Você está na página 1de 3

ESCOLA BÁSICA 2, 3 SOEIRO PEREIRA GOMES

Texto de apoio

9.º …… – Nome …………………………………………………………………………………………………………… – N.º ……

Educação Literária
Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente
- A ALCOVITEIRA –
Tanto que o Frade foi embarcado, veo uma Depois que o FRADE embarcou, vem BRÍSIDA VAZ,
Alcouveteira, per nome Brísida Vaz, a qual, chegando à uma Alcoviteira, isto é, uma mulher que vivia da
barca infernal, diz desta maneira: prostituição de moças. Chegando à barca do Inferno,
diz:
BRÍSIDA - Houlá da barca, houlá!
BRÍSIDA - Olá da barca, olá.
DIABO - Quem chama?
DIABO – Quem chama?
BRÍSIDA - Brísida Vaz. (…)
BRÍSIDA – Brísida Vaz.
DIABO - Entrai vós, e remarês.
DIABO – (dirigindo-se a Brísida)
Entrai vós e remareis.
BRÍSIDA - Nom quero eu entrar lá.
BRÍSIDA – Não quero eu entrar lá!
DIABO - Que sabroso arrecear!
DIABO – (irônico)
Que medinho saboroso!...
BRÍSIDA - No é essa barca que eu cato1.
BRÍSIDA – Não é essa a barca que procuro.
DIABO - E trazês vós muito fato?
DIABO – E trazeis vós muito carrego?
BRÍSIDA - O que me convém levar.
BRÍSIDA – O que me convém levar.
DIABO - Que é o qu'havês d'embarcar?
DIABO – O que é que haveis de embarcar?
BRÍSIDA - Seiscentos virgos2
postiços e três arcas de feitiços BRÍSIDA – Muitas falsas virgindades
que nom podem mais levar. e três arcas de feitiço,
Três almários de mentir, arcas tão carregadinhas!
e cinco cofres de enleos, Três armários de mentir
e alguns furtos alheos, alguns furtos alheios,
assi em joias de vestir, jóias de vestir
guarda-roupa d'encobrir, e guarda-roupa de encobrir.
enfim – casa movediça Enfim –
um estrado de cortiça um estrado de cortiça,
com dous coxins d'encobrir. com almofadas de iludir.
A mor cárrega3 que é:
essas moças que vendia. (…) Mas a maior carga são
essas moças que vendia.
DIABO - Ora ponde aqui o pé…
DIABO – (mostrando a barca)
Ora, ponde aqui o pé!
BRÍSIDA - Hui! E eu vou pera o Paraíso!
BRÍSIDA – Que?! Vou para o paraíso!
DIABO - E quem te dixe a ti isso?
DIABO – E quem te disse isso?
BRÍSIDA - Lá hei de ir desta maré.
Eu sô ũa mártela4 tal, BRÍSIDA – Lá hei de embarcar,
açoutes tenho levados pois eu sou uma mártir.
e tormentos suportados Açoites tenho levado,
que ninguém me foi igual. e tormentos suportados.
Se fosse ò fogo infernal, Se eu fosse ao fogo infernal,
lá iria todo o mundo! então iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo
me vou, que é mais real.
Chegando à barca da Glória, diz ao ANJO:
Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz! BRÍSIDA – Barqueiro, mano, meus olhos,
Leve a Brísida Vaz.
ANJO - Eu não sei quem te cá traz…
ANJO – Não sei quem é que te traz.
BRÍSIDA - Peço-vo-lo de giolhos5!
Cuidais que trago piolhos, BRÍSIDA – Eu peço-vos! (ajoelhando-se)
anjo de Deos, minha rosa? Pensais que trago piolhos,
Eu sô aquela preciosa Anjo de Deus, minha rosa?
que dava as moças a molhos, Sou Brísida, a preciosa,
a que criava as meninas que dava moças aos montes,
pera os cónegos da Sé… a que criava as meninas
para os padres da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas, Passai-me, por vossa fé,
olho de perlinhas finas! meu amor, minha florzinha,
E eu sou apostolada, olhos de perolazinha!
Angelada6 a martelada7, Pois eu fiz obras bem divinas.
e fiz cousas mui divinas. Santa Úrsula não converteu
Santa Úrsula8 nom converteo tantas donzelas como eu,
tantas cachopas como eu: e todas salvas por mim,
todas salvas polo meu, que nenhuma se perdeu.
que nenhũa se perdeo. E quis Deus
E prouve Àquele do Céo que todas achassem dono.
que todas acharam dono. Pensais que eu andava a dormir?
Cuidais que dormia sono? Nada, nada se perdeu!
Nem ponto se me perdeo!

ANJO - Ora vai lá embarcar, ANJO – (apontando a outra barca)


não estês emportunando. Ora vai lá embarcar!
Não fiques me importunando.
BRÍSIDA - Pois estou-vos eu contando BRÍSIDA – Pois eu estou explicando
o porque me havês de levar. por que me haveis de levar.

ANJO - Não cures de emportunar, ANJO – (com firmeza)


que nom podes ir aqui. Pare de me importunar,
que não podes ir aqui.

BRÍSIDA - E que má-hora eu servi, BRÍSIDA – (desesperançada)


pois não m'há de aproveitar! Em que má hora eu servi!
Pois não me há de aproveitar!

Torna-se Brísida Vaz à barca do Inferno, dizendo: Volta BRÍSIDA VAZ à barca do Inferno, dizendo:

Hou barqueiros da má-hora, BRÍSIDA - Ó barqueiros de má hora,


que é da prancha, que eis me vou? ponde a prancha que eu me vou.
E há já muito que aqui estou, O destino me marcou
e pareço mal cá de fora. e mal me sinto aqui fora.

DIABO - Ora entrai, minha senhora, DIABO – Ora, entrai, minha senhora,
e serês bem recebida; e sereis bem recebida...
se vivestes santa vida, Se viveste santa vida,
vós o sentirês agora. vós o sentireis agora.

https://app.escolavirtual.pt/lms/playerteacher/resource/2011384/E? http://professoraanaferreira.blogspot.com/2012/12/auto-da-barca-do-inferno-
se=&seType=&coId=&area=search texto-adaptado.html

VOCABULÁRIO
1
procuro; 2 hímenes das virgens; 3 carga; 4 mártir; 5 joelhos; 6 como os anjos; 7 martirizada; 8 protagonista de uma lenda do séc. X, segundo a qual
onze mil virgens cristãs foram martirizadas;

Você também pode gostar