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Toledo, R.O.

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ZARATUSTRA EM BUSCA DE TERRAS NATAIS

Ricardo de Oliveira Toledo

Resumo: Intenta-se aqui compreender como Nietzsche elabora, em Assim falava


Zaratustra, o percurso do protagonista de seu livro em busca das terras de origem do
além-homem. Para a realização de tal tarefa, são verificados, antes de tudo, alguns
aspectos mencionados pelo filósofo que impedem o aparecimento do além-homem, em
especial, na Europa em que Nietzsche escreve. Por fim, são salientados elementos que
caracterizam as terras natais anunciadas por Zaratustra.

* *

Aos quarenta anos de idade, Zaratustra desce da montanha em que passou dez
anos1. A partir desse instante, empreende uma peregrinação. Sua viagem não se limita a
uma geografia, ela é, também, temporal. Sua mensagem relata vivências no passado e
no futuro, embora seja dirigida a contemporâneos, aos homens atuais, ainda que sua
repercussão não se restrinja a estes (Z, “Do país da cultura”, p. 163). Em alguns
momentos da narrativa, é o próprio tempo que parece vir ao encontro de Zaratustra. Por
isso, escuta os ventos secretos que chegam do futuro, trazendo sua fausta mensagem
(Ibidem, “Da virtude dadivosa”, p. 107).
Na segunda parte do livro, Zaratustra realiza importantes deslocamentos entre
lugares e eras. Ela começa narrando que após sua primeira estadia entre outros homens,
ocorrida depois de seu isolamento de dez anos, o personagem retorna à montanha, onde
um novo período de tempo decorrerá. Como sugere Zaratustra, ali ele percebeu
mudanças em si que o levaram a descer novamente aos seus amigos e seus inimigos2.

1
Como aponta o Prólogo, aos trinta anos Zaratustra deixa o lago da sua pátria e sobe a montanha, vivendo nela por
dez anos. Por um lado, o texto pode sugerir que Nietzsche compreendia os quarenta anos como a idade da maturidade
masculina. Por outro, é importante notar que a idade de Nietzsche ao iniciar a escrita do livro era de praticamente
quarenta anos. Os dez anos a que se refere, de algum modo, faz menção ao período que esteve em Basileia,
ministrando aulas na Universidade da cidade suíça. É razoável dizer que o filósofo encontrou um análogo na figura
mítica do próprio Zoroastro, o qual iniciou sua missão também aos trinta anos de idade, tendo deixado a montanha
em que viveu isolado para passar dez anos pregando (Cf. DALGADO & PIEL, 1982). J. P. Stern considera que a
escolha de Nietzsche por Zoroastro (Zaratustra) é porque este velho profeta persa é o fundador da mais antiga religião
dualista conhecida. É ele quem originalmente apresenta a batalha entre o bem e o mal como aquilo que move o centro
de todas as coisas. Por esse motivo, seria oportuno que em Nietzsche fosse o proclamador do fim do reinado do bem e
do mal (STERN, 1977, p. 55), o que é confirmado pela leitura do parágrafo terceiro de “Porque sou um destino” de
Ecce Homo (Cf. EH, “Porque sou um destino”, § 3, pp. 110-111). Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a
leitura de NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Lettres à Peter Gast: Tome Premier. Introduction et notes d’André
Schaeffner. Monaco: Editions du Rocher, 1957, pp. 195-204.
2
A mudança aqui referida pode estar relacionada a reorientações no próprio pensamento de Nietzsche durante a
lacuna temporal entre a primeira e a segunda partes da obra em questão. De acordo com Scarlett Marton, o espaço de
tempo entre a escrita das referidas partes é de seis meses. Em suas palavras: “Em fevereiro de 1883, (Nietzsche) criou

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Ele sabia que, embora suas experiências durante sua solidão o tornassem suficiente para
si, uma espécie de amor o impelia a deixar a sua interioridade para um novo contato
com outros homens. Descia com a certeza de que já não era como antes, que sua
linguagem seria diferente da anterior, que já não mais correria com as “sandálias gastas”
(Ibidem, “O menino do espelho”, p. 116).
Agora, a viagem de Zaratustra teria um novo propósito: destruir para libertar,
pôr abaixo para preparar o lugar para a criação e procurar as terras paternais e
maternais3, as terras natais do além-homem4, deste que superará o homem, sendo
criador de valores afirmadores da vida, que ama a terra e aquilo que ela lhe oferece, que
depõe o que é baixo e mesquinho nas maneiras de agir, pensar e interpretar de seu
antecessor. Zaratustra estava possuído por um desejo de destruição, de jogar por terra
tudo o que se mostra imutável e imperecível. Carrega consigo o martelo com o qual
realizará tal empreitada. Os homens são vistos como pedras nas quais uma obra deve ser
feita, nas quais dormita as imagens que possuem Zaratustra. Está assim anunciado o que
deve perpassar o caminho do criador: “Sim, criadores, é necessário que haja na vossa
vida muitas mortes amargas. Sereis assim os defensores e justificadores de tudo o que é
efêmero. Para que o criador seja o filho que renasce é preciso que queira ser a mãe com
as dores de mãe” (Ibidem, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, pp. 119-120). Noutra
passagem, ainda na primeira parte do livro, verifica-se que a finalidade da criação a que
se propõe Zaratustra não é melhorar o homem e aquilo que de demasiadamente humano
fora construído pela espécie humana. Acima de tudo, o criador deve estar disposto a dar
lugar ao novo, àquilo que não se tornará mais um ídolo, uma provável verdade
engessada, mesmo que para isso tenha que se dispor para a morte, permitindo que
herdeiros substituam aquele que cria5.

em dez dias a primeira parte de Assim falou Zaratustra – Um Livro para Todos e para Ninguém; em julho do mesmo
ano, escreveu a segunda parte também em dez dias; e apenas dez dias foram suficientes para redigir, em janeiro de
1884 a terceira; um ano depois elaborou a quarta e última” (MARTON, 2005, p.17).
3
Embora a tradução mais indicada para a expressão Vater- und Mutterländern seja “terras paternais e maternais” (ou
“terras de pais e de mães”), no decorrer do texto opta-se pelo uso de “terras natais”, pois o que se tem em vista aqui é
mais o que se nasce em tais terras do que seus progenitores. Além do mais, a tradução da referida expressão não é
uma unanimidade, fazendo surgir alguns problemas relativos ao sentido da expressão no interior da sentença “Von
allen Bergen schaueich aus nach Vater- und Mutterländern”. Enquanto Eduardo Fonseca também fala de “terras
natais” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Editora Hemus, s.d., p. 93), Maurice de
Gandillac traduz a expressão por “patries et terres maternelles” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Ainsi parlait Zarathoustra.
Paris: Gallimard, 1971, p. 155) e Walter Kaufmann por “fatherlands and motherlands” (Cf. NIETZSCHE, F. W..
“Thus spoke Zarathustra”. In. The portable Nietzsche. New York: The Penguin Books, 1976, p. 223).
4
Prefere-se aqui a tradução de Übermensch por “além-homem”. No entanto, respeita-se nas citações a tradução
escolhida pelos intérpretes.
5
Na primeira parte de Assim falava Zaratustra, a ideia da morte livre sugere que se aproveita mais de uma vida bem
vivida, buscando uma constante superação de si, do que se entregar a uma vida sem ação. Entra em cena algo
semelhante à doutrina de Sileno, que aparece em O nascimento da tragédia: “O melhor de tudo é parta ti inteiramente
inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (GT/III, p. 36).

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No país da cultura, Zaratustra descreve uma interessante incursão espiritual:


“voei demasiado longe pelo futuro, e horrorizei-me. Quando olhei em torno de mim
reparei que o tempo era o meu único contemporâneo” (Ibidem, “Do país da cultura”, p.
163) 6. Não fica claro se esse voo se refere a certas previsões advindas da imaginação de
Zaratustra, se a uma habilidade profética, se a uma presença física no porvir ou se
Nietzsche considerava que seu personagem carregava em si o futuro. Certo é que ele se
via como um constante solitário, pois mesmo estando entre multidões, estava à frente de
toda gente. Era póstumo e, independentemente disso, capaz de lançar seu olhar para o
passado, buscar e compreender suas fontes, estar nos berços das origens da cultura
humana.
Para Zaratustra, estar entre os contemporâneos era uma abnegação (Cf. Ibidem,
“Do menino do espelho”, p. 113), pois fora impelido por certo altruísmo a deixar sua
solidão, o que lhe era mais agradável, para anunciar sua mensagem entre homens que o
deixavam aterrorizado:

Tornei então para trás, cada vez mais apressado: assim cheguei até vós,
homens atuais; assim cheguei ao país da cultura. Pela primeira vez vos olhei
com olhos favoráveis e com bons desejos. E que me sucedeu? Apesar do
medo que me invadiu... pus-me a rir! Nunca meus olhos viram algo que fosse
tão bizarro. Eu ria, ria, ao passo que me tremiam os pés e também o coração
(Idem).

Zaratustra se autodenominava um pássaro espantado (Cf. Ibidem, p. 164).


Aquilo que mais o deixava atônito era o fato de que o povo com o qual se deparou se
considerava o criador de toda sua realidade. Entretanto, tudo o que sabia era se vestir
das produções de seus antecessores, acreditando que estas lhe ofereciam apenas as cores
com as quais coloria suas roupas e seus véus (Cf. Idem). Sem que percebessem, os
homens do presente eram uma confusão de tudo o que se produziu ao longo das eras da

No entanto, isso deve ser encarado com ressalvas. Somente aquele que, segundo Nietzsche, não vive a tempo deveria
não ter nascido. Para este a morte seria uma solução e a única coisa com alguma importância para alguém supérfluo.
Logo, a morte livre seria uma forma de “retirada oportuna”. Esta não deve ocorrer diante da degeneração de si
mesmo, mas num instante de plenitude, quando se é mais amado (Cf. Z, “Da morte livre”, p. 103).
6
O título em alemão é Vom Lande der Bildung, possuindo várias versões em Português. Mário Ferreira dos Santos
(Cf. NIETZSCHE, F. W.. Assim falava Zaratustra. 3 ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2009) e Mário da Silva (Cf.
NIETZSCHE, F. W.. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005) o traduzem como “Do país da cultura”. Eduardo Nunes Fonseca utiliza “O país da civilização” (Cf.
NIETZSCHE, F. W.. Op. cit.). Na tradução francesa de Maurice de Gandillac consta “Du pays de la culture” (Cf.
NIETZSCHE, F. W.. Op. cit.) Vale dizer que o termo Bildung também pode ser traduzido como formação,
constituição e educação. Este último caso ocorre na tradução para a língua inglesa de Walter Kaufmann: “On the land
of education” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Op. cit.). Independente de qual for a escolha do tradutor, parece que
Nietzsche está falando de um povo que é o que é porque foi formado a partir de elementos que lhe eram externos.
Uma formação como essa aponta para algo como a mera erudição. Por sua vez, esta não caminha, em geral, de mãos
dadas com a criação.

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humanidade. Cada povo que existiu falava por meio deles. Com efeito, os homens
atuais assumiam as cargas do passado exclusivamente para negá-las. Rejeitavam
principalmente a fé, pois só aceitavam viver a realidade da vigília, destituída dos
“sonhos de verdade” de seus antecessores.
Negando os antigos, os homens do país da cultura pensavam estar aptos para
afirmar sua autenticidade. Porém, quando se despiam de seus véus e vestimentas,
mostravam toda sua inautenticidade, sendo isto um primeiro aspecto dos integrantes
dessa sociedade. Sua nudez revelava uma verdadeira inconsistência, o que indica que
havia uma estagnação cultural coletiva, um estado no qual nada de novo se apresentava,
mas que todos se gabavam por mostrar algo aparentemente original. Deles zomba
Zaratustra: “Aqueles que vos tirasse os véus, os retoques, as cores e as atitudes, não
deixaria mais do que um espantalho” (Ibidem, “Do país da Cultura”, p. 164). Revela-se,
portanto, um segundo aspecto: o país da cultura é estéril.
Diante de tal cenário, Zaratustra tece um elogio aos predecessores da
contemporaneidade, demonstrando algo recorrente na filosofia de Nietzsche: o
reconhecimento da importância dos diversos estágios culturais construídos pela
humanidade. Para ele, existiram muitos criadores ao longo dos tempos, homens que,
não se contentando com o antigo, trabalharam para erguer novos valores e até novas
crenças. Noutros termos, permitiram-se sonhar “sonhos proféticos” 7. Por seu turno, os
homens atuais pensavam que o mais sensato seria rejeitar qualquer tipo de fé. Não
sabiam que isso era um sintoma da sua ausência de vontade criadora, uma manifestação
de sua degeneração, de seu nada querer. Ora, a ausência de qualquer querer era bem
mais repulsiva a Nietzsche do que o querer nada: “Não-querer-mais, não-estimar-mais e
não-criar-mais, ah! Que esses grandes desfalecimentos permaneçam sempre longe de
mim!” (Ibidem, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, p. 120).
Através do contato entre Zaratustra e o país da cultura, Nietzsche descreve um
tipo de homem que já perdeu o prazer na própria existência, apenas assumindo o que
sobra das criações de seus antecessores, como se nada mais quisesse em relação ao seu
futuro. Isso decorria da descoberta de que aquilo em que são depositadas as mais
profundas crenças dos homens não provém de uma vontade supramundana, sendo, aliás,
meramente humano. É em Humano, demasiadamente humano que algo similar a este
argumento vem à baila pela primeira vez, todavia, sem que Nietzsche tivesse previsto as

7
A expressão Wahr-Träume pode ser traduzida por “sonhos de verdade”, como visto dois parágrafos acima.

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consequências indesejáveis do que havia descoberto. Na referida obra, ainda que o


filósofo falasse com admiração daqueles que se dispunham a uma busca pela excelência
criativa, talvez não tenha respondido à questão sobre qual seria o sentido de se continuar
a criar, uma vez que nada perduraria, nada seria grande ou profundo o suficiente para
dar algum sentido ou finalidade à existência. Aqui, arrisca-se a dizer que um dos frutos
de um entendimento como o que se acaba de mencionar é a inconformidade com o
simples viver por viver (Cf. Z, “Das antigas e das novas tábuas”, XIII, p. 268).
Zaratustra havia encontrado homens que, por terem experimentado uma desilusão, não
queriam mais criar. Sonhar não lhes era mais importante. Por conseguinte, mais sensato
lhes era permanecer em vigília, contemplando o que resta da realidade: uma existência
desinteressante, desprovida de segredos e de alguma coisa pela qual seja justificável
lutar8.
Jean Lefranc (2005) argumenta que Nietzsche pretende criticar a civilização de
seu tempo falando por Zaratustra do erro que conduziu a história europeia ao tipo de
niilismo em que se encontrava, culminando naquilo que o comentador chama de fim (do
niilismo) na cultura histórica. É importante perceber que essa “história de um erro” está
descrita em Crepúsculo dos ídolos (1896), e conta com cinco pontos. Nela está descrito
como o erro passa pela compreensão do que seria o mundo verdadeiro. É este, no
primeiro ponto, acessível apenas ao sábio, ao devoto, ao virtuoso. Estes não dizem, são
a verdade. Platão é a melhor tipologia desse ponto. O segundo diz respeito a um mundo
que está prometido ao sábio, ao devoto e ao virtuoso, mas não é acessível por enquanto.
É ao cristianismo que Nietzsche faz alusão aqui. O terceiro é o da coisa em-si,
inacessível aos sentidos, pois não é fenomênico. O único consolo existente é poder ao
menos pensar tal mundo. É da filosofia de Kant que se fala - da repercussão da Ideia
königsberguiana. O quarto, bem mais cético, realça o nascimento do desinteresse pela
instância do verdadeiro, daquilo que é em-si, do que está para além da empiria. A este
momento Nietzsche chama de manhã cinzenta, primeiro bocejo da Razão e canto do
galo positivista – referência ao cientificismo. O quinto e último deve ser reescrito na
íntegra, pois toca bem de perto o que se trata na presente discussão:

8
Se já não há mais uma vontade (metafísica) que impele todas as coisas a um infindo desejo de saciedade,
conduzindo o homem ao sofrimento, encontra-se espaço para uma vontade que é afirmativa (positiva) em seu
constante desejar, em sua insaciabilidade. Como escreve Deleuze, “a filosofia da vontade, segundo Nietzsche, deve
substituir a antiga (vontade) metafísica: ela a destrói e a ultrapassa (...). Tal como a concebe, a filosofia da vontade
tem dois princípios que formam a alegre mensagem: querer é igual a criar e vontade é igual a ter alegria”
(DELEUZE, 1976, p. 6).

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O verdadeiro mundo foi abolido por nós: que mundo restaria? O mundo
aparente talvez? Mas não! Com o verdadeiro mundo também abolimos o
mundo aparente. (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo
erro; topo da humanidade; incipit Zaratustra) (GD, “Como o verdadeiro
mundo finalmente se tornou uma fábula”, p. 18).

A citação acima deixa margem para se afirmar que, embora andar entre os
homens da civilização causasse espanto a Zaratustra, este teria que se esforçar, pois
estava na hora exata para que sua mensagem fosse anunciada. Pode-se ponderar que a
humanidade estava tomada pelo sentimento do vazio do humano, da não justificação de
tudo o que fizera ao longo da sua história, como se a imaginasse como mero fruto de
casualidades – o que poderia lhe parecer ruim. Em certa medida, faltava ao homem,
além da iluminação do “eterno retorno”9, encontrar uma nova alegria numa existência
alforriada do mundo verdadeiro, de outro mundo, do não prazer na vida e na terra. Em
contrapartida, não se desejava mais retornar e percorrer novamente os caminhos do erro.
Consequentemente era o tempo oportuno para Zaratustra prosseguir, para anunciar o
advento do além-homem.
Deve-se observar com exatidão o que ocorria na Europa e como Nietzsche vê
seu papel nesse contexto. J. P. Stern tenta explicitar qual seria de fato a mensagem de
Zaratustra. Antes de qualquer outra coisa, deve-se mencionar que o comentarista
enxerga o além-homem apregoado em Assim falava Zaratustra como uma coletividade,
e não como um indivíduo. Em seguida, refere-se ao além-homem como aquele que não
está fechado para o mundo, mas abre-se para ele, quer receber não só o que de melhor
tem para oferecer, também quer suas vicissitudes. Nas palavras de Stern, “(...) nele (no
além-homem), os vícios fundamentais do desejo, do desejo de poder e do egoísmo são
transformados em valores positivos; e ele está apaixonado pela terra, pelo seu próprio
destino e pela sua vida, pronto a sacrificar essa vida plena (...) (STERN, 1978, p. 65). A
vontade de potência10 transforma a rejeição ao mundo em ensejo criador. A intenção é
recebida como ocasião para a criação de novos valores, sem que estes tenham seu
movimento detido em seu processo de vir-a-ser. Logo, a mensagem por excelência do
além-homem é “(...) afirmar a terra e ‘estar apaixonado por ela’ como fonte de todas as
coisas vivas” (Idem). Por tudo isso, o além-homem não quer se redimir da terra e nem
do que ela tem para lhe oferecer.

9
Ainda de maneira pouco desenvolvida, a iluminação a que se refere aqui aparece pela primeira vez no “aforismo
341” de A Gaia Ciência.
10
A tradução portuguesa do livro de Stern utiliza a expressão “vontade de poder” (Cf. Idem).

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Em concordância com a exposição do último parágrafo, pondera-se que a


Europa ainda não era o palco para o aparecimento do além-homem. São elencados a
partir do pensamento de Nietzsche três grandes instantes do niilismo europeu. O
primeiro é chamado de “período das claridades”, no qual o que é antigo e o que é novo
apresentam-se como antíteses fundamentais. São opostos da seguinte maneira: o que é
antigo representa a vida decadente, enquanto o novo é recebido como manifestação da
vida ascendente. Não obstante, o homem se sente fraco demais para lançar mão de sua
força e criar algo novo. “O período das três grandes paixões” é o segundo, sendo elas o
desprezo, a piedade e a destruição. Enfim, lista-se o “período da catástrofe”, no qual os
homens são passados por um crivo, o qual impede que tanto os fracos quanto os fortes
tomem decisões11. O que constituiria este crivo não fica bem claro, mas é possível
cogitar que o pensamento dos últimos três séculos europeus estaria contido nele. Um
século seria aquele de Descartes, sob o domínio da razão como testemunho da soberania
da vontade. O outro seria o de Rousseau, com o reinado do sentimento, impondo este a
soberania dos sentidos, sendo, consequentemente, falaz. O terceiro era o de
Schopenhauer, do animalismo, debaixo do comando dos apetites. Este, embora mais
verídico, era mais sombrio e, portanto, pessimista. Não mais era a perda de qualquer
tipo de crença ou da confiança em novos valores. Era uma forma de rejeição à vida e a
tudo o que ele tem para oferecer12.
Zaratustra não se detém e continua sua viagem. Seu olhar parte do alto dos
picos. Coloca-se em busca de terras natais. Apesar de insistir em caminhar errante, não
as encontra (Cf. Z, “Do país da cultura”, p. 65). Estar à procura de terras natais é querer
estar entre aqueles que estejam dispostos a persistir criando. As antigas terras natais são
passadas, bem como seus filhos. Outras deveriam ser descobertas, nas quais
provavelmente viria à luz o além-homem e de onde este alcançaria o restante da terra.
O texto de Assim falava Zaratustra mostra um profeta que sabia bem sobre o
que apregoava, mas esperava encontrar o lugar propício para o cumprimento de sua
mensagem. Como a leitura do livro indica, o centro da sua pregação é o além-homem.
Em várias ocasiões é possível compreender as circunstâncias adversas para o seu

11
Cf. HEINRICH, Mann. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p.
98.
12
Frederick Coppleston, citando um trecho de Assim Falava Zaratustra em relação ao pessimismo, faz o comentário a
seguir. “Os homens 'não têm de fugir à vida, como os pessimistas, mas, como alegres convivas de um banquete, que
desejam as suas taças novamente cheias, dirão sim à vida: Uma vez mais!'. Desta maneira, Nietzsche desenvolveu-se
fora de Schopenhauer e se, por um lado, temos o pessimismo de Schopenhauer combinado com um ideal
predominantemente negativo de comportamento, temos, por outro, o otimismo de Nietzsche combinado com um ideal
predominantemente positivo e ativo de comportamento” (COPPLESTON, 1979, p. 211).

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surgimento. Em oposição, perceber o tempo e o espaço específicos para seu


aparecimento é bem menos simples – ou bem mais complexo. A confusão do que seria
o além-homem contribui para a dificuldade há pouco levantada. Enquanto alguns
esperariam por uma nova espécie de homens, biologicamente modificada, outros, talvez,
esperassem por um melhoramento do homem, sobretudo, no âmbito da moral (e da
cultura). Contudo, o além-homem não é algo parecido com o que se acaba de ler, uma
vez que não é uma nova espécie natural mais evoluída, ou seja, enquanto produto da
natureza. Semelhantemente, não é somente o melhoramento a partir da cultura humana
já existente. Se ambas as hipóteses não condizem com o que Nietzsche vislumbrava em
sua filosofia, é oportuno dizer que o além-homem estava bem mais próximo de ser um
produto do homem. Assim como uma mãe está disposta a abrir mão de si em prol de seu
filho, assim o homem deve se entregar para parir seu herdeiro13.
A terra em sua íntegra deveria ser o lugar de origem do além-homem. Este é
aquele que estará disposto a amá-la acima de outras coisas. Ao contrário, a maioria dos
tipos de homens com os quais Zaratustra se depara possui o olhar voltado para o além
dela, seja porque ela não lhes basta ou porque tais homens arquitetam um meio de fuga
de suas supostas ameaças. Provavelmente, em função disso distingue o olhar lunar do
amor solar. A lua tem um brilho que não ilumina a terra, mas só a si. Elabora-se um
paralelo com o conhecimento engendrado a partir de um desvio, de uma não-relação ou,
ao menos, de um relacionamento pouco intenso com a terra. Como escreve Nietzsche
aos que apreciam somente a visão da lua: “Vós não amais a terra como criadores, como
geradores satisfeitos de criar” (Z, “Do imaculado conhecimento”, p. 167). Já o brilho do
sol não permite que se olhe diretamente para o astro, pois o mais importante é que o
olhar se dirija para o que se ilumina, a saber, a própria terra. Livre da escuridão, esta se
mostra em toda sua diversidade, no esplendor de seu potencial criador. Como afirma
Nietzsche: “Todo amor solar é inocência e desejo do criador” (Ibidem, p. 168). Noutro
trecho, lê-se: “E a vossa alma está longe do que é grande, que o além-homem vos
espancaria com a sua bondade! E vós sábios e ilustrados, fugireis ante a ardência solar
da sabedoria em que, prazerosamente, banha o além-homem a sua nudez” (Ibidem, “Da
prudência humana”, p. 197).
13
Segundo Willis Santiago Guerra, “o super-homem (utiliza-se aqui a terminologia do comentarista) será, se o for,
um produto do próprio homem, que, voltando-se para si, superar-se-á, por um retorno à natureza, ao natural, que nele
habita enquanto sua origem” (GUERRA, 2003, p. 156). Este retorno ao natural tem como finalidade destituir-se do
que é meramente humano, pois isso limita a vida do homem, simplificando-a demasiadamente. Num relance bem
próximo dos discursos ecológicos atuais, Willis insinua que a forma como o homem se põe individual e
coletivamente contra a terra contribui para abreviar sua estadia (sua experiência de vida) no mundo e pode ser um
empecilho para o aparecimento do além-homem.

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As terras natais são o lugar do meio-dia mais ardente, nas quais o sol brilha em
todo seu fulgor. Aliás, estão numa zona de clima úmido, de vida selvagem e virgem. Lá,
cada componente deve estar ávido pelo novo, para deixar acontecer uma primeira
experiência de vida. É onde esta se manifesta numa superabundância de vontade sem
equivalência, potencializando-se cada vez mais. Tudo é assombroso: o menor se torna o
mais forte - os gatos montanheses se transformam em tigres e os sapos venenosos em
crocodilos (Ibidem, p. 196).
É conveniente destacar que o elogio ao sol e às zonas de clima úmido (ou
tropicais, como se pode sugerir) não ocorre pela primeira vez em Assim falava
Zaratustra. É possível que Nietzsche estivesse retomando reflexões de Humano,
demasiado humano. É pelo viés da cultura que o tema é abordado neste livro. Para
tanto, é proposta a concepção de que a cultura poderia ser ilustrada como contendo
zonas climáticas, sem que essas coexistissem geograficamente, mas se sucedessem no
tempo. Haveria uma cultura que se assemelharia ao clima tropical, cheia de violentos
“contrastes, brusca alternância de dia e noite, calor e magnificência de cores, a
veneração do que é repentino, misterioso, terrível, a rapidez dos temporais (...) (MA, #
236, p. 150). Numa zona cultural como essa, as forças e sentimentos se alternariam,
destruindo-se e alimentando uns aos outros, como numa luta entre tigres e serpentes,
sendo tudo um celeiro criativo. Diante disso, Nietzsche se pergunta: “Mas não podemos
estar felizes com essa mudança, mesmo admitindo que os artistas foram seriamente
prejudicados pelo desaparecimento da cultura tropical, e a nós, não-artistas, nos
consideram um pouco sóbrios demais?”(Idem). Porém, a cultura tropical teria sido
substituída pela cultura da zona temperada, mais espiritual e sem muitos sobressaltos.
Considerando o aforismo 237, é possível insinuar que do lado da cultura tropical
estariam, por exemplo, os gregos e os renascentistas italianos, e do lado da cultura
temperada a arte pós-reformista alemã. Se há um ideal de progresso artístico-cultural,
isso ocorre entre os indivíduos dessa última, que ainda parecem buscar uma arte mais
espiritual, ou melhor, absolutamente ideal, um ponto da criação no qual nada mais
precisa ser criado. Todavia, em Assim falava Zaratustra Nietzsche não se limita ao
fenômeno cultural. Sua preocupação se estende à existência em todas as suas
manifestações.

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Não se deve supor que a pátria de Zaratustra14 seja o modelo de terra natal
buscado por ele. Isso fica claro em “O regresso”, inscrito na terceira parte do livro.
Regressar significa retornar à solidão, ir para um lugar onde o solitário não é mais
rejeitado pela multidão, para a terra onde encontra descanso. Exclama Zaratustra: “Ó
solidão! Pátria minha! Vivi muito selvagem em selvagens países estranhos para não
regressar a ti sem lágrimas (...). Como a tua voz me fala celestial e afetuosamente!” (Z,
“O regresso à pátria”, p. 243). Longe da sua pátria, Zaratustra caminha em meio a
muitas pessoas entre as quais a maioria fala, mas ninguém escuta e nada se conclui. É
pesaroso para o profeta do além-homem achar acolhida para sua sabedoria. O mesmo
ocorre com o espírito livre15, o qual é muitas vezes rechaçado das terras em que vive,
pois seu pensamento incomoda (Cf. “Do seguir adiante”, p. 235). Para Zaratustra, é
somente no alto, em sua pátria, que poderá respirar de novo o ar puro, distante dos
odores desagradáveis dos seres humanos. Estes são perigosos, e o que é perigoso deve
sempre ficar atrás dele. O retorno à solidão explica porque às vezes a peregrinação não é
uma continua andança adiante. É necessário voltar aonde a sabedoria é banhada pela luz
solar, e só depois reiniciar a caminhada junto daqueles que retiram seu saber da
obscuridade.
A alegria de Zaratustra não está completa no retorno. Sua vontade quer seguir
em frente, mas retornar é preciso. As terras natais estão no futuro, não no passado, e
ainda não acharam guarida no presente:

O presente e o passado sobre a terra... ai meus amigos, eis para mim o mais
insuportável; e eu não viveria se não fosse um visionário daquilo que há de
vir. Um vidente, um voluntário, um criador e uma ponte para o futuro – e
também, ai, até certo ponto, um aleijado no meio dessa ponte: tudo isto é
Zaratustra. E vós sempre vos interrogastes: “Para nós, quem é Zaratustra?
Como lhe podemos chamar”? (...) Eu ando entre homens como entre
fragmentos do futuro: desse futuro que meus olhares aprofundam (...). A
vontade não pode querer para trás (Ibidem, “Da redenção”, p. 190).

No entanto, é preciso pôr diante das distinções temporais de Nietzsche, passado,


presente e futuro, a concepção de eternidade implícita na doutrina do “eterno retorno”.
Roberto Machado discute esta concepção dentro das perspectivas cosmológica e ética,

14
A expressão utilizada por Nietzsche para se referir à pátria de Zaratustra é meine Heimat (“Minha Pátria”).
15
Mais uma vez Nietzsche retoma Humano, demasiado humano. Como está escrito nesta: “É chamado de espírito
livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e
função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é uma exceção, os espíritos cativos são a
regra” (HA, # 225, p. 143). E o filósofo já adianta que é sobretudo no Estado que o espírito livre se transforma num
sem-lugar, sendo-lhe imposto o exílio.

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sendo que aquela se subordina a esta. Sobre o sentido cosmológico o intérprete diz:
“(...) exprime a suspeita em relação à eternidade como exterior, como separada, como
um além ou aquém do tempo, assumido uma postura que procura ultrapassar as
oposições metafísicas de valores, afirmando a dignidade do tempo (...)” (MACHADO,
2001, p. 135). No sentido ético, afirma que “para Nietzsche, querer a eternização do
instante vivido, pela afirmação do seu eterno retorno, é querer a vida, a cada instante,
em toda sua intensidade, em toda sua plenitude (...) (Idem). Machado continua dizendo
que: “Não quero dizer que Nietzsche não tenha tido o desejo de provar
argumentativamente o eterno retorno cosmológico. (...) A afirmação é mais hipotética
do que categórica e o ponto de vista cosmológico está sempre subordinado ao ponto de
vista ético (Ibidem, p. 136).
O texto de Machado conjugado à leitura de Assim falava Zaratustra provoca a
seguinte reflexão. Por um lado, mesmo que as distinções temporais sejam analisadas
somente no sentido do eterno retorno cosmológico, não é irrelevante falar de passado,
presente e futuro, sobretudo quando se considera que o tempo subsiste perante o que lhe
é externo, ou seja, a eternidade. Por outro, se as distinções são observadas no sentido do
eterno retorno ético, tal irrelevância há pouco mencionada perde qualquer razão de ser.
Todavia, qualquer impasse fica resolvido ao se pensar que o eterno retorno não apenas
repete como também agrega, restando lugar para uma dimensão cronológica. Assim, o
futuro pode se apresentar como a instância do que ainda não foi, que se anuncia e que se
torna desejável. Seria o tempo em que coisas novas viriam a surgir, como se cada
instante fosse capaz de engendrar algo novo, superando seu predecessor. Dessa maneira,
não se falaria aqui de um querer para trás, mas daquilo que afirma a vida, que a
plenifica. Logo, não se deveria almejar o que é antigo exatamente como foi construído
no passado, por exemplo, as antigas terras natais, e sim aquilo que tal construção teria
deixado de afirmativo, novamente exemplificando, o anseio por terras natais.
As terras natais que Zaratustra procura são terras do futuro, porque o próprio
querer não pode retornar. Como já foi dito anteriormente, as antigas terras natais não
podem mais ser desejadas e, tampouco, alcançadas. Por esse motivo, Zaratustra olha do
cume dos montes e não encontra tais pátrias. Ora, estas ainda não estão presentes no
espaço e no tempo de Nietzsche. Para qualquer parte que se olhasse na Europa era
possível ver surgir ideologias que tinham propostas contrárias a tudo o que este filósofo
esperava para o além-homem. Os homens de seu tempo persistiam em lutar para que sua
espécie perdurasse, dando origem a uma cultura de preservação. Seu objetivo era viver

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sem perigos, ou mais do que isso, evitar o perigo. Para tanto, eram hábeis em criar
sistemas políticos que mantivessem a paz coletiva como a democracia, o socialismo16 e
uma ciência que era somente a transfiguração da velha metafísica. A busca pela verdade
ainda é o principal alvo da ciência que, ao pensar encontrá-la, o homem acaba por fixar
uma nova espécie de metafísica. Mário Sérgio Ribeiro, a respeito desse assunto, escreve
que: “Nossa ciência, perpassada pelo otimismo essencial do ideário positivista, estaria
ainda animada por uma vontade de verdade que, esquecendo-se de pôr em dúvida o
‘valor’ da verdade, acaba por torná-la a última tributária de todo platonismo”
(RIBEIRO, 1999, p. 32). Com efeito, quando grandes sistemas baseados na verdade
foram construídos, tinham como única finalidade, ainda que inconsciente, afirmar um
tipo de moral. Nesse sentido, os sábios, os sacerdotes, filósofos e a ciência abriram
veredas via verdade que sempre chegaram ao pathos da moralidade. Isso significa dizer
que, provavelmente, se no homem não prevalecesse um instinto de preservação, a
verdade nem fizesse parte de seus sonhos. Ora, se para alguns um modelo de cultura
fundada no ideal de verdade proporciona potência, servindo de alimento para sua moral,
seu escudo social, em outros age para torná-los apequenados, inconscientes de sua força
– um tipo de amordaça psicológica e social (Cf. GB/I, § 6). Dessa forma, as construções
realizadas pelos europeus eram pequenas, exigindo que tudo o que fosse grande se
abaixasse para que conseguisse habitar seu interior (Cf. Z, “Da virtude
amesquinhadora”, p. 223). Para esses homens, é melhor o mesquinho sobre um solo
firme do que correr riscos para gerar algo realmente grandioso, que enobrecesse o
homem e sua vida. O horizonte contemplado mostrava o enfraquecimento, a
degeneração, um homem que se enjoa do tipo de vida que escolheu para si. Nietzsche
entende que sem perigo não há como haver superação. Demanda-se a tensão para que
algo nobre possa nascer. Existem até alguns que aparentavam querer, mas seu querer é
moderado, e não andam muito sem olhar atrás para que conseguissem ver o solo seguro.

16
Não há como não ver no texto a seguir um paralelo com a democracia, que em outros momentos da filosofia de
Nietzsche é posta em xeque. Eis o texto de Assim falava Zaratustra: “Aqui está a pior das hipocrisias que tenho
encontrado entre os homens: até os que mandam fingem as virtudes dos que obedecem. ‘Eu sirvo, tu serves, nós
servimos’, assim salmodeia a hipocrisia dos governantes. (...) Toda bondade que vejo é pura fraqueza, toda justiça e
piedade, fraqueza pura. São corretos, leais e benévolos uns com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre
si os grãos de areia”. Faz parte de “Da virtude amesquinhadora” (p. 223), e embora este texto aponte para uma
interpretação genealógica da história do amesquinhamento da virtude e da decadência do homem, é no contexto
cultural de Nietzsche que isso alcança seu ápice. Os grandes inimigos nietzschianos no Estado moderno eram seus
sistemas políticos, criados para o nivelamento dos indivíduos e para o fim da hierarquização social. A democracia e o
socialismo estavam baseados numa verdade quase tão metafísica quanto aquelas que embasaram os Estados
absolutistas, com uma ressalva: escondiam-se atrás de um pensamento científico. Contudo, nada mais eram que
superstições, crendices num passado natural no qual o homem era um bom selvagem, tendo sido corrompido pela
vida em sociedade, sua cultura e civilidade (Cf. MA, # 473 & GB/V, § 203).

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O além-homem não poderia existir aí, pois não é da sua natureza consentir com a
ausência de coragem.
Ao retornar para a sua pátria, Zaratustra sabia que estava diante da aurora, e se
perguntava por que esta tinha chegado tão cedo para ele. Os primeiros raios de sol
anunciavam que o meio-dia viria. Mas, antes que chegasse, muito havia para se fazer.
Era necessário seguir anunciando: “Para todos eles, porém, chega agora a luz, a espada
da justiça, o Grande Meio-dia: Manifestar-se-ão aqui muitas coisas!” (Ibidem, “Dos três
males”, p. 253).
Nietzsche espera o além-homem como aquele tipo que saiba aproveitar a
felicidade que a terra lhe proporciona, não mais criando subterfúgios para viver apenas
relances de felicidade. O Grande Meio-dia trará consigo as imagens da vida em toda sua
variedade, abrindo os olhos de quem o contempla para além das redomas instituídas a
partir da dupla bem e mal. O que era visto como desprezível por ser considerado
pertencente à esfera do mal, e que fora negligenciado ao longo de séculos, poderá ser
banhado pela luz solar, resplandecendo como algo grande17. O corpo não será mais
desprezado por ser manancial de vontade ou por se sujeitar à dor e ao sofrimento, mas
entrará em comunhão com a terra. Nietzsche dá indícios de como é este momento,
quando Zaratustra diz: “Ó ventura! Ó ventura! Queres cantar, minha alma? Estás
deitada na erva. Esta, porém, é a hora secreta e solene em que nenhum pastor sopra
flauta. Acautela-te! O calor do meio-dia repousa nos prados. Não cantes! Silêncio! O
mundo consumou-se” (Ibidem, “Ao meio-dia”, p. 346). Assim, Zaratustra sente um
rasgo de felicidade que transpassa a atmosfera, como o raio de sol que passeia pelo céu
ao meio-dia. Seu desejo é se entregar a este, ao poço de eternidade - o alegre abismo da
eternidade.
Conclui-se, portanto, que Zaratustra pretendia não só anunciar o aparecimento
do além-homem, como também procurava aquela que seria sua terra natal – e o lugar da
continuada concepção/criação; as terras paternais e maternais. Nietzsche compreendia
que Zaratustra as encontraria não num lugar específico no espaço, e sim, no tempo, ou
seja, no futuro – em que toda terra seria o lugar do além-homem. Zaratustra adianta esse
instante como sendo o Grande Meio-dia, no qual o sentido de todo desejo do grande
17
Como relembra Nietzsche, falando de seu Zaratustra: “O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste em
como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode, no entanto, ser o
oposto de um espírito de negação; como o espírito portador do mais pesado destino, de uma fatalidade de tarefa,
pode, no entanto, ser o mais além e mais leve – Zaratustra é um dançarino -: como aquele que tem a mais dura e
terrível percepção da realidade, que pensou o ‘mais abismal pensamento’, não encontra nisso, entretanto, objeção
alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as
coisas (...)” (EH, “Assim falou Zaratustra”, VI, p. 90).

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produto do homem, o além-homem, se voltará para a terra e para seu ímpeto


criador/destruidor. De acordo com a interpretação aqui proposta, Nietzsche não via sua
época como aquela que daria lugar ao além-homem, mas era o instante propício para
que Zaratustra apregoasse sua mensagem. Como se pôde ver no decorrer do presente
texto, a parte escolhida para se iniciar o discurso, embora pudesse ter sido outra, foi o
encontro de Zaratustra com o homem atual/da cultura. Justifica-se a escolha pelo fato de
que é importante verificar se o filósofo dá ou não precedência à cultura em relação aos
elementos derivados desta, como poderia ser o caso da própria moral. Todavia, a
narrativa de Zaratustra está para além da cultura, pois abarca a existência e, acima disso,
a vida em todas as suas manifestações.

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