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EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS NA ESCOLA:

análise dos portfólios dos professores do campo/floresta


e indígenas da região do Médio Purus-AM

Ofélia Munhois Pereira1, Claudina Azevedo Maximiano2

RESUMO

Este artigo é resultado de pesquisa vinculada ao Observatório em Educação


do Campo/Floresta e Indígena da Região do Médio Purus (OECFIMP),
tendo por objetivo analisar o discurso produzido a partir das ações e
planejamentos dos professores do campo/floresta e indígenas apresentadas
em seus portfólios, trabalho final do curso de formação continuada
realizado em Canutama, Lábrea e Pauini, na região do Médio Purus, no sul
do Amazonas. Salienta-se que esses professores são os pesquisadores/
autores da produção dos portfólios. A metodologia adotada se pauta na
análise do discurso nos portfólios e entrevistas. Os resultados indicam que
os professores ressignificaram suas práticas didático-pedagógicas e a
relação escola-comunidade, com destaque para a aproximação dialógica
entre conhecimento científico e conhecimentos tradicionais.

Palavras-Chave: Autoria; Prática pedagógica; Metodologia; Salas


multisseriadas.

EXPERIENCES AND LIVING AT SCHOOL:


portfolio analysis of countryside/forest and indigenous
teachers of the Medium Purus-AM region

ABSTRACT

This article results from a research linked to the Observatory in


Rural/Forest and Indigenous Education in the Middle Purus Region
(OECFIMP - Observatório em Educação do Campo/Floresta e Indígena da
Região do Médio Purus), aiming to analyze the discourse produced from the

1 Graduada em Letras. Especialista em Desenvolvimento, Etnicidade e Políticas Públicas no


Amazonas. IFAM-ZL Manaus. E-mail: ofelia.jcam@gmail.com.
2Doutora em Antropologia. Professora do IFAM-ZL Manaus.

E-mail: claudina.maximiano@ifam.edu.br.
actions and planning of countryside/forest and indigenous teachers
presented in their portfolios, the final work of the continuing education
course held in Canutama, Lábrea and Pauini, in the Middle Purus region, in
southern Amazon. It is noteworthy that these teachers are the
researchers/authors of the portfolios. The methodology adopted is based on
discourse analysis of portfolios and interviews.The results indicate that the
teachers have re-signified their didactic-pedagogical practices and the
school-community relationship, emphasising the dialogical approach
between scientific and traditional knowledge.

Keywords: Authorship; Pedagogical practice; Methodology; Multi-serial


classrooms.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresentamos reflexões a partir do discurso dos


professores/autores do campo/floresta e indígenas participantes do curso
Aperfeiçoamento em Sala Multisseriada para professores das escolas
indígenas e do campo/floresta da região do Médio Purus, realizado nos
municípios de Canutama, Lábrea e Pauini, no sul do Amazonas.
A pesquisa desenvolvida se refere à análise dos discursos presentes
nos portfólios apresentados como trabalhos finais pelos alunos/professores
que participaram do citado curso, considerando-se que o portfólio é “[...]
uma coleção de suas produções (do aluno), as quais apresentam as
evidências de sua aprendizagem (do aluno) (VILLAS BOAS, 2010, p. 40).
Nos portfólios, os alunos/professores fizeram os registros das atividades
realizadas no contexto da escola, da comunidade/aldeia e da sala de aula,
produzindo narrativas de sua prática docente.
O curso Aperfeiçoamento em Sala Multisseriada está vinculado às
ações do grupo de pesquisa Observatório de Educação do Campo/Floresta e
Indígena da Região do Médio Purus (OECFIMP), projeto financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
A Figura 1 traz a localização da região do Médio Purus:
Figura 1: Localização geográfica da bacia do rio Purus-AM

Fonte: INPE, 2008.


Nossa investigação foi norteada pelas seguintes questões: como os
professores lidam com as estratégias de ensino e as metodologias de
aprendizagem do aluno em salas multisseriadas? Existe diálogo com
os conhecimentos tradicionais? Há espaço para criação das estratégias
metodológicas ou somente repetição do que encontra nos livros? Qual
modelo de educação norteia a prática dos professores?
Quanto à metodologia, adotamos a análise qualitativa, haja vista que
“[...] ela trabalha com o universo de significados [...] o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que
não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO;
DESLANDES; GOMES, 2011, p. 21).
Os procedimentos de análise se deram a partir da leitura
crítica/reflexiva dos portfólios, dos relatórios e entrevistas. Para tanto,
selecionamos um total de 28 portfólios, sendo 20 produzidos por
professores do campo/floresta e oito por professores indígenas,
pertencentes aos povos Apurinã, Jamamadi e Paumari. Para efeitos de
análise e critérios éticos da pesquisa, no sentido de resguardar a identidade
dos professores/autores que produziram os portfólios, esses instrumentos
foram classificados por letras, sendo: letra C, para identificar
campo/floresta; letra I, para identificar indígenas.
A análise dos registros foi pautada na leitura das linhas e entrelinhas
dos portfólios, considerando-se o contexto histórico-cultural no qual os
professores estão inseridos, a questão geográfica, a formação acadêmica,
entre outros fatores, o que nos possibilitou inaugurar o processo de
entendimento dos registros dos professores a partir das práticas narradas.
Tendo em vista os pontos abordados, organizamos o corpo deste
texto nos seguintes tópicos: O professor: autor ou “repetidor” de práticas
pedagógicas?; Metodologias e o fazer na sala de aula; Relação escola-
comunidade: entre o discurso e a prática. Por fim, apresentamos as
considerações finais.

PROFESSOR: AUTOR OU “REPETIDOR” DE PRÁTICAS


PEDAGÓGICAS?

Com base nas informações registradas nos portfólios, identificamos


os seguintes pontos: a elaboração do plano de aula, a pesquisa, a
metodologia e o diálogo com a realidade no contexto das salas
multisseriadas. Partimos da premissa de que o professor é pesquisador;
portanto, a vivência do planejamento e o cotidiano em sala de aula
produzem um processo reflexivo. Paulo Freire (1996), no livro Pedagogia
da autonomia, saberes necessários à prática educativa, afirma que
“ensinar exige pesquisa, não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino
[...] que enquanto se ensina continua-se buscando, reprocurando”
(FREIRE, 1996, p. 32). Para Fazenda (2002, p. 15-16), “o professor que
pesquisa é aquele que pergunta sempre, que incita seus alunos a perguntar
e duvidar”.
A partir dessa compreensão, buscamos verificar, nos portfólios, a
existência de registros que revelem a busca ou o exercício da pesquisa como
parte da práxis do professor, haja vista que “[...] a prática docente crítica,
implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre
o fazer e o pensar sobre o fazer” (FREIRE: 1996, p. 42). Concebemos que o
conhecimento do educador e a leitura do mundo nos possibilitam refletir
sobre a postura e a concepção de educação vivenciadas pelo professor.
A seguir, passamos à análise dos recortes de imagens apresentadas
nos portfólios selecionados. Observemos a Figura 2:

Figura 2: Casa de farinha

Fonte: Portfólio I/2022.


Nesse recorte de portfólio (Fig. 2), é possível perceber que o professor
indígena dialoga com os conhecimentos tradicionais do seu povo, constrói
seu plano de aula e explora situações do cotidiano da aldeia. Grupioni (2016,
p. 26) afirma que é relevante o ato de “registrar os conhecimentos
tradicionais indígenas, i.e., tornar-se ‘guardião da herança cultural’ de seu
povo, além de ser considerado parte integrante da atividade do docente
indígena”.
O professor indígena assume o papel de pesquisador. O ato de
ensinar, de compartilhar os conhecimentos tradicionais com seus alunos,
fortalece o processo de reafirmação da identidade étnica. Essa ação se
estrutura num contexto de esforço de pesquisa e na construção de
estratégias de ensino, revelando um professor-pesquisador, que reflete
sobre a importância da escola para a vida e para o futuro de seu povo. Essa
práxis demonstra uma perspectiva de educação que Paulo Freire (2019)
denominou como educação libertadora.
No processo de análise dos portfólios, também foi possível observar
perspectivas da educação tradicional, em que a postura do professor é de
reprodutor de conceitos e conteúdos que não dialogam com a realidade dos
alunos, conforme evidencia a Figura 3:

Figura 3: Alimentos saudáveis

Feijão tropeiro Dobradinha com feijão branco


Fonte: Portfólio C/2022.
O portfólio C demonstra que, ao abordar o conteúdo ‘alimento’, o
professor utiliza como referência para a aula alimentos que não dialogam
com a realidade da cultura alimentar de seus alunos; provavelmente, o
docente repetiu uma proposta que encontrou em um livro didático que
também não dialoga com a realidade dos alunos. Tal questão nos provoca a
pensar em duas possibilidades: 1) falta o entendimento quanto à
importância de se partir da realidade do aluno, posição que considera
importante um aprendizado contextualizado, carregado de significado; 2)
uma segunda possibilidade de análise aponta para uma prática
descontextualizada, em que o professor é um mero repetidor de conteúdos
ou de metodologias a que ele teve acesso, o que se distancia da perspectiva
apontada por Freire (1967):

[...] Na verdade, somente com muita paciência é possível tolerar,


após as durezas de um dia de trabalho ou de um dia sem
“trabalho”, lições que falam de ASA — “Pedro viu a Asa” — “A Asa
é da Ave”. Lições que falam de Evas e de uvas a homens que às
vezes conhecem poucas Evas e nunca comeram uvas. “Eva viu a
uva”. Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de
criação, capaz de desencadear outros atos criadores (FREIRE,
1967, p. 104, grifo nosso).
Pensando o processo de alfabetização como “um ato de criação”, o
diálogo com a realidade é fundamental para o professor, como autor, e para
os alunos, que passam a compreender o universo da leitura e da escrita a
partir de suas vivências cotidianas, facilitando o processo de aprendizagem.
Ter ciência de tudo o que está em seu território, que faz parte da sua vida,
leva a uma melhor compreensão do ato de ler e escrever.
O repetir/reproduzir - sem reflexividade - o que está nos livros
didáticos pode denotar fragilidades no contexto da política pública de
educação na região do Médio Purus, o que perpassa pela falta de formação
acadêmica e continuada, além da não existência de material didático que
dialogue com a realidade.
Ao longo da análise, foi possível verificar a ação do professor/autor.
Como afirmou um professor do campo/floresta, de Canutama: “produzo o
material para ser trabalhado em sala de aula e também faço a cópia de livros,
então assim faço uma junção do material que produzo e do que copio dos
livros”. A autoria, nesse sentido, se apresenta no processo de dedicação do
tempo, do planejamento para produzir o material que será utilizado em suas
aulas. Para o professor e pesquisador Cortelazzo (2008), a autoria não é
fácil, exige pesquisa e deve ser bem orientada desde formação do professor:

A autoria do professor é um longo processo e precisa ser


cuidadosamente planejado, organizado e gerenciado [...]
programas de formação de professores precisam promover
orientação para os professores produzirem conhecimento,
compartilhando sua aprendizagem, sua experiência, de maneira
coletiva e colaborativa. À autoria soma-se a tutoria, que pode, de
certa maneira, “alimentar” aquela função (CORTELAZZO, 2008,
p. 319).

Partindo dessa premissa, pensar a autoria do professor no contexto


da sala de aula se traduz em pensar no processo de pesquisa que resulta na
construção, iniciada com investimento na formação do professor, que irá
repercutir no processo ensino-aprendizagem dos alunos. O exercício de
elaborar o plano de aula, a busca/pesquisa de alternativas para
complementar suas atividades, a criatividade, que parte de elementos
presentes na comunidade, transformando-os em recursos didático-
pedagógicos, coloca o professor na condição de autor, atos criadores, como
afirma Freire (1967).
Na Figura 4, a seguir, apresentamos o registro de algumas páginas do
portfólio de um professor do campo/floresta, onde foi registrada uma aula
de Matemática, com a utilização de frutas e peixe para trabalhar os
conteúdos dessa disciplina. Os peixes, pescados pelo pai de um aluno, foram
divididos entre os moradores. O professor trabalhou com a identificação do
tamanho dos peixes e unidade com as frutas, demonstrando o controle sobre
a vida e os conhecimentos tradicionais da comunidade.

Figura 4: Aula de Matemática

Peixe (comparação de tamanho) Bananas (contagem de unidade)


Fonte: Portfólio C/2022.

O registro disposto na Figura 4 revela um intenso diálogo com a


realidade dos alunos, o ato criativo do professor em trabalhar conteúdos
relacionando-os com o cotidiano alimentar dos alunos, o que nos aproxima
da perspectiva freiriana de educação, já pautada nesta reflexão.
A mudança de postura na dinâmica da sala de aula revelada nas
páginas do portfólio está diretamente relacionada ao curso de formação
continuada ofertado pelo OECFIMP. Tal mudança revela a importância da
formação para aguçar a criatividade e a possibilidade de alternativas
didático-pedagógicas do professor no contexto da sala aula.

METODOLOGIAS E O FAZER NA SALA DE AULA

A leitura dos portfólios nos possibilitou observar que a dinâmica da


sala de aula é produzida de acordo com as possibilidades didático-
pedagógicas de cada professor. A falta de formação acadêmica ou
continuada fragiliza o processo de organização de conteúdo e planejamentos
das aulas. Nessa perspectiva, Maximiano e Galvão (2020) afirmam que:

Não basta ter escola na comunidade, é preciso que haja


investimentos na qualidade da ação educativa, para tanto, é
preciso investimento na formação continuada dos professores,
além de todo equipamento didático-pedagógico e tecnológico
para qualificar o processo de ensino-aprendizagem nas escolas
da zona rural do município (MAXIMIANO; GALVÃO, 2020, p.
10).
A formação continuada tem impacto direto na produção do discurso
e na construção de um processo de autoria. A respeito da formação
continuada do professor, Santana e Noffs (2019, p. 17) consideram que ela
“é de fundamental importância, pois contribui para a atualização dos
conhecimentos, repensar as estratégias de ensino, troca de experiências,
valorização profissional, exercício e construção da cidadania”. O professor
que teve oportunidade de participar de cursos de formação continuada e/ou
que tem uma graduação qualifica sua ação em sala de aula, tem mais
possibilidade de criar e não simplesmente reproduzir o que está nos livros
didáticos.
A experiência do curso de formação continuada do OECFIMP
apontou para essa direção, como afirmou um professor: "o curso ajudou
muito, eu deixei de colar atividades da internet, comecei a criar as minhas
de acordo com necessidade do aluno para avançar principalmente o ensino
da alfabetização” (PROFESSOR/Canutama-AM, 2022). Podemos dizer que
os registros presentes nos portfólios apontam para perspectivas criativas na
utilização de métodos de ensino e na criação de recursos pedagógicos. O
conhecimento adquirido no curso aguçou a criatividade do professor.
Foi possível perceber, ainda, níveis diversificados de compreensão
sobre métodos e postura de ensino no contexto da educação do
campo/floresta e educação escolar indígena, conforme ilustrado na Figura
5, a seguir:
Figura 5: Métodos de ensino

Fonte: Portfólio I/2022.


No que tange ao conteúdo dos portfólios analisados, identificamos
vários professores com uma postura tradicional, que organizam sua
dinâmica de sala de aula tendo como referência somente livros didáticos que
não dialogam com a realidade de seus alunos. Por outro lado, tivemos
também um significativo número de professores, principalmente indígenas,
que utilizam textos informativos, cartazes, colagem, materiais como
sementes e alimentos, trabalham com pesquisa de campo e brincadeiras.
Essa diferença de postura pode sinalizar que os professores indígenas, pela
própria organização do movimento social, têm pautado para as secretarias
de educação as especificidades relacionadas à educação escolar indígena;
entretanto, o mesmo não acontece no âmbito da educação do
campo/floresta, visto que os professores dessa categoria, na região, não
possuem nenhuma organização social.
Sobre o diálogo com a realidade dos alunos e conhecimentos
tradicionais, um professor apresentou, na dinâmica de suas aulas, o diálogo
com a comunidade, trazendo para os alunos elementos da sua cultura e
tradições. Essa atitude criou espaço para atividades de pesquisas em diálogo
com os saberes dos mais velhos, utilizando práticas do cotidiano como
metodologia para trabalhar a interdisciplinaridade. No caso dos professores
indígenas, salientamos que, em vários portfólios, apareceu o esforço de
valorização da língua indígena.
Destacamos a pesquisa como um elemento importante, pois
possibilita ao professor uma mudança de perspectiva didático-pedagógica,
resultando em atitudes que reverberam no aluno, que é também incentivado
a se tornar pesquisador. Por exemplo, um professor, morador da
comunidade, narrou que visitou uma casa de farinha de um pai de aluno
para saber como se produzia a farinha. Tal experiência foi incorporada ao
conteúdo, no contexto de resolução de problemas.
Vale salientar, também, que as narrativas/discursos dos professores
evidenciam que, a partir do curso de formação continuada, foi possível fazer
uma autocrítica dos fazeres cotidianos no contexto da sala de aula, como
demonstra a Figura 6:

Figura 6: Sala de aula

Fonte: Portfólio C/2022.

A partir dessa reflexão, o professor promove uma mudança de


postura e entendimento sobre a construção do processo de ensino-
aprendizagem.
Os portfólios apresentaram a questão da interdisciplinaridade, a
partir da proposição do curso de formação continuada do OECFIMP, ao
introduzir o trabalho com temas geradores. Paulo Freire (2013) diz que o
tema gerador surge através de uma discussão ao que se pretende abordar e
que tenha relação entre si:

[...] uma concretização, é algo a que chegamos através, não só da


própria experiência existencial, mas também de uma reflexão
crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens,
implícitas nas primeiras homens-homens, implícitas nas
primeiras (FREIRE, 2013, p. 121).
Portanto, os professores produziram planos de aula segundo temas
geradores que dialogam com a interculturalidade, com os saberes indígenas
e com as disciplinas do currículo, tais como: Língua Portuguesa,
Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Arte e Educação Física.
Foi recorrente o tema gerador ‘meio ambiente’, conectado ao cuidado com a
vida da comunidade.
Corroborando o aspecto da interdisciplinaridade, alguns professores
relataram que o fato de terem feito o curso de formação continuada os
ajudou a repensar a própria postura em sala de aula, como demonstram os
seguintes depoimentos:

[...] uma experiência gratificante e inovadora. Tive a


oportunidade de debater, aprender e trocar ideias sobre como
melhorar a qualidade do ensino trabalhando o multisseriado
(PROFESSOR/Sul de Canutama-AM, 2022).
[...] ajudou com certeza me deu, mas propriedade para trabalhar
temas geradores com as turmas (PROFESSOR/Canutama-AM,
2022).
Essas falas sinalizam a importância da formação na constituição do
professor-pesquisador-autor.
RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE: ENTRE O DISCURSO E A
PRÁTICA

A relação do professor com a comunidade é algo inerente à educação


do campo/floresta e indígena. A vivência cotidiana dos alunos, bem como as
histórias e conhecimentos tradicionais devem dialogar com os
conhecimentos da ciência ocidental. Para tanto, é importantíssimo que o
professor entenda que não é só o livro didático tradicional a sua fonte de
pesquisa. De acordo com um professor, é “através dessas pessoas mais
velhas que podemos absorver muitos conhecimentos tradicionais que às
vezes os livros não trazem” (PROFESSOR/Canutama-AM, 2022). Nessa
linha de pensamento, Grupioni (2006, p. 218) afirma que:

[...] os mais velhos sempre tiveram um papel muito importante


na transmissão dos conhecimentos aos mais jovens. São eles os
responsáveis pelo relato das histórias antigas, das restrições de
comportamento, das nossas concepções de mundo etc.
No contexto do trabalhar a interculturalidade na sala de aula, é
fortalecida a identidade cultural dos alunos, elemento singular para o
projeto de futuro das comunidades e povos tradicionais. Dessa forma, a
escola é um elemento importante para a vida desse grupo social. Nessa
perspectiva, ressaltamos a singularidade em se romper com o modelo
tradicional de educação, que não dialoga com a realidade e faz com que os
alunos não valorizem a cultura e as tradições de seu povo/comunidade.
No que tange ao envolvimento com a comunidades, ao longo dos
portfólios ficou evidenciado o esforço dos professores em fortalecer a
relação escola-comunidade, como podemos observar no seguinte excerto:

[..] A gente envolve a comunidade quando a gente faz reunião,


mutirões de limpeza, mutirões de plantio, por exemplo, tem uma
família que vai plantar hoje, a comunidade e alunos se reúnem e
vão porque eles têm que ficar ciente que é um tema que envolve
a educação (PROFESSOR/Lábrea-AM, 2022).
Na Figura 7, abaixo, temos o registro de uma reunião com os pais, em
uma escola do campo/floresta:

Figura 7: Reunião com os pais

Fonte: Portfólio C/2022.


Além das reuniões com os pais, os portfólios apresentam diferentes
ações que revelam a relação escola-comunidade, tais como: palestras
relacionadas à saúde e ao meio ambiente; datas festivas; cultivo de plantas,
dentre outras. Segundo Campos (2021, p. 32), “a participação comunitária
[...] na escola, exige que toda a comunidade se mobilize no sentido de buscar
alternativas para os problemas existentes a partir de discussões conjuntas
envolvendo pais, alunos, professores, funcionários e gestores”.
O envolvimento comunitário está no cerne do conceito da educação
do campo/floresta e indígena. Nesse sentido, entre as atividades
apresentadas nos portfólios, percebemos essa presença e/ou preocupação
com o envolvimento das comunidades/aldeias. Apontamos, porém, que, em
alguns portfólios, ainda foi possível perceber que a família é convidada a vir
à escola, para as chamadas reuniões, mas nem todas participam, denotando
um certo distanciamento escola-comunidade. Acreditamos que tal postura
aponta a importância de se continuar o processo reflexivo, a partir da
efetivação de formação continuada para os professores e gestores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os portfólios produzidos pelos professores do campo/floresta e


indígenas, enquanto um produto do curso de formação continuada
produzido pelo OECFIMP, nos possibilitou a reflexão sobre o professor
como autor, no contexto do seu fazer, de sua práxis em sala de aula, tendo
como referência o que foi discutido no contexto do curso sobre metodologias
de trabalho com salas multisseriadas.
Ao longo do curso, percebemos que a concepção de educação
tradicional era reproduzida por grande parte dos professores. Tal postura
foi perceptível na escrita e nas escolhas metodológicas presentes em alguns
portfólios. Desse modo, em alguns casos, fica silenciado o entendimento
sobre as especificidades da educação do campo/floresta e indígena. O curso
serviu para trazer à tona o debate sobre as especificidades dessas duas
modalidades de educação.
A partir desse contexto, apontamos que o curso provocou nos
professores a busca por dialogar com os princípios da educação do
campo/floresta e da educação escolar indígena. Foi possível perceber, em
vários portfólios, atividades que mostram o esforço de diálogo com os
conhecimentos tradicionais, a questão da língua e a busca do aprendizado
sobre como trabalhar com temas geradores e garantir a
interdisciplinaridade.
Os portfólios nos possibilitara a aproximação com as práticas do
cotidiano dos professores e, a partir da escrita/relatos, foi possível a
produção da reflexão sobre os discursos e produção dos professores do
campo/floresta e indígenas da região do Médio Purus. E, ainda, analisar a
postura dos professores no uso dos recursos didáticos-pedagógicos,
singularmente de livros didáticos, de âmbito nacional, e outros materiais
com conteúdos que não dialogam com a realidade dos alunos e da
comunidade.
Outro dado importante diz respeito ao trabalho com sala
multisseriada. Para além das dificuldades inerentes a esse modelo de escola,
foi possível verificar a busca por alternativas com novos métodos e técnicas,
a preocupação desses profissionais em conseguir ministrar uma aula que
estimule o aluno e o faça refletir sobre suas identidades étnicas e a
valorização das suas tradições.
Os portfólios evidenciaram os problemas advindos da infraestrutura
escolar e as alternativas encontradas pelos professores para o
enfrentamento desses problemas, revelando iniciativas criativas/autorais
que não se circunscrevem somente à questão didático-pedagógica: tais
iniciativas revelam que, no contexto amazônico, em especial na região do
Médio Purus, o fazer pedagógico, o concretizar a política pública de
educação, perpassa a força intelectual e física dos professores.
A realização desta pesquisa - no contexto do curso de Especialização
em Desenvolvimento, Etnicidade e Políticas Públicas na Amazônia - nos
leva a pensar a política pública de educação a partir do viés da diversidade
étnica-cultural-social e linguística dos povos das comunidades do
campo/floresta e aldeias indígenas, para refletir sobre a importância de se
pensar/planejar políticas públicas na área da educação, de modo que
respondam às necessidades e respeitem a diversidade de povos e
comunidades tradicionais presentes na Amazônia.
REFERÊNCIAS

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MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social:
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