.
• Haraway, D. (1995). Saberes Localizados: a questão da ciência para
o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu,
5, 07-41.
• Harding, S. (1993). Rethinking Standpoint Epistemology: What
is “Strong Objectivity”?. Em L. Alcoff, E. Potter (Eds.). Feminist
Epistemologies. Nova York: Routledge.
• hooks, b. (2013). “De mãos dadas com minha irmã: Solidariedade
feminista”. In: Ensinando a Transgredir: A educação como prática
da liberdade (pp. 127-150). São Paulo: Martins Fontes.
• hooks, b. (1984). Black Women: Shaping Feminist Theory. Feminist
Theory from Margin to Centre. Nova York: South End Press.
• Santos, A. d., Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2012). Breve Histórico
do Pensamento Psicológico Brasileiro Sobre Relações Étnico-Raciais.
Psicologia: Ciência e Profissão, 166-175.
• Schucman, L. V. (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo:
branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo:
Annablume.
• Silva, C. da (2011). Ônibus Especial. Em Oh Margem! Reinventa os
Rios! São Paulo: Selo Povo Editora.
• Truth, S. (1851). E não sou uma mulher? Akron, Ohio. Discurso
proferido na Convenção dos Direitos da Mulher. Disponível em:
http://www.geledes.org.br/sojourner-truth-2/ Acessado em: 8 de
setembro de 2016.
173
KARLA GALVÃO ADRIÃO, JAILEILA MENEZES,
EMILIA BEZERRA E ROSEANE AMORIM
Circuitos integrados?
Intersecções de gênero, sexualidade e
geração nas vivências afetivo-sexuais de
um jovem e sua rede de convívio no
nordeste do Brasil.
Introdução
O presente estudo é parte de uma pesquisa57 que foi desen-
volvida na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE,
Brasil, entre os anos de 2014 e 2015. Teve como objetivo ana-
lisar os significados e práticas produzidos sobre os campos
dos Direitos Sexuais (DS) e dos Direitos Reprodutivos (DR)
por mulheres e homens jovens e sua rede de convívio e apoio
(família, comunidade, escola, sistema de saúde, amizade,
religião) em uma região do Estado de Pernambuco, em pro-
cesso de intenso crescimento econômico. Analiticamente, a
pesquisa buscou salientar a intersecção entre os marcadores
de gênero, sexualidade e geração que se presentificam nas
vivências afetivo-sexuais dos/das jovens desta região.
57. Significados e práticas sobre os Campos dos Direitos Sexuais e dos Direitos Repro-
dutivos: uma análise interseccional com mulheres e homens jovens e suas redes de
convívio em território de desenvolvimento econômico. Apoio CNPq/Brasil.
GÉNEROS E SEXUALIDADES
176
INTERSEÇÕES E TANGENTES
177
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Sobre o Método
Para o desenvolvimento da pesquisa buscamos subsídios no
debate feminista pós-estrutural (Butler, 2004; Haraway, 1995)
sobre o uso de categorias de desigualdade, a partir da noção
de interseccionalidade (Piscitelli, 2008; Nogueira, Saavedra
& Costa, 2008) e de subalternidade (Spivak, 2010). A noção de
interseccionalidade ajudou-nos a compreender e tratar dos
fenômenos sem os considerar como linhas paralelas que não se
encontram, ou como categorias que se sobrepõem sem serem
relacionadas efetivamente. Seguindo a inspiração dos estudos
sobre subalternidade nos propusemos a pesquisar com jovens
ao invés de pesquisar sobre eles/elas (Castro, 2010), posicionan-
do-os/as como construtores do mundo no aqui e agora de suas
possibilidades de ação e entendimento da vida social.
178
INTERSEÇÕES E TANGENTES
179
GÉNEROS E SEXUALIDADES
180
INTERSEÇÕES E TANGENTES
181
GÉNEROS E SEXUALIDADES
182
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Família
Diego indicou um de seus primos para participar da entre-
vista, um jovem de 20 anos que expressou um conjunto de
preocupações com relação à banalização das relações sexuais.
O discurso da banalização é regulado pela perspectiva etária
que qualifica a precocidade do ato sexual antes da vida adulta.
183
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Amizade
A amiga entrevistada, de 17 anos, falou sobre como
são percebidas as relações de amizade entre os/as
jovens na região e foi possível observarmos a forte
interferencia de valores sexistas: Não aceita como
se fossem amigos, menino e menina se estão juntos
é como se fossem namorados (entrevistado do cir-
cuito de Diego -Amizade).
184
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Escola
O trabalho com o tema sexualidade nas escolas, embora
recomendado por instâncias educacionais para um trata-
mento transversal, acaba se limitando a aulas de áreas tradi-
cionalmente reconhecidas como especialistas da questão, a
saber, ciências e biologia, o que revela a matriz organicista de
compreensão da sexualidade. Historicamente o assunto tem
sido abordado pelo viés dos perigos e riscos que a vivência
da sexualidade pode conter, isso porque a educação sexual
passa a ser recomendada nas escolas como forma que o
Estado encontrou para responder ao crescimento do numero
de casos de gravidez na adolescência e infecção por HIV
(segunda metade do século XX).
185
GÉNEROS E SEXUALIDADES
186
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Saúde
A entrevistada indicada foi uma agente comunitária de saúde
(ACS), de 48 anos, que falou um pouco sobre o acesso de jovens
ao posto de saúde.
187
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Considerações finais
Os relatos sobre as vivências sexuais construídos com Diego e
sua de rede de convívio, nos informam sobre aspectos relati-
vos às vivências de outros/as jovens. As falas do jovem contri-
buem para o debate sobre iniciação/vida sexual e percebemos
que a forma como posicionam-se em relação à questão da
prevenção/contracepção - quando narra relações sexuais sem
o uso de preservativo ou qualquer outro método – revela uma
fragilidade de alguns atores/atrizes da rede da qual faz parte.
Encontramos um modelo de família que não parece entender
como importante a abordagem de temas relativos à sexuali-
dade do homem jovem, indicando aí uma nuance de gênero.
Ao mesmo tempo, um modelo de escola que contraria Planos
que regem o campo da educação, reduzindo a discussão sobre
os direitos sexuais e reprodutivos a questões do biológico e/ou
associando tal tema a vivências de risco ou problema – caso
da gravidez não planejada. Uma rede de saúde que ainda não
encontrou uma forma de atrair jovens (mulheres e homens
em geral), de modo planejado e efetivo, para atendimentos
188
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Referências
• Bardin, L. (1997). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.
• Borges, A. L. V. & Schor, N. (2005). Início da vida sexual na
adolescência e relações de gênero: um estudo transversal em São
Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 21(2), 499-507.
• Bozon, M. (2004).Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas.
• Brasil.(2000). Ministério da Saúde. Manual de Atendimento à Saúde
Integral de Adolescentes e Jovens. (4. ed.). Brasília.
• Butler, J. (2004). The Force of Fantasy: Mapplethorpe, Feminism,
and Discursives Excess, em Sara Salih with Judith Butler (eds.). The
Judith Butler Reader. (pp. 183-203). Oxford: Blackwell Publishing.
• Castro, L. R. de. (2010). Falatório: participação e democracia na escola.
Coordenação: Lucia Rabello de Castro – Rio de Janeiro: Contra Capa.
• Corrêa, S. & Petchesky, R. (1996).Direitos sexuais e reprodutivos:
uma perspectiva feminista. Physis. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1/2.147-177.
• Franch, M. (2013). Amigas, colegas e “falsas amigas”. Amizade e
sexualidade entre mulheres jovens de grupos populares. Sexualidad,
Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. n.4 - 2010. 28-52.
189
GÉNEROS E SEXUALIDADES
190
LEANDRO COLLING, ALEXANDRE NUNES DE SOUSA E
FRANCISCO SOARES SENA
Enviadescer
para produzir
interseccionalidades
194
INTERSEÇÕES E TANGENTES
195
GÉNEROS E SEXUALIDADES
196
INTERSEÇÕES E TANGENTES
197
GÉNEROS E SEXUALIDADES
198
INTERSEÇÕES E TANGENTES
199
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Giovanni (2015), por sua vez, atenta para o fato de que as van-
guardas modernistas já apontavam para uma função experi-
mental e disruptiva dos limites entre vida cotidiana, política
e arte. Essas fronteiras estariam borradas uma vez que os
artistas se apresentavam empenhados na busca de outras lin-
guagens que rompessem com a tradição. Inclusive, na visão
da mesma autora, citando Esposito, estaríamos revivendo
hoje um momento semelhante àquele com o aparecimento
do artivismo. Contudo, esse não é um ponto pacífico entre os
artistas modernistas.
61. Ver FOUCAULT, M. (1975) Nietzsche, Freud, Marx/ Theatrum philosoficum. Porto:
Rés Limitada.
200
INTERSEÇÕES E TANGENTES
201
GÉNEROS E SEXUALIDADES
63. Essa postura da escritora já existia antes do interesse dela pela epidemia da AIDS,
o que pode ser constatado em sua entrevista ao programa de TV “Voices” de 1983. Dis-
ponível em https://www.youtube.com/watch?v=9PcJR5MWrzc [acessado em 02 de
agosto de 2016]
202
INTERSEÇÕES E TANGENTES
64. Já no Brasil, tivemos a temática da AIDS invadindo obras como as de Caio Fer-
nando Abreu, entre outros. Contudo, o único autodeclarado ativista da AIDS e escritor
brasileiro parece ter sido Herbert Daniel (Bessa, 2002).
203
GÉNEROS E SEXUALIDADES
204
INTERSEÇÕES E TANGENTES
205
GÉNEROS E SEXUALIDADES
206
INTERSEÇÕES E TANGENTES
207
GÉNEROS E SEXUALIDADES
208
INTERSEÇÕES E TANGENTES
O artivismo de Mc Linn
Como vimos, o ativismo sintonizado com perspectivas queer
aposta na possibilidade de desestabilização das identidades,
na transformação social e na quebra de normas regulató-
rias. O propósito é estranhar tanto as formas de fazer arte
quanto as formas de produzir ativismo. Essa perspectiva de
dialogar estreitamente e intencionalmente com um “lugar de
abjeção’’ pode ser assinalada como uma forte expressão dos
artivismos queer que pretendem enfrentar as imposições do
sistema heteronormativo.
209
GÉNEROS E SEXUALIDADES
210
INTERSEÇÕES E TANGENTES
211
GÉNEROS E SEXUALIDADES
68. Em seu clipe, Mc Linn grafa a palavra com “s” (enviadescer) e o autor da entrevista
grafou sem o “s”.
212
INTERSEÇÕES E TANGENTES
213
GÉNEROS E SEXUALIDADES
Referências
• Barbalho, A. (2006). No ar da diferença. Comunicação e informação,
V, 9, nº 1, pp. 08-16.
• Bessa, M. S. (1997). Histórias positivas: a literatura (des)construindo
a AIDS. Rio de Janeiro: Rocco.
• Bessa, M. S. (2002). Os perigosos. Rio de Janeiro: Aeroplano.
• Butler, J. (2015a). Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
• Butler, J. (2015b). Relatar a si mesmo. São Paulo: Autêntica.
• Butler, J. (2015c). Notes toward a performative theory of assembly.
London: Harvand University Press.
• Butler, J. (2006). Vida precaria: el poder del dielo y la violencia.
Buenos Aires: Paidós.
• Butler, J. & Athanasiou, A (2013). Dispossession: the performative in
the political. Cambridge: Polity Press.
• Caparica, M. (2016). MC Linn da Quebrada: “o ódio disfarçado de
opinião é tão culpado quanto quem mata. Lado Bi, Recuperado
em 20 agosto, 2016, de http://ladobi.uol.com.br/2016/05/
mc-linn-quebrada-enviadecer/
• Cysneiros, A. B. (2014). Da transgressão confinada às novas possi-
bilidades de subjetivação: resgate e atualização do legado Dzi a
partir do documentário Dzi Croquettes. Dissertação de mestrado não-
publicada. Universidade Federal da Bahia, Programa Multidisciplinar
de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, Salvador, Brasil.
• Colling, L. (2016). A emergência do artivismo da dissidência sexual e
de gênero no Brasil da atualidade. In: Garcia, P. C. & Thürler, D. (orgs.)
Erotização da política e a política do desejo: narrativas de gênero e
sexualidades em tempos de cólera. Salvador, EDUNEB, pp. 74-86.
• Colling, L. (2015). Que os outros sejam o normal. tensões entre
movimento LGBT e ativismo queer. Salvador: EDUFBA.
• Downing, J. D. H. (2002). Mídia radical: rebeldia nas comunicações
e movimentos sociais. São Paulo: Senac.
• Deleuze, G. & Parnet, C. (2004). Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água.
• Giovanni, J. (2015). Artes de abrir espaço. Apontamentos para a
análise de práticas em trânsito entre arte e ativismo. Cadernos de
Arte e Antropologia, Vol. 4, Nº 2, pp. 13-27.
• Gramsci, A. (1975). Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes.
• Hollanda, H.B. (2004). Impressões de viagem. Rio de Janeiro:
214
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Aeroplano.
• Lírio, G. (2015). Br trans e a potência do corpo performativo: conversa
com Silvero Pereira. Questão de crítica. Rio de Janeiro,Vol. VIII, pp.
263-272.
• Lord, C. & Meyer, R. (2013). Art & queer culture. London: Paidon Press.
• Mourão, R. (2015). Performances artivistas: incorporação duma
estética de dissensão numa ética de resistência. Cadernos de Arte e
Antropologia, Vol. 4, Nº 2, pp. 53-69.
• Oliveira, J. M. (2013). Cidadania sexual sob suspeita: uma meditação
sobre as fundações homonormativas e neo-liberais de uma cidadania
de “consolação”. Psicol. Soc. vol.25, n.1, pp.68-78.
• Perra, H. (2014). Interpretações imundas de como a Teoria Queer
coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-
mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos
encantados com a heteronorma. Revista Periódicus, Vol 1, nº 2.
• Puar, J. (2013). “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”:
interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, Belo
Horizonte, volume 8, número 2, pp. 343-370.
• Raposo, P. (2015). “Artivismo”: articulando dissidências, criando
insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, volume 4, número
2, pp. 3-12.
• Ridenti, M. (2000). Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Editora
UNESP.
• Rolnik, S. (2011). Cartografia sentimental - transformações
contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS.
• Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify.
• Safatle, V. (2012). Grande hotel abismo: por uma reconstrução da
teoria do reconhecimento. São Paulo: Martin Fontes.
• Sant’ana, T. S. (2016). Outras cenas do queer à brasileira: o grito
gongadeiro de Jomard Muniz de Britto no cinema da Recinfernália.
Dissertação de mestrado não-publicada. Universidade Federal da
Bahia, Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e
Sociedade, Salvador, Brasil.
• Sousa, A. N. (2016). Da epidemia discursiva à era pós-coquetel: notas
sobre a memória da AIDS no cinema e na literatura. In. Anais do II
Seminário Internacional de Memória Social. Rio de Janeiro, pp. 01 a 14.
• Vidal-Ortiz, S., Viteri, M. A. & Amaya, J. F. S. (2014). Resignificaciones,
prácticas y políticas queer en América Latina: otra agenda de cambio
social. Nómadas, n.41, pp.185-201.
215
INTERSEÇÕES E TANGENTES
Notas biográficas
Alexandre Nunes de Sousa é professor da Universidade Federal
do Cariri no Brasil e doutorando no Programa Multidisci-
plinar de Pós-graduação e Cultura e Sociedade. Integra o
grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) da UFBA.
E-mail: alexandrenunes@cariri.ufc.br
217
GÉNEROS E SEXUALIDADES
218
INTERSEÇÕES E TANGENTES
219
GÉNEROS E SEXUALIDADES
220
INTERSEÇÕES E TANGENTES
221
GÉNEROS E SEXUALIDADES
222
INTERSEÇÕES E TANGENTES
225
Research brief 2019
PORTUGAL BRASIL
1982 - Revisão do código penal, descriminalizando a 1989 – Vários estados federativos proíbem a discriminação com
homossexualidade (Decreto-Lei n.º 400/82) base na orientação sexual nas suas Constituições Estaduais
1980-1999
2001 – Reconhecimento legal do direito à união de facto 2004 – Cria-se o Programa Brasil sem Homofobia, marco inicial no
e à economia comum por casais dos mesmo sexo (Lei n.º processo de regulação de direitos LBGT, pelo Conselho Nacional
2000-2004
2007- É criada uma lei no código penal que protege 2006 – Sancionada Lei Maria da Penha, que coíbe a violência
os homossexuais da discriminação e ofensas à integridade doméstica e familiar contra a mulher e prevê que as relações
física (Lei nº 59/2007) pessoais independem de orientação sexual. (Lei nº 11.340/2006)
2007 – Estabelecida idade de consentimento igual entre 2008 – Realiza-se a I Conferência Nacional LBGT. Institui-
pessoas do mesmo sexo e entre pessoas do sexo oposto se no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo
(Lei nº 59/2007) Transexualizador. (Portaria Ministério Saúde nº 1.707)
2007 - Inclusão de relações entre pessoas do mesmo sexo 2009 – É lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos-3,
na criminalização da violência doméstica (Lei nº 59/2007) a partir do qual prevê-se ações a serem adotadas pelo Governo
2009 - Foi introduzido o tema da homossexualidade e da brasileiro para combater a discriminação segundo a orientação
2005-2009
diversidade sexual na lei de aplicação da educação sexual sexual, bem como ações de sensibilização da sociedade para a
nas escolas (Lei n.º 60/2009) garantia do direito à liberdade e à igualdade de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais. (Decreto nº 7.037, de 21 de
dezembro de 2009)
2009 – É lançado o Iº Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e Direitos Humanos LGBT. São estabelecidas diretrizes para a
formação de professores e materiais didático-pedagógicos para
promover o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero
no contexto escolar, bem como para combater ao sexismo e a
homofobia (Resolução/CD/FNDE nº 16/04/ 2009).
2010 – O Superior Tribunal de Justiça – STJ conforme decisão
judicial em 27 de abril de 2010 reconhece como legal a adoção por
casais do mesmo sexo no Brasil.
2010 - Foi promulgada a lei que permite o casamento civil 2011 – O Superior Tribunal Federal – STF equiparou as relações
entre pessoas do mesmo sexo (Lei n.º 9/2010) entre pessoas do mesmo sexo à de união estável (Arguição de
2010-2014
2013 – Inclusão da identidade de género como motivação Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ).
nos crimes de homicídios, ofensas à integridade física e 2013 – A conversão da união estável em casamento e a celebração
discriminação e alargamento da questão da orientação de casamento direto foram reconhecidas pelo Conselho Nacional
sexual (até aí referente a gays, lésbicas e bissexuais) para de Justiça - CNJ através da Resolução Nº 175.
todas as pessoas abrangidas pela sigla LGBT (Lei n.º 19/2013)
2016 - Foi promulgada a lei que permite a adopção de 2019 – O Superior Tribunal Federal – STF considera que a homofobia
crianças por casais do mesmo sexo casados civilmente ou é crime, equiparando as penas por ofensas a homossexuais e a
2015-2019
em união de facto (Lei n.º 2/2016) transexuais às previstas na lei contra o racismo.
2017 – Alteração da Lei n.º 32/2006, permitindo um acesso 2019 – É aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do
inclusivo à procriação medicamente assistida (PMA), Senado Federal o Projeto de Lei PL 672/2019, que prevê incluir na
independentemente do diagnóstico de infertilidade, estado Lei de Racismo a discriminação por orientação sexual ou identidade
civil ou orientação sexual (Lei n.º 58/2017) de gênero.
Os indicadores estatísticos: Neste research brief utilizamos dois indicadores atitudinais: uma medida de aceitação social da homosse-
xualidade e uma medida de distância social a indivíduos homossexuais. Estes dois indicadores têm sido utlizados sistematicamente em
vários inquéritos internacionais, permitindo assim comparar as atitudes sociais face à homossexualidade em vários países e continentes.
Aceitação social da homossexualidade (justificabilidade da homossexualidade): Este indicador capta em que medida a homossexuali-
dade é considerada “justificável” pelo inquirido. Os inquiridos devem responder à seguinte pergunta: Diga-me em que medida acha que a
homossexualidade é justificável, utilizando uma escala que vai de 1-nunca se justifica a 10-justifica-se sempre. O indicador varia entre 1 a
10, pelo que quanto maior o valor, maior o nível de aceitação social da homossexualidade.
Distância social a indivíduos homossexuais (homossexuais como vizinhos): Este indicador avalia em que medida os inquiridos se senti-
riam confortáveis com a presença de indivíduos homossexuais como vizinhos. Os inquiridos são confrontados com uma lista de grupos
sociais (e.g., ciganos, toxicodependentes, imigrantes) e têm de indicar quais os grupos sociais que não desejavam ter como vizinhos. Este
indicador é dicotómico: “mencionou não querer ter homossexuais como vizinhos” e “não mencionou não querer ter homossexuais como
vizinhos”. Na presente análise, focamo-nos na percentagem de inquiridos que mencionou “não querer ter homossexuais como vizinhos”.
3
Figura 2. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
1. Evolução temporal das atitudes sociais face à querer ter homossexuais como vizinhos - Brasil e Portugal, início
homossexualidade e final dos anos 90 e final dos anos 2000
Começamos por comparar os níveis de aceitação social da Figura 2.
homossexualidade e a perceção da distância social a indivíduos
100
homossexuais nos dois países, no início dos anos 90, no final dos
anos 90 e no final dos anos 2000. 80
Um primeiro aspeto que deve ser salientado prende-se com
o facto de as respostas dos inquiridos relativamente à aceitação 60 52,4
social da homossexualidade, tanto em Portugal como no Brasil,
40 30,2
se situarem abaixo do ponto médio da escala (5) em todos os 25,6 26,1 27,7
21,6
momentos considerados, inclusivamente no final da década de 20
2000. Estudos comparativos baseados nos mesmos dados do EVS
2008 indicam que, no contexto Europeu, Portugal se situa num 0
nível médio baixo de aceitação da homossexualidade. É nos paí- início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
ses do norte da Europa, tais como a Suécia, a Finlândia, a Norue- portugal brasil
ga, a Dinamarca e os Países Baixos, onde encontramos níveis
mais elevados de aceitação (Takács & Szalma, 2013).
Não obstante, se considerarmos a evolução da aceitação No que toca à perceção da distância social a “homossexuais”,
social da homossexualidade entre o início dos anos 90 e o final verificamos que houve uma redução da percentagem de inquiri-
da década de 2000, verificamos uma tendência positiva de cres- dos que mencionaram não querer ter indivíduos homossexuais
cente acolhimento público da homossexualidade nos dois paí- como vizinhos ao longo do tempo. Se em Portugal, no início
ses. Se no início dos anos 90, os valores médios se situavam em dos anos 90, praticamente metade da população portuguesa
redor dos 2.50 (2.18 em Portugal e 2.43 no Brasil), no final da reportava não desejar ter indivíduos homossexuais como vizi-
década de 90, esses valores subiram em mais do que 1 ponto nhos, esta percentagem reduziu para metade no final dos anos
médio. Contudo, enquanto no Brasil essa aceitação seguiu uma 90, mantendo a mesma percentagem no final dos anos 2000.
trajetória ascendente linear entre os três momentos em análi- No Brasil, também se assistiu a uma queda na percentagem de
se; em Portugal, apesar de a tendência ser também positiva, ela indivíduos desfavoráveis à presença de pessoas homossexuais
ocorreu a dois ritmos. Entre o início e o final da década de 90, como vizinhos, porém de forma mais subtil. Note-se que ape-
o crescimento foi muito pronunciado, chegando mesmo a atin- sar de a descida ser mais discreta, a representatividade de indi-
gir níveis de aceitação mais elevados do que no Brasil. Já o salto víduos que manifestavam não desejar ter homossexuais como
entre o final da década de 1990 e o final da década de 2000 foi vizinhos foi sempre inferior neste país. Enquanto no início dos
mais subtil. anos 90, 30% da população brasileira (em contraste com 52% da
Acreditamos que face às medidas legislativas introduzidas a população portuguesa) manifestava não querer homossexuais
partir de 2010 na sociedade portuguesa, esta evolução positiva como vizinhos, no final dos anos 90 e dos anos 2000, apenas 26%
da aceitação da homossexualidade tenha sido reforçada ao lon- e 22% dos inquiridos assumiam essa posição, respetivamente.
go da última década. Teremos oportunidade de avaliar a direção
e a intensidade dessa evolução entre 2008 e 2019 em Portugal,
através dos dados provenientes da próxima edição do EVS, cuja 2. O papel das características sociodemográficas
recolha acontecerá no final deste ano. Dados da ronda de 2014
do WVS no Brasil revelam que a aceitação social da homosse- Nesta secção, analisamos a variação dos indicadores de acei-
xualidade neste país continuou a aumentar, representando uma tação social da homossexualidade e de perceção da distância
média de 4.58 (ver secção sobre a atualidade). social a indivíduos homossexuais segundo o sexo, a idade, a reli-
Figura 1. Nível médio de aceitação social da homossexualidade ao giosidade e a escolaridade.
longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- justifica-se
sempre) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos 2.1 Sexo
anos 2000 Tanto em Portugal, como no Brasil, homens e mulheres
diferem no nível de aceitação social da homossexualidade e
5
4,24 essas diferenças têm-se expressado segundo o mesmo padrão
ao longo do tempo. Os dados revelam que as mulheres apre-
4
3,36 sentam níveis médios de aceitação da homossexualidade mais
3,68 elevados do que os homens em todos os anos considerados. No
3 2,43 3,17 entanto, essa clivagem de género é maior no Brasil do quem
2 Portugal. Por exemplo, no final dos anos 2000, os níveis de
2,18 aceitação médio entre homens e mulheres em Portugal con-
1 vergem significativamente (Mmulheres=3.85 e Mhomens=3.41).
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 Figura 3. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
por sexo ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10-
Portugal Brasil sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e
final dos anos 2000
4
3
portugal brasil 0
15-29 30-49 50-64 65 15-29 30-49 50-64 65 15-29 30-49 50-64 65
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
Também relativamente à perceção da distância social face a portugal brasil
indivíduos homossexuais, a percentagem de homens e mulhe-
res que reporta preferir não ter indivíduos homossexuais como
vizinhos é significativamente diferente. Em Portugal, no início No final da década de 2000, em Portugal, 39% dos inquiri-
dos anos 90, mais homens do que mulheres (58% face a 48%) dos com mais de 65 anos e 32% dos inquiridos com idades com-
rejeitavam a ideia de ter “homossexuais” como vizinhos. No preendidas entre os 50 e os 64 anos rejeitavam a ideia de ter
final dos anos 90 e dos anos 2000, apesar de a queda geral na homossexuais como vizinhos face a 16% e 19% entre os inquiri-
percentagem de homens e mulheres manifestando este descon- dos com idades compreendidas entre 15 e 29 e 30 e 49 anos, res-
forto, a clivagem de género persiste. Também no Brasil tem-se petivamente. Já no Brasil, no final dos anos 2000, apenas a gera-
testemunhado a mesma tendência de género. À semelhança do ção mais velha se destaca com 32% de indivíduos dessa geração
padrão assistido na sociedade portuguesa, a percentagem de a reportar não querer homossexuais como vizinhos. Entre os
mulheres reportando não querer ter homossexuais como vizi- outros escalões etários, a percentagem de indivíduos a rejeitar
nhos é sempre inferior à dos homens, em todos os anos consi- a ideia de ter homossexuais como vizinhos é muito semelhante
derados. (15-29 anos=21%, 30-49 anos= 19%, 50-64 anos=23%).
Brasil
brasil portugal
Portugal
4,87 6 6
5 5 4,44
4,29 4,44 5 5 5,08
4,39 4,71
4 4 3,96 4 4
3,44 3,3 3,67
3,78 2,89 3,28 3,4
3,4 3 3,08 3
3 2,58 3 2,63 2,69
3,28 3,12 2 2
2,52 2,31 2
2,61
2,36 2
2 2,51 1,8 1 1
1,79 2,19
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5
1,43
1 1
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 religiosa não religiosa religiosa não religiosa
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
15-29 30-49 50-64 ≥65 15-29 30-49 50-64 ≥65 Linear (religiosa) Linear (não religiosa) Linear (religiosa) Linear (não religiosa)
5
Globalmente, a evolução da aceitação social da homossexuali- relação a Mmédio=4.45 e Mbaixo=3.91 em 2006); em Portugal,
dade em função da religiosidade nos dois países é a mesma, no é o grupo de inquiridos com níveis de escolaridade mais baixos
sentido em que os inquiridos que se consideram pessoas religio- que se destacam por apresentar níveis de aceitação significativa-
sas apresentam níveis médios de aceitação da homossexualida- mente inferiores aos dos outros grupos (Mbaixo =3.26 em rela-
de inferiores aos dos inquiridos que não se consideram pessoas ção a Mmédio=4.71 e Malto=5.49 em 2008).
religiosas. Contudo, à semelhança do que verificámos para os Figura 9. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
efeitos da idade na variação deste indicador, a clivagem entre as por nível de escolaridade ao longo do tempo (escala de 1-nunca se
pessoas religiosas e não religiosas é muito mais vincada em Por- justifica a 10- sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final
tugal do que no Brasil, especialmente no final dos anos 2000. Se dos anos 90 e final dos anos 2000
no início e no final da década de 90, os portugueses que se consi-
deravam como pessoas religiosas e aqueles que não se considera- Portugal Brasil
6 6
vam como pessoas religiosas diferiam de forma menos contras- 5,49 5,47
5 5
4,71
tada. Em 2008, os inquiridos autoconsiderados como religiosos 4
4,54
4
4,45
3,86 3,96 3,91
apresentavam níveis médios de aceitação da homossexualidade 3 2,75
3,26 3
3,32
2,78
muito inferiores aos inquiridos autoconsiderados como não reli- 2 2
1
giosos (M=3.40 face a M=5.08). Já no Brasil, no final da década de 1
final dos anos 90 final dos anos 2000 final dos anos 90 final dos anos 2000
2000, os inquiridos que se consideravam como pessoas religio- básico secundário superior básico secundário superior
sas apresentaram níveis médios de aceitação social mais próxi-
mos (4.24 face a um nível médio de 4.71). Figura 10. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
Figura 8. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer querer ter homossexuais como vizinhos, por nível de escolaridade
ter homossexuais como vizinhos, por nível de religiosidade - Brasil - Brasil
Figura 10e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
Figura 8. 100
100 80
80 60
60 53,9 40
31,9 30 32
46,9 24,3 25,8
19,7 14,9 18,3 15,8 14,5
40 20 13,6 13,7
31,2 27,2 25,7 27,7 29,2
24,1 25,5
21 20,4 0
20 14,9
baixo médio alto baixo médio alto
6
da distância social a indivíduos homossexuais variam de acordo Encontramos a mesma tendência geral na variação do indi-
com as atitudes dos inquiridos face ao modelo monoparental cador de distância social percebida a indivíduos homossexuais.
feminino (uma mulher poder ter filhos sem estar em conjugali- Em todos os momentos, quer em Portugal, como no Brasil, é no
dade), ao ideal bi-parental heterossexual de família (a condição grupo de inquiridos que desaprovam o modelo monoparental
de ter um pai e uma mãe como garantia de felicidade de uma feminino que encontramos as percentagens mais elevadas de
criança) e face à desinstitucionalização da conjugalidade (consi- rejeição da ideia de ter indivíduos homossexuais como vizinhos
derar o casamento como uma instituição ultrapassada). (34.5% em Portugal e 30% no Brasil no final dos anos 2000). É
de salientar que em Portugal ocorreu uma redução brutal da
3.1. Modelo monoparental feminino de família: Uma distância social a “homossexuais” no grupo de inquiridos que
mulher pode ter filhos sem ter uma relação com um homem desaprovavam o modelo monoparental feminino, representan-
Nos dois países, verificamos que os indivíduos que apoiam do 61% no início dos anos 90 e apenas 35% no final da década
um modelo de família monoparental no feminino apresentam de 2000.
níveis de aceitação da homossexualidade mais elevados. Pelo
contrário, aqueles que desaprovam a ideia de que uma mulher 3.2. Modelo bi-parental heterossexual: uma criança pre-
pode ter filhos sem estar numa relação com um homem, são cisa de um pai e de uma mãe para ser feliz
aqueles que apresentam níveis de aceitação da homossexualida- Em ambas as populações, os inquiridos que apoiam um
de mais baixos. Com uma posição média, encontramos os inde- modelo bi-parental heterossexual como o modelo ideal de bem-
cisos. -estar das crianças são aqueles que apresentam níveis médios
Se, em Portugal, os indivíduos com posições diferentes face de aceitação da homossexualidade mais baixos. Pelo contrá-
ao modelo monoparental feminino contrastam de forma consis- rio, aqueles que discordam com a assunção de que uma crian-
tente ao longo dos três momentos considerados; já no Brasil, no ça precisa de uma mãe e de um pai para ser feliz, são aqueles
final dos anos 90, os inquiridos indecisos e aqueles que desapro- que apresentam níveis de aceitação da homossexualidade mais
vavam o modelo monoparental feminino convergiam nas suas elevados. Apesar de a tendência ser muito semelhante nos dois
atitudes face à homossexualidade, destacando-se dos inquiridos países, em Portugal, no final da década de 90, os dados revela-
favoráveis (Mfavoráveis=4.90). vam uma aproximação, no nível de aceitação da homossexuali-
Figura 11. Nível médio de aceitação social da homossexualidade, dade, entre indivíduos que valorizam de forma oposta o modelo
por nível de com concordância com o modelo monoparental bi-parental. No entanto, no final da década de 2000, as atitudes
feminino ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- voltam a divergir marcadamente. Já no Brasil, a clivagem entre
sempre se justifica) - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e defensores e não defensores de um modelo bi-parental foi sem-
final dos anos 2000 pre muito marcada.
6 Figura 13. Nível médio de aceitação social da homossexualidade,
por nível de concordância com o modelo bi-parental ao longo do
4,9
5 tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- sempre se justifica) -
4,55
4,08 4,08
Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 e final dos anos 2000
3,87 3,92
4 3,65
3,24
6
2,86 2,89 2,79 2,9
3 2,63
2,45
5,17
2,27 2,33
5 4,59
2 1,83
1,55 4,1 4,07
3,85 3,72
4 3,55
1
3,2 3,22
desaprovo aprovo depende desaprovo aprovo depende desaprovo aprovo depende 3,03
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000 3
2,25
Portugal Brasil 2,06
2
Figura 12. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
querer ter homossexuais como vizinhos, por nível de concordância 1
com o modelo monoparental feminino - Brasil e Portugal, início e discordo concordo discordo concordo discordo concordo
Figurados
final 12 anos 90 e final dos anos 2000 início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
Portugal Brasil
100
80
60,5
60 45,3
50
36,9 33 30,9 34,5
40 32,5 25,6 30 25,3
24,3
20,3 21,1 22,7 20,8 16,8 13,6
20
0
desaprovam
desaprovam
desaprovam
aprovam
aprovam
aprovam
depende
depende
depende
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
portugal brasil
7
Figura 14. Percentagem de inquiridos que mencionaram não querer 6
ter homossexuais
Figura 14 como vizinhos, por nível de concordância com
o modelo bi-parental - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 5
4,424,49
e 100
final dos anos 2000 4,2
3,85
4
3,47 3,43
80 2,9 3,01
3 2,78
2,45
54,1 2,27
60 2,11
2
40 30,9 32 29,2 27,6 30,2
23,5 23,8 1
16,9 17,9 16,6 discordo concordo discordo concordo discordo concordo
20
12,1
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
0 Portugal Brasil
discordam concordam discordam concordam discordam concordam
início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
Figura 16. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
portugal brasil
querer ter homossexuais como vizinhos por nível de concordância
com a desinstitucionalização do casamento - Brasil e Portugal,
No que respeita à distância social percebida a indivíduos início e final dos anos 90 e final dos anos 2000.
Figura 16
homossexuais, em todos os momentos e quer em Portugal quer
no Brasil, é dentro do grupo de inquiridos que apoiavam o 100
modelo bi-parental heterossexual que encontramos as percenta-
gens mais elevadas daqueles que manifestaram não querer ter 80
3.3. Desinstitucionalização da conjugalidade: O casa- início dos anos 90 final dos anos 90 final dos anos 2000
mento é uma instituição ultrapassada portugal brasil
Nos dois países, verificamos que os indivíduos que concor-
dam com a ideia de que o casamento é uma instituição ultra-
passada são aqueles que apresentam níveis médios de aceitação 4. Um olhar sobre a atualidade
da homossexualidade mais elevados. É também entre os inqui- Nas secções anteriores analisámos a evolução da aceitação
ridos com visões mais desinstitucionalizadas da conjugalidade social da homossexualidade e da perceção de distância social
que encontramos percentagens mais elevadas de inquiridos a indivíduos homossexuais em Portugal e no Brasil no virar do
que revelam uma atitude favorável à presença de indivíduos século XXI, incidindo em três momentos (início dos anos 90,
homossexuais como vizinhos. No que toca a evolução temporal, final dos anos 90 e final dos anos 2000) e apontando as varia-
verificamos que no Brasil este padrão mantem-se em todos os ções segundo determinados factores sociodemográficos e mode-
momentos considerados, sendo que no final da década de 2000 los culturais de família. Nesta secção, oferecemos um olhar
há uma convergência entre inquiridos com visões mais desinsti- sobre as atitudes sociais face à homossexualidade e ao reconhe-
tucionalizadas e mais normativas da conjugalidade. Já em Portu- cimento legal dos direitos familiares de casais do mesmo sexo
gal, a trajetória foi mais sinuosa. No início dos anos 90, quer os em 2014 nos dois países. Contudo, relembramos que não temos
inquiridos com visões mais desinstitucionalizadas, quer os mais dados comparáveis para os dois países, pelo que os indicadores
tradicionais apresentavam níveis baixos de aceitação social da atitudinais são diferentes e as análises referentes a cada contex-
homossexualidade. Surpreendentemente, no final dos anos 90, to nacional serão apresentados separadamente.
os inquiridos que consideravam o casamento uma instituição
ultrapassada eram aqueles que apresentavam níveis mais baixos 4.1. Portugal em 2014
de aceitação da homossexualidade. Finalmente, nos anos 2000, No ano de 2014, no âmbito do módulo especial do Interna-
esta tendência reverte-se e os inquiridos com visões mais desins- tional Social Survey Programme (ISSP 2012) “Famílias e Papéis de
titucionalizadas da conjugalidade reportam níveis mais eleva- Género em Mudança”, realizou-se um inquérito à população
dos de aceitação da homossexualidade do que os que discordam portuguesa acerca das suas atitudes face a vários tópicos da vida
com a crença de que o casamento é uma instituição ultrapassa- familiar e aos papéis de género. Para além destes tópicos, foi
da, destacando-se com um nível médio de 4.42 face a 3.43. também auscultada a opinião da população portuguesa acerca
Figura 15. Nível médio de aceitação social da homossexualidade, das medidas e alterações legislativas discutidas e/ou aprovadas
por nível de concordância com a desinstitucionalização do em Portugal ao longo dos últimos anos (ver Ramos, Atalaia e
casamento ao longo do tempo (escala de 1-nunca se justifica a 10- Cunha, 2016). Este inquérito permitiu, assim, conhecer as atitu-
sempre se justifica) - - Brasil e Portugal, início e final dos anos 90 des dos portugueses face ao reconhecimento das competências
e final dos anos 2000 parentais de casais do mesmo sexo, bem como a opinião dos por-
tugueses acerca do reconhecimento legal dos direitos ao casa-
mento civil e à adoção por parte dos mesmos (Lei nº9/2010, de
31 de maio, e Lei nº2/2016, de 29 de fevereiro, respetivamente).
8
Relembramos que este inquérito é anterior à legalização da esta medida 4 anos depois. O reconhecimento legal da adopção
adopção por casais do mesmo sexo na sociedade portuguesa (Lei parece dividir ao meio a população portuguesa. Dois anos antes
nº12/2016, de 29 de fevereiro). da aprovação desta medida, 48% dos inquiridos reportavam dis-
Figura 17 – Percentagem de inquiridos que “discordam”, “não cordar com a adopção de crianças por casais do mesmo sexo e
concordam, nem discordam” e que “concordam” com cada uma a outra metade da amostra dividia-se entre 15% de inquiridos
das
Figuraafirmações
17 – Portugal, 2014 que não tinham uma posição definida em relação a esta maté-
ria e 37% de inquiridos que concordavam com esta medida. A
este nível, as clivagens de género e de idade revelaram-se vin-
% de inquiridos cadas, observando-se maior resistência junto dos inquiridos do
sexo masculino e mais velhos, em particular no que concerne
um casal de duas mulheres pode a adopção.
criar um filho tão bem como um 42,9 11,9 45,2
Figura 18 – Percentagem de inquiridos que “discordam”, “não
casal de um homem e de uma…
concordam, nem discordam” e “concordam” com cada uma das
um casal de dois homens pode
afirmações
Figura 18 – Portugal, 2014
criar um filho tão bem como um 47,2 13,1 39,7
casal de um homem e de uma…
0 20 40 60 80 100 % de inquiridos
discordo não concordo, nem discordo concordo
adopção de crianças por casais
48,3 14,7 37
do mesmo sexo
4.1.1. Atitudes face ao reconhecimento das competências
parentais de casais do mesmo sexo
casamento entre pessoas do
Em matéria do reconhecimento das competências parentais 42,2 17,6 40,1
mesmo sexo
de casais homossexuais femininos e masculinos verificamos que
os portugueses estão divididos. Se, por um lado, 45% dos inqui- 0 20 40 60 80 100
ridos concordam que um casal homossexual de duas mulheres
tem as mesmas competências parentais que um casal heteros- discordo não concordo, nem discordo concordo
sexual, 43% dos inquiridos discorda desta afirmação. Esta divi-
são de opiniões acontece, também, no reconhecimento das com- 4.2. Brasil em 2014
petências parentais de casais compostos por dois homens por No Brasil, decorreu uma quarta ronda do WVS em 2014, pelo
comparação a um casal heterossexual, com 39% dos inquiridos a que temos acesso aos mesmos indicadores de aceitação social e
favor e 47% com uma opinião desfavorável. de perceção de distância social a indivíduos homossexuais ana-
Acresce referir que uma análise mais aprofundada destes lisados nas secções anteriores. Pelo contrário, não temos acesso
dados revelou que a variação de percentagens face ao reconhe- a indicadores que avaliem o reconhecimento dos direitos paren-
cimento das competências de casais homossexuais em fun- tais e conjugais de casais do mesmo sexo tal como fizemos para
ção de estes serem compostos por duas mulheres ou por dois Portugal.
homens não é aleatória. Análises intra-individuais revelam que Em relação à aceitação social da homossexualidade entre
um mesmo inquirido é mais favorável ao reconhecimento das 2006 e 2014, verificamos uma evolução positiva de maior aco-
competências parentais de casais compostos por duas mulhe- lhimento social. No entanto, o ritmo de tal tendência desacele-
res do que de casais compostos por dois homens. Entre outros rou. Se entre o final dos anos 90 e o final dos anos 2000, o nível
factores, esta diferença é explicada por visões mais tradicionais de aceitação aumentava de 3.17 para 4.24, entre 2006 e 2014,
em relação aos papéis de género e à parentalidade, assente em apenas aumentou em 0.34. Tal como o padrão encontrado entre
modelos essencialistas que atribuem às mulheres a função inata o início dos anos 90 e o final dos anos 2000, em 2014 persis-
de cuidadoras privilegiadas em comparação com os homens, a te uma clivagem de género. As mulheres apresentam um nível
quem é atribuído um papel secundário nos cuidados às crian- médio de aceitação social da homossexualidade superior ao dos
ças. Estas atitudes variam em função do sexo e da idade, com homens (M=4.86 face a H=4.28).
os inquiridos mais velhos e do sexo masculino a revelarem-se Figura 19.
mais desfavoráveis ao reconhecimento das competências paren-
tais de casais dos mesmo sexo, sobretudo, aqueles compostos 5,00 4,53 4,86
4,24 4,58
por dois homens. 4,00 4,28
3,92
3,00
4.1.2. Opinião face ao reconhecimento legal dos direitos
ao casamento e à adopção por casais do mesmo sexo 2,00
Tal como no reconhecimento das competências parentais 1,00
de casais homossexuais masculinos e femininos, também aqui final 2000 final 2010
verificamos que os inquiridos se revelam divididos em relação
ao reconhecimento legal do casamento e da adopção por casais Male Female total
do mesmo sexo. A distribuição da amostra nos dois indicadores
é muito semelhante, porém, a resistência ao direito à adopção
parece maior do que a resistência ao direito ao casamento. A
legalização do casamento por pessoas do mesmo sexo, apesar de
introduzida em 2010, suscita ainda alguma resistência na socie-
dade portuguesa, com 42% dos inquiridos ainda desfavoráveis a
9
Relativamente à perceção de distância social a indivíduos Figura 21. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
homossexuais em 2014, verificamos que apenas 11% da amos- querer ter homossexuais como vizinhos e nível médio de aceitação
tra rejeita a presença de homossexuais como vizinhos. Tam- social da homossexualidade por escalão etário - Brasil, 2014
bém aqui assistimos a uma diferença de género, com apenas
7% das mulheres a mencionar não querer ter “homossexuais” 50,0% 6
como vizinhos face a uma percentagem duas vezes maior entre 5,05 4,89
os homens. 40,0% 5
4,04
Figura 20. Percentagem de inquiridos que mencionaram não
3,51 4
querer ter homossexuais como vizinhos, total e por sexo – Brasil, 30,0%
201420
Figura 3
20,0% 15,8%
14,1% 2
100,0% 7,1% 10,7%
15,5% 11,1%
10,0% 8,3%
80,0% 1
60,0% 0,0% 0
84,5%
92,9% 88,9% 15-29 30-49 50-64 65+
40,0%
20,0%
Em relação à aceitação social, verificamos que os inquiridos
0,0% pertencentes aos escalões etários mais jovens são aqueles que
Homem Mulher Total
apresentam um nível de aceitação social da homossexualidade
não mencionou mencionou mais elevado (M+H15-29=5.05 e M+H30-49=4.89), contrastando
com os inquiridos pertences às gerações mais velhas (M+H50-
64=4.04 e M+H+65=3.51).Relativamente à perceção de distância
social, é nos escalões etários mais velhos que encontramos a
maior percentagem de inquiridos que mencionam não querer
ter indivíduos homossexuais como vizinhos, representando 14%
e 16% no grupo daqueles com idades compreendidas entre 50
aos 64 e com mais de 65 anos de idade.
Conclusões
A
análise comparativa dos dados provenientes do EVS problema tem se agravado nos últimos anos, apesar da invisi-
e do WVS permitiu conhecer a evolução das atitu- bilidade destes acontecimentos sob o ponto de vista da pro-
des sociais face à homossexualidade no Brasil e em dução oficial de dados e estatísticas no Brasil. Em Portugal,
Portugal no virar do século XXI. Constatámos que, não há dados oficiais sobre os crimes praticados contra as
em ambos os países, esta evolução foi positiva no sentido de pessoas LGBTQIA+. No entanto, segundo os dados da ILGA
uma crescente aceitação pública da homossexualidade, bem Portugal, referentes a 2018, o Observatório da Discriminação
como uma diminuição na distância social percebida a indiví- contra as Pessoas LGBTI+ registou 59 denúncias de crimes
duos homossexuais. No entanto, o Brasil apresentou sempre de ódio contra pessoas LGBTI e 74 casos de incidentes dis-
níveis médios de aceitação social da homossexualidade ligei- criminatórios, tais como de discursos de ódio.
ramente superiores aos de Portugal, bem como uma menor Se por um lado, Portugal e Brasil se assemelham em ter-
percentagem de indivíduos que manifestavam desconforto mos do grau de aceitação social da homossexualidade e de
com a presença de pessoas homossexuais no seu ambien- manifestação de distância social a indivíduos homossexuais;
te próximo. Apesar da tendência positiva entre o início dos por outro lado, a trajetória temporal e a diferenciação social
anos 90 e o final dos anos 2000, em termos comparativos segundo factores sociodemográficos e culturais revelam algu-
com outros países da Europa, Portugal e o Brasil situam-se mas especificidades.
abaixo do nível médio de aceitação social da homossexualida- Em Portugal, testemunhou-se uma evolução positiva muito
de. Importa notar que, face às recentes mudanças legislativas expressiva entre o início e o final dos anos 90, seguindo-se um
nesta matéria, por um lado, e face às mudanças político-i- salto mais subtil entre o final dos anos 90 e o final dos anos
deológicas, por outro na sociedade brasileira, urge avaliar o 2000. Já no Brasil, essa trajetória foi sempre ascendente e
impacto destas linhas de força de sinal contrário na evolu- mais linear ao longo dos três momentos considerados. Contu-
ção de tais tendências na esfera pública. O Brasil está entre do, dados mais recentes da população brasileira revelam que,
os países em que ocorre o maior número de homicídios de apesar de ligeiramente superior, o nível de aceitação social da
LGBTQIA+. De acordo com Relatório do Grupo Gay da Bahia, homossexualidade em 2014 estagnou.
estima-se um aumento de 30% nos homicídios em 2017 em Outro aspeto importante a destacar é o papel estruturante
relação ao ano anterior. Também o Atlas da Violência 2019 do de factores sociais e culturais nas atitudes face à homosse-
IPEA, com base no Disque 100, contabilizou 193 homicídios xualidade nos dois países, nomeadamente, o impacto dife-
em 2017 contra pessoas LGBTQIA+, o que evidencia que o renciador de variáveis como o sexo, a idade, a escolaridade,
10
a religiosidade e das atitudes face a diferentes modelos Em Portugal incidimos nas atitudes face às competências
familiares. Longe de posições consensuais, as populações parentais de casais homossexuais masculinos e femininos,
dividem-se segundo estes factores. Em geral, e de igual bem como na opinião dos indivíduos face à legalização do
modo nos dois países, as mulheres, os indivíduos perten- casamento civil e da adoção por casais do mesmo sexo.
centes a gerações mais jovens, com níveis de escolaridade Longe de consensual, verificámos que estes tópicos dividem
mais elevados e os que não se consideram pessoas religio- a população, mesmo após o reconhecimento legal do casa-
sas são aqueles que apresentam atitudes mais positivas face mento civil entre pessoas do mesmo sexo em 2010 e outras
à homossexualidade. Por outras palavras, destacam-se por medidas legais e políticas promotoras de uma maior igual-
reportar níveis mais elevados de aceitação social da homos- dade e diversidade sexual, familiar e de género. São, nova-
sexualidade e por revelar uma menor perceção da distância mente, as mulheres e os indivíduos pertencentes às gera-
social entre os próprios e indivíduos homossexuais. Já os ções mais jovens, aqueles que se revelam mais igualitários
segmentos sociais mais resistentes à aceitação social da e abertos à diversidade, manifestando-se favoráveis quer
homossexualidade e, portanto, detentores de atitudes menos ao reconhecimento das competências parentais de casais
favoráveis, correspondem aos indivíduos do sexo masculino, homossexuais (masculinos e femininos), quer ao acesso legal
pertencentes a gerações mais velhas, com menor nível de ao casamento civil e à adoção por parte de casais do mesmo
escolaridade e que se consideram pessoas religiosas. Em sexo.
relação à influência das atitudes face a diferentes modelos No Brasil, apesar de não conseguirmos captar estas
culturais de família, nomeadamente, em relação ao modelo dimensões atitudinais, tivemos acesso aos dados provenien-
monoparental feminino, o ideal de modelo bi-parental (como tes do WVS de 2014, pelo que analisámos a evolução dos
o mais adequado ao bem estar das crianças) e a desinstitu- indicadores de aceitação social da homossexualidade e de
cionalização da conjugalidade, verificámos que, em ambos distância social a indivíduos homossexuais mais recentes. Os
os países, os indivíduos com atitudes mais tradicionais e dados de 2014 revelam que apesar de a evolução ser positi-
institucionalizadas da família são aqueles que se manifestam va, o aumento do nível de aceitação social da homossexua-
mais resistentes à aceitação social da homossexualidade e lidade não ocorreu de forma tão marcante como nos perío-
que se sentem mais distantes deste grupo social. Neste sen- dos anteriores (início dos 90, final dos 90, final dos 2000).
tido, constatamos que as atitudes face à homossexualidade Também aqui continua a haver um fosso entre gerações e
são construídas e ancoradas num quadro de atitudes mais entre homens e mulheres, com as mulheres e os jovens a
gerais face aos modelos familiares e às relações de género. manifestarem atitudes mais favoráveis à homossexualidade.
É também no âmbito da diferenciação social da aceitação Como nota final, importa dizer que este research brief ofe-
social da homossexualidade (e não tanto na perceção de dis- rece dados sistemáticos relevantes para monitorizar, pensar
tância social), em função destes factores sociodemográficos, e desenhar políticas públicas e medidas legislativas que pro-
que residem algumas diferenças entre Portugal e Brasil. Com movam adequadamente uma maior igualdade e que sejam
efeito, Portugal apresenta as maiores clivagens em função catalisadoras de atitudes sociais mais inclusivas face à diver-
da idade e da religiosidade, no sentido em que os indivíduos sidade sexual, familiar e de género. Para além do pano de
com diferentes posições sociais contrastam vincadamente fundo social, histórico e político de cada um destes contex-
nos seus níveis de aceitação social da homossexualidade. tos nacionais, um aspeto comum que sobressai desta aná-
Já no Brasil, essa clivagem é sobretudo expressa na diver- lise comparativa é o papel preponderante de fatores estru-
gência entre homens e mulheres no nível de aceitação da turais e culturais na construção das atitudes sociais face à
homossexualidade. Estes resultados sugerem que o peso homossexualidade na sociedade portuguesa e na sociedade
dos vários factores sociodemográficos na formação das ati- brasileira. Se atendermos que são os mais jovens e os mais
tudes sociais face à homossexualidade é diferente nos dois escolarizados os mais recetivos aos valores da inclusão e do
países. respeito pela diversidade, não podemos deixar de sublinhar
Em relação ao quadro atual de atitudes face à homosse- a importância do acesso à escolarização de nível superior,
xualidade e ao reconhecimento legal e social do acesso à que não pode deixar para trás os homens. A educação con-
conjugalidade (casamento civil) e à parentalidade (adopção), sistente das novas gerações para estes valores é, sem dúvi-
fizemos um zoom in na paisagem atitudinal da sociedade da, um dos caminhos a prosseguir no Brasil e em Portugal.
portuguesa e da sociedade brasileira em 2014 (os dados
representativos mais recentes).
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e aTecnologia, I.P., no âmbito
da bolsa pós-doutoramento individual da FCT: SFRH/BPD/116958/2016 e da CAPES/Brasil – Fundação Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, no âmbito da bolsa de pós-doutoramento do Programa Professor
Visitante no Exterior – Júnior 2017/2018 (Processo nº88881.170370/2018-01)
11
Observatório das Famílias e das Políticas de Família
O Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP), criado em
2010, é o observatório do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa (ICS-ULisboa) que tem por objetivo aprofundar e divulgar o
conhecimento sobre as famílias e as políticas de família na sociedade
portuguesa. As duas grandes linhas de atuação são: o acompanhamento
da evolução das formas e dinâmicas da vida familiar, assim como do seu
impacto nos padrões demográficos; e a monitorização e divulgação da
legislação e das políticas de família nacionais.
Saiba mais em
www.observatoriofamilias.ics.ul.pt
ISBN:978-972-671-562-7
UID/SOC/50013/2019
dossiê teoria crítica
Tudo é interseccional?
Sobre a relação entre racismo e sexismo*
Ina Kerner
tradução de Bianca Tavolari
RESUMO
O artigo propõe a diferenciação de quatro modos de relação
entre racismo e sexismo. O primeiro estabelece semelhanças; o segundo, diferenças entre eles; o terceiro, acoplamentos
entre ambos, e o quarto, cruzamentos, entrelaçamentos ou intersecções. Um modelo crítico que abarque semelhanças,
diferenças, ligações e intersecções permite uma compreensão das relações entre racismo e sexismo mais abrangente do
que a tentativa de formular a relação em apenas uma dimensão.
PALAVRAS‑CHAVE: Racismo, Sexismo, Interseccionalidade, Reconhecimento
ABSTRACT
The article diffrentiates four modes of relating racism and
sexism. The first calls attention to similarities between the two phenomena; the second, to differences; the third, to
couplings, and the forth to intersections. A model that encompasses similarities, differences, couplings and intersec‑
tions, the author stresses, has a much wider critical reach than a one-dimensional one.
KEYWORDS: Racism, Sexism, Intersectionality, Recognition
Semelhanças
Diferenças
Ligações
Intersecções
Não está claro o que precisamente se quer dizer com o termo “in‑
tersecção” nas discussões atuais. Se seguirmos o posicionamento de
[23] “Sex, race, and biopower: A fou-
Ladelle McWhorter23, então as intersecções são atualmente proclama‑ cauldian genealogy”. Hypathia, vol. 3,
das em relação a estruturas sociais, significados históricos, relações de n-º 19, 2004, pp. 38-62.
Conclusão
Introdução e panorama
Inspiradas pela vontade de discutir a desigualdade que atinge mulheres em todo o
mundo, as ativistas dos direitos humanos vêm realizando significativos ganhos nas últimas
décadas, assegurando a maior inclusão do tema do abuso dos direitos relativos às mulheres
e ao gênero nos discursos dos direitos humanos.1 Em nível formal, o princípio da igualdade
de gênero, no que se refere à fruição dos direitos humanos, baseia-se na Carta das Nações
Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo depois explicitado na
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres
(Convention for the Elimination of All Forms of Discriminantion Against Women/CEDAW). Essas
garantias foram detalhadas através de uma série de conferências mundiais, incluindo as
do Cairo, de Viena e de Beijing. Tais detalhamentos realmente constituíram avanços
conceituais, pois expandiram os direitos humanos para além dos seus parâmetros iniciais,
que marginalizavam os abusos de direitos relacionados ao gênero que atingissem
1
A versão original (em inglês) deste documento, intitulado “Background Paper for the Expert Meeting on Gender-
Related Aspects of Race Discrimination”, encontra-se na homepage Women’s International Coalition for Economic
Justice <www,wuceh,addr,cin/wcar_docs/crenshaw.html>. A tradução em português deste documento é aqui
publicada com permissão da autora.
Comumente, apenas grupos específicos de mulheres em qualquer país são o alvo, mas a
distribuição seletiva dos abusos não tem sido investigada como um exemplo de
discriminação racial.
É evidente que existem algumas situações em que os abusos que atingem
exclusivamente as mulheres são rapidamente definidos como um problema de
subordinação étnica, mas esse reconhecimento freqüentemente ocorre porque o problema
enfrentado é mais facilmente construído como um ataque ao grupo com um todo. A
violência sexual perpetrada por elementos externos a um grupo consiste-se em um desses
casos.
Por exemplo, os trágicos eventos de genocídio em Ruanda e na Bósnia foram
desencadeados pelas mutilações e pelo estupro de mulheres por motivações étnicas. Tais
abusos, caracterizados pela degradação das mulheres, foram perpetrados tanto como
ataques contra a honra do grupo quanto, é claro, como atos contra as próprias mulheres.
Conforme afirma a Relatora Especial das Nações Unidas, Radhika Coomaraswamy, as
mulheres são alvos especiais desse tipo de abuso por serem freqüentemente percebidas
como representantes da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da
comunidade. Embora o ataque à comunidade tenha sido execrado como genocídio étnico,
essa indignação não sinaliza preocupações com suas vítimas diretas, muitas das quais
estão condenadas ao ostracismo, vistas como mulheres maculadas e irremediavelmente
degradadas.
Em resumo, nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna
invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a
própria diferença é invisível.
A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em
contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o pano de
fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas
por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da
vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível.
O efeito disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido,
enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal subordinação
permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em questão poderia ser vista
simplesmente como sexista (se existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista
(se existir uma estrutura de gênero como pano de fundo). Para apreender a discriminação
como um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da
estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para
a produção da subordinação.
Um exemplo pode ser resgatado da experiência das mulheres dalit, na Índia, que
são espancadas ou sofrem outras formas de abuso em espaços públicos quando realizam
suas responsabilidades ‘femininas’, como buscar água na fonte.2 Ou seja, os abusos ocorrem
em contextos em que a suposta condição de ‘intocável’ as deixa vulneráveis à violência
dos membros das castas mais altas, principalmente se esses considerarem que elas
transgrediram suas fronteiras corporais. Embora essa violência seja prontamente definida
como simples discriminação de casta, na verdade, ela é interseccional: as mulheres devem,
portanto, negociar um conjunto complexo de circunstâncias nas quais uma série de
responsabilidades marcadas pelo gênero as posiciona de forma que elas absorvam as
conseqüências da discriminação de casta na esfera pública.
2
Na Índia, dalit representa uma casta constituída por pessoas consideradas ‘intocáveis’ (N.R.).
Interseccionalidade política
Os exemplos acima dão maior relevo às conseqüências materiais da
interseccionalidade. Há, no entanto, outro aspecto da superposição entre a subordinação
de raça e a de gênero que merece ser observado. Mulheres de comunidades que são
racial, cultural ou economicamente marginalizadas têm se organizado ativamente, em
pequena ou grande escala, a fim de modificar suas condições de vida. Para isso, enfrentam
não só alguns obstáculos que as mulheres de elite também enfrentam, como também
outros problemas que lhes são exclusivos. Um desses obstáculos é freqüentemente definido
em termos do compromisso perante seus grupos sociais ou nacionais, compromisso que é
por vezes usado para reprimir qualquer crítica sobre práticas ou problemas que poderiam
atrair atenção negativa sobre o grupo. Mulheres que insistem em defender seus direitos
contra certos abusos que ocorrem dentro de suas comunidades arriscam serem vítimas de
ostracismo ou de outras formas de desaprovação por terem presumivelmente traído ou
constrangido suas comunidades. Por exemplo, Anita Hill chamou a atenção do mundo
quando acusou Clarence Thomas por assédio sexual.3 Embora Hill tenha efetivamente
quebrado o silêncio sobre um problema tão difundido, aumentando o nível de consciência
sobre assédio sexual, muitos afro-americanos passaram a considerá-la como uma traidora
dos interesses do grupo. Esse tipo particular de carga é algo que as mulheres de grupos
raciais dominantes não costumam enfrentar.
Mulheres que desafiam as práticas discriminatórias defendidas por outros como
sendo práticas culturais freqüentemente se encontram em posição bastante precária. Por
um lado, às vezes um grupo étnico ou racial pode facilmente desencadear duras críticas
em relação às práticas de um outro grupo diferente, mesmo diante de abusos igualmente
questionáveis dentro de sua cultura. Por outro lado, quando as mulheres permitem que
contestações às tradições culturais patriarcais dentro de suas comunidades sejam
silenciadas, elas perdem a oportunidade de transformar práticas que são prejudiciais às
mulheres em geral.
3
Anita Hill, uma mulher negra ex-colega (embora funcionária subalterna) do juiz negro Clarence Thomas, acusou
este de assédio sexual durante as ‘audiências’ no Senado norte-americano quando de sua indicação à Corte
Suprema dos Estados Unidos (N. R.).
Desafios e recomendações
Se plantado em solo fértil, o protocolo sugerido acima pode constituir uma
intervenção efetiva contra a invisibilidade da subordinação interseccional. Há, no entanto,
certos dilemas – alguns dos quais bastante significativos – que irão complicar até as mais
3. TTematizando
ematizando a divisão Nor te/Sul
Norte/Sul
Algumas das vulnerabilidades interseccionais discutidas aqui são, em parte,
conseqüência da divisão Norte/Sul. Enquanto isso pode limitar o grau de tratamento dessas
questões na perspectiva dos direitos humanos, que cuida primordialmente das relações
no interior dos Estados, a eventual construção racial/étnica de tal divisão, juntamente com
seus vínculos com a história colonial, introduz o fantasma da raça ou da cor no nível macro
da equação. Portanto, poucas circunstâncias podem ser definidas como ‘livres da raça’,
mesmo supondo um caso em que nenhum direito humano possa ser explicitamente
invocado.
vários outros fatores são mais rapidamente incorporados à análise de gênero do que a
raça. Por exemplo, conforme relatado no documento Women 2000,4 o Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Committee on Economic, Social and Cultural Rigths/CESCR)
pedia especial atenção aos direitos das mulheres vulneráveis. Ainda assim, levando-se em
conta as categorias da vulnerabilidade, a CESCR não considerou a raça, a cor, a etnia ou
qualquer dos outros eixos da identidade que poderiam contribuir com a vulnerabilidade
das mulheres marginalizadas. O fato de que essa grave omissão pôde ocorrer em um
contexto em que se pretendia promover maior inclusão levanta sérias preocupações sobre
se a incorporação do gênero tratará verdadeiramente de toda a gama de conseqüências
relativas ao gênero ou se simplesmente enfocará uma faixa mais estreita de diferenças.
5. Capacitar as mulheres marginalizadas para participar mais diretamente dos
discursos de direitos humanos, através do aumento de financiamentos e treinamentos
O amplo leque da marginalidade interseccional somente será integrado aos
discursos dos direitos humanos das mulheres quando as mulheres racialmente subordinadas
de todo o mundo tiverem total acesso às instituições dos direitos humanos. Atualmente,
muitas mulheres racializadas ganham acesso a tais instituições por meio de grupos de
mulheres da elite. Às vezes, essas instituições estão em seus próprios países, mas
freqüentemente estão localizadas fora, por isso deveriam ser disponibilizados recursos para
que grupos autônomos de mulheres participem e influenciem os discursos dos direitos
humanos.
6. Indicar um/a Relator/a Especial para promover maior conscientização sobre as
condições das mulheres de grupos étnicos e raciais discriminados de todo o mundo
Há muito pouca informação e conscientização sobre as formas específicas de
desrespeito ou abuso dos direitos de mulheres racialmente marginalizadas. Há alguns anos,
predominava uma situação até certo ponto semelhante com respeito à violência contra
as mulheres. Radikha Coomaraswamy, Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher,
tem procurado destacar não apenas a vitimização geral de mulheres, assim como tem
avançado em novas perspectivas para o diálogo sobre o abuso de mulheres e suas
implicações para a prática dos direitos humanos. A conscientização a respeito da
subordinação interseccional é somente um dos vários objetivos principais de um/a Relator/
a Especial. As tarefas adicionais seriam facilitar a criação de protocolos e a coleta de
dados necessários ao desenvolvimento de um entendimento prático desses problemas e
apoiar os atuais esforços dos órgãos das Nações Unidas no monitoramento mais efetivo do
progresso dos países na garantia dos direitos de mulheres marginalizadas.
7. Realizar uma reunião conjunta dos Comitês da CERD e da CEDAW
Embora a incorporação do gênero se aplique amplamente ao mandato de todas
as instituições das Nações Unidas, talvez a interação mais produtiva, que poderia aumentar
o nível de entendimento sobre aspectos do racismo relacionados ao gênero e sobre
aspectos do sexismo relacionados à raça, seria uma reunião conjunta da CERD e da CEDAW.
Essa recomendação não é totalmente sem precedentes. De acordo com o documento da
DAW, Women 2000, o Comitê dos Direitos da Criança (CRC) e o CEDAW reuniram-se em
1996 a fim de coordenar os métodos de trabalho para promover os direitos assegurados
pelas duas convenções. A colaboração mútua nesse sentido foi facilitada pela designação
de um membro do CRC para acompanhar o trabalho do CEDAW. Certamente a natureza
da discriminação interseccional sugere que os esforços para proteger os direitos específicos
de mulheres racialmente marginalizadas exigem alguma coordenação, dados os
parâmetros superpostos do CERD e do CEDAW. A coordenação de conceitos e de
procedimentos entre os órgãos encarregados de acompanhar a implementação de
convenções pelos países garantiria a eliminação das fendas através das quais os direitos
de mulheres com múltiplas opressões poderiam desaparecer.
8. Criar uma linguagem para o esboço do documento da Conferência Mundial
contra o Racismo chamando atenção para a discriminação interseccional
A próxima Conferência Mundial contra o Racismo representa uma oportunidade de
criar um consenso em torno da importância de reconhecer, monitorar e apresentar soluções
para a discriminação interseccional. Se possível, recomendações conjuntas dos órgãos
relevantes deveriam ser esboçadas para inclusão na documentação da Conferência
Mundial contra o Racismo.
Conclusão
O quadro analítico apresentado neste documento teve como único propósito facilitar
o diálogo produtivo e o desenvolvimento de informações acessíveis sobre as dimensões
de raça e gênero da subordinação interseccional. A análise é provisória e, conforme sua
utilidade, poderá ser revisada ou até mesmo descartada.
A análise também não pretendeu ser exaustiva. Os exemplos expostos funcionam
meramente como ilustrações concisas de algumas das dinâmicas principais da
subordinação interseccional. Na verdade, há dezenas de questões que poderiam também
ser discutidas nessa perspectiva, entre as quais pode-se incluir: Aids e outros tópicos
relacionados à saúde, desenvolvimento econômico, acesso à terra e aos recursos naturais,
casamento e família, velhice, violência doméstica, chefia de domicílios, direitos reprodutivos
e controle populacional, poder político, cultura popular e educação. Certamente essa
lista crescerá – bem como a análise aqui sugerida – quando mulheres de todo o mundo
entrelaçarem o fio de suas vidas no tecido dos direitos humanos.
INTRODUÇÃO
Today, gender slips uneasily between being merely another word for
sex and being a contested political term [Oakley, 1997, p. 30].
1
Como o de licença parental, em vez de licença de maternidade, ou o de mainstreaming.
Este conceito estratégico, proveniente das teorias do desenvolvimento, designa a integração
da dimensão do género em todas as políticas e acções e foi adoptado, desde os anos 80, pelos
organismos internacionais de ajuda ao desenvolvimento, incluindo os da actual União Eu-
ropeia, assim como muitas das agências de cooperação bilateral. Aplicado às políticas para
a igualdade entre os sexos, destina-se a promover a articulação destas com outras esferas da
governação, como acontece actualmente na maior parte dos países da UE, a fim de as retirar
da posição periférica a que tendiam a ser votadas pelos governos (em Portugal, o Ministério
para a Igualdade, criado em 1999, cumpriu esta função durante o curto espaço de tempo
que marcou a sua existência). Também as ambiguidades nas definições do mainstreaming
reflectem diferentes orientações teórico-políticas, como mostravam alguns documentos da
Comissão Europeia no final da década de 90. Enquanto nos textos em inglês se afirmava
que o conceito designa a introdução da gender dimension em todas as políticas, já nas versões
francesas o mainstreaming surgia frequentemente associado à dimension de l’égalité des
688 chances entre mulheres e homens.
O género no discurso das ciências sociais
2
Os textos das Nações Unidas reflectem, no entanto, um constante esforço de actualização
a partir do debate teórico. No relatório do Fundo das Nações Unidas para a População
(FNUAP) de 1997, por exemplo, o género já não se aplica apenas aos «homens» e às
«mulheres», passando a abranger a masculinidade e a feminilidade. Também a recente
campanha da ONUSIDA, lançada para 2001, incorpora a reflexão sobre a masculinidade,
sobretudo no que diz respeito às implicações dos comportamentos heterossexuais masculinos
690 para a disseminação da epidemia da SIDA.
O género no discurso das ciências sociais
3
Para além das disciplinas que surgiram nos cursos de mestrado em Sociologia do
Trabalho e Sociologia da Família do ISCTE no início da década, destaca-se aqui a abertura
do I Mestrado em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta em 1995. 693
Lígia Amâncio
Mas, como ela própria reconhece, o termo já era conhecido na área das
ciências médicas. De facto, encontra-se uma anterior definição do conceito na
obra de Robert Stoller Sex and Gender, publicada em 1968. Nesta obra o autor
utilizava o termo sexo para distinguir indivíduos do sexo masculino e do sexo
feminino e designar os aspectos biológicos que determinam se uma pessoa é
macho ou fêmea, a palavra sexual para referir os aspectos anatómicos e fisio-
lógicos e a palavra género para se referir às «tremendous areas of behavior,
feelings, thoughts and phantasies that are related to the sexes and yet do not
have primarily biological connotations», acrescentando ainda que «one can
speak of the male sex or the female sex, but one can also talk about
masculinity and feminity and not necessarily be implying anything about
anatomy or physiology» (Stoller, 1968, cit. por Millet, 1977, p. 29).
De acordo com estas definições, o sexo seria um marcador físico e
694 morfológico de conotação biológica, enquanto o género remeteria para o
O género no discurso das ciências sociais
4
Utilizamos aqui a classificação, consagrada na literatura, do movimento feminista em
três vagas, sendo a primeira a que vai do século XVIII até à primeira guerra mundial, período
que antecede mesmo a própria designação de feminismo, que só aparece no fim do século
XIX (Cova, 1998b), a segunda a do activismo dos anos 60 e 70 e a terceira a dos anos 90,
também designada de feminismo pós-moderno. Apesar de procurar englobar a diversidade
histórica e social do feminismo europeu e americano, esta classificação não concede o lugar
merecido a Simone de Beauvoir e à enorme influência, ainda que diferida no tempo, do
Segundo Sexo, publicado em 1949, para o feminismo da segunda vaga, como mostra o
recente estudo da historiadora francesa Sylvie Chaperon (2000).
Por outro lado, a designação corrente de «pós-feminismo», aplicada à terceira vaga,
pretende apenas destacar a extinção do activismo dos anos 60 e 70, em nome da qual se
decreta a morte do feminismo. Esta troca, não inocente, de palavras não exprime senão um
«ante-féminisme, promu post-féminisme et devenu militant», chamado antifeminismo, como
diz Christine Delphy (1998, p. 254). Na verdade, os anos 90 constituem um período de
intensa reflexão que contribuiu para a consolidação da teoria feminista.
5
O caso desta inglesa que atravessou o canal para participar nos acontecimentos é
exemplar do envolvimento das mulheres na revolução. Em 1791 Olímpia de Gouges publi-
cara a célebre Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, iniciando assim a luta
pela realização dos direitos que a revolução prometera. No entanto, esta luta não era 695
Lígia Amâncio
bem acolhida pela nova ordem democrática. Alexis de Tocqueville lamentava, com efeito,
que as francesas não seguissem o exemplo das americanas, que «se faisaient une sorte de
gloire du volontaire abandon de leur volonté, et [qu’elles] mettaient leur grandeur à se plier
d’elles-mêmes au joug et non à se soustraire» (Tocqueville, 1986 [1840], p. 293). Mas as
americanas não eram, afinal, tão bem comportadas quanto isso. Em 1848, Lucretia Mott,
Martha C. Wright, Elizabeth Cady Stanton e Mary Ann McClintock redigem o apelo para
uma convenção para discutir «the social, civil, and religious condition and rights of women»,
que foi publicada no Seneca Falls Courier. A Convenção, que se realizou nos dias 19 e 20
de Julho em Seneca Falls e aprovou a Declaration of Sentiments (entre outros), marca o início
696 do movimento feminista americano.
O género no discurso das ciências sociais
6
O movimento paralelo no seio da APA é relatado num outro artigo, dedicado ao
percurso do género na psicologia (Amâncio, 2001a)
7
Filósofa e fundadora da primeira revista feminista francesa, Les cahiers du GRIF, em
1973. 697
Lígia Amâncio
como afirma Connell (1987, p. 33), a uma «estratégia teórica, centrada sobre
o como e o até que ponto (how far) se poderiam transformar as relações sociais
de género» (itálico do autor), que resultou, simplesmente, no aumento da
investigação sobre os papéis sexuais (sex-roles) e as diferenças entre os sexos
(sex-differences research)8, sem grande progresso teórico, para além da insis-
tência nos factores de socialização9 e na necessidade de os modificar.
No entanto, logo nos anos 70 surgiram críticas da sociologia francesa à
utilização da variável sexo na investigação sociológica, por esta assentar
apenas na «intuição de uma realidade sociológica subjacente» (Mathieu,
1991 [1971], p. 25), devido à ausência de uma teoria sociológica sobre o
sexo, ao contrário do que acontecia em relação à classe. No contexto desta
discussão, a autora propunha o conceito de sexe social (Mathieu, 1991 [1971],
p. 23), contemporâneo, portanto, do conceito de género. Este último não era
inteiramente rejeitado (Mathieu, 1991 [1989]), antes era integrado numa
reflexão em torno da relação entre sexo e género orientada para o modo
como o género constrói o sexo e que destaca a assimetria no processo de
diferenciação entre sexos como parte integrante dessa construção. As rela-
ções de homologia ou analogia entre sexo e género são substituídas por uma
relação «socio-lógica e política... numa lógica antinaturalista e de uma aná-
lise materialista das relações sociais de sexo» (p. 256) que remete em causa
a bipolarização das categorias de sexo e as noções estáticas de hierarquia ou
dominação dos homens sobre as mulheres. Neste quadro de pensamento, a
utilização exclusiva e despropositada do termo género pela corrente ameri-
cana dos women’s studies não podia deixar de merecer a crítica da autora.
A investigação dos anos 70 contribuiu, assim, para a polarização do dua-
lismo dos sexos e para a acentuação da diferença entre eles, através de uma
prática de investigação em que a evidência sobre as mulheres e a relevância
das suas experiências se tornaram «normativas» (Davis e Gremmen, 1998),
enquanto os homens surgiam, também eles, como categoria homogénea, deten-
8
O autor fundamenta a sua afirmação num indicador que mostra que os estudos sobre
os papéis sexuais passaram de 0,5% dos artigos publicados nas revistas de sociologia em 1969
para 10% em 1978 e recorda a criação da revista Sex Roles em 1975 (Connell, 1987, p. 33),
que se mantém, até hoje, com o mesmo nome. A crítica à insistência nos estudos sobre as
diferenças entre os sexos surge, na psicologia, num artigo publicado ainda nos anos 70
(Unger, 1979) onde a autora salientava que pareciam existir mais semelhanças entre os sexos
do que diferenças, desde logo na forma de pensar as diferenças entre eles.
9
É nesta perspectiva que se insere o caso de Agnes, analisado por Harold Garfinkel
(1967, cit. por Almeida et al., p. 154). Agnes foi educada como rapaz e adoptou uma
identidade feminina aos 17 anos, tendo-se submetido, anos mais tarde, a uma operação de
mudança de sexo. A figura de Tootsie, protagonizada por Dustin Hoffman no cinema, retrata
as dificuldades da mudança da identidade de género, reduzindo-a à aprendizagem e
desaprendizagem de maneirismos numa caricatura simplista, mas algo realista, do enfoque nos
698 processos de socialização.
O género no discurso das ciências sociais
10
As várias correntes do feminismo e as suas implicações epistemológicas são discutidas
no extenso trabalho de Nogueira (2001a), pelo que não nos deteremos sobre elas aqui.
Importa, todavia, salientar a pertinência da ideia de Rian Voet (1998) quando diz que entrar
nas classificações das correntes do feminismo, embora possa ter alguma utilidade, não deixa
de ser, como todo o exercício de categorização, simplificador, obscurecendo, por vezes,
aspectos importantes, para além da divisão das pessoas em facções. As ambiguidades em torno
do sexo e do género que discutimos neste artigo, em várias disciplinas, são um bom exemplo
da transversalidade de certos pressupostos a todas as correntes. 699
Lígia Amâncio
and intellectual worlds extending far beyond the minds and bodies of
individual women and men [Keller e Longino, 1996, p. 2].
11
Shulamith Firestone, na obra de referência do feminismo radical, The Dialectics of Sex,
publicada em 1970, também se refere a classe de sexo.
12
Vale a pena lembrar que, quando o governo francês criou um serviço para se ocupar
da questão feminina, em 1974, designou-o de Sécrétariat pour la Condition Féminine. O serviço
equivalente criado em Portugal, em 1977, chamava-se Comissão da Condição Feminina.
Nenhum deles mantém esse nome actualmente. 701
Lígia Amâncio
curso francês das ciências sociais é a sistemática crítica feminista aos mode-
los dominantes nos anos 70 e 80 e a extraordinária consistência conceptual
no discurso actual das mais diversas disciplinas em torno dos pressupostos
básicos da teorização sobre os sexos13. O género refere-se a uma relação
social, e não a uma propriedade de indivíduos concretos, e essa relação, que
é marcada pela assimetria no plano dos significados e define um contexto de
dominação, é socialmente construída. São estes factores que distinguem a
tradição francesa das contradições que atravessaram a tradição anglo-saxóni-
ca14, sem dúvida pela maior dificuldade desta em se libertar dos naturalismos
biológico e psicológico.
Na linha de uma reflexão em torno do género que mostrara os usos
redutores do conceito e definira como objectivo da história compreender
«the significance of sexes, of gender groups in the historical past» (Scott,
1988a, p. 29), na introdução ao I vol. da História das Mulheres, Georges
Duby e Michelle Perrot (1993 [1990], p. 16) definiam esta história como a
da relação entre os sexos, lugar de compreensão e definição da «alteridade
e da identidade femininas», e justificavam o objectivo de «Escrever a história
das mulheres» (título da introdução) do seguinte modo:
Ela constitui uma história que já tem história, que mudou de objecto,
de métodos e de pontos de vista. Animada, a princípio, pelo simples
desejo de se tornar visível [...] esta história tornou-se muito mais proble-
mática, menos puramente descritiva e mais relacional. Na primeira linha
das suas preocupações ela coloca a partir de agora o gender, isto é, as
relações entre os sexos, vistos não como algo inscrito na eternidade de uma
natureza inacessível, mas como produtos de uma construção social que é
importante, justamente, «desconstruir» [Duby e Perrot, 1993, p. 14, itáli-
cos meus].
13
Os textos do colóquio realizado em Paris em 1995, no quadro da preparação da
Conferência de Pequim, e que reuniu contributos de diversas disciplinas são um excelente
exemplo da partilha de uma linguagem conceptual e analítica comum (Lefaucheur e
Schwartz, 1995).
14
Assiste-se actualmente a uma verdadeira descoberta do feminismo francês pelas autoras
de língua inglesa, reflectida mesmo em publicações sobre a vida e obra de feministas francesas
(como a de Mary Evans sobre Simone de Beauvoir e a de Stevi Jackson sobre Christine
Delphy, ambas publicadas em 1996 pela Sage). A participação de investigadoras de língua
inglesa no colóquio comemorativo das 50 anos da publicação de O Segundo Sexo, realizado
702 em Paris em 1999, foi outro exemplo.
O género no discurso das ciências sociais
«la différence des sexes est ce à partir de quoi on pense mais ce qui n’est
pas pensé» (1996, p. 53). Também aqui se encontra a ideia de assimetria
entre o masculino universal e o feminino específico, como uma dimensão
central do pensamento da diferença que a autora propõe que seja visto na sua
«historicidade» (Fraisse, 1996, p. 59), tal como Françoise Collin salientara,
alguns anos atrás, numa reflexão sobre a diferença entre os sexos no pen-
samento ocidental, que «o particular dos homens é universalizável, o das
mulheres unicamente particular» (Collin, 1995, p. 316).
Com efeito, se é possível encontrar raízes muito antigas nos mitos sobre
os sexos, a pesquisa sobre os processos históricos e sociais de construção da
diferença entre sexos tem mostrado que a modernidade veio trazer uma
ordem onde a particularidade da categoria feminina, na distância que a
separa do novo referente universal, o sujeito cidadão15, encontra formas de
legitimidade particularmente eficazes. Robert Connell refere, nomeadamen-
te, que a passagem do antigo regime ao estado moderno foi acompanhada
da passagem de uma masculinidade baseada na honra, ligada à rede de
parentesco e aos deveres de protecção, para uma masculinidade baseada na
racionalidade, na previsão e no método, mudança esta que «não foi uma
consequência da revolução burguesa, antes é parte integrante da mesma, en-
quanto ordem social sexuada» (gendered social order) (Connell, 1994, p. 50).
É neste contexto que o recurso à biologia, como fonte e fundamento da
masculinidade e da feminilidade, se torna sinal da modernidade, como diz
Laqueur (1992), para remeter as mulheres para o cumprimento de um des-
tino, a maternidade, as confinar ao espaço privado (Hufton, 1994) e as
excluir do contrato social (Santos, 1998).
Neste processo de construção do significado da diferença, em que o género
se torna conhecimento sobre ela (Scott, 1988c), adquirindo assim o sentido de
epistemologia do senso comum a que se refere o modelo das representações
sociais (Vala, 1986), a assimetria simbólica, subjacente à construção deste
conhecimento, constituiria a representação fundadora da nova ordem
«sexuada» (Amâncio, 1998b). Uma representação em que o masculino se
confunde com o universal (Amâncio, 1994) e o feminino transforma as
mulheres numa comunidade de invisíveis (sobre)sexuados, irremediavelmente
diferentes dos homens, confundindo a diferença entre os sexos com a diferença
em si mesma, como se «la femme serait [-elle] tout du sexe et l’homme tout
du genre [?]» (Fraisse, 1995, p. 132). A situação paradoxal de seres da
natureza e seres sociais, cujo espaço de exercício da razão se reduzia à função
reprodutora, no discurso político da modernidade, tornou as mulheres «seres
15
Na Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã escrita por Olímpia de Gouges em
1791, o primeiro artigo já revelava a constituição do masculino como referente: «la femme
nait libre et égale à l’homme en droits...» (itálico meu). 703
Lígia Amâncio
16
O trabalho de Anne Cova (1997) sobre o feminismo francês da primeira vaga aborda,
precisamente, as especificidades de que se revestiu, no caso da França, a evolução dos direitos
704 das mulheres, numa perspectiva histórica.
O género no discurso das ciências sociais
17
A análise de Virgínia Ferreira (1998) é elucidativa das contradições entre a ordem jurídica
estabelecida com a democracia e as reais condições das mulheres na sociedade portuguesa.
18
Os trabalhos de Viegas e Faria (1999) e de Faria (2000) são exemplos do reconhe-
cimento deste défice em Portugal. 705
Lígia Amâncio
19
O termo (des)construtivismo, utilizado nas ciências sociais, foi substituído por cons-
trucionismo na psicologia (v. Nogueira, 2001), para não se confundir com o construtivismo
706 social de Piaget.
O género no discurso das ciências sociais
CONCLUSÃO
As the 1990s draw to a close «gender» seems to have lost its ability
to startle and provoke us [Scott, 1999, p. XII].
20
A agressividade comercial das editoras de língua inglesa, em especial, não deixa de
contribuir para uma certa hegemonia da literatura nesta língua, tornando a produção noutras
línguas periférica (se não mesmo invisível, como acontece com o português). É o caso da
italiana, cuja produção interna é sustentada por uma intensa actividade editorial (incluindo
traduções) e que merece mais visibilidade do que tem tido até aqui (Bock e James, 1992).
A referência à produção americana neste domínio também pode fazer esquecer o grande
dinamismo do movimento feminista da América Latina, enquanto movimento social e
intelectual, ainda pouco conhecido em Portugal. 707
Lígia Amâncio
outros riscos para a imagem das mulheres. A outra razão, porém, não tem que
ver com as mulheres em particular. Trata-se de assumir um compromisso
político claro numa profissão que durante muito tempo envolveu as orienta-
ções ideológicas e os preconceitos que orientavam as suas práticas sob um
manto de neutralidade que a crítica feminista não se cansou de denunciar. Esta
postura crítica não deixa de ser um efeito positivo do distanciamento do
movimento das mulheres em relação ao poder e da relativa marginalidade da
reflexão feminista no seio das instituições académicas. O termo serve, portan-
to, para afirmar o projecto de conhecimento emancipatório que deu origem ao
conceito de género, e não quaisquer pertenças totalizantes de quem para ele
contribui...
BIBLIOGRAFIA
DUBY, G., e PERROT, M. (1993), «Escrever a história das mulheres», in G. Duby e M. Perrot
(orgs.), História das Mulheres, vol. I, trad. portuguesa, Porto, Afrontamento (1.ª ed., 1990).
FALUDI, S. (1991), Backlash. The Undeclared War against American Women, Nova Iorque,
Crown Publishers.
FARIA, S. (2000), «Sobre o (difícil) trânsito feminino para o espaço do poder político», in J.
M. Leite Viegas e E. Costa Dias (orgs.), Cidadania, Integração, Globalização, Oeiras, Celta.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (1998) (org.), O Que os Filósofos Pensam sobre as Mulheres, Lisboa,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (2001a), «Reflexões sobre o conceito de género», in M. L. Ribeiro
Ferreira (org.), Pensar no Feminino, Lisboa, Edições Colibri.
FERREIRA, M. L. Ribeiro (2001b) (org.), Também Há Mulheres Filósofas, Lisboa, Caminho.
FERREIRA, V. (1998), «Engendering Portugal: social change, state politics and women’s social
mobilization», in Costa Pinto (ed.), Modern Portugal, California, Palo Alto, The Society
for the Promotion of Science and Scolarship.
FIRESTONE, S. (1970), The Dialectic of Sex. The Case for Feminist Revolution, Nova Iorque,
Bantam Books.
FLAX, J. (1992), «Beyond equality: gender, justice and difference», in G. Bock e S. James
(eds.), Beyond Equality and Difference, Londres, Routledge.
FRAISSE, G. (1995), Muse de la raison. Démocratie et exclusion des femmes, Paris, Gallimard.
FRAISSE, G. (1996), La différence des sexes, Paris, PUF.
FRIEDAN, B. (1963), The feminine mystique, Nova Iorque, W. W. Norton.
FRIEDMANN, J. (1992), Empowerment. Uma Política de Desenvolvimento Alternativo, trad.
portuguesa, Oeiras, Celta, 1996.
GAGO, J. M. (1990), Manifesto para a Ciência em Portugal, Lisboa, Gradiva.
GORJÃO, V. N. (2000), Mulheres em Tempos Sombrios. Oposição Feminina ao Estado Novo
(1945-1974), dissertação de tese de mestrado, Universidade de Lisboa, ICS.
GUILLAUMIN, C. (1981), «Femmes et théories de la société: remarques sur les effects théoriques
de la colère des opprimées», in Sociologie et sociétés, vol. 13, n.º 2, pp. 19-31.
GUILLAUMIN, C. (1992), «Pratique du pouvoir et l’idée de nature», in Sexe, race et pratique
du pouvoir. L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes, reprod. do art. ed. em Quéstions
féministes, n.os 2 e 3, Fevereiro-Maio de 1978.
GUILLAUMIN, C. (1992), «Question de différence», in Sexe, race et pratique du pouvoir.
L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes.
GUILLAUMIN, C.(1992), «Masculin général, masculin banal», in Sexe, race et pratique du
pouvoir. L’Idée de nature, Paris, Côté-Femmes.
HARDING, S. (1986), The Science Question in Feminism, Nova Iorque, Cornell University
Press.
HAWKESWORTH, M. (1989), «Knowers, knowing, known: feminist theory and claims of thruth»,
in Signs. The Journal of Women in Culture and Society, vol. 14, n.º 3, pp. 533-557.
HAWKESWORTH, M. (1997), «Confounding gender», in Signs. The Journal of Women in
Culture and Society, vol. 22, n.º 3, pp. 649-685.
HUFTON, O. (1994), «Mulheres, trabalho e família», in Georges Duby e Michelle Perrot
(orgs.), História das Mulheres, vol. 3, Porto, Afrontamento, trad. portuguesa (1.ª ed.,
1991).
JESUÍNO, J. C. (1995), «Introdução», in J. Correia Jesuíno (coord.), A Comunidade Científica
Portuguesa nos Finais do Século XX, Oeiras, Celta.
JOAQUIM, T. (1997), Menina e Moça. A Construção Social da Feminilidade, Lisboa, Fim de
Século.
KELLER, E. F., e LONGINO, H. E. (1996), «Introduction», in E. Fox Keller e H. E. Longino
(eds.), Feminism & Science, Oxford, Oxford University Press.
LAQUEUR, T. (1992), La fabrique du sexe, Paris, Gallimard, trad. francesa (1.ª ed., 1990).
LEFAUCHEUR, N., e SCHWARTZ, O. (orgs.), La place des femmes: les enjeux de l’identité et de
l’égalité au regard des sciences sociales, Paris, Éditions La Découverte. 711
Lígia Amâncio
714
A-PDF Merger DEMO : Purchase from www.A-PD
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
Etnográfica
Press
Senhores de Si | Miguel Vale de Almeida
IV. O género do
género
Para uma teoria da masculinidade
p. 127-155
Texte intégral
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 2/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 6/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 7/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
Discurso e prática
41 Neste percurso por alguns autores recentes, aproximo-me da
área da teoria da prática (e perspectivas paralelas:
embodiment ou incorporação, experiência, performance),
que me seduz particularmente para a análise do meu caso,
resolvendo inclusive algumas contradições registadas nas
diversas contribuições recenseadas. Collier e Yanagisako
(1987) listam os aspectos desde a perspectiva da prática que
devem ser uma preocupação: primeiro, as abordagens da
prática focam em pessoas reais fazendo coisas reais.
Segundo, isto combina-se com a noção de que o «sistema»
tem um efeito poderoso na acção humana. Terceiro, este
sistema é visto como um sistema de desigualdades,
constrangimento e dominação. Quarto, presta atenção à
construção cultural dos conceitos de feminilidade e
masculinidade, pelo que o sistema de dominação deve ser
entendido como sistema cultural (e citam Ortner e
Whitehead 1981). Em quinto lugar, a teoria da prática, como
a feminista, questiona a partição do sistema em base e
superestrutura (o que já vimos com Godelier), sociedade e
cultura, doméstico e político, produção e reprodução, como
determinante e determinado. E, por fim, há a preocupação
política de ver como a «prática reproduz o sistema, e como o
sistema pode ser mudado pela prática» (Ortner 1984:154).
42 De facto, no momento presente, três tendências parecem
estar a penetrar os estudos de género com algum proveito: a
teoria da prática, derivada de críticas ao marxismo ortodoxo;
os modelos de relação entre estrutura e prática
desenvolvidos sobretudo por Bourdieu (1972, 1980) e
Giddens (1979); e a análise contextual do self, da acção
pessoal e da intersubjectividade. As focagens oscilam,
segundo o sociólogo Robert Connell (1987) entre os relatos
extrínsecos e os intrísecos das determinantes da
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 18/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 22/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 23/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
Masculinidade hegemónica
56 Parece-me central o uso da noção de «masculinidade
hegemónica», ou seja, não o «papel» masculino, mas sim
uma variedade particular de masculinidade que subordina
outras variedades16. Se a fissura entre as categorias de
«homem» e «mulher» é um dos factos centrais do poder
patriarcal e da sua dinâmica, no caso dos homens, a divisão
crucial é entre masculinidade hegemónica e várias
masculinidades subordinadas (Connell 1987). Daqui segue-
se que as masculinidades são construídas não só pelas
relações de poder mas também pela sua interrelação com a
divisão do trabalho e com os padrões de ligação emocional.
Por isso, na empiria, se verifica que a forma culturalmente
exaltada de masculinidade só corresponde às características
de um pequeno número de homens.
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 25/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 27/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 29/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
Notes
1. Tradução livre: «…os traços naturais do género, bem como os
processos naturais do sexo e da reprodução, são apenas um pano de
fundo sugestivo e ambíguo para a organização cultural do género e da
sexualidade. O que o género é, o que homens e mulheres são, e o tipo de
relações que acontecem entre eles — todas estas noções não são simples
reflexos ou elaborações de «dados» biológicos, mas sim (em grande
medida) produtos de processos sociais e culturais».
2. Tradução livre: «Entendo por género as categorizações de pessoas,
artefactos, eventos, sequências, etc., que se baseiam numa imagética
sexual, nos modos como o carácter distintivo das características macho e
fêmea concretizam as ideias das pessoas acerca da natureza das relações
sociais».
3. Já abordei como isto se deve à fundamentação na Divindade, na
Natureza e, hoje, na Biologia. A propósito, veja-se a recente polémica
sobre o «hipotálamo» na determinação da homossexualidade e a forma
paradoxal como os homossexuais engajados em movimentos sociais
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 31/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 32/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 33/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
Senhores de Si
Uma interpretação antropológica da
masculinidade
Miguel Vale de Almeida
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 34/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 35/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
005
Blackwell, Maylei. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-017
Millán, Márgara. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-009
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-007
Lao-Montes, Agustín. Buggs, Mirangela. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-
021
Gómez-Barris, Macarena. (2014)
Translocalities/Translocalidades. DOI: 10.1215/9780822376828-
012
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-009
(2009) Managing African Portugal. DOI:
10.1215/9780822390985-004
Prada, Ana Rebeca. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-004
Piscitelli, Adriana. (2014) Translocalities/Translocalidades. DOI:
10.1215/9780822376828-016
De Lima Costa, Claudia. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-008
Bañales, Victoria M.. (2014) Translocalities/Translocalidades.
DOI: 10.1215/9780822376828-020
Lima, Diana. (2012) Prosperity and Masculinity: Neopentecostal
Men in Rio de Janeiro. Ethnos, 77. DOI:
10.1080/00141844.2011.609942
Sacramento, Octávio. (2019) For Love, Labour, and Lifestyle:
European Men Moving to Northeast Brazil. Anthropological
Forum, 29. DOI: 10.1080/00664677.2019.1579704
Uziel, Anna Paula. (2001) Homosexuality and adoption in Brazil.
Reproductive Health Matters, 9. DOI: 10.1016/S0968-
8080(01)90087-4
Godinho, Paula. (2019) Antropología portuguesa contemporánea,
casi medio siglo desde abril. Disparidades. Revista de
Antropología, 74. DOI: 10.3989/dra.2019.02.014
ALMEIDA, MIGUEL. (2007) Gender, masculinity and power in
southern Portugal. Social Anthropology, 5. DOI: 10.1111/j.1469-
8676.1997.tb00347.x
Ribeiro, Jakson dos Santos. (2020) Masculinidades públicas na
Princesa Do Sertão: Comportamentos e perfis de homens durante
a Primeira República em Caxias/MA. Revista Científica
Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. DOI:
10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/princesa-do-
sertao
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 36/37
24/06/2021 Senhores de Si - IV. O género do género - Etnográfica Press
https://books.openedition.org/etnograficapress/466 37/37
Revista Estudos Feministas
ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil
Adotamos neste dossiê um título similar àquele, de 1992, por considerarmos que,
embora 18 anos nos separam daquela data, ainda nos são apontados inúmeros desafios:
de um lado o aumento da crise ambiental, das catástrofes naturais e irresponsabilidade
por parte dos governantes em relação à preservação do meio ambiente; e de outro um
significativo aumento da consciência ecológica, maior número de ações defensivas por
parte dos movimentos sociais, passando pela geopolítica, pelas conferências sobre clima
e propostas de mudanças em relação a um novo tipo de desenvolvimento, mais humano e
sustentável.
Nesse sentido, consideramos importante retomar alguns clássicos dessa discussão,
incluindo outras referências sobre gênero e desenvolvimento sustentável, ecofeminismo,
bem como as questões promovidas por Françoise D‘Eaubonne,3 nos anos 1970, sobre a
temática natureza e cultura, chave central na discussão sobre mulheres e meio ambiente,
importante no contexto francófono e pouco conhecida entre nós.
Outro marco significativo surgido no decorrer dos debates foi que, ao final da década
de 1980, no contexto das políticas de Conferências Mundiais sobre temas como mulheres,
meio ambiente, população, entre outros, as agências de fomento propuseram uma mudança
do enfoque “Mulher e Desenvolvimento” para “Gênero e Desenvolvimento”, com base no
argumento de que “a perspectiva de gênero e desenvolvimento representa não só integrar
as mulheres ao desenvolvimento, mas sim buscar o potencial que as iniciativas de
desenvolvimento possuem para transformar as desiguais relações de gênero e para
propiciar mais poder às mulheres”.4 Essa mudança foi essencial na medida em que
demarcou o caráter político da questão, ou seja, extrapolou a noção de um essencialismo
voltado somente para as mulheres (que eram identificadas com a natureza) e ampliou o
enfoque para as relações de gênero.
Por outro lado, a articulação crescente entre mulheres e/ou gênero e desenvolvimento
sugere que este último conceito também merece ser analisado, a nosso ver, desde uma
perspectiva crítica, a exemplo do artigo de Marie France Labrèque, neste dossiê, fazendo
eco a várias/os estudiosas/os críticas/os com relação ao tema “Gênero e desenvolvimento”,
proposto pelas Nações Unidas.5
Se os organismos multilaterais e o sistema das Nações Unidas contribuíram para
divulgar certa consciência ecológica global, fica evidente que esse comprometimento
reflete as relações de poder entre os países. Recentemente, em Copenhagen, constatou-se
que os países ‘desenvolvidos’ – os maiores poluidores do planeta – negaram-se a subscrever
os acordos mais decisivos e seus pontos mais nevrálgicos. Não por acaso, o “movimento
altermundialista”6 tem sido presença constante nesses encontros com o intuito de pressionar
os governos a assumirem posturas mais radicais no sentido do controle da crise ambiental,
já que as tendências mais hegemonizantes têm caminhado na apropriação dos aspectos
pontuais da questão ambiental.
Nos fóruns sociais mundiais e outros encontros internacionais de movimentos sociais,
como a recente Conferencia Mundial de los Pueblos sobre Cambio Climático y
Derechos de la Madre Tierra Tierra, os debates têm ocorrido com foco nos modelos de
desenvolvimento, no sistema capitalista e nas relações desiguais entre Norte-Sul. Esses
3
VASSEUR, 2009.
4
BRAIDOTTI, 2004, p. 36.
5
Jules FALQUET, 2008.
6
Esse movimento contra o capitalismo neoliberal surge com a revolta zapatista no México, em 1994,
consolida-se nas manifestações durante as reuniões internacionais das instituições chamadas multilaterais
(FMI, OMC, Banco Mundial) e culmina na criação do Fórum Social Mundial.
encontros têm chamado atenção para pontos cruciais da crise ecológica, como ocorre
com a proposta de criação de um tribunal internacional de justiça climática que reparte a
chamada dívida climática dos países ricos com os países pobres. A presença dos
movimentos de mulheres vem se sobressaindo junto a estes eventos, com destaque para a
Marcha Mundial das Mulheres, que tem assumido, desde 2005, as bandeiras de lutas
ambientais e sociais, expressadas em seus documentos, nas ações práticas e nas alianças
com os grupos Amigos da Terra e Via Campesina.
A aproximação com o debate sobre gênero e desenvolvimento sustentável tem
incluído, nesse contexto, temas como a agricultura familiar, a silvicultura, irrigação e sistemas
de água, dentre outros, uma vez que são as mulheres que ainda preservam as habilidades
necessárias aos diferentes tipos de cultivos, tanto da alimentação básica como de ervas e
plantas medicinais. São as mulheres que possuem mais experiência na condução de um
processo de desenvolvimento humano local e sustentável, pois têm mostrado através do
cotidiano que são gestoras de recursos, produtoras de alimentos; são as que mais contribuem
para a biodiversidade no pequeno lote de terra, selecionando espécies de sementes,
mudas de ervas e preservando a cultura dos quintais – transportando os campos para as
cidades.
Por outro lado, a desigualdade social que atinge as mulheres pobres faz com que
estas se transformem nas primeiras e principais atingidas pela crise ecológica e deterioração
do meio ambiente. Alguns exemplos disso são o aumento da carga de trabalho das mulheres
diante das mudanças climáticas para satisfazer as necessidades básicas da família diante
da escassez de água, lenha, forragem para os animais, entre outras. Sobretudo nas áreas
rurais, as mulheres têm sentido os efeitos da contaminação da água e do ar, a crescente
exposição delas e de seus familiares aos produtos químicos, ou também nos processos
migratórios contemporâneos, alguns deles relacionados com as mudanças climáticas.
A situação subalterna e de invisibilidade das mulheres no campo é decorrente de
processos históricos. No entanto, essa situação poderia ser modificada em face de utopias
coletivas, entre as quais estão o acesso equitativo e respeitoso aos recursos, ao consumo
consciente e à soberania alimentar, questões estas que, forçosamente, se fazem presentes
no atual contexto de desenvolvimento que, por ora, ainda não privilegia o humano nem a
perspectiva ‘sustentável’!
No texto “Desenvolvimento sustentável com perspectiva de gênero – Brasil, México e
Cuba: mulheres protagonistas no meio rural”, as autoras Teresa Kleba Lisboa e Mailiz Garibotti
Lusa tiveram a preocupação em discutir, de modo comparado, através de dados empíricos
e análise teórica, como em países do porte do Brasil, México e Cuba – e com diferenças
consideráveis entre si – são construídas as chamadas políticas públicas para as mulheres,
orientadas nos parâmetros de desenvolvimento sustentável e gênero, considerando as
‘necessidades básicas das mulheres do campo’. Já no texto “A construção de uma agenda
para as questões de gênero, desastres socioambientais e desenvolvimento”, a autora Rosana
de Carvalho Martinelli Freitas se dispõe a apresentar um mapeamento de questões que
envolvem a relação ‘sociedade, desenvolvimento, meio ambiente e gênero’, tendo como
foco os impactos causados pelos desastres, ditos ‘naturais’, que tanto têm chamado a
atenção da sociedade nos últimos tempos (ainda que fugaz e espetacular). A autora traz
importantes reflexões a partir de uma perspectiva marxista, cujo campo teórico, nos últimos
anos, vem debruçando-se com maior atenção sobre a crise ecológica, destacando que a
mercantilização da vida não se esgota na relação capital-trabalho, mas também envolve
a destruição e deterioração da vida de milhares de seres humanos, assim como os próprios
recursos naturais, mercantilizados, privatizados e dilapidados crescentemente, levando o
planeta a uma encruzilhada civilizatória de dimensões alarmantes. Tanto o texto de Rosana
Martinelli Freitas quanto o de Teresa Lisboa e Mailiz Lusa pretendem, a partir de diferentes
perspectivas teóricas, além de analisar situações e questões específicas, trazer elementos
que, em seus entendimentos, deveriam constituir vetores para a elaboração de uma agenda,
de um campo de militância, no enfrentamento das emergências ambientais colocadas na
agenda política.
No texto “Transversalização da perspectiva de gênero ou instrumentalização das
mulheres?”, de Marie France Labrecque, temos uma análise baseada em pesquisa empírica,
na qual se busca compreender como as políticas de transversalização de gênero são
implantadas no México, a partir da conferência de Beijing, ocorrida em 1995. As referências
internacionais são decodificadas e convertidas em políticas locais, no âmbito de um governo
nitidamente conservador e neoliberal, criando um curioso (e revelador) fato: apontando
para os desafios que o feminismo enfrenta ao assistir à instauração de instituições e de
programas voltados à igualdade de gênero, como o que teria ocorrido no México sem,
necessariamente, efetivar compromissos políticos que estão na base das recomendações
das conferências que os formularam.
No texto ‘‘Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio
ambiente”, Tereza Almeida Cruz, historiadora e ativista de movimentos de mulheres no Norte
do Brasil, analisa como mulheres quilombolas, do Vale do Guaporé, em Rondônia, constroem
saberes ambientais de grande utilidade para uma perspectiva de desenvolvimento
orientada para a sustentabilidade. Detentoras e disseminadoras de conhecimentos
constituídos na cultura local, mulheres seringueiras, castanheiras, pescadoras, parteiras,
curandeiras expressam visões de relação com o meio de interação, bem distintas daquelas
que têm embasado o capitalismo e o industrialismo dos últimos séculos. Essas mulheres
partilham concepções com as comunidades às quais pertencem, nas quais os seres
humanos e animais, em correlação com espíritos da floresta e o dito meio ambiente, não
estão separados, nem separados da vida social, nem tampouco são reduzidos à condição
de suporte, ou se prestam a ser matéria-prima para a vida humana, mas fazem parte desta.
Essa ideia aproxima-se daquela que tem alimentado a noção de perspectivismo,7 na
antropologia, que considera que as cosmologias ameríndias não separam a vida humana
das formas de vida do mundo animal e natural, sendo que as relações destes outros seres
com os seres humanos são constitutivas da sua ‘humanidade’.
O artigo de Maria Ignez Paulilo, “Intelectuais & militantes e as possibilidades de
diálogo”, cumpre explicitamente o principal propósito deste dossiê: o de enfrentar
diretamente o debate entre intelectuais e ativistas dos movimentos de mulheres, à luz de
suas pesquisas junto aos movimentos e lutas sociais contemporâneas, com destaque aos
movimentos rurais articulados na Via Campesina, cujas críticas ao modelo de
desenvolvimento capitalista não apenas repousa no seu caráter fortemente excludente,
mas também no caráter predatório dos recursos naturais, em diversos níveis. Além disso, a
autora caracteriza as diversas correntes do movimento de mulheres agricultoras, apontando
a importância que foi adquirindo o feminismo ecológico ou ecofeminismo (ainda que não
de forma declarada), e contribui com instigantes questões acerca das tensões entre o
feminismo acadêmico (fortemente desconstrucionista da noção de natureza) e uma
concepção de natureza inquestionável (o essencialismo), criticado teoricamente no
movimento de mulheres agricultoras.
Ao mesmo tempo, muitos movimentos indígenas da América Latina têm reverenciado
a “Madre Tierra” (tradução possível de Pachamama) como aquela que garante a
7
Esta discussão tem alimentado vários estudos etnológicos realizados nas e sobre as ditas sociedades
indígenas das terras baixas latino-americanas (Eduardo VIVEIROS DE CASTRO,1996.)
indivisibilidade entre mundo humano e mundo natural. Estes povos originários têm garantido,
historicamente, a preservação de vastas áreas naturais vistas como seres viventes e, com
isso, subvertido as concepções ocidentais que sustentam as noções de desenvolvimento,
progresso, crescimento, bem como as práticas destrutivas do meio ambiente, como o
garimpo, a derrubada de florestas, a contaminação de rios.
Nesse sentido, povos e culturas menos comprometidos com a modernidade ocidental
podem contribuir com um projeto societário emancipatório, no sentido de valorizar menos o
crescimento econômico e o consumo de mercadorias, e mais o ‘bem viver’, ideia que tem
se fortalecido nos Fóruns Sociais Mundiais e outros encontros do movimento altermundialista.8
Destarte, uma interessante reflexão é colocada por Boaventura Souza Santos: “Seria apenas
coincidência que 80% da biodiversidade se encontre em territórios indígenas? Não. É
porque a natureza para eles é Pachamama – não é um recurso natural”.9 Nessa metáfora
do Planeta Terra (Mãe Terra), as referências à representação (tão questionada pelo feminismo)
de maternidade fica evidente – e demonstra, a nosso ver, como o debate sobre o
ecofeminismo permanece atual também em muitas pesquisas sobre gênero e meio ambiente.
Assim, consideramos que os artigos deste dossiê contribuirão com essa reflexão crítica,
justamente porque repousam em perspectivas teóricas distintas, à luz da tradição desta
revista. Mesmo que seja fundamental desconstruir teoricamente esses conceitos e essas
imagens, tanto quanto as categorias de desenvolvimento e de sustentabilidade, meio
ambiente e natureza, é importante reconhecer sua força ideológica (quiçá, mítica) e procurar
compreender quais seus sentidos, sua força no plano da vida concreta e das lutas sociais
em prol de outros devires.
Referências bibliográficas
BRAIDOTTI, Rosi. “Mujeres, medio ambiente y desarrollo sustentable”. In: GARCÍA, Verónica
Vázquez; GUTIÉRREZ, Margarita Velásquez (Compiladoras). Miradas al futuro – hacia la
construcción de sociedades sustentables con equidad de género. México: PUEG, CRIM/
Centro Internacional de Investigaciones para el Desarrollo/Colegio de Posgraduados,
2004. p. 23-59.
FALQUET, Jules. De gré ou de force. Les femmes dans la mondialisation. Paris: La Dispute,
2008.
SANTOS, Boaventura Souza. Renovar a teoria critica, e reinventar a emancipação social.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
VASSEUR, Liette. “L’écologie: une science ou un enjeu de la vie quotidienne?” Recherches
Féministes, Montreal, UQAM, v. 22, n. 1, p. 1-4, 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”.
Mana, v. 2, n. 2, p. 115-144, out. 1996.
8
SANTOS, 2007, p. 25.
9
SANTOS, 2007, p. 33.
Português (pdf)
Artigo em XML
João Manuel de Oliveira
Referências do artigo
Universidade do Minho
Como citar este artigo
SciELO Analytics
Resumo
Tradução automática
Este ensaio revisita alguma produção teórica na área da teoria feminista e Enviar este artigo por email
dos espaços hifenizados que com ela se foram gerando, como sejam os
feminismos negros e os feminismos lésbicos. Esta re-visita a lugares Indicadores
recentes assume uma preocupação com a situação e contextualização dos
conhecimentos, para a partir deles derivar alguns pressupostos que Links relacionados
permitam posicionamentos críticos dentro da pesquisa feminista. Compartilhar
Destacamos a produção de Donna Haraway que nos mostra como os
feminismos devem habitar em lugares cada vez mais hifenizados e Mais
marcados pela interseccionalidade.
Mais
Palavras-chave Interseccionalidade, localização, feminismos, teoria
feminista, habitar. Permalink
Abstract
This text revisits some of the theoretical production in the area of feminist theory and of the spaces of
intersection that generated from feminist theory such as black feminism and lesbian feminism. This re-vision to
these recent places in feminist theory is aimed at the location and contextualization of knowledges to generate
some propositions for critical positions in feminist research. We focus the production of Donna Haraway that
shows us how feminism should inhabit spaces marked by intersectionality.
Résumé
Les féminismes habitent dans espaces reliés: localisation et intersectionalité des savoirs feministes
Ce texte revisite une partie de la production théorique dans le domaine de la théorie féministe et des espaces
d'intersection qui sont générés a partir de la théorie féministe comme le féminisme noir et le féminisme lesbien.
Cette re-vision de ces lieux récents de la théorie féministe envisage une localization et une contextualization des
connaissances pour générer des propositions pour quelques positions critiques dans la recherche féministe. La
production de Donna Haraway nous montre comment le féminisme doit habiter des espaces marqués par
l'intersectionnalité.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 1/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
«Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar
a sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a
subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem para mim, olhem
para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente.
E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre
que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu
mulher?»
Sojourner Truth (1851). Citada por Carmo & Amâncio (2004), Vozes Insubmissas1
A proposta de um dossier temático sobre «habitar» leva-nos a pensar no modo como os feminismos
contemporâneos se localizam num espaço cada vez mais hifenizado, isto é, em espaços dialógicos (Bakhtin,
2006; Bakhtin, Holquist, & Emerson, 1998), marcados por uma necessidade de estabelecer um diálogo com
outras áreas de produção teórica. Mais do que espaços dialogantes, são espaços conceptualmente intersticiais
(Bhabba, 2004) marcados pela liminaridade e pela recusa da erecção de fronteiras estanques entre os saberes.
Estes espaços intersticiais implicam uma construção de saberes hifenizados, marcados também pela hibridização
e pelas múltiplas contradições que irão atravessar esses campos do saber, já esquecidos das fronteiras
disciplinares da científica e inscritos numa lógica de transversalização dos saberes, tematicamente organizados.
Essa organização dos saberes não é hierárquica e poderíamos pensá-la como rizomática: «um rizoma não
deixaria de conectar elos semióticos, organizações de poder, ocorrências que apontam para as artes, para as
ciências, para as lutas sociais» (Deleuze e Guattari, 2007: 26).
Inclino-me a considerar que a teoria feminista habita neste espaço de interstícios,onde os cruzamentos
conceptuais construíram um monstro (Haraway, 1992), uma forma híbrida de saberes, particularmente útil para
compreender e ler um mundo onde se perdeu a ilusão da estabilidade identitária e onde a diversidade precisa de
lentes mais afinadas e sofisticadas para ser percebida. Defendo também a perspectiva de que o feminismo,
enquanto espaço de intervenção científica e filosófica, não é acantonável a uma unicidade de perspectivas.
Igualmente a minha proposta é pois que os feminismos habitam em espaços marcados pela hifenização. Assim o
ponto de partida deste texto são os espaços habitáveis pelo feminismo na sua encarnação. De modo, que
entendo aqui a noção de habitar como um ponto de interrogação, como uma marca questionadora desses
espaços conceptuais. Uso habitar como um verbo (performativo), não como um lugar preciso, apesar de o verbo
implicar a localização. Onde se quer localizar a teoria feminista? Qual as modalidades que recorre para dar
sentido a essa habitação? Este texto não indaga sobre um sujeito para o feminismo, procura sim, quais os
espaços em que os feminismos podem habitar em termos da sua produção conceptual. E o termo habitar passa a
ganhar ressonâncias diferentes, como uma ferramenta de imaginação epistemológica de questionamento sobre o
modo como o conhecimento é construído, por quem é construído e quais os limites a essa construção (Mbembe &
Nuttall, 2004). Ora na teoria feminista creio que a separação sujeito-objecto não apresenta qualquer sentido e
apenas reproduz uma visão disciplinar dos saberes de raiz cartesiana, que não permite sequer representar muitos
dos saberes feministas, assentes numa ética de implicação (Nogueira, 2001) e numa lógica parcial (Haraway,
1988). Assim, creio que a noção de habitar permite uma melhor explicitação dos espaços conceptuais que a
teoria feminista visita e revisita, pois permite manter quer uma política de localização (Rich, 1984/1993), quer
manter as fronteiras epistémicas abertas sobre quem conhece quem. Sobretudo possibilita manter a imaginação
epistemológica alerta sobre novas formas de pensar a teoria feminista.
Uma das figurações lendárias para esta hifenização é Sojourner Truth, sobre a qual nunca é demais citar as suas
palavras em 1851 na Convenção sobre os Direitos das Mulheres, em Akron:
Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar a
sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a
subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem para mim, olhem
para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente.
E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre
que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu mulher?
(Sojourner Truth, 1851, citada por Carmo & Amâncio, 2004: 227).
O tom crítico deste discurso de uma ex-escrava e posteriormente activista pela igualdade e pelos direitos civis da
população negra permite antecipar algumas das contradições de um feminismo sem ter em conta outras formas
de opressão. Sendo o género uma forma de opressão, como se explica que dentro dessa estrutura, hajam
modalidades específicas de opressão, modeladas por outros sistemas sociais que com o género se intersectam,
como atesta o discurso com mais de cem anos de Sojourner Truth? Este é um dos primeiros sinais de que o
feminismo centrado exclusivamente no género ou mesmo na diferença sexual não seria suficiente para explicar
as contradições vividas pelas mulheres negras.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 2/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
Um contributo muito relevante é trazido pelas propostas da interseccionalidade que marcam o feminismo negro,
desde os tempos do Combahee River Collective (Combahee River Collective, 1977). Essa marca interseccional
está presente até na crítica que desferem ao separatismo (de algum) do feminismo lésbico, pois para este
movimento de feministas negras havia muito a perder com a adesão ao separatismo dos grupos feministas. Pelo
contrário, advogam antes que «a inclusão das nossas políticas fazem-nos preocupar com qualquer situação que
determine a vida das mulheres, das pessoas do Terceiro Mundo e das pessoas que trabalham. Estamos
comprometidas com o trabalho sobre essas lutas em que raça, sexo e classe sejam factores simultâneos de
opressão» (Combahee River Collective, 1977:170). Será mais tarde que o conceito de interseccionalidade irá
adquirir relevância na teoria do género, mas o conceito foi trazido pela praxis feminista de grupos como este.
Surgido nos 70, o feminismo negro é marcado também pelo movimento negro e pelas lutas anti-racistas que vão
marcar a agenda política americana nesta década (Nogueira, 2001). O feminismo negro é um dos campos mais
activos na década de 80, na produção teórica e no activismo e vai marcar a reflexão feminista desde então.
Igualmente emergente, o feminismo chicano vem marcar a agenda do feminismo traduzindo a importância de
pensar as mulheres vindas da América Latina e o seu lugar no mundo e na sociedade norte-americana. Estes
modelos feministas permitiram que se comecem a trabalhar no feminismo a partir de noções mais inclusivas,
introduzindo a «raça» e a cultura como balizas para pensar e para integrar mulheres, que antes não eram alvo do
pensamento feminista. Ou pelo menos que não se reviam nestas propostas, quando aquilo a que bell hooks
(hooks, 1984/2004) chama o feminismo branco, interpelava as mulheres.
É precisamente por criar uma crítica ao feminismo, assente na exclusão das negras, que permite a bell hooks
(hooks, 1981) avançar para este projecto do feminismo negro. As modalidades da crítica de bell hooks centram-
se em duas dimensões específicas: a importância da continuidade do feminismo enquanto discurso critico do
sexismo que atravessa toda a sociedade e a denúncia do racismo dentro do feminismo branco. No que toca à
primeira dimensão, bell hooks (hooks, 1984/2004) vem na continuidade da tradição feminista. Contudo, condena
e critica a pretensão universalista das propostas feministas, nomeadamente no que toca à universalidade da
experiência feminina branca de classe média. O pressuposto da obra de Betty Friedan (Friedan, 1963/1975), de
que as donas de casa casadas com educação universitária e de classe média são equivalentes ao grupo das
«mulheres» e que as «mulheres» sofrem do «problema sem nome» que são os efeitos de terem uma educação
superior e não trabalharem, não almejando outro destino que não seja o trabalho doméstico e a educação dos
filhos, é um dos exemplos que bell hooks (hooks, 1984/2004) dá de feminismo branco.
Partir do pressuposto de que as mulheres não trabalhavam nos anos 50, nos Estados Unidos, implica obliterar as
negras e as brancas pobres, isto é, implica esquecer que mais de um terço das mulheres norte-americanas
trabalhavam nesta época. Necessariamente, para bell hooks (hooks, 1984/2004), as feministas brancas reflectem
o discurso racista e de supremacia branca da sociedade americana. Ainda que a opressão sexista seja uma
experiência comum a todas as mulheres, não é suficiente para homogeneizar esta experiência.
As mulheres negras não têm nenhum outro na escala social que possa estar numa situação de subalternidade
(Spivak, 1996), o que lhes permite pensar o feminismo a partir de uma posição de marginalidade. Essa posição
de marginalidade permite-lhes criticar as hegemonias racistas, classistas e sexistas e criar outras práticas
feministas que permitam contrariar estas ditas hegemonias.
É neste âmbito que as propostas da interseccionalidade vão ganhar corpo. Na ideia de que não é possível estudar
e intervir separadamente sobre pessoas que sofrem duplas e triplas experiências de discriminação assentes numa
experiência de opressão marcada pelo género, classe e raça. Patricia Hill Collins (Collins, 2003) analisa o triplo
processo de segregação das mulheres negras nos Estados Unidos e mostra como a exploração das mulheres afro-
americanas é marcada por uma dimensão económica, política e ideológica. Assim, em termos económicos, o
trabalho mal pago das negras no pós-esclavagismo colocou-as maioritariamente numa situação em que a
sobrevivência era a principal das suas preocupações,aceitando a ghettização das ocupações mal pagas que lhes
eram destinadas no quadro do capitalismo. A dimensão de opressão politica implicou a recusa da atribuição de
direitos sociais e civis à população negra tanto no plano dos direitos políticos, ao trabalho e do acesso à
educação, partilhando as mulheres negras uma condição marcada pela exclusão de direitos justificada por um
sistema racista. No plano ideológico, os estereótipos das negras ditados por um sistema racista e sexista
naturalizaram essa opressão no plano identitário. A análise de Collins (Collins, 2003) mostra como estas três
áreas criaram um sistema de exclusão e controlo social para as mulheres negras.
Como se pode depreender nesta análise, não é possível perceber de forma separada os mecanismos de exclusão
envolvidos nesta intersecção entre vários planos de opressão. Angela Davis (Davis, 1982) já tinha evidenciado o
modo como sexo, raça e classe social se cruzam para gerar a discriminação específica e profunda opressão vivida
pelas mulheres negras.
É contudo apenas com Kimberley Creshaw que o termo ganha um conceito e se inicia uma teorização mais
sistemática da interseccionalidade (Cole, 2009), que é definida como uma área de investigação que estuda os
significados e as consequências das múltiplas pertenças categoriais. Sem nos pretendermos alongar mais na
interseccionalidade como área de investigação (Nogueira, no prelo), é possível desde já perceber o ênfase
colocado num habitar marcado por categorias que se intersectam.
Igualmente importantes, para este propósito são as propostas de Gloria Anzaldúa (Anzaldúa, 1987/2004),
nomeadamente por duas questões: a importância que vem dar à indefinição de fronteiras, introduzida no seu
pensamento pela figuração da mestiza, mas também pelas suas próprias tecnologias de escrita, que misturam o
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 3/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
Conforme foi patente nesta revisita a textos centrais dos feminismos, torna-se por demais evidente que o
processo de centramento dos feminismos na ideia de «mulher» deixava de fora uma série de processos e de
hierarquias sociais, que se tornam claras quando se usa a interseccionalidade para proceder ao questionamento
das elaborações entre género, raça e classe como maneira de analisar de forma localizada as opressões. Assim,
esta interseccionalidade dos saberes feministas situa-se na linha do que fora proposto por Adrienne Rich (Rich,
1984/2003), que se propõe pensar o feminismo como uma politica de localização, isto é, caracterizando os
saberes feministas como não deslocalizados, nem universalistas. A crítica a uma noção essencialista de mulher
que não tem em conta a diversidade das mulheres é feita também a partir desta ideia de localização. Ou seja, a
teoria feminista deixa de querer habitar apenas nesse espaço da «mulher» e passa a querer entender as
imbricações das várias multitudes contidas nessas mulheres.
Um outro local de reelaboração conceptual dos feminismos, particularmente nas décadas de 70 e 80, foi o
feminismo lésbico, onde as questões da opressão da sexualidade se cruzaram com a opressão de género
Poderíamos entender as propostas do feminismo lésbico, a partir quer das suas influências enquanto movimento
social, quer das suas propostas para a teoria feminista. Emergindo do feminismo radical, as propostas do
feminismo lésbico são determinantes para a constituição das teorias feministas. Para ilustrar a problematização
do feminismo lésbico nos modos como infectar uma teoria feminista ainda marcada pelo fetichismo da noção de
mulher e propor a lésbica como outra categoria para habitar as preocupações feministas, escolhemos Monique
Wittig. É com Wittig (Wittig, 1992), que são integrados uma série de potenciais teóricos que continuaram a ser
explorados (Butler, 1990) e que possibilitaram um entendimento mais amplo das relações entre os sistemas de
género e a heterossexualidade normativa.
O sistema normativo a que Wittig (Wittig, 1992) vai aludir e teorizar é precisamente a heterossexualidade como
máquina de produção de sujeitos heterossexuais. O exemplo específico da população lésbica permite entender
como, num sistema em que a heterossexualidade é normativa, é negada às lésbicas toda a possibilidade de criar
as suas próprias categorias. Daí que as propostas de Wittig (Wittig, 1992), venham traduzir uma preocupação em
desconstruir o pensamento heterossexual, que ela define como uma ideologia inquestionada, reproduzida nas
ciências e nos discursos, que marca conceitos como «mulher», «homem», «sexo», «diferença sexual»,
presumindo a existência de uma base natural, para lá dos discursos das construções sociais. Essa base é a
relação heterossexual. O pensamento heterossexual3 não é problematizado nem teorizado, precisamente por se
pressupor a sua universalidade.
A desconstrução da ideia de mulheres é feita, no ano seguinte, em Wittig (Wittig, 1992). Num título que faz ligar
o ensaio de Wittig a «O Segundo Sexo» de Simone de Beauvoir (Beauvoir, 1949/1975), são enunciadas as
propostas e as consequências da afirmação célebre de que as lésbicas não são mulheres. Como Beauvoir
(Beauvoir, 1949/1975), Monique Wittig (Wittig, 1992), recusa a biologização do feminino. O carácter
naturalizador destas categorias de homem ou de mulher, implica uma naturalização da própria opressão, de
fenómenos que são históricos e políticos.
A opção por um feminismo assente na diferença contribui para este processo, nomeadamente pela capitulação ao
patriarcado4: a celebração de diferenças e das características positivas da feminilidade corresponde a assumir os
melhores traços que as relações de dominação atribuem às mulheres. Assim o feminismo da diferença traduz a a-
historicidade do género. Desta forma, e recusando a heterogeneidade do grupo das mulheres, opta-se pelo mito
da mulher, e salientam-se as suas diferenças em relação ao mito do homem.
Este processo revela pois, o carácter político da categoria mulher e a sua dependência do pensamento que Wittig
caracteriza como pensamento heterossexual. Dado que, fora deste sistema ideológico não teria sentido a
manutenção das categorias de sexo, promovendo-se assim a subjectividade, enquanto critério de diferenciação
entre pessoas e não as características presumivelmente associadas ao sexo. O que, para Wittig (Wittig, 1992),
constitui uma mulher é a sua relação social específica em relação aos homens, relação de dominação dentro de
um sistema heterossexual.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 4/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
A estratégia de luta contra a subordinação das mulheres passa por destruir o pensamento heterossexual e
destruir o próprio conceito de mulheres, precisamente para evitar a subordinação das mulheres aos homens. Esta
proposta é necessariamente incompatível com qualquer projecto assente na diferença sexual. Para Wittig, a
categoria «mulher» transporta consigo a inevitabilidade da dominação, por isso importa desconstrui-la. Desta
forma, o acesso das mulheres a um estatuto de sujeito universal, só ocorre com a desconstrução da categoria
«mulher».
Verificámos como o trabalho do feminismo lésbico introduziu uma ruptura no pensamento feminista, na denúncia
dos fenómenos heterossexistas e da heterossexualidade como modelo politico de organização social no
patriarcado. Vemos como a lésbica se torna um ponto de inflexão no discurso de que a teoria feminista se deve
cingir a habitar no espaço da mulher. Como fazê-lo, se as lésbicas não são mulheres (Wittig, 1992)? A imbricação
destas várias modalidades de opressão, que se cruzam e se interligam, é pois, um pressuposto dos feminismos
pós-estruturalistas, como irá evidenciar Donna Haraway, cujo pensamento daremos conta na secção seguinte.
A manifesto for cyborgs (ou ciborgue na tradução portuguesa – ver Macedo, 2001) é um texto (Haraway,
1985/1991) que vem inaugurar e estabelecer um programa para a 3.ª Vaga do Feminismo. Para Haraway
(Haraway, 1985/1991), a tecnologia está no mundo e pode ser usada como se entender, sem que isso seja
necessariamente positivo ou negativo para o feminismo. O pressuposto de Haraway (Haraway, 1985/1991) é que
incorporámos a tecnologia e por isso, obliterar essa incorporação da tecnologia é manter uma ingenuidade, que
Haraway (Haraway, 1985/1991) critica em autoras como Adrienne Rich e Audre Lorde. Essa ingenuidade está
presente na maneira como estas autoras e nomeadamente o ecofeminismo abraçaram a noção de organismo.
Ora Haraway (Haraway, 1985/1991) demonstra que não é possível pensar os organismos, sem ter em conta que
fazem parte de uma ideologia oposicional (Sandoval, 1995 citada por Haraway, 1985/1991) com a máquina. O
manifesto centra-se pois em desconstruir estas oposições, elegendo como figuração feminista (Haraway,
1985/1991), a imagem d@ ciborgue. @ ciborgue assenta na lógica de ultrapassar os dualismos, numa época em
que cada vez mais deixa de fazer sentido pensarmo-nos como uma espécie de humanos puros, sem ter em conta
o papel crescente da tecnologia nas nossas modalidades de incorporação. Esta figuração, esta metáfora
incorporada, assente na ideia de hibridização, vai possibilitar a construção de um discurso sobre a ciência e a
tecnologia, problematizando as fronteiras entre humanos e não humanos, físico e biológico e entre orgânico e
inorgânico.
Inspirada pela ficção científica, pelo feminismo e pelo socialismo, para Haraway (Haraway, 1985/1991), a figura
ciborgue permite prever alterações radicais na estrutura do poder/saber e de bio-poder (Foucault, 1976/1994),
nas concepções de humanidade e alterações radicais na estrutura patriarcal de género.
Esta figuração ciborgue permite que se utilize enquanto figura geradora de tensões por resolver e enquanto
híbrido que permite fazer a contestação das categorias de humanidade, género e «raça». A rejeição desta
categoria essencializada da «mulher» permite a Haraway afirmar que o género é uma relação social, atravessada
por outras como a etnicidade, a cultura, a orientação sexual, a classe social, entre outras.
Esta contestação do feminino enquanto essência e a consideração do género num feixe de relações sociais,
práticas científicas e políticas no seio das sociedades contemporâneas, introduz igualmente a questão da
homogeneização da categoria «mulheres». Para Haraway (Haraway, 1985/1991) deixa de fazer sentido falar em
nome das «mulheres» ou assentar a teoria feminista na ideia essencializada de mulher. Estamos no domínio da
problematização desta ideia de mulheres, para passar a englobar outras categorias dominadas que se
intersectam com a categoria de mulher, mas também outras que partilham com a categoria uma história e uma
sociologia de dominação.
Necessariamente, o projecto feminista vê em parte o seu sujeito histórico ameaçado. Foi a partir da ideia de
mulher que se questionou o sistema patriarcal e se reivindicou a extensão da democracia às mulheres. Através
da homogeneização da ideia de mulheres, escondem-se situações e contextos diferentes. Lésbicas, negras,
mulheres de culturas não ocidentais, pobres, constituem exemplos de situações divergentes da mulher branca
ocidental e heterossexual e de classe média, pensada enquanto sujeito do feminismo, aptamente denunciada pelo
feminismo negro (hooks, 1981). Trata-se de reposicionar conceptualmente o feminismo, voltando-se mais para
um questionamento da dominação do que focar-se exclusivamente, como fez o feminismo radical cultural para a
saliência de uma categorias sobre as outras. Com isto não se pretende condenar a acção política e activista em
termos da ideia de mulher, mas mostrar como uma reflexão sobre o feminismo enquanto prática de interrogação
do mundo não pode prescindir de uma análise que tome mais questões em linha de conta.
O projecto de Haraway (Haraway, 1985/2003: 250) para o feminismo parte desta ideia:
A imagética ciborgue pode apontar um caminho para sairmos do labirinto de dualismos em que
explicámos a nós mesmas os nossos corpos e as nossas ferramentas. Este sonho não é um sonho
de uma língua comum, mas uma poderosa e infiel heteroglossia. É a imaginação de uma feminista
que fala em línguas capazes de infundir o medo nos circuitos supersalvadores da nova direita.
Significa, simultaneamente construir e destruir máquinas, identidades, categorias, relações e
histórias espaciais. Embora estejam ambos presos um ao outro numa dança em espiral, antes
queria ser ciborgue do que deusa.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 5/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
A imagem bíblica (ou blasfema) da feminista (ou deveríamos dizer d@?), falando em línguas, inspira o projecto
feminista a seguir este caminho. Um caminho marcado pela polifonia, em que as várias vozes localizadas, irão
construir saberes que por vezes podem parecer contraditórios, mas que constituem essa manta de retalhos que
será a teoria feminista e o feminismo, que deixam de ter sentido no singular e adquirem-no apenas no plural.
Conforme iremos ver, esta proposta irá abrir uma nova epistemologia feminista, a ideia de conhecimentos
situados (Haraway, 1988/1991), a que aludiremos adiante. Donna Haraway prepara o caminho para a
desconstrução das fronteiras taxonómicas e categoriais que um mundo herdeiro do iluminismo adoptou. Para o
género, as consequências são enormes: pressupõe-se no género, uma ideia de relação, que é simultaneamente
intersectada pela «raça», a orientação sexual, a cultura, etc. Com Donna Haraway, o género passará não só a
construir e simultaneamente a desconstruir as categorias de homem e de mulher, mas também a estudar @s
innapropriate/d others (Trihn, 1989), aqueles que estão fora do sistema sexo/género (Rubin, 1984/1993).
A própria proposta de Haraway abre o caminho, para o que ela própria, vem designar como as promessas dos
monstros (Haraway, 1992). Veja-se o caso d@ ciborgue: entidade pensada no contexto da guerra fria, para fins
militares, o primeiro ciborgue é um rato com um êmbolo, que é implantado no seu organismo para lhe transmitir
determinadas hormonas (ver Gray, 1995 para uma análise). A reapropriação feminista do ciborgue, na era
Reagan, permite uma utilização dessa metáfora resistente às oposições categoriais no âmbito do feminismo, re-
significando uma figura que decorre de um sistema bélico e sexista.
Nas suas propostas mais epistemológicas, Haraway (Haraway, 1988/1991) propõe um processo de reestruturação
das epistemologias feministas, conhecido como conhecimentos situados onde questiona a construção do tropo da
objectividade nos processos de legitimação do conhecimento científico, condenando a exclusão das relações de
poder e do próprio processo de construção do saber, dos manuais e artigos científicos.
Para Haraway (Haraway, 1988/1991), a ideia de objectividade é precisamente a justificação discursiva que
legitima o conhecimento científico como verdade, relegando as fundações contingentes (Butler, 1991) desse
saber, nomeadamente a sua contingência histórica, política e cultural. Mas esta desconstrução e atenção à
localização dos saberes, precisamente por ser balizada pela implicação política feminista, evita cair no
universalismo e no relativismo. «O relativismo é uma maneira de estar em parte nenhuma enquanto se afirma
estar em toda a parte» (Haraway, 1988/1991: 191). Tanto o universalismo tentador como a negação de
responsabilidade relativista impedem a responsabilização pela construção dos saberes.
É este tipo de epistemologia que Donna Haraway propõe como metodologia para a arqueologia do saber
(Foucault, 1969) do que conta como humano. Uma proposta assente nas vantagens epistemológicas da
parcialidade, sobre a omnisciência da suposta objectividade que obscurece mais do que realmente clarifica. Este
posicionamento implica uma proximidade face ao objecto no sentido a que Haraway (Haraway, 1988/1991) dá
aos conhecimentos situados. Trata-se de utilizar o privilégio da perspectiva parcial que nos permite estar
simultaneamente inserid@s no quadro do objecto e produzir conhecimento sobre ele, a partir dessa inserção. O
contributo desta análise para as epistemologias feministas implica uma mudança de concepção. Os projectos de
pesquisa de conhecimentos situados não são marcados pelo distanciamento positivista com pretensões de
universalidade ou neutralidade. São antes, uma pesquisa marcada pela interpretação necessariamente parcial e
por isso, não pretende constituir-se como uma explicação de factos ou constituição de modelos teóricos
reprodutíveis a outras situações. Assumir o papel de testemunhas modestas como propõe Haraway (Haraway,
1998), implica sujeitos situados, produtor@s de conhecimentos contextuais e responsáveis localizáveis pela
produção desse conhecimento. E é esse o espaço para a pesquisa feminista.
O contributo de Haraway é também fundamental para pensar o espaço conceptual do humano. Se no início da
modernidade, o humano estava incluído na categoria de cidadão e, por isso, as mulheres eram colocadas fora
desse âmbito, graças ao paradoxo da modernidade que Joan Scott (Scott, 1997) identifica –, a coexistência da
universalidade dos direitos com a universalidade da diferença sexual – hoje em dia, a ideia de humano continua a
ser um tropo que permite incluir e excluir. O que constitui uma forma particularmente eficaz de exercer uma
relação de dominação, através da classificação dos grupos em termos das distâncias em relação ao referente
humano. Para figurar a humanidade, a partir de uma perspectiva feminista, Haraway (Haraway, 1992), recorre à
figura de Sojourner Truth, um exemplo do que pode ser uma figuração do que possibilita «figurar uma
humanidade colectiva sem construir o fechamento cósmico de uma categoria não marcada» (Haraway, 1992: 92).
Isto é, possibilita uma hipótese de figuração fora dos limites da inclusão que a categoria «humano», construída
num determinado «regime de verité» e no seio do projecto de saber-poder (Foucault, 1976/1994), a que
Haraway denomina tecnociência.
Esta análise de Haraway de uma figuração da humanidade que não é apenas mulher, apenas negra, apenas
escrava, apenas pobre, apenas feminista conduz-nos pois a pensar já não num sujeito feminista, mas numa
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 6/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
figuração dos feminismos numa óptica de intersecção. Os feminismos são já (provavelmente sempre o foram)
espaços onde para explicar a complexidade da intersecção entre categorias que cada um/a ocupa e habita é
necessário recorrer a abordagens que integrem e que situem essa experiência na sua intersecção. Ou seja, os
feminismos não devem apenas localizar-se no género ou em explicações relativas às posições relativas de
homens e de mulheres.
Este cepticismo em relação à ideia da mulher poder continuar a ser considerada como sujeito do projecto
feminista foi posta em causa, dado que esta grande categoria ilude as divisões intra-categoriais.
Afirmámos recentemente num texto colectivo (Oliveira, Pinto, Pena & Costa, 2009) que o feminismo queer era
uma condição de viabilidade dos próprios projectos feministas. Retomando textos fundamentais para a
compreensão da teoria feminista vemos como este propósito de hibridização de saberes está presente no
feminismo não só desde os anos 70, com os feminismos lésbicos e negros, mas desde Sojourner Truth, quando
1851 proferiu o célebre discurso «Ain't I a Woman?». Fundar o feminismo numa experiência sexuada, branca,
ocidental corresponde a privilegiar exclusivamente uma faceta do feminismo. Com Haraway, torna-se evidente
que não é conceptualmente relevante continuar a fazê-lo sem situar estes conhecimentos numa matriz muito
mais complexa que engloba as redes onde as mulheres estão, marcadas pela confluência de sistemas múltiplos
de opressão e privilégio. Não é possível continuar a produzir uma teoria feminista que atenda exclusivamente ao
género. Sem abdicar deste conceito nem da sua proficuidade conceptual e analítica, é necessário hifenizar o
género com questões de «raça», sexualidades, classe social, e outros sistemas para produzir teorias feministas,
não unificadas que desafiem esta construção de fronteiras e que possibilitem a análise e a praxis a partir de
pontos multifacetados que nos conduzam ao espaço dos hífens, onde nunca se é apenas um/a, mas múltipl@. É
no espaço politico e conceptual do feminismo (Pollock, 2001) enquanto produto precário de um paradoxo, de
permanente desconstrução do seu objecto/sujeito que localizamos este projecto político, da hifenização constante
dos feminismos.
Habitar esse espaço conceptual híbrido, marcado pelo hífen e já não apenas com o plural da ideia de mulher
implica um reposicionamento das propostas feministas. Nomeadamente a recusa de um sujeito histórico do qual
o feminismo se ocupa inteiramente e a substituição dessa noção fundacionalista por uma preocupação com os
múltiplos cruzamentos conceptuais e políticos, uma recusa da erecção de fronteiras. Habitar em vez de um
sujeito parece-me um bom princípio de conversa…
Referências bibliográficas
Anzaldúa, Gloria (1987/2004), «Movimientos de rebeldia y las culturas que traicionam», in hooks, bell, Brah,
Avtar, Sandoval, Chela & Anzaldúa, Gloria (Orgas), Otras inapropriables: feminismos desde las fronteras, Madrid,
Traficantes de Sueños, pp. 71-79.
Bakhtin, Mikhail (2006), The Dialogic Imagination: Four Essays, Austin, University of Texas Press.
Butler, Judith (1990), Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, NewYork, Routledge.
Butler, Judith (1991), «Contigent Foundations: Feminism and the Question of Post-modernism», in Butler, Judith
& Scott, Joan (Orgas.), Feminists Theorize the Political, NewYork, Routledge, pp. 3-21.
Carmo, Isabel, & Amâncio, Lígia (2004), Vozes Insubmissas: A História das Mulheres e dos Homens que Lutaram
pela Igualdade dos Sexos Quando era Crime Fazê-lo, Lisboa, Dom Quixote.
Cole, Elizabeth (2009), «Intersectionality and Research in Psychology», American Psychologist, 64, pp. 170-180.
Collins, Patricia Hill (2000/2003), «The Politics of Black Feminist Thought», in McCann, Carole & Kim, Seung-
Kyung (Orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 318-333.
Combahee River Collective (1977/2003), «A Black Feminist Statement», in McCann, Carole & Kim, Seung-Kyung
(Orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 164-173.
Davis, Angela (1982), Women, Race and Class, London, The Women's Press.
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (2007), Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, Lisboa, Assírio & Alvim.
Foucault, Michel (1976/1994), História da Sexualidade – A Vontade de Saber, Lisboa, Relógio d'Água.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 7/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
Haraway, Donna (1985/1991), «A Manifesto for Cyborg: Science, Technology and Socialist Feminism in the Late
20th Century», in Donna Haraway (Orga.), Symians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature, New York,
Routledge, pp. 149-182.
Haraway, Donna (1985/2004), «Manifesto Ciborgue», in Macedo, Ana Gabriela (Orga.), Género, Identidade e
Desejo: Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, Lisboa, Cotovia, pp. 221-250.
Haraway, Donna (1988/1991), «Situated knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of
Partial Perspective», in Haraway, Donna (Orga.), Symians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature, New
York, Routledge, pp. 183-202.
Haraway, Donna (1992), «Ecce homo, ain't (a'r'n't) I a Woman and Innapropriate/d Others: The Human in a Post-
humanist Landscape», in Butler, Judith & Scott, Joan (Orgas.), Feminists Theorize the Political, NewYork,
Routledge, pp. 86-100.
Haraway, Donna (1998), Modest Witness@Second Millenium. FemaleMan Meets OncoMouse: Feminism and
Technoscience, New York, Routledge.
hooks, bell (1981), Ain't I a Woman? Black Women and Feminism, New York, South End Press.
hooks, bell (1984/2004), «Mujeres negras: dar forma a la teoria feminista», in hooks, bell, Brah, Avtar, Sandoval,
Chela & Anzaldúa, Gloria (Orgas.), Otras inapropriables: feminismos desde las fronteras, Madrid, Traficantes de
Sueños, pp. 33-50.
Macedo, Ana Gabriela (2009), Narrando o Pós-moderno: Reescritas, Re-visões, Adaptações, Braga, Universidade
do Minho/CEHUM.
Mbembe, Achille & Nuttall, Sarah (2004), «Writing the World from an African Metropolis», Public Culture, 15, pp.
347-373.
Nogueira, Conceição (2001), Um Novo Olhar Sobre as Relações Sociais de Género. Perspectiva Feminista Crítica
na Psicologia Social, Lisboa, Gulbenkian.
Nogueira, Conceição (no prelo), Introdução à Teoria da Interseccionalidade nos Estudos de Género, in Neves, S.
(org.), Género e Ciências Sociais, Maia, Publismai.
Oliveira, João Manuel (2009), Uma Escolha que Seja Sua: Uma Abordagem Feminista ao Debate Sobre a
Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal, Dissertação de doutoramento em Psicologia Social, Lisboa,
ISCTE.
Oliveira, João Manuel & Amâncio, Lígia (2006), «Teorias Feministas e Representações Sociais: Desafios dos
Conhecimentos Situados para a Psicologia Social», Revista Estudos Feministas, 14, 3, pp. 597-615. [ Links ]
Oliveira, João Manuel, Pinto, Pedro, Pena, Cristiana & Costa, Carlos Gonçalves (2009), «Feminismos Queer:
Disjunções, Articulações e Ressignificações», Ex-Aequo, 20, pp.13-27. [ Links ]
Pollock, Giselda (2001), «A Política da Teoria: Gerações e Geografias na Teoria Feminista e na História das
Histórias de Arte», in Macedo, Ana Gabriela (orga.), Género, Identidade e Desejo: Antologia Crítica do Feminismo
Contemporâneo, Lisboa, Cotovia, pp. 191-220.
Rich, Adrienne (1984/2003), «Notes Toward a Politics of Location», in McCann, Carole & Kim, Seung-Kyung
(orgas.), Feminist Local and Global Theory Reader, New York, Routledge, pp. 247-259.
Scott, Joan (1998), Only Paradoxes to Offer, Cambridge, Mass., Harvard University Press.
Trinh, Minh-ha (1989), Native, Woman, Other, Bloomington, Indiana University Press.
Wittig, Monique (1992), «El pensamiento heterosexual», in Wittig, Monique (orga.), El Pensamiento heterosexual
y otros ensayos, Barcelona, Egales.
Notas
2 Este texto retoma alguns dos argumentos presentes na minha tese de doutoramento (Oliveira, 2009),
adaptando-os a este contexto.
3 Straight, no original.
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 8/9
24/06/2021 Os feminismos habitam espaços hifenizados - A Localização e interseccionalidade dos saberes feministas
4 Wittig (1981/1992) afirma que num matriarcado, o processo seria igual, só mudaria o sexo do opressor.
Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons
apem1991@gmail.com
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-55602010000200005 9/9
Colabora
con la
cultura libre
- Se deberá establecer claramente los términos de esta licencia para cualquier uso o distribución del
texto.
- Se podrá prescindir de cualquiera de estas condiciones si se obtiene el permiso expreso del autor/a.
Este libro tiene una licencia Creative Commons Attribution-NoDerivs-NonCommercial. Para ver una
copia de esta licencia visite http://creative commons.org/licenses/by-nd-nc/1.0/ o envie una carta a
Creative Commons, 559 Nathan Abbot Way, Stanford, California 94305, USA.
* A pesar de todos los esfuerzos por contactar con las poseedoras del copyright previamente a
la publicación de este volumen, en algún caso esto no ha sido posible. El grupo editor estará
encantado de rectificar cualquier error u omisión q se le notifique.
1ª edición:
Marzo de 2004
Título:
Otras inapropiables
Autoras:
bell hooks, Avtar Brah, Chela Sandoval, Gloria Anzaldúa,
Aurora Levins Morales, Kum-Kum Bhavnani, Margaret
Coulson, M. Jacqui Alexander, Chandra Talpade Mohanty,
Traducción:
Maria Serrano Gimenez, Rocio Macho Ronco,
Hugo Romero Fernández Sancho y Álvaro Salcedo Rufo
Revisión del texto:
Carmen Romero y Silvia García Dauder
Maquetación y diseño de cubierta:
Traficantes de Sueños.
Edición:
Traficantes de Sueños
C\Hortaleza 19, 1º drcha.
28004 Madrid. Tlf: 915320928
http://traficantes.net
e-mail:editorial@traficantes.net
Impresión:
Queimada Gráficas.
C\. Salitre, 15 28012, Madrid
tlf: 915305211
ISBN: 84-932982-5-5
Depósito legal:
Otras inapropiables
Feminismos desde las fronteras
traficantes de sueños
mapas
índice
9
10 Otras inapriopiables
2 Hull, Gloria T.; Scott, Patricia Bell y Smith, Barbara (eds.), All the
Women Are White, All Blacks are Men, But Some of Us are Brave, Nueva
York, The Feminist Press, 1982.
©
20 Como las que se dejaron oir durante los encierros —incluido uno
se permite la copia
refiere a su conexión con lo universal. […] El reto es ver cómo las dife-
rencias nos permiten explicar mejor y de un modo más preciso las cone-
xiones y cruces de fronteras, cómo especificar la diferencia nos permite
teorizar los problemas universales en un sentido más completo. Es esta
iniciativa intelectual la que impulsa mi interés por que mujeres de dis-
tintas comunidades e identidades construyan coaliciones y solidarida-
des transfronterizas». Mohanty, op. cit., pp. 504-505.
26 Otras inapriopiables
27 En este sentido cabe mencionar las acciones que, desde 1997, ha rea-
©
se permite la copia
©
1. Mujeres negras.
Dar forma a la teoría feminista1
bell hooks
33
34 Otras inapropiables
Y en otro párrafo:
Un día dije en clase que había gente que estaba menos atra-
pada que otra por la imagen platónica del mundo. Dije que
nosotras, tras quince años de educación, cortesía de la clase
dominante, podíamos estar más atrapadas que otras que no
habían iniciado su vida tan cerca del corazón del monstruo.
Una compañera de clase, tiempo atrás amiga íntima, herma-
na, colega, no me ha vuelto a hablar desde entonces. Creo
que la posibilidad de que no fuéramos las mejores portavo-
ces para todas las mujeres le hizo temer por su propia valía
y por su doctorado.
se permite la copia
©
2. Transformar el feminismo socialista.
El reto del racismo2
Kum-Kum Bhavnani y Margaret Coulson1
Margo Gorman, Lata Mani, Sarah Pyett, Esther Saraga, Andy Shallice y
Claudette Williams.
3 B. Smith, «Racism and Womens studies», en Gloria T. Hull, Patricia Bell
Scott y Barbara Smith (eds.), All Women Are White, All the Blacks Are Men,
But Some of Us Are Brave, Nueva York, Feminist Press, 1982.
4 M. Barrett y M. McIntosh, «Ethnocentrism and Socialist-Feminist Theory»,
Feminist Review, núm 17, 1984.
51
52 Otras inapropiables
6 Citado en Hazel Arby, «¡White Women listen! Black Feminism and the
Boundaries of Sisterhood», en Centre for Contemporary Cultural
Studies, The Empire Strikes Back: Race and Racism in 70’s Britain, Londres,
Hutchinson, 1982, p. 214.
54 Otras inapropiables
¿Racismo o etnocentrismo?
sociedad racista.
©
12 Stuart Hall et al., Policing the Crisis, London, Hutchinson, 1978; Paul
Gilroy, «El mito de la criminalidad negra», en M. Eve y D. Musson (eds.),
Socialist Register 1982, Londres, Merlin Press, 1982; Errol Lawrence «Just
Plain Common Sense: The “Roots” of Racism», en Centre for
Contemporary Cultural Studies, The Empire Strikes Back..., cit.
60 Otras inapropiables
En conclusión
63
64 Otras inapropiables
matías de la jerga postmoderna hace que sea algo cada vez me-
nos aceptable hablar de forma comprensible, he sentido ame-
nazada, cada vez más a menudo, mi confianza en mí misma.
Observo cómo mi vida y lo que sobre ella he teorizado
se convierte en la materia prima del conocimiento de otras
Intelectual orgánica certificada 67
La Fuerza de Mi Rebelión
se permite la copia
71
72 Otras inapropiables
Tiranía Cultural
Mitad y Mitad
La Herida de la india-Mestiza
81
82 Otras inapropiables
4 Véase «U.S. Third World feminism: the theory and method of opposi-
tional consciousness in the postmodern world», que sienta las bases
para la articulación de la metodología de los oprimidos. En Genders 10,
University of Texas Press, primavera 1991.
5 Womanism en el original. [N. de e.]
84 Otras inapropiables
9 Por ejemplo, Merle Woo «Letter to Ma», This Bridge Called My Back;
Maria Lugones, «World Travelling», Patricia Hill Collins, Black Feminist
Thought; June Jordan, «Where is the love?», Haciendo caras.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 87
14 Ibídem, p. 61.
15 Donna Haraway, «Ecce Homo, ain’t (ar’n’t) I a woman, and inappro-
©
24 Ibídem, p. 13.
98 Otras inapropiables
31 Ibidem.
32 Ibidem, p. 145.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 101
33 Ibídem, p. 326.
104 Otras inapropiables
34 Ibídem, p. 325.
Nuevas ciencias. Feminismo cyborg 105
se permite la copia
©
6. Diferencia, diversidad,
diferenciación1
Avtar Brah
107
108 Otras inapropiables
18 Ibídem, p. 63.
Diferencia, diversidad, diferenciación 119
y políticas cotidianas.
Resulta útil distinguir la diferencia como indicador de la
peculiaridad de nuestras «historias» colectivas de la diferen-
©
bajo y del hogar —que, en algunos casos, como para las home-
workers23 o las ejecutivas de altos sueldos «trabajando desde
casa», se convierte tanto en una unidad de trabajo, aunque dife-
rentemente remunerada, como en un lugar de trabajo—, tanto
©
se permite la copia
©
7. Genealogías, legados, movimientos 1
M. Jacqui Alexander y
Chandra Talpade Mohanty2
Genealogías feministas
137
138 Otras inapropiables
7 Michael Warner, Fear of a Queer Planet: Queer Politics and Social Theory,
University of Minnesota Press, Minneapolis y Londres, 1993; y Cathy
Cohen, «Punks, Bulldaggers and Welfare Queens-. The Real Radical
Potential of Queer Politics» ponencia presentada en la conferencia
Identity, Space and Power, City University of Nueva York, Marzo 1995.
8 W. E. Du Bois, The Souls of Black Folk, Nueva York, New American
Library, 1969.
Genealogías, legados, movimientos 145
14 R. W. Connell, Gender and Power: Society, the Person and Sexual Politics,
Stanford, Standford University press, 1987, p. 143.
Genealogías, legados, movimientos 151
nitely. For the first time even if me go out in a street and hear people,
whether man or woman, talks tings fi downgrade woman me wouldn’t
know how to address it. Now me find meself, if I hear anybody say any-
thing to downgrade woman, me can address it. It give me courage to
deal wid anybody, no care who you maybe»
24 Zillah Eisenstein, The Color of Gender: Reimaging Democracy, Berkeley,
University of California Press, 1993, p. 171.
Genealogías, legados, movimientos 161
26 Cornel West, Keeping Faith: Philosophy and Race in America, Nueva York,
Routledge, 1993, pp. 107-118 y 236-247; The American Evasion of Philosophy:
A Genealogy of Pragmatism, Madison, University of Wisconsin Press, 1989.
Genealogías, legados, movimientos 165
ca. Para las mujeres creole obreras de las que habla Wekker,
este es precisamente el proceso implicado. Un proceso que
crea lo que ella denomina una «economía psíquica de la sub-
jetividad femenina, [que]...! induce a las mujeres de clase
©
Direcção-Geral da Saúde
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 3
Saúde, Sexo
e Género
Factos, Representações e Desafios
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 4 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 5
Ficha Técnica … Everyone who cares for patients or, for that matter, comes in contact with the oldest citizens of our
Autoria society, knows that women outlive men. But male vulnerability as they approach older age is far from
Ana Rita Laranjeira the whole story - from the moment of conception until they die, men are strikingly less likely to survive
Direcção-Geral da Saúde
than are women.
António M. Marques
Instituto Politécnico de Setúbal / Escola Superior For example, even though there are more male than female embryos, probably because spermatozoa
de Saúde de Setúbal carrying the Y chromosome swim faster than those carrying X chromosome, there are more miscar-
Célia Soares riages of male fetuses. Some pundits hypothesize that the gallant Y-bearing sperm is preferentially
Instituto Politécnico de Setúbal / Escola Superior
de Saúde de Setúbal attracted to immature and imperfectly developed oocytes (Do men prefer youth even at the expense of
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da
Empresa age-dependent characteristics like wisdom and stability, even in the womb? Or is it a chivalrous attempt
Vasco Prazeres (coordenador) to rescue the most vulnerable ova?)…
Direcção-Geral da Saúde
Colaboração
Ana Paula Paulino Marianne Legato, 2006
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Helena Santos
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Sónia Gonçalves
Centro de Investigação e Intervenção Social
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Instituto Piaget
Susana Batel
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Capa
Augusto Cardanha
276640/08
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 6 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 7
Nota Introdutória 11
Índice
CAPÍTULO I
Desigualdades em saúde dos homens e das mulheres 15
Determinantes da saúde 17
O paradigma ecológico na epidemiologia 20
Mulheres, homens e saúde 21
Em torno dos conceiros de sexo e de género 24
Sexo, género e saúde 26
Efeitos de sexo e género na saúde - a linguagem dos números 29
Principais causas de morte, em ambos os sexos 32
Género e políticas de saúde 40
O sector da saúde como estrutura genderizada 41
CAPÍTULO II
Representações dos profissionais de saúde 49
Estudo 1 50
Estudo 2 67
CAPÍTULO III
Género e políticas de saúde 83
CAPÍTULO IV
Considerações finais 101
Referências 107
Apêndices 119
Apêndice I – Questionário do Estudo 1 120
Apêndice II – Gráficos dos resultados do Estudo 1 125
Apêndice III – Guião das entrevistas realizadas no Estudo 2 133
Apêndice IV – Gráficos utilizados na entrevista com a distribuição
do n.º de homens e mulheres por algumas especialidades
médicas/enfermagem 135
Apêndice V – Questões orientadoras da análise documental 137
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 8 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 9
Prefácio
O género, entendido como a construção social das diferenças entre homens e mulheres, é um de-
terminante social com reconhecido impacte nos indicadores de saúde. A par da vasta produção cien-
tífica neste domínio, em particular no âmbito das ciências sociais, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) tem realçado a importância do desenvolvimento de políticas de saúde sensíveis ao sexo e ao
género.
Em Portugal, a emergência destas questões surge no debate da promoção da saúde sexual e reprodu-
tiva, como forma de contribuir para melhores resultados em saúde através do empowerment do estatuto
das mulheres. Por outro lado, recentemente, em Novembro de 2007, a proposta para a criação do Fórum
Português para a Saúde dos Homens assinala a desigualdade da esperança de vida entre homens e mu-
lheres,bem como as diferenças existentes na taxa de mortalidade bruta e prematuridade da mortalidade
de homens, considerando “imperativa uma abordagem da saúde sensível ao género”.
O documento que ora se divulga resulta de um conjunto de estudos que foram elaborados no âm-
bito do Projecto “Saúde, Sexo e Género – PROSASGE”, que está a ser desenvolvido na Direcção-Geral
da Saúde, desde Maio de 2006.
Tal iniciativa inscreve-se numa valorização crescente, no domínio da saúde, quer do estudo das seme-
lhanças e diferenças entre homens e mulheres e do papel do sexo e do género enquanto determi-
nantes da saúde, quer da eliminação das iniquidades que são geradas.
À escala mundial, este movimento tem vindo a intensificar-se no decurso dos últimos anos, com ins-
tâncias internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, o FNUAP, a União Europeia e o Con-
selho da Europa a colocarem este assunto em destaque nas respectivas agendas, inserindo-o numa
perspectiva mais ampla de luta contra as desigualdades de género.
A nível nacional, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género polariza um conjunto de moti-
vações e iniciativas neste domínio com impacte na saúde de mulheres e homens.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 10 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 11
Por seu lado, o III Plano Nacional para a Igualdade 2007-2010 preconiza a acentuação de uma “Pers- Nota Introdutória
pectiva de Género nos Domínios Prioritários da Política”, apontando um conjunto de 2 objectivos e 7
medidas concretas a serem desenvolvidas no Sector da Saúde. Por seu turno, a comunidade cientí-
fica, a quem é reconhecido o mérito de ter impulsionado a investigação nestas matérias, tem procu- Afinar os mecanismos que permitem medir o estado de saúde e o bem-estar de cada pessoa, assim
rado dar a conhecer saberes que sustentem novos paradigmas de intervenção neste domínio. como estabelecer comparações entre indivíduos e entre grupos, nessa matéria, constitui uma pre-
ocupação nuclear das Ciências da Saúde. Do progresso permanente dessa tarefa depende a possi-
É, pois, neste contexto que se insere o trabalho agora apresentado, desejando-se que possa repre- bilidade de accionar dispositivos de educação, prevenção e protecção que contribuam para a obtenção
sentar um contributo válido para o reforço do gender mainstreaming na Saúde, e para a obtenção de de mais ganhos em saúde, para cada cidadão e para as populações em geral.
mais ganhos em saúde, numa perspectiva de equidade entre homens e mulheres.
É possível identificar dissemelhanças no que respeita à saúde de cada indivíduo nos diversos mo-
Mas, a concretização do gender mainstreaming (entendido como a impregnação do género nos pro- mentos do respectivo ciclo vital, quando se estabelecem comparações entre indivíduos, ou quando
gramas) impõe esforços acrescidos. O reconhecimento sistemático das diferenças e similitudes entre se colocam em equação populações diferentes ou grupos de indivíduos que ocupam posições as-
homens e mulheres constitui um mecanismo necessário para assegurar respostas adaptadas às ne- simétricas nas hierarquias sociais (Graham, 2007)1.
cessidades da população, contribuindo, desta forma, para a melhoria do estatuto de saúde de homens
e mulheres. Os vários caminhos apontados para encarar tais desigualdades em saúde, ou seja, o estudo das varia-
ções individuais, concretizado através da abordagem clínica e dos cuidados personalizados, o das
Se é certo que, actualmente, o género é reconhecido como importante determinante, sendo priori- diferenças entre grupos ou o das dissemelhanças socialmente estruturadas, mais do domínio da Epi-
dade para as agendas da saúde, já o desafio do gender mainstreaming gera o desenvolvimento de es- demiologia e da Saúde Pública, não devem ser encarados como mutuamente exclusivos. As dimen-
tratégias inovadoras. sões subjacentes têm virtualidades próprias e, cada vez mais, se verifica a necessidade de se
desenvolver uma acção integrada destas diferentes formas de abordar o fenómeno da saúde e da
Cabe à Direcção-Geral da Saúde liderar este processo. doença nos seres humanos.
No presente trabalho, pretende-se dar evidência particular a certas formas de desigualdade em saúde
Francisco George que são, em parte substantiva, socialmente geradas, mantidas ou agravadas – e por isso merecedoras
Director-Geral da Saúde de respostas adequadas numa sociedade verdadeiramente democrática.
Concretamente, o tema nuclear desta dissertação é o das dissemelhanças verificadas quanto à saúde
nos homens e nas mulheres, não deixando de abordar as que decorrem do dualismo biológico, mas
colocando a tónica mais naquelas que, tomando-o como justificação, continuam a ser socialmente
construídas.
1 No presente documento, serão frequentemente empregues, como sinónimos, os vocábulos “desigualdades”, “disparidades”, e “dissemelhanças”, sem-
pre que a apreciação das diferenças detectadas não releve formas de injustiça relativa entre os grupos em análise; nesse caso, aquelas serão designadas
por “iniquidades”, conforme adiante se verá.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 12 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 13
Assim, procura-se utilizar uma perspectiva compreensiva acerca das diferenças relevantes quanto a Nesse sentido, as iniquidades ligadas ao género merecem relevo particular. Minorá-las ou eliminá-las
indicadores de saúde, ou, mais concretamente, no que respeita a dados da mortalidade nos homens exige uma maior clarificação da matriz complexa de variáveis que o sustentam, quer sob o ponto de
e nas mulheres, a determinantes e factores que para eles podem contribuir, ao modo como o próprio vista conceptual, quer nos aspectos do dia-a-dia em que se manifesta.
sector da Saúde lida com a questão, bem como aos desafios que se colocam quanto à intervenção fu-
tura. Tais determinantes da saúde só podem ser integralmente percebidas quando equacionadas nas in-
teracções com as outras determinantes. O impacte produzido só se evidencia, na sua plena expressão,
Para tal, assume-se que o ser homem ou mulher consubstancia uma determinante em saúde com- quando o facto de ser homem ou mulher se cruza com outros elementos de análise, que lhe conferem
plexa, de cariz muito particular, uma vez que os mecanismos de acção e o impacte gerado se tornam, valor e contornos diferentes, tais como a classe social de inserção, a etnia ou o contexto geográfico
por vezes, difíceis de objectivar. Se, no plano dos factores biológicos indutores das diferenças, existe e político (Doyal, 2000). Contudo, porque o estudo de tais influências não constitui objecto central
uma história secular de produção científica e técnica, no campo dos mecanismos psicossociais e dos deste trabalho, apenas lhes será feita menção em diferentes pontos do texto, realçando a sua im-
dispositivos culturais indutores das mesmas o conhecimento é, ainda, incipiente. portância, quando tal foi entendido como pertinente.
Se, no primeiro caso, é sabido que muitas dissemelhanças são inultrapassáveis (pelo menos no es- Em suma, o presente trabalho resulta da necessidade, por um lado, de se conhecer melhor o impacte
tádio actual de evolução das ciências médicas), dada a matriz biológica específica que lhes subjaz, no tido na saúde dos homens e das mulheres, não apenas dos factores ligados ao dimorfismo sexual, mas,
segundo, ao consubstanciarem, em parte significativa, injustiça e serem passíveis de correcção, exi- principalmente, as iniquidades ligadas ao género; por outro, advém da importância de se documentar
gem, cada vez mais, políticas de intervenção assentes no reconhecimento e no controlo dos factores melhor o papel de mediação que este exerce nas políticas, nas práticas e nas relações profissionais
que, em larga medida, as condicionam. no sector da Saúde (Sem & Östlin, 2007).
Assim, torna-se inviável encarar estas (e todas) desigualdades em saúde de uma forma meramente A evidência científica sobre as dissemelhanças entre sexos nesta matéria pode, e deve, merecer abor-
descritiva, acrítica. Ao invés, é tida em consideração a existência de múltiplas dissemelhanças que dagens quantitativas sobre os dados epidemiológicos que estão disponíveis; contudo, a interpre-
assentam nas diferenças e assimetrias entre grupos sociais e que são “política, social e economica- tação dos mesmos e o desenho de políticas preventivas não dispensam uma leitura crítica sobre os
mente inaceitáveis” (WHO, 1978; Whitehead, 1990), uma vez que se afiguram desnecessárias, poten- factores mediadores e determinantes dos resultados encontrados – da qual uma leitura de género
cialmente evitáveis (Braveman, 2006) e injustas. não pode, por isso, estar ausente.
É a esse tipo de discrepâncias, sistematicamente relacionadas com as assimetrias geradas no posi- Nos capítulos seguintes, que resultam do desenvolvimento de linhas de investigação diferentes
cionamento relativo e na valorização atribuída aos indivíduos numa determinada sociedade, que cor- acerca da relação complexa entre sexo, género e saúde, o assunto será abordado sob várias facetas.
responde o conceito de iniquidades (Doyal, 2000; Graham, 2007).
Nesse sentido, no Capítulo I, são tecidas considerações acerca das desigualdades em saúde dos
Analisá-las e minorar ou anular o respectivo impacte pressupõe assumir, também, posicionamentos homens e das mulheres, sob diferentes perspectivas: determinantes em saúde, em particular o sexo
éticos e morais acerca delas, desenvolvendo conhecimentos, lançando políticas e adequando a e o género nas respectivas interacções; expressão epidemiológica das diferenças, a partir dos dados
prestação de cuidados. É numa perspectiva democrática e sob os princípios da justiça social e da da mortalidade; aspectos particulares da diferença em algumas patologias major; finalmente, a gen-
igualdade de oportunidades que tal desiderato deve ser perseguido (The Australian Health Policy derização dos próprios serviços e dos padrões de resposta dados.
Institute, 2006).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 14 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 15
No Capítulo II, admitindo que o género, enquanto (…) forma de olhar o mundo (…) (Health Canada,
2000), assume o carácter de um princípio organizador do modo como estruturamos o conhecimento
CAPÍTULO I
e nos posicionamos, face a homens e mulheres - quanto a diferenças e semelhanças atribuídas, rea-
lidades sociais vividas, formas de conduta percebidas, perfis das relações interpessoais, atitudes face Desigualdades em saúde dos homens
à saúde e interacção com os serviços e profissionais – é dado a conhecer um conjunto de dois estudos
empíricos, complementares, com vista a aprofundar-se o conhecimento sobre a expressão dessas e das mulheres
variáveis entre os profissionais de saúde. Um dos estudos, de cariz quantitativo, centrou-se nas per-
cepções e ideias de médico(a)s e enfermeiro(a)s, quer dos cuidados primários, quer dos hospitalares,
a propósito das diferenças percebidas entre saúde dos homens e das mulheres, contornos das relações Genericamente, as acções em Saúde têm por finalidade a obtenção de mais
profissionais entre sexos e impacto do género nesses processos. O outro, de teor qualitativo, desti- ganhos para todos os cidadãos. Contudo, para que tal se cumpra, as inicia-
nou-se a uma exploração mais sistematizada das facetas do género nas vivências da saúde, a partir tivas não podem ter lugar no pressuposto de que todos os indivíduos se
das representações e narrativas dos profissionais. encontram nas mesmas condições para delas usufruírem. Afigura-se in-
dispensável tomar em consideração o facto de serem diferentes as posições
No Capítulo III, lança-se, através das ‘lentes de género’, um outro olhar sobre um documento es- relativas ocupadas por cada um, e por cada grupo, face à concretização
tratégico e norteador das políticas de saúde em Portugal, o Plano Nacional de Saúde 2004- 2010; desse desiderato.
através dessa reflexão, pretende-se contribuir para que o estabelecimento do gender mainstreaming,
preconizado pelos centros de poder e pelas agências internacionais, adquira maior expressão prática, Uma forma de entender a ‘posição social’ de cada indivíduo é a de consid-
contribuindo para minorar ou eliminar as iniquidades em saúde ligadas ao género e para a obtenção erá-la como resultante da intersecção do estrato social em que se insere,
de mais ganhos para mulheres e homens. entendido numa perspectiva ‘vertical’ (rendimento económico, grau de es-
colaridade, profissão, etc.) com outros grupos de pertença ‘na horizontal’
(grupo etário, sexo, etnia, etc.) (European Partners for Equity in Health,
2006).
Não custa, por isso, admitir que, quanto mais baixa for a posição relativa do
grupo face a outros e mais baixa a posição do indivíduo no seu grupo,
menor é a probabilidade deste apresentar bons índices de saúde.
Nas palavras de Arnaldo Sampaio (1960), “quanto mais pobre mais doente
e quanto mais doente mais pobre!” A este propósito, num relatório publi-
cado, sob a égide da Presidência Britânica da União Europeia, afirmava-se,
nas conclusões, que “(…) os indivíduos com mais baixo nível de escolaridade,
profissional e com menores rendimentos tendem a morrer mais novos e a
ter, ao longo das suas vidas mais curtas, prevalência mais elevada de todos os
tipos de problemas de saúde (…)” (Mackenbach, 2006). Existindo um ver-
dadeiro ‘gradiente social’ (The Norwegian Directorate for Health and So-
cial Affairs, 2005-06; Wood et al., 2006) também no que respeita à saúde,
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 16 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 17
o desafio que se coloca aos cidadãos e aos Estados é minorar ou, mesmo, Determinantes da saúde social, cultural e político, seja o dos contextos de vida e dos recursos co-
abolir tal escalonamento. Assim, nessa ordem de ideias, é esperado que os munitários (Australian Institute of Health and Welfare, 2002).
grupos em desvantagem alcancem, pelo menos, os padrões de saúde já
conquistados pelos que se encontram socialmente mais favorecidos De um ponto de vista discursivo e conceptual, pode dizer-se que a ideia de
(Braveman, Gruskin, 2003). ‘determinantes sociais da saúde’ não é absolutamente nova. A literatura
científica e os documentos orientadores dos últimos 50 anos, incluindo os
Dito de outra forma, garantir a equidade em saúde implica preservar a da Organização Mundial da Saúde (OMS), revelam alguma insistência no
igualdade de oportunidades na expressão dos potenciais individuais, no tema (Irwin & Scali, 2007). Com efeito, a influência decisiva dos factores
usufruto de cuidados e na obtenção de ganhos em saúde, sem que, para tal, ambientais na saúde tem sido objecto de análise desde há longa data, uma
a pertença a um determinado grupo social, ou a posição hierárquica ocu- preocupação que pode ser sintetizada por uma pergunta formulada, há
pada dentro dele, constituam obstáculos. mais de um século, por Rudolf Virchow2: “Não encontramos nós as doenças
do povo quando descobrimos os defeitos da sociedade?”3.Todavia, a análise
Nesta linha de pensamento, o presente trabalho, que aborda as diferenças das ideias e das políticas, pelo menos, desde meados do Século XX até aos
entre sexos, procura valorizá-las enquadrando-as no posicionamento rela- dias de hoje, evidencia a vulnerabilidade das perspectivas de valorização
tivo de mulheres e homens nas hierarquias sociais, em torno das quais as dos determinantes da saúde, as quais parecem depender dos interesses
sociedades permanecem construídas (Graham, 2007). políticos, económicos e ideológicos prevalecentes num dado momento
(Irwin & Scali, 2007, p.251). O encontro de interesses comuns e a articulação
Não basta, contudo, identificar tais diferenças e descrevê-las; nas Ciências de perspectivas entre as ciências da saúde e as ciências sociais e humanas
da Saúde, essas têm sido tarefas da epidemiologia clássica, entendida como podem ser vistas, neste contexto, como uma via altamente promissora para
o “estudo das doenças e dos factores de risco em diferentes populações” um entendimento mais profundo acer-ca dos determinantes da saúde.
(Braveman, 2006). Afigura-se, cada vez mais, necessário interpretá-las nas
respectivas interacções - e valorizá-las enquanto iniquidades, conforme Na história da saúde pública, são inúmeros os exemplos da tensão entre as
atrás salientado - para que uma perspectiva mais compreensiva e inte- ciências ditas biológicas e as sociais, a qual ainda não está completamente
gradora dos fenómenos possa facilitar intervenções mais promotoras de resolvida (Inhorn & Janes, 2007). Assinalam-se, contudo, bons exemplos de
saúde, em ambos os sexos. como as duas perspectivas se enriquecem mutuamente, sobretudo no
domínio da vigilância, do controlo e da prevenção das doenças transmis-
As iniciativas tomadas necessitam, assim, de ponderar, cada vez com maior síveis (op.cit.). Neste campo concreto, tem-se observado, sobretudo, a difi-
rigor, as diferentes conjunturas e fenómenos que, em interacção, condi- culdade em aplicar de forma eficaz o vasto conhecimento sobre
cionam a saúde dos indivíduos e dos grupos populacionais. Uns, interferem imunologia e virologia, bem como dos mecanismos de transmissão das
no plano individual, quer sob o ponto de vista biológico (genética, somática doenças, mesmo no ‘mundo desenvolvido’, em grande medida, pela re-
ou metabolicamente originados), quer psicossocial, quer dos estilos de vida sistência das comunidades e pela multiplicidade de determinantes em
e comportamentos. Outros, dizem mais respeito ao domínio ambiental, causa (Cline, 1995; Inhorn, 1995; Inhorn & Janes, 2007; Low, Low, & Huynh,
seja os de cariz físico, químico ou biológico, seja os do domínio económico, 2005; Lynch, Davey, Harper, & Hillemeir, 2004).
2 Patologista europeu do Século XIX, citado por Irwin e Scali (2007, p. 236).
3 Tradução livre de: “Do we not always find the diseases of the populace traceable to defects in society?”
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 18 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 19
Como afirmam Inhorn e Janes (2007, p.295), “(…) tem havido alguma ina- Se a finalidade da epidemiologia é a compreensão, a prevenção e o con-
bilidade para lidar, de modo efectivo, com os determinantes sociais das trolo da doença (Oppenheimer, 1995, p.918), não é seguro que, através do
doenças ao nível das comunidades, especialmente nesta era de globaliza- modelo de investigação clínico (dominante), se vá além do aumento do
ção rápida, de colapso das infra-estruturas da saúde e de crescimento da conhecimento acerca da etiologia, dos mecanismos de transmissão e dos
desigualdade". Este balanço menos positivo, no seu entender, pode ser me- efeitos físicos desta (Lawson & Floyd, 1996, p.1029). Ainda que os refiram,
lhorado através da promoção das trocas intelectuais e teóricas entre a epi- os epidemiologistas que se orientam por esse modelo dominante de in-
demiologia e a antropologia (bem como de outras ciências sociais e vestigação têm dado pouco relevo aos comportamentos e às motivações
humanas, acrescentaríamos nós), uma vez que cada uma delas pode dar dos indivíduos na explicação da disseminação das doenças. Ou seja, mais
contributos inegáveis para o conhecimento e compreensão do comporta- do que identificar e enumerar esses comportamentos, é preciso investir na
mento humano, nos contextos sócio-políticos, ecológicos, evolutivos e cul- sua compreensão e incluí-los nos protocolos de investigação, de forma a
turais (op.cit., p.295). atribuir-lhes um carácter determinante. Os significados atribuídos pelos
indivíduos aos comportamentos que condicionam a sua saúde devem,
Por esta via, abandona-se a perspectiva ‘a-social’ acerca dos factores de então, ser centrais no pensamento epidemiológico (op.cit., p. 1029).
risco, em favor da “(…) aproximação aos factores causais (culturais, sociais,
económicos e políticos) que determinam padrões particulares do compor- Em suma, para conhecer melhor os contornos do equilíbrio saúde/doença
tamento humano” (op.cit., p.295). É este o caminho para a acentuação da e poder introduzir factores correctores é necessário melhorar a capacidade
importância da estrutura face ao sujeito, a consideração definitiva de que de valorizar o impacte produzido pelas diferentes determinantes da saúde
as forças macro-estruturais subordinam o controlo individual dos factores nas populações e nos diferentes grupos sociais de pertença (Wood J et al.,
que afectam a saúde individual e colectiva (op.cit., p.295). 2006). Por exemplo, no caso europeu, segundo o relatório produzido no
âmbito da Presidência Britânica da União Europeia, em 2006, “(…) a exis-
Os mesmos investigadores, num artigo de revisão da produção teórica e tência de variações substantivas nos padrões das desigualdades em saúde
prática de Frederick Dunn, sintetizam de forma simples o pensamento in- entre os países europeus, particularmente a nível de causas de morte especí-
tegrador da óptica social no domínio da saúde e da centralidade dos com- ficas, doenças e factores de risco sugerem que as desigualdades em saúde
portamentos humanos: “(…) como todas as doenças são causadas, pelo poderão não ser inevitáveis (…)” (Mackenbach, 2006). Mas, conforme, aliás,
menos em parte, pelo comportamento dos indivíduos, grupos ou comu- o mesmo autor acentua, a persistência das desigualdades – mesmo nos
nidades, a epidemiologia deve ser uma ciência comportamental” (Dunn & países com políticas continuadas para a igualdade – acaba por sublinhar o
Janes, 1986, p.3; citados por Inhorn & Janes, 2007, p.304). Nesse sentido, a facto daquelas ainda estarem profundamente enraizadas nos sistemas de
complementaridade e a colaboração prática entre as perspectivas bio- estratificação social das sociedades modernas (Mackenbach, 2006).
médica e social deve “(…) explorar os nexos entre as consequências do com-
portamento na saúde e as correlações sociais e culturais desse
comportamento” (op.cit., p.304). É inevitável, pois, considerar o conjunto de
factores observados que, com mais proximidade, ampliarão o conheci-
mento acerca dos fenómenos de saúde investigados.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 20 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 21
O paradigma ecológico na Intervir ao nível societal, no sentido da prevenção, implica, portanto, uma em geral, valorizada pela epidemiologia.
relativa desfocalização da esfera individual e definir como alvo os grupos ou
epidemiologia
as populações e considerar o ‘social’ como uma entidade regulada pelas É sob a orientação que surge a metáfora das ‘caixas chinesas’, simbolizando
suas próprias leis e dinâmicas (Susser & Susser, 1996a, p. 671). o paradigma da eco-epidemiologia (Susser & Susser, 1996b, p. 675). Pela
perspectiva das estruturas biológicas, sociais ou topográficas localizadas,
Sob esta perspectiva, para a compreensão mais profunda e para a acção considera-se a existência de níveis sucessivos de organização, cada um
mais eficaz sobre os problemas de saúde com raízes de ordem sócio-cul- deles envolvendo e ligando-se intimamente com o seguinte (op.cit., p. 675-
tural, sugere-se a necessidade de articulação de níveis de análise e de in- 6). A epidemiologia deverá, pois, analisar os determinantes e os resultados
tervenção. É necessário, por um lado, conhecer os mecanismos biológicos a diferentes níveis da organização (op.cit., p. 676), mesmo que tal implique
subjacentes às doenças e, por outro, a um nível intermédio, identificar e o abandono do desejo de construir ‘leis universais’.
caracterizar os comportamentos sociais específicos dos indivíduos, bem
como outras características das populações e, por fim, a um nível global, as Do ponto de vista conceptual e metodológico, sob a orientação deste para-
interconecções entre as diversas sociedades, por forma a conhecer os per- digma, os procedimentos seguem os preceitos aceites pela ciência, pelo
cursos da disseminação (Susser & Susser, 1996b, p. 674-5)4 . que apenas são modificados os níveis de análise considerados, na tenta-
tiva de conhecer a realidade, na sua máxima complexidade. É, julgamos,
Esta via, segundo os investigadores, permitirá aos epidemiologistas “(…) uma orientação adequada aos objectivos deste estudo.
trabalhar ao mesmo tempo aos níveis molecular e societal” (op.cit., p. 675).
Será através da tentativa constante de articulação destes níveis que,
provavelmente, se encontrarão explicações mais plausíveis e complexas
para os problemas de saúde e se evitará o isolamento das análises e das No caso presente - o estudo das diferenças, em matéria de saúde, entre
Mulheres, homens e saúde
intervenções, o que corresponde a propostas que, nas últimas duas dé- homens e mulheres - o principal desafio que dele deriva é o de serem de-
cadas, têm vindo a ser explicitadas (Bandura & Kickbusch, 1991; Charlton, senvolvidas políticas que equacionem, com maior rigor, entre outras variá-
1997; Inhorn & Janes, 2007; Krieger, 1994; Lawson & Floyd, 1996; Link & Phe- veis, o ‘sexo de pertença’ dos indivíduos como determinante das mesmas
lan, 1996; Needleman, 1997; Oppenheimer, 1995; Pearce, 1996; Susser, 1994a, - quer enquanto conjunto de idiossincrasias de carácter biológico que as
1994b; Syme, 2005; Syme & Frohlich, 2001; Weed, 1995; Wing, 1994, 1998). condicionam, quer enquanto argumento que tem permitido construções
socialmente elaboradas e que geram desigualdades que são eticamente
De um ponto de vista epistemológico, tal perspectiva desafia a orientação inaceitáveis.
exclusiva pelo princípio do universalismo, característico do pensamento e
da prática das ciências físicas, pois as ciências ditas biológicas precisam de Dito de outro modo, trata-se de desenvolver mecanismos que permitam res-
valorizar a óptica ecológica (Susser & Susser, 1996b, p. 675). Ou seja, o ‘ecolo- ponder, de forma mais documentada, às diferenças que são determinadas
gismo’, ao contrário do universalismo, impõe a necessidade de localizar e pelo dimorfismo sexual e, simultaneamente, minorar ou eliminar as iniqui-
delimitar as generalizações acerca da biologia humana e dos contextos so- dades tecidas a partir deste. Não se trata, contudo, de uma forma de inter-
ciais, uma orientação que, no entendimento desses autores, não tem sido, venção em universos separados, uma vez que, nesta matéria, os fenómenos
físicos mentais e sociais interagem de forma demasiado complexa para que,
4Para a exposição do seu raciocínio e defesa desta alternativa ao trabalho epidemiológico, os autores tomaram sobre eles, se estabeleçam grelhas de leitura estanques e estereotipadas.
o exemplo do VIH/SIDA, daí a referência à disseminação das doenças transmissíveis.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 22 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 23
Sem dúvida que homens e mulheres apresentam particularidades de pos masculinos e femininos, estando mais documentadas no que respeita
carácter biológico, que não se reduzem, apenas, aos aspectos somáticos e ao segundo processo. A variabilidade evidenciada, pode ser tida em conta
à esfera reprodutiva. Contudo, embora a diferença estrutural seja incon- segundo diferentes parâmetros: biodisponibilidade, distribuição, metabo-
tornável, cada vez se torna mais difícil estabelecer uma dicotomia abso- lismo e eliminação. Assim, e uma vez que os corpos dos homens têm, em
luta. Aliás, diversos estudos no domínio dos intersexos e da Biologia do média, envergadura e peso superiores aos das mulheres, constata-se naque-
Desenvolvimento têm vindo a chamar a atenção para o facto da concep- les uma distribuição mais ampla dos volumes das drogas e uma mais rápida
tualização estrita de um dimorfismo sexual absoluto se afigurar insusten- clearance da maior parte das mesmas; Por outro lado, uma mais significativa
tável (Fausto-Sterling A, 1998, 2000; Blackless et al., 2000). gordura corporal (até às idades mais avançadas) pode acentuar mais a dis-
tribuição das drogas lipofílicas nas mulheres. A absorção total parece não
Num documento, muito recente, da OMS, sobre Gender and Genetics, ser influenciada pelo sexo, embora a absorção possa ser ligeiramente mais
afirma-se que “(…) Os seres humanos nascem com 46 cromossomas, em 23 lenta nas mulheres. O processo de filtração glomerular, secreção e reabsorção
pares. Os cromossomas X e Y determinam o sexo do indivíduo. A maioria das tubular parecem ser mais céleres nos homens. Além disso, nas mulheres, as
Mulheres são 46XX e a maioria dos homens são 46XY. Contudo, a investigação alterações hormonais no decurso do ciclo menstrual, com impacte a nível
sugere que, em cada mil nascimentos, alguns indivíduos apresentam um único renal, cardiovascular, hematológico e imunológico, poderão influenciar a
cromossoma sexual (45X ou 45Y) (monossomias sexuais) e outros três ou mais absorção, distribuição, metabolismo e excreção dos medicamentos (Ghandi,
cromossomas sexuais (47XXX, 47XYY ou 47XXY) (polissomias sexuais). Além Aweeka, Greenblatt, 2004;Kashuba, Narfziger, 1998; Meibohm, Beierle, 2002;
disso, alguns indivíduos do sexo masculino nascem 46XX devido a uma Schwartz 2003; Vaccarino et al., 1999).
translocação de uma pequena secção do cromossoma Y. De forma similar al-
guns indivíduos do sexo feminino nascem 46XY devido a mutações no cro- Contudo, o papel relativo do sexo na farmacocinética, quando equacionado
mossoma Y. Não existem, claramente, apenas mulheres que são XX e homens com a genética, idade, doença, hábitos sociais e as potenciais interacções
que são XY; pelo contrário, constata-se haver uma diversidade de combinações no contexto clínico, ainda não é completamente conhecido. Realce-se,
cromossómicas, perfis hormonais e variações fenotípicas que determinam o desde já, que a investigação tem estado centrada, de forma largamente
sexo dos indivíduos (…)” (OMS, 2007). maioritária, em indivíduos do sexo masculino, embora as conclusões sejam
generalizadas a ambos os sexos e a utilização dos fármacos sigam os stan-
As diferenças no plano endócrino e metabólico também geram, por si dards desse modo produzidos (Jochmann, 2005).
próprias, a satisfação de um conjunto de necessidades de saúde que são
específicas de cada sexo e colocam desafios específicos, em termos de No entanto, se o capital genético e o perfil hormonal característicos de cada
diferentes áreas da intervenção da Saúde. Por exemplo, no domínio da Far- um dos dois grupos tendem a ser constantes nas diferentes sociedades, já
macologia, cada vez é mais reconhecida a lacuna que tem existido – e que os padrões culturais que geram diferenças no plano dos valores, das nor-
urge ultrapassar - quanto à adaptação a cada um dos sexos das terapêuti- mas e dos papéis atribuídos a homens e mulheres, mesmo que apresen-
cas farmacológicas que vão sendo utilizadas nos homens e nas mulheres, tem alguma diversidade, não deixam de ter em comum o mesmo pilar
de forma quase indiscriminada. estruturante: o do estabelecimento de uma acentuada dicotomia entre os
dois grupos, carregada de valores simbólicos e geradora de um gradiente de
A dissemelhança biológica entre os sexos condiciona diferenças na farma- poderes entre ambos (Amâncio, 2002).
codinâmica e na farmacocinética das drogas, quando ministradas nos cor- É a esta assimetria estabelecida, a esta construção social do ser homem e
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 24 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 25
do ser mulher, erigida sobre os traços das diferenças biológicas que se tação elementar deste trabalho. Clarifiquemos, pois, o alcance e as impli-
atribui o significado de género (Vlassoff & Moreno, 2002, citados por cações que advêm do uso de um e de outro termo.
Women´s Health Council, 2007). Tal conceito merece uma interpretação
mais aprofundada, dada a complexidade das suas diversas componentes. Pelo menos até ao início do Século XX, o género e a sexualidade assen-
tavam numa base linear e directa entre o corpo e o sexo dos indivíduos: a
categoria do ‘sexo’ disponibilizaria os elementos básicos para naturalizar e
materializar, de modo indiscutível, a identidade social e a orientação do de-
Em torno dos conceitos de ‘sexo’ Na tentativa de contribuir para a clarificação dos significados dos termos sejo (Garlick, 2003; Laqueur, 1992; Nye, 2005).
‘sexo’ e ‘género’, sobretudo quanto à literatura científica, Kim e Nafziger
e de ‘género’
(2000, p.1) recorrem a uma das perspectivas mais correntes: “(…) as diferen- Terá sido o amplo desenvolvimento do saber científico acerca do papel das
ças de sexo representam as diferenças entre homens e mulheres, as quais in- estruturas biológicas dos processos de sexuação humana (as hormonas, os
cluem o que difere dos pontos de vista genético, hormonal, reprodutivo e físico; cromossomas e os genes, por exemplo) que terá abalado radicalmente essa
as diferenças de género descrevem a variabilidade entre homens e mulheres forma de pensamento. Como afirma Nye (2005, p.1937), “(…) fragmentou-se
que é atribuível às influências ambientais, como a sociedade, a cultura e a o sexo completamente, dividindo o corpo sexual em sistemas com funções
história”5. inter-relacionadas”. Sobretudo durante a segunda metade do Século XX, a
sobreposição entre sexo, género e sexualidade ganham o estatuto de cate-
Opta-se, nesta definição, por uma óptica bi-polarizada entre os dois con- gorias ontológicas e analíticas distintas e relativas.
ceitos, assumindo que cada um diz respeito a diferentes dimensões de
comparação entre homens e mulheres: uma de natureza biológica (su- Com o conceito de género, ter-se-á criado uma forma de questionar o pri-
postamente invariável e imutável) e outra psicossocial (construída e con- mado da natureza no que respeita à explicação dos significados de homem
tingente) (West & Zimmerman, 1987). e de mulher, assim como da justificação das desigualdades sociais exis-
tentes entre o sexos (Amâncio, 1993a, 1993b, 1994, 1995).
Esta concepção, no fundo, não faz mais do que encontrar novas formas de
expressão linguística para reforçar a ideia de dualismo comportamental e A partir destes desenvolvimentos de índole científica e conceptual, o sexo,
psicológico intrínseco aos sexos, o que ameaça o desejo de desconstrução como elemento antes considerado exacto e suficiente para descrever e
da verticalidade que separa as mulheres dos homens e, logo, as potenciali- definir as mulheres e os homens, foi dando lugar ao conceito de género.
dades do conceito de género (op.cit., p.36). Em grande medida, mas não em exclusivo, é sob este enquadramento que
os ‘estudos de género ou sobre o género’ ganham cada vez mais visibili-
Ainda que cientes das limitações desta associação do sexo à dimensão bio- dade e importância, particularmente, a partir das últimas décadas do
lógica e do género à social - demasiado simplista e bastante questionável Século XX (Amâncio, 1994, 2001, 2003c; Harrison, 2005; Nye, 2005).
do ponto de vista conceptual e ideológico6 - aceitá-la-emos como susten-
Durante anos, os chamados estudos sobre o género centraram-se nos
temas e nas situações particulares das mulheres e foram estas, como pen-
sadoras e investigadoras, quem mais investiu na sua visibilidade e reconhe-
5 Tradução e adaptação a partir do original em inglês.
6 Para aprofundamento da discussão da visão dualista do sexo e do género, ver, por exemplo, Harrison, 2005; cimento académico (Connell, Hearn, & Kimmel, 2005). Ao longo do tempo,
Delphy, 1984; Nye, 2005; Butler, 1990, 1993; Laquer, 1992; Connell, 1987
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 26 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 27
contudo, o questionamento do género trouxe consigo a problematização fica pela procura de adesão a uma modernização semântica, politicamente
da posição social dos homens e, também, a ênfase na masculinidade mais aceitável, mas sem uma verdadeira noção das consequências con-
(op.cit.). ceptuais e epistemológicas que estão subjacentes a tal opção (Kim &
Nafziger, 2000, p.1). Pela sua natureza multifacetada, os termos género e
Como exemplo desta gradual aproximação dos universos masculinos às sexo são muitas vezes utilizados como sinónimos e pensados como duas
questões de género, refira-se que, no decurso da recente Presidência Fin- entidades que covariam entre si, inevitavelmente (Davidson et al., 2006, p.
landesa da União Europeia, realizou-se uma conferência sobre Men and 731).
Gender Equality – Towards Progressive Policies, em que, para além de comu-
nicações em diversos painéis temáticos, diferentes grupos de trabalho A própria OMS dá relevo a este facto, ao afirmar que “(…) estes termos [sexo
abordaram temas como o “Gender Mainstreaming nas Políticas de Saúde e género] são frequentemente, e de forma errada, usados indiscriminada-
e nas práticas”, ou “Os Homens e a Reconciliação entre Trabalho e Vida Fa- mente na literatura científica, nas políticas de saúde e na legislação (…)” (OMS,
miliar” (Ministry of Social Affairs and Health, Finland, 2006). 2007).
siológicas entre sexos, com o feminino a apresentar um limiar de sensibili- tendência para associar ou fundir o género com as diferenças biológicas
dade e tolerância à dor mais baixos do que o masculino; além disso, as entre os sexos (op.cit., p.2).
mulheres referem dor mais frequentemente, de maior duração e maior se-
veridade (Rhudy e Williams, (2005). Por outro lado, parece haver, também, Kim e Nafziger (2000, p.3) defendem que os investigadores, nomeada-
evidência científica (médica) de que as mulheres serão mais inadequada- mente do domínio da clínica e da farmacologia, devem ser precisos no uso
mente tratadas do que os homens, os efeitos de alguns analgésicos variam que fazem dos conceitos e ser, inclusivamente, vigilantes quanto às cono-
com o sexo e os efeitos adversos parecem ser mais frequentes nas mulhe- tações negativas que, segundo elas, se tem vindo a atribuir ao termo ‘sexo’.
res (Pinn, 2003). No entanto, os discursos das ciências sociais (e algumas Para as autoras, “(…) se a expressão ‘diferenças entre sexos’ é a forma correcta
vozes nas próprias ciências médicas) reconhecem a complexidade que en- de referir as diferenças observadas entre homens e mulheres, esta tem de ser
volve vivência do fenómeno pelos indivíduos, demasiado grande para ser usada”, pois de outra forma corre-se o risco de se chegar a conclusões in-
explicada e apaziguada a partir de uma medição. Conforme afirma David feriores ou mesmo incorrectas (op.cit., p.3).
Le Breton “(…) o corpo encarna um simbolismo antes de representar uma bi-
ologia e, mesmo quando é visto sob este ângulo pelo profano, não deixa de ser
simbólico (…)” (Le Breton, 1995, 2007, pag. 47). As idiossincrasias e condições
pessoais não são suficientes para justificar a variabilidade de respostas a um Efeitos de sexo e género na saúde - Algumas das características biológicas que distinguem os dois sexos
mesmo estímulo doloroso. Anatomia, fisio(pato)logia e psicologia são in- poderão, só por si, determinar e explicar as diferenças bastante nítidas nos
suficientes para explicar as variantes sócio-culturais, conjunturais, de sexo
a linguagem dos números padrões de saúde e de doença experienciados em cada um deles (Doyal,
e pessoais da vivência de um determinado processo doloroso. Acresce ainda 2004, p.162). Por isso, nos últimos anos, vários autores têm chamado a
que, em múltiplas situações, a dor não é objectivável através de procedi- atenção para o facto da dissemelhança entre os padrões de mortalidade e
mentos tecnológicos. Ainda nas palavras de Le Breton, “(…) A dimensão am- de morbilidade entre os sexos também resultar da influência de factores
bígua mas simbólica da dor alimenta os sintomas ou as queixas sem que biológicos, para além do que é o óbvio em situações como, por exemplo,
nada indique que a carne fique alterada (…) O sofrimento está lá, pesa sobre cancro do colo do útero e cancro da próstata (Doyal, 2001, p. 1061). Não deve,
a existência, sem que nenhuma lesão orgânica seja detectada com os uten- pois, excluir-se o que distingue os sexos, a nível genético, hormonal e
sílios sofisticados da medicina moderna (…)” (op.cit, pag. 48). Em suma, para metabólico (Bedinghaus, Leshan, & Diehr, 2001; Doyal, 2001).
além das constatações sobre as diferenças de sexo em matéria de dor, não
pode deixar de ser tido na devida conta o envolvimento simbólico que as Tal afirmação, todavia, não exclui o reconhecimento de que as diferenças
ideologias de género atribuem à vivência da mesma (Hamberg, Risberg, Jo- entre os sexos ultrapassam esses domínios (Doyal, 2001). De facto, as dife-
hansson, Westman, 2002). renças dos sistemas reprodutores masculinos e femininos foram sempre
importantes na prestação dos cuidados de saúde, mas, nas últimas dé-
Afigura-se, assim, indispensável que os conceitos de sexo e género sejam cadas, tem vindo a ser reconhecida a necessidade de olhar para outros fac-
empregues com propriedade e mediante reflexão prévia. Ainda que, em- tores e situações.
piricamente, se observe que o género é um dos factores sociais directa-
mente implicados nas desigualdades em saúde, tem sido lento o Vários exemplos dão conta das diferenças entre os sexos na incidência, na
enquadramento teórico e político dessa perspectiva (Sen et al., 2002). Em sintomatologia e nos prognósticos de outros problemas de saúde, como
grande medida, defendem esses autores, a resistência deve-se à forte sejam, o VIH/SIDA, as doenças infecciosas tropicais, a tuberculose, doenças
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 30 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 31
Quadro 1. Óbitos por todas as causas segundo o sexo e o auto-imunes e doença coronária (Doyal, 2001, p. 1061). Quadro 3. Diferença percentual da mortalidade por sexo De acordo com a OMS, as taxas de mortalidade nos adultos (15-60 anos)
grupo etário segundo o grupo etário
em ambos os sexos, na globalidade dos países, em 2002 foi, de 233/1000
Sexo masculino Sexo feminino TOTAL DIF. H/M % DIF. H/M
As originalidades de cada sexo não são imunes à construção social da dife- habitantes no caso dos homens e de 164/1000 no caso das mulheres, com
<15 453 323 776 rença, as quais, porque presentes no quotidiano e na organização social, <15 130 16,75% valores extremos na Região África (480/1000 habitantes no sexo mas-
15-24 567 196 763 afectam directamente a saúde dos indivíduos (Bedinghaus et al., 2001; 15-24 371 48,62% culino e 438/1000 no sexo feminino) e na Região Pacífico Oeste (157/1000
25-34 1221 413 1634 Doyal, 2001, 2003). Como exemplo, podem referir-se as actividades, as 25-34 808 49,45% no sexo masculino e 96/1000 no sexo feminino). A sobremortalidade mas-
35-44 2151 801 2952 condições de trabalho, a natureza distinta dos papéis socio-sexuais, as 35-44 1350 45,73% culina, persistente em todas as regiões, foi, em valor médio, 1,42 vezes su-
45-54 3690 1605 5295 quais acarretam diferentes graus e tipos de risco para a saúde e suscitam 45-54 2085 39,38% perior à feminina, com valores limites situados em África (1,09 x) e na
55-64 5821 2922 8743
padrões de mortalidade e de mortalidade distintos (Doyal, 2004). 55-64 2899 33,16%
Europa (2,33 x) (OMS, 2007).
65-74 12127 7606 19733 65-74 4521 22,91%
A complexidade destas interacções está sempre presente quando se No que respeita, ainda, à sobremortalidade nos homens, esta adquire ainda
>75 27440 35035 62475 >75 -7595 -12,16%
procura um melhor entendimento sobre os indicadores de saúde apresen- uma expressão mais clara quando se considera uma faixa etária mais es-
TOTAL 53470 48901 102371 TOTAL 4569 4,46%
tados por homens e mulheres. Sob o ponto de vista da duração do ciclo de treita. Num estudo que incidiu sobre 44 países,White e Holmes (2006) con-
Risco de Morrer em Portugal, 2004
vida e das causas de morte em homens e mulheres, o estudo diferencial Risco de Morrer em Portugal, 2004 stataram o peso muito elevado das mortes prematuras (na faixa etária
entre sexos permite realçar diferenças acentuadas entre os dois grupos. 15-44 anos) num número assinalável deles, quer na população masculina,
quer na feminina. Porém, verificou-se que em valor médio, esse peso, em re-
É de realçar aqui que, na investigação, não existem standards que permitam Gráfico 1. Mortalidade proporcional por sexo segundo o lação ao total de óbitos, era quase o dobro nos homens, quando compara-
grupo etário (2004)
Quadro 2. Taxas de mortalidade por todas as causas se- medir o efeito do género na saúde de cada um de nós; não se trata, por- dos com as mulheres (no primeiro caso, 7,4% e, no segundo, 3,1% das
>15
gundo o sexo e o grupo etário tanto, de um agente etiológico de uma doença, nem pode ser incluído em mortes).
58% 42%
Sexo masculino Sexo feminino TOTAL qualquer tentativa de estabelecer um diagnóstico diferencial entre pa- 15-24
<1 451,6 325,7 390,5 tologias (Philips, 2005). Do ponto de vista estatístico, trata-se de um con- 74% 21,6% Em Portugal, e de acordo com a publicação “Risco de Morrer em Portugal –
01-04 37,5 26,5 32,2 ceito abstracto, sendo por isso uma variável latente, cujos efeitos são 25-34 2004” (DGS, 2006), a sobremortalidade masculina foi regra para todos os
05-14 20,2 17,4 18,9
interpretáveis através da análise dos elementos que a estruturam. Quanto 46,6% 53,4% grupos etários – ainda que, no limite superior do ciclo de vida, se tenha
15-24 82,9 29,7 56,8
ao sexo, constituindo uma variável observada, a leitura dos seus efeitos é, 35-44 constatado, em valor absoluto, maior número de óbitos nas mulheres.
59,4% 40,6%
no momento presente, inevitavelmente feita de uma forma dicotómica. (Quadro 1,2,3)
25-34 148,2 50,7 99,7 45-54
35-44 281,1 102,1 190,5 73,9% 26,1%
Detenhamo-nos, então, naquilo que a epidemiologia nos mostra. A análise da diferença proporcional dos óbitos nos homens e nas mulheres
45-54 546,8 225,5 381,9 55-64
55,5% 44,5%
mostra que, no total, a sobremortalidade masculina foi de 4.5%, sendo esta
55-64 1068,8 475,6 754,4
São concebidos mais embriões do sexo masculino do que do feminino (numa diferença proporcionalmente mais evidente na faixa etária 15-54 anos. Al-
65-74
65-74 2677,8 1354,2 1945 proporção calculada de 120/100). Contudo, por haver maior vulnerabilidade 43,6% 56,4% guns constrangimentos de carácter biológico ligados ao sexo apontam
>75 9465,9 7430 8205,1 dos embriões masculinos, a morte in útero é mais frequente em fetos deste >75 para que haja uma vulnerabilidade acrescida nos homens face a algumas
sexo. Ainda assim, a sobrenatalidade nos rapazes expressa-se numa pro- 54,8% 45,2% patologias, ou ao surgimento destas em idades mais jovens.
Risco de Morrer em Portugal, 2004
porção de 105/100. Ao longo do ciclo de vida, persistem taxas de mortalidade
0% 50% 100%
mais elevadas nos homens, nas várias regiões do planeta (WHO, 2007) e Porém, há que realçar o facto daqueles se encontrarem mais expostos a
Sexo masculino Sexo feminino
quaisquer que sejam os grupos etários considerados (White, Cash, 2003). determinados riscos, em alguns contextos de vida (e exporem-se volun-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 32 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 33
tariamente a outros com vista a construir e demonstrar a sua ‘masculi- Gráfico 2. Mortalidade proporcional por sexo segundo é nas causas violentas, designadamente acidentes de trânsito com veículos
grupos de causas de morte (2004)
nidade’), cujas repercussões negativas originam acentuadas perdas na a motor e lesões autoprovocadas intencionalmente que a diferença per-
saúde e na longevidade. Tal facto ganha visibilidade particular quando se centual entre homens e mulheres é mais acentuada (78,4 e 75,4% de óbitos
Lesões autoprovocadas intencionalmente
analisa, por exemplo, a mortalidade por causas externas (violentas). É do sexo masculino por estes grupos de causas, respectivamente).
75,4% 24,6%
nestes territórios que, em larga medida, se expressa melhor o impacte do
Acidentes de trânsito com veículos a motor
género na saúde (mas não só!). Contudo, conforme adiante se verificará, Tal padrão havia já sido constatado a propósito da mortalidade em idades
78,4% 21,6%
quando se aborda a mortalidade por causas naturais, onde, numa leitura jovens. No decénio de 1992-2001, quanto a óbitos por acidentes de transporte
Sintomas, sinais não classificados em outra parte
simplista, poderiam ser considerados apenas factores ligados ao sexo dos 46,6% 53,4%
nos grupos etários 15-19 e 20-24 anos, foram observados nos homens valores
indivíduos, não deixa de ser igualmente importante equacionar o género, superiores em 80% aos verificados nas mulheres (Laranjeira & Prazeres,2005).
Tumores
e as interacções que se estabelecem com o sexo, nas análises efectuadas. 59,4% 40,6%
Causas externas Na Europa, a mortalidade por ‘causas externas’ é sempre superior nos Doenças cardiovasculares Conforme salientado antes, na maioria dos países, as doenças cardiovas-
homens (excepto acima dos 75 anos). No que respeita a acidentes de trân- culares (CVD) representam a principal causa de morte, tanto nos homens
sito, é persistentemente mais elevada nos homens até aos 75 anos, idade a (43% do total de óbitos) como, principalmente, nas mulheres (55%) (WHO,
partir da qual as taxas se igualizam. Quanto às mortes por suicídio, as taxas 2007), embora só recentemente tenha sido reconhecida a magnitude do
Gráfico 3. Diferença proporcional dos óbitos entre sexos
por acidentes de trânsito com veículos a motor, segundo o apresentam-se, sempre, mais elevadas nos homens (White & Cash, 2003). problema no que respeita ao sexo feminino (Pinn, 2003).
grupo etário (2004)
TOTAL Em Portugal, em 2004, as causas externas representaram 5,3% do total de De acordo com White & Keith, (2003) esta causa de morte só atinge maior
56,7% óbitos ocorridos. É sabido que o peso que o conjunto das causas violentas expressão nas mulheres do que nos homens a partir dos 75 anos. Aliás, as
>75 adquire na mortalidade varia em função da idade, sendo na população ac- mulheres apresentam uma média de idades superior em 10 anos aos
26,6% tiva que tal se torna mais significativo; na faixa etária dos 25 aos 54 anos as homens, na altura em que desenvolvem CVD (Philips, 2005; WHO, 2004).
65-74 causas violentas representaram 20,9% da mortalidade. Para além das
41,6% dissemelhanças observadas entre grupos etários, há que assinalar, tam- Em Portugal, quanto a doenças cerebrovasculares, a taxa de mortalidade foi
55-64 bém, as diferenças observadas entre sexos: 12,4%, dos óbitos do sexo femi- globalmente superior no sexo feminino (174,6/100.000 habitantes nas
52,4%
nino com idade entre 25 e 54 anos foram devidos a causas externas, ao mulheres e 144,2 nos homens); a diferença proporcional do número de
45-54
passo que no sexo masculino esse valor foi de 24,3%. É também sabido que óbitos por este tipo de causa foi de 13%. Contudo, quando considerada a
57,6%
são os acidentes de trânsito com veículos a motor que mais contribuem mortalidade por grupos etários, as taxas observadas no sexo masculino
35-44
74,9%
para o peso das causas violentas na mortalidade. foram superiores em todas as idades (DGS, 2006).
25-34
72,7% A sobremortalidade masculina é observada de forma mais acentuada a No que se refere às taxas de mortalidade por doença isquémica, obser-
15-24
partir do grupo etário 15- 24 anos, onde a diferença proporcional dos óbitos varam-se, em 2004, valores de 96/100.000 habitantes, nos homens, e de
62,8% entre sexos é de 63%, acentuando-se nos grupos etários 25-34 e 35-44 anos 74,1 nas mulheres. Em termos percentuais, a sobremortalidade nos homens
<15 (com diferenças percentuais de 73 e 75%, respectivamente). foi da ordem dos 10%. Quando desagregada por idades, a diferença pro-
14,7% porcional observada na casuística por este tipo de causa foi superior no
Atente-se, agora, de forma mais detalhada, em algumas causas de morte grupo etário 35-44 anos, no valor de 70,3%. Nos grupos etários 25-34 e 45-
0% 40% 80% que adquirem relevo particular no contexto da saúde, quer dos homens 54 anos, a sobremortalidade masculina expressou-se, em termos da
quer das mulheres, não, apenas, devido à magnitude do problema, mas, diferença proporcional, com valores da ordem dos 63 e 68,1%, respectiva-
também, pelos contornos da resposta por parte da Saúde, num caso e no mente. Nas idades subsequentes, observou-se uma redução da diferença
Sobremortalidade do sexo masculino em % outro. percentual para 56,8% nos 55-64 anos e para 29,6% nos 65-74 anos, inver-
tendo-se o sentido da diferença nos 75 e mais anos, passando o número de
óbitos do sexo feminino a ser superior em 11% (DGS, 2006).
em algumas comunidades, continuam a manter padrões de exposição e senvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública, acerca da importância do
de gestão dos riscos que diferem, em muitos contextos, entre homens e género na saúde e nos cuidados de saúde. Analisando a distribuição, por
mulheres (Stramba-Badiale et al., 2006; Amâncio, 2004). sexo, da aplicação dos recursos tecnológicos na resposta às doenças car-
diovasculares, os investigadores constataram haver, por parte das mulhe-
Para vários autores, a décalage verificada na idade de ocorrência dos proble- res, um acesso deficitário em relação aos homens no que respeita ao uso de
mas cardiovasculares é devida aos perfis hormonais nas mulheres, cateterismos e cirurgias de bypass; verificaram, também, existir uma repre-
nomeadamente, a presença, protectora, mais marcante dos estrogénios sentação médica sobre este tipo de patologia como sendo uma ‘doença
(Philips, 2205), em particular, antes da menopausa, cujo declínio nas idades dos homens’ e de recuperação mais difícil nas mulheres após a aplicação de
subsequentes fará aumentar a vulnerabilidade. Contudo, pese embora a tratamentos invasivos; além disso, colocaram em evidência as discrepân-
magnitude deste problema de saúde no sexo feminino, o risco de ocorrên- cias existentes entre sexos quanto ao tempo de espera para cirurgias elec-
cia de CVD, nomeadamente de doença isquémica, é frequentemente subes- tivas, contado entre o momento da referenciação do caso e o internamento
timado. com tal fim (Fernandes, Perelman & Mateus, 2007).
Tal pode ser devido, em certa medida, ao facto de que, nas mulheres, os sin-
tomas e sinais associados a este tipo de patologia (e a própria evolução
clínica) podem não ser os mesmos que, mais comummente, são encontra- Diabetes Na primeira metade do século XX, a Diabetes Tipo II apresentava uma
dos nos homens (2005), fazendo com que este problema de saúde acabe prevalência muito superior nas mulheres. Contudo, no presente, essa dife-
por ser sub-diagnosticado naquelas. A tal não será alheio, também, um rença esbateu-se, não parecendo haver uma preponderância assinalável
outro factor, entendível segundo uma perspectiva de género. Conforme é em algum dos sexos (Gale, Gillespie, 2001). Por outro lado, nos países eu-
salientado noutro ponto do texto, um viés de observação, causado pela ropeus, a mortalidade por diabetes é consistentemente superior nos
adopção de uma perspectiva masculina nos ‘hábitos de pensamento’ (tam- homens na maior parte dos casos, com algumas excepções, como no caso
bém médico), cria uma ‘norma masculina’, consubstanciada na tendência de Portugal (White & Cash, 2003).
para usar o homem como standard, mesmo no estudo sobre as doenças
que afectam ambos os sexos (Pinn, 2003). De facto, no nosso País, a casuística da mortalidade devida a diabetes melli-
tus apresentou em 2004 uma sobremortalidade feminina na ordem dos
Tal viés repercute-se, também, no acesso aos cuidados, no emprego dos re- 14%. Tal fenómeno expressou-se também na taxa de mortalidade que, no
cursos de diagnóstico e nos processos terapêuticos. Karin Schenck-Gustafs- caso das mulheres, foi de 47,2/100.000 habitantes, ao passo que nos
son (2006) refere existir evidência de que, na Suécia, em situação de enfarte homens o valor foi de 38,0.
de miocárdio, nas mulheres, em média, a demora entre o início da sin-
tomatologia e a chegada ao hospital é superior em uma hora do que no O sentido da diferença percentual, entre sexos, do número de óbitos ocor-
caso dos homens, têm menor prioridade na espera por ambulância, e têm ridos variou consoante os grupos etários: apesar de constatar-se, global-
que esperar mais vinte minutos para serem observadas no hospital mente, uma sobremortalidade feminina (mais acentuada acima dos 75
(Schenck-Gustafsson, 2006). anos, com uma diferença proporcional de 24%), nos grupos etários 35-44
anos e 45-54 anos o número de óbitos do sexo masculino foi superior ao do
A este propósito, atente-se, por exemplo, num estudo recentemente de- sexo feminino, na ordem dos 21 e 26%, respectivamente.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 38 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 39
Independentemente dos valores observados num determinado momento, Trata-se, há que reconhecê-lo, de um exemplo característico das inter-
importa realçar o padrão de evolução dos resultados, num sexo e no outro. acções imbricadas entre sexo e género, o qual deverá merecer, cada vez
mais, estudo e intervenção mais apurados.
Assim, não pode deixar de ser realçado que os padrões de evolução posi-
tivos verificados no que respeita à mortalidade masculina por esta doença
podem não encontrar semelhança com o que se passa no sexo feminino.
Num estudo publicado em Agosto de 2007, dá-se conta do facto de que, no Tumores Malignos da Traqueia, Na expressão das diferenças observadas entre homens e mulheres, a ca-
que respeita à população dos EUA, a mortalidade nos homens diabéticos Brônquios e Pulmão suística sobre tumor maligno da traqueia, brônquios e pulmão constitui
ter decrescido, nos últimos 25 anos, cerca de 43%, em valor semelhante ao mais um exemplo de mortalidade por causas naturais onde é reconhecido
verificado nos homens não diabéticos. Contudo, no mesmo período de o impacte dos padrões comportamentais, com os hábitos tabágicos a
tempo, na população das mulheres diabéticas a mortalidade não diminuiu, adquirirem particular relevo.
e a diferença entre as taxas de mortalidade nas mulheres diabéticas e nas
não diabéticas duplicou. É de assinalar, contudo, que nos países desenvolvidos, em termos globais, é
notada uma tendência decrescente de consumo, ao contrário do que se veri-
De acordo com a literatura, o risco de ocorrência de doença coronária as- fica nos países em desenvolvimento (Nunes, 2007). No entanto, nas mulhe-
sociada a diabetes é 50% mais elevada nas mulheres que nos homens. Esta res, a incidência do cancro do pulmão tem vindo a registar um acréscimo
diferença pode ser explicada pela existência de perfis de risco coronário significativo, a par do aumento do consumo de tabaco (Nunes, 2006).
mais adversos no sexo feminino, combinados com as possíveis dispari-
dades no tipo de terapêuticas e na efectividade das mesmas, favorecendo Em Portugal, subsistem assinaláveis assimetrias entre sexos, tendo-se veri-
os homens (Huxley, Barzi & Woodward, 2006; Gregg, Gu, Cheng, Narrayan ficado, em 2004, uma taxa de mortalidade de 49,2/100.000 habitantes no
& Cowe, 2007). sexo masculino e de 10,8 no sexo feminino.
Assim, diversos mecanismos podem explicar porque a diabetes parece ter Em termos globais, a diferença percentual observada entre homens e mulhe-
efeitos mais adversos no sexo feminino do que no sexo masculino, em par- res foi de 62,2%; face aos dados desagregados por grupos etários, cons-
ticular no domínio das complicações do foro cardiovascular. Por exemplo, tatou-se ser no grupo 35-44 anos que a expressão desta dissemelhança se
as mulheres com diabetes, não apenas apresentam níveis tensionais e tornou mais evidente (71,3%), seguido dos 55-64 anos (69,5%) e dos 45-54
lipídicos mais elevados que os homens com diabetes, mas também as dife- anos (66,4%).
renças entre elas e as não portadoras de diabetes são significativamente
maiores que no caso dos homens. Para além do peso acrescido destes fac-
tores de risco no caso do sexo feminino, há que realçar igualmente o facto
de estar documentado um menor índice de aplicação, nas mulheres, dos Tumores Malignos do Aparelho À semelhança do observado quanto a tumor maligno da traqueia, brônquios
recursos médicos terapêuticos e das técnicas instrumentais disponíveis Digestivo e Peritoneu e pulmão, também na casuística de tumor maligno do aparelho digestivo e
(Huxley, Barzi & Woodward, 2006; Gregg, Gu, Cheng, Narrayan & Cowe, peritoneu o número de óbitos do sexo masculino ultrapassou o dos óbitos
2007) conforme salientado anteriormente (Fernandes, Perelman & Mateus, do sexo feminino em 17,5%.
2007).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 40 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 41
A sobremortalidade masculina foi igualmente evidente nas taxas de mor- a norma e detendo, em termos globais, mais poder, simbólico e factual. É a
talidade por este tipo de causa, com valores de 99,1/100.000 habitantes nos este fenómeno que Connell (2002) se refere ao mencionar a existência de
homens e de 65,2 nas mulheres. Também neste domínio há aspectos de uma ‘ordem de género’.
ordem social e comportamental, designadamente factores de stress, hábitos
alimentares e outros, sustentados por normas sociais e práticas culturais, Porém, nas diferentes instituições formais e informais que enquadram e
que influem quer na expressão da sobremortalidade masculina, quer na regem o ciclo de vida de homens e mulheres – e que sustentam, organi-
acentuação desta disparidade entre sexos em determinadas idades; por zam e estratificam as vivências sociais – desenvolvem-se formas particu-
exemplo, no grupo etário dos 45 aos 54 anos, o número de óbitos do sexo lares de expressão dessa ordem de género, constituindo-se, de modo mais
masculino ultrapassou o dos óbitos do sexo feminino em 40,5%, logo ou menos voluntário, ‘regimes de género’ (Connell, 2002) que, per-
seguido do grupo 55-64 anos, onde a diferença foi da ordem dos 36%. manecendo estáveis na estrutura básica, vão sofrendo modificações na
forma, à medida que as transformações sociais se operam. É desse modo
que o entendimento e o controlo da vida pública e privada de homens e
mulheres se estabelecem nas famílias, nas comunidades religiosas, na co-
Lesões Autoprovocadas Nos países europeus,têm-se verificado taxas de mortalidade por suicídio mais municação social, na organização do Estado e dos vários sectores de inter-
Intencionalmente elevadas nos homens, em particular acima dos 65 anos, com o diferencial venção.
entre sexos a adquirir maior expressão em Portugal (White & Cash, 2003).
Assim, os fundamentos e os processos decorrentes da actividade da Saúde,
De acordo com o Risco de Morrer em Portugal 2004, as lesões autoprovo- enquanto sector organizado da vida pública, são genderizados. Nela, as mu-
cadas intencionalmente apresentaram uma taxa de 11,5/100.000 habi- lheres e os homens, quer como objecto de estudo e planeamento, quer
tantes; valor que no sexo masculino foi de 17,9/100.000 habitantes, ao como destinatários da acção, são encarados sob o filtro do género, de forma
passo que no sexo feminino foi de 5,5. mais ou menos voluntária, com implicações ainda pouco percebidas nos
resultados dessa intervenção.
Em termos comparativos, as causas de mortalidade onde a diferença pro-
porcional entre óbitos no sexo masculino e no sexo feminino se mostrou
mais evidente foram os acidentes de trânsito com veículos a motor, segui-
dos das lesões autoprovocadas intencionalmente. Foi no grupo etário dos O sector da saúde como estrutura Para entender como a área da saúde é, no fundo, uma ‘estrutura organiza-
15 aos 25 anos que se observou a sobremortalidade masculina mais acen- genderizada cional genderizada’ (Doyal, 2002)7, é preciso identificar como esse sector in-
tuada (da ordem dos 60%). corpora as raízes do género nas suas medidas e modos de organização das
políticas e serviços de saúde (Gideon, 2006). Em termos globais, os efeitos
do género mantêm-se no sector da saúde, porque as normas e vieses con-
tinuam presentes nas tomadas de decisão, tanto nas organizações públi-
Género e políticas de saúde Enquanto ideologia que ‘formata’ a vida dos indivíduos de ambos os sexos, cas como privadas, mesmo contrariando algumas iniciativas sociais que
o género adquire um carácter global, constituindo uma verdadeira ordem
quase universal, posto que os pilares em que assenta têm estrutura cons-
7 Para aprofundar o conceito de estrutura organizacional genderizada, ver, por exemplo, os trabalhos de Joan
tante: diferença entre homens e mulheres, constituindo o sexo masculino Acker (1990, 1998, 2006) e, quanto à medicina em particular, de Elianne Riska (1993, 2003), António M. Marques
e Lígia Amâncio (2004).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 42 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 43
procuram ser sensíveis à igualdade de género (Gideon, 2006, p.330). Em análise dos padrões de consumo alcoólico, no qual se afirma que “a mulher
Portugal, o III Plano para a Igualdade – Cidadania e Género, 2007-2010 tem um padrão de consumo de bebidas diferente do homem”, sendo men-
(Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2007), dá conta deste tipo de cionada explicitamente a sua ‘fragilidade’ enquanto grupo de risco (op.cit.,
iniquidades e aponta medidas para lhes dar resposta. p.155). Por outro lado, a especificidade do ser feminino é salientada, sobre-
tudo, no domínio da reprodução, bem como em relação aos factores de
Várias pesquisas têm identificado os efeitos (vieses) do género no campo da risco associados à mortalidade infantil, no qual apenas se destaca o papel
saúde, nomeadamente nas práticas quotidianas, na formação, na investi- da mãe, mas não o do pai (op.cit., p.155).
gação, na literatura e nos manuais médicos (Alexanderson,Wingren, & Ros-
dahl, 1998; Bennett, 1993; Cotton, 1992; Marques, 2007; Risberg, Johansson, É neste sentido que se pode afirmar que a própria linguagem da Medicina,
Westman, & Hamberg, 2003; Rosser, 1993;Wenger, Seeroff, & Packard, 1993). e a filosofia que lhe subjaz, tendem a continuar a encarar o homem como
Não é raro que documentos científicos, técnicos e de orientação institu- a referência da normalidade e a mulher como o outro sexo (Phillips, 1997,
cional acentuem estereótipos socialmente associados a cada um dos sexos 2005).
(Alexanderson, 1999; Alexanderson et al., 1998; Marques, 2007). Referimos
em seguida alguns exemplos ilustrativos. Tanto na literatura científica como no senso comum, a doença coronária
foi considerada, durante décadas, uma ‘doença dos homens’, pelo que foi
A análise dos manuais de várias disciplinas médicas, como da dermatolo- pouco estudada a susceptibilidade feminina e pouco exploradas as medi-
gia, epidemiologia, medicina ocupacional e saúde pública, Alexanderson e das e estratégias de prevenção específicas para as mulheres (Bedinghaus
colegas (1998), seguindo o protocolo de investigação criado por Alexan- et al., 2001, p.1393). Contudo, e paradoxalmente, nos EUA, a taxa de mortali-
derson (1999), ilustra como estes recursos pedagógicos e as práticas for- dade feminina devido a doença cardíaca é entre quatro a seis vezes supe-
mativas dão corpo a ideologias genderizadas no domínio da saúde. rior à do cancro da mama (op.cit., p.1393).
Da análise realizada pelos autores, salienta-se a tentativa de construir tex- A este propósito, ainda, salientem-se as considerações tecidas anteriormente,
tos e difundir saberes pretensamente neutros no que se refere ao género. a propósito da mortalidade devida a diabetes, assinalando-se, uma vez mais,
Assim, é frequente o uso de expressões como ‘indivíduos’, ‘sujeitos’, traba- o estudo recentemente realizado em Portugal, (Fernandes, Perelman & Ma-
lhadores’ e ‘pacientes’, sem precisar o sexo a que dizem respeito8 (Alexan- teus, 2007), em que este tipo de viés foi amplamente documentado.
derson et al., 1998, p.154). No entanto, sublinham os investigadores, as
mensagens deixem pressupor, muitas vezes, que implicitamente, é ao ser Contudo, os ditames do género também se expressam em sentido inverso,
masculino que se referem (op.cit., p.154). ou seja, tomando por norma o que se passa no sexo feminino, e, por ex-
cepção, as realidades constatadas no sexo masculino atente-se, por exem-
Essa é uma das observações mais patentes dos estudos desses investi- plo, no que se verifica em relação à osteoporose, patologia que parece ser
gadores, em vários dos manuais, ou seja, “(…) o homem é, frequentemente, encarada como ‘feminina’ facto habitualmente documentado e enfatizado
considerado como a norma à qual a mulher é comparada” (op.cit., p.156). Um mediante dados epidemiológicos e destacado em ligação íntima com a
dos exemplos citados refere-se ao domínio da saúde comunitária e à menopausa (National Institute of Health, 2006).
8 O que, do ponto de vista linguístico, é facilitado, considerando que todos os manuais analisados usavam a lín- Nos homens, em geral, a perda rápida de massa óssea processa-se a partir
gua inglesa.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 44 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 45
dos 65-70 anos, ao passo que nas mulheres tal se verifica a partir dos 50 atribuídas ao sexo feminino (aspectos que, em associação, produzem
anos, com a menopausa; as fracturas da anca, nos homens, ocorrem em efeitos ao nível da mortalidade e morbilidade), bem como dos níveis de
idades mais avançadas, facto que talvez explique o maior risco de morte adesão às mensagens preventivas (Bedinghaus et al., 2001).
por complicações no sexo masculino (National Institute of Health, 2004).
Algumas mensagens de promoção da saúde são outro excelente exemplo
Sem aprofundar aqui o assunto, refira-se que, curiosamente, a iconografia de como tem existido pouca reflexão acerca da dimensão social dos com-
que surge na literatura sobre o tema, apresenta (ao contrário do que é ha- portamentos em saúde, nomeadamente na área da educação alimentar e
bitual), modelos femininos a ilustrar os textos, de que é exemplo um im- do aleitamento materno. Tanto num caso como noutro, a informação
portante relatório sobre o tema, o Bone Health and Osteoporosis – A Report disponibilizada pelos profissionais e pelos serviços de saúde tende a não
of the Surgeon General (US Department of Health and Human Services, considerar as realidades concretas de vida das mulheres, as quais, fre-
2004). quentemente, contrariam o desejo de aderirem ao que é aconselhado
(Gideon, 2006, p. 332). Do mesmo modo, como referido, não se tem in-
Noutro âmbito, saliente-se que, provavelmente, o investimento público in- vestido, substantivamente, no envolvimento masculino na saúde repro-
cisivo em campanhas de prevenção do cancro da mama, mais do que das dutiva, nem nos problemas de saúde física e mental resultantes dos
doenças cardíacas na mulher, está na origem do maior receio destas em comportamentos socialmente promovidos, nomeadamente quanto à vio-
relação à doença oncológica mamária (op.cit., p.1393). Por outro lado, a di- lência, ao abuso de álcool e à sexualidade (op.cit., p. 333).
fusão de informação sobre doenças cardiovasculares – muito dirigidas aos
homens – terá feito decrescer a mortalidade e a prevalência dos factores de Relativamente aos problemas de saúde para os quais a perspectiva
risco masculinos associados a elas, o mesmo não acontecendo nas mulhe- hegemónica tem dado mais atenção, constata-se, em termos globais, haver
res (op.cit., p.1393). um padrão que se traduz num predomínio daqueles que mais afectam os
homens, nomeadamente, as doenças crónicas, como seja a doença cardíaca e
Para além dos comportamentos individuais e dos factores que, directa e in- o cancro do pulmão (Inhorn &Whittle,2001;Susser & Susser,1996a),optando-
directamente, os influenciam, os autores revêem um conjunto de estudos se por uma óptica comparativa ao referirem a situação das mulheres, o que
que dão conta do sub-diagnóstico médico dos sinais de alerta de doença acentua a sua ‘diferença’ (Inhorn & Whittle, 2001;Whittle & Inhorn, 2001).
cardíaca nas mulheres, mesmo em situações agudas (Bedinghaus et al.,
2001, p.1393-4). Em parte, esta condição é devida à especificidade dos sin- O recurso ao essencialismo biológico na representação das mulheres é
tomas apresentados pelas mulheres, os quais podem ser menos (re)conhe- visto por Inhorn e Whitlle (2001, p.559) como uma das formas do ‘viés anti-
cidos ou subvalorizados pelos profissionais (op.cit., p.1394). feminista’. Esta caracteriza-se pela forte associação entre o sexo feminino
e a função reprodutora e pela desvalorização das condições sociais que
Um dos aspectos que, neste trabalho, merece destaque é, justamente, a afectam negativamente as mulheres, incluindo as situações de discrimi-
complexificação da análise e das propostas dos autores, os quais identifi- nação (Inhorn & Whittle, 2001; Krieger & Fee, 1994; Krieger et al., 1993;
cam os factores bio-psico-sociais associados à adopção das medidas pre- Krieger & Zierler, 1995).
ventivas por parte das mulheres. Sinteticamente, acentua-se a
determinação dos contextos de vida, das posições sociais de classe, da Como acentuam Krieger e Zierler (1995), é muito frequente que as mulhe-
etnia, do rendimento económico e das actividades quotidianas socialmente res, enquanto ‘grupo de risco’, sejam definidas de forma homogénea pelas
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 46 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 47
suas capacidades de engravidar, de parir e de cuidar adequadamente dos Se, nas últimas décadas, as estatísticas sociais e de saúde apresentam, em
seus filhos, ignorando as realidades e diferenças das suas vidas, altamente separado, os dados relativos aos homens e às mulheres - mostrando, por
marcadas pela genderização. exemplo, a clara existência de diferentes padrões de morbi-mortalidade -
a questão mais pertinente raramente é expressa: ‘porque há diferenças?’
Outra das expressões do ‘viés anti-feminista’ referido por M. Inhorn e K. (Verbrugge, 1995, p. 156). Não adoptar uma postura interrogativa pode ser
Whittle (2001, p.562), diz respeito à descontextualização e despolitização vista como uma forma de viés.
dos riscos de saúde das mulheres. Este viés é visível quando, em termos de
perspectivas dominantes, se insiste na satisfação da ‘descoberta’ da relação Com efeito, a insistência no ‘porquê’, quando se pretende entender deter-
entre o factor de risco e a patologia resultante, evitando questionar a razão minado padrão de distribuição de uma patologia e os mecanismos da sua
de existência desses factores de risco, nomeadamente se estarão rela- difusão, é um primado essencial de enriquecimento da visão epidemioló-
cionados com aspectos económicos, políticos e sociais (op.cit., p.562). Ou gica e uma via para a transformação do sector da Saúde (Krieger et al., 1993,
seja, o que determina que algumas doenças específicas afectem mais in- p.109). De forma muito directa e recorrendo a um discurso metafórico, sin-
cisivamente alguns indivíduos ou grupos e que alguns contextos ou mo- tetizam o seu pensamento da seguinte forma: “Continuar, meramente, a
mentos históricos produzam essa susceptibilidade acrescida não é objecto catalogar os factores de risco como uma ‘rede amorfa’ de causalidade não
de questionamento (Inhorn, 1995; Inhorn & Whittle, 2001; Wing, 1994). será, de todo, suficiente. Se a nossa meta é mudar a teia, em vez de somente
quebrar os seus fios, é tempo de localizar a aranha” (op.cit., p.109)10.
As mulheres são, como sublinhámos, encaradas como beneficiárias espe-
ciais do enfoque das políticas e serviços de saúde, mas a atenção que lhes Sublinham esses investigadores que, para adopção de políticas de pre-
é dada é dirigida para as suas necessidades enquanto mães9 e os factores venção efectivas, “(…) é preciso focalizar os determinantes estruturais da
implicados nos efeitos de género na morbilidade são, tendencialmente, saúde, e não apenas os factores classificados como ‘escolhas de estilo de vida’
ignorados (Gideon, 2006, p. 331). No mesmo domínio, as necessidades dos (...)” (Krieger et al., 1993, p.109).
homens são, por regra, pouco valorizadas e o seu papel na saúde reprodu-
tiva não tem merecido grande investimento (op.cit., p. 331). Em Portugal, Desenvolver um novo olhar sobre estas questões constitui tarefa igual-
nas sucessivas realizações do Inquérito Nacional de Saúde os homens não mente complexa. Exige, nomeadamente, entender melhor o impacte que
têm sido questionados quanto à saúde reprodutiva, o que, quanto a nós, o género tem tido no pensamento, nas interacções e nas práticas dos
poderá sugerir que essa esfera da saúde é encarada como dizendo respeito profissionais de saúde. Impõe, ainda, uma percepção mais aprofundada acer-
apenas às mulheres. ca da forma como as próprias políticas do sector da Saúde (genderizado,
como todos os sectores) reflectem, ou não, através de normativos e orien-
A relação entre os comportamentos dos homens e os efeitos negativos em tações técnicas, uma perspectiva crítica acerca das iniquidades em saúde,
vários domínios da saúde tem sido descrita e analisada por inúmeros inves- que subsistem entre homens e mulheres.
tigadores, mas nem sempre sob o olhar do género (Courtenay, 2000; Daniels-
son & Johansson, 2005; Doyal, 2001; Holland & Hill, 2007; Jadad & Meryn, Nos dois capítulos seguintes dar-se-á conta de investigações feitas nesse
2005; Moynihan, 1998; Verbrugge, 1995;World Health Organization, 2002). sentido.
9 Nomeadamente, sob a denominação de ‘saúde materno-infantil’. 10 Tradução livre a partir do original em inglês.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 48 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 49
CAPÍTULO II
de profissionais mulheres) ou com um maior índice de contacto com o Participantes No total, participaram 249 profissionais de saúde enquadrados em dife-
utente (57% de mulheres na medicina geral e familiar). rentes áreas de intervenção e especialidade. Os quadros que se seguem
permitem caracterizá-los em termos da sua distribuição pelo grupo profis-
Apesar dos resultados empíricos publicados ao longo da última década Quadro 4. Distribuição dos participantes pelos grupos sional, sexo e contexto de intervenção clínica.
salientarem a importância das representações sociais de género nas per- profissionais da saúde considerados
cepções e práticas dos profissionais da saúde, esta temática parece estar Grupo Profissional N %
ainda distante do contexto académico e profissional das ciências médicas.
Médicos 125 51%
Estudo 1 Este estudo focalizou as representações dos profissionais sobre o impacte Contexto Intervenção N %
dos significados de género no plano das práticas clínicas, da formação e Hospital 124 49.8%
das próprias relações e opções profissionais. A pesquisa foi quantitativa, Centro Saúde 125 50.2%
através da técnica de questionário, tendo sido orientada para a caracteri- Total 249 100%
zação geral das representações de médicos e enfermeiros, tendo em conta
o grupo profissional, o sexo e o contexto de intervenção.
Apesar da amostra deste estudo incluir um total de 249 participantes, não foi possível identificar o grupo de
11
Procedimentos A recolha de dados foi realizada através da aplicação de um questionário de género assumiu nos currícula apresentados ao longo da formação dos par-
auto-resposta. Este instrumento foi distribuído em diferentes hospitais e ticipantes, bem como no plano académico actual; por outro lado, abordou
centros de saúde da área da Grande Lisboa e posteriormente recolhido para a importância do sexo do estudante na escolha da especialidade, tal como
tratamento estatístico. Os questionários eram anónimos, quer em termos no interesse que os profissionais expressam face à possibilidade de receber
da identidade dos participantes, quer da instituição de pertença. formação complementar neste domínio.
Alguns itens deste questionário foram adaptados dos estudos desenvolvidos por Risberg, Hamberg & Jo-
12
hansson (2003) e Amâncio e colaboradores (não publicado) (no âmbito do projecto Elites Discriminadas - Uma
abordagem interdisciplinar das desigualdades de género POCTI/SOC/44726/2002 da FCT).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 54 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 55
Principais Resultados Os procedimentos de análise utilizados nas diferentes secções do ques- relevância ao sexo do utente no âmbito do processo terapêutico, apesar das
tionário foram conduzidos de acordo com a natureza dos itens. Passamos a respostas continuarem pouco acima do ponto 3 (pouca importância) (Enf =
apresentar os vários resultados de acordo com a estrutura do instrumento. 3.18, Med = 2.59; t (231) = 2.304, p= .022).
A. O papel do sexo do utente no âmbito das práticas clínicas O padrão de respostas anterior repetiu-se, quando consideraram a pers-
Neste primeiro grupo de questões realizámos Testes T às várias questões, pectiva dos colegas de outras especialidades quanto à relevância que o sexo
de modo a comparar a média das respostas dos participantes, em função do utente assume no âmbito do processo terapêutico (Enf = 3.22, Med = 2.62;
do grupo de sexo, do grupo profissional e do contexto de trabalho (as var- t (229) = 2.520, p= .012), bem como a perspectiva dos colegas de outras áreas
iáveis independentes (VI) em estudo). profissionais sobre a mesma dimensão (Enf = 3.13, Med = 2.66; t (224) =
1.972, p= .050).
As comparações efectuadas entre profissionais mulheres e homens (VI -
Gráfico 4. Para os colegas de outras áreas profissionais, o
sexo) para o conjunto das questões que integraram esta primeira secção sexo do utente tem importância na forma como conduzem Quanto às comparações realizadas em função do contexto de trabalho, ob-
não mostraram quaisquer variações significativas ao nível das suas res- o atendimento/consulta servaram-se três resultados diferenciadores entre os participantes que actuam
postas. Em média, afirmaram pouca importância quanto ao sexo do utente em centros de saúde e hospitais, em termos da importância atribuída ao
Contexto de trabalho
no contexto das práticas clínicas (em torno do ponto 3 da escala de res- sexo do utente. No conjunto, os profissionais dos centros de saúde
posta). Hospitais atribuiram significativamente maior relevo ao seguinte:
Centros de Saúde
Em termos das comparações estabelecidas em função dos grupos profis- • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente rele-
sionais (VI - profissão) foram encontradas algumas variações significati- vante na forma como conduzem a consulta/atendimento (CS = 3.42, Hos
vas. Especificamente: = 2.75; t (228) = 3.071, p= .002);
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
Na questão importância atribuída ao sexo do utente no âmbito do processo • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente im-
terapêutico os enfermeiros apresentaram pontuações significativamente portante para os critérios de diagnóstico (CS = 3.35, Hos = 2.74; t (228) =
mais elevadas do que os médicos, apesar das suas respostas se localizarem 2.588, p= .010);
pouco acima do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 3.21, Med = 2.69; t (237)
= 1.992, p= .047). Gráfico 5. Para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo • Os colegas de outras áreas profissionais consideram o sexo do utente im-
do utente tem importância na na relação que estabelecem
com o utente
portante no âmbito da relação terapêutica (CS = 3.28, Hos = 2.64; t (228)
Para a importância atribuída ao sexo do utente no plano da relação que é es- = 2.639, p= .009).
tabelecida no contexto clínico, também foram os enfermeiros a considerar Contexto de trabalho
significativamente mais esta dimensão, relativamente aos médicos, ape- Hospitais No conjunto destes três resultados, uma vez mais, as respostas dos profis-
sar de, mais uma vez, as respostas se localizarem pouco acima do ponto 3 sionais dos centros de saúde situaram-se pouco acima do ponto “pouca
(pouca importância) (Enf = 3.12, Med = 2.56; t (231) = 2.180, p= .030). Centros de Saúde importância”.
Comparativamente ao grupo de médicos, os enfermeiros também in- Introduzimos ainda um outro item com o objectivo de anali-sar, de forma
dicaram mais que os colegas da mesma especialidade atribuem maior 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 mais focalizada, se os participantes consideravam a existência de especiali-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 56 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 57
Quadro 7. Resultados do Teste Binomial dades onde o sexo do utente assume maior importância. Os resultados Gráfico 6. O sexo do próprio profissional tem importância importância ao sexo do profissional no contexto das práticas clínicas, com-
no processo terapêutico
Existe alguma especialidade em que considere
mostraram diferenças nas proporções das duas categorias de resposta (sim parativamente ao sexo do utente.
que o sexo do/a utente tenha importância? ou não), indicando uma concordância maioritária dos profissionais face a Grupo profissional
esta questão. Em termos dos grupos profissionais (VI – profissão) também observámos
Não Sim Total Médico/a
um conjunto de variações significativas, sendo os enfermeiros quem valoriza
N 84 158 242
Realizámos ainda um teste estatístico14, de modo a verificar se esta proporção Enfermeiro/a
um pouco mais o sexo do profissional, comparativamente ao grupo de
Proporção13 .35 .65 1,00 de respostas dependia de alguma associação particular com as variáveis médicos. Especificamente:
p < 0.001 sexo, profissão e contexto de trabalho. Os resultados não mostraram nenhum
padrão significativo, indicando que esta diferenciação nas respostas não teve 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 • No plano do processo terapêutico, os enfermeiros associaram significati-
qualquer relação com aquelas variáveis sociodemográficas. vamente mais importância ao seu próprio sexo, em comparação com os
médicos, apesar das suas respostas se localizarem abaixo do ponto 3
Quadro 8. Especialidades onde o sexo do utente tem relevân-
De maneira a clarificar os resultados obtidos para as especialidades onde o (pouca importância) (Enf = 2.67, Med = 1.93; t (222) = 3.487, p= .001).
cia, de acordo com a opinião de enfermeiros e médicos sexo do utente assume maior importância, efectuámos ainda uma catego-
rização das respostas positivas, cruzando as especialidades indicadas com • Comparativamente ao grupo dos médicos, os enfermeiros também con-
Especialidades Enfermeiros Médicos
o grupo profissional dos respondentes. sideraram significativamente mais que, para os colegas da mesma espe-
Todas as especialidades 1 2 Gráfico 7. Para os colegas de outras especialidades, o sexo cialidade, o sexo do profissional assume importância para: os critérios de
Outras especialidades 8 2 do próprio profissional tem importância nos critérios que
Os resultados indicam que, quanto à atribuição de importância ao sexo do utilizam para avaliação/diagnóstico avaliação e diagnóstico (Enf = 2.55, Med = 2.11; t (234) = 2.117, p= .035) e o
Cardiologia 0 1
utente, quer médicos, quer enfermeiros, salientaram claramente a espe- processo terapêutico (Enf = 2.59, Med = 2.01; t (226) = 2.751, p= .006). As res-
Medicina Geral e Familiar 1 6 Grupo profissional
cialidade de Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia. A Urologia também postas dos enfermeiros continuaram abaixo do ponto 3 (pouca im-
Dermatologia 2 2
apresentou um número de respostas elevado, mas foi o grupo de médicos Médico/a portância) para os dois itens.
Medicina Interna 0 2
que atribuiu maior relevância ao sexo do utente.
Cirurgia Geral 0 1 Enfermeiro/a
• Por outro lado, também foram os enfermeiros a afirmar significativa-
Endocrinologia 1 5
mente mais que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profis-
Oncologia 1 1
B. O papel do sexo do profissional no âmbito das práticas clínicas sional assume importância nos critérios de avaliação e diagnóstico - com
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
Ortopedia 0 1
Nesta parte do questionário também conduzimos Testes T com as várias respostas abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.70, Med = 2.07;
Patologia Clínica 0 1
questões, de modo a comparar a média das respostas dos participantes, t (222) = 3.124, p= .002).
Reumatologia 0 1
em função do grupo de sexo, do grupo profissional e do contexto de tra-
Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia 59 64
balho (VI’s = sexo e profissão dos respondentes, contexto de trabalho). • O mesmo grupo também considerou significativamente mais que os
Saúde Infantil/Juvenil/Pediatria 7 1
médicos que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profis-
Especialidades Cirúrgicas 0 7 Tal como na secção anterior, os resultados emergentes das comparações sional tem relevância para o estabelecimento do processo terapêutico. As
Saúde Mental/Psiquiatria 6 16 realizadas entre mulheres e homens (VI – sexo) não mostraram quaisquer respostas continuaram abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.76,
Urologia 34 54 variações significativas. No conjunto dos itens, as pontuações situaram-se Med = 2.05; t (222) = 3.313, p= .001).
Gastrenterologia 1 1 abaixo do ponto 3 (pouca importância), o que indica a associação de menor
• Os enfermeiros também referiram significativamente mais que os médi- Gráfico 9. Para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo • Foi o mesmo grupo a salientar mais que os colegas da mesma especiali-
do próprio profissional tem importância na forma como con-
cos que, para os colegas de outras especialidades, o sexo do profissional duzem o atendimento/consulta dade atribuem importância a esta dimensão no contexto das relações
assume importância no estabelecimento da relação com o utente. As res- que estabelecem com os utentes, embora situem as suas respostas no
postas situaram-se no ponto 3 (pouca importância) (Enf = 3.02, Med = Contexto de trabalho ponto 3 (CS = 2.97, Hos = 2.39; t (234) = 2.443, p= .015).
2.47; t (221) = 2.401, p= .017). Hospitais
• Por outro lado, também foram os participantes dos centros de saúde que
• Finalmente, foi o mesmo grupo a indicar significativamente mais que os Centros de Saúde referiram significativamente mais que, para os colegas de outras espe-
médicos que, para os colegas de outras áreas profissionais, o sexo do cialidades, o sexo do profissional é importante para os critérios que uti-
profissional tem importância para o processo terapêutico. As respostas lo- lizam na avaliação/diagnóstico. No entanto, as pontuações situam-se
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
calizaram-se abaixo do ponto 3 (pouca importância) (Enf = 2.65, Med = abaixo do ponto 3 (CS = 2.63, Hos = 2.13; t (232) = 2.431, p= .016).
2.16; t (224) = 2.389, p= .018).
• Este grupo de profissionais afirmou significativamente mais que, para os
Quanto às comparações relativas ao contexto de trabalho, emergiu um colegas de outras áreas profissionais, o sexo do profissional tem relevân-
conjunto de resultados diferenciadores entre os profissionais que actuam cia na forma como conduzem o atendimento/consulta (CS = 3.02, Hos =
Gráfico 10. Para os colegas de outras áreas profissionais, o
em centros de saúde e hospitais, em termos da importância atribuída ao sexo do próprio profissional tem importância na relação que 2.31; t (215) = 3.210, p= .002).
sexo do profissional. No conjunto, foram os profissionais dos centros de estabelecem com o utente
saúde que valorizaram um pouco mais a importância desta dimensão nas • Comparativamente aos profissionais dos hospitais, os que actuam nos
Contexto de trabalho
práticas clínicas. Especificamente: centros de saúde sugeriram significativamente mais que, para os cole-
Hospitais
gas de outras áreas profissionais o sexo do profissional é importante para
• Afirmaram significativamente mais a importância do seu próprio sexo os critérios que utilizam na avaliação/diagnóstico (CS = 2.66, Hos = 2.11;
Centros de Saúde
na forma como conduzem o atendimento/consulta, comparativamente t (229) = 2.898, p= .004) e no processo terapêutico (CS = 2.63, Hos = 2.17;
aos profissionais hospitalares. No entanto, a sua pontuação média t (228) = 2.254, p= .025).
situou-se em torno do ponto 3 (pouca importância) (CS = 3.12, Hos = 2.54; 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
t (238) = 2.276, p= .024). • O padrão de resposta foi semelhante em termos da relevância que os cole-
Gráfico 8. Para os colegas da mesma especialidade, o sexo do gas de outras áreas profissionais associam ao sexo do profissional no plano
próprio profissional tem importância na forma como con- • Também foi aquele grupo que desvalorizou significativamente menos a da relação com o utente (CS = 3.19, Hos = 2.45; t (220) = 3.316, p= .001).
duzem o atendimento/consulta
importância daquela dimensão em termos dos critérios que são utilizados
Contexto de trabalho
para a avaliação/diagnóstico (CS = 2.45, Hos = 1.95; t (240) = 2.420, p= .016). Tal como fizemos para a dimensão ‘sexo do utente’, introduzimos um outro
Quadro 9. Resultados do Teste Binomial
item que permitisse analisar com mais detalhe se os participantes conside-
Hospitais
• Comparativamente aos profissionais que actuam nos hospitais, os Existe alguma especialidade em que considere que o sexo ravam a existência de especialidades onde o sexo do profissional pode assumir
do/a utente tenha importância?
Centros de Saúde
profissionais dos centros de saúde também indicaram significativamente maior importância.
mais que, os colegas da mesma especialidade consideram a relevância Não Sim Total
do sexo do profissional na forma como conduzem a consulta/atendi- N 118 123 241 Os resultados não mostraram diferenças significativas na distribuição de
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 mento, apesar de, mais uma vez, as pontuações continuarem em torno Proporção 15 .49 .51 1,00
do ponto 3 (CS = 3.02, Hos = 2.34; t (225) = 2.847, p= .005). ns
15 A proporção testada foi de .50.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 60 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 61
Quadro 10. Especialidades onde o sexo do profissional tem proporções das duas categorias, o que indica que as posições dos partici- Gráfico 11. O sexo do estudante é importante na escolha da portância do sexo do estudante na escolha da especialidade e interesse em re-
relevância, de acordo com a opinião de enfermeiros e médicos especialidade
pantes quanto a esta questão se encontram relativamente divididas. ceber formação complementar na área do género aplicada à saúde.
Sexo
Especialidades Enfermeiros Médicos
De maneira a clarificar os resultados relativos às respostas afirmativas, tam- Feminino Na primeira questão, embora ambos os grupos discordassem quanto à im-
Cirurgia Geral 0 3
bém solicitámos a indicação dessas especialidades e realizámos uma cate- portância do sexo do estudante na escolha da especialidade, as mulheres
Medicina Geral e Familiar 1 5
gorização sobre as respostas, cruzando as especialidades referidas com o Masculino foram significativamente mais discordantes do que os homens (M= 3.24, F=
Ortopedia 1 0
grupo profissional dos respondentes. 2.61; t (238) = 2.404, p= .017).
Endocrinologia 0 2
Otorrinolaringologia 0 1 Tal como aconteceu para a dimensão ‘sexo do utente’, estes resultados in- 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 Para a questão seguinte, homens e mulheres diferiram significativamente
Saúde Materna/Ginecologia/Obstetrícia 42 60 dicam que, quer médicos, quer enfermeiros, salientaram a importância do de opinião, uma vez que os primeiros discordaram um pouco quanto ao in-
Saúde Infantil/Juvenil/Pediatria 3 1 sexo do profissional ao nível das especialidades de Saúde Materna/Gine- teresse em receber formação complementar naquela área, enquanto elas se
Saúde Mental/Psiquiatria 4 15 cologia/Obstetrícia e Urologia. No entanto, neste caso, foram os médicos a aproximaram mais de uma posição neutra (não concordo nem discordo) (M=
Especialidades Cirúrgicas 0 2
destacar mais as duas especialidades, enquanto que no plano do sexo do 2.84, F= 3.72; t (235) = -2.949, p= .004).
Gráfico 12. Estou interessado em receber formação comple-
Urologia 20 47
utente haviam referenciado mais a Urologia, comparativamente aos en- mentar nesta matéria
fermeiros. Relativamente à variável profissão emergiram aspectos de diferenciação sig-
Gastrenterologia 0 3
Sexo nificativa entre as respostas de médicos e enfermeiros para um conjunto de
Outras Especialidades 4 1
Feminino questões que passamos a enunciar.
C. A abordagem diferencial da saúde dos homens e das mulheres no contexto
da formação académica Masculino As respostas dos dois grupos divergiram significativamente, já que os médi-
Nesta secção do questionário focalizámos as ideias dos profissionais de cos revelaram alguma discordância face à presença da abordagem diferen-
saúde quanto à representatividade que esta abordagem assume no plano da cial das questões de saúde dos homens e mulheres nos currículos
0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4
formação académica e complementar, bem como a influência do sexo do es- académicos da sua formação, enquanto que os enfermeiros se aproximaram
tudante na escolha de especialidade. Por outro lado, também contemplá- mais da posição “não concordo nem discordo” (Enf = 3.63, Med = 2.88; t (237)
mos as suas opiniões quanto à necessidade de dar mais atenção a esta = 3.002, p= .003).
temática nos currículos académicos, tal como o seu interesse em receber for-
mação complementar no domínio do género em saúde. Os dois grupos apresentaram opiniões significativamente diferentes quanto
Gráfico 13. Aquando da minha formação, esta perspectiva à presença desta abordagem nos currículos académicos actuais da sua área
estava presente nos currículos académicos
A análise dos itens foi realizada com base em Testes T, de modo a verificar de especialidade, uma vez que os enfermeiros se posicionaram mais em
possíveis aspectos de diferenciação entre os seguintes grupos: homens/mu- Grupo profissional
torno do ponto “não concordo nem discordo”, enquanto que os médicos reve-
lheres, Enfermagem/Medicina e Centro de Saúde/Hospital (VI’s – sexo, profis- laram alguma discordância face a essa presença (Enf = 3.66, Med = 3.02;
Médico/a
são, contexto trabalho). Observaram-se efeitos significativos associados às t(234) = 2.540, p= .012).
três variáveis, que passamos a apresentar. Enfermeiro/a
Relativamente à importância que o sexo do estudante assume na escolha
As comparações entre mulheres e homens (variável sexo) revelaram diferen- de especialidade, também emergiram diferenças significativas entre as res-
ças significativas entre as suas respostas relativamente às questões im- 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 postas nos dois grupos: os enfermeiros afirmaram a sua discordância face à
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 62 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 63
Gráfico 14. Estou interessado em receber formação com- influência desta dimensão, enquanto que os médicos discordaram um pouco Gráfico 17. Estou interessado em receber formação comple- mente menor interesse em recebê-la, comparativamente aos profissionais
plementar nesta área mentar nesta área
menos (Enf = 2.45, Med = 3.14; t(238) = -2.829, p= .005). dos centros de saúde, que se posicionaram no ponto médio da escala (CS=
Grupo profissional Contexto de trabalho
4.05, H= 2.90; t(239) = 4.268, p< .001).
Finalmente, quanto ao interesse em receber formação complementar na
Médico/a Hospitais
área do género aplicada à saúde, emergiram novas distinções significativas
Enfermeiro/a
a nível das posições dos dois grupos, uma vez que enfermeiros “não concordam Centros de Saúde
D. O campo das relações entre profissionais
nem discordam”, enquanto que os médicos revelaram alguma discordância Nesta secção concentrámos a atenção na influência do género no contexto
face a essa possiblidade (Enf = 4.01, Med = 2.93; t (235) = 3.962, p< .001). das relações dos profissionais de saúde com os seus pares. Tal como fizemos
0 1 2 3 4 5 0 1 2 3 4 5 anteriormente, a análise dos itens foi conduzida com base em Testes T, de
Relativamente à variável contexto de trabalho foram observados aspectos modo a verificar possíveis aspectos de diferenciação entre os grupos
de diferenciação significativa entre as respostas dos profissionais dos centros ‘homem/mulher’, ‘enfermagem/medicina’ e ‘centro de saúde/hospital’ (VI’s
de saúde e hospitais em quatro dimensões, que passamos a apresentar. – sexo, profissão, contexto trabalho).
Gráfico 18. Existe igualdade de oportunidades entre igualdade de oportunidades de carreira entre sexos, ao passo que as mulhe- Quando focalizámos a importância do sexo do utente no contexto das práti-
homens e mulheres
res se posicionaram no ponto médio da escala – “não concordo nem dis- cas clínicas, foram os enfermeiros que apresentaram, para todos os itens,
Sexo cordo” (M= 5.57, F= 4.38; t(242) = 4.373, p< .001). pontuações mais elevadas quando comparadas com as dos médicos – ainda
Feminino que pouco expressivas, estas diferenças foram estatisticamente significati-
De igual modo, foram observadas diferenças nos padrões de resposta de vas. Também foi possível observar o mesmo tipo de padrão quando analisá-
Masculino homens e de mulheres quanto à existência de igualdade na aplicação de mos o contexto de trabalho, uma vez que os profissionais dos centros de
critérios para a progressão na carreira de indivíduos de ambos os sexos: en- saúde valorizaram mais a importância daquela dimensão, comparativa-
quanto que os homens concordaram com esta afirmação, as mulheres mente aos colegas em contexto hospitalar. Em contrapartida, a variável sexo
0 1 2 3 4 5 6 salientaram, mais uma vez, maior aproximação a uma posição de neutrali- não produziu quaisquer efeitos diferenciadores entre homens e mulheres, o
dade (não concordo nem discordo) (M= 5.56, F= 4.48; t(238) = 3.879, p< .001). que nos sugere uma elevada proximidade a nível das respostas em termos
da fraca importância associada a esta dimensão. Tal parece sugerir serem o
Quanto ao grau de autoridade profissional entre homens e mulheres, verifi- grupo profissional e o contexto de trabalho mais diferenciadores nestas
Gráfico 19. Existe igualdade na aplicação de critérios para a
cou-se um padrão de resposta semelhante: as mulheres adoptaram, em matérias.
progressão na carreira de homens e mulheres média, a posição “não concordo nem discordo”; os homens afirmaram a
existência de graus de autoridade profissional equivalentes (M= 5.15, F= 4.36; No que respeita à relevância que o sexo do profissional assume no plano das
Sexo
t(238) = 2.677, p= .008). práticas clínicas emergiram os mesmos padrões de resposta: pontuações
Feminino
baixas, tendo em conta que as respostas foram mantidas entre os pontos 2
Para a variável profissão, emergiu um único resultado significativamente e 3 da escala; respostas significativamente mais elevadas entre os enfer-
Masculino
diferenciador entre médicos e enfermeiros. Enquanto os primeiros tenderam meiros e os profissionais dos centros de saúde, comparativamente aos médi-
a mostrar alguma concordância face à existência de diferenças ao nível do cos e profissionais dos hospitais, respectivamente; e ausência de efeitos
0 1 2 3 4 5 6 prestígio que é atribuído às diferentes especialidades, os enfermeiros aproxi- diferenciadores entre homens e mulheres.
maram-se mais da posição “não concordo nem discordo” (Enf = 3.73, Med=
4.35; t(234) = -2.057, p= .041). Também podemos constatar que, segundo as percepções e representações
expressas pelos respondentes, não é reconhecida às relações de género qual-
quer influência no contexto das relações profissionais entre pares, uma vez
que se salientou uma discordância generalizada e uma total ausência de
Os resultados obtidos a partir do questionário revelaram, na sua globalidade, efeitos das variáveis sexo, profissão e contexto de trabalho.
Conclusões uma fraca orientação dos profissionais inquiridos para a temática do sexo e
- Pistas para discussão do género no contexto da saúde. Com a excepção de algumas respostas in- Relativamente à secção dedicada à abordagem diferencial das questões rela-
seridas na parte dedicada ao contexto da carreira profissional, as pontuações cionadas com a saúde de homens e mulheres no campo da formação, ob-
médias oscilaram entre o 2 e 3 (muito pouca e pouca importância ou dis- servámos pouco interesse por parte dos participantes do sexo masculino
cordo muito e discordo pouco), numa escala de 7 pontos. Analisando estes re- relativamente a esta temática, a atribuição de pouca importância ao sexo
sultados em função dos grupos ‘sexo’, ‘profissão’ e ‘contexto de trabalho’, do estudante na escolha de especialidade, por parte das mulheres, e uma
emergiram alguns padrões de diferenciação. maior orientação dos enfermeiros e dos profissionais dos centros de saúde
para essa temática.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 66 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 67
Contudo, apesar das diferenças observadas, as respostas foram mantidas Estudo 2 Este segundo estudo voltou a incidir sobre a temática que nos ocupou na in-
nos pontos menos elevados da escala (em torno de 3 e 4). vestigação anterior, mas envolveu uma abordagem qualitativa, de modo a
permitir uma análise com maior profundidade das dimensões de resposta
Por último, também nas questões relativas à carreira profissional emergiram que aí emergiram. Por outro lado, optámos também por uma exploração
diferenças entre sexos, com os homens a apresentar sempre maior con- mais sistemática de outros aspectos que considerámos pertinente salientar
cordância quanto à presença de igualdade entre sexos neste contexto. Cu- neste domínio (por exemplo, as representações dos profissionais sobre a
riosamente, as mulheres revelaram uma posição de relativa neutralidade população de utentes no geral, e homens e mulheres, em particular, de
nas suas respostas, uma vez que se posicionaram sistematicamente no acordo com um conjunto de parâmetros relevantes para a prática clínica; a
ponto “não concordo nem discordo”, denotando um não comprometimento análise da realidade nacional quanto à distribuição dos sexos pelas espe-
em relação a estas questões. cialidades em medicina/enfermagem). Assim, nesta segunda fase empírica,
focalizámos as ideias, percepções e narrativas dos mesmos grupos profis-
De modo a aprofundar a análise destas temáticas, e das dimensões de res- sionais face à problemática do sexo e do género no contexto da saúde, com
posta que foram mobilizadas em torno dos conceitos ‘sexo’ e ‘género’ no con- base em entrevistas em profundidade.
texto da saúde, desenvolvemos um segundo estudo, de cariz qualitativo, que
passamos a apresentar. Esta estratégia metodológica reflecte uma abor-
dagem onde a comunicação de ideias e a construção de narrativas sobre ex-
periências significativas se torna possível, o que nos permitiu explorar, de Participantes Neste estudo participaram 16 profissionais de saúde enquadrados nos dois
forma menos condicionada, as representações dos profissionais de saúde contextos de trabalho que haviam sido contemplados anteriormente – hos-
face aos temas e objectivos que orientaram o nosso projecto de partida. pitais e centros de saúde –, tendo em conta a sua área de intervenção. Foram
Quadro 11. Distribuição dos participantes por grupo
profissional
seleccionados de forma balanceada pelos grupos profissionais, sexo e área de
intervenção. Os quadros 11 e 12 permitem caracterizá-los em termos da sua
Grupo Profissional N distribuição por estas três dimensões.
Médicos 8
Enfermeiros 8
Total 16
Sexo N
Feminino 8
Masculino 8
Total 16
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 68 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 69
Quadro 13. Distribuição dos participantes por área de 1. Relevância do sexo do utente, onde se focalizou a importância que os
intervenção
profissionais atribuem a esta dimensão em termos dos padrões de utiliza-
Área de Intervenção Médicos Enfermeiros Total ção dos serviços de saúde, tipo e forma de queixas apresentadas, adesão à
Especialistas Hospitalares 4 4 8 terapêutica e forma de comunicação/relação; por outro lado, a valorização
Clínicos gerais/Enfermeiros generalistas 4 4 8 que os profissionais associam às queixas e seus sinais objectivos, pedidos
Total 8 8 16
de exames complementares e terapêutica, em função do sexo do utente; fi-
nalmente, a percepção que os profissionais têm sobre a importância que os
seus colegas atribuem ao sexo do utente no desempenho das suas
funções.
Procedimentos As entrevistas foram realizadas individualmente, no local de trabalho dos 2. Relevância do sexo do profissional, centrada na importância que os par-
profissionais, mediante marcação prévia. Tal como na abordagem quanti- ticipantes associam ao sexo do profissional no exercício das suas funções,
tativa, o anonimato dos participantes, e das respectivas instituições, foram quer com os utentes, quer com os seus pares; por outro lado, também foi
garantidos. Seleccionámos médicos de medicina geral e familiar e enfer- apresentada a distribuição das mulheres e homens profissionais por dife-
meiros generalistas no contexto dos centros de saúde, e profissionais es- rentes áreas de intervenção médica e de enfermagem com desigualdades
pecialistas, médicos e enfermeiros, no contexto hospitalar. na distribuição numérica entre sexos, com base na interpretação de dados
nacionais16 (INE, 2005) (Apêndice IV); por último, o enfoque incidiu na
análise da apropriação do sexo do profissional às especialidades médi-
cas/enfermagem, tendo em conta a sua natureza e especificidade.
Instrumento O instrumento que adoptámos para este segundo estudo foi a entrevista
em profundidade semi-estruturada (Apêndice III). Esta opção permitiu de- C. Questões de Igualdade/Discriminação – esta dimensão foi orientada para
linear um guião inicial, standardizado para todos os participantes, de modo o contexto profissional e a carreira em medicina e enfermagem, nomeada-
a conduzi-los ao longo dos vários tópicos que pretendíamos abordar. Para- mente, em termos das oportunidades de progressão de homens e mulhe-
lelamente, a natureza semi-estruturada da metodologia garantiu a possi- res, situações de discriminação positiva e negativa no contexto do trabalho
bilidade de focalizar novos conteúdos pertinentes, que emergiram ao longo e o poder/autoridade profissional, comparando a situação entre os dois
da própria situação de entrevista. sexos; finalmente, aspectos de diferenciação no prestígio atribuído às dife-
rentes especialidades em medicina/enfermagem, bem como as conse-
As dimensões que estruturaram o guião inicial foram as seguintes: quências dessas dinâmicas ao nível do contexto profissional.
A. Biografia dos participantes – centrada nas razões que levaram à escolha O guião completo é apresentado no Apêndice III.
do curso e da especialidade, para o caso dos profissionais hospitalares;
cardiologia, pediatria, medicina geral e familiar; enfermagem – generalista, de reabilitação, saúde infantil e
pediátrica, saúde mental e psiquiátrica.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 70 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 71
Variáveis do estudo A operacionalização das variáveis do estudo reflecte um tratamento sis- Os resultados foram obtidos a partir do método de classificação descen-
temático dos tópicos apresentados para o guião da entrevista. dente hierárquica operacionalizado pelo Alceste, segundo o qual se consti-
Procedemos agora à sua descrição, em termos das dimensões de análise tuíram as classes lexicais (ou conjuntos de palavras co-ocorrentes)
que as constituíram: emergentes a partir dos discursos e narrativas dos profissionais de saúde.
• Profissão: Med (médicos), Enf (enfermeiros) É de salientar que a natureza estatística do método levou à redução da vari-
• Sexo: Fem (feminino), Mas (masculino) abilidade do corpus de material resultante do conjunto de entrevistas, o que
• Formação académica e complementar: A1 e A2 significa que algum material com menor representatividade foi eliminado da
• Importância que o próprio profissional atribui ao sexo do utente na prática análise. Deste processo resultou uma análise efectuada com 87.07 % do cor-
clínica (padrões de utilização dos serviços de saúde, tipo e forma de pus de dados inicial. Os resultados da análise Alceste revelaram uma es-
queixas, adesão à terapêutica, forma de comunicação/relação, etc.): B11 trutura temática centrada em três classes lexicais:
• Percepção da importância que os colegas atribuem ao sexo do utente no
desempenho das suas funções: B12
• Importância do sexo do profissional no exercício das funções (com os Quadro 14. Estrutura Temática das Representações de CLASSE 1 - 22.34% das UCE´s CLASSE 2 - 27.91% das UCE’s CLASSE 3 - 49.75 % das UCE’s
Médicos e Enfermeiros Palavra X2 Palavra X2 Palavra X2
utentes e os pares): B21
altura+ 97.07 pediatria+ 85.27 doente+ 73.62
• Distribuição das mulheres e homens profissionais por algumas áreas de medicina 70.18 reabilitacão 63.10 queix+ 41.50
curso+ 60.67 cardiologia 51.95 doença+ 31.95
especialidade médica/enfermagem (com base na interpretação de dados
escolh+ 56.49 saúde mental 49.78 consulta+ 31.80
nacionais - INE, 2005): B22. Apropriação do sexo do profissional às espe- especialidade+ 35.90 mais homens 47.23 patologia+ 29.34
hospit+ 33.44 sociedade+ 40.82 terapêutica+ 27.67
cialidades em medicina/enfermagem: B23 clínica geral 33.44 mais prestígio 34.64 homem 25.27
• Oportunidades de homens e mulheres ao nível da progressão na carreira: C1 vaga+ 32.29 especialidade+ 30.90 utente+ 20.32
concurso+ 31.45 saúde infantil 26.80 médico+ 18.01
• Discriminação positiva e/ou negativa no contexto do trabalho: C2 carreira hospitalar 31.45 medicina geral fami 24.56 sexo+ 17.50
• Poder/autoridade profissional de mulheres e homens: C3 carreira+ 30.02 chefia+ 23.36 diagnóstico+ 16.30
início 30.00 apetência+ 23.36 tratamento+ 15.81
• Diferenças de prestígio entre as especialidades médicas/enfermagem:C4 estágio 27.94 psiquiátrica 22.83 dor+ 14.25
área saúde 20.93 cargo+ 18.00 profission+ 13.43
ciência+ 20.93 mais força 16.72 conversar 12.50
Principais Resultados Os resultados que apresentamos a seguir foram analisados com o software acaso 19.17 cirurgia cardíaca 15.66 diferença+ 11.33
Alceste 4.7 (IMAGE, 2000). Este programa é uma metodologia de análise de enfermagem 18.73 enfermeiros homens 15.63 noto 10.15
licenciatura+ 17.43 disponibilidade 15.55 doença crónica 9.48
dados qualitativos, que incide na composição lexical e estruturação liceu+ 17.43 enfermeiros reabili 15.55 aderem 9.13
temática do material de entrevista. Com base nas técnicas estatísticas uti- nunca senti 16.02 machista 15.55 comunicar 9.13
alun+ 13.94 igualdade 15.55 igual 9.09
lizadas, permite isolar classes lexicais17, de acordo com a co-ocorrência de cirurgia plástica 13.94 força física 13.57 não diferença+ 9.09
palavras nos contextos discursivos produzidos pelos participantes. Deste maioritariamente 12.91 matern+ 13.31 diabético+ 8.11
percurso 12.91 directoras serviço 12.95 sintoma+ 7.10
modo, é possível reter categorias de vocabulário que remetem para as re- cirurgia+ 11.97 mais mulheres 11.29 Variáveis
presentações que lhe estão subjacentes, tornando possível a sua explici- segurança 10.45 papel 11.18 *b11 429.65
Variáveis poucas mulheres 10.36 *b12 51.54
tação (Reinert, 1986). Por outro lado, a especificidade do vocabulário dos *a2 264.65 pré concebido 10.36 *mas 7.65
contextos lexicais emergentes revela as dimensões de significado que são *a1 150.07 progressão 9.19 A influência do sexo do utente nas
*med 5.57 Variáveis situações de consulta
pertinentes para a interpretação do discurso e das representações sociais *fem 5.51 *b22 100.75
que estiveram implicadas na sua organização (Soares & Jesuino, 2004). Percursos Académicos *c4 66.94
*b23 55.37
17 As classes lexicais constituem classes de palavras retidas a partir dos discursos em análise. *c1 27.36
Aspectos de diferenciação: homens,
mulheres e especialidades profissionais
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 72 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 73
CLASSE 1 Esta classe concentra 22.34% das UCE’s18 em análise, focalizando, essen- Por outro lado, questões de segurança laboral, estabilidade monetária e
Percursos académicos
cialmente, os motivos que conduziram os participantes à escolha do seu boas saídas profissionais:
curso e da sua especialidade (medicina ou enfermagem). As razões que
fundamentam o percurso académico reflectem diferentes vectores orga- “porque, por razões familiares, eu tive que vir para a clínica geral, porque,
nizadores ao nível das suas narrativas, nomeadamente: naquela altura, era uma carreira que dava segurança e, bom, dava segurança
a nível laboral e a nível económico”.
No caso da escolha de especialidade, a experiência anterior em serviços
hospitalares e as situações de estágio foram factores de influência na área “portanto, fiz o curso de enfermagem na x, já acabei em sessenta e cinco e es-
de opção, tal como exemplificam as seguintes UCE’s19: colhi enfermagem, naquela altura, pronto, era uma boa saída. E também
porque gostava. Havia a hipótese de ser professora ou ser enfermeira, preferi
“fiz o meu curso de medicina sempre muito satisfeito, depois esperávamos enfermagem. E, depois, mais tarde, fiz a especialidade de saúde pública”.
cinco anos, quatro, cinco anos até escolhermos uma especialidade, porque
havia muito poucos concursos. Portanto foram mais quatro, cinco anos de
experiência, prática, em que deu para ver muitas especialidades e eu depois Também a escolha do curso determinada pela alternativa mais próxima a
tinha uma primeira prioridade, a minha primeira prioridade era a cirurgia uma preferência não concretizada:
plástica”.
“eu vim para enfermagem porque acabei na altura o sétimo ano e depois
“eu fiz a especialidade enquanto estava no serviço de urgência, a trabalhar e acabei o propedêutico e não tinha notas para entrar na faculdade. Eu na al-
simultaneamente a fazer a especialidade. Depois fui, já como enfermeiro es- tura não sabia bem o que é que queria, para ser muito sincera. Tentei entrar
pecialista, para um serviço de cirurgia. Ainda como especialista estive durante na faculdade, só queria medicina ou veterinária e como não entrei achei que
dois anos e meio, penso, a chefiar um serviço de medicina interna. Voltei para o mais parecido com essas áreas de saúde era a enfermagem”.
o serviço de cirurgia já como enfermeiro chefe”.
“era precisamente a ortopedia, dentro da cirurgia a ortopedia. Portanto estou E ainda, um percurso consolidado pelo acaso e pela necessidade de obter
exactamente onde queria e continuo a gostar e não estou arrependida. O es- uma formação académica de duração relativamente curta:
tagio que eu fiz, o estagio influenciou. O ano que eu estive no Hospital x, eu
estive no Hospital x durante um ano, pronto estive noutras especialidades “a enfermagem acabou por surgiu por um acaso, por mero acaso. Porque como
durante um ano, escolhi ir para lá e realmente gostei imenso”. a minha idade indica, não sou propriamente dos cursos mais recentes. Depois
do quinto ano fui estudar à noite, portanto fiz o curso complementar naquela
altura. Monetariamente os meus pais na altura não podiam muito e eu tinha
que ir para qualquer coisa que fosse assim tipo um curso mais rápido”.
18 As UCE’s (Unidades de Contexto Elementar) referem-se à unidade de análise que o método Alceste operaciona- “foi por acaso, foi. Eu já tinha essa perspectiva, tanto que eu tinha concor-
liza; corresponde à ideia de frase ou parágrafo, e é nesse contexto que a co-ocorrência de palavras é identificada.
19 As UCE’s que são apresentadas ao longo desta secção foram seleccionadas através do processo de análise Al- rido para entrarno curso de enfermagem antes de vir para cá, mas depois foi
ceste, constituindo exemplos representativos das dimensões que integram cada uma das classes lexicais. Pelo
próprio automatismo da metodologia não é possível identificar com precisão as especificidades sociode- por mero acaso abrir o curso cá e eu fazê-lo”.
mográficas dos sujeitos que as verbalizaram.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 74 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 75
Uma outra dimensão que também emergiu nesta classe, embora com uma
expressividade bastante ténue, diz respeito à ausência de discriminação du- “sinceramente eu acho que se calhar aqui, serão mais homens, se calhar por
rante a formação: causa disso, penso eu. Em termos de reabilitação é um bocadinho também
isso, porque é assim a reabilitação, é vista como algo que exige de nós tam-
“não, penso que não houve discriminação. Embora eu tenha calhado no curso bém mais alguma força física, não é?”
de enfermagem numa turma, numa turma maioritariamente feminina, nós
éramos para aí uns quarenta e éramos para aí uns sete homens, não senti “também é uma questão disso, força física superior, não é? Talvez por isso. Acho que
nada”. tem a ver com a constituição física, talvez, e o próprio gosto, se calhar, não sei”.
As variáveis principais que estiveram na origem desta classe foram a A1 e Por outro lado, os participantes também justificaram os desequilíbrios com
A2, respeitantes à biografia académica; por outro lado, também se observou base numa estratégia de naturalização de diferenças ao nível de determi-
a presença daquelas que representam o grupo profissional dos médicos nadas características masculinas ou femininas que consideram ser mais
(Med) e as mulheres (Fem), apesar das suas contribuições serem bastante adequadas para o exercício de algumas especialidades:
mais ligeiras. Este resultado indica alguma orientação destes dois grupos
para os domínios de significado que aqui emergiram, contudo a fraca ex- “não sei se terá a ver com isso, e os homens talvez tenham mais predisposição,
pressividade estatística das duas variáveis sociodemográficas aponta tam- e não se emocionam tanto como as mulheres, talvez sejam mais frios na ac-
bém num sentido de alguma generalização destas narrativas entre os tuação, sinceramente, eu aí é a única explicação, mas realmente, se formos
vários participantes. ver há mais homens e poucas mulheres cardiologistas, isso é um facto, penso
que terá que ver com isso”.
“lá está, medicina geral e familiar muito mais mulheres, pediatria, a questão
CLASSE 2 Esta classe concentra 27.91% das UCE’s e articula-se em torno das reflexões da maternidade envolvida”.
Aspectos de diferenciação:
homens, mulheres e
que os participantes elaboraram acerca das distribuições de profissionais
especialidades profissionais homens e mulheres por algumas das especialidades mais desequilibradas “a saúde infantil e pediátrica, eu acho se calhar porque as mulheres como
ao nível dos grupos de sexo. Por outro lado, as diferenciações de prestígio são mães têm mais aquela afinidade, eu acho que deve ser por isso”.
que são atribuídas ao nível das próprias especialidades médicas e de en-
fermagem, e ainda as condições ligadas à progressão na carreira e o acesso Também associaram os padrões de género que emergem na medicina às
ao poder. próprias condições da sociedade, e do senso comum, e preconizaram uma
tendência para a mudança:
Relativamente aos desequilíbrios entre o número de profissionais homens
e mulheres em algumas especialidades, os participantes evocaram aspec- “mas isso é uma questão do senso comum, isso traduz o que é a sociedade
tos ligados à especificidade física dos dois sexos. A capacidade física é um desde há uns tempos, desde há vários anos para cá, eu acho que isto tam-
factor relevante para justificar a predominância masculina na especiali- bém vai ter tendência a mudar, não estou a dizer que vão ficar mais mulhe-
dade de reabilitação em enfermagem: res na cirurgia do que homens”.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 76 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 77
“na cardiologia, isto vai-se modificar, isto vai-se modificar, neste momento, CLASSE 3 A última classe é mais representativa, uma vez que concentra 49.75% das
A influência do sexo do utente
acontece isto, mas isto vai-se modificar”. nas situações de consulta
UCE’s. Foi construída em torno dos efeitos que o sexo do utente produz ao
nível das situações de consulta. Apesar de emergir um ponto de vista que
Numa outra óptica, justificaram as diferenças de prestígio entre as várias es- preconiza aspectos de indiferenciação entre sexos, as diferenças entre
pecialidades, recorrendo a condições simbólicas: homens e mulheres marcaram os discursos dos profissionais.
“penso que poderá ter a ver com esse peso, quer dizer, dos grandes mestres, As especificidades das mulheres em situação de consulta são elaboradas
quer dizer a cardiologia portuguesa é uma especialidade com um grande peso com base nos seguintes aspectos:
internacional e, pronto, temos grandes nomes, se calhar tem a ver com isso”.
Relações de maior intimidade, maior orientação para a comunicação:
“não sei como é noutros hospitais, mas aqui passa-se assim. Porque eu acho
que devia ser tudo por igual, cada um tem o seu poiso, por exemplo, não vejo “portanto, são pessoas que estão disponíveis, acima de tudo, para conversar,
um enfermeiro de saúde mental a andar com cartazes a dizer que trata dos conversar de assuntos pessoais, íntimos, muitas vezes querem conversar, e as
maluquinhos”. melhores conversas que tive foram com mulheres”.
“não, não noto diferenças. Nas consultas, eu faço consultas de diabetes com A segunda classe temática integra diferentes dimensões associadas a as-
homens e com mulheres; acho que há diabéticos muito complicados, mas não pectos de diferenciação entre homens/mulheres e especialidades em
é pelo facto de ser homem ou mulher, não vejo diferença nenhuma do sexo”. medicina/enfermagem. Por um lado, os seus conteúdos permitiram
racionalizar a assimetria entre o número de profissionais de ambos os sexos
“se quero fazer aquelas chamadas rotinas que se fazem de dois em dois anos, ao nível de algumas especialidades médicas e de enfermagem genderi-
peço as mesmas a um homem e a uma mulher. Agora, tenho em atenção os zadas. Por exemplo: o argumento da condição física justifica a predomi-
estilos de vida”. nância masculina no contexto da enfermagem de reabilitação; a
naturalização das diferenças psicológicas entre homens e mulheres explica
a dominância masculina na área profissional da cardiologia (maior racionali -
Finalmente, a percepção que os participantes apresentam sobre a im- dade e menor emotividade dos homens, comparativamente às mulheres); a
portância que os outros profissionais de saúde atribuem ao sexo do utente influência das condições sociais e das ideias do senso comum salientam-
aponta no sentido da diferenciação de tratamento entre mulheres e homens: -se na argumentação que é desenvolvida acerca da marcada presença mi-
noritária feminina ao nível da cirurgia. A maternidade é a justificação central
“ah, está-me a dizer em relação ao sexo do utente, em relação aos enfer- para predomínio das profissionais mulheres no domínio da saúde infantil e
meiros e outros médicos? Eu acho que eles tratam diferentemente sendo pediatria.
homens ou sendo mulheres”.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 80 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 81
Por outro lado, as dimensões desta segunda classe destacam condições nos discursos dos participantes. Este resultado leva-nos a colocar as
simbólicas quando se trata de justificar as diferenças de prestígio entre es- seguintes questões: estariam os profissionais motivados para a exploração
pecialidades (por exemplo, a acentuação do prestígio da cardiologia). Fi- deste tema? Ou será que o próprio contexto da saúde se encontra, real-
nalmente, afirmam aspectos de distintividade nas progressões da carreira mente, isento de situações de discriminação profissional? Os resultados
de homens e mulheres e justificam-nos a partir de uma estratégia que sobre concepções ligadas às desigualdades na progressão na carreira não
naturaliza as diferenças entre sexos quanto à orientação para as relações parecem corroborar a última hipótese.
de poder e autoridade – os homens estão naturalmente mais orientados
para cargos de chefia.
CAPÍTULO III
Género e políticas de saúde
Instrumento de orientação Como suporte e inspiração desta fase do trabalho, identificámos algumas
da análise equipas de investigadores, técnicos e instituições que, nos últimos anos,
investiram na análise crítica dos documentos e políticas de saúde dos seus
países, sob a óptica do género e da diversidade. São os seguintes: Swedish
International Development Cooperation Agency, Health Canada e The
Women's Health Council (Irlanda).
• Apresentação e análise de dados estatísticos e epidemiológicos em função níveis de saúde e dos padrões de doença e de mortalidade nacionais (ao
do sexo longo do ciclo vital) torna possível a realização da análise pretendida.
• Referência explicita às necessidades e problemas de saúde específicos
de cada sexo Dado o carácter exploratório do nosso trabalho e as limitações do mesmo,
• Representações sociais, estereótipos e papéis sociais associados a cada sexo abstivemo-nos de analisar outros documentos também ricos e impor-
• Adopção da perspectiva de género na definição de políticas de saúde tantes, uma vez que o seu alcance e aprofundamento é menor, ainda que
estejam directamente relacionados com este Plano Nacional, como é caso
Embora naturalmente relacionadas e complementares, as questões colo- de alguns Programas Nacionais de Intervenção Integrada.
cadas e as dimensões que considerámos para a sua agregação terão como
função auxiliar e facilitar a análise documental.
Realização da análise Sob orientação das dimensões de análise e das questões antes referidas,
– procedimentos debruçar-nos-emos sobre o documento21 em causa, procurando assinalar se
Selecção dos documentos analisados Os documentos que, potencialmente, poderiam ser objecto da análise pre- e de que forma a perspectiva de género está presente na sua concepção e
vista neste projecto são inúmeros. Desde os que são produzidos a nível cen- redacção.
tral pelo Ministério da Saúde até aos que resultam do investimento de
outros Ministérios ou entidades públicas e privadas, é fácil identificar e Há que referir, contudo, de uma forma explícita que, no nosso trabalho, não
aceder a documentos – legislativos, normativos, técnico-científicos, educa- pretendemos adoptar qualquer posição avaliativa da qualidade global do
tivos, informativos, entre outros – cujos temas e objectivos estão rela- documento nem das ideias fundamentais que nele são expressas. O nosso
cionados com a saúde e o bem-estar. Por isso, impôs-se a necessidade de objectivo é, sinteticamente, usar as ‘lentes do género’ (Sen et al., 2002, p. 6)
identificar critérios de selecção dos documentos que seriam objecto de para identificar diferentes versões discursivas e ideológicas acerca da dife -
análise neste estudo. rença entre os sexos, quando estão em causa problemáticas relacionadas
com a saúde e a doença.
Assim, a nossa escolha recaiu sobre o “Plano Nacional de Saúde 2004-2010:
mais saúde para todos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
2004a, 2004b), pela centralidade e importância do próprio documento, uma Apresentação e análise de dados Na análise desta dimensão tomámos, assim, por referências as questões
vez que este representa “(…) um ‘fio condutor’ para que as instituições do estatísticos e epidemiológicos em 1 a 4 do conjunto apresentado no apêndice V. Em primeiro lugar, daremos
Ministério da Saúde, outros organismos do sector da Saúde – governamen- função do sexo atenção à desagregação (ou não) de dados estatísticos e epidemiológicos
tais, privados e de solidariedade social – e de outros sectores de actividade, respeitantes a cada sexo bem como à análise das diferenças existentes.
possam assegurar ou contribuir para a obtenção de ‘Ganhos em Saúde, de
2004 a 2010, orientados pela promoção da saúde e pela prevenção da doença” Apresentação dos dados São vários os exemplos em que essa desagregação existe, outros em que
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.13). esta está ausente e outros ainda em que, no mesmo quadro, se apresentam
as duas situações.
Além disso, a explicitação dos princípios filosóficos, dos objectivos, das es-
tratégias e dos principais dados estatísticos e epidemiológicos acerca dos Neste trabalho de análise e reflexão considerámos o Plano Nacional de Saúde como um único documento, ainda
21
que o mesmo se apresente em dois volumes e que a cada um deles corresponda uma referência bibliográfica própria.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 86 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 87
Assim, nas ‘Metas Prioritárias para “Crescer em Segurança – pós-neonatal aos A mesma tendência para não considerar a predominância numérica do sexo
9 anos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.54), o indi- masculino, do abuso e consumo de álcool, bem como de doenças e da mor-
cador “Risco de Morrer até aos 5 anos” é apresentado sem discriminação talidade associada e a esse consumo (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
dos sexos. Neste período da vida, nomeadamente, pela influência directa do Saúde, 2004b, p.101, 203 e 208) orienta-se pelo mesmo princípio da homo-
valor respeitante às mortes por causas externas, já são nítidas as diferenças geneização dos sexos, pelo que se utilizam indicadores e rácios baseados no
entre rapazes e raparigas (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, termo ‘pessoa’ (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.60).
2004b, p. 197-8), um facto que não é valorizado na apresentação dos dados.
Já no caso das ‘Metas Prioritárias para “Uma juventude à procura de um fu- Análise dos dados Genérica e tendencialmente, os dados relativos a cada sexo, bem como as
turo saudável – dos 10 aos 24 anos” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da diferenças significativas e patentes, não são objecto de análise interpreta-
Saúde, 2004a, p.54) alguns indicadores são apresentados de modo agre- tiva ou mesmo de comentários apreciativos. Essa constatação é notória
gado, enquanto noutros se discriminam os sexos. Também aqui, as taxas de tanto no volume de definição de prioridades (Ministério da Saúde. Direcção-
mortalidade no intervalo de idades em causa surgem agregadas quando, Geral da Saúde, 2004a) como no de definição de estratégias (Ministério da
de forma evidente, as diferenças entre os sexos são ainda mais notórias Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b).
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.201 e ss)22, sobre-
tudo se considerarmos as suas causas e o peso das mortes por causas ex- Com efeito, à apresentação dos dados não se associa um esforço interpre-
ternas23. No entanto, este facto é destacado no Volume II do documento tativo das diferenças assinaladas, nem é mobilizada a investigação que, po-
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.31) da seguinte tencialmente, sustentaria a compreensãodos fenómenos, como é claro nos
forma: exemplos seguintes:
“Começam a emergir as diferenças significativas entre as principais causas de “(…) as mulheres consideram o seu estado de saúde como “mau” ou “muito
morte para adolescentes do sexo masculino e feminino, particularmente no mau” mais frequentemente do que os homens, podendo observar-se uma
que se refere às causas externas.” diminuição entre os dois INS.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
2004a, p. 31; destacado nosso).
Os acidentes de viação constituem-se como um domínio em que os dados
por sexo são extremamente pertinentes, dada a esmagadora prepon- “A mortalidade por cancro em Portugal estabilizou. A mortalidade global por
derância estatística de mortes e lesões no sexo masculino (Ministério da cancro é mais elevada nos homens do que nas mulheres. Portugal representa
Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.207). Tal facto é menosprezado na UE, para a mortalidade por cancro nos homens, uma das excepções à
na apresentação de indicadores e definição de metas, uma vez que se tendência actual, que é de crescimento.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral
recorre à figura de ‘indivíduos’ em lugar da desagregação por sexos (Mi- da Saúde, 2004a, p. 30; destacado nosso).
nistério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.60).
“O consumo de tabaco em Portugal tem vindo a diminuir, situando-se em
19,5% a prevalência de fumadores na população com mais de 15 anos (…),
22 Uma constatação que se aplica também às Metas Prioritárias para “Uma vida adulta produtiva – dos 25 aos 64
anos” e Metas Prioritárias para “Um envelhecimento Activo – 65 ou mais” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da sendo o sexo masculino o principal responsável por esta diminuição (com ex-
Saúde, 2004a, p.55-6, 2004b, p.206 e ss), ainda que, noutro capítulo, se valorize a preponderância numérica do sexo
masculino (op.cit., p.32).
cepção do grupo etário dos 35-44 anos, onde se regista um aumento da
23 Fenómeno analisado por Prazeres (2003) e por Laranjeira e Prazeres (2005).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 88 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 89
prevalência de fumadores). Está, no entanto, a aumentar o consumo de tabaco mente, pelas várias fases do ciclo vital, é muito variável o grau de explici-
no sexo feminino de forma preocupante.” (Ministério da Saúde. Direcção- tação do valor reconhecido à especificidade dos sexos.
Geral da Saúde, 2004b, p.101; destacado nosso).
Tomemos como exemplo o excerto mais explícito, o qual procura sintetizar
Salienta-se, uma vez mais, que nesta apreciação não desvalorizamos os os principais problemas de saúde dos adultos de ambos os sexos e que
propósitos e o carácter específico do Plano Nacional de Saúde, pois estes carecem de intervenção prioritária (op.cit., p.32)24 :
podem justificar, ainda que parcialmente, o não aprofundamento da
análise de dados e a fundamentação conceptual das medidas de acção. To- “Problemas específicos das mulheres”
davia, paradoxal e justamente, julgamos que são as características próprias Os problemas específicos das mulheres, nomeadamente os relativos à repro-
desse documento e a sua importância na orientação das políticas de saúde, dução, menopausa e outros problemas que parecem afectar as mulheres de
aos níveis nacional, regional e local, que justificam, no futuro, um investi- uma forma diferente, como as doenças do aparelho circulatório, a SIDA, per-
mento analítico adequado. turbações nutricionais, a osteoporose, o cancro da mama, o abuso sexual, a vi-
olência doméstica e outras IST, não têm tido estas especificidades reconhecidas
explicitamente nos diversos programas de acção.
Referência explícita às necessidades e problemas de saúde específicos de
cada sexo Para as mulheres, são os tumores malignos a principal causa da mortalidade
Sob a orientação desta dimensão de análise (questões 5 a 10 da lista do observada, que se mantém estável, seguida das causas externas, que mostram
apêndice V), procuraremos analisar como são explicitadas as necessidades uma tendência decrescente.
e os problemas de saúde relativos a cada um dos sexos.
“Problemas de saúde que prevalecem nos homens”
Como vimos no estudo da dimensão de análise anterior, são numerosas as As causas externas permanecem a principal causa da mortalidade observada
referências às diferenças entre os indivíduos dos dois sexos no que respeita nos adultos do sexo masculino, no grupo etário dos 25 aos 44 anos, seguidas
a vários indicadores e metas de saúde. Neste ponto, trata-se, contudo, de das doenças infecciosas e parasitárias, ambas reflectindo uma tendência para
uma tentativa de aproximação ao modo como as mulheres/raparigas e os diminuir.
homens/rapazes são objecto de explicitação e destaque no documento
referido. De notar que nas doenças infecciosas e parasitárias se inclui a mortalidade
por SIDA, que, em 2001, representava 85,5% da mortalidade observada por
Importa-nos, sobretudo, questionar os modos e os contextos em que esta causa. Para o grupo etário dos 45-64 anos, a mortalidade entre os homens
surgem análises e definições de estratégias de acção que pretendam agir é também superior à verificada para as mulheres, apresentando uma tendên-
positivamente sobre a saúde de cada um dos sexos. cia decrescente.”
As necessidades de saúde de homens/rapazes e de mulheres/raparigas Constata-se o desejo de sublinhar, de modo sintético, os indicadores de
aparecem com alguma insistência no documento em análise. Ao percorrer saúde e de doença apresentados no documento, salientando dois padrões
o item “Estratégias Para Obter Mais Saúde Para Todos” (Ministério da Saúde. definidos em função do sexo. Enumeram-se as principais causas de morbi-
Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.25 e ss.), o qual se organiza, nomeada-
24 Adaptação gráfica nossa, nomeadamente o uso de sublinhado.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 90 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 91
mortalidade em cada sexo, reconhecendo as diferenças principais, o que No item relativo à juventude (op.cit., p. 30-1), é patente alguma preocu-
pode ser interpretado como uma vontade de não homogeneização do ser pação em caracterizar os principais problemas de saúde de raparigas e ra-
adulto e de uma provável sustentação das estratégias de intervenção. pazes, reconhecendo o que os distingue.
Todavia, a sinalização dos padrões de saúde e de doença de cada sexo não Assim, quanto às raparigas, “(…) verifica-se um aumento do sedentarismo,
é sujeita à complexificação analítica de género, ainda que deva ser subli- de desequilíbrios nutricionais” (…) e, quanto aos rapazes, constata-se a im-
nhada a reflexão crítica acerca do fraco investimento, em algumas áreas portância “(…) da morbilidade e mortalidade por acidentes (…)” (Ministério
específicas das mulheres, “nos diversos programas de acção”25. Em con- da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 30).
sonância com essa avaliação, no tópico ‘Orientações estratégicas e inter- Por outro lado, os “(…) comportamentos potencialmente aditivos, relaciona-
venções necessárias”, defende-se a seguinte ideia: dos, nomeadamente com o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas (…)” são di-
rectamente associados à categoria ‘jovens’, sem fazer referência à
“Deverão ser explicitadas nos programas e intervenções, particularmente ao incidência e prevalência distintas em cada sexo, as quais não são menos
nível dos cuidados de saúde primários e das acções dos serviços de saúde prezáveis (op.cit., p.202-3).
pública, especificidades na acção sensíveis às diferenças entre os géneros.26”
(Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.32). A “(…) maternidade e paternidade precoces, em particular, em adolescentes
com menos de dezassete anos (…)” são referidas como uma das áreas proble-
Tal facto pode ser encarado como um indício da adopção – ainda não sufi- máticas quanto a esta fase do ciclo de vida (op.cit., p.30). Neste domínio es-
ciente, parece-nos – da perspectiva de género no trabalho dos profissio- pecífico, assume-se que este é, potencialmente, um problema que envolve
nais com responsabilidades no estudo das problemáticas da saúde e na ambos os sexos, mas não se distingue como este afecta diferentemente ra-
definição das políticas do sector. pazes e raparigas. Posteriormente, um estudo nacional viria a pôr em evi-
dência a não sobreposição entre as idades de pais e mães adolescentes
No comentário ao excerto anterior, chamámos a atenção para a insuficiên- (Prazeres, Laranjeira, & Oliveira, 2005, p. 14-6), um aspecto que, na caracteri-
cia da aplicação do ‘olhar do género’ sobre os fenómenos da saúde e da zação do problema, na definição de estratégias e na adopção de medidas,
doença. Na globalidade deste item de definição de estratégias, a partir dos deve ser tido em conta, para que se possa considerar a sua máxima com-
principais problemas de saúde, deve ainda assinalar-se a inconstância, a in- plexidade e o género seja encarado e assumido como um determinante da
consistência ou mesmo a ausência absoluta desse olhar. saúde.
Esta afirmação é baseada na análise da orientação ideológica e da obser- A expressão ‘criança’ é sistematicamente utilizada no item “Crescer em Se-
vação dos problemas de saúde e da projecção de intervenções quanto às gurança” (op.cit., p.28 e ss), assumindo-a como uma categoria que homo-
restantes fases do ciclo de vida, como sejam, a infância, a juventude e a ve- geneíza rapazes e raparigas, anulando, portanto e em absoluto, todo o
lhice (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 28-32, 33-36). conhecimento acerca das diferenças estatística e epidemiologicamente
Vejamos com atenção alguns dos exemplos. observadas (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.54),
ainda que nenhum dos sexos seja assumido como norma27.
Desta forma, é lícito afirmar-se que a diferença entre as necessidades e Como referem Alexanderson e colegas (1998, p.154), as afirmações e as
problemas de saúde de raparigas e rapazes (até aos 10 anos) não é conside- mensagens acerca da saúde que são aparentemente neutras do ponto de
rada como pertinente. Como se opta pela construção de um grupo ho- vista do género têm, muitas vezes, como referente implícito um dos sexos,
mogéneo e desgenderizado, lesa-se, a nosso ver, a possibilidade de sobretudo o masculino. O excerto anterior pode ser interpretado nesse sen-
organizar estratégias que melhor respondam a problemas multidetermi- tido, uma vez que, no nosso entendimento, é o ser masculino que está a
nados como seja, por exemplo, a mortalidade por causas externas. ser, simbolicamente, visado.
Não deixa de ser interessante que a complexidade desse problema con- Por um lado, a ética do trabalho e a representação de ‘trabalhador’ tem man-
creto é, aparentemente, tida em conta, mas o que é afirmado pode ser dis- tido ao longo dos anos uma associação mais próxima dos homens do que
cutível do ponto de vista ideológico e conceptual: das mulheres (Cheng, 1996a; Collinson & Hearn, 2001; Hearn & Collinson,
1994); por outro, a investigação tem mostrado que os efeitos negativos da
“As causas externas envolvem questões sociais difíceis de prevenir entre as cri- aposentação na saúde em geral e na saúde mental são tendencialmente
anças e têm vindo a adquirir menor peso relativo na morbimortalidade re- mais severos para o sexo masculino (Clarke, Marshall, & Ballantyne, 2001;
conhecida neste grupo etário” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Lobeck, Thompson, & Shankland, 2005)30; por último, quanto a Portugal e
Saúde, 2004b, p.29). nesta fase da vida, o suicídio é manifestamente superior nos homens (Minis-
tério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.211).
Tratando-se, de facto, de um problema com raízes sociais potencialmente
complexas, julgamos que, mesmo assim, ou por isso, mereceria uma Na caracterização da situação actual dos cuidados de saúde a idosos, é de-
atenção maior ao nível da prevenção, até por se tratar de uma das princi- fendido o seguinte: “É indispensável uma maior atenção às particularidades
pais causas de morte nestas idades e por esta ser claramente marcada pelo em função do género (as mulheres vivem mais anos que os homens, mas o
efeito do género (op.cit., p.196). sexo feminino tem uma esperança de vida sem incapacidades mais reduzida
que o sexo masculino” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde,
A expressão ‘idosos’ tem, no contexto do documento em análise, a função 2004b, p.34).
de anulação das diferenças entre os sexos, o que é conseguido pela quase
ausência de atenção às necessidades e problemas particulares dos homens A nosso ver, não são apenas as diferenças na esperança de vida e nos
e das mulheres28. Atentemos no seguinte parágrafo, quanto a nós, signi- padrões de morbilidade de ambos os sexos o único argumento para a
ficativo: adopção da perspectiva de género na saúde, mas assinalamos esta referên-
cia como um indicador de alguma preocupação com o tema. Todavia, é pre-
“Sai-se do mercado de trabalho sem planeamento de actividades alternati- ciso notar que, neste excerto, o conceito de género é assumido como
vas e cai-se no isolamento físico e psicológico e na perda de relações sociais, sobreponível ao de sexo, não havendo, efectivamente, uma assumpção
surgindo a depressão e o suicídio.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da analítica de que, como já vimos, o primeiro carece. Por essa linha de pen-
Saúde, 2004b, p.33)29. samento, corre-se o sério risco de associar a causalidade dos fenómenos
de saúde apenas ao sexo (Kim & Nafziger, 2000).
28 Com uma excepção que referiremos adiante. 30 Ainda que a relação entre a vivência da aposentação e o impacte específico na saúde mental não seja linear,
29 Sublinhado nosso. dada a rede complexa de factores em interacção (e.g. Drentea, 2002).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 94 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 95
Representações, estereótipos e papéis sociais Deve assinalar-se, contudo, uma das raras excepções em que, no PNS, se
Nesta dimensão de análise, orientamo-nos pelas questões 11 a (ver afirma peremptoriamente a necessidade de proceder ao cruzamento con-
apêndice V), procurando no documento já citado a presença de represen- ceptual e estratégico entre a estratificação social e a saúde das mulheres:
tações sociais e estereótipos de género. Não assumimos, contudo, como
pressuposto que iríamos, forçosamente, identificar a expressão de repre- “Subsistem franjas da população com cuidados de saúde reprodutiva inadequa-
sentações sociais e estereótipos de género, uma vez que as questões de dos: em particular as mulheres com baixa escolaridade e fracos recursos económi-
partida precederam a análise e, como dissemos, advêm da revisão de lite- cos, onde permanece elevada a percentagem de gravidezes com vigilância
ratura e da inspiração de estudos semelhantes. inadequada.” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p.27)31.
Não esquecemos que a natureza e os objectivos do Plano Nacional de Trata-se de um domínio específico da saúde e, como se aprecia no excerto
Saúde podem determinar um fraco grau de explicitação das represen- anterior, diz respeito às mulheres que se reproduzem. Outro excerto, ainda,
tações, estereótipos e papéis sociais associados às raparigas/mulheres e mas com um carácter implicitamente mais abrangente, refere-se também
aos rapazes/homens. Ou seja, a forma como são expressas as prioridades ao domínio da saúde reprodutiva:
e as estratégias de saúde talvez não suscite facilmente o uso de discursos
claros e determinados do ponto de vista das concepções acerca dos sexos, “Continuar-se-ão a desenvolver acções dirigidas a públicos específicos, como, por
mas essa possibilidade existe. exemplo, adolescentes e os grupos mais vulneráveis – minorias pobres urbanas –
que apresentam piores indicadores na área da saúde reprodutiva” (op.cit., p.28).
Com essa condicionante, inviabilizando análises profundas e exaustivas,
assinalaremos em seguida alguns tópicos que têm sido objecto de outros Na nossa óptica, valeria a pena tomar estes exemplos como uma forma de
trabalhos e que, em nossa opinião, deverão merecer alguma reflexão futura. pensamento aplicável a outros domínios da saúde e, em simultâneo, à
análise da heterogeneidade dos indivíduos e das populações.
A “prioridade aos mais pobres” é, expressamente, uma das estratégias gerais
São feitas várias alusões às necessidades de saúde particulares das popu-
orientadoras deste Plano (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da
lações migrantes e à intenção de adoptar estratégias de acção a elas di-
Saúde, 2004a, p.39), mas a possível relação entre as desigualdades sociais
rigidas (e.g. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004a, p.43,
e a estratificação social com o género, enquanto determinante da saúde, é
2004b; p.39-40). Estas alusões não consideram, contudo, a possibilidade de
estabelecida de forma ténue.
efeitos do género nos níveis de saúde e nos padrões de doença.
Esta é, com efeito, uma relação raramente focalizada por investigadores
A orientação sexual é expressamente referida quando se alude, diversas
nacionais e tem sido pouco valorizada nas intervenções de saúde. Porém,
vezes, a pessoas de orientação homossexual (Ministério da Saúde. Di-
vários autores internacionais têm apelado à necessidade de a considerar
recção-Geral da Saúde, 2004b, p. 40, 42-3, 45- 6). Genericamente, no docu-
nos estudos sobre a construção social do género, uma vez que os contex-
mento em causa, a alusão a outras orientações sexuais é, portanto, residual,
tos de vida e o posicionamento social criam padrões, manifestações e
ficando implícitos os comportamentos heterossexuais na identificação de
processos distintos nessa construção (e.g. Bromley, 2000; Connell, 1987;
problemas de saúde ou projecção de intervenções32.
Knights & Willmott, 1986a).
Sublinhado nosso.
31
A título de exemplo, nos itens “Nascer com Saúde” (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 26),
32
É, justamente, no domínio dos comportamentos de risco face às IST que, a gundos como figuras fundamentais do processo de socialização e, logo,
nosso ver, conviria introduzir alguma reflexão acerca da ideologia difundida como agentes activos na prevenção da doença e adopção de comporta-
através do texto e da incoerência de algumas afirmações. Referimo-nos, em mentos promotores de saúde. Do ponto de vista linguístico, não há, por-
concreto à inclusão insistente dos ‘homossexuais’ como fazendo parte das tanto, espaço para questionar os papéis atribuídos a cada sexo, ainda que,
“(…) populações específicas, classicamente relacionadas com a aquisição de IST do ponto de vista simbólico, nos interroguemos se, efectivamente, esses
(…), a par de (…) migrantes, sem-abrigo, toxicodependentes, trabalhadores do termos englobam, em igualdade, homens e mulheres.
sexo, (…) adolescentes, jovens adultos e reclusos.” (op.cit., p.40).
É numa referência ao período pré-concepcional que surge claramente uma
Parece-nos que o conceito de ‘grupo de risco’ está subjacente à catego- orientação estratégica que preconiza o envolvimento masculino, através
rização das pessoas de orientação homossexual como uma ‘população es- do uso da expressão ‘casais’:
pecífica’ caracterizada por um risco acrescido de contrair uma IST. Para além “Aumentar-se-á o número de casais que efectua uma consulta médica no
desse conceito ter sido abandonado há vários anos, por se ter assumido período pré-concepcional com o objectivo de preparar a gravidez.” (op.cit., p.
que estão em causa os comportamentos e não os ‘grupos’, os dados epi- 27)35.
demiológicos com data aproximada à do PNS já destacavam os comporta-
mentos heterossexuais como ‘categoria de transmissão’ altamente É também no campo da saúde reprodutiva que se identifica um dos poucos
preocupante (Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmis- sinais de adopção de uma perspectiva ideológica que procura contrariar a
síveis, 2007, p.8)33. associação exclusiva dos direitos sexuais e reprodutivos ao universo femi-
nino, através da seguinte afirmação:
Quando se pretende questionar o envolvimento masculino em domínios “Assegurar-se-ão condições de exercício da autodeterminação sexual de
como a saúde infantil, regulação da fertilidade e prevenção das IST34, aceita- mulheres e homens, assente num processo educativo integrado e na progres-
-se como pressuposto que estes tendem a ser associados às mulheres, pelo siva adequação dos serviços prestadores de cuidados.” (op.cit., p. 28)35.
menos em termos das representações e das práticas dominantes na so-
ciedade portuguesa (Marques, 2002; Nodin, 2001; Roque, 2001). Ou seja, a O conceito de família é usado inúmeras vezes ao longo do PNS mas, como
possibilidade desses domínios da saúde não serem encarados como res- não é clarificada a diversidade dos seus significados, julgamos não ser pos-
ponsabilidade exclusiva (ou quase total) das mulheres, mas sim como ne- sível avaliar que tipo de família é considerado. Do ponto de vista gráfico,
cessitando de partilha com os homens, sugerirá que, no documento em porém, o documento é ilustrado, no interior e no exterior, por um agrupa-
estudo, se deseja contrariar a acentuação das diferenças e a manutenção mento de quatro figuras humanas, um homem, uma mulher, um rapaz e
das desigualdades entre os sexos. uma rapariga, uma forma vulgar de representação da família nuclear. Esta
ilustração pode ser interpretada em sentido diverso, mas parece-nos im-
Os termos ‘família’ e ‘pais’ surgem intimamente associados ao domínio da portante que seja dada atenção aos aspectos simbólicos, pois estes são di-
saúde infantil e juvenil (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, fusores de ideologias, neste caso, acerca do género.
2004b, p. 28-9; 32), realçando a primeira como setting prioritário e os se-
O que também é reconhecido no PNS, quando se realça que a (…) população heterossexual (actualmente o princi-
33
35 Sublinhado nosso.
pal motor da epidemiologia desta infecção [VIH]” (…) (Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, 2004b, p. 45-6).
Uma das questões incluídas nesta dimensão de análise (ver apêndice V).
34
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 98 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 99
• A resolução deste tipo de diferenças na saúde (frequentemente evitáveis tação dos traços biológicos, como também as características biológicas
e, por isso, injustas, consubstanciando iniquidades) pode, e deve, ser equa- ligadas ao sexo podem, em alguns casos, gerar ou amplificar diferenças
cionado também quando se estratificam as populações por sexo, onde de género em saúde. Também por isso, há que ter melhor entendimento
um numeroso contingente de diferenças, quer biológicas, quer social- e ponderação acerca de quando, e em que medida, o género, a biologia,
mente construídas, necessita de ser melhor investigado, valorizado e pon- ambos, ou nenhuma, condicionam a saúde de homens e mulheres
derado nas decisões políticas, nas medidas de saúde pública e nos (Krieger, 2003).
procedimentos clínicos tomados. Trata-se de uma verdadeira questão de
direitos humanos e, por isso, de justiça social (Marmot, 2005). • Tal complexidade constitui uma das razões essenciais para que o género,
mediador da acção da generalidade das outras determinantes da saúde,
• Assim, o desafio é, em primeiro lugar, o de assegurar igualdade de opor- simultaneamente subtil e poderoso, seja devidamente ponderado nas in-
tunidades na procura e no usufruto dos recursos e dispositivos que ambos tervenções, neste domínio.
os grupos necessitam para a realização dos respectivos potenciais de
saúde (Doyal, 2000). • A reflexão sob uma perspectiva de género, enquanto princípio organi-
zador e ferramenta que permite aprofundar a concepção e análise da in-
• Para tal, torna-se necessário, não somente identificar, por si sós, as ne- formação, contribui para clarificar as diferenças e semelhanças entre
cessidades próprias de cada um dos dois grupos (e as comuns), mas tam- sexos no que respeita a padrões relacionais, realidades sociais, expecta-
bém o modo através do qual as formas correntes de organização social tivas de vida e circunstâncias económicas. Permite identificar melhor os
colocam constrangimentos diferentes a homens e mulheres, no que res- mecanismos pelos quais estas variáveis condicionam a saúde de homens
peita à satisfação das mesmas (Doyal, 2000). e mulheres, o acesso aos sistemas de saúde, o usufruto de cuidados e as
interacções com os profissionais (Health Canada, 2000).
• Assim, homens e mulheres beneficiarão de novas abordagens das
questões da saúde baseadas no reconhecimento das influências de sexo • O género, enquanto determinante da saúde, intervêm na vida de mulhe-
e de género nos factores sociais, económicos, culturais, geográficos e res e homens de forma diferente, condicionando: a exposição a factores
comportamentais que marcam a saúde dos indivíduos (Pinn, 2003). de risco; o acesso à informação e o entendimento sobre a prevenção, o
controlo e a vivências das doenças; a experiência subjectiva da doença e
• Mas, embora se verifique que os indivíduos com estatuto socio- o significado social da mesma; as atitudes pessoais em relação à preser-
económico menos privilegiado detêm, em média, níveis de saúde mais vação da própria saúde e à dos outros elementos da família; os padrões
precários, deve evitar-se uma leitura simplista que atribua a tal facto a de utilização dos serviços e a percepção sobre a qualidade dos cuidados;
justificação única para os indicadores de saúde menos favoráveis que o processo de prestação de cuidados; a efectividade e a qualidade de res-
mulheres e homens possam apresentar. Por outro lado, se a assimetria posta às necessidades específicas dos utilizadores, de ambos os sexos
entre sexos face ao eixo do poder redunda, em termos genéricos, em (Women’s Health Association of Victoria, 2001).
benefício dos homens, não deixa de ser verdade que, no campo específico
da saúde, essa vantagem nem sempre se manifesta. • Para desenvolver o planeamento e as práticas em saúde mais adequadas
é necessário, cada vez mais, a nível das tomadas de decisão e dos proces-
• Não só as relações de género podem influenciar a expressão e interpre- sos, ter em conta as desigualdades entre homens e mulheres e as ini-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 104 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 105
quidades de género. Para tal, estabelecer um perfil de saúde das popu- tudo, os educadores médicos podem tomar em mãos uma muito
lações que assente na desagregação por sexo dos dados epidemiológicos necessária melhoria curricular em matéria de saúde, sexo e género (Zelek,
encontrados, sempre que possível e apropriada, constitui um instru- Philips & Lefebvre, 1997).
mento de trabalho incontornável.
• Para incrementar uma perspectiva de género na educação médica
• É colocando questões sobre os efeitos, previsíveis ou constatados, de uma afigura-se necessário que os professores, de um sexo e do outro, par-
política, um programa, um serviço, um recurso ou uma intervenção nos ticipem no processo e assumam-no como importante. Para facilitá-lo, e
homens e nas mulheres que a resposta adequada às necessidades de para cativar os docentes para este envolvimento, há que motivar, em par-
saúde em ambos os sexos poderá ser acautelada. ticular, os do sexo masculino (Risberg, 2003).
• Uma abordagem baseada no género é um instrumento que contribui, Deseja-se assim, que, o presente documento possa constituir um estímulo
para conhecer melhor a saúde de homens e mulheres e para tomadas de para que o estudo mais aprofundado das semelhanças e diferenças na
decisão “baseadas na evidência”, assentes numa perspectiva de análise saúde de mulheres e homens, mediante uma perspectiva crítica de género,
mais ampla e interdisciplinar (Women’s Health Council, 2007). O con- reverta em benefício de ambos os sexos, com a obtenção de mais ganhos
ceito interdisciplinar de medicina do género tem que ser encarado em saúde. É para isso que aponta a Organização Mundial de Saúde, ao
através da integração de estudos sociais e culturais na investigação e aprovar, no decurso da 57.ª Sessão do Comité Regional para a Europa, ocorrida
prática médica (Kampf, 2006). em Setembro último, uma resolução sobre “Integrating gender analysis and
actions into the work of WHO: draft strategy”, na qual se exorta os Estados
• Constatada uma aparente anomia dos profissionais para as questões de Membros a:
sexo e género na saúde, conforme os estudos atrás relatados sugerem, há
que reforçar a sensibilização e a preparação técnica em tais matérias, nas • Integrarem considerandos sobre género no planeamento estratégico e
diferentes carreiras, nomeadamente, nas da Medicina e da Enfermagem. operacional, assim como no orçamento das acções;
• Contemplar as questões de género nas políticas de saúde;
• Para que tal seja viável, há que estimular nos curricula académicos e • Assegurar que uma perspectiva de igualdade de género está presente nos
profissionais o desenvolvimento de abordagens sensíveis ao género, nos serviços prestadores de cuidados de saúde, incluindo os destinados a ado-
respectivos conteúdos, linguagens e processos. É necessário assegurar lescentes e jovens;
que, neles, mulheres e homens se encontram igualmente representados, • Colectar e analisar dados informativos em saúde desagregados por sexo;
quando apropriado, que os homens não são retratados como o protótipo • Concretizar progressos no sentido da igualdade de género no sector da
da normalidade (e as mulheres como desviantes em relação à norma), Saúde (OMS, 2007).
que a linguagem usada é inclusiva para ambos os sexos e que a saúde
das mulheres não se restringe à esfera reprodutiva. É nesse mesmo sentido que, na monografia Health in Portugal 2007, se
afirma, no sumário executivo, que “(…) as gender is now recognized as a de-
• Através da eliminação ou, pelo menos, da tomada em consideração das terminant factor and a priority in the health agendas, the challenge turn out
subtis estereotipias, frequentemente não intencionais, empregues nos to be to develop innovative strategies to endorse gender mainstreaming in
suportes didácticos (textos e ilustrações) e nos exemplos clínicos para es- health programmes (…)” (DGS, 2007).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 106 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 107
Referências
Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: Theory of gendered organizations. Gender & Society, 4,
139-158.
Acker, J. (1998). The future of ‘gender and organizations’: Connections and boundaries. Gender,
Work and Organization, 5 (4), 195-206.
Acker, J. (2006). Inequality regimes. Gender, class, and race in organizations. Gender & Society, 20
(4), 411-464.
Alexanderson, K., Wingren, G., & Rosdahl, I. (1998). Gender analysis of medical textbooks on der-
matology, epidemiology, occupational medicine and public health. Education for Health: Change
in Learning & Practice, 11 (2), 151-163.
Amâncio, L. (1993a). Níveis de análise no estudo da identidade social. Análise Psicológica, XI, 213-221.
Amâncio, L. (1993b). Stereotypes as ideologies, the case of gender categories. Aprendizage - Re-
vista de Psicologia Social, 8 (2), 163-170.
Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino. A construção social da diferença. Porto: Edições Afronta-
mento.
Amâncio, L. (1995). Social identity and social change. The case of gender categories. In L. Amân-
cio & C. Nogueira (Eds.), Gender, management and science. Braga: Universidade do Minho, Insti-
tuto de Educação e Psicologia.
Amâncio, L. (2003c). O género nos discursos das ciências sociais. Análise Social, xxxviii (168), 687-714.
Amâncio, L. (2004). Aprender a ser homem. Construindo masculinidades. Lisboa: Livros Horizonte.
Bandura, B., & Kickbusch, I. (1991). Health promotion research: Towards a new social epidemiology.
Copenhaga: WHO European series n.º 37.
Barreto, M. L. (1998). Por uma epidemiologia da saúde colectiva. Revista Brasileira de Epidemiolo-
gia, 1 (2), 104-122.
Bedinghaus, J., Leshan, L., & Diehr, S. (2001). Coronary artery disease prevention: What's different
for women. American Family Physician, 63 (7), 1393-1400.
Bennett, J. C. (1993). Inclusion of women in clinical trials: Policies for population subgroups. The
New England Journal of Medicine, 329 (4), 288-292.
Berkman, L. F., & Kawachi, I. (2000). Social epidemiology. Nova Iorque: Oxford University Press.
Best, A., Stokols, D., Green, L. W., Leischow, S., Holmes, B., & Bucholz, K. (2003). An integrative frame-
work for community partnering to translate theory into effective health promotion strategy.
American Journal of Health Promotion, 18 (2), 168-176.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 108 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 109
Blackless, M. et al. (2000). How sexually domorphic are we? Review and Synthesis. American Jour- Direcção-Geral da Saúde (2006). Risco de morrer em Portugal 2004, Volume I. Lisboa: Direcção-
nal of Human Biology, 12, pp. 151-166. Geral da Saúde.
Braveman, P. (2006). Health Disparities and Health Equity: Concepts and Mesurement. Annu Direcção-Geral da Saúde (2006). Risco de morrer em Portugal 2004, Volume II. Lisboa: Direcção-
Rev.Public Health, 27, 167-194. Geral da Saúde.
Braveman, P., & Gruskin, S. (2003). Poverty, equity, human rights and health: Bulletin of the World Dong, W., Ben-Shlomo, Y. et al. (1998). Gender differences in accessing cardiac surgery across Eng-
Health Organization, 81 (7), pp. 539-545. land: a cross-sectional analysis of the health care service for England, Soc Sci Med, 47, 11, 1773-
1780.
Bromley, R. (2000). The theme that dare not speak its name. In S. R. Munt (Ed.), Cultural studies
and working class: Subject to change (pp. 51-68). Londres: Cassell. Doyal, L. (2000). Gender equity in health: debates and dilemmas. Social Science and Medicine, 51,
931-939.
Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge.
Doyal, L. (2001). Sex, gender, and health: The need for a new approach. British Medical Journal,
Cameron, C., & Bernardes, J. (1998). Gender and disadvantage in health: Men's health for a 323, 1061-1063.
change. Sociology of Health and Illness, 20 (5), 673-693.
Doyal, L. (2002). Putting gender into health and globalisation debates: New perspectives and old
Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis (2007). Infecção VIH/SIDA. A challenges. Third World Quarterly, 23 (2), 233-250.
situação em portugal. Lisboa: Ministério da Saúde. Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge.
Doyal, L. (2003). Sex and gender: The challenges for epidemiologists. International Journal of
Charlton, B. (1997). Epidemiology as a toolkit for clinical scientists. Epidemiology, 8 (4), 461-463. Health Services, 33 (3), 569-579.
Cheng, C. (1996a). Introduction. In C. Cheng (Ed.), Masculinities in organizations (pp. i-xxii). Thou- Doyal, L. (2004). Gender and the 10/90 gap in health research. Bulletin of the World Health Or-
sand Oaks, CA: Sage Publications. ganization, 82 (3), 162.
Clarke, P. J., Marshall, V. W., & Ballantyne, P. J. (2001). Instability in the retirement transition. Re- Doyal, L. (2005). Gender, health, and the Millennium Development Goals: a briefing document and
search on Aging, 23 (4), 379-409. resource guide. Global Forum for Health Research.
Cline, B. L. (1995). The slow fix: Communities, research, and disease control. American Journal of Doyle, S., Kelly-Schwartz, A., Schlossberg, M., & Stockard, J. (2006). Active community environ-
Tropical Medicine and Hygiene, 52, 1-7. ments and health. Journal of American Planning Association, 72 (1), 19-31.
Collinson, D., & Hearn, J. (2001). Naming men as men: Implications for work, organization and Drentea, P. (2002). Retirement and mental health. Journal of Aging and Health, 14 (2), 167-194.
management. In S. M. Whitehead & F. J. Barrett (Eds.), The masculinities reader (pp. 144-169). Cam-
bridge: Polity Press. Dunn, F. L., & Janes, C. R. (1986). Introduction: Medical anthropology and epidemiology. In C. R.
Janes, R. Stall & S. M. Gifford (Eds.), Anthropology and epidemiology. Interdisciplinary approaches
Connell, R. W. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Standford: Stand- to the study of health and disease (pp. 3-34). Dordrecht, Holanda: D. Reidel.
ford University Press.
Elson, D. (1998). Integrating gender issues into national budgetary policies and procedures: Some
Connell, R. W. (2002). Gender. Cambridge: Polity Press. policy options. Journal of International Development, 10 (7), 929-942.
Connell, R. W., Hearn, J., & Kimmel, M. S. (2005). Introduction. In M. S. Kimmel, J. Hearn & R. W. European Partners for Equity in Health (2006). Position Paper on “Tackling Health Inequalities”.
Connell (Eds.), Handbook of studies on men and masculinities (pp. 1-12). Thousand Oaks, Califor- (www.eurohealthnet.org).
nia: Sage Publications.
Ewing, R., Schmidt, T., Killingsworth, R., Zlot, A., & Raudenbush, S. (2003). Relationship between
Cotton, P. (1992). Women's health initiative leads way as research begins it fill gender gaps. JAMA, urban sprwal and physical activity, obesity, and morbidity. American Journal of Health Promo-
267 (4), 469-470. tion, 18 (1), 47-57.
Courtenay, W. H. (2000). Behavioural factors associated with disease, injury and death among Fausto-Sterling, A. (1993). The five sexes: why male and female are not enough. The Sciences, 33
men: Evidence and implications for prevention. Journal of Men's Studies, 9, 81-142. (2), pp. 20-25.
Danielsson, U., & Johansson, E. E. (2005). Beyond weeping and crying: A gender analysis of ex- Fausto-Sterling, A. (1999). Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. New
pression of depression. Scandinavian Journal of Primary Care, 23, 171-177. York: Basic Books.
Davidson, K. W., Trudeau, K. J., van Roosmalen, E., Stewart, M., & Kirkland, S. (2006). Gender as a health Fausto-Sterling, A. (2000). Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality.
determinant and implications for health education. Health Education & Behavior, 33 (6), 731-743. New York: Basic Books.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 110 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 111
Fernandes, A. A., Perelman, J., & Mateus, C. (2007). Health and Health Care in Portugal: Does Gen- Hearn, J., & Collinson, D. L. (1994). Theorizing unities and differences between men and between
der Matter? Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública. masculinities. In H. Brod & M. Kaufman (Eds.), Theorizing masculinities (pp. 97- 118). Thousand
Oaks: Sage Publications.
Frohlich, K. L., & Potvin, L. (1999). Health promotion through the lense of population health: To-
ward a salutogenic setting. Cirtical Public Health, 9, 211-222. Hertzman, C., Frank, J., & Evans, R. G. (1993). Heterogeneities in health status and the determinants
of population health. In R. G. Evans, M. L. Barer & T. R. Marmor (Eds.), Why are some people healthy and
Gale, E. A., & Gillespie, K. M. (2001). Diabetes and gender. Diabetologia, 44 (1), 3-15. others not. The determinants of health in populations (pp. 67-92). Nova Iorque: Aldine de Gruyter.
Gandhi, M., Aweeka, F., Greenblatt, R. M., & Blaschke, T. (2004). Sex Differences in Pharmacoki- Holland, C., & Hill, R. (2007). The effect of age, gender and driver status on pedestrians' inten-
netics and pharmacodynamics. Annual Review of Pharmacology and Toxicology, 44, 499-523. tions to cross the road in risky situations. Accident Analysis & Prevention, 39, 224- 237.
Garlick, S. (2003). What is a man? Heterosexuality and the technology if masculinity. Men & Mas- Holter, O. G. (2005). Social theories for researching men and masculinities. In M. S. Kimmel, J.
culinities, 6 (2), 156-172. Hearn & R. W. Connell (Eds.), Handbook of studies on men and masculinities (pp. 15-34). Thousand
Gideon, J. (2006). Integrating gender interests into health policy. Development and Change, 37 (2), Oaks, California: Sage Publications.
329-352. Hu, G., Jousilahti, P., Qiao, Q., Peltonen, M., Katoh, S., & Tuomilehto, J. (2005). The genderspecific im-
Gjerberg, E. (2001). Medical women – towards full integration? An analysis of the speciality pact of diabetes and myocardial infarction at baseline and during follow-up on mortality from
choices made by two cohorts of Norwegian doctors, Soc Sci Med, 52, 331-343. all causes and coronary heart diseases. J Am Coll Cardiol, 45 (9), 1413-1418.
Goldacre, M. J., Davidson, J. M. et al. (1999). Career choices at the end of the pre-registration year Huxley, R., Barzi, F., & Woodward, M. (2006). Excess risk of fatal coronary heart disease associated
of doctors who graduate in the United Kingdom in 1996, Medic Edu, 33, 12, 882-889. with diabetes in men and women: meta-analysis of 37 prospective cohort studies. BMJ, 332, 73-78.
Goldenberg, P., Schenkman, S., & Franco, L. J. (2003). Prevalência de diabetes mellitus: diferenças III Plano Nacional para a Igualdade – Cidadania e Género (2007-2010). Resolução do Conselho de
de género e igualdade entre sexos. Rev. Bras. Epidemiol., 6 (1). Ministros n.º 82/2007, de 22 de Junho (DR, I série, n.º 119).
Graham, H. (2007). Unequal Lives: Health and Socioeconomic Inequalities. Open University Press. IMAGE (1986-2005). Alceste, version 4.7. Analyse de Données Textuelles. Toulouse: CNRS.
(http://www.mcgraw-hill.co.uk/html/0335213693.html). Inhorn, M. C. (1995). Medical anthropology and epidemiology: Divergences or convergences? So-
Gregg, E. W., Gu, Q., Cheng, Y. J., Narayan, K. M. V., & Cowie, C. C. (2007). Mortality trends in men cial Science and Medicine, 40, 285-290.
and women with diabetes, 1971 to 2000. Annuals of Internal Medicine, 147 (3), 149-156. Inhorn, M. C., & Janes, C. R. (2007). The behavioural research agenda in global health: An advo-
Hafner-Burton, E., & Pollack, M. (2002). Mainstreaming gender in global governance. European cate's legacy. Global Public Health, 2 (3), 294-312.
Journal of International Relations, 8, 339-373. Inhorn, M. C., & Whittle, K. L. (2001). Feminism meets the 'new' epidemiologies: Toward an ap-
Hamberg, K., & Johansson, E. E. (2006). Medical students’ attitudes to gender issues in the role and praisal of antifeminism biases in epidemiological research on women's health. Social Science
career of physicians: a qualitative study conducted in Sweden. Medical Teacher, 28 (7), 635-641. Medicine, 53, 553-567.
Hamberg, K., Risberg, G. et al. (2002). Gender bias in physicians’ management of neck pain: a Instituto Nacional de Estatística (vários anos). Estatísticas da Saúde. Lisboa: INE
study of the answers in a Swedish national examination, J Wom Health & Gender-Based Medicine, Irwin, A., & Scali, E. (2007). Action on the social determinants of health: A historical perspective.
11 (7), 653-666. Global Public Health, 2 (3), 235-256.
Hamberg, K., Risberg, G., Johansson, E. E., & Westman, G. (2002). Gender bias in physicians’ man- Jadad, A. R., & Meryn, S. (2005). The future of men's health: Trends and opportunities to watch in
agement of neck pain: a study of the answers in a Swedish national examination. J Women’s the age of the internet. The Journal of Men's Health & Gender, 2 (2), 124-128.
Health Gend Based Med., 11 (7), 653-666.
Jochmann, N., Stangl, K., Garbe, E., Baumann, G., & Stangl, V. (2005). Female-specific aspects in the
Harrison, W. C. (2005). The shadow and the substance. The sex/gender debate. In K. Davis, M. Evans pharmacotherapy of chronic cardiovascular diseases. European Heart Journal, 26, 1585-1595.
& J. Lorber (Eds.), Handbook of gender women's studies (pp. 35-52). Londres: Sage Publications.
Juutilainen, A., Kortelainen, S., Lehto, S., Rönnemaa, T., Pyörälä, K., & Laakso, M. (2004). Gender dif-
Health and Consumer Protection (2003). The health status of the European Union – narrowing ferences in the impact of type 2 diabetes on coronary heart disease risk. Diabetes Care, 27, 2898-
the health gap. Luxembourg: European Commission. 2904. (http://care.diabetesjournals.org/cgi/content/abstract/27/12/2898).
Health Canada. (2000). Health canada's gender-based analysis policy. Ottawa: Health Canada. Kabeer, N. (1994). Reversed realities. Gender hierarchies in development thought. Londres: Verso.
Health Canada. (2003). Exploring concepts of gender and health. Ottawa: Women's Health Bu- Kampf, A. (2006). Report on the conference on “Men, Women, and Medicine: a new view of the
reau-Health Canada. biology of sex/gender differences and aging” held in Berlin, 24-26th February 2006. Philosophy,
Ethics, and Humanities in Medicine, 1, 11. (http://www.peh-med.com/content/1/1/11).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 112 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 113
Kashuba, A. D. M. & Nafziger, A. N. (1998). Physiological Changes During The Menstrual Cycle and Low, M. D., Low, B. J., & Huynh, P. T. (2005). Can education policy be health policy? Implications of
Their Effects on the Pharmacokinetics and Pharmacodynamics of Drugs. Clinical Pharmacoki- research on the social determinants of health. Journal of Health Politics, 30 (6), 1131-1162.
netics, 34 (3), pp. 203-218.
Lupton, D. (1995). The imperative of health. Public health and the regulated body. Londres: Sage
Kawachi, I., Kenedy, B. P., & Glass, R. (1999). Social capital and self-rated health: A contextual analy- Publishers.
sis. American Journal of Public Health, 89 (8), 1187-1193.
Lynch, J., Davey, S., Harper, S., & Hillemeir, M. (2004). Is income inequality a determinant of pop-
Kim, J. S., & Nafziger, A. N. (2000). Is ir sex or is gender? Clinical Pharmacology & Therapeutics, 68 ulation health? Part 2. U.S. National and regional trends in income inequality. The Milbank Quar-
(1), 1-3. terly, 82 (2), 355-400.
Knights, D., & Willmott, H. (1986a). Introduction. In D. Knights & H. Willmott (Eds.), Gender and the MacIntyre, S., Ellaway, A., & Cummins, S. (2002). Place effects on health: How can we conceptu-
labour process (pp. 1-13). Aldershot: Gower. alize, operationalise and measure them. Social Science and Medicine, 55, 125-139.
Krieger, N. (1990). Racial and gender discrimination: Risk factors for high blood pressure? Social Mackenbach, J. P. (2005). Genetics and health inequalities: hypotheses and controversies. Journal
Science and Medicine, 30 (12), 1273-1281. of Epidemiology and Community Health, 59, 268-273.
Krieger, N. (1994). Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Social Sci- Mackenbach, J.P. (2006). Health Inequalities: Europe in Profile. Roterdam: Erasmus MC.
ence Medicine, 39 (7), 887-903.
Mark, D. B. (2000). Sex bias in cardiovascular care. Should women be treated more like men?
Krieger, N. (2003). Genders, sexes, and health: what are the connections – and why does it mat- JAMA, 283, 5, 659-661.
ter? Int J of Epidemiol, 32, 652-657.
Marmot, M. (1986). Social inequalities in mortality: The social environment. In R. Wilkinson (Ed.),
Krieger, N., & Fee, E. (1994). Man made medicine and women's health: The biopolitics of sex/gen- Class and health: Research and longitudinal data (pp. 21-33). Londres: Tavistock.
der and race/ethnicity. International Journal of Health Services, 24 (2), 265-283.
Marmot, M. (2005). Social determinants of health inequalities. Lancet, 365, 1099-1104.
Krieger, N., & Zierler, S. (1995). Accounting for the health of women. Current Issues in Public Health,
1, 251-256. Marmot, M. (2007). Achieving health equity: from root causes to fair outcomes. Lancet, 370, 1153-
1163.
Krieger, N., & Zierler, S. (1996). What explains the public's health? A call for epidemiologic theory.
Epidemiology, 7 (1), 107-109. Marmot, M., & Wilkinson, R. (2003). Social determinants of health: The solid facts (2ª ed.). Com-
penhaga: WHO.
Krieger, N., Rowley, D., Hermann, A. A., Avery, B., & Philips, M. T. (1993). Racism, sexism, and social
class: Implications for studies of health, disease, and well being. American Journal of Preventive Marques, A. M. (2002). Problemas e necessidades de saúde sexual e reprodutiva em bairros de ar-
Medicine, 9 (supl.), 82-122. rendamento público. Sexualidade e Planeamento Familiar, 29/30, 7-16.
Laqueur, T. (1992). La fabrique du sexe. Essai sur le corps et le genre en occident. Paris: Gallimard. Marques, A. M. (2007). Profissões masculinas. Discursos e resistências. Unpublished Tese de
doutoramento, ISCTE, Lisboa.
Laranjeira, A. R., & Prazeres, V. (2005). Mortalidade em idades jovens - relatório (1992-2003). Lisboa:
Direcção-Geral da Saúde. Marques, A. M., & Amâncio, L. (2004). Medicina e masculinidade: Da predominância numérica à
dominação simbólica. In J. Vala, M. Garrido & P. Alcobia (Eds.), Percursos da investigação em psi-
Lawson, J., & Floyd, J. (1996). The future of epidemiology: A humanist response. American Journal cologia social e organizacional (pp. 201-220). Lisboa: Edições Colibri.
of Public Health, 86 (7), 1029.
McCollum, M., Hansen, L. B., Lu, L., & Sullivan, P. W. (2005). Gender differences in diabetes melli-
Le Breton, D. (2007). Compreender a dor. Cruz Quebrada: Estrela Polar. tus and effects on self-care activity. Gender Medicine, 2 (4), 246-254.
Legato, M. J. (2006). But What About Men? Gender Medicine, 3 (1), 2-4. McGinnis, J. M. (2006). Can public health and medicine partner in the public interest? Health Af-
fairs, 25 (4), 1044-1052.
Link, B. G., & Phelan, J. C. (1996). Editorial: Understanding sociodemographic differences in health
- the role of fundamental social causes. American Journal of Public Health, 86, 471-473. Meibohm, B., Beierle, I., & Derendorf, H. (2002). How Important are Gender Differences in Phar-
macokinetics? Clinical Pharmacokinetics, 41 (5), 329-342.
Link, B., & Phelan, J. C. (1995). Social conditions as fundamental causes of disease. Journal of Health
Social Behavior, (extra), 80-94. Mendelsohn, D. K., Nieman, L. Z., Isaacs, K., Lee, S., & Levison, S. P. (1994). Sex and Gender Bias in
Anatomy and Physical Diagnosis Text Illustrations. JAMA, 272 (16), 1267-1270.
Lobeck, M., Thompson, A. R., & Shankland, M. C. (2005). The experience of stroke for men in re-
tirement transition. Qualitative Health Research, 15 (8), 1022-1036. Miaskowski, C. (2004). Gender differences in pain, fatigue, and depression in patients with can-
cer. Journal of the National Cancer Institute Monographs, 32, 139-143.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 114 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 115
Migeon, B. R. (2007). Why females are mosaics, X-chromosome inactivation, and sex differences Pinn, V. W. (2003). Sex and gender factors in medical studies – implications for health and clini-
in disease. Gender Medicine, 4 (2), 97-105. cal practice. JAMA, 289 (4), 397-400.
Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde. (2004a). Plano nacional de saúde 2004-2010: Mais Porter, D. (1999). Health, civilization and the state. A history of public health from ancient to mo-
saúde para todos (Vol. I - Prioridades). Lisboa: Direcção-Geral da Saúde. dern times. Londres: Routledge.
Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde. (2004b). Plano nacional de saúde 2004-2010: Mais Potvin, L., Gendron, S., Bilodeau, A., & Chabot, P. (2005). Integragting social theory into public
saúde para todos (Vol. II - Orientações Estratégicas). Lisboa: Direcção-Geral da Saúde. health practice. American Journal of Public Health, 95 (4), 591-595.
Mosca, L. et al (2004). Evidence-based guidelines for cardiovascular disease prevention in women. Prazeres, V. (2003). Saúde juvenil no masculino. Género e saúde sexual e reprodutiva. Lisboa:
J Am Coll Cardiol, 43, 900-921. Direcção-Geral da Saúde.
Moynihan, C. (1998). Theories of masculinity. BMJ, 317, 1072-1075. Prazeres, V., Laranjeira, A. R., & Oliveira, V. (2005). Saúde dos jovens em Portugal: Elementos de
caracterização. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde.
National Institutes of Health Osteoporosis and Related Bone Diseases (2006). Osteoporosis in
men. USA: Department of Health and Human Services. Regional Committee for Europe (2007). Matters arising out of resolutions and decisions of the
World Health Assembly and the Executive Board. World Health Organization (EUR/RC57/5).
Naugler, W. E., Sakurai, T., Kim, S., Maeda, S., Kim, K., Elsharkawy, A. M., & Karin, M. (2007). Gender
disparity in liver cancer due to sex differences in MyD88-dependent IL-6 production. Science, 317, Reinert, M. (1986). Un logiciel d’analyse lexicale: Alceste, Les Cahiers de l’Analyse des Données,
121-124. Vol. XI, nº 4, 471-84.
Needleman, C. (1997). Applied epidemiology and environmental health: Emerging controversies. Rhudy, J. L., & Williams, A. E. (2005). Gender differences in pain: do emotions play a role? Gender
American Journal of Infection Control, 25 (3), 262-274. Medicine, 2 (4), 208-226.
Nodin, N. (2001). Os jovens portugueses e a sexualidade em finais do século XX. Lisboa: APF. Risberg, G., Hamberg, K., & Johansson, E. E. (2006). Gender perspective in medicine: a vital part
of medical scientific rationality. A useful model for comprehending structures and hierarchies
Nunes, E. (2006). Consumo de Tabaco. Efeitos na Saúde. Rev Port Clin Geral, 22, 225-244. within medical science. BMC Medicine, 4: 20. (http://www.biomedcentral.com/1741-7015/4/20)
Nunes, E. (2007). Tabaco e Saúde. In Editorial do Ministério da Educação, Consumo de Substâncias Risberg, G., Johansson, E. E., Westman, G., & Hamberg, K. (2003). Gender in medicine - an issue for
Psicoactivas e Prevenção em Meio Escolar (pp. 19-37). Lisboa: Ministério da Educação. women only? A survey of physician teachers' gender attitudes. International Journal for Equity in
Nutbeam, D. (2004). Getting evidence into policy and practice to address health inequalities. Health, 2, 10-17.
Health Promotion International, 19, 137-140. Risberg, G., Johansson, E. E., Westman, G., & Hamberg, K. (2003). Gender in medicine – an issue
Nye, R. A. (2005). Locating masculinity: Some recent work on men. Journal of Women in Culture for women only? A survey of physician teachers’ gender attitudes. International Journal for
and Society, 30 (3), 1937-1962. Equity in Health, 2 (10).
Oppenheimer, G. M. (1995). Comment: Epidemiology and the liberal arts - toward a new para- Riska, E. (1993). Introduction. In E. Riska & K. Wegar (Eds.), Gender, work and medicine. Women and
dign? American Journal of Public Health, 85, 918-920. the medical division of labour (pp. 1-12). Londres: Sage Publications.
Pan American Health Organization. Gender Equity in Health. New York: Fact Sheet of the Program Riska, E. (2003). Gendering the medicalization thesis. Advances in Gender Research, 7, 59-87.
in Women, Health and Development. (www.paho.org/english/hdp/hdw/GEHFactSheet.pdf) Roger, V. L., Farkouh, M. E. et al. (2000). Sex differences in evaluation and outcome of unstable
Pearce, N. (1996). Traditional epidemiology, modern epidemiology, and public health. American angina, JAMA, 283, 5, 646-652.
Journal of Public Health, 86, 678-683. Roque, O. (2001). Semiótica da cegonha: Jovens, sexualidade e risco de gravidez não desejada. Lisboa:
Philips, S. P. (2005). Defining and measuring gender: A social determinant of health whose time APF.
has come. Int J Equity Health, 4 (11). (http://www.equityhealthj.com/content/4/1/11). Rosser, S. V. (1993). Female friendly science: Including women curricular content and pedagogy on
Phillips, S. P. (1997). Problem-based learning in medicine: new curriculum, old stereotypes. Soc. science. Journal of General Education, 42 (3), 191-220.
Sci. Med., 45 (3), 497-499. Roter, D. L., Hall, J. A., & Aoki, Y. (2002). Physician gender effects in medical communication. A
Phillips, S. P. (2006). Risky business: explaining the gender gap in longevity. JMHG, 3 (1), 43-46. meta-analytic review. JAMA, 288 (6), 756-764.
Phillips, S. P., & Ferguson, K. E. (1999). Do students’ attitudes toward women change during med- Rubin, R., & Peyrot, M. (1998). Men and diabetes: psychosocial and behavioural issues. Diabetes
ical school? CMAJ, 160 (3), 357-361. Spectrum, 11. (http://www.diabetic-lifestyle.com/articles/sep98_whats_1.htm).
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 116 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 117
Rydén, L., Standl, E., Bartnik, M., Van den Berghe, G., Betteridge, J., Boer, M., Cosentino, F., Jönsson, demiology, 13 (1), 110-112.
B., Laakso, M., Malmberg, K., Priori, S., Östergren, J., Tuomilehto, J., & Thrainsdottir, I. (2007). Guide-
lines on diabetes, pre-diabetes and cardiovascular diseases: executive summary. European Heart The Women's Health Council. (2007). A guide to creating gender-sensitive health services (2.ª ed.).
Journal, 28, 88-136. Dublin: The Women's Health Council.
Sampaio, A. (1960). Perspectivas e tendências em Saúde Pública. O Médico, 277-284. Theobald, S., Simwaka, B. N., & Klugman, B. (2006). Gender, health and development iii: Engen-
dering health research. Progress in Development Studies, 6 (4), 337-342.
Sarton, E., Olofsen, R., Romberg, R., den Hartigh, J. B., Nieuwenhuijs, D., Burm, A., & Teppema, L.
(2000). Sex differences in morphine analgesia: an experimental study in healthy volunteers. Theobald, S., Tholhurst, R., Elsey, H., & Sanding, H. (2005). Engendering the bureaucracy? Chal-
Anesthesiology, 93 (5), 1245-1254. lenges and opportunities for mainstreaming gender in ministries of health under sector-wide
approaches. Health Policy and Planning, 20 (3), 141-149 (doi:10.1093/heapol/czi019).
Scambler, G., & Higgs, P. (1999). Stratification, class and health: Class relations and health
inequalities in high modernity. Sociology, 33 (2), 275-296. Vaccarino, V., Parsons, L., Every, N. R., Barron, H. V., & Krumholz, H. M. (1999). Sex-based differences in
early mortality after myocardial infarction. The New England Journal of Medicine, 341 (4), 217-225.
Schenck-Gustafsson, K. (2006). Are the synptomes of myocardial infarction different in men and
women? If so, will there be any consequences? Scand Cardiovas J, 40 (6), pp. 325-326. Varanka, J., Närhinen, A., & Siukola, R. (2006). Men and Gender Equality – Towards Progressive Poli-
cies – conference report. Helsinki: Ministry of Social Affairs and Health.
Schwartz, J. B. (2003). The influence of Sex on Pharmacokinetics. Clinical Pharmacokinetics, 42 (2),
107-121. Verbrugge, L. (1995). Gender and health: An update on hypotheses and evidence. Journal of
Health and Social Behavior, 26 (3), 1156-1182.
Sen, G., George, A., & Öslin, P. (2002). Engendering international health: The challenge of equity.
Cambridge, Massachusetts: MIT Press. Weed, D. L. (1995). Epidemiology, the humanities, and public health. American Journal of Public
Health, 85, 914-918.
Soares, C. & Jesuino, J. C. (2004). Memória social e representações sobre o descobrimento do
Brasil: análise dos manuais portugueses de história. Psicologia, Vol. XVII, 2, pp. 321-337. Wenger, N. K. (2007). Heightened cardiovascular risk in diabetic women: can the tide be turned?
Annuals of Internal Medicine, 147 (3), 208-210.
Standing, H. (1997). Gender and equity in health sector reform programmes: A review. Health
Policy and Planning, 12 (1), 1-18. Wenger, N. K., Seeroff, L., & Packard, B. (1993). Cardiovascular health and disease in women. The
New England Journal of Medicine, 329 (4), 247-256.
Stramba-Badiale M., & Priori, S. G. (2005). Gender-specific prescription for cardiovascular disea-
ses? European Heart Journal, 26, 1571-1572. West, C. (1993). Reconceptualizing gender in physician-patient relations. Social Science and Medi -
-cine, 36 (1), 57-66.
Stramba-Badiale M., Fox, K. M., Priori, S. G., Collins, P., Daly, C., Graham, I., Jonsson, B., Schenck-
Gustafsson, K., & Tendera, M. (2006). Cardiovascular diseases in women: a statement from the West, C., & Zimmerman, D. H. (1987). Doing gender. Gender & Society, 1 (2), 125-151.
policy conference of the European Society of Cardiology. European Heart Journal, 27, 994-1005. White, A., & Cash, K. (2003). A report on the state of men’s health across 17 European countries.
Susser, M. (1994a). The logic in ecological: I - the logic of analysis. American Journal of Public Health, Brussels: The European Men’s Health Forum.
84, 825-829. White, A., & Holmes, M. (2006). Patterns of mortality across 44 countries among men and women
Susser, M. (1994b). The logical in ecological: Ii - the logic of design. American Journal of Public ages 15-44 years. JMHG, 3 (2), 139-151.
Health, 84, 830-835. Whitehead, M. (1990). The concepts and principles of equity and health. Copenhagen: World
Susser, M., & Susser, E. (1996a). Choosing a future for epidemiology: I. Eras and paradigms. Health Organization Regional Office for Europe.
American Journal of Public Health, 86 (5), 668-673. Whittle, K. L., & Inhorn, M. C. (2001). Rethinking difference: A feminist reframing of
Susser, M., & Susser, E. (1996b). Choosing a future for epidemiology: Ii. From black box to chinese gender/race/class for the improvement of women's health research. International Journal of
boxes and eco-epidemiology. American Journal of Public Health, 86 (5), 674-677. Health Services, 31 (1), 147-165.
Swedish International Development Cooperation Agency. (1997). A gender perspective in the Wing, S. (1994). Limits of epidemiology. Medicine and Global Survival, 1, 74-86.
health sector. Estocolmo: SIDA - Department for Democracy and Social Development. Health Di- Wing, S. (1998). Whose epidemiology, whose health? International Journal of Health Services, 28
vision. (2), 241-252.
Syme, S. L. (2005). Historical perspective: The social determinants of disease - some roots of the Women’s Health Association of Victoria (2001). Position paper on gender & practice. Women’s
movement. Epidemiologic Perspectives & Innovations, 2, doi: 10.1186/1742-5573-1182-1182. Health Association of Victoria.
Syme, S. L., & Frohlich, K. L. (2001). The contribution of social epidemiology: Ten new books. Epi-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 118 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 119
Women’s Health Bureau (2000). Health Canada’s Gender-based Analysis Policy. Minister of Health.
Women’s Health Council (2007). A Guide to creating gender-sensitive health services. Women’s
APÊNDICES
Health Council.
Wood, J., Hennell, T., Jones, A., Hooper, J., Tocque, K., & Bellis, M. A. (2006). Where wealth means
health – illustrating inequality in the North West. Liverpool: North West Public Health Observatory.
World Health Organization (2007). Gender and genetics. World Health Organization.
(http://www.who.int/genomics/gender/en/print.html).
World Health Organization (2007). World Health Statistics 2007. France: World Health Organization.
World Health Organization. (1986). Ottawa charter for health promotion. Paper presented at the
F irst International Conference on Health Promotion. Ottawa, Ontario, Canada.
World Health Organization. (2002). Gender and road traffic injuries. Gender & Health, 1-4.
Zelek, B., & Phillips, S. P. (2003). Gender and power: nurses and doctors in Canada. International
Journal for Equity in Health, 2 (1).
Zelek, B., & Phillips, S. P., & Lefebvres, Y. (1997). Gender sensitivity in medical curricula. Can Med
Assoc J, 156 (9), 1297-1300.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 120 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 121
APÊNDICE I
Questionário do Estudo 1
No âmbito de uma investigação mais alargada, a Direcção-Geral da Saúde está a realizar um estudo de
opinião junto dos profissionais de saúde de diferentes áreas e especialidades sobre algumas questões
relacionadas com os utentes, no contexto da preparação técnica e das práticas profissionais.
Procuramos assim contribuir para um melhor conhecimento sobre estas temáticas, solicitando a sua
opinião sincera sobre o assunto. Reafirma-se tratar-se de um estudo de opinião, pelo que não existem
respostas certas ou erradas. Este questionário é anónimo e confidencial e destina-se, exclusivamente,
ao trabalho de investigação supra mencionado.
APÊNDICE II
Gráficos dos resultados do Estudo 1
1. Gráficos dos resultados apurados na Secção A - O papel do sexo do utente no âmbito das práticas
clínicas
3,2
processo terapêutico
- Sexo do utente
relação que
3,1
do - Sexo do
3,25 3,2
Noterapêutico
3
do utente
Na relaçãoNaque
3,1
variável PROFISSÃO
próprio
3,25
tem importância:
próprio
2,9
of Para-oSexo
No processo
3
tem importância:
estabeleceestabelece
2,8
o próprio
importância:
o próprio
2,9
3 2,7
Mean
tem importância:
Mean
2,8
Mean of Para
utente temutente
2,75
Mean of Para
2,6
2,7
2,5
2,75
2,6
Enfermeiro/a Médico/a Enfermeiro/a Médico/a
Gráfico 17 Gráfico 18
- Sexo do - Sexo do
3,2
processo terapêutico
3,3
Gráfico 22 | 23
mesma especialidade
3,1 3,2
tem importância:
de outra especialidade
3,2
Noterapêutico
3,3
especialidade
processo terapêutico
3 3,1
3,1 3,2
importância:
outra especialidade
2,9 3
Noterapêutico
No processo
mesmada
3 3,1
tem importância:
temutente
dacolegas
2,8
2,9
decolegas
2,9 3
- Sexo do
No processo
of Para
2,7
importância:
- Sexo do utente
2,8
colegas
2,8
2,9
of Para
colegas
2,6
Mean
utente temutente
2,7
Mean of Para
2,7
2,8
Mean
2,5
Mean of Para
2,6
2,6
2,7
Enfermeiro/a Médico/a
Enfermeiro/a Médico/a
2,5 Profissão 2,6 Profissão
Enfermeiro/a Médico/a
Gráfico 19 Profissão Gráfico 20Enfermeiro/a Médico/a
Profissão
Gráfico 19 Gráfico 20
Gráfico 25
Gráfico 24
TRABALHO
Resultados para a
Resultados para a
variável PROFISSÃO
variável CONTEXTO
Mean of Para colegas de outras
Mean áreas colegas de outras
of Paraprofissionais - Sexo áreas profissionais - Sexo colegas de outras
utente tem importância: Mean of Para colegas de outras
Mean áreas
of Paraprofissionais - Sexo áreas profissionais - Sexo
do utente tem importância:do Nos critérios que utiliza Nos critérios que utiliza utente tem importância:
para avaliação / diagnóstico
para avaliação / diagnóstico do utente tem importância:do No processo terapêutico No processo terapêutico
2,6
2,8
2,9
3,1
3,2
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,73
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
3,3
3,4
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
3,3
3,4
Gráfico 22
Gráfico 21
Gráfico 22
Gráfico 21
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Centros de Saúde
Centros de Saúde
Profissão
Profissão
Médico/a
Médico/a
Hospitais
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais
Gráfico 26 | 27
Gráfico 28 | 29
Resultados para a
variável PROFISSÃO
2,2
2,4
2,6
2,2
2,4
2,6
2,8
2
2,2
2,4
2,6
2,8
2
cas clínicas
Gráfico 25
Gráfico 23
Gráfico 25
Gráfico 23
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Profissão
Profissão
Profissão
Profissão
Médico/a
Médico/a
Médico/a
Médico/a
2,5
3
2,75
2,5
3
2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
Gráfico 26
Gráfico 24
Gráfico 26
Gráfico 24
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Enfermeiro/a
Profissão
Profissão
Profissão
Profissão
Médico/a
Médico/a
Médico/a
Médico/a
2. Gráficos dos resultados apurados na Secção B - O papel do sexo do profissional no âmbito das práti-
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 127
Gráfico 30
Gráfico 31 | 32
TRABALHO
Resultados para a
Resultados para a
variável PROFISSÃO
variável CONTEXTO
especialidade - Sexo do Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional Mean of Para colegas de outras áreas profissionais -
tância: Na relação que temimportância: Na forma como conduz Sexo do próprio profissional tem importância:
a utente o/a atendimento/consulta No processo terapêutico
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3
Gráfico 28
Gráfico 27
Enfermeiro/a
Centros de Saúde
Profissão
Médico/a
Hospitais
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,5
2,6
2,7
Gráfico 28
Gráfico 27
Gráfico 29
Centros de Saúde
Enfermeiro/a
Centros de Saúde
Profissão
Hospitais
Médico/a
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais
1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
Gráfico 29
Centros de Saúde
Gráfico 33 | 34
Gráfico 35 | 36
TRABALHO
Resultados para a
Hospitais
variável CONTEXTO
Mean of Para colegas de outas áreas profissionais Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional Mean of Para colegas de outras áreas profissionais -
Mean of Para
Sexo do próprio
colegasprofissional especialidade
da mesma tem - Sexo do
importância:
próprio profissional importância: Na relação que temimportância: Na forma como conduz Sexo do próprio profissional tem importância:
Nos critérios que utiliza
tempara
estabelece com avaliação
o/a utente/ diagnóstico o/a atendimento/consulta No processo terapêutico
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
3,1
3,2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
2,8
2,9
2,73
Gráfico 30
Gráfico 28
32
Gráfico 27
Centros
Locais
Centros de
Locais de
Enfermeiro/a
Centros de Saúde
de Saúde
Saúde
de recolha:
Profissão
recolha: centros
Médico/a
Hospitais
Hospitais
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais
centros ee hospitais
hospitais
Mean
Mean of Para
of Para colegas
colegas dede outras
outras áreas profissionais
especialidades - Sexo do Mean of Para o próprio - Sexo do próprio profissional
próprio do próprio profissional
Sexoprofissional tem importância:
tem importância: Nos critérios que tem importância: Nos critérios que utiliza para
utiliza processo
Nopara terapêutico
avaliação / diagnóstico avaliação / diagnóstico
1,9
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,2
2,4
2,6
2,8
2
2,1
2,2
2,3
2,4
2,5
2,6
2,7
Gráfico 29
Gráfico 3331
Centros
Locais
Centrosde
Locais de
Centros de Saúde
deSaúde
Saúde
de recolha:
recolha: centros
Hospitais
Hospitais
Hospitais
Locais de recolha: centros e hospitais
centros ee hospitais
hospitais
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 129
2,6
No processo terapêutico
2,5
2,4 2,4
3,5
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 130 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 131
2,3
3,4
2,2
2,2 3,3
3,2
2,1 2
Gráfico 36
3. A abordagem diferencial da saúde dos homens e das mulheres no contexto da formação académica 4. O desenvolvimento da carreira
Mean of Actualmente, esta perspectiva está presente
Gráfico 37 | 38 3 Gráfico 40
escolha da especialidade
5
3,5
3,4
4,8
2,75
3,3
3,2
4,6
3,1 2,5
4,4
3
3,4
4,1
3,3
4
3,2
3,9
3,1
3,8
Centros de Saúde
126
Hospitais 3,7
Gráfico 36 Gráfico 38
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 132 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 133
APÊNDICE III
Guião das entrevistas realizadas no Estudo 2
A. Biografia
1. Trajectória académica:
• escolha de medicina/enfermagem;
• escolha de especialidade;
• o impacto do próprio sexo na escolha de especialidade;
B. Prática Clínica
1. Relevância do Sexo do Utente
• Em termos da sua prática clínica, se tivesse que caracterizar os seus utentes como o faria?
• Em termos gerais como caracterizaria os utentes homens e mulheres segundo:
• os sintomas (tipo de queixas) que referem e o modo como os apresentam (a forma da queixa);
• a adesão à terapeutica;
• o tipo de relação/comunicação estabelecida (difere consoante esteja perante um homem ou uma
mulher?);
• o padrão de utilização dos serviços de saúde.
SÓ PARA MÉDICOS:
Perante um utente homem ou mulher como valoriza:
• as queixas apresentadas;
• os sinais objectivos;
• o pedido de exames complementares (é igual independemente do sexo do utente?);
• a terapeutica (os medicamentos são os mesmos, as doses são as mesmas?).
SÓ PARA ENFERMEIROS:
Perante um utente homem ou mulher como valoriza:
• a avaliação da situação (o diagnóstico de enfermagem);
• o processo de acompanhamento/cuidar dos utentes.
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 134 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 135
PARA TODOS:
• Qual é a sua percepção sobre a importância geral que esta dimensão assume entre outros médi-
APÊNDICE IV
cos/enfermeiros? Gráficos utilizados na entrevista com a distribuição do n.º
de homens e mulheres por algumas especialidades médicas/
2. Relevância do Sexo do Profissional
• Qual é a importância que atribui ao sexo do profissional de saúde no exercício da sua função (nas enfermagem
práticas com os utentes e no ambiente de trabalho com os pares)?
DISTRIBUIÇÃO
3. Interpretação de dados empíricos sobre a realidade nacional ao nível da distribuição de homens e DE ALGUMAS Cirurgia Geral Cardiologia
mulheres por algumas especialidades genderizadas: ESPECIALIDADES
POR SEXO
PARA MÉDICOS - MEDICINA (2005) 18%
82% 22%
a) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em cirurgia geral 78%
b) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em medicina geral e familiar
c) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em cardiologia
d) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em pediatria
PARA ENFERMEIROS
e) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem generalista
f) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de reabilitação
g) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de saude infantil e pediátrica
h) Gráfico com a distribuição de homens e mulheres em enfermagem de saude mental e psiquiatrica
Pediatria Medicina Geral e Familiar
PARA TODOS
• Concorda quanto à existência de especialidades mais apropriadas para homens ou mulheres?
40% 43%
C. Questões de Igualdade/Discriminação no contexto profissional e da carreira
• Como caracteriza as oportunidades entre mulheres e homens ao nível da profissão e da progressão
na carreira?
• Tem conhecimento de aspectos de discriminação positiva ou negativa no contexto profissional
(vividos pelo próprio e/ou casos de outros colegas)?
60% 57%
• Considera que os aspectos de autoridade/poder são semelhantes entre homens e mulheres no con-
texto da sua profissão?
• Considera que existem aspectos de diferenciação ao nível do prestígio atribuído a diferentes espe-
cialidades médicas/enfermagem? Consequências desses efeitos diferenciadores?
Homem Mulher
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 136 SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 137
APÊNDICE V
Questões orientadoras da análise documental
Homem Mulher
SAÚDE, SEXO E GÉNERO FACTOS, REPRESENTAÇÕES E DESAFIOS 138
Brazil
Table of contents
Revista Estudos Feministas
Abstract Text (PT) PDF
Artigos Temáticos: Masculinidade, Diferenças, Hegemonias • Rev. Estud. Fem. 21 (1) • Abr 2013 •
https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014
COPIAR
Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Hegemonic masculinity: rethinking the concept
Robert W. Connell
James W. Messerschmidt
Resumos
O conceito de masculinidade hegemônica tem influenciado os estudos de gênero em vários
campos acadêmicos, mas ao mesmo tempo tem atraído um sério criticismo. Os autores traçam
a origem do conceito a uma convergência de ideias no início dos anos 1980 e mapeiam as
formas através das quais o conceito foi aplicado quando os estudos sobre homens e
masculinidades se expandiram. Avaliando as principais críticas, os autores defendem o
conceito de masculinidade como fundamental, uma vez que, na maioria das pesquisas que o
opera, seu uso não é reificador nem essencialista. Entretanto, as críticas aos modelos
assentados em características de gênero e às tipologias rígidas são sólidas. O tratamento do
sujeito em pesquisas sobre masculinidades hegemônicas pode ser melhorado com a ajuda dos
recentes modelos psicológicos, mesmo que os limites à flexibilidade discursiva devam ser
reconhecidos. O conceito de masculinidade hegemônica não equivale a um modelo de
reprodução social; precisam ser reconhecidas as lutas sociais nas quais masculinidades
subordinadas influenciam formas dominantes. Por fim, os autores revisam o que foi confirmado
por formulações iniciais (a ideia de masculinidades múltiplas, o conceito de hegemonia e a
ênfase na transformação) e o que precisa ser descartado (tratamento unidimensional da
hierarquia e concepções de características de gênero). Os autores sugerem a reformulação do
conceito em quatro áreas: um modelo mais complexo da hierarquia de gênero, enfatizando a
agência das mulheres; o reconhecimento explícito da geografia das masculinidades,
enfatizando a interseccionalidade entre os níveis local, regional e global; um tratamento mais
específico da encorporação¹ em contextos de privilégio e poder; e uma maior ênfase na
dinâmica da masculinidade hegemônica, reconhecendo as contradições internas e as
possibilidades de movimento em direção à democracia de gênero.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Masculinity; Hegemony; Gender; Social Power; Agency; Embodiment; Globalization
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 1/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Brazil
The concept of hegemonic masculinity has influenced gender studies across many academic
fields but has also attracted serious criticism. The authors trace the origin of the concept in a
convergence of ideas in the earlyRevista
1980s andEstudos Feministas
map the ways it
was applied when research on
men and masculinities expanded. Evaluating the principal criticisms, the authors defend the
underlying concept of masculinity, which in most research use is neither reified nor essentialist.
However, the criticism of trait models of gender and rigid typologies is sound. The treatment of
the subject in research on hegemonic masculinity can be improved with the aid of recent
psychological models, although limits to discursive flexibility must be recognized. The concept of
hegemonic masculinity does not equate to a model of social reproduction; we need to recognize
social struggles in which subordinated masculinities influence dominant forms. Finally, the
authors review what has been confirmed from early formulations (the idea of multiple
masculinities, the concept of hegemony, and the emphasis on change) and what needs to be
discarded (onedimensional treatment of hierarchy and trait conceptions of gender). The authors
suggest reformulation of the concept in four areas: a more complex model of gender hierarchy,
emphasizing the agency of women; explicit recognition of the geography of masculinities,
emphasizing the interplay among local, regional, and global levels; a more specific treatment of
embodiment in contexts of privilege and power; and a stronger emphasis on the dynamics of
hegemonic masculinity, recognizing internal contradictions and the possibilities of movement
toward gender democracy.
ARTIGOS TEMÁTICOS
IUniversity of Sydney
RESUMO
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 2/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
subordinadas influenciam formas dominantes. Por fim, os autores revisam o que foi confirmado
por formulações iniciais (a ideia de masculinidades múltiplas, o conceito de hegemonia e a
Brazil
ênfase na transformação) e o que precisa ser descartado (tratamento unidimensional da
hierarquia e concepções de características de gênero). Os autores sugerem a reformulação do
conceito em quatro áreas: um modelo mais
Revista complexo
Estudos da hierarquia de gênero, enfatizando a
Feministas
agência das mulheres; o reconhecimento explícito da geografia das masculinidades,
enfatizando a interseccionalidade entre os níveis local, regional e global; um tratamento mais
específico da encorporação 1 em contextos de privilégio e poder; e uma maior ênfase na
dinâmica da masculinidade hegemônica, reconhecendo as contradições internas e as
possibilidades de movimento em direção à democracia de gênero.
ABSTRACT
The concept of hegemonic masculinity has influenced gender studies across many academic
fields but has also attracted serious criticism. The authors trace the origin of the concept in a
convergence of ideas in the early 1980s and map the ways it was applied when research on
men and masculinities expanded. Evaluating the principal criticisms, the authors defend the
underlying concept of masculinity, which in most research use is neither reified nor essentialist.
However, the criticism of trait models of gender and rigid typologies is sound. The treatment of
the subject in research on hegemonic masculinity can be improved with the aid of recent
psychological models, although limits to discursive flexibility must be recognized. The concept of
hegemonic masculinity does not equate to a model of social reproduction; we need to recognize
social struggles in which subordinated masculinities influence dominant forms. Finally, the
authors review what has been confirmed from early formulations (the idea of multiple
masculinities, the concept of hegemony, and the emphasis on change) and what needs to be
discarded (onedimensional treatment of hierarchy and trait conceptions of gender). The authors
suggest reformulation of the concept in four areas: a more complex model of gender hierarchy,
emphasizing the agency of women; explicit recognition of the geography of masculinities,
emphasizing the interplay among local, regional, and global levels; a more specific treatment of
embodiment in contexts of privilege and power; and a stronger emphasis on the dynamics of
hegemonic masculinity, recognizing internal contradictions and the possibilities of movement
toward gender democracy.
Pesquisas em bancos de dados mostram mais de 200 artigos que usam o termo exato
"masculinidade hegemônica" em seus títulos ou resumos. Artigos que usam uma variante ou
que se referem à "masculinidade hegemônica" no texto chegam a centenas. Um interesse
contínuo é visto em conferências. No início de maio de 2005, a conferência "Masculinidade
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
hegemônica e política internacional" ocorreu na Universidade de Manchester, Inglaterra; em
2004, uma conferência interdisciplinar em Stuttgart
OK focou no tópico "Hegemoniale
Männlichkeiten". 3
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 3/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
O conceito também atraiu um sério criticismo de várias direções: sociológico, psicológico, pós-
estruturalista e materialista. 4 Fora do meio acadêmico foi atacado como - para citar um post
Brazil
com grande repercussão na internet - "uma invenção dos psicólogos New Age" determinados a
mostrar que os homens são muito machos.
Revista Estudos Feministas
Esse é um conceito contestado. Ao mesmo tempo, os assuntos de que trata continuam
presentes nas lutas contemporâneas sobre poder e liderança política, violência pública e
privada, transformações na família e na sexualidade. Uma reavaliação compreensiva do
conceito de masculinidade hegemônica parece valer a pena. Caso prove ser útil, o conceito
deve ser reformulado em termos contemporâneos. Almejamos ambas as tarefas neste artigo.
Origem
modelo de masculinidades em múltiplas relações de poder. Por sua vez, o modelo foi
sistematicamente integrado a uma teoria de gênero sociológica. As seis páginas resultantes em
Gender and Power 10 sobre "masculinidade hegemônica e feminilidade enfatizada" se
tornaram a fonte mais citada para o conceito de masculinidade hegemônica.
As fontes mais básicas foram as teorias feministas do patriarcado e os debates sobre o papel
dos homens na transformação do patriarcado. 11 Alguns homens da nova esquerda tentaram
se organizar em apoio ao feminismo, e essa tentativa chamou atenção para as diferenças de
classe na expressão da masculinidade. 12 Além disso, as mulheres de cortais como Maxine
Baca Zinn, 13 Angela Davis 14 e Bell Hooks 15 - criticaram os preconceitos raciais que
ocorrem quando o poder é unicamente conceitualizado em termos de diferenças de sexo,
preparando, desse modo, o terreno para o questionamento de quaisquer reivindicações
universalizantes sobre a categoria de homem.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 4/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Mesmo antes do Movimento de Liberação das Mulheres, a literatura sobre o "papel sexual do
homem" na psicologia social e na sociologia reconheceu a natureza social da masculinidade e
Brazil
as possibilidades de transformação da conduta dos homens. 18 Ao longo dos anos 1970
houve uma explosão de escritos sobre o "papel masculino", nitidamente criticando as normas
sobre papéis como origem do comportamento opressivo
Revista Estudos dos homens. 19 A crítica à teoria
Feministas
dos papéis forneceu a base conceitual principal para o primeiro movimento de homens
antissexistas. A debilidade da teoria dos papéis sexuais foi, entretanto, cada vez mais
reconhecida. 20 Esses autores incluíram a desfocagem característica do comportamento e da
norma, o efeito homogeneizador do conceito de papel e suas dificuldades em acessar o poder?
Considerar a questão do poder? Dar conta da questão do poder? Incorporar a concepção de
poder?
Por outro lado, o poder e a diferença foram conceitos centrais no movimento de liberação gay,
o qual desenvolveu uma análise sofisticada da opressão do homem, assim como da opressão
pelo homem. 21 Alguns teóricos perceberam a liberação gay como ligada a um ataque aos
estereótipos de gênero. 22 A ideia de uma hierarquia das masculinidades cresceu
diretamente a partir da experiência de homens homossexuais com a violência e com o
preconceito dos homens heterossexuais. O conceito de homofobia originou-se nos anos 1970 e
já estava sendo atribuído ao papel masculino convencional. 23 Teóricos desenvolveram
contribuições cada vez mais sofisticadas sobre as relações ambivalentes entre os homens gays
e o patriarcado e com a masculinidade convencional. 24
Uma fonte igualmente importante foi a pesquisa social empírica. Um corpus em crescimento de
estudos de campo estava documentando hierarquias locais de gênero e culturas locais de
masculinidades nas escolas, 25 em locais de trabalho dominados por homens 26 e em
comunidades populares. 27 Esses estudos acrescentaram o realismo etnográfico de que a
literatura de papéis sexuais carecia, confirmando a pluralidade de masculinidades e as
complexidades da construção do gênero para os homens, e trazendo evidências à luta ativa
pela dominância, que é implícita ao conceito gramsciniano de hegemonia.
Por fim, o conceito foi influenciado pela psicanálise. O próprio Freud produziu a primeira análise
de biografias de homens e, na história do caso do "Homem dos Lobos", mostrou como a
personalidade adulta era um sistema sob tensão, com contracorrentes reprimidas, mas não
obliteradas. 28 O psicanalista Stoller 29 popularizou o conceito de "identidade de gênero" e
mapeou suas variações no desenvolvimento de meninos, sendo as mais famosas aquelas que
levam ao transexualismo. Outros autores influenciados pela psicanálise dedicaram-se aos
temas do poder dos homens, do espectro de possibilidades do desenvolvimento do gênero e da
tensão e contradição dentre masculinidades convencionais. 30
Formulação
O que emergiu dessa matriz em meados dos anos 1980 foi análogo, em termos de gênero, às
pesquisas na sociologia sobre estruturas de poder, dando centralidade ao grupo dominante. A
masculinidade hegemônica foi entendida como um padrão de práticas (i.e., coisas feitas, não
apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que possibilitou que a
dominação dos homens sobre as mulheres continuasse.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 5/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Homens que receberam os benefícios do patriarcado sem adotar uma versão forte da
dominação masculina podem ser vistos como aqueles que adotaram uma cumplicidade
Brazil
masculina. Foi em relação a esse grupo, e com a complacência dentre as mulheres
heterossexuais, que o conceito de hegemonia foi mais eficaz. A hegemonia não significava
violência, apesar de poder ser sustentada pela força;
Revista Estudos significava ascendência alcançada
Feministas
através da cultura, das instituições e da persuasão.
Aplicação
O conceito também foi usado nas pesquisas sobre as representações do homem na mídia, por
exemplo, nas interconexões entre o esporte e os imaginários de guerra. 36 Como o conceito
de hegemonia ajudou a dar sentido tanto à diversidade como à seletividade das imagens na
mídia de massa, os estudiosos da mídia começaram a mapear as relações entre diferentes
representações de masculinidades. 37 Esportes comerciais são um foco das representações
midiáticas da masculinidade, e o campo em desenvolvimento da sociologia do esporte também
encontrou um uso significativo do conceito de masculinidade hegemônica. 38 Foi implantado
na compreensão da popularidade dos esportes de contato e confronto - que funcionam como
uma renovação contínua do símbolo da masculinidade - e na compreensão da violência e
39
Estehomofobia frequentemente
site usa cookies presentes
para garantir queemvocê
meios esportivos.
obtenha uma melhor experiência de navegação.
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 6/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Esses foram os campos primários em que o conceito de masculinidade hegemônica foi aplicado
na década posterior à sua formulação. Mas também houve uma vasta gama de aplicação, em
discussões de arte, 49 por exemplo, em disciplinas acadêmicas como Geografia 50 e
Direito, 51 e em discussões mais gerais sobre as políticas de gênero dos homens e a relação
com o feminismo. 52 Podemos razoavelmente concluir que a análise das múltiplas
masculinidades e o conceito de masculinidade hegemônica serviram como quadro para muitos
dos esforços das pesquisas em desenvolvimento sobre homens e masculinidade, substituindo a
teoria do papel sexual e os modelos categoriais da psiquiatria.
Pesquisas têm sido frutíferas na revelação dos mecanismos de hegemonia. Algumas são
altamente visíveis, como aquelas sobre a "ostentação" da masculinidade nos programas
televisivos de esportes, 55 assim como aquelas sobre mecanismos sociais que Roberts 56
chama de "censura" direcionada a grupos subordinados - variando desde xingamentos
informais por crianças à criminalização da conduta homossexual. Ainda outros mecanismos de
hegemonia operam por invisibilidade, removendo a forma dominante da masculinidade da
Estepossibilidade
site usa cookies para garantir
de censura. que você
57 Consalvo, 58 obtenha umaa mídia
examinando melhor experiência
sobre o massacre denanavegação.
Escola Columbine, nota como a questão da masculinidade foi retirada do escrutínio, deixando a
OK
mídia sem outra forma de representar os atiradores, senão como "monstros".
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 7/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Dessa forma, a partir de meados dos anos 1980 até o início dos anos 2000, o conceito de
masculinidade hegemônica passou de um modelo conceitual com uma base empírica bastante
restrita para um quadro vasto muito usado nas pesquisas e nos debates sobre homens e
masculinidades. O conceito foi aplicado em contextos culturais diversos e a uma gama
considerável de questões. Não é surpreendente, então, que o conceito tenha atraído criticismo,
aspecto no qual focaremos a partir de agora.
Críticas
Cinco principais críticas têm sido avançadas desde que o debate sobre o conceito começou no
início dos anos 1990. Nesta seção avaliaremos cada crítica esperando descobrir o que vale a
pena reter da concepção original de masculinidade hegemônica e o que necessita ser
reformulado.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
O conceito subjacente de masculinidade
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 8/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Nenhuma mente responsável pode negar que, em grande parte da literatura preocupada com a
masculinidade, há uma grande quantidade de confusão conceitual, assim como uma grande
quantidade de essencialização. Isso é certamente comum em abordagens da masculinidade na
psicologia pop, na mitopoética do movimento de homens e nas interpretações jornalísticas das
pesquisas sobre a diferença biológico-sexual. É uma outra questão, entretanto, reivindicar que
o conceito de masculinidade deva ser confundido com essencialismo ou até mesmo que seja
tipicamente esse o uso que os pesquisadores fazem do conceito.
EsteEmbora
site usaseja
cookies para familiar
atualmente garantir que você
a crítica obtenha
de que uma
o conceito demelhor
gênero experiência
traz embutida de
a navegação.
heterossexualidade como norma, 79 essa é uma crítica contestada. 80 Enquanto identifica
OK
corretamente um problema nos modelos categoriais de gênero, não é um criticismo válido dos
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 9/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Críticas ao conceito de masculinidade fazem mais sentido quando apontam uma tendência,
tanto nas pesquisas como na literatura popular, de dicotomizar as diferenças entre homens e
mulheres. Como Brod 89 precisamente observa, há uma tendência no campo de estudos
sobre homens de presumir "esferas separadas", de proceder como se as mulheres não fossem
uma parte relevante da análise e, dessa forma, estudar as masculinidades através do olhar
exclusivo sobre os homens e sobre as relações entre homens. Como Brod também argumenta,
isso não é inevitável. A cura reside em tomar uma abordagem consistentemente relacional do
gênero, não em abandonar os conceitos de gênero ou masculinidade.
Ambiguidade e sobreposição
Martin 92 critica o conceito por levar a aplicações inconsistentes, algumas vezes referindo a
um tipo fixo de masculinidade e em outras ocasiões referindo ao tipo qualquer que seja
dominante em um tempo e em um lugar particulares. Similarmente, Wetherell e Edley 93
afirmam que o conceito falha na especificação de como a conformidade à masculinidade
hegemônica realmente se objetiva na prática. E Whitehead 94 sugere que há uma confusão
sobre quem é realmente um homem hegemonicamente masculino - "É John Wayne ou
Leonardo DiCaprio; Mike Tyson ou Pelé? Ou talvez, em diferentes momentos, todos eles?" - e
também sobre quem na realidade pode pôr em ato práticas hegemônicas.
EstePensamos
site usa cookies para garantir
que os críticos que
apontaram devocê
formaobtenha uma
correta as melhor experiência
ambiguidades de navegação.
do uso do conceito. É
desejável eliminar qualquer uso da masculinidade hegemônica como fixa, como um modelo
OK
trans-histórico. Esse uso viola a historicidade do gênero e ignora a evidência massiva das
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 10/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Brazil
Mas, em outros aspectos, a ambiguidade em processos de gênero talvez seja importante de ser
reconhecida como um mecanismo de hegemonia. Considere-se como uma definição idealizada
de masculinidade é constituída em um processo social. Num nível societal mais amplo (ao qual
Revista Estudos Feministas
chamaremos de "regional" na continuidade), há uma circulação de modelos de conduta
masculina admirável, que são exaltados pelas igrejas, narrados pela mídia de massa ou
celebrados pelo Estado. Tais modelos se referem (mas também em vários sentidos as
distorcem) às realidades cotidianas da prática social. Um exemplo clássico é a celebração, pelo
regime soviético, do trabalhador industrial nomeado Stakhanovite, em homenagem ao
minerador de carvão Aleksandr Stakhanov, que, em 1935, bateu o recorde mundial ao escavar
102 toneladas de carvão em um único dia, provocando uma corrida para bater seu recorde.
Parte da distorção aqui foi de que os famosos "trabalhadores de choque" alcançaram seus
números com grande ajuda, não reconhecida, de seus colegas de trabalho.
Desse modo, as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não
correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos
expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem
modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero.
Ademais, eles se articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como
formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem isso, contribuem
para a hegemonia na ordem de gênero societal. Não é surpreendente que homens que
funcionam como exemplos no nível regional, como os "iron man" discutidos por Donaldson,
95 exibam contradições.
nas famílias. Por exemplo, as estratégias de gênero dos homens definem negociações em
torno do trabalho doméstico e da "dupla jornada" nas famílias norte-americanas estudadas por
Hochschild. 98 Padrões hegemônicos de masculinidade são tanto envolvidos como
contestados, à medida que as crianças crescem. O gênero é produzido nas escolas e nas
vizinhanças através de estrutura de grupos de pares, controle do espaço escolar, padrões de
encontros afetivossexuais, discursos homofóbicos e assédio. 99 Em nenhum desses casos
esperaríamos que a masculinidade hegemônica se sobressaísse como um padrão nitidamente
definido separado de todos os outros. Um grau de sobreposição e indefinição entre as
masculinidades hegemônica e cúmplice é extremamente provável se a hegemonia é efetiva.
A sobreposição entre masculinidades também pode ser vista em termos dos agentes sociais
construindo masculinidades. Cavender 100 mostra como os modelos de masculinidade
hegemônica foram construídos diferentemente em filmes de longa-metragem nos anos 1940,
em comparação com os dos anos 1980. Não é apenas uma questão de personagens descritos
em scripts. A prática no nível local - quer dizer, a interação face a face ao filmar um filme como
ator - em última análise constrói a fantasia dos modelos de masculinidade hegemônica (nesse
caso de "detetives") no nível societal mais amplo ou no nível regional. (Exploraremos essa
questão das relações entre níveis na seção "Revisão e reformulação" deste artigo.)
O problema da reificação
EsteQue
site ousa
conceito de masculinidade
cookies para garantirhegemônica reduza, na
que você obtenha prática,
uma a uma
melhor reificação do
experiência depoder ou
navegação.
a uma intoxicação de seu uso também já foi argumentado em diferentes pontos de vista. Holter,
101 na crítica conceitualmente mais sofisticada
OK de todas, argumenta que o conceito constrói
o poder masculino a partir da experiência direta das mulheres em vez da base estrutural da
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 11/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
subordinação das mulheres. Holter acredita que nós devemos distinguir entre o "patriarcado",
uma estrutura de longo termo da subordinação das mulheres, e o "gênero", um sistema
Brazil
específico de trocas que surgiu no contexto do capitalismo moderno. É um equívoco tratar a
hierarquia das masculinidades construídas no seio das relações de gênero como um contínuo
lógico com a subordinação patriarcal das mulheres. Holter 102 significativamente aponta as
Revista Estudos Feministas
evidências de um survey norueguês que mostram que as identidades de gênero dos homens
não colocam em ato tão prontamente as práticas relacionadas com a igualdade, como o fazem
com aquelas relacionadas à violência.
Holter 103 certamente está certo ao dizer que é um equívoco deduzir relações entre as
masculinidades a partir do exercício direto do poder pessoal pelos homens sobre as mulheres.
Também devemos levar em questão a institucionalização das desigualdades de gênero, o papel
das construções culturais e a ação combinada das dinâmicas de gênero com a raça, a classe e
a região.
Na verdade, são as pesquisas sobre essas questões que mostram que o conceito de
masculinidade hegemônica não está preso à reificação. No seio dos frutíferos estudos sobre
masculinidades institucionais, encontramos aqueles que revelam variações um tanto quanto
sutis, por exemplo, entre diferentes ramos de uma força militar, a U.S. Navy. 104 Há estudos
sobre masculinidades hegemônicas locais específicas construídas em espaços como um pub
neozelandês, em que vemos o entrelaçamento da masculinidade com a identidade rural. 105
Outras pesquisas, especialmente aquelas feitas em salas de aula, 106 mostram a produção
refinada e a negociação das masculinidades (e feminilidades) como configurações de prática.
Collier 107 critica o conceito de masculinidade hegemônica através de seus usos típicos na
contabilização da violência e do crime. Na "virada da masculinidade" na criminologia, Collier
sugere que a masculinidade hegemônica se tornou associada somente a características
negativas que retratam os homens como não emocionais, independentes, não cuidadores,
agressivos e não passionais - as quais são vistas como causas do comportamento criminal.
Martin, 108 similarmente, observa um movimento em direção a uma visão da masculinidade
hegemônica não apenas como um tipo, mas como um tipo negativo, por exemplo, ao "dizer que
defender o porte de armas é uma defesa da masculinidade hegemônica".
Essa crítica tem força. Ela se assenta na análise precisa de McMahon 109 sobre o
psicologismo em muitas discussões sobre homens e masculinidade. O comportamento dos
homens é reificado em um conceito de masculinidade que, em um argumento circular, se torna
a explanação (e a desculpa) para o comportamento. Isso pode ser visto em várias discussões
sobre a saúde dos homens e os problemas na educação dos meninos - de fato, assim ocorre
com qualquer dos problemas contemporâneos definidos sob a consígnia "crise da
masculinidade". Na psicologia pop, a invenção de novos tipos de personalidade é endêmica (o
macho alfa, o rapaz new age sensível, o homem cabeludo, o novo homem, 110 o "homem
rato" etc.). Nesse ambiente, a masculinidade hegemônica pode se tornar o sinônimo (com um
tom científico) de um tipo de homem rígido, dominador, sexista e "macho" (segundo o uso
anglo-saxão, por exemplo). 111
Devido ao fato de o conceito de masculinidade hegemônica ser baseado na prática que permite
a continuidade da dominação coletiva dos homens sobre as mulheres, não é surpreendente
que em alguns contextos a masculinidade hegemônica realmente se refira ao engajamento dos
homens a práticas tóxicas - incluindo a violência física - que estabilizam a dominação de gênero
em um contexto particular. Entretanto, a violência e outras práticas nocivas não são sempre as
Estecaracterísticas
site usa cookies para garantir
definidoras, uma vezque
quevocê obtenhatem
a hegemonia uma melhor experiência
numerosas configurações.de navegação.
Para tal,
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 12/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
como Wetherell e Edley 112 ironicamente observam, uma das mais efetivas formas de "ser
um homem" em certos contextos locais pode ser a demonstração da distância da
Brazil
masculinidade hegemônica regional.
Collier 114 está certo em comentar que o que está realmente sendo discutido em muitas
abordagens da masculinidade hegemônica e do crime (e nós acrescentaremos a saúde e a
educação) é "uma gama de ideologias populares do que constitui um ideal ou verdadeiras
características do que é 'ser um homem'". O que falta em Collier, entretanto, é que pesquisas
consistentemente sofisticadas prossigam na exploração da relação dessas idealizações com as
vidas diárias de meninos e homens - incluindo os desajustes, as tensões e as resistências.
O sujeito masculino
Uma crítica relacionada deriva da psicanálise. De acordo com essa visão, o modelo de
masculinidade hegemônica presume um sujeito unitário; mas a psicologia profunda revela um
sujeito multifacetado e dividido. 120 Jefferson (2002) critica a "visão excessivamente
socializada do sujeito masculino" em estudos de masculinidade, a qual tem resultado em uma
falta de atenção sobre como os homens de fato se relacionam psicologicamente com a
masculinidade hegemônica. Dadas as múltiplas masculinidades, ele argumenta que
pesquisadores deveriam perguntar "como homens concretos, com suas biografias e formações
psíquicas particulares, se relacionam com as várias masculinidades". O autor sugere que
meninos e homens escolhem essas posições discursivas que os auxiliam a afastar a ansiedade
e evitar sentimentos de ausência de poder.
O argumento da psicologia discursiva é bem aceito e bem integrado com uma abordagem
investigativa frutífera. Um bom exemplo é o estudo de Lea e Auburn 121 sobre a história
contada por um estuprador condenado em um programa para infratores sexuais, o qual mostra
como o infrator narrador se move entre ideologias conflituosas da interação sexual que, de
certa forma, reduzem sua responsabilidade pelo estupro. Outro exemplo é a análise que Archer
122 faz da fala de jovens homens muçulmanos na Grã-Bretanha sobre identidade,
Reconhecer o não discursivo e as dimensões não refletidas do gênero nos permite perceber
alguns sentidos dos limites da flexibilidade discursiva. Que existem tais limites é um ponto forte
no estudo de Rubin 123 sobre homens transexuais feminino-para-masculino. Uma pessoa
não é livre para adotar qualquer posição de gênero em interação, simplesmente como um
movimento discursivo ou reflexivo. As possibilidades são massivamente limitadas pelos
processos de encorporação, pelas histórias institucionais, pelas forças econômicas e pelas
Esterelações
site usafamiliares
cookies epara garantir
pessoais. que você
Os custos de seobtenha
fazeremuma melhor experiência
determinadas de navegação.
escolhas discursivas
podem ser muito altos - como mostrado pelos índices de suicídio dentre pessoas envolvidas em
OK
mudanças transexuais.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 14/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
A coerção também emerge no interior da própria pessoa. Os informantes de Rubin 124 atuam
como o fazem e enfrentam os custos, porque têm uma convicção inabalável de serem homens,
Brazil
apesar de começarem com corpos femininos e terem sido criados como meninas. Eles estão
convictos de serem sujeitos unitários, embora vivam uma contradição que Jefferson 125
parece exemplificar ao argumentar sobre Estudos
Revista o sujeitoFeministas
dividido. Concordamos com Jefferson que a
prática e a teoria psicanalíticas são recursos importantes para a compreensão do sujeito
complexo da prática de gênero. Entretanto, a abordagem psicanalítica particular de Jefferson
não existe sem problemas, 126 e é importante reconhecer a diversidade e a riqueza da
tradição psicanalítica. Abordagens como a psicanálise existencial de Sartre são úteis na
compreensão das masculinidades como projetos e a identidade masculina como tendo sempre
sido uma realização provisional no período de uma vida. A psicanálise adleriana, com sua
ênfase nas consequências emocionais das relações de poder generificadas na infância, fez
emergir a ideia do "protesto masculino", o qual ainda ressoa nas discussões contemporâneas
sobre a juventude marginalizada.
O conceito homogeneiza o sujeito apenas se ele é reduzido a uma dimensão única das
relações de gênero (usualmente o simbólico) e se ele é tratado como uma especificação da
norma. Tão logo se reconheçam a multidimensionalidade das relações de gênero 129 e a
ocorrência das tendências de crise nas relações de gênero, 130 é impossível perceber o
sujeito no seio dessas relações como unitário. Há, claro, diferentes maneiras de se representar
a incoerência do sujeito. A linguagem conceitual do pós-estruturalismo é apenas uma forma de
fazê-lo; a psicanálise e o modelo da agência no seio de estruturas sociais contraditórias são
outras.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 16/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
visibilidade nas sociedades ocidentais - testemunhado pela fascinação com personagens gays
masculinos em programas de televisão como Six Feet Under, Will and Grace e Queer Eye for
Brazil
the Straight Guy - , há pouca razão em pensar que a hibridização se tornou hegemônica nos
níveis regional ou global.
Revista Estudos Feministas
O conceito de um bloco hegemônico traz o foco para a questão de múltiplas masculinidades
hegemônicas. Jefferson 146 e outros têm criticado a tendência de se falar de apenas um
padrão - "a masculinidade hegemônica é sempre usada no singular". Há aqui um paradoxo.
Devido ao fato de que toda etnografia descobre uma cultura de gênero distinta, de que todo
estudo de histórias de vida desvela trajetórias únicas de vidas de homens e de que toda análise
estrutural define novas intersecções de raça, classe, gênero e geração, é logicamente possível
definir "mil e uma" variações da masculinidade. 147 Isso também é certamente verdadeiro
para os reivindicadores da hegemonia. O ponto é fortemente sustentado pelo mapeamento de
Messner 148 das políticas de masculinidade nos Estados Unidos, que revelou uma gama de
movimentos com agendas contrastantes. Ainda quando examinados de perto, muitos desses
movimentos apresentam uma reivindicação de serem a maneira correta de como os homens
devem pensar e viver. Não importando a diversidade empírica das masculinidades, a
contestação pela hegemonia implica que a hierarquia de gênero não possui nichos múltiplos no
topo. Voltaremos a essa questão, que é importante para o entendimento das políticas de
gênero.
Revisão e reformulação
Neste momento desenharemos esses tópicos conjuntamente para sugerirmos como o conceito
de masculinidade hegemônica deve ser reformulado. Indicaremos aquelas características do
conceito original que se sustentaram diante da luz das pesquisas e das críticas, aquelas
características que deveriam ser descartadas e, detalhadamente, aquelas áreas em que o
conceito necessita de uma reformulação contemporânea.
EsteAs
site usa cookies
formulações para depositaram
originais garantir quealguma
você obtenha
ênfase na uma melhor de
possibilidade experiência de navegação.
transformação das
relações de gênero e na ideia de que um padrão
OKdominante de masculinidade estava aberto à
contestação - da resistência das mulheres ao patriarcado, e dos homens como portadores de
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 17/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Apesar da crítica do traço psicológico em Gender and Power e do apelo às ideias psicanalíticas
sobre a motivação inconsciente, declarações iniciais sobre a masculinidade hegemônica,
quando tentaram caracterizar o conteúdo de fato das diferentes configurações de
masculinidade, muitas vezes caíram numa terminologia classificatória de traços - ou na melhor
das hipóteses, fracassaram em apresentar alternativas a ela. A noção de masculinidade como
um conjunto de traços, que abriu caminho para o tratamento da masculinidade hegemônica
como um tipo de caráter fixo, já causou muitos problemas e foi altamente criticada nos escritos
psicológicos recentes. Não apenas o conceito essencialista de masculinidade, mas também,
em geral, a abordagem dos traços para compreender o gênero necessitam ser completamente
transcendidos.
À luz das pesquisas e das críticas discutidas anteriormente, argumentamos que o conceito de
masculinidade hegemônica precisa ser reformulado em quatro grandes áreas: a natureza das
hierarquias de gênero, a geografia das configurações de masculinidade, o peso do social no
processo de encorporação da masculinidade e a dinâmica das masculinidades. Nos subtópicos
a seguir ofereceremos uma linha de pensamento e algumas sugestões de pesquisa sobre cada
um desses eixos.
Hierarquia de gênero
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 18/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
dialético captura a influência recíproca das masculinidades umas sobre as outras; padrões de
masculinidade hegemônica podem mudar ao incorporarem elementos de outras
Brazil
masculinidades.
Análises das relações entre masculinidades, agora mais claramente, reconhecem a agência
Revista Estudos Feministas
dos grupos subordinados e marginalizados - comumente condicionados por sua especificação
local (como discutido abaixo). A "Masculinidade de protesto" 151 pode ser entendida neste
sentido: um padrão de masculinidade construído em contextos locais de classes trabalhadoras,
algumas vezes entre homens etnicamente marginalizados que encorporam a reivindicação de
poder típica de masculinidades hegemônicas regionais em países ocidentais, mas carecem de
recursos econômicos e autoridade institucional para sustentar os padrões regional e global
dessa forma de masculinidade.
Talvez mais importante, focando-se apenas nas atividades dos homens que ocluem as práticas
das mulheres na construção do gênero dentre homens. Como é bem mostrado pelas pesquisas
com histórias de vida, as mulheres são centrais em muitos dos processos de construção das
masculinidades - como mães, colegas de classe, namoradas, parceiras sexuais e esposas;
como trabalhadoras na divisão sexual do trabalho, e assim por diante. O conceito de
feminilidade enfatizada põe o foco sobre a complacência em relação ao patriarcado, e isso
continua a ser altamente relevante na cultura de massa contemporânea. Ainda, as hierarquias
de gênero também podem ser afetadas pelas novas configurações das identidades e das
práticas das mulheres, especialmente mulheres mais jovens - configurações que estão
crescentemente sendo reconhecidas pelos homens jovens. Consideramos que as pesquisas
sobre masculinidade hegemônica agora precisam estar mais atentas às práticas das mulheres
e à ação histórica recíproca entre feminilidades e masculinidades.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 19/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Brazil
Mudanças em construções locais específicas da masculinidade hegemônica têm sido tema de
pesquisas nas duas últimas décadas. Mas a crescente atenção dada à globalização e à
significância das arenas transnacionais para a construção da masculinidade também tem sido
Revista Estudos Feministas
argumentada. Hooper 153 descreve o desenvolvimento da masculinidade hegemônica e de
outras formas de masculinidades nas arenas das relações internacionais, e Connell 154
propõe o modelo da "masculinidade coorporativa transnacional" dentre executivos
corporativistas conectados com agendas neoliberais de globalização.
Se, ou o quanto, tais processos ultrapassam dinâmicas de gênero mais locais e regionais, é
questão ainda em debate. Pease e Pringle, 155 em uma coletânea internacional recente,
argumentam por um foco contínuo no entendimento regional e comparativo das
masculinidades. No mínimo devemos entender que construções regionais e locais da
masculinidade hegemônica são conjuradas pela articulação desses sistemas de gênero com
processos globais. Nessa veia, Kimmel 156 examinou recentemente como os efeitos de uma
masculinidade hegemônica global estão incorporados na emergência de masculinidades "de
protesto" regionais (supremacistas brancos nos Estados Unidos e na Suécia) e global (o Al
Qaeda do Oriente Médio).
Consideramos que essas questões são agora inevitáveis para os estudos de masculinidade e
sugerimos a seguinte estrutura simples. Masculinidades hegemônicas existentes
empiricamente podem ser analisadas em três níveis:
1. local: construídas nas arenas da interação face a face das famílias, organizações e
comunidades imediatas, conforme acontece comumente nas pesquisas etnográficas e de
histórias de vida;
3. global: construídas nas arenas transnacionais das políticas mundiais, da mídia e do comércio
transnacionais, como ocorre com os estudos emergentes sobre masculinidades e globalização.
As ligações entre esses níveis não apenas existem, mas podem ser importantes nas políticas
de gênero. Instituições globais pressionam ordens de gênero regionais e locais, ao passo que
ordens de gênero regionais fornecem materiais culturais adotados ou retrabalhados em arenas
globais e também modelos de masculinidade que podem ser importantes para as dinâmicas de
gênero locais.
EsteComo umacookies
site usa ilustração dessa
para ação regional
garantir que vocêe local recíproca
obtenha uma entre masculinidades
melhor experiênciahegemônicas,
de navegação.
consideremos o exemplo do esporte. Nas sociedades ocidentais, as práticas no nível local -
OK
como o engajamento em eventos esportivos - constroem modelos masculinos hegemônicos
("estrelas do esporte") no nível regional, o qual, em retorno, afeta outras configurações locais.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 20/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Adotando uma estrutura analítica que distingue as masculinidades nos níveis local, regional e
global (e os mesmos pontos se aplicam às feminilidades), podemos reconhecer a importância
do território sem cairmos em um mundo monádico de independência cultural e discursiva total.
Essa perspectiva também projeta alguma luz no problema das múltiplas masculinidades
hegemônicas, levantado anteriormente. Apesar de os modelos locais de masculinidade
hegemônica poderem se diferenciar uns dos outros, eles geralmente se sobrepõem. A ação
recíproca entre dinâmicas de gênero societais mais amplas é parte da explanação. Além disso,
as masculinidades hegemônicas são, em graus significantes, como já argumentamos,
constituídas nas interações entre homens e mulheres; portanto, os aspectos comuns nas
práticas de gênero das mulheres também produzem convergência. Consequentemente, as
construções locais da masculinidade hegemônica têm certa "semelhança familiar", para usar
um termo de Wittgenstein, em vez de uma identidade lógica. Nesse sentido, a pluralidade local
é compatível com a singularidade da masculinidade hegemônica nos níveis regional ou societal
amplo. A "semelhança familiar", dentre as variantes locais, é comumente representada por um
modelo simbólico no nível regional, nunca por múltiplos modelos.
Encorporação social
As leituras sobre corpos como objeto de processos de construção social, habituais nas ciências
sociais, são agora amplamente consideradas inadequadas. Os corpos estão envolvidos mais
ativamente, mais intimamente e mais intrinsecamente em processos sociais do que a teoria
usualmente lhes permitiu. Os corpos participam na ação social ao delinearem os cursos da
conduta social - o corpo como participante da geração de práticas sociais. É importante que
não apenas as masculinidades sejam entendidas como encorporadas, mas também que sejam
tratados os entrelaçamentos das encorporações com os contextos sociais.
masculinidade unitária. Elas podem, por exemplo, representar formações comprometidas por
desejos contraditórios ou emoções, ou por resultados de cálculos incertos sobre os custos e os
Brazil
benefícios de diferentes estratégias de gênero.
Pesquisas com histórias de vida apontaram para uma outra dinâmica das masculinidades, a
Revista Estudos Feministas
estrutura de um projeto. Masculinidades são configurações da prática que são construídas,
reveladas e transformadas ao longo do tempo. Uma literatura menos abundante sobre
masculinidade e envelhecimento, e uma maior produção sobre infância e juventude enfatizam
essa questão. A análise cuidadosa das histórias de vida podem detectar compromissos
contraditórios e transições institucionais que refletem diferentes masculinidades hegemônicas e
também sustentam sementes de transformação.
Tal contestação ocorre continuamente, através dos esforços do movimento de mulheres (nos
níveis local, regional e global), entre gerações em comunidades de imigrantes, entre modelos
de masculinidade gerencial, entre rivais por autoridade política, entre reivindicadores por
atenção na indústria de entretenimento, e assim por diante. A contestação é real, e a teoria de
gênero não prevê qual prevalecerá - o processo é historicamente aberto. Em consequência, a
hegemonia pode fracassar. O conceito de masculinidade hegemônica não se assenta em uma
teoria da reprodução social.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Colocada de outra maneira, a conceitualização da masculinidade hegemônica deveria
explicitamente reconhecer a possibilidade da democratização
OK das relações de gênero e da
abolição de desigualdades de poder, e não apenas a reprodução da hierarquia. Um movimento
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 23/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
transicional nessa direção requer uma tentativa de estabelecer como hegemônica dentre os
homens ("hegemonia interna" no sentido de Demetriou) 170 uma versão da masculinidade
Brazil
aberta à igualdade com as mulheres. Nesse sentido, é possível definir uma masculinidade
hegemônica completamente "positiva" (no sentido de Collier). 171 A história recente mostrou
a dificuldade de se atingir essa prática.
RevistaUma hegemonia
Estudos positiva permanece, todavia, como
Feministas
uma estratégia-chave para os esforços contemporâneos de reforma.
Conclusão
Os conceitos nas ciências sociais emergem como respostas a problemas práticos e intelectuais
específicos, e são formulados em linguagens e estilos intelectuais específicos. Mas eles
também têm a capacidade de viajar e talvez recebam novos significados enquanto viajam. Isso
certamente aconteceu com o conceito de masculinidade hegemônica, o qual tem sido
apropriado em diferentes campos, variando da educação à psicoterapia, à questão da violência
e às relações internacionais. Algumas das suas ambiguidades despertaram uma reação crítica
a vários usos que o conceito encontrou e às formas como foi flexibilizado em resposta a novos
contextos.
Esse é talvez um problema geral sobre a conceitualização nas ciências sociais e nas
humanidades. Como uma formulação teórica encontra aplicação em outros contextos e por
outras mãos, o conceito deve se mutar - e deve fazê-lo em diferentes direções e em diferentes
ambientes. Um conceito específico pode se transformar em uma generalização para se falar de
algo, um estilo de análise ou uma figura característica em um argumento. Não há nada de
errado nesse processo como tal - é a forma comum através da qual o conhecimento em
ciências sociais e humanidades se desenvolve. Mas isso significa que os novos usos também
devem estar abertos à crítica, pois talvez careçam da substância ou da justificação presente na
formulação original.
Desse modo, ao mesmo tempo que acolhemos muitas das aplicações e das modificações do
conceito de masculinidade hegemônica como contribuições à compreensão das dinâmicas de
gênero, rejeitamos aqueles usos em que ficou implícito um tipo fixo de caráter ou um conjunto
de traços tóxicos. Esses usos não são triviais - eles tentam nomear questões significantes
sobre gênero, tais como a persistência da violência ou as consequências da dominação. Mas
esses usos são feitos de uma maneira que entra em conflito com as análises da hegemonia nas
relações de gênero e são, portanto, incompatíveis (e não apenas uma variação) tanto com as
declarações iniciais como com os principais desenvolvimentos do conceito.
Uma análise renovada das masculinidades hegemônicas, do tipo sugerido anteriormente, tem
uma relevância crescente no momento presente das políticas de gênero. Nos países ricos da
metrópole global, o deslocamento do neoliberalismo (a agenda radical do mercado formulada
nos anos 1970) para um neoconservadorismo (incluindo apelos populistas para religião,
etnocentrismo e segurança) tornou a reação de gênero uma questão política e cultural muito
importante. Nos países desenvolvidos, os processos de globalização abriram as ordens de
gênero regionais e locais para novas pressões por transformações e também abriram caminhos
para novas coalizões entre grupos de homens poderosos. Nas arenas globais das corporações
transnacionais, das mídias e dos sistemas de segurança, novos padrões de hegemonia estão
sendo forjados. A produção e a contestação da hegemonia em ordens de gênero
historicamente mutáveis são um processo de enorme importância para o qual continuaremos
precisando de ferramentas conceituais.
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 24/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
ARCHER, L. "Muslim Brothers, Black Lads, Traditional Asians: British Muslim Young Men's
Revista
Constructions of Race, Religion Estudos Feministas
and Masculinity." Feminism
& Psychology, v. 11, n. 1, p. 79-
105, 2001.
BACA ZINN, M. "Chicano Men and Masculinity." Journal of Ethnic Studies, v. 10, n. 2, p. 29-
44, 1982.
BELTON, R. J. The Beribboned Bomb: The Image of Woman in Male Surrealist Art Calgary,
Canada: University of Calgary Press, 1995.
BIRD, S. R. "Welcome to the Men's Club: Homosociality and the Maintenance of Hegemonic
Masculinity." Gender & Society, v. 10, n. 2, p. 120-132, 1996.
BRANNON, R. "The Male Sex Role: Our Culture's Blueprint of Manhood, and What It's Done
for us Lately." In: DAVID, D. S.; BRANNON, R. (Ed.). The Forty-nine Percent Majority: The
Male Sex Role. Reading, MA: Addington-Wesley, 1976.
BROD, H. The Making of Masculinities: The New Men's Studies Boston: Allen and Unwin,
1987.
______. "Some Thoughts on Some Histories of Some Masculi nities: Jews and Other
Others." In: DAVID, D. S.; BRANNON, R. (Ed.). Theorizing Masculinities. Thousand Oaks,
CA: Sage, 1994.
BROKER, M. "'I may be a queer, but at least I am a man': Male Hegemony and Ascribed
Versus Achieved Gender." In: BARKER, D. L.; ALLEN, S. (Ed.). Sexual Divisions and Society
London: Tavistock. 1976.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 25/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
CARRIGAN, T.; CONNELL, R. W.; LEE, J. "Toward a New Sociology of Masculinity." Theory
Brazil and Society, v. 14, n. 5, p. 551-604, 1985.
CHENG, C. "'We choose not to compete': The 'Merit' Discourse in the Selection Process, and
Asian and Asian American Men and their Masculinity." In: CHENG, C. (Ed.). Masculinities in
Organizations. Thousand Oaks, CA: Sage, 1996.
COCKBURN, C. Brothers: Male Dominance and Technological Change London: Pluto, 1983.
______. In the Way of Men: Men's Resistance to Sex Equality in Organizations London:
Macmillan, 1991.
COLLINSON, D.; HEARN, J. "Naming Men as Men: Implications for Work, Organization and
Management." Gender, Work and Organization, v. 1, n. 1, p. 2-22, 1994.
CONNELL, R. W. Ruling Class, Ruling Culture Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1977.
______. "Class, Patriarchy, and Sartre's Theory of Practice." Theory and Society, v. 11, p.
305-320, 1982.
______. Which Way is up? Essays on Sex, Class and Sulture Sydney, Australia: Allen and
Unwin, 1983.
______. Gender and Power Sydney, Australia: Allen and Unwin, 1987.
______. "An Iron Man: The Body and some Contradictions of Hegemonic Masculinity." In:
MESSNER, M.; SABO, D. (Ed.). Sport, Men and the Gender Order. Champaign, IL: Human
Kinetics, Books, 1990.
______. "Masculinities, Change and Conflict in Global Society: Thinking about the Future of
Men's Studies." Journal of Men's Studies, v. 11, n. 3, p. 249-266, 2003.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 26/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Sage, 2005.
Brazil
CONNELL, R. W. et al. Making the Difference: Schools, Families and Social Division Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1982.
CONSALVO, M. "The Monsters Next Door: Media Constructions of Boys and Masculinity."
Feminist Media Studies, v. 3, n. 1, p. 27-46, 2003.
DINGES, M.; RÜNDAL, E.; BAUER, D. "Programm." In: PROGRAM FOR THE
HEGEMONIALE MÄNNLICHKEITEN CONFERENCE, 24-26 June 2004, Stuttgart, Germany.
DONALDSON, M. Time of Our Lives: Labor and Love in the Working Class Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1991.
______. "What is Hegemonic Masculinity?" Theory and Society, v. 22, p. 643-657, 1993.
DONALDSON, M.; POYNTING, S. "The Time of their Lives: Time, Work and Leisure in the
Daily Lives of Ruling-class Men." In: HOLLIER, N. (Ed.). Ruling Australia: The Power,
Privilege & Politics of the New Ruling Class. Melbourne: Australian Scholarly, 2004.
EISENSTEIN, Z. R. Capitalist Patriarchy and the Case for Socialist Feminism New York:
Monthly Review Press, 1979.
FERGUSON, H. "Men and Masculinities in Late-modern Ireland." In: PEASE, B.; PRINGLE,
K. (Ed.). A Man's World? Changing Men's Practices in a Globalized World. London: Zed
Books, 2001.
FREUD, Sigmund. From the History of an Infantile Neurosis. Complete Psychological Works
Standard ed. London: Hogarth, 1955. v. 17.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 27/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
GOODE, W. "Why Men Resist." In: THORNE, B.; YALOM, M. (Ed.). Rethinking the Family:
Brazil Some Feminist Questions. New York: Longman, 1982.
GUTMANN, M. C. The Meanings of Macho: Being a Man in Mexico City Berkeley: University
of California Press, 1996. Revista Estudos Feministas
HACKER, H. M. "The New Burdens of Masculinity." Marriage and Family Living, v. 19, n. 3, p.
227-233, 1957.
HERDT, G. H. Guardians of the Flutes: Idioms of Masculinity New York: McGraw-Hill, 1981.
HIGATE, P. R. Military Masculinities: Identity and the State London: Praeger, 2003.
HOCHSCHILD, A. The Second Shift: Working Parents and the Revolution at Home New
York: Viking, 1989.
HOLTER, Ø. G. Gender, Patriarchy and Capitalism: A Social Forms Analysis Oslo, Norway:
University of Olso, 1997.
______. Can Men do It? Men and Gender Equality: The Nordic Experience Copenhagen,
Denmark: Nordic Council of Ministers, 2003.
HOOKS, B. Feminist Theory: From Margin to Center Boston: South End, 1984.
______. Manly States: Masculinities, International Relations, and Gender Politics New York:
Columbia University Press, 2001.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
HUNT, P. Gender and Class Consciousness
OKLondon: Macmillan, 1980.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 28/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
Revista
JANSEN, S. C.; SABO, D. "The Estudos
Sport-war Feministas
Metaphor: Hegemonic
Masculinity, the Persian-
Gulf War, and the New World Order." Sociology of Sport Journal, v. 11, n. 1, p. 1-17, 1994.
KESSLER, S. J. et al. Ockers and Disco-maniacs Sydney, Australia: Inner City Education
Center, 1982.
______. "Globalization and Its Mal(e)contents: The Gendered Moral and Political Economy of
Terrorism." In: KIMMEL, M. S.; HEARN, J.; CONNELL, R. W. (Ed.). Handbook of Studies on
Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage, 2005.
KUPERS, T. A. Revisioning Men's Lives: Gender, Intimacy, and Power New York: Guilford,
1993.
LEA, S.; AUBURN, T. "The Social Construction of Rape in the Talk of a Convicted Rapist."
Feminism & Psychology, v. 11, n. 1, p. 11-33, 2001.
LIGHT, R.; KIRK, D. "High School Rugby, the Body and the Reproduction of Hegemonic
Masculinity." Sport, Education and Society, v. 5, n. 2, p. 163-176, 2000.
MacINNES, J. The End of Masculinity: The Confusion of Sexual Genesis and Sexual
Difference in Modern Society Buckingham, UK: Open University Press, 1998.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
MARTINO, W. "Boys and Literacy: Exploring the Construction of Hegemonic Masculinities
and the Formation of Literate Capacities forOK
Boys in the English Classroom." English in
Australia, v. 112, p. 11-24, 1995.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 29/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
______. "Managing to Kill: Masculinities and the Space Shuttle Challenger Explosion."
Masculinities, v. 3, n. 4, p. 1-22, 1995.
______. Crime as Structured Action: Gender, Race, Class and Crime in the Making
Thousand Oaks, CA: Sage, 1997.
______. Nine Lives: Adolescent Masculinities, the Body, and Violence Boulder, CO:
Westview, 2000.
______. Flesh & Blood: Adolescent Gender Diversity and Violence Lanham, MD: Rowman &
Littlefield, 2004.
______. "Men, Masculinities, and Crime." In: KIMMEL, M. S.; HEARN, J.; CONNELL, R. W.
(Ed.). Handbook of Studies on Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage, 2005.
MESSNER, M. A. Power at Play: Sports and the Problem of Masculinity Boston: Beacon,
1992.
______. Politics of Masculinities: Men in Movements Thousand Oaks, CA: Sage, 1997.
______. Taking the Field: Women, Men, and Sport Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2002.
MESSNER, M. A.; SABO, D. (Ed.). Sport, Men, and the Gender Order: Critical Feminist
Perspectives Champaign, IL: Human Kinetics Books, 1990.
MEUSER, M. "'This doesn't Really Mean she's holding a Whip': Transformation of the
Gender Order and the Contradictory Modernization of Masculinity." Diskurs, v. 1, p. 44-50,
2001.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 30/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
MORRELL, R. "Of Boys and Men: Masculinity and Gender in Southern African Studies."
Journal of Southern African Studies, v. 24, n. 4, p. 605-630, 1998.
Brazil
MORRIS, C.; EVANS, N. "'Cheese Makers are Always Women': Gendered Representations
of Farm Life in the Agricultural Press." Gender, Place and Culture, v. 8, n. 4, p. 375-390,
2001.
NEWBURN, T.; STANKO, E. A. Just Boys doing Business? Men, Masculinities, and Crime
New York: Routledge, 1994.
PEASE, B.; PRINGLE, K. (Ed.). A Man's World? Changing Men's Practices in a Globalized
World London: Zed Books, 2001.
PETERSEN, A. Unmasking the Masculine: "Men" and "Identity" in a Sceptical Age London:
Sage, 1998.
______. "Research on Men and Masculinities: Some Implications of Recent Theory for
Future Work." Men and Masculinities, v. 6, n. 1, p. 54-69, 2003.
PLUMMER, K. (Ed.). The Making of the Modern Homosexual London: Macmillan, 1981.
POYNTING, S.; NOBLE, G.; TABAR, P. "Intersections" of Masculinity and Ethnicity: A Study
of Male Lebanese Immigrant Youth in Western Sydney University of Western Sydney, 2003.
Unpublished manuscript.
ROBERTS, P. "Social Control and the Censure(s) of Sex." Crime, Law and Social Change, v.
19, n. 2, p. 171-186, 1993.
ROPER, M. Masculinity and the British Organization Man Since 1945 Oxford, UK: Oxford
University Press, 1994.
RUBIN, H. Self-made Men: Identity and Embodiment Among Transsexual Men Nashville, TN:
Vanderbilt University Press, 2003.
SABO, D.; GORDON, D. F. (Ed.). Men's Health and Illness: Gender, Power and the Body
Thousand Oaks, CA: Sage, 1995.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
SABO, D.; JANSEN, S. C. "Images of Men in Sport Media: The Social Reproduction of
OK
Gender Order." In: CRAIG, S. (Ed.). Men, Masculinity, and the Media. Newbury Park, CA:
Sage, 1992.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 31/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
SALISBURY, J.; JACKSON, D. Challenging Macho Values: Practical Ways of Working with
Brazil Adolescent Boys Washington, DC: Falmer, 1996.
SCHWALBE, M. "Male Supremacy and the Narrowing of the Moral Self." Berkeley Journal of
Revista Estudos Feministas
Sociology, v. 37, p. 29-54, 1992.
SEGAL, L. Slow Motion: Changing Masculinities, Changing Men London: Virago, 1990.
SKELTON, A. "On Becoming a Male Physical Education Teacher: The Informal Culture of
Students and the Construction of Hegemonic Masculinity." Gender and Education, v. 5, n. 3,
p. 289-303, 1993.
SNODGRASS, J. (Ed.). For Men against Sexism: A Book of Readings Albion, CA: Times
Change Press, 1977.
STOLLER, R. J. Sex and Gender: On the Development of Masculinity and Femininity New
York: Science House, 1968.
TAGA, F. "Rethinking Male Socialization: Life Histories of Japanese Male Youth." In: LOUIE,
K.; LOW, M. (Ed.). Asian Masculinities. London: Routledge Curzon, 2003.
THORNE, B. Gender Play New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1993.
TOMSEN, S. Hatred, Murder and Male Honour: Antihomo-sexual Homicides in New South
Wales, 1980-2000 Canberra: Australian Institute of Criminology, 2002. v. 43.
VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. "Ser hombre en Santiago de Chile: a pesar de todo, un mismo
modelo." In: VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. (Ed.). Masculinidades y equidad de género en
América Latina. Santiago, Chile: FLACSO/UNFPA, 1998.
WAJCMAN, J. Managing Like a Man: Women and Men in Corporate Management Sydney,
Australia: Allen and Unwin, 1999.
WARREN, S. "Who do these Boys think they are? An Investigation Into the Construction of
Masculinities in a Primary Classroom." International Journal of Inclusive Education, v. 1, n. 2,
p. 207-222, 1997.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 32/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
______. Men and Masculinities: Key Themes and New Directions Cambridge, UK: Polity,
2002. Revista Estudos Feministas
WILLIS, P. Learning to Labor: How Working Class Kids Get Working Class Jobs
Farnborough, UK: Saxon House, 1977.
1
N. T.: termo utilizado para traduzir a categoria "
embodiment" usada pelos autores.
2
Este artigo foi publicado originalmente na revista
Gender & Society, v. 19, n. 6, p. 829-859, Dec. 2005.
3
DINGES, RÜNDAL e BAUER, 2004.
4
e.g., DEMETRIOU 2011; e WETHERELL e EDLEY, 1999.
5
KESSLER et al., 1982.
6
Raewyn CONNELL, 1983.
7
CONNELL, 1982.
8
CONNELL et al., 1982.
9
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985.
10
CONNELL, 1987.
11
GOODE, 1982; e SNODGRASS, 1977.
12
TOLSON, 1977.
13
Maxine Baca ZINN, 1982.
14
Angela DAVIS, 1983.
15
Bell HOOKS, 1984.
Este site
16 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
CONNELL, 1977.
OK
17
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 33/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
EISENSTEIN, 1979.
18
Brazil
HACKER, 1957.
19
BRANNON, 1976. Revista Estudos Feministas
20
KIMMEL 1987; e PLECK, 1981.
21
ALTMAN, 1972.
22
MIELI, 1980.
23
MORIN e GARFINKLE, 1978.
24
BROKER, 1976; e PLUMMER, 1981.
25
WILLIS, 1977.
26
COCKBURN, 1983.
27
HERDT, 1981; e HUNT, 1980.
28
FREUD, 1955.
29
STOLLER, 1968.
30
FRIEDMAN e LERNER, 1986; e ZARETSKY, 1975.
31
e.g., BROD, 1987.
32
MARTINO, 1995.
33
SKELTON, 1993.
34
MESSERSCHMIDT, 1993.
35
NEWBURN e STANKO, 1994.
36
JANSEN e SABO, 1994.
37
HANKE, 1992.
38
Este site usa cookies
MESSNER, 1992. para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
39 OK
MESSNER e SABO, 1990.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 34/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
40
N. T.: no original "
Brazil
playing hurt", expressão de língua inglesa usada para várias situações em que o sujeito, mesmo
lesionado ou com dor, dá continuidade a determinada prática. Expressão muito ligada aos
esportes e às práticas sexuais masculinas.
Revista Estudos Feministas
41
SABO e GORDON, 1995.
42
GERSCHICK e MILLER, 1994.
43
CHENG, 1996; e COCKBURN, 1991.
44
MESSERSCHMIDT, 1995.
45
BARRETT, 1996.
46
KUPERS, 1993.
47
DENBOROUGH, 1996.
48
SALISBURY e JACKSON, 1996.
49
BELTON, 1995.
50
BERG, 1994.
51
THORNTON, 1989.
52
SEGAL, 1990.
53
BUFKIN, 1999; e MESSERSCHMIDT, 1997.
54
MESSNER, 1992.
55
SABO e JANSEN, 1992.
56
ROBERTS, 1993.
57
BROWN, 1999.
58
CONSALVO, 2003.
59
VALDÉS e OLAVARRÍA, 1998.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
60
ISHII-KUNTZ, 2003. OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 35/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
61
HIGATE, 2003.
Brazil
62
GUTMANN, 1996.
Revista Estudos Feministas
63
MORRELL, 1998.
64
FERGUSON, 2001.
65
DASGUPTA, 2000.
66
TAGA, 2003.
67
MEUSER, 2003.
68
MORRIS e EVANS, 2001.
69
COLLINSON e HEARN, 1994.
70
HEARN, 1996 e 2004.
71
PETERSEN, 1998 e 2003.
72
COLLIER, 1998.
73
MacINNES, 1998.
74
WHITEHEAD, 2002.
75
CONNELL, 2003.
76
HALBESRTAM, 1998; e MESSERSCHMIDT, 2004.
77
GUTMANN, 1996.
78
WARREN, 1997.
79
HAWKESWORTH, 1997.
80
SCOTT, 1997.
81
CONNELL, 2002; e WALBY, 1997.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
82
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985. OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 36/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
83
MESSNER, 1992.
Brazil
84
GERSCHICK e MILLER, 1994.
Revista Estudos Feministas
85
DONALDSON, 1991.
86
SABO e GORDON, 1995.
87
MESSERSCHMIDT, 2000.
88
CONNELL, 1995, cap. 2.
89
BROD, 1994.
90
DONALDSON, 1993.
91
CONNELL, 1990.
92
MARTIN, 1998.
93
WETHERELL e EDLEY, 1999.
94
WHITEHEAD, 1998, p. 58; e 2002, p. 93.
95
DONALDSON, 1993.
96
ROPER, 1994.
97
WAJCMAN, 1999.
98
HOCHSCHILD, 1989.
99
MAC AN GHAILL, 1994; e THORNE, 1993.
100
CAVENDER, 1999.
101
102
HOLTER, 1997.
103
HOLTER, 1997 e 2003.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
104
BARRETT, 1996. OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 37/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
105
CAMPBELL, 2000.
Brazil
106
MARTINO, 1995; e WARREN, 1997.
Revista Estudos Feministas
107
COLLIER, 1998.
108
MARTIN, 1998, p. 473.
109
McMAHON, 1993.
110
N. T.: no original "
new lad" diz respeito a uma subcultura masculina que surgiu na Inglaterra no início dos anos
1990.
111
MOSHER e TOMKINS, 1988.
112
WETHERELL e EDLEY, 1999.
113
COLLIER, 1998.
114
COLLIER, 1998, p. 21.
115
MESSERSCHMIDT, 1993.
116
WETHERELL e EDLEY, 1999, p. 337.
117
WHETHERELL e EDLEY, 1999.
118
WHITEHEAD, 2002, p. 93.
119
WHITEHEAD, 2002, p. 92-94.
120
COLLIER, 1998; e JEFFERSON, 1994, p. 73.
121
LEA e AUBURN, 2001.
122
ARCHER, 2001.
123
RUBIN, 2003.
124
RUBIN, 2003.
125 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Este site
JEFFERSON, 1994 e 2002.
OK
126
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 38/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
MESSERSCHIMIDT, 2005.
127
Brazil
CARRIGAN, CONNELL e LEE, 1985; e CONNELL, 1987.
128
WHITEHEAD, 2002. Revista Estudos Feministas
129
CONNELL, 2002.
130
CONNELL, 1995.
131
HAWKESWORTH, 1997.
132
BOURDIEU, 2001.
133
BIRD, 1996.
134
COLLINSON, KNIGHTS e COLLINSON, 1990.
135
COCKBURN, 1991.
136
MARTIN, 2001.
137
HOOPER, 2001.
138
TOMSEN, 2002.
139
KIMMEL e MAHLER, 2003; e MESSERSCHIMIDT, 2000. N. T.: no original "
sissiness".
140
DEMETRIOU, 2001.
141
DEMETRIOU, 2001.
142
DEMETRIOU, 2001, p. 355.
143
DEMETRIOU, 2001.
144
DEMETRIOU, 2001.
145
DEMETRIOU, 2001.
146
JEFFERSON, 2002, p. 71.
147 usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
Este site
MEUSER e BEHNKE, 1998.
OK
148
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 39/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
MESSNER, 1997.
149
Brazil
CONNELL, 1987, p. 183.
150
DEMETRIOU, 2001. Revista Estudos Feministas
151
POYNTING, NOBLE e TABAR, 2003.
152
MESSERSCHMIDT, 2004.
153
HOOPER, 1998 e 2000.
154
CONNELL, 1998.
155
PEASE e PRINGLE, 2001.
156
KIMMEL, 2005.
157
MESSNER, 2002.
158
LIGHT e KIRK, 2000.
159
BURGESS, EDWARDS e SKINNER, 2003.
160
MITTELMAN, 2004.
161
CONNELL e WOOD, 2005; e HOOPER, 2001.
162
CONNELL, 2005; e MORRELL e SWART, 2005.
167
DONALDSON e POYNTING, 2004.
163
RUBIN, 2003.
164
NAMASTE, 2000.
165
RUBIN, 2003, p. 180.
166
CONNELL, 2002.
168
SCHWALBE, 1992.
169
Este site usa cookies
MEUSER, 2001. para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
170 OK
DEMETRIOU, 2001.
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 40/41
24/06/2021 SciELO - Brazil - Masculinidade hegemônica: repensando o conceito Masculinidade hegemônica: repensando o conceito
171
COLLIER, 1998.
Brazil
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License.
Este site usa cookies para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação.
OK
https://www.scielo.br/j/ref/a/cPBKdXV63LVw75GrVvH39NC/?lang=pt 41/41
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar
e o Museu de Reinata que é ou não uma mulher emancipada?
(porque ninguém se lembraria de perguntar
se a Paula Rego é ou não uma mulher emancipada)
Teresa Cunha
2010
RESUMO
1. Introdução
2
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
Sendo as raízes ainda coloniais, as opções deste trabalho são pós-coloniais pois
sabem da sua incompletude, da potencial violência epistémica exercida sobre quem
ainda não exerceu o poder de suspender a minha memória para a criticar, limitar e
amplificar com a sua própria, com os seus conhecimentos e com a maneira como
quer e pensa ser apropriado comunicá-los. A minha abordagem sendo qualitativa não
pretende realizar generalizações, inferir tendências aplicáveis a uma realidade social
tão complexa e vasta. Pelo contrário, a minha opção é trabalhar na intensidade que
as narrativas e as auto-reflexões de que elas são epifanias, trazem para o
conhecimento e para a problematização dos tópicos em discussão. Nesta
apresentação procuro ensaiar e dar corpo ao conceito de aprender com o Sul, no
sentido de encontrar outros ângulos de compreensão e de teorização sobre
feminismos e a emancipação das mulheres, exercitando, o quanto possível, uma
epistemologia pós-colonial.
3
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
“- Hoje em dia, nós as mulheres, exigimos os nossos direitos como seres humanos e
queremos viver uma vida livre de violência, dormindo em paz e sem temer agressões
constantes do marido ou companheiro, que devem ser quem presta apoio e
solidariedade.
4
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
- Hoje em dia, nós as mulheres, denunciamos a violência doméstica como um dos mais
graves atentados aos direitos humanos das mulheres e como uma forma de controle
para manter a dominação feminina.”
Depreendo destes excertos que a emancipação das mulheres, segundo as suas autoras
Moçambicanas, está, intrinsecamente relacionada com, a ausência de violência sobre
si, os seus direitos humanos e o fim do controlo das mulheres pelos homens. Atrevo-
me a afirmar que, até aqui, parece estarmos partilhando, sem percalços de maior,
ideias, conceitos e representações.
No ‘Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos Relativo aos Direitos
da Mulher Africana’ (Fórum Mulher, 2006: 101) declara-se solenemente no preâmbulo
que:
Mais uma vez, podemos considerar transparente que a emancipação das mulheres é
definida em termos de igualdade, plena participação e preservação dos valores
africanos. Temos assim, uma amplificação relevante dos termos em que uma mulher
é e é reconhecida como emancipada: não sofre e não teme qualquer tipo de
violência, não é exercido controlo sobre ela, participa plena e igualmente na
sociedade e na preservação dos seus valores próprios. Creio que podemos concordar
que esta é uma imagem, que contém uma definição de emancipação que ainda nos
governa e, atrevo-me mais uma vez a dizer, que nos une no seu essencial.
“Vai ser um rodopio na minha cabeça porque ali as coisas estão muito mais próximas
do que conseguimos saber e sequer imaginar.
Imaginem um labirinto que não é. Imaginem trinta lojas de medicamentos como
incensos, gorduras, tónicos, cascas, madeiras, óleos, amuletos e muitas outras coisas
que não sei nomear. De repente, nas estruturas palafíticas (paus finos e escuros e
ainda por cima totalmente irregulares, exactamente como as árvores os deram)
surgem televisões de último modelo ligadas e, defronte, a secção das malas de viagem
iguais a de uma qualquer loja em que cada uma e um de vós costuma comprar as suas.
5
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
É uma impertinência até porque os corredores de terra têm para aí metro e meio de
largura e estão apinhados de pessoas que podem comprar ou encomendar qualquer
coisa.
Ali, nos mercados, as mulheres falam três e quatro línguas, fazem cálculos em várias
bases passaram e conhecem vários regimes políticos, ajustamentos estruturais, neo-
liberalismo, partido único e pluri-partidarismo, colonialismo, revolução e desilusão; a
maioria passou por muita terra, duas guerras e têm várias profissões. É preciso
pedalada.
Afinal não resisti e comecei a falar de Xipamanine.”
A Esmeralda tem dois filhos, Tomazito e Pedro e uma filha, a Edna. A Esmeralda é
uma das três esposas do seu marido. A cerimónia de anelamento – casamento – foi
um dos momentos mais importantes da sua vida porque escolheu aquele homem para
marido e está testemunhada em fotos lá em casa em lugar de destaque. Junto à casa
tem uma machamba onde planta milho, batata doce, m’boa e tudo o mais que
precisa. Tem casa de banho devidamente perto da torneira e longe do resto da casa.
A Esmeralda trabalha desde que terminou os estudos e é independente
economicamente da família desde os 15 anos de idade. Fala, escreve e lê três
línguas. Não quer ter mais filhos e por isso toma, rigorosamente, a pílula anti-
concepcional e é apoiada pelos conselhos dos médicos e vizinhas. A Esmeralda
define-se assim (Ibidem: 189):
“- Eu sofro de alegria!”
“Sempre com calma e com tranquilidade a Esmeralda foi pedindo a cada um dos filhos
pequenos serviços e quando me dei conta havia uma mesa cá fora com pratos colheres
salada condimentos cerveja e copos. Veio a xima nos pratos a fumegar e a cheirar a
coco, a galinha grelhada num prato coberto e, antes de tudo, uma bacia, água e
sabonete para lavar as mãos. Pedrito com 17 anos organizava dentro de casa e,
seguindo as suaves indicações da mãe, ia aparecendo com tudo, recolhendo pratos e
6
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
7
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
“Figura impressiva. Claro que compreende português mas faz de conta que só
compreende e fala Maconde. Contudo ela tem realmente peças muito bonitas na sua
oficina super simples e mesmo pobre. Sabe negociar e o negócio fica ainda mais
interessante porque ela usa a Dª Judite como intérprete como se não entendesse nada
das propostas que lhe são feitas. Um mimo de tradição na rudeza do barro numa
mistura indelével com os hábitos modernos de se deixar capturar para ser fotografada
como a autora daquela peça ‘exótica’ de arte que se coloca em casa, sinal do longe, do
diferente, do que não se entende nem é preciso.
A Reinata é uma grande artista e uma grande actriz.”
“I would like to suggest another way to go further toward a new economy of power
relations, a way that is more empirical, more directly related to our present situation,
and one that implies more relations between theory and practice. It consists in taking
the forms of resistance against different forms of power as a starting point. To use
another metaphor, it consists in using this resistance as a chemical catalyst so as to
bring to light power relations, locate their position, find out their point of application
and the methods used. Rather than analyzing power from the point of view of its
internal rationality, it consists of analysing power relations through the antagonism of
strategies.” 1
1
Gostaria de sugerir uma outra maneira de prosseguir uma nova economia das relações de poder, uma
forma mais empírica, mais directamente relacionada com a nossa presente situação e que implique
mais relações entre a teoria e a prática. Consiste em tomar as formas de resistência contra diferentes
formas de poder, como ponto de partida. Usando uma outra metáfora, consiste em usar esta
resistência como um catalisador químico que permita trazer à luz relações de poder, localizar a sua
posição, descobrir as suas aplicações e os seus métodos. Mais do que analisar o poder do ponto de vista
8
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
Deste modo, sugiro que tomemos como ponto de partida, as palavras, os termos com
que elas próprias definem os seus poderes. Os termos que emergem da narração das
suas biografias imersas na complexa capilaridade de relações de poder assentes em
idade, género, raça ou estatuto social. Elas usam estratégias em que se sobrepõem
padrões de idealismo e pragmatismo e que são povoadas de aceitação, oposição,
humildade e raiva, mas que constituem, quase sempre, dinâmicas de antagonismo.
Com uma forte capacidade de infiltração nas comunidades, estas mulheres têm
sabido submeter-se, resistir, encontrar alternativas, pensar sobre si mesmas e
exercer os seus poderes. Maria Lúcia designa, assim, esta realidade (Amal, 2009:
753):
“É certo que há coisas que as mulheres conseguem fazer e os homens não. Não me
refiro apenas àquelas que parecem inevitáveis como dar à luz e amamentar; mas sim
manter a calma, a serenidade, ser capaz de ir aonde todos têm medo para negociar
alguma coisa, não se excitar e colocar tudo a perder em caso de conflito grave, não
usar a força como meio de resolver as coisas.
(...)
Alguns homens vieram falar comigo para tentar continuar a viver com a memória de
terem aberto as barrigas das mulheres para tirarem de dentro dos úteros as crianças e
matá-los contra as pedras ou estrangulando mãe e filho. Também contam como
mataram homens e jovens inocentes estrangulando-os depois de os ferirem de catana.
da sua racionalidade interna, consiste em analisar as relações de poder através das estratégias de
antagonismo.
9
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
Só uma mulher pode ouvir estas coisas sem ficar a odiar e sem perder, de novo e logo,
a cabeça.
(...)
As mulheres, sim, são fortes. De uma força visível nos seus actos de reconstruir sempre
as casas, procurar alimento e distribuir alimento mesmo quando escasseia muito. As
mulheres é que são fortes pois suportam todas as dificuldades e sofrimentos e nunca
desistem das suas famílias.”
“- Sabem escrever
- Sabem ler as cartas na comunidade
- Fazem requerimentos
- Sabem lidar com as instituições – mediar os poderes
- Têm um negócio e têm acesso a certos bens
- Emprestam dinheiro
- Têm casas de ‘descanso’ para os homens.”
10
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
“Então a partir de um certo momento estávamos com umas sete mulheres e a Vovó
Betuxa sentada na cadeira principal (...). A conversa começou e logo aí a Vovó
começou a dizer que não queria falar português primeiro porque não sabia e depois
porque estava cansada. Ela falava e fazia uma pergunta em ronga a que todas as
mulheres respondiam dando o seu assentimento ou mostrando a sua concordância num
coro bem afinado. Às perguntas não havia respostas a não ser, não entendo, não sei...
seguidas de um coro de mulheres que de caras fechadas corroboravam as frases da
líder. Num certo momento e com alguma impaciência a conversa começou a ter o tom
da vitimização: somos as mais pobres dos pobres, não temos nada, o que precisamos é
de apoio, é de dinheiro, não precisamos de conversas. O encontro estava a tornar-se
impossível. (...) Naquele momento o que me moveu, principalmente, foi ter a noção
de que a sua pobreza era de facto absoluta e as suas necessidades eram reais. Ponderei
durante alguns minutos sobre as regras das entrevistas e, como sempre me pareceu um
pouco estúpido - digo mesmo assim - pretender que entrevistadora e entrevistada se
devem desocupar uma da outra, que a objectividade não se emociona nem se deixa
influenciar, que a ciência precisa tanto de pureza e desprendimento como de
disciplina, acabei por resolver arriscar dar dinheiro com o assentimento tímido e
precipitado da Telma.
Nesse momento escutei a Vovó dizer:
- Eu sou esperta!
Ela tinha conseguido e, nesse mesmo momento, experimentei do seu poder. Se eu
quero perceber que poderes e como os usam as mulheres que os têm ali se passou uma
peça brilhante de observação participante e deixei-me render ao poder e à inteligência
daquela Mamana. Ela usou o discurso, o cenário, o coro das mulheres para obter aquilo
que queria e tinha-me avaliado muito bem.
Se estou arrependida de lhe ter oferecido 500 mt? Nem um pouco. Estou certa que
compreendi com aquilo que se passou muito mais sobre os poderes, as subtilezas, as
manobras das mulheres que com as entrevistas purificadas que poderia ter feito a cada
uma delas.
Em seguida houve palavras e respostas que bem vistas as coisas não acrescentaram
muitas ideias; cantaram e abriram os rostos em sorrisos. O ambiente transformou-se e
a mamã Rabeca, ou Vovó Betuxa, continuou a controlar a situação mas naquela altura
com o meu consentimento e com o meu entendimento, pelo menos parcial, do que se
estava ali a passar.
Então que poderes descobri, ou pelo menos vislumbrei?
esconder
vitimizar
controlar
negociar
fazer alianças temporárias e as alianças necessárias
controlar o conhecimento dos espaços
controlar a informação
jogar com os sentimentos e os desconhecimentos de quem não faz parte da
comunidade
falar e compreender várias línguas e saber que se está em vantagem por isso
Controlar o fluxo de informação
Liderar um grupo de forma a estabelecer uma caixa de ressonância das suas posições
reforçando-as e tornando-as dominantes
Usar da autoridade formal e da autoridade da idade
Poderei ainda encontrar outras formas de auto-determinação, de afirmação de
vontade, de força, vitalidade, de energia e de pensamento próprio. Creio que tudo isto
constitui a noção de poder e quero problematizar e tematizar na minha tese.”
Talvez só não seja claro para mim. Mas, do meu ponto de vista, todos estes poderes
são políticos e são essenciais às comunidades humanas contrariando, sem pudor, um
11
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
A esta pergunta junto a estória das vendedeiras de rua de Maputo e que é a seguinte
(Ibidem: 217-218):
“Pode-se argumentar que a pobreza empurra aquelas mulheres para as beiradas dos
passeios muitas vezes em cima de charcos fétidos e de lama preta. Estão ali a vender
alguns tomates e umas quantas tangerinas. Se passarmos às oito da manhã elas estão
lá com o seu pano estendido e os seus produtos arrumados. Se voltarmos a passar às
cinco da tarde, não é incomum vê-las no mesmo sítio e com os mesmos tomates e
tangerinas, igualmente arrumados nos montinhos ainda por vender.
Pode-se dizer que a pobreza destas mulheres as fixa aos charcos nojentos da cidade e
que as beiradas que ocupam são mais do que um buraco no passeio: são realmente a
margem, o limite, o único lugar que encontraram para si.
Mas também há uma outra forma de pensar sobre a mesma coisa.
O artista de batik Martin disse-me que arranjara uma banquinha para uma das irmãs ir
vender laranjas. Sem dinheiro para continuar na escola, sem casa para cuidar, sem
arroz para cozinhar, esta foi uma estratégia não só de sobrevivência mas também de
realização pessoal. Ela prefere sair de casa; prefere o passeio e os montinhos de
laranja do que ficar a ver passar as horas junto de uma casa sem nada, sem machamba
para trabalhar e produzir.
Algumas mulheres dizem que assim saem das suas casas, aprendem a lidar com a
cidade, podem ganhar algum dinheiro, arranjam-se o melhor que podem para não
perderem a dignidade junto das outras. Assim convivem, conversam e algumas
começam a pensar em voltar para a escola quando as oportunidades surgem. Ali vêm
passar os carros engolem os fumos, contraem doenças, podem ser escorraçadas e
batidas pelas polícias ou ladrões mas a insistência com que permanecem ali talvez nos
conte uma história de pobreza, de trágico ganha pão mas também uma escolha
arriscada, corajosa e determinada.
É esta ambivalência que é intrigante. Aparentemente sem escolhas, pode-se dizer que
algumas destas mulheres afirmam ter conseguido dar passos de qualidade nas suas
vidas. E quando conseguem um metro quadrado no mercado informal, um lugar nos
xitiques semanais e um avental de vendedeira, o caminho realizado é muito mais do
que as nossas pobres cabeças estão treinadas para pensar e imaginar. Não fecho os
olhos à pobreza e à injustiça estruturante do modelo económico e de desenvolvimento
capitalista. Nem tão pouco me passa pela cabeça encontrar justificações para este
estado de gentes. Não me conformo nem desisto de pensar que crise, a verdadeira
crise, é deixar tudo como está. A violência está visível e é incontornável. Mas o olhar
de Zumurrud impõe-se inevitável e fala:
- Hei-de conseguir!”
12
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
Estas minhas notas de campo não resolvem o assunto. Pelo contrário, lançam ainda
mais perplexidades e problemas analíticos para a discussão. O meu propósito é
mostrar como se pode tornar contraditória e infindável esta discussão. Contudo, o
meu grande objectivo é contribuir para um pensamento feminista aprendente e
humilde que não se satisfaz com as categorizações e definições que tanto têm vindo
a ser usadas. Do meu ponto de vista, não são apenas os contextos, os lugares de
enunciação que exigem um pensamento refrescado e uma nova teorização. São
também os limites endógenos das nossas teorias de vanguarda, modernas e
prescritivas que povoam os livros, as mentes, os imaginários, os slogans e que,
indelevelmente, vão decidindo quem é, ou não é, uma mulher emancipada. A
Reinata é uma mulher emancipada? E Dona Isabel Senhorinha? E Mariana? E Delfina
(Ibidem: 795-797; 798-801; 809-810)?
a) Uma SOCIOLOGIA DOS RESGATES que pensa o lugar do passado no presente e uma
ecologia da enunciação da emancipação - porque esta tem que ser compreensível,
concreta e resultar na felicidade das pessoas. Uma sociologia dos resgates
pretende redescobrir e resgatar do tecido social e dos imaginários tudo aquilo que
tem sido encoberto e olvidado mas que já mostrou ser útil, eficaz e capaz de se
transfigurar em novos conhecimentos e tecnologias de emancipação pessoal e
colectiva. É, particularmente, importante em sociedades marcadas por episódios
de grande violência e destruição e cujas políticas de memória nem sempre
respeitam as vítimas nem os ganhos emancipatórios de antes. Pensar assim a
emancipação das mulheres através desse resgate sociológico remete-me para o
seu carácter performativo e exemplar: umas para as outras, umas das outras,
umas com as outras, as mulheres constroem as suas próprias formas de
emancipação.
13
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
2. Notas de arremate
Neste trabalho procurei dar corpo a algumas das interpelações que o trabalho de
campo realizado no âmbito da minha pesquisa de doutoramento me suscitou.
Formulei-as em três questões de partida: quem é uma mulher emancipada? O que são
os poderes das mulheres? Localizar, biografar não pode reforçar a discriminação e a
dominação sobre as mulheres? O meu exercício foi argumentar através de outros
termos e de outras formas de entender e de exercitar a razão ou a desrazão das
coisas. Contei para isso com as estórias e as lições aprendidas com as mulheres e
14
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
homens com quem tenho vindo a trabalhar e a conversar e ainda com as muitas
reflexões que fui fazendo e faço. Quero acabar este ensaio com uma última reflexão
e que considero o texto deste texto.
Aprendi em Moçambique, com uma mulher, que o professor dela já dizia há vinte
anos:
Ao chegar a Dili, repetiu-se o mesmo amargo de boca que tivera em Maputo. A cada
mulher a quem perguntei quais eram os momentos em que ser mulher era
importante, que poderes tinham dentro e fora da família, a mesma hesitação e o
mesmo silêncio. Tornara-se impensável e impronunciável. Claro, pensei eu. As
mulheres e as meninas são as mais pobres, as maiores vítimas de violência em tempo
de guerra ou fora dela, em casa ou na rua, são as que trabalham mais e menos
rendimentos têm. Elas são, sem dúvida, as subalternas, as margens das margens, as
silenciadas. Passados alguns dias comecei a ver. E vi o quê?
Vi duas cidades cheias de vítimas tematizadas de todas as maneiras nos cartazes, nos
anúncios das conferências internacionais, nos programas de televisão, na propaganda
dos governos, nas iniciativas da UNIFEM e da UNICEF, nos ‘perfis de género’, nas
igrejas, nos centros de recurso e também nos Centros de Estudos do Género.
15
Teresa Cunha
Zimpeto: O mercado abastecedor da arte de pensar e o Museu de Reinata
que é ou não uma mulher emancipada?
Eu posso.
Eu compreendo que me odeiem pelo resto dos vossos dias mas será que vermos
tanto, falarmos tanto, escrevermos, estudarmos tanto, sublinharmos as vítimas que
elas são - e como são! - não pode ser como a guerra? Destrói a memória, destrói as
palavras, destrói o poder das mulheres para se emanciparem, pensarem-se e
fazerem-se feministas do seu tempo, do seu lugar e da sua imaginação social?
“- O soldado (...) fazia só o seu trabalho dele que era matar. Os maburros esses eram
maus. Além de matar e matavam melhor (...) que é o trabalho da guerra, eles partiam
as panelas” (Ibidem: 123).
Referências Bibliográficas
Nota biográfica
Teresa Cunha nasceu no Huambo em Angola. Estudou Filosofia, Ciências da Educação
e Sociologia. Tem vários trabalhos publicados em vários países sobre Feminismos,
Timor-Leste e Educação dos quais se destacam os mais recentes: Tecendo margens
no oceano Índico: Paz, Justiça Social e Mulheres de Moçambique e Timor-Leste e
Challenging International ‘Rationales: Another understanding to Timor-Leste and
Mozambique publicados pela Universidade de Vitória, Austrália; Against the Waste of
Experiences in Intercultural Learning, publicado pelo Conselho da Europa;
Reconnaître l’inconnu. Vers un dialogue interculturel en Europe, publicado pelo
Observatório das Políticas Culturais de França e Critérios para avaliar organizações
não lucrativas ou nove teses para aprofundar a democracia do Terceiro Sector
publicado pela Universidade Metodista, Brasil.
É doutoranda do CES estando a terminar a sua dissertação cujo título é: Para além de
um Índico de desesperos e revoltas. Uma análise feminista pós-colonial sobre as
estratégias de vida e de poder de mulheres de Moçambique e Timor-Leste. As suas
áreas de interesse em termos de investigação são: feminismos e pós-colonialismos no
Oceano Índico em particular Timor-Leste e Moçambique; estudos para a paz;
emancipação social. É Professora na Escola Superior de Educação do Instituto
Politécnico de Coimbra, Portugal.
Contacto: tahine@ces.uc.pt
16
Teresa Cunha
24/06/2021 Vista do Mulheres especialmente marginalizadas: uma entrevista com Dolores Juliano. DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0010
Mulheres especialmente marginalizadas: uma entrevista com Dolores Juliano. DOI: 10.5212/Rlagg.v.7.i1.0010
https://revistas2.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/8043/Artigo 1/1
Redalyc
Sistema de Información Científica
Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal
Piscitelli, Adriana
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
Sociedade e cultura, Vol. 11, Núm. 2, julio-diciembre, 2008, pp. 263-274
Universidade Federal de Goiás
Brasil
Sociedade e cultura
ISSN (Versión impresa): 1415-8566
robertolima@fchf.ufg.br
Universidade Federal de Goiás
Brasil
¿Cómo citar? Número completo Más información del artículo Página de la revista
www.redalyc.org
Proyecto académico sin fines de lucro, desarrollado bajo la iniciativa de acceso abierto
Interseccionalidades, categorias
de articulação e experiências
de migrantes brasileiras
Adriana Piscitelli
Doutora em Ciências Sociais - Unicamp
Pesquisadora do Pagu - Unicamp
adriana.piscitelli@pq.cnpq.br
Resumo Neste texto apresento alguns comentários sobre o surgimento de categorias que alu-
dem à multiplicidade de diferenciações que, articulando-se a gênero, permeiam o so-
cial. São as categorias de articulação e/ou as interseccionalidades (intersectionalities).
Analiso o conteúdo atribuído a esses conceitos e considero como eles contribuem para
analisar uma problemática relevante no Brasil contemporâneo: a feminização da mi-
gração internacional. Na primeira parte do artigo, situo a emergência desses conceitos
no marco da história do pensamento feminista. Na segunda parte, considero como
suas utilizações adquirem conotações distintas no que se refere à conceitualização das
diferenças, das maneiras como o poder opera e das margens de agência (agency) con-
cedidos aos sujeitos em distintas abordagens teóricas. Finalmente, na terceira parte,
refl ito sobre esses conteúdos levando em conta aspectos vinculados à integração de
migrantes brasileiras no mercado global de trabalho e no mercado matrimonial.
Introdução
terseccionalidades – e considero que algumas de suas óricas feministas explicavam a situação de subordinação
vertentes contribuem para analisar uma problemática das mulheres utilizando simultaneamente ambos con-
relevante no Brasil contemporâneo: a feminização da ceitos. Vale lembrar que, embora o Patriarcado sempre
migração internacional. Na primeira parte do artigo, seja considerado como sistema de dominação masculi-
situo a emergência desses conceitos no marco da histó- na, há diferenças entre as maneiras de concebê-lo em
ria do pensamento feminista. Depois considero como correntes feministas radicais e socialistas. Às primeiras
suas utilizações adquirem conotações distintas no que atribui-se a disseminação da idéia de Patriarcado como
se refere à conceitualização das diferenças, das maneiras sistemas de opressão presentes ao longo do tempo e
como o poder opera e das margens de agência (agency) mediante as culturas, implicando que, universalmente,
concedidos aos sujeitos em distintas abordagens teóri- as mulheres compartilham uma realidade separada dos
cas. Finalmente, reflito sobre esses conteúdos levando homens. Nas correntes socialistas, o patriarcado adqui-
em conta aspectos vinculados à integração de migrantes re uma dimensão histórica (variando no tempo) e uma
brasileiras no mercado global de trabalho. base material, intimamente ligado aos modos de pro-
dução e reprodução – embora sua existência em modos
de produção muito diferentes evoque os pressupostos
radicais sobre a dominação masculina transhistórica
Debate feminista, gênero, (Heinen, 2000; Grant, 1993; Mohanty, 1991).
diferenças e poder Diversas autoras, porém, passaram a questionar
o caráter transhistórico e/ou a fi xidez desse conceito
(Apfelbaum, 2000). Elas se perguntaram seriamente
Para situar a emergência dessas categorias é im- em que consistia a dominação masculina, como se
portante pensar em um momento, no final da década media? Seria possível pensar essa dominação como
de 1980. É o grande momento em que várias autoras, universal? Seria possível considerar como equivalen-
trabalhando no âmbito de diferentes tradições discipli- tes aspectos tais como o lugar das mulheres na divisão
nares, publicaram textos críticos sobre gênero que se sexual do trabalho, sua desvalorização nos mitos ou o
tornaram referências clássicas nas discussões contempo- controle das mulheres mediante um estupro coletivo?
râneas. Refiro-me a Scott (1988) entre as historiadoras, (Rubin, 1975; Reiter, 1975).
a Strathern (1988) na antropologia, a Haraway (1991) Nos escritos críticos de finais da década de 1980
na história da ciência, a Butler (1990), na filosofia. Al- há sérias problematizações a noções correntes no pen-
gumas dessas autoras esperavam, valendo-se do traba- samento feminista sobre as operações do poder, parti-
lho com gênero, produzir deslocamentos nos paradig- cularmente à universalização do quadro ideológico do
mas disciplinares no marco dos quais trabalhavam. poder e das relações de poder presentes no paradigma
Por que textos críticos? Porque essas obras ques- ocidental das relações de gênero. Algumas antropó-
tionaram os pressupostos embutidos nas primeiras for- logas chamaram a atenção para o fato de que a com-
mulações de gênero, as perspectivas sobre poder que preensão do gênero ocidental, incluindo o pensamento
estavam informando várias linhas de análises feminis- feministas, está ligada não apenas às relações entre os
tas e, também, a centralidade concedida ao gênero em sexos, mas a idéias mais gerais sobre como a cultura é
termos das forças sociais que oprimem às pessoas. diferente de e superior à natureza. No centro desse pa-
A partir da segunda metade da década de 1970, radigma haveria uma teoria do poder e o político, que
o conceito de gênero, pensado como construção cul- inclui noções muito específicas sobre relações de do-
tural e arbitrária, variável, de aspectos vinculados ao minação e subordinação, exploração, coerção, controle
sexo biológico, tido como natural é imutável, tinha se e desigualdade (Overing, 1986; Strathern, 1988). Es-
difundido de maneira extraordinária. Esse conceito, sas autoras contestaram a universalidade da hierarquia
pensado no marco da distinção entre sexo e gênero, e da subordinação feminina com base em leituras de
era considerado como um avanço em relação à ca- sistemas nativos de moralidade e de concepções nativas
tegoria mulher (Piscitelli, 2002). Os escritos críticos do poder e o político. De acordo com elas, a dominân-
de finais da década de 1980, porém, questionaram os cia masculina, nos contextos nos quais ela se apresenta,
pressupostos presentes na distinção sexo/gênero. Um não poderia ser universalmente pensada em termos da
dos motivos foi a fi xidez e unidade que essa distinção lógica ocidental, ancorada em pressupostos de proprie-
conferia às identidades de gênero, ao formular a exis- dade, à maneira como se possui uma mercadoria.
tência de uma base biológica imutável que dividia a Esses questionamentos foram realizados por meio
humanidade em dois sexos e, consequentemente, em de um deslocamento nos referenciais teóricos utiliza-
dois gêneros. Outro dos aspectos problematizados foi dos. As autoras passaram a se ancorar em aproxima-
a universalidade atribuída a essa distinção. ções desconstrutivistas. Refiro-me ao procedimen-
Embora as primeiras formulações da distinção entre to de olhar criticamente para os supostos sustentados
sexo e gênero foram pensadas como alternativa possível por diversas disciplinas, examinando e desmontando
ao trabalho com o conceito de Patriarcado, muitas te- sua lógica discursiva. A produção crítica sobre gêne-
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
265 Adriana Piscitelli (Unicamp)
ro possibilita perceber uma convergência no que se com outras diferenças têm sido tensa, uma vez que
refere a problematizar os modelos teóricos totalizan- algumas correntes consideravam que dar peso a elas
tes. As autoras contestam a validade dos modelos que debilitava um pressuposto político relevante: a iden-
buscam analisar e explicar as transformações históricas tidade entre mulheres. Os escritos críticos de finais
pressupondo, por exemplo, a continuidade de certas da década de 1980 tendem a reconhecer essas dife-
estruturas e/ou instituições. Elas questionam, tam- renças. Entretanto, esse reconhecimento nem sempre
bém, as abordagens que formulam uma compreensão se expressou no plano analítico e, quando ele existiu,
da diferença tendo como referência um Outro exóge- muitas vezes privilegiou uma única diferença articu-
no, externo, procedimento que mantém o princípio lada a gênero1.
de uma unidade e coerência cultural interna. Essas Algumas das autoras que se envolveram nas refor-
teóricas trabalham com a idéia de dissolução do sujeito mulações críticas do conceito de gênero enunciaram a
universal autoconsciente; valorizam a linguagem e o importância de considerar conjuntamente classe, raça
discurso como práticas relacionais, que produzem e e gênero. Entretanto, elas continuaram privilegiando
constituem as instituições e os próprios sujeitos como a categoria gênero. Joan Scott (1988), por exemplo,
sujeitos históricos e culturais e compreendem, enfim, afirma que, como feminista, seu compromisso é, so-
a produção de saber e significação como ato de poder bretudo, com o saber sobre a diferença sexual. Nesse
(Bessa, 1995). sentido, segundo ela, com base em sua proposta ana-
Nessa produção é visível a tendência a trabalhar lítica, seria possível fazer emergir uma nova história
com uma noção pulverizada de poder, à maneira de que redefiniria novas questões, em conjunção com
Foucault (1977). Um exemplo é oferecido por Joan uma visão da igualdade que também incluísse classe e
Scott (1988) que, rejeitando a noção de Patriarcado, raça. Entretanto, ela não faz uma tentativa maior de
propõe explorar as distribuições diferenciadas de po- elaboração que articule essas diferenciações.
der permeando contextos históricos específicos. Com Outras autoras ratificam a importância de pensar
esse objetivo, a autora propõe substituir a noção de em diversas categorias de diferenciação, contudo aca-
que o poder social é unificado, coerente e centraliza- bam prestando particular atenção à articulação entre
do por uma idéia de poder como constelações disper- algumas diferenças específicas. Uma delas é a relação
sas de relações desiguais. entre gênero e sexualidade. Judith Butler, uma das
críticas mais radicais do conceito de gênero, oferece
um exemplo dessa posição.
A autora pensa gênero como o mecanismo se-
Diferença sexual e outras diferenças gundo o qual se produzem e naturalizam noções do
masculino e feminino, mas também como o mecanis-
mo mediante o qual esses termos são desconstruídos
Essas leituras críticas do conceito de gênero, for- e desnaturalizados (Butler, 2002). A radicalidade de
muladas no plano teórico, coincidem com intensas sua formulação consiste em que gênero para ela é re-
reivindicações, internas ao movimento feminista, re- lacional, não no sentido de tratar-se de relações entre
lativas à diferença, formuladas por mulheres negras, homens e mulheres, ou entre masculino ou feminino,
do Terceiro Mundo e por feministas lésbicas (Hara- mas porque pensa em gênero como um fazer, como
way, 1991). Entretanto, as reelaborações teóricas não uma atividade que é performada para alguém, mes-
incorporaram as exigências de prestar atenção a outras mo que esse alguém seja inteiramente imaginário. Ela
diferenças, para além da sexual, de maneira homogê- propõe afastar o gênero de idéias como a relação entre
nea. Na história do pensamento feminista, a relação masculinidade e feminilidade, pois o binário mascu-
1 O pensamento feminista vinculado ao marxismo e ao socialismo sempre levou em conta as diferenças de classe. Vale lembrar a força concedida
a essa distinção nos escritos das primeiras décadas do século XX (Goldman, 1917) e também as infinitas discussões, no âmbito do feminismo
da “segunda onda”, durante a década de 1970, entre as radicais que concediam primazia ao patriarcado e as socialistas, que se centravam na
articulação entre patriarcado e capitalismo, prestando séria atenção às diferenças de classe entre as mulheres (Beechey, 1979). O feminismo ra-
dical da segunda onda, ao contrário, caracterizou-se por minimizar diferenças que não fossem as sexuais, às quais conferiam absoluta primazia.
Assim, as discriminações vinculadas à classe e raça não encontravam abrigo nessas formulações. Nesse sentido, são significativos os comentários
de Shulamith Firestone (1976), no que se refere ao racismo. A autora afirma que o racismo está limitado ao âmbito da cultura ocidental. Mas, a
luta das feministas deveria ir além dessa cultura específica, questionando a própria organização da cultura e da natureza, nas quais se ancora a
desigualdade das mulheres. Essas idéias são relevantes porque remetem à centralidade concedida à diferença sexual, em termos universais, por
algumas correntes do pensamento feminista. Observe-se, porém, que a raça é tratada como se apenas oferecesse elementos para estabelecer
analogias, comparações entre formas de opressão, em diversas formulações feministas. Neste sentido, vale a pena prestar atenção à maneira
como Gayle Rubin (1975) trata das diferenças raciais. Quando a autora formula a idéia de sistema de sexo e gênero, estabelece paralelismos entre
diferentes movimentos de oprimidos que deveriam unir-se: feministas; negros americanos; pessoas do terceiro mundo; indígenas americanos, mas
não há tentativas de articular as diferenças nas quais se ancoram essas opressões.
266 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008
lino/feminino não esgotaria o campo semântico do e nacionalidade (Shohat, 1992; MacKlintock, 1992;
gênero. Em um diálogo múltiplo com aspectos do Mohanty, 1991). Com esse último termo elas aludiam
pensamento feminista, do pensamento queer e com os ao posicionamento desigual, em escala global, propi-
movimentos da Nova Política do Gênero que reivin- ciado pela nacionalidade. Isso que, à falta de um nome
dicam direitos sexuais, incluindo os direitos de pessoas melhor, chamo de localização, para aludir à posição
intersex e trans, a autora afirma que a existência de estrutural das nacionalidades que estão interagindo.
transgêneros sugere que o gênero se desloca além des- Finalmente, outras autoras concedem relevância
se binarismo naturalizado. à análise conjunta de uma constelação de diferenças.
No que se refere à relação entre gênero, sexua- No entanto, consideraram que para analisar de ma-
lidade e raça, Butler assume uma posição ambígua. neira adequada a operação conjunta dessas diferenças é
Ela afirma reiteradamente a necessidade de analisar necessário criar categorias alternativas a gênero e tam-
essa relação. Em Gender Trouble (1990) alega que gê- bém à raça. Donna Haraway, bióloga e historiadora da
nero estabelece interseções com modalidades raciais, ciência, oferece um exemplo dessa posição.
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades Segundo ela, ao insistir no caráter de construção
discursivamente constituídas. Essas interseções não social do gênero, nem o sexo nem a natureza foram
poderiam ser hierarquizadas nos termos de alguma historicizadas e, com isso, ficaram intactas idéias pe-
condição primária de opressão. Contudo, ela só reali- rigosas relacionadas com identidades essenciais tais
za uma tentativa de análise articulando esse conjunto como mulheres ou homens. Ela considera que, traba-
de diferenças em um capítulo de uma obra posterior, lhando com a distinção sexo/gênero, seria impossível
Bodies that Matter (1993). desconstruir como os corpos, sexualizados e racializa-
Nesse livro, a autora considera sexo e raça como dos, aparecem como objetos de conhecimento e espa-
efeito de regimes de produção reguladora que operam ços de intervenção na biologia. E, sobretudo, consi-
na produção dos contornos corporais. Além de con- dera que a centralidade concedida à categoria gênero
testar a idéia de que a diferença sexual seja a diferen- obscurece ou subordina todas as outras, como raça e
ça da qual podem ser derivadas as outras diferenças, classe, outras, que emergem nitidamente das ‘políticas
Judith Butler afirma que a reprodução da heterosse- da diferença’, em um movimento imperalista do femi-
xualidade assume formas diferentes segundo como nismo branco e ocidental.
se entendam a raça e a reprodução da raça. Entretan- Como saída, ela propõe trabalhar com um con-
to, excetuando o capítulo mencionado desse livro, ceito diferente, os aparatos de produção corporal,
os restantes lidam exclusivamente com sexualidade e que historicizando categorias como sexo, carne, cor-
gênero, que certamente é a articulação central para a po, biologia, raça e natureza, permitiria pensar na
autora. Não é por acaso que toda a sua formulação so- emergência de corpos marcados por diferenças, em
bre a abjeção, designando as zonas inabitáveis da vida uma perspectiva na qual a natureza não fosse ima-
social, está ancorada na relação entre gênero e sexua- ginada como um recurso para a cultura, ou como o
lidade, na produção dos gêneros não inteligíveis que sexo para o gênero.
desestabilizam a harmonia binária e linear entre sexo, Os questionamentos presentes nas formulações
gênero e desejo. dessas autoras continuaram sendo elaborados com
Outras autoras privilegiaram a articulação entre intensidade durante a década de 1990, sob a intensa
raça e gênero, em linhas de discussão que denunciam pressão dos movimentos políticos. No bojo desse mo-
as exclusões do pensamento feminista da segunda vimento, na procura de categorias analíticas alterna-
onda, que já não é mais pensado apenas como pen- tivas, surge a formulação dos conceitos categorias de
samento feminista, mas como pensamento feminis- articulação e/ou interseccionalidades.
ta branco (Bhavnani, 2001; Haraway, 1991). Nessa
discussão, algumas teóricas questionam, com base
em experiência como mulheres negras em contex-
tos marcados pelo racismo, a centralidade concedida Interseccionalidades e/ou
à sexualidade como diferença em algumas linhas do categorias de articulação
pensamento feminista (Amos e Parmar, 1984). Nessa
linha de debate, há autoras que chegam até mesmo
a privilegiar, a priori, a raça entre outras diferenças A proposta de trabalho com essas categorias é
possíveis (Baca Zinn/Dill, 1996). oferecer ferramentas analíticas para apreender a ar-
As insatisfações com a centralidade concedida à ticulação de múltiplas diferenças e desigualdades. É
categoria gênero suscitaram ainda outras problemati- importante destacar que já não se trata da diferença
zações. As feministas do Terceiro Mundo e/ou que sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gêne-
trabalham com teoria pós-colonial chamaram a aten- ro e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo
ção para a necessidade de articular gênero não ape- para dar cabida às interações entre possíveis diferenças
nas a sexualidade, raça, classe, mas também a religião presentes em contextos específicos.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
267 Adriana Piscitelli (Unicamp)
O debate sobre as interseccionalidades permite situação das mulheres de castas inferiores na Índia.
perceber a coexistência de diversas abordagens. Di- As mulheres dalit, espancadas em espaços públicos
ferentes perspectivas utilizam os mesmos termos para quando realizam suas responsabilidades femininas,
referir-se à articulação entre diferenciações, mas elas como buscar água na fonte. Os abusos ocorrem em
variam em função de como são pensados diferença e contextos em que a suposta condição de intocável as
poder. Essas abordagens divergem também em termos deixa vulneráveis à violência das castas mais altas.
das margens de agência (agency) concedidas aos sujei- Essa violência não seria apenas discriminação de cas-
tos, isto é, as possibilidades no que se refere à capaci- ta, mas intersecional. Segundo a autora, as mulheres
dade de agir, mediada cultural e socialmente. estão situadas em uma posição na qual as responsa-
Essas discordâncias podem ser percebidas contra- bilidades marcadas por gênero as posiciona de forma
pondo as formulações de autoras relevantes no deba- que elas absorvam as conseqüências da discriminação
te. Uma delas é Kimberlé Crenshaw, cujos textos se de casta na esfera pública (Crenshaw, 2002).
tornaram leitura obrigatória na primeira metade da Uma das minhas principais questões em relação
década de 1990. A revista Estudos Feministas (2002) à generalização dessa abordagem, pensada para ca-
publicou em português seu Documento para o en- sos de graves violações dos direitos humanos, é que,
contro de especialistas em aspectos da discriminação em uma perspectiva antropológica, essa formulação
racial relativos ao gênero. A autora é uma advogada apresenta uma séria fragilidade: ela funde a idéia de
que procura oferecer elementos para formular polí- diferença com a de desigualdade. As leituras críticas
ticas com o objetivo de evitar a violação dos direitos sobre interseccionalidade consideram essa leitura de
humanos das mulheres, em escala global. Crenshaw expressiva de uma linha sistêmica, que des-
taca o impacto do sistema ou a estrutura sobre a for-
mação de identidades. Nesse sentido, problematizam
outros aspectos dessa formulação. Questionam o fato
Kimberlé Crenshaw – de que gênero, raça e classe são pensados como siste-
leituras sistêmicas mas de dominação, opressão e marginalização que de-
terminam identidades, exclusivamente vinculadas aos
efeitos da subordinação social e o desempoderamento
Segundo Crenshaw, as interseccionalidades são (Prins, 2006).
formas de capturar as conseqüências da interação en- Outro problema apontado nessa abordagem é que
tre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, ra- nela o poder é tratado como uma propriedade que uns
cismo, patriarcalismo. Essa noção de ‘interação’ entre têm e outros não, e não como uma relação. De acordo
formas de subordinação possibilitaria superar a noção com Baukje Prins (2006), as linhas que se inserem no
de superposição de opressões. Por exemplo, a idéia enfoque sistêmico sobre interseccionalidades às vezes
de que uma mulher negra é duplamente oprimida, à trabalham com o referencial oferecido por Foucault,
opressão por ser mulher deve ser adicionada a opressão mas utilizam seletivamente sua noção de poder. Elas
por ser negra. A interseccionalidade trataria da forma ignorariam o fato de que esse autor pensa em poder
como ações e políticas específicas geram opressões que não apenas em sentido repressivo, mas também pro-
fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas con- dutivo, que não apenas suprime, mas produz sujeitos.
fluências constituiriam aspectos ativos do desempo- Finalmente, não consideram que as relações de poder
deramento. A imagem que ela oferece é a de diversas se alteram constantemente, marcadas por confl itos e
avenidas, em cada uma das quais circula um desses pontos de resistência.
eixos de opressão. Em certos lugares, as avenidas se
cruzam, e a mulher que se encontra no entrecruza-
mento tem que enfrentar simultaneamente os fluxos
que confluem, oprimindo-a. Anne McKlintock e Avtar Brah –
Essa formulação retoma a idéia de patriarcado. abordagens construcionistas
Na verdade, a linguagem parece remeter aos tex-
tos da década de 1970: patriarcalismo, experiência,
subordinação. Diferentemente das formulações fe- Uma segunda linha de abordagem, denominada
ministas da segunda onda, porém, na elaboração de pela autora de construcionista, destaca, sobretudo, os
Crenshaw, gênero não é o único fator de discrimina- aspectos dinâmicos e relacionais da identidade social.
ção. Outros fatores estão operando conjuntamente. Nessa abordagem são marcantes a visão de poder de
A autora utiliza reiteradamente termos como vul- Gramsci, em termos de lutas contínuas em torno da
nerabilidade, desempoderamento, o que faz sentido hegemonia, e o trabalho com a noção de articulação
quando se pensa em seu objetivo. Os exemplos que entendida como prática que estabelece uma relação
ela oferece são extremos, como os estupros coletivos, entre elementos, de maneira que sua identidade se
por motivos étnicos, em Ruanda e na Bósnia, ou a modifica como resultado da prática articulatória. Nes-
268 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008
sa abordagem se traçam distinções entre categorias de contradições é possível encontrar estratégias para a
diferenciação e sistemas de discriminação, entre dife- mudança. A articulação seria perceptível ao conside-
rença e desigualdade. Por exemplo, há um questiona- rar como, no âmbito imperial, gênero está vinculado
mento à fusão entre raça e racismo, considerando que à sexualidade, mas também ao trabalho subordinado
nessa fusão há uma visão estática do significado da e raça é uma questão que vai além da cor da pele,
categoria raça e se trata o racismo como um sistema incluindo a força de trabalho, atravessada por gênero.
único. Ao analisar as categorias articuladas, McKlintock ex-
De acordo com Prins (2006), na primeira linha plora políticas de agência diversificadas, que envolvem
de abordagem (sistêmica), a agência não é negada coerção, negociação, cumplicidade, recusa, mimesis,
aos sujeitos. A idéia é contribuir para o empodera- compromisso e revolta.
mento dos grupos subordinados. Entretanto, a inter- A noção de articulação e uma leitura ampla das
seccionalidade aparece voltada para revelar o poder políticas de agência estão presentes também no tra-
unilateral das representações sociais e as conseqüên- balho Brah (2006), que rejeita o conceito de patriar-
cias materiais e simbólicas para os grupos atingidos cado, preferindo pensar em relações patriarcais nos
pelos sistemas de subordinação. Os sujeitos apare- casos específicos em que as mulheres ocupam posi-
cem como constituídos por sistemas de dominação e ções subordinadas. Essa autora, após uma trajetória
marginalização e, nesse sentido, carentes de agência. marcada pelo deslocamento por diversos contextos,
Na segunda linha de abordagem (construcionista), se envolveu com o trabalho com a articulação entre
os processos mediante os quais os indivíduos se tor- gênero, raça, etnicidade e sexualidade, no feminis-
nam sujeitos não significam apenas que alguém será mo negro, na Inglaterra 2 . A autora publicou um li-
sujeito a um poder soberano, mas há algo mais, que vro, em 1996, Cartographies of Diaspora, que se tornou
oferece possibilidades para o sujeito. E os marcadores uma referência, um de cujos capítulos foi traduzido
de identidade, como gênero, classe ou etnicidade não nos Cadernos PAGU (2006). Nesse livro, faz uma
aparecem apenas como formas de categorização ex- série de formulações inovadoras no seio do movi-
clusivamente limitantes. Eles oferecem, simultanea- mento feminista. Em algumas dessas formulações ela
mente, recursos que possibilitam a ação. segue Hall (1996) 3. Entretanto, diferentemente dele,
Nesta segunda linha podemos situar autoras como ela se situa no bojo da discussão do feminismo negro
McKlintock (1995) e Brah (2006). A primeira delas, e concede um lugar relevante a gênero.
no marco dos estudos culturais, em Estados Unidos, A autora propõe uma análise macro, consideran-
analisa o poder imperial afi rmando que raça, gêne- do simultaneamente subjetividade e identidade para
ro e classe não são âmbitos diferentes de experiência compreender as dinâmicas de poder na diferenciação
que existem isoladamente uns dos outros, nem podem social. Este é um aspecto característico das feminis-
ser simplesmente montados em conjunto como se fos- tas do Terceiro Mundo e que trabalham como teorias
se um lego. Essas categorias existem em e por meio pós-coloniais, porque as preocupações políticas que
das relações entre elas. Por esse motivo são catego- as orientam requerem que as análises compreendam
rias articuladas. As categorias de diferenciação não são a produção de subjetividades no marco da história do
idênticas entre sim, mas existem em relações, íntimas, imperialismo e do capitalismo. Avtar Brah levanta vá-
recíprocas e contraditórias. Nas encruzilhadas dessas rios pontos importantes.
2 Avtar Brah nasceu na Índia, cresceu em Uganda de onde fugiu com a família antes que Idi Amin expulsasse os asiáticos do país, estudou nos
Estados Unidos e morou depois na Inglaterra, onde se envolveu nos movimentos feministas, anti-racistas e nas tentativas socialistas de imaginar
um mundo democrático.
3 Hall (1996) estava interessado em entender as relações entre classe social e racismo em um momento no qual considerava não existir elemen-
tos teóricos que possibilitassem fazê-lo. Trabalhando com tradições marxistas e seguindo Foster Carter, explora as possibilidades das categorias
de articulação. A articulação seria uma metáfora utilizada para indicar relações de conexões e eficácia entre diferentes níveis de todo tipo de
coisas. Essas coisas estariam conectadas, mas não haveria uma identidade entre elas. A unidade formada por essa articulação é uma estrutura
complexa que as relaciona por suas diferenças e semelhanças. Segundo Hall, o importante é desvendar qual é o mecanismo que conecta as
coisas e a natureza das relações entre as partes. Considerando que o econômico não determina outros níveis da formação social nem sua
forma de operação, Hall afirma que ao analisar as relações entre diversos níveis de uma formação social, seriam necessários outros conceitos,
além dos níveis econômicos do modo de produção. O autor recorre também a Gramsci, particularmente ao conceito de hegemonia, como
estado de total autoridade social que em conjunturas específicas possibilita o domínio de uma classe sobre toda uma formação social, por
uma mistura de coerção e consentimento, não apenas no nivel econômico, mas também político e ideológico, na vida civil, intelectual e moral
assim como no aspecto material. Mas, essa autoridade está sujeita a relações de forças sociais, das quais o equilibrio instável é um resultado
provisório. Para sustentar-se, a hegemonia exige ser continuamente trabalhada e reconstruída. A luta de classes não assumiria a forma de um
ataque frontal, mas de lugares estratégicos, tácticas, explorando diferentes contradições. E o que interessa seria entender como as ideologias
existentes, que são contraditórias, podem ser trabalhadas para transformar-se na base de uma luta mais consciente, uma form de intervenção
no processo histórico.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
269 Adriana Piscitelli (Unicamp)
A autora afi rma que a procura de grandes teorias as percepções sobre essas migrantes incidem em suas
especificando as interconexões entre racismo, gênero inserções no mercado global de trabalho e no merca-
e classe tem sido pouco produtiva. Essas intercone- do matrimonial.
xões seriam melhor compreendidas como relações
contextuais e dependentes/contingentes (contingents),
em termos históricos. Ela considera que analisar as
interconexões entre racismo, gênero, classe, sexuali- Brasileiras no cenário global
dade etc. requer levar em conta a posição de diversos
racismos, um em relação aos outros. No que se re-
fere aos processos de racialização, assinala que não A experiência de migrantes (e viajantes) bra-
sempre têm lugar em uma matriz simples de bipola- sileiras é afetada por aspectos que não podem ser
ridades, de negatividade ou positividade, de inclusão compreendidos considerando uma ou duas catego-
ou exclusão. Em um contexto racializado, todas as rias de diferenciação, tais como gênero e nacionali-
sexualidades estão inscritas em matrizes racializadas dade, por exemplo. Esclareço que estou pensando,
de poder, mas os encontros racializados também têm à maneira de Scott (1998), não em indivíduos ‘que
lugar em espaços de profunda ambivalência, admira- têm’ experiências, mas em ‘sujeitos constituídos
ção, inveja, desejo. mediante a experiência’. Essas migrantes são afe-
A proposta de Avtar Brah é trabalhar, não com tadas pela imbricação entre noções de sexualidade,
gênero como categoria analítica, como, por exem- gênero, raça, etnicidade e nacionalidade. Refi ro-
plo, Scott, mas com ‘diferença’ como categoria ana- me às noções sexualizadas e racializadas de femini-
lítica. Essa idéia remete à análise de como as formas lidade pelo fato de serem brasileiras. Independente-
específicas de discursos sobre a diferença se consti- mente de serem consideradas no Brasil, brancas ou
tuem, são contestados, reproduzidos e (re)significa- morenas, nos fluxos migratórios para certos países
dos, pensando na diferença como experiência, como do Norte as brasileiras são racializadas como mesti-
relação social, como subjetividade e como identida- ças. No lugar desigual atribuído ao Brasil no âmbito
de. A autora afi rma que há discursos que apresentam global, a nacionalidade brasileira, mas do que a cor
diferenças, como o racismo, que traçam limites fi xos. da pele, confere-lhes essa condição. E essa raciali-
Entretanto, outras diferenças podem ser apresentadas zação é sexualizada. Nos últimos anos, o fato de o
como relacionais, contingentes. Como a diferença Brasil ter sido incluído nos circuitos mundiais de
nem sempre é um marcador de hierarquia nem de turismo sexual e das brasileiras adquirirem visibili-
opressão, uma pergunta a ser constantemente feita é dade na indústria do sexo em países dos Sul da Eu-
se a diferença remete à desigualdade, opressão, ex- ropa, tem acentuado essas relações entre categorias
ploração. Ou, ao contrário, se a diferença remete a no cenário global (Piscitelli, 2004; 2007).
igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas A maioria das brasileiras que viaja não tem vin-
de agência política. culação com esse setor de atividade. Entretanto, essa
Algumas discussões sobre interseccionalidade articulação entre marcadores de diferença é ativada
consideram que essa conceitualização é problemá- independentemente de que as mulheres estejam ou
tica porque coloca excessiva ênfase nos eixos classi- não vinculadas à indústria do sexo. A idéia de que
ficatórios não prestando suficiente atenção à expe- elas são portadoras de uma disposição naturalmente
riência. Assim, poderia ser pensado que o trabalho intensa para fazer sexo e uma propensão à prosti-
com categorias de articulação se diferencia da aná- tuição, combinadas com noções ambíguas sobre seus
lise das interseccionalidades, pois as autoras que tra- estilos de feminilidade, tidos como submissos, com
balham com categorias articuladas concedem lugar uma alegre disposição para a domesticidade e a ma-
de destaque à experiência. Contudo, nesse debate ternidade tende a atingir indiscriminadamente essas
as visões sobre diferença, poder e agência presen- migrantes.
tes nas diversas abordagens são mais importantes do Essas conceitualizações variam, claro, em contex-
que os termos que designam esses conceitos (inter- tos migratórios que têm diferentes relações históricas
seccionalidade ou categorias de articulação). Brah com o Brasil e também de acordo com a classe so-
(2006; 2004), por exemplo utiliza alternativamente cial e, em certos casos, a cor das mulheres (quando
a idéia de categorias de articulação e de intersec- fenotipicamente não são percebidas como mestiças/
cionalidades. mulatas, mas como negras). No entanto, nos fluxos
Essa última linha de pensamento sobre a interse- para países ricos da América do Norte e Europa, a
ção entre diferenciações é sugestiva para pensar como tradução cultural da posição subalterna ocupada pelo
construções de diferença e distribuições de poder Brasil nas relações transnacionais é um dos aspectos
incidem no posicionamento desigual dos sujeitos no principais que afetam as experiências dessas mulheres.
âmbito global. Tomo como exemplo as recentes mi- E essa tradução é realizada mediante uma articulação
grações internacionais de mulheres brasileiras, e como entre diferenciações.
270 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008
Em termos de migração internacional, Brasil foi nas empresárias (Cavalcanti, 2006). Entretanto, como
considerado um país predominantemente receptor em outras mulheres do Terceiro Mundo, desempenham
um passado muito recente4. Na década de 1980, pela atividades especialmente em serviços domésticos:
primeira vez, no contexto de uma séria crise econô- limpando, cuidando de crianças ou idosos (Oliveira,
mica, o país apresentou uma emigração significativa. 2006; Messias, 2001). E, particularmente em países
A partir de então, a falta de oportunidades laborais e do Sul da Europa, também trabalham na indústria do
de possibilidade de mobilidade social, sobretudo para sexo (Mayorga 2006; Piscitelli, 2007). Apesar de que
alguns setores das classes médias, alimentaram os flu- apenas uma parte das brasileiras está ocupada nesse se-
xos de migração ao exterior. tor, a relevância dessa atividade é amplificada por uma
Em 2006, relatórios do governo estimavam que cobertura de imprensa que freqüentemente funde os
em torno de 3.000.000 de brasileiros estavam moran- deslocamentos internacionais para trabalhar na indús-
do no exterior, (1,7 % do total da população)(Mag- tria do sexo com o tráfico internacional de pessoas.
no, 2006) 5. Parte significativa desse contingente vive A presença feminina é particularmente relevante
como irregular fora, e isso torna difícil ter estatísticas nas comunidades brasileiras nos países do Sul da Eu-
precisas. A escassa atenção prestada ao sexo ao coletar ropa. Em 2006, elas eram em torno do 60% na Espa-
os dados coloca ainda maiores dificuldades para esti- nha e aproximadamente metade da população brasileira
mar o número de mulheres migrantes no exterior. En- vivendo em Portugal (Instituto Nacional de Estadísti-
tretanto, o deslocamento das mulheres aparece como ca, 2006; Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 2005).
significativo. De acordo com dados da Polícia Federal Nesses países, assim como na Itália, as brasileiras são
Brasileira, em 2005 elas constituíam em torno de 30% consideradas uma presença relevante na indústria do
do total de pessoas devolvidas de países estrangeiros, sexo e também integram os principais contingentes de
incluindo deportadas e uma vasta maioria de mulheres esposas estrangeiras casadas com homens nacionais. E,
não admitidas, cujo ingresso é recusado em países que nesses países, os escassos casamentos transnacionais en-
não requerem vistos de turistas brasileiros, especial- volvendo homens brasileiros sugerem que as mulheres
mente nos aeroportos europeus. adquirem um valor particular no mercado matrimo-
Recentes relatórios governamentais sugerem que nial6. Ter ou não visto de permanência, direito a tra-
a maioria das mulheres deportadas é de classe média balhar legalmente, oportunidades laborais, casar com
baixa. Trata-se, majoritariamente de solteiras ou di- homens residentes dos países receptores e ter filhos nos
vorciadas na casa dos 20 e 30 anos, a metade tem fi lhos contextos migratórios são aspectos que marcam dife-
e se consideram majoritariamente morenas ou pardas renças significativas nas experiências dessas migrantes
(Secretaria Nacional de Justiça 2006; 2005). As mo- brasileiras.
tivações econômicas aparecem como a principal razão Afirmar que mulheres de diversas origens de clas-
para migrar, seja em razão de estratégias familiares ou se e níveis de escolaridade são afetadas pela recriação de
pessoais. Contudo, esses perfis não podem ser genera- imagens racializadas e sexualizadas vinculadas a estilos
lizados. Pesquisas sobre migrantes internacionais bra- de feminilidade brasileiros requer considerar dois aspec-
sileiras apontam para uma diversificação em termos tos. Embora as mulheres de países do Sul estejam confi-
das origens de classe, escolaridade e cores da pele. Es- nadas em ocupações específicas, elas não constituem um
ses aspectos interferem na inserção social dessas mu- todo homogêneo nos países de origem nem nos de desti-
lheres em suas trajetórias migratórias. no. No marco das desigualdades entre Norte e Sul, essas
Em diferentes contextos migratórios, as brasilei- diferenças são freqüentemente traduzidas por fronteiras
ras trabalham no comércio, em serviços administrati- etno-sexuais (Nagel, 2003), delimitações traçadas na
vos, educacionais e de saúde e também como peque- interação entre sexualidade e etnicidade que, de acordo
4 De acordo com os estudos sobre migração, entre a década de 1890 e a Primeira Guerra Mundial, Brasil era o terceiro país receptor em América,
depois dos Estados Unidos e Argentina, recebendo imigrantes, sobretudo, de Itália, Portugal e Espanha (Menezes 2001). Entre 1908 e 1940
houve também fluxo significativos de japoneses e de cidadões de outros países europeus (Seyferth 2001). No momento atual, o país recebe,
sobretudo, imigrantes de outros países latino-americanos.
5 Segundo o Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito de Emigração, em 2006, os principais países receptores eram Estados Unidos
(1,800,000), Paraguai (450,000), Japão (250,000), Portugal (100,000), Reino Unido (100,000). Nos últimos três anos, os migrantes brasileiros cres-
ceram rapidamente em algumas partes do mundo, particularmente nos países do Sul da Europa. Desde 2005 México exige visto dos cidadãos
brasileiros, dificultando o acesso à fronteiras dos Estados Unidos. Os efeitos dessa exigência são o aumento nas vinculações transnacionais entre os
traficantes de migrantes e a elevação dos custos e o aumento dos riscos dessas viagens ao tentar atravessar clandestinamente mais de uma fronteira.
Como resultado, o fluxo migratório voltado para os países europeus tem aumentado (Secretaria Nacional de Justiça, 2007). Agentes consulares na
Espanha e a Itália afirmam estar oferecendo serviços a um número muito mais elevado de brasileiros que três anos atrás. (Piscitelli 2005; 2007).
6 Em 2006 as brasileiras integravam o Segundo coletivo nacional de estrangeiras que casaram com homens espanhóis (Instituto Nacional de
Estadística 2006; 2005). Na Itália, de acordo com as analises do censo de 2001, Brasil foi o principal país latino-americano que forneceu esposas
aos italianos. Istituto Nazionale de Statistica: Gli stranieri in Italia: analisi dei dati censuari, 2005. In: www.istat.it.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
271 Adriana Piscitelli (Unicamp)
com o contexto, afetam mulheres de regiões e países de para a sensualidade, se tornam parte do arsenal que essas
maneiras diferenciadas. Tendo como referência a posição mulheres utilizam na luta por um lugar melhor nesses
ocupada pelas mulheres latino-americanas nos Estados cenários (Pinto 2004; Beserra, 2007; Piscitelli, 2005).
Unidos, seria possível pensar que as tropicalizações (Apa- Essas negociações são descritas em estudos realiza-
ricio; Chávez-Silverman, 1997), imagens sexualizadas e dos em Boston, que mostram como alguns desses atribu-
racializadas associadas aos trópicos, impingem em qual- tos são utilizados para obter, por exemplo, acesso a níveis
quer mulher dessa região do mundo. privilegiados de trabalho doméstico pago (Assis, 2004).
Estudos realizados nos Estados Unidos e em países A suposta abertura das brasileiras, sua alegria e propen-
do Sul da Europa mostram, porém, que essas noções são ao cuidado são exibidos para atrair clientes para suas
tropicalizadas de feminilidade afetam, sobretudo, mu- próprias firmas de limpeza. Esses atributos étnicos são
lheres de certos países. Trata-se de países como Brasil, ativados para abrir firmas, nas quais muitas vezes elas são
Cuba e Colômbia, associados com misturas raciais que as chefes dos homens de suas redes de parentesco. Es-
evocam misturas raciais, particularmente, com traços ses trabalhos alteram as dinâmicas de gênero familiares e
africanos. O serviço doméstico e de cuidados absorve oferecem a essas mulheres o que elas consideram como
latino-americanas de diversas nacionalidades. Entre- uma atividade autônoma e bem paga.
tanto, nos países do Sul da Europa, cubanas, colom- Em diversos meios, as migrantes brasileiras rejeitam
bianas e brasileiras são as mulheres que adquirem vi- abertamente a conexão entre sensualidade e brasilida-
sibilidade nos mercados do sexo e matrimonial. Nos de. Ao mesmo tempo, em certas situações essa conexão
processos de racialização que as atingem há, às vezes, aparece como sendo estrategicamente performada. O
um racismo aberto. No entanto, e aqui vale a pena sex appeal étnico é utilizado como um bem por mulhe-
lembrar a relevância que Avtar Brah concede à inte- res que trabalham na indústria do sexo, que acreditam
ração entre racismos, nos países do Sul da Europa, o que é útil para atrair clientes. No entanto, esse sex appeal
racismo atinge com mais suavidade as brasileiras, par- também é percebido como oferecendo benefícios para
ticularmente as que não são vistas como negras, que a brasileiras de classe média, que trabalham em setores
mulheres de outras nacionalidades. acadêmicos em Los Angeles (Beserra, 2007), e traba-
A interseção entre nacionalidade, gênero e sexuali- lhadoras nos serviços públicos em Lisboa (Pinto 2004).
dade e o particular estilo de racialização permeado por Entretanto, os principais benefícios obtidos mediante a
essas diferenças incide em um racismo etnicizado, dis- corporificação da sensualidade por mulheres que não
tante da intensidade daquele que atinge, entre as latino- trabalham na indústria do sexo estão relacionados, so-
americanas, a mulheres tidas como negras e àquelas cuja bretudo, com o mercado matrimonial. Nesses casos, as
nacionalidade é associada a traços considerados indíge- mulheres combinam sensualidade com outros atribu-
nas e pouco sensualizados. Essas últimas não integram tos, performando a imagem de esposas sensuais, doces,
as comunidades nacionais nas quais os homens nativos domésticas, dedicadas e ávidas por serem mães.
escolhem esposas. Esposos estadounidenses e dos países do Sul da
Os efeitos dessas noções são mais atenuados entre Europa parecem perceber os relacionamentos com es-
mulheres que obtêm melhores posições, em termos de sas mulheres como uma oportunidade para recriar, em
classe, nos países receptores. No entanto, brasileiras de algum ponto, padrões tradicionais de masculinidade,
diversas origens são afetadas por essas idéias. A relação com o tempero adicional de desfrutar de um estilo
dessas migrantes com a articulação entre diferenças que particular de sexualidade (Beserra, 2007; Assis, 2004;
as sexualiza e racializa não é estável. Há movimentos Piscitelli, 2005). Para as brasileiras, performar essa
de resistência e rejeição. Entretanto, situacionalmente, combinação de noções abre caminhos, às vezes estra-
também assumem posições de cumplicidade utilizan- tégicos, para desejados casamentos. Essas uniões mis-
do aspectos das imagens sobre elas para negociar seus tas às vezes expõem as mulheres a riscos, particular-
posicionamentos nos contextos migratórios nos quais mente àquelas com menos recursos, sujeitas a um grau
estão em situação de desigualdade. É um jogo que re- mais intenso de desigualdade e racismo. Entretanto,
força certos estereótipos ao passo que debilita outros. esses casamentos, que oferecem a principal via para
Tanto no mercado de trabalho como no mercado de a obtenção de vistos de residência no marco de polí-
casamento as conexões da feminilidade brasileira com ticas migratórias cada vez mais restritivas, são alme-
a idéia de serem amigáveis, de terem um compromisso jados por diversos motivos. Eles são particularmente
com a domesticidade, de serem muito limpas e de te- valorizados como recursos simbólicos que contribuem
rem uma natural propensão para o cuidado e também a obter cidadania cultural (Ong, 1996) no exterior7.
7 Na pesquisa sobre migrantes brasileiras que realizei na Itália (Piscitelli, 2007) o casamento representa mais do que a possibilidade de ‘papéis’. Anali-
sando os processos mediante os quais os migrantes procuram obter acesso à ‘cidadania cultural’, Aiwa Ong destaca a importância de práticas culturais
e crenças nas negociações com critérios relativos à ‘pertença’ a um território e população nacional. O valor concedido pelas entrevistadas ao casamento
mantém vinculações com essas idéias. Entre minhas entrevistadas, o casamento representa a materialização do sonho da ascensão social que, indo além
da mobilidade em termos de classe social, envolve a ilusão da plena inclusão na Europa através da via legitimadora da inserção numa família italiana.
272 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008
Além disso, esses casamentos freqüentemente possi- tes para compreender a produção de sujeitos na nova
bilitam alterar a posição social no Brasil, por diversas ordem global.
ações mediadas pelo poder econômico e tingidas pelo Nos contextos migratórios acima comentados,
prestígio conferido por morar na Europa. pensar nas articulações entre gênero, sexualidade,
raça e etnicidade/ nacionalidade contribui para com-
preender as experiências das migrantes brasileiras. As
interseções entre essas categorias dotam de sentido a
Conclusão percepção que se tem das brasileiras e as ações dessas
mulheres, jogando com as interseções entre diferen-
ças que elas corporificam nos cenários descritos.
A história do feminismo está marcada pela pro- A princípio, essas articulações situam essas mi-
cura de ferramentas analíticas para compreender as grantes em posições inferiorizadas, com efeitos con-
distribuições diferenciadas de poder que situam as cretos na inserção no mercado de trabalho. Ao mesmo
mulheres em posições desiguais e, com base no co- tempo, as ambigüidades e contradições envolvendo
nhecimento, modificar essas posições. Os conceitos esses processos de racialização/sexualização articula-
de interseccionalidade e categorias articuladas fazem dos a gênero e nacionalidade, abrem brechas para as
parte dessa história. Para além de situar a emergência negociações nesses contextos migratórios. Essas nego-
desses conceitos, nesse texto procurei mostrar como, ciações só podem ter lugar se consideramos, à maneira
no momento atual, certas abordagens que trabalham de Brah, que as formas de categorização podem limi-
com interseccionalidades oferecem recursos relevan- tar, mas também abrem possibilidades para a agência.
Referências
AMOS, Valerie; PARMAR, Pratibha. Challenging Impe- visting Intersectionality. Journal of International Women’s
rial Feminism, Feminist Review, n. 17, p. 3-19, 1984. Studies, 5, 3, may, p.75-86, 2004.
APARICIO, Frances R.; CHÁVEZ-SILVERMAN, Su- BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação, Ca-
sana (ed.). Tropicalizations. Transcultural Representations dernos Pagu 26, p.329-365, 2006.
of Latinidad. Hanover, University Press of New England, BUTLER, Judith. Gender Trouble. New York, Routledge,
1997. 1990.
APFELBAUM, Érika. “Domination”. In: HIRATA, Hele- BUTLER, Judith. Undoing Gender, New York, Routledge,
na; LABORIE, Françoise; DE DOARÉ, Hèléne; SENO- 2002.
TIER, Danièle (coord): Dictionnaire critique du féminisme. CASA DO BRASIL EM LISBOA. “A 2° vaga da imigra-
Presses Universitaires de France, Paris, 2000. ção brasileira para Portugal (1998-2003): Estudo de opi-
ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: rear- nião a imigrantes residentes nos distritos de Lisboa e Se-
ranjos familiares e de gênero nas vivências dos novos migran- túbal – Informação estatística e elementos de análise”. In:
tes brasileiros. Phd Dissertation, Campinas, Unicamp, 2004. Imigração Brasileira em Portugal (ed.). Jorge Macaísta Malhei-
AZEVEDO, Débora B. Brasileiros no exterior, Nota Téc- ros, Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo
nica, Consultoria Legislativa da Área XVIII, Congresso Intercultural, 227-245, 2007.
Nacional, Brasília, 2004. URL (accessed in August, 2007. CAVALCANTI, Leonardo. “O protagonismo empresarial
Disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/pu- imigrante a partir de uma perspectiva de gênero: o caso das
blicacoes/estnottec/tema3/pdf/2004_3518.pdf. brasileiras nas cidades de Madri e Barcelona”. Paper deli-
BACAZINN, Maxine; DILL, Bonnie Thornton. Theo- vered at the Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, Santa
rizing difference from multiracial feminism. Feminist Stud- Catarina, 2006.
ies, 22, n. 2, p. 321-331, 1996. COSTA, Maria Tereza Paulino da. “Algumas considera-
BEECHEY, Veronica. On Patriarchy. Feminist Review, n. ções sobre imigrantes brasileiros na jurisdição do Consu-
3, p. 66-83, 1979. lado Brasileiro de Nova York”. In: Brasileiros no exterior:
BESERRA, Bernadete. Sob a sombra de Carmen Miranda Caminhos da Cidadania, ed. Bela Feldman-Bianco and
e do carnaval: brasileiras em Los Angeles, Cadernos Pagu Carlos Vianna, Campinas, Papirus. No prelo.
38, Campinas, Unicamp, 313-344, 2007. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de
BESSA, Karla. Pós-modernismo. Mimeo, IFCH, 1995. especialistas em aspectos da discriminação racial relativos
BHAVBANI, Kum Kum. Feminism and Race. Oxford ao gênero, Estudos feministas 1, p.171-189, 2002.
University Press, 2001. FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo. Labor, Rio
BRAH, Avtar; PHOENIX, Ann. “Ain’t I a Woman? Re- de Janeiro, 1976.
Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras
273 Adriana Piscitelli (Unicamp)
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade Seres Humanos no Brasil, Brasília, 2004.
de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977. MOHANTY, Chandra Talpade. Under Western Eyes. In:
GOLDMAN, EMA. Trafi co de mujeres: y otros ensayos so- MOHANTY, Chandra Talpade; RUSSO, Ann; TOR-
bre feminismo, Buenos Aires,/ Anagrama, 1977 [1917]. RES, Lourdes: Third World Women and the Politics of Femi-
GRANT, Judith. Fundamental Feminism. Contesting the Core nism, Indiana University Press, p. 51-80, 1991.
Concepts of Feminist Theory. Routledge, New York, 1993. NAGEL, Joane. Race, Ethnicity and Sexuality. Intimate In-
HALL, Stuart. Race, articulation and societies structured tersections, Forbidden Frontiers. Oxford, Oxford Univer-
in dominance. In: HOUSTON Baerk; DIAWARA, Man- sity Press, 2003.
tha; LINDEBORG, Ruth. Black British Cultural Studies, OLIVEIRA, Adriana Capuano de. “Mulheres Imigrantes
The University of Chicago Press, p. 16- 58, 1996. no Sul da Florida: Um estudo de caso revelando diferen-
HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women. The ças”. Paper delivered at the Seminário Internacional Fazendo
reinvention of nature. Routledge, New York, 1991. Gênero 7, Santa Catarina, 2006.
HEINEN, Jacqueline. “Patriarcat”. In: HIRATA, Hele- ONG, Aiwa. Cultural Citizenship as Subject-Making.
na; LABORIE, Françoise; DE DOARÉ, Hèléne; SENO- Current Anthropology, v. 37, n. 5, Dec. p.737-762, 1996.
TIER, Danièle (coord.): Dictionnaire critique du féminisme, OVERING, Joanna. “Men Control Women? The
Presses Universitaires de France, Paris, pp. 142-143, 2000. Catch-22 in Gender Analysis”, International Journal of Moral
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA, ESPAÑA. and Social Studies, v. 1. n. 2, p. 135-156, 1986.
Base de datos INEbase, Año, URL: www.ine.es., 2006. PADILLA, Beatriz. Integração dos “imigrantes brasileiros
INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA, ES- recém-chegados” na sociedade portuguesa: problemas e
PAÑA: Base de datos INEbase, Año 2005. URL: www. possibilidades. Um mar de identidades, a imigração brasileira
ine.es. em Portugal (ed.). Igor José de Renó Machado, São Carlos,
ISTITUTO NAZIONALE DE STATISTICA 2005: Gli Edufscar, p. 19-42, 2006.
stranieri in Italia: analisi dei dati censuari. In: : www.istat. PINTO, Luciana Pontes. Mulheres brasileiras na mídia
it, 2005. portuguesa, Cadernos Pagu, n. 23, cara, cor, corpo. Campi-
JUNCKS, Kátia Regina. La formación história de la clase obre- nas, Unicamp, p. 229-257, 2004.
ra en la Barcelona del siglo XXI. Un pequeño diálogo con E.P. PISCITELLI, Adriana. On Gringos and Natives, Gender
Thompson. Dissertation, Departamento de Humanidades, and Sexuality in the Context of International Sex Tour-
Universidad Autónoma de Barcelona, 2004. ism, Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology 1, p. 87–114.
MACHADO, Igor. “Introdução”. In: Um Mar de Identida- URL (accessed in June 2007). Disponível em:http://www.
des a imigração brasileira em Portugal, (ed.) Igor José de Reno vibrant.org.br/portugues/artigos2004.htm, 2004.
Machado, São Carlos, Edufscar, p. 7-19, 2006. PISCITELLI, Adriana. Intérêt et sentiment: migration de
MAGNO, João. Relatório final da Comissão Parlamentar de Brésiliennes em Italie dans le contexte du tourisme se-
Inquérito. Congresso Nacional, Brasília, Comissão Parla- xuel international. Migrations Societe; Le grand tournant: De
mentar Mista de Inquérito de Emigração, 2006. l’emigration à l’immigration (Colloque de Cerisy). v. 17,
MARTES, Ana Cristina Braga; SOARES, Weber. Re- n. 102, p. 105-125, 2005.
messas de recursos dos imigrantes. Estudos Avançados, v. 20, PISCITELLI, Adriana. Brasileiras na indústria transnacio-
n. 57, p. 41-57, 2006. nal do sexo, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 7. Disponível
MAYORGA, Claudia. “Identidade, Migração e Gênero: em http://nuevomundo.revues.org/document3744.html,
O caso de mulheres brasileiras prostitutas em Madrid”. Pa- 2007b.
per delivered at the Seminário Internacional Fazendo Gênero PISCITELLI, Adriana. Shifting Boundaries: Sex and
7, Santa Catarina, 2006. Money in the North-East of Brazil, Sexualities, v. 10, n. 4,
McKLINTOCK, Anne. Imperial leather, Race, gender and p. 489-500, 2007.
sexuality in the colonial contest. Routledge, 1995. PRINS, Baukje. Narrative accounts of origins: a Blind
McKLINTOCK, Anne. The Angel of Progress: Pitfalls Spot in the Intersectional Approach? European Journal of
of the term “pos-colonialism”. Social text, n. 31/32, Third Women’s Studies, v. 13, n. 3, p. 277-290, 2006.
World and Post-Colonial Issues, p. 84-98, 1992. REITER, Rayna. Introduction. In: REITER, Rayna. To-
MENEZES, Lená Medeiros de. “Movimentos e políticas ward an Anthropology of Women. Monthly Review Press,
migratórias em perspectiva histórica: um balanço do século New York, 1975.
XX”. In: Migrações Internacionais: Contribuições para Políti- RIOS-NETO, Eduardo. Managing migration: the Brazilian
cas (ed.). Mary Garcia Castro, 123-137. Brasília: Comissão case. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2005.
Nacional de População e Desenvolvimento/CNPD, 2001. RUBIN, Gayle. “The traffic in Women: Notes on the
MESSIAS, DeAnne K. Hilfi nger. Transnational Perspecti- ‘Political Economy of Sex’”. In: REITER, Rayna. Toward
ves on Women’s Domestic Work: Experiences of Brazilian an Anthropology of Women. Monthly Review Press, New
Immigrants in the United States. Women and Health, v. York, 1975.
33, n. ½, p. 1-20, 2001. SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. Columbia
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/NAÇÕES UNIDAS/ES- University Press, 1988.
CRITÓRIO CONTRA DROGAS E CRIME. Tráfi co de SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Projeto His-
274 Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008
tória. Cultura e Trabalho. PUC-SP. São Paulo, n. 16, fev/98, 2005. Lisboa, 2006.
p. 297-327, 1998. SEYFERTH, Giralda. Imigração no Brasil: os preceitos de
SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisas em exclusão. Com ciência, revista eletrônica de jornalismo científi co,
Tráfico de Pessoas, parte 2, Relatório: Indícios de tráfico n. 16. Disponível em: www.comciencia.br/reportagens/
de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que migracoes/migr19.htm (accessed in August, 2007), 2001.
regressam ao Brasil via o aeroporto de Guarulhos, Brasília, SHOHAT, Ella. Notes on the “Post-Colonial”, Social Text
Ministério da Justiça, 2005. n. 31/32, Third World and Post-Colonial Issues, p. 99-113,
SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório: 1992.
Tráfico internacional de pessoas e tráfico de migrantes STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. University
entre deportados(as) e não admitidos(as)que regressam ao of California Press, 1988.
Brasil via o aeroporto internacional de São Paulo, Brasília, ZINGAROPOLI, Silvia. n/d Intervista a Rosa Mendes,
Ministério da Justiça, 2007. Tutela per le brasiliane in Italia. L’Associzaione donne bra-
SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS siliane in Itália é stata fondata a Roma da um gruppo di
(SEF). Estatísticas: População Estrangeira Residente em immigrate brasiliane. Disponível em: http://www.musi-
Portugal, por nacionalidade segundo o sexo, dados de brasil.net (accessed in May, 2004).
In this text, I present some comments on the categories dealing with the multiple differentiations, which, articulating with
those of gender, cross the social realm: the categories of articulation and/or intesectionalities. I also analyze the contents attri-
buted to those concepts and make considerations on how they contribute I the analyses a relevant problem in contemporary
Brazil: feminization of international migration. In the first part of the article, I situate those notions in the frame of the history
of feminist thought. In the second, I consider how their use acquires distinct connotations in relation to conceptualization of
differences and of the manners through which the power and agency operate. Finally I reflect on how those notions contri-
bute to understand the integration of Brazilian female migrants in the global labor and marriage markets.
Keywords: intersectionalities; gender; feminism; migration; global labor market; marriage market.
1934
As Técnicas Corporais