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Saudades

da Rua
da Saudade
O Teatro
Romano e a sua
envolvente
nas memórias
da cidade
Índice

07 Saudades da Rua da Saudade 60 Do Teatro Romano à Cidade: usos


e o Museu de Lisboa – Teatro ereusos de um espaço, novas
Romano pessoas
Joana Gomes Cardoso Maria Miguel Lucas

09 Saudades da Rua da Saudade 68 Novos desafios: a Junta de


Joana Sousa Monteiro Freguesia de Santa Maria Maior:
um coração que não pode parar
10 O projeto “Saudades da Rua de bater
da Saudade”. Génese e Miguel Coelho
enquadramento
Lídia Fernandes 74 Bibliografia

14 O teatro romano de Felicitas Iulia 76 Ficha técnica


Olisipo. Um monumento romano
e um museu no centro da cidade
Lídia Fernandes

28 Tão Perto e tão longe: a


transformação da paisagem
urbana da zona envolvente
do teatro romano
Carolina Grilo
Vocês, artistas que fazem teatro em grandes
casas, sob sóis artificiais, diante da multidão 36 Memórias da Saudade
calada, procurem de vez em quando o teatro que Daniela Araújo, Rui Coelho
e Ana Cosme
é encenado na rua. Quotidiano, diverso e anónimo,
mas tão vívido, terreno e nutrido da convivência 48 O que a arqueologia nos conta
dos homens, o teatro que se passa na rua Lídia Fernandes, Carolina
Grilo, Rani Almeida

Bertold Brecht
Saudades da Rua da Saudade
e o Museu de Lisboa – Teatro Romano
Joana Gomes Cardoso
Presidente do Conselho de Administração da EGEAC

A existência das ruínas do teatro romano a ser tudo isto mas também que estude, registe
de Olisipo é conhecida desde finais do século XVIII, e recorde não apenas a memória do teatro, mas a
mas apesar do interesse que ao longo dos séculos memória da cidade romana onde o teatro se inseria.
suscitou junto de historiadores, arqueólogos e E que o faça dando continuidade e crescente
olisipógrafos, foi preciso esperar pela década de expressão ao envolvimento da população local - a
60 para que as ruínas começassem a surgir à luz que mais diretamente se relaciona com a existência
do dia e apenas no ano de 2001 o Museu do Teatro desta reserva arqueológica - na procura comum de
Romano abriu portas. A preocupação em tornar os projetos de revitalização do tecido social desta área
vestígios arqueológicos mais percetíveis para os não central da cidade, em que a Junta de Freguesia de
especialistas, e apresentar uma contextualização Santa Maria Maior tem sido um parceiro fundamental.
mais ampla dos testemunhos da cidade romana, levou O projeto “Saudades da Rua da Saudade”
a uma profunda reformulação do Museu que em 2015 insere-se assim de uma forma particularmente
passou a constituir um núcleo do Museu de Lisboa feliz naquilo que tentamos promover e que
passando, no ano seguinte, para a gestão da empresa desejamos para a cidade: espaços culturais com
municipal de cultura de Lisboa, EGEAC. uma forte ligação às comunidades envolventes,
Um museu de cidade, como é o polinucleado que sejam espaços abertos e acessíveis, locais de
Museu de Lisboa, tem a responsabilidade particular aprendizagem mas também de fruição descontraída;
de tornar compreensíveis as múltiplas camadas que instituições capazes de comunicar com os seus
ao longo dos tempos deram forma à cidade como públicos e cativar aqueles que habitualmente não
hoje a conhecemos; de assinalar as continuidades transporiam as suas portas; casas que preservam
e refletir sobre as ruturas que marcam a progressiva memórias e que a partir delas são capazes de propor
construção de Lisboa. debates e reflexões sobre o presente e o futuro,
O Teatro Romano foi, nos seus momentos sobre a importância da preservação do património
áureos, um sítio de reunião das gentes da cidade, e o seu contributo para o desenvolvimento
um local de festa e confraternização, um espaço sustentável.
de espetáculo e de cultura. Queremos que continue

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Saudades da Rua da Saudade
Joana Sousa Monteiro
Diretora do Museu de Lisboa / EGEAC

O projeto “Saudades da Rua da Saudade” que o do Santo António, resultante da remodelação total
o Museu de Lisboa - Teatro Romano promoveu, é um do antigo Museu Antoniano; o do Teatro Romano;
dos projetos que acalentamos como de particular o Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos e ainda
relevância. Trata-se da apresentação dos resultados o Torreão Poente do Terreiro do Paço. Os projetos
da primeira fase de uma investigação de proximidade, relacionados com um maior conhecimento dos
sobre as comunidades vizinhas do lugar do Teatro lisboetas e o seu reflexo em publicações, exposições
Romano e do seu museu. e atividades educativas promovidas pelo Museu
Tratando-se de um sítio arqueológico de Lisboa são algumas das novas linhas de trabalho
descoberto na sequência do Terramoto de 1755, a que nos estamos a dedicar numa perspetiva de
tornado conhecido muito mais tarde no século XX médio / longo prazo, a par da investigação sobre
através de sucessivas campanhas arqueológicas, a história de Lisboa, entre outras áreas de atuação.
o Teatro Romano de Lisboa e o museu criado a Deste modo, também nos núcleos do Santo
seu propósito tiveram um considerável impacto na António e do Palácio Pimenta estão a ser desenvol-
paisagem urbana daquele local. Houve demolições vidos projetos com as comunidades vizinhas, tanto
de edifícios para que as escavações se pudessem na perspetiva de uma relação mais estreita com as
realizar, e foram surgindo partes de um antigo populações, como de estabelecimento de parcerias
teatro e mais tarde, em 2001, um museu, que tinha com instituições também vizinhas.
inicialmente entrada por duas ruas, uma pela Rua Para além de associações de moradores
de São Mamede, a que se manteve na sua forma como a “Renovar a Mouraria”, e de coletividades de
presente, no nível mais alto da colina, e outra pelo índole diversa, as Juntas de Freguesia são parceiros
Pátio do Aljube, ao lado do atual Museu do Aljube. fundamentais para que o nosso trabalho possa ser
Com a reabertura do Museu de Lisboa – Teatro mais eficiente e profícuo para todos os envolvidos.
Romano no final de setembro de 2015, após dois Até ao presente, e após apenas dois anos de remo-
anos de obras de melhoramentos dos conteúdos, delação do museu, têm sido essenciais as excelentes
da museografia e das acessibilidades, a entrada do relações com a Junta de Freguesia de Santa Maria
Museu e o próprio tapume das ruínas passaram a Maior, em que estão inseridos o Teatro Romano e
ter uma imagem mais cuidada e contemporânea. A o Santo António, e com a Junta de Freguesia de
perspetiva sobre o património arqueológico para Alvalade a que pertence o Palácio Pimenta.
quem passa na rua de São Mamede tornou-se Os públicos turistas, nacionais e estrangeiros,
também mais interessante e apelativa, quer do lado são de crescente importância para os museus e o
das ruínas cénicas, através das janelas inseridas no nosso não é exceção. No entanto, para um museu de
tapume, quer do lado do Museu, por meio de uma cidade como este, os habitantes de Lisboa, seja qual
varanda acessível aos transeuntes durante o horário for a sua cidade ou País de origem, podem ser con-
de abertura ao público. siderados os nossos públicos preferenciais. Assim,
projetos de vizinhança como este têm um grande
* potencial de aproximação entre os moradores das
Após a sua reprogramação no início de 2015, áreas circundantes e o museu, neste caso o Museu
o Museu de Lisboa passou a ser constituído por de Lisboa – Teatro Romano e as ruínas arqueológicas,
cinco núcleos: o do Palácio Pimenta, que se mantém estimulando sentimentos de pertença e de valori-
o edifício-sede do Museu, antigo Museu da Cidade; zação de um património que é de todos.

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O projeto “Saudades da Rua da Saudade”. A reabertura do Museu de Lisboa – Teatro as histórias de cada um. Ignora-se a origem destas
Romano em setembro de 2015, após as obras de famílias, ou o seu local de origem. Não se trocam
Génese e enquadramento renovação e valorização implementadas nos dois experiências, não se pára na esquina a contar as
anos anteriores, levou a que se preconizasse uma últimas inconfidências sobre os vizinhos nem se bate
maior divulgação deste equipamento museográfico na porta ao lado a pedir algo.
Lídia Fernandes
de forma a colmatar o esquecimento a que esteve É uma nova população, são novas pessoas e
Coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC
sujeito dado o longo período de encerramento. novos contextos, novas existências que substituem
O objetivo que se pretendia era, naturalmente, outras, perante a imutabilidade das ruínas de um
divulgar o museu, mas também torná-lo mais usufruí- teatro romano que, entre a Rua de São Mamede e a
vel por parte do público. Este intuito era direcionado Rua da Saudade, teimam em permanecer à vista de
especialmente à população local com vista a tornar todos.
o museu num centro de encontro e de partilha, um Estas artérias, durante muito tempo ocupa-
espaço de divulgação do monumento romano, mas, das por uma população de baixos recursos econó-
especialmente, da história do sítio. micos, são hoje cobiçadas pela sua posição altaneira,
No entanto, entre 2001 – quando o museu abriu com a sua vista para o Tejo. Donas de casa, caixeiros
portas pela primeira vez, ainda com a designação de viajantes, trabalhadores fabris, empregadas da
Museu do Teatro Romano – e 2015, quando o museu limpeza, antigos tipógrafos, vendedores de lojas, dão
reabriu com a nova designação de Museu de Lisboa hoje lugar a arquitetos, designers, negociantes de
– Teatro Romano, a população residente na área arte, consultores de empresas estrangeiras, famílias
envolvente ao espaço museográfico, havia sofrido de outras nacionalidades que adotam para si estes
profundas alterações. novos apartamentos brancos e apetecíveis.
Vários vizinhos tinham abandonado a rua, É uma população diferente, muito distinta da
mudando-se para outros locais, e outros haviam que existia há 40 ou 50 anos, e ainda mais da que
falecido. De forma muito rápida, uma população idosa, aqui habitava no século XIX ou nos inícios do século
conhecedora do local, deu lugar a uma população XX. Uma cidade não é imutável e o seu crescimento
bastante mais nova, com poucos laços de convivên- implica alterações físicas, mas também das pessoas
cia entre si e pouco conhecimento do sítio. que a habitam. Estes novos habitantes apreendem
Este fenómeno de substituição da população distintamente esta realidade urbana. Olham-na de
foi acompanhado por uma renovação do edificado, novo, reconhecendo-lhe os atrativos que o olhar dos
por um profundo investimento imobiliário que alterou que foram criados aqui já não retém, aproveitam-na
a fisionomia da rua e, especialmente, obrigou e de forma diferente e espantam-se com o que para
suscitou uma substituição dos seus usufruidores. outros já é rotina.
Estrangeiros, pessoas mais novas e pessoas É sempre agradável ver outras pessoas a
com menos constrangimentos económicos, admirarem-se com o que para nós é “normal”. Isso
passaram a habitar as ruas de São Mamede e da obriga-nos, quase involuntariamente, a descobrir qual
Saudade. Turistas que visitam a cidade em poucos o motivo do espanto e a questionarmo-nos sobre
dias alojam-se na área envolvente ao teatro romano qual terá sido a última vez que reparámos naquele
sem dele lhe conhecerem a história, as peripécias pormenor, que nos espantámos com um recanto
do seu aparecimento ou da sua descoberta. São prazenteiro, com um jacarandá perfeito, com uma
habitantes de curta duração que aproveitam o sítio viela anacrónica ou com um rendado
privilegiado oferecido por estas ruas - fora do bulício do empedrado da nossa calçada-mosaico.
do pitoresco bairro de Alfama mas paredes meias Mas quando olhamos para algumas fotografias
com este bairro - e que as cruzam com destino ao dos finais do século XIX ou dos inícios da seguinte
Castelo de São Jorge ou dirigindo-se, a sul, para a centúria, é quase difícil não ficar um pouco
Baixa Pombalina. saudosista. São imagens mudas, mas que nos
Os elos de vizinhança perderam-se de forma obrigam a um olhar mais atento porque conseguimos
repentina. Os moradores não se cumprimentam constatar a mudança entre o antes e o agora.
na rua, desconhecem-se as caras e ainda mais Em termos arquitetónicos, as mudanças não são,

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aparentemente, flagrantes. As ruas são as mesmas, vivência já totalmente desconhecida para nós e que, O esforço de alguns, o azar de algumas situações e conhecer o Museu de Lisboa – Teatro Romano e
muitos dos edifícios também, mas as cérceas são talvez por isso, também mais interesse nos suscitou. as coincidências felizes em outros casos, uniram-se transformá-lo, pelo menos nestas ocasiões, num
acentuadamente menores. A volumetria desta parte Os depoimentos recolhidos pretenderam a para forjar uma história plena de episódios insus- local de festa, onde agradavelmente se permanece.
da cidade concedia-lhe uma escala distinta, mais recolha de informações dos moradores mais antigos, peitos, recheados por pessoas que viveram no local A “Hora de Baco” é para degustar lentamente,
pequena e, por isso, mais próxima e humana, quase mas, igualmente, de novos residentes. Pretendeu- e cujo destino se enredou com a história do antigo para usufruir e para perceber como há formas tão
lembrando uma aldeia. Outra distinção é o facto de -se indagar o porquê da escolha desta nova área de teatro romano construído nos inícios do século I d.C. agradáveis de conhecer a cidade.
os edifícios parecerem mais ocupados do que hoje: residência, o que cativou os moradores para este E como somente se protege o que se conhece, Também com o objetivo de abrir o teatro
roupa estendida, pessoas à janela, editais a anunciar lugar e quais as razões que os levam a permanecer. é objetivo do Museu de Lisboa – Teatro Romano, romano, recuperando a função para a qual foi criado,
novos produtos que chegavam à cidade ou cartazes Também se procurou perceber as razões que dar a conhecer o monumento cénico romano. acontece em julho, nas suas vetustas ruínas, o
de espetáculos que iriam ter lugar … e muitas lojas subjazem a quem abriu espaços comerciais. Abrir as portas a todos os públicos, divulgar o Teatro Clássico. Com peças do repertório clássico
abertas ao público, e muitas pessoas na rua … Naturalmente que as conversas e entrevistas espólio recolhido ao longo de muitas intervenções greco-latino levadas a cena exclusivamente para
mulheres e homens em fatos domingueiros ou em até ao momento realizadas são parciais e bastante arqueológicas, transmitir alguns dos conhecimentos este monumento arqueológico, o grupo de Teatro
roupa de trabalho, atarefados nos seus afazeres, mas reduzidas em número. Pretende-se a continuação que uma longa investigação, iniciada há mais de Maizum tem desenvolvido um importante trabalho
com um olhar intrigado para o obliterador da máquina. deste trabalho de levantamento nos próximos cinquenta anos, permitiu recolher, é a missão que se de encenação. Em 2016 foi levada à cena a peça
São instantes fotográficos que nos fazem recuar no anos, abrangendo um maior número de moradores impõe. A Paz, do poeta grego Aristófanes e, em 2017, a
tempo e que obrigam a observar o mesmo sítio, que e objetivando, assim, uma maior pertinência na Desde a reabertura do museu em setembro peça O Misantropo do poeta Menandro que subiu
conhecemos tão bem e de há tão longa data, com um confrontação das informações até ao momento de 2015 que se oferece uma programação variada e ao palco entre 6 e 23 de julho.
olhar renovado. recolhidas. gratuita a todos quantos veem neste museu um local O museu tem, igualmente, pretendido ser um
Ao reparar nestas imagens a preto e branco, Com o desenvolvimento das entrevistas e de partilha de conhecimentos. As inúmeras palestras elo de ligação da comunidade e um dos laços que
na sua grande maioria do Arquivo Municipal de com a continuação do trabalho de investigação, que aqui têm lugar, as visitas guiadas destinadas a une esta intensa e extensa freguesia de Lisboa: a de
Lisboa, também é possível ver a pobreza, as ruas especialmente nos arquivos da Câmara Municipal público não especializado, mas também a visitantes Santa Maria Maior. Tecer uma teia de relações que
em terra batida, os fatos andrajosos de alguns dos de Lisboa - através da consulta dos Processos mais familiarizados com o tema, têm demonstrado una populações tão diversas como as que habitam
habitantes. Mas estas ruas que envolvem o museu de Obra de cada um dos edifícios, das imagens que há uma população lisboeta que se interessa por este território tão vasto que se estende desde a Baixa
e o monumento romano - somente colocado a do Arquivo Fotográfico e da restante pesquisa este monumento romano e pelo património histórico Pombalina até São Vicente, Santo Estevão, o Bairro
descoberto e muito lentamente, a partir de 1964 - bibliográfica realizada - a quantidade de informação e arqueológico que a cidade encerra. do Castelo e a zona da Sé, constitui um desafio difícil,
parecem-nos muito mais antigas pois tudo, sendo tão foi-se adensando e o projeto, inicialmente modesto, É neste âmbito de dar a conheceu o museu mas verdadeiramente aliciante. Neste intento, o papel
semelhante, era tão diferente. foi tomando novos contornos e tornando-se mais e de abrir as portas a todos, sem exceção, que da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior tem sido
O Projeto de investigação “Saudades da ambicioso. se deu início, em junho de 2016, à atividade que decisivo e é também por essa razão que museus e
Rua da Saudade” que o Museu de Lisboa – Teatro O levantamento parcial que agora apresenta- denominámos “Hora de Baco”. instituições locais têm de unir esforços para formar
Romano iniciou em finais de 2016 pretendeu captar mos é uma pequena mostra da muita informação Esta iniciativa, hoje com enorme sucesso, como uma rede informativa fortemente identitária.
algumas das poucas memórias que resistem na recolhida. O objetivo desta publicação – das o comprovam as centenas de pessoas que nela têm Pensamos que, com a ajuda de todos o conse-
mente dos habitantes mais antigos desta zona. São imagens, excertos de entrevistas, textos que se aqui participado, tem tornado o museu um sítio também de guiremos, abrindo estes territórios à população
recordações, informações, pequenas notas que se se incluem – é dar a conhecer o Museu de Lisboa entretenimento que tem lugar nas últimas quintas- residente e a quem nos visita, mas sem que se perca
deparam preciosas com vista a um mais profundo – Teatro Romano, divulgar o monumento romano feiras de cada mês, entre as 18 e as 20h. Nestas datas a identidade de um local e a história que faz de um
conhecimento das primeiras etapas de descoberta e o museu que lhe é dedicado e cujos vestígios o museu abre gratuitamente e a “Hora de Baco” é povo aquilo que ele é.
do teatro romano. Esse foi, precisamente, o objetivo permanecem, sob os nossos pés, entre a Rua de São animada por uma vasta oferta musical e provas de
inicial do trabalho: o de alcançar mais dados sobre Mamede e a Rua da Saudade. vinhos através do patrocínio da Cooperativa Agrícola
as primeiras campanhas arqueológicas, perceber O facto de um monumento romano do século de Santo Isidro de Pegões.
qual o impacto que tais trabalhos haviam tido na I d.C. permanecer no coração de uma capital é, por Recupera-se assim, de certo modo, a função
população que habitava o local, os incómodos ou si, um facto notável. Se pensarmos que sobreviveu dos post scaenia dos teatros romanos. Estes espaços
descontentamentos que esta primeira operação de ao casario compacto que sobre ele se erigiu, aos correspondem à área situada por detrás da fachada
arqueologia urbana em Lisboa suscitou junto muitos terramotos que assolaram a cidade e à cénica dos teatros latinos onde se localizavam
da população. pilhagem de quase todas as suas pedras que grandes praças nas quais a população se entretinha
Foi neste contexto que foram realizadas permitiram reerguer a cidade após o terramoto de antes do início das representações e no final das
entrevistas a vários moradores, atuais ou que já o 1755, é verdadeiramente admirável que ele subsista, mesmas.
haviam sido, mas que, entretanto, haviam alterado reconhecível, sob o chão que pisamos. Quisemos, deste modo, abrir o museu a todos
o seu sítio de morada. As conversas, longas e As vicissitudes da descoberta do monumento – aos vizinhos, à população local, aos estrangeiros,
interessantes, mostraram-nos um outro mundo. Uma revelam contornos não menos interessantes. aos novos e aos menos novos – de forma a dar a

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O teatro romano de Felicitas Iulia O nº 3 da Rua de São Mamede

Olisipo. Um monumento romano e um A 25 de fevereiro de 1965 dava entrada na


Câmara Municipal de Lisboa um pedido de João
museu no centro da cidade António de Sousa Coutinho com vista à compra do
edifício da Rua de São Mamede nº 3 o qual pretendia
transformar e aí edificar uma casa com três pisos
Lídia Fernandes (Fig. 1). O desejo de João A. de Sousa Coutinho era
Coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC o de “… que a referida moradia, não só se integre no
ambiente arquitetónico local, como lhe permita (…)
reunir, nela, todas as obras de arte de que é possuidor
e tem, presentemente, dispersas ou mal acomodadas
(mobiliário, quadros, tapeçarias, esculturas e outras,
de grande valor)”1.
O edifício nunca foi comprado e a casa que
João Coutinho pretendia edificar também o não foi.
A causa foi o facto de, cerca de um ano antes, terem
sido feitas, num edifício próximo, situado do outro
lado da rua, as primeiras escavações arqueológicas
que lograram encontrar uma das partes principais do
teatro romano de Lisboa. O mais curioso, no entanto, e
quase predestinando o futuro deste imóvel, é o facto
de o edifício onde João A. de Sousa Coutinho queria
instalar o seu “museu” ter tido, afinal, passados 36
anos, esse mesmo destino: o de ser transformado em
Museu.

Hoje, quando se entra no Museu de Lisboa –


Teatro Romano, a receção ocupa o espaço da antiga
habitação de dois pisos que aqui existia, datada dos
O edifício em causa já estava então devoluto e
inícios do século XIX e o pequeno pátio defronte,
quando aquele arqueólogo e professor universitário,
situado a nascente – hoje integralmente escavado e
um dia passou no local, reparou que o r/c se encon-
onde se observam estruturas arqueológicas a cerca
trava em obras. Com o espírito de curiosidade que
de 9 m de profundidade – era o espaço onde João A.
carateriza os da sua profissão, não teve pejo em
de Sousa Coutinho tinha imaginado construir o seu
entrar e observar que obras estavam a ser feitas.
precioso museu.
O seu espanto foi grande quando verificou que, a
suportar a abóbada daquele piso térreo, se encon-
A descoberta do teatro romano em 1964 travam duas colunas romanas.
O seu interesse foi imediato e depressa
Em 1964 o ilustre médico Fernando de Almeida, entendeu realizar pesquisas arqueológicas no local.
mais conhecido pela sua atividade de historiador e Munido de um subsídio que havia pedido à Câmara
arqueólogo, realizou, no r/c do nº 2 da Rua de São Municipal de Lisboa e com o apoio de alguns dos
Mamede, a primeira escavação arqueológica (Fig. 2). seus alunos, teve lugar no ano de 1964 a primeira

Fig. 1 : Fachada do nº 3 da Rua de São Mamede em 1902. Fotografia


1. Arquivo Municipal de Lisboa – Obra 26687, Processo: de Machado & Sousa. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/
9858/DAG/PG/1965 Folha: 1. CMLSBAH/PCSP/003/FAN/000744).

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escavação. Outras colunas semelhantes àquelas que que o teatro romano seria para colocar a descoberto
suportavam a abóbada do edifício foram encontradas na sua totalidade. Com esta posição, encetava a
para além de muitos outros objetos e elementos Câmara Municipal de Lisboa, uma política verdadei-
arquitetónicos. O mais importante, porém, foi o ter ramente original à época, traduzida pela escavação
sido então identificada a parte central do teatro e colocação a descoberto de um antigo monumento
romano. romano. Este objetivo implicava a expropriação de
Resultou dessa escavação, a descoberta da vários edifícios, o realojamento de muitas pessoas
área inferior ao palco (este já não conservado pois e a compra dos vários imóveis que se encontravam
seria em madeira) que mantinha o seu revestimento sobrepostos ao teatro romano.
original composto por um cimento romano designado Podemos afirmar que, na década de 1960,
por opus signinum o qual, pela sua constituição, ocorreu na Rua de São Mamede uma política cama-
impermeabilizava o chão, impedindo a entrada de rária verdadeiramente invulgar que privilegiou o
água para o subsolo. A norte deste local foi também passado da cidade e a descoberta da sua herança
encontrada parte de uma área semicircular, desig- histórica com o objetivo de os dar a conhecer à
nada por orchestra, onde, em época romana, se população.
sentavam os ilustres olisiponenses, ou seja, a elite da Deste modo, após a decisão, a qual foi muito
cidade de Felicitas Iulia Olisipo. Nesta área destinada rapidamente tomada, procedia-se em 1965, à
ao público conservavam-se algumas das lajes, em demolição de vários edifícios. Sete foram comprados,
mármores cinza e rosa, do revestimento original tendo o primeiro sido precisamente aquele onde
Entre estes dois espaços (área inferior ao palco Fernando de Almeida havia iniciado os trabalhos
e orchestra) foi identificada a base de um enorme (Fig. 4).
muro que, desse modo, estabelecia a separação Rapidamente outros prédios de rendimento
entre o palco e a zona dos espectadores. Com cerca foram adquiridos, pagas as indemnizações e realo-
de trinta metros de comprimento este muro, que jadas as pessoas para permitir a continuação dos
constituía a frente do palco seria ricamente ornamen- trabalhos arqueológicos (Fig. 5).
tado pois seria visível por todos (Fig. 3). Neste cenário convém referir uma outra
Por fim, foi ainda identificada a parte inferior personagem. Com efeito, deve-se a uma mulher,
das bancadas. Estas, aproveitaram o afloramento de seu nome Irisalva Moita, arqueóloga e funcionária
rochoso natural para a sua implantação, tendo-se da Câmara Municipal de Lisboa, a realização de
encaixado no declive da encosta. No entanto, não foi múltiplos relatórios, memorandos, cartas e descrições
possível visualizar a parte norte das mesmas uma vez que chegavam às mãos do Presidente França Borges,
que os antigos muros e estruturas do teatro romano e que tinham por intuito demonstrar-lhe que o inves-
se prolongavam por áreas subjacentes aos edifícios. timento na descoberta do teatro romano se traduzia
O mesmo acontecia em relação a quase todos os num imperativo da própria edilidade. Esta devia-se
vestígios arqueológicos. Com efeito, os edifícios assumir, na opinião de Irisalva Moita, como a entidade
que então existiam em 1964, sobrepunham-se aos que salvaguardava o património histórico e arque-
indícios que então apareciam, não sendo possível, ológico de Lisboa sobrepondo-se, inclusivamente,
por essa razão, observar e analisar uma área mais ao papel do Estado ao qual cabia precisamente a
alargada que aquela onde se situava o edifício onde proteção e defesa do património.
Fernando de Almeida interveio. Entre 1965 e 1967 é a própria Irisalva Moita
A questão que a seguir se colocou foi o que (Fig. 6) – entretanto designada conservadora-chefe
fazer com tais vestígios e, simultaneamente, o que dos Museus Municipais – que assume a direção Fig. 4 : Foi no r/c do edifício em primeiro plano (lado direito) que foram
Fig. 2 : O edifício mais alto, demolido em 1967, foi onde D. Fernando de realizadas as primeiras sondagens arqueológicas que lograram a identifi-
fazer com os edifícios que se sobrepunham ao Almeida realizou, em 1964, a primeira sondagem arqueológica e descobriu
das escavações arqueológicas no local, ação que cação do teatro romano de Lisboa. Fotografia de Machado & Souza,1902
monumento romano. a parte central do teatro romano. Fotografia de Eduardo Portugal, c. 1949. desenvolve a par do processo de aquisição dos (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/
A posição da Câmara Municipal de Lisboa (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ vários imóveis. São iniciadas várias demolições e FAN/000743).
EDP/000935).
foi, à altura, totalmente inédita. O seu Presidente, resgatados inúmeros elementos arquitetónicos que Fig. 5 : Planta com área que ocuparia o teatro romano sobreposta aos
edifícios existentes até á década de 1960. A amarelo a área hoje visível das
o Eng.º António Vitorino de França Borges (que Fig. 3 : Reconstituição da parte central do teatro romano de Olisipo: sublinhavam a importância do processo e justificavam ruínas do teatro e a vermelho os arruamentos que se sobrepõem ás ruínas
estrutura do proscaenium, orchestra e início das bancadas. Desenho
presidiu à edilidade entre 1959 e 1970), decidiu de Carlos Loureiro (Museu de Lisboa). a política camarária que então se preconizava. do monumento romano (Museu de Lisboa).

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Até 1971 sete edifícios haviam sido adquiridos, A criação do museu: dois edifícios
perspetivando-se a compra de outros três. e duas histórias
Entretanto, a área escavada alargava-se colocando
à vista mais estruturas romanas e completando-se Apenas em 1998 se tomou a decisão de criar
a informação que se ia obtendo sobre o monumento um museu dedicado ao monumento romano. O local
cénico. O objetivo era o de descobrir a totalidade escolhido foi o edifício nº 3 da Rua de São Mamede,
do teatro e proceder posteriormente à respetiva aquele onde João A. de Sousa Coutinho, em 1965,
musealização (Fig. 7). pretendia construir o seu próprio museu.
Os anos da Revolução de Abril chegaram e Este edifício, construído nos inícios do século
este processo interrompeu-se. Os ventos não eram XIX, tinha uma volumetria muito distinta das restantes
de feição a escavações arqueológicas uma vez que construções da rua. De apenas dois pisos e com
um mundo novo se abria e novos interesses – de um muro alto - que delimitava a zona do jardim, ou
liberdade, de contestação, de modernidade – pouco pátio - este prédio rematava a artéria na sua parte
se adequavam ao longo e demorado processo de mais alta junto à confluência com a Rua da Saudade.
colocar à vista testemunhos do passado de um povo O imóvel - um dos primeiros edifícios a ser comprado
que, agora, tinha novos anseios e objetivos. pela edilidade na década de 1960 - coincidia com
No jornal A Capital, do dia 19 de junho de 1974, uma área plana da parte nascente da rua, situando-se
num artigo intitulado precisamente “Teatro Romano defronte do grande tapume das ruínas. Aquando da
é motivo de Discórdia “, lê-se que “… a crise habi- sua compra destinou-se este espaço ao depósito do Fig. 6 : Irisalva Moita na escavação arqueológica da Praça da Figueira Fig. 7 : Aspeto final da área intervencionada por Irisalva Moita.
tacional verificada em Lisboa não comporta neste espólio proveniente das escavações e, simultanea- quando, também na década de 1960, acompanhou os trabalhos de Perspetiva de nascente para poente das ruínas do teatro romano
arqueologia para a criação da estação de metropolitano no Rossio / c. 1970. (Museu de Lisboa).
momento o desalojamento de muitas centenas de mente, a albergar o guarda do monumento romano: Praça da Figueira. (Museu de Lisboa).
pessoas provocado por uma descoberta de mero Urbano Torgo Rebelo que, juntamente com a sua
valor arqueológico que, neste momento é contrário família - a mulher D. Glória e os dois filhos, Rui e
aos princípios democráticos do 25 de Abril” (Fig. 8). Graça - aqui se instalaria em 1966 para somente sair
Esta frase é bem elucidativa do espírito da época em 2001.
e tudo fazia prever que o projeto de descoberta do O pátio, ou jardim, ocupava uma área de
monumento cénico romano viesse a ser interrompido cerca de 200 m² e era delimitado a sul por um
o que, de facto, aconteceu. terraço de onde a vista se espraiava tendo apenas
Um tapume de madeira passou a rodear o como horizonte a margem sul do rio Tejo. Foi neste
antigo local das escavações e placas de zinco pátio que se guardaram muitos dos elementos
serviram-lhe de cobertura. Por entre as frinchas das arquitetónicos encontrados no decurso das primeiras
tábuas era possível observar a grande cratera, um escavações, em tempos de Irisalva Moita: fustes
enorme buraco onde despontavam alguns muros, mas de coluna, silhares, capitéis e bases, os quais,
cuja área era inacessível ao público. A população foi- ordenados, ocupavam a totalidade do espaço.
-se habituando a conviver de perto com esta vedação Era aqui que a Graça e o Rui, os filhos do guarda
provisória que aí permaneceu até 1989. do teatro romano, brincavam desde tenra idade.
A partir desse momento, a Câmara Municipal Desde crianças que se habituaram a compartilhar
de Lisboa voltou a mostrar interesse pelo sítio. Foi o local com grandes pedras, muito antigas e que,
constituído um gabinete (que funcionou até 1993) por recomendação do pai, Urbano Torgo Rebelo,
e uma equipa camarária recomeçou os trabalhos não deveriam nunca estragar ou pisar. Apesar das Fig. 8 : Excerto do jornal A Capital, do dia 19 de junho
de escavação. A Rua da Saudade foi interrompida admoestações, quando o pai não estava presente – de 1974 onde se refere que a descoberta arqueológica
do teatro, e a consequente expropriação dos edifícios era
ao trânsito viário, criando-se um passadiço metálico e somente nessas ocasiões - subiam e desciam das “contrária aos princípios de Abril”. (Museu de Lisboa,
que simultaneamente permitia a escavação da rua grandes colunas, saltavam e pulavam, integrando nº inv. MC/REC. 1974/3).
e possibilitava o trânsito pedonal. aqueles gigantes de pedra nas suas brincadeiras
(Fig. 9).
Para além do jardim, foi na casa de dois
pisos que a família de Urbano Torgo Rebelo viveu
durante mais de trinta anos. Este homem, de

18 19
origem transmontana, foi um zelador de alma e funcionou no r/c uma oficina de automóveis que conduzem ao Pátio do Aljube, em frente ao edifício
coração daquelas vetustas ruínas que ele também pertencia ao Cabido da Sé, a qual aí esteve até o de que agora tratamos, um grande urinol circular,
considerava, e continua legitimamente, a senti-las Cabido a ter cedido ao “Espaço Oikos” que, por sua vulgarmente designado por “Vespasiano” (Fig. 11).
como suas. vez, passou a sua exploração à loja de artesanato Não podemos deixar de explicitar um pouco
A criação de um museu dedicado ao “Artes da Terra” que ainda hoje se encontra a este termo pelo facto curioso de tal designação
monumento romano obrigaria à aquisição de um funcionar. derivar precisamente do imperador romano
outro imóvel, situado a sul e contíguo ao anterior, A separação entre este edifício e o do Aljube Vespasiano3, que lhe deu o nome. Foi ele que criou
com fachada para a Rua de Augusto Rosa. De era estabelecida por uma íngreme escada, que ainda um imposto que tributava os urinóis públicos da
grandes dimensões, seria aqui que a exposição hoje permanece e que permite o acesso ao Pátio do cidade de Roma e, tendo esta medida sido tão
permanente se instalaria. Também a história deste Aljube. Trata-se, de facto, de um pequeno beco ainda contestada, não mais se perdeu da memória a
edifício é repleta de interesse. que a designação toponímica lhe tenha ficado do associação entre urinóis e aquele imperador, sendo-
Construído talvez durante os finais do século antigo Beco do Aljube com Sahída que aqui existia lhe atribuída, também, a célebre frase “o dinheiro não
XVII o edifício que ora se vê, com frente para a Rua de antes do terramoto de 1755. tem cheiro”.
Augusto Rosa teria, originalmente, apenas dois pisos Numa fotografia, anterior a 1932, ficamos a No entanto, antes de 1945 já o urinol havia
e destinava-se a albergar um dos celeiros da Mitra, saber que existia no início das escadinhas que desparecido tendo tomado o seu lugar uma pequena
isto é, um armazém para recolha de cereais o qual, Fig. 9 : Pátio do nº 3 da Rua de São Mamede com os vários elementos guarita, situada ao fundo das escadas que conduzem
arquitetónicos depositados e onde permaneceram até 2001.
em períodos de carência, era distribuído à população ao Pátio do Aljube, e onde tinha o seu lugar um
(Museu de Lisboa). 3. Titus Flavius Vespasianus (nasce a 9 d.C. e morre em 79 d.C.).
de menores recursos económicos. Imperador que instituiu uma nova dinastia no Império Romano, guarda que vigiaria a entrada e saída da já então
Pouco se sabe desta instituição sendo raras a dinastia Flávia (69 d.C. – 96 d.C.). Cadeia do Aljube (Fig. 12).
as fontes documentais que se referem ao edifício. No Originalmente a grande fachada que hoje se
entanto, quando ocorre o terramoto de 1755 ficamos vê na Rua de Augusto Rosa, era distinta. Não possuía
a saber pelo Tombo da Cidade de Lisboa de 1755…2 o piso superior, o qual lhe foi acrescentado nos
que este edifício e um outro que lhe era contíguo, inícios do século XIX, sendo o número de portas
o Aljube, “ficaram de pé e habitados” indicando, que se abrem no r/c, ao nível da Rua de Augusto
deste modo, que ambos os imóveis existiam, à época Rosa, também distinto. Até aos inícios de 1967
e que não haviam sido grandemente afetados pelo abriam-se na fachada duas portas. Uma, bastante
cataclismo. Não obstante, com a reconstrução maior do que a que lá se encontra, estava situada a
da cidade tudo indica que as fachadas destes nascente desta, sendo disso prova uma fotografia,
dois imóveis tenham sido derrubadas e reerguidas da autoria do fotógrafo Armando M. Serôdio, obtida
segundo um novo alinhamento, concordante com naquela data (Fig. 10). A alteração na fachada, que
o novo urbanismo pombalino, mais regular levou ao entaipamento da porta, ocorreu depois de
e promovendo a criação de ruas mais desafogadas e 1967 e deverá relacionar-se, provavelmente, com
menos estreitas. a construído no interior do r/c um piso intermédio
Somente em 1882 surgem elementos concretos – construção que aproveitou o altíssimo pé direito –
sobre este imóvel. Foi aqui, no Pátio do Aljube nº 5, posicionando-se a escada de acesso ao mezanino
que foi impresso o jornal À volta do Mundo: jornal de precisamente junto à face interna da fachada onde
viagens e de assuntos geográficos, publicado entre se abria aquela porta e obrigando, assim, à sua
1880-1902 (Mesquita, 2013). A impressão foi feita desativação.
pela “Typographia da Empreza Litteraria Luso- No seu piso térreo abrem-se quatro janelas,
Brazileira” que funcionava, precisamente, no pátio de espesso gradeamento e molduras estreitas,
do Aljube nº 5. Em 1914, surgem referências a este posicionadas a elevada altura do chão, e duas portas,
mesmo local, indicando que aqui funcionava uma de acabamento distinto entre si. Neste espaço,
oficina de latoaria a vapor. possivelmente a partir da 2.ª metade do século XVIII
(e substituindo a anterior funcionalidade de celeiro) Fig. 10 : Fachada do edifício da Rua de Augusto
2. Cópia que se encontra no Museu de Lisboa com o título: “Cópia localizaram-se as cavalariças da Sé. Comprovando Rosa, nº 40, em 1971 (Arquivo Municipal de Lisboa,
do Tombo da Cidade de Lisboa em 1755, que está no Arquivo Nacional esta função ainda hoje se podem observar no interior nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PEL/005/
da Torre do Tombo, feita sobre uma copia do mesmo tombo, da letra S01460). Observam-se, ao nível do r/c do nº 40
de José Valentim de Freitas; que está na Associação dos Arqueólogos, do espaço, um tanque e vinte e quatro manjedouras. duas portas. Atualmente apenas existe uma: a
por João Marques da Silva, em Junho de 1894“. Durante algum tempo, e até à década de 1980, menor, situada no lado direito da imagem.

20 21
A criação do Museu do Teatro Romano
em 2001

O Museu do Teatro Romano abriu as suas portas


em 2001. O espaço dedicado ao museu abarcava este
último edifício de que falámos – com fachada para a
Rua de Augusto Rosa e entrada pelo Pátio do Aljube
e que se situa ao cimo das altas e longas escadinhas
que permitem o acesso desde a rua dos elétricos
até ao pequeno beco – mas também aquele outro,
dos inícios do século XIX, com a sua casa e pequeno
jardim com frente para a Rua de São Mamede onde,
até essa data, habitou Urbano Torgo Rebelo e a sua
família, o guarda do monumento romano desde 1965 Fig. 13 : Perspetiva de sul para norte da estrutura do post scaenium
e até 2001. A ligação entre os dois edifícios era feita do teatro romano encontrado no pátio do nº 3 da Rua de S. Mamede.
(Lídia Fernandes / Museu de Lisboa).
por uma pequena e íngreme escada, situada entre
os dois que, desde modo, vencia o grande desnível
existente entre eles. Esta escada foi criada aquando
da adaptação dos dois edifícios a museu uma vez do teatro e percebeu-se que, no seu interior, teriam
que originalmente, não existia qualquer comunicação existido compartimentos que serviriam para guardar
entre os mesmos. cenários e outras parafernálias cénicas (Fig. 13).
O museu que então se inaugurava pretendia Por baixo da antiga casa do guarda a profundi-
dar a conhecer o teatro romano. No entanto, à data, dade da escavação ultrapassou os nove metros. Nove
pouco se sabia sobre o monumento uma vez que metros de entulhos e sedimentos, de pedras e tijolos,
não haviam sido muitos os dados recolhidos nas mas que foram revelando, à medida que se tiravam
campanhas arqueológicas, o mesmo se passando em e se aprofundava o terreno, uma história repleta de
relação ao espólio recolhido, se excetuarmos os múl- histórias.
tiplos elementos arquitetónicos recuperados desde Por baixo da casa do Sr. Urbano Torgo Rebelo,
a década de 1960. Na realidade, a verdadeira história de D. Glória, sua mulher, e dos seus filhos, Graça e
do monumento ainda se encontrava por descobrir. Rui, outra casa apareceu. Uma habitação do século
A riqueza enorme de informação que o subsolo XVII que foi destruída pelo terramoto de 1755 e que,
continuava a guardar foi vislumbrada através de uma depois do cataclismo, serviu para colocar os entulhos
pequena escavação realizada no interior da casa da da área envolvente, uma forma pragmática de dar
Rua de São Mamede, quando se pretendeu fazer a vazão aos milhares de toneladas de entulho que
instalação de um elevador no decurso das obras de permaneciam no local (Fig. 14). A casa do guarda foi
adaptação daquele espaço a museu. A quantidade de construída por cima destes mais de nove metros de
estruturas e de peças então recolhidas fundamentou escombros, escondendo no seu subsolo um passado
a decisão de ser necessária uma intervenção ampla repleto de informação que apenas a partir de 2001 foi
da área subjacente ao edifício, isto é, na zona situada sendo revelado.
a sul do monumento romano. Também a zona do antigo pátio atingiu quase
Assim, entre 2005 e 2011 foi levada a cabo uma a mesma profundidade. O jardim perdeu-se, as pedras
Fig. 11 : Do lado direito a fachada do edifício onde hoje se instala,
nos pisos superiores, o Museu de Lisboa – Teatro Romano. No centro escavação sistemática de todas as áreas expectantes que ocuparam durante tanto tempo aquele espaço
da imagem o urinol público. Fotografia de Joshua Benoliel, c. 1910. do interior do museu: a zona do antigo pátio da casa onde o Rui e a Graça haviam brincado às escondidas
(Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/
da Rua de São Mamede e igualmente na área por do seu pai, foram removidas para dar lugar à inter-
JBN/000308).
baixo da habitação. O jardim desapareceu dando venção arqueológica.
Fig. 12 : Fotografia obtida a partir da Rua de Augusto Rosa, em direção
lugar a estruturas romanas que surgiram mal se Descobriu-se um tanque que, no século XIX,
a norte, vendo-se as atuais escadinhas que levam ao Pátio do Aljube
e a guarita do lado direito. (Arquivo Municipal de Lisboa, Fernando começou a escavar descobriu-se o grande muro que, existiu no centro do jardim e do qual já não havia
Martinez Pozal. nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/POZ/000262). há mais de 2000 anos, suportava a fachada cénica memória, ainda que tenha ficado registado no

22 23
levantamento de Filipe Folque, feito entre 1856 e Afinal, o teatro romano construído há mais
1858 (Fig. 15). de dois mil anos continua hoje, a condicionar o
Mais fundo ainda, muito mais, descobriu-se urbanismo e as soluções arquitetónicas de algumas
a rocha na qual assentava o grande muro que zonas da cidade.
suportaria a fachada cénica. Este muro é, afinal, a Em 2011 toda a área havia sido escavada: o
continuação do troço que havia sido encontrado pátio / jardim e a área subjacente á casa do guarda,
na área subjacente à casa da Rua de São Mamede. o Sr. Urbano Torgo Rebelo. Em 2013 o Museu do
Esta parede - com cerca de vinte e um metros Teatro Romano encerrou com o objetivo de atualizar
de comprimento e com mais de nove metros de o discurso expositivo e, especialmente, de permitir o
altura - constitui uma estrutura impressionante que acesso às várias estruturas arqueológicas existentes
permaneceu escondida até ao início da escavação. no seu interior. Foram criados passadiços metálicos,
É esta estrutura que, afinal, suporta a fachada desta colocadas legendas que explicam as múltiplas ruínas
casa. Foi nela que se alicerçou e é ela que explica o e aberta uma passagem que permite a ligação entre
facto de este troço da rua ser plano uma vez que a o museu, propriamente dito, e as ruínas colocadas à
fachada do nº 3 a aproveitou como alicerce (Fig. 16). vista na área do pátio e por baixo da antiga casa do
Sr. Urbano (Figs. 17 e 18).
Ao longo das escavações foram recolhidos
inúmeros objetos. São eles que nos permitem
reconstituir a história das pessoas que aqui
habitaram, que possibilitam perceber os seus gostos,
modas e influências. Os milhares de fragmentos
de cerâmica recuperados não se encontram todos
expostos. Foram escolhidos apenas alguns que nos
contam, em primeira mão, uma história singular.
Um alfinete de cabelo em osso, com uma
pequena mão esculpida num dos seus lados, terá
sido usado por uma mulher há mais de 2000 anos,
talvez uma das muitas espectadoras que assistiram
às peças de teatro (Fig. 19). Um fragmento de
cerâmica muito mais antigo, pintado com listras
Fig. 14 : Aspeto da escavação da área subjacente à atual receção pretas e vermelhas na sua superfície, indica que
do museu. Abaixo deste nível encontravam-se ainda cerca
de 3 m de entulho. (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa). o pote ao qual terá pertencido foi fabricado no
Mediterrâneo oriental no século IV a.C. (Fig. 20). Um
jarro com vidrado brilhante de cor verde, veio de
Paris diretamente para Lisboa no século XIV e aqui
foi usado por alguém com posses para o comprar, até
que, por algum acidente, o jarro se partiu levando o
seu proprietário a atirá-lo para uma lixeira (Fig. 21).

Tantas e tantas outras histórias se poderiam


contar …
Fig. 15 : Atlas da Carta Topográfica de Lisboa sob a direção de Filipe
Folque:1856-1858. Catálogos do Arquivo Municipal de Lisboa. Coord. Inês
Morais Viegas; Alexandre Arménio Tojal. Lisboa. 2000 (Planta nº 44). A seta Fig. 17 : Área musealizada com estruturas arqueológicas
indica a localização do tanque que, pelo menos até meados do séc. XIX, datáveis dos séculos XVII/XVIII, destruídas pelo terramoto
existiu no pátio do nº 3 da Rua de São Mamede. de 1755 e subjacentes à atual receção do museu (piso -2
do museu). (José Avelar / Museu de Lisboa).
Fig. 16 : Fachada do Museu de Lisboa – Teatro Romano com frente para
a Rua de São Mamede a qual assenta sobre o muro romano do teatro e Fig. 18 : Piso -2 do museu e passagem entre a área arqueológica
coincide com a parte plana da rua. (José Avelar / Museu de Lisboa). do museu e a sala expositiva. (José Avelar / Museu de Lisboa).

24 25
A fábrica das malas

Em 1919 um rapaz proveniente de Casais dos trabalhadores, especialmente jovens raparigas, entre
Chão, do concelho de Porto de Mós, chega a Lisboa os seus quinze a vinte anos, que faziam a parte mais
e, por intermédio de pessoas conhecidas, começa leve do trabalho. No piso inferior estava situada a
a trabalhar como moço de recados numa papelaria maquinaria pesada, com máquinas, a motor e a vapor,
e tabacaria da Rua da Madalena. Rapidamente de corte e costura.
progride na sua incipiente carreira e, como rapaz Durante o período da II ª Guerra Mundial a
empreendedor que era, é convidado para trabalhar fábrica progride obtendo contratos com o exército
na firma Brito & Santos que, à época, tinha as suas e produzindo material militar como coldres, capotas
instalações precisamente no atual edifício do museu para viaturas e outros materiais, pelo que os anos de
que tinha frente para a Rua de Augusto Rosa: o Pátio 1940 são os mais prósperos da fábrica de Teodoro
do Aljube nº 5. dos Santos. Posteriormente, o empresário resolve
Em 1932 é esse mesmo rapaz – que, entretanto, diversificar o seu investimento e vira-se para o ramo
já adquirira experiência nos negócios e havia aposta- da construção civil e do turismo tendo a antiga
do na sua própria educação (tendo-se matriculado no fábrica ficado nas mãos do seu filho Jorge Teodoro
Curso Comercial Noturno da Escola Ferreira Borges dos Santos.
com a duração de três anos) que cria a sua própria Em 1967, já depois das primeiras escavações
firma, em 1932, com a designação J. Teodoro dos feitas na Rua de São Mamede que permitiram
Santos e dedicada à produção e comércio de malas. descobrir os vestígios do teatro romano, Teodoro
Malas de viagem, malas de senhora, carteiras dos Santos resolve fazer a permuta da sua fábrica,
e luvas são produzidas no edifício do Pátio do Aljube. a pedido da Câmara Municipal de Lisboa, com uma
No piso superior – o largo corredor de um mezanino propriedade municipal localizada na Rua D. Luís I,
que, provavelmente, já se encontrava construído nos sendo assim que, a partir de então, a antiga fábrica
finais do século XIX – eram feitos os artigos de menor de malas desaparece, passando a posse do edifício
dimensão e onde as costureiras faziam os arranjos para a edilidade, aí se instalando, em 2001, o museu
manuais (Fig. 23). A fábrica empregava bastantes dedicado ao teatro romano.

Fig. 19 : Alfinete de cabelo (acus crianlis), encontrado na Fig. 21 : Jarro/Pichel em cerâmica revestida a vidrado verde. Peça Fig. 23 : Interior do Pátio do Aljube nº 5 onde havia
intervenção arqueológica de 2005 realizada no pátio do produzida em Paris no século XIV e encontrada no pátio do museu funcionado a loja de malas de Teodoro dos Santos.
museu. Peça feita em osso e com uma pequena mão numa das na campanha de 2005. (nº inv. TRL/05/4587). Nesta fotografia, obtida nos finais da década de 1990,
extremidades. Primeira metade do século I d.C. já a antiga fábrica de malas se encontrava desativada
(nº inv. TRL/05/5256). Fig. 22 : Perspetiva do interior do Museu de Lisboa – Teatro mantendo ainda a estrutura metálica colocada para a
Romano após a remodelação do mesmo realizada entre 2013
Fig. 20 : Fragmento de uma urna. Cerâmica pintada em bandas de criação do piso superior no local. (Museu de Lisboa).
e 2015. (José Avelar / Museu de Lisboa).
produção do mediterrâneo oriental e encontrada na intervenção
arqueológica de 2005 realizada no pátio do museu. Século VII a.C.
(Iª Idade do Ferro) (nº inv. TRL/05/4693).

26 27
Tão Perto e tão longe: a transformação A Rua de São Mamede, onde se situa o Museu
de Lisboa - Teatro Romano, deve o seu nome à
Nas imediações desta ermida existiram
outros templos como a Igreja de São Crispim e São
da paisagem urbana da zona envolvente antiga paróquia de São Mamede e à existência de Cipriano (Fig. 24) fundada em 13645 pela Irmandade
uma ermida nas suas imediações, possivelmente dos Sapateiros. A primitiva igreja situava-se junto
do teatro romano localizada sob o atual largo e rotunda fronteiros ao das antigas Portas da Alfofa e deu o nome à atual
Palácio de Penafiel4, “na ladeira do monte do Castello Travessa do Almada, aberta após o terramoto de 1755,
para a parte do S., um pouco acima da egreja da designada então de Travessa de São Crispim, que se
Carolina Grilo Magdalena” (Baptista, 1878, p. 590-591). iniciava na Rua de São Mamede junto da dita igreja.
Arqueóloga. Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC Pouco se sabe da história desta ermida com Na área da paróquia estava também localizado o
orago dedicado a São Mamede de Cesareia, um colégio de São Patrício ou convento dos Irlandeses
mártir romano nascido no século III d.C. e erguida que foi vendido à Companhia de Jesus em 1605
por volta de 1220, onde, segundo João Baptista de (Baptista, 1878, p. 590-591).
Castro, era venerada “…huma imagem desse santo,
com o qual tinham muita devoção venerada as
Matronas Lusitanas, pois tanto que se lhes secava
o leite com que criavaõ os seus filhos, recorriaõ ao
Santo Milagroso e conseguiaõ a abundancia, que
desejavaõ” (1970, 2ª ed., vol. III, p. 291).
A mesma ermida é referida numa escritura em
que interveio Maria Pires, cunhada de Fernando de
Bulhões (Santo António) (Araújo, 1938-1939, vol. II,
p. 23), cujo morgado e quinta seriam anexos à capela
(Sequeira Matos, 1916, p. 181) e terá sofrido obras de
ampliação ou reconstrução na segunda metade do
século XIV, conforme indica o concílio ao testamento
de Vasco Lourenço de Almada que estabelece dis-
posições para a compra de umas casas na freguesia
e que institui capela na igreja de São Mamede. O
templo de São Mamede terá tido honras de capela
real em 1490 (Vidal, 1994, p. 109), quando Pedro
Nunes Lobato e sua mulher aí terão instituído uma
capela do Espírito Santo e a obrigação de missa
diária.
Esta ermida terá ficado bastante destruída
com o terramoto de 1755, tendo então integrado a
paróquia de São Cristóvão onde se manteve até 1761.
A paróquia albergou-se depois na igreja do Colégio
de São Patrício, nas escadinhas de São Crispim,
tendo aí permanecido oito anos, até ser transferida,
em 1769, para a ermida de Nossa Senhora Mãe de
Fig. 24 : Ermida de São Crispim e São Cipriano c. de 1949. Fotografia
Deus e dos Homens em Vale do Pereiro, passando
de Eduardo Portugal (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/
para o outro extremo da cidade, atual Campolide. CMLSBAH/PCSP/004/EDP/000899).

4. Neste local, aquando da substituição de canalizações e pavimentação


no Largo do Correio-Mor em 1956, foram identificados a 1,30m de profundi-
dade, restos de fundações de edifícios antigos, associados a uma lápide
em mármore com a seguinte inscrição: “esta capela fundarao os irmaos / 5. Freguesia de São Mamede. Rol dos Confessados da freguesia
sdihs 1396” - AML- processo nº 24695. de São Mamede, anos de 1756 a 1769 (Castro, 1970).

29
Antes de 1755, as imediações da ermida de contra a Péste, com huma novena gloriosos de grande relevância económica, com apoio do
São Mamede são descritas como áreas silvestres, S. Sabastiam, autor P. Rua Jozé Quietaçam” (Soares, governo de Pombal para o qual o desenvolvimento
com habitações disseminadas pela encosta, num 2008, vol. II, p. 88). Alguns destes anúncios referem da indústria, agricultura e do comércio eram eixos
cenário comum à maioria das áreas da cercadura ainda a presença de estrangeiros radicados na estruturantes de desenvolvimento económico.
e do interior do núcleo urbano onde se localizariam freguesia, como o médico Luis Morette, que atendia A área compreendida entre a Rua de São
palácios, casas de habitação e pequenos prédios na zona do Correio-Mor e que, na mesma publicação, Mamede e a Rua da Saudade, então coberta por
de rendimento com “hortas”. Na área da freguesia anunciava um medicamento especial para curar entulhos e ruínas da catástrofe, ficou conhecida
tinham as suas casas nobres os “Correios Mores, em breves dias a gonorreia (idem, 2008, p. 1), o como os “Monturos de S. Mamede” repleta de
officio dos maiores do Reino” e o desembargador “Livreiro de Madrid com huma boa porçam de livros matagal e arbustos e famosa pelos rebanhos que
Manuel Pinto de Mira em casa sobranceira à ermida para vender” que “Assiste pateo S.Martnho ao pé por ali pastavam (Castilho, 1937, vol. IX, p. 207-208)7.
de São Mamede, onde estava localizada uma cisterna Limoeiro” ou a casa Senhores Hornmeyer e Cluver Ao longo dos finais do século XVIII e do século XIX
(idem, 1878), atual nº 15 da Rua de São Mamede. ás Pedras negras, onde se poderiam encontrar esta área será progressivamente reurbanizada e
Segundo Cristóvão Rodrigues de Oliveira, “listas precizas e bilhetes” (…) em 1746 (ibidem, reconstruída com a abertura de novas artérias e a
a freguesia de São Mamede teria duas confrarias: 2008, p. 101). construção de novos edifícios concordantes com
Santo Sacramento e a Confraria de São Mamede, O terramoto de 1755 não esmoreceu esta um modelo de urbanismo pombalino que promovia
contabilizando 79 casas e 1010 pessoas, números tradição e já depois da catástrofe continuam notícias a criação de ruas mais regulares e arejadas. Disso é
que, em 1620, ascenderiam já a 220 vizinhos e cerca da instalação de oficinas tipográficas nesta área, exemplo a atual Rua de São Mamede, que atravessava
de 1120 pessoas (Oliveira, 1991, p. 65). nomeadamente no próprio edifício do Museu de a zona do antigo templo, cujo desaterro se iniciou
A freguesia parece ter sido palco privilegiado Lisboa - Teatro Romano onde, em 1882, funcionou em 1798 e durante o qual foram identificadas as
para a implantação de alguns ofícios especializados a “Typographia da Empreza Litteraria Luso-Brazileira” ruínas do teatro romano.
como a tipografia, uma atividade em franco desen- no Pátio do Aljube, n.º 5, convertida em 1915 na Embora a sua abertura tenha apenas sido
volvimento ao longo dos séculos XVII e XVIII com o oficina de latoaria mecânica a vapor de Joaquim legalizada pelo edital de 8 de junho de 1889 (Brito,
progresso da imprensa e da sua abertura à sociedade. Rufino Ribeiro. 1935, p. 236), a rua conhecida como Rua dos Entulhos
É o próprio Júlio de Castilho que enumera alguns O sismo e o consequente incêndio terão de S. Mamede (Vidal, 1994, p. 109) começava então
dos tipógrafos e livreiros mais famosos que tiveram causado severos estragos na antiga freguesia, a povoar-se e será neste lapso temporal que se
oficina e loja nas imediações da Rua de São Mamede, reduzindo grande parte da mesma a escombros sucedem novas construções que promovem a
sendo a Officina do Stº Officio às Pedras Negras, e ruínas. O padre João Baptista de Castro dá-nos transformação da paisagem urbana ao longo desta
propriedade de Miguel Manescal Costa, uma das mais noticia de que na ermida de São Mamede “40 artéria e das ruas limítrofes, num processo que
conhecidas, que produziu diversos títulos religiosos paroquianos que nela assistiam aos ofícios divinos ocorreu paulatinamente e a ritmos distintos,
e de divulgação nos finais da primeira metade do pereceram na derrocada de parte do templo” e relata à semelhança da própria reconstrução da cidade
século XVIII (Castilho, 1935, p. 210), estando na que em 1756 apenas residiam 326 pessoas na área de Lisboa.
Fig. 25 : Largo do Caldas. s. d. Fotografia a preto e branco de Eduardo
génese da oficina gráfica do estado6. compreendida entre o Beco dos Namorados e da Sucede-se nesta fase a recuperação de alguns
Portugal (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/POR/059126).
Testemunhos desta atividade estão também Esmeralda, Terreirinho do Ximenes (atual Largo do edifícios emblemáticos destruídos com o terramoto:
plasmados na imprensa e em anúncios da época Caldas), Calçada de São Crispim, Costa do Castelo, o Palácio do Largo do Caldas, edificado por iniciativa
que demonstram a presença de casas comerciais Sete Cotovelos, Adro da Igreja, Arco da Rosa, Largo dos irmãos Rodrigues Caldas entre 1765 e 1775 no
nas redondezas: a tipografia e “Officina de Mauricio e muro do Correio, trás da Igreja, Largo do Forno e local onde anteriormente se erguia o Palácio dos aquartelamento do regimento chamado de Cascais
Vicente Almeida junto S. Mamede”; a Caza Jeronimo ruas da Costa, das Pedras Negras e da Lista, tendo Ximenes (Fig. 25); o palácio do Correio-Mor, cuja nos inícios do século XIX (Castilho, 1935, vol. I, p. 191),
Mauricio Lemos Livreiro; a logea Domingos Gonçalves, a restante população emigrado para outras áreas reconstrução foi também iniciada em 1776, ou o a venda dos monturos de São Mamede, a edificação
livreiro Magdalena, e mesma officina P.Neg. ou a da cidade mais poupadas à destruição e mais desaterro gradual e ajardinamento das rampas na Rua de prédios nobres na área compreendida entre a Rua
própria Igreja de S. Mamede, onde, em 1744, segundo desafogadas (1970, 2ª ed., vol. III, p. 341). de São Mamede que conduz à descoberta em 1798 de São Mamede e a Rua da Saudade, cuja construção
a Gazeta de Lisboa, se vendia “hum livrinho Remedio Segundo o mesmo autor, em 1762 somente das ruínas do teatro romano de Lisboa. terá reutilizado vestígios retirados na área do teatro
se achavam de pé 25 dos 500 fogos que contava a Júlio Castilho relata-nos alguns episódios em 1817, ou algumas obras de renovação que visam
freguesia (idem, 1970). Já José Maria Baptista assigna relevantes deste processo, como a presença de um dotar a rua de melhores condições de higiene e
6. A necessidade de dar a conhecer as obras dos clássicos e o principio da salubridade pública, efetuadas em 1851. É o mesmo
a esta freguesia cerca de 300 fogos antes do terramo-
instrução popular foram alguns dos fundamentos da criação da Impressão
Régia pela mão do Marquês de Pombal. Esta foi fundamentalmente uma ten- to e apenas 12 depois (1878, vol. IV, p. 591). Para aí autor que refere que “… nêste ano de 1851, se fez o
tativa de controlar e incorporar nas receitas do estado os elevados preços veio viver entre 1766 e 1769 Jácome Ratton e família 7. Júlio Castilho cita D. Francisco Manuel de Melo, que descreve nos cano da rua de S. Mamede, já no fim, ao cimo da rua,
pelos quais os impressores de então monopolizavam e vendiam as suas Apólogos Dialogais de 1721 a presença de animais nas imediações com a
obras, dispersas por diversas oficinas gráficas privilegiadas, das quais os
(Sequeira Matos, 1916, p. 200) industrial e comerci- seguinte expressão: “Andais em redor de mim como gado vacum em redor
apareceu debaixo da calçada, para o lado do Sul,
proprietários conservavam o título de impressores régios (Soares, 2007). ante luso-francês que constituiu diversas empresas da ermida de São Mamede”. parte de uma parede feita dos ditos enchelhares,

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de que se tiraram alguns para dar logar ao cano” com sobreloja destinada à habitação familiar dos
(1935, vol. I, p. 165). respetivos comerciantes. Os restantes andares e
Alguma documentação relativa à reedificação águas furtadas são espaços destinados a habitação
desta zona pode ainda hoje ser apreciada no Arquivo nos quais se alojam famílias inteiras.
Municipal de Lisboa, nomeadamente os planos e Nas ruas e artérias principais os edifícios
prospetos submetidos à aprovação da edilidade: o são delimitados por amplos quarteirões dispostos
prédio mandado reedificar por José Ribeiro da Silva de andares altos e desafogados, com varandas e
na Rua Nova de São Mamede e Rua do Correio Velho fachadas por vezes ornamentadas. Nas artérias
em 1859, o requerimento apresentado em 1860 pela secundárias, mais estreitas e escuras, é notório o
irmandade de São Crispim para a execução de um mau estado de conservação das habitações, por
prédio nos números 24 a 26 junto à sua igreja, na Rua vezes com grades nas janelas, em substituição
de São Mamede ou a proposta do portão e gradea- das vidraças, e interiores sombrios com maus
mento que a condessa de Penafiel pretendia edificar acabamentos, acarretando problemas de saúde e
no muro da frente do seu palácio, sito na Rua de São higiene pública e perigo de incêndios, sendo esta
Mamede em 1861, entre outros. uma forte preocupação na gestão dos espaços
O rompimento de novas artérias urbanas urbanos, documentada pela existência de serviços
sucede-se com a calçada dos Condes de Penafiel de incêndio como o da Rua do Barão e da Rua de
defronte do palácio com o mesmo nome, cuja cons- Augusto Rosa (Fig. 27).
trução, com a rotunda e cortina na zona do antigo O comércio e a pequena indústria concentram-
Largo do Correio Mor em 1864 (Fig. 26), “foi efetuada -se junto das artérias principais e mais desafogadas,
pela Câmara Municipal com o auxilio financeiro do ou nas suas imediações, como a Rua de Augusto
Conde de Penafiel, descendente dos antigos Correios Rosa. Nos inícios do século XX aí se sucedem
Móres, de apelidos Gomes da Mata”, sendo apenas diversos espaços comerciais: talhos, armazéns
nesta altura, que, no dizer de Júlio Castilho …”tiveram de bebidas, de vinhos licorosos e aguardentes
os entulhos de S. Mamede a ventura de trocar a sua coexistem com latoarias e carvoarias (Fig. 28).
feição sertaneja no aspecto elegante que hoje osten- Ao lado deste comércio, coexistem pequenas
tam, sendo um oasis agradável e salubre.” (Castilho, indústrias, como a própria fábrica de malas de
1935-37, vol. IX, p. 212-215). Teodoro dos Santos localizada no atual edifício do
Para este largo foi transportado já no século Museu de Lisboa – Teatro Romano. A juntar a esta
XX o Chafariz das Mouras, projeto do arquiteto José população e à sua vivência de bairro, as varinas, os
Therésio Michelotti, proveniente do Lumiar e do qual aguadeiros, os leiteiros ou os vendedores de perus,
se manteve apenas o pano de fachada, onde se pode entre outros, transformam estas ruas em espaços de
ler a seguinte inscrição “utilidade do publico / anno convívio e frequência constante como espaços de
de 1815”, coroada pelas armas reais. sociabilidade urbana.
O paulatino crescimento urbano da segunda Outras artérias como a nova Rua de São
metade do século XVIII e XIX contrasta com o Mamede, onde coabitam palácios e edifícios mais
desenvolvimento populacional da antiga freguesia, exíguos de frontarias e volumetrias dissonantes, a
que nos censos de 1864 se encontra já repartida por Rua da Saudade onde se localiza o teatro romano ou a
4 freguesias: Sé, Santiago, Madalena e São Cristóvão Rua das Pedras Negras, são eminentemente espaços
e São Lourenço, constituindo um aglomerado habitacionais, com forte vivência urbana, onde
populacional importante e com expressão, como convivem aristocratas, gente de baixa condição social
se constata através de fotografias de época onde e populações mais humildes. Embora igualmente
se observam ruas densamente povoadas, cenas presentes, os espaços comerciais possuem aí menor
do quotidiano urbano e onde convivem palácios, expressão, reforçando esta dimensão urbana que Fig. 26 : Multidão no Largo do Correio Mor. Fotografia de Paulo Guedes.
Inícios do século XX. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/
palacetes e habitações de diversos pisos com se mantém, pelo menos até meados do século XX, CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000701).
capacidade para alojar grande número de famílias. marcada pelas pequenas indústrias, como a oficina
Fig. 27 : Rua do Barão e Rua do Arco do Limoeiro. Fotografia de Machado Fig. 28 : Rua de Augusto Rosa. 1902. Fotografia de Machado e Sousa.
Nestes edifícios, os pisos térreos destinam-se de encadernação e serralharia localizadas na Rua & Souza, 1896-1908. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/ (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/
a lojas, espaços comerciais e pequenas oficinas da Saudade (Figs. 29 e 30) ou os botequins na Rua CMLSBAH/PCSP/003/FAN/002232). FAN/002661).

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de São Mamede, onde os poucos estabelecimentos
comerciais e serviços tendem a concentrar-se junto
à Rua da Madalena e ao Largo do Caldas.
Na alvorada de novecentos é num dos edifícios
fronteiros a este largo que se localiza a escola
primária oficial nº 40 da paróquia de Santa Justa para
o sexo feminino e, nas suas imediações, a escola
de meninas na Rua das Pedras Negras. A presença
de crianças na rua é uma constante nas imagens
de época, testemunhando o desenvolvimento
demográfico destas zonas, materializada na
concentração de escolas e estabelecimentos de
ensino elementar aí localizados com o intuito de
promover a instrução popular. Neste contexto, a
imprensa adquire também particular expressão,
promovendo o consumo da imprensa escrita e das
histórias em fascículos. Fotografias de época atestam
cartazes nos prédios que promovem a divulgação
de anúncios e a publicação da Historia dos Jesuítas
dirigida por Lino da Assunção, de teor profundamente
anti jesuíta.
Ao longo destas artérias encontramos ainda
algumas tabernas, lugares de sociabilidade que eram
frequentes em Lisboa, fruto da própria evolução das
condições de vida no final do século XIX, período em
que se assiste a um aumento do consumo de vinhos
e bebidas alcoólicas, resultando na sua proliferação
pela cidade (Fig. 31) (Alves, 2004).
Estes espaços eram frequentados por dife-
rentes estratos e classes sociais, testemunhando
a diversidade do tecido socioeconómico destas
zonas, dos palacetes e das habitações populares,
das oficinas de pequena e média dimensão, das lojas
e dos pequenos estabelecimentos comerciais onde
o industrial, o comercial e o artesanal se misturam e
onde diferentes classes sociais convivem, seguindo
um padrão observado em outras freguesias urbanas
dos finais do século XIX e inícios do século XX. Este
é, contudo, um cenário em extinção, caracterizado
por uma forte heterogeneidade social e económica,
que ao longo do século XX tenderá a desaparecer,
com a transferência dos espaços industriais para
as periferias, a extinção das pequenas indústrias e
a acentuada perda populacional do antigo centro Fig. 29 : Rua da Saudade em 1902. Fotografia de Machado & Souza.
(Arquivo Municipal de Lisboa PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/
urbano. FAN/002585).

Fig. 30 : Serralharia de João da Costa Seguro situada na Rua da Saudade, Fig. 31 : Loja de vinhos na Rua de Augusto Rosa. Julho de 1907. Pormenor
nº 4. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/ de fotografia de Machado & Souza (Arquivo Municipal de Lisboa nº inv. PT/
PCSP/004/LSM/000889). AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/003072).

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Memórias da Saudade Escassas memórias. A narrativa, construída em
dois tempos distintos, permeados por um hiato de 14
é notório. Em Santiago, a população passou de 1226
habitantes (1991) para 619 (2011) e na freguesia da
anos e por olhares diversos, revela as transformações Sé, de 1926 habitantes em 1991, restavam 910 em
Daniela Araújo profundas que, à semelhança de uma parte da cidade, 2011.9
ocorreram nas ruas da Saudade, de São Mamede São também as freguesias mais envelhecidas
Antropóloga. Museu de Lisboa - Palácio Pimenta / EGEAC
e de Augusto Rosa, e no Beco do Bugio, ilustrando que possuem maior quantidade de edifícios
fenómenos de gentrificação que têm caracterizado muito degradados ou a necessitarem de grandes
Rui Coelho
a paisagem de Lisboa nos últimos anos, e revelando reparações (as antigas freguesias de São Miguel,
Antropólogo. Museu de Lisboa - Palácio Pimenta / EGEAC
contextos de recomposição social, de enfraqueci- Santa Justa, Castelo, Mártires, São Nicolau, São Paulo
mento de redes de sociabilidade, de descontinui- e Socorro tinham todas mais de 30% do seu parque
Ana Cosme dades relacionais e de fragmentações territoriais. edificado nestas condições) (Lisboa …, 2005, p. 28).
Antropóloga. Câmara Municipal de Lisboa Em 2003, o então Museu da Cidade, desen- Uma população muito reduzida e envelhe-
volveu o projeto “Recordar Lisboa Antiga” com o cida recorda saudosamente outros tempos, outras
objetivo de registar depoimentos dos habitantes e dinâmicas sociais, outros espaços de sociabilidade.
de antigos moradores das zonas da Baixa Pombalina, A Ivone, Carla, Idalina e Argentina, cujos depoimentos
Campo Grande e envolvente do Museu de Lisboa - foram recolhidos em 2003, juntam-se Manuela,
Teatro Romano. Através da técnica da elicitação, com Urbano, Lúcia, Maria do Carmo, Manuel, Domingos,
recurso a fotografias e filmes, foi possível rememorar Cecília, Isabel e Raquel, os outros intervenientes
experiências, saberes e contextos, e documentar a deste texto e que, entrevistados entre 2016 e 2017,
transformação de Lisboa, nos territórios em questão, nos permitiram resgatar memórias diversas em torno
durante o século XX. Volvidos 14 anos, o retorno ao do território de implantação do Museu de Lisboa –
terreno revela, em 2017, novos dados, outros olhares, Teatro Romano.
complementares, e a confirmação das leituras de
2003 no que diz respeito a uma memória coletiva Manuela Almeida, nascida na Foz do Arelho,
que adelgaça a cada ano, resultado de uma redução em 1938, vive na Rua de São Mamede há mais de 54
populacional anos. Viúva, trabalhou em vários comércios da cidade,
Com efeito, entre 1981 e 2001, Lisboa perdeu mas o primeiro posto de trabalho foi como costureira
mais de 240 mil habitantes - 17,8% da população no estabelecimento Eduardo Martins, no Chiado,
residente na década de 80 e 14,9% na década de 90 a ganhar três escudos ao dia. Mais tarde, tiraria o
- dados que exprimem o processo de despovoamento diploma de costura no atelier-escola Madame Silva,
de algumas zonas da cidade, especialmente no na Rua dos Anjos. Já casada, e depois de uma breve
Centro Histórico. Apesar do envelhecimento da passagem pela Amadora, instalou-se com o marido,
população ser um fenómeno generalizado nas o filho mais velho e a máquina de costura comprada
diferentes freguesias da cidade, o Centro Histórico a prestações, num dos prédios de habitação que, à
representa a área onde a população está mais época, abundavam na vizinhança e onde já morava
envelhecida e onde se encontram as freguesias uma prima sua. A renda, demasiado alta para os
menos habitadas. Este facto decorre de uma rendimentos da família, obrigou a receber hóspedes
terciarização desta zona geográfica e, à semelhança com serventia de cozinha e casa de banho. Partilhas
do que se verifica em toda a Área Metropolitana de espaços domésticos que, a melhoria na situação
de Lisboa, da saída da população para zonas mais financeira da família, anos depois, viria a ditar um fim.
periféricas.8
Nas antigas freguesias de Santiago e da Sé,
duas das quatro freguesias nas quais se incluíam
as artérias em análise, o decréscimo demográfico 9. A reorganização administrativa, oficializada a 8 de novembro de 2012,
e que entrou em vigor após as eleições autárquicas de 2013, representou
uma diminuição drástica do número de freguesias em Lisboa – 53 para
24. A Junta de Freguesia de Santa Maria Maior ilustra a maior fusão a nível
8. Diagnóstico Social de Lisboa, 2009, http://lisboasolidaria.cm lisboa.pt/ nacional, pois agregou 12 juntas do Centro Histórico, entre as quais Santiago
documentos/1350643252W0yVX0kg4Ck92VJ1.pdf. e a Sé. Consulte-se, igualmente, INE, I.P., Censos 1991,2001 e 2011.

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A sua chegada à Rua de São Mamede, em ali, os filhos casaram ali e viveram ali. Foi uma celeu- Quando a Dr.ª Irisalva me disse “Eu arranjo- e trepadeiras, havia uma latada de vides, que ainda
meados da década de 1960, coincidiu, em parte, ma enorme. Mas os prédios eram muito antigos.E -lhe emprego, vai para guarda do Teatro Romano deu umas boas uvas. Havia também uma nespereira,
com o início das primeiras sondagens arqueológicas, à medida que as escavações iam avançando, que as escavações vão começar em breve”, que teve que ser tirada por causa do material dos
realizadas por D. Fernando de Almeida, em 1964, começaram a ver que era um monumento muito pensei: “Bem, Teatro Romano é uma coisa antiga, achados, não é, mas passei aqui uns bocadinhos
em diversos prédios nas Ruas da Saudade e de São importante. (Raquel Florentino, 5-6-2017). há-de haver aqui coisas de valor!”. Entreguei-me bons, com familiares. Nessa altura, era ali na casinha
Mamede, que puseram a descoberto as ruínas do àquilo! Nunca tinha trabalhado em nada disto. dos frescos que eu fazia os meus trabalhos e era ali
Teatro Romano. De alguma forma, inaugurava-se, também, Ainda não havia cá nada, havia os prédios, vim que tinha o telefone por causa dos Serviços. Pronto,
Com as sondagens iniciava-se, então, um o processo de despovoamento que hoje marca assistir a deitar ali os três prédios abaixo. Veio cá lembro-me dos bons bocados que aqui passei,
processo de mudança de funções e de usos do estas artérias, ainda que, à época, esse processo o Sr. Dr. Fernando do Almeida e mais um grupo de cheguei aqui a passar noites, que nem apetecia
edificado que é patrimonializado, produzindo tivesse contornos muitíssimo ténues e fosse de uma arqueólogos, que fizeram a primeira sondagem no ir para a cama, ficava aqui fora, sempre com a
reconfigurações espaciais e novas formas de natureza distinta àquela que atualmente se verifica. prédio, deram imediatamente com o piso e com intenção do serviço correr da melhor maneira.
pertença territorial. Subitamente, constitui-se uma Urbano Rebelo é também uma personagem colunas e disseram: “Alto que é aqui que ele está!”. (Urbano Rebelo, 2003 e 14-12-2016 e 6-1-2017)
outra hierarquia de memórias e de passados. Um central na história recente deste território. Tal Foi o prédio nº 1, que foi comprado e que foi deitado
passado antigo, até então escondido e desconhecido, como Irisalva Moita que foi, durante muitos anos, abaixo, e que até foram apanhar o eixo central do A Urbano cabia, também, a responsabilidade de
mas científico, uma “antiguidade tão distante conservadora chefe dos Museus Municipais e Teatro. Lembro-me quando começaram a tirar o piso entregar no Museu da Cidade (inicialmente, ainda no
quanto um país estrangeiro” é, então, sobreposto que intervencionou arqueologicamente o Teatro do prédio, a placa do rés-do-chão, com picaretas. Palácio da Mitra), ou nos Paços do Concelho as peças
a um passado mais recente, lembrado pelos vivos, Romano. Transmontano, filho de lavradores, nascido Quando já aparecia a terra tirava-se com colherins. de menor dimensão que fossem encontradas nas
partilhado, vivenciado e periodicamente reatualizado em Louredo, Santa Marta de Penaguião, em 1940, Marcava-se um quadrado de dois por dois metros escavações. As tarefas de vigilância mantiveram-se
por via dos rituais comunitários, como as festas dos cumpre o serviço militar em Angola, onde conhece e levava-se à profundidade onde se encontrasse ao longo dos 38 anos que permaneceu ao serviço.
Santos Populares, nas suas dimensões sagradas Irisalva Moita, quando fazia guarda à sua casa em o piso do Teatro. Todo o material que aparecia era Não eram os roubos que o afligiam; as peças, colunas
e profanas. A paisagem vernacular, barulhenta Sá da Bandeira. Anos depois, um encontro casual na guardado. Depois daquela parte, de uma pequena e capitéis, eram demasiado volumosas e pesadas
e colorida é, assim, permeada por novos traços Avenida da Liberdade, marcaria para sempre a vida parte estar já descoberta, esteve sempre aberta para serem roubadas. Contava sempre com o pior;
institucionais e científicos. profissional e pessoal deste homem. ao público em visitas guiadas e, então, tinha ordem dormia um sono desperto para acautelar qualquer
Raquel Florentino que, à época, era conser- de que quem quisesse vir ver de lhe mostrar e situação inesperada, mas apenas os jogos de futebol
vadora nos Museus Municipais de Lisboa, tem ainda Eu fazia aquelas sanchas (sancas), aquelas dar uma pequena explicação do que já estava à das crianças na rua o obrigavam a reprimendas e
muito presente o processo de realojamento implicado flores de gesso para pôr nos tetos. Vinha para cima vista, daquilo que a Dra. Irisalva Moita me ia dando a descer constantemente às ruínas para recuperar
na demolição dos prédios nas Ruas da Saudade e aparece-me a doutora! “Então você anda nas a conhecer e o que é que significavam aqueles a bola. Uma ética de trabalho irrepreensível guiou
e de São Mamede. O prédio onde morava Ary dos obras? Não me quer ir pintar a casa?”. “Eu vou, pontos que iam aparecendo.Era uma equipa fora de sempre a sua conduta.
Santos é excluído das demolições. Ou as diligências mas tem que ser aos domingos ou aos sábados”. série. Eram mesmo fora de série! Foi tudo escavado As ruínas foram inicialmente protegidas por um
feitas pelo poeta, como recorda Manuela, ou o facto Então lá fui pintar a casa dela e ela tinha lá uma com a Dr.ª Irisalva, comigo e com esses quatro tapume de madeira, nos anos de 1965-66 (Figs. 32 e
de o edifício em questão ser “… moderno, com uns empregada que era de Covas de Barroso, do homens do Alentejo que viviam no rés-do-chão e eu 33). Muito tempo depois, já em 2001, seria substituído
alicerces completamente diferentes o que obrigava concelho de Boticas, e disse-me: “Olhe, tenho aqui no primeiro andar. Não eram arqueólogos. Ela é que e, finalmente, em 2015 foi permutado pela atual
a indemnizações muito grandes” (Raquel Florentino, uma empregada e vocês podiam-se ajeitar que andava sempre ali e como tinha muita confiança em solução grafitada. Um período de menor dinâmica nas
5-6-2017), acabaram por poupar o nº 23 da Rua da trabalho arranjo-vos eu!”. E ela fez-me o casamento mim, qualquer coisinha: “Alto aí que não se toca!”. E intervenções nas ruínas e no próprio edifício do agora
Saudade. A mesma sorte não coube aos números 24 e na Igreja de Fátima. (Urbano Rebelo, 14-12-2016 e chamava-a para ela lá ir. Quando se apanhava uma designado Museu de Lisboa – Teatro Romano criaria
14 do lado norte daquela rua, bem como aos edifícios 6-1-2017). peça toda partida, em cacos, apanhava-se aqueles algum descontentamento nos habitantes durante
4 e 4A, do lado sul, que tinham também fachada caquinhos todos para depois ser restaurada. longos anos.
para a Rua de São Mamede (nºs 11 e 13). Apesar da Das pinturas em casa de Irisalva Moita, Urbano Quando aparecia uma peça eu imediatamente Lúcia Gomes, que viveu na Rua de São Mamede,
oposição inicial dos habitantes, a possibilidade de passou a guarda das escavações no Teatro Romano. lhe ligava e ela vinha ver. Tinha muito gosto no de 1978 a 2009, no mesmo prédio onde ainda habita
mudarem para habitações mais condignas acabou Inicialmente alojado numa pequena estrutura situada trabalho…tinha 23 anos! Depois, ao longo do tempo, Manuela, recorda as estruturas frágeis que, durante
por alterar as perceções e posicionamentos face no quintal de um dos prédios demolidos, rapidamente acompanhei toda a obra do edifício. Tinha de andar muito tempo, empobreceram a artéria. Nascida
ao realojamento. foi instalado no edifício onde, atualmente, se situa o de olho em tudo. Não parava um dia. A minha folga na Ponta do Sol, Madeira, em 1955, e chegada ao
Museu de Lisboa - Teatro Romano e onde nasceram era à segunda-feira, mas eu continuava porque Continente com 22 anos, Lúcia entrou ao serviço do
Quando a Câmara comprou os prédios e os seus dois filhos. O trabalho de vigilância, para havia coisas para fazer. Não é que fosse obrigado, então Museu da Cidade (atual Museu de Lisboa) pela
desalojou aquela gente, foi um desagrado muito o qual tinha sido inicialmente contratado, ganhou mas eu não podia estar parado! Antes disto ser mão de Urbano.
grande, tenha a certeza, eu assisti a isso. O primeiro subitamente outros voos. Juntamente com quatro museu o pátio serviu como arrecadação do material
impacto foi de relutância em sair dali. Aquela gente alentejanos, encarrega-se, sob as ordens de Irisalva que ia saindo dali.... Mas ainda antes disso, aqui no Aquilo só tinha um tapume. Era zinco por cima
nasceu e viveu sempre ali! Os antepassados viveram Moita, das escavações nas ruínas do Teatro Romano. pátio havia muitas flores, a maior parte eram jarros e madeira à volta. Não se via nada lá para dentro.

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Hoje vê-se. Estava tudo fechado em madeira. As lanche para dois, estavam quatro ou cinco porque
pessoas deitavam muito lixo lá para dentro e depois entravam pela janela porque era rés-do-chão e era
o Sr. Urbano andava sempre a limpar. No edifício do mais fácil entrarem pela janela do que virem tocar à
Teatro Romano, aquilo era assustador. Eram umas porta!.(Manuela Almeida, 2-12-2016).
coisas velhas e o que saía dali era só ratazanas.
Estava tudo abandonado. (Lúcia Gomes, 18-1-2017). Alguns dos homens, como Urbano, reuniam-se
para as caldeiradas do Zé na Rua da Saudade. No
Lúcia viveu a rua e a vizinhança de uma forma estabelecimento comercial, tasca e mercearia, o
muito particular. Antes do trabalho no então Museu grupo de amigos comia o peixe comprado na praça e
da Cidade, andava a dias para ganhar a vida e compor preparado pelo próprio dono da tasca. Também
o orçamento familiar. Essa função permitiu-lhe se juntavam os homens à porta da leitaria da Rua
franquear algumas portas no território. Recorda mais de São Mamede, atualmente o conhecido café do
saudosamente a casa do poeta Ary dos Santos: Sr. Ribeiro, (nº 20) a jogar à moeda ou às matrículas
dos carros que passavam, contando números e letras.
O Ary dos Santos gostava muito de ter Em alternativa, rumavam à Rua da Madalena onde Fig. 34 : Edifício da Cadeia do Aljube. Fotografia de José Artur Leitão Bárcia
muita gente lá em casa. Tinha uma empregada que havia uma leitaria que tinha matraquilhos e assim (entre 1890 e 1945). (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/
trabalhava durante a semana e ao fim-de-semana se passavam os serões com os amigos quando não CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000066).

eu ia lá fazer as folgas. Gostava de lá ir trabalhar, apetecia ir aos bailes dos Alunos de Apolo para onde
porque ele era uma pessoa muito honesta. o marido de Manuela gostava de rumar sempre que
Podíamos conversar com ele. E ele também gostava podia. Era um gabarrista, como o recorda Urbano, bailaricos. As festas de Santo António eram boas,
de conversar comigo. Ele tinha uma casa muito arrastado para os bailaricos pelo amigo e vizinho, mas aqui o forte eram as sardinhas, o pão de carcaça
rica. Ele pagava bem e eu sentia-me muito bem a sempre recusando dançar. Dançar é coisa que não…. e o vinho. Só quando estávamos à mesa é que
trabalhar na casa dele. Quando morreu deixou tudo Ao fundo da Rua de São Mamede, abundavam comíamos também uma saladinha! De resto era
ao Partido Comunista. (Lúcia Gomes, 18-1-2017). as tascas onde se assava peixe à porta. Quem de passagem, agarrávamos o pão, a sardinha, o
trabalhava nas redondezas fazia lá as refeições dos copo de vinho e íamos andando, eram festas muito
Eram tempos marcados por outras sociabili- dias de serviço ou, em alternativa, escolhia o Bifanas bonitas. (Urbano Rebelo, 2003).
dades que, entretanto, sofreram mutações profundas. do Caldas, já na Rua da Madalena, e que ainda hoje
Maria do Carmo, nascida em Freiria, Torres Vedras, existe com o nome As bifanas do Afonso. A memória das ruas em torno do Museu de
veio servir para Lisboa com 13 anos, à semelhança Os tempos de lazer ou eram vividos em casa Lisboa – Teatro Romano é também marcada pela
de muitas raparigas da província. Hoje, vive na ou em passeios a Belém, ou, nas férias, como tantos Cadeia do Aljube (Fig. 34), encerrada em 1965, hoje
Pontinha, mas habitou na Rua de São Mamede, lisboetas, ia-se e vinha-se todos os dias para a Costa transformada em espaço museológico dedicado à
primeiro num quarto e, depois, num apartamento, da Caparica. Os Santos Populares eram marcados resistência e liberdade, mas que assombra, ainda,
pouco depois de se ter dado o 25 de Abril. As filhas pelas patuscadas na rua, com retiros improvisados à as rememorações de alguns dos habitantes:
brincavam com as outras crianças na rua, entre as porta de casa e que já nada têm a ver com os novos
quais a filha de Lúcia. Na rua, mais abaixo, havia modelos comerciais que hoje dominam os arraiais. Quando era pequenita passava aqui no
uma escola primária (nº 11 da rua de São Mamede) pátio do Aljube e via os presos, fazia-me muita
frequentada por algumas das crianças da vizinhança. As Festas de Santo António, aqui, era terrível confusão, tinha muita pena deles. Quando podia
As crianças conheciam-se todas (Maria do Carmo e, durante o ano, era a noite que eu mais temia. fazer alguma coisa por eles, fazia. Às vezes vinham
Santos, 18-1-2017). Sabe muito bem que, naquela noite, tanto é para cá as famílias...e eles mandavam recadinhos para
o bom, como para o mau. Mas nunca tive qualquer ir dizer às famílias que estavam ali incomunicáveis,
As crianças brincavam na rua…as que brinca- problema, porque fui um indivíduo que estive e cheguei a ir a casa deles! Eu era o pombo correio,
vam. No prédio havia três ou quatro crianças. Os Fig. 32 : Tapumes para proteção das ruínas do Teatro Romano sempre atento, sempre em cima do acontecimento, lá ia com a minha mãe, e a minha mãe por vezes
meus nunca foram brincar para a rua. A minha filha – Rua de São Mamede. Fotografia de João Brites Geraldo em e então é claro, à minha frente nunca tentaram dizia: “Ah, qualquer dia vamos para a cadeia!”. Eu a
1967. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/
brincava dentro da janela e os outros estavam fazer qualquer maldade aqui nos serviços. Em fazer-lhes sinais com um lenço...mas tive sempre
PCSP/004/JBG/000413).
do lado de fora. Os rapazecos que andavam na todos os bocadinhos na rua, eram barracas e sorte... Alguns deles quando saíram em liberdade
escola com o meu filho às vezes vinham cá lanchar. Fig. 33 : Tapumes para proteção das ruínas do Teatro Romano – Rua um balcão e uma mesinha para venderem as vieram cá a casa oferecer-me doces e agradecer,
de São Mamede e Rua da Saudade. Fotografia de João Brites Geraldo
“Oh mãe, faz lanche para mim e para fulano que em 1967. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/ sardinhas, o pão e o vinho... Em todos os cantos, outros escreveram cartas... De maneira que fiz bem
está cá a estudar mais eu”. E quando eu ia levar o PCSP/004/JBG/000408). onde houvesse um bocadinho de pé direito, havia e hoje não me arrependo. Se fosse outra coisa,

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faria outra coisa para bem deles e para bem da acolher os cestos e as canastras dos vendedores
Humanidade. (Ivone Guimarães, 2003). ambulantes. À praça ia-se ao Largo do Chão do
Loureiro, onde agora está instalado um supermercado
Outro dia fui ao Museu do Aljube. Fez-me Pingo Doce.
muita impressão, mas quero lá voltar. Tenho que
arranjar coragem para lá voltar. Fui lá mais os meus Vinha aqui a leiteira à porta, vinha o padeiro,
netos. Lembro-me deles fugirem pelas traseiras e a mulher da hortaliça. Tinha tudo aqui à porta.
da polícia com as metralhadoras atrás deles pelos Vinham aqui trazer o leite, o pão e as hortaliças. Era
telhados. Eu estava na janela com o meu pequenito costume. As pessoas andavam de porta a porta. A
e eles disseram: “Saia da janela, saia da janela porta do prédio estava aberta, não é como agora
minha senhora!”. Por causa dos tiros. Diz que eles que está fechada. A senhora da hortaliça, a Ti
fugiram pela enfermaria. A enfermaria era onde Conceição, trazia a canastra à cabeça, punha ali a
os maltratavam. Ouviam-se aqui os gritos deles. hortaliça e todas comprávamos. Trazia tudo, alhos,
(Manuela Almeida, 2-12-2016). cenouras. Vinha o senhor do pão, deixava o saco na
porta e eu pagava no fim-de-semana. O padeiro era
Os comércios locais - farmácia, padaria, cape- de uma padaria de longe. Eram bolinhas, não havia
lista, mercearias, leitaria, armazéns de cereais e de o pão que há agora. Eles andavam com os cestos às
azeites, drogaria, talho, sapateiro, alfaiate, encaderna- costas, daqueles cestos compridos. Andavam a pé!
dor, fábrica de baús de madeira, tipografia, tabernas Há 50 anos ninguém tinha motos ou carros como
e restaurantes - abasteciam os moradores dos têm agora. E andava a leiteira e o leiteiro que vendi-
produtos necessários. No nº 2A da Rua da Saudade am leite e azeite e traziam as bilhas às costas. Havia
havia, no primeiro andar, uma oficina de brinquedos um leiteiro que tinha um caixote com as garrafinhas
de madeira que alimentava os bazares da Baixa e os da UCAL, porque havia uma leitaria aqui em baixo da
desejos das crianças da vizinhança. Por baixo, uma UCAL. E à falta do leite da UCAL, a rapariga, a Leonor,
oficina de cartonagens. Cecília, filha de Domingos também me arranjava leitinho para o menino. E para
Goucha, antigo encadernador do Beco do Bugio, a minha filha. E guardava-mo e eu ia lá buscar duas
recorda aquele lugar mágico de onde saíam peças três garrafinhas de leite engarrafado e lacrado.
que encantavam os petizes: Tínhamos tudo à porta. A peixeira também trazia
a canastra à cabeça. Não eram do bairro. Eram de
Não havia cavalos de madeira como aqueles! outros lados. (Manuela Almeida, 9-12-2017).
Já saíram há muito tempo, há mais de 30 anos.
Perdeu-se o contacto. Vendiam para todas as lojas. Às varinas sucederam os carros da venda de
Nunca mais vi bonecos tão bonitos como aqueles. peixe, geridos por homens, como o estivador refor-
Tinham uma equipa a trabalhar. Eu comprei bonecos mado de Alfama, que fazia a distribuição do pescado
para os meus filhos ali. (Cecília Goucha, 25-5-2017). pelos restaurantes e nas casas particulares e que
Urbano ainda recorda. As ruas eram também cruzadas
Domingos, nascido em Alfama em 1926, por lavadeiras e amoladores.
conhece aquelas ruas há muitas décadas. Começou
a aprender o oficio de encadernador com 12 anos e, Elas vinham pela rua a gritar com a roupa
após a passagem por várias oficinas, como aprendiz toda metida num lençol amarrado com as pontas
e, depois, como empregado, estabeleceu-se por à cabeça para as pessoas saberem que elas já
conta própria, inicialmente na Rua de São Mamede e, vinham a chegar com a roupa lavada. Ou para quem
mais tarde, no Beco do Bugio (Fig. 35). quisesse mandar lavar. (Lúcia Gomes, 18-1-2017).
Para aí veio viver há 53 anos. Oficina e
residência instaladas no mesmo prédio, uma vida Domingos é o único a recordar o pregão dos
dedicada à tarefa de alindar os livros. À porta vinham aguadeiros. Um Auuuuuuuuuuuuuuuu prolongado que
Fig. 36 : Aguadeiros no Chafariz de Dentro. Fotografia de Joshua Benoliel Fig. 37 : Vendedora de figos perto do mercado da Ribeira Nova em 1910.
vender-lhe o que os comércios locais não ofereciam. anunciava a chegada das águas frescas que abaste- feita entre 1903-1907. (Arquivo Municipal de Lisboa, Fotografia de Joshua Benoliel (Arquivo Municipal de Lisboa,
Tal como Manuela, que abria o portão do prédio para ciam as casas (Fig. 36). nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001228). nº inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000744).

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Num tempo mais distante, em que as coisas não muitas pessoas, eram quase todas de Alfama. Na do Museu de Lisboa – Teatro Romano, ilustram essa noutros pontos da cidade, ainda libertos, pelo menos
eram substituídas, mas sim recuperadas, funileiros hora do almoço ia a casa, tinha tempo de ir a casa. insatisfação: “Pensámos que ia melhorar, mas parcialmente, desses fenómenos de gentrificação,
arranjavam as panelas rotas que se gastavam, Olhe, uma vez fui castigada e mais três colegas começaram a chegar os antiquários. Está tudo uma ou nos concelhos limítrofes de Lisboa. O nº 2 da Rua
soldando os fundos em chapa e prolongando o tempo que foram fazer café. Porque a gente não podia, cangalharia de velhadas. Somos velhos e as coisas da Saudade já não fica paredes meias com nenhuma
de vida útil dos objetos. não tinha ordem. O Sr. Manuel, irmão do Teodoro, velhas também vieram para cá!”. Manuel Murteira oficina. O primeiro andar está à venda por mais de um
Isabel Pereira10 prefere recordar a venda dos apanhou a gente a beber o café, olhe, fomos logo recorda uma certa animosidade da população quando milhão de euros e tem dois lugares de garagem.
figos Pingo de Mel (Fig. 37) e da fava rica. castigadas, dois ou três dias sem poder vir trabalhar, a dinâmica comercial começou a mudar:
Nascida em Pindo, Penalva do Castelo, chega a sem ganhar! Ele era muito mau. Deus lá o tenha em Porque é uma população muito residual e,
Lisboa em 1949 com 12 anos e fica a viver com uma descanso sem mim. (Carla Dias, 2003). Operários, pequenas profissões, motoristas do ponto de vista etário, muito idosa. A população
tia. Nas suas rememorações surgem as mulheres que de táxi, proletariado com algum dinheiro. Uma que eu conhecia aqui tem morrido toda, eram todos
transportavam, por vezes dentro de cestos, panelas Quando cá cheguei eu não sabia coser a gente um pouco hostil com tudo o que não fosse do muito velhos. As pessoas novas que poderiam
à cabeça com a rica, espessa e saborosa sopa de motor, sabia coser à máquina, mas não sabia a mesmo nivelamento social, da mesma cultura. Eram vir para aqui, acabaram por comprar casa noutro
favas. As mais aprumadas, certamente, cobriam os motor e a minha colega diz: “Vai, vai, que a gente pessoas que criavam problemas aqui connosco sítio porque aqui não têm lugar para estacionar;
recipientes com imaculados brancos panos. ensina-te!”. Fui para lá, pus logo o pé a fazer e e com outras lojas que se instalaram. (Manuel ninguém quer abdicar do carro. Estes prédios
A clientela levava os seus tachinhos ou malguinhas estraguei logo o cinto, tive que pagar o cinto. Os Murteira, 24-3-2017). estavam todos degradados e hoje em dia está
para receberem a fava rica que era servida com uma homens estavam nas máquinas do corte e as tudo de pé, graças aos Airbnb. Mas não vejo jovens
concha. máquinas faziam mais barulho que as nossas. Com o decorrer dos anos, muitos dos portugueses a quererem instalar-se aqui. Penso
A Fábrica de Malas Teodoro dos Santos, situada Fizemos muitas malas... houve uma temporada antiquários fecharam portas. Alguns trespassaram que já não há nenhuma criança residente aqui na
no nº 5 do Pateo do Aljube – onde hoje se situa o que a gente trabalhava ao sábado e tudo, porque as lojas a novos antiquários, outros reconverteram rua. A rentabilidade que os senhorios hoje tiram dos
Museu de Lisboa – Teatro Romano - também marcou, quando se usou estas malas de verniz, então meteu os seus negócios em formatos distintos. Manuel prédios é óbvia. Outra coisa que se tornou fatal
durante algumas décadas, as dinâmicas sociais muito dinheiro ao Teodoro, muito. Deus lá tenha a Murteira transformou a sua loja num café cuja foi o elétrico onde não se consegue entrar. Mas a
do território. Em 2003 ainda foi possível recolher alma em descanso. (Idalina, 2003). clientela é esmagadoramente constituída por Câmara fez uma coisa boa que foi passar a usar
diversos testemunhos de antigas trabalhadoras da turistas. As mercearias tradicionais que, entretanto, autocarros pequenos para a zona do Castelo. Mas
unidade fabril que recordaram as duras condições de Eu devia ter para aí uns 15 anos quando desapareceram, transformaram-se em lojas de arte- os autocarros turísticos grandes causam dez vezes
trabalho: vim para cá trabalhar. Agora tenho 86. Estive sanato de plástico ou em mini-mercados geridos mais problemas que os Tuk-tuks. Aqui, a morfologia
pouco tempo cá, talvez um ano. Lembro-me que por migrantes oriundos do Bangladesh. A padaria, a da colina não permite muitas coisas; isto ainda não
Trabalhei oito anos aqui nesta fábrica de pegávamos às 9h da manhã, o almoço era da 1h tipografia, o talho e a taberna residem, somente, na se tornou a Baixa de Lisboa com os empregados
malas ...Tinha os meus 17 anos, quando vim para às 2h da tarde e terminávamos às 6h. Ao sábado, memória dos habitantes mais velhos. E a Ermida de de mesa aos gritos para atrair os turistas. Não há
aqui... depois fui embora porque vinham outros que quando se trabalhava, era o dia todo! Mas pagavam São Crispim e de São Crispiniano, já não é um local forma de fixar as pessoas aqui. Só há Airbnb, em
também tinham fábricas aqui na zona chamar a a dobrar. Não se podia chegar atrasada, quem de culto católico. Cedida a utilização aos cristãos frente, Airbnb em cima. O alfaiate morreu e agora
gente e a gente ia-se embora....pagavam mais! O Sr. chegava, já não entrava, perdia o dia e já não ferrava ortodoxos, ganhou uma nova identidade e tornou-se é um hostel com 17 camas. Agora não há ninguém.
Teodoro das malas era uma pessoa muito acessível. nesse dia. (Argentina, 2003). Igreja Ortodoxa Romena. (Manuel Murteira, 24-3-2017).
Veio para cá sem nada e rapidamente conseguiu
uma fortuna. É verdade...Ele trabalhava muito... mas Nas décadas de 1980-1990 o território ganha Quando vim para aqui morar, havia aqui tudo. Não se poderá falar, hoje, numa uniformidade
o irmão é que exigia muito de nós, ele não. Sabe, novos contornos com a implantação dos primeiros Agora não há nada. Agora é tudo artesanatos. Ali de dinâmicas sociais de rua no que diz respeito às
o irmão era o encarregado... era mau! O Teodoro antiquários na Rua de São Mamede. Manuel Murteira, em baixo havia um restaurante e hoje passei lá de três artérias em análise. A Rua de Augusto Rosa é
vinha uma vez por semana. Quem precisasse de marchand e antiquário durante 20 anos e presidente autocarro e é uma casa de chineses. (Manuela, marcada por um intenso movimento de urbantrotters
dinheiro ia aos escritórios, que eram cá em baixo, da Associação Portuguesa de Antiquários por doze 2-12-2016 e 9-12-2016). que, munidos de mapas convencionais ou com o
ali onde está a entrada do Museu. Havia ali uma anos, foi o terceiro a abrir a sua loja nesta artéria, auxílio do Google Maps instalado nos telemóveis ou
secretária com uma cadeira...a gente ia ter com estabelecendo-se num antigo armazém de fios de A população, cada vez mais residual e envelhe- nos tablets, galgam a via em hordas ascendentes
ele para ele emprestar dinheiro à gente. Aqui fiz tapetes de Arraiolos. Outras lojas do mesmo ramo cida, partilha hoje um território dominado por outras num consumo patrimonial desenfreado. Buscam
muitas malas e luvas! As malas que fazíamos aqui abririam nos anos seguintes, numa época em que o lógicas de ocupação que revelam fenómenos de imagens, em registo convencional ou sob o filtro das
eram para a tropa, era uma mala especial, de lona. espaço OIKOS, que ocupava as antigas cavalariças gentrificação e reabilitação urbana. Os que ainda lá selfies, das fachadas dos prédios (os azulejos são
Também fazíamos aquelas malas de verniz, uma do Cabido da Sé, oferecia “(…) a melhor seleção vivem ou trabalham convergem nas leituras sobre muito apetecíveis), ou de detalhes do espaço que
imitação de verniz, que se usou muito. O último de música etnográfica que se podia encontrar em o despovoamento do território e a substituição dos cabem nas suas categorias de very typical.
andar era de luvas. Aqui nesta fábrica trabalharam Lisboa” (Manuel Murteira, 24-3-2017). A instalação de moradores por uma população flutuante e etérea. Os poucos habitantes locais que circulam nos
antiquários no território criou algum desapontamento. Nesse esvaziar do território, aos que morreram, jun- estreitos passeios são engolidos por estas hordas
10. Nome fictício a pedido da entrevistada. As palavras de Ilídio, em 2003, morador na envolvente tam-se aqueles que tiveram de procurar residência que, indiferentes às pessoas, chegam a solicitar,

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guiados por uma curiosidade rude, que aqueles se passa ninguém. Aqui é só para comes e dormes.
afastem dos detalhes dignos de serem fotografados, Esta minha rua aqui, este quarteirão, é quase só
sob pena de poluírem a paisagem citadina, gerando estrangeiros. Compraram aqui tudo e têm umas
alguns momentos de tensão e conflito. A par dos vistas fantásticas. É só turistas e muçulmanos,
urbantrotters que percorrem a via a pé, outros há que gentes de outras terras, gentes de outras raças.
engrossam o cortejo dos Tuk-tuks e a lotação mais do Moram no sítio onde trabalham. Convivências
que esgotada dos elétricos 12 e 28. O autocarro da só tenho com as meninas do Museu. Às vezes
carreira 737, menos apetecível para turistas, avoluma vou lá visitá-las. (Manuela Almeida, 2-12-2016 e
o número de visitantes ao território. 9-12-2016).
Na Rua de Augusto Rosa cruzam-se, também,
os veículos modestos dos moradores mais antigos Até ao chafariz, a Rua de São Mamede exibe,
com potentes automóveis de alguns dos novos ainda, algum comércio, como a velha leitaria onde se
habitantes, os quais entram e saem das suas casas ia comprar o leite UCAL, atualmente, o acima referido
e que pouco ou nenhum contacto têm com os café do Sr. Ribeiro, um par de restaurantes e um
outros moradores. Abundam os espaços comerciais atelier de cerâmica moderno que oferece workshops.
vocacionados para turistas, como casas de artesa- Mais para adiante desaparecem as casas comerciais.
nato mais ou menos genuíno, restaurantes, cafés e Na Rua da Saudade que, à semelhança da anterior,
pastelarias, uns de registo mais tradicional e outros também se transformou numa rua de sentido único
mais trendy, a par das mercearias geridas por povos para os veículos, circulam os Tuk-tuks transportando
orientais. turistas ávidos de chegar aos lugares onde podem
Na Rua de São Mamede, há uma fronteira que observar o Tejo. Descem a Saudade, sobem a Augusto
é marcada pelo Largo do Correio Mor. Num primeiro Rosa e rumam às Portas do Sol. Aí, finalmente,
segmento, entre o Largo do Caldas e o Largo do apeiam-se.
Correio Mor e com uma morfologia que convida ao Com a Reorganização Administrativa do
passeio, aventuram-se transeuntes atraídos, também, Território das Freguesias, em 2012, as freguesias
pela azul alfazema dos jacarandás que emolduram o de Santiago, da Sé, de São Cristóvão e São Lourenço
Largo do Correio Mor durante a Primavera. Tiram-se e da Madalena, nas quais os arruamentos em questão
fotografias e registam-se as cores das árvores. A se incluíam, foram agregadas na freguesia de Santa
Calçada do Correio Velho, no entanto, conduz os Maria Maior. À freguesia de Santiago pertenciam
movimentos para a Rua das Pedras Negras e a a Rua da Saudade e o Beco do Bugio; à Sé, a Rua
inclinação pouco apetecível do segundo segmento de Augusto Rosa. A Rua de São Mamede estava
da Rua de São Mamede afasta os visitantes do ponto fragmentada em quatro freguesias: Sé, Santiago,
mais alto da rua. Só a sobe quem por lá vive, ou a pé, São Cristóvão e São Lourenço e Madalena. De uma
como Manuela, ou de automóvel, como os seus novos certa maneira, esta fragmentação, associada ao
vizinhos do prédio. facto de ruas tão próximas pertencerem a freguesias
distintas e, em particular, à vizinhança das freguesias
Sou a pessoa mais antiga do prédio. Sou a da Graça, do Castelo e do bairro histórico de Alfama,
única inquilina. Está tudo vendido. Já tudo morreu, concorreram para esvaziar este território de uma
já tudo está vendido. Já morreu aqui toda a gente. expressão identitária mais marcante. A expressão
Dos anos 60 já não há ninguém aqui. Antigamente Santiago não tinha marcha ilustra esta ausência de
esta rua era mais frequentada. A rua ficou mais sentido de pertença, uma identidade diluída. “No
vazia. Esta rua é muito só. Muito só. E eu sinto-me Santo António ia-se à rua da Regueira, em Alfama”
mal. Ao domingo, quando venho da missa não vejo (Domingos Goucha, 25-5-2017). Ou à Graça, ou ao
vivalma. Ontem não se via ninguém. Há muito pouco Castelo, freguesias com marcha, com identidade.
português. Há pouca gente e muita estrangeirada. “Isto não é Alfama, nem Castelo. Está entre os dois.
Vieram agora, compraram casa e vivem aqui. Ali É uma coisa em conjunto” (Manuela Almeida, 9-12-
moram uns rapazes estrangeiros que qualquer -2016). Um enclave. Um enclave à sombra da colina
casa que vague, eles apanham logo. Aqui não do Castelo e abraçado por Alfama.

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O que a arqueologia nos conta O teatro romano de Lisboa detém, desde 1967, Saudade ou Rua de São Mamede nº 9, por exemplo),
o estatuto de Monumento Classificado (Decreto Lei tenha sido efetuada por empresas de arqueologia
nº 47984, de 6-10-1967). Como tal, possui uma ou então por outras equipas camarárias (Rua de São
Lídia Fernandes área geral de proteção, razão pela qual muitas Mamede nº 15, Escadinhas de São Crispim, Largo de
Coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC intervenções arqueológicas têm sido realizadas na São Crispim, Largo do Correio Mor).
sua envolvente. Essa ação permitiu obter um conjunto O cruzamento das informações fornecidas
Carolina Grilo precioso de informações que possibilitam um pela arqueologia e pelos dados arquivísticos
Arqueóloga do Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC olhar aprofundado e mais correto sobre a evolução e bibliográficos permite, por outro lado, uma
diacrónica desta parte da cidade de Lisboa. complementariedade e cruzamento de testemunhos
No presente texto indicamos os muitos únicos, para o conhecimento deste local, da sua
Rani Almeida
locais onde o Museu de Lisboa – Teatro Romano história e da sua composição social e funcional. A
Aluna do curso História da Arte da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
interviu arqueologicamente, situados todos eles na análise da documentação do Arquivo Geral de Obras
Estagiária do Museu de Lisboa – Teatro Romano envolvente do monumento cénico. A maior parte da Câmara Municipal de Lisboa, e o seu cruzamento
destas intervenções foi realizada por técnicos do com a informação do Arquivo Fotográfico Municipal,
museu ainda que, em alguns locais (nº 2 da Rua da fornece diversas pistas para uma leitura histórica e

A — Rua da Saudade nº 7 F — Terreno na Rua de São Mamede J — Rua de São Mamede nº 17


B — Rua de São Mamede nº 5 entre os nºs 16 e 8 L — Rua de São Mamede nº 19
C — Rua de São Mamede nº 6 G — Rua de São Mamede nº 11 M — Rua de São Mamede nº 21
D — Rua de São Mamede nº 8 H — Rua de São Mamede nº 15 N — Rua de São Mamede nº 2
E — Rua de São Mamede nº 9 I — Rua de São Mamede nº 16 O — Rua da Madalena nº 147 -151

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temporal do espaço urbano na envolvência do teatro as varandas de sacada e as janelas. Tais elementos construção de edifícios com frente para a Rua de São Rua da Saudade nº 7 — A
romano. poderão ser datados dos finais do séc. XVIII ou já de Mamede e a criação de pátios no tardoz, duplicando
A imagem da Rua de São Mamede nos inícios inícios da seguinte centúria oferecendo paralelos a mesma solução na rua imediatamente inferior, neste Em 2015 foi aqui realizada uma sondagem
do século XX não seria muito distinta da atualidade, decalcáveis de alguns edifícios da “Baixa Pombalina”, caso a Rua de Augusto Rosa e os respetivos pátios arqueológica em consequência de obras de
embora um olhar mais demorado sobre algumas concretamente da Rua dos Douradores (Correia, Silva, traseiros. Desta forma, grandes extensões de terrenos remodelação do r/c e cave do imóvel11. A quase 3m
imagens e documentos reflita uma sucessão de 2004, p. 188-189). Observa-se, deste modo, uma sis- são rodeadas pelos edifícios e incluídas nos pátios, de profundidade, foi encontrado um grande muro
mudanças rápidas num tempo curto, bem materia- tematização construtiva e uma harmonia de conjunto socalcados e divididos por muros cegos que contêm de implantação nascente / poente, de cronologia
lizadas no troço nascente desta artéria, na área de transformando esta rua numa artéria de ligação entre a encosta e funcionam como contraforte dos edifícios romana, que corresponderá, pela sua localização,
implantação do teatro romano. a “Baixa” e a “Alta” da cidade. a montante e a jusante. à área adjacente ao teatro romano. A construção do
A abertura da nova Rua de São Mamede, alterou, A abertura da nova Rua de São Mamede A nova artéria pombalina vem substituir o teatro nos inícios do séc. I d.C. obrigou a um grande
de forma decisiva, o urbanismo pré-pombalino. A procurou ordenar o emaranhado de ruas, vielas e anterior traçado medieval, desativando muitos dos projeto de engenharia que reformulou a topografia do
edificação dos vários prédios de rendimento que becos que preenchiam esta parte da cidade, de forma antigos arruamentos, como ocorre com o desapare- local. De forma a obviar o grande desnível existente,
ainda hoje, quase na sua totalidade, se podem ver, engenhosa e planificada, criando patamares que cimento da antiga Rua dos Cónegos e o Beco do tudo indica que se procedeu à construção de
apenas se opera tardiamente, após o enorme esforço detinham uma dupla funcionalidade: por um lado, o Leão, o Beco do Aljube, a Calçada do Quebra Costas grandes muros que criavam patamares que venciam
construtivo centrado na “Baixa Pombalina”. Decerto de vencer o desnível acentuado da colina; por outro, ou a Rua do Arco de São Francisco, entre outras. o desnível topográfico da encosta, formando terraços
que haverá alguma anterioridade na edificação de o de constituir uma pragmática solução do destino Todas estas vias, plenamente secundárias, implan- intermédios. Esta grande estrutura foi depois aprovei-
alguns destes imóveis, mas, na sua globalidade, a a dar às toneladas de escombros que, volvido muito tavam-se no sentido nascente / poente, constituin- tada, durante o século XIV e até ao século XVI, para
sua construção é atribuível aos finais do séc. XVIII tempo depois do cataclismo de 1755, ainda recobriam do-se como artérias que permitiam vencer o desnível suporte de outros muros, com a mesma implantação,
ou inícios da nova centúria. a cidade. de forma direta, ou contorná-lo, oferecendo ruas de que reforçaram esta função de contenção da encosta.
Os prédios com os nºs 5, 7, 15 e 17 desta rua, por Esta solução foi delineada de várias formas, de declive menos acentuado. Com a nova planimetria Entre o espólio recuperado, salienta-se o
exemplo, são precisamente iguais, tanto nos traços acordo com a dimensão e altura do declive a vencer. urbanística as vias mais íngremes foram suprimidas, conjunto cerâmico atribuível ao séc. XIV, onde foram
arquitetónicos como ornamentais, como acontece Na parte nascente da Rua de São Mamede - ou seja, passando a substituí-las outras mais largas, paralelas recolhidas cerâmicas comuns e fragmentos de
nas ferragens dos gradeamentos que enquadram no troço mais alto da rua - a solução adotada foi a da entre si, que vão sucessivamente contornando a coli- cerâmica vidrada de produção de Paterna, assim
na (Fernandes e Almeida, 2013, p. 111-122; Fernandes como uma taça Nazari (sul de Espanha).
et al., 2014, p. 19-33).
Com base no antigo Tombo de 1755… foi Rua de São Mamede nº 5 — B
possível reconstituir o urbanismo da área em redor
do teatro romano anterior ao terramoto de 1755. Em 2008 foram realizadas obras no r/c
Ocasionalmente observa-se a manutenção de alguns do edifício, contíguo ao Museu de Lisboa – Teatro
edifícios, como o do Aljube ou o atual Museu de Romano, tendo sido efetuada uma escavação
Lisboa – Teatro Romano. Na maior parte dos casos arqueológica prévia para permitir os trabalhos de
as pequenas artérias desparecem, alterando drasti- engenharia12. Era expectável, pela sua localização,
camente as áreas de circulação. Convém sublinhar que viessem a ser descobertos vestígios do monu-
dois dados curiosos: por um lado, a manutenção da mento cénico, tal como veio a suceder. Com efeito,
Rua da Saudade, sucessora do antigo “Beco do Bugio foi colocado a descoberto o muro do post scaenium
Com Saída”, que hoje permanece, e que coincide (que significa “por trás da cena”) que já havia sido
com o grande corredor do teatro romano por onde se detetado no interior do museu, confirmando-se assim,
fazia a distribuição dos espectadores pelas bancadas o seu prolongamento para poente.
(corredor designado por praecintio e que separava a Deste modo, confirmou-se a presença desta
Fig. 38 : Planta da imma cavea, ou bancada inferior, da media cavea). Por estrutura ampliando os 21m, registados no interior do
área envolvente ao outro lado, a mudança drástica que se observa nesta museu, para quase 30m de comprimento deste muro
teatro romano de
Lisboa anterior ao ter- planta foi a abertura, nos finais do séc. XVIII (em redor que, em época romana, suportaria a fachada cénica
ramoto de 1755 com do ano de 1798), da atual Rua de São Mamede. Esta e, simultaneamente, consolidava a encosta de grande
sobreposição das
alterações resultantes
artéria cortou os lotes pré-existentes, criando um pendente. É de sublinhar que esta estrutura apenas
da Reconstrução novo acesso de orientação nascente / poente onde,
Pombalina. (Desenho em época anterior ao terramoto, se assinalava um
em Sketchup, autoria 11. Intervenção arqueológica levada a cabo pelo Museu de Lisboa
de Carlos Loureiro /
acentuado desnível. – Teatro Romano (Lídia Fernandes e Marco Calado)
Museu de Lisboa). 12. Intervenção realizada por Clementino Amaro.

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se manteve até à atualidade devido à sua qualidade e Rua de São Mamede nº 9 — E que poderá corresponder ao antigo Beco do Leão
robustez construtiva, promovendo ao seu sucessivo ou Rua dos Cónegos da Sé, artérias pré-pombalinas
reaproveitamento ao longo do tempo. A fachada dos Este edifício, construído em meados do séc. XIX desativadas com o sismo de 1755. A oeste desta rua
edifícios nº 3 (onde hoje se instala o Museu de Lisboa tem uma história que se prende intimamente com a foi igualmente exumado um grande silo do período
– Teatro Romano) e do nº 5 aproveitou esta grande do próprio teatro. A sua manutenção, inclusivamente, islâmico, anterior àquelas estruturas. Merece ainda
estrutura romana para o assentamento das suas suscitou grandes dúvidas uma vez que se pensou especial referência a presença de um fuste de coluna,
fachadas sendo a presença desta pré-existência que inicialmente estar sobreposto à área abrangida pelo reutilizado no espaço com a função de suportar o
igualmente explica o facto de o leito da Rua de São monumento cénico. Em 1972, por ocasião de obras de sobrado do piso superior. Esta peça foi cedida ao
Mamede ser plano neste local. remodelação a realizar no interior daquele edifício, o Museu de Lisboa – Teatro Romano pelo proprietário.
proprietário do mesmo, António Guedes de Herédia, Neste local, terá funcionado durante algum
Rua de São Mamede nº 6 — C solicita parecer à Câmara Municipal de Lisboa no tempo uma oficina ou stand de automóveis, da marca
sentido de ser informado “… dos condicionamentos a “Mercedes Benz”, tal como é atestado pelos dese-
Em 1957, é demolido o imóvel nº 6, propriedade que o Projecto de alterações se deve sujeitar”14. nhos de letreiros a colocar na fachada que figuram
da Companhia dos Seguros, dando lugar ao prédio Em fevereiro do ano seguinte, é aposto à num pedido de autorização para afixação, datado
de traça, fisionomia e volumetria que ainda hoje informação camarária o parecer de Irisalva Moita, de 1936 e dirigido à Câmara Municipal de Lisboa,
podemos observar. Este imóvel foi adquirido pela então Chefe de Divisão dos Museus e Palácios (Arquivo Geral - AML). Esta função foi confirmada
Câmara Municipal de Lisboa em 1967 à Firma Cirilo Municipais, referindo que “Ainda que o prédio nº 9 no local, sendo que ainda se conservavam carris
e Irmãos S.A.R.L. e alberga atualmente as reservas da Rua de São Mamede (ao Caldas) não fique na instalados no pavimento indicando tal atividade. De
arqueológicas do Museu de Lisboa – Teatro Romano, lista dos prédios a demolir para pôr a descoberto o igual modo, no decurso das escavações feitas no
assim como o Serviço de Azulejaria do Museu de Teatro Romano de Lisboa, a grande proximidade a que local foi possível concluir que o r/c do nº 9 funcionou
Lisboa. Desconhecemos qual a funcionalidade ficará – no caso de não as atingir – (está previsto que como armazém de vidros16.
destes edifícios, no entanto, os dois pisos inferiores as ruínas atinjam o prédio nº 7 que lhe fica contíguo)
que têm entrada pela rua de São Mamede decerto levam-nos a pôr reservas quanto ao destino que lhe Terreno situado entre os nºs 16 e 8 da Rua
se destinavam a armazém pois possuem uma grande deverá ser dado no futuro. O problema, porém, não se de São Mamede — F
área na parte tardoz sem qualquer fenestração e a porá tão cedo”15.
área virada à rua, onde se rasgam janelas, também A partir de 1984, no entanto, nunca mais a Em 1901, encontramos, tal como hoje, um terre-
não possui compartimentação. questão da possível aquisição do imóvel, por parte no, situado entre os nºs de polícia 16 e 8 ainda que,
Prevê-se, futuramente, a realização de sonda- da Câmara Municipal de Lisboa, é colocada. Com à altura, ainda não estivesse construído o primeiro.
gens arqueológicas no r/c deste imóvel uma vez efeito, quando, nesta data, o proprietário solicita Esta área era então mais ampla, distribuída por
que se sobrepõe à parte poente do teatro romano: autorização para ocupação da via pública, a fim de dois patamares ajardinados, vencidos por escadas,
à plateia (orchestra) destinada à elite citadina e levar a cabo obras de conservação no dito prédio, ela que corresponderiam a quintais. A sul, um muro de
ao muro do proscénio (que separava a zona dos é imediatamente concedida não se fazendo sequer alvenaria delimitava este espaço com acesso à Rua
espectadores dos atores). alusão à possibilidade de demolição do mesmo. de São Mamede por uma porta, também registada
Este edifício foi intervencionado numa fotografia do Arquivo Municipal de Lisboa, onde
Rua de São Mamede nº 8 — D arqueologicamente em 1990 no piso térreo no se observa o troço da dita rua recém-inaugurada, com
âmbito da remodelação e adaptação do espaço a os passeios em “macadame” e o pavimento em terra
Desconhecemos qual a função que terá tido o uma galeria de arte designada precisamente Galeria batida (Fig. 41).
piso térreo do edifício nº 8, que confronta a nascente de Arte do Teatro Romano. As estruturas então Um segundo fotograma, datado do mesmo
com o terreno que ainda hoje permanece vago. Certo descobertas encontram-se ainda hoje visíveis, sendo momento, documenta os prédios nº 8 e nº 6, a
é que, ainda há alguns anos, quando foi realizado atribuíveis aos séculos XVII / XVIII e tendo sido nascente: o primeiro, tal como na atualidade, com
o acompanhamento arqueológico das obras de destruídas pelo terramoto de 1755. Duas paredes, o piso sobrelevado acedido a partir da rua, fachada
remodelação que aí se processaram, foi registado um sensivelmente paralelas, de orientação sudeste / e platibanda em azulejos e o segundo, mais baixo,
pequeno forno no canto sudeste do r/c e um banco noroeste, enquadram uma rua revestida a seixo rolado onde se observa um muro em alvenaria. Num segundo
em alvenaria que corria junto à parede e contíguo ao edifício, mais recuado, um barracão com dois pisos
forno que, decerto serviria para colocar e remover os era ocupado por uma oficina de fundição.
14. Folha I Processo 4450/OB/1972, deu entrada a 19 de junho de 1972
produtos cozinhados no local13 (Figs. 39 e 40). na Direção dos Serviços de Urbanização 1ª Repartição – Proc. de Obra nº
37741. 16. Intervenção arqueológica realizada em 1990 por equipa camarária e,
13. Acompanhamento arqueológico realizado pelo Museu Figs. 39 e 40 : Interior do nº 8 da Rua de São Mamede: forno e banco lateral 15. Folha II Processo 4450/OB/1972, Direção dos Serviços de Urbanização em 2006 pelo Museu de Lisboa – Teatro Romano (Lídia Fernandes e Victor
de Lisboa – Teatro Romano. e abóbada de tijolo. (Lídia Fernandes / Museu de Lisboa). 1ª Repartição – Proc. de Obra nº 37741) (Cap. 8.1 - Documento 1. Filipe).

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No período de tempo que medeia entre a Rua de São Mamede nº 11 — G
imagem anterior e a década de 1960, registam-se
alterações profundas na fisionomia deste espaço: é Desde a edificação dos imóveis da Rua de
construído o nº 16 da Rua de São Mamede, subtraindo São Mamede - algures entre os finais do séc. XVIII e
espaço a poente, e o imóvel localizado a norte, os inícios do séc. XIX – várias foram as renovações
junto à Rua da Rua da Saudade é demolido. Este impostas ao edificado que levaram ao aumento das
espaço será utilizado como vertedouro de terras, suas cérceas e ampliação das respetivas áreas
muito provavelmente na sequência da campanha conquistadas aos espaços de jardim. Foi o que
de demolições e reabilitação urbana que afetou boa aconteceu, a título de exemplo, no pedido feito em
parte dos prédios contíguos. 1913 para a construção de uma barraca de madeira
Uma outra imagem do Arquivo Municipal, para exercícios de ginástica no nº 11 (Arquivo Geral
datada de 1967, ano em que findou a intervenção nº 26685 - AML) no espaço onde, em 1938, irá
arqueológica no teatro romano por parte de Irisalva funcionar no r/c, jardim e 1º andar, a Escola Oficial
Moita, revela um tapume em madeira construído nº 115, a qual esteve em funcionamento até à década
no local (Fig. 42). Em 1961 já o nº 16 havia sido de 90 do século XX.
Fig. 43 : O mesmo terreno, na atualidade. (Lídia Fernandes / Museu de
remodelado, como se comprova por um pedido de Lisboa).
obras efetuado na década anterior. Rua de São Mamede nº 15 — H
A área não construída que ainda hoje
permanece entre os nºs 8 e 16 da Rua de São O nº 15 da Rua de São Mamede ao Caldas,
Mamede oferece uma vista agradável quando se foi igualmente objeto de intervenção entre 2002 e Rua de São Mamede nº 16 — I
enche de flores e vegetação. Quando se encontra 2003 na sequência das obras realizadas no imóvel e
despida, no entanto, são visíveis os desprendimentos respetiva construção de garagem. Aí foi identificada É a partir da década de 1940/50 que conse-
dos afloramentos rochosos daquela escarpa (Fig. 43). uma cisterna de grandes dimensões que abrangeu guimos obter uma melhor caracterização do
A fronteira nascente deste espaço coincide parte do terreno disponível, assim como um troço edificado, traduzida por um maior volume de docu-
com o limite do teatro romano. Ainda que da antiga Rua dos Cónegos, que deverá permanecer mentação resultante da constituição do Arquivo de
desconheçamos qual a topografia deste local há soterrada no tardoz do nº 918. Sublinha-se, igual- Obras da Câmara Municipal de Lisboa em 194319.
cerca de 2000 anos, decerto seria muito distinta da mente, o aparecimento de contextos datáveis da IIª Neste, é subjacente uma maior preocupação com a
atual. Calculamos que a parede exterior do hemiciclo Idade do Ferro (séculos IV e III a.C.). caracterização e alteração dos edifícios e com a sua
do monumento cénico tenha aproveitado estes Do nº 13 até ao final da rua (nº 19) observamos vocação habitacional e comercial.
afloramentos naturais para o seu assentamento17. que a solução construtiva adotada é distinta da que Os registos dão conta da existência de um
A década de 1960 dita novas remodelações na se observa nos edifícios a nascente (parte mais alta armazém da firma Aquino e Vaz em 1949 instalado no
Rua de São Mamede, quando Irisalva Moita promove, da rua). Com efeito, naqueles, os respetivos jardins nº 18, junto à ermida de São Crispim (Arquivo Geral
junto do então presidente da Câmara Municipal de estendem-se até ao final dos lotes, interrompendo-se nº 32966 – AML), assim como outros estabelecimen-
Lisboa, a compra dos edifícios sobrepostos às ruínas num enorme muro que estabelece a fachada para a tos comerciais que, em alguns casos, reservam o r/c
do Teatro Romano. Com efeito, desde a escavação Rua das Pedras Negras. A solução encontrada foi a e os primeiros e segundos pisos para o efeito. É o
do teatro romano na década de 1960 os trabalhos criação de um pano de muro cego que sustivesse caso do nº 16 da Rua de São Mamede onde, em 1952,
arqueológicos multiplicaram-se, tendo este mon- os terrenos, onde a grande extensão de terreno, funcionavam estabelecimentos comerciais nos três
umento constituído, a partir desse momento, uma corresponde a jardins na sua parte superior. Esta foi andares inferiores (Arquivo Geral nº 32599 - AML).
marca inequívoca na moldura urbana, condicionando a solução encontrada para a colocação das toneladas Intui-se, a partir destes documentos, uma maior
e alterando o edificado na Rua de São Mamede. A de escombros que tiveram que sair do local para dar
descoberta de novas estruturas arqueológicas, lugar aos novos edifícios e arruamentos resultantes 19. Na década de 40 do século XX, a Direção dos Serviços de Urbanização
a valorização de alguns imóveis, a partir de então da reconstrução citadina que se seguiu ao terramoto e Obras da Câmara Municipal de Lisboa, iniciou a constituição de processos
de obra, implementados no âmbito do processo de desenvolvimento do
regrada por condicionantes patrimoniais, determi- de 1755. Plano de Urbanização da Cidade de Lisboa. Neste contexto, as obras de
Fig. 41 : Fotografia de Machado & Sousa, datada de 1901, observando-se
naram o futuro urbanístico desta área citadina. o arranjo paisagístico do terreno. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/ iniciativa privada foram indiretamente incentivadas pelo programa de urba-
AMLSB/FAN/000753). nização traçado oficialmente (Brito, 2001). Só na passagem dos anos 30
para os anos 40, dada a dinâmica de expansão e urbanização iniciada em
Fig. 42 : Fotografia de João Brito Geraldes, datada de 1967 observando-se, Lisboa, foi sentida a necessidade de reunir toda a informação relativa a
17. Intervenção arqueológica realizada em 2006 pelo Museu de Lisboa – à esquerda, o tapume em madeira. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/ 18. Intervenção arqueológica realizada por equipa camarária e dirigida por cada edifício, nascendo assim aquilo que hoje é conhecido tecnicamente
Teatro Romano (Lídia Fernandes). AMLSB/AF/JBG/S00430). Rodrigo B. da Silva, por “processo de obra” (idem, 2001).

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presença de lojas e serviços no troço nascente da Rua de São Mamede nº 21 - Palácio de Rua de São Mamede nº 29 — N Um dos dados mais interessantes deste edifício
Rua de São Mamede e no gaveto formado por esta Penafiel — M diz respeito às caves que possui. Com efeito, se a
com a Rua da Saudade, zonas eminentemente habita- Também neste edifício, em 2009, por ocasião entrada do imóvel parece ser relativamente normal,
cionais e mais periféricas em relação às artérias mais Era neste palácio, antes do terramoto de de obras de remodelação interiores, foram feitas com os tetos altos e a arcaria pombalina, a porta
movimentadas. 1755, que funcionava o Correio-Mor do Reino, desde escavações arqueológicas tendo sido identificados lateral dá acesso a um patamar do qual se acede,
tempos de D. Manuel I. Terá sido o próprio Conde de contextos de ocupação medieval, concretamente do pelo lado sul, a uma extensa escadaria que conduz
Rua de São Mamede nº 17 — J Penafiel, proprietário do edifício após o cataclismo, século XII e talvez anterior. Destaca-se o aparecimen- ao saguão (Fig. 46). Do piso de entrada, pela Rua da
que terá sugerido à Câmara Municipal de Lisboa, em to de silos destinados à conservação de alimentos21. Madalena, até ao nível inferior do saguão, existem
Da década de 1950 data ainda a remodelação 1867, o topónimo para o largo defronte do palácio e O r/c deste imóvel funcionou durante muito dois andares, cada um com arcarias baixas (fig. 46).
do edifício nº 17, onde funcionou o Museu dos que hoje se mantém: Largo do Correio-Mor. tempo como armazém de sementes pertencente à Ainda que seja difícil apresentar uma correta
Correios e Telégrafos (Arquivo Geral nº 33552 - AML). A partir de 1798 foi extinto o ofício tendo sido firma “Jad Sementes”. implantação deste edifício no urbanismo anterior ao
O acervo que foi sendo reunido ao longo dos anos atribuído ao último correio-mor, Manuel José da Mata terramoto de 1755, provavelmente não seria muito
esteve na Rua de São Mamede, entre 1947 e 1954. de Sousa Coutinho, o título de Conde de Penafiel. distinto do então Largo do Conde de São Vicente. A
Data precisamente de 1947 o ano em que surge o É devido ao nome deste último que subsiste a Edifício da Junta de Freguesia – elevador da área de planalto, propícia à demarcação de um largo,
1º conservador afeto à coleção. Existem informações designação de Travessa da Mata, assim como a da Rua dos Fanqueiros / Rua da Madalena — O já o era em época anterior ao terramoto de 1755. O
de que foram feitas algumas visitas guiadas na Rua Calçada do Conde Penafiel. Em 1991 foram realizadas edifício em causa situava-se na confluência entre o
de São Mamede, tendo como orientadores das mes- escavações arqueológicas no jardim, feitas pela A adaptação deste edifício a elevador, obra limite nascente da Travessa que vai da Palma para o
mas o funcionário da portaria (que tinha sido carteiro) então equipa do teatro romano, tendo sido registado que decorreu entre 2011-2013, obrigou à escavação Largo do Conde de São Vicente e o próprio largo com
e alguns contínuos, pessoas muito dedicadas ao parte do antigo palácio, concretamente a sua entrada, prévia de algumas áreas. Trata-se de dois edifícios: o mesmo nome. Estes dois edifícios, o da Rua dos
projeto. O Museu dos CTT, como Museu propriamente que ostentava um belíssimo pavimento composto por um com entrada pela Rua dos Fanqueiros nº 170-178 Fanqueiros e o da Rua da Madalena, encontram-se
dito, só surge, no entanto, em 1967. O embrião da pequeninos seixos rolados pretos e brancos. com cinco pisos, e o edifício da Rua da Madalena posicionados no mesmo alinhamento nascente /
Rua de São Mamede, correspondeu à reunião de Durante os trabalhos de reconstrução da cidade, nº 149-151, implantado a uma cota mais alta e com poente. O tardoz do primeiro edifício corresponde
algum espólio cuja guarda e estudo esteve a cargo um eclesiástico, D. Thomaz Caetano de Bem, realizou cinco pisos, ainda que os dois últimos tenham sido ao tardoz do edifício da Rua da Madalena, facto que
da Direção Geral dos Correios e da Direção Geral dos em 1791, preciosos levantamentos de ruínas que acrescentados em momento posterior à edificação levou à decisão da Câmara Municipal de Lisboa para
Correios e Telégrafos20 . então apareceram durante as obras de reconstrução original. a instalação dos elevadores de acesso entre a Rua
do antigo Correio-Mor (o qual ficaria depois com a Fotografias antigas deste último edifício dos Fanqueiros e a Rua da Madalena, integrando-o no
Rua de São Mamede nº 19 — L designação de Palácio de Penafiel). Estes desenhos indicam que das três portas que hoje se abrem ao acesso pedonal “Baixa / Castelo”.
são hoje preciosos para perceber a implantação do nível do r/c, a do centro era originalmente uma janela. Em 1991, tivemos oportunidade de realizar um
Também da década de 1950 data uma solici- que foram as únicas termas públicas de época romana Esta, em data posterior a 1908, foi transformada em reconhecimento arqueológico na parte poente do
tação de Jorge Cardoso Pereira da Silva de Melo conhecidas, até ao momento, em Lisboa. porta como se confirma por fotografia datada entre atual largo Adelino Amaro da Costa (antigo Largo
e Faro, conde de Monte-Real, para a realização de Esta informação do séc. XVIII somente viria a 1898-1908 (Figs. 44 e 45). do Caldas). A propósito de obras de emergência
alterações no seu Palácio, sito no nº 19, construído ser confirmada em 1991-93 quando uma equipa do por dano de infraestruturas, foi aberto um enorme
nos finais do séc. XVIII, assim como para a construção teatro romano escavou o edifício situado na confluên- Desconhecemos qual a data de edificação do buraco para detetar os canos e efetuar a respetiva
de um edifício de raiz, segundo o mesmo estilo e cia da Rua das Pedras Negras nºs 22-28 e Travessa imóvel, ainda que a cronologia provável corresponda reparação . Uma enorme concavidade revelou
características arquitetónicas (Arquivo Geral nº 39513 do Almada. As obras de remodelação do local - que aos primeiros anos do séc. XIX, para o que terá inúmeras cantarias soltas, elementos arquitetónicos,
– AML). Neste mesmo palácio funcionará mais tarde, se destinavam a albergar uma garagem para o então concorrido o facto de o largo que lhe fica fronteiro - cerâmica de construção e níveis estratigráficos que
de 1977 até 2013, o Centro Social da Sé, na sequência Ministério das Obras Públicas – foram, mais uma vez, provavelmente contemplado desde o original projeto se relacionavam com a catástrofe ocorrida em 1755 e,
de um protocolo para esse fim assinado entre a sujeitas a escavação arqueológica prévia e permiti- urbanístico - ter funcionado durante os trabalhos de especialmente, com a reconstrução da cidade depois
autarquia e a SCML e o grupo de teatro amador A ram concluir que as ditas termas se prolongavam reconstrução da cidade, como estaleiro de obras. Em operada.
Gota, que ali ganhou direito de residência em 1974, para poente, por baixo da atual Travessa do Almada, local próximo terão existido os célebres Monturos de A cota por onde hoje circulamos foi significa-
após a comissão de moradores da antiga freguesia da atingindo parte do quarteirão contíguo. Designadas S. Mamede que aí permaneceram até época bastante tivamente alterada tendo aumentado cerca de 3m de
Sé o ter reclamado. Atualmente, o edifício foi vendido por Thermae Cassiorum, terão funcionado por longo tardia apenas sendo removidos e a área arranjada por altura.
tendo sofrido trabalhos de restauro e conservação no tempo uma vez que, por uma inscrição encontrada intervenção camarária, em 1865 (Castilho, 1937, p. 212
seu interior. no local por Caetano de Bem, se sabe que foram e ss.).
remodeladas em 336 d.C.
Atualmente funciona no antigo palácio de
20. Agradecemos algumas destas informações à Dr.ª Teresa Liz Beirão do Penafiel a CPLP (Comunidade dos Países de Língua 21. Intervenção arqueológica realizada por Rita Salomé e Marco Calado. 22. Intervenção realizada pelo Museu de Lisboa – Teatro Romano (Lídia
Museu das Comunicações. Portuguesa). Fernandes).

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Fig. 44 : Fotografia datada de entre 1898-1908 observando-se par-
te do Largo do Caldas e o edifício onde hoje se instala o elevador Fig. 45 : O mesmo edifício na atualidade (pintado a amarelo) Fig. 46 : A escadaria, numa perspetiva de baixo para cima,
de acesso à Rua dos Fanqueiros. (Arquivo Municipal de Lisboa, nº e onde hoje se situa a Junta de Freguesia de Santa Maria ou seja, de poente para nascente. (Lídia Fernandes / Museu
inv. PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/003838). Maior e o referido elevador. (José Avelar / Museu de Lisboa). de Lisboa).

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Do Teatro Romano à Cidade: usos e
reusos de um espaço, novas pessoas Sou Homem, nada do que é humano me é estranho
Terêncio
Maria Miguel Lucas
Arqueóloga. Colaboradora do Museu de Lisboa – Teatro Romano / EGEAC
Enquanto sítio arqueológico da capital portu- A construção destes elos é, aliás, um processo
guesa, o Teatro Romano de Lisboa documenta recorrente. O atual presidente da Junta de Freguesia
a herança cultural da Antiguidade Clássica e as de Santa Maria Maior, Miguel Coelho [entrevista
origens do fenómeno urbano no país. O potencial 2-07-2017], por exemplo, argumenta a coesão da
arqueológico e a implantação no cruzamento de vias freguesia de Santa Maria Maior pela sua coerência
romanas que definiram o centro histórico da cidade geográfica com o atual casco histórico, “corresponde
associam-se neste local, resgatando memórias grosso modo à parte da cidade medieval que
que recuam no tempo. Reaberto em 2015, o Museu crescendo a partir dos limites de castelo se conteve
de Lisboa - Teatro Romano integra um projeto nos limites da cerca fernandina”. Ninguém fica
museológico renovado que assume a missão de indiferente a uma narrativa onde se reconhece
apresentar as diferentes leituras do lugar que, pela como personagem na edificação da cidade romana
sua relação com um rio que se abre ao Mundo, foi até de Felicitas Iulia Olisipo: o Teatro Romano foi, ele
hoje ocupado por homens de todos sítios, em todos próprio, edificado por comunidades migrantes, tendo
os tempos. chegado até nós em resultado da posterior passagem
Todos estes testemunhos, materiais e imateri- de gentes que ajudaram a construir a sua história.
ais, são aqui interpretados à luz da multiculturalidade Mark Taylor (2013) defende ainda que, como
documentada na cidade ao longo de milhares de lugares onde as pessoas encontram um sentido
anos, uma diversidade que se considera essencial que identifica o seu modo de vida, os museus têm
transmitir à construção de todos os futuros. o potencial de se transformar em catalisadores
de mudança social. A utilização deste tipo de
Do Teatro Romano ao Museu estratégias é defendida por uma multiplicidade
de autores e escolas desde o advento da Nova
Numa sociedade globalizada que, paradoxal- Museologia em meados do século XX, para não
mente, insiste em valorizar a singularidade alicerçada recuar aos primórdios oitocentistas de alguns
no enraizamento identitário, os museus de cidade museus. As recomendações da UNESCO para a
distinguem-se pela forma como interagem com a implementação de boas práticas museológicas
metrópole que interpretam e desenvolvem estraté- traduzem, de alguma forma, o pulsar desses
gias museológicas que se afirmam pela coesão social. movimentos académicos e de opinião, surgidos em
Lugares centrais, a história das cidades faz-se pela diversos cenários de forma adaptada às diferentes
acumulação de migrantes que constroem a própria realidades mundiais. Podemos referir aquelas que
história alimentados pela esperança de melhor vida, mais se relacionam com a metodologia e filosofias de
prosperidade e segurança. intervenção que nortearam o programa museológico
Uns e outros se adaptam a um novo modo de do Museu de Lisboa – Teatro Romano e o projeto
vida, apropriando-o ou isolando-se, nem sempre por “Saudades da Rua da Saudade” que aqui se
opção própria ou consciente. Neste enquadramento, apresenta, como a Declaração de Santiago do Chile
a função social do museu sai reforçada ao apostar (1972) para a fundamentação de uma “museologia
no acolhimento, na integração e no desenvolvimento integral”, a Convenção para a Salvaguarda do
local através dum processo gradual de ligação Património Cultural Imaterial (2006) e a mais recente
à comunidade, a iniciar com a exploração dos Recomendação de Paris, para a promoção dos museus
elos de ligação entre o passado e o presente na e das coleções, da sua diversidade e do seu papel na
apresentação do acervo e temas a expor. sociedade (2015).

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A observação de uma paisagem urbana que o acumular de conhecimentos sobre um conjunto forma como se expõem os conteúdos que aborda. Foi no âmbito deste projeto que puderam ser
todos os dias se transforma determina a perceção de bens móveis e imóveis, materiais e imateriais O trabalho direto com os públicos a partir do conhecidas e identificadas algumas das pessoas que
das imagens e memórias como um bem cultural que proporcionam diferentes tipos de abordagens diagnóstico prévio das potenciais expetativas integram o projeto “Saudades da Rua da Saudade”.
escasso e valioso. Sendo um coletor dos passados temáticas no tempo e espaço da história. A de cada grupo é vital para alicerçar uma relação de O projeto “Saudades da Rua da Saudade”
que regista, conserva, estuda, interpreta, expõe exploração destes temas deve proporcionar o conhecimento e confiança com a comunidade e para pretende conhecer a comunidade e saber como é
e divulga, o Museu de Lisboa – Teatro Romano contacto direto com os objetos presentes em cada a construção gradual do valor cultural de um projeto por ela conhecido. É um projeto de recolha e registo
está consciente da função científica e social que núcleo museológico e abordar os seus múltiplos museológico. das imaterialidades (afetos, memórias) associadas
assume na (re)construção de narrativas e também aspetos, sentidos e significados, na perspetiva de às vivências da cidade, a começar pelo “bairro”
da importância da preservação de memórias contribuir para a sua apropriação consciente por Do museu dedicado ao teatro romano onde foi implantado o Teatro Romano. Pretende-se
sobre o/s passado/s recolhidas no presente. Para parte dos públicos. Os museus foram passando do à Cidade de Lisboa que se prolongue no tempo e no espaço permitindo,
esse efeito é necessário conhecer o acervo que enfoque no objeto para o enfoque nas pessoas, para além da paulatina caracterização social da
lhe cumpre preservar tanto como o meio urbano sobressaindo no século XXI aqueles que trabalham No conjunto de atividades que constituem comunidade vizinha (residente e temporária) a
e a comunidade de vizinhos em que se insere. com as pessoas (Holden, 2010), a começar pela o programa do Museu de Lisboa - Teatro partir do registo de histórias e memórias individuais,
O processo de colecionar memórias tem ainda a comunidade de vizinhos mais próximos e pela Romano, elegeram-se projetos que permitissem a identificação de eventuais parceiros de novos
vantagem de levar ao conhecimento das pessoas simultaneamente conhecer a comunidade dos programas de atividades a desenvolver no museu,
que as detêm, mapeando as suas histórias de vida, vizinhos residentes na área do Teatro Romano e suscitando o estabelecimento de relações
documento sociológico da maior relevância para a dar a conhecer o próprio museu e, naturalmente, privilegiadas entre o museu e a comunidade.
interpretação da cidade. Compete ao museu a função o sítio arqueológico musealizado. Dados os Acredita-se que através da criação de espaços
de produzir uma revisão da história que integra tais objetivos, considerou-se adequado investir de forma informais de diálogo e partilha, se poderá estimular
narrativas. Defende-se, assim, que os museus – numa predominante numa esfera informal de atividades, e reforçar a apropriação do museu como espaço de
época em que o mundo virtual ameaça substituir o opção determinante na programação de iniciativas sociabilidade por parte da comunidade residente,
real – devem assumir a responsabilidade social e como a “Hora de Baco” e o projeto “Saudades da Rua suscitando oportunidades para a recriação de laços
científica de recolher e estudar as (i)materialidades, da Saudade”. sociais de coesão entre os vizinhos. Por outro
salvaguardando-as da extinção. lado, enquanto agente de coesão social entre as
A recolha das histórias de vida por detrás Na “Hora de Baco” ensinam-se os auspícios comunidades e grupos que representa, o Museu
da cidade faculta ainda ao museu a possibilidade desta divindade do panteão clássico, associada de Lisboa - Teatro Romano espera contribuir para a
de preservar os valores que caraterizam a ao vinho, à alegria e às festividades (ao teatro e às melhoria da sua qualidade de vida, a par de outros
contemporaneidade, registando, para transmissão representações cénicas) e, com este pretexto dá-se equipamentos museais, como o caso do Museu de
futura, o seu pensamento crítico, consciente e / ou a conhecer o museu, aproveitando o terraço com Lisboa – Santo António, ou o Museu do Aljube. Neste
inconsciente. vista privilegiada sobre o rio Tejo e recriando o que sentido, a parceria estabelecida com a Junta de
Reconhecida a necessidade do estímulo acontecia em época romana. O local é o mesmo, a Freguesia de Santa Maria Maior constitui um aspeto
social no processo educativo, o Museu de Lisboa vista semelhante e a função repete-se: ir ao teatro determinante.
– Teatro Romano sabe que o humor, a emoção ou a traduzia-se também em oportunidade de reunião,
recreação lúdica são, mais do que nunca, ferramentas de festa, de conversas trocadas com amigos, Da Cidade ao Teatro Romano
essenciais ao sucesso e eficácia do processos de conhecidos e desconhecidos.
comunicação (Bruno, 2014, entre outros), registando- Não podemos esquecer que o vinho produzido O projeto “Saudades da Rua da Saudade”
-se uma tendência para a crescente valorização em época romana na Lusitânia seria exportado dedicou-se à caraterização do território museológico
dos contextos informais de educação, ainda que o para todo o império. O simpático patrocínio da do Museu de Lisboa – Teatro Romano, tendo
processo educativo recorra em diferentes graus à Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões resultado na definição (sempre artificial) de um
sua “trilogia formal” (formalidade, não-formalidade propícia igualmente estes momentos de encontro “bairro”: aquele que é reconhecido como tal pela
e informalidade). Esta tendência, juntamente com a e descontração permitindo a degustação de vinhos população do sítio em que se localiza. A escala
aposta na esfera da coesão social tem resultado na variados produzidos na envolvente da área de Lisboa. do território de abordagem foi balizada pelos
crescente humanização das práticas museológicas, Iniciado em Junho de 2016, o programa “Hora arruamentos periféricos à parte visível das ruínas do
entendendo-se que o acolhimento e a construção de Baco” foi capitalizando um público fiel, tendo teatro romano e do museu que as interpreta: Rua da
de ligações de proximidade são fatores essenciais atingido amplamente os objetivos iniciais: converter Saudade, Rua de São Mamede e a Rua de Augusto
Fig. 47 : Hora de Baco. Junho 2017.
à afirmação de um museu na cidade. (Fotografia de José Avelar / Museu de Lisboa). o museu num ponto de encontro para a recreação e o Rosa.
Os resultados arqueológicos de dezenas de Fig. 48 : Hora de Baco. Julho 2017.
lazer, criando hábitos da fruição do espaço inclusivé Numa cidade com vários equipamentos
anos de investigação e escavação possibilitaram (Fotografia de José Avelar / Museu de Lisboa). ao nível daqueles que habitam na sua proximidade. públicos, a mediação cultural e museológica deve

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passar pela humanização dos contatos. Quisemos que marca os seus trajetos diários para a Baixa ou do Ary. Depois vim morar aqui na Augusto Rosa, porque a Teatro Romano, que facilitava a sua circulação para
criar relações privilegiadas com os vizinhos do Teatro as perceções auditivas da cidade, pontuando o casa é maior e o espaço mais central. Tive que negociar a a zona alta e norte da cidade, até ao Castelo ou até à
Romano, não “para que comprem livros” [entrevista tempo ao toque dos sinos. Nenhuns se identificam renda com o senhorio, que então ainda desceu quase para Madalena e Martim Moniz. Mais uma vez a exceção
a João Pimentel da livraria Fabula Urbis] ou para que com o Castelo, verificando-se que a subida íngreme metade. Não saio daqui tão cedo” [Sofia Afonso Ferreira]. é Ronaldo Bonachi, por ser o mais antigo deste
necessariamente visitem o Museu, mas porque são através da Rua de São Mamede e da Saudade grupo (veio residir para esta zona de cidade em
eles os mais próximos. acentua as distâncias, anulando a proximidade A qualidade de morar no centro da cidade é 1993, vivendo na Rua de São Mamede desde 2003) e
Se dúvidas havia, este projeto conduzido espacial até com o Largo dos Lóios: “que já é outro suficiente para colmatar a dificuldade de estacio- porque, tendo uma profissão que o isenta de horários
pelo Museu de Lisboa – Teatro Romano pode mundo, completamente diferente” [entrevista a namento ou os problemas de trânsito entre o local rígidos, passeia muito a pé pela cidade, atento ao que
comprovar que, numa grande cidade, as relações de Manuel Aires Mateus]. Em contrapartida, todos se de residência e o de trabalho e justifica ainda o preço se passa no bairro que habita. Lembra-se ainda do
vizinhança são espacialmente muito circunscritas, identificam com a proximidade do Teatro Romano, alto das rendas ou das obras de requalificação: tempo em que esse percurso descendente entre a
limitando-se à área próxima dos que se encontram sítio que pontua o espaço de forma marcante, criando Rua de São Mamede e a Augusto Rosa estava aberto
na esfera social das vivências familiares - os que entre os habitantes da “parte alta” deste território “Eu estava sozinho e um amigo perguntou-me se e se passava com as compras para baixo, atalhando
têm filhos com semelhantes idades e atividades, uma perceção de pertença e apropriação que se queria partilhar a casa com ele e um grupo de estudantes. caminho.
os que fazem compras ou frequentam os mesmos torna identitária: “O Teatro Romano é nosso!” [como Chovia na casa e ainda estava instalado o antigo sistema A forma como os grupos de relações da “parte
locais de sociabilidade, ou dos trajetos profissionais, afirmam os entrevistados Sofia Afonso Ferreira, Sofia de energia a gás do século XIX. A campainha era um fio que alta e baixa” se relacionam entre si também é
salientando-se neste local os arquitetos, músicos, Pinto Basto, Ronaldo Bonachi, Carmo Gregório]. se puxava e fazia tocar uma sineta no alto da escada. Vim sintomática deste distanciamento. Se os primeiros
artistas, professores, na classe etária dos 30-50 anos Este foi outro padrão que emergiu das ver e vi a paisagem da janela. Disse-lhe logo que ficava estreitaram relações como novos residentes,
de idade. conversas conduzidas: a noção de vizinhança com ela para mim. Assinei o contrato e paguei a caução. investiram pouco em relações com antigos
Neste âmbito, competiu-nos conduzir as implica a de reconhecimento. São vizinhos os que À medida que os estudantes foram saindo, fiquei cá. Até habitantes do local, o que se deverá em grande
conversas junto da população de habitantes de se conhecem como tal num espaço de proximidade hoje” [Ronaldo Bonachi]. medida à implantação em relevo destes arruamentos:
primeira geração deste território já com o museu mutuamente reconhecida. Porque se nem sempre nesta parte alta, o único espaço nivelado de tipo largo
implantado. Percebemos, com alguma surpresa, que os vizinhos mais próximos visitam o museu “vai-se O estabelecimento de relações de proximidade ou praça, situa-se agora precisamente defronte do
o fator “antiguidade” no espaço permitia identificar adiando a visita porque se pode lá ir todos os dias” entre os vizinhos satisfaz todos os novos residentes, museu, sendo o próprio Teatro Romano.
um padrão de semelhança entre o museu e essa [entrevista a Manuel Aires Mateus], “a vizinhança é quer os da “parte baixa”, quer os da “parte alta” Os antigos residentes foram sendo substituídos
comunidade recente: quase todos os entrevistados proximidade, não é?... [entrevista a João Pimentel]. deste território: pelos atuais, sem que tenha sido criada uma solução
tinham vindo habitar o local a partir de 2001, Os entrevistados vieram, na sua grande maioria, de sociabilidade para o encontro de modos de vida
coincidindo a sua antiguidade de residentes grosso à procura de qualidade de vida, conscientes da “Fomos vindo muitos [quase todos arquitetos] para entre ambos (ausência de comércio de proximidade,
modo com a conclusão da instalação do museu. ligação identitária que querem manter com a história cá e fomos ficando próximos e até amigos. Saímos aos escolas, cafés ou outros locais de partilha espacial
Verificamos como museu e sítio arqueológico do tecido urbano. Procuravam a diferença de viver fins de semana e encontramo-nos geralmente para coisas quotidiana). Os antigos residentes geralmente não
se implantam entre arruamentos que definiam em casas caraterizadas por uma matriz antiga da relacionadas com os filhos. Da última vez que vi o email trabalham; os novos residentes não frequentam
diferentes freguesias na antiga divisão político- espacialidade interna (cérceas altas, compartimentos eram cerca de oitenta. Nunca pensei ter um grupo de os espaços de sociabilidade antigos da “parte
administrativa do concelho de Lisboa, estabelecendo amplos, janelas rasgadas sobre o rio ou sobre a amigos assim tão alargado em Lisboa” [Sofia Pinto Basto]. baixa”, (a Leitaria, a Sé, os bancos ao sol situados
os limites de fronteira entre as antigas freguesias cidade) inseridas no casco histórico mas passíveis na Rua de Augusto Rosa, os velhos restaurantes
da Sé, Castelo, Madalena e Santiago. A freguesia de adaptar aos novos usos domésticos: Verificou-se ainda que os residentes na “parte como “O Alpendre” ou “O Côura”), associada hoje
de Santa Maria Maior aglutina, desde 2012 aquelas baixa” e “parte alta” deste território construíram um à confusão turística de que tendem a fugir. Por seu
antigas freguesias, para além de Santa Justa e ”A Carmo queria uma casa com jardim (risos) não, grupo de relações de vizinhança que, em grande lado, os habitantes da “parte baixa” orgulham-se
São Vicente. O território museológico que agora já não conseguíamos viver nas Avenidas Novas. Era tudo parte, se exclui mutuamente: o relevo é, uma vez de incluir antigos e novos residentes no grupo das
analisamos não pertence a nenhum dos bairros muito impessoal, havia problemas com os vizinhos e mais um dissuasor da proximidade afetiva. Tal é a suas relações de vizinhança, partilhando locais de
legalmente delimitados na área do Centro Histórico acabámos por vir parar mesmo aqui” [João Pimentel]. sua ausência de relação territorial, que os “novos sociabilidade antigos.
(Chiado, Bairro Alto, Mouraria ou Alfama) e, embora residentes” da “parte alta” do território museológico A livraria Fabula Urbis, fundada por João
se situe nos limites entre o Castelo e a Sé, os “Eram, então, casas relativamente em conta para as não chegaram a ter noção da existência de uma Pimentel e Carmo Gregório, consegue hoje
habitantes da “parte alta” (Rua da Saudade / Rua de caraterísticas que apresentavam” [Manuel Aires Mateus]. escadaria de acesso público entre o Museu do Teatro funcionar como espaço de sociabilidade, uma vez
São Mamede) identificam-se sobretudo com a “Baixa Romano e o Museu do Aljube, um percurso encerrado que o investimento nas relações de proximidade e
da Cidade” (Chiado, Baixa, Campo das Cebolas), “Vinha do Bairro Alto que também era um bairro com a reabertura do Museu de Lisboa – Teatro vizinhança acabou por conquistar novos e antigos
para onde predominantemente se deslocam em histórico no centro da cidade, mas as casas eram mais Romano em 2015 que desativou esta antiga entrada residentes.
itinerários de compras, trabalho ou recreação. Por pequenas e não tinham esta vista de janelas tão amplas. que agora serve apenas como saída de emergência. Questionados sobre o processo de implantação
sua vez, os da “parte baixa” (Rua de Augusto Rosa) Aqui é mais caro, mas vale a pena e eu já podia pagar a Os habitantes da “parte baixa”, no entanto, do museu no local ou sobre as vicissitudes
deste bairro, identificam-se mais com a Sé, edifício diferença. Primeiro morei na Rua da Saudade, na casa lamentam bastante a ausência desse acesso ao associadas ao tempo longo da escavação do Teatro

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Romano, todos partilham memórias aprendidas a âmbito deste projeto, surgiram diversas propostas determinadas ao nível habitacional, social, económico é um dos objetivos do Museu de Lisboa – Teatro
esse respeito com antigos residentes no local, no de intervenção a este nível, passíveis de enformar e urbano na atual freguesia de Santa Maria Maior, Romano. O sucesso dessa estratégia depende muito
âmbito das suas formações académicas ou, outras projetos futuros. fizeram emergir novas formas de viver e sentir o da identificação de parceiros no território. A Junta
vezes, através da comunicação social. Não deixa de espaço definido pelas Ruas da Saudade, Rua de São de Freguesia de Santa Maria Maior, a escola Chapitô,
ser relevante ter a perceção que este processo não Existindo um processo de gentrificação em Mamede e Rua de Augusto Rosa. Essas diferenças a própria livraria Fabula Urbis, foram já sinalizadas
tenha passado despercebido entre a população da curso nesta zona central da capital portuguesa que ressaltam da conjugação dos resultados das nessa perspetiva, juntamente com aqueles que os
cidade. se carateriza pela predominância de uma população conversas havidas com novos e velhos residentes entrevistados sugeriram ao longo das conversas
A opinião sobre o sucesso e a qualidade do migrante cons-tituída mais pelos que a visitam do que deste território museológico. conduzidas.
projeto museológico é globalmente positiva apesar por quem nela se instalam é importante que o Museu António Firmino da Costa (também ele morador Apenas uma estratégia de programação
de crítica, traduzindo sempre a formação profissional alicerce formas de articulação de acolhimento à(s) e entrevistado em 1985), salienta a predominância de assente na articulação com a comunidade através
dos entrevistados: “O Teatro Romano é o sítio onde comunidade(s) em que se encontra inserido, através habitantes de Castanheira de Pêra, Pedrogão Grande do estabelecimento de parcerias com os atores
levamos as visitas” [Sofia Afonso Ferreira]; “Quando do tipo de programação que disponibiliza [entrevista a e Pampilhosa da Serra registados, nomeadamente, locais e em soluções de continuidade de projetos de
a televisão me pediu que desse uma entrevista Miguel Coelho; Presidente da Junta de Freguesia de nas antigas freguesias alfamistas de São Miguel proximidade poderá assegurar essa função.
na qualidade de residente estrangeiro em Lisboa, Santa Maria Maior]. e Santo Estêvão. Estes “velhos residentes” que, É também a história recente desta parte de
sugeri que a gravassem no Teatro Romano [Ronaldo habituados a um modo de vida rural, tinham Lisboa situada junto ao Teatro Romano que o Museu
Bonacchi]. Um museu e território renovados e vivos encontrado no ambiente de ruas estreitas onde os de Lisboa quer contar, feita das narrativas (felizes,
“É bom que haja o Museu e o Teatro Romano, vizinhos se defrontavam às janelas recriando na críticas ou de desilusão) de pessoas que participam
mas a cerca [o tapume que rodeia as ruínas] não foi A caracterização deste território museológico rua pública os espaços caros à sua sociabilidade, na atual construção, complexa e multifacetada, de
resolvida. É uma ruína coberta com uma estrutura foi construída a partir dos resultados do projeto mantiveram a sua ligação às terras de origem e, uma identidade em que o passado romano assume,
que não a dignifica. Já pensámos em juntar-nos e “Saudades da Rua da Saudade” e partiu do acabaram por voltar para lá. Alguns dos filhos destes, afinal, o importante e por vezes pouco consciente
propor uma solução adequada para a situação: ou conhecimento prévio detido sobre a “antiga nas décadas de 1980 e 1990, parecem não ter papel de ADN cultural.
aberta para dar visibilidade ao sítio arqueológico ou população residente”, compilados os diferentes sobrevivido aos males da grande cidade.
fechando-a. Mas assim não” [Manuel Aires Mateus estudos efetuados anteriormente na área (Costa, Os estudos de caraterização social
e Sofia Pinto Basto]. Existem, no entanto, outras 1985; Benis, 2011; Amaro, 2015). Deu a descobrir uma recentemente coordenados pela Universidade
perspetivas, como a referida pelos proprietários da população de “novos” moradores, aqui residentes Católica a pedido da Junta de Freguesia de Santa
Fabula Urbis ao afirmar que a nova solução gráfica grosso modo desde a instalação do então Museu do Maria Maior apanharam ainda as cinzas desse
feita pelo grafitter Gonçalo Mar é positiva: “Agora está Teatro Romano em 2001. fenómeno (Amaro, 2015), também observado no início
bem, deu qualidade ao local”. Como o museu, muitos habitam o bairro há do atual processo de gentrificação na análise de K.
Esta nova comunidade de residentes vê com pouco mais de vinte anos, tendo vindo juntar-se Benis (2011). Refira-se ainda o regresso ao centro
preocupação a continuidade dos seus descendentes, aos (cada vez menos) residentes mais antigos que histórico de antigos proprietários das casas, alguns
num meio onde escasseiam casas e os preços são a paulatina transformação das casas em alojamento pertencentes a uma antiga “fidalguia urbana” que
incomportáveis até para a sua situação económica, temporário ou investimento financeiro ainda não desistira de aqui residir uma vez que a estagnação
predominantemente mais alta e estável do que a obrigou a sair. A par dos turistas que procuram este das rendas da habitação levara ao desinvestimento
que caraterizava a realidade social dos antigos território de forma temporária, os que aqui pretendem na sua qualificação, provocando um estado de ruína
residentes: “Não sei se é preferível palácios residir de forma permanente são de nacionalidade e abandono reforçado pelo miséria social inerente a
magnificamente recuperados e vendidos a preços de portuguesa ou estrangeira e são atraídos pela uma população de baixos recursos económicos.
ouro a estrangeiros que não os habitam” [Sofia Pinto história, centralidade e caraterísticas cénicas António Firmino da Costa e José Rodrigues
Basto] “os nossos filhos não vão conseguir pagar do lugar. Esta opção de habitação permanente Miguéis contam, em diferentes registos, a forma
as casas aos preços que elas estão atualmente e resultou na criação de relações de vizinhança que, como os habitantes do centro histórico se
também já não há muitas disponíveis”. de momento, se caraterizam pela divisão em dois caraterizavam pela miscigenação entre pessoas
Relativamente à sua capacidade de grupos de solidariedade, como mencionado, e que o de diferentes proveniências sociais, económicas e
intervenção social, o Museu de Lisboa – Teatro Teatro Romano – entre a “parte alta” e a “parte baixa geográficas, misturando-se os antigos senhores com
Romano pôde verificar que a comunidade próxima do bairro” – simultaneamente divide e aproxima, os seus antigos criados, os velhos comerciantes com
de vizinhos é dotada de um grau de pensamento aglutinando as funções de fronteira administrativa, os que alimentavam o trabalho da estiva, da venda de
crítico que constitui um terreno fértil para trabalhar centralidade geográfica e elemento de identificação peixe ou dos negócios da restauração e turismo que
em projetos educativos, revelando os entrevistados cultural. então começavam a surgir.
estarem disponíveis para colaborar a esse nível. A evolução dos processos de gentrificação Encontrar formas de articular os velhos e
De facto, ao longo das conversas conduzidas no e reordenamento em curso e as rápidas mudanças novos residentes através de atividades culturais

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Novos desafios: a Junta de Freguesia Quando gostamos de apresentar Santa
Maria Maior, a nossa freguesia, como o coração de
primeiro presidente eleito da Junta de Freguesia de
Santa Maria Maior, mas também, e sobretudo, mérito
de Santa Maria Maior: um coração que Lisboa não nos limitamos a invocar uma fórmula de de todos os fregueses.
marketing inventada para a ocasião, mas falamos de Durante este tempo foi necessário trabalhar, e
não pode parar de bater uma realidade substancial. Com um território que trabalhar muito, no reforço das marcas identitárias da
une o Chiado, o Castelo, a Baixa, Alfama e Mouraria, nossa freguesia, fosse através do apoio incessante
podemos mesmo dizer que se isto não é o coração a instituições da sociedade civil e coletividades
Miguel Coelho de Lisboa, onde está o coração de Lisboa? A resposta populares, que tão relevantes serviços prestam à
não pode deixar de ser: obviamente, Santa Maria comunidade, às festas populares, às marchas, ao
Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior
Maior. Fado (realço a abertura da Casa Fernando Maurício,
A reforma administrativa de Lisboa, aprovada na Mouraria, mas também a promoção de inúmeras
em 2012 e pilotada pelo que é hoje o primeiro sessões abertas espalhadas por todos os bairros da
ministro de Portugal, com a redução do número freguesia ou o apoio ao Festival Caixa Alfama).
de juntas de freguesia, teve como um dos seus Mas também o reforço dos laços sociais e
objetivos centrais, o reforço do “músculo” dessas solidários, com iniciativas da Junta como a Mesa dos
entidades absolutamente cruciais no seguimento Afetos, a loja social, a distribuição gratuita dos livros
das políticas de proximidade, que são um escolares aos alunos da freguesia até ao 12º ano, o
instrumento essencial para uma eficaz resolução cabeleireiro e a barbearia social (proporcionando
dos problemas das pessoas. Esse reforço passou aos fregueses com menos recursos e / ou menos
por uma substancial transferência de competências mobilidade a prestação de serviços que contribuam
e de meios da Câmara Municipal de Lisboa para as para o reforço da sua autoestima), o apoio ao
Juntas de Freguesia, e teve como consequência empreendorismo (já com vários casos de sucesso),
uma nova divisão territorial que, cinco anos volvidos a Universidade Sénior, ou a simples reparação de
sob a sua aprovação e quatro anos sobre a sua passeios, tornando-os mais amigos das pessoas
efetivação, pode bem dizer-se que fez já um longo com mais dificuldade de mobilidade. Uma freguesia
e profícuo caminho. Um dos primeiros desafios que solidária, próxima das pessoas, e que cuida dos seus
se colocou às “novas” Juntas de Freguesia e aos é também um tremendo elemento aglutinador e que
seus eleitos foi certamente trabalhar ativamente reforça os nossos laços identitários.
naquilo que poderemos designar com o “patriotismo Gostaria também de destacar o serviço
de freguesia”, reforçando os laços identitários e prestado pela Junta de Freguesia com a oferta
aglutinadores entre quem vive nos seus diferentes diária de um conjunto de atividades de ocupação
bairros, ligando-os efetivamente ao novo território. para os mais novos e os cidadãos seniores de Santa
E desse ponto de vista, como primeiro presidente Maria Maior, que têm culminado em iniciativas tão
eleito da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, fortemente simbólicas e identitárias como as duas
não posso deixar de dizer, num balanço destes Mantas dos Afetos (expostas na fachada do edifício
primeiros anos, que já fizemos um caminho bem mais sede da Junta e que tanto impacto têm tido, não
longo e intenso do que os curtos anos podiam deixar apenas entre os nossos fregueses, mas também
antever. nos nossos visitantes) ou na montagem do maior
Hoje, bem pode dizer-se que Santa Maria Maior trono de Santo António de sempre (em 2016), que
– a freguesia e a “marca” - já é uma realidade que foi certamente uma das peças mais fotografadas
se entranhou, não apenas nos seus fregueses (que em Lisboa durante o tempo em que esteve exposta
rapidamente assimilaram e se apropriaram da nova no Rossio.
realidade), mas em todos os lisboetas e, atrevo-me Trata-se, pois, de um trabalho nas mais diversas
a dizer, em boa parte dos que (cada vez mais…) nos frentes com essa preocupação: fazer da Junta de
visitam, vindos de outras paragens. Freguesia um elemento aglutinador das nossas
Isso é, permitam que vos dê esta nota pessoal, gentes, ao serviço das pessoas, reforçando os laços
um motivo de grande orgulho para mim, como identitários de todas elas com Santa Maria Maior.

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Isso significa também estar ao lado das Cultura, do Museu da Arte Contemporânea do Chiado
pessoas e cuidar de manter neste território a sua ao Museu do Design e da Moda, na Baixa, do Museu
genuinidade e o seu caráter. É bom que se diga não de Lisboa - núcleos Teatro Romano, Santo António
há, nem haverá, Santa Maria Maior sem as pessoas e Torreão Poente, que foi território de vultos que vão
de Santa Maria Maior! Mas também nos orgulhamos e de Fernando Pessoa à Severa, Almada Negreiros
queremos acentuar a nossa natureza de um território a Fernando Maurício ou às atuais Marisa e Raquel
aberto aos visitantes, à diferença e à inovação, um Tavares. Aqui mora a Lisboa cosmopolita, popular,
espaço de tolerância e convivência. vibrantemente intercultural. Dos velhos costumes
aos novos hábitos, aqui mora o coração de Lisboa.
Uma freguesia que une o brilho dos teatros Sem “anatemizar” o turismo, que tem sido
São Carlos e São Luiz (no Chiado) ou o D. Maria II crucial (e continuará a ser) para o período de intenso
(na Baixa), das livrarias e cafés históricos e dos crescimento da economia de Lisboa (é preciso ter
restaurantes premiados e com estrelas Michelin, ao memória e lembrarmo-nos que, há apenas 10 anos,
comércio tradicional do Chiado e da Baixa, aos bairros por exemplo, a Baixa era um deserto, colocando
genuinamente populares de Alfama, Mouraria, Castelo sérios problemas de segurança noturna…), criando
e Sé. Uma freguesia que é território das Artes e da riqueza e emprego, há também que cuidar dos que
aqui vivem, dos que aqui querem viver (o que passa
por poderem sustentar economicamente as suas
habitações) com qualidade de vida e com direito
à sua intimidade e tranquilidade. Há, pois, que
trabalhar quotidianamente para encontrar o “ponto
de embraiagem” entre estes interesses. A tradição e
a genuinidade são também duas riquezas imperdíveis
da nossa freguesia. As nossas gentes são a sua maior
preciosidade e são elas que ajudam a fazer bater o
coração da cidade, Santa Maria Maior.

Fig. 49 : Rua da Saudade. Novembro 1965. Fotografia de Augusto


Jesus Fernandes (Arquivo Municipal de Lisboa, nº inv. PT/AMLSB/
CMLSBAH/PCSP/004/AJF/001786).

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Ficha Técnica
Organização
Museu de Lisboa, EGEAC, E.M.

Edição
Museu de Lisboa – Teatro Romano

Textos
Ana Cosme; Carolina Grilo; Daniela Araújo; Joana Gomes
Cardoso; Joana Sousa Monteiro; Lídia Fernandes; Maria
Miguel Lucas; Miguel Coelho; Rani Almeida; Rui Coelho

Depoimentos
Cecília Goucha; Domingos Goucha; Isabel Pereira; Ivone
Guimarães; Lúcia Gomes; Manuel Murteira; Manuela
Almeida; Maria do Carmo Santos; Raquel Florentino; Urbano
Torgo Rebelo

Fotografia
José Avelar
Lídia Fernandes

Design Gráfico
Sónia Teixeira Pinto

Produção Gráfica
loja.eu.com

Tiragem
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ISBN
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Depósito Legal
...

Colaboração / Apoios
Junta de Freguesia de Santa Maria Maior
Arquivo Municipal de Lisboa (Departamento
de Património Cultural)
Câmara Municipal de Lisboa

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