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JULIO CORTÁZAR

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Tradução (revista) de
Remy Gorga, filho

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Tombo: 1749136

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Título original: BESTIARIO
@ J 986, by Aurora Bemardez

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela


EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 - CEP 22.251 - Botafogo - te!.: 286-7822
Endereço telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RJ

Revisão tipográfica
UTAHY CAETANO DOS SANTOS FILHO
HENRIQUE T ARNAPOLSKY
SUMÁRIO
PAULO CORRtiA DA SILVA

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..6
C~~:~;;.~;, b Casa tomada . 9
Carta a uma senhorita em Paris . 19
Distante . 33
Ônibus . 47+
Cefaléia . 63
Circe . 83
As portas do céu . 107
Bestiário . 127

I),

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato N acionaJ dos Editores de Livros, RJ.
rI

Cortázar, Julio, 1914-1984.


C854b

--
Bestiário/Julio Cortázar; tradução (revista) de Remy Gorga, filho. -
Rio, de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

(Contos e crônicas de autores estrangeiros)

Tradução de: Bestiário.

1. Literatura argentina - Contos. I. Gorga, Remy, 1933. 11. Título. IH.


Série.
86-1154 CDD - 868.993203
"
li

Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e


)
antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais
vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as
recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nos-
sos pais e toda a infância.
Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela
sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa
podiam viver oito pessoas sem se molestarem.
Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às
sete, e pelas onze eu deixava a Irene as últimas pe-
ças por repassar e ia à cozinha. Almoçávamos ao
meio-dia; sempre pontuais; então não ficava nada
1\' por fazet além de uns poucos pratos sujos. Era para
nós agradável almoçar pensando na casa ampla e si-
lenciosa; e em como nos bastávamos para mantê-Ia
limpa. À'S vezes chegamos a pensar que foi ela que
não nos deixou casar. Irene recusou dois pretenden-
tes sem motivo maior, eu vi morrer Maria Ester an-
tes que chegássemos a nos comprometer. Entramos
nos quarenta anos com a inexprimÍvel idéia de que o
nosso, simples ~.silencioso matrimônio de irmãos,
1.
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era o fim necessário da genealogia fundada por nos- como em uma loja; não tive coragem de perguntar a
sos bisavós em nossa casa. Morreríamos ali algum Irene o que pensava fazer com elas. Não precisá-
dia, vagos e distantes primos ficariam com a casa, e vamos ganhar a vida, todos os meses chegava a
a demoliriam para enriquecerem com o terreno e os renda dos campos, e o dinheiro aumentava. Mas
tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos, in- Irene só se entretinha tricotando, mostrava lima
flexivelmente, antes que fosse demasiado tarde. destreza maravilhosa, e eu passava as horas vendo
Irene era uma moça nascida para não fazer mal a suas mãos como ouriços prateados, agulhas indo e
ninguém. Fora sua atividade matinal, passava o vindo, e uma ou duas cestinhas no chão, onde cons-
resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não tantemente se agitavam os novelos. Era uma beleza.
sei por que tricotava tanto. Acho que as mulheres fI'

tricotam quando encontram nesse trabalho o grande Lembro-me bem da divisão da casa·lA1ial~LQeJ::lI1:
pretexto para não fazer nada. Irene não era assim, lar, urna peça com gobelinos, a biblioteca e três
tricotava coisas sempre necessárias, camisolas para quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a
oinverno, meias para mim, cachenês e coletes para que dá frente para a Rodríguez Pena. Um único_cor~
ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia redor, com sua maciça porta de carvalho, separava
rapidamente, porque alguma coisa não lhe agrada- essa parte da@TadlanTeit1t,ºl1c1e havia um banheiro,
va; era engraçado ver, na cestinha, o montão de lã a cozinha, nois'os quarÚ)s de dormir e o living cen-
encrespada, recusando-se a perder a forma de al- trai, com o qual se comunicavam os quartos e o cor-
gumas horas antes. Aos sábados, eu ia ao centro redor. Entrava-se na casa por um saguão de azule-
para lhe comprar lã; Irene tinha confiança no meu jos, e a porta principal dava para o living. De ma-
gosto, aprovava as cores e nunca precisei devolver neira que a gente entrava por esse saguão, abria a
uma só meada. Aproveitava essas saídas para dar porta e já estava no living; tinha, dos lados, as portas
uma volta pelas livrarias e perguntar inutilmente se dos nossos quartos e, \'à frente, o corredor que le-
havia novidades em literatura francesa. Desde 1939 vava à parte mais afastada; seguindo pelo corredor,
nada de importante chegava à Argentina. il' ultrapassava-se a porta de carvalho e, mais adiante,
É da casa, porém, que me interessa falar, da casa começava o outro lado da casa, ou então se p0dia vi-
e de Irene, porque eu não tenho importância. Per- rar à esquerda, justamente 'antes da porta, e seguir
gunto-me o que teria feito Irene sem tricotar. Uma por um corredor mais estreito, que levava à cozinha
pessoa pode reler um livro, mas quando um pulôver e ao banheir<j Quando a porta estava aberta, dava
está pronto não é possível repeti-lo sem provocar para ver que a casa era muito grande; caso contrá-
admiração. Um dia encontrei a última gaveta da rio, tinha-se a impressão de um desses apartamen-
cômoda de cânfora cheia de echarpes brancas, ver- tos que se constroem agora, onde uma pessoa mal
des, lilases. Estavam com naftalina, empilhadas pode se mexer. Irene e eu vivíamos sempre nesta
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parte da casa, quase nunca Íamos além da porta de
Deixou cair o tricô e me olhou com os seus graves
carvalho, salvo para fazer a limpeza, pois é incrível
olhos cansados.
como junta poeira nos móveis. Buenos Aires pode
- Você tem certeza?
ser uma cidade limpa, mas isso ela deve a seus habi-
tantes e não a outra coisa. Há demasiada poeira no Disse que sim.
- Então - disse, recolhendo as agulhas - te-
ar, mal sopra uma lufada de vento ejá se acha pó nos
mármores dos consolos e entre os buracos das to- remos que viver neste lado.
Eu cevava o mate com muito cuidado, mas ela
alhas de macramé; dá trabalho tirá-Io completa-
demorou um instante em recomeçar o trabalho.
mente só com o espanador, voa e se suspende no ar,
um momento depois se deposita de novo nos móvei s Lembro-me de que tricotava um colete cinzento;
achava bonito esse colete.
e no plano.

Recordarei sempre nitidamente porque foi sim- Os primeiros dias nos pareceram penosos porque
ples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava trico- ambos tínhamos deixado muitas coisas que amáva-
tando em seu quarto, eram oito da noite e, de repen- mos na parte tomada. Meus livros de leitura france-
te, eu me lembrei de levar a chaleira do mate ao fo- sa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene
go. Fui pelo corredor até chegar à porta de carvalho, sentia falta de umas toalhas, um par de chinelas que
que estava entreaberta, e dava a volta ao cotovelo a abrigavam muito no inverno. Eu lamentava o meu
que levava à cozinha quando ouvi alguma coisa na cachimbo de zimbro e acho que Irene pensou em
sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha impre- uma garrafa de Hesperidina de muitos anos. Com
ciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre freqüência (mas isto só aconteceu nos primeiros
tapete ou um abafado murmúrio de conversação. E dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos
olhávamos com tristeza.
o ouvi, também, ao mesmo tempo ou um segundo
depois, no fundo do corredor que vinha daquelas - Não está aqui.
peças até a porta. Atirei-me contra a porta antes que E era mais uma das coisas de tudo o que tínhamos
fosse demasiado tarde, fechei-a violentamente, perdido no outro lado da casa.
apoiando meu corpo; felizmente a chave estava do Mas também tivemos vantagens. A limpeza ficou
nosso lado e, além disso, passei nessa porta o tão simplificada que mesmo nos levantando muito
grande ferrolho para maior segurança. tarde, às nove e meia por exemplo, não eram onze e
Fui então à cozinha, fervi a água da chaleira e, já estávamos de braços cruzados. Irene se acostu-
quando voltei com a bandeja do mate, disse a Irene: mou a ir comigo à cozinha e me ajudava a preparar o
- Tive que fechar a porta do corredor. Toma- almoço. Pensamos bem, e decidimos isto enquanto
ram a parte dos fundos. eu fazia o almoço, Irene prepararia pratos frios para
a noite. Alegramo-nos porque sempre se torna in-
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I,
cômodo ter que abandonar os quartos ao entardecer dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, próxi-
e se pôr a cozinhar. Agora nos bastavam a mesa no mos à parte tomada, ficávamos falando em voz mais
quarto de Irene e as travessas de comida fria. alta, ou Irene cantava canções de ninar. Em uma
Irene estava contente porque lhe sobrava mais cozinha há demasiado ruído de louça e vidros para
tempo para tricotar. Eu andava um pouco desorien- que outros sons a invadam. Muito poucas vezes
tado por causa dos livros, mas, para não afligir mi- permitíamos ali o silêncio, mas, quando voltávamos
nha irmã, comecei a examinar a coleção de selos de aos quartos e ao living, então a casa ficava silen-
papai, e isso me serviu para matar o tempo. Nós nos ciosa e, à meia-luz, até pisávamos mais vagarosa-
divertíamos muito, cada qual em suas coisas, quase mente para não nos incomodar. Acho que era por
sempre reunidos no quarto de Irene, que era mais isso que, de noite, quando Irene começava a sonhar
confortável. Às vezes Irene dizia: em voz alta, eu a acordava imediatamente.)
- Olhe só este ponto que inventei. Não se pa-
rece com um trevo? É quase repetir a mesma coisa, exceto nas conse-
Um instante depois era eu que lhe punha diante qüências. De noite sinto sede, e antes de nos deitar
dos olhos um quadradinho de papel para que visse o disse a Irene que ia à cozinha buscar um copo com
valor de 'algum selo de Eupen e Malmédy. Passá- água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi ruído
vamos bem, e pouco a pouco começávamos a não na cozinha, talvez no banheiro, porque o cotovelo
pensar. Pode-se viver sem pensar. do corredor diminuía o som. Minha maneira brusca
de parar chamou a atenção de Irene, que veio para o
(Quando Irene sonhava em voz alta, eu acordava meu lado sem dizer palavra. Ficamos ouvindo os
imediatamente. Nunca pude me habituar a essa voz ruídos, notando claramente que eram deste lado da
de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e porta de carvalho, na cozinha e no banheiro, ou
não da garganta. Irene dizia que meus sonhos eram mesmo no corredor, onde começava o cotovelo
grandes sacudidelas que, às vezes, faziam cair o co- quase ao nosso lado.
bertor. Nossos quartos tinham um living separan- N em sequer nos olhamos. Apertei o braço de
do-os, mas de noite se escutava qualquer coisa na Irene e a fiz correr comigo até a porta, sem olhar
casa. Nós nos ouvíamos respirar, tossir, pressen- para trás. Os ruídos ficavam mais fortes, mas sem-
tíamos o gesto que conduz ao interruptor do abajur, pre abafados, às nossas costas. Fechei de um golpe
as mútuas e freqüentes insônias. a porta e ficamos no saguão. Não se ouvia nada ago-
Fora disso, tudo estava silencioso na casa. De ra.
dia, eram os rumores domésticos, o roçar metálico - Tomaram esta parte - disse Irene. O tricô
das agulhas de tricô, um crepitar de folhas viradas descia de suas mãos e os fios iam até a porta e se
de álbum filatélico. A porta de carvalho, creio tê-Io perdiam por debaixo dela. Quando viu que os nove-
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los tinham ficado do outro lado, ela largou o tricô
sem ao menos olhá-lo.
- Você teve tempo de trazer alguma coisa? -
perguntei-lhe inutilmente.
- Não, nada.
Estávamos com o que tínhamos no corpo.
Lembrei-me dos quinze mil pesos no guarda-roupa
do meu quarto. Agora era tarde. CARTA A
Como me sobrava o relógio de pulso, vi que eram UMA SENHORITA
onze horas da noite. Cingi com meu braço a cintura EM PARIS
de Irene (eu acho que ela estava chorando) e saímos
assim à rua. Antes de nos afastarmos senti tristeza,
fechei bem a porta de entrada e joguei a chave no
bueiro. Não fosse algum pobre-diabo resolver rou-
bar e entrasse na casa, a essa hora e com a casa to-
mada.

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A ndrée, eu não queria vir morar em seu aparta-
mento da Rua Suipacha. Não tanto pelos coelhi-
nhos, mas porque me desagrada entrar em uma or-
dem fechada, já construída até nas mais finas ma-
lhas do ar, essas que em sua casa preservam a mú-
sica da lavanda, o adejar de um cisne com pós, o
dueto de violino e viola no quarteto de Rará. Para
mim é difícil entrar em um ambiente onde alguém
que vive confortavelmente dispôs tudo como uma
reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um
lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali
os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha
o cinzeiro de cristal que parece a metade de uma bo-
lha de sabão, e sempre um perfume, um som, um
crescer de plantas, uma fotografia de amigo morto,
ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar ... Ah,
querida Andrée, como é difícil opor-se, embora
aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à
minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua
agradável residência. Como é condenável pegar
uma tacinha de metaf e pô-Ia na outra extremidade
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da mesa, pô-Ia ali simplesmente porque alguém visse sombras, partes de um látego que me açoita
trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrí-
alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa ta- vel. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria me
cinha vale por um horrível vermelho inesperado em instalar aqui, e subi de elevador. Precisamente entre
meio a uma modulação de Ozenfant, como se de re- o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar
pente as cordas de todos os contrabaixos rebentas- um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não pense.
sem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chi- porém, que por deslealdade, mas naturalmente a
cotada no instante mais suave de uma sinfonia de gente não vai ficar explicando aos outros que, de
Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de rela- quando em quando, vomita um coelhinho. Como
ções de toda a casa, de um objeto com outro, de isso sempre me tem sucedido estando só, escondia o
cada momento de sua alma com a alma inteira da fato como se escondem tantos detalhes do que acon-
casa e sua distante moradora. E eu não posso apro- tece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total.
ximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de Não me censure, Andrée, não me censure. De
luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, quando em quando me acontece vomitar um coelhi-
sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe nho. Não é razão para não viver em qualquer casa,
pelos olhos como um bando de pardais. não é razão para que a gente deva se envergonhar e
Você sabe por que vim a sua casa, a seu tranqüilo estar isolado e andar se calando.
salão festejado de sol. Tudo parece tão natural, Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, po-
como sempre que não se sabe a verdade. Você foi a nho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e
Paris, eu fiquei com o apartamento da Rua Suipa- espero sentir na garganta a penugem morna que
cha, elaboramos um simples e satisfatório plano de sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo
mútua conveniência, até que setembro a traga de é rápido e higiênico, transcorre em um brevÍssimo
novo a Buenos Aires e me atire a alguma outra casa instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso
onde talvez ... Mas não lhe escrevo por isso, escrevo
pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho pa-
esta carta por causa dos coelhinhos, me parecejusto rece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só
informá-Ia; e porque gosto de escrever cartas, e tal- que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de
vez porque chove. chocolate, mas branco e completamente um coelhi-
Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da nho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penu-
tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em gem com uma carícia dos dedos, o coelho parece sa-
minha vida, passei tantas horas preparando baga- tisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho
gens que não levavam a parte nenhuma, que aquela na minha pele, movimentando-o com essa tritura-
quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, ção silenciosa e cosquenta do focinho de um coelho
porque quando vejo as correias das malas é como se contra a pele de uma mão. Procura comer, e então
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eu (falo de quando isto acontecia em minha casa de ria sido preferível matar imediatamente o coelhinho
campo) o levo comigo à varanda e ponho-o no e ... Ah, você teria que vomitar um que fosse, pegá-
grande vaso onde cresce o trevo que plantei para 10 com dois dedos e colocá-Io na mão aberta, ainda
esse fim. O coelhinho levanta bem suas orelhas, en- aderido a você pelo próprio ato, pela aura inefável
volve o trevo novo com um veloz molinete do foci- de sua proximidade recém-partida. Um mês distan-
nho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, conti- cia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos,
nuar por algum tempo uma vida não diferente da de olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um
tantos que compram seus coelhos nas granjas. mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o
Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, minuto inicial, quando o floco morno e buliçoso en-
como um aviso do que seria minha vidaem sua casa, cobre uma presença inconfundível... Como um po-
soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive ema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de
medo (ou era surpresa? Não, medo da própria sur- Iduméia: tão da gente que a gente mesmo ... e depois
presa, talvez), porque antes de deixar minha casa, tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso
só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e mundo branco tamanho carta.
estava livre por um mês, cinco semanas, talvez seis Decidi, contudo, matar o coelhinho mal nasces-
com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resol- se. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro-
vido completameI}.te o problema dos coelhinhos. talvez, com sorte, três - colheradas de álcool no
Plantava trevo na varanda da minha outra casa, vo- focinho. (Você sabe que a misericórdia permite ma-
mitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de tar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de
um mês, quando suspeitava que de um momento beber uma colherada de álcool? Sua carne então
para outro ... então dava o coelho já crescido à Sra. sabe melhor, dizem, embora eu ... Três ou quatro
de Molina, que imaginava um hobby meu e não dizia colheradas de álcool, em seguida o banheiro ou um
nada. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo pacote se somando ao lixo.
novo e oportuno, eu esperava despreocupado a ma- Ao passar pelo terceiro andar o coelhinho se me-
nhã em que a cosquinha de uma penugem subindo xia em minha mão aberta. Sara esperava em cima,
me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia para me ajudar a entrar com as malas ... Como lhe
desde aquele momento a vida e os costumes do an- explicar que um capricho, uma casa que vende ani-
terior. Os costumes, Andrée, são formas concretas mais? Embrulhei o coelhinho no meu lenço,
do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando-o
Não era tão horrível vomitar coelhinhos, uma vez desabotoado para não espremê-Io. Mal se mexia.
que isso havia entrado no ciclo invariável, no méto- Sua mi úda consciência devia estar revelando fatos
do. Você há de querer saber por que todo esse traba- importantes: que a vida é um movimento para cima
lho, por que todo esse trevo e a Sra. de Molina. Te- com um dique final, e que é também um céu baixo,
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branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo cher o corpo da gente de sal e açoites do sol e gran-
de um poço morno. des rumores da profundidade.
Sara não viu nada, fascinava-a o muito duro pro- De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a
blema de ajustar o seu sentido de ordem a minha porta fechada, o armário é uma noite diurna só para
mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência eles, e lá eles dormem sua noite com sossegada obe-
diante de suas elaboradas explicações, em que diência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair
abunda a expressão' 'por exemplo". Tão logo pude, para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dú-
me fechei no banheiro; matá-lo agora. Uma fina vida a honradez dela e me olha desconfiada, noto
zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era todas as manhãs que está para me dizer alguma coi-
branquÍssimo e acho que mais lindo que os outros. sa, mas por fim se cala, e eu fico muito contente ...
Não me olhava, apenas bulia e estava contente, o (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço
que era o mais horrível modo de me olhar. ruído na sala, ponho um disco de Benny Carter que
Encerrei-o no pequeno armário vazio e voltei-me toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga
para desfazer as malas, desorientado mas não infe- de saelas e pasodobles, o armário parece silencioso
liz, não culpado, não ensaboando as mãos para tirar e talvez esteja mesmo, porque para os coelhinhos
delas uma última convulsão. agora é noite e hora de descanso.)
O dia deles principia nessa hora que vem depois
Compreendi que não podia matá-Io. Mas nessa do jantar, quando Sara leva a bandeja com um
mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois miúdo tilintar de pinças de açúcar, me deseja boa-
dias depois um branco. E na quarta noite um coelhi- noite - sim, deseja, Andrée, o mais triste é que me
nho cinzento. deseja boa-noite - e se fecha em seu quarto e ime-
diatamente estou só, só com o maldito armário, só
Você deve amar o belo armário do seu quarto, com meu dever e minha tristeza.
com aquela grande porta que se abre generosa, as Deixo-os sair, se lançarem ágeis ao assalto do sa-
prateleiras vazias à espera da minha roupa. lão, cheirando lépidos o trevo que meus bolsos ocul-
Guardo-os ali agora. Ali dentro. Verdade que pa- tavam e agora faz no tapete efêmeras rendas que
rece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara eles alteram, removem, acabam num instante. Co-
não desconfia de nada, e o fato de que não desconfie mem bem, calados, corretos, até esse instante nada
de nada se deve a minha horrível tarefa, uma tarefa tenho a dizer, só os olho do sofá, com um livro inútil
que consome meus dias e minhas noites num só na mão - eu que queria ler todos os seus Girau-
golpe de rastelo e vai me queimando por dentro e doux, Andrée, e a história argentina de López que
endurecendo como aquela estrela-do-mar que você você tem na prateleira mais baixa -; e comem o
pôs sobre a banheira e que a cada banho parece en- trevo.
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São dez. Quase todos brancos. Levantam a nhas noites recolhidas, é Luís que me convida a ca-
morna cabeça para as lâmpadas do salão, os três minhar ou Jorge que reservou entradas para um
sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque concerto. Quase não me atrevo alhes dizer que não,
sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. invento prolongadas e ineficazes histórias de má
Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pu- saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando
lam pelo tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas retorno e subo de elevador - aquela passagem, en-
se movimentam como uma constelação móvel, de tre o primeiro e o segundo andar - renovo noite a
um lado para outro, embora eu quisesse vê-Ios quie- noite irremediavelmente a vã esperança de que não
tos, vê-Ios a meus pés e quietos - um pouco o so- seja verdade.
nho de todo deus, Andrée, o sonho jamais realizado Faço o que posso para que não destrocem suas
dos deuses -, não assim, se insinuando atrás do re- coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira
trato de Miguel de Unamuno, à volta do grande mais baixa, você os encontrará dissimulados para
jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivani- que Sara não note. Você gostava muito do lampião
nha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu com o ventre de porcelana cheio de borboletas e an-
me perguntando onde andarão os dois que faltam, e tigos cavaleiros? O trincado mal se percebe, traba-
se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a Presi- lhei toda noite com uma cola especial que me vende-
dência de Rivadavia que eu queria ler na história de ram em uma casa inglesa - você sabe que as casas
López. inglesas têm as melhores colas - e agora fico ao
Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que lado dele para que nenhum dos coelhos o alcance
vim descansar em sua casa. Não tenho culpa se de outra vez com as patas (é quase belo ver como gos-
quando em quando vomito um coelhinho, se esta tàm de se pôr em pé, lembrança do humano distante,
mudança me alterou também por dentro -. não é talvez imitação de seu deus deambulando e os
nominalismo, não é magia, é apenas que as coisas olhando carrancudo; além disso você terá percebido
não podem mudar assim de repente, às vezes as coi- - em sua infância, talvez - que se pode deixar um
sas mudam brutalmente e quando agente esperava a coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as
bofetada
. à direita. Assim,
. Andrée, ou de outra ma- patinhas apoiadas e muito quieto horas afio).
nelra, mas sempre aSSIm. As cinco da manhã (dormi um pouco, estendido
Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas es- no sofá verde, e acordando a cada corrida aveluda-
crevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio da, a cada tilintar) eu os ponho no armário e faço a
este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem,
Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, embora às vezes eu tenha notado nela algum es-
que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam ao panto contido, um estar olhando um objeto, uma
telefone, são os amigos que se inquietam com ini- leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de
28 29
,.A. .

nhecer. É mesmo o dia seguinte, Andrée? Um pe-


me perguntar alguma coisa, mas eu, assobiando as daço em branco da página será para você o interva-
variações sinfônicas de Franck, faço que nem é co- lo, apenas a ponte que une a minha letra de ontem à
migo. Para que lhe contar, Andrée, as minúcias minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo
desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em
tudo terminou, onde você vê a ponte livre eu ouço
que caminho entredormido levantando cabos de quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este
trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões lado do papel, este lado da minha carta não continua
nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atra- a calma com que eu vinha lhe escrevendo, quando
sa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a eu a deixei para participar de um trabalho de comis-
uma senhora distante que já estará se perguntando sões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem
se ... ? Para que continuar com tudo isto, para que onze coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não
continuar esta carta que escrevo entre telefones e agora - No elevador, logo, ou ao entrar; não im-
entrevistas.
porta mais onde, se o quando é agora, se pode ser em
Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são qualquer agora dos que me restam.
dez e não virão mais. Faz quinze dias segurei na
palma da mão um último coelhinho, depois nada, Agora chega, escrevi isto porque me interessa
são só aqueles dez que estão comigo, sua diurna provar-lhe que não fui tão culpado na destruição
noite e agora crescendo, agora feios e nascendo o inevitável de sua casa. Deixarei esta carta à sua es- I

pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de ne- pera, seria sórdido que o Correio a entregasse a·
cessidades e caprichos, saltando sobre o busto de você em alguma clara manhã de Paris. Na noite pas-
Antínoo (é Antínoo, de fato, aquele rapaz que olha sada virei os livros da segunda estante; eles já os al-
cegamente?) ou se perdendo no living onde seus cançavam, ficando de pé ou saltando, roeram as
movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que
lombadas para afiar os dentes - não por fome, têm
dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e todo o trevo que compro e armazeno para eles nas
apareça horripilada, talvez de camisola - porque gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os
Sara deve ser assim, com camisola - e então ... So- forros das poltronas, a moldura do auto-retrato de
mente dez, pense você nessa pequena alegria que Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e tam-
sinto, em meio a tudo isso, a crescente calma com bém gritaram, estiveram dando voltas sob a luz do
que ultrapasso de volta os rígidos tetos do primeiro e lustre, em círculo e como que me adorando, e então
do segundo andar. gritavam, gritavam como eu não acredito que os co-
elhos gritem.
Interrompi esta carta porque devia participar de Quis em vão tirar os pêlos que enfeiam o tapete,
um trabalho de comissões. E a continuo aqui em sua
aparar as beiras da fazenda roída, encerrá-Ios de
casa, Andrée, sob uma silenciosa grisalha de ama-
31
30
novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante
logo. É quase estranho que Sara não me importe. É
quase estranho que não me importe de vê-Ios saltar
em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você
verá quando chegar que muitos dos destroços estão
bem reparados com a cola que comprei em uma casa
inglesa, eu fiz o que pude para lhe evitar um desgos-
to ... Quanto a mim, do dez ao onze há como um va-
zio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um
DISTANTE
armário, trevo e esperança, quantas coisas se po-
dem construir. Mas não com onze, porque dizer
onze é certamente dizer doze, Andrée, doze que será
treze. Então há o amanhecer e uma fria solidão na
qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez
tanta coisa mais. Há esta sacada sobre Suipacha
cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não
acredito que lhes seja dificiljuntar onze coelhinhos
salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os
notem, atarefados com o outro corpo que convém
levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.

\~!

32
D;ário de Alina Reyes

12 de janeiro

Na noite aconteceu outra vez, eu tão cansada de


pulseiras e miçangas, de p;nk champagne e da cara
de Renato de Vifies, oh aquela cara de foca balbu-
ciante, de retrato de Dorian Gray na melhor das hi-
póteses. Deitei-me com gosto de bombom de men-
ta, de Boogie do Banco Vermelho, de mamãe boce-
jante e cinzenta (como ela fica quando volta das fes-
tas, cinzenta e adormecida, enormÍssimo peixe e tão
pouco ela).
,
li
E Nora que diz dormir com luz, com barulho, en-
tre os apressados relatórios de sua irmã meio despi-
da. Como são felizes, eu apago as luzes e as mãos,
me dispo aos gritos do lufa-Iufa diário, quero dormir
e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a cor-
rente que o Rex arrasta a noite toda sobre as alfenas.
Now I lay me down to sleep ... Tenho que repetir
versos, ou o sistema de buscar palavras com a, de-
35
pois com a e e, com as cinco vogais, com quatro. porque batem nela, porque sou eu e batem nela. Ah,
Com duas e uma consoante (asa, olá), com três con- não me desespera tanto quando estou dormindo ou
soantes e uma vogal (três, gris) e outra vez versos, a corto um vestido ou nas horas em que mamãe re-
lua desceu à forja com sua armação de nardos, o cebe e eu sirvo chá à Sra. de Regules ou ao menino
menino a olha olha, o menino a está olhando. Com dos Rivas. Então me importa menos, é um pouco
três e três alternadas, cabala, laguna, animal; Ara- coisa pessoal, eu comigo; sinto-a mais dona do seu
mis, lufada, reparo. infortúnio, distante e só, mas dona. Que sofra. que
Assim passo horas: de quatro, de três e duas, e enregele; e eu suporto daqui. e acho que entfto a
mais tarde palíndromos. Os fáceis, salta Lenin el ajudo um pouco. É como fazer ataduras para um
atlas; amigo no gima; os mais difíceis e formosos, soldado que ainda não foi ferido e senti-Io agradeci-
áta-le, demoníaco Cain, o me delata; Anás usó tu do, que a gente o está aliviando antes. preventiva-
auto, Susana. * Ou os maravilhosos anagramas: mente.
Salvador Dalí, Avida Dollars; Alina Reyes, es Ia Que sofra. Dou um beijo na Sra. de Regules, o
reina y ... Tão belo, este, porque abre um caminho, chá ao menino dos Rivas. e me guardo para resistir
porque conclui. Porque a rainha e ... por dentro. Digo-me: "Agora estou atravessando
Não, horrível. Horrível porque abre caminho a uma ponte gelada. agora a neve entra nos meus sa-
esta que não é a rainha, e que outra vez odeio de noi- patos furados." Não é que sinta nada. Sei apenas
te. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do ana- que é assim, que em algum lugar atravesso uma
grama; que será qualquer coisa, mendiga em Buda- ponte no instante mesmo (mas não sei se é no ins-
peste, freqüentadora de prostÍbulo em Jujuy ou tante mesmo) em que o menino dos Rivas aceita o
criada em Quetzaltenango, em qualquer lugar dis- chá e mostra a sua melhor cara de tarado. Eu
tante e não rainha. Mas Alina Reyes, e, por isso, on- agüento bem porque estou só entre essa gente sem
tem de noite aconteceu outra vez, senti-Ia e o ódio. sentido, e não me desespera tanto. Nora ficou como
doida na noite passada, disse: "Ora. que é que você
tem?" Acontecia àquela. a mim tão longe. Alguma
20 de janeiro coisa horrível devia ter acontecido a ela. batiam nela
ou se sentia doente e justamentequando Nora ia
Às vezes sei que tem frio, que sofre, que batem cantar Fauré e eu ao piano. olhando-o tão feliz. e
nela. Posso apenas odiá-Ia muito, detestar as mãos Luis María com os cotovelos na cauda que lhe ser-
que a atiram ao solo e também a ela, a ela ainda mais via de moldura, ele me olhando contente com cara
de cachorrinho, esperando ouvir os arpejos, os dois
*Mantidos no original, para preservar a possibilidade de lei- tão perto e nos querendo tanto. Assim é pior.
tura da direita para a esquerda. (N. do T.) quando conheço algumacoisa nova sobre ela. e logo
36 37
agora que estou dançando com Luis Maria, Noite
beijando-o ou apenas perto de Luis Maria. Porque a
mim, à distante, não a querem. É a parte que não As vezes é ternura, uma súbita e necessária ter-
querem e como vai me dilacerar por dentro sen- nura para com aquela que não é rainha e anda por aÍ.
tir que batem em mim ou a neve entra nos meus sa- Gostaria de lhe mandar um telegrama, lembranças,
patos quando Luis MarÍa dança comigo e sua mão saber que seus filhos estão bem ou que não tem fi-
na minha cintura vai subindo como um calor de
lhos - porque eu acredito que lá não tenho filhos -
meio-dia, um sabor forte de laranja ou bambus chi- e necessita consolo, compaixão, caramelos. Na
coteados, e batem nela e é impossível resistir e en- noite passada adormeci urdindo telegramas, pontos
tão preciso dizer a Luis Maria que não estou bem, de encontro. Chegarei quinta-feira pt. Espere-me
que é a umidade, umidade entre essa neve que não ponte. Que ponte? Idéia que volta como volta Bu-
sinto, que não sinto e está entrando nos meus sapa- dapeste, acreditar na mendiga de Budapeste, onde
tos.
haverá tanta ponte e neve que goteja. Então me endi-
reitei rígida na cama e quase uivo, quase corro a
acordar mamãe, a insistir para que acordasse. Tudo
25 de janeiro
isso só por pensar. Ainda não é fácil dizê-lo. Tudo
isso só por pensar que eu poderia ir agora mesmo a
Claro, Nora veio me ver e houve uma cena. "Filhi- Budapeste, se realmente eu o quisesse. Ou a Jujuy,
nha, é a última vez que lhe peço que me acompanhe ou a Quetzaltenango. (Busquei estes nomes pági-
ao piano. Fizemos um papelão." Que sabia eu de nas atrás.) Não resolvem, seria igual dizer Três Ar-
papelões, acompanhei-a como pude, me lembro que roios, Kobe, Florida n.o 400. Só resta Budapeste
a ouvia em surdina. Vatre âme est un paysage chai- porqueali é o frio, ali batem em mim e me afrontam.
si ... Mas olhava minhas mãos entre as teclas e pare- Ali (eu sonhei, não é mais que um sonho, mas como
cia que tocavam bem, acompanhavam Nora hones- adere e se insinua até a vigília) há alguém que se
tamente. Luis Maria também olhou minhas mãos, o chama Rod - ou Erod, ou Rodo - e ele bate em
pobrezinho, eu acho que era porque não se animava mim e eu o amo, não sei se o amo mas me deixo ba-
a olhar meu rosto. Devo ficar tão estranha. ter, isso volta todo o dia, então é certo que o amo.
Pobre Norinha, que outra a acompanhe. (Isto pa-
rece cada vez mais um castigo, agora só me conheço
lá quando vou ser feliz, quando sou feliz, quando Mais tarde
Nora canta Fauré eu me conheço lá e não resta se-
não o ódio.) Mentira. Sonhei Rod ou o fiz com uma imagem
qualquer de sonho, já usada e tão simples. Não há
38 39
Rod, hão de me castigar lá, mas quem sabe se é um Dobrina Stana, sbunáia tjéno, Burglos. Mas não sei
homem, uma mãe furiosa, uma solidão. o nome da praça, é um pouco como se de verdade ti-
Ir para me buscar. Dizer a Luis Maria: "Yamos vesse chegado a uma praça de Budapeste e estivesse
nos casar, me leva a Budapeste, a uma ponte onde perdida por não saber o seu nome; ali onde um nome
há neve e alguém." Eu digo: e se estou lá? (Porque é uma praça.
eu penso em tudo com a secreta vantagem de não Já vou, mamãe. Chegaremos a tempo a seu Bach
e a seu Brahms. É um caminho tão simples. Sem
querer acreditar a fundo. E se estou lá?) Bem, se es-
praça, sem Burglos. Nós aqui, Eisa Piaggio lá. Que
tou ... Mas só louca, só ... Que lua-de-mel! tristeza ter me interrompido, saber que estou em
uma praça (mas isto não é mais verdade, só, o penso
e isso é menos que nada). E que no fim da praça co-
28 de janeiro
meça a ponte.
Pensei uma coisa curiosa. Faz três dias que não
chega nada da distante. Talvez agora não batam ne- Noite
la, ou terá conseguido proteção. Mandar-lhe um te-
legrama, umas meias ... Pensei uma coisa curiosa.
Começa, continua. Entre o final do concerto e o
Chegava à horrível cidade e era de tarde, tarde es-
verdeada e aquosa como não são nunca as tardes se primeiro bis achei seu nome e o caminho. A Praça
a gente não as ajuda imaginando. Pelo lado da 00- Yladas, a Ponte dos Mercados. Pela Praça Yladas
brina Stana, na Perspectiva Skorda, cavalos eriça- segui até o nascimento da ponte, um pouco andando
dos de estalagmites e esbirros rígidos, pães fume- e querendo às vezes parar em casas ou vitrinas, em
gantes e flocos de vento ensoberbecendo asjanelas. meninos abrigadÍssimos e monumentos com altos
Andar pela Dobrina com passo de turista, o mapa heróis de embranquecidas capas, Tadeo Alanko e
no bolsinho do meu vestido azul (com esse frio e fui Yladislas Néroy, bebedores de tócai e cimbalistas.
deixar o casaco de pele no Burglos), até uma praça Eu via aplaudir Eisa Piaggio entre um Chopin e ou-
junto ao rio, quase em cima do rio trovejante de ge- tro Chopin, pobrezinha, e de minha poltrona se saía
los quebrados e barcaças e algum martim-pescador diretamente à praça, com a entrada de ponte entre
que lá se chamará sbunáia tjéno ou algo pior. vastÍssimas colunas. Mas isto eu pensava, atenção,
Depois da praça imaginei que vinha a ponte. Pen- o mesmo que fazer anagramas com es Ia reina y ...
sei e não quis continuar. Era a tarde do concerto de
em vez de Alina Reyes, ou imaginar mamãe na casa
Eisa Piaggio de Tarelli no Odeón, me vesti sem von- dos Suárez e não a meu lado. É bom não cair no meu
tade adivinhando que depois a insônia estaria me
esperando. Este pensar de noite, tão de noite ... gosto: isso é coisa minha, nada mais que ter vonta-
Quem sabe se não me perderia. A gente inventa de, a vontade real. Real porque Alina, ora vamos-
nomes ao viajar pensando, recorda-os num instante: Não a outra coisa, não o sentir que ela tem frio ou

40 41
que a maltratam. Isto eu desejo e o continuo por vinha de dentro - ou era o desabrigo, a nevada vio-
gosto, para saber aonde vai, para saber se Luis Ma- lenta e o meu casaco de pele no hotel. E depois por-
na me leva a Budapeste, se nos casamos e lhe peço que eu sou modesta, sou uma moça sem vaidades,
que me leve a Budapeste. É mais fácil sair a procu- mas quero saber de outra a que tenha acontecido a
rar esta ponte, sair a minha procura e me encontrar mesma coisa, que viaje à Hungria em pleno Odeón.
como agora, porque já andei a metade da ponte en- Isso faz qualquer um sentir frio, cara, aqui ou na
tre gritos e aplausos, entre Albéniz! e mais aplausos França.
e A Polonaise!, como se isto tivesse sentido entre a Mamãe, porém, me puxava pela manga, quase já
neve perigosa que me empurra com o vento pelas não havia gente na platéia. Escrevo até aqui, sem
costas, mãos de toalha de esponja me levando pela vontade de continuar me lembrando do que pensei.
cintura até o meio da ponte. Vai me fazer mal se continuo me lembrando. Mas é
(É mais cômodo falar no presente. Isto era às oito, verdade, verdade; pensei uma coisa curiosa.
quando EIsa Piaggio tocava o terceiro bis, acho que
Julián Aguirre ou Carlos Guastavino, alguma coisa
com grama e passarinhos.) Mas fiquei canalha com 30 de janeiro
o tempo, não lhe tenho mais respeito. Lembro-me
que um dia pensei: "Lá me batem, lá a neve entra Pobre Luis Mana, que burrice se casar comigo.
Não sabe o que está pondo em cima dos ombros. Ou
nos meus sapatos e eu sei disto na hora, quando lá
está me acontecendo eu fico sabendo na mesma ho- embaixo, como diz Nora, que posa de intelectual
emancipada.
ra. Mas por que na mesma hora? Talvez chegue tar-
de, talvez não tenha acontecido ainda. Talvez bate-
rão nela daqui a catorze anos, oujá é uma cruz e um 31 de janeiro
número no cemitério de Santa Úrsula." E me pare-
cia bonito, possível, tão idiota. Porque atrás disso a Iremos lá. Concordou com tanta coisa que quase
gente sempre cai no tempo igual. Se agora ela esti- grito. Senti medo, achei que ele entra muito facil-
vesse realmente entrando na ponte, sei que o senti- mente neste jogo. E não sabe de nada, é como o pe-
ria agora mesmo e daqui. Lembro-me de que parei ãozinho da dama que termina a partida sem saber.
para olhar o rio que estava como maionese encres- Peãozinho Luis Mana, ao lado de sua rainha. De Ia
pada, batendo contra os pilares, enfurecidíssimo e rema y-
soando e chicoteando. (Isto eu pensava.) Valia a
pena assomar ao parapeito da ponte e sentir nas ore-
7 de fevereiro
lhas a quebra do gelo aliembaixb. Valia a pena ficar,
um pouco pela vista, um pouco pelo medo que me Para se curar. Não escreverei o final do que tinha
42 43
pensado no concerto. Na noite passada eu a senti Budapeste a 6de abril e se hospedaram no Ritz. Isso
sofrer outra vez. Sei que lá estarão batendo de novo foi dois meses antes do seu divórcio. Na tarde do
em mim. Não posso evitar de sabê-Io, mas chega de segundo dia Alina saiu para conhecer a cidade e o
palavras. Se me houvesse limitado a registrar isso degelo. Como gostava de caminhar sozinha - era
por gosto, por desabafo ... Era pior, um desejo de rápida e curiosa - andou por vinte lados procu-
conhecer ao ir relendo; de encontrar chaves em rando vagamente alguma coisa, mas sem se deter-
cada palavra atirada ao papel depois dessas noites. minar muito, deixando que o desejo escolhesse e se
Como quando pensei a praça, o rio quebrado e os expressasse com bruscos arrancos que a levavam de
ruídos,
. . e depois
. ... Mas não o escrevo, não o escre- uma vitrina a outra, mudando de calçadas e lojas.
vereI JamaIs. Chegou à ponte e a atravessou até a metade, an-
Ir lá e me convencer de que o celibato me fazia dando agora com dificuldade porque a neve batia de
mal, nada mais que isso, ter vinte e sete anos e sem frente e do Danúbio cresce um vento de baixo, difí-
homem. Agora será meu cachorrinho, meu bobinho, cil, que prende e fustiga. Sentia como a saia se gru-
chega de pensar, e agora ser, ser afinal e para o bem. dava nas coxas (não estava bem abrigada) e, de re-
E apesar disso, já que terminarei este diário, por- pente, um desejo de voltar, voltar à cidade conheci-
que a gente ou se casa ou escreve um diário, as duas da. Na metade da ponte desolada a andrajosa mu-
coisas não andam juntas -Já agora não me agrada lher de cabelo negro e lasso esperava com alguma
deixá-Io' sem dizer isto com alegria de esperança, coisa firme e ávida na cara sinuosa, nas rugas das
com esperança de alegria. Vamos lá, mas não há de mãos meio fechadas mas já se estendendo. Alina
ser como o pensei na noite do concerto. (Escrevo-o, chegou junto a ela repetindo, agora o sabia, gestos e
e chega de diário para o meu bem.) Eu a encontrarei distâncias como depois de um ensaio geral. Sem te-
na ponte e nos olharemos. Na noite do concerto eu mor, libertando-se afinal - acreditava-o com um
sentia nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. E sobressalto terrível dejúbilo e frio - chegou junto a
será a vitória da rainha sobre essa aderência malig- ela e estendeu também as mãos, se negando a pen-
na, usurpação indevida e surda. Entregar-se-á se re- sar, e a mulher da ponte se apertou contra seu peito
almente sou eu, se somará à minha zona iluminada, e as duas se abraçaram rígidas e caladas na ponte,
mais bela e verdadeira; apenas por ir a seu lado e com o rio estilhaçado golpeando nos pilares.
apoiar uma mão no seu ombro. Alina sentiu o fecho da bolsa que a força do
abraço cravava entre os seios como uma laceração
doce, suportável. Apertava a magríssima mulher
sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço,
com um crescer de felicidade igual a um hino, a um
Alina Reyes de Aráoz e seu esposo chegaram a soltar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos
44 45
na fusão total, recusando as sensações de fora, a luz
crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa
de sua vitória, sem celebrá-Ia por tão seu e finalmen-
te.
Pareceu-lhe, docemente, que uma das duas cho-
rava. Devia ser ela porque sentiu molhadas as faces,
e o próprio pômulo doendo como se tivesse ali le-
vado um golpe. Também o pescoço, e logo os om- ÔNIBUS
bros, curvados por fadigas incalculáveis. Ao abrir
os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam
separado. Agora, sim, gritou. De frio, porque a
neve estava entrando por seus sapatos furados,
porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes
lindíssima em seu vestido cinzento, o cabelo um
pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto e an-
dando.

46

~
,

-- S e não lhe for incômodo, traga-me El Ho-


gar* quando voltar pediu Dona Roberta, reclinan-
do-se na poltrona para a sesta. Clara punha em or-
dem os remédios na mesinha de rodas, percorria a
peça com um olhar minucioso. Não faltava nada, a
menina Matilde ficaria cuidando da Dona Roberta,
a copeira estava a par do necessário. Agora podia
sair, com toda a tarde do sábado para ela só,a amiga
Ana esperando-a para conversar, o chá dulcÍssimo
às cinco e meia, o rádio e os chocolates.
Às duas, quando a onda dos empregados já atra-
vessou os umbrais de tantas casas, Vila do Parque
fica deserta e luminosa. Clara desceu por Tinogasta
e Zamudio pisando firmemente, saboreando um sol
de novembro partido por ilhas de sombras que as
árvores da Agronomia arremessavam no seu cami-
nho. Na esquina da Avenida San M~rtÍn com No-
goyá, enquanto esperava o ônibus 168, ouviu uma

* Antiga revista argentina, dedicada às tarefas domésticas da


mulher. (N. do T.)

49
batalha de pardais sobre sua cabeça. e a torre floren- solavanco e se meteu por Chorroarín a toda veloci-
tina de San Juan .María Vianney pareceu-lhe mais dade.
vermelha contra o céu sem nuvens, tão alto de dar
"Bobalhões", pensou Clara entre lisonjeada e
vertigem. Dom Luis, o relojoeiro, passou e cum- nervosa. Ocupada em guardar a passagem no mo-
primentou atencioso, como se elogiasse sua figura edeiro, observou de esguelha a senhora do grande
esmerada, os sapatos que a faziam mais esbelta, a ramo de cravos que viajava no banco da frente. En-
golinha branca sobre a blusa creme. Pela rua vazia tão a senhora olhou para ela, voltou-se sobre o ramo
veio preguiçosamente o 168, soltando seu seco bu- e a olhou docemente como uma vaca sobre uma cer-
fido insatisfeito ao abrir a porta para Clara, única ca, e Clara tirou o espelhinho e, distraída, ficou es-
passageira na esquina quieta da tarde. tudando seus lábios e sobrancelhas. Sentia agora na
Buscando as moedas na bolsa cheia de coisas, nuca uma impressão desagradável; a suspeita de ou-
demorou a pagar a passagem. O cobrador esperava tra impertinência fez com que se voltasse rapida-
com cara de poucos amigos, retacão e mal-encarado mente, aborrecida de verdade. A dois centímetros
sobre suas pernas cambotas, treinado para agüentar de seu rosto estavam os olhos de um velho de cola-
as curvas e as freadas. Clara lhe disse duas vezes:
rinho duro, com um ramo de margaridas compondo
" De quinze" , sem que o sujeito tirasse os olhos de um cheiro quase nauseabundo. No fundo do ônibus,
cima dela, como que estranhando alguma coisa. instalados no largo banco verde, todos os passagei-
Depois, lhe deu a passagem rosa, e Clara se lem- ros olharam para Clara, que suportou seus olhares
brou de um verso de infância, alguma coisa como: com um esforço crescente, sentindo que cada vez
"Marca, marca, cobrador, uma passagem azul ou ficava mais difícil, não pela coincidência dos olhos
rosa; canta~ canta alguma coisa, enquanto contas o postos nela nem pelos ramos que levavam os passa-
dinheiro. " Sorrindo com a lembrança, buscou geiros; antes porque tinha esperado um desenlace
banco no fundo, encontrou vazio o que correspon- gentil, uma razão de riso por ter o nariz tisnado
dia à Porta de Emergência, e se instalou com o (mas não o tinha); e sobre o seu começo de riso
miúdo prazer de proprietário que o lado dajanelinha pousavam, gelando-a, esses olhares atentos e contí-
sempre dá. Então viu que o cobrador continuava nuos, como se os ramos a estivessem olhando.
olhando para ela. E na esquina da ponte da Avenida Subitamente inquieta, deixou deslizar um pouco
San Martín, antes de virar, o motorista se voltou e o corpo, fixou os olhos no estragado encosto dian-
também a olhou, com dificuldade por causa da dis- teiro, examinando a alavanca da porta de emergên-
tância, mas procurando até distingui-Ia, muito afun- cia e sua inscrição Para abrir a porta PUXE A
dada em seu banco. Era um louro ossudo com cara MANIVELA para dentro e levante-se, exami-
de fome, que trocou umas palavras com o cobrador, nando as letras uma a uma sem conseguir reuni-Ias
os dois olharam Clara, olharam-se, o ônibus deu um em palavras. Conquistava assim uma zona de segu-
50 51
rança, uma trégua para pensar. É natural que os Ninguém descia. O homem subiu agilmente, en-
passageiros olhem ao que recém sobe, é comum que frentando o cobrador que o esperava no meio do
as pessoas levem flores quando vão a Chacarita* , e carro, olhando suas mãos. O homem tinha vinte
centavos na mão direita e com a outra alisava o ca-
é quase comum que todos no ônibus tenham flores.
Passavam diante do Hospital Alvear, e do lado de saco. Esperou, indiferente, o exame: "De quinze",
Clara se estendiam os terrenos baldios, em cuja ex- ouviu Clara. Como ela: de quinze. Mas o cobrador
tremidade distante está a Estrela, zona de sujos não destacava a passagem, continuava olhando o
charcos, cavalos amarelos amarrados pelo pescoço. homem, que afinal percebeu e fez um gesto de impa-
Clara achava difícil se afastar de uma paisagem que ciência cordial: "Eu lhe disse de quinze." Pegou a
o brilho duro do sol não conseguia alegrar, mas uma passagem e esperou o troco. Antes de recebê-lo, já
vez ou outra se atrevia a dirigir um rápido olhar ao havia deslizado levemente até o lugar vazio ao lado
interior do carro. Rosas vermelhas e copos-de-leite, do senhor dos cravos. O cobrador lhe deu os cinco
gladíolos horríveis mais distantes, parecendo ma- centavos, olhou-o um pouco mais, de cima, como se
chucados e sujos, cor de rosa-velho com manchas examinasse sua cabeça; ele nem notava, distraído
lívidas. O senhor da terceira janelinha (olhava-a, na contemplação dos cravos negros. O senhor e-
agora não, agora de novo) levava cravos quase ne- xaminava-o, uma ou duas vezes olhou-o rapida-
gros apertados em uma só massa contínua, como mente e ele passou a lhe devolver o olhar; os dois vi-
uma pele rugosa. As duas meninas de nariz cruel ravam a cabeça quase ao mesmo tempo, mas sem
que se. sentavam na frente, em um dos bancos late- provocações, nada mais que se olhando. Clara con-
rais, sustentavam entre ambas o ramo dos pobres, tinuava furiosa com as meninas da frente, que a
crisântemos e dálias, mas elas não eram pobres, es- olhavam por um longo tempo, e depois ao novo pas-
tavam vestidas com casaquinhos bem cortados, sageiro; houve um momento, quando o 168 iniciava
saias pregueadas, meias brancas três-quartos, e sua corrida pegado ao paredão de Chacarita, em que
olhavam para Clara com altivez. Quis fazê-Ias bai- todos os passageiros estavam olhando para o ho-
xar os olhos, pirralhas insolentes, mas eram quatro mem e também para Clara, só que já não a olhavam
pupilas fixas e também o cobrador, o senhor dos diretamente, porque se interessavam mais pelo re-
cravos, o calor na nuca por causa de toda essa gente cém-chegado, mas era como se a incluíssem em seu
detrás, o velho do colarinho duro tão perto, os jo- olhar, unissem os dois na mesma observação. Que
vens do banco posterior, a Paternal: passagens de gente boba, essa, porque até as pirralhas não eram
Cuenca terminam. tão crianças, cada um com seu ramo e obrigações
pela frente, e se portando com essa grosseria toda.
*BaÍrro de Buenos Aires, onde está localizado um cemitério. Teria gostado de prevenir o outro passageiro, uma
(N. do T.)
silenciosa fraternidade sem razões crescia em Cla-

52 53
ra. Dizer a ele: "Você e eu tiramos passagem de As meninas vieram pelo corredor e pararam na
quinze", como se isso os aproximasse. Tocar no porta de saída; do fundo, vinham alinhadas as mar-
seu braço, aconselhá-Io: "Não se dê por achado, garidas, os gladíolos, os copos-de-Ieite. Atrás havia
são uns impertinentes, metidos aí atrás das flores um grupo confuso e as flores cheiravam para Clara,
como bobos. " Teria gostado que ele viesse sentar a quietinha em suajanelinha, mas tão aliviada por ver
seu lado, mas o rapaz - na realidade era jovem, quanta gente descia, como viajaria bem o resto do
embora tivesse duras marcas no rosto - se deixara percurso. Os cravos negros apareceram no alto, o
cair no primeiro lugar livre que teve a seu alcance. passageiro se levantara para deixar sair os cravos
Com um gesto meio divertido meio irritado, se em- negros, e ficou de lado, quase metido em um banco
penhava em devolver o olhar do cobrador, das duas vazio diante do de Clara. Era um belo rapaz, sim-
meninas, da senhora com os gladíolos; e agora o se- ples e simpático, talvez um empregado de farmácia,
nhor dos cravos vermelhos estava com a cabeça vol- ou um guarda-livros, ou um construtor. O ônibus
tada para trás e olhava Clara, olhava-a inexpressi- parou suavemente, e a porta bufou ao se abrir. O ra-
vamente, com uma doçura opaca e flutuante de pe- paz esperou que as pessoas descessem para esco-
dia':'pomes. Clara lhe devolvia o olhar teimosa, se lher à vontade outro lugar, enquanto Clara partici-
sentindo oca; tinha vontade de descer (mas essa rua, pava da paciente espera dele e se impacientava com
a essa altura, e enfim por nada, por não ter um ra- o desejo de que os gladíolos e as rosas descessem de
mo); notou que o rapaz parecia inquieto, olhava de uma vez. Já então estava aberta a porta e todos em
um lado a outro, depois para trás, e ficava surpreen- fila, olhando-a e olhando o passageiro, sem descer,
dido ao ver os quatros passageiros do banco poste- olhando-os entre os ramos que se agitavam como se
rior e o ancião do colarinho duro com as margaridas. houvesse vento, um vento de debaixo da terra e que
Seus olhos passaram pelo rosto de Clara, detendo- mexesse as raízes das plantas e agitasse em bloco os
se um segundo em sua boca, em seu queixo; da ramos. Saíram os copos-de-Ieite, os cravos verme-
frente vinham os olhares do cobrador e das duas lhos, os homens de trás com seus ramos, as duas
menininhas, da senhora dos gladíolos, até que o ra- meninas, o velho das margaridas. Ficaram os dois
paz se voltou para olhá-Ios desanimado. Clara me- sozinhos e o 168 pareceu de repente menor, mais
diu sua aflição de minutos antes pela que agora in- cinzento, mais bonito. Clara achou certo e quase
quietava o passageiro. "E o coitado com as mãos necessário que o passageiro sentasse a seu lado, em-
vazias", pensou absurdamente. Achava nele algo bora tivesse todo o ônibus para escolher. Ele sentou
de indefeso, só com os olhos para deter aquele fogo e os dois baixaram a cabeça e se olharam as mãos.
frio desabando sobre ele de todas as partes. Estavam aí, eram simplesmente mãos; nada mais.
Sem parar, o 168 entrou nas duas curvas que dão - Chacarita! - gritou o cobrador.
acesso à esplanada defronte ao átrio do cemitério. Clara e o passageiro responderam a seu impa-

54 55
ciente olhar com uma simples fórmula: "Temos - Com você aconteceu o mesmo, eu notei.
passagens de quinze. " Mas só pensaram nela, e era - É estranho: agora não sobe mais ninguém.
suficiente. O veículo freou brutalmente, barreira do Central
A porta continuava aberta. O cobrador se apro- Argentino. Deixaram-se levar adiante, aliviados
ximou deles. pelo salto de surpresa, pelo solavanco. O veículo
- Chacarita - disse, quase explicativamente. tremia como um corpo enorme.
O passageiro nem o olhava, mas Clara teve pena - Vou a Retiro - disse Clara.
dele. - Eu também.
- Vou a Retiro - disse, e lhe mostrou o bilhete. O cobrador não saíra do lugar, agora falava colé-
Marca marca cobrador uma passagem azul ou ro- rico com o motorista. Viram (sem dar a perceber
sa. O motorista estava quase fora do banco, o- que estavam atentos à cena) como o motorista
lhando-os; o cobrador se virou indeciso, fez um si- abandonava seu banco e vinha pelo corredor até
nal. Bufou a porta traseira (ninguém tinha subido na eles, com o cobrador seguindo seus passos. Clara
frente) e o 168pegou velocidade com solavancos co- notou que os dois olhavam o rapaz e que este ficava
léricos, leve e solto em uma correria que pôs um tenso, como que reunindo forças; tremeram suas
peso no estômago de Clara. Ao lado do motorista, o pernas, o ombro que se apoiava no dela. Então ui-
cobrador se segurava agora ao barrote cromado e os vou horrivelmente uma locomotiva a toda velocida-
olhava profundamente. Eles lhe devolviam o olhar, de, uma fumaça negra cobriu o sol. O fragor do ex-
e estiveram assim até a curva de entrada em Dorre- presso cobria as palavras que o motorista devia es-
go. Depois Clara sentiu que o rapaz pousava deva- tar dizendo; parou a dois bancos deles, agachando-
gar a mão na sua, como se estivesse aproveitando se como quem vai saltar. O cobrador conteve-o
que não podiam vê-lo lá da frente. Era uma mão pondo uma mão no ombro, mostrou imperativo as
suave, muito morna, e ela não retirou a sua, me- barreiras que já se levantavam enquanto passava o
xeu-a lentamente até levá-Ia ao extremo da coxa último vagão com um estrépito de ferros. O moto-
quase sobre o joelho. Um vento de velocidade en- rista apertou os lábios e voltou correndo a seu pos-
volvia o ônibus em plena marcha. to; com um salto raivoso o 168enfrentou os trilhos,
- Tanta gente - disse ele, quase sem voz. - E a ladeira oposta.
de repente descem todos. O rapaz soltou o corpo e se deixou deslizar sua-
- Levavam flores a Chacarita - disse Clara. - vemente no banco.
Nos sábados, muita gente vai aos cemitérios. - Nunca me aconteceu uma coisa assim - dis-
- Sim, mas ... se, como que falando a si mesmo.
Era um pouco estranho, sim. Você notou ... ? Clara queria chorar. E o choro estancado, dispo-
Sim - disse ele, quase lhe cortando a palavra. nível mas inútil. Mesmo sem pensar nisso, tinha
56 57
consciência de que tudo estava bem, que viajava em - Bem, mas poderíamos levantar ajanelinha da
frente.
um 168 vazio sem contar o outro passageiro, e que
todo o protesto contra essa ordem podia ser resol- - Não, por favor, não.
vido tocando a campainha e descendo na primeira Ele esperou, pensando que Clara ia acrescentar
esquina. Mas tudo estava bem assim; e só sobrava a alguma coisa; ela, porém, se fez menor no banco.
idéia de descer, de afastar essa mão que de novo ti- Olhava-o agora de cheio para escapar à atração que
nha apertado a dela. vinha lá da frente, dessa cólera que chegava até eles
- Estou com medo - disse, simplesmente. - como um silêncio ou um calor. O passageiro pôs a
Se pelo menos tivesse posto umas violetas na blusa. outra mão sobre ojoelho de Clara, e ela aproximou a
Ele a olhou, olhou sua blusa lisa. sua e ambos se comunicaram silenciosamente pelos
- Às vezes gosto de levar um jasmim-do-cabo dedos, pelo morno acariciar das palmas.
na lapela -" disse. - Hoje saí apressado e nem pres- - Às vezes a gente é tão descuidada - disse ti-
tei atenção. midamente Clara. - Pensa que trouxe tudo e sem-
Que pena. Mas a verdade é que vamos a Re- pre esquece alguma coisa.
tiro. - -É que não sabíamos.
Claro, vamos a Retiro. - Bem, dá no mesmo. Eles olhavam para mim,
Era diálogo, um diálogo. Cuidar dele, alimentá- principalmente aquelas meninas, e me senti muito
10. mal.
- A gente não poderia levantar um pouquinho a - Eram insuportáveis - protestou ele. - Você
janelinha? Eu sufoco aqui dentro. viu como combinaram cravar os olhos em nós?
Ele a olhou surpreendido, porque o que sentia era - Afinal de contas o ramo era de crisântemos e
frio. O cobrador cuidava deles de esguelha, falando dálias - disse Clara. - Mas pareciam a mesma coi-
com o motorista; o 168não voltara a parar depois da
sa.
barreira e agora já estavam dando a volta em Can- - Porque os outros as encorajavam - afirmou
ning e Santa Fe. ele com irritação. - O velho do meu banco, com
- Este banco tem ajanelinha fixa - disse ele. - seus cravos mal-arranjados, aquela cara de pássaro.
É o único banco do ônibus que vem assim, por causa Só não vi bem os do fundo. Você acredita que to-
dos ... ?
da porta de emergência.
Ah - disse Clara. - Todos - disse Clara. - Eu os vi mal tinha
- Podíamos passar a um outro. subido. Subi em Nogoyá com Avenida San Martín,
- Não, não. -Apertou os dedos dele, detendo e quase em seguida eu me virei e vi que todos, to-
.dos ...
seu movimento de se levantar. - Quanto menos a
gente se mexer, melhor. Ainda bem que desceram.

58 59
Pueyrredón, freada em seco. Um policial negro pôs-se à sua frente, impedindo-o com raiva, como se
se abria em cruz, acusando-se de alguma coisa em o ofendesse. Clara sentia seus joelhos subirem até o
sua alta guarita. O motorista deixou o banco desli- peito, e as mãos de seu companheiro a desertaram
zando, o cobrador quis agarrá-Io pela manga, mas bruscamente, cobrindo-se de ossos salientes, de
ele se soltou com violência e veio pelo corredor, veias rígidas. Clara não tinha visto nunca a trans-
olhando-os altemadamente, encolhido e com os lá- formação viril da mão em punho, contemplou esses
bios úmidos e trêmulos. "AÍ dá passagem!", gritou objetos maciços com uma humilde confiança quase
o cobrador com uma voz estranha. Dez buzinas la- perdida sob o horror. E falavam o tempo todo das
dravam na traseira do ônibus, e o motorista correu viagens, das filas em que é preciso entrar na Plaza
aflito para o seu banco. O cobrador falou ao seu ou- de Mayo, da grosseria das pessoas, da paciência.
vido, voltando-se a cada momento para olhá-Ios. Depois se calaram, olhando o muro ferroviário, e
- Se você não estivesse ... - murmurou Clara. seu companheiro tirou a carteira, esteve exami-
- Acho que se você não estivesse aqui teria me nando-a muito sério, tremendo um pouco os dedos.
animado a descer. - Falta pouco - disse Clara, endireitando-se.
- Mas você vai a Retiro - disse ele, com al- - Já chegamos.
guma surpresa. - Sim. Olhe, quando dobrar em Retiro, a gente
- Sim, preciso fazer uma visita. Não importa, se levanta depressa para descer.
teria descido assim mesmo. - Está bem. Quando estiver do lado da praça.
- Paguei uma passagem de quinze - disse ele. - Isto mesmo. A parada fica antes da Torre dos
- Até Retiro. Ingleses. Você desce primeiro.
- Eu também. O pior é que se a gente desce, de- - Oh, dá no mesmo.
pois, até que venha outro carro ... - Não, ficarei atrás para qualquer coisa. Logo
- Claro, e além disso vem lotado. que dobre eu me levanto e lhe dou passagem. Você
- É sempre assim. Viaja-se tão mal agora. tem que se levant~r depressa e descer um degrau da
Você viu como anda o metrô? porta; então eu fico atrás.
- Uma coisa incrível. Cansa mais a viagem que - Está bem, obrigada - disse Clara, olhando-o
o trabalho. emocionada, e se concentraram no plano, estu-
Um ar verde e claro flutuava no veículo, viram o dando a colocação de suas pernas, os espaços a co-
rosa-velho do Museu, a nova Faculdade de Direito, brir. Viram que o 168teria sinal verde na esquina da
e o 168 acelerou ainda mais em Leandro N. Alem, praça: tremendo os vidros e a ponto de investir con-
como se estivesse com ganas de chegar. Duas vezes tra o cordão da calçada da praça, tomou a curva a
foi detido por guardas de trânsito, e duas vezes quis toda velocidade. O passageiro saltou do banco para
o motorista enfrentá-Ios; na segunda, o cobrador a frente, e atrás dele passou veloz Clara, jogando-se

60 61
degrau abaixo enquanto ele se voltava e a ocultava
com o corpo. Clara olhava a porta, as tiras de borra-
cha preta e os retângulos de vidro sujo; não queria
ver outra coisa e tremia horrivelmente. Sentiu no
cabelo a respiração do companheiro, a freada brutal
atirou-os a um lado e no mesmo momento em que a
porta se abria o motorista correu pelo corredor com
as mãos estendidas. Clara já saltava na praça, e
quando se voltou para olhar o companheiro ele tam- CEFALÉIA
bém saltava e a porta bufou ao se fechar. As borra-
chas pretas prenderam a mão do motorista, seus de-
dos rígidos e brancos. Clara viu através das janeli-
nhas que o cobrador se atirava sobre a direção para I
alcançar a manivela que fechava a porta.
Ele a tomou pelo braço e caminharam rapida-
mente pela praça cheia de crianças e sorveteiros.
Não se disseram nada, mas tremiam como de felici-
dade e sem se olhar. Clara se deixava levar, notando
vagamente a grama, os canteiros, cheirando um ar
de rio que crescia de frente. O florista estava a um
lado da praça; ele foi parar diante da cesta montada
em cavaletes e escolheu dois ramos de amor-
perfeito. Deu um a Clara, depois a fez pegar os dois
enquanto puxava a carteira e pagava. Mas quando
continuaram andando (ele não voltou a tomá-Ia pelo
I
braço) cada um levava seu ramo, cada um ia com o
seu e estava contente;

62
Devemos à Dra. Margaret L. Tyler as imagens
mais belas deste conto. Seu admirável poema, Sin-
C uidamos das mancúspias até bastante tarde,
tomas orientadores haeia los remedios más eomunes agora com o calor do verão enchem-se de caprichos
dei vértigo yeefaleas, apareceu publicado na revista e manhas, as menos desenvolvidas reclamam ali-
Homeopatía (publicada pela Associação Médica
Homeopática Argentina) ano XIV, n.o 32, abril de
mentação especial e nós lhes levamos aveia maltada
1946, p. 33ss. em grandes travessas de louça; as maiores estão
Agradecemos também a Ireneo Femando Cruz mudando o pêlo do lombo, de modo que é preciso
haver-nos iniciado, durante uma viagem a San Juan,
-no conhecimento das mancúspias.
pô-Ias de lado, vesti-Ias com um cobertor e cuidar
para que não se juntem à noite com as mancúspias
que dormem em gaiolas e recebem alimento a cada
oito horas.
Não nos sentimos bem. Isto acontece desde a
manhã, talvez pelo vento quente que soprava ao
amanhecer, antes que nascesse este sol alcatroado
que bateu na casa todo o dia. Dá trabalho atender
aos animais enfermos - isto se faz às onze - e
examinar as crias depois da sesta. Parece-nos cada
vez mais penoso continuar, cumprir a rotina; des-
confiamos que uma única noite de desat..:nção po-
derá ser funesta para as mancúspias, a ruína irrepa~
rável de nossa vida. Andamos então sem refletir,
cumprindo um após o outro os atos que o hábito de-
65
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termina, parando apenas para comer (há farelos de mente com o quadro fosfórico: é alto, magro, sonha
pão na mesa e sobre a sapata do living) ou nos olhar com bebidas geladas, sorvetes e sal. .
no espelho que duplica o dormitório. De noite caÍ-
mos repentinamente na cama, e o hábito de escovar De noite não é tanto, a fadiga e o silêncio nos aju-
os dentes antes de dormir cede à fadiga, mal é subs- dam - porque o rondar das mancúspias marca do-
tituído por um gesto que busca o lampião ou os re- cemente este silêncio do pampa - e às vezes dor-
médios. Do lado de fora se ouve as mancúspias mimos até o amanhecer e nos desperta um esperan-
adultas andando em círculo sem parar. çado sentimento de alívio. Se um de nós sai da cama
Não nos sentimos bem. Um de nós éAconitum, o antes do outro, pode acontecer contudo que assis-
que quer dizer que deve se medicar com acônito em tamos consternados à repetição de um fenômeno
altas diluições se, por exemplo, o medo lhe causa Camplwra monohromata, pois acredita que cami-
vertigem. Acônito é uma violenta tormenta, que nha em uma direção quando, na realidade, caminha
passa logo. De que outro modo descrever o em outra. É horrível, vamos com toda a certeza até
contra-ataque a uma ansiedade que nasce de qual- o banheiro, e de repente sentimos no rosto a pele
quer insignificância, do nada. Uma mulher se de- nua do grande espelho. Quase sempre tomamos isso
fronta repentinamente com um cachorro e começa a por brincadeira, porque é preciso pensar no traba-
se sentir violentamente enjoada. Então acônito, e lho que espera, e de nada serviria desanimarmos tão
em pouco tempo só fica um enjôo doce, com ten- depressa. Procura-se as drágeas, cumpre-se sem
dência a desaparecer (isto nos ocorreu, mas era um comentários nem desânimos as instruções do Dr.
caso Bryonia, o mesmo que sentir que afundávamos HarbÍn. (Talvez em segredo sejamos um pouco Na-
com, ou através da cama). trum muriaticum. Tipicamente um Natrum chora,
O outro, em compensação, é marcadamente Nux mas ninguém deve observá-Io. É triste, é reservado;
vomica. Depois de levar a aveia maltada às man- gosta de sal.)
cúspias, talvez por se agachar muito ao encher a Quem pode pensar em tantas vaidades se o traba-
gamela, sente de repente como se lhe girasse o cére- lho nos espera nos currais, na invernada e no tam-
bro, não que tudo gire em torno - a vertigem em si bo? Leonor e Chango já estão se alvoroçando lá fo-
-, mas a visão é que gira, dentro dele a consciência ra, e quando saímos com os termômetros e as bacias
gira como um giroscópio em seu aro, e fora tudo está para o banho, os dois se atiram ao trabalho como
tremendamente imóvel, só que fugindo e inaI.can- querendo se cansar logo, organizando o seu ócio da
çável. Temos pensado se não será talvez um quadro tarde. Sabemos disso muito bem, por isso nos alegra
de Phosphorus, porque além de tudo apavora-o o ter saúde para realizar nós mesmos cada coisa. En-
perfume das flores (ou o das mancúspias pequenas, quanto não passe disto e não apareçam as cefa-
que cheiram levemente a lilás) e coincide fisica- léias, podemos continuar. Agora é fevereiro, em
66 67
~
"
I
maio as mançúspias estarão vendidas e nós a salvo
por todo o inverno. Ainda- podemos continuar.
As mancúspias nos distraem muito, em parte
I e ficam eriçadas, isso é o que queremos para que os
sais penetrem até a pele tão delicada.
A Leonor cabe dar de comer às mães, o que faz
muito bem; nunca a vimos errar na distribuição das
porque estão cheias de sagacidade e malevolência,
porções. Dá a elas aveia maltada, e duas vezes por
em parte porque sua criação é um trabalho sutil, que semana leite com vinho branco. Desconfiamos um
exige uma precisão incessante e minuciosa: Não
pouco de Chango, parece-nos que bebe o vinho; se-
temos por que nos estender, mas isto é um exemplo: ria melhor guardar a bordalesa dentro, mas a casa é
um de nós tira as mancúspias mães das gaiolas de
invernada - são seis e meia da manhã - e as reúne pequena e depois esse cheiro doce que recende nas
horas de sol alto.
no curral de pastos secos. Deixa-as retouçar vinte
Talvez isto que estamos dizendo fosse monótono
minutos, enquanto o outro retira os filhotes das ca- e inútil se não estivesse mudando lentamente dentro
sinhas numeradas, onde cada um tem sua história
de sua repetição; nos últimos dias - agora que en-
clínica, verifica rapidamente a temperatura retal,
tramos no período crítico da desmama - um de nós
devolve a sua casinha os que passam de 37,1°, e por deve ter reconhecido, com que amarga concordân-
um tubo de lata traz o restante para se reunir às
cia, o progresso de um quadro Silica. Começa no
mães, para a amamentação. Talvez seja este o mo-
exato momento em que nos domina o sono, é um
mento mais belo da manhã, comove-nos o alvoroço
perder a estabilidade, um pulo para dentro, uma ver-
das pequenas mancúspias e suas mães, sua ruidosa e
tigem que sobe pela coluna vertebral até o interior
perm~nente tagarelice. Apoiados na cerca do curral
da cabeça; igual ao subir rastejante (não há outra
esquecemos a imagem do meio-dia que se aproxi-
descrição) das pequenas mancúspias pelas estacas
ma, da penosa tarde inadiável. Por momentos sen-
dos currais. Então, de repente, sobre o poço negro
timos um pouco de medo de olhar para o chão do
do sono onde já caímos deliciosamente, somos
curral - um evidente quadro Onosmodium -, mas f
1
aquela estaca dura e difícil pela qual trepam, brin-
passa e o sol nos salva do sintoma complementar, da -J cando, as mancúspias. E é pior fechando os olhos.
cefaléia, que se agrava com a escuridão. 'fi
Assim se vai o sono, ninguém dorme com os olhos
~
Às oito é hora do banho, um de nós vai atirando .~

abertos, morremos de cansaço mas basta um leve


punhados de sais Krüschen e farelo nas bacias, a ou- abandono para sentir a vertigem que desafia, um
tra dirige o Chango, que traz baldes de água morna. vaivém no crânio, como se a cabeça estivesse cheia
As mancúspias mães não gostam do banho, é pre- de coisas vivas que giram a seu redor. Corno man-
ciso pegá-Ias com cuidado pelas orelhas e as patas, cúspias.
segurando-as como coelhos, e mergulhá-Ias repeti- E é tão ridículo, provou-se que aos doentes Silica
damente nas bacias. As mancúspias se desesperam faz falta silício, areia. E nós aqui, rodeados de du-
68 69

",.
nas, em um pequeno vale ameaçado por dunas parar as menos desenvolvidas para submetê-Ias a
imensas, faltando-nos areia na hora de dormir. uma superalimentação. Isto nos ocupa até o anoite-
Contra a probabilidade de que isto progrida, pre- cer; falta só a aveia da segunda comida, que Leonor
ferimos perder algum tempo nos medicando com distribui rapidamente, e engaiolar as mancúspias
todo rigor; notamos às doze horas que a reação é fa- mães enquanto as mais novas protestam e teimam
vorável, e a tarde de trabalho decorre sem proble- em continuar a seu lado. É Chango quem se encar-
mas, apenas, talvez, uma ligeira desarrumação das rega da separação, quando nós já estamos na va-
coisas, de repente, como se os objetos parassem randa controlando. Às oito fecham-se as portas e
diante de nós, levantando-se sem se mexer; uma janelas; às oito ficamos sozinhos lá dentro.
sensação de aresta viva em cada nível. Desconfia- Antes era um momento agradável, a lembrança
i, de episódios e de esperanças. Mas desde que não
mos de uma mudança para Dulcamara, mas não é
fácil ter certeza. I nos sentimos bem, parece que esta hora ficou mais
J pesada. Inutilmente nos enganamos com a arru-
No ar flutuam leves as plumas das mancúspias :f
adultas, depois da sesta vamos com tesouras e umas 'f mação da botica - é freqüente que a ordem alfabé-
bolsas de borracha ao curral alambrado onde tica dos remédios se altere por descuido -; no fim,
Chango as reúne para a tosquia. Já em fevereiro faz sempre vamos ficando calados à mesa, lendo o ma-
frio de noite, as mancúspias precisam do pêlo por- nual de Álvares Toledo (Estuda-te a ti mesmo) ou o
que dormem estendidas e carecem da proteção que de Humphreys (Guia homeopático). Um de nós
se dão a si mesmos os animais que se dobram enco- teve com intermitência uma fase Pulsatila, vale di-
lhendo as patas. Apesar disso perdem o pêlo do zerque tende a se mostrar volúvel, chorona, exigen-
lombo, ele nasce devagar e ao ar livre, o vento le- te, irritável. Isto aflora ao anoitecer e coincide com
vanta do curral uma fina névoa de pêlos que fazem o quadro Petroleum que afeta o outro, um estado no
cócegas no nariz e nos fustigam até dentro de casa. qual tudo - coisas, vozes, lembranças - passa por
Reunimos então as mancúspias e tosamos o seu cima dele, intumescendo-o e o entorpecendo. As-
lombo a meia altura, com cuidado para não privá-Ias sim não há choque, apenas um sofrer paralelo e tole-
de calor; quando cai esse pêlo, muito curto para flu- rável. Depois, às vezes vem o sono.
tuar no ar, vai se formando um pó amarelado que Também não gostaríamos de pôr nestas notas
Leonormolha com a mangueira e junta diariamente uma ênfase progressiva, uni crescer articulado até o
em uma bola de massa que, depois, se atira ao poço. estouro patético da grande orquestra, depois do
Um de nós tem, entretanto, que acasalar os ma- qual decrescem as vozes e se reingressa em uma
chos com as mancúspias jovens, pesar os filhotes calma de saciedade. Às vezes estas coisas que regis-
enquanto Chango lê em voz alta o peso do dia ante- tramos já nos aconteceram (como a grande cefaléia
rior, verificar o progresso de cada mancúspia e se- Glonoinum no dia em que nasceu a segunda ninhada

70 71
de mancúspias), às vezes é agora ou de manhã. Só trabalhando e com saúde podemos tolerar uma
Achamos necessário documentar estas fases para
conjuração que nos aflige por volta do meio-dia, no
que o Dr. Harbín junte-as à nossa história clínica intervalo para o almoço (uma de nós abre apressa-
assim que voltemos a Buenos Aires. Não somos há- damente uma lata de línguas e outra de ervilhas, frita
beis, sabemos que de repente nos afastamos do te-
presunto com ovos), que recusa a idéia de não dor-
ma, mas o Dr. Harbín prefere conhecer os detalhes mir a sesta e nos encerra na sombra do quarto com
circunstanciais de cada quadro. Esse roçar najanela mais solidez que as portas de duplo ferrolho. Só
do banheiro que ouvimos de noite podt: jer impor- agora lembramos com nitidez a noite passada mal-
tante. Pode ser um sintoma Cannabis indica; sabe-
dormida, essa curiosa vertigem, transparente, se
se agora que um Cannabis indica tem sensações nos é permitido inventar esta expressão. Ao acor-
exaltadas, com exageração de tempo e distância. dar, quando nos levantamos, olhando para a frente,
Pode ser uma mancúspia que fugiu e vem, como to- qualqu.er- objeto - vamos dizer, por exemplo, o
das elas, para a luz.
roupeiro - é visto rodando a uma velocidade variá-
No começo éramos otimistas, mas ainda não per- vel e se desviando de forma inconstante para um
demos a esperança de ganhar um bom dinheiro com flanco (lado direito); enquanto ao mesmo tempo,
a venda das criasjovens. Levantamo-nos cedo, me- através do redemoinho, observa-se o mesmo rou-
dindo o crescente valor do tempo na fase final, e no peiro firmemente de pé e sem se mover. Não é pre-
começo quase não nos afeta a fuga de Chango e Le- ciso pensar muito para distinguir aí um quadro Cy-
onor. Sem aviso prévio, sem observar o estatuto, clame!l, de modo que o tratamento atua em poucos
esses grandes filhos-da-puta nos abandonaram on- minutos e nos equilibra para caminhar e trabalhar.
tem de noite, levando o cavalo e a charrete, o cober- Muito pior perceber em plena sesta (quando as coi-
tor de uma de nós, o lampião a carbureto, o último sas são tão elas mesmas, quando o sol as faz enco-
número do Mundo Argentino. Pelo silêncio nos cur- lher duramente em suas arestas) que no curral das
rais desconfiamos de sua ausência, é preciso mancúspias grandes há agitação e tagarelice, uma
apressar-se para levar as crias à amamentação, pre- súbita e inquietante renúncia ao repouso que as en-
parar os banhos, a aveia maltada. Todo o tempo gorda. Não queremos sair, o sol alto seriaacefaléia,
pensamos que não se deve pensar no que passou, como admitir agora a possibilidade de cefaléia
trabalhamos sem admitir que agora estamos sozi- quando tudo depende do nosso trabalho. Mas de-
nhos, sem cavalo para vencer as seis léguas até vemos fazê-l o , cresce a inquietação das mancúspias
Puan, com provisões para uma semana, e vigiados e é impossível continuar dentro de casa quando dos
por vagabundos, agora que nas outras cidades se di- currais chega um rumor jamais ouvido, então vamos
fundiu o estúpido rumor de que criamos mancúspias para fora protegidos por cascas de cortiça,
e ninguém mais se aproxima com medo de doenças. separamo-nos depois de um rápido conciliábulo,
72 73
sivelmente. As mães comem mal, farejam prolon-
uma de nós corre até as gaiolas das mães enquanto o·
outro examina os fechos das portas, o nível da água gadamente a aveia maltada antes de se dignarem a
morder a morna massa alimentícia. Executamos si-
no tanque australiano, a possível irrupção de uma
lenciosos as últimas tarefas, agora a chegada da
raposa ou um gato-do-mato. Mal chegamos à en-
noite tem outro sentido que não queremos exami-
trada dos currais e já o sol nos enceguece, como al-
binos vacilamos entre as labaredas brancas, gosta- nar,já que não nos afastamos, como antes, de uma
ordem estabelecida e em pleno funcionamento, de
ríamos de continuar o trabalho mas é tarde, o qua-
Leonor e Chango e das mancúspias em seus lugares.
dro Belladona arrasa-nos até nos precipitar esgota-
Fechar as portas da casa é deixar abandonado um
. dos na fundura sombria do galpão. Congestionados,
mundo sem leis, entregue aos acontecimentos da
cara vermelha e quente; pupilas dilatadas. Pulsação
noite e da madrugada. Entramos temerosos e ex-
violenta no cérebro e carótidas. Violentas pontadas
tremamente cuidadosos, retardando o momento,
e ferroadas. Cefaléia com tremores. A cada passo,
incapazes de adiá-Ia e por isso furtivos e nos esqui-
tremor para baixo como se houvesse um peso no oc-
cipital. Agulhadas e pontadas. Dor com ruído; vando, com toda a noite que espera como um olho.
Por sorte temos sono, a insolação e o trabalho po-
como se se empurrasse o cérebro; e pior se agachan-
do, como se o cérebro caísse para fora, como se dem mais que uma inquietação incomunicada, va-
mos adormecendo sobre os restos frios que masti-
fosse empurrado para a frente, ou os olhos estives-
sem por sair das órbitas. (Como isto, como aquilo; gamos penosamente, as fatias de ovo frito e pão mo-
lhado no leite. Alguma coisa roça outra vez na ja-
mas nunca como é de verdade.) Pior com os ruídos,
nela do banheiro, acreditamos ouvir corridas furti-
tremores, movimento, luz. E de repente pára, a
sombra e o frescor levam-na em um instante, vas no teto; não sopra vento, é noite de lua cheia e
deixam-nos uma gratidão maravilhada, um desejo os galos cantariam à meia-noite, se tivéssemos ga-
los. Vamos para a cama sem falar, repartindo entre
de correr e sacudir a cabeça, espantar-se porque um
minuto antes ... Mas há o trabalho, e agora descon- nós, quase às apalpadelas, a última dose do trata-
mento. Com a luz apagada - mas não é bem isso,
fiamos que a inquietação das mancúspias se deve à
não há luz apagada, simplesmente falta luz, a casa é
falta de água fresca, à ausência de Leonor e Chahgo
uma treva sem fundo e por fora tudo lua cheia -
- são tão sensíveis que devem sentir, de algum mo-
do, essa ausência -, e um pouco porque estranham queremos dizer alguma coisa e é só um perguntar
a mudança nos trabalhos da manhã, nossa lentidão, pelo amanhã, pelo modo de conseguir comida, che-
nossa pressa. gar ao povoado. Então dormimos. Uma hora, não
mais, o fio cinzento que puxa ajanela mal se moveu
Como não é dia de tosquia, um de nós se ocupa do
mê a cama. Logo estamos sentados no escuro por-
acasalamento previsto e do controle do peso; é fácil
notar que de ontem para hoje as crias pioraram sen- que se ouve melhor. Alguma coisa está acontecendo
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às mancúspias, o ruído é agora um clamor raivoso ou com o lenço, faz como quem tosse. Dizemos logo o
aterrorizado, distingue-se o uivo agudo das fêmeas que eles querem, assinamos, e vão embora quase
e o ulular mais rude dos machos, interrompem-se correndo, passam longe dos currais e os olham,
de repente e pela casa se movimenta uma lufada de também para nós olharam, arriscando uma espiada
silêncio, então outra vez o clamor cresce no fundo aqui para dentro (sai um vento estancado pela por-
da noite e da distância. Não pensamos em sair, já é ta), e vão embora quase correndo. É muito estranho
muito estar ouvindo-as, um de nós duvida se os gri- que essesgrosseirões não queiram espiar mais, fo-
tos vêm de fora ou daqui de dentro, porque há mo- gem como se estivessem pesteados, passam agora a
mentos em que nascem como de dentro mesmo, e no galope pelo caminho lateral.
decorrer dessa hora entramos em um quadro Aconi- Uma de nós parece decidir pessoalmente que o
tum, onde tudo se confunde e nada é menos certo outro irá em seguida buscar alimento com a charre-
que seu contrário. Sim, as cefaléias vêm com tal vio- te, enquanto cumprimos a tarefa matinal. Subimos
lência que mal se pode descrevê-Ias. Sensação de di- desanimados, o cavalo está cansado porque o trou-
laceramento, de queimação no cérebro, no couro xeram de um tirão, vamos saindo devagar e olhando
cabeludo, com medo, com febre, com angústia. para trás. Tudo está em ordem, então não eram as
Suor e dor na testa, como se ali houvesse um peso mancúspias que fizeram aqueles ruídos na casa,
que pressionasse para fora: como se tudo fosse ar- precisaremos pôr veneno para os ratos no teto, es-
rancado pela testa. Aconitum é repentino; selva- panta o ruído que um único rato pode fazer de noite.
gem; pior pelos ventos frios, com inquietação, an- Abrimos os currais, reunimos as mães mas sobra
gústia, medo. As mancúspias rondam a casa, inútil pouco da aveia maltada e as mancúspias brigam fe-
repetir que estão nos currais, que os cadeados resis- rozmente, se arrancam pedaços do lombo e do pes-
tem. coço, seu sangue verte e é preciso separá-Ias a chi-
Não notamos o amanhecer, até as cinco nos abate cote e gritos. Depois disso a amamentação das crias
um sono sem repouso do qual emergem nossas é penosa e imperfeita, nota-se que os filhotes estão
mãos, na hora certa, para levar as pílulas à boca. Faz famintos, alguns vacilam ao correr ou se apóiam nos
pouco que batem na porta do living, as batidas cres- alambrados. Há um macho morto à entrada de sua
cem com raiva, até que um de nós deixa que os chi- gaiola, inexplicavelmente. E o cavalo resiste a tro-
nelos entrem em seus pés e se arrastem até a chave. tar, já estamos a dez quadras da casa e ainda anda a
É a polícia com a notícia da prisão de Chango; tra- passo, a cabeça caída, resfolegando. Desanimados
zem de volta a charrete, suspeitaram do roubo e do empreendemos a volta, chegamos a tempo de ver
abândono. É preciso assinar uma declaração, tudo como os últimos restos de alimento se perdem em
está bem, o sol alto e um grande silêncio nos currais. um agitar de luta.
Os policiais olham os currais, um deles tapa o nariz Voltamos relutantes à varanda. No primeiro de-

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grau há um filhote de mancúspia morrendo. Nós o rompe silenciosa, faz calor nas peças, se vamos à
levantamos, colocamos em uma cesta com palha, varanda o branco agressivo da terra, dos galpões e
gostaríamos de saber o que tem mas ele morre com a dos telhados nos expulsa. Outras mancúspias mor-
morte sombria dos animais. E os cadeados estavam reram mas o que sobra delas está calado, só muito
intactos, não se sabe como esta mancúspia pôde es- 1 de perto alguém poderia ouvi-Ias respirar. Uma de
capar, se a sua morte é a escapatória em se escapou I
'li nós acha que conseguiremos vendê-Ias, que deve-
porque estava morrendo. Nós lhe demos dez pílulas mos ir ao povoado. O outro faz estas anotações mas
de Nux vomica no bico, ficam ali como perolazi- já não acredita muito no que faz. Que passe logo o
nhas, já não pode engolir. De onde estamos se vê calor, venha logo a noite. Saímos quase às sete,
um macho caído sobre as mãos; tenta levantar-se ainda há um punhado de alimentos no galpão, sacu-
com uma sacudida, mas volta a cair como se rezas- dindo as bolsas cai um pó de aveia que cuidadosa-
se. mente juntamos. Elas o cheiram e a agitação nas
Parece-nos ouvir gritos, tão perto de nós que gaiolas é violenta. Não nos atrevemos a soltá-Ias, é
olhamos até debaixo das cadeiras de palha da va- melhor pôr uma colherada em cada gaiola, assim pa-
randa; o Dr. HarbÍn nos preveniu contra as reações rece que ficam mais satisfeitas, que é mais justo.
animais que atacam de manhã, não tínhamos pen- Nem sequer tiramos as mancúspias mortas, não nos
sado que pudesse ser uma cefaléia assim. Dor occi- explicamos como há dez gaiolas vazias, como parte
pital, de quando em quando um grito: quadro de das crias anda misturada com os machos no curral.
Apis, dores como picadas de abelha. Inclinamos a Mal se enxerga, agora anoitece de repente e Chango
cabeça para trás, ou a afundamos no travesseiro (em nos roubou o lampião a carbureto.
algum momento chegamos à cama). Sem sede, mas Parece como se no caminho, junto ao mato de sal-
suando; pouca urina, gritos alucinantes. Como ma- gueiros, houvesse gente. Seria o momento de cha-
chucados, sensíveis ao tato; em certo momento nos mar para que alguém fosse ao povoado; ainda há
demos as mãos e foi horrível. Até que cessa, paula- tempo. Às vezes achamos que nos espiam, as pes-
tinamente, deixando-nos o temor de uma repetição soas são tão ignorantes e nos têm tanto sob seus
com variante animal, como aconteceu já uma vez: olhos. Preferimos não pensar e fechamos a porta
depois da abelha, o quadro da serpente. São duas e com alegria, recolhidos à casa onde tudo é mais nos-
meia. so. Gostaríamos de consultar os manuais para nos
Preferimos completar estas informações en- precaver de um novo Apis, ou de outro animal ainda
quanto dura a luz e estamos bem . Um de nós deveria pior; acabamos de jantar e lemos em voz alta, quase
ir agora ao povoado, depois da sesta será muito sem ouvir. Algumas frases se erguem sobre outras,
tarde para voltar, e ficar sozinhos toda a noite na ca- e do lado de fora tudo é igual, algumas mancúspias
sa, talvez sem poder nos medicar ... A sesta se inter- uivam mais alto que o resto, fazem perdurar e repe-
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tem um ulular lancinante. "Crotalus cascavella tem fonte direita, esta horrível serpente cujo veneno
alucinações peculiares ... " Um de nós repete a men- atua com espantosa intensidade (já lemos isso, é di-
ção, alegra-nos compreender tão bem o latim, cró- fícil iluminar o manual com a luz da vela), alguma
talo cascavel, mas isto é dizer a mesma coisa porque coisa viva caminha em círculo dentro da cabeça,
cascavel equivale a crótalo. Talvez o manual não também já lemos isso e é bem assim, alguma coisa
queira impressionar os doentes comuns com a men- viva caminha em círculo. Não estamos inquietos,
ção direta do animal. E mesmo assim fala nela, esta pior lá fora, se é que há lá fora. Estamos nos olhando
terrível serpente ... "cujo veneno atua com espan- por cima do manual, e se um de nós alude com um
tosa intensidade". Temos que forçar a voz para nos gesto ao uivar que cresce mais e mais, voltamos à
ouvir entre o clamor das mancúspias, outra vez nós leitura como que certos de que tudo isso está agora
as ouvimos perto de casa, nos tetos, roçando nasja- aí, onde alguma coisa viva caminha em círculo ui-
nelas, contra as vergas da porta. De algum modo vando junto às janelas, junto aos ouvidos, o uivar
isso não é mais estranho, de tarde vimos tantas gaio- das mancúspias morrendo de fome.
las abertas, mas a casa está fechada e a luz na sala de
jantar nos envolve em uma fria proteção enquanto
nos informamos aos gritos. Tudo está claro no ma-
nual, uma linguagem direta para doentes sem pre-
conceitos, a descrição do quadro: cefaléia e grande
excitação, causadas por começar a dormir. (Mas,
por sorte, não temos sono.) O crânio comprime o
cérebro como um capacete de aço - por assim di-
zer. Alguma coisa viva caminha em círculo dentro
da cabeça. (Então a casa é nossa cabeça, nós a sen-
timos vigiada, cada janela é uma orelha pegada ao
uivar das mancúspias lá de fora.) Cabeça e peito
comprimidos por uma armadura de ferro. Um ferro
em brasa afundado no vértice. Não estamos certos
sobre o vértice, há um momento a luz vacila, cede
pouco a pouco, esquecemos de pôr em marcha o
moinho quando chega a tarde. Quando não se pode
mais ler, acendemos uma velajunto ao manual para
terminar de conhecer os sintomas, é melhor saber,
pois se mais tarde - Dores lancinantes agudas na
80 81
I I
And one kiss had ofher mouth, as took the apple
from her hand, But lI'hile I hit it, my hrain lI'hirled Porque agora já não lhe importa mais, mas dessa
and my jáot stumhled; and I fdt my(?rashing fali
vez ofendeu-se com a coincidência dos interminá-
throuf;h the tanf;led houf;hs heneath her feet, and
sall' the dead lI'hite faces that lI'e/comed me in the veis falatórios, a cara servil de Mamãe Celeste con-
pit, * tando tudo a tia Bebé, o indescritÍvel desagrado no
DANTE GABRIEL ROSSETTI
The Orchard-Pit gesto do pai. Primeiro foi a da casa assobradada, seu
jeito bovino de mexer devagar a cabeça, ruminando
as palavras com sabor de bolo vegetal. E também a
moça da farmácia - "não porque eu acredite, mas
se fosse verdade, que coisa horrível" - e até Dom
Emilio, sempre discreto como seus lápis e suas ca-
dernetas. Todos falavam de Delia MaÍÍara com um
resto de pudor, nem um pouco convencidos de-que
pudesse ser assim, mas em Mario subia facilmente
às faces um ar de raiva. Odiou imediatamente sua
família com um inútil grito de independência. Não
gostara deles nunca, só o sangue e o medo à solidão
o prendiam à mãe e aos irmãos. Com os vizinhos foi
*E um beijo colhi de sua boca, quando tirei a maçã de sua mão_
direto e brutal, ofendeu Dom Emilio de alto a baixo
Quando a mordi, porém, meu cérebro girou e meu pé falseou; e
senti minha queda contundente por entre as ramagens enras- na primeira vez em que se repetiram os comentá-
cadas dos pés dela, e vi sua face mortalmente branca, que me rios. Negou cumprimento à da casa assobradada
esperava no fundo da cova. como se isso pudesse afligi-Ia. E, quando voltava do
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trabalho, entrava ostensivamente para cumprimen- ram-se do caso e Mario continuou vendo a moça
tar os Manara e se aproximar - às vezes com cara- duas vezes por semana, quando voltava do banco.
melos ou um livro - da moça que matara seus dois Já era verão e algumas vezes Delia queria sair, iam
nOIVOS.
juntos às confeitarias da Rivadavia ou se sentar na
Lembro-me mal de Delia, mas era magra e loira, Praça Once. Mario fez dezenove anos, Delia viu
muito lenta de gestos (eu tinha onze anos, o tempo e chegar sem festas - ainda estava de luto - os vinte
as coisas são lentas então) e usava vestidos claros e dois.
com saias rodadas. Mario pensou algum tempo que Os Mafiara achavam injustificado o luto por um
a beleza de Delia e seus vestidos estimulavam o noivo, até mesmo Mario teria preferido um senti-
ódio daquela gente. Foi o que disse a Mamãe Celes- mento apenas interior. Era penoso presenciar o sor-
te: "Vocês a odeiam porque ela não é gentinha, riso velado de Delia quando punha o chapéu diante
como vocês e eu mesmo", e nem piscou quando a do espelho, tão loira sobre o luto. Deixava-se va-
mãe fez um gesto de atirar no rosto dele uma toalha. gamente adorar por Mario e os Mafiara; deixava-se
Depois disso veio a ruptura manifesta; eles o deixa- levar a passeios e às compras, voltar com as últimas
ram de lado, lavavam sua roupa como se fizessem luzes do dia e receber nos domingos de tarde. Às
um favor, nos domingos iam a Palermo ou a um pi- vezes saía sozinha e ia até o antigo bairro, onde
quenique sem sequer avisá-lo. Então Mario se Héctor a tinha cortejado. Mamãe Celeste a viu pas-
aproximava dajanela de Delia e atirava uma pedri- sar uma tarde e fechou com ostensivo desprezo as
nha. Às vezes ela aparecia, às vezes ele a ouvia rir lá persianas. Um gato seguia Delia, todos os animais
dentro, um pouco perversamente e sem lhe dar es- sempre se mostravam submissos a Delia, não se sa-
peranças. bia se aquilo era amizade ou dominação, a verdade é
Veio a luta Firpo- Dempsey* e em cada casa se que andavam perto dela sem que ela os olhasse. Ma-
chorou e houve brutais indignações, seguidas de rio notou uma vez que um cachorro se afastava
uma humilhada melancolia quase colonial. Os Ma- quando Delia ia acariciá-lo. Ela o chamou (era na
fiara se mudaram para quatro quadras adiante, e isso Praça Once, de tarde) e o cachorro veio manso, tal-
faz muita diferença em Almagro, de modo que os vez contente, até seus dedos. A mãe dizia que Delia
outros vizinhos começaram a cumprimentar Delia, tinha princado com aranhas quando pequena. To-
as famílias de Victoria e Castro Barros esquece- dos se assombravam, até Mario, que tinha pouco
medo de aranhas. E as borboletas vinham a seu ca-
* Refere-se o A. à luta pelo título mundial de boxe, entre o ar- belo - Mario viu duas em uma única tarde, em San
gentino Luís Firpo e o norte americano Jack Dempsey, dispu- Isidro -, mas Delia as afugentava corri um leve ges-
tadaem Nova largue, a 14de setembro de 1923, e vencidapelo to. Héctor dera a ela um coelho branco, que morreu
último no 2.° round. (N. do T.) logo, antes de Héctor. Mas Héctor afogou-se no
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Porto Novo, um domingo de madrugada. Foi então único, o pior para Mario era que juntavam episódios
sem relação alguma para arrancar-Ihes um sentido.
que Mario ouviu os primeiros falatórios. A morte de
Rolo Médicis não tinha despertado a atenção de Muita gente morre em Buenos Aires de ataques
cardíacos ou asfixia por imersão. Muitos coelhos
ninguém, porque meio mundo morre de síncope.
adoecem e morrem nas casas, nos pátios. Muitos
Quando Héctor se suicidou, os vizinhos acharam
coincidência demais, em Mario renascia a cara ser- cachorros recusam ou aceitam as carícias. As pou-
vil de Mamãe Celeste contando a tia Bebé, o indes- cas linhas que Héctor deixou a sua mãe, os soluços
critível desagrado no gesto do pai. Ainda por cima, que a da casa assobradada disse ter ouvido no sa-
fratura do crânio, porque Rolo caiu duro ao sair do guão dos Manara na noite em que Rolo morreu (mas
saguão dos Manara e, emborajá estivesse morto, o antes da queda), o rosto de Delia nos primeiros
golpe brutal contra o degrau foi outro detalhe des- dias ... As pessoas põem tanta inteligência nessas
favorável. Delia tinha ficado dentro de casa, estra- coisas, e do jeito como, pela junção de tantos pon-
nho que não se despedissem na porta, mas de qual- tos, nasce afinal o pedaço de tapete - Mario veria,
quer modo estava perto dele e foi a primeira a gritar. às vezes, o tapete com nojo, com horror, quando a
Ao contrário, Héctor morreu só, numa noite de ne- insônia entrava em seu pequeno quarto para lhe to-
mar a noite.
vada, cinco horas depois de ter saído da casa de De-
lia como em todos os sábados. "Perdoe minha morte, é impossível que entenda,
Lembro-me mal de Mario, mas dizem que fazia mas me perdoe, mamãe." Um pedaço de papel mi-
um lindo par com Delia. Embora ela estivesse ainda lagrosamente arrancado das páginas da Critica, es-
com o luto por Héctor (nunca pôs luto por Rolo, magado por uma pedra ao lado do saco que ficou
entenda-se o capricho), aceitava a companhia de como um marco para o primeiro marinheiro da ma-
Mario para passear por Almagro ou ir ao cinema. drugada. Até aquela noite tinha sido tão feliz, é
Até esse tempo Mario não se considerava ligado a claro que andava um pouco estranho nas últimas
Delia, a sua vida, até mesmo a sua casa. Era sempre semanas; mas não estranho, propriamente, antes
uma "visita", e entre nós a palavra tem um sentido distraído, olhando o nada como se visse coisas.
exato e divisório. Quando a tomava pelo braço pàra Como se tentasse escrever alguma coisa no ar, deci-
atravessar a rua, ou ao subir a escada da Estação frar um enigma. Todos os rapazes do Café Rubí es-
Medrano, olhava às vezes sua mão apertando a seda tavam de acordo. Jácom o Rolo não, seu coração fa-
negra do vestido de Delia. Avaliava esse branco so- lhou de súbito. Rolo era um rapaz tranqüilo, que vi-
bre o negro, essa distância. Delia, porém, estaria via sozinho, com dinheiro e um Chevrolet Double
próxima dele quando voltasse ao cinzento, aos cha- Phaeton, de modo que poucos podiam ser compara-
péus claros para os domingos de manhã. dos a ele naquele tempo. Nos saguões as coisas res-
Agora que os falatórios não eram um estratagema soam muito, e a da casa assobradada afirmou, du-

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rante muitos dias, que o choro de Rolo tinha sido vos. Não voltaram a falar de licores até que Delia
uma espécie de grito sufocado, um grito entre as recuperou a animação e quis experimentar novas
mãos que querem abafá-Io e o vão cortando em pe- receitas. Mario lembrava-se dessa tarde porque
daços. E quase em seguida o golpe atroz da cabeça acabavam de promovê-Io, e a primeira coisa que fez
contra o degrau, a corrida de Delia gritando, a agita- foi comprar bombons para Delia. Os Manara me-
çãojáinútil. xiam pacientemente na galena do aparelhinho com
Sem se aperceber, Mario juntava pedaços de epi- fones, e o fizeram ficar um instante na sala de jantar
sódios, se descobria urdindo explicações paralelas para que ouvisse Rosita Quiroga cantar. Logo ele
às acusações dos vizinhos. Nunca perguntou a De- lhes falou da promoção, e que trazia bombons para
lia, esperava vagamente alguma coisa dela. Às ve- Delia.
zes pensava se Delia saberia exatamente o que se - Não devia ter comprado bombons, mas vá
murmurava. Até os Manara eram estranhos, em seu levá-Ios, ela está na sala. - Eles o viram sair e se
costume de falar de Rolo e Héctor sem paixão, olharam até que Manara tirou os fones como se ti-
como se estivessem de passagem. Delia se calava, rasse uma coroa de louros, e a senhora suspirou,
protegida por um acordo precavido e incondicional. desviando os olhos. Imediatamente os dois pare-
Quando Mario se incorporou, discreto como eles, ciam infelizes, perdidos. Com um gesto atrapalha-
os três cobriram Delia com uma fina e constante do, Manara levantou a chavezinha da galena.
:~ombra, quase transparente nas terças ou nas quin- Delia ficou olhando a caixa e não fez muito caso
tas, mais palpável e cuidadosa de sábado a segunda. dos bombons, mas quando estava comendo o se-
Delia recuperava agora uma pequena vivacidade gundo, de menta e recheio de nozes, disse a Mario
episódica, um dia tocou piano, outra vezjogou ludo; que sabia fazer bombons. Parecia pedir desculpas
era mais afável com Mario, fazia-o sentar-se perto por não lhe ter confiado tantas coisas antes, e come-
dajanela da sala e lhe explicava projetos de costura çou a descrever com facilidade a maneira de fazer
ou bordado. Nunca lhe falava de sobremesas ou bombons, o -recheio e os banhos de chocolate ou
bombons, e Mario sentia falta disso, mas o atribuía à moca. Sua melhor receita era a dos bombons de la-
delicadeza, ao receio de aborrecê-Io. Os Manara ranja recheados de licor, e com uma agulha perfurou
elogiavam os licores de Delia; uma noite quiseram um dos que Mario trouxera a fim de lhe mostrar
que provasse um cálice, mas Delia disse brusca- como os manipulava; Mario viu os dedos dela muito
mente que eram licores para mulher e que já tinha brancos agarrados ao bombom, olhando-a explicar
jogado fora quase todas as garrafas. "Mas Héc- parecia-lhe um cirurgião interrompendo um deli-
tor ... " começou chorosa sua mãe, e não disse mais cado momento cirúrgico. O bombom, como um
para não preocupar Mario. Depois perceberam que miúdo camundongo entre os dedos de Delia, uma
Mario não se incomodava com a evocação dos noi- coisa diminuta mas viva, que a agulha lacerava. Ma-
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rio sentiu um estranho mal-estar, uma doçura de de novo. Nunca falou de sua casa com os Manara
abominável repugnância. "Jogue fora esse bom- nem mencionou a amiga nos jantares de domingo.
bom", gostaria de ter dito. "Jogue-o longe, não o Começava a pensar que era possível essa dupla vida
ponha na boca porque está vivo, é um rato vivo." a quatro quadras uma da outra; a esquina de Riva-
Depois porém, a alegria da promoção voltou e ele davia e Castro Barros era a ponte necessária e efi-
pôde ouvir Delia repetir a receita do licor de chá, do caz. Teve até a esperança de que o futuro aproxi-
licor de rosas ... Afundou os dedos na caixa e comeu masse as casas, as pessoas, surdo à mudança in-
dois, três bombons seguidos. Delia sorria como se compreensível que sentia - às vezes, sozinho -,
estivesse zombando. Ele estava imaginando boba- como se ficasse intimamente estranho e sombrio.
gens, e foi embora temerosamente feliz. "O terceiro Outras pessoas não visitavam os Manara. Assus-
noivo", pensou estranhamente. "Vou lhe dizer as- tava um pouco aquela ausência de parentes ou de
sim: sou o terceiro noivo, mas vivo." amigos. Mario não tinha necessidade de inventar
Agora é mais difícil falar disto, isto se confunde umtoque especial de campainha, todos sabiam que
com outras histórias que a gente acrescenta à base era ele. Em dezembro, com um calor úmido e doce,
de pequenos esquecimentos, de diminutas falsida- Delia conseguiu o licor de laranja concentrado, e o
des que são teci das ininterruptamente por trás das beberam felizes em um entardecer de temporal. Os
recordações; parece que ele ia mais amiúde aos Ma- Manara não quiseram prová-Io, certos de que lhes
nara, a volta à vida de Délia cingia-o a seus gostos e faria mal. Delia não se ofendeu, mas estava transfi-
a seus caprichos, e até os Manara lhe pediram, com gurada enquanto Mario sorvia deliciado o dedalzi-
algum receio, que animasse Delia, e ele comprava nho violáceo cheio de luz laranja, de aroma ardente.
os ingredientes para os licores, os filtros e os funis "Vou morrer de calor, mas está delicioso", disse
que ela recebia com uma grave satisfação, na qual uma ou duas vezes. Delia, que falava pouco quando
Mario vislumbrava um pouco de amor, pelo menos estava contente, observou: "Eu o fiz para você. "
algum esquecimento dos mortos. Os Manara olhavam para ela como que querendo ler
Nos domingos jantava com os seus e Mamãe Ce- a receita, a minuciosa alquimia de quinze dias de
leste agradecia-lhe sem sorrir, dando a ele, porém, trabalho.
o melhor da sobremesa e o café bem quente. Final- Rolo gostara dos licores de Delia. Mario ficou sa-
mente tinham parado com os falatórios, pelo menos bendo por umas palavras de Manara ditas de passa-
não se falava de Delia em sua presença. Quem sabe gem e quando Delia não estava: "Ela fez muitos li-
se os murros no menor dos Camiletti ou o amargo cores para ele. Mas Rolo tinha medo por causa do
enfurecimento diante de Mamãe Celeste explica- coração. O álcool faz mal ao coração." Ter um
vam isso; Mario chegou a pensar que tinham recon- noivo tão fraco, Mario compreendia agora o desem-
siderado tudo, absolviam Delia e até a estimavam baraço que notava nos gestos, na maneira de tocar

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estavam contentes; Mario adivinhou que as despe-
piano de Delia. Esteve a ponto de perguntar aos sas de Delia os preocupavam. Então pediu a Delia,
Manara de que Héctor gostava, se Delia também em segredo, uma lista das essências e substâncias
preparava licores ou sobremesas para Héctor. Pen- necessárias. Ela fez uma coisa que nunca fizera an-
sou nos bombons que Delia voltava a experimentar tes, passou os braços pelo pescoço dele e o beijou na
e que alinhava para secar em uma prateleira da co- face. Sua boca cheirava um pouquinho a menta.
pa. Alguma coisa lhe dizia que Delia conseguiria Mario fechou os olhos, levado pela necessidade de
maravilhas com os bombons. Depois de pedir mui- sentir o perfume e o sabor de debaixo das pálpebras.
tas vezes, obteve que ela o deixasse provar um. Já ia E o beijo voltou, mais duro e sllspiroso.
embora quando Delia lhe trouxe uma amostra Não soube se lhe tinha devolvido o beijo, talvez
branca e leve em uma bandejinha de prata. En- tenha ficado quieto e passivo, provador de Delia na
quanto o saboreava - algo levemente amargo, com penumbra da sala. Ela tocou piano, como quase
um leve sabor a menta e noz-moscada misturando- I nunca agora, e lhe pediu que voltasse no outro dia.
se estranhamente -, Delia estava com os olhos Nunca haviam falado com essa voz, nunca se ha-
baixos e o ar modesto. Negou-se a aceitar os elo- viam calado assim. Os Manara suspeitaram de al-
gios, não era mais do que uma tentativa e ainda es- guma coisa porque vieram agitando osjornais e com
tava longe do que desejava. Na visita seguinte, en- a notícia de um aviador perdido no Atlântico. Eram
tretanto - também de noite, já à sombra da despe- dias em que muitos aviadores ficavam na metade do
didajunto ao piano -, ela lhe permitiu provar outra Atlântico. Alguém acendeu a luz e Delia se afastou
das suas experiências. Devia fechar os olhos para aborrecida do piano, Mario pensou por um instante
adivinhar o sabor, e Mario obediente fechou os que o gesto dela diante da luz tinha um pouco da
olhos e adivinhou um sabor a tangerina, suavÍssimo, fuga enceguecida da centopéia, uma louca corrida
vindo do mais fundo do chocolate. Seus dentes pelas paredes. Abria e fechava as mãos, parada no
desmanchavam pedacinhos crocantes, não conse- vão da porta, e depois voltou como que envergo-
guiu sentir seu sabor, e era só a sensação agradável nhada, olhando os Manara com um ar desconfiado;
de encontrar um apoio entre essa polpa doce e es- olhava-os de esguelha e sorria.
qmva. Sem surpresa, quase como uma confirmação,
Delia estava contente com o resultado, e disse a Mario mediu nessa noite a fragilidade da paz de De-
Mario que sua descrição do sabor se aproximava de lia, o persistente peso da dupla morte. Rolo, ainda
sua expectativa. Entretanto era preciso experimen- passava; Héctor era já o transbordamento, o esti-
tar mais, havia coisas sutis a equilibrar. Os Manara lhaçado que despe o espelho. Em Delia permane-
disseram a Mario que Delia não voltara a sentar-se ciam os delicados caprichos, a manipulação de es-
ao piano, que passava horas preparando licores e sências e animais, seu contato com coisas simples e
bombons. Não o diziam por censura, mas tampouco
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obscuras, a proximidade das borboletas e dos gatos, bem, Mario notou nela uma tez mais clara e um ca-
a aura de sua respiração na fronteira da morte. Pro- minhar decidido. Pena era esse retorno vespertino
meteu a si mesmo uma compreensão sem limites, ao laboratório, o interminável ensimesmar-se com a
um tratamento de anos em casas bem claras e par- balança ou as pinças. Agora os bombons absorviam
ques afastados da lembrança; talvez sem se casar Delia a ponto de abandonar os licores; poucas vezes
com Delia, simplesmente prolongando este amor agora dava a provar seus achados, e nunca aos Ma-
tranqüilo até que ela não visse mais uma terceira fiara. Mario desconfiava, sem qualquer razão, que
morte andando a seu lado, outro noivo, o que vem os Manara tivessem decidido não provar mais sabo-
para morrer. res novos; preferiam os comuns, e se Delia deixava
Pensou que os Manara ficariam contentes quando lima caixa sobre a mesa, sem lhes oferecer mas
ele começasse a trazer as essências para Delia; ao como quem oferece, eles escolhiam os mais sim-
contrário, zangaram-se e se retiraram carrancudos, ples, os de antes, e até abriam os bombons para
sem comentários, embora terminassem transigindo examinar o recheio. Mario se divertia com o mudo
e saindo, sobretudo quando vinha a hora das pro- descontentamento de Delia junto ao piano, seu ar
vas, sempre na sala e quase de noite, e era preciso falsamente distraído. Guardava para ele as novida-
fechar os olhos e definir - com quantas vacilações, des, no último momento vinha da cozinha com a
às vezes, pela sutileza do material - o sabor de um bandejinha de prata; uma vez ficou até tarde to-
pedacinho de polpa nova, pequeno milagre na ban- cando piano e deixou que ele a acompanhasse até a
dejinha de prata. cozinha para buscar uns bombons novos. Quando
Em troca dessas atenções Mario obtinha de Delia acendeu a luz, Mario viu o gato adormecido em seu
a promessa de irem juntos ao cinema ou de passe- canto, e as baratas que fugiam pelos ladrilhos.
arem em Palermo. Adivinhava gratidão e cumplici- Lembrou-se da cozinha de sua casa, Mamãe Ce-
dade nos Manara cada vez que vinha buscá-Ia no leste sempre esparramando um pó amarelo nos ro-
sábado de tarde ou na manhã do domingo; era como dapés. Naquela noite os bombons tinham gosto de
se preferissem ficar sozinhos em casa para ouvir rá- moca e um saibo estranhamente salgado (no mais
dio ou jogar cartas. Mas notou também o constran- distante do sabor) como se no final do gosto se es-
gimento de Delia por sair de casa se os velhos fica- condesse uma lágrima; era uma loucura pensar nis-
vam. Embora não se sentisse triste junto a Mario, so, no que restara das lágrimas derramadas na noite
nas poucas vezes em que saíram com os Manara es- de Rolo no saguão.
tava mais alegre e então se divertia de verdade na - O peixe colorido anda tão triste - disse Delia
Exposição Rural, queria caramelos e aceitava brin- mostrando-lhe o aquário com pedrinhas e falsas ve-
quedos, que na volta olhava firmemente, exa- getações. Um peixinho rosa translúcido dormitava
minando-os até se cansar. O ar puro lhe fazia com um compassado movimento da boca. Seu olho
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Ii mesrno tempo, mais distante. Perdiam a simplici-
frio olhava Mario como uma pérola viva. Mário
pensou no olho salgado como uma lágrima que es- dade de amigos para se olharem com os olhos do pa-
corregaria entre os dentes ao mastigá-Ia. rente, do que sabe tudo desde a primeira infância.
Precisa mudar a água mais seguido - propôs. Mario beijou Delia, beijou mamãe Manara, e ao
fi
- É inútil, está velho e doente. Amanhã vai mor- j abraçar apertado seu futuro sogro teria querido lhe
~
rer. ,[ dizer que confiassem nele, novo suporte do lar, mas
O aviso soou para ele como um retorno ao pior, à não lhe vinham as palavras. Notava-se também que
Delia atormentada do luto e dos primeiros tempos. os Manara tinham querido lhe dizer alguma coisa
Ainda tão perto daquilo, do degrau e do cais, como mas não se animavam. Sacudindo os jornais, volta-
fotografias de Héctor aparecendo de repente entre ram a seu quarto, e Mario ficou com Delia e o piano,
pares de meias ou de anáguas de verão. E uma flor com Delia e os primeiros acordes do' 'amor Índio".
seca - do velório de Rolo - presa sobre uma es- Uma ou duas vezes, durante aquelas semanas de
tampa na porta do roupeiro. noivado, esteve a um passo de marcar um encontro
Antes de sair pediu que se casasse com ele no ou- com papai Manara fora de casa para lhe falar das
tono. Delia não disse nada, pôs-se a olhar o chão cartas anônimas. Depois pensou que isso era inu-
como se procurasse uma formiga na sala. Nunca tilmente cruel porque nada podia ser feito contra es-
haviam falado disso, Delia parecia querer se acos- ses miseráveis que o perseguiam. O pior veio em um
tumar à idéia e pensar antes de responder. Depois sábado, ao meio-dia, dentro de um envelope aZl}l.
olhou-o com um olhar faiscante, levantando-se Mari9 ficou olhando a fotografia de Héctor na Ul-
bruscamente. Fez um gesto como se fosse abrir uma tima Hora e os parágrafos sublinhados com tinta
portinha no ar, um gesto quase mágico. azul. "Só um grande desespero pôde arrastá-Io ao
- Então você é meu noivo - disse. - Que dife- suicídio, segundo declarações dos familiares."
rente você está. Como mudou. Pensou vagamente no fato de que os familiares de
Héctor não tinham aparecido mais na casa dos Ma-
Mamãe Celeste ouviu a notícia sem dizer nada, nara. Talvez tivessem ido alguma vez nos primeiros
pôs de lado o ferro de passar e durante o dia todo não dias. Lembrava-se agora do peixe colorido, os Ma-
saiu de seu quarto, onde entravam, um a um, os ir- nara lhe disseram que era presente da mãe de Héc-
.• mãos e de onde saíam com caras compridas e vidri- tor. Peixe colorido morto no dia anunciado por De-
nhos de Hesperidina. Mario foi ao futebol e de noite lia. Só um grande desespero pôde arrastá-Ia. Quei-
levou rosas a Delia. Os Manara o esperavam na sa- mou o envelope, o recorte, fez uma relação de sus-
la, abraçaram-no e lhe contaram coisas; depois re- peitos e decidiu falar com Delia, salvá-Ia em si
solveram abrir uma garrafa de vinho do Porto e co- mesmo dos fios da baba, do ressumar intolerável
mer massas. Agora o tratamento era Íntimo e, ao desses rumores. Cinco dias depois (não falara com
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Delia nem com os Manara), veio a segunda. Na car- - Eu sei que logo que nos casemos vão se acabar
tolina azul-celeste havia primeiro uma estrelinha estas infâmias. Mas preciso que vocês me ajudem,
(não se sabia por quê) e depois: "Eu fosse o senhor que a protejam. Uma coisa assim pode fazer mal a
teria cuidado com o degrau da entrada. " Do enve- 1 qualquer um. É tão delicada, tão sensível.
l
lope saiu um vago perfume de sabonete de amêndo-
as. Mario pensou se a da casa assobradada usaria
i so?
Você quer dizer que pode ficar louca, não é is-

sabonete de amêndoas. Teve até a desonesta cora- I


Bem, não é exatamente isso. Mas se recebe
gem de revistar a cômoda de Mamãe Celeste e de cartas anônimas como eu, e as esconde, e isso vai se
sua irmã. Queimou também esta carta anônima, e
nada disse a Delia. Era dezembro, com o calor da- I repetindo ...
- Você não conhece Delia. Ela ignora as cartas
queles dezembros de vinte e tantos, agora ia ter com anônimas ... quero dizer que não lhe provocam ne-
I
Delia depois de jantar e falavam passeando pelo jar- 1.'
nhum abalo. É mais dura do que você pensa.
dinzinho dos fundos ou dando uma volta pela qua- - Mas olhe que parece assustada, que alguma
dra. Com o calor comiam menos bombons, não que coisa está mexendo com ela -lembrou-se de dizer,
Delia renunciasse às suas experiências, mas trazia indefeso, Mario.
poucas amostras à sala, preferindo guardá-Ias em - Não é por isso, não. - Bebia a cerveja como
caixas antigas, protegidas em moldezinhos de pa- se quisesse esconder a voz. - Antes foi igual, eu a
pel, ~om uma fina capa verde-claro por cima. Mario conheço bem.
achou-a inquieta, como que cautelosa. Às vezes - Antes de quê?
olhava para trás nas esquinas,. e na noite em que fez - Antes de que morressem, seu bobo. Pague
um gesto de repulsa ao chegar à caixa de correio de que estou apressado.
Medrano e Rivadavia, Mario compreendeu que a Quis protestar mas papai Manara já estava an-
ela também estavam torturando há muito tempo; dando em direção à porta. Fez um gesto vago de
que compartilhavam, sem nada dizer, da mesma despedida e caminhou para a Praça Once com a ca-
persegmçao. beça baixa. Mario não se animou a segui-Io, nem
Encontrou-se com papai Manara no Munich de mesmo a pensar muito no que acabava de ouvir. Es-
Cangallo e Pueyrredón, encheu-o de cerveja e bata- tava agora outra vez sozinho como no princípio,
tas fritas sem conseguir arrancá-Io de uma cautelosa frente a Mamãe Celeste, à da casa assobradada e
modorra, como se desconfiasse do encontro. Mario aos Manara. Até os Manara.
disse rindo que não ia lhe pedir dinheiro emprestado Delia desconfiava de alguma coisa porque o rece-
e, sem rodeios, falou das cartas anônimas, do ner- beu diferente, quase tagarela e manhosa. Talvez os
vosismo de Delia, da caixa de correio de Medrano e Manara tivessem falado do encontro no Munich,
Rivadavia. Mario esperou que tocasse no assunto para ajudá-Ia
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a sair daquele silêncio, mas ela preferia Rose Marie nal manuseado, seu diálogo contínuo. Não tinham
e um pouco de Schumann, os tangos de Pacho com sono nessa noite, eram onze e meia e continuavam
um compasso bem marcado e atrevido, até que os conversando. Delia voltou ao piano, obstinada-
Manara chegaram com bolachinhas e vinho de Má- mente tocava longas valsas argentinas com da capo
laga e acenderam todas as luzes. Falou-se de Pola alfine uma vez ou outra, escalas e floreios de algum
Negri, de um crime em Liniers, do eclipse parcial e mau gosto, mas que encantavam Mario, e continuou
da doença do gato. Delia achava que o gato estava no piano até que os Manara vieram lhes dizer boa-
com problemas de pêlo e defendia um tratamento noite, que não fieassem até tarde, agora que era da
com óleo de castor. Os Manara lhe davam razão
sem opinar, mas não pareciam convencidos.
I família precisava cuidar mais do que nunca da saúde
de Delia, cuidar para que não se tresnoitasse.
Lembraram-se de um veterinário amigo, de umas fo- i~
'

Quando saíram, como a contragosto mas rendidos


lhas amargas. Optavam por deixá-Io sozinho no jar- pelo sono, o calor entrava em lufadas pela porta do
dim, e ele mesmo escolher as ervas curativas. Delia, saguão e a janela da sala. Mario quis um copo de
porém, disse que o gato morreria, talvez o óleo pro- água e foi à cozinha, embora Delia quisesse servi-Io
longasse sua vida um pouco mais. Ouviram umjor- e, por isso, ficasse um pouco zangada. Quando vol-
naleiro gritar na esguina, e os Manara correramjun- tou viu Delia najanela, olhando a rua vazia por onde
tos para comprar Ultima Hora. A um mudo pedido antes, em noites iguais, Rolo e Héctor se iam. Um
de Delia, Mario foi apagar as luzes da sala. Ficou o pouco de luajá se deitava no assoalho perto de De-
abajur na mesa de canto, manchando de amarelo ve- lia, na bandejinha de prata que Delia tinha na mão
lho a toalha de bordados futuristas. À voltado piano como outra pequena lua. Não quisera pedir a Mario
havia uma luz velada. que provasse diante dos Manara, ele tinha que com-
Mario perguntou pelo vestido de Delia, se já es- preender como a cansavam as censuras dos Mana-
tava trabalhando em seu enxoval, se março era me- ra, achando sempre que era abusar da bondade de
lhor que maio para o casamento. Esperava um ins- Mario lhe pedir que provasse os novos bombons.
tante de coragem para mencionar as cartas anôni- Claro que, se não tivesse vontade, mas ninguém lhe
mas, um resto de medo de cometer um erro merecia mais confiança, os Manara eram incapazes
impedia-o a cada tentativa. Delia estavajunto a ele de apreciar um sabor diferente. Oferecia-lhe o bom-
no sofá verde-escuro, seu vestido azul-celeste bom quase suplicando, mas Mario compreendeu o
destacava-a suavemente na penumbra. Quando desejo que animava a voz dela, agora o alcançava
quis beijá-Ia, sentiu-a contrair-se pouco a pouco. com uma claridade que não vinha da lua, nem
Mamãe voltará para se despedir. Espere até mesmo de Delia. Pôs o copo de água sobre o piano
que tenham ido dormir ... (não tinha bebido na cozinha) e pegou o bombom
Na outra peça se ouvia os Manara, o ruído dojor- com dois dedos, Delia a seu lado esperando o vere-
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dieto, a respiração ansiosa como se tudo depen- vido e estavam ali, junto à porta, no escuro da sala
desse disso, sem falar mas apressando-o com o ges- de jantar, ouvindo como ele fazia Delia se calar.
to, os olhos crescidos - ou era a sombra da sala-, Afrouxou o apertão e a deixou escorregar até o sofá,
oscilando de leve o corpo ao ofegar, porque agora convulsionada e roxa mas viva. Ouvia o respirar dos
era quase um arquejo quando Mario aproximou o Maiíara, e sentiu pena deles por tantas coisas, inclu-
bombom da boca, ia mordê-Io, baixava a mão e De- sive por causa de Delia, por deixá-Ia outra vez e vi-
lia gemia como se no meio de um prazer infinito se va. Como Héctor e Rolo ia embora e os élbandona-
sentisse de repente frustrada. Com a mão livre aper- va. Teve muita pena dos Maiíara, que tinham estado
tou levemente os lados do bombom, mas não o ali escondidos esperando que ele - afinal alguém-
olhava, tinha os olhos em Delia e a cara de gesso, fizesse calar Delia que chorava, fizesse parar, afi-
um pierrô repugnante na penumbra. Os dedos se se- nal, o choro de Delia.
paravam, dividindo o bombom. A lua caiu em cheio
na massa esbranquiçada da barata, o corpo despido
de seu revestimento coriáceo e, em volta, mistura-
dos com a menta e o maçapão, os pedacinhos de pa-
tas e asas, o pozinho da carapaça triturada.
Quando atirou os pedaços no rosto dela, Delia ta-
pou os olhos e começou a soluçar, arquejando em
um soluço que a afogava, cada vez l,1laisagúdo esse
choro, como na noite de Rolo, então os dedos de
Mario se fecharam na garganta de Delia como que
para protegê-Ia desse horror que lhe subia do peito,
um borborigmo de choro e gemido, com risos inter-
rompidos em contorções, mas ele queria apenas que
ela se calasse, e apertava apenas para que se calas-
se, a da casa assobradada talvezjá a estaria ouvindo
com um misto de medo e prazer, por isso devia
fazê-Ia calar a todo custo. Às suas costas, da cozi-
nha onde encontrara o gato com as garras cravadas
nos próprios olhos e ainda se arrastando para mor-
rer dentro de casa, ouvia a respiração dos Maiíarajá
levantados, escondendo-se na sala de jantar para
espiá-Ios, estava certo de que os Maiíara tinham ou-
104 105
I

.•...

As oito, José Maria veio com a notícia, quase


sem rodeios me disse que Celina acabava de morrer.
Lembro-me de que reparei instantaneamente na fra-
se, Celina acabando de morrer, um pouco como se
ela mesma houvesse decidido o momento em que
isso devia acontecer. Era quase de noite e os lábios
de José Maria tremiam quando me disse:
_ Mauro recebeu a notícia muito mal, deixei-o
feito louco. É melhor a gente ir.
Eu precisava terminar umas notas, além do que
havia prometido a uma amiga levá-Ia a jantar. Dei
uns telefonemas e saí com José Maria atrás de um
táxi. Mauro e Celina viviam entre Canning e Santa
Fe, de maneira que calculamos dez minutos de casa
até lá. Logo que nos aproximamos, vimos gente de
pé no saguão com um ar de culpa e vergonha; a ca-
minho soube que Celina começara a vomitar às seis,
que Mauro trouxera o médico e sua mãe estava com
eles. Parece que o médico começava a escrever uma
longa receita quando Celina abriu os olhos e acabou
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fera quente daquela peça. Fazia pouco que estava
de morrer com uma espécie de tosse, maiS pare- olhando para Celina sem vê-Ia, e agora me deixei ir
cendo um assobio. até ela, e ao seu cabelo negro e sem vida nascendo
_ Eu agarrei o Mauro, o doutor teve que sair de uma testa estreita que brilhava como nácar de
porque o Mauro queria bater nele. Você sabe como guitarra, ao prato raso branquÍssimo de seu rosto ir-
ele é quando fica bravo. remediável. Percebi que não tinha nada que fazer
Eu pensava em Celina, na última cara de Celina ali, aquela peça era agora das mulheres, das carpi-
que nos esperava em casa. Quase não escutei os gri- de iras chegando com a noite. Nem mesmo Mauro
tos das velhas e a agitação no pátio, mas, em com- poderia vir em paz sentar-se ao lado de Celina, por-
pensação, lembro-me que o táxi custava dois pesos que nem mesmo Celina estava aIi esperando, aquela
e sessenta e o motorista tinha um boné lustroso. Vi coisa branca e negra se derramava ao lado das cho-
dois ou três amigos da turma do Mauro, lendo La ronas, favorecia-as com seu tema imóvel repetin-
Razón na porta; uma menina de vestido azul tinha do-se. Melhor Mamo, ir buscar Mauro, que conti-
um gato cinzento nos braços e alisava cuidadosa os nuava do nosso lado.
bigodes dele. Mais para dentro começavam as la- Dessa peça à sala de jantar havia surdas sentine-
mentações e o cheiro a ambiente fechado. las fumando no corredor sem luz. Pena, o louco
_ Ande, vá logo ver o Mauro - disse a José Bazán, os dois irmãos menores de Mauro e um ve-
Maria. - Você sabe que é bom distraí -10 um pouco. lho indefinÍvel me cumprimentaram com respeito.
Na cozinha já tomava mate. O velório se organi- _ Obrigado por vir, doutor - disse-me um de-
zava sozinho, por si mesmo: as caras, as bebidas, o les. - O senhor, sempre tão amigo do pobre Mauro.
calor. Agora que Celim~acabava de morrer, incrível _ Os amigos se vêem nestes transes -- disse o
como o pessoal de um bairro abandona tudo (até os velho, dando a mão, que me pareceu uma sardinha
programas de perguntas e respostas) para reunir-se VIva.
no local do fato . Uma lâmpada piscou muito quando Tudo isto acontecia, mas eu estava outra vez com
passei ao lado da cozinha e entrei na peça mortuária. Celina e Mauro no Luna Park, dançando no carna-
Dona Martita e outra mulher me olharam do fundo val de quarenta e dois; Celina de azul-celeste, que
esçuro, onde a cama parecia estar flutuando em uma combinava tão mal com seu tipo de china*, Mauro
geléia de marmelo. Percebi, por seu ar superior, que de palm-beach e eu com seis uísques e um porre fi-
acabavam de lavar e amortalhar Celina; até chei- lho-da-puta. Gostava de sair com Mauro e Celina
rava levemente a vinagre.
_ Pobrezinha da finadinha - disse Dona Marti-
* China, na linguagem gauchesca, tem conotação afetiva. Em
ta. - Passe, doutor, venha vê-Ia. Parece que está termos gerais, reserva-se à mulher de traços indígenas e pode
dormindo. ter conotação pejorativa. (N. do T.)
Contendo a vontade de puteá-Ia, entrei na atmos-
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=~~~~._- ~:_~~

para assistir de perto a sua dura e quente felicidade. questra de Canaro ali em cima e um cheiro a pó bara-
Quanto mais censuravam estas amizades, mais to. Depois dançou comigo uma machicha*, a pista
me aproximava deles (aos meus dias, às minhas ho- era um horror de gente e fumaça. "Como você dan-
ras) para presenciar sua existência, da qual eles ça bem, Marcelo", como que surpresa de que um
mesmos não sabiam nada. advogado fosse capaz de se sair tão bem em uma
Fugi do baile, um gemido vinha daquela peça su- machicha. Tanto ela como Mauro jamais tinham me
bindo pelas portas. tratado com intimidade, e eu me dirigia a Mauro
- Aquela deve ser a mãe - disse o louco Bazán, quase sem nenhuma intimidade, e a Celina dispen-
quase satisfeito. sava a mesma cerimônia que ela a mim. E ela custou
"Silogística perfeita do humilde", pensei, "Ce- a abandonar o "doutor", porque talvez se orgu-
lina morta, chega mãe, berro mãe." Dava nojo pen- lhasse de me dar o título diante dos outros: "meu
sar assim, mais uma vez estar pensando em tudo o amigo o doutor". Eu pedi a Mauro que a aconse-
que aos outros bastava sentir. Mauro e Celina não lhasse nesse sentido, então começou o "Marcelo" .
tinham sido minhas cobaias, não. Gostava deles, Foi assim que eles se aproximaram um pouco de
tanto quanto continuo gostando. Só que nunca pude mim, mas eu continuava tão distante quanto antes.
penetrar em sua simplicidade, só que me via forçado Nem mesmo indo aos bailes populares, ao boxe, ao
a me alimentar por reflexo de seu sangue; eu sou o futebol (Mauro jogou no Racing anos atrás) ou to-
Dr. Hardoy, um advogado que não se conforma mando mate na cozinha. Quando terminou a ação e
com a Buenos Aires forense ou musical ou hípica, e fiz Mauro ganhar cinco mil pesos, Celina foi a pri-
arrisca tudo o que pode por outros caminhos. Já sei meira a pedir que não me afastasse, que continuasse
que atrás disso está a curiosidade, as notas que en- a vê-Ios. Já não andava bem, sua yoz, sempre um
chem pouco a pouco o meu fichário. Mas Celina e pouco rouca, era cada vez mais débil. Tossia à noi-
Mauro não, Celina e Mauro não. te, Mauro comprava para ela Neurofosfato Escay, o
- Quem diria - ouvi de Pena - Assim tão de que era uma burrice, e também Ferro Quina Bisleri,
repente ... coisas que a gente lê nas revistas e nas quais passa a
- Bem, você sabe que andava muito ruim do confiar.
pulmão. Íamos juntos aos bailes, e eu os observava viver.
- Sim, mas mesmo assim ...
Defendiam-se da terra aberta. Muito ruim do - É bom que fale com o Mauro - disse José
pulmão, mas ainda que fosse assim. Também Celina
não devia sequer imaginar a morte, para ela e Mauro
a tuberculose era "fraqueza". Outra vez eu a vi * Machicha, dança alegre e popularíssima nos cabarés argen-
dançando toda vibrante nos braços de Mauro, a or- tinos dos anos 40. (N. do T.)

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Maria, que brotava de repente a meu lado. - Vai necessano. Quando vi as mulheres pensei na car-
fazer bem a ele. reira de Celina e no gesto de Mauro ao tirá-Ia do ca-
Fui, mas estive todo o tempo pensando em Celi- baré do grego Kasidis e levá-Ia com ele. Era preciso
na. Era feio reconhecê-Io, na verdade o que fazia era ter coragem para esperar alguma coisa daquela mu-
reunir e ordenar minhas fichas sobre Celina, não es- lher, e foi naquela época que o conheci, quando
critas nunca mas bem à mão. Mauro chorava de veio me consultar sobre a ação de sua mãe por uns
cara limpa como todo animal saudável e deste mun- terrenos em Sanagasta. Celina o acompanhou na
do, sem a menor vergonha. Pegava minhas mãos e segunda vez, ainda com maquilagem quase profis-
as molhava com seu suor febril. Quando José Maria sional, caminhando a passos largos mas agarrada ao
o forçava a beber uma genebra, engolia-a entre dois braço dele. Não me custou julgá-Ios, saborear a
soluços com um ruído estranho. E as frases, aquele simplicidade agressiva de Mauro e seu esforço in-
balbuciar de asneiras com toda sua vida dentro, a confessado por se identificar inteiramente com Ce-
negra consciência da coisa irreparável que tinha lina. Quando comecei a me ocupar do caso dele,
acontecido a Celina, que ele só acusava e sentia. O achei que o conseguira, pelo menos por fora e na
grande narcisismo por fim desculpado e em liber- conduta diária. Depois avaliei melhor. Celina era
dade para dar outro espetáculo. Tive nojo de Mau- um pouco diferente dele por causa dos caprichos,
ro, mas muito mais de mim mesmo, e fui tomar um seu gosto por bailes populares, seus longos deva-
conhaque barato, que me queimava a boca sem ne- neios ao lado do rádio, com a costura ou o tricô nas
nhum prazer. O velório funcionava então a plena mãos. Quando a ouvi cantar, uma noite de Nebiolo
força, de Mauro para baixo todos estão perfeitos, e Radng quatro a um, soube que ainda estava com
até a noite ajudava, quente e igual, linda para se es- Kasidis, longe de uma casa estável e de Mauro zela-
tar no pátio e falar da finadinha, para deixar vir a dor do Mercado. Para conhecê-Ia melhor estimulei
madrugada e revelar a intimidade de Celina. seus desejos baratos, fomos os três a muito lugar de
alto-falantes alucinados, de pizza fervendo e guar-
Isto foi em uma segunda-feira. Depois precisei ir danapinhos engordurados pelo chão. Mas Mauro
a Rosario por um congresso de advogados onde não preferia o pátio, as horas de conversa com os vizi-
se fez outra coisa senão promover aplausos gerais e nhos e o mate. Aceitava aos poucos, se submetia
beber como loucos; voltei no fim de semana. No sem ceder. Então Celina fingia se conformar, talvez
trem viajavam duas bailarinas do Moulin Rouge e eu até já estivesse se conformando em sair menos e ser
reconheci a mais jovem, que se fez de desentendida. mais caseira. Era eu que conseguia levar Mauro aos
Toda esta manhã estivera pensando em Celina, não bailes, e sei que me agradeceu por isso desde o prin-
que me importasse tanto a morte de Celina mas cípio. Eles se amavam, e a alegria de Celina bastava
muito mais a quebra de uma ordem, de um hábito aos dois, às vezes aos três.
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Pensei que um banho me faria bem, depois telefo- me lembro de tudo o que disse, acho que na verdade
naria a Nilda para lhe dizer que a iria buscar no do- era sempre a mesma coisa. Ficou uma frase: "Ela
mingo, a caminho do hipódromo, e veria Mauro em está aqui", e o gesto de cravar o indicador no meio
seguida. Estava no pátio, fumando entre longos do peito como se mostrasse uma dor ou uma meda-
sorvos de mate. Os dois ou três furinhos em sua ca- lha.
misa me enterneceram e eu lhe dei um tapinha no - Quero esquecer - dizia também. - Qualquer
ombro ao cumprimentá-Io. Estava com a mesma coisa, me embriagar, ir a um cabaré, foder qualquer
cara da última vez, ao lado da sepultura, quando jo- fêmea. Você entende, Marcelo, você ... - O indi-
gou um punhado de terra e se atirou para trás como cador subia, enigmático, dobrava-se de súbito como
se estivesse ofuscado. Encontrei nele, porém, um um canivete. Àquela altura já estava disposto a
brilho claro nos olhos, a mão dura ao apertar. aceitar qualquer coisa, e quando eu mencionei o
Santa Fe Palace, de passagem, ele deu por consu-
- Obrigado por ter vindo me ver. O tempo custa
mado que Íamos ao baile, e foi o primeiro a se levan-
a passar, Marcelo. tar e olhar a hora. Caminhamos sem falar, mortos de
- Você ainda precisa ir ao Mercado, ou alguém calor, e todo o tempo eu adivinhava uma lembrança
o substitui? de Mauro, sua repetida surpresa por não sentir em
- Pus meu irmão lá, occapenguinha. Não tenho seu braço a alegria quente de Celina a caminho do
baile.
ânimo para trabalhar, e assim o dia parece eterno.
- Nunca a levei a esse Palace - disse-me de re-
- Claro, você precisa se distrair. Vista-se. Va- pente. - Estive lá antes de conhecer a Celina, era
mos dar uma volta por Palermo. um cabaré muito vagabundo. Você o frequenta?
- Vamos, não faz muita diferença. Em minhas fichas tenho uma boa descrição do
Santa Fe Palace, que não se chama Santa Fe nem
Vestiu um terno azul com cachecol estampado, e está naquela rua, mas ao lado. Pena que nada disso
o vi usar o perfume de um vidro que tinha sido de possa ser realmente descrito, nem a fachada mo-
Celina. Gostava do seu modo de ajeitar o chapéu, desta com seus cartazes prometedores e a escura bi-
com a aba levantada, e de seu passo leve e silencio- lheteria, menos ainda aqueles tipos que parecem só
so, bem malandro. Resignei-me a escutar - "os ter olhos, que fazem hora na entrada e devoram a
amigos são para estas horas" - e na segunda gar- gente de alto a baixo. O resto é pior, não porque seja
rafa de Quilmes Cristal derrubou sobre mim tudo o um mau lugar, mas porque nada aí é nenhuma coisa
que tinha. Estávamos em uma mesa do fundo do ca- com precisão; exatamente o caos, a confusão con-
fé, quase sozinhos; eu o deixava falar, mas de vertendo-se em uma falsa ordem: o inferno e seus
quando em quando servia-lhe cerveja. Quase não círculos. Um inferno de parque japonês a dois pesos
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cando com muita vontade. O cantor insistia na sau-
e cinqüenta a entrada e damas a zero cinqüenta.
dade, milagrosa sua maneira de dramatizar um
Compartimentos mal separados, espécie de pátios
compasso bem mais rápido e uniforme. Las trenzas
cobertos, contínuos, onde havia, no primeiro, uma
de mi china las traigo en la maleta ... Agarrava-se ao
orquestra de tango clássico, no segundo uma carac- microfone como aos barrotes de um vomitório, com
terística, e no terceiro umade folclore Com cantado-
uma espécie de luxúria cansada, de necessidade or-
res e sapateado. Colocados em uma passagem in-
gânica. Algumas vezes metia os lábios na gradezi-
termediária (eu Virgilio) ouvíamos as três músicas e nha cromada, e dos alto-falantes saía uma voz pega-
víamos os três círculos dançando; então se escolhia
josa - "yo soy un hombre honrado ... "; - pensei
o preferido ou se ia de baile em baile, de genebra em
que seria bom negócio uma boneca de borracha e o
genebra, buscando mesinhas e mulheres. microfone escondido dentro, assim o cantor poderia
- Não é dos piores - disse Mauro com seu ar
tê-Ia nos braços e excitar-se à vontade quando can-
tristonho. - Pena o calor. Deviam pôr exaustores.
tasse para ela. Mas não serviria para os tangos, era
(Para uma ficha: estudar, segundo Ortega, os melhor mesmo o bastão cromado com a pequena
contatos do homem do povo com a técnica. AÍ onde caveira brilhante no alto, o sorriso tetânico da gra-
se pensaria em um choque há, ao contrário, assimi- dezinha.
lação violenta e rendimento; Mauro falava de refri-
Acho bom dizer aqui que eu ia a esse cabaré por
geração ou de super-heteródinos com a suficiência
causa dos monstros, e que não sei de outro onde se
portenha que acha que tudo lhe é devido.) Eu o agar-
possaencontrartantosjuntos. Aparecem às onze da
rei pelo braço e o pus a caminho de uma mesa por-
noite, descem de vagas regiões da cidade, lentos e
que continuava distraído e olhava o palco da orql)es-
confiantes, sozinhos ou acompanhados, as mulhe-
tra de tangos, o cantor que segurava o microfone
res quase anãs e meio chinas, os sujeitos parecendo
com as duas inãos e o bamboleava devagarinho.
javaneses ou mocovíes, apertados em roupas qua-
Acomodamo-nos satisfeitos diante de dois chopes e
driculadas ou pretas, o cabelo duro penteado a
Mauro bebeu o seu de um só gole.
muito custo, brilhantina em gotinhas contra os re-
- É para limpar a serpentina. Porra, como tem flexos azuis e rosa, as mulheres com enormes pen-
gente!
teados altos que as fazem mais anãs, penteados du-
Chamou pedindo outro, e me deu tempo para di-
ros e difíceis, dos quais não lhes sobra senão can-
vagar e olhar. A mesa estava pegada à pista, do ou-
saço e orgulho. E eles agora costumam deixar o ca-
tro lado havia cadeiras encostadas a uma longa pa-
belo solto e alto, repartido ao meio, topetes enormes
rede, e um montão de mulheres por ali se renovava
e afeminados, nada a ver com a cara brutal que vem
com aquele ar ausente das milongueiras quando tra-
balham ou se divertem. Não se falava muito, ou- logo abaixo, o gesto de agressão disponível e espe-
rando sua hora, os troncos vigorosos sobre cinturas
víamos muito bem a orquestra, cheia de foles e to-
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finas. Eles se reconhecem e admiram em silêncio, de Kasidis nos tempos de Celina, mais tarde fui lá
sem dar a entender, é seu baile e seu encontro, sua uma noite (para conhecer o lugar onde ela trabalhara
noite de gala. (Para uma ficha: de onde saem, em antes que Mauro a tirasse da vida) e não vi senão
que profissões eles se dissimulam de dia, em que brancas, loiras ou morenas, mas brancas.
sombrias regiões eles se isolam e disfarçam.) E aí os - Estou com vontade de dançar um tango -
monstros se enlaçam com grave acatamento, mú- disse Mauro queixoso. Já estava um pouco tocado
sica após música dançam vagarosos sem falar, mui- ao entrar na quarta dose. Eu pensava em Celina, tão
tos com os olhos fechados, gozando afinal a igual- em sua casa aqui, justamente aqui onde Mauro não a
dade, a complementação. Recuperam-se nos inter- trouxera nunca. Anita Lozano recebia agora os ca-
valos, nas mesas são arrogantes e as mulheres falam lorosos aplausos do público, ao agradecer do palco,
guinchando porque querem ser notadas e então os eu a ouvi cantar no Novelty, quando cobrava muito,
machos ficam mais turvos e eu vi voar um sopapo agora estava velha e magra mas conservava toda a
que virou a cara e a metade do penteado de uma voz para os tangos. Melhor ainda, porque seu estilo
china vesga vestida de branco que bebia anis. Além era velhaco, exigia uma voz um pouco rouca e suja
disso há o cheiro, não se concebe um monstro sem para essas letras cheias de injúrias. Celina tinha essa
esse cheiro a talco molhado na pele, a frota passada, voz quando bebia, e logo notei como o Santa Fe era
a gente de banhos incompletos, o pano úmido pelo Celina, a presença quase insuportável de Celina.
rosto e os sovacos, depois o importante,loções,Tí- Ter acompanhado Mauro fora um erro. Supor-
mel, o pó no rosto de todas elas, uma crosta esbran- tou-o porque o amava, e ele a tirava da imundície do
quiçada sobre as pequeninas manchas pardas transpa- Kasidis, da promiscuidade e dos copinhos de água
recendo. Também se oxigenam, as negras levantam açucarada entre as primeiras joelhadas e a respira-
maçarocas rígidas sobre a terra espessa do rosto, es- ção d.esagradável dos clientes no rosto, mas se não
tudam até gestos de loira, vestidos verdes, se con- tivesse precisado trabalhar nos cabarés Celina teria
vencem de sua transformação e desprezam condes- gostado de neles permanecer. Via-se isso nos seus
cendentes as outras que defendem sua cor. Olhando quadris e na boca, era feita para o tango, nascida in-
de esguelha para Mauro eu estudava a diferença en- teirinha para a farra. Por isso era necessário que
tre seu rosto de traços italianos, o rosto do portenho Mauro a levasse aos bailes, e eu a tinha visto se
de subúrbio sem mistura negra nem provinciana, e transfigurar ao entrar, com as primeiras lufadas de
me lembrei de repente de Celina mais próxima dos ar quente e dos foles. A esta hora, metido de corpo e
monstros, muito mais perto que Mauro e eu. Acho alma no Santa Fe, medi a grandeza de Celina, sua
que Kasidis a escolhera para agradar a parte achi- coragem de pagar a Mauro com uns anos de cozinha
nada de sua clientela, os poucos que então se ani- e mate doce no pátio. Renunciara a seu céu de caba-
mavam a ir a seu cabaré. Nunca estivera no cabaré rés, à sua ardente vocação pelo anis e as valsas
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T
crioulas. Como se condenando de propósito, por f repente, tenso e rígido, como que se lembrando. Eu
Mauro e pela vida de Mauro, violentando seu me vi também em Racing, Mauro e Celina agarra-
mundo apenas para que ele a levasse às vezes a uma dos nesse tango que ela cantarolou depois a noite
festa. toda e no táxi de volta.
Mauro já andava agarrado a uma negrinha mais - Dançamos este? - disse Ema, bebendo seu
alta que as outras, de corpo fino como poucas e nada suco de romã com ruído.
feia. Sua instintiva mas ao mesmo tempo estudada Mauro nem a olhava. Acho que foi nesse mo-
escolha me fez rir, aquela criadinha era a que menos mento que eu e ele nos encontramos no mais íntimo.
se parecia com os monstros; então me voltou a idéia Agora (agora que escrevo) não vejo outra imagem
de que Celina fora, de certo modo, um monstro que uma dos meus vinte anos, no Sportivo Barra-
como aqueles, só que do lado de fora e de dia não se cas, mergulhar na piscina e encontrar outro nadador
notava como aqui. Perguntei a mim mesmo se no fundo, tocar no fundo ao mesmo tempo e entre-
1 ver-nos na água verde e clorada. Mauro jogou para
Mauro reparara nisso, temi um pouco sua censura
por trazê-Io a um lugar onde a recordação crescia de trás a cadeira e se apoiou com um cotovelo na mesa.
cada coisa como cabelos em um braço. Assim como eu, olhava a pista, e Ema ficou perdida
Desta vez não houve aplausos, e ele se aproxi- e humilhada entre os dois, mas difarçava comendo
mou com a mulher que parecia subitamente eston- batatas fritas. Agora Anita começava a cantar sua-
teada e como quem está suspirando fora do tom. vemente, os pares dançavam quase sem sair do lu-
- Apresento-lhe um amigo. gare se via que escutavam a letra com desejo e infor-
Nós nos dissemos os "encantados" portenhos e túnio e todo o negado prazer da boemia. As caras
logo lhe demos de beber. Alegrava-me ver Mauro buscavam o palco e, mesmo girando, podia-se ver
entrando na noite e até troquei umas frases com a que acompanhavam Anita inclinada e confidente no
mulher, que se chamava Ema, um nome que não fica microfone. Alguns mexiam a boca repetindo as pa-
bem nas magras. Mauro parecia bastante embalado lavras, outros sorriam estupidamente como detrás
e falava de orquestras com a frase breve e senten- de si mesmos, e quando ela acabou seu tanto, tanto
ciosa que admiro nele. Ema se alongava em nomes comofuiste mIo, y hoy te busco y no te encuentro, à
de cantores, em lembranças de Villa Crespo e EI Ta- entrada em tutti dos foles respondeu a renovada vio-
lar. A essa altura Anita Lozano anunciou um velho lência do baile, as corridas laterais e os oito entres-
tango e houve gritos e aplausos entre os monstros, sachados no meio da pista. Muitos suavam, e uma
os índios, sobretudo, que a favoreciam sem restri- china, que mal chegava à altura do segundo botão do
ções. Mauro não estava tão curtido a ponto de es- meu casaco, passou junto a nossa mesa e eu vi água
quecer tudo, e quando a orquestra abriu caminho jorrando da raiz do seu cabelo, para correr pela
com um serpenteio de bandônions, ele me olhou de nuca onde a gordura formava uma espécie de cana-

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leta mais branca. Havia fumaça vinda do salão con- levantou o rosto para ouvir a música. Eu digo: Celi-
tÍguo, onde comiam parrilladas e dançavam ran- na; só que então foi bem mais saber sem compreen-
cheiras, o churrasco e os cigarros traziam uma nu- der, Celina ali sem estar, claro, como compreender
vem baixa que deformava as caras e as pinturas ba- isso naquele momento. A mesa tremeu de repente,
ratas da parede da frente. Acho que, por dentro, eu eu sabia que era o braço de Mauro que tremia, ou o
ajudava com os meus quatro chopes, e Mauro meu, mas não tínhamos medo, isso estava mais
apoiava o queixo no dorso da mão, olhando firme perto do espanto e da alegria e do estômago. Na
para adiante. Não nos chamou a atenção que o verdade era estúpido, um sentimento de coisa à
tango continuasse sem parar lá em cima, uma ou ti parte que não nos deixava sair, recuperar-nos. Ce-
duas vezes vi Mauro dar uma olhadela no palco lina continua sempre aí, sem nos ver, bebendo o
onde Anita fazia como quem maneja uma batuta, tango com todo o rosto que uma luz amarela de fu-
depois, porém, voltou a cravar os olhos nos dança- maça desfazia e alterava. Qualquer das negras po-
rinos. Não sei como dizê-Io, acho que acompanhava deria ter se parecido mais com Celina que ela
seu olhar e, ao mesmo tempo, mostrava-lhe o cami- mesma nesse momento, a felicidade a transformava
nho; sem nos ver, sabíamos (eu acho que Mauro sa- de um modo atroz, eu não teria podido tolerar Ce-
bia) a coincidência daquele olhar, caíamos sobre os lina como a via nesse momento e nesse tango. So-
mesmos pares, os mesmos cabelos e calças. Eu ouvi brou-me inteligência para avaliar a devastação pro-
que Ema dizia alguma coisa, uma desculpa, e o es- vocada por sua felicidade, seu rosto extasiado e in-
paço de mesa entre Mauro e eu ficou mais livre, em- crédulo no paraíso por fim conquistado; assim podia
bora não nos olhássemos. Sobre a pista pareçia ha- ter sido ela no Kasidis se não houvesse o trabalho
ver descido um momento de imensa felicidade, res- nem os clientes. Nada a prendia agora no seu céu só
pirei fundo como que me associando a ele e creio ter dela, entregava-se inteira à sua sina e entrava outra
ouvido que Mauro fez o mesmo. A fumaça era tão vez na ordem onde Mauro não podia segui-Ia. Era o
espessa que as caras se apagavam depois do centro seu duro céu conquistado, seu tango repetido para
da pista, de modo que a zona das cadeiras para as ela só e seus iguais, até os aplausos desesperantes
que não dançavam não se podia ver entre os corpos que encerraram o refrão de Anita, Celinade costas,
interpostos e aquela neblina. Tanto como juiste Celina de perfil, outros pares juntos a ela e a fuma-
mio, curiosa a crepitação que o alto-falante dava à ça.
voz de Anita, outra vez os dançarinos se imobiliza- Não quis olhar Mauro, agora me refazia e meu no-
vam (sempre se mexendo), e Celina, que estavaàdi- tório cinismo estudava o tipo de comportamento a
reita, saindo da fumaça e dançando obediente à tomar. Tudo dependia de como ele entrara naquela
pressão de seu companheiro, ficou um momento de coisa, de maneira que fiquei como estava, estu-
perfil para mim, depois de costas, o outro perfil, e dando a pista que se esvaziava pouco a pouco.
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Você viu? - disse Mauro.
Sim.
Você viu como se parecia?
Não respondi, o alívio pesava mais que a pena.
Estava deste lado, o coitado estava deste lado e já
não conseguia acreditar no que tínhamos sabido jun-
tos. Eu o vi se levantar e caminhar pela pista com
passo de bêbado, buscando a mulher que se parecia
com Celina. Fiquei quieto, fumando um cigarro sem BESTIÁRIO
pressa, olhando-o ir e vir, sabendo que perdia seu
tempo, que voltaria cansado e sedento, sem haver
encontrado as portas do céu entre essa fumaça e
essa gente. ,

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E ntre a última colherada de arroz-doce - pouca
canela, uma pena - e os beijos antes de subir para
dormir, tocou o telefone e Isabel ficou reman-
chando até que Inés veio atender e disse, depois, al-
guma coisa ao ouvido da mãe da menina. Olharam-
se e, em seguida, as duas olharam para Isabel que
pensou na gaiola quebrada e nas contas de dividir e
um pouco na raiva de Dona Lucera, que chamou
sua atenção à saída do colégio .. Não estava muito
preocupada, a mãe e Inés olhavam como que para
além dela, quase tomando-a por pretexto; mas a
olhavam.
_ Não me agrada que vá, acredite - disse Inés.
_ Não tanto pelo tigre, afinal cuidam bem deste as-
pecto. Mas a casa tão triste, e só aquele menino para
brincflr com ela... .
_ Eu também não gosto disso - disse a mãe, e
Isabel soube instantaneamente que a mandariam
passar o verão nos Funes. Atirou-se na notícia, na
enorme onda verde, aos Funes, aos Funes, claro
que a mandariam. Não gostavam da idéia, mas con-
129
cando de repente as pernas, bateu com os pés nas
vinha. Brônquios delicados, Mar deI Plata caríssi- barras de bronze, que doeram através das colchas, e
ma, difícil lidar com uma menina mimada, bobinha,
na grande sala de jantar ouvia a mãe falar com Inés,
conduta apenas regular com a Srta. Tania, que é tão a bagagem, ver o médico por causa das erupções,
boa, sono inquieto e brinquedos espalhados por to- óleo de fígado de bacalhau e Hamamelis virginica.
dos os lados, perguntas, botões, joelhos sujos. Sen- Não era um sonho, não era um sonho.
tiu medo, prazer, cheiro de salgueiros e o u de Funes Não era um sonho. Levaram-na a Constitución
misturando-se ao arroz-doce, tão tarde e quase
em uma manhã ventosa, de bandeirinhas nos postos
dormindo, e já na cama. de ambulantes da praça, uma torta no Trem Misto e
Deitada, sem luz, cheia de beijos e olhares tristes
entrada triunfal na plataforma número catorze. Inés
de Inés e sua mãe, não muito conformadas mas já
e sua mãe a beijaram tanto que seu rosto ficou como
completamente decididas a mandá-Ia. Antevia a que cansado, mole e cheirando a ruge e a pó RacheI
chegada em break*, o primeiro café da manhã, a de Coty, úmido ao redor da boca, um nojo que o
alegria de Nino caçador de baratas, Nino sapo, vento levou de uma soprada. Não tinha medo de via-
Nino peixe (uma lembrança de três anos atrás, Nino jar sozinha porque era uma menina grande, com
lhe mostrando umas figurinhas grudadas com cola nada menos que vinte pesos na bolsa, Companhia
em um álbum, e falando sério: "Este é um sapo, e Sansisena de Carnes Congeladas metendo-se pela
este um pei-xe"). Agora Nino no parque, esperan- janelinha com um cheiro enjoativo, o Riachuelo
do-a com a rede de caçar borboletas, e também as amarelento e Isabel refeitaj á do choro forçado, con-
mãos suaves de Rema - ela as viu nascendo do es-
tente, morta de medo, ativano domínio pleno do seu
curo, estava com os olhos abertos e em vez da cara
lugar, sua janelinha, passageira quase única nesse
de Nino, zás, as mãos de Rema, a mais jovem dos
pedaço de vagão onde podia experimentar todos os
Funes. "Tia Rema gosta muito de mim" , e os olhos
lugares e se ver em todos os espelhinhos. Pensou
de Nino faziam-se grandes e molhados, outra vez uma ou duas vezes na mãe, em Inés - já deviam es-
viu Nino se desgarrar flutuando no ar confuso do tar no 97, saindo de Constitución -, leu proibido
quarto, olhando-a contente. Nino peixe. Dormiu fumar, proibido cuspir, capacidade 42 passageiros
querendo que a semana passasse nesta mesma noi- sentados, passavam por Banfield a toda velocidade,
te, e as despedidas, a viagem de trem, a légua em vuuuum!, campo mais campo mais campo mistu-
break, o portão, os eucaliptos do caminho da entra-
rado com o gosto do milk shake e as pastilhas de hor-
da. Antes de dormir teve um momento de horror telã. Inés aconselhara-a a tricotar a camisola de lã
quando imaginou que podia estar sonhando. Esti- verde, por isso Isabel a levava no mais escondido de
sua maletinha. Pobre Inés, tem cada idéia tão boba.
*Break, carruagem de quatro rodas, utilizada para passeios ou N a estação sentiu um pouco de medo, porque se o
excursões no campo argentino. (N. do T.)
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1I

break ... Mas estava ali, com Dom Nicanor bem- na sala de cristais, onde se estava mais à fresca.
vestido e respeitoso, menina pra cá menina pra lá, se Nenê se queixava a cada momento do calor, Luis
a viagem tinha sido boa, se Dona Elisa continuava não dizia nada mas pouco a pouco se notava que
bonita como sempre, claro que tinha chovido. - suava na testa e na barba. Só Rema estava tranqüila,
Oh!, o andar do break, um vaivém para lhe trazer passava os pratos lentamente e sempre como se a re-
todo o aquário de sua vinda anterior a Los Horne- feição fosse de aniversário, um pouco solene e
ros. Tudo menor, mais cristal e cor-de-rosa, sem o emocionante. (Isabel aprendia em segredo sua ma-
tigre então, com Dom Nicanor menos grisalho, neira de tri nchar, de dirigir as empregadinhas.) Luis
apenas três anos atrás, Nino um sapo, Nino um pei- quase sempre lia, os punhos nas fontes e o livro
xe, e as mãos de Rema que davam vontade de cho- apoiado em um sifão. Rema tocava no braço dele
rar e senti-Ias eternamente na cabeça, em uma carí- antes de lhe passar um prato, e às vezes Nenê o in-
cia quase de morte e de baunilha com creme, as duas terrompia e o chamava de filósofo. Isabel não gos-
melhores coisas da vida. tava que Luis fosse filósofo, não por isso mas por
~
Nenê; porque então Nenê tinha pretexto para zom-
Deram-lhe um quarto de cima, inteiro para ela, bar dele e se vangloriar.
lindíssimo. Um quarto para gente grande (idéia de Comiam assim: Luis na cabeceira, Rema e ~ino
Nino, todo cachos e olhos negros, bonito em seu de um lado, Nenê e Isabel do outro, de modo que
macacão azul; claro que de tarde Luis fazia com que havia um adulto na ponta e dos lados um pequeno e
o ve_stissem melhor, de cinza-azulado e gravata um adulto. Quando Nino queria lhe dizer alguma
vermelha) e dentro dele outro quarto pequeninho coisa importante, dava um chute na canela dela.
com um cardeal enorme e selvagem. O banheiro fi- Uma vez Isabel gritou e Nenê ficou furioso e a cha-
cava a duas portas (mas internas, de modo que se
mou de malcriada. Rema ficou olhando para ela, até
podia ir até ele sem antes averiguar onde estava o ti-
que Isabel se consolou com aquele olhar e a sopaju-
gre), cheio de torneiras e metais, embora não fosse liana.
nada fácil enganar Isabel porque já no banheiro se
percebia bem o campo, as coisas não eram tão per- Mamãezinha, antes de ir comer é como em todos
feitas como em um banheiro de cidade. Cheirava a os outros momentos, precisamos reparar se -
velho, e na segunda manhã encontrou uma espécie Quase sempre era Rema quem ia ver se já podíamos
de larva passeando pela pia. Mal a tocou, virou uma passar à sala de cristais. No segundo dia veio ao li-
bolinha temerosa, roloue se foi pelo buraco borbu- ving e lhes disse que esperassem. Passou um bom
lhante. tempo até que o peão veio avisar que o tigre estava
no jardim dos trevos, então Rema pegou as crianças
Querida mamãe, pego a caneta para - Comiam pela mão e foram todos comer. Esta manhã as bata-
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.~- .i ""T·~'."'"~···-~~'I·'·
P·.·~'T ",."
t, ,I •••..
', .•._
tas ficaram muito secas, embora só Nenê e Nino ti- tuou-se à ordem da casa, à tolerável disciplina da-
vessem protestado. quele verão em Los Horneros. Nino começava a
A senhora me disse que não devo andar fazendo
compreender o microscópio que Luis lhe dera de
- Porque Rema parecia impedir; com sua pura presente, passaram uma s'emana esplêndida criando
bondade, toda pergunta. Estavam tão bem que não bichos em uma bacia de água choca e folhas de cala,
era necessário se preocupar com as ou tras peças. pondo gotas na placa de vidro para olhar os micró-
Uma casa grandíssima, e, na pior das hipóteses, só bios. "São larvas de mosquito, com esse microscó-
não deviam entrar em uma dessas peças; nunca mais ,)

pio não podem ver os micróbios", diZia-Ihes Luis


de uma, assim que não tinha muita importância. Em em seu sorriso um pouco amargo e distante. Eles
dois dias Isabel se acostumou, como Nino. Brinca-
não podiam acreditar que esse horror sempre reno-
vam de manhã à noite no mato de salgueiros, e se vado não fosse um micróbio. Rema trouxe-Ihes um
não podiam lá, restava-lhes o jardim dos trevos, o caleidoscópio que guardava em seu armário, mas
parque das redes e a margem do riacho. Na casa era preferiam sempre descobrir micróbios e contar suas
igual, tinham seus quartos, o corredor do meio, a bi-
patas. Isabel mantinha uma caderneta com os apon-
blioteca embaixo (menos uma quinta-feira em que tamentos das experiências, combinava a biologia
não puderam ir à biblioteca) e a sala de cristais. Não com a química e a preparação de uma farmácia. Fi-
iam ao escritório do Luis porque Luis lia o tempo zeram a farmácia no quarto de Nino, depois de ins-
todo, às vezes chamava o filho e lhe dava livros ilus-
pecionarem a casa toda para se equiparem de coi~
trados; mas Nino tirava-os de lá, iam vê-Ios no li- sas. Isabel disse a Luis: "Queremos de tudo: coi-
ving ou no jardim da frente. Não entravam nunca no sas." Luis deu a eles pastilhas de Andreu, algodão
escritório de Nenê porque tinham medo de seus cor-de-rosa e um tubo de ensaio. Nenê, uma bolsa
ataques de fúria. Rema disse a eles que era melhor de borracha e um frasco de pílulas verdes com a eti-
assim, e o disse como quem os advert~; eles já sa- queta raspada. Rema foi ver â farmácia, leu o inven-
biam ler em seus silêncios. tário na caderneta, e disse a eles que assim estavam
Afinal de contas era uma vida triste. Isabel se
aprendendo coisas úteis. A ela ou a Nino (que sem-
perguntou uma noite por que os Funes a tinham pre se excitava e queria brilhar diante de Rema)
convidado a veranear em sua casa. Faltou-lhe idade ocorreu montar um herbário. Como nesta manhã
para compreender que não era por ela, mas por Ni- podiam ir ao jardim dos trevos, andaram colhendo
no, um brinquedo de verão para alegrar Nino. Con- amostras e, de noite, estavam com o chão de seus
seguia, apenas, compreender a casa triste, em que quartos cheios de folhas e flores sobre papéis, quase
Rema vivia como que cansada, em que bastava não sobrava lugar para pisar. Antes de dormir, Isa-
chover pouco para as coisas ganharem um toque de bel anotou: "Folha n.o 74: verde, forma de coração,
úmido e abandonado. Poucos dias depois habi- com pintinhas marrons." Aborrecia-se um pouco
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I
I

porque todas as folhas eram verdes, quase todas li- de vermelhas, acompanhar a guerra de trás
sas, quase todas lanceoladas. do vidro, bem seguros. Só se não lutassem. Dois
formigueiros, um em cada canto da caixa de vidro.
No dia em que saíram para caçar formigas, viu os Eles se consolariam estudando os diferentes costu-
peões da estância. Conhecia bem o capataz e o mor- mes, com uma caderneta especial para cada tipo de
domo porque levavam as notícias à casa. Mas estes formiga. Mas era quase certo que lutariam, guerra
outros peões, mais jovens, estavam ali do lado dos sem quartel para olhar pelos vidros e uma só cader-
neta.
galpões com um ar de sesta, bocejando seguida-
mente e olhando os meninos brincar. Um deles
disse a Nino: "Pra que vaijuntá todesses bicho?", e Rema não gostava de espiá-Ios, às vezes passava
lhe deu um cascudo, entre os cachos. Isabel gostaria diante dos quartos e os via com oformicário ao lado
que Nino se zangasse, demonstrasse ser o filho do dajanela; apaixonados e importantes. Nino era bom
patrão. Já estavam com a garrafa fervendo de formi- para assinalar imediatamente as novas galerias, e
gas e na margem do riacho encontraram um enorme Isabel ampliava o mapa traçado a tinta em página I:

besouro e o puseram lá dentro também, só para ver. dupla. Aconselhados por Luis, terminaram acei-
A idéia de umjormicário* eles tinham tirado do Te- tando apenas as formigas negras, e o jormicário já
souro dajuventude , e Luis emprestou aos pesquisa- estava superpovoado, as formigas pareciam furio-
dores um grande e profundo cofre de vidro. Quando sas e trabalhavam até à noite, cavando e removendo
saíam, carregando-o entre os dois, Isabel ouviu-o com mil ordens e evoluções, prudente esfregar de
dizer a Rema: "Melhor, porque assim estão quietos antenas e patas, repentinos acessos de raiva ou ve-
em casa." Também achou que Rema suspirava. emência, concentrações e debandadas sem causa
Lembrou-se, antes de dormir, à hora das caras na visível. Isabel não sabia mais o que anotar, pouco a
penumbra, viu outra vez Nenê saindo para fumar na pouco abandonou a caderneta e passavam horas es-
varanda, magro e cantarolando, Remalhe levando o tudando e esquecendo as descobertas. Nino come- I

café e ele pegando a xícara enganado, tão desajei- çava a querer voltar ao jardim, falava das redes e 1

tado que apertou os dedos de Rema ao pegar a xíca- dos petiços. Isabel não concordava com isso. O i

ra, Isabel vira da sala de jantar que Rema puxava a jormicário valia mais que toda Los Horneros, e ela I

mão para trás e Nenê mal evitava que a xícara caís- se encantava de pensar que as formigas iam e vi- I

se, e ria da confusão. Melhor formigas negras que nham sem medo de nenhum tigre, às vezes ficava
vermelhas: maiores, mais ferozes. Depois soltar um imaginando um tigrinho como uma borracha de apa-
gar, rondando as galerias do jormicário; talvez por
isso as debandadas, as concentrações. E gostava de
*Formicário, no original, palavra inventada por Cortázar, su-
gerindo uma espécie de aquário para formigas. repetir o mundo grande no de vidro, agora que se

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sentia um pouco presa, agora que era proibido des- galerias desembocavam e se torciam como dedos
cer à sala de jantar até que Rema avisasse. crispados dentro da terra.
Aproximou o nariz de um dos vidros, atenta ins-
tantaneamente porque gostava que a respeitassem; Uma tarde houve sesta, melancia, tênis na parede
ouviu Rema deter-se na porta, calada, olhando-a. do lado do riacho, e Nino esteve formidável, fa-
Ouvia essas coisas com tão nítida clareza quando zendo pontos que pareciam perdidos e subindo ao
era Rema. teto pela glicínia para recuperar a bola metida entre
duas telhas. Veio um peãozinho do lado dos salguei-
- Por que está assim sozinha?
ros ejogou com eles, mas era lento e errava asjoga-
- Nino foi para a rede. Acho que esta é uma rai-
das. Isabel sentia o cheiro das folhas de aroeira e,
nha, é grandíssima.
em dado momento, ao rebater errado uma bola difí-
O avental de Rema se refletia no vidro. Isabel viu
cil, que Nino lhe enviara baixa, sentiu como se esti-
uma mão ligeiramente levantada, com o reflexo no vesse bem dentro dela a felicidade do verão. Pela
vidro parecia estar dentro do jormicário, imediata- primeira vez entendia sua presença em Los Horne-
mente pensou naquela mesma mão passando a xí- ros, as férias, Nino. Pensou no jormicário, lá em
cara de café a Nenê, mas agora eram as formigas cima, e sentiu que era uma coisa morta e transparen-
que andavam por seus dedos, as formigas em vez da te, um horror de patas procurando sair, um ar vi-
xícara e a mão de Nenê apertando a ponta dos dedos ciado e venenoso. Bateu na bola com raiva, com
dela.
alegria, cortou um talo de aroeira com os dentes e o
Tire a mão, Rema - pediu. cuspiu enojada, feliz, afinal de verdade sob o sol do
A mão? campo.
Agora está bem. O reflexo assustava as formi- Os vidros caíram como granizo. Era no escritório
gas. de Nenê. Eles o viram surgir em mangas de camisa,
Ah. Já podemos descer à sala de jantar. com os grandes óculos escuros.
Depois. Nenê está zangado com você, Rema? - Fedelhos de merda!
A mão passou sobre o vidro como um pássaro O peãozinho fugia. Nino ficou ao lado de Isabel,
pela janela. Isabel achou que as formigas se assus- ela o sentiu tremer com o mesmo vento que batia
tavam de verdade, que fugiam do reflexo. Agora nos salgueiros.
não via mais nada, Rema fora embora, andava pelo - Foi sem querer, tio.
corredor como quem foge de alguma coisa. Isabel - Verdade, Nenê, foi sem querer.
sentiu medo de sua pergunta, um medo abafado e Não estava mais.
sem sentido, talvez não da pergunta, mas de ver
Rema sair assim, do vidro outra vez límpido onde as Pedira a Rema que levasse embora ojormicário e

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Rema prometeu levá-lo. Depois, conversando en- os dois riam e Isabel também, estavam tão contentes
quanto a ajudava a pendurar sua roupa e a vestir o brincando assim. Por isso não viram Nenê se apro-
pijama, esqueceram. Isabel sentiu a proximidade ximar, e ele foi logo dando um empurrão em Nino,
das formigas quando Rema apagou a luz e foi pelo dizendo alguma coisa sobre a bolada no vidro do seu
corredor dar boa-noite a Nino, ainda choroso e doÍ- estúdio e começou a bater nele; olhava Rema en-
do, mas não se animou a chamá-Ia de novo, Rema quanto batia, parecia furioso com Rema e ela o de-
pensaria que era uma criancinha. Deliberou dormir safiou um momento com os olhos, Isabel assustada
em seguida, e se esforçou como nunca. Quando viu que ela o encarava e se metia entre os dois para
chegou o momento dos rostos na penumbra, viu a proteger Nino. Toda a cena foi uma dissimulação,
mãe e Inés se olhando com um sorridente ar de uma mentira. Luis pensava que Nino chorava por
cúmplices e vestindo umas luvas de um amarelo fos- causa de uma palmada, Nenê olhava para Rema
forescente. Viu Nino chorando, a mãe e Inés com as como que mandando que ela se calasse, Isabel via-o
luvas que agora eram gorros violeta que giravam agora com a boca dura e bela, de lábios vermelhÍs-
sem parar em suas cabeças, Nino com os olhos simos; na sombra os lábios eram ainda mais verme-
enormes e ocos - talvez por haver chorado tanto - lhos, via-se nela um leve brilho de dentes nascendo.
e calculou que agora veria Rema e Luis, pois dese- Dos dentes saiu uma nuvem esponjosa, um triân-
java vê-los e não Nenê, mas viu Nenê sem os ócu- gulo verde, Isabel piscava para apagar as imagens e
los, a mesma cara contraída que tinha quando co- outra vez Inês e a mãe apareceram com luvas ama-
meçou a bater em Nino e Nino ia andando para trás relas; elas as olhou um momento e pensou nojórmi-
até ficar pegado à parede e o olhava como que espe- cário: estava ali e não o via; as luvas amarelas não
rando que aquilo acabasse, e Nenê voltava a acertar estavam e ela as via como se estivessem a pleno sol.
um tapa solto e mole, que parecia molhado, no rosto Achou quase curioso, não podia fazer aparecer o
de Nino, até que Rema se intrometeu entre os dois e jórmicário, talvez o sentisse como um peso, um pe-
Nenê riu, com o rosto quase tocando o de Rema, e daço de espaço denso e vivo. Sentiu-o tanto que foi
então se ouviu Luis voltar e dizer, de longe, que já buscar um fósforo, a vela da noite. Ojórmicário sal-
podiam entrar na sala de jantar. Tudo tão rápido, tou do nada envolto em oscilante penumbra. Isabel
tudo porque Nino estava ali e Rema veio dizer a eles se aproximava levando a vela. Pobres formigas, iam
que não saíssem do living até que Luis verificasse pensar que era o sol que saía. Teve medo quando
em que peça estava o tigre, e ficou com eles, pôde olhar um dos lados; as formigas tinham estado
vendo-os jogar damas. Nino ganhava e Rema o elo- trabalhando em plena escuridão. Viu-as ir e vir, al-
giou, então Nino ficou tão contente que passou os voroçadas, em um silêncio tão visível, tão palpável.
braços pela cintura dela e quis beijá-Ia. Rema se in- Trabalhavam ali dentro como se ainda não tivessem
clinara, rindo, e Nino a beijava nos olhos e no nariz, perdido a esperança de sair.

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Quase sempre era o capataz quem prevenia dos escritório de Luis, à biblioteca. "É preciso acreditar
movimentos do tigre; Luis tinha a maior confiança em Dom Roberto", dissera Rema. Também nela e
nele e, como passava o dia todo trabalhando em seu em Nino. Não perguntava a Luis porque poucas ve-
escritório, não aparecia nunca nem deixava os do zes sabia. Mas a Nenê, que sabia sempre, jamais
andar de cima andarem sem que Dom Roberto perguntou. E assim tudo era simples, a vida se orga-
desse sua informação. Precisavam também comu- nizavapara Isabel com algumas obrigações a mais
nicar-se entre si. Rema, ocupada com os afazeres da quanto à ação, e algumas amenos quanto à roupa, às
casa, sabia bem o que se passava nos andares de refeições, à hora de dormir . Um veraneio de verda-
baixo e de cima. Outras vezes eram as crianças que de, como deveria ser o ano inteiro.
traziam a notícia a Nenê ou a Luis. Não porque ti-
vessem visto qualquer coisa, mas se Dom Roberto ... vê-Ia logo. Eles estão bem. Tenho um formicá-
os encontrava do lado de fora indicava a eles o para- rio com Nino e brincamos ejá estamosfazendo um
deiro do tigre e eles voltavam a casa para avisar. herbário muito grande. Rema manda beijos, ela
Acreditavam sempre em Nino, em Isabel menos, está bem. Acho-a triste, e também Luis, que é muito
porque era muito criança e podia se enganar. De- bom. Eu acho que o Luis tem alguma coisa, por isso
pois, como andava sempre com Nino grudado às estuda tanto. Rema me deu uns lenços de cores lin-
suas saias, acabaram acreditando nela também. E das, fnés vai gostar deles. Mamãe, isto aqui é lindo
isso, de manhã e de tarde; de noite era Nenê quem e eu me divirto com o Nino e con1Dom Roberto, que
saía para verificar se os cachorros estavam amarra- é o capataz e nos diz quando podemos sair e para
dos ou se havia restos de rescaldo perto das casas. onde, uma tarde quase que ele se engana e nos
Isabel viu que levava o revólver e, às vezes, uma manda à margem do riacho, nisto veio um peão
bengala com castão de prata. para dizer que não, a senhora precisava ver como
Não queria perguntar a Rema porque Rema pare- Dom Robertoficou aflito, e também a Rema, ela le-
cia ver nisso alguma coisa óbvia e necessária; per- vantou o Nino e ficou beijando ele, e me abraçou
guntar-lhe teria sido passar por boba, e ela tratava muito. Luis ficou dizendo que a casa não era para
de cuidar de seu orgulho diante de outra mulher. crianças, e Nino lhe perguntou quem eram as cri-
Nino era desembaraçado, falava e explicava. Tudo anças e todos riram muito, até Nenê ria. Dom Ro-
tão claro e evidente quando ele explicava. Mas de berto é o capataz.
noite, se desejava repetir essa clareza e essa evidên- Se a senhora viesse me buscarficaria alguns dias
cia, Isabel compreendia que as razões importantes e poderia estar com Rema e alegrá-Ia. Eu acho que
continuavam faltando. Aprendeu depressa o que ela ...
realmente importava: verificar antecipadamente se
podiam sair da casa ou descer à sala de cristais, ao Mas dizer à mãe que Rema chorava de noite, que
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a tinha ouvido chorar caminhando pelo corredor Amanhã a gente pode botá-Ia nojormicário para es-
com passos titubeantes, parar na porta de Nino, tudar.
continuar, descer a escada (estaria enxugando os O calor aumentava, às dez e meia não se respira-
olhos) e a voz de Luis, distante: "Que é que você va. As crianças ficavam com Rema na sala de jan-
tem, Rema? Não está bem?", um silêncio, toda a tar, os homens estavam em seus escritórios. Nino
casa como uma imensa orelha, depois um murmúrio foi o primeiro a dizer que estava com sono.
e outra vez a voz de Luis: "É um miserável, um mi- - Suba sozinho, vou ver você depois. Lá em
serável...", quase como quem comprova friamente cima está tudo em ordem. - Então Rema o pegava
um fato, uma filiação, talvez um destino. pela cintura, com um gesto que o agradava muitÍs-
SImo.
." está um pouco doente, seria bom que a se- - Conte uma história para a gente, tia Rema .
nhora viesse acompanhá-Ia. Preciso lhe mostrar o - Outra noite.
herbário e umas pedras do riacho que os peões me Ficaram sozinhas com o gafanhoto que as olhava.
trouxeram. Diga a Inês ... Luis veio lhes dar boa-noite, murmurou alguma
coisa sobre a hora em que as crianças deviam ir para
Era uma noite como ela gostava, com bichos, a cama, Rema sorriu ao beijá-Io.
umidade, pão requentado e pudim de sêmola com - Urso resmungão - disse, e Isabel, inclinada
passas de Corinto. Os cachorros latiam o tempo todo sobre o vidro do gafanhoto, pensou que nunca havia
na margem do riacho, um gafanhoto enorme pousou visto Rema beijar Nenê e um gafanhoto de um verde
de um vôo só na toalha e Nino foi buscar a lente, co- tão verde. Sacudia um pouco o vidro e o gafanhoto
briram-no com um vidro de boca larga e o fizeram se se agitava. Rema se aproximou para pedir que fosse
agitar para que mostrasse as cores de suas asas. dormir.
- Ponha fora este bicho - pediu Rema. - Te- - Jogue fora esse bicho, é horrível.
nho nojo dele. - Amanhã, Rema.
- É um belo exemplar - admitiu Luis. - Ve- Pediu que subisse para lhe dar boa-noite. Nenê
jam como ele acompanha minha mão com os olhos. estava com a porta do escritório entreaberta e pas-
É o único inseto que gira a cabeça. seava em mangas de camisa, o colarinho aberto.
Assobiou para ela ao passar.
- Que droga de noite - disse Nenê, atrás do - Vou dormir, Nenê.
jornal.
- Olhe: diga a Rema que me faça uma limonada
Isabel teria preferido decapitar o gafanhoto, dar- bem gelada e que a traga aqui. E você, depois, suba
lhe uma tesourada e ver o que acontecia. direto a seu quarto.
Deixe-o dentro do vidro - pediu Nino. - Claro que subiria a seu quarto, não via por que ele
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precisava mandar. Voltou à sala de jantar para dizer não era o caminhar de Rema. Quanto calor tinha
a Rema, notou que hesitava. Nenê nesta noite, bebera toda a limonada em gran-
- Não suba ainda. Vou fazer a limonada e você des goles. Isabel via-o bebendo da própria jarra
mesma leva. verde com rodelas amarelas oscilando na água sob o
- Ele disse que ... lampião; ao mesmo tempo, porém, estava certa de
- Por favor. que Nenê não tinha bebido a limonada, que estava
Isabel sentou ao lado da mesa. Por favor. Havia, ainda olhando ajarra que ela levara até a mesa como
nuvens de insetos girando sob o lampião de carbu- alguém que olha uma perversidade infinita. Não
reto, teria ficado horas olhando o nada e repetindo: queria pensar no sorriso do Nenê, seu caminhar até
Por favor, por favor. Rema, Rema. Gostava muito a porta como quem vai se dirigir à sala de jantar, seu
dela, e essa voz de tristeza inesgotável, sem razão lento retorno.
possível, a própria voz da tristeza. Por favor. Rema, - Ela é quem devia trazer. E você, eu mandei ir
Rema ... Um calor de febre subiu ao seu rosto, um logo para o quarto.
desejo de se atirar aos pés de Rema, de se deixar le- E não lhe ocorrer senão uma resposta tão idiota:
var no colo por Rema, uma vontade de morrer - Está bem gelada, Nenê.
olhando para ela, e que Rema tivesse pena dela, E a jarra verde como o gafanhoto.
passasse os seus finos e delicados dedos pelo cabelo
dela, pelas pálpebras dela ... Nino se levantou primeiro e propôs que fossem
EIltregava-Ihe agora uma jarra verde cheia de li- buscar caracóis no riacho. Isabel quase não dormi-
mões cortados e gelo. ra, lembrava de salões com flores, campainhas, cor-
- Leve-a. redores de clínica, irmãs de caridade, termômetros
- Rema ... em vidros com bicloreto, retratos de primeira co-
Achou que tremia, que virava as costas à mesa munhão, Inés, a bicicleta quebrada, o Trem Misto,
para que não visse seus olhos. a fantasia de cigana dos oito anos. Entre tudo jsso,
- Já joguei fora o gafanhoto, Rema. como um sopro entre as folhas de um álbum, ela se
sentia acordada, pensando em tantas coisas que não
Dorme-se mal com o calor pegajoso e tanto zum- eram flores, campainhas, corredores de clínica. Le-
bir de mosquitos. Duas vezes esteve a ponto de se vantou-se de má vontade, lavou com força as ore-
levantar, sair ao corredor ou ir ao banheiro molhar lhas. Nino disse que eram dez horas e que o tigre es-
os pulsos e o rosto. Mas ouvia alguém lá embaixo, ta va na sala do piano, de modo que podiam ir logo ao
alguém que caminhava de um lado para o outro na riacho. Desceram juntos, cumprimentando Luis e
sala de jantar, chegava ao pé da escada, voltava ... Nenê de passagem, que liam com as portas abertas.
Não eram os passos abafados e espaçados de Luis, Os caracóis estavam na encosta sobre os trigais.
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Nino se queixava da distração de Isabel, chamou-a uma brincadeira que fizeram na copa. Acabados os
de má companheira e a acusou de não ajudá-lo a fa- cigarros, Luis mandou Nino a seu escritório, Isabel
zer a coleção. Ela o via de repente tão criança, tão desafiou-o a encontrá-los primeiro e saíram juntos.
garotinho entre seus caracóis e suas folhas. Ganhou Nino, voltaram correndo e se empurrando,
Voltou primeiro, quando na casajá hasteavam a quase esbarraram em Nenê que ia ler o jornal na bi-
bandeira para o almoço. Dom Roberto voltava da blioteca, queixando-se por não poder usar o seu es-
inspeção e Isabel o interrogou como sempre. Nino critório. Isabel se aproximou pÇiraolhar os caracóis,
se aproximava devagar, ca}Tegando a caixa de cara- e Luis, esperando que ela lhe acendesse o cigarro
cóis e os ancinhos, Isabel ajudou-o a deixar os anci- como de hábito, viu-a distraída, estudando os cara-
nhos na varanda e entraramjuntos. Rema estava ali, cóis que começavam a aparecer e a se movimentar
branca e calada. Nino pôs um caracol na mão dela. devagarinho, olhando de repente para Rema, mas se
- Para a senhora, o mais lindo. afastando dela como um relâmpago, e obcecada pe-
Nenê já estava comendo, com o jornal ao lado, los caracóis, tanto que não se mexeu ao primeiro
para Isabel mal sobrava lugar onde apoiar o braço. grito de Nenê; todos corriam agora e ela estava sobre
Luis foi o último a sair do quarto, contente como os caracóis como se não ouvisse o novo grito sufo-
sempre ao meio-dia. Comeram, Nino falava dos ca- cado de Nenê, os murros de Luis na porta da biblio-
racóis, os ovos de caracóis nos bambus, a coleção teca, Dom Roberto entrando com os cachorros, os
por tamanhos e cores. Ele os mataria sozinho, por- gemidos de Nenê entre os latidos furiosos dos ani-
que Isabel tinha pena, e os colocaria para secar em mais, e Luis repetindo: "Mas estava no escritório
uma chapa de zinco. Depois veio o café e Luis olhou dele! Ela disse que estava no escritório dele!", in-
para eles com a pergunta de costume, então Isabel clinada sobre os caracóis esbeltos como dedos, tal-
foi a primeira a se levantar para procurar Dom Ro- vez como os dedos de Rema, ou era a mão de Rema
berto, embora Dom Roberto já lhe tivesse dito an- que a pegava pelo ombro, fazia-a levantar a cabeça
tes. Deu uma volta pela varanda e, quando entrou para olhá-Ia, olhar para ela uma eternidade, derro-
outra vez, Rema e Nino estavam com as cabeças tada por seu pranto feroz contra a saia de Rema, sua
juntas sobre os caracóis, como em uma fotografia de desfigurada alegria, e Rema passando a mão pelos
família, só Luis a olhou e ela disse: "Está no escritó- cabelos dela, acalmando-a com um suave apertar de
rio do Nenê" , ficou vendo como Nenê levantava os dedos e um murmúrio em seu ouvido, um balbuciar
ombros, enfastiado, e Rema, tocando em um cara- como de gratidão, de inominável aquiescência.
col com a ponta do dedo, tão delicadamente que
também seu dedo ganhava jeito de caracol. Depois
Rema se levantou para buscar açúcar, e Isabel foi
atrás dela conversando até que voltaram rindo de
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