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A construção
do fantástico na narrativa
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horizonte universitária!
“A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO
NA NARRATIVA
FILIPE FURTADO
temente, a construção do género. No último capítulo resumir- do fantástico, chegando, mesmo, a ser muitas vezes usada como
-seá as características essenciais do fantástico previamente equivalente a ele na língua em que M. R. James escreve, o
estabelecidas, procurando-se, ao mesmo. tempo, mostrar que o inglês. A segunda («narrativas maravilhosas») reporta-se, natu-
traço distintivodo género se manifesta tambémno plano semân- ralmente, ao género maravilhoso, enquanto a terceira («narrati-
tico de qualquer obra nele incluída, alastrando às coordenadas vas misteriosas») aparenta referir o género estranho. Final-
ideológicas que veicula. mente, «narrativas sobrenaturais» designa uma área muito mais
vasta em que. se inscrevem os três géneros anteriores, por
M.R. James, figura relevante do que foi provavelmente o vezes denominada «literatura do sobrenatural».
período mais fértil da narrativa fantástica inglesa * e, ao mesmo Tal indefinição reflecte, afinal, a tendência dominante
tempo, um dos autores mais rigorosos e organizados que o até há duas ou três décadas na abordagem do fantástico, ten-
género tem conhecido, mostrou-se quase sempre reservado e dência que, ao contrário do que se poderia supor, não desapa-
impreciso quanto à caracterização do.tipo de discurso, temática receu ainda por completo. Assim, atitude idêntica continua a
e outras particularidades técnicas dessa classe de textos lite- ser notória:em alguns trabalhos críticos recentes, como mostra
rários cujos segredos, contudo, dominava como poucos. A sua o prefácio de uma obra de Maurice Lévy* publicada pela pri-
atitude evasiva e reticente perante a eventualidade de definir meira vez em 1972:
objectivamente os traços e as formas próprias de organização
que condicionam o fantástico evidencia-se, por exemplo, no «Não se trata de propor nestas páginas uma defi-
- seguinte excerto: nição normativa, ou resultante de especulação teórica,
do. fantástico.Outros se dedicam. à ela, mais bem pre-
«Tem-me sido frequentemente pedido que formule parados do que nós: para. essa difícil tarefa.»
as minhas opiniões sobre as histórias de fantasmas e
as narrativas maravilhosas, misteriosas ou sobrenatu- Não é de espantar” tal atitude, já que muitos textos de
rais. Nunca cheguei a descobrir se tinha algumas opi- reflexão teórica sobre o género, mesmo prodúzidos por críticos
niões a formular. Suspeito, na verdade, que o género “que o conhecem profundamente ou por alguns dos seus cultores
é demasiado exíguo e especial para aceitar a imposição mais notáveis, parecem quase sempre apostados em atribuir-lhe
de princípios de grande alcance... A história de fan- um pretenso hermetismo, em acentuar nele uma alegada impe-
- tasmas é, no seu melhor, apenas uma espécie peculiar netrabilidade a análise, em vez de tentarem uma determinação
“de conto, estando sujeita às mesmas regras gerais que tão exaustiva quanto possível dos elementos e das forinas de
se aplicam àtotalidade das obras deste tipo,» * organização que o distinguem das outras classes de textos lite-
rários. Frequentementedestituídas de qualquer senso crítico,
"- Para além de, na prática, quase nada adiantar sobre o que tais apreciações ficavam-se, sobretudo antes dos anos 50, por
o autor: pensa do fantástico, este trecho-entra até numa clara uma avaliação subjectivista das obras do género, atribuindo
contradição: por um lado, considera-o demasiado «especial» muitas vezes um papel quase demiúrgico aos seus autores e
para:-se submeter à princípios impositivos, enquanto, por outro, esquecendo o facto evidente de queo fantástico (como qualquer
o encara apenas como uma forma particular do conto”, o que, outro tipo de textos, aliás):se alimenta. do 'alfobre comum que
pelo menos, implicaria a sua sujeição às normas que condício- são às Categorias litérárias, usando processos premeditados e
nam este. O texto citado começa, aliás, por evidenciar uma necessariamente discerníveis.
completa indeterminação quanto ao preciso objecto da sua Em termos muito gerais, é possível considerar duas ati-
análise. Com efeito, longe de referir um único género, esta tudes opostas” que polarizam em si a imensa maioria das
breve enumeração alude a três tipos diferentes de textos lite- orientações críticas de que o género tem sido objecto. A pri-
rários e àquilo que se pode considerar um grupo de géneros meira dessas vias limita-se muitas vezes à contemplação embe-
afins. Assim, de forma aproximativa, a primeira expressão vecida, emotiva e quase anagógica do fantástico e da sua
“(«histórias de fantasmas») corresponde a uma área importante temática mais habitual, não contribuindo significativamente
10 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA VIAS DE ABORDAGEM DO FANTÁSTICO q
para um melhor conhecimento dele, já que não se propõe tos e tem a certeza da sua existência, quando tais ocor-
caracterizá-lo de uma forma global. De facto, atém-se quase só rências surgem — desde que todos os outros elementos,
à referenciação de elementos dispersos: artifícios usados, efeitos isto é, o talento e a qualidade literária, sejam equiva-
por eles produzidos ou outros aspectos desintegrados do todo lentes—elas apresentam uma vitalidade e um bom
formado pelo género. Exemplo disso é a excessiva importância gosto quefaltam inevitavelmente e não podem ser atin-
atribuída a dados aleatórios, como os reflexos emocionais que gidos na narrativa de um escritor que usa o sobrena-
a obra porventura suscite no destinatário da enunciação, em tural como simples enfeite ocasional da sua ficção...» 1*
desfavor de factores constantes e intrínsecos, o que se revela
com clareza na seguinte afirmação de H. P. Lovecraft*:
Tal perspectiva, considerando que o talento de um autor
«... devemos julgar uma história sobrenatural não pelas de narrativas fantásticas aumentaria na razão directa da inten-
intenções do autor ou pela simples mecânica do enredo, sidade das suas crenças supersticiosas, é já por si suficiente-
mas pelo nível emocional que ela atinge no seu pont mente irracional para dispensar quaisquer observações. Porém,
mais insólito.» Summers leva-a mais longe, aplicando de forma implícita o
mesmo gabarito aos organizadores de antologias e aos críticos:
Em geral, esta corrente centra o seu interesse mais no
perfil do autor, no que supõe ser a génese da obra ou na dis- «Se eu próprio não estivesse convencido da reali-
cussão da índole e possibilidades de existência objectiva das dade palpável das aparições, se eu próprio não tivesse
manifestações insólitas nela encenadas, do que no texto em si. visto um fantasma, dificilmente poderia ter coligido e
Daí que o seu carácter subjectivo e particularizante leve com elaborado a introdução a The Supernatural Omnibus.» *2
frequência à discussão surpreendentemente calorosa e ingénua
de questões sem a mínima importância ou de falsos problemas Também H. P. Lovecraft, cuja teorização sobre o género
como o de tentar definir o fantástico pela reacção de medo * é de facto inferior em interesse e qualidade às suas narrativas,
que o texto é ou não susceptível de provocar. Porém, o mais aborda esta questão nos termos acima empregados por
curioso e debatido desses pseudoproblemas talvez seja o de Summers, embora, curiosamente, a decida de forma oposta:
considerar ou não a crença no sobrenatural uma qualidade
necessária ao autor de «boas» narrativas do género. Esta ques-
«... Os que acreditam em forças ocultas são provavel-
tão (completamente irrelevante do ponto de vista especifica-
mente menos eficazes do que os cépticos no delinea-
mente literário, mesmo que se admita o seu possível interesse
para um estudo de qualquer outra índole) é, por exemplo, mento do espectral e do fantástico porque para eles o
levantada e debatida por Montague Summers *º: mundo dos espíritos é uma realidade tão familiar que
tendem a referilo com menos temor, distanciação e
«Deveria o próprio escritor de histórias de fantas- emotividade do que quem vê nele uma absoluta e
mas acreditar neles?» assombrosa violação da ordem natural.» 3
«Pode um autor “invocar espíritos do outro mundo”
se estiver bem certo de que não há, de facto, quaisquer Porém, esta preocupação absurda em fazer depender a
espíritos para obedecer ao seu conjuro?» vigência de um género literário da superstição ou cepticismo
do autor não só não foi completamente afastada como ainda
Estas perguntas são, acto contínuo, objecto de uma res- hoje sobrevive em alguns textos críticos que a consideram,até,
posta categórica e definitiva: extensível ao leitor. Com efeito, em introdução a uma colectã-
mea recente de contos fantásticos, Raymond Rogé regressa à
«Creio que, nas histórias de fantasmas contadas convicção de que só o cepticismo do autor (e do leitor) garante
por alguém que acredita em aparições e assombramen- “a manutenção das virtualidades do género:
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. não se pode falar de literatura fantástica senão no James atrás citado), associando-o a espécies literárias tão varia-
caso em que nem o autor nem o leitor acreditam nessas das como o género maravilhoso, a «science fantasy», a «heroic
narrativas.» 14 fantasy», a própria ficção científica e as suas diversas moda-
lidades, as narrativas de horror e de terror (em regra, inte-
Este debate bizantino e outros solecismos similares que é gráveis no género estranho) ou,'ainda, certas maniieaiações
desnecessário referir tornam compreensível o marasmo em do grotesco.
que a investigação concernente ao fantástico e géneros contíguos A segunda átitude crítica perante o fantástico pressupõe,
se manteve até à segunda metade do século XX. As referências pelo contrário, uma análise objectiva do género e das formas
atrásfeitas visam sobretudo mostrar uma perspectiva que deve como é realizado pelas narrativas que nele se inscrevem. Aliás
ser inteiramente evitada por qualquer tentativa séria de com- as diferenças verificáveis entre estas duas correntes corres-
preensão do género. Ao mesmo temipo, dão uma ideia bastante pondem em grande medida à distância, por vezes imensa, que
aproximada do lastro de problemas ilusórios que a crítica desta separa a crítica impressionista e parafraseante das mais recen-
classe de textos literários tem arrastado consigo. tes tendências da análise textual. Com uma vigência ainda
— Isto não significa, porém, que, a par de propostas de evi- curta (os primeiros trabalhos que já a seguem apareceram na
dente inconsequência, alguns dos críticos que se- inscrevem década de 50), esta via de abordagem do fantástico tem sido
nesta corrente não tenham trazido contributos apreciáveis para sobretudo desenvolvida por críticos de expressão francesa, O
um melhor conhecimento do género. Opróprio Montague Sum- que, de qualquer modo, reflecte mais o avanço da crítica lite-
mers, por exemplo, foi um notável especialista em certas áreas rária em França do que propriamente a riqueza da sua litera-
do ocultismo, além de profundo conhecedor de narrativas fan- tura no que respeita a textos do género 'º. É nesta orientação
tásticas e de géneros próximos, bem como autor de uma obra teórica que se inserem os trabalhos de P. G: Castex, Max Milner
ainda hoje básica sobre o romance gótico 15, Também H. P. Lo- e; sobretudo, os mais recentes de Jean Bellemin-Noêl 2º.
vecraft desenvolveu (sobretudo em Supernatural Horror in Lite- Também certas abordagens de índole psicanalítica vieram,
rature 18, a sua única obra crítica de certo vulto) análises par- nas últimas décadas, trazer contributos muito válidos ao estudo
celares de grande argúcia sobre várias características do género da ficção fantástica, embora revelando ocasionalmente várias
a par de observações de teor manifestamente impressionista. das limitaçõesinerentes a tal percurso crítico. Assim, por um.
Já os trabalhos muito mais recentes de Roger Caillois e lado, evidenciam um interesse predominante, quando não exclu-
Louis Vax evidenciam a tentativa de superar as insuficiências sivo, pela caracterização psíquica e pela análise das possíveis
desta orientação crítica, embora reflitam ainda vários “aspectos perturbações de teor psicopatológico manifestadas pelo autor
dela 17, Algumas das suas constantes (exaltação duma pretensa através da enunciação. Por outro, torna-se notória a sua corres-
inefabilidade dascaracterísticas do género e defesa dum hiper- pondente desatenção no que toca àproblemática propriamente
-subjectivismo crítico) tornam-se visíveis neste texto de Louis textual, tanto na perspectiva da obra singular como na da
sua inserção na estrutura mais vasta do género cujos princípios
leva à prática. Porém, é incontroverso que esta orientação tem
«O fantástico, em si, não admite descrição a partir originado alguns estudos de grande interesse, não só no que
de um modelo, como acontece com um cavalo... Quanto respeita à análise de figuras ou fenómenos de índole pretensa
à sua essência... Ela não seria acessível senão a uma mente sobrenatural encenados por diferentes narrativas, mas
espécie de intuição intelectual ou mística que escaparia também no tocante à integração deles numa tipologia temática
a qualquer controlo e poderia variar de um sujeito susceptível de abarcar todas as suas variantes possíveis (reali-
para outro,» 8 zadas ou não) no fantástico é géneros contíguos.
Peter Penzoldt constitui o primeiro exemplo significativo
Aos evidentes erros e carências da abordagem que tem deste tipo de crítica: Em The Supernatural in Fiction ?!, apre-
vindo a ser referida soma-se a imprecisão em que geralmente senta um esboço de classificação de vários dos temas mais
envolve o conceito de fantástico (patente no- excerto de M. R. recorrentes em textos fantásticos, o qual, embora incompleto
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14 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
«Não é um outro universo que se ergue face ao Apesar de o qualificativo «meta-empírico» ser aquele que
nosso; é o nosso que, paradoxalmente, se metamorfo- com maior rigor ou, pelo menos, com maior aproximação, define
seia, apodrece e se tórna outro,» * o tipo de fenómenos atrás referido, por comodidade de expressão
empregar-se-á aqui um conjunto de outros epítetos de uso bas-
Deve, contudo, acentuar-se que a utilização desta temática tante corrente que, desde já, se convenciona considerar seus
na narrativa, embora indispensável ao fantástico, não é de equivalentes no. tocante à qualificação de tal fenomenologia:
forma alguma factor exclusivo dele. Com efeito, o emprego «sobrenatural», «extranatural», «meta-natural», «alucinado» ou
de temas sobrenaturais excede largamente o seu âmbito, sendo «insólito» 7; Contudo, convém deixar claro que expressões como
comum a uma grande parte da literatura de todos os tempos «sobrenatural» ou «extranatural» não garantem uma qualifica-
e tornando-se essencial a pelo menos dois outros géneros: ção inteiramente satisfatória dos fenómenos em questão, sobre-
o maravilhoso e o estranho. Assim, tanto estes como o fantás- tudo da sua relatividade e do modo variável como têm sido
tico se incluem numa área mais vasta da expressão literária, encarados em enquadramentos temporais e culturaisdiversos.
por vezes denominada «literatura do sobrenatural» devido a “Que a fenomenologia meta-empírica é sempre o elemento
nela se tornarem dominantes* os temas que traduzem uma temático dominante da narrativa fantástica evidencia-se tam-
fenomenologia meta-empírica. bém nó facto de as várias tentativas de sistematização dos
Antes de prosseguir com a análise das modalidades desta temas do género até hoje levadas a cabo não passarem afinal
temática usualmente encenadas no fantástico, torna-se conve- de descrições mais ou menos elaboradas dos vários tipos de
niénte um esclarecimento acerca do sentido aqui atribuído ao ocorrência extranatural que as obras encenam. Tal é patente
qualificativo meta-empírico*. Com ele se pretende. significar quer nas tipologias menos conseguidas de Penzoldt, Caillois ou
que a fenomenologia assim referida está para além do que é Vax, entre outros, quer nas que mantêm um: mais elevado
grau de abstracção e generalização, como é o caso da de
verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por
Todorov.
intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da
A importância desta temática reflecte-se ainda no emprego
mente humana, como através de quaisquer aparelhos que auxi-
da já referida expressão «literatura do sobrenatural»* para
liem, desenvolvam ou supram essas faculdades. Portanto, o
designar de forma genérica todas as obras que recorrem à
conjunto de manifestações assim designadas inclui não apenas
fenomenologia insólita e lhe conferem uma função decisiva no
“qualquer tipo de fenómenos ditos sobrenaturais na acepção desenrolar da acção. Por fim, tal importância revela-se também
mais corrente deste termo (aqueles que, a terem existência na globalidade da literatura pois, além de se tornar absoluta-
objectiva, fariam parte dum sistema de natureza completamente mente necessário ao fantástico ou ao maravilhoso e muito
diferente do universo conhecido), mas também todos os que, frequente no estranho, o recurso à temática sobrenatural na
seguindo embora os princípios ordenadores do mundo real, são ficção ultrapassa de longe as fronteiras destes géneros. De facto,
considerados inexplicáveis e alheios a ele apenas devido a erros muitas obras que nada: têm a ver com eles incluem parcelas
de percepção oudesconhecimento desses princípios por parte
da acção ou personagens de índole meta-empírica, ainda que
de quem porventura os testemunhe. Sobre este último aspecto, semcarácter dominante º.
recordêe-se que muitas ocorrências entendidas durante milénios
como sobrenaturais vieram, em etapas posteriores do desenvol-
vimento humano, -a ser plenamente compreendidas e, por: con-
Embora traduza sempre a paragem, violação ou subversão
sequência, racionalizadas, integradas no plano da natureza das leis que condicionam a matéria e a consciência ou dos
conhecida. Por outro lado, um conjunto de fenómenos inteira- nexos de causalidade existentes entre fenómenos de qualquer
mente explicáveis e naturais para determinada civilização pode tipo, a temática sobrenatural empregadaindistintamente nas
ser objecto de leitura sobrenatural por outra sociedade contem- diversas modalidades do discurso literário compreende nume-
porânea da primeira que se encontre num estádio uilfuiral: e rosas espécies de figuras e acontecimentos fictícios. Ora, entre
tecnológico muito mais atrasado º, a infinidade de variantes dessa fenomenologia imaginária, mui-
A SUBVERSÃO DO REAL 235
oo A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
«Neste lugar tinha existido outrora um mal mais necessariamente que dela se exclua por completo o sobrenatural
antigo do que a humanidade e mais vasto do que o. positivo. Porém, quando surge, este deverá ter uma intervenção
“universo conhecido.» 1º tão breve e discreta quanto possível. Assim, embora a sua
existência se torne por vezes manifesta na narrativa, nunca é
Pelo seu carácter predominantemente negativo, bem como directamente representado, quer se trate do Bem em abstracto,
pela sua influência determinante no desfecho da acção, o sobre- de uma figura divina ou de qualquer força indeterminada. A sua
natural encenado no fantástico e no estranho contribui para intervenção na história, com efeito, apenas se torna perceptível
estabelecer uma linha divisória entre o maravilhoso e estes através da influência que exerce no desenrolar da acção ou
“dois géneros. Neles, para além de negativa, a manifestação de quaisquer elementos simbólicos que porventura o repre-
insólita é ainda frequentemente irreversível e de consequências sentem. |
inelutáveis, conduzindo a um desenlace nefasto às forças posi- Outra distinção útil é a que se poderá estabelecer entre
tivas integradas na natureza conhecida. Já no maravilhoso, o o sobrenatural -de índole especificamente religiosa e a restante
sobrenatural pode ser indiferentemente positivo ou negativo, fenomenologia meta-empírica que, muito embora mantendo afi-
o mesmo sucedendo com os efeitos que porventura provoca nidades mais ou menos estreitas com certos aspectos das dife-
(a vara de condão da fada, por exemplo, tanto pode transformar rentes religiões, se pode considerar exterior ou, até, hostil a
o príncipe em monstro como este em principe). elas. O sobrenatural religioso corresponderá ao conjunto de
O: sobrenatural positivo, por seu turno, já se revela des- fenómenos (positivos ou negativos, mas estranhos às leis natu-
favorável à construção do fantástico por ser tradicionalmente . rais) propostos pelas velisites conhecidas como fazendo parte
considerado não como transgressor da ordem natural das coisas do real.
mas, até, como elemento coadjuvante, não raro decisivo, no Na sequência do que já se referiu atrás, torna-se "óbvio
ordenamento e no equilíbrio do real (o milagre que cura o que o sobrenatural religioso positivo não pode assumir uma
doente; a boa fada que ajuda a órfã; o génio benfazejo que posição dominante no conjunto da temática de qualquer narra-
repõe a justiça, etc.). Esta função, amiúde atribuída ao sobre- tiva fantástica pois a fenomenologia meta-empírica propícia ao
“natural positivo, de restabelecer na sua totalidade as leis da género deverá ser completamente alheia à experiência física
natureza é evidente, por exemplo, na fase final de Dracula de ou psíguica do destinatário da enunciação, o que inclui a sua
Bram Stoker, quando algumas personagens perseguem e acabam hipotética experiência religiosa. Deste modo, ainda de acordo
por aniguilar osobrenatural negativo materializado no monstro, com Louis Vax:
Uma: delas, Van Helsing, chega a compararessa perseguição a
uma Eru: «Deus, a Virgem, os santos e os anjos, assim como
os génios bons e as fadas benfazejas, não são seres fan-
«Assim, nós somos ministros de Deus por Suapró- tásticos.» 18
E pria vontade: para que o mundo 'e os homens pelos «O diabo é fantástico, mas a Virgem não o é...» 1º
"quais o Seu Filho deu a vida: não sejam entregues a.
monstros cuja própria existência constituiria um insulto Afinal, chega-se aqui uma vez mais à verificação de que
para Ele. Deus já nos permitiu redimir uma alma e nós o uso exclusivo ou predominante de elementos positivos (de
iniciamos a jornada como os antigos cavaleiros da Cruz índole religiosa ou não) na temática sobrenatural desfaz o peri-
“para: redimir mais. Como eles, Viajaremos na direcção clitante equilíbrio do fantástico na narrativa, originando uma
do sol nascente; e, como eles, se' cairmos, cairemos leitura que a remeterá, quando muito, para o género maravi-
por uma boã causa.» "
lhoso. Contudo, já não se torna nocivo o emprego de elementos
do sobrenatural religioso positivo se a sua intervenção no
Coino este excerto mostra, o factó de a fenomenologia desenrolar da história for superficial e episódica. Quando tal
meta-empírica de índole negativa ter uma- função dominante acontece, a sua função reduz-se quase sempre a antagonizar os
na temática desenvolvida na narrativa fantástica não significa elementos negativos da fenomenologia meta-empírica, dimi-
26 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A SUBVERSÃO DO REAL: 27
frequente-
nuindo-lhes o impacto ou anulando-os. Tal efeito é vando os olhos muito brilhantes na face morta que
nefast a que Os
mente traduzido na acção pela influê ncia para ele se erguia, ansiosa, à espera do seu consenti-
s exerc em sobre figura s ou
objectos de culto e os gestos rituai mento — fez um lento e largo Sinal-da-Cruz.
fenómenos maléficos *º.
o que O enforcado vergou os joelhos com assustada reve-
Constantemente verificável nas narrativas do géner rência: — Senhor, para que me experimentais com esse
omia Bem/M al
incluem elementos religiosos positivos, esta antin sinal?» 23
no conto fantás tico por-
ocorre também com muita frequência
tuguês, como observa E. M. de Melo e Castro: A propósito deste conto, porém, deve apontar-se que O
«Assinale-se o carácter moralista destes antagonis- carácter inócuo e positivo do morto regressado à vida dificulta
mos, em que ao primeiro termo está ligado o Mal ou em medida considerável a construção do fantástico, embora
condenação, e ao segundo o Bem ou salvação ou
des- a ausência de traços maléficos na figura meta-empírica seja
e
lumbramento. A influência católica em tais antagonis- parcialmente compensada pela índole macabra dela própria
patíbul o onde parte da acção decorre .
mos é evidente.» * do espaço em redor do
Assim, o predomínio do sobrenatural religioso só pode ser
Em A dama pé-de-cabra de Alexandre Herculano, por favorável ao fantástico quando evidencia um teor acentuada-
reli-
exemplo, abundam as referências à luta entre elementos mente negativo. Este princípio é verificável, de resto, tanto
giosos de índole positiv a e negativ a: quando a narrativa recorre às mitologias antigas, como quando
encena as das religiões praticadas na actualidade. Daí não ser
«Pois sabe que para eu ser tua é preciso esque-
eficaz, por exemplo, instaurar numa narrativa do género a figura
ceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava
de Zeus na sua condição «normal» de benevolente pai dos
em pequenino e que, estando para morrer, ainda te
deuses, embora já se torne admissível a sua inclusão se ele
recordava.»
«De quê, de quê, donzella? — acudiu o cavalleiro surgir como entidade sinistra e ameaçadora. De facto, não é
com os olhos chamejantes. — De nunca dar tréguas à raro o recurso a figuras da mitologia clássica quando revestem
mourisca, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou um carácter maléfico (como as Gorgonas, por exemplo) ou ambi-
bom christão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça valente (como Pã) 24. Contudo, mesmo uma divindade usualmente
damnada!» considerada positiva pode assumir um papel nefasto às perso-
«Não é isso, dom cavalleiro — interrompeu a don- nagens naturais, adaptando-se assim às exigências do género.
zella a rir. — O de que eu quero que te esqueças é O Tal procedimento pode ser exemplificado por La Vénus d'ile
signal da cruz: o que eu quero que me promettas é de Prosper Mérimée: a deusa do amor é aqui integrada na temá
que nunca mais has-de persignar-te.» tica fantástica como demónio feminino monstruosamente pos-
«A la fé que nunca tal vi! Virgem bemdicta. Aqui sessivo, sob a forma de uma estátua que mata o seu simbólico
anda cousa de Belzebuth.» —E dizendo e fazendo, e involuntário amante ?.
BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE. Nesta obra, como, aliás, noutras anteriormente referidas,
«Uil» — gritou sua mulher, como se a houveram se aflora o que, de facto, constitui a situação central encenada
queimado.» 22 em qualquer narrativa fantástica. Com efeito, não apenas a
estátua de Vénus do exemplo anterior mas todas as mani-
“Também o herói de O defunto de Eça de Queirós utiliza festações meta-empíricas negativas têm como objectivo funda-
a prova do sinal da cruz para se assegurar de que o enforcado mental a apropriação, a posse plena de uma vítima humana,
com quem fala não é um entre demoníaco: ainda que tal objectivo nem sempre seja alcançado. Nos textos,
essa apropriação pode revestir as mais diversas formas, variando
«Então D. Rui pensou de repente que bem podia desde a mera posse física (erótica ou canibalesca, por exemplo)
ser aquela uma traça formidável do Demónio. E, cra- ao domínio psíquico e à possessão demoníaca, envolvendo
A SUBVERSÃO DO REAL 29
oa A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
acentuadas alterações da personalidade da vitima e conduzindo meta-empírica aquilo que delimita cada um em relação aos res-
eventualmente à sua completa aniquilação. Assim, pode consi- tantes e; simultaneamente, estabelece a especificidade do fan-
tástico.
derar-se que a possessão constitui o elemento fundamental da
temática fantástica **. |
Por outro lado, embora evitando cair no exclusivismo de
Louis Vax («...o conto fantástico limita-se a utilizar para fins Notas
estéticos o fundo doutrinal do ocultismo» *”), não se pode deixar
de verificar que, em grande número de casos, os elementos 1 Embora não seja objectivo do presente estudo a análise
temáticos empregados pelo fantástico se integram no conjunto profunda de vários dos conceitos nele empregados, convém expor' de
forma sumária o sentido em que aqui se aplica a palavra tema. Este
de práticas, manifestações e figuras humanas ou monstruosas termo designará qualquer conceito de elevado grau de'abstracção e
relacionadas com.o ocultismo. Contudo, a fenomenologia meta- generalidade, expresso através de situações ou imagens é empre-
-empírica expressa pela temática fantástica decorre ainda de. gado como elemento de significação dominante (ou, pelo menos, de
grande relevo) ao longo de uma ou várias obras, geralmente com-
certas áreas limítrofes entre o sobrenatural propriamente dito binado com elementos de idêntico teor. Um tema realiza-se a partir
e os fenómenos conhecidos da matéria e da consciência. Essa da articulação e organização de diversos motivos. Por motivo, enten-
terra-de-ninguém corresponde à parapsicologia 2º, nomeadamente de-se aqui uma unidade de significação constituída por um conceito
à sua zona mais empregada no fantástico e no estranho, a de índeie concreta é particularizante (quase sempre expresso através
de situações ou imagens diversas), que se torna recorrente ao
chamada percepção extra-sensorial (ESP). Vários temas delas longo de uma obra e que, articulando-se com unidades similares, é sus-
decorrentes têm aparecido em narrativas do género durante as ceptível de contribuir para a formação de um tema. Assim, por
últimas décadas, embora a sua utilização seja mais frequente exemplo, o tema do «olhar» poderá ter realização objectiva numaobrá
em histórias incluíveis no estranho *º pois para essas ocorrên: a partir da combinação, dentro de determinados parâmetros, de diver-
sos motivos (olhos, óculos, cores, espelhos “vidro, água, superfícies
cias é amiúde apontada uma explicação racional que, anu- polidas', imagens distorcidas, etc.). Sobre o conceito de tema, veja-se:
lando-lhes o carácter meta-empírico, impossibilita a construção . A, J. Greimas e Joseph Courtés, Sémiotique — Dictionnaire raisonné
do fantástico. de la théorie du langage, Hachette, Paris, 1979, pp. 3935-394; Roger
Finalmente, sublinhe.-Se que, ao contrário do que se veri- Fowler (ed.), A Dictionary of Modern Critical Terms, Routledge &
Kegan Paul, London, 1976, pp. 195-196; Oswald Ducrot e Tzvetan
fica no maravilhoso, a: manifestação sobrenatural encenada Todorov, Dicionário das ciências da linguagem (Coordenação de
pelo fantástico não pode ser arbitrária, devendo manter uma Eduardo Prado Coelho), [Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1973,
certa coerência ao longo de toda a narrativa e conformar-se pp. 2688-269; Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature jontastique,
Seuil, Paris, 1970, pp. 97-106; Serge Dubrovsky, Pourquoi la nouvelle
aos princípios gerais impostos pela própria construção do critique, Denoél/Gonthier, Paris, 1972, pp. 119-121; Jean-Paul Weber,
género. Com efeito, por representar sempre uma pretensa fuga Genese de Poeuvre poétique, Gallimard, Paris, 1960, p. 13; Wolfgang
às regras fundamentais da natureza conhecida e pelo carácter Kayser, Análise e interpretação da obra literária (tradução de Paulo
aparentemente alucinado e caótico de muitos dos fenómenos Quintela), 2 volumes, Arménio Amado, Coimbra, 1958, vol. I, pp. 75-112.
Sobre «metivo», veja-se: Roger Fowler (ed.), 4 Dictionary of Modern
que encena, o texto fantástico tem de secingir a um grande Critical Terms, Routledge & Kegan Paul, London, 1976, pp. TT e 195;
número de imposições restritivas que fazem dele uma das cons- Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das ciências da lin-
truções mais condicionadas e menos espontâneas da literatura, guagem (coordenação de [Eduardo Prado Coelho), Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 1973, p. 268; Jean-Paul Weber, Genêse de Voeuvre
Ão longo do presente capítulo foram sendo. referidas |
poétique, Gallimard, Paris, 1960, p. 17; Wolfgang Kayser, Análise e
algumas dessas imposições no tocante à temática sobrenatural interpretação da obra literária (tradução de Paulo Quintela), 2 volu-
sempre dominante no fantástico. Porém, uma análise que se mes, Arménio Amado, Coimbra, 1958, vol. I, pp. 80-100. .
limite a fazer isso pouco contribui para o conhecimento do . 2 Roger Caillois, Au Coeur du funtastique, Gallimard, Paris,
1965, p. 161.
género, visto manter-se num plano que, já se acentuou, excede : Louis Vax, L'art et la littérature jantastiques, PU.F, Paris,
largamente o seu âmbito, constituindo, no mínimo, património 1974, pp. 6, 10-11 e 17, respectivamente,
tambémcomum ao maravilhoso e ao estranho. Dai a necessi- 1 Este termo é aqui usado em sentido idêntico ao que o forma-
dade de distinguir mestes três géneros unidos pela temática lista russo. Boris Tomáchevski lhe confere a respeito da caracterização
3l
30 A CONSTRUÇÃO DÓ FANTÁSTICO NA NARRATIVA A SUBVERSÃO DO REAL
The Gipsy (in Christine Bernard (ed.), The Fontana Book of Great
22 Alexandre Herculano, Lendas e Nurrativas, Livraria Ber- Horror Stories, Fontana Books, Glasgow, 1977). Relatando ocorrên-
trang, Lisboa, s. d., tomo IL, pp. 9-10 e 13-14, respectivamente (maiús- cias que se situam entre o sobrenatural e as manifestações de per-
cutas do autor). Ver tampem pp. 14, 18, 19, 23, 27, 31, 36, 37, 46, cepção extra-sensórial (sobretudo clarividência e precognição) sem
49, 50, 51, 02, 53. Embora, no conto, o sobrenatural religioso negativo as anular por qualquer tentativa de análise ou explicação racional,
predomine sobre o, positivo, este é representado frequentes vezes, a obra mantém até ao fim o seu teor fantástico. O mesmo se pode
23 Eça de Queirós, Contos, Lello & Irmão, Porto, s.d., dizer de The Fermin Child de Richard Blum, um caso de telepatia
pp. 2AL21Z ro rs, e clarividência por parte de uma criança (in Robert Aickman (ed.),
24 Cf. Louis Vax, Iart et la littérature fantastiques, PU.F, The Fifth Fontana Book of Greai Ghost Stories, Fontana Books,
Paris, 1974, p. !l: «Quanto aos deuses da Fábula, Pá, por exemplo, Glasgow, 1969). :
estes podem tornar-se fantásticos quando encarnam insuntos seiva-
gens» O emprego de figuras da mitologia classica ou de temática
com ela relacionada verifica-se em muitas narrativas do género, como:
La Vénus d'ille de Prosper -Mérimee (Larousse, Paris, 1969); The
Great God Pan de Arthur Machen (in Arthur, Macnen, Tales of
Horror and the Supernatural, Pinnacle Books, New York, 1976, vol. 1);
The Touch of Pan de Algernon Blackwood (in Algernón Blackwood,
The Dance of Death, Pan Books, London, 1953); The Stony'of à Panic
de E. M, Forster (in E. IM, Forster, CollectedShort Stories, Penguin
Books, Hatrmondsworth, 1965). rdeog Em
25 Cf. Prosper Mérimée, La Vénus d'Ille, Larousse, Paris, 1969.
O carácter maléfico da- estátua é sugerido de várias formas, como se
verifica pelos seguintes excertos; «3 um ídolo... Ela fixa-nos com os
seus olhos brancos.... Dir-se-ia que nos: desfigura com o olhar.»
(p. 21); «Ela tem um'ar maléfico... e é-o também.» (p. 22); -<... obser-
vei com surpresa a intenção evidenciada pelo artista de reproduzir a
malícia chegando até à malignidade.» (p. 32). Noutra fase da história,
a estátua tomba sobre a perna de um dos trabalhadores que a erguem,
fracturando-a (p. 22). Além disso, a própria, inscrição cave amantem
contribui para reforçar essa indole negativa, o que acontece também
com outras palavras gravadas no braço da estátua (pp. 34-35).
- 28 São bastante escassas as obras em que, mesmo parcial-
mente, se aborda a temática da narrativa fantástica: Peter Penzoldt,
The Supernatural in Fiction, Peter Nevill, London, 1952; Louis Vax,
Iart et la Nittérature juntastiques, P/U.P, Paris, 1974; Roger Caillois,
Images, Images... Corti, Paris, 1966; Tzvetan Todorov, Introduction
à la littérature fantastique, Seuil, Paris, 1970; Jean Bellemin-Noêl,
Des jormes fantastiques aux thêmes jantasmatiques, in Littérature
n.º 2, Larousse, Paris, 1971; Evelyne Caron, Struclures et organisation
de quelques tliêmes dans les oeuvres CArthur Machen, in Littérature
n.º 8, Larousse, Paris, 1972; Maurice Lévy, Lovecraft, Union Générale
dEditions, Paris, 1972.
27 Louis Vax, L'árt et la littérature fantastiques, P.U.F.,
Paris, 1974, p. 19. É 3 '
28. Cf, Parapsicologia, novos aspectos de velhos enigmas, anto-.
logia compilada e traduzida por M. S. Pomba “Guerra, Portugália,
Lisboa, i9T1. -
- 29 Contudo, muitas narrativas fantásticas encenam este tipo
de fenómenos. Exemplo disso é August Heat (in W, F,. Harvey,
The Beast with Five Fingers and Other Tales, J, M. Dent & Sons,
London, 1962), onde duas personagens experimentam .a precognição
do assassinato de uma pela outra, Também em Lord Mountdrago
de W, Somerset Maugham (in Whit e Hallie Burnett (eds.), 19 Tales
of Terror, Bantam Books, New York, 1957) é narrado um caso de
premonição onírica. Um outro exemplo é o conto de Agatha Christie
A PERMANÊNCIA DA AMBIGUIDADE 35
tante antinomia com o enquadramento pretensamente real em simultânea da sua subversão. Por isso, todos os recursos da
que a faz surgir, mas nunca deixando que um dos mundos narrativa devem ser colocados ao serviço dessa permanente
assim confrontados anule o outro, o género tenta suscitar e incerteza entre os dados objectivos e familiares que a expe-
manter por todas as formas o debate sobre esses dois elementos riência se habitou a apreender e a ocorrência, também apre-
cuja coexistência parece, em princípio, impossível. A ambigui- sentada como inegável, de fenómenos ou entidades completa-
dade resultante desta presença simultânea de elementos recipro- mente alheios à natureza conhecida,
camente exclusivos nunca pode ser desfeita até ao termo da
intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao género
mesmo que a narração use de todos os artifícios para nele a Do que já se referiu sobre a índole da ambiguidade fan-
conservar. tástica resulta óbvio que ela não constitui uma categoria pré-
De facto, a essência do fantástico reside na sua capacidade -existente a que a narrativa recorre, mas algo que apenas surge
de expressar o sobrenatural de uma forma convincente e de a partir da própria construção do género, resultando da acção
manter uma constante e nunca resolvida dialéctica entre ele combinada de diversos processos discursivos e não tendo, por-
e o mundo natural em que irrompe, sem que o texto alguma tanto, vida autónoma fora desse contexto. Com efeito, se o
vez explicite se aceita ou exclui inteiramente a existência de fantástico não pressupusesse a encenação simultânea de duas
qualquer deles. Em consequência, a primeira condição para fenomenologias de carácter antinómico, reflectindo mundos
que o fantástico seja construído é a de o discurso evocar a reciprocamente exclusivos, a ambiguidade não viria sequer a
fenomenologia meta-empírica de uma forma ambígua e manter surgir, devido à ausência de um dos termos em cuja oposição
até ao fim uma total indefinição perante ela. De contrário, não se fundamenta. Daí que, em boa verdade, o traço distintivo
poderão ter lugar as restantes fases de consolidação do género do género não seja mais do que o resultado de uma combina-
nem será assegurada a manutenção do delicado equilíbrio que tória específica de certos elementos também usados, embora
pressupõe. com formas e tipos de organização diferentes, noutras áreas
Esse debate sem solução terá de ser constantemente sus- da literatura.
citado ao longo da narrativa, pelo que todas as suas estruturas Assim, para além das funções particulares que porventura
deverão ser organizadas e articuladas de forma a servi-lo. É dele desempenhem no contexto de cada narrativa, todos esses ele-
que resulta, antes de mais, o carácter intensamente antinó- mentos são nela organizados de modo a propiciarem a cons-
mico* que a arquitectura do género deixa evidenciar a cada trução do género, desenvolvendo, portanto, uma influência mais
passo. Com efeito, para além da oposição básica entre o mundo ou menos acentuada na reiteração e ampliação do debate que a
empírico e o mundo meta-empírico, qualquer narrativa fantás- natureza ambígua daquele suscita.
tica faz surgir e mantém uma série de elementos contraditórios Para tal, torna-se indispensável, em primeiro lugar, o
da mais diversa índole, como: «real»/imaginário; racional/irra- empregode diversos processos destinados a conferir plausibi-
cional; verosímil/inverosímil; transparência/ocultação; espon- lidade à intriga em geral e, muito particularmente, à manifes-
taneidade/sujeição à regra; valores positivos/valores negati- | tação meta-empírica nela encenada. Também o destinatário
vos, etc. Os termos destas e de outras antinomias recorrentes imediato da enunciação, o narratário *, tem aqui uma função
no género são longamente debatidos, avaliando-se em regra as relevante, não só por constituir um importante factor de orien-
probabilidades a favor ou contra cada um. Porém, longe de se tação para o leitor real, mas ainda por estar sempre presente
decidir por um deles, a narrativa fantástica deixa permanecer no discurso. Muitas vezes, contudo, essa presença apenas se
a dúvida, nunca definindo uma escolha e tentando comunicar verifica de forma implícita, chegando a ser tal o seu apagamento
ao destinatário do enunciado idêntica irresolução perante tudo que o papel a ele atribuído na transmissão da ambiguidade ao
o que lhe é proposto. destinatário extratextual do enunciado passa amiúde desperce-
O discurso fantástico tem, assim, de multiplicar esforços bido. Por isso, muitas das linhas fundamentais da função do
no sentido de apoiar o desenvolvimento constante desse debate narratário são, como adiante se focará, frequentemente cum-
que a razão trava consigo própria sobre o real e a possibilidade pridas pelo narrador * com igual ou maior eficácia. '
58 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA “ À PERMANÊNCIA DA AMBIGUIDADE . 39
1
Por seu turno, as personagens são muitas vezes os elemen- «Eu começava a ficar confundido. Ele enchia-me
tos mais adequados a acentuar a ambiguidade e, sobretudo, à de' tal forma o pensamento com a sua lista de excen-
suscitar uma leitura que areflita, particularmente pela forma tricidades da natureza e impossibilidades possíveis que
como reagem perante tudo o que a acção lhes destina e pelo a minha imaginação começava a inflamar-se. Tinha a
esquema de relações (característico do género, como se verá vaga ideia de que ele pretendia ensinar-me qualquer
adiante) em que são integradas.Oseguinte exemplo, retirado coisa, como, há muito tempo, costumava fazer no seu
de um conto de Arthur Machen, mostra como as reflexões escritório de Amesterdão. Nessa época, porém, costu-
de uma personagem podem ser empregadas para expressar a -mava dizer-me-de que assunto se tratava, para que eu
perplexidade perante o sobrenatural: tivesse desde o princípio uma ideia clara sobre o
objecto do seu pensamento. Mas, neste momento, em-
«É demasiado incrível, demasiado monstruoso; tais
“bora o quisesse seguir, sentiame sem essa ajuda. Por
coisas não podem existir neste mundo tranquilo, onde
isso, disse: — «Professor, deixe-me voltar a ser o seu
homens e Mulheres vivem e morrem, lutam e vencem,
discípulo preferido. Diga-me qual é a tese em questão
ou talvez falhem e caiam de pesar e angústia, e sofram para que eu possa aplicar o seu conhecimento à medida
estranhos destinos ao longo dos anos; mas não isto, “que avança. Por agora, o meu pensamento vagueia de
Phillips, não coisas que se assemelhem a isto. Tem de
um ponto para outro, tal como um louco segue uma
haver alguma explicação, alguma forma de fugir ao idéia é não como um homem racional-o faria. Sinto-jne
terror. Então, homem, se um tal caso fosse possível, como um principiante movendo-se com dificuldade atra-
a nossa Terra seria um pesadelo.» * vés dum pântano no meio do nevoeiro, saltando de
Outro excerto (ainda de uma narrativa do mesmo autor) um .tufo para outro, apenas no esforço cego de conti-
mostra a utilização do diálogo entre personagens para tentar nuar a avançar sem saberpara onde vou.»
«Essa é uma boa' imagem», disse ele. «Bem, vou
conferir maior relevo à hipótese: meta-empírica, cuja -proba-
bilidade se pretende sugerir ao receptor real do enunciado: : dizer-lhe, 'A minhatese é esta: eu quero que acredite.»
«Que acredite em quê?»
«... eu queria saber se você pensaseriamente que | «Em coisas que considere impossíveis.» *
há algum fundamento factual quanto a essas fantasias. — Oexemplo anterior mostra ainda que o narrador coinci-
Não será isso apenas uma manifestação de poesia, um dente: com uma personagem será talvez, quando bem utili-
sonho curioso que o homem se permitiu?» zado, o elemento mais próprio a insinuar-se junto do destina-
«Apenas posso dizer que é sem dúvida melhor tário da narrativa de modo a conduzilo à perplexidade perante
para a imensa maioria das pessoas rejeitar tudo isso as. ocorrências nela encenadas. Adiante discutido com maior
como se fosse um sonho. Mas se você quer saber a mi- detalhe, o narrador-personagem consegue geralmente tal objec-
nha verdadeira opinião —ela é diametralmente oposta. tivo, quer através das constantes intervenções no discurso que
Não, eu nem sequer devia dizer opinião, mas, antes, lhe,podem ser atribuídas enquanto sujeito da enunciação, quer
conhecimento.» ” pela própria actuação que é susceptível de desenvolver na his-
tória se nela for instituído como actor.
Ocasionalmente, certas obras tornam ainda mais transpa-
rentes os artifícios que usam, mostrando com clareza através
das personagens o tipo de leitura obediente que pretendem . Para se adiantar algo mais sobre o teor da ambiguidade
suscitar. Neste exemplo(retirado de Dracula de Bram Stoker), essencial ao fantástico, convirá regressar por momentos à deli-
utiliza-se um diálogo em que, recorrendo ao argumento da mitaçãoatrás estabelecida entre aquele género, o maravilhoso
autoridade, uma personagem provoca no interlocutor o estado e o estranho. Verificou-se que a diferença básica entre eles
de adormecimento da razão a que se pretende conduzir o resulta das respectivas atitudes face ao debate entre a razão e
destinatário real do enunciado: o seu oposto que o surgimento da fenomenologia meta-empírica
40 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERMANÊNCIA DA AMBIGUIDADE aço 41
suscita. Assim, enquanto o maravilhoso se decide por um ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras evo-
mundo arbitrariamente alucinado sem aventar os motivos da cados. Por isso mesmo, como todas as outras características
sua escolha, o estranho mantém a incerteza durante um certo do género (a começar pelo tratamento, que lhe é específico,
tempo, acabando por negar a existência de qualquer fenómeno da própria temática meta-empírica), a função do narratário
alheio à vigência das leis naturais. Nenhuma narrativa neles terá de subordinar-se, servindo-a, à ambiguidade fundamental
integrada deixa, pelo menos no final, qualquer dúvida sobre que o texto deve veicular.
o tipo de universo que encena. Só o fantástico não propõe O carácter ambíguo de tudo o que a narrativa fantástica
qualquer saída para o debate, antes ampliando a indefinição encena foi já objecto de referências ocasionais por parte de
ao fazer-se constantemente eco dela. Estas diferenças que alguns autores, pelo que a sua abordagem aqui não constitui
demarcam entre si os três géneros também se evidenciam, propriamente uma novidade. A primeira verificação da ambi-
naturalmente, mas relações que os textos pertencentes a cada guidade fantástica deve-se, talvez, a Freud, o qual considerava
um mantêm com o seu destinatário real; o leitor. Como se o debate acerca da presumível manifestação sobrenatural factor
acentuou antes, o maravilhoso não pretende levá-lo a aceitar imprescindível para que fosse comunicada ao receptor da obra
como reais as personagens e os acontecimentos impossíveis que literária a impressão sinistra e inquietante designada pelo pró
encena, enquanto o estranho o faz apenas até dado ponto, prio título do ensaio em que o fundador da psicanálise aflora
retractando-se depois. Já o fantástico, sem o orientar em defi- este assunto 'º. No mesmo texto, Freud não só definiu o cerne
nitivo para qualquer decisão, procura suscitar nele um perma- do género maravilhoso, como também delineou certos traços
- nente estado de dúvida perante o conteúdo da intriga. do fantástico, referindo até a reacção do destinatário” que
É, portanto, a criação e, sobretudo, a permanência da a narrativa deve prescrever. e que forma a base da definição
ambiguidade ao longo da narrativa que principalmente distingue de Tzvetan Todorov. Embora tais referências sejam breves e
o fantástico dos dois géneros que lhe são contíguos, até superficiais, a importância deste ensaio para o estudo do fan-
porque, noutros planos, as divergências entre eles são quase tástico e, até, de outras áreas da literatura justifica plenamente
sempre bem menos profundas. Com efeito, abstraindo certas o reexame de que tem sido objecto recentemente '2. Por seu
diferenças pontuais no tocante à forma como seorganizam ou turno, o próprio Todorov, muito embora dando à hesitação do
à maior ou menor intensidade do seu emprego, vários dos res- narratário a primazia como traço distintivo do género, não
tantes traços do fantástico «ão em grande medida comuns a deixa de referir ocasionalmente a sua índole ambígua !º,
qualquer daqueles géneros. Tal identidade de características e Contudo, mesmo a observação. atenta de narrativas cuja
processos torna-se particularmente notória entre o estranho e ambiguidade é muito acentuada torna claro que uma indecisão
o fantástico. Efectivamente, o factor que os distingue cifra-se total, um ponto de perfeito equilíbrio entre a aceitação ou a
sobretudo em que o segundo mantém o sobrenatural, de forma recusa da manifestação meta-empírica, é extremamente difícil
dúbia, até ao fim da narrativa, enquanto o primeiro o anula de atingir e, sobretudo, de manter até ao termo da intriga.
a certa altura: se a ambiguidade caracteriza o fantástico, a Por isso, a considerar-se que tal irresolução se tem de verificar
recusa da fenomenologia meta-empírica é achave do estranho. com; absoluto rigor para o género atingir a plena existência,
“Assim, um texto só se inclui nofantástico quando, para poucas obras poderiam de facto ser integradas nele. Por outro
além de fazer surgir a ambiguidade, a mantém ao longo da lado, não se pode deixar de ter em conta a relatividade do
intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a reflec- próprio conceito de género e, sobretudo, o .truísmo de ser pra:
tir-se em todos os planos do discurso. Daí que, como se ticamente impossível encontrar uma' narrativa que reflita em
procurará mostrar adiante, o género não seja inteiramente defi- estado puro todos os traços da classe de-textos literários em
nível, como pretende Todorov, pela hesitação perante a feno- que porventura se integra 'e só esses. Na maior parte dos casos,
menologia insólita representada através do narratário º*. Longe com efeito, qualquer texto revela um pendor mais ou menos
de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do desti- “acentuado para o sincretismo, recorrendo, simultaneamente a
natário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo elementos e formas de organização que constituem traços de
dele, constituindo apenas mais uma das formas de comunicar géneros diversos. Deste modo, há que admitir uma certa latitude
Ap A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERMANÊNCIA DA AMBIGUIDADE 45
que encena, tanto mais claramente denuncia o seu afastamento aquele se acolhe de forma prioritária. Assim, por exemplo,
do real e o grau de intensidade com que o falseia *, enquanto o maravilhoso não evidencia em geral a mínima preo-
Assim, se conferir verosimilhança a uma narrativa não cupação em ajustar ao senso comum o mundo quase sempre
pressupõe obrigatoriamente a reprodução fiel do real e a ade- arbitrário que encena, já o fantástico e o estranho procuram
quação íntima da intriga a ele, o verosímil terá de se definir seguir os ditames da opinião pública no tocante à maior parte
através de outras coordenadas, de se orientar por outros pontos da narrativa. Conseguentemente, o tipo de verosimilhança de
de referência que não. o próprio real, do qual não passa de que os textos procuram cobrir-se constitui, pela sua variabili-
uma aparência falsificada. Daí que subentenda antes o emprego dade, mais um dos critérios possíveis na caracterização e deli-
e a conjugação de elementos que dêem a impressão de que a mitação destas três classes de textos literários.
intriga reproduz o que é normal acontecer, que se identifica Contudo, os processos usados para conseguir essa impres-
com tudo o que o «senso comum», a opinião pública* (e, por cindível conformidade da narrativa às regras do género são,
extensão, a do destinatário do discurso) consideram ser o real. por sua vez, objecto defrequente e cuidadoso disfarce tendente
Isto equivale a dizer. que o verosímil remete o texto, antes de a tornar a sua ocultação tão completa quanto possível. Ten-
mais nada, para um corpus complexo, basicamente determinado ta-se, deste modo, fazer crer ao destinatário da enunciação que
pelas camadas sociais dominantes numa época e num espaço os condicionamentos a que aqueles princípios de facto sujeitam
geográfico definidos. Compõem-no as normas de conduta indi- a obra não existem e que esta apenas se pauta pelo que ele
vidual e colectiva aí correntemente observadas e as linhas considera ser o real: Como afirma Christian Metz:
fundamentais da carga ideológica que essas normas pressupõem.
O estabelecimento de tais coordenadas aponta, por sua «A obra verosímil... tenta persuadir-se, persuadir O
vez, para o carácter relativo e contingente do verosímil, sempre público, de que as convenções que a levam a restringir
dependente da própria evolução ou substituição dos conceitos os possíveis não são leis do discurso ou regras da
a que se adequa. Efectivamente, já que o senso comum resulta escrita —não são, de modo algum,. convenções —
sobretudo de um conjunto de convenções variáveis com o e que o seu efeito, constatável no conteúdo da obra, é
tempo, o lugar e a ideologia, a adequação do enunciado narra- na realidade o efeito da natureza das coisas e resulta
tivo a ele nunca pode ser definida em termos de imutabilidade dos caracteres intrínsecos do assunto representado.
absoluta, pelo que haverá, no mínimo, tantos verosímeis quan- A obra verosímil quer-se, e quer que a considerem,
tos os sistemas de convenções sociais e os períodos culturais º.
directamente traduzível em termos de realidade. É então
Porém, a verosimilhança de uma intriga com um mínimo que o Verosímil encontra o seu pleno emprego: trata-se
de elaboração não decorre apenas da conformidade entre a de fingir a verdade.» *
história contada-e esse código de comportamentos e perspecti-
vas ideológicas naturalmente instável e difuso que é à opinião
comum dos destinatários, a qual, tendo embora uma existência Assim, o verosímil deverá ainda actuar como elemento
extratextual, é respeitada na produção da imensa maioria dos de dissimulação, tornando-se, afinal, uma espécie de máscara.
enunciados narrativos. Com efeito, a plausibilidade está ainda dos processos que utiliza. Procurando esconder a inevitável
dependente da observância de outros princípios dé carácter submissão às regras do género, esta sua terceira face é talvez
impositivo que o texto deve ter em consideração, não os infrin- a mais importante delas e simultaneamente a que exige o
gindo de uma forma demasiado perceptível: as regras do género emprego de maior soma de artifícios.
em que se inclui”. Resumindo (veja-se quadro anexo): enquanto, em prin-
A maior ou menor intensidade com que é preferida a ade- cípio, só a verdade corresponde integralmente ao real, man-
quação a um ou a outro desses eixos de orientação do vero- tendo-se, portanto, no plano do ser, o verosímil não faz mais
símil (opinião pública e princípios fundamentais do género) do que aparentar essa correspondência, remetendo-se sempre
depende da índole e objectivos de cada texto particular, bem ao que se pode denominar o plano do parecer. Assim, tentando
como, naturalmente, do próprio género literário sob cuja égide simular uma inteira adequação ao real e, desse modo, confun-
A FALSIDADE VEROSÍMIL 49
48 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
de bode, cabeça gelatinosa e disforme, longos tentáculos ou mite a instalação de uma arbitrariedade quase total na intriga.
enormes .olhos globulares (particularidades, contudo, sem dú-
Aqui, ao caucionar um fenómeno meta-empírico, a verosimi-
vida admissíveis quando empregadas isoladamente em várias lhança aponta honestamente para essas regras e apenas para
outras figuras monstruosas ocorrentes no fantástico e em géne- elas, não chegando sequer a fingir adequar à opinião pública
ros contíguos), o universo transfigurado e caótico que integra tal fenómeno.
Também as reacções da personagem humana perante a No fantástico, pelo contrário, o verosímil tenta suscitar no
irrupção de um fenómeno que se apresenta como sobrenatural
destinatário do enunciado a mesma submissão às regras do
são frequentemente condicionadas por limites estreitos decor-
género que se verifica na própria narrativa, procurando fazer
rentes dos princípios orientadores do género. Se, por absurdo,
crer que aquilo que somente resulta da aplicação dessas con-
essa personagem graceja com o monstro em estilo coloquial,
venções e está em frontal contradição com a opinião comum
semelhante atitude (possível e, até, plausível segundo o senso
não só não hostiliza esta, mas é afinal um dos possíveis da
comum) perde toda a consistência à luz das regras do género. própria realidade.
Com efeito, nas narrativas fantásticas, espera-se do actor-tes-
Ora, o conjunto de falsidades e artifícios que permite o
temunha . que, perante uma ocorrência meta-empírica, fique funcionamento de tudo isto não pode ser abertamente paten-
aterrado ou, no mínimo, perplexo — nunca divertido. Tal ati-
teado ao receptor da narração. Terá, pelo contrário, de ser
tude, além do mais, contribuiria para desfazer a ambiguidade
remetido para um prudente apagamento, actuando de forma
essencial ao género. cautelosa e discreta. Daí que o discurso recorra a todos os
Deste modo, torna-se cada vez mais aparente que a narra- meios que lhe permitam mascarar a efectiva inadequação da
tiva fantástica é, afinal, muito menos emancipada e espontânea história ao mundo empírico, fazendo esquecer que ela apenas
e muito mais limitada e convencional do que em regra deixa contém uma lógica (a do género) cujas regras se pretende
transparecer o falso libertarismo estético em que procura envol- impor ao destinatário. Daí, também, que a aparente ousadia
ver-se. Com toda a obra intensamente invadida pelo verosimil,
e os ilusórios excessos de imaginação exibidos pela obra este-
ela entrega-se a cada passo a um sem-número de normas, de
jam afinal sujeitos ao carácter espartilhante e censório do
esquemas, de códigos previamente definidos pela mentalidade
verosímil que, forçando o discurso a uma estreita obediência,
dominante da época em que foi produzida e pelos seus reflexos tenta calar a falsidade gritante da manifestação meta-empírica.
literários cristalizados no género em que se inclui ?8,
Assim,fingindo clarificar todos os dados apenas com o objectivo
Daí resulta o carácter regrado e obediente que o fan- de melhor os confundir, a narrativa fantástica serve-se de apa-
tástico revela para além das aparências de superfície e, em
rências de conformidade ao real e de pequenas verdades des-
certa medida, a relativa previsibilidade da sua diegese e a
contínuas para mais facilmente introduzir e tornar admissível
frequente ausência de inesperado nos artifícios que emprega. a grande mentira: o carácter alegadamente sobrenatural das
Por seu turno, deste enfeudamento excessivo à busca da plausi- figuras ou ocorrências que encena.
bilidade, naturalmente cerceador das vias de opção abertas à Da maior ou menor eficiência de emprego dos processos
obra, surge mais um elemento de demarcação entre o fantástico
favoráveis ao verosímil e da sua consequente ocultação depende
e o maravilhoso. Essencialmente comedido e reiterativo, O vero-
em grande medida o delicado equilíbrio necessário à cons-
símil usado no primeiro conforma-se tanto ao conceito comum
trução do género. É a presença dessa conjugação de elementos
de realidade como às imposições do género, embora simule que possibilita a manutenção da ambiguidade em narrativas
apontar sempre para aquela. Já no maravilhoso, quando existe
como La Vénus d'Ille de Prosper Mérimée “*, The Turn of the
qualquer esforço no sentido de promover verosimilhança, esta Screw de Henry James ou The Monkey's Paw de W. W. Jacobs *,
nunca adequa a narrativa à estrita atitude do destinatário enquanto a sua ausência pode afastar completamente do género
perante o real, nem por outro lado, procura esconder a sua textos que, não obstante, evidenciem a maioria das caracteris-
conformidade aos princípios, aliás pouco impositivos, do género. ticas dele,
Caso extremo em que o verosímil se pauta exclusivamente, Em grande medida, quase todos os traços do fantástico
ou quase, pelas regras do género, a narrativa maravilhosa per- contribuem, de forma mais ou menos aparente, para aferir à
54 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
- À FALSIDADE VEROSÍMIL é 55
opinião pública a acção, as personagens ou o espaço que se conservadora é por vezes retrógrada que a narrativa fantástica
pretende fazer surgir como reais, retocando assim perante o
em geral faz da estrutura social e da ideologia dominante que
receptor do enunciado a falsa manifestação alucinante que, lhe são contemporâneas. Com efeito, como a opinião pública
através deles, lhe é proposta como existindo de facto. Convém,
a que o verosímil tenta adequar a obra não passa afinal de um
contudo, realçar alguns artifícios de uso muito frequente que
conjunto de padrões de conduta impostos pela classe domi-
visam em especial intensificar a verosimilhança simulando um nante de uma dada época, que melhor escolha para garante
integral respeito da opinião pública.
dessa conformidade do que a sua confirmação por parte de
Na sua maioria, os processos aqui envolvidos têmpor indivíduos geralmente considerados, a um tempo, fautores, bene-
base o que se pode denominar recurso à autoridade. Em grande ficiários e guardiães da ordem social e cultural estabelecida?
número de casos, com efeito, a narrativa procura atestar a
É em grande medida por isso que, respeitando incondicional-
realidade objectiva daquilo que encena com dados fictícios ou mente as normas cujo cumprimento lhe mantém a existência
manipulados, mas atribuindo-os a fontes vulgarmente conside- e procurando induzir o destinatário do enunciado àsua acei-
radas de grande confiança e probidade. Para tal, socorre-se
tação, a narrativa fantástica não pode deixar de observar um
com frequência de diversos meios, sobretudo o testemunho
constante recurso ao argumento da autoridade e à utilização
de certas personagens caracterizadas pelo seu prestígio, o apoio de personagens que o veiculem da forma mais conveniente.
confirmativo prestadopor documentos de vária índole, a refe- O emprego de outros meios visando garantir a credibili-
rência enganadora a dados imaginários entretecidos com outros
dade da fenomenologia meta-natural pode revestir formas
reconhecidamente verídicos ou, ainda, a distorção fraudulenta
muito variadas, sendo frequente o recurso à referência a
destes últimos. Já Peter Penzoldt referia o relevo destes pro- documentos, reais ou forjados, processo vulgar na literatura
cessos na narrativa do género 1º: em geral mas objecto de uma utilização particularmente inten-
siva no fantástico. O livro?! antigo, geralmente fictício e de
«Suspeitamos constantemente do autor. Enganar. título sugestivo, é dos elementos mais comuns aqui, o mesmo
«nos é a sua função; sabemos que ele quer fazer-nos acontecendo com textos avulsos de pendor arcaizante. Nestes
acreditar em coisas que estão em flagrante contradição predominam as línguas mais privilegiadas como veículos de cul-
com'a nossa própria experiência da realidade. Estamos tura (em especial o latim), embora também neles sejam usadas
prontos a duvidar de todas as suas palavras. Ao longo formas anacrónicas de idiomas vivos ou, ainda, línguas comple-
do texto, a sua perícia e o nosso cepticismo lutam furio- tamente fictícias 22.
samente... Se o autor puder incorporar na sua narra- Não raro, essa confirmação documental é aduzida pela
tiva excertos de alguma «autoridade» respeitada, o nosso apresentação da própria narrativa como se se tratasse de um
cepticismo diminui. Embora saibamós que tais excertos texto encontrado por acaso e de autor supostamente desconhe-
não lhes dão qualquer apoio real, impressiona encontrar cido. Tal processo (comum, de resto, a numerosas obras de
as afirmações do autor aparentemente confirmadas por outros géneros) corresponde afinal à maximização dos artifícios
uma fonte tão digna de confiança.» acima referidos e ao seu alastramento à totalidade do discurso:
o verosímil agiganta-se, invadindo completamente a narrativa,
Assim, para reforçar a plausibilidade da acção através das ela própria arvorada em documento. Isto apresenta um apre-
personagens, é usual no fantástico o emprego de figuras geral- ciável conveniente: o facto de a história ser «anónima» deso-
mente consideradas respeitáveis pela idade, pela sabédoria ou. briga o narrador que a apresenta como tal de justificar os
pelo estatuto social”. Em contrapartida, quase nunca se veri- acontecimentos nela narrados, já que a sua índole torna auto-
fica a utilização para o mesmo efeito de figuras pertencentes maticamente desnecessárias, por «impossíveis», quaisquer expli-
ao operariado ou, mesmo, à pequena burguesia, não sendo cações, sobre a origem do documento, forma como veio à apa-
estas camadas, em regra, consideradas suficientemente idóneas recer, grau de credibilidade que merece, etc. Deste modo,
na maioria das narrativas do género para atestar a veracidade cortando-se todas as ligações entre o texto e a sua procedência
do acontecido. Tal reflecte, de resto, a leitura marcadamente e referindo-o apenas a partir do momento em que foi «encon-
56 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A FALSIDADE VEROSÍMIL 57
trado», não só se consegue a justificação implícita in absentia reforçada se essa função se acumular à de uma personagem
das manifestações sobrenaturais nele relatadas como ainda se também bastante comum nas narrativas do género: o céptico 2,
envolve o narrador numa aura de indefinição que reforça a Esta figura, geralmente oriunda de uma camada sócio-profissio-
incerteza suscitada pela própria intriga. Por outro lado, também nal considerada respeitável, contribui com a expressão da sua
se cria um vazio informativo que, paradoxalmente, serve como
incredulidade para insuflar confiança no destinatário do dis-
explicação mais aceitável do que a descrição muito detalhada curso, para aparentar estar do seu lado como crítico entendido
dos antecedentes do manuscrito, a qual se tornaria difícil de e severo de qualquer manifestação alucinante que venha a ter
arquitectar eresultaria porventura pouco plausível. lugar, para o fazer sentir que não vai ser grosseiramenteenga-
Este processo admite algumas variantes («manuscerito», nado. Consequentemente, quando a dado passo da intriga se
«diário», «memórias», etc.) 2º cuja eficácia relativa dependerá. «convence» da veracidade da ocorrência meta-empírica, o seu
das características da história e do discurso empregados em crédito como testemunha de confiança não sofre grande abalo,
cada obra. Já Horace Walpole o utilizou na 1.º edição de The assim se propiciando uma mais completa adesão por parte do
Castle of Otranto (1764), ao apresentar o texto, em prefácio, receptor real do enunciado.
como uma narrativa italiana impressa em 1529 e traduzida Também a explicação racional de alguns aspectos secun-
para inglês por uma figura fictícia, assim ocultando a sua dários da manifestação insólita representada no texto (sem que
identidade como autor que só viria a tornar clara no prefácio esta seja globalmente posta em causa) contribuipara captar
à 2º edição”. . a confiança do leitor, criando-lhe a falsa sensação de que a
Para incrementar a sua plausibilidade, a narrativa fan- obra, embora revele um certo número de: fenómenos repugnan-
tástica também recorre amiúde ao que se pode denominar tes à sua razão, não o procura mistificar, dado que também se
referências factuais, alusões mais ou menos extensas e pro- apressa a criticar esses elementos quando talse torna necessá-
fundas a factos ou fenómenos do mundo empírico inteiramente rio. Ao mesmo tempo que adormece a relutância do receptor
comprováveis e. relacionados com diversos ramos do conheci- do enunciado, esta racionalização parcial (como adiante se refe-
mento. Embora visem ostentar um respeitável ecletismo inte- rirá com maior detalhe) satisfá-lo com pseudo-objecções aos
lectual e causar a correspondente impressão ao que se presume acontecimentos mais inadmissíveis da intriga sem, contudo,
ser a média dos destinatários reais da narrativa, estes dados
alguma vez os explicar completamente.
procuram quase sempre ser-lhes relativamente familiares ou,
Outro contributo importante para o reforço da plausi-
pelo menos, referenciáveis através de meios de informação de bilidade da narrativa pode resultar ainda do emprego adequado
fácil acesso, sem o que se tornariam ininteligíveis, perdendo dos vários processos que se conjugam para acentuar os traços
grande parte do seu efeito. Em termos gerais, reportam-se a «realistas» do espaço pretensamente normal em que se desen-
dois tipos de assuntos: por um lado, acontecimentos históricos rola a acção.
ou factos contemporâneos da produção da narrativa; por outro, Alguns dos artifícios mais comuns, contudo, revelam-se
dados científicos ou pseudocientíficos de várias índole. Tais
particularmente rudimentares e convencionais. Tal acontece,
referências aparecem muitas vezes associadas a outras comple- por exemplo, com o chamado «efeito de recuo» 2º, prática de
tamente fictícias, procurando-se com todas elas ceder, como que
ascendência romântica que consiste em deslocar a acção para
por simpatia, um pouco do verniz de credibilidade que exibem o longínquo no tempo (um passado de contornos vagos) ou no
às manifestações insólitas evocadas na narrativa. espaço (o país exótico ou imaginário). Também primitivo e
Outro processo frequente é constituído pelo testemunho posto de parte mas bastante vulgar em textos do século XIX
do narrador-personagem. Dado que o sujeito da enunciação é o processo que se pode denominar «confirmação pseudo-
mais conveniente à ficção fantástica e mais usual nela faz parte científica» ?”, o qual redunda em frequentes interrupções da
da própria narrativa como figura interveniente na acção, tor- narração com considerações quase sempre demasiado extensas
na-se testemunha presencial do acontecimento insólito ou que, recorrendo a argumentos de ordem pretensamenie cientá-
conhece-o pelo menos com uma razoável precisão. A credibili- fica ou filosófica, tentam incrementar a verosimilhança da acção.
dade das declarações deste tipo de narrador pode ainda ser O resultado, porém, é muitas vezes oposto ao pretendido, já
A FALSIDADE VEROSÍMIL 59
58 4 CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
««Subitamente, a, sra Otis apercebeú-se de uma começando muitas vezes por resultar da falta de Verosimi-
nódoa de tom vermelho escurono chão. junto à larei
ra lhança da própria explicação racional ou da forma incorrecta
e, sem se dar conta do que ela realmente. significava, como é incluída na intriga. SAE E |
disse à sr Umney: «Creio que entornaram: alguma "Conseguindo fugir à armadilha da racionalizaç ão plena
coisa ali.» der h ê io e manter a ambiguidade sem a qual não tem existência, o se
«Sim, minha senhora», respondeu a velha gover-' tástico prossegue a: sua difícil e perigosa construção. Fara
nanta em voz baixa, «foi sangue que caiu naquele sítio,» reforçar essa ambiguidade terá de a reiterar diversas e
«Que coisa medonha», disse a sra Otis, «não suporto reflectindo-a.no maior número possível de elementos do ' El
nódoas de sangue numa sala de estar. Ela tem de ser curso, de forma a poder comunicá-la ao destinatário da
imediatamentelimpa.» vo bo dio td enunciação.
A velha sorriu e respondeu na mesmavoz baixa
é
misteriosa: «É o sangue de «Lady» Eleanore. de: Can-
terville, assassinada naquele mesmo lugar pelo seu pró-
prio marido, «Sir» Simon de Canterville, em1575; «Sir»: Notas.
Simon sobreviveu-lhe -Por nove anos e desapareceu
1. Cf! s Vax, L'art et la littérature jantastiques, EU,
subitamente. em circunstâncias muito misteriosas. O Paris, oras 20TONTaaÃO alimenta-se do escândalo da razão.» (8ao):
|
corpo nunca foi descoberto, mas o:seu espírito culpado «:.. o fantástico não quer apenas o impossível porque é nen aê
ainda assombra a mansão Chase. A nódoa de sangue. quere-o porque é impossível. Querer o fantástico é .querer Az =
e o contraditório» (p. 31). Noutra obra (La séduotion. de pit se
foi sempre muito. admirada por turistás e' outras
P.U.F, Paris, 1965), Vax afirma ainda que o fantástico Ge mpli
pessoas e não pode ser apagada.» .. a, a razão como o erro implica a verdade.» (p. 248). ; dor
«Isso 'é tudo um disparate», bradou Washington “2 Vax também o reconhece quando, ao referir-se ao sobren
Otis, «o tira-nódoas Pinkerton's Champione-o deter. tural, diz: «É preciso que ele se insinue pouco a pa que, au
. de escandalizar a razão, a an (Lart et la Hitérature f
gente Paragon limpam-na num instante.» E, antes que iques, | » Paris, 1974, p. ; a .
“a aterrorizada governanta pudesse fazer qualquer coisa, e "GêTeêne Bessiêre, Le récit fantastique, Larousse, Paris, am
“ele tinha-se ajoelhado e esfregava rapidamente o chão «... 0 seu argumento decorre da aliança da razão com o que ela habi-
com um pequeno pau do que parecia ser um cosmético
osr Supernatural Horror im Literature, Dover
preto. Em poucos momentos desapareceram os vestí-
li i s V: 1 3, a 16. .
gios da mancha'de sangue, UR a go E DoCOND E Roger Caillois, Tzvetan Todorov, Irêne
«Eu sabia que o Pinkerton resolvia isto», exclamou Bessiêre e outros, têm recorrido a esta obra, retirando dela póspao
triunfante, olhando em redorpara; a sua “extasiada de características do género, Sobre este assunto, a ia En
“Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Seuil, Pa s, ,
família. Porém, nãotinha acabado de dizer estas pala:
vras quando um terrível: relâmpago iluminou a sala Pp oai Manuscrit trouvé à Saragosse, Gallimard, Paris,
escura, um tremendo trovão fêlos erguer todos 1958, p. 59. O mesmo processo é empregado várias vezes em ag no
e a .
sr* Umney desmaiou, d'Ile de Prosper Mérimée, Por pEREtAÇO; a pesPocotpe a
, la pedra que acabara J
«Que clima monstruoso!» disse o embaixador (8 Clero”gobramelgra na narrativa), o narrador afasta A pcs
ame-
ricano, acendendo um longo charuto. «Creio queeste pleto a ideia de que a pedra teria sido lançada ae ema
velho país está tão superpovoado que não há efígie da deusa, atalhando: «Era evidente que a pedra tinha ER e
bom
“tempo que chegue para toda a gente. Sempre me teado no metal e tinha castigado o brincalhão velo ultraje que flize
à deusa.» (Prosper Mérimêe, La Vénus dulle, Carmen, paped
pareceu que a emigração é a única solução para:a Paris, 1969, p. 30). Também em Lokis, Mérimée usa a raciona aos
Inglaterra.»» 2! spas parcial quando o conde Szémioth procura explicar ao Prof. Wi em.
bath a estranha situação em que este o vira, trepando às drvoras
Este tipo de racionalização, contudo, pode também -veri- como um animal (Prosper IMérimée, Nouvelles Complétes same ),
ficar-se involuntariamente devido a pura imperícia da narraç Le Livre de Poche, Paris, 1965, p. 242). Outro exemplo é do a
ão, k seguinte passagem ide The Shuttered House de August Derleth (
72 4 CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
OS PERIGOS DA RAZÃO 73
Peter Haining (ed.), Weird Tales, Sphere Books, London, 1978), onde deste tipo de racionalização pode encontrar-se em The Sphinx de
se discute a possibilidade de uma casa estar assombrada, o que Edgar Poe (in Edgar Poe, Tales of Mystery and Imagination, J. M.
efectivamente se vem a verificar: Dent & Sons, London, 1971), Neste caso, um pequeno insecto é, de
««Com certeza não está a pensar que aqui existe alguma, influên- forma um tanto forçada, tomado por um monstro devido a ilusão
cia?», perguntou Jepson incrédulo, erguendo a voz. A medida que óptica do observador,
fazia a pergunta, uma súbita suspeita assaltou-o: 13 Cf, Boris 'Tomachevski, Thématique, in Tzvetan Todorov
O dr. Evans abanou a cabeça. «Oh, não me compreenda mal. (ed.), Théorie de la littérature, Seuil, Paris, 1965, p. 288. «Os motivos
Eu não estou a sugerir nada disso. Evidentemente, tem havido boatos habituais que oferecem a possibilidade de uma dupla interpretação
idiotas sobre a casa, mas devem-se quase sempre a rapazitos e estou são o sonho, o delírio, a ilusão visual ou outra, etc.»
certo de que sabe tão bem como eu que, para o rapaz típico de qualquer 7 Algumas obras em que é visível este tipo de racionalização
cidade pequena, uma casa assombrada é Quase uma necessidade psico- (total nuns casos, parcial noutros): Mary Shelley, Frankenstein,
lógica.»» (p. 88). J. iM. Dent & Sons, London, 1961; Edward Bulwer Lytton, The House
7 H. iP, Lovecraft, The Whisperer in Darkness e The Haunter and the Brain (in Michel Parry (ed.), Reign of Terror — The gud
of the Dark, in H. P. Lovecraft, The Haunter of the Dark and other Corgi Book of Great Victorian Horror Stories, Corpgi Books, London,
tales of Terror, Panther Books, London, 1963, pp. 157 e 214, res- 1977); Mário de Sá-Carneiro, 4 Estranha Morte do Professor Antena,
pectivamente. in E. M. de Melo e Castro i(ed.), Antologia do conto fantástico por-
8 Arthur Machen, The Novel of the White Powder, in Arthur tuguês, Edições Afrodite, Lisboa, 1974; Richard Matheson, I am
Machen, Tales of Horror and the Supernatural (vol. II), Pinnacle Legend, Fawcett Publications, New York, 1954; James Blish, There
Books, New York, 1973, p. 58. : É shall be no Darkness, in Zacherleys Vulture Stew, Ballantine Books,
º IM. R. James refere-a na sua introdução à colectânea New Tork, 1960..
Ghosts and Marvels, V. iH, Collins (ed.), Oxford University Press, 1924,
18 Este tipo de racionalização aparece apenas em narrativas
p. VI: «Por vezes, não é inconveniente deixar uma certa abertura para escritas nas últimas décadas, o que corresponde em grande medida
uma explicação natural, Porém, considero que essa abertura deveria ao desenvolvimento da própria parapsicologia como ramo do conhe-
ser suficientemente estreita para não se tornar praticâvel.» à cimento científico. Assim, O sexto sentido de Mário de Sá-Carneiro
10 Cf. Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantas- (in Eurico da Costa (ed.), Os melhores contos fantásticos, Arcádia,
tique, Seuil, Paris, 1970, pp. 50-51.
Lisboa, 1959), escrito em 1909, é certamente um dos contos mais
nm Cf, Tzvetan Todorov, op. cit. p. 69. 3 antigos entre os que já incluem esta modalidade de explicação
12 Isto mesmo era já referido de uma forma aproximada por racional, .
H. P. Lovecraft: veja-se a nota 4 deste capítulo. A 1º» Um exemplo interessante de racionalização pelo ridículo
13 Cf. Tzvetan Todorov, Introduction à la littératuro . fantas-
que, no entanto, não destrói completamente a ambiguidade da acção
tique, Seuil, Paris, 1970, p. 65: «...a leitura poética constitui um
é The Inexperienced Ghost de H. G Wells (in Alfred Hitchcock (ed.),
escolho para o fantástico. Se, ao ler um texto, se recusa toda a
14 of my Favorites in Suspense, Dell Books, New York, 1976). Tam-
representação e se considera cada frase como uma pura combinação
bém Ambrose Bierce se aproxima por vezes dos limites do grotesco
semântica, o fantástico não poderá aparecer: ele exige, recorde-se,
uma reacção aos acontecimentos tal como se produzem no mundo embora esse procedimento seja nele um risco calculado que quase
nunca redunda inteiramente em desastre para o equilibrio da cons-
evocado, Por isso, o fantástico não pode subsistir a não ser na ficção;
trução fantástica. Já os contos de R. Chetwynd-Hayes, por exemplo,
a poesia não pode ser fantástica (ainda que existam antologias de
utilizam invariavelmente efeitos cómicos, fugindo por isso ao fan-
«poesia fantástica» ...). Em suma, o fantástico implica a ficção.»
tástico (cf. R. Chetwynd-Hayes, Tales of Fear and Fantasy, Fontana
1 A hipótese da loucura da personagem ((por vezes aeumu-
Books, Glasgow, 1977).
lando a função de narrador) é frequentemente levantada nas narra-
22 Freud refere esta narrativa em Das Unheimliche, C£,
tivas de Edgar Poe, mesmo que a seguir seja negada de forma ter-
minante. Veja-se, por exemplo, The Black Cat (in Edgar Poe, Tales
Sigmund Freud, L'inquiétante étrangeté (in Sigmund Freud, Essais
of Mystery and Imagination, J. IM, Dent '& Sons, London, 1971, p. 518): de psychanalyse appliquée (tradução de Marie Bonaparte e Mme
E. Marty), Gallimard, Paris, 19883, p, 210): «... mesmo um verda-
«Não espero mem peço crédito para a narrativa espantosa e, não
deiro espectro, como o do conto de O, Wilde, O fantasma de Can-
obstante, comezinha que estou prestes a passar a escrito. Eu estaria,
de facto, louco se o esperasse num caso em que até os meus sentidos terville, perde todo o direito a inspirar o mínimo terror a partir
rejeitam o seu próprio testemunho. Porém, não estou louco...» Tam. do momento em que o escritor se permite a brincadeira de o expor
bém em The Tell-Tale Heart (in op. cit, p. 289) este processo é a ridiculo e de deixar que trocem dele»
visível: <B VERDADE! — nervoso —tinha estado e estou terrivel- 21 Oscar Wilde, The Canterville Ghost, in Oscar Wilde, Lord
Arthur Savilles Crime and Other Stories, Methuen & Co. London,
mente nervoso; mas porque hão-de dizer que estou louto? A doença
apurara-me os sentidos —não os tinha destruído —não os tinha
1917, pp. 69-71, “oa
embotado... Então, como posso estar louco?» y
15 Cf. o exemnlo atrás registado de The Novel of the White
Powder de Arthur Machen (nota 8 deste capítulo), Outro exemplo
“0 NARRATÁRIO: PAPEL E LIMITAÇÕES . 75
“racional. The Turn of the Screw e outros contos de Henry primeiras atitudes anularia o género pois contribuiria para a
James (Owen Wingrave e The Friends of the Friends, por exem- sua destruição ou, pelo menos, para alterar o equilíbrio pre-
plo) são alguns dos muitos textos em que se torna evidente cário em que se fundamenta. Ao aceitar sem reservas a subver-
esta quase total ausência de linhas definidas sobre a actuação são do real, o leitor levaria o texto a situar-se no maravilhoso,
apontada ao narratário e ao leitor real, ausência resultante não no fantástico. Por seu turno, recusando completamente a
de uma polissemia intencional * em que se envolve a manifes- fenomenologia meta-empírica, faria a narrativa recuar para O
tação insólita. Para além de uma leitura «ortodoxa», cedendo género estranho. De facto, só uma leitura incerta, permanente-
à ambiguidade da ocorrência meta-empírica e hesitando entre mente indecisa entre aceitar ou rejeitar aquilo que o discurso
aceitar ou não a sua aparente índole sobrenatural, um mundo apresenta como real e a razão afasta como impossível, seria
de possibilidades interpretativas surge quando o leitor envereda adequada à manutenção do difícil equilíbrio do fantástico.
pela explicação natural. É por isso que, em relação a este Porém, como se torna óbvio, estes diferentes tipos de lei-
tipo de obras (às quais, de facto, nada falta para poderem tura não podem ser arvorados em critérios susceptíveis de
ser consideradas fantásticas), as interpretações de acordo com contribuir para a caracterização do género. Com efeito, fazer
as leis naturais tentam muito mais o leitor, tornando-se alician* depender a classificação de qualquer texto apenas (ou sobre-
tes pelo exercício exegético que propiciam. tudo) da reacção do leitor perante ele equivaleria a considerar
Assim, facilmente se depreende que afastar o traço distin-, todas as obras literárias em permanente flutuação entre vários
tivo do fantástico da sua situação própria (a ambiguidade) para géneros, sem alguma vez se lhes permitir fixarem-se definitiva-
o colocar no papel (nem sempre explícito ou convincente) des- mente num deles.
tinado ao narratário, como o faz Todorov, equivale a dar prio- A evidente diversidade das reacções admissíveis:na prática
ridade ao acessório sobre o essencial, privilegiando um factor perante as obras do género poderia acrescentar-se um novo
aleatório em desfavor de uma característica constante de óbice quanto à validade do papel do narratário como traço
qualquer narrativa que se inscreva no género. distintivo do fantástico: a segunda leitura. De facto, esta difere
Tudo isto, afinal, para concluir que o papel do parado totalmente da primeira, pois nela já o leitor real muito dificil-
nem sempre é claro, estando por vezes quase ausente de muitas mente se acomodará à atitude perante o sobrenatural que lhe
narrativas que, não obstante, contêm todos os outros factores é apontada pelo narratário *. Por outro lado, cabe ainda lembrar
necessários à construção do género. Deste modo, mesmo no “que a primeira leitura feita por um destinatário «experiente»,
quadro de uma análise virada em exclusivo para os elementos “profundoconhecedor de obras do género e dos artifícios que
intrínsecos ao texto, se torna discutível a tentativa de definição lhes são inerentes, poderá em muitos casos corresponder na
de um género literário apenas a partir da função de uma perso- prática a uma segunda leitura do texto.
nagem (o narratário é, no máximo, isso), de um «ser de papel», Daí que a caracterização do género se tenha de basear, não
de uma convenção que em numerosos casos pouco terá a ver em reacções aleatórias e exteriores à obra, mas em traços que
com as leituras reais a que a obra vem eventualmente a subme- se mantenham indiscutivelmente constantes, mesmo que sujei-
ter-se. Porém, muito mais frágil se tornaria ainda tal definição tos aos mais diversos cambiantes de leitura. Com efeito, os
se, situando-se numa perspectiva extratextual, tentasse caracte- sinais do tipo de discurso literário em que um texto se insere
rizar a narrativa fantástica apenas através do impacto por ela hão-de estar inscritos nele, não podendo depender das atitudes
exercido sobre o conjunto dos presumíveis destinatários reais. necessariamente variáveis que porventura venha a suscitar nos
Com efeito, as reacções destes poderão ser de índole bastante seus destinatários imediatos.
variada e divergir por completo do papel que, por via-do narra- A questão, atrás focada, das possíveis reacções destes
tário, se pretende levá-los a cumprir. Perante a irrupção do perante a intriga leva a aflorar de passagemum falso problema,
sobrenatural na obra, qualquer leitor real poderá reagir acei- por vezes ainda hoje levantado, que conviria afastar definitiva-
tando-o, rejeitando-o ou hesitando entre uma e outra atitude. mente para a prateleira das curiosidades engendradas, até há
Se, por absurdo, a índole fantástica de uma narrativa depen- poucas décadas, pela crítica impressionista do fantástico: o de
desse da reacção do receptor real do texto, qualquer das duas considerar característica fundamental do género o medo* que
78 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA O NARRATÁRIO: PAPEL E LIMITAÇÕES 79.
a manifestação meta-empírica é porventura susceptível dé pro- cia meta-empírica, devendo sobretudo descrever os elementos
vocar no receptor real da narrativa. Sobre isto, basta dizer que contribuem de uma maneira decisiva para tal reacção bem
que, para além de qualquer reacção emocional da parte do como a combinatória que entre si estabelecem.
leitor ser uma realidade completamente exterior à obra, cons- Porém, o reconhecimento das limitações do papel do narra-
titui evidente ilogismo considerar um factor subjectivo- como tário no quadro dos traços do género não anula à necessidade
característica básica de qualquer género literário. Isto, sem de examinar aqui mais algumas características da sua actuação.
contar ainda. com o facto de a susceptibilidade de provocar Tal como a definiu Todorov”, ela compreende como aspectos
medo ser, pelo menos, extensível ao maravilhoso e ao estranho. mais: importantes um certo tipo de leitura, a identificação com
Com efeito, se algumas narrativas podem ser apontadas como o herói (e/ou outra personagem) e a percepção . ambígua da
visando: intêncionalmente; infúndir medo, essas serão sobre- ocorrência sobrenatural que conduz à hesitação. Quanto à lei-
tudo as de uma área incluível no género estranho: as narrativas tura de que o narratário é incumbido perante os acontecimen-
de terror, nás quais a aparente fenomenologia extranatural é tos encenados, já foi referida no capítulo anterior a dupla proi-
explicada antes do fim da intriga ou némséquer chega a ser bição com que Todorov a delimita: em nenhum caso -ela poderá
encenada. Pretendendo sobretudo representar o debate entre ser «alegórica» ou «poética». De facto, embora, entre essas duas
a razão e o seu oposto, entre o familiar e o “inimaginável, a: modalidades de abordagem do texto fantástico, a «alegórica»
narrativa fantástica não visa necessariamente provocar o medo, seja por certo a mais perigosa, tanto uma como outra consti-
ainda que tal se verifique com grande frequência. Deste modo, tuem tipos de explicação racional particularmente fatais ao
torna-se inconsequente referir o medosuscitado no leitor real géneropelo que deverão estar por completo-vedadas ao narra-
(ou a intenção de o fazer) como um traço do género, o que não tário ou a outra figura fictícia que reproduza o papel deste.
significa naturalmente que essa reacção emocional não esteja, Por vezes, contudo, o respeito pela literalidade do texto
de facto, quase sempre incluída no papel que o discurso reserva fantástico é difícil de manter pois, como já se apontou, ele
ao narratário, a certas personagens e, por vezes, ao próprio pode permitir ou promover umaliberdade interpretativa que
narrador. poa nha toi se furte aos padrões de leitura estatuídos através do papel do
narratário:. Deste modo, torna-se difícil supor, por exemplo,
uma abordagem integralmente fantástica de Die Verwandlung
Das várias questões examinadas nas últimas páginas - de Kafka *, + muito embora a narrativa encene uma óbvia trans-
resulta patente não só a inviabilidade da definição dogénero gressão do real. Com efeito, os indícios detectáveis no texto
a partir da atitude do leitor real perante otexto, mas também quanto à presumível reacção do narratário apontam para uma
a insuficiência que, para o mesmo efeito, é revelada pelo papel aceitação natural e quase indiferente da ocorrência meta-empí-
do narratário, ainda que seja inegável o seu; relevo. entre os rica em si (a transformação de um homem em insecto), nunca
vários traços do fantástico. Com efeito, para quea reacção - se esboçando de forma clara a perplexidade inerente ao género.
destinada ao narratário (a hesitação) possa ser por ele «cum- Assim, a obra foge para o plano da parábola, convidando o leitor
prida» com um mínimo de lógica e venha, com grande proba- a enveredar pela interpretação alegorizante. Daí não ser inte-
bilidade, a ser experimentada pelo leitor real, é sobretido grável no género, embora encene temática claramente -extra-
necessário que a narração tenha criado na intriga condições natural é não racionalizada de forma explícita.
para que tal se verifique. Ora, tais condiçõesdeverão primei- | A literalidade da intriga também deverá ser respeitadano
ramente resultar da ambiguidade intrínseca da acção e “do concernente às personagens. Assim, o discurso deve esforçar-se
seu alastramento a todas as estruturas: do discurso. Assim, por evitar ao narratário (e, em consequência, ao leitor real)
serão os vários traços do género realizados no texto que irão uma percepção dessas figuras que as tome por alusivas a
conduzir o narratário (e com ele uma desejável maioria de quaisquer realidades ou situações não expressas no texto, do
leitores reais) à reacção esperada. Consequentemente, uma que poderia resultar mais um caso de leitura alegórica com a
caracterização do fantástico não poderá limitar-se a referir a inevitável fuga à ambiguidade que implica. Portanto, um homem
atitude do destinatário imediato do enunciado perante a ocorrên- vencido pelo sobrenatural deverá ser considerado apenas isso,
O NARRATÁRIO: PAPEL E LIMITAÇÕES 8
80 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
feiticeiras talvez, ou, O que seria ainda mais execrável, me-se, longe de constituir o elemento distintivo do fantástico,
de vampiros...» é apenas mais um dos meios por este empregados para provocar
«Parecia-me, de facto, que tudo isto se podia expli- e manter uma leitura receptiva à ambiguidade. Tal função
car naturalmente, mas agora não sei já emque acre- também é, como se verá a seguir, desempenhada por um deter-
ditar.» 14 Ê : minado tipo de organização e caracterização das personagens.
natário real da narrativa com o que ela evoca. Uma primeira passividade perante as forças insondáveis que se agigantam
verificação a este respeito, talvez a mais importante, resume-se contra ele*. É muito mais um, joguete do desconhecido, avassa-
dizendo que o género privilegia o acontecimento, sobretudo as lado por entidades inimagináveis, do que o sujeito do seu
manifestações extranaturaisº, em desfavor das personagens, próprio destino capaz de as vencer. Como diz Kingsley Amis:
Daí que, em geral, estas só atinjam uma certa relevância na
estrutura da narrativa se servirem o objectivo de comunicar . reaccionário e pessimista, o fantástico vê o homem
a ambiguidade ao receptor real do enunciado. Com efeito, as como um, brinquedo irremediavelmente corrupto de
personagens pouco cu nada interessam ao discurso fantástico influências cegas e arbitrárias.» ”
enquanto figuras com vida própria, servindo-lhe sobretudo
de veículos da perplexidade perante o mundo alucinante em Este é, aliás, um. dos diversos aspectos em que o fantás-
que se movem. Nesta classe de textos, elas têm de contribuir tico (como, de resto, os géneros que lhé estão contíguos) se
quer para reforçar a aparência normal do enquadramento em demarca da ficção de pendor realista, onde a acção humana
que se desenvolve a acção, quer para tornar mais admissível assume uma função dominante na intriga, sendo em geral
a ocorrência sobrenatural, quer, ainda, para favorecer alterna- exaltada como orientadora dos acontecimentos. O carácter vaci-
damente um ou outro desses elementos antagónicos. A não ser lante. e as frequentes derrotas: do protagonista do fantástico
que desempenhe um papel episódico ou insignificante,uma também"o opõem, por seu turno, ao herói mais comum nos
figura completamente alheia a este debate fundamental do fan-
contos de fadas e em outras narrativas maravilhosas, quase
tástico torna-se quase sempre nociva ao seu equilíbrio, sobretudo sempre vitorioso no final da intriga.
se for objecto de cuidadosa caracterização. Esta circunstância Por. tudo isto, a personagem. não pode deixar de ter um
já era referida por H. P. Lovecraft a propósito de EdgarPoe,
estatuto subalterno perante a manifestação meta-empírica, ele-
com a percepção agudíssima de grande número dos traços
mento prioritário .nos textos do género, cuja evidenciação, afi-
essenciais do SenSro que não pode deixar. de lhe ser reco-
nhecida: nal, também lhe cumpre promover. Um cuidado maior. na
caracterização do protagonista ou de outras figuras, um olhar
«Como na maioria dos autores do fantástico, em mais demorado sobre eles e sobre a sua relação com o quoti-
Poe, os incidentes e os efeitos narrativos em geral são diano equivaleria a sugerir perigosas interpretações daquilo
“muito superiores à caracterização das personagens.» * que é apresentado (e se pretende queseja entendido) exclusiva-
mente como uma ocorrência sobrenatural surgindo no mundo
“De facto, o que realmente-conta na narrativa fantástica conhecido.
não é a acção voluntária é consciente de indivíduos ou grupos, A necessidade de evitar qualquer leitura não ambígua da
mas a manifestação (de aparência sobrenatural e quase sempre narrativa e o consequente plano secundário face ao aconteci-
sem causa ou teor discerníveis) que se insinua e desenvolve à mento insólito para que é relegada a personagem da ficção
revelia de qualquer controlo ou explicação por parte da perso- fantástica determinam em grande medida a escassez da sua
nagem humana e que, duma forma ou doutra, acaba por se caracterização. Tal resulta também da economia de espaço
lhe tornar nefasta. Por isso, o protagonista sai quase invariavel- textual verificável na maioria das obras do género, já que o
mente derrotado da sua luta contra as forças meta-empíricas, conto é a forma mais frequentemente assumida por elas. Como
quer quandose integra na normalidade quotidiana, quer quando é natural, essa circunstância impede a atribuição de retratos
se trata do portador da própria subversão do realº. Em qual- físicos, psíquicos ou sociais mais elaborados à personagem.
quer caso, o tipo de derrota difere pouco: um será aniquilado Contudo, mesmo em romances ou contos extensos a sua caracte-
ou metamorfoseado pelo sobrenatural negativo; o outro, exter- rização é diminuta *, bidimensional, não passando daquilo que
minado por efeito do sobrenatural positivo. E. M. Forster (ele próprio autor de textos fantásticos) chama
Deste modo, o herói fantástico caracteriza-se por uma capa- figura «plana» º. Escasso € reduzido a um ou outro indício,
cidade de reacção geralmente fraca, quando não pela completa quase sempre convencional e estereotipado””, o retrato do,
88 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM 89
herói fantástico mantém amiúde uma acentuada indefinição Em primeiro lugar, é necessário estabelecer a equivalência
resultante ora da insuficiência de elementos qualificativos, ora entre os três tipos de actores atrás descritos e os actantes a
do seu estatuto quase constante de abstracção. Certas persona- que são inerentes as funções por eles desempenhadas:
gens constituem, até, verdadeiros tipos do universo fictício
do género que geralmente só fazem sentido quando integrados Monstro (fenomenologia meta-empírica)——Sujeito
no contexto das outras características daquele. Dois dos mais Vítima— Destinatário (e Objecto)
comuns são o velho feiticeiro sinistro e o exterminador de Exterminador Oponente
seres sobrenaturais “1,
Um tal convencionalismo no desenho das personagens tor-
Assim, é ao Monstro (a fenomenologia meta-empírica de
na-se muito mais evidente no que concerne à própria caracte-
índole negativa, «personificada» ou não) que, como Sujeito,
rização do protagonista, quase sempre escolhido entre um
incumbe sempre iniciar, desenvolver e orientar o curso geral
pequeno grupo desses «tipos». Com efeito, as funções de maior
da acção, Correspondentemente, cabe à Vítima (Destinatário e,
peso na diegese fantástica são geralmente atribuídas a uma
amiúde, Objecto desejado pelo Sujeito) suportar 'o impacto
ou mais de três figuras estereotipadas que muitas vezes coexis- alucinante dos acontecimentos que sobre ele se acumulam. Por
tem na mesma obra, tornando-se, neste caso, difícil definir
seu turno, a categoria de Oponente (força contrária ao sentido
com precisão quem é a principal personagem da narrativa. da acção) corresponde sempre ao Exterminador. Aqui se reflecte
Por um lado, o protagonista pode revestir a forma do
mais uma vez o carácter axiologicamente negativo da diegese
Monstro “2, a entidade, materializada ou não, que veicula qual- fantástica. Se, porventura, esta fosse orientada num sentido
quer manifestação da fenomenologia meta-empírica. Por outro, positivo, a figura do Exterminador poderia desempenhar as
pode ser o homem normal transformado em objecto e, sobre- funções de Sujeito ou Adjuvante. Contudo, condicionada pela
tudo, em Vítima? dessa manifestação, confrontado comacon- inversão de valores própria da temática do género, não lhe
tecimentos que não compreende e nunca pretendeu provocar, cumpre conduzir a acção ou colaborar nela, mas antes lutar por
geralmente avassalado pela possessão através de mera impru- todas as formas contra a realização dos objectivos do Sujeito-
dência ou de excessiva curiosidade e avidez intelectual. O esta- -Monstro. Assim, é sua tarefa tentar impedir a evolução (nor-
tuto de protagonista pode ainda ser conferido à personagem mal, segundo as regras do fantástico) dos acontecimentos que,
que, melhor do que as restantes, conhece e combate a abomi- em princípio, conduzirão à vitória de forças maléficas e alheias
nação até ao fim: o já referido Exterminador '* de seres alheios à natureza.
à natureza, defensor estrénuo do mundo aparentemente normal Para além dos actantes já mencionados, a narrativa tam-
encenado na narrativa. bém pode recorrer à função de Destinador, em geral tacita-
mente atribuída a uma entidade abstracta, de contornos vagos
(o Mal ou uma divindade maléfica, por exemplo), a qual, con-
Depois de referidas estas figuras convencionais que entre tudo, quase nunca se encontra expressa com clareza em textos
si monopolizam a condição de primeiro actor nas narrativas do género. Ainda que os outros actantes possíveis (Adjuvante
do género, torna-se conveniente passar a outro plano” de gene- e Objecto) tenham. muitas vezes expressão na narrativa fan-
ralidade, integrando-as num esquema mais vasto que abranja tástica, a economia diegética e textual própria daquela quase
as restantes possibilidades de realização das funções mais rele- nunca lhes permite adquirir relevo apreciável na acção, aliás
vantes 'na diegese fantástica. Para tal, tentar-se-á caracterizar só raramente concedido, mesmo aos que se poderia considerar
as personagens nela recorrentes seguindo o inventário das cate- protagonistas. No caso do Objecto visado pelo Sujeito-Monstro
gorias actanciais estabelecido por A. J. Greimas !*, embora de (quase sempre a possessão de uma figura humana ou o seu
forma breve e superficial, dado apenas se visar aqui um esboço aniquilamento), essa categoria actancial coincide na maioria
do modelo actancial típico do fantástico como contributo para das vezes com'a de Destinatário no actor que desempenha a
o delineamento dos contornos do género. função de Vítima. Por fim, quando a função de Adjuvante tem
90 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA - 4 PERSONAGEM 9]
realização na intriga, é quase sempre. nontada: a uma persorta- mentalmente a servir à acção e a fazer ecoar a perplexidade
gem muito secundária, perante ela, não a ser caracterizadas por seu intermédio, Por
“Torna-se, deste modo, claro que a estrutura actancialda outro: lado, recorde-se ainda que a instauração no texto de
narrativa do género se pode reduzir a um esquema extrema- figuras claramente alusivas a qualquer aspecto da realidade
mente simples pois, embora em certas obras a acção chegue económica, social ou cultural contemporânea da acção convi:
a atingir consideráveis graus de complexidade, a sua construção daria a excessos interpretativos, a leituras aleporizantes, sus-
já se torna possível a partir da reunião de um conjunto mínimo “ceptíveis de desfazer o equilíbrio da ambiguidade e a construção
de elementos. Como confirmação disto, basta lembrar que, na do género.
sua máxima simplificação actancial, uma história fantástica Porém, o sincretismo actancial atrás referido nem sempre
apenas exige a representação de um Monstro e de uma Vítima resulta numa diminuição do número de actores, podendo. tam-
(Sujeito e Destinatário, por vezes coincidente com o Objecto). bém ser usado em sentido inverso, sobretudo quandoa narra-
Com efeito, qualquer narrativa do género encenabasicamente tiva é extensa. Assim, não raro se verifica que diversas perso-
uma série de acontecimentos que conduzem à possessão de um nagens (com graus variáveis de mtervenção no desenrolar da
ou mais seres humanôós por uma êntidade alheia à natureza, história) desempenham a função de Destinatário-Vítima ** numa
sem que se torne sempre necessário o recurso a uma força mesma obra, o mesmo acontecendo amiúde com a categoria de
oposta à dinâmica da acção. Assim, embora quase sempre apa- Adjuvante. Até no que respeita ao Sujeito-Monstro e ao Opo-
reça incluída entre os actantes de maior relevo no contexto nente-Exterminador, a cada um dos quais corresponde geral-
de uma diegese fantástica, a própria categoria de Oponente- mente um só actor, é possível a ocorrência. de casos em que as
“Exterminador não é completamente indispensável, o mesmo personagens que os representam sejam duas ou mais *.
se podendo verificar no que toca às restantes funções actanciais.
- Feita uma primeira abordagem a diversas particularidades
Por outro lado, tal parcimónia de meios pode ainda ser
da realização textual de cada actante na narrativa fantástica,
reforçada pelo recurso ao sincretismo funcional, levando um só
convirá agora tentar sugerir.com maior nitidez o modelo
actor a: acumular as funções de dois ou mais actantes. Assim,
dentro de certos esquemas diegéticos, tornam-se admissíveis .
actancial por ela privilegiado. Para tal, deverá tomar-se em
diversos casos de coexistência de duas categorias actanciais consideração que o género encena acontecimentos e persona-
num só actor (Sujeito-Monstro + Destinatário-Vítima; Objecto- gens pretensamente originários de duas ordens diferentes de
“Vítima + Destinatário-Vítima; Destinatário-Vítima + Adjuvante. universos que se supõe interpenetrarem-se ao longo de uma
(Vítima depois de uma eventual transformação monstruosa), determinada parte 'da história. Ora, esses acontecimentos e
etc.) 'º.- Para além desta simbiose de dois actantes, é ainda: * personagens servem e veiculam valores considerados positivos
imaginável que tal aconteça com três (Sujeito-Monstro + Desti- ou negativos segundo os códigos axiológicos dominantes na opi-
natário-Vítima + Oponente-Exterminador (este, destinado a uma nião pública da época e espaço cultural em que a narrativa é
metamorfose em Monstro)) ou, mesmo, quatro, se às anterio- produzida. Torna-se, deste modo, óbvio que qualquer tentativa
res sê acrescentar a função de Objecto. no sentido de compreender a carga semântica do modelo actan-
Com tais potencialidades de simplificação “do: modelo cial do fantástico terá de levar em conta as estreitas relações
actancial, torna-se possível esboçar uma diegese inteiramente que nele se estabelecem entre os actantes, o universo (empírico
adequada às exigências do género com um número mínimo de ou meta-empírico) a que pertencem e os valores pelos quais
personagens. Observe-se, a propósito, que o. esquematismo fun- pautam a sua actuação. Daí a necessidade de combinar as várias
“cional destas é mais um dado a evidenciar o seu estatuto subal- Categorias actanciais com os dois sistemas de natureza e os
terno perante a acção. Como jáfoi assinalado, à narrativa do dois planos axiológicos coexistentes em qualquer narrativa do
género interessa sobretudo o que acontece (muito em particular, género, nos quais se integram as ocorrências, as figuras e o
a subversão doreal) e só subsidiariamente a quem acontece.ou próprio espaço nela representados.
quem, em última análise, possa ter dado origem ao acontecido. Dessa combinação resulta o quadro anexo. Em relação -a
Isto porque, no fantástico, as personagens destinam-se funda-. ele deve observar-se, antes de mais, que a ordem pela qual
92 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM . 95
MODELO ACTANCIAL DO FANTASTICO apenas ou principalmente com base no modelo actancial por
ele preferido, tem de se admitir que a análise deste fornece
Mundo empírico Mundo meta-empírico um contributo importante para alcançar tal objectivo. Por isso,
embora também no caso particular do fantástico o modelo
Positivo Negativo | Negativo Positivo actancial seja insuficiente para o caracterizar por completo,
o facto é que, além de reflectir a realização prática de vários
Monstro d dos seus traços, está intimamente ligado à indefinição natural/
SUJEITO ou
Vitima 2 /sobrenatural que, como já se acentuou, é essencial à manu-
tenção do equilíbrio do género.
“À Possessão Uma primeira verificação que este quadro possibilita é a
OBJECTO Vítima 1 (da Viti- de que os dois termos da oposição Bem/Mal, encenada pelo
ma 11)
fantástico de uma forma marcadamente maniqueísta, estão
servidos de modo desigual pelos actantes. Assim, à primeira
O Mal, o
vista, três categorias actanciais agem a favor das forças posi-
DESTINADOR Eor tivas: o Destinatário (e, neste caso, só a Vítima ainda não
ou omisso transformada pela manifestação meta-empírica (Vítima 1)), o
Oponente-Exterminador e o Objecto (sobretudo quando coin-
Figura Figura Mon:stro 2
es cide com a Vítima, mas com as óbvias restrições já referidas
ADJUVANTE DSG| O
(involun- | (volun- o
Vitima 2 em relação a esta). Porém, dois destes actantes raramente ser-
tariam/) | tariam/) vemo plano. positivo até ao fim da sua actuação na intriga,
vindo a ser eliminados dela ou passando a apoiar as forças
DESTINATARIO | Vítima 1 maléficas em resultado da metamorfose de que são objecto.
Com efeito, a Vítima apenas prossegue intentos positivos ao
O Bem,
E Extermi- Deus, ent, longo de uma fase, por vezes curta, da narrativa. Em geral,
OPONENTE nador desconhec, | vem a ser aniguilada pelo Monstro ou sofre os efeitos da
; | ou omisso possessão: (Vítima 2), passando, então, a situar-se no sector das
forças negativas, quer como Adjuvante, quer, mesmo, como
estão aqui mencionadas as várias categorias actanciais é inten- novo actor que execuia a função de Sujeito. Circunstâncias
cional. Com efeito, não se pretende neste caso verificar a exis- semelhantes se verificam no que toca ao Objecto quando este
tência de oposições binárias e parcelares (como Destinador/' coincide com o Destinatário-Vítima. Quando tal não acontece,
/Destinatário ou Adjuvante/Oponente), mas acentuar um anta- de resto, raras vezes aquela linha actancial terá qualquer peso
gonismo irredutível e de alcance mais vasto que divide em dois nodesenrolar da intriga. Resta o Oponente: este, comojá se viu,
campos tudo o que a narrativa fantástica evoca: forças posi- tem quase sempre a sua realização prática num ser humano
tivas (predominantemente identificadas com o mundo empírico) (o Exterminador), embora as funções que lhe cabem possam
versus forças negativas (sobretudo pertencentes ao plano meta- ser complementarmente desempenhadas por uma entidade do
-empírico). plano sobrenatural agindo de forma directa ou, o que é mais
A observação deste quadro conduz a algumas verificações frequente, através de objectos simbólicos (crucifixo, bala cle
susceptíveis de confirmar certas características do fantástico prata, amuleto, etc.). De qualquer modo, o Oponente constitui,
já postas em evidência, tornando também mais clara a forma de facto, a única vontade actuante que, com certa permanência,
específica como, de acordo com as regras daquele, se articulam se mantém do lado. das forças positivas. Recorde-se, contudo,
e organizam vários dos elementos da narrativa. Com efeito, que mesmo esta figura pode eventualmente tornar-se vítimado
mesmo que se considere rejeitável a perspectiva de que os Sujeito-Monstro e deixar de servir tais forças. Assim, qualquer
traços essenciais de qualquer género podem ser estabelecidos dos actores que combatem a favor dos valores positivos pods,
94 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM 95
em determinados contextos diegéticos, ser aniquilado ou enfi- mas também as relações que estas estabelecem entre si e com
leirar no sector axiológico oposto. os outros elementos já considerados essenciais à narrativa do
Já o plano negativo é servido de forma quase permanente . género. Para tal escolheu-se uma narrativa que, pela sua exten-
por três categorias actanciais (Sujeito, Destinador e Adjuvante), são e complexidade diegética, conta com um número apreciável
às quais se vêm por vezes juntar outras. Delas, a que mais de personagens; aliás pouco vulgar na maioria dos textos fan-
directamente influencia o decurso da acção é a de Sujeito tásticos: Dracula de Bram Stoker.
(Monstro 1), desempenhada por uma ou mais figuras ou pela Conforme se pode verificar pelo quadro anexo, a corres-
mera ocórrência sobrenatural, na: ausência daquelas. Este
actante pode surgir subitamente na intriga, irrompendo ex Mundo empírico ; Mundo meta-empírico
nihilo, ou resultar de uma personagem já antes instaurada na
narrativa, através da sua transformação (como Vítima) em “Positivo Negativo: Negativo | Positivo
Monstro (Vítima 2), por exemplo. Por seu turno, também o
Objecto pode, até certo ponto, ser incluído neste lado das SUJEITO : Dracula
facções em confronto, pois, se em princípio deve procurar evitar
os desígnios do Sujeito-Monstro e, consequentemente, o per- OBJECTO .“| Lucy
psd 1 Eon
(vampi-
curso negativo da' acção, irá muitas vezes ao seu encontro, em ; Mina, rismo)
particular devido a: desconhecimento das consequências daí
resultantes. De qualquer forma, virá a integrar-se no plano a | Entidade
maléfico, pelo menos depois de a metamorfose monstruosa ter | DESTINADOR; - desconhe-
lugar. Este plano é ainda favorecido pela funçãode Destinador, do, cida
quase sempre atribuída, embora raramente de forma explícita,
a abstracções de sentido negativo (o Mal, o Demónio ou qualquer Ee À Mulheres-
ADJUVANTE West ; O
entidade de índole similar). Finalmente, é o Adjuvante que,
para além de constituir a categoria actancial que promove os Mina, ete.
desígnios do Sujeito-Monstro de uma forma mais evidente, con-
| Lucy 1
centra em si muitas vezes o maior número e à mais variada Mina
proveniência de actores, embora geralmente secundários. Aqui, DESTINATÁRIO Renfield
a colaboração mais relevante a favor da linha tendencial da Morris, etc.
acção é, naturalmente, dada por entidades ou ocorrências extra-
naturais, expressas ou implícitas na intriga (Monstro 2), que Van
Helsing, à ia
não desempenhem a função de Sujeito: Por sua vez, também “OP Harker através
a Vítima metamorfoseada (Vítima 2) concorre activamente para
a prossecução dos intentos do Sujeito. Porém, tal apoio à força Seward, simbolos)
Godalming'
orientadora da acção não provém apenas de figuras sobrena-
turais, podendo ser tambémprestado por personagens humanas
de índole positiva ou negativa. No primeiro caso, o côntributo pondência entre as funções e os actores é geralmente idêntica
será sempre involuntário, enquanto no segundo já resulta em à que tem vindo a ser exposta nas últimas páginas, o mesmo
geral da vontade desses elementos auxiliares. acontecendo com a sua desigual distribuição pelos dois modelos
Como as questões respeitantes ao modelo actancial do de universo e de código de valores que se confrontam na
fantástico têm sido referidas até aqui em termos de genera- intriga, Daí que, no âmbito do presente estudo, não se torne
lidade e abstracção, torna-se conveniente passar agora ao plano mecessário acrescentar muito mais sobre esta organização actan-
do concreto, utilizando como exemplo uma obra que reflita cial específica, já que poucas personagens nela implicadas mere-
não só a realização efectiva das várias categorias actanciais, cem uma referência relevante. Com efeito, todas seguem sem
96 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM É 97
grandes desvios os princípios gerais detectáveis em inúmeras tivo. Além disso, tal característica contribui ainda, como já se
outras obras do género. Tal acontece, por maioria de razão, referiu, para demarcar o género de outras. áreas da literatura,
com o próprio Sujeito-Monstro, Dracula. Dele é dado um designadamente o maravilhoso.
retrato psicológico extremamente incompleto apesar da influên- Com efeito, o Sujeito do fantástico é negativo, enquanto
cia constante que exerce sobre toda a acção, tornando-se quase o actante com idênticas funções no maravilhoso (em particular,
omnipresente através de referências directas e indirectas das numa grande percentagem de contos populares, de contos de
personagens mais importantes. A isto deve acrescentar-se a fadas ou de narrativas do tipo «heroic fantasy») tem quase
escassez das suas presenças efectivas no decurso da intriga e, sempre realização num herói de sinal iniludivelmente positivo
sobretudo, o facto de se lhe notar uma quase total ausência à luz dos valores comuns. Por outro lado, a relação que se
de actividade reflexiva quer sobre si próprio, quer sobre o que
estabelece no fantástico entre o Destinatário e o Sujeito é dia-
o rodeia! Assim, longe de constituir uma excepção, esta metralmente oposta à que lhe corresponde no maravilhoso. No
figura confirma em grande medida o que tem sido referido
primeiro, o Destinatário é alvo dos desígnios maléficos do
sobre o tratamento mais frequente da personagem fantástica,
Sujeito que se lhe tornarão nefastos, enquanto no maravilhoso
particularmente do Monstro. De facto, embora por vezes se
procure aparentar o contrário, este deve ser envolvido num se passa o contrário, recolhendo quase sempre benefícios com
o desenlace da acção. .
vazio discursivo, nunca reflectindo sobre a sua condição nem
sendo exaustivamente retratado pelo narrador ou pelos outros Deve-se ainda sublinhar a importância que, tanto no fan-
actores. Também se nota na obra a existência de um acentuado tástico como no maravilhoso, é atribuída à categoria de Opo-
sincretismo no que concerne três actantes: Destinatário-Vitima nente, actante de peso relativamente menor na maioria das
(realizado por três actores, pelo menos), Oponente-Exterminador outras classes de narrativas 2º. Essa importância reflecte-se no
(no qual coincidem cinco personagens, embora apenas uma facto de tanto o Exterminador como o Vilão? constituírem
atinja a plenitude do cumprimento dessa função: Van Helsing) Tiguras-chave da diegese típica de cada um destes géneros,
e Adjuvante (atribuído a diversas figuras, tanto de índole posi- embora se demarquem abruptamente um do outro por estarem
tiva como negativa). Tal sincretismo deve-se, naturalmente, à situados em pólos axiológicos opostos. Com efeito, no maravi-
grande dimensão textual desta narrativa e ao consequente lhoso, o Oponente-Vilão é sempre uma figura negativa. Por seu
aumento do número de personagens que permite. turno, a índole (positiva segundoa ética corrente) do papel do
O modelo actancial privilegiado pela diegese fantástica Oponente-Exterminador torna ainda mais óbvio, por contraste,
confirma também verificações já feitas acerca de vários traços o carácter negativo da fenomenologia meta-empírica encenada
do género, contribuindo desse modo para o demarcar de na obra fantástica e da própria orientação geral da intriga,
formas literárias que lhe estão próximas. Assim, a distribuição antagonizadas que são por aquela figura.
majoritária dos actantes pelo mundo meta-empírico e pelo plano “Finalmente, acentue-se ainda a situação bastante secundária
axiológico negativo (quase sempre verificável na realização para que no fantástico é remetida a função de Objecto, ao
concreta desse modelo, os actores) confirma o facto, já várias invés do que acontece nos textos narrativos em geral e, não.
vezes sublinhado atrás, de que o sobrenatural negativo é sem- raro, no maravilhoso. Com efeito, para além da possessão ou
pre dominante na narrativa fantástica, ainda que por vezes aniquilamento da vítima, os esquemas diegéticos usuais no
coexista como seu homólogo positivo. género raras vezes visam desiderato mais vasto, quase nunca
Pode, portanto, considerar-se que a inclusão de uma obra havendo neles lugar para qualquer projecto ou. demanda de
no género (para além da sua temática dominante, da ambigui- grande alcance, capaz de conferir certa importância a esse
dade em que a deve envolver e de outros factores antes abor- actante. Demanda, busca, se existe, verifica-se quando muito
dados) decorre em grande medida do estatuto do actor ou por parte do Oponente-Exterminador. Porém, não se destina
actores que desempenham a função de Sujeito: a narrativa só basicamente a salvar outrem ou a obter algo de positivo em si,
se inscreverá no fantástico quando a figura ou fenómeno incum- procurando sobretudo destruir a entidade negativa, o Sujeito-
bidos desta função provierem do plano dosobrenatural nega- “Monstro.
98 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
A PERSONAGEM Bo
Apesar do estatuto de certo modo privilegiado das figuras -resignado da fenomenologia meta-empírica. Finalmente, será
que realizam os três actantes fundamentais do género (Sujeito, na terceira versão do protagonista fantástico, o Oponente-Exter-
Destinatário e Oponente), também nelas se verificam, embora minador, que se pode encontrar uma vontade mais acentuada
com diversas gradações, os traços básicos atrás detectados na e mais «pessoal», sobretudo quando o esquema diegético o
personagem fantástica em geral, nomeadamente a escassez de destina a vencer no fim a manifestação extranatural. Contudo,
caracterização e a passividade que revela. mesmo neste caso, não é propriamente como indivíduo que
No concernente à diminuta caracterização dos actores ele age, mas como representante e braço armado da «normali-
integráveis em qualquer destas categorias actanciais, o Monstro dade», da humanidade dita sã. +
poderá por vezes dar a impressão de ser a figura mais elabo- Emtermos gerais, esta situação do protagonista da ficção
rada no tocante ao aspecto físico, já que é muito raro tal fantástica, confrontado e quase sempre vencido pelo (para ele) .
suceder a respeito do seu presumível mundo psíquico. Sobre- insondável, tem algumas semelhanças com a do herói trágico.
tudo quando constitui a manifestação essencial ou única da Por vezes, a sua evolução segue este de muito perto: a prática
fenomenologia meta-empírica expressa na história, não. pode de uma acção desmedida, excessiva, conduz à queda, amiúde
deixar de receber uma percentagemmais considerável dos: resultante de vingança divina ou da maquinação de forças
elementos de caracterização (de qualquer modo,escassos e indi- nebulosas. Mais tarde, geralmente à custa da própria vida,
rectos) atribuíveis às personagens fantásticas. Porém, tais ele- o herói consegue redimir-se, «purificar-se». Algumas figuras
mentos quase sempre o definem apenas enquanto entidade fantásticas chegam a cumprir várias destas etapas de forma
extranatural, dado que pouco interessa como meio de repre- bastante precisa, como é o caso do protagonista de The Case
sentação ou recriação do real humano. A Vítima e o Extermi- of Charles Dexter Ward de H. P. Lovecraft. Dele diz uma per-
nador, por seu turno, seguem na maioria dos casos figurinos sonagem:
bastante padronizados que pouco lugar deixam à criação de
figuras que não sirvam estritamente. as necessidades da cons- «... ele era... apenas um rapaz ávido, estudioso e
trução do género. - cheio de curiosidade cujo amor pelo mistério e pelo
Também no que toca à passividade perante os aconteci- passado foi a sua perda. Tropeçou em coisas eterna-
mentos estas personagens têm muito em comum. OSujeito- mente vedadas ao conhecimento de qualquer mortal e
“Monstro ostenta frequentemente um inegável voluntarismo que, investigou o passado como ninguém deveria jamais
no entanto, não lhe pertence enquanto figura individualizada, ter feito; e algo veio da noite dos tempos para tomar
sendo antes atribuível à globalidade da fenomenologia meta- posse dele» 22,
empírica ou a qualquer vaga entidade que porventura desem-
penhe a função, raras vezes aparente, de Destinador. De facto; Porém, nesta evolução parcialmente trágica da personagem
o Monsiro quase sempre intervém na acção como um simples fantástica nem sempre há lugar para a catarse, podendo surgir,
veículo da verdadeira origem do 'malefício. Assim, o lobisomem, em vez dela, uma «purificação» negativa, regressiva, através
o vampiro e a maioria dos seres abomináveis que amiúde da qual o homem se confunde cada vez mais com o animalesco
ocorrem em narrativas do género não têm em régra «culpa de e o monstruoso 2º;
ser assim», aparecendo geralmente como objectos que agem
segundo uma vontade «outra». Perdida a sua identidade origi-
«... a mudança na maneira de ser, atitudes e lin-
nária ao serem conquistados pela abominação que os trans-
formou em coisas aberrantes, só uma outra irrupção do sobre- guagem de Akeley ultrapassava de longe tudo o que é
normal ou calculável. Toda a sua personalidade parecia
natural, igualmente poderosa mas de sinal contrário, lhes possi-
ter passado por uma insidiosa mutação...» ?*.
bilitará por fim o regresso à condição humana ou, com maior
frequência, o aniquilamento definitivo. Já o Destinatário-Vítima
raras vezes aparenta ser dotado de assinalável vontade, reme-
«Ele disse que Pickman se lhe tornava cada vez
mais repelente e, nos últimos tempos, quase o aterro-
tendo-se quase inteiramente ao seu papl de objecto semi-
rizava— que o aspecto e a expressão do indivíduo
100 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM 101
estavam lentamente a modificar-se de uma forma que “este carácter seja mais evidente no primeiro do que no segundo.
não lhe agradava; de uma forma que não era humana»*, Porém, no conflito que os opõe à sociedade, os heróis fan-
tásticos atentam quase exclusivamente contra aspectos formais
- «,... UMa coisa imunda e esbranquiçada, semelhante dela, não pondo em risco as suas estruturas fundamentais.
a um gorila, com caninos amarelos e aguçados e pêlo Poucos são os elementos realmente importantes que a actuação
baço. Era o produto final da degeneração; o tremendo quase sempre inócua da Vítima faz perigar, enquanto o Monstro
resultado de procriação incestuosa ao longo de gerações se restringe em regra à alegada violação da natureza conhecida.
e de canibalismo...» 28, Ameaças ao equilíbrio do edifício social são raras, exceptuando
os casos em que a sua relação frequente com a sexualidade
A personagem principal é, assim, uma figura singular
excessiva ou pervertida pode ser tomada como contestação
marcada por um certo número de acontecimentos de ordem
extranatural que a aniquilam ou a transformam completa- de certos aspectos da moral convencional, designadamente as
| mente. Em certos casos, sobretudo em narrativas cuja extensão
limitações por ela impostas às práticas eróticas *.
permite uma maior prodigalidade de processos, nota-se mesmo Assim, para além da crítica, mais subentendida do que
algo como um percurso iniciático de sentido inverso aberto explícita, a algumas pecularidades da ética dominante, nenhuma
à Vítima e, por vezes, ao Exterminador: ambos são submergidos subversão importante é de esperar de qualquer. dos comedidos
na abominação, afundando-se cada vez mais na teia de acon- protagonistas da ficção fantástica, a não ser uma ilusória
tecimentos e figuras inexplicáveis, o que se reflecte, como foi transfiguração do real. Esta posição transigente ou pseudocrí-
referido antes, na sua degeneração física e/ou psíquica. tica em relação ao sistema social onde se integram ouse intro-
Também se sublinhou atrás que as principais personagens duziram é complementada pelo estatuto de classe que geral-
da narrativa fantástica, particularmente as humanas, devem mente se lhes atribui. Na sua imensa maioria são, como já se
sobretudo propiciar a identificação do receptor do enunciado acentuou atrás, individualidades consideradas respeitáveis: aris-
com os meandros da acção, servindo-lhe de modelos de leitura. tocratas (ainda vulgares em narrativas do século XIX) ou figuras
Deste modo, muitas delas, em especial a Vítima e o Extermi- da alta e média burguesia, com fortunas implícitas ou pro-
nador, são construídas de forma a tornar admissível ao leitor fissões que as situam nos estratos privilegiados da sociedade.
tudo o que de alucinante lhes sucede, pelo que essas figuras De resto, as características destes arremedos de anti-herói ade-
não podem deixar de reflectir, embora nem sempre de forma quam-se inteiramente aos objectivos visados pelo género. Nele,
rigorosamente especular, certas coordenadas ideológicas a ele com efeito, a personagem deve promover a identificação do
familiares. Daí terem muito do homem comum, observando leitor com a ambiguidade da sua situação perante o sobrena-
padrões de comportamento conformes à média e assumindo tural, mas, ao mesmo tempo, evitar apontar-lhe possíveis inter-
um estatuto social que, principalmente no caso do Extermi- pretações heterodoxas dessa situação, o que naturalmente acon-
nador, consiga impor-se ao receptor real do enunciado como teceria se a sua relação com o todo social fosse menos acomo-
garante da veracidade das ocorrências insólitas relatadas. datícia e mais interveniente ou crítica,
" Deste modo, em relação à sociedade que os integra, os As referências até agora feitas às personagens têm abor-
protagonistas da ficção fantástica têm atitudes geralmente coin- dado quase exclusivamente os protagonistas, deixando numa
cidentes no essencial, embora divergindo em aspectos acessó- zona de sombra, aliás merecida, as figuras secundárias. Nestas,
rios. O Exterminador, em particular, resulta quase sempre com efeito, poderá por vezes encontrar-se um maior grau de
muma figura conforme aos códigos de respeitabilidade social verdade, uma caracterização mais cuidada, mas raramente che-
decorrentes da ideologia dominante *”, arvorando-se amiúde gam a assumir um papel de certo relevo na acção, até porque
em defensor dos seus valores, de resto só aparentemente a parcimónia textual comum nas narrativas do género não o
antagonizados pela fenomenologia meta-empírica. Já os outros permite. Em certos casos, é sua função contrastar com o
dois actantes básicos (Sujeito-Monstro e Destinatário-Vítima) excessivo pendor para o imaginário revelado pela anormalidade
podem, até certo ponto e cada um à sua maneira, inscrever-se das manifestações insólitas e de alguns protagonistas ou pelo
na categoria dos anti-heróis legados pelo Romantismo, embora carácter demasiado. alucinante do espaço onde se desenrola a
102 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM , 103
acção. Poderão, assim, tornar-se umaã espécie de âncoras lan- do que no seu activo, pois se torna quase sempre vítima
cadas aoquotidiano, contribuindo para evitar que a narrativa deles), para o pobre desnorteado e inquieto, deverá
resvale para o maravilhoso ou se torné grotesca. Porém, mesmo tratar-se, infelizmente, de uma percepção autêntica e
neste particular, a sua eficácia é quase sempre diminuta, dado indubitável» *º,
pertencerem em regra a camadas sociais consideradas infe-
riores, o que retira credibilidade ao seu testemunho das ocorrên- Assim, a personagem está até certo ponto condicionada
cias que presenciam: por um papel idêntico aquele que é destinado ao narratário,
constituindo mais um meio de o propor e tornar.aceitável ao
- «Cheguei à conclusão de que tais testemunhas leitor real. Daí resulta também o ar estereotipado e convencional
— em todos os casos, habitantes simplórios e modestos da suacaracterização, já que tal papel lhe impõe limites e
das zonas florestais — tinham visto os corpos despeda- condicionamentos geralmente estreitos. Por exemplo, a acei-
cados e entúmecidos de seres humanos ou animais do- tação imediata da hipótese sobrenatural por parte dela não
“mésticos... é vagas lembranças de lendas levaram-nos a convém ao equilíbrio do fantástico. Quando a evidência da
atribuir características fantásticas a estes objectos. manifestação meta-empírica deixar pouco lugar a dúvidas,
deploráveis.». deverá, mesmo. assim, despertar nela tentativas de explicação
- «Eu poderia levar alguns elementos da população lógica e, sobretudo, a perplexidade que se pretende comunicar
ighorante a testemunhar a meu favor sobre a realidade ao destinatário do enunciado. Em contrapartida, a demonstra-
dos acontecimentos horríveis, mas'todos se riem do que ção de uma certeza absoluta da existência da fenomenologia
eles dizem...» ?º insólita poderá contribuir para remeter a narrativa para o
maravilhoso. Por motivos similares, a rejeição pura e simples
Com efeito, a reacção dúbia perante a manifestação extra- da subversão do real por'parte da personagem (quer se deva
natural que se pretende suscitar na leitura deve-ser predo- a cepticismo, racionalização plena ou qualquer outra razão)
minantemente veiculada por um protagonista, tornando-se con- tão-pouco se adequa às exigências do género. Em consequência,
veniente o apagamento quase completo dos figurantes, tanto a reacção mais propícia à identificação leitor-personagem é a
na condição social para que são remetidos como na insigni- incerteza, a dúvida angustiada por parte desta, ainda que tal
ficância da função que se lhes confere na intriga. atitude não seja, naturalmente, verificável em todas as obras.
Do que atrás foi referido decorre com clareza a existência Finalmente, também o medo se torna relevante como efeito
de um conjunto de linhas definidoras da actuação da perso da manifestação meta-empírica quando enquadrado no con-
nagem. fantástica quea condicionam apertadamente. De facto, Junto das reacções da personagem, pelo que faz quase sempre
ela integra-se numa das construções narrativas mais artificiais parte das linhas fundamentais do papel a ela atribuído. Esse
e mistificadoras a que a literatura recorre com o objectivo de comportamento contribui amiúde para acentuar a identificação
conduzir o destinatário da enunciação a um determinado tipo do leitor real com a matéria narrada, sobretudo se, como será
de leitura. Assim, a sua caracterização depende sobretudo focado a seguir, o narrador coincidir com a personagem.
. da necessidade de provocar a identificação do receptor real da
obra, pondo-o de chofre perante a manifestação sobrenatural
e proporcionando-lhe uma percepção tão completa e convincente
quanto possível da pretensa veracidade dela sem, contudo, o “ Notas
deixar esquecer que se encontra num mundo aparentemente
real. Daí, deverem os protagonistas (em particular, o Destina- 1, Cf. Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique,
tário-Vítima) confórmar-se em grande medida à actuação des- Seuil, Paris, 1970: «O fantástico implica... uma integração do leitor
no mundo das personagens...» i(p. 35); «Diremos que essa regra da
crita por Bellemin-Noél: identificação constitui uma condição facultativa do fantástico: ele
pode existir sem a satisfazer, mas a maioria das obras fantásticas -
- para o herói, para aquele em cuja conta estão segue-a.» (p. 36), Veja-se também Jean Bellemin-iNoél, Notes sur Le
tópistidos os fenómenos insólitos (mais no seu passivo fantastique (textes de Théophile Gautier), in Littérature: n.º 8,
104 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM 105
Larousse, Paris, 1972: «Devemos participar na história com o herói 10 Veja-se a descrição, por H. P. Lovecrait, do herói-tipo de
que a vive, empenhando nela o nosso «eu», com um máximo de Edgar Poe citada na nota 6 deste capítulo. Igualmente estereotipados
investimento afectivo...» (p. 14). são, por exemplo, os heróis do próprio Lovecraft ou as figuras femi-
2 Cf. Maurice Lévy, Lovecrajt, Union Générale d'Editions, ninas de Arthur Machen, o mesmo acontecendo, de resto, com a
Paris, 1972: «Quanto a nós, o fantástico nasce do divórcio que se maioria das personagens das narrativas do género, Sobre este assunto,
instala entre a lucidez perfeita das personagens e as imagens do veja-se ainda a nota 15 do capítulo «A falsidade verosímils».
sonho que elas atravessam. À falta de critério mais preciso, poder-se-ia 1 Entre os inúmeros exemunlos possíveis do Teiticeiro como
quase medir o fantástico, por um lado, pelo grau de vigília do personagem-tipo da narrativa fantástica, pode referir-se várias figuras
herói e, por outro, pela intensidade onirica das imagens que o fictícias de Lovecraft, como Joseph Curwen (H. PP, Lovecraft, The
rodeiam.» (p. 11). : Case of Charles Dexter Ward, Panther Books, London, 1969), Ephraim
s Cf. Peter Penzoldt, The Supernatural im Fiction, Peter Waite (H, P. Lovecraft, The Thing on the Doorstep, in H, P, Love-
Nevill, London, 1952, p. 11: «...a história de fantasmas trata de uma craft, The Haunter of the Dark and other tales of terror, Panther
manifestação incrível e sobrenatural em circunstâncias de realidade. Books, London, 1963) ou Robert Suydam (H. P. Lovecraft, The
O clímax é geralmente alcançado quando a manifestação ocorre; Horror at Red Hook, in H. P, Lovecraft, The Tomb and other
tudo o mais é exposição, preparação psicológica do leitor para os tales, Panther Books, London, 1970). Clark Ashton Smith descreve
eventos incríveis, Não há lugar para um enredo. Toda a história assim uma outra figura deste tipo, John Carnby, protagonista do
está centrada na aparição.» seu conto The Return of the Sorcerer (in Michel Parry ,ed,), The
: * H. P. Lovecraft, Supernatural Horror in Literature, Dover Second Mayilower Book of Black Magic Stories, Maytflower Books,
Publications, New York, 1973, p. 59, Frogmore (St. Albans), 1974, p, 47): «Tinha todas as características
5 Cf. Darko Suvin, La science-fiction ét la jungle des genres, do estudioso solitário que devotou anos pacientes a um trabalho de
um voyage extraordinaire i(tradução do inglês por Jacques Favier), investigação erudita. Era magro e corcovado, com uma testa maciça
in Littérature n.º 10, Larousse, Paris, 1973, p. 104: «... o mundo fan- e uma juba de cabelo grisalho; a palidez da biblioteca reflectia-se-lhe
tástico estã orientado negativamente em relação ao seu protagonista: no rosto encovado e sem barba. Mas, a par disto, havia nele um ar
uma narrativa fantástica é caracterizada pela crescente angústia de extremo nervosismo, um retraimento temeroso, mais acentuado
do herói.» : , do que a normal timidez de um recluso, e uma apreensão incessante
8 Cf. a descrição do herói típico de Edgar Poe feita por transparecendo em cada olhar febril e sombrio e em cada movimento
H. P. Lovecraft em Supernatural Horror im Literature, Dover Publica- das suas mãos ossudas. Era evidente que o trabalho excessivo lhe
tions, New Tork, 1978, p. 59: «O seu protagonista típico é geral- tinha enfraquecido gravemente a saúde, pelo que não pude deixar
mente um cavalheiro de antiga família e meios opulentos, sombrio, de me interrogar sobre a índole dos estudos que tinham feito dele
elegante, orgulhoso, melancólico, intelectual, altamente sensível, capri- um destroço trémulo. (Mas havia algo nele — talvez a largura dos
choso, introspectivo, isolado e, por vezes, ligeiramente louco, Em ombros arqueados e os traços aquilinos do contorno do rosto — que
regra muito versado em ciências ocultas e tendo a ambição sinistra dava a impressão de uma força outrora enorme e de um vigor ainda
de penetrar em segredos proibidos do universo.»; «...o seu carácter não inteiramente gasto.» Sobre a figura ido «exterminador», veja-se
melancólico, ambicioso e anti-social lembra o herói byroniano típico...» “a nota 14 deste capítulo.
Também Louis Vax se refere ao protagonista fantástico em termos 12 Os primeiros exemplos de Monstro são já visíveis no
similares: «... personagem autista, solitária, que é o herói-vítima habi- romance gótico: é o caso do protagonista de Melmoth the Wanderer
tual do conto fantástico.» (in L'art et la littérature fantastigues, de Charles Robert Maturin (Penguin Books, Harmondsworth, 1977).
PU, Paris, 1974, p. 125). Versões mais modernas desta. personagem-tipo da narrativa fantástica
; 7 Kingsley Amis, Inroduction, in Sarban, The Sound .of his são, entre muitos outros, Dracula (veja-se, atrás, a mota 15 do capítulo
Horn, Sphere Books, London, 1969, p. 6., , «A falsidade verosímil») ou Joseph Curwen (veja-se a nota 11 deste
8 Dracula de Bram Stoker, por exemplo, é muito pobre no capítulo), O Monstro pode apresentar forma humana, revestir uma
tocante à caracterização das personagens, apesar da sua apreciável configuração humanóide, animalesca ou híbrida (o vampiro, o lobi-
dimensão textual e de mele serem bastante elaborados diversos somem ou o fantasma, por exemplo) ou, até, não conservar qualquer
aspectos que poderiam concorrer para 0 aprofundamento dessa caracte- traço de antropomorfismo, com as «coisas» inomináveis de várias
rização, nomeadamente a tessitura de documentos que constitui a narrativas de M. R. James e de H. P, Lovecraft ou a abominação
narrativa. Gérard Stein refere esta escassez de dados sobre as perso- de Negotium Perambulans... (in E. F. Benson, The Horror Horn and
nagens em «Dracula» ou la circulation du «sans» (in Littérature other Stories, Panther Books, Frogmore (St. Albans), 1974). A mani
n.º 8 Larousse, Paris, 1972): «Com esta multiplicação de meios, festação meta-empírica pode, ainda, partir de um objecto inanimado
Stoker parece dispor de todos os elementos para fazer do seu texto. ou tornar-se perceptível apenas através dos efeitos que provoca, sem
um romance de caracteres psicológicos profundos e «matizados>, Ora, que alguma vez lhe seja atribuida qualquer forma. Sobre este assunto,
nada disso aparece, Nenhum drama interior e poucas tonalidades veja-se ainda Fritz Leiber, Monsters ond Monster Lovers, in Fritz
nestas personagens estereotipadss...» (p. 86). 8 . Leiber, The Book of Fritz Leiber, Daw Books, New York, I9T4.
º «Flat character» é a expressão usada por E. M, Forester em — “13 Exemplos desta figura: o narrador de Le Horia de Guy
Aspects of the Novel, Penguin Books, Harmondsworth, 1976, pp: 73-77. de Maupassant (Le Livre de Poche, Paris); Lucy Westenra e Mina
106 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A PERSONAGEM 107
Harker (em Bram Stoker, Dracula, Pocket Books, New York, 1947):
Henry Akeley (H. P. Lovecraft, The Whisperer in Darkness, in actor a dado passo da narrativa. Por exemplo, Joseph Curwen e
H. P, Lovecraft, The Haunter of the Dari and other idles of terror, Charles Dexter Wand, o Monstro e a Vítima de The Case of Charles
Panther Books, London, 1963); Charles Dexter Ward (H. P. Love- Dexter Ward de H. P. Lovecraft (Panther Books, London, 1969) quase
craft, The Case of Charles Dexter Ward, Panther Books, London, 1969). se tornam indissociáveis um do outro devido à total semelhança
is Este tipo de personagem, muito vulgar na narrativa fan. física e, sobretudo, à possessão gradual do segundo pelo primeiro.
tástica de expressão inglesa, é bem exemplificado pelo prof. Van O mesmo caso de sincretismo actancial se verifica em Drecula de
Helsing (Bram Stoker, Dracula: veja-se a nota anterior) ou pelo Bram Stoker (Pocket Books, New York, 1947) com a figura de
dr. Willet (H. P. Lovecraft, The Case of Charles Dexter Ward; veja-se Lucy Westenra que, de ser humano vitimado pelo Monstro, se trans-
formará em mulher-vampiro.
a nota anterior). Vários autores criaram mesmo um «ghost hunter»
(«caçador de fantasmas»), utilizando-o em, diversas narrativas: é o 17 Em Dracula de Bram Stoker (Pocket Books, New York,
caso de Carnacki, o investigador de The Whistling Room e. outros 1947), por exemplo, são pelo menos três as personagens que desem-
contos de William Hope Hodgson, por este coligidos em Carnacki, the penham a função de Vítima: Lucy, Mina, Renfield, Porêm, a esta
Ghost Finder, E, Nash, London, 1909. Outro exemplo de Exterminador lista, poderá ainda acrescentar-se outras, como Mrs. Westenra, Quin-
- comum a várias histórias é John Silence, protagonista da colectânea cey Morris, etc, | '
de Algernon Blockwood, John Silence, Physician Extraordinary, 18 Em Tie Dunwich Horror de H. P. Lovecraft (in H. P; Love-
E. Nash. London, 1908. De certa maneira, tambémse pode incluir craft, The Haunter of the Dark and other tales of terror, Panther
neste tipo de personagem wma figura de uma narrativa muito mais Books, London, 1963), são instaurados dois Sujeitos (Wilbur Wha-
recente: o pequeno Douglas do conto de Ray Bradbury, The Man teley e o seu «irmão», invisível e completamente alheio à espécie
Upstairs (in Ray Bradbury, The October Couniry, Ballantine Books, humana). Na mesma narrativa, os Oponentes são três (Armitage,
New York, s.d.). Rice e Morgan), embora só o primeiro tenha funções de relevo na
75 Na sequência de estudos elaborados por outros autores, intriga, :
A. J, Greimas estabeleceu as seis funções essenciais tpor ele denomi- & 19 Cf. Gérard Stein, «Dracula» ou la' circulation du «sans»,
nadas actantes) a que se pode reduzir a acção de qualquer narra- in Littérature n.º 8, Larousse, Paris, 1972, sobretudo: «... convém
tiva: Sujeito, Objecto, Destinador, Destinatário, Adjuvante e Opo- interrogar o texto, mas, de modo algum, fazer a pergunta: quem fala”?
nente. Qualquer dessas funções pode ser desempenhada por um. ou Para essa, a resposta é múltipla. Antes a pergunta: quem é que não
mais actores, expressão que Greimas prefere a personagem e que fala? Neste caso, a resposta é unívoca: só Drácula se cala. De facto,
designa toda a espécie de elementos susceptíveis de intervir na acção é em redor do seu silêncio que se constitui o discurso dos outros, que
(figuras humanas,. entidades sobrenaturais, conceitos, animais ou é essencialmente discurso sobre ele.» '(p. 85); «...se o romance se
objectos). Por seu turno, cada actor pode constituir a realização chama Dracula, de que elementos dispomos para falar do carácter
textual de um ou mais actantes, Nem todas as narrativas recorrem do Conde? A resposta encontra-se no texto sob a forma de uma
às seis funções atrás referidas. De qualquer modo, a dinâmica da ausência. Nenhum documento é da autoria de Dracula, Se tudo lá
acção baseia-se sempre no facto de o. Sujeito desejar determinado fala dele, ele não fala /(...) Assim, o romance funciona à volta de
Objecto (concreto ou abstracto) e, naturalmente, tentar alcançã-lo. uma ausência, o discurso de Dracula sobre si próprio. Silêncio à
Tal desejo e a busca dele resultante São propiciados e condicionados volta do qual se constitui a estrutura do romance...» (p. 86).
pelo Destinador, enquanto as consequências (benéficas ou maléficas) 20 Cf. A, J. Greimas, Sémantique structurale, Larousse, Paris,
da acção recaem sobre o. Destinatário, Por seu turno, o Adjuvante 1966, p. 179. Sobre as categorias de Adjuvante e Oponente, diz O
concorre para o desenvolvimento da linha, tendencial da acção auxi- autor: «O que se torna notável... é o carácter secundário destes
liando o Sujeito a conseguir o Objecto, enquanto o Oponente procurará - dois... actantes.»; «,.. poder-se-ia dizer... que se trata, neste caso, de
impedir que tal se verifique. O conjunto das relações que os actantes «participantes» circunstanciais e não de verdadeiros actantes. do
estabelecem entre si, numa determinada narrativa ou num grupo espectáculo.»
de narrativas de características idênticas, denomina-se modelo actan- 2 Emprega-sê aqui este termo por se tratar de uma designa-
cial. Sobre este assunto, veja-se A, J. 'Greimas, Sémantigque Structu- ção usual do Oponente em qualquer narrativa cuja acção se desen-
rale, Larousse, Paris; 1966, sobretudo pp. 172-191. Do mesmo autor, volva num sentido positivo segundo os valores comuns. Este actante
veja-se ainda: Du. sens (essais sémiotiques), Seuil, Paris, 1970, corresponde à «esfera de acção» denominada «agressor» (ou «mau»)
pp. 249-270; Maupassant (La sémiotique du texte: exercices pratiques), por Vladimir Propp em Morphologie du conte (tradução do russo
- Seuil, Paris, 1976, passim. Veja-se também A, J, Greimas e Joseph por Marguerite Derrida), Seuil, Paris, 1970, p. 96.
Courtês, Sémiotique — Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, 22 H. P. Lovecraft, The Case of Charles Dexter Ward, Panther
Hachette, Paris, 1979; Philippe Hamon, Pour un statut semiologique - Books, London, 1969, pp. 123-124. Outro exemplo deste pendor trá.
du personnage, in Gérard Genette e Tavetan Todorov (eds.), Poétique gico de muitos protagonistas de narrativas fantásticas é a figura
. de Jarmoskowski, o lobisomem de There shall be no Darkness de
du récit, Seuil, Paris, 1977.
James Blish (in Zacherleys Vulture Stew, Ballantine Books, New
is Dado que é vulgar a Vítima atacada sofrer a metamorfose
em Monstro e reproduzir desse modo a. subversão do real, os actantes York, 1960).: :
Destinatário e Sujeito podem frequentemente vir a coincidir no mesmo ' 23 Cf, Louis Vax, Lart et la lKitérature fantastiques, PU,
Paris, 1974, p, 122: «O herói clássico combate os maus, a doença
108 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
acontecimentos (mesmo quando não está representado nela As vantagens resultantes para o fantástico do emprego
como actor), a simples verificação do uso desta ou daquela deste narrador implicado na acção superam largamente os
pessoa na narração está longe de ser suficiente para se com- “inconvenientes ou carências que possa revelar. Assim, se por
preender as suas múltiplas características e virtualidades, bem vezes perde em rigor de análise e frieza no relato dos aconte-
como as diversas formas que pode assumir. Isso só se tornará cimentos (características, aliás, amiúde nocivas à construção
exequível mediante a análise do seu estatuto e das perspectivas do género), ganha emparticipação interessada no desenrolar
que adopta, nomeadamente a frequência com que se encontra da acção e, por consequência, em capacidade probatória acerca
presente na acção, o grau do seu conhecimento sobre os mean- daquilo que conta. Daí não poder deixar de aparecer muito
dros desta, as posições temporais em que se situa ao narrar, as mais influenciado pelo carácter inexplicável dos fenómenos que
«distâncias» que o separam das outras personagens e do pró- presencia ou experimenta, muito mais directamente afectado
por eles, sendo assim mais persuasivo do que o narrador ausente
prio destinatário da enunciação, bem como o teor das relações
da intriga e mais apropriado do que ele a transmitir ao destina-
que estabelece com os restantes elementos da obra de que
tário da enunciação a incerteza permanente que a narrativa
é produtor fictício. deve sugerir.
O narrador mais frequente no género fantástico é do tipo Porém, embora favorável ao género, a participação do
“extradiegético *, situando-se, desse modo, no que Gérard Genette narrador nos acontecimentos insólitos que relata não deve ser
chama primeiro nível narrativo. Tal estatuto deve-se em grande “demasiado intensa, razão pela qual esta figura é em geral homo-
medida à diminuta extensão da maioria dos textos do género, diegética, coincidindo com uma personagem secundária, e, só
o que frequentemente impede a preparação necessária ao esta-- mais raramente, assumindo o estatuto da autodiegese. Isto
belecimento de um segundo nível narrativo na obra. explica-se tendo em conta o carácter mais comum do protago-
“- Jásoba perspectiva da relação que mantém com a intriga nista da narrativa fantástica, figura claudicante que perde quase
por ele relatada (particularmente da maior ou menor frequência invariavelmente com as forças desconhecidas geradoras da
e duração da sua presença nela), o narrador mais comum no subversão das leis naturais, quando não é ele próprio veículo
género é, como se acentuou antes, aquele que coincide com de tais forças. O efeito dessa derrota perante o sobrenatural
uma personagem. Trata-se, portanto, de uma figura com dupla será muitas vezes a morte, a loucura ou uma metamorfose
incumbência, de um narrador-actor, que na maioria das vezes monstruosa. Nos dois primeiros casos, o protagonista tornar-
“coincide com um comparsa e não propriamente com o prota- -se-ia um narrador «impossível» ou, pelo menos, pouco convin-
gonista. Por isso, recorrendo ainda à terminologia de Genette *, cente, perdendo peso no que respeita à sua função testemunhal,
é em geral homodiegético, embora mais raramente possa surgir - sobretudo quando atingisse a plenitude da condição de Vítima.
como autodiegético (quando coincide com a personagem prin- Paralelamente, o Sujeito-Monstro, agente da própria trans-
cipal da narrativa). O sujeito da enunciação está, por. conse- gressão do real, não mereceria maior confiança como narrador
quência, presente na história como uma personagem cuja exclusivo pois viria a produzir uma versão demasiado parcial
importância pode variar de texto para texto, exprimindo-se na ou demasiado alucinante, «outra», dos fenómenos “que rela-
primeira pessoa e recorrendo por vezes a uma narração baseada tasse ”, ;
em (ou constante de) diversos tipos de documentos fictícios, - Contudo, as dificuldades resultantes da excessiva: partici-
como as memórias, o diário íntimo, as cartas e outros*. Con- pação do protagonista na teia: dos acontecimentos insólitos
tudo, embora o uso destes processos noutros géneros vise podem ser superadas se a função do narrador aparecer como
em geral acentuar a subjectividade das personagens, intensifi- que «desdobrada» em dois. Desse modo, estabelece-se uma
cando e aprofundando a sua caracterização psicológica, no fan- distinção entre o narrador enquanto protagonista (que «vive»
tástico eles actuam preferencialmente como apoios para a con- a subversão do real e, posto perante o inadmissível, se torna
firmação da fenomenologia meta-empírica º, tentando conferir- incapaz de uma narração exacta, clara e desapaixonada do acon-
lhe credibilidade pela feição testemunhal que aparentam tecido) e o que Bellemin-Noél denomina narrador-testemunha,
assumir. . «quer um outro, lúcido e não completamente traumatizado,
112 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA O NARRADOR-ACTOR 113
quer o herói numa outra época da sua vida»*. Neste caso, O poucas vezes será directamente afectado por ela. Por outro
desdobramento da personagem* subentende diferenças ou, lado, é usual criar-se em relação a ele a suposição de ter ante-
melhor, distâncias entre os dois «eu» do narrador autodiegé- riormente acumulado consideráveis conhecimentos sobre diver-
tico: distância temporal (a narração é efectuada num período sos aspectos dessa fenomenologia. Tal estatuto permite-lhe
mais tardio) e outras dela decorrentes: distância psicológica, simultaneamente referir-se ex professo às suas manifestações,
distância no que respeita aos códigos da moral convencional,etc. não ser colhido de surpresa por elas e, ainda, funcionar
Por seu turno, a função de narrador-testemunha poderia ainda como uma espécie de ponte entre o sobrenatural que conhece
ser desempenhada não através de um único actor, mas de e o mundo «normal» que procura defender.
vários, tornando-se assim passível de novo desdobramento *º, Como se referiu atrás'”, a função de narrador-actor é
Do mesmo modo que a excessiva proximidade entre o também frequentemente desempenhada por uma personagem
narrador e a própria fenomenologia meta-empírica se torna vulgar na narrativa fantástica (o «céptico»), podendo neste caso
nociva à verosimilhança das ocorrências relatadas, também o coincidir com o Oponente-Exterminador ou com uma figura
conhecimento total dos meandros da intriga por parte dele secundária. Geralmente «convencido» a dado passo da narrativa
pode ser desfavorável ao equilíbrio do género. Com efeito, se da veracidade irrecusável da manifestação sobrenatural, o
tal conhecimento transparecer demasiado na narração (sob a «céptico» contribui para facilitar a identificação do leitor com
forma de explicações minuciosas ou previsões sempre correctas a acção e, consequentemente, a sua percepção ambígua dos
do evoluir da acção, por exemplo) pode fazer perigar a necessá- fenómemenos insólitos. Mais raramente, também se pode veri-
ria ambiguidade por conferir desigual peso às duas interpre- . ficar o recurso a múltiplos narradores-actores na mesma obra “3,
tações possíveis da história (a natural ou a sobrenatural). Ora, embora a exiguidade textual da maioria das narrativas do género
a narrativa fantástica é favorecida pelo carácter permanente- não facilite o emprego deste processo.
mente dúplice da intriga e pela incompleta caracterização de Ocasionalmente, a intervenção do narrador pode exceder
acontecimentos e personagens, além de viver em grande medida os limites da própria diegese, detendo-se em comentários de
de efeitos de surpresa. Daí que a instauração de um narrador vária ordem sobre ocorrências apresentadas como anteriores
omnisciente ou quase constitua um risco considerável a evitar ao início da intriga ou posteriores ao seu desfecho. Assim,
a todo o custo. De facto, embora o narrador se torne mais efi- várias obras apresentam, à maneira de epílogo, algumas linhas
ciente se estiver até certo ponto implicado na trama dos acon- sobre eventuais reacções ulteriores de determinadas personagens
tecimentos e das figuras que os vivem, deverá conhecê-los de aos acontecimentos narrados. Aí se refere a forma como a
uma forma incompleta e apenas com o grau de minúcia sufi- manifestação sobrenatural os continuou ou não a afectar, reflec-
ciente para poder contar a história de modo aceitável. Por isso, tindo-se também a respeito do carácter, alcance e presumíveis
a omnisciência do narrador é tão perigosa para o equilíbrio do causas do ocorrido !*, Sobretudo frequente no século XIX em-
género como a sua total proximidade em relação à ocorrência bora ainda surja em algumas narrativas recentes, tal prática
meta-empírica. contribui quase sempre para mitigar o impacto da subversão
Já atrás se sublinhou a incompatibilidade do estatuto de do real, desfazendo por vezes a ambiguidade 15, Isto, porque
Sujeito-Monstro com a função de narrador. Por sua vez, quando arrasta excessivamente a trama dos acontecimentos para além
tal papel cabe à Vítima, esta figura (quer seja homo- ou auto- da conclusão lógica da história, podendo tornar-se ridícula pela
diegética) encontrar-se-á inevitavelmente numa situação contra- exagerada preocupação que patenteia em entrar em detalhes
ditória: enquanto sujeito da enunciação é arvorada em abona- desnecessários sobre a vida posterior das personagens.
dora da autenticidade daquilo que a lança na perplexidade Outras vezes, o narrador (coincidindo ou não com uma
enquanto personagem “+. Do exposto, é lícito depreender que, personagem) apresenta-se antes do início da intriga, quer na
entre os três actantes fundamentais do fantástico, o Oponente- sua qualidade de testemunha da ocorrência quer como pessoa
“Exterminador é, por vários motivos, o mais adequado à função que «coligiu» documentos (cartas, memórias, etc.) ou declarações
de narrador. Por um lado, consegue manter uma maior distan- orais (gravadas ou reproduzidas verbatim por testemunhas).
ciação perante a fenomenologia insólita que defronta, já que Esses dados tanto podem ser da autoria do protagonista como
114 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA O NARRADOR-ACTOR 115
de diferentes personagens que, afinal, são outros tantos narra- conferido ao narrador terá necessariamente que se reflectir
dores homodiegéticos: O conjunto de tais documentos, muitas no estatuto do nárratário e, assim, na influência -sobre o leitor
vezes acrescido do; próprio depoimento pessoal do pretenso do papel a ele atribuído. Deste modo, o narrador-personagem
compilador, constitui a obra. Em introdução, em epilogo ou no contribui por duas vias para a identificação do leitor real com
próprio corpo da narrativa, esse primeiro narrador garante o a acção. Por um lado, directamente, através do teor geral da
rigor dos textos reproduzidos bem como a idoneidade do seu sua actuação enquanto actor e do estatuto de testemunha pre-
testemunho, declarando ao mesmo tempo considerar justificado
sencial ou próxima do acontecimento relatado que muitas vezes
o cepticismo do leitor perante o carácter inacreditável (embora
se lhe confere. Por outro, indirectamente, ajudando a reforçar
verídico e confirmado) dos factos relatados. Um exemplo deste
a importância do papel donarratário e incrementando a corres-
processo é visível em Dracula de Bram Stoker, onde (antes do
pondente influência sobre o leitor. o
primeiro capítulo e reproduzida em página à parte na maioria
das edições da obra) se encontra uma breve nota com as Finalmente, poderia ainda apontár-se uma função ideo-
seguintes afirmações: lógica ao narrador homodiegético da ficção fantástica. Contudo,
não sendo muito vulgares nesta os comentários ou intervenções
de carácter social ou cultural, essa função restringe-se. predo-
«O modo como estes documentos foram ordenados
tornar-se-á claro através da sua leitura. Todos os assun- “minantemente a reflexões sobre a índole da fenomenologia
tos desnecessários foram eliminados para que uma meta-empírica. : ;
história quase oposta às crenças dos tempos actuais A partir do exame sumário atrás feito das modalidades
possa surgir com a simplicidade dos factos. Não há em de sujeito da enunciação mais frequentes na narrativa. fantás-
toda ela qualquer relato de acontecimentos passados “tica, é possível estabelecer em abstracto algo como umretrato-
em que a memória possa errar, porque todos os registos "robot do tipo de narrador mais favorável à construção do
escolhidos são exactamente contemporâneos, apresen- género. Este deverá ser homodiegético e não-omnisciente, coin-
tados sob a perspectiva e no âmbito do conhecimento cidindo de preferência com-o Oponente-Exterminador ou outra
daqueles que os produziram.» 18 figura que revele idênticos conhecimentos sobre a manifestação
extranatural. Ocasionalmente, acumulará ainda a função de
Em termos gerais, o narrador que é simultaneamente per- -céptico «convencido» com o evoluir da intriga, reproduzindo
sonagem está incumbido de funções importantes no que respeita assim, em linhas gerais, o papel apontado ao narratário e, atra-
a vários planos da construção fantástica. De facto, tendo supos- vés deste, ao próprio leitor. Se revelar estas características, O
tamente presenciado ou acompanhado de perto os acontec narrador pode constituir um elemento relevante no que con-
i-
mentos narrados, vê reforçada a sua autoridade como cerne ao reforço da ambiguidade e à sua comunicação ao
teste-
munha, o que confere maior credibilidade à acção. Essa função receptor real do enunciado.
testemunhal” - do narrador-actor patenteia-se frequentemen
te
desde o início da história e, por vezes, antes de ela começa
r,
como se referiu atrás.
Para além de outros tipos de intervenção que porventura
“Notas:
possa ter na obra (construção da diegese, organização do dis-
curso, etc.), o narrador homodiegético desempenha ainda
(e com 1 Cf. Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantas-
maior clareza do que o seu homólogo não coincidente com tique, Seuil, Paris, 1970, p. 87: «Nas histórias fantásticas, o narrador
qualquer personagem) uma função comunicativa que pressu diz habitualmente «cu»: é um facto empírico que se pode verificar
põe
a presença do primeiro interlocutor que lhe corresponde, facilmente,»
o
narratário *º, contribuindo indirectamente para realçar o papel 2 |Cf. Gérard Genette, Discours du récit, in Gérard Genette,
deste. Com efeito, verificando-se na maioria dos textos “Figures III, Seuil, Paris, 1972, pp. 251-252, sobretudo: «O romancista,
uma não escolhe entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes '
certa correlação entre estas duas figuras fictícias, o narrativas (de que as formas gramaticais não passam duma conse-
relevo '
116 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
O NARRADOR-ACTOR 117
Philip Van Doren Stern (ed.), The Pocket Book of Ghost Stories,
Pocket Books, New York, 1947, p. 121-122,
17 Sobre as funções.do narrador, ver Gérard Genette, Discours
du récit, in Gérard Genette, Figures III, Seuil, Paris, 1972, pp. 261-265.
Um bom exemplo da função testemunhal do sujeito da enunciação
é o narrador homo-intradiegético de Mrs. Lumt de Hugh Walpole
(in John Hampden i(ed.), Ghost Stories, J. M. Dent -& Sons, Lon-|
don, 1963). , 9
18 Sobre as relações narrador-narratário, veja-se Gerald Prince,
Introduction à Pélude du narrataire, in Poétique n.º 14, Seuil, Paris, .
1978, em especial pp. 182-187, 188, 189, 198.
UM ESPAÇO HÍBRIDO
Assim, a restringir-se tanto quanto possível a proliferação O espaço resultante da conjugação destes elementos tem,
de elementos não úteis à economia de processos e ao equilíbrio naturalmente, muito de teatral eilusório, o que corresponde,
da ambiguidade decorrentes desse desiderato, tal restrição aliás, ao teor geral da narrativa fantástica. Porém, se tal carácter
deveria aplicar-se prioritariamente à representação do espaço se revela de forma transparente no cenário «alucinante», já se.
em que o enredo se insere, utilizando-se a descrição dele apenas torna objecto de cuidadoso disfarce no seu homólogo «realista»,
quando fosse indispensável à estrita caracterização da feno- pois este tem sobretudo a finalidade de exibir ao receptor do
menologia extranatural ou de aspectos fundamentais da trama enunciado um mundo falsamente normal e quotidiano. Daí que
narrativa, Com efeito, enquanto um discurso que se pretende finja a todo o transe clarificar para melhor poder confun-
«realista» pode usar com vantagem a descrição do espaço até dir, aparentando mostrar elementos familiares do real para
a saciedade, o discurso fantástico deverá evitála como um mais facilmente os escamotear e promover a introdução do
perigo sempre impendente. É óbvio que, se o emprego intensivo inadmissível.
da descrição (tal como frequentemente se verifica no discurso Muitos dos elementos atrás denominados «alucinantes»
«realista») tivesse lugar na narrativa fantástica, poderia bem - desenvolveram-se de forma mais ou menos linear a partir do
levar a que a ocorrência sobrenatural fosse subestimada, enten- romance gótico que, desde as últimas décadas do século XVIII,
dida como subalterna ou episódica, e se afundasse num mare estabeleceu um modelo bem conhecido de cenário! ainda oca-
magnum de paisagens, costumes ou cor local, fazendo perder sionalmente usado sem grandes modificações em narrativas
de vista o efeito visado pelo género. recentes. Porém, o seu emprego actual verifica-se mais vulgar-
Porém, se a encenação constante do espaço constitui um mente em subprodutos do fantástico ou de géneros afins, como
risco potencial, o seu emprego regrado e seguro pode mantêlo é o caso do estranho (em particular nas histórias de horror não
ao serviço do fantástico, levando-o até a ser de grande utilidade sobrenatural, nas de sobrenatural «explicado» e nas novelas
na construção dum enquadramento cenográfico que, pelo menos góticas modernas) ou de certas áreas periféricas em que o
por duas vias, contribua para os objectivos deste tipo de textos: maravilhoso, o estranho e, por vezes, a ficção científica se
por um lado, sublinhando a ambiguidade da acção; por outro,
tocam (a chamada «heroic fantasy», sobretudo as narrativas do
promovendo o reforço da sua verosimilhança. Assim, a contra-
tipo «sword and sorcery»). Pela forma hiperbólica que as des-
dição real/irreal em que se pretende envolver a ocorrência
crições nele assumem, este cenário revela frequentemente um
meta-empírica pode ser reproduzida e ampliada pelo próprio
marcado pendor para o grotesco, podendo contribuir para miti-
espaço representado na narrativa através da combinação de gar ou destruir a plausibilidade da intriga. Apesar disso, algumas
elementos oriundos de dois tipos aparentemente opostos (ém- das linhas fundamentais do espaço encenado no romance gótico
bora complementares) de cenário. , foram-se comunicando à maioria das histórias de temática sobre-
Deste modo, apesar de admitirem uma vasta gama de natural e, por consequência, também às fantásticas, sendo facil-
variantes, os diversos elementos que contribuem para a repre-
mente reconhecíveis em muitas delas.
sentação do espaço fantástico polarizam-se em dois tipos de Assim, mesmo uma amostragem diminuta das narrativas
cenário cujos componentes, por sua vez, se intercambiam fre- do género revela que, ao situar-se no espaço, a diegese fan-
quentemente. Uns (a quese chamará. «realistas») predominam tástica prefere sobretudo os locais delimitados ou fechados,
de forma evidente, caracterizando-se por acentuarem sempre
os ambientes interiores, particularmente as casas de grandes
os traços considerados mais representativos do mundo empírico
dimensões, as construções labirínticas?. De facto, a casa tem
e simulando, assim, um rigoroso respeito pelas leis naturais e constituído quase sempre o cenário de eleição para o surgi-
pelo que a «opinião comum» considera ser o real. Outros, os mento da fenomenologia insólita, por mais diversas que sejam
«alucinantes», surgem em menor número e contribuem para as suas características. O castelo medieval quase reduzido a
introduzir dados anormais do cenário anterior, originando par-
ruínas, imprescindível à maioria das novelas góticas, foi fre-
celas de um espaço aparentemente desfigurado, aberrante e não quentemente retomado em narrativas dos séculos XIX e XX.
conforme aos traços do universo que mais familiares se torna- Por seu turno, a casa colonial, recorrente em inúmeras narra-
ram ao destinatário da enunciação. tivas norte-americanas, integráveis ou não no fantástico, de
1292 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
UM ESPAÇO HÍBRIDO 128
as profundezas desconhecidas em direcção às quais eu ainda lançava os seus raios pálidos sobre as águas, onde
ia rastejando.» ” as ilhas — uma centena, decerto, e não apenas cin-
quenta — flutuavam como barcas de uma frota encan-
Como decorre dos exemplos atrás referidos, o espaço tada. Orladas por pinheiros cujos cimos dedilhavam o
fantástico também foge em geral à luz e à cor, preferindo des- céu delicadamente, quase pareciam erguer-se à medida
crições que subentendam iluminação vaga ou escuridão, meias que a luz se desvanecia — prestes a levantar âncora e a
tintas ou tonalidades sombrias, e rejeitando simultaneamente navegar pelos caminhos do céu em vez de o fazerem
a claridade mais intensa e a definição de formas das grandes nas correntes do lago desolado onde se encontravam.»
áreas abertas. De qualquer modo, o cenário em que se desenrola «A beleza da cena era estranhamente estimulante,
a acção raras vezes é referenciado com demora ou rigor, favo- Simpson fumou o peixe, queimando os dedos com os
recendo-se antes uma localização indeterminada ou completa- seus esforços para o saborear e, ao mesmo tempo,
mente imaginária, embora por vezes se simule aludir a ela tomar conta da frigideira e do lume..Contudo, no mais
com exactidão através de uma grande soma de dados fictícios. recôndito do seu pensamento, mantinha-sé a outra face
- Contudo, os locais fechados e lúgubres não são inteira- desta região selvagem: a indiferença perante a vida
mente imprescindíveis ao cenário «alucinante». Por vezes, certos humana, o implacável espírito de desolação que igno-
textos procuram de forma ostensiva os ambientes exteriores, rava por completo o homem.» *
a natureza selvagem, sem por isso deixarem de respeitar todas
as características acima focadas, antes mantendo a mesma índole
Embora ainda hoje sejam inúmeros os casos de emprego
irreal e sobre-imaginativa bem como idêntica tendência para de elementos «alucinantes» no espaço encenado em diversos
o isolamento e a obscuridade. Surge assim um espaço ilusoria-
textos fantásticos, torna-se óbvio que um ambiente demasiado
mente natural em que, de onde em onde, irrompem sinais
anormal ou delirante, por não contrastar convenientemente
insólitos, indícios da subversão do real que se instala. Muitas
com a manifestação sobrenatural, impede o desenvolvimento
narrativas de Algernon Blackwood contêm exemplos desta
da ambiguidade e tende a anular a verosimilhança da intriga.
natureza contaminada, na qual, à beleza das grandes vastidões
Se forem assim enquadradas, as figuras e outras manifestações
e das florestas labirínticas é sempre associado, por mais ténue,
meta-empíricas podem diluir-se por completo nesse mundo já
qualquer fenómeno ou reflexão de carácter inquietante:
de si arbitrário e irreal, levando a narrativa a aproximar-se
demasiado do maravilhoso, senão a integrar-se eventual
«Pouco depois de ele adormecer, a mudança do
“ mente nele.
vento que tinha previsto fazia agitar suavemente a ima-
Ora, vivendo da indecisão permanente, pressupondo um
gem das estrelas na superfície do lago. Partindo das
distantes cordilheiras da região para lá de Fifty Island equilíbrio sempre precário entre uma aparência do real e a
Water, veio da direcção para onde ele tinha ficado a sua ilusória subversão, a narrativa do género nunca se pode
olhar demoradamente e passou por sobre o acampa- situar por inteiro num espaço determinado, seja ele transfigu-
mento adormecido, através das copas das grandes árvo- rado, delirante, «outro» (como faz o maravilhoso), ou rigorosa-
res, com um leve e sussurrante murmúrio, tão delicado mente conforme às leis naturais, como intenta fazer o discurso
que quase não era audível. Com ele, ao longo dos cami- «realista». Pelo contrário, como já se observou atrás, deve
nhos desertos da noite, embora demasiado fraco, dema- escolher um espaço híbrido, descontínuo, formado por associa-
siado agudo, mesmo para os nervos sensíveis do índio, ção forçada de elementos dissonantes e reciprocamente exclu-
passou um odor fino, curioso e estranhamente inquie- sivos, que constitua o fundo adequado à incerteza e indefinição
tante, um odor a algo que parecia insólito — completa- da história. Deve também manter-se em constante oscilação
mente desconhecido.» * entre um e outro, empregando permanentemente, embora em
proporções bastante diversas, elementos dos dois mundos anta-
«Um céu cor-de-rosa e açafrão, mais limpo do que gónicos que encena. Esse emprego alternado de cenários per-
qualquer atmosfera jamais observada por Simpson, mite reequilibrar a construção fantástica sempre que se torne
126 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA
UM ESPAÇO HÍBRIDO 127
necessário corrigir o carácter demasiado insólito ou demasiado
quotidiano que acontecimentos ou personagens podem assumir, espaço aparentemente normal em que irrompe, para que ambas
conferindo credibilidade à acção e mantendo sempre o grau as hipóteses adquiram peso próprio, equivalendo-se, e a leitura
conveniente de indecisão nas eventuais leituras a que o mantenha o grau de indefinição pretendido pelo género.
texto A importância do cenário «realista» era já acentuada no
seja submetido.
E, contudo, importante sublinhar que, na narrativa fan- século XIX por Prosper Mérimée que o empregou com uma
tástica, o espaço familiar da natureza circunscreve sempre segurança difícil de superar. Dizia ele:
a
maior parte: da acção, constituindo a regra aparente do mundo
fictício em que o fenómeno meta-empírico se insinua, enquanto «Quando se narra qualquer história sobrenatural,
o espaço «alucinante» não passa muitas vezes de uma ocasional nunca é de mais multiplicar os detalhes da realidade
excepção. Consequentemente, a frequência de encenação .do material.» 11
primeiro, deverá ser muito superior à ido segundo, o que se
reflecte no facto de o. discurso fantástico recorrer sobretu Contudo, mesmo recorrendo ao emprego exaustivo de pro-
do cessos destinados a reforçar as notações do múndo empírico
a processos descritivos tendentes a acentuar os traços «rea-
listas» do mundo material nele representado. “ea propiciar a construção de cenários conformes ao quotidiano,
Porém, embora a necessidade de um acentuado predomínio 'O espaço fantástico nunca abandona inteiramente oseu carácter
de .tais elementos não ofereça dúvidas, torna-se evidente que dúbio por mais «realista» que se pretenda. Os próprios cenários
um cenário inteiramente conforme com a realidade, excluin que Mérimée prefere não estão absolutamente isentos de con-
do taminações, de indícios, velados embora, da manifestação extra-
o mínimo elemento insólito, também contribuiria para limitar
o alcance da manifestação meta-empírica, como já se apontou natural que se insinua.
atrás. De facto, se esta fosse já por si pouco relevante, EmLokis, por exemplo, a natureza selvagem e traiçoeira
veria
-a sua função completamente anulada ou quase, vindo a narrativa das florestas e dos pântanos !º não é passiva, não se limita a
a deslizar para a zona do sobrenatural explicado e do género enquadrar os centros de conforto e civilização constituídos
estranho ou a conduzir a umaleitura perniciosamente exegética. pelos palácios do conde Szémioth (o Monstro, apenas revelado
É por isso que, agindo em complementaridade no que toca inteiramente no fim da narrativa) e da Vítima, Julienne Iwinska.
à construção do espaço fantástico, estas duas modalidades Pelo contrário, como que os cerca e separa, exercendo ao mesmo
da tempo uma influência nociva sobre os seus moradores: a flo-
sua representação (a «alucinante» tendendo para os interior
es, resta é a origem da anormalidade monstruosa que, tendo enlou-
o obscuro e o delirante; a «realista» preferindo as grandes
zonas abertas, a claridade e a representação «objectiva» do quecido a mãe do conde, viria a conduzir este a uma condição
mundo) deverão ser combinadas de forma a instalarem semianimalesca e ao assassínio. Assim, no interior de
na uma
narrativa uma nunca resolvida antinomia entre o aparente real história porventura prosaica, evocativa de acontecimentos e
e o meta-empírico, a qual, pela sua permanente indefinição, figuras de aparência rigorosamente normal, entre cenários
propicie a ambiguidade exigida pelo género. Daí que os textos plenos de cor local, vão-se a pouco e pouco instalando sinais,
fantásticos evidenciem em geral a utilização de processos ten- inconclusivos por si sós mas já inquietantes, que, ao acumula-
dentes a desenvolver, miscigenando-os 1º, ambos estes tipos de rem-se, contribuem de forma decisiva para irresolução da
cenário, se bem que na maioria dos casos se verifique um acen- intriga e para a perplexidade perante ela que se pretende sus»
tuado predomínio e, por vezes, um quase total exclusivismo citar no destinatário da obra.
dos elementos «realistas». - Neste como em muitos outros textos fantásticos, a acen-
Com efeito, já que o fantástico procura tornar admissível tuação dos traços aparentemente realistas do mundo material
a coexistência forçada de dois universos reciprocamente exclu- normal visa aferi-los tanto quanto possível à «opinião pública»,
sivos e impedir ao destinatário do enunciado uma decisão plena incrementando assim a sua plausibilidade. Tal acentuação pode
entre aceitar ou recusar a probabilidade da ocorrência meta- ser apoiada de diversos modos por outros planos da construção
empírica, é vantajoso que esta se demarque com nitidez do narrativa. Quando resulta do plano da personagem, por exemplo,
é em' geral conseguida através de uma caracterização mais cul
128 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA UM ESPAÇO HÍBRIDO 129
dada e conforme ao real das figuras secundárias, desde que a «tudo concorre para um efeito de terror, Este castelo gótico & a
imagem de um poder sinistro e impenetrável.» (Irêne Bessiêre, Le
economia textual própria das obras do género o permita. Com récit, jantastique, Larousse, Paris, 1974, p. 106), Sobre o romance
efeito, o protagonista, directamente tocado pelo sobrenatural gótico, veja-se ainda: Montague Summers, The Gothic Quest, For-
(com a possível excepção do Oponente-Exterminador), não pode tune Press, London, 1938; Peter Penzoldt, The Supernaturalin Fiction,
deixar de evidenciar sinais de intensa anormalidade, o que o Peter Nevill, London, 1952 (parte II, capítulo 1); Maurice Lévy, Le
roman «gothiques anglais, 1764-1824, Association des Publications de
torna quase sempre inaproveitável como elemento de adequação la Faculté des Lettres de Toulouse, Toulouse, 1968; Maria Leonor
ao real. Por seu turno, também a urdidura da acção pode Machado de Sousa, A literatura «negras ou «de terror» em Por-
auxiliar o desenvolvimento de um cenário de cunho «realista» tugal (séculos XVIII e XIX), [Editorial Novaera, Lisboa, 1978.
se a narração a for entretecendo de onde em onde com referên- 2. Cf, Maurice Lévy, Lovecraft, Union Générale d'Editions,
cias factuais diversas que a aproximem dé coordenadas fami- Paris, I9T2, p. 62: «A casa é o lugar fantástico por excelência, na
medida em que delimita e isola de modo particularmente adequado
liares ao receptor do discurso. “o. espaço maléfico...»; «Ponto de encontro de um aqui e de um além,
' Porém, repita-se, embora deva sobretudo contribuir para qualquer habitação tem algo de fatal. Nada poderia acontecer de
situar a acção num mundo de aparente conformidade com o anormal ao herói senão no interior desses muros trágicos que envol-
real, quase nunca o espaço fantástico pode ser integralmente vem, contêm e, até certo ponto, represam o irracional.»
3 In Edgar Poe, Tales of Mystery and Imagination, J. iM, Dent
«realista», apesar de este tipo de cenário ter nele um predo- & Sons, London, 1971, p. 128. ; .
mínio muito acentuado. Híbrido, incerto e mal delimitado, apa- 4 Horace Walpole, The Castle of Otronto, in Philip Hen-
rentando muitas vezes uma estrita observância das regras que “derson i(ed.), Shorter Novels of the Highteenth Century, J, M. Dent
condicionam o mundo empírico para no momento seguinte as '& Sons, London, 1961, p. 117. ;
' In Edgar Poe, Tales of Mystery and Imagination, J.:M. Dent
subverter por completo, está intimamente relacionado com a & Sons, London, 1971.
falsidade inerente ao género e serve, em última análise, o e .H. P. Lovecraft, The Festival, in H. P, Lovecraft, The Tomb
reforço da ambiguidade em que este se fundamenta. Procurando, and other tales, Panther Books, London, 19T0, p. 23.
como num passe de mágica, aparentar uma total lisura de ” H. P, Lovecraft, The Nameless City, in Kirby MeCawley
(ed.), Beyond Midnight, Berkeley Publishing Corporation, New York,
processos, o espaço fantástico simula a completa abertura ao
1976, p. 7.
real para mais facilmente levar o destinatário da enunciação Algernon Blackwood, The Wendigo, in Robert Aickman (ed.),
a pô-lo em causa e a aceitar o seu desmantelamento sem que “The Fontana Book of Great Ghost Stories, Fontana Books, London,
muitas vezes disso se aperceba. 1964, pp. 120-121. , .
, 9 Op. cit, pp. 124-125. Várias outras narrativas de Algernon
Blackwood recorrem a este tipo de espaço (Running Wolf, The
Valley of the Beasts, The Man whom the Trees Loved, Secret
“Worship, etc.).
Notas: 10 Um dos exemplos mais antigos desta miscigenação entre
cenários é o conto de Charles Dickens The Signalman (in John
Hampden i(ed.), Ghost Stories, J. M. Dent & Sons, London, 1963).
- H, P. Lovecraft refere-se-lhe da seguinte forma: «Acima Aqui, um ambiente inquietante e sombrio casa-se com elementos de
de tudo, o que ele fez foi criar um novo tipo de cenário...» «Estes tecnologia ultramoderna (o caminho-de-ferro e o telégrafo) para o
novos. ornamentos dramáticos consistiam em primeiro lugar no cas- ano em que a narrativa surgiu (1866).
telo gótico, tremendamente antigo, com grandes vastidões e nume- 11 Citado por Jean Brunel, Notice, in Prosper Mérimée, La
rosos meandros, alas desertas ou arruinadas, corredores húmidos, Vénus d'Ille, Carmen, Larousse, Paris, 1969, p. 14, Para além dele,
catacumbas ocultas e doentias e grande quantidade de fantasmas e vários outros autores e críticos têm apontado aeficácia do predo-
lendas medonhas que constituíam um núcleo de perplexidade e terror mínio quase absoluto deste tipo de cenário no contexto geral da
demoníaco.» (H, P. Lovecraft, Supernatural Horror im Literature, construção do fantástico. O filósofo e teólogo russo Vladimir Soloviey
Dover (Publications, New York, 1973, pp. 25-26). Veja-se também a referiu-se-lhe da seguinte forma: «No verdadeiro fantástico (...) todos
descrição que dele faz Irêne.Bessiêre: «Walpole criou um cenário, os detalhes particulares devem ter um earácter quotidiano, mas,
acontecimentos e personagens que serão comuns a todos os romances considerados no seu conjunto, devem indicar uma causalidade «outra».
góticos. Um castelo tenebroso, pleno de malefícios, com subterrâneos (Citado por Boris Tomachevski, Thématique, in Tzvetan Todorov
assustadores, onde as portas rangem e os degraus dão estalidos, onde (ed. e trad.), Théorie de la littérature, Seuil, Paris, 1965, p. 288).
se adivinha fantasmas e presenças impalpáveis, hostis, onde pesam Veja-se ainda Maurice Lévy, Lovecraft, Union Générale dEditions,
"a memória dos crimes cometidos e q horror próximo e inevitável: “Paris, 1972, p. 49, onde o espaço fantástico é apontado como «Um
1352 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA 1 A “CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO 133
aquilo que encena: primeiro, deixando-a: surgir e mstaliido-a “de não desempenharem tais finogad)do mesmo modo em todas
com segurança na intriga; depois, confirmando-a através dos as obras, são utilizados com grande frequência. Em paralelo
vários processos empregados na tessitura do discurso. Aos tra- com os. traços permanentes. atrás mencionados, contribuem
ços referidos e analisados nos capítulos anteriores incumbirá para acentuar a identificação do destinatário real do enun-
originar e manter tal indefinição, conferindo graus aproxima- ciado narrativo com tudo o que neste se encontra represen-
damente idênticos de probabilidade: tanto à existência do fenó- tado, ao mesmo tempo que repetem e ampliam o debate sobre
meno: sobrenatural como à exclusão de tudo -o que não se a admissibilidade dos fenómenos inexplicáveis. Para que tal
integre de forma clara na natureza conhecida. É essa construção se verifique, a marração deverá:
qué se procurará resumir de seguida, recordando a propósito
as afirmações de, Bellemin-Noél já aqui eltadas no final do 4. instaurar um narratário (preferencialmente intradiegé-
primeiro capítulo *. tico) ao qual cabe, em princípio, uma dupla função:
Noessencial, a narrativa fantástica deverá propiciar atra- por um lado, reflectir a leitura incerta da manifestação
vés do discurso à instalação e a permanência da ambiguidade meta-empírica; por outro, transmitir ao receptor real
de que. vive o género, nunca evidenciando uma decisão plena do enunciado idêntica perplexidade perante o con-
entre o que é apresentado como resultante das leis da natureza teúdo da intriga;
e o que surge em contradição frontal comelas. Tal indefinição
será criada e mantida se a narrativa for organizada de iodo.a: "5. instaurar personagens que suscitem " a identificação:
- acima referida porparte do leitor, representando simul-
1. fazer surgir num contexto aparentemente normal e taneamente através delas a percepção ambígua das
tornar dominantes em relação aos restantes elementos “ocorrências com que são confrontadas e a conse-
temáticos acontecimentos ou personagens que suben- quente indefinição perante o sobrenatural;
tendam a existência objectiva de uma fenomenologia
meta-empírica e evidenciem índole e propósitos consi-. '6. “organizar as funções das personagens de acordo com
derados negativos à luz dos padrões axiológicos uma estrutura actancial que reflita e confirme as
correntes; pl Eau características essenciais ao género;
2. conferir verosimilhança a essa fenoménologia extra- 7. utilizar um narrador homodiegético cujo duplo esta-
“natural, tornando-a aceitável à opinião comum, rodean- tuto face à intriga resulte numa maior autoridade
do-a dé uma lógica própria que se adeque às regras perante o receptor real da enunciação e na capacidade
do género e ocultando tanto quanto possível a falsi- de compelir este a uma mais estreita aquiescência em
dade. inerente:“aos processos para tal empregados; , relação a tudo o que é narrado;
3º evitar
e a siibdálicadão plena da manifestação meéta- 8. evocar um espaço híbrido, indefinido, que, aparen-
-empírica, embora admitindo ou, mesmo, favorecendo "tando sobretudo representar o mundo real, contenha
a inclusão de explicações meramente parcelares dos, indícios da própria subversão deste e a deixe insi-
fenómenos insólitos: à) nuar-se aos poucos. us
É sibretido da vitahifnção destes elementos que resulta | A este conjunto de elementos poderia ainda acrescentar-se
o género, embóra. apenas: a ambiguidade empírico/meta-emmpi- “uma série de outros, entre os quais o emprego predominante
rico (instalada e mantida na narrativa com o concurso de de determinados processos estilísticos e a preferência por
todos eles) possa ser considerada o traço específico do fan- certas modalidades de narração. Finalmente, deve sublinhar-se
tástico. Subsidiariamente, essa ambiguidade essencial é quase “o particular relevo atribuído nesta construção ao estatuto €
sempre enquadrada e sublinhada por outros traços que, apesar, às funções do narratário, da perspnagen e do narrador, o que
134 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA
NARRATIVA
A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO |. 155
evidencia bem a importância assumida
na caracterização do
género pelas categorias a partir das quais se semântica para cuja transmissão sejam utilizadas. Ainda que
estabelece a foca-
lização narrativa. em termos relativos, tal neutralidade é de facto admissível se
se considerar as categorias da literatura em abstracto, desli-
gando-as completamente de qualquer contexto. Porém, deixará
Ao longo dos capítulos anteriores, torno de ter o mínimo sentido falar nela quando se refere a realização
u-se repetidas
Vezes aparente que as esiruturas no discu textual dessas categorias e, sobretudo, dos conjuntos articula-
rso fantástico e o
modo como são organizadas visam de form dos delas a que todas as obras recorrem. Isto equivale a afir-
a prioritária criar
e manter a ambiguidade de que vive o géner mar que, se os elementos susceptíveis de integrar o discurso
o. Cabe agora per-
guntar se este se limita afinal à repetição literário podem surgir como inocentes, neutros, quando enten-
incessante da disputa
propositadamente sem solução ou saída entre didos num grau máximo de isolamento e abstracção, tal já não
o mundo natural
e a ordem meta-empírica que aparenta subve acontece com as suas modalidades organizadas em textos espe-
rtêlo. Por outras
palavras: se a narrativa do tipo em análise, cíficos, em géneros específicos, dada a índole intencional, pre-
à primeira vista
tão fechada sobre si mesma e sobre a estrita meditada, que essa organização neles revela. e e
literalidade daquilo
que encena, se fica por aqui ou se, pelo contr Assim, mesmo que omita qualquer polémica ideológica
ário, a própria
ambiguidade revela disponibilidades semânticas expressa (o que, de resto, acontece frequentemente), a tessitura
que porventura
ultrapasse m essaconstante autocontemplação e possam da narrativa fantástica contém implícita na própria ambigui-
tuir novos contributos para o conhecimento consti-
do género. dade de que vive uma tomada de posição potencial, velada
De facto, para além de estar reflectida embora, a favor do irracional. Daí constituir amiúde ummeio
em todas as estru-
turas da narrativa, a ambiguidade também ideal de pôr em causa as faculdades da razão e suscitar dúvidas
se projecta no pró-
prio teor indefinido da ideologia que qual quanto às vantagens do saber em geral e do conhecimento cien-
quer obra do género
veicula. Assim, ao encenar a coexistência de tífico em particular.
dois mundos total-
mente irredutíveis, o fantástico abre em paral Como hábito cultural generalizado, o debate proposto pelo
elo um debate
que, travando-se afinal entre a razão e o fantástico não teria grande sentido até aos fins do século XVII,
seu oposto, toma
muitas vezes forma representando o anta quando, por exemplo, a condenação à morte dos acusados
gonismo entre as
potencialidades da espécie humanae as limit de bruxaria continuava, em diversos países europeus, a ser
ações que lhe são
inerentes ou que provêm de condicionalismo prática correntemente admitida tanto pelo senso comum como
s externos.
Porém, embora aparente encenar tal debate de pela ordem jurídica da época. Porém, ainda menor sentido
uma forma
imparcial e não se decidir de modo defin teria o seu aparecimento num período anterior, como a Idade
itivo por um dos
termos em causa, o fantástico toma realment
e partido, fazendo Média, quando o sobrenatural, de índole religiosa ou não, era
alastrar a este plano a falsidade que lhe é
usual. Assim, se por geralmente aceite como parte integrante do quotidiano, sur-
vezes evoca o domínio do homem sobre a
natureza ou aponta gindo em muitos textos literários do tempo em pé de quase
a sua incessanté busca do saber, é quase
sempre para com total equivalência aos fenómenos concordantes com as leis
maior facilidade lhe sublinhar as derrotas,
deixando supor a naturais. Em qualquer daquelas épocas históricas, essa suposta
Vigência de fenómenos e entidades completa
mente inacessíveis compatibilidade entre o empírico e o meta-empírico tornava
ao enten dimento. Mais, até: simulando limitar-se à etern
da incerteza sobre a presumível simultanei ização impossível o desenvolvimento do carácter ambíguo essencial
dade dessas duas ao género, já que ambos os termos eram considerados como
fenomenologias exclusivas entre si e não pare
cendo avalizar existindo objectivamente, se se contradizerem, portanto, entre si.
uma delas em especial, procura de facto acumular
dados sobre Assim, é sobretudo com o decurso do século XVIII que
dados que invariavelmente favorecem a hipót
ese sobrenatural a aceitação dainterferência de entidades sobrenaturais no mundo
e acentuam a correspondente letargia da razão
. real, até então tida como óbvia e indiscutível pela opinião
Aqui emerge, naturalmente,a questão da event
ual neutra- comum, começa a ser posta em causa de forma cada vez mais
lidade das formas literárias no concernent
e a qualquer carga generalizada *. Com efeito, a mudança operada pelo Iluminismo
158 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO ; 137
nas mentalidades (embora por muito tempo restringida à dimi- revés da ambição incansável que visa descobertas reser-
nuta camada de privilegiados que constituía o escol intelectual. 'ivadas a seres sobrenaturais e, devido ao seu extremo
e a maioria do público leitor da- época) virá desenvolver con- orgulho, não consegue perceber que a condição do
dições culturais que viabilizam o aparecimento dofantástico homem, neste mundo, deve ser humilde e ignorante.» *.
como género autónomo, Tal se verifica particularmente através.
do estabelecimento do factor essencial.à existência da ambi
O mesmo é visível em numerosos textos de épocas muito
guidade: a rejeição recíproca entre -o natural e o sobrenatural,
posteriores, como o seguinte excerto de um conto de H. P. Lo-
antes confundidos pelo pensamento teocêntrico ainda domi-.
nante. Desse modo, separando categoricamente os dois termos vecraft:
até então unidos como irmãos siameses pela mentalidade
vigente, o racionalismo setecentista torna pela primeira vez. «A ciência, já opressiva com as suas chocantes
“possível ao eventual leitor de narrativas do género a perple- revelações, tornar-se-á talvez o exterminador definitivo
xidade, antes pouco provável, perante a intrusão do meta--empi- da espécié humana —se é que formamos uma espécie
“rico na quietude do mundo quotidiano. Para além disso, embora separada — pois a sua reserva de horrores inimaginá-
recusando encarar os fenómenos-extranaturais como prováveis veis nunca poderia ser suportada por cérebros mortais
e tentando muitas vezes contraditar o discurso que os apoia, se fosse espalhadapelo mundo.» *
o pensamento iluminista nunca prova em definitivo a sua
impossibilidade, o que mantém completamente aberta a via. Com efeito, a denúncia da curiosidade intelectual como
para à indecisão permanente de que vive o fantástico. perigo a evitar a todo o custo tem sido uma das tónicas ideo-
lógicas mais recorrentes na ficçãofantástica desde os seus alvo-
Ora, é em grande medida por sugerir como possíveis ou,
res setecentistas. Assim, a investigação científica, crescente-
pelo menos, plausíveis, ocorrências e figuras abertamente con-
mente considerada, sobretudo desde o século XVIII, como via
trárias à razão que o género pode ser considerado, desde os
primeira para o domínio do homem sobre a natureza, é aqui
primórdios, um veículo ideológico favorável à. reacção contra
objecto de uma inversão interpretativa, transformada em prin-
o avanço do racionalismo, do livre pensamento e dos seus
cipal fautor de dependência perante o que escandaliza a razão
múltiplos corolários futuros. Contudo, embora se torne então
e escapa por completo às leis naturais. Ao mesmo tempo, o
viável e comece a ensaiar os primeiros passos algumas décadas
fantástico apoia e divulga, por vezes com veemência, esquemas
antes do século XIX, é só durante ele que ofantástico prolifera
de pensamento que dão óbvia prioridade a factores subjectivos
com as suas falsidades, as suas fugas para o imaginário e a
ou que procuram perspectivar o real de forma idealista. Desse
sua tenaz conservação de resíduos de mentalidades em declínio
modo, para além de se ter desenvolvido no alfobre da reacção
ou já fossilizadas para sempre. Descendente directo da narra- romântica contra o Iluminismo, o género virá, nas últimas déca-
tiva «gótica», nascido entre as diversas linha ideológicas que das do século XIX e no início do século XX, a ter um surto de
reagem contra o optimismo confiante do pensamento iluminista fecundidade ímpar, precisamente em paralelo com movimentos
e desenvolvido durante a consolidação do movimento român- esteticistas, decadentistas e outros que, hostilizando o realismo
tico, o fantástico manifesta desde cedo a sua hostilidade ou, na literatura e nas artes plásticas, visam, de forma mais geral,
pelo menos, o seu cepticismo perante às conquistas já então pôr em causa ou minimizar o avanço da razão e da ciência.
bastante notórias do intelecto humano. Tal hostilidade, de resto, Paralelamente, o fantástico assiste ao incremento e à propa-
torna-se patente desde as origens remotas do género, como gação do materialismo, antagonizando-o da maneira discreta
mostra esta passagem do final de Vathek de William Beckford: que os seus limitados recursos permitem. Em certa medida,
pode até dizer-se que tal atitude ideológica decorre da con-
«Tal será o castigo da curiosidade cega que quer dição fundamental da sua sobrevivência como género autóndmo,
transgredir os limites estabelecidos ao conhecimento pois, por reflectir uma mundividência necessariamente dualista,
humano pela sabedoria do Criador; e tal o terrível o fantástico tem sempre de procurar suspender ou anular no
138 A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NA NARRATIVA A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO 139
Notas:
destinatário do enunciado qualquer decisão favorável a uma
solução monista da ambiguidade, fugindo por isso a:qualque
orientação que a propicie. 1 Cf. Philippe Hamon, «Le Horlas de Guy de Maupassant:
Contudo, embora surja quase sempre como defensora de ensaio de descrição estrutural (trad. de Fernando Cabral Martins),
in Maria, Alzira Seixo (ed.), Categorias da narrativa, Arcádia, Lis-
uma visão discretamente teocêntrica e anticoperniciana do boa, 1976, sobretudo pp. 1483-145,
universo, a ficção fantástica esconde muitas vezes a sua incli- 2 Cf. o capítulo intitulado «Vias de abordagem do fantástico»,
nação para o extranatural sob uma capa de pseudocientismo, nota 26.
* Sobre este assunto, veja-se Irêne Bessiêre, Le récit fantas-
assim evidenciando um respeitável aparato de erudição e ence- tique, Larousse, Paris, 1974, pp. 65-93 (passim), por exemplo: «Quando
nando uma por vezes complexa simbologia do conhecimento. o verosimil de uma dada cultura parece (é) subitamente privado de
Por outro lado, devido à própria índole do debate que procura sentido, o vínculo da obra aos elementos extratextuais instala O
suscitar e manter, o género contém em si uma acentuada dis- arbitrário e a inconsequência. Até ao século XVIII, o verosímil
encarrega-se simultaneamente do discurso acerca da natureza e do
ponibilidade para a discussão de aspectos fulcrais da condição discurso acerca do sobrenatural, reunidos de forma coerente pela
humana e, até, para a subversão de muitos dos princípios de religião, Com as Luzes, estes dois discursos tornam-se antinómicos,
que tem sido veículo frequente. Com efeito (e aqui se estabelece sendo a cultura incapaz de os conciliar. Neste momento transitório
de desequilíbrio, aparece a narrativa fantástica...» (pp. 67-68).
de novo a indefinição), embora deixem quase sempre trâns- + William Beckford, Vathek, in [Philip Henderson (ed.),
parecer uma incontida preferência pelo irracional, certas obras Shorter Novels of the Eighteenth Century, J, IM. Dent & Sons, London,
surpreendem por vezes pelas virtualidades polémicas que reve- 1961, p. 278.
5 H P. Lovecraft, Arthur Jermyn, im H. P. Lovecraft, The
lam e, até, pelo alcance dos problemas que são susceptíveis de Lurking Fear and other stories, Random House, New York, 1975, p. 49,
equacionar. Daí que a narrativa fantástica também possa ser 8 Cf. Tzvetan Todorov, Les limites Edgar Poe, in 'Tzvetan
encarada como um meio onde (muito embora partindo de Todorov, Les genres du discowrs, Seuil, Paris, 1978.
premissas falsas e privilegiando até certo ponto o adormeci-
-mento da razão) se analisa e se interroga o processo do conhe-
cimento, as formas de estabelecer a relação cognitiva e os
erros ou recuos a que esse processo eventualmente dá lugar.
Mais do que isso: ela não raro aflora questões fundamentais da
existência do homem, sobretudo a atitude (quase sempre
ambígua) deste perante o universo, o seu próprio abismo inte-
rior e o grande limite, a morte.
Por isso, se toda a literatura supõe, de forma mais ou
menos acentuada, o. tactear dos extremos a que a razão e a
imaginação criadora podem conduzir, o texto fantástico é espe-
cialmente adequado, até pelo carácter hiperbólico que muitas
vezes confere àquilo que encena, a viabilizar e promover à dis-
cussão sobre o sentido, objectivos e limites* da actividade
humana, em particular nas áreas do conhecimento e da espe-
culação.
Reacção retrógrada contra o avanço das «luzes» e o
inevitável triunfo da razão ou, pelo contrário, polémica escla-
recida sobre uma presumível ruptura dos limites do universo
conhecido? Vago e indeliberado, o fantástico transporta ainda
para este plano, mantendo-a, a ambiguidade que lhe dá forma.
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