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Sobre a “Oração da Gestalt”

Por Alina Purvinis (CRP: 06/1828-1)

A assim chamada “Oração da Gestalt”, um pequeno poema escrito por Frederick Perls, e considerada uma
síntese da sua visão sobre as relações interpessoais, tem sido, na minha opinião, muitas vezes mal
interpretada.
Tenho ouvido críticas a ela, afirmando que Fritz prega um individualismo exacerbado, enfatizando o “eu” e
o “tu”, e deixando de dar importância ao “nós”, á interdependência que existe entre todos os seres humanos.

EU NÃO ENTENDO A ORAÇÃO DESTA MANEIRA.

Ao contrário, considero que a posição afirmada por Perls é a de um respeito total pela individualidade, pela
aceitação das diferenças individuais e pelo reconhecimento e aceitação plenos dos limites inerentes a
qualquer relacionamento.
Explicitando melhor cada parte da oração:

“Eu sou eu”: o primeiro pré-requisito para qualquer relacionamento maduro e saudável é que eu saiba quem
sou, que eu reconheça e aceite todas as partes que compõem minha individualidade (tanto minhas qualidades
e recursos, quanto meus defeitos e limitações), e que eu assuma totalmente a responsabilidade por tudo que
sinto, penso e faço.

“Você é você”: o segundo pré-requisito (que depende do primeiro) é ser capaz de ver o outro, reconhecer o
outro como outro, diferente de mim. Temos a tendência de projetar nossos sentimentos, expectativas,
conflitos, significados, na outra pessoa, principalmente quando não temos uma consciência clara desses
aspectos. Interpretamos muitos comportamentos das outras pessoas como algo dirigido a nós, quando, na
maior parte das vezes, esses comportamentos têm a ver com o referencial delas, não tem nada a ver conosco.

“Eu faço minhas coisas, você faz as suas”: costumo comparar as duas pessoas envolvidas num
relacionamento com dois círculos. Se eles estão completamente separados, não existe relação. Se eles estão
superpostos, isso configura uma confluência (fusão, simbiose), em que a individualidade dos dois está
anulada. Se eles têm um espaço de intersecção, existe uma interdependência – cada um tem o seu espaço
individual, em que desenvolve seus próprios interesses e preferências, e existe o espaço comum aos dois, em
que fazem coisas juntos e compartilham experiências.

“Não estou neste mundo para viver de acordo com suas expectativas, e você não está neste mundo para viver
de acordo com as minhas”: quando iniciamos um relacionamento, podemos ficar extremamente preocupados
em relação ao que o outro espera de nós; algumas pessoas (especialmente as mulheres) parecem ter
desenvolvido “antenas” para captar as necessidades do outro e tentam satisfazê-las, na expectativa de assim
obter seu afeto e aprovação. No entanto, agir dessa maneira é uma armadilha, por várias razões: em primeiro
lugar, aquela pessoa única e interessante que despertou atração simplesmente desaparece, transforma-se num
“zero á esquerda”, extremamente desinteressante; em segundo lugar, a pessoa que se anula e dá demais cria
expectativas de receber muito também e se frustra – temos uma idéia errônea de que seremos tratados da
mesma maneira como tratamos o outro, e na verdade somos tratados pelo outro da mesma maneira que nós
nos tratamos; em terceiro lugar, a pessoa nunca vai se sentir realmente amada ou valorizada, pois não está
sendo ela mesma no relacionamento, está mostrando uma falsa imagem; e, finalmente, ninguém consegue
sufocar suas verdadeiras necessidades e sentimentos para sempre, então esse relacionamento é uma “ bomba
relógio”, aquilo que a pessoa faz para manter a harmonia, para evitar brigas, é exatamente o que vai levar á
ruptura.

“E se por acaso nos encontramos, é lindo. Se não, nada há a fazer”: este final, que ás vezes é considerado
pessimista, simplesmente afirma uma verdade. Ninguém pode se obrigar a querer aquilo que não quer, a ser
aquilo que não é, a passar por cima dos seus limites, a ceder onde não dá para ceder. E, por mais que duas
pessoas tenham afinidades e gostem uma da outra, elas jamais conseguirão ter as mesmas necessidades, na
mesma hora, com a mesma intensidade...O que podemos fazer é expressar diretamente para a outra pessoa o
que pensamos, sentimos e desejamos, e permitir que o outro também se expresse livremente. Colocando
assim as cartas sobre a mesa, podemos então tentar chegar a um consenso, a um acordo, cada um cedendo
um pouco, sem se anular. Às vezes, isso é possível; às vezes, o melhor consenso a que conseguimos chegar é
“Concordamos que discordamos...”

Se houver um afeto genuíno e um verdadeiro respeito e aceitação pela individualidade do outro, poderemos
continuar nos relacionando. Se, no entanto, constatarmos que o abismo entre as minhas expectativas e as do
outro é muito grande, talvez seja melhor reconhecer isso, nos despedirmos com gratidão e cada um trilhar o
seu caminho, com outros companheiros de viagem.

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