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UFRJ/IFCS/PPGSA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro,
2013
V768c VINCENT LANNES, Nina.
“Curadoria nativa” no “Museu do Outro”: Um estudo sobre a exposição “Maori.
Seus tesouros têm alma” e outros diálogos curatoriais no Museu do quai Branly./ Nina
Vincent Lannes. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2013.
xviii, 187 f.: il.; 29cm.
Orientadora: Els Marie Lagrou. Dissertação (mestrado) – UFRJ, IFCS, PPGSA, 2013.
Referências bibliográficas: f. 188 a 196.
1. Museu do Quai Branly 2. Maori 3. Arte 4. Objetos 5. Museu 6. Exposições 7.
Curadoria 8. Estética 9. Agência 10. Museologia. I. Lagrou, Els. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia. III. Título
Para Monique, Rogério e Tiago
Agradecimentos
O processo de pesquisa e escrita desta dissertação foi longo e por vezes árduo.
Ele não seria possível sem a ajuda de muitas pessoas.
À minha orientadora, Els Lagrou, que me ensinou tantas coisas ao longo destes
anos de trabalho, abrindo caminhos e permitindo que meus interesses e descobertas nos
guiassem nessa experiência. Agradeço também aos colegas do Núcleo de Arte, Imagem
e Pesquisa Etnológica (NAIPE), que ouviram e contribuíram para o desenvolvimento
desta pesquisa.
Aos meus pais, Rogério Lannes – pelo estímulo e pela leitura generosa das
muitas versões destes capítulos – e Monique Vincent – pela escuta e por me mandar
parar um pouco e ir à praia de vez em quando. Obrigada aos dois por me inspirar e me
ensinar, por acreditarem em mim sempre, e me apoiarem em todos os momentos, e por
tantas escolhas que fizeram me permitindo chegar até aqui. E continuar.
Agradeço imensamente a toda minha família, primas e primos, tias e tios, que
acompanham meu crescimento e minhas conquistas, contribuindo para minha formação,
e especialmente pela ajuda na viabilização do projeto de estudar na França. Aos meus
três avôs: Michel, Valdir e Wilson, pessoas tão diferentes e tão admiráveis, que me
proporcionaram tanto, em tantos níveis. E as minhas três avós: Elza, que me incentivou
a ter meu próprio “bom gosto” e a ver arte em tudo, Leuza, que conhecia as histórias e
as artes de todos os artesanatos, e Isis, que me ensinou a arte de falar francês.
Aos amigos e colegas de profissão, Ana Gabriela Morim, Diego Madi, Bruno
Cardoso, Maria Lima e Diogo Lyra, obrigada pelas trocas e por compartilharem suas
experiências comigo.
Agradeço ainda à Maria Silvia Hanna, por cuidar da minha mente, e Ana Paula
Carvalho, por cuidar do meu corpo. Ambos foram frequentemente confrontados com
seus limites neste processo.
Fazer trabalho de campo fora do Brasil foi uma decisão complicada. Algumas
pessoas foram fundamentais para a viabilização desta viagem. Agradeço a ajuda de
Aurélio Vianna e Justa Helena Franco, sem a qual eu não teria podido ir à campo.
Agradeço também ao Gérome Ibri, Ana Gabriela Morim, Maxime Échadour, Camila
Áreas, Luciana Heymann, Diaba Dialou e Marina Motta pela prontidão em encontrar
abrigo para esta pesquisadora, e a Ana Coutinho pela acolhida e pela prazerosa troca de
ideias.
Vincent, Nina. “Native Curatorship” at the Museum of “the Other”: a study on the
exhibition “Maori. Their treasures have a soul” and other curatorial dialogues in the
quai Branly Museum. Dissertation (Master in Sociology and Anthropology). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
This dissertation analyzes the exhibition “Maori. Their treasures have a soul”,
which took place at the Quai Branly Museum, in Paris, France, from September 2011 to
January 2012. The exhibition which presented the art and culture of the Maori, the
indigenous people of New Zealand, was characterized as the museum’s first “native
curatorship” exhibition and culminated with the repatriation to New Zealand of twenty
maori mummified heads which were part of French museums collections. The
exhibition marks the interaction between Te Papa Tongarewa Museum, which
advocates native control over maori objects taken to Europe by colonizers, and Quai
Branly Museum, an “ethnographic Art” institution, heir of colonial collections and of a
universalist notion of cultures and their artistic productions. Based on an ethnographic
description and an aesthetic analysis, the research aimed to explore the process of
attributing agency to an exhibition through curatorial practice. In order to do so, visual
and discursive elements present in the exhibition and mobilized for its conception were
articulated, stressing its role on the “dialogue between cultures” discourse proposed by
the French institution. To further illustrate this process, these elements are contrasted
with other curatorial proposals developed by the institution at other temporary
exhibitions and at its permanent exhibition, revealing the curator’s role – that appears
more or less explicitly – as the main mediator between public and cultural constructions
aesthetically translated.
Capítulo 2. 1
Figura 6: Cartaz da Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme no Museu do quai
Branly.2011. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
Figura 7: Vitrine da loja de lembranças do museu. 2011. Foto: Nina Vincent
Figura 8: Planta da Galerie Jardin no Museu do quai Branly. Fonte:
www.museeduquaibranly.fr
Figura 09: “Du noir à la lumière”. Te Putahitanga O Rehua – 2005. Reuben Paterson
Video 4’30”. Foto: Nina Vincent
Figura10: Pedra Mauri e legenda “touchez cette prierre!”, na exposição Maori. Leurs
trésors ont une âme. Foto: Nina Vincent. 2011.
Figura 11: “Hine Haitaka” (Pedra-para-tocar de Pounamu) Iwi (tribo) Poutini Ngai
Tahu, rio Arahua, Ilha do Sul. Pounamu (Jade da Nova Zelândia-Aotearoa). Pertence ao
Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
Figura 12: “PW1 (Tiki Remix)”. 2001. Saffron Te Ratana. Caneta e óleo sobre tela.
Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the
city.
Figura 13: Sala introdutória da exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto:
Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
Figura 14: Painel sobre o Tratado de Waitangi na exposição Maori. Leurs trésors ont
une âme. Foto: Nina Vincent.
Figura15: Molde do rosto de Wiremu Te Manewha. Entorno de 1885. Gottfried
Lindauer e Sir Walter Buller. Gesso pintado. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa,
NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 16: “Waka ama monoplace (piroga a remos) Surffriger”. 2008. Concebida por
Kris Kjeldsen, Northland. Fabricada por Aqua Fibrecraft, Napler, Baia de Hawke.
Resina de poliéster e fibra de vidro, alumínio, tubos de fibra de carbono. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto: Gautier Deblonde. ©museeduquaibranly
Figura 17: “Taurapa (Popa de canoa) proveniente da waka taua (canoa de guerra)
Kahutiaterangi. Madeira e concha de paua (abalone). (1800-1900). Pertence ao Museu
Te Papa Tongarewa, NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 18: Whare tupuna (casa de reunião ancestral), chamada Tokopikowhakahau.
Madeira de Totara, concha de paua, abalone. Por volta de 1872. Pertence ao Museu Te
Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Fonte:
www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 19 e 20: “Metaphi #4, Metaphi#5, Metaphi #6” de Darryn George. Óleo sobre
tela. 2006. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme. Foto: Nina Vincent
Figura 21: Sala Bastion Point na exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do
quai Branly, 2011. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
Figura 22: Instrumentos antigos de tatuagem (moko). Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 23: Instrumentos modernos de tatuagem (moko). Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 24: Painel Ta Moko, encomendado pelo antropólogo Augustus Hamilton,
esculpido por Tene Waltere, 1896. Madeira de totara, concha de paua (abalone) e
pintura. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 25: Vitrine com dois “Tekoteko” (escultura posicionada no vértice frontal do
telhado das casas de reunião). Madeira de totara, nacre. Entre 1500 e 1900. Pertencem
ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 26: Capa de plumas. Entre 1800 e 1900. Plumas e fibra de linho. Pertence ao
Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent
Figura 27: “Nga Puhihi o Nga Whetu – Rays of the stars” de Diane Prince. Capa de fios
de cobre. 2004. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 28: “Taranga” de 1982 e “Hine-Titama” de 1980, de Robyn Kahukiwa. Óleo
sobre painel de madeira. Foto: Nina Vincent
Figura 29: Flauta moderna, feita por Rangi Kipa, em Corian e concha de abalone, em
2000; Flauta antiga esculpida, feita de madeira, concha de abalone e fibras, entre 1500 e
1900. Foto: Nina Vincent.
Figura 30: Fotografia de John Miller da Marcha pela Terra, em Wellington, 1975. Foto:
Nina Vincent.
Figura 31: “Mesa posta de whare kai (sala de jantar)”. Mesa de cavaletes, assentos,
louça e decorações. Louça, talheres e decoração emprestados pelo comitê do Marae Te
Ore Ore. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto: Nina Vincent.
Figura 32: “Nêmesis” de Reubent Patterson. Purpurina e pó de diamante. 2005. Foto:
Nina Vincent.
Figura 33: “Pataka (depósito) de chefe, chamado Te Awhi. Madeira de totara e concha
de abalone. Esculpido por Te Metara em 1839. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa,
NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto:
Nina Vincent.
Figura 34: “Foreshore defender” (guardião do litoral) de Bett Graham. Ferro forjado.
2004. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont
une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent
Figura 35: Sala Marcha pelo Litoral e Fundos Marinhos. Foto: Gautier Deblonde
©museeduquaibranly
Figura 36: Vitrine com vários “Pa Kahawai” (acessórios de pesca). Feitos em osso de
baleia, abalone, pedra de jade e fibra de linho, entre 1800 e 1900. Pertence ao Museu Te
Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 37: “Koura (lagosta) dentro de um kete (cesto)”. Fotografia de Ian Batchelor.
Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina
Vincent.
Capítulo 2.2
Figura 38: Painéis cenográficos iluminados com padrões gráficos Maori. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Fonte:
www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 39: Vitrine mostrando remos modernos (entre 200 e 2008). Diversos tipos de
madeira e carbono. Fabricada por Tai Paddles, Raglan, Nova Zelândia. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 40: “Heitiki, Whakakitenga – Revelation” de Fiona Pardington, 2002. Pertence
ao Museu do quai Branly. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 41 e 42: Hei Tikis danificados fotografados por Fiona Pardington. Fonte:
museeduquaibranly.fr ©museeduquaibranly
Capítulo 3.1
Figura 43: “VEE” de Shane Cotton, 2006. Tinta acrílica sobre tela. Pertence ao Museu
Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011.
Figura 44: Ilustração representando Saartje Baartman, a Vênnus Hottentotte. Na
exposição “L’Invention du Sauvage”, no Museu do quai Branly, 2011. Fonte:
www.parispelemele.fr ©paris pelemele
Figura 45: Fredéric Mitterrand discursando na cerimônia de restituição dos toi moko.
Fonte: Radio NZ (http://www.radionz.co.nz/news/national/96666/return-of-toi-moko-
heralds-%27new-chapter-of-respect%27)
Figura 46: Mulheres maori em ritual de acolhimento dos toi moko. Foto: Laurent
Cipriani. Fonte: Art Daily
(http://www.artdaily.com/index.asp?int_new=53199&int_sec=2#.UP2egPKgSA4)
Figura 47: Passarela que dá acesso ao Plateau des Collections do Museu do Quai
Branly com a instalação “The River”, de Charles Sandinson. Julho, 2010. Esta obra foi
realizada graças ao apoio de Pernod Ricard, primeiro grande mecenas do Museu do quai
Branly. Foto:Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 48: Vista do Plateau des Collections, que abriga a exposição permanente do
Museu do Quai Branly. Foto:???. ©museeduquaibranly
Figura 49: “La rivière”, Plateau des Collections do Museu do quai Branly. Visita
contada com crianças deficientes visuais. 2008. Foto: Pomme Célarié.
©museeduquaibranly
Figura 50: Painel no Plateau des Collections com a planta da exposição permanente do
Museu do quai Branly, dividida por áreas geográficas/culturais. Foto: Nina Vincent
Figura 51: Plateau des Collections, zona Oceania. Objetos maori na exposição
permanente do Museu do Quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 52: Cartaz da Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme no metrô de Paris,
convidando o público para a exposição e para os eventos ligados ao Mundial de Rúgby
ocorridos no Museu do quai Branly em função da exposição. 2011. Foto: Cyril
Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura53: “Hei Tiki”, pingente antropomórfico maori feito de pedra de jade, pertencente
à coleção do Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
©museeduquaibranly
Figura54: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Oceania. 2006. Foto:
Nicolas Borel. ©museeduquaibranly
Figura 55: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona África, Museu do
quai Branly, 2013. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 56: Plateau des Collections do Museu do Quai Branly, zona Américas, Museu
do quai Branly, 2011. Foto: Claude Germain. ©museeduquaibranly
Figura 57: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Américas, 2008.
Foto: Pomme Célarié. ©museeduquaibranly
Figura 58: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Ásia, 2013 Foto:
Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 59: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, esculturas africanas, 2013.
Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 60: Cartaz da exposição “Primitivism” in 20th Century Art: Affinity of the tribal
and the modern. (setembro 1984/janeiro1985 – MoMA, Nova York, EUA. Esta imagem
é também a capa do catálogo da exposição, editado por seu curador, William S. Rubin.
Fonte: http://www.africapicasso.wordpress.com
Figura 61: Vitrine da exposição “Cheveux Chéris: frivolités et trophées”, no Museu do
quai Branly, apresentando cabeças reduzidas Jivaro. 2012. Foto: Gautier Deblonde.
©museeduquaibranly
Figura 62: Ilustrações míticas feitas por artistas Kwoma, da Papua Nova Guiné, para a
exposição “Rouge Kwoma” no Museu do quai Branly, 2008. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly
Figura 63: Vitrine com “legenda à duas vozes” da exposição Artistes d’Abomey.
Dialogue sur um Royaume africain, no Museu do quai Branly, 2009. A exposição foi
realizada graças ao patrocínio da Fundação Total e de Marie-Christine e Lionel Zinsou
da Fundação Zinsou. Foto: Antoine Schneck. ©museeduquaibranly
Figura 64: Cenografia da entrada da exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Gautier Deblonde. ©museeduquaibranly
Figura 65: Cartaz presente na exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Fanny Duval ©parispelemele
Figura 66: Cartaz presente na exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Fanny Duval ©parispelemele
Capítulo 3.2
Figura 67: Sala introdutória da exposição Qu’est ce q’un corps?, no Museu do quai
Branly, com instalação criada pela curadoria. 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 68: Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, no Museu do quai Branly,
cenografia de Reza Azard. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M Blondeau.
Figura 69: Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, no Museu do quai Branly,
cenografia de Reza Azard. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M Blondeau.
Figura 70: Cenografia de Pascal Rodrigeuz para a exposição La Fabrique des Images no
Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck. ©museeduquaibranly
Figura 71: Painel explicativo da divisão da exposição La Fabrique des Images no
Museu do quai Branly. Foto: Nina Vincent
Figuras Do ANEXO 1
Figura 1: Instalação com imagens do corpo na Europa Ocidental, na exposição Qu’est
ce q’un corps?, no Museu do quai Branly, 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 2: Vitrine com artefatos plumários ameríndios na exposição Qu’est ce q’un
corps?, no Museu do quai Branly, seção “Amazônia”. 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 3: Vitrine com duas esculturas: “Antigo ou Primitivo?”, na exposição Planète
Métisse: to mix or not to mix?, no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly
Figura 4: Códex Barbonicus, México Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?,
no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 5: Códex Barbonicus, México. Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?,
no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 6: Bandeira Voudu, Haiti. Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?, no
Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
Figura 7: Árvore de músicas mestiças na exposição Planète Métisse: to mix or not to
mix?, no Museu do quai Branly. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M. Blondeau
Figura 8: Máscara de transformação, América do Norte, na Exposição La Fabrique des
Images no Museu do quai Branly. Fonte: www.blissinthecity.fr ©blissinthecity
Figura 9: Tela de pintura aborígene australiana na Exposição La Fabrique des Images
no Museu do quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club
Enterprises 2009-2010. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 10: Pintura em casca de árvore, Austrália, na Exposição La Fabrique des
Images. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club Enterprises 2009-2010.
Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 11: Escultura do Reino de Abomey, África. Exposição La Fabrique des Images
no Museu do quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club
Enterprises 2009-2010.Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 12: Cruz Huichol, México. Exposição La Fabrique des Images no Museu do
quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club Enterprises 2009-
2010. Foto: Antoine Shneck ©museeduquaibranly
Sumário
1. Introdução _________________________________________________________ 18
2. A exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” ______________ 41
2.1 Visita guiada _______________________________________________________ 42
2.1.1 Whakapapa (identidade e interconexão) _____________________________________ 51
2.2.3 Um display político: controle cognitivo e objetos que ilustram textos _____________ 104
1. Introdução
A pesquisa que apresento nesta dissertação é resultado de uma reflexão acerca
das relações entre Antropologia e Arte. Tomamos como objeto central a exposição
“Maori. Seus tesouros têm alma”, exibida no Museu do quai Branly, na França. Parte-se
da premissa de que a análise desta exposição revela relações entre os atores envolvidos
em sua realização – pessoas, elementos materiais e imateriais – que nos permitem
propor articulações entre estas e um esboço mais geral do perfil deste museu. Para
tornar mais clara para o leitor a discussão que realizaremos, apresentarei primeiro o
Museu do quai Branly, o cenário onde se desenvolve esta pesquisa. Em seguida,
esboçarei alguns referenciais teóricos que contribuíram para a escolha do recorte
adotado e para a análise do objeto, explicitando as perspectivas adotadas e apontando os
assuntos, eventos, atores e relações que serão explorados ao longo da dissertação.
Nos arredores do cais Branly, vê-se prédios residenciais do século XIX , uma
grande concentração de sedes de instituições oficiais ou políticas, hotéis, lojas e
restaurantes de luxo. Há também outros museus, como o Musée d’Art Moderne de la
ville de Paris, o Palais de Tokyo, o Musée Rodin, mais à frente, na mesma margem do
rio, o Musée d’Orsay e, na margem direita, mais distante um pouco, o Musée du
Louvre, dois dos museus mais visitados no mundo1. O museu fica próximo a outros
pontos turísticos celebres e de grande visitação como os Jardins do Trocadéro, a
Esplanada dos Inválidos, a Avenida Champs Élysées e o Arco do Triunfo.
1
Segundo seus sites oficiais, o Musée d’Orsay recebeu 3 579 130 visitantes em 2012 e quase 10 milhões
de pessoas foram ao Musée du Louvre, garantindo sua permanência confortável no primeiro lugar
mundial em número de visitação.
19
Figura 1: Localização do Museu do quai Branly na cidade de Paris. Fonte: Google Earth
O Museu do quai Branly começou a ser projetado em 1996 pelo então presidente
francês Jacques Chirac, um amante da chamada “Arte Primitiva”, com a intenção de ser
“uma experiência estética incomparável ao mesmo tempo que uma lição humanista
indispensável para nosso tempo.”2. Seu projeto inicial consistia em fazer entrar as
“Artes Primitivas” no Louvre, o que acabou ocorrendo na forma de um pavilhão que
hoje é visto como um “representante” do quai Branly no Louvre3. A decisão de
construir um novo museu, inteiramente dedicado às “artes de povos não ocidentais”,
mobilizou muitos atores, como antropólogos, museólogos, colecionadores e ativistas,
envolvidos em sua concepção ou tornando-se críticos incansáveis do projeto.
Projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel4, o museu deveria se fundir com
seus jardins, criando uma espécie de floresta urbana conceitual. O jardim, que é também
uma de suas atrações, ocupa 18 000 m2, ou seja, 75% da superfície total do museu, e
possui uma grande diversidade de espécies vegetais dispostas de forma a dar a
2
Discurso inaugural do museu proferido por Jacques Chirac, então Presidente da República da França,
em junho de 2006.
3
O chamado Pavillon des Sessions é um espaço alugado e administrado pelo Museu do quai Branly que
abriga as “200 grandes obras-primas da arte não Ocidental”. A expografia, idealizada pelo colecionador
de Arte Primitiva, Jacques Kerchache, é minimalista, desprovida de contextualização, que singulariza e
valoriza aspectos formais e estéticos dos objetos. Foram selecionadas para o pavilhão predominantemente
esculturas antropomórficas, organizadas por áreas geográficas para as quais se apresenta apenas um mapa
por continente. No final do percurso há uma “sala de interpretação”, onde se tem acesso à postos
interativos com material audiovisual explorando aspectos formais dos objetos e algumas informações
sumárias sobre seus contextos de proveniência.
4
Vencedor de um concurso lançado pelo governo da França para a construção do museu, Nouvel é
conhecido por projetos arrojados como o Instituto do Mundo Árabe, em Paris, e a Torre Aigües, em
Barcelona.
20
Figuras 2 e 3: Fachada frontal do Museu do quai Branly. Fotos: Nicolas Borel ©museeduquaibranly
21
Há ainda o Teatro Claude Lévi-Strauss, com uma grande sala para 390 pessoas e
uma sala de cinema para 100, três salas de aula, três ateliês, um salão de leitura e uma
mediateca especializada em Antropologia e Arte, onde estão disponibilizadas 25.000
obras em livre acesso e dez vezes mais sob demanda, além de documentos e
iconografias. Esta confortável biblioteca ocupa 1.350 m2, tem vista panorâmica para a
cidade e a Torre Eiffel e equipamento eletrônico moderno patrocinado pela Sony.
5
Muito em voga entre as classes média e alta na França, esta forma de comércio pretende garantir, por
meio de um preço mais elevado, o pagamento de valores justos a artesãos e produtores em geral
originários de países do terceiro mundo, sendo uma das bases do desenvolvimento sustentável.
22
Figura 4: Distribuição e apresentação dos espaços do Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
A coleção do Museu Branly conta com mais de 300.000 obras, entre artefatos de
todos os tamanhos, instrumentos musicais, tecidos, joias, pinturas, fotografias
documentos, etc. Muitos destes objetos foram herdados do antigo Museu do Homem,
também em Paris, que fechou suas portas. Sua reserva técnica, no subsolo, ocupa 6.000
m2 e há ainda uma “reserva aberta”, no centro do prédio principal, exclusiva para a
grande coleção de instrumentos musicais. Nela, os objetos estão armazenados em
estantes dentro de um largo cilindro de vidro que pode ser visto por quem passa pelas
escadas, acompanhados de gravações de sons diversos emitidos de forma superposta em
volume baixo que causa surpresa naqueles que os percebem. Há um trabalho constante
de produção de imagens digitais a serem disponibilizadas na internet acompanhadas de
informações técnicas sobre os objetos. Um grande número de objetos já está acessível
online, mas o número continua pequeno se comparado à dimensão da coleção.
6
Até 2011 o espaço abrigava o Mezanino Multimídia. Esta nova ocupação do espaço faz homenagem à
fundadora do programa de mecenato do Museu do quai Branly. Sua cenografia, segundo o site do museu,
23
por escadas dentro da exposição permanente. Nestes espaços há lugar para outros estilos
de expografia relativamente independentes daquela usada na exposição permanente.
10
Iniciativa realizada em Montreuil, na região metropolitana de Paris em 2011.
11
http://www.atlantico.fr/decryptage/quai-branly-publics-populaires-peur-musees-paris-cultures-non-
europeennes-134293.html
12
“lá oú dialoguent les cultures”.
13
Esta é a “dupla missão” do museu, retirada do Dossiê de Presse – Le Musée du quai Branly”.
25
14
Estava no final da graduação em Ciências Sociais quando realizei um intercâmbio através do convênio
da UFRJ com a Université Paris X- Nanterre. Passei todo o ano de 2009 e o início de 2010 morando em
Paris, cursando disciplinas nesta universidade. Neste período, tive a oportunidade de frequentar o Museu
do quai Branly como visitante das exposições, como ouvinte de alguns cursos oferecidos em sua
Universidade Popular e ainda realizando levantamentos iconográficos e bibliográficos no acervo do
museu para uma pesquisa que desenvolvia no Brasil junto ao NAIPE (Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa
Etnológica) – UFRJ, sob coordenação de minha orientadora Els Lagrou.
15
Optei por traduzir livremente a integralidade das citações em língua estrangeira (que não possuem ou
não consegui consultar versão em português) para facilitar a leitura e o acesso ao conteúdo. Apresento em
notas a versão original das citações bibliográficas acadêmicas e de alguns nomes importantes. Textos de
exposição, catálogos, entrevistas e notas de colóquios serão apresentados apenas em português, tradução
livre minha.
26
16
Ambas foram apresentadas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro.
17
Aponta para a existência de três teorias definidoras: uma teoria “estética” que segue afirmando a
possibilidade de julgar um objeto por suas características intrínsecas ligadas à sua beleza; uma
“interpretativa”, que representa uma visão da arte “conceitual” pós-Duchamp, na qual objetos, mesmo
não sendo “belos”, têm valor artístico por terem sido produzidos com a intenção de ser Arte e
interpretados de acordo com ideias fundamentadas em uma tradição artística historicamente estabelecida;
27
possível entre arte e artesanato, ainda que exista sim um trabalho a ser empreendido na
análise das relações mediadas por tais objetos, chamando atenção para situações
especiais de uso de determinados objetos, para sua destinação conceitual e para a
apropriação de objetos de outras culturas pelo “mundo da arte” do ocidente. Olhando
para recentes trabalhos sobre as “artes” de outras culturas percebemos que nossa crença
na Arte como algo separado da vida cotidiana é uma ilusão já que “objetos condensam
ações, relações emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem,
se relacionam, se produzem e existem no mundo” (Lagrou, 2009, p.13). De um ponto de
vista analítico da Antropologia, isso é verdade também para culturas ocidentais.
O Museu do quai Branly será apresentado nesta pesquisa da mesma forma que se
apresenta para o mundo, sendo simultaneamente um Museu de Arte e um Museu
Etnográfico. Isso é pertinente do ponto de vista dos discursos que encontrei em campo e
de um ponto de vista analítico, já que esta própria distinção pode ser desconstruída em
uma análise propriamente antropológica dos objetos.
e uma terceira, “institucional”, que prioriza um olhar sociológico, permitindo ver como objetos que não
foram produzidos para ser arte podem também tornar-se por meio da cooptação e legitimação de pessoas
do meio artístico, como artistas, colecionadores e críticos.
18
Tenho em mente aqui especialmente os trabalhos de Els Lagrou sobre a arte Kaxinawá (2007, 2009), de
Marlyn Strathern sobre a construção da pessoa na Melanésia (2006) e de Joanna Overing sobre a estética
da produção entre os Piaroa (1991).
19
Cito estes dois autores, pois publicaram logo após a inauguração do museu livros completos tendo a
instituição como objeto central. Muitos outros se manifestaram em relação à instituição, abordando
diferentes aspectos, em artigos publicados em revistas e coletâneas que, em sua grande maioria,
aparecerão ao longo da dissertação.
28
coleções suscitaram muitas críticas à instituição e uma grande suspeita sobre suas
intenções.
20
Frases retiradas do “programa de outono” de 2011 do Museu do quai Branly, divulgado por correio
eletrônico e disponível no site e impresso dentro do museu.
29
21
International Council of Museums.
22
“contact zones”
23
“exhibitions tell us who we are and, perhaps more significant, who we are not”.
31
A ida dos objetos para os museus, saindo de seu contexto original, é chamada
pela museologia de musealização, que seria um “processo de valorização dos objetos”,
derivado de uma seleção daquilo que deve ser transferido de seu contexto para o
contexto dos museus24, dotando o objeto de um “status museal” que passa a vê-lo como
um “documento” (Cury, 2005, p.24). O conceito é recente, ainda que possa ser utilizado
para se falar de procedimentos realizados no passado. Atualmente, a definição desse
processo leva em conta a reflexividade necessária ao profissional de museu. Para Mário
Chagas (apud Cury, 2005, p.25), o “processo de musealização” é, “grosso modo” um
24
Atualmente, esse processo caracteriza também a valorização in situ, como nos casos dos ecomuseus ou
museus de território.
32
25
“ethnographic artifacts are objects of ethnography”.
26
“the paradox of showing things that were never meant to be displayed.”.
27
“The very absence of visual interest (in a conventional sense) points to ways that interest of any kind is
created and vested.”
33
“(...) fazem pelo mundo da vida aquilo que o mundo da vida não pode fazer por si mesmo.
Colocam juntos espécimes e artefatos nunca antes encontrados no mesmo lugar e ao mesmo
tempo e mostram relações que, de outra forma, não poderiam ser vistas.”.28
28
“do for the life world what the life world cannot do for itself. They bring together specimens and
artifacts never found in the same place at the same time and show relationships that cannot otherwise be
seen.”.
34
29
“There are as many contexts for an object as there are interpretative strategies”.
30
“process through which they are invested with personality and may have impact.”.
31
O livro Art and Agency. An anthropological theory de Alfred Gell foi publicado em 1998. A primeira
tradução da obra foi publicada em francês, no ano de 2009, quando morei na França. Consultei durante a
escrita da dissertação a versão francesa, por isso sigo citando sua data de publicação.
35
elementos agrupados para uma exposição, entre eles, os próprios objetos, alguns deles
trazendo reflexões mais produtivas para nossa discussão do que outros.
A forma como uma cultura se apresenta por meio de objetos, assim como
objetifica a cultura do outro e se relaciona com os objetos dele, não é neutra nem dada.
32
“L’affinité stylistique entre les oeuvres d’art fait écho à l’unité de pensée qui relie les membres d’un
groupe social.”
36
33
“a cultural artifact that articulates a producer’s visions, biases, and concerns”.
37
que exposições são um meio e um local para representação e esta será sempre
controlada por alguém e jamais neutra. Como aponta Baxandall (1991) no mesmo livro,
os agentes envolvidos na exposição – produtores de objetos, expositores de objetos
prontos e visitantes de objetos exibidos – entram em contato no “espaço entre o objeto e
a legenda”34 (Baxandall, 1991, p.37) e, eu diria, este é um espaço de atuação, de relação,
no qual a intencionalidade da curadoria interage com o mundo.
34
“In the space between objects and label”.
35
“political economy of display”.
36
“Exhibitions are fundamentally theatrical, for they are how museums perform the knowledge they
create”.
37
“and, in the process, set out the terms for action.”.
38
“display is an interface that mediates and thereby transforms what is shown into heritage”. Decidi
traduzir heritage por “tradição” pois acredito que o termo, central nos movimentos de resgate,
renascimento e preservação cultural e identitária presentes em várias partes do mundo, é o que mais se
aproxima daquele nos discursos de mesmo gênero no Brasil.
39
“display not only shows and speaks, it also does.” Apesar de a autora não citar o conceito de agência de
Gell, o que poderia ser explicado pelo fato de ambos os livros terem sido lançados em datas próximas, me
parece pertinente a relação entre os dois pensamentos.
38
mas intenso. Procurei visitar a exposição Maori com diferentes olhares, admirando os
objetos, tomando notas, lendo atentamente todos os textos e registrando em fotografias
a integralidade da exposição. Acompanhei alguns grupos de visita guiada, com
diferentes monitoras e visitantes de diferentes idades, atentando para o discurso
construído pelos guias e os comentários e reações emitidos pelos visitantes, além de
acompanhar a visita de pessoas conhecidas e amigos, estudantes ou profissionais da área
de Ciências Sociais40.
Neste capítulo, aponto para algumas “estratégias” que pude identificar nas
escolhas curatoriais, como a instauração de uma sacralidade em torno dos objetos e da
própria cultura maori, associada a certo misticismo que, sem dúvida, encanta os
visitantes deste museu. Este aspecto é reforçado pelas explicações sobre o estatuto dos
objetos na cultura maori e pelas relações visuais criadas entre os elementos expostos.
No entanto, o caráter fortemente político e combativo que também está presente na
exposição contribui para um afastamento desta esfera mística, deixando claro para o
visitante que aqueles objetos e aquela cultura estão ali para serem admirados e
respeitados, mas que o público estrangeiro não faz parte dela, reafirmando a diferença
cultural.
40
As reações à exposição que pude coletar foram especialmente aquelas registradas no livro de ouro da
exposição e na internet, onde pude encontrar comentários em blogs e artigos publicados pela imprensa.
Foi de grande ajuda o contato com a pesquisadora Gaëlle Crenn, que realizava um estudo de recepção de
público na exposição durante minha estadia.
39
41
Além das visitas à exposição, compareci ao colóquio de dois dias organizado pelo Museu do quai
Branly sobre o tema da autorrepresentação em museus, que contou com especialistas e pesquisadores do
tema em várias partes do mundo. Outras atividades foram propostas pelo museu em torno da exposição
Maori, como palestras, contações de estórias e mitos para crianças, encontros com artistas, apresentação
de dança tradicional no metrô e transmissão da final da Copa de Rúgbi no museu. Algumas das atividades
ocorridas em datas nas quais não me encontrava na cidade estavam disponíveis em vídeo ou foram
relatadas por pessoas com quem pude conversar.
40
Citarei algumas exposições mais reflexivas, nas quais o conteúdo e/ou a forma
escolhida para se exibir os objetos levam em conta tais processos contemporâneos do
fazer museológico. Certas exposições buscaram um diálogo concreto com populações
nativas e tentaram trazer este contato para a estética expositiva, construindo situações
bastante raras nesta instituição e contribuindo para a abertura de brechas na museografia
inicial e de caminhos para amenizar ou superar as críticas recebidas pelo museu,
partindo de dentro de sua estrutura. Muitas dessas estratégias de multiplicar os olhares e
discursos oferecidos no museu têm partido de antropólogos, apontando para novas
possibilidades de atuação destes profissionais em museus contemporâneos.
lutas políticas pelo projeto bi-cultural da nação42. Neste mapa estão marcadas as tribos
maori (iwi) e sua disposição no território. Do outro lado vemos um grande texto que
explica como serão localizados no tempo os objetos expostos ali, seguindo uma linha
temporal criada por Hirini Moko Mead para marcar a presença Maori na Nova Zelândia.
A cronologia segue uma metáfora do crescimento, em que o primeiro período, chamado
Nga Kakano (os grãos), seria o do povoamento humano inicial do território, o segundo,
Te Tipunga (crescimento) seria marcado pela diferenciação da cultura maori em relação
àquela de seus ancestrais do Pacífico, seguido do Te Puawaitanga (a florescência) que
marca a realização e desenvolvimento de uma sociedade dinâmica e sofisticada, e o
período mais recente, Te Huringa (a virada), caracterizado pelas mudanças, adaptações
e conflitos consequentes do encontro entre as sociedades maori e europeia.43
Este conceito serve para introduzir outro princípio, o de Mana Taonga, no texto
que apresenta a exposição como “uma exposição do museu neozelandês Te Papa
Tongarewa” o Museu Nacional do país, “guardião dos tesouros culturais e naturais da
nação”. Neste texto, o museu se apresenta assim:
42
Na língua maori, Aotearoa significa “longa nuvem branca”, que teria sido a forma pela qual a esposa de
um de seus primeiros habitantes, vindos de outras ilhas do Pacífico, chamou a ilha do norte da Nova
Zelândia. Hoje, todo o país, composto por três ilhas, é reconhecido por este nome. A exposição apresenta
o uso do nome sempre ao lado de “Nova Zelândia” como expressão do reconhecimento da igualdade
entre as duas culturas que compõem o país: os Maori, primeira nação a se formar no país, e as populações
que se seguiram à chegada dos europeus, chamados Pakeha, formando a segunda.
43
Esta tabela aparece na exposição e no catálogo. Sir Sidney Hirini Moko Mead, antropólogo, artista e
líder político Maori, desenvolveu esta cronologia em seu livro “Te Toi Whakairo: The Art of Maori
Carving”, publicado em 1961.
44
Todas as transcrições de textos presentes na exposição, assim como em seu catálogo, são traduções
livres feitas por mim a partir de suas versões em francês.
46
Para os Maori, estes taonga são mais que simples objetos. Eles representam um laço sagrado com
o passado – um passado que influencia o presente e que guia os Maori em direção ao futuro.
Reconhecendo isto, o Te Papa aplica o princípio de mana taonga (consciência das conexões): o
museu conserva os taonga em nome das iwi (tribos) e comunidades maori, que participam
ativamente da pesquisa, preservação, gestão e apresentação destes taonga. O Te Papa é, assim,
um local onde os Maori podem exercer o tino rangatiratanga (autodeterminação ou controle
Maori sobre todas as coisas Maori).”.
Estes painéis mostravam também algumas fotos que mostravam certos objetos
que veríamos mais adiante na exposição e imagens de outras exposições e atividades
realizadas no museu Te Papa. Além das fotos, um vídeo de apresentação da exposição
trazia imagens de cerimônias maori, manifestações políticas e muitas cenas gravadas no
museu Te Papa.
Nesta primeira sala, dois objetos são expostos, no centro do espaço. Iniciamos
com uma obra de arte contemporânea, uma projeção de vídeo partindo do teto para um
suporte horizontal feito de compensado pintado de branco que serve de tela onde vemos
uma sequencia aparentemente infinita de mandalas, estrelas e formas espirais luminosas
sempre em preto e branco feita pelo artista Reuben Paterson. Chamada “Do negro às
luzes”, a obra é apresentada em sua placa de identificação como “uma obra em torno da
fluidez, do saber e da energia do universo. A luz surge de um oceano de obscuridade
para formar e repetir modelos caleidoscópicos complexos”.
Figura 09: “Du noir à la lumière” de Reuben Paterson. Foto: Nina Vincent
por alguns segundos antes que minha mão fosse expulsa por várias pequenas mãozinhas
que se deliciavam com a ideia de poder tocar (ou esfregar, bater, cutucar...) um objeto
exposto num museu. Especialmente se tratando de uma “pedra mágica”, como contava
para um grupo de crianças a guia do museu que os conduzia pela exposição.
A pedra era mesmo a grande estrela da sala e todas as atenções se voltavam para ela e
para o prazer transgressor e potencialmente místico de tocá-la. Mas a inovação
sensorial, pelos dizeres da placa, se anunciava curta: “Você está convidado a tocar esta
pedra para religar seu mauri ao dela. Entretanto, pedimos que não toquem os outros
tesouros apresentados na exposição.”.
Figura 10: Pedra Mauri – “toque esta pedra!” Foto: Nina Vincent
Figura 13: Sala introdutória da Exposição Maori. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
“Não se deve falar de colaboração para depois considerar os tangata whenua (primeiros habitantes
da Nova Zelândia-Aotearoa) como conselheiros, um simples grupo de “stakeholders” à margem.
Voltemo-nos para os autóctones e utilizemos suas ideias audaciosas.” (Tariana Turia, 2008);
“Como para todas as pessoas que foram destituídas pela colonização, a esperança de recuperar a
autoridade ou rangatira da qual fomos por tanto tempo privados permanece tão forte no seio de
nosso povo quanto os laços que nos conectam a nossa terra” (Moana Jackson, 2009);
Escrito em tamanho maior, ao lado do painel, lê-se os dizeres do Dr. Papaarangi Reid,
da Universidade de Auckland:
51
“Tudo remete ao Tratado/o tempo todo./Você tem uma grande casa/cheia de espaço, e/você quer
um companheiro./Mas 153 anos depois,/nós temos o canil/lá fora, eles têm/a casa e estão/nos
45
cobrando aluguel./E se esqueceram/que tinham um acordo de empréstimo.”
Para os Maori, ele deveria também garantir a propriedade de suas terras, de seus
recursos e de sua autoridade tribal. A tradução do texto do Tratado deu margem a
grandes divergências, discutidas até os dias de hoje. Enquanto os Maori consentiam em
dar à coroa britânica o papel de governador, a versão inglesa lhe atribuía direito
soberano sobre a nação. A luta para que este tratado seja respeitado e tenha valor
constitucional continua sendo a principal bandeira dos líderes maori. Outra frase
presente neste painel, atribuída ao chefe tribal Nopera Panakareao em 1840 na ocasião
da assinatura do tratado, diz: “A sombra do território vai para a Rainha, mas a
substância permanece conosco”.
No próximo espaço, uma espécie de corredor pouco iluminado com paredes pintadas de
preto, entramos na primeira seção, que aborda a importância da genealogia para os
Maori. O painel que abre esta seção explica que, “na visão de mundo maori, tudo está
ligado – as pessoas, o meio-ambiente, os objetos animados e inanimados”. Esta
interconexão é o que constituiria o whakapapa. Diz-se também que ele se exprime por
meio das genealogias, ritos e histórias e estas heranças formam um saber que permite
aos homens definir quem são e como estão ligados uns aos outros e ao mundo que os
45
Apresento o original por tratar-se de um poema: “It goes back to the Treaty/all the time./You’ve got a
big house/plenty of room, and/you want a flatmate./But 153 years later,/we’ve got the kennel/outside,
they’ve got/the house and they’re/charging us rent./And they forgot/ they had a lease/agreement”.
52
cerca. “No seio da sociedade maori, o whakapapa descreve os laços estreitos entre uma
whanau (família), sua hapu (subtribo) e sua iwi (tribo). [...] Religa também uma pessoa
a sua waka (canoa ancestral) e a sua whare tupuna (casa de reunião ancestral). A arte
maori tradicional e contemporânea, assim como o ta moko (tatuagem) descrevem muitas
vezes essa ligação.”
Não havia outros objetos nesta sala, nada sobre o chão. Mas no canto, num nicho
recuado e iluminado apenas por um foco de luz baixa, vê-se um objeto protegido por
uma vitrine, uma cabeça com o rosto todo coberto por tatuagens, bastante realista.
Como explicava a placa de informação sobre o objeto, de difícil leitura sob aquela luz,
trata-se de um molde do rosto do grande chefe tribal, Wiremu Te Manewha, o ancestral
reverenciado por todas aquelas gerações de parentes que apareciam nas fotos anteriores.
“Este precioso molde representa para seus parentes seu whakapapa (genealogia)” diz a
legenda. Wiremu era um guerreiro e dirigente maori muito reconhecido, e seu status
pode ser percebido por seu moko (tatuagem maori). Diz-se que suas tatuagens ilustram
seu pertencimento tribal, sua ligação com determinada casa cerimonial e com a canoa de
seu ancestral, ligando-o a sua ascendência primordial com os primeiros habitantes de
Aotearoa. Este molde foi feito com seu consentimento, realizado pelo artista Gottfried
Lindauer na segunda metade do século XIX. O chefe teve suas tatuagens refeitas para
que se tornassem mais profundas e aparecessem com precisão no molde, chamado na
exposição de “máscara de vida”.
53
popular entre pessoas de todas as idades e regiões da Nova Zelândia. Um grande painel
escrito apresenta este primeiro subtema, chamado de “Waka Nunui – Barcos
excepcionais”. Conta-se como os primeiros habitantes da Nova Zelândia-Aotearoa
vieram da Polinésia oriental navegando em canoas de dois cascos e encontraram na ilha
muitas árvores propícias para a construção de suas embarcações. Até hoje, quando se
apresentam, os Maori costumam fazer referência ao nome da canoa em que vieram seus
ancestrais. “Operadas por centenas de guerreiros, elas eram investidas do prestígio e do
espírito dos membros e chefes da tribo.”
Figura 16: canoa moderna e vídeo sobre navegação na cultura maori. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
O texto conta um pouco de como este esporte e a construção das canoas foram
retomados no país e como sua prática representa “uma expressão de tino rangatiratanga
(autodeterminação), encorajando os participantes a tomar as rédeas de seu bem-estar
físico, mental e espiritual”.
Encerrando o tema, vemos, no centro do grande salão, uma proa e uma popa de
pirogas antigas, feitas de madeira e delicadamente decoradas com entalhes que formam
espirais e rostos com a língua pra fora e olhos brilhantes de abalone. A tahiu (proa),
além de ser uma belíssima escultura na parte frontal da canoa, “estava impregnada de
mauri (força vital) e tinha por missão indicar o caminho assegurando a segurança dos
passageiros. O rosto seria o de um humano, e as duas espirais atrás dele seriam, segundo
a legenda, “Ranginui (o pai-céu) e Papatuanuku (a mãe-terra), o casal de divindades que
está na origem da história de criação maori.” Quando as canoas não eram mais
utilizadas, proas como esta, rica em detalhes, eram conservadas com zelo e passadas de
geração em geração. A taurapa (popa) é apresentada como fornecedora de “proteção
divina”. Diz-se que os “motivos espirituais que ornamentam esta taurapa protegem e
inspiram os guerreiros à bordo da waka taua.” O conjunto de seus motivos, com a figura
de uma divindade protetora em sua base, “conecta os guerreiros à bordo da waka à seus
ancestrais e à história da criação maori”.
56
Uma estrutura enorme, ainda que incompleta, de uma casa de reunião é o objeto
de maior destaque deste grande salão. Grandes painéis de madeira entalhada de
coloração avermelhada compõem esta estrutura, que tem no centro o rosto de uma
figura ancestral. Os dois painéis que descem a partir do rosto formando a frente do
telhado seriam os braços do ancestral e a sustentação perpendicular do telhado sua
coluna, de onde partem as vigas laterais de sustentação que seriam as costelas (estas não
estão presentes na exposição). Essa explicação é fornecida por uma legenda que conta
57
Outros elementos que compõem as casas estão expostos, como uma série de
esculturas que são os “suportes físicos” de uma casa de reunião, os pou tokomanawa,
personagens ancestrais esculpidos na base da coluna central das wharenui. As esculturas
apresentadas foram produzidas em diferentes épocas, mostrando “a evolução e as
continuidades da arte de esculpir”. Dispostas sobre uma plataforma branca à meia
altura, sem proteção de vitrines, duas delas representam figuras ancestrais masculinas e
uma feminina. Além das explicações sobre sua função dentro da casa de reunião, há
também a simbologia de seus gestos. Os ancestrais masculinos têm o rosto tatuado,
portam um tiki ancestral (pingente antropomórfico), um deles tem seu órgão sexual
erguido por uma de suas mãos – “simbolizando o poder de procriação” -, o outro tem as
mãos sobre o ventre - “uma posição ancestral tradicional” que denota o “desafio ao
inimigo”. As figuras femininas não são caracterizadas como um ancestral específico,
mas como representantes dos “princípios femininos do mundo Maori” e têm uma das
mãos apoiada sobre o ventre “simbolizando sua aptidão feminina a dar à luz e nutrir”.
58
Figuras 19 e 20: “Metaphi #4, Metaphi#5, Metaphi #6” de Darryn George. Foto: Nina Vincent
os porta descrevendo seu whakapapa (genealogia), suas realizações e sua posição na iwi
(tribo).” E segue explicando a técnica particular usada tradicionalmente nas tatuagens
maori, que consiste na “arte de fazer incisões na pele e depois colori-las com pigmento
preto [...] servindo-se de ‘tesouras’ para gravar a pele tal como fazem sobre a madeira,
criam motivos que revelam a identidade daquele que os portam descrevendo sua
genealogia, suas realizações e sua posição na tribo”. Conta também o mito de origem da
tatuagem e aponta para o ressurgimento de interesse pelo Moko tradicional na
contemporaneidade. O texto também faz referência ao fato dos chefes terem assinado o
Tratado de Waitangi com reproduções de suas tatuagens.
Figura 25: Esculturas que compõem o telhado das casas de reunião foto: Nina Vincent
“Prestígio e Autoridade. Mana é uma força, ou qualidade espiritual, encontrada nas pessoas,
animais e objetos inanimados. O mana é transmitido graças ao whakapapa e adquirido por meio
das realizações de cada um. Reafirmando seu próprio tino rangatiratanga, aqueles que possuem
mana podem transmiti-lo, reforçando o mana dos outros. [...] estes objetos [exibidos aqui]
recebem seu próprio mana via seu produtor, seus laços tribais, sua significação simbólica e os
eventos importantes aos quais estão associados. A exposição Maori, seus tesouros têm alma,
explora a influência do mana sobre as formas tangíveis e intangíveis dos taonga (tesouros
pessoais), sobre as relações dos homens com estes taonga e sobre as relações mantidas entre eles,
seus tupuna (ancestrais) e as gerações futuras. (...)”.
Figura 27: “Nga Puhihi o Nga Whetu – Rays of the stars” de Diane Prince (Capa de fios de cobre) Foto: Nina Vincent
O segundo tema abordado na seção “Mana” é Te Reo Maori, a língua Maori, que
“possui seu próprio mana (prestígio e autoridade), [...] É um taonga (tesouro) único que
requer cuidado e proteção”. A prática falante desta língua declinou fortemente no fim do
65
Alguns objetos apresentam este “tesouro” imaterial, como uma grande moldura
em madeira decorada, dentro da qual há um texto impresso. Trata-se de uma tipografia
utilizada antigamente na impressão de bíblias na qual se lê em língua maori “Glória a
Deus nas alturas e paz aos homens por Ele amados”. A bíblia foi o primeiro livro a ser
traduzido em maori, em 1868. Na vitrine seguinte, vemos um bastão ricamente
decorado com entalhes e conchas de abalone, ao lado do qual está escrito “O peso das
palavras. O tokotoko (bastão de orador) é utilizado para pronunciar um whaikorero
(discurso formal). Ele simboliza o mana (prestígio e autoridade) da arte oratória maori.”
Estes discursos associam o encantamento, a genealogia, a história, a poesia, a sabedoria
proverbial e os comentários refinados e humorísticos que caracterizam o domínio desta
arte considerada o apogeu da te reo (língua maori). Os rostos esculpidos neste bastão
representam três ancestrais reputados por seu talento como chefes e oradores.
Há na parede lateral um extenso painel com uma cronologia desta “língua viva”
que “desempenha papel fundamental na vida cotidiana da Nova Zelândia-Aotearoa” e
que “na segunda metade do século XX conheceu um novo crescimento. Porém, seu
futuro nunca foi tão promissor.” Nesta cronologia estão marcadas com textos e imagens
as datas de importantes publicações em língua maori, períodos e fatos histórico-
políticos na trajetória da língua e de seu uso no país. São registros das primeiras
aparições da língua maori escrita, traduções importantes e eventos políticos que
marcaram o declínio e a retomada do uso da língua. A dimensão e localização do painel,
associadas à luz baixa empregada nesta parte tornavam sua leitura integral difícil e, pelo
que pude notar, bastante rara entre os visitantes.
Seguindo a diante, passava-se pelo terceiro tema da seção Mana – “Vozes fortes:
figuras femininas”. Aqui se via pinturas de estilo realista, realizadas por Robin
Kahukiwa nos anos 1980, representando mulheres em situações mitológicas, cujas
narrativas e simbolismos são explicitados detalhadamente nas legendas. Há também um
livro, exposto dentro de uma vitrine, que conta mitos da cosmologia maori tendo
mulheres como personagens principais “diferente das transcrições orais que datam do
século XIX, nas quais as mulheres têm apenas papeis de figurante”.
Outro tema abordado é “Taonga Puoro: a música dos deuses” que traz os
instrumentos musicais. As legendas explicam a origem mitológica não só dos
instrumentos – descendentes do casal ancestral que deu origem ao mundo – mas da
própria música: “Ranginui [o pai-céu] deu origem à melodia (um dos sentidos da
palavra ‘rangi’ é melodia) e os batimentos do coração de Papatuanuku [a mãe-terra] dão
o ritmo”. Também por meio de textos, somos informados que “os próprios instrumentos
possuem um mana que vem dos deuses e que são encarnados nas formas tradicionais”.
Estas “formas tradicionais” são as ornamentações feitas sobre os instrumentos,
sobretudo flautas, cujos desenhos e sons são descritos nas legendas.
A importância da música maori vem também de sua ligação com a língua maori.
As canções teriam sido um dos elementos de maior resistência no uso dessa língua. Elas
67
Figura 30: Fotografia da Marcha pela Terra (de John Miller, 1975). Foto: Nina Vincent
O primeiro objeto desta grande sala branca é uma enorme mesa de madeira,
apoiada em cavaletes, com dois grandes bancos de madeira, arrumada para receber uma
grande quantidade de pessoas, com pratos, talheres, copos, flores e muitas pedrinhas
espalhadas sobre a toalha de mesa. Atrás dela, fixadas na parede, algumas fotos
coloridas mostram pessoas em torno de mesas similares, reuniões familiares ou de
amigos. A “instalação”, chamada “Mil à mesa”, é uma mesa trazida de uma verdadeira
casa de reunião na qual mil pessoas foram servidas em 2004 na ocasião do encontro em
defesa do litoral e fundo marinho. Este tipo de mesa, fácil de armar, representa a
disposição das iwi (tribos) para a tarefa de alimentar muitas pessoas e “lembra a
importância da whare kai (sala de jantar) no seio dos complexos marea (centros
comunitários tribais)”. É aí que “percebemos claramente a expressão tangível e prática
do manaakitanga (respeito e hospitalidade)”.
70
Ao lado da mesa, há um quadro feito por Reuben Patterson, o mesmo artista que
realizou a videoinstalação da primeira sala da exposição. É uma tela toda coberta de
purpurina e poeira de diamante preta e branca que formam uma grande estrela no
centro, rodeada por outras menos e por raios curvilíneos que partem delas. A legenda
correspondente a esta obra fala do “laço com a terra” explorado por Patterson na ocasião
de sua residência artística na região de Otago, na ilha sul da Nova Zelândia. O motivo
caleidoscópio seria sua representação da paisagem da região e dos traços deixados por
seus ancestrais.
71
Após um vídeo sobre a necessidade de reconexão dos Maori com a terra, há mais
um grande painel com textos e fotos chamado “A transmissão de uma Herança”. Neste
painel diz-se que “A identidade e o bem-estar maori estão inextricavelmente ligados ao
meio-ambiente que os cerca.”. Em seguida fala do “Empobrecimento da terra Ngati
Whare”, uma região da ilha do norte que concentrava diversas tribos que, diante da
demanda crescente de madeira, passou a fornecer madeira nativa e recebeu espécies
exóticas, causando grande destruição e um embate entre governo, comerciantes,
ecologistas e membros das comunidades locais. Em 1985, o governo fez cessar a
exploração neste local e toda retirada de madeira de florestas nativas. A comunidade
passou a controlar o reflorestamento da área e a trabalhar em parceria com agentes
ambientais para adaptar as técnicas tradicionais de proteção aos problemas ecológicos
contemporâneos. As fotos deste painel mostram a riqueza das densas florestas nativas,
além de estudantes, líderes comunitários e famílias que vivem nesta área. Em uma delas
aparece um avô e um neto fazendo o comprimento tradicional maori onde se tocam com
o nariz.
Mais uma obra contemporânea, realizada por Bett Graham, é exibida aqui. Uma
escultura de parede, de cor terrosa, em formato triangular lembrando uma arraia,
chamada “Guardião do Litoral”. Na legenda, chama-se atenção para sua semelhança,
além da arraia, com um bombardeiro furtivo (um avião em forma de W, indetectável por
radar destinado a lançar bombas e até ogivas nucleares), caracterizando-se como uma
resposta da artista à polêmica Lei dos litorais e fundos marinhos de 2004.
Figura 35: Sala Marcha pelo Litoral e Fundos Marinhos. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
Alguns destes objetos levados à marcha pelo litoral e fundo marinho estão
expostos, como os taiaha (bastões de combate), feitos em madeira, com dois rostos
ancestrais em sua base que, olhando cada um em uma direção “representam a vigilância
do guerreiro”, e uma lâmina na outra extremidade. Alguns dos rostos esculpidos nestes
bastões têm a língua pendurada para fora (motivo chamado “arero”) que “atesta sua
dimensão espiritual guerreira”. Outros adornos compõem o bastão, como pelo de
cachorro e uma fita vermelha. A mau taiaha (arte marcial de combate com bastão) é
ensinada até hoje, para homens e mulheres, e os grupos guerreiros costumam vir na
frente das manifestações maori, como na marcha pelo litoral. As legendas contam
também a história dos proprietários destes bastões e seu papel na luta política maori
contemporânea.
São exibidos também camisetas, bonés e uma bandeira com o logotipo do tino
rangatiratanga, “produtos que se tornaram símbolos”. A imagem de fundo preto e
vermelho com uma mistura de onda e espiral no centro ficou famosa durante este
processo político. “(...) suas cores e seu motivo remetem a conceitos maori e ilustram
suas aspirações. O preto, elemento masculino, representa Te Korekore, a longa
obscuridade. Foi deste universo que surgiu a vida. O branco simboliza Te Ao Marama
(o mundo da luz) que reúne harmonia e equilíbrio. O vermelho, por fim, lembra Te
Whai Ao (o reino do ser em devir) e constrói uma metáfora de Papatuanuku (a mãe-
terra). O koru (espiral) simboliza a vida nova e a esperança de um belo futuro.”
75
Depois temos uma parte sobre a pesca, atividade constitutiva dos Maori. “Pescar
nessas águas era indispensável a sua sobrevivência e constituía uma atividade relativa à
crenças espirituais e valores fortes”, dizia o texto, que seguia descrevendo as técnicas
tradicionalmente empregadas pelos Maori na pesca. São exibidos utensílios tradicionais,
como uma armadilha para enguias, anzóis ornamentados com figuras ancestrais, feitos
de diversos materiais, como conchas, madeira, osso e fibra de linho, e fotografias de
pescadores trabalhando nas belas praias neozelandesas.
Figura 37: Fotografia lagosta no cesto (de Ian Batchelor). Foto: Nina Vincent
“conteúdo e forma, sendo que o conteúdo é dado pela informação científica e pela concepção de
comunicação como interação. A forma da exposição diz respeito à maneira como vamos
organizá-la, considerando a organização do tema (enfoque temático e seu desenvolvimento), a
seleção e articulação dos objetos, a elaboração de seu desenho (a elaboração espacial e visual),
associados a outras estratégias que juntas revestem a exposição de qualidades sensoriais.” (2006,
p.42).
tema em pauta e o novo conhecimento que a exposição está propondo.” (Ibid. p.42,43,
grifos da autora). Assim, do ponto de vista de profissionais de museu, os elementos são
estratégias comunicativas que devem potencializar o discurso museológico estruturado
na articulação entre os objetos museológicos e esses outros recursos no espaço. “A
articulação dos objetos (e dos outros elementos expográficos) – formando uma lógica
textual – estrutura a narrativa da exposição, a retórica do discurso e a argumentação pela
persuasão.” (Ibid. p. 46).
Certo que os elementos centrais dos quais falaremos são os mesmos anunciados
pela teoria museológica, inclusive porque pretendemos dar conta do produto de
profissionais que operam nesta lógica, a visualidade e o conceito embutido nela nos
parecem entretanto inseparáveis, pois os objetos e estratégias expográficas não são
apenas veículos de uma mensagem, e nem a mensagem deve ser vista como algo dado.
Tanto os recursos visuais quanto aquilo que se pretende transmitir conscientemente são
índices da agência da curadoria, mas essa agência deve ser complexificada e não
reduzida à mensagem explícita. A visualidade criada, acreditamos, materializa uma rede
bastante vasta de relações e fatores culturais, políticos, históricos, presentes ou ausentes
naqueles objetos e elementos e nas escolhas feitas pela curadoria. Ela condensa
relações, não apenas transmite mensagem.
A forma como a curadoria de “Maori. Seus tesouros têm alma” concebe esta
exposição é a materialização do conceito artístico que quer dar a ver e do discurso
cultural legitimado por sua posição dentro da Nova Zelândia. Concebemos esta
exposição como um “objeto de arte”, no sentido delineado por Gell (2009), por ser um
“artefato” que age no contexto relacional que é a vida deste museu que me proponho a
78
estudar. A Exposição Maori é um objeto por meio do qual a curadoria age, ela expressa
suas intencionalidades. Assim, todos os elementos contidos na exposição, sejam textuais
ou materiais, além da extensa rede de elementos associados para permitir sua realização,
formam uma situação artística na qual relações se concretizam.
A exposição foi montada na Galeria Jardim que ocupa 2.000 m2, um espaço
amplo e curvilíneo que acompanha o formato da fachada lateral do museu. Neste local,
200 objetos foram expostos, uma quantidade relativamente pequena para o espaço,
dividido em salas bastante amplas. A exposição contava, assim, com muitos espaços
livres, permitindo a circulação de um grande número de visitantes. Como nem sempre
estava cheia, os visitantes desacompanhados podiam visualizar vários objetos de uma
vez, sendo em alguns momentos atraídos mais por uns do que por outros, se deixando
levar por seus interesses, criando seu próprio ritmo de visita. Entravam, entretanto,
nesta espécie de caracol formado pela arquitetura do espaço que faz com que não seja
possível “pular” praticamente nenhuma parte do percurso, que passa a ter um sentido
obrigatório, uma entrada e uma saída.
Toda a exposição era dividida por paredes pintadas de branco, com exceção de
algumas paredes coloridas de vermelho, roxo, preto e azul, que complementavam ou
davam destaque à objetos expostos contra elas. Em todo o percurso, foram colocadas
algumas divisórias decorativas, painéis feitos de compensado nos quais foram
perfurados desenhos tradicionais maori estilizados, como as recorrentes espirais. Eram
iluminadas por dentro, produzindo um efeito de sombras nas paredes e no chão.
79
mqb
80
Figura 38: Painés com padrão gráfico maori. ©bliss in the city
dois conceitos aparecem como fundamentais para a compreensão da cultura maori, tanto
no passado quanto no presente.
Os objetos são apresentados na exposição como “tesouros que têm alma”, são
taonga, e são taonga porque têm mana. Vejamos então de que forma estes conceitos são
apresentados na exposição, por meio de textos, objetos e recursos expográficos,
relacionando esses elementos a outras interpretações e análises dos mesmos termos
feitas por alguns autores que exploraram sua dimensão cosmológica, politico-cultural e
as visualidades criadas em torno deles.
a Dádiva” ((2003 [1950])47. Mauss procurou compreender o conceito de mana por lhe
parecer central na concepção de magia e na visão geral de mundo tanto da Nova
Zelândia quanto de praticamente todas as sociedades polinésias e melanésias. Em sua
análise, depara-se com a complexidade desta “força”, de difícil definição.
47
Ambos os textos foram publicados em português em 2003 no livro Sociologia e Antropologia, tradução
da edição francesa de 1950. O “Esboço de uma teoria geral da magia” foi extraído de Anné Sociologique,
[1902-03] 1904; o “Ensaio sobre a dádiva” foi extraído de Année Sociologique, [1923-24] 1925. Seguirei
citando a edição brasileira, que consta na bibliografia.
83
religioso e mesmo valor social [...] A posição social do indivíduo está em razão direta
da importância de seu mana” (Ibid. p.143).
As linhagens são tão importantes para a cultura maori que cada pessoa deve ser
capaz de reconstituir sua ascendência até os primeiros polinésios que ocuparam a ilha. O
mito fundador do povo Maori da Nova Zelândia - amplamente aceito hoje enquanto
História oficial - é contado textualmente nesta mesma seção, relatando a chegada de
navegadores polinésios em sete canoas. Cada uma destas canoas deu origem a uma tribo
e a partir daí se constituiu o povo Maori. Ao lado desse texto há uma enorme canoa
84
moderna, feita de fibra de vidro e aço, decorada com motivos tradicionais maori,
exaustivamente explicados e decodificados na legenda. Do outro lado da sala vemos os
fragmentos de canoas antigas e, ao lado, vários remos, desde muito antigos aos mais
modernos. Cada um deles é associado a pessoas importantes que os utilizaram, sejam
chefes ou campeões de navegação em pirogas modernas, modalidade na qual os
neozelandeses são grandes expoentes.
Esses remos não são, poderia se dizer, exatamente o que se espera ver em um
museu de arte, apesar de suas claras potencialidades estéticas. Mas também não estão lá
apenas como artefatos contemporâneos representativos de uma cultura. Estão ali pois,
enquanto objetos utilizados em situações e por pessoas importantes, materializam mana.
Esta questão nos remete à contribuição de Mauss para a Antropologia da Arte. Foi entre
os Maori (e outras sociedades do Pacífico) que Mauss identificou uma relação entre
pessoas e objetos diferente, que o permitiu questionar a validade mais geral desta cisão
ontológica. Para a Antropologia da Arte, especialmente em Gell, é justamente a ideia de
que não há nada intrínseco em um objeto que faça dele um “objeto de arte”, mas sim seu
papel em situações relacionais, que lhe confere capacidade de ser um agente, o que faria
do objeto um elemento importante para a compreensão das relações desenvolvidas em
tal situação.
85
Nesta exposição, vemos claramente que a valorização dos objetos (afinal foram
escolhidos para estar ali, compondo uma exposição em um museu importante) não
advém somente de propriedades intrínsecas como beleza ou complexidade. Parece
coerente com o que sabemos da cultura maori pela literatura antropológica que sejam
expostos objetos de importância relacional, objetos que carregam mana, seja por seu
material, por aquele que os fabricou, por seu proprietário ou ainda pelas situações em
que esteve presente.
Mas não é somente pela origem mitológica ancestral de seu material que o hei
tiki é dotado de mana. Na exposição Maori, os hei tiki são apresentados como
“tesouros”. Na parte que apresenta “tesouros pessoais”, um hei tiki aparece posicionado
dentro de uma “caixa de tesouros”. Essa caixa de madeira é ricamente decorada com
entalhes em espiral e exibida aberta, de modo que se possa ver seu conteúdo. Dentro
dela estão: duas penas, uma pluma, um par de pingentes de orelha feito de dentes, dois
48
Versão resumida do mito, que pude ouvir oralmente em duas ocasiões e ler no catálogo da exposição.
87
pequenos pingentes de jade, um pente e um pingente hei tiki. Esses objetos, tipicamente
encontrados em caixas de tesouro, são considerados sagrados (tapu) e estão associados à
cabeça de uma pessoa de grande status (Smith, 2011).
Quando observamos o hei tiki dentro desse esquema visual criado para a
exposição olhamos para ele como um objeto que tem “algo a mais”. Não é apenas um
artefato etnográfico, sobre o qual podemos consultar a legenda para saber a tribo à qual
pertence, em que data foi produzido ou coletado e o que sua forma representa - um é a
“representação de um ancestral”, outro é um “híbrido de corpo humano e cauda de
animal marinho”, etc. Não é tampouco apenas um objeto bonito, a ser apreciado por
suas qualidades formais e dificuldade técnica, ainda que a coloração verde da pedra de
jade seja atraente e que muitos possam ter imaginado a dificuldade de se esculpir em
dimensões tão reduzidas um material tão resistente, além de ouvir no áudio-guia
informações sobre “seus olhos, sempre grandes e bem redondos, adornados com
conchas abalone ou com cera vermelha, que exprimem seu conhecimento e seu poder”.
Mas o que seria então esse “algo a mais”, essa “alma dos objetos”? A forma
como os objetos são apresentados contribui para uma estratégia dupla: mostrar que são
objetos importantes para a luta política maori por terem sido feitos ou pertencido a
pessoas importantes e participado de situações históricas marcantes, evidencia seu
estatuto como expressões de valores que continuam guiando o povo maori nos dias de
hoje e que legitimam o direito de autodeterminação desta cultura. Para marcar a
singularidade destes valores, a exposição ressalta, por meio de explicações e das formas
escolhidas para a apresentação dos objetos, seu caráter de conexão ancestral, de
88
portador de mana. Eles ganham então outro status, que vai além da noção de ornamento,
especialmente se contextualizados na noção maori de taonga. O conjunto de recursos
expográficos nos faz ver o caráter “místico” do objeto apresentado.
Para compreender esse caráter obrigatório, Mauss investiga que força existe na
coisa dada que faz com que seja retribuída. Os presentes trocados seriam os taonga. Em
algum momento, Mauss chega a nomear essas coisas trocadas de talismãs, palavra que
não aparece na exposição Maori, mas que se aproxima à ideia de tesouro. Segundo
49
“Objects that: relate to maori culture, history, or society; and was, or appears to have been
manufactured or modified in New Zealand by Maori; or used to be Maori; and is more than fifty years
old.”
89
Henare (2006, p.47), o termo em língua maori taonga corresponde a “um tesouro, algo
precioso; daí, um bem ou objeto de valor”50.
A autora afirma que taonga pode ser tanto uma arma feita de osso de baleia ou
uma planta nativa, quanto um conhecimento – “distinções entre o que é material e o que
é efêmero não são relevantes aqui. Nem ideias sobre entidades animadas versus
entidades inanimadas” (ibid.) E acrescenta os exemplos: “mulheres e crianças podem
ser trocadas como taonga, e certos taonga como capas de tecido são muitas vezes
portadas como ancestrais ou instanciações do efeito do ancestral”51 (Henare, 2006,
p.47). Assim como Mauss (2003, p.191) já havia dito que “O que eles trocam não são
exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente.
São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras (...)”.
Ao investigar o que seria então o “espírito da coisa dada”, já que podem ser
coisas tão diversas e que o que têm em comum é o estabelecimento de um contrato
relacional que cria a obrigação da reciprocidade, Mauss ressalta que “Os taonga são [...]
fortemente ligados à pessoa, ao clã, ao solo; são o veículo de seu mana, de sua força
mágica, religiosa e espiritual.” (Ibid. p.197). E, inseridos no que chama de “sistema de
prestações totais”, conclui que “Os taonga e todas as propriedades rigorosamente ditas
pessoais têm um hau, um poder espiritual [...] ele é movido pelo hau de minha dádiva”
(Ibid. p.198). Por isso o proprietário da coisa seria obrigado a oferecê-la e o destinatário
a retribuí-la, porque o hau, que é o “espírito das coisas”, é fortemente ligado a seu
território, a seu dono, sua casa, é “nativo”.
50
“a treasure, something precious; hence an object of good or value.”
51
“distinctions between the material and the ephemeral are not relevant here. Nor are ideas about animate
versus inanimate entities; women and children may be exchanged as taonga such as woven cloacks are
often held as ancestors or instantiations of ancestral effect”.
52
“it is hau”.
90
Thomas (apud Gell, 2009, p.300) afirma que estas casas não devem ser
entendidas como “símbolos”, mas como “veículos da potência da coletividade. [...]
índice da vitalidade do grupo e da impotência dos outros, real ou não”53. A observação
de Thomas sobre a fusão das distinções entre função e significação, uso e expressão,
instrumentalização e simbolismo percebida nesta demonstração coletiva da eficácia
tribal influenciou Gell no desenvolvimento de sua teoria sobre o objeto de arte enquanto
índice de agência. As casas cerimoniais ou de reunião, enquanto objetos de arte que são
índices da agência tribal, aparecem disseminadas pelo território neozelandês no século
XIX, substituindo os meios guerreiros tradicionais empregados entre eles e contra os
europeus colonizadores. A construção de inúmeras casas de reunião impulsionava
escultores e pintores a se superar em relação às construções de seus vizinhos e rivais,
concentrando seu espírito competitivo nesta empreitada.
53
“des véhicules de la puissance de la collectivité [...] l’indice de la vitalité du groupe et de l’impuissance
des autres, réelle ou non.”.
91
Essa agência coletiva, posto que engloba os membros da tribo que passam a
“compor” o ancestral/casa, remete, enquanto artefato “tradicional”, algo retrospectivo,
objetifica uma memória, mas enquanto agente coletivo, é também um gesto político
prospectivo (Ibid. p. 305). A ação de construí-la visa um futuro, no qual ela deve agir
por meio de sua sofisticação enquanto exaltação dos ancestrais de determinada
comunidade e humilhar os membros de comunidades rivais, ameaçando-os pela própria
ação de produzir uma casa que pode ser potencialmente a ideal. Seu triunfo antecipado é
a intenção de seus produtores.
Para apresentar a língua maori, como vimos na parte anterior, alguns elementos
são associados, como um grande painel cronológico e alguns objetos. Na pequena sala
que exibia programas da Maori Television, podia se ver dois episódios de séries
voltadas para o público jovem, um cômico em que duas amigas praticam esportes e
interpretam um esquete bastante caricatural e outro com situações mais “realistas” ou
cotidianas em que os personagens misturam falas em inglês e maori, com legendas
embaixo para incentivar o aprendizado da língua; outro vídeo é um clipe da música
54
“Entrer dans une maison, c’est pénétrer à l’intérieur d’un esprit, d’une sensibilité. [...] Les maoris
situent l’esprit et la volonté dans les viscères. Entrer dans une maison, c’est donc entrer dans le ventre de
l’ancêtre et se laisser envélopper par as présence.”.
92
“Tangaroa”, 2007, de Tiki Taane, um vídeo em preto e branco que evoca a mistura entre
tradição e modernidade para uma música pop com influências de dub; por último, exibe-
se um clipe da música “Poi E”, uma canção em maori com tratamento bem
característico dos anos 80, um estilo funky com linhas de baixo fortes e batida marcada.
Da primeira vez que visitei a exposição, não compreendi muito bem este vídeo.
Quando fui acompanhada de uma pesquisadora que fez seu trabalho de campo
recentemente na Nova Zelândia, ela me explicou que o clipe era uma montagem de uma
música que fez muito sucesso nos anos de 1980 no país, lançado por Patea Maori Club
sendo a primeira música em língua maori a alcançar o primeiro lugar nos rankings de
músicas mais tocadas e permanecendo no topo das paradas por 22 semanas. Neste clipe,
produzido em 2010 para os créditos do filme “Boy” do cineasta Taika Waititi, as
imagens do clipe original, com a textura dos filmes da época, as danças de rua,
vestimentas e estética características e cenas de manifestações e danças tradicionais
maori, são misturadas a imagens extremamente engraçadas em que os personagens do
filme imitam o clipe “Thriller” de Michael Jackson, ícone da década de 80, misturando
sua coreografia com um haka, dança tradicional maori.
Este vídeo, que a princípio pareceu-me apenas hilário, acabou ficando marcado
em minha memória como uma expressão legítima e criativa deste renascimento cultural
maori e sua releitura contemporânea, pois seu olhar bem humorado, jocoso, sobre a
reconstrução da cultura maori passa forte impressão de sinceridade, espontaneidade e
vocação popular.
A sala de vídeos suscitava considerável interesse, seja por seu conteúdo ou por
oferecer uma das poucas oportunidades do visitante se sentar, descansar um pouco, e
entrar no mundo maori através de imagens em movimento. O público, mesmo sem
entender uma palavra do que estava sendo dito nos vídeos, costumava sentar por um
bom tempo nos banquinhos em frente à tela e sair, geralmente, rindo bastante e
parecendo apreciar o que vira. Porém, visitantes conduzidos por guias do museu eram
sistematicamente dissuadidos da ideia de entrar na salinha. Por vezes escutei uma das
monitoras dizendo “aqui tem alguns vídeos... são besteiras, coisas para crianças! E
seguindo adiante...”. Não compreendi bem por que motivo, além da óbvia falta de
tempo de uma visita guiada, aquele elemento não seria importante. Refletindo um pouco
mais e atentando para o tipo de comentários e escolha de “paradas” nas visitas guiadas,
93
esta fala contribuiu para uma impressão que já vinha tendo. A intenção era mostrar a
língua maori como um tesouro, uma “língua sagrada”, uma “língua viva”, mas viva à
custa de muita luta e devido ao seu espírito forte, a sua carga de energia, ao poder de sua
ancestralidade. Para reforçar esta visão, as mediadoras do museu francês pareciam não
optar por valorizar breves momentos em que a “cultura maori” era tratada com humor e
naturalidade.
O que se parece tentar transmitir na exposição é que o que está exposto são
objetos “sagrados” por terem participado de vidas e situações “sagradas”, importantes.
Como já vimos na teoria antropológica sobre os Maori e seus objetos, as coisas
envolvidas nos sistemas de troca maori não seriam, então, apenas objetos, matéria
inerte, e seria este aspecto que moveria os sistema de reciprocidade segundo a análise de
Mauss. “O presente [...] mesmo abandonado por seu doador, ainda conserva algo dele.”
(Mauss, 2003, p.198) “Donde resulta que apresentar alguma coisa a alguém é apresentar
algo de si.” (Ibid. p.200) Por isso, a transmissão da coisa “é um vínculo de almas, pois a
própria coisa tem uma alma, é alma” (Ibid.).
55
O nome da exposição quando foi exibida na Nova Zelândia era “E tu Ake: Standing Strong” e em Paris
foi modificado para “Maori. Leurs trésors ont une âme”, claramente mais “místico” do que “político”.
96
exposição. Mas, como aponta Henare (2005) a questão da tradução não remete somente
a problemas de comunicação linguística, evidencia incompreensões e diferenças
essenciais nas visões de mundo de europeus e maoris, especialmente em suas
concepções de sistemas de troca. A autora explora as divergências sobre os termos do
Tratado como exemplificação das distinções apontadas por Mauss nos sistemas de troca
europeu e maori, que seriam decorrentes de diferentes concepções de pessoa e coisas e
da ideia de posse.
Além da questão das trocas, a importância dada de fato pela coroa para o
documento também não foi compatível com aquela dada pelos chefes maori. Henare
mostra como o Tratado tinha suma importância, quase um caráter sagrado, em sua
própria materialidade. O texto escrito tinha uma relevância muito inicial para os Maori,
que começavam a ter contato com a tradição escrita através do trabalho de missionários.
Mas sua particular concepção de objeto fazia com que atribuíssem valor especial aos
livros, carregando muitas vezes um livro qualquer quando iam à igreja (Henare, 2006).
56
“to ‘protect [the] just Rights and Property’ of the Maori in return for ‘recognition of Her Majesty’s
soveraign athority’ over the land. The chiefs agreed to ‘cede’ to the Queen ‘absolutely and without
reservation all the rights and powers of Sovereignity’ wich the chiefs themselves possessed ‘over their
respective Territories [...]. The Queen then confirmed and guaranteed to them ‘the full exclusive and
undisturbed possession of their Lands ans Estate Forests Fisheries and other propertys... as long as it is
their wish and desire to retain the same in their possession. [...] The english version of the Treaty
illustrates what Mauss referred to as the ‘strict distinction ... between real rights and personal rights,
things and persons’, wich he considered to be expressed in the ‘rigour, abstraction and inhumanity o four
[European] legal codes.”.
97
Assim também o Tratado não era visto apenas como um conteúdo, tinha valor em si, era
a materialização do acordo de reciprocidade entre os chefes e a rainha.
Pode-se notar que isso é válido ainda hoje, quando vemos a fotografia do
documento original na Exposição Maori. Ele foi arquivado em 1877 e encontrado no
subsolo de um prédio administrativo em 1908, muito degradado por umidade e ratos. A
intensa mobilização em torno do documento e de sua significação nas últimas décadas
do século XX levaram a sua restauração e, desde 1990, ele se encontra exposto nos
Arquivos Nacionais de Wellington.
Muitos dos chefes tribais que assinaram o Tratado, o fizeram por meio da
reprodução de sua tatuagem facial (moko) no documento. Isso foi determinante na
compreensão que se teve do tratado, devido à agencia poderosa destas tatuagens. A
tatuagem é um dos elementos selecionados para ilustrar a parte sobre whakapapa
(genealogia). Este tema é bastante explorado na exposição e, de fato, é um dos
elementos da cultura maori mais reconhecidos mundialmente. Na literatura sobre os
Maori, a fascinação por suas tatuagens, feitas a partir de uma técnica única e que
chegavam a cobrir o corpo inteiro de uma pessoa, está sempre presente. Na exposição,
um grande painel de texto conta seu mito de origem e faz referência ao fato dos chefes
terem assinado o Tratado com suas tatuagens. Mas o que é mais enfatizado é a
persistência histórica da prática da tatuagem entre os Maori. Ainda que o método
tradicional de incisões na pele quase não seja praticado hoje em dia, este é um dos
elementos onde a ideia de continuidade é mais ressaltada.
“A cabeça é a parte mais tapu [sagrada] do corpo e as cabeças dos rangatira [chefes], ou pessoas
de grande status, intrincadamente tatuadas de forma a trazer o whakapapa, ou genealogia, para a
superfície de sua pele, estavam entre os objetos espirituais mais potentes que se poderia
encontrar. Ao desenhar as marcas de seu moko no Tratado, os chefes estendiam seu próprio
98
mana para o documento, fazendo dele uma instanciação de sua pessoa enquanto ‘face viva’ de
sua linhagem.”57.
Assim, bem como no caso dos livros, o Tratado passa a ser algo sagrado em sua
materialidade, uma vez que foi inserido no sistema cosmológico de trocas e linhagens
maori.
Apesar de uma grande ênfase nas tentativas de apagamento da cultura maori por
parte dos colonizadores e das perdas inestimáveis acarretadas por essa opressão, uma
das estratégias centrais da exposição era apresentar a cultura maori como continuo entre
o tradicional e o contemporâneo construindo uma imagem de “cultura viva”. Isso
aparece fortemente nos momentos em que objetos antigos e modernos são apresentados
não como contrastantes, mas como complementares, ressaltando suas características
comuns.
ideia de atemporalidade, de gestos ancestrais. Para todos os objetos que podem ser
classificados como “utensílios” há exemplares de diversas épocas, como os
instrumentos de tatuagem e os anzóis de pesca.
Logo na primeira sala, introdutória, vemos a “pedra mágica” que podemos tocar
e, ao lado dela, o vídeo de Reuben Pattinson que aparece como uma expressão artística
contemporânea que dá a ver esse universo mágico no qual vivem os Maori. Na parte
sobre a casa cerimonial, além de vermos a estrutura da casa tradicional, vemos dois
trabalhos de artistas contemporâneos, a vídeo-arte de Lisa Reihana e as telas de Daryn
George. Como mostrei, os dois são apresentados como obras que trabalham a noção de
entrelaçamento pela genealogia expressa pela arte da tecelagem tradicional. Ambas
aparecem logo após a casa tradicional, após termos visto imagens de diversas casas em
fotografias, com seus painéis de tecido no interior, casas mais antigas e outras
construídas mais recentemente, algumas mais simples outras mais ornamentadas e
coloridas. As legendas repetem expressões como “serve-se da imagem do tukutuku”,
“utiliza um vocabulário tradicional”, “faz referência à técnica tradicional”, etc.
Os mesmo termos são retomados na parte que apresenta capas de tecido, na qual
vemos capas antigas e modernas, apresentadas fora de ordem cronológica de produção,
com legendas que ressaltam a importância de se “perpetuar a técnica da tecelagem”
como maneira de reverenciar o mana dos ancestrais. Rigorosamente, já não estamos no
mesmo universo de objetos, já que as capas são uma coisa e os painéis que ornam as
casas são outra. Mas o que conecta os objetos é justamente a ideia da tecelagem,
explicada pouco a pouco por meio de cada objeto e que faz com que todo artefato que
deriva desta técnica seja uma materialização do entrelaçamento das pessoas e suas
linhagens ancestrais.
A figura que aparece mais vezes dentro desta estratégia é, sem dúvida, o hei tiki
(pingente antropomórfico). Além de aparecerem em fotografias, vitrines, dentro da
caixa de tesouros e adornando o pescoço de esculturas, suas apropriações na arte
contemporânea fazem dele um grande ícone da cultura maori nesta exposição,
contribuindo para a compreensão da importância que se deseja atribuir ao objeto e
mostrando a influência que sua imagem continua a ter. Simultaneamente, agrega esse
101
significado especial às obras de artistas maori contemporâneos, que, não fosse por essa
“conexão”, provavelmente não teriam seus trabalhos expostos nesse contexto.
Figura 40: Série “Heitiki, Whakakitenga – Revelation” de Fiona Pardington. ©bliss in the city
Figuras 41 e 42: hei tikis danificados fotografados por Fiona Pardington. Fonte: museeduquaibranly.fr ©museeduquaibranly
No catálogo, lê-se que sua abordagem do hei tiki mostra a noção de mana taonga
operando, ao confrontar a “tradição da natureza morta na fotografia e da fotografia
etnográfica” e o “dinamismo de sua conexão com o passado e o presente”. Em relação
com os outros objetos da exposição, especialmente os outros hei tiki apresentados, o
trabalho da artista aponta justamente para o “algo a mais” que povoa esses objetos. Seu
resgate destes hei tiki danificados pode ser visto como rejeição explícita à primazia de
um critério estético ao se tratar de objetos maori.
103
O percurso da exposição Maori parece ser uma mistura dos dois, já que o sentido
é obrigatório e o entendimento de uma parte depende de outras, uma fazendo sempre
referência às anteriores como na construção de um texto argumentativo. Mas esses
ciclos se repetem durante a exposição, como uma espiral, motivo gráfico tão presente
nos objetos maori, que, segundo as informações da exposição, é a imagem da criação do
104
mundo maori, quando a luz penetra entre o pai e a mãe fundadores separando-os e traz a
ideia de movimento perpétuo vivido por um povo que concebe “o passado à frente e o
futuro atrás”.
Por isso levamos em conta na análise realizada até aqui a integralidade dos
painéis de texto, tanto enquanto “momentos de leitura” quanto em termos de conteúdo.
De seu conteúdo podemos extrair a construção de um discurso, de uma narrativa, e sua
função no estabelecimento de relações entre objetos, entre objetos e imagens e entre
objetos e ideias. Associando essa dupla função, os textos da exposição apontam
claramente para uma ação de controle cognitivo. Apesar do tom místico criado para a
exposição em sua versão francesa, a solicitação constante de leitura, além da
complexidade do que era lido, demandava do visitante um acompanhamento racional de
apreensão de conhecimento proposto, expresso de forma mais narrativa do que
sensorial.
tudo, segundo a autora, afastou a antropologia dos objetos materiais. Grande parte dos
chamados museum studies, e mesmo dos material culture studies, articulam suas
reflexões em termos de objetos que são “lidos”, que “significam”, museus que
“simbolizam a identidade nacional”, exposições que “contam histórias”, “culturas que
falam” no museu ou exposições nas quais o “discurso” é mais ou menos democrático e
compartilhado.
O que a estética expositiva nos mostra é que estes objetos são tesouros maori,
são sagrados para eles. Somos afetados pela agência de um display político. A
dimensão de alteridade é construída sempre de forma atrelada à noção de “controle”,
expressa pelo tino rangatiratanga. Controla-se a apreciação estética por meio das
interpretações formais bastante precisas das legendas, deixando o visitante sempre a par
do quão especiais e particulares aqueles objetos são para os Maori, o quanto devemos
respeitar sua relação com o mundo e, de certa forma, o quanto não podemos pretender
fazer parte deste mundo nem imaginá-lo de formas diferentes daquela que nos é
oferecida.
107
Menciono agora esta tela, pois estes famosos “mokomokai” serão nosso ponto
de partida para abordar o “encontro cultural” ocorrido no Museu do quai Branly com a
recepção da exposição Maori. Não se mencionava a polêmica em torno dos mokomokai
em nenhum momento do percurso, mas muitas das perguntas que fiz a diversas pessoas
envolvidas na exposição Maori quando estive no Museu do quai Branly, ansiando por
explicações sobre os mais diversos detalhes da configuração expositiva, apesar de não
levaram a respostas específicas, apontavam constantemente para a importância
diplomática da exposição e para o fim de uma longa disputa jurídica entre França e
Nova Zelândia a respeito do repatriamento de alguns objetos. Estes objetos eram os Toi
Moko ou Mokomokai, crânios tatuados preservados pelos Maori. Trata-se de objetos que
transitaram por diversas categorias, muitas vezes superpostas, mediando diversos tipos
de relações, encontrando-se na origem do processo de realização da exposição Maori no
quai Branly.
58
“Dans une première phase, témoins d’une lignée, ils rejoignent les ancêtres mythiques de leur tribu
(iwi) dans les généalogies qui relient les vivants aux divinités (atua). [...] Ensuite, au temps des guerres
tribales [...] pour en faire des trophées de guerre qu’ils exhibent. Lors de cette deuxième phase, les
tribus cessent de momifier leurs propres ancêtres de peur que les précieuses reliques ne soient volées et
déshonorées. [...] en échange d’armes à feu, des Maori fournissent aux marchands des têtes d’autres
Maori.”.
59
A nomenclatura mokomokai é contestada, pois o termo se refere aos crânios preservados de escravos
cativos. Toi Moko é o termo mais genérico, utilizado devido à extensão da prática a outras categorias de
pessoas e também devido ao entendimento contemporâneo de que o escravo de alguém é sempre o
parente de outra pessoa, merecendo respeito (Vuille, comunicação pessoal, 2012).
111
grandes lutas do movimento político maori na Nova Zelândia. Porém, fora do país,
muitos outros crânios pertencentes a coleções públicas e particulares continuaram a ser
exibidos ao público, inseridos em um regime de tratamento e significação radicalmente
diferente daquele de seus produtores (parentes ou inimigos).
Quando ouvimos e lemos em todo canto que o Museu do quai Branly está
recebendo uma exposição com “curadoria nativa” é preciso parar para pensar o que isso
significa neste caso específico. Quem de fato concebeu esta exposição? Quem são “os
nativos”, “os Maori”? Além da reflexão sobre a construção de uma identidade maori
contemporânea, a afirmação de uma curadoria nativa envolve também um
englobamento dos sujeitos individuais maori. Evidentemente não foram todos e cada
maori que concebeu esta exposição. O curioso é que, para além da informação
facilmente obtida de que o curador dessa exposição foi “o Museu Te Papa”, não
consegui obter quase nenhuma informação a respeito das pessoas que compõem a
equipe responsável pela sua concepção60.
60
Nos créditos da exposição, a “curadoria” é atribuída ao Museu Te Papa Tongarewa. Abaixo, aparece o
nome de Magalie Mélandri, que trabalha na Unidade Patrimonial Oceania do Museu do quai Branly,
como “colaboradora científica”. Em seguida aparecem dois nomes de cenógrafos: Léa Saito e Massimo
Quendolo, tendo este último trabalhado em outras exposições do museu francês. Há os créditos às
empresas de iluminação, sinalização e montagem, e, por último, aparecem dez pessoas que trabalharam
na produção da exposição para sua versão francesa.
112
distingue dos critérios utilizados na História da Arte ocidental. Este anonimato seria o
resultado de diversas projeções ocidentais sobre as outras culturas, tais como a ideia de
que todas elas são regidas pela coletividade, negando-se assim o papel da criatividade
individual e, consequentemente, presumindo a falta de identidade individual.
62
Maori Arts and Crafts.
114
63
O termo foi criado por Api Mahuika durante o projeto de criação do museu Te Papa, nos anos 1990
(McCarthy, 2011, p.114).
115
Esse princípio adotado pela instituição permite que cerimônias sejam realizadas
dentro do espaço do museu, que abriga algumas casas cerimoniais, e também que
objetos de sua coleção saiam do museu para participar de cerimônias importantes que
ocorrem nos locais de encontro das tribos. Nesses casos, os objetos são “confiados à
vigilância” de membros de uma tribo e “usados por seus guardiões como a encarnação
viva de um passado ancestral” (Ibid.). O museu desenvolve assim uma relação bastante
próxima com as tribos maori no presente e contribui para a preservação da cultura
maori.
No museu do quai Branly, a visão geral que se tem dos objetos está bastante
distante daquela da Nova Zelândia. O Museu ocidental é um espaço laico. A dificuldade
da restituição, especialmente no caso da França, reside no fato de que objetos de arte ou
científicos são considerados como propriedade inalienável do povo francês. A cultura
ocidental preservacionista está baseada na crença de que objetos de arte e de uso
científico são universalmente considerados como tal e que esta categorização está acima
de possíveis usos que tenham tido em outros momentos. A tentativa de associar um
significado fixo ou classificar definitivamente um objeto é sempre arbitrária e esconde
as complexas relações nas quais ele se insere. Como afirma Kirshemblatt-Gimblett
(1998), a própria ideia de um artefato etnográfico remete no fundo a uma construção da
disciplina etnográfica sobre e pelos objetos que estuda e, “se neste processo os objetos
deixam de ser o que foram um dia, é uma questão aberta e importante” apontando
116
justamente para o fato de que “a resposta testa a alienabilidade daquilo que é coletado e
exibido”64 (Kirshemblatt-Gimblett, 1998, p.3).
64
“The answer tests the alienability of what is collected and shown.”.
65
Para uma versão ficcional impactante da história de Saartje Baartman, ver o filme Vénus Noire (“A
Vênus Negra”) de Abdellatif Kechiche, 2010.
117
66
De fato, existe na lei francesa um comentário sobre a possibilidade de algum resto humano tornar-se
parte de uma coleção patrimonial caso tenha sido “transformado de tal maneira que possa ser considerado
uma obra de arte” (Palman, Norman, 2011).
67
“The museu is not a religious space”.
118
ou estar em vias de, ou na esperança de um revival cultural. Tudo isso deve ser levado em conta,
mas sem ceder a um tipo de paternalismo, confinando outras pessoas a suas particularidades e
reservando o universalismo exclusivamente para nós por estarmos com medo de ser
‘politicamente incorretos’.”68 (Viatte apud Price, 2007:124).
“tem uma visão mais objetiva da cultura. Esta é livre de qualquer instrumentalidade [...], por isso
tem se tornado cada vez mais difícil defendê-la. [...] O argumento para devoluções de conteúdos
de museus para seus países de origem é uma rejeição, pura e simples, da tarefa do museu, que
consiste em mostrar o ‘Outro’ – o que quer dizer, por definição: fora de seu ambiente de
origem.”69 (Martin apud Price, 2007, p.125).
68
“France is both universalist and secular. We need to recognize that [museum Collections] belong to the
history of our own country, but also to cultures that may have disappeared, or be on the way out, or be
hoping for cultural revival. We need to take all this in account, but without giving in to a kind of
paternalism, confining other people to their particularities and reserving universalism exclusively for
ourselves because we are worried about being “politically incorrect.”.
69
“In France we have a more objective vision of culture. It’s free of all instrumentality [...], though it’s
becoming more and more difficult to defend... [...] the argument for returning the contents of museums to
their countries of origin is a rejection, pure and simple, of the museum’s calling, which is to show the
‘Other’ – which means, by definition: outside of its original environment.
119
Figura 45: Fredéric Mitterrand discursando na cerimônia de restituição dos toi moko. Fonte: radionz.co.nz
Figura 46: Mulheres maori em ritual de acolhimento dos toi moko. Foto: Laurent Cipriani. Fonte: artdaily.com
73
Le Monde, 23/01/2012.
74
Le Point, 23/01/2012.
121
É interessante notar, a partir deste caso, que apesar das discussões acadêmicas
girarem em torno da não legitimidade dos valores universalistas ocidentais projetados
sobre objetos de outras culturas e do necessário empoderamento de povos que sofreram
com processos de colonização, a questão da restituição de objetos, na prática, depende
de uma definição bastante genérica dos objetos. Apenas conseguiram deixar as coleções
francesas objetos que deixaram de ser vistos como “artefatos etnográficos” ou “arte”,
tendo sido recategorizados enquanto “restos mortais humanos”.
75
O contato com esta funcionária surgiu em decorrência do convite feito por Gaëlle Crenn, professora da
Université de Nancy, para que eu acompanhasse as entrevistas que ela estava fazendo para sua pesquisa
de recepção do público da Exposição Maori no Museu do quai Branly. Como a entrevista não foi
concedida à mim, diretamente, não cito o nome da funcionária. Os resultados desta pesquisa ainda não
foram publicados.
122
sistema de acolhimento da exposição Maori voltou a ser frisado, marcado pelo fato de a
montagem ter sido fortemente controlada pela equipe neozelandesa. Contou-me que,
como esta exposição já veio pronta para a França, o desafio da equipe francesa foi,
juntamente com a equipe da Nova Zelândia, adaptá-la ao espaço fazendo o mínimo de
modificações possível.
Para isso, o cenógrafo do Museu do quai Branly foi à Nova Zelândia visitar a
exposição original, no Museu Te Papa Tongarewa, e uma equipe deste museu
coordenou a montagem na França, uma equipe que “esteve muito presente e sabia
exatamente como queria que a coisa fosse montada, o que não é comum nesse museu,
mesmo no caso de outras exposições convidadas” dizia a funcionária. E reforçava “o
objetivo era realmente não alterar nada, ainda que a localização das obras, dos textos, a
articulação dos nichos, acabem tendo que ser adaptadas”. O foco na autenticidade da
concepção da exposição, no rigor da equipe neozelandesa em apresentar a exposição
segundo seus preceitos e na independência garantida à equipe pelo quai Branly era
repetidamente valorizado em diversas ocasiões.
A funcionária disse que os objetos trazidos para a exposição “são objetos que
têm muita energia e que devem ser tratados como pessoas. Quando todos
compreenderam isso, tudo correu bem!”. Apesar das distintas concepções culturais, a
convivência com a equipe maori já a fazia evocar os objetos enquanto sujeitos: “Os
tesouros foram muito receptivos e criaram uma atmosfera muito boa.” Segundo ela, o
que “fica é a experiência positiva da cooperação”, um encontro no qual conheceu
pessoas que se relacionam com “objetos vivos”, o que provocou uma identificação com
123
parte dos funcionários que trabalham com as coleções do museu, que têm sempre em
mente o caráter “sagrado” que várias peças têm para outras culturas, mas também criam
este caráter por meio de suas funções cotidianas e relação íntima com os objetos nos
bastidores da instituição. Esta experiência extremamente rica de troca cultural, de
encontro e superposição de valores, categorias e relações com objetos agindo na prática,
ocorreu longe da presença do público.
76
“[...] heritage, both tangible and intangible, is a form of group property that must be returned to its
place of origin [...].”.
77
“[...] have embarked on a global campaign to assert control over elements of culture that they consider
part of their patrimony.”.
125
agora é “uma criatura que tem vida própria”78 (Ibid. p.4), um recurso inalienável e
mesmo, de certo ponto de vista, uma commodity, uma mercadoria.
Pude perceber esta oposição entre objetivos locais e globais em diversos casos
apresentados no colóquio. Porém, chama atenção o fato de que o próprio Museu Te
Papa Tongarewa parece escapar a essa definição. Trata-se de um museu nacional, que
parece tentar combinar, ainda que paradoxalmente, os objetivos dos dois tipos de museu
delineados por Clifford. Ainda assim, este museu foi o único exemplo neozelandês
78
“[...] a creature that now has a life on its own.”.
79
S’exposer au musée: réprésentations muséographiques de soi. O colóquio ocorreu no Teatro Claude
Lévi-Strauss, no Museu do quai Branly, nos dias 29 e 30 de novembro de 2011.
80
Curiosamente, nenhum exemplo brasileiro constava nas apresentações.
81
Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 1996 e a pesquisa nele desenvolvida foi
apresentada pelo autor no colóquio “S’exposer au musée...” no Museu do quai Branly em 2011.
126
82
Sobre os museus tribais maori na Nova Zelândia ver Henare, 2005.
83
“discredited old arguments may lurk behind new words.”.
84
“The retoric of indiginous peoples movement [...] The initial assumption is that descendants of the
original inhabitants of a country should have privileged rights, perhaps even exclusive rights, to its
resourses. Conversely, immigrants are simply guests and should behhave accordingly. These propositions
are popular with extreme right-wing parties in Europe [...].”.
127
cultural. A realidade destes povos pode muitas vezes estar distante dos termos presentes
nas convenções da ONU e nas representações “românticas” das ONGs ecológicas que
generalizam sua perfeita harmonia com a natureza que faria deles seus legítimos
guardiões. Mas o fato de não corresponderem a representações feitas deles não quer
dizer que se deva retirar a possibilidade de direitos baseados em aspectos culturais e
reparação histórica.
O objetivo de Hanson era exemplificar os mecanismos por meio dos quais uma
cultura se inventa e cria, no processo, uma realidade. O autor afirma que a tarefa da
Antropologia é perceber de que forma interfere ela mesma neste processo e analisar os
processos de legitimação desta construção, lembrando sempre que se trata de um
processo seletivo e guiado por interesses. Apesar de estar em consonância com
trabalhos de diversos autores contemporâneos, o argumento de Hanson gerou grandes
polêmicas e reações explosivas, assim como o artigo de Kuper citado acima.
Clifford (1994) já apontava para uma objetificação da cultura por parte dos
próprios antropólogos, ao estudá-la como um objeto passível de ser possuído,
apresentando o pesquisador como um “colecionador de culturas”. Esse tipo de reflexão
sobre o próprio fazer antropológico foi o que levou a disciplina a questionar seus modos
de representação e construção da imagem do “Outro”, buscando caminhos mais
autorreflexivos, nos quais culturas são entendidas como produtos dinâmicos e
relacionais de sujeitos que a “imaginam”, inventando-as constantemente num processo
dialético (Gonçalves e Head, 2009). Vemos atualmente a antropologia se esforçar em
compreender os usos deste termo a partir de sua objetificação por parte dos “nativos”
sem perder de vista as diferenças entre essa versão e as desconstruções do conceito
realizadas em sua fase “pós-moderna” (Carneiro da Cunha, 2009). Este caráter dialético
da visão pós-moderna de cultura se estende à própria ideia de representação, uma noção
complexa que não teremos tempo de explorar mais profundamente. O que pretendo reter
desta discussão é que, finalmente, nem a representação feita pelos antropólogos, nem
aquela feita pelos próprios nativos e nenhuma representação cultural apresentada em um
museu será jamais completa e “verdadeira”, levando-se em conta que esta suposta
“realidade” já não é mais considerada algo acessível ou mesmo existente (Gonçalves e
Head, 2009).
de repatriação “que podem ter muito mais a ver com almejos contemporâneos do que
com uma correção do passado”85 (Henare, 2005, p.48). Ao contrário, sugere que “as
relações entre indígenas e europeus, incorporadas em seus artefatos que estão nos
museus, podem continuar a ser ativamente cultivadas e mantidas por meio de novas
trocas [...]”, como em certos casos de devolução de objetos. (Ibid.).
O caso da demanda de restituição dos crânios maori não foi o único episódio a
lançar luz sobre a controversa história da coleção do Museu do quai Branly. Como
vimos, no caso de objetos que são restos mortais humanos, a possibilidade de restituição
pode ser vislumbrada, ainda que com dificuldade. Outros objetos apresentam mais
obstáculos. Mas a restituição não é a única questão levantada. As origens das coleções
que hoje pertencem ao museu representam também as relações desiguais entre a França
e países não ocidentais que se reproduzem ainda hoje, nas quais os objetos
desempenham papel importante.
“(...) eu retenho o Museu do quai Branly como uma das perfeitas expressões destas contradições,
incoerências e paradoxos da França em relação à África. No momento em que este abre suas
portas ao público, continuo a me perguntar até onde irão as potências deste mundo na arrogância
e roubo de nosso imaginário. Somos convidados hoje a celebrar junto com a antiga potência
colonial, uma obra arquitetural incontestavelmente bela, assim como nossa própria decadência e
a complacência daqueles que, atores políticos e institucionais africanos, estimam que nossos
bens culturais estão melhor nos belos edifícios do norte do que sob seu próprio céu. O Museu do
quai Branly é fundado, de meu ponto de vista, sobre um profundo e doloroso paradoxo, a partir
do momento em que a quase-totalidade dos africanos, ameríndios, aborígenes da Austrália, cujo
talento e a criatividade são celebrados, jamais cruzarão suas portas devido à lei da imigração
seletiva.”86
O Museu do quai Branly nasce com o propósito de ser um local de diálogo, mas
desconectado de uma possibilidade de diálogo político, de alteração das posturas
colonialistas europeias frente aos outros continentes, especialmente suas antigas
86
(…) je retiens le Musée du quai Branly comme l’une des expressions parfaites de ces contradictions,
incohérences et paradoxes de la France dans ses rapports à l’Afrique. A l’heure où celui-ci ouvre ses
portes au public, je continue de me demander jusqu’où iront les puissants de ce monde dans l’arrogance et
le viol de notre imaginaire. Nous sommes invités, aujourd’hui, à célébrer avec l’ancienne puissance
coloniale une oeuvre architecturale, incontestablement belle, ainsi que notre propre déchéance et la
complaisance de ceux qui, acteurs politiques et institutionnels africains, estiment que nos biens culturels
sont mieux dans les beaux édifices du Nord que sous nos propres cieux. [...] Le Musée du quai Branly est
bâti, de mon point de vue, sur un profond et douloureux paradoxe à partir du moment où la quasi totalité
des Africains, des Amérindiens, des Aborigènes d’Australie, dont le talent et la créativité sont célébrés,
n’en franchiront jamais le seuil compte tenu de la loi sur l’immigration choisie”.
132
“Parece que o que se vê no Musée du quai Branly não é uma arte pós-colonial contemporânea
do terceiro mundo e muito menos uma arte que comenta a presença neste mundo do colonizador
[...] são as relíquias de um mundo desaparecido onde ‘dialogam culturas’ dos outros num tempo
mítico de antes do branco chegar. Um ilustre ausente neste diálogo das culturas é o próprio
homem do Ocidente [...] [que] vem ver, mas não é exposto.” (2008, p.221).
A ausência de menção aos processos políticos atuais pode ser vista como uma
continuidade de uma postura de valorização do “exótico”, do “Outro”, fortemente
marcada pelo olhar das vanguardas artísticas do início do século XX, especialmente
pelas escolas do cubismo e depois pelo dadaísmo e surrealismo. Os artistas deste
período, frustrados com o racionalismo europeu que fizera o continente mergulhar em
guerras, buscaram inspiração na produção artística de outros povos, especialmente na
África e na Oceania, para questionar dogmas formais ocidentais. Os traços, formas,
cores e motivos das culturas materiais com as quais começavam a ter contato por meio
de objetos trazidos por colonizadores, associavam-se à uma idealização bastante
genérica do “primitivo” como sendo aquele que não foi contaminado pelos processos
repressivos do Ocidente.
87
“Tous ce que j’ai besoin de savoir de l’Afrique se trouve dans ces objets.”.
88
“Cette démarche est radicalement étrangère à la démarche ethnographique.”.
89
Alguns artistas como Max Ernst iam mais longe na sua identificaçãoo e pesquisa do universo indígena
superando o primitivismo ingênuo que marca a visão da maioria dos Modernistas (Lagrou, 2008).
133
preconceitos de seu tempo. A arte primitiva é valorizada exatamente por encarnar aos
olhos dos artistas e escritores a alteridade absoluta, a antítese do Ocidente”90. Essa
atribuição de características consideradas imanentes aos objetos de arte primitiva é o
que lhe confere valor por transforma-los em “suporte material que permitiu o
desenvolvimento de uma mitologia interna ao Ocidente”91 (Ibid. p.329).
Se a prioridade era coletar objetos, ainda que de forma perniciosa, para que estes
pudessem ser vistos na Europa, e isso era mais importante que desenvolver um
conhecimento aprofundado sobre os produtores daqueles objetos, seu trabalho parece ter
tido sucesso e ser bastante reconhecido. Na exposição permanente do Museu do quai
Branly, o chamado Plateau des Collections, o nome de Leiris, assim como os de muitos
outros colecionadores, são os únicos que se pode ler. Numa imensa parede que ladeia a
escada que dá acesso ao andar inferior do museu uma infinidade de nomes estão
gravados. São os nomes dos colecionadores, patronos e donatários responsáveis pela
constituição da coleção do Museu do quai Branly e viabilização de seu projeto.
90
“Les avant-gardes partageaient largement les préjugés qui étaient ceux de leur temps. L’Art primitf est
valorisé précisement parce qu’il encarne aux yeux des artistes et écrivains l’altérité absolue, l’anthitèse de
l’Occident.”.
91
“support materiel permettant le développement d’une mythologie interne à l’Occident.”.
92
Trata-se da instalação multimídia “The River”, concebida por Charles Sandison.
134
Figura 47: Passarela que dá acesso ao Plateau des Collections do Museu do Quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci.
©museeduquaibranly
Figura 48: Vista do Plateau des Collections, que abriga a exposição permanente do Museu do quai Branly. Foto:.
©museeduquaibranly
135
Figura 49: “La Rivière”, o corredor que atravessa o Plateau des Collections, oferece informações táteis e em braile para deficientes
visuais. Foto: Pomme Célarié ©museeduquaibranly
No plano simbólico, possuir os objetos era possuir as culturas, por meio de sua
compreensão enquanto um todo coerente e objetivo (Clifford, 1994). Como mostra
Gonçalves (1996), a construção de uma história coerente e objetiva, assim como de
noções como a de “nação”, “cultura” ou “identidade”, transforma-a em um objeto de
desejo distante, algo que deve ser buscado, pois foi ou está sendo perdido, no processo
inexorável do “progresso”. No plano concreto, essa “retórica da perda” estimulava o
colecionamento de objetos fabricados por culturas que fatalmente desapareceriam, ainda
que, paradoxalmente, fossem estes mesmos colecionadores os responsáveis pelo suposto
desaparecimento delas por meio da repressão colonial e ambição civilizadora.
Muito já foi dito sobre o Plateau des Collections, que abriga a exposição
permanente do Museu do quai Branly, talvez por ilustrar tão bem as críticas feitas ao
projeto de concepção do museu, mas certamente também por ser o único elemento
analisável desde o início, e a maioria dos trabalhos de antropólogos sobre o museu foi
publicada quase imediatamente após sua inauguração. James Clifford (2007, p.30, 31) o
descreveu como um lugar onde “a dominação da arquitetura sobre o conteúdo é
extrema. Entramos no alto de uma longa rampa de acesso encurvada que mergulha
subitamente na obscuridade (semelhante à entrada de um parque temático) e emergimos
num mundo incerto, povoado por formas impressionantes, às vezes mesmo
misteriosas.”.93
93
“[...] la domination de l’architecture sur le contenu est extreme. On entre au sommet d’une longue
rampe d’accès incurvée qui plonge soudain dans l’obscurité (um peu comme a l’entrée d’une atraction
foraine [fun house] et émerge dans un monde incertain peuplé de formes frappantes, parfois
mysterieuses.”.
94
“caverne d’Ali Baba”.
95
“Labyrinthe sature”.
96
“trop sombre [...]. [...] une fantasie occidentale et conventionelle de la forêt tropicale.”.
97
“[...] d’un exotisme à l’occurence à la fois naïf et kitsch. [...] sépucrale [...] semi-ténèbres [...] les objets,
condamnés au mutisme [...] un éclairage entièrement artificiel, qui favorise le surgissement théatral de
certainess pièces e confere aux autres une présence fantomatique”.
137
que cobre o chão. O espaço da África é amarelo, o da Ásia é laranja, as Américas têm o
chão azul e a Oceania vermelho, todos em tons queimados criando um aspecto rústico.
Os espaços não são separados por divisórias e a forma de exibição dos objetos –
pedestais, vitrines, iluminação e formato das placas de legendas - praticamente não
difere. Esta configuração parece sugerir, como aponta Launay (2007, p.56), a intenção
de “simbolizar uma certa unidade do mundo, uma abertura das culturas, que se
encontram unidas em um mesmo e único espaço de exposição”98. As únicas partes
separadas do espaço são pequenas salas de exposição que ficam dentro dos cubos
projetados por Nouvel, aqueles que vemos do lado de fora, na fachada do museu. Estes
costumam ter iluminação bastante baixa e concentrar peças selecionadas de acordo com
alguma temática.
Figura 50: Planta da exposição permanente do Museu do quai Branly, dividida por áreas geográficas/culturais. Foto: Nina Vincent
Quando voltei ao quai Branly durante meu período de trabalho de campo, prestei
atenção particular à parte da Oceania, já que conta com objetos produzidos pelos Maori
da Nova Zelândia, aqueles que não foram utilizados para compor a exposição “Maori.
Seus tesouros têm alma”, já que esta foi toda montada com objetos vindos do Museu Te
Papa Tongarewa. Curiosamente, a coleção de objetos da Oceania é a maior do museu.
98
Le décloisonnement de la galerie symboliserait une certaine unité du monde, un décloisonnement des
cultures qui se retrouvent unies dans un seul et même espace d’exposition.
138
Um dos itens mais vistos na Exposição Maori na Galeria Jardim era, sem dúvida, o hei
tiki, pingente antropomórfico, reprodução estilizada do corpo de um ancestral. Alguns
destes pingentes estão entre os primeiros artefatos maori levados para a Europa99.
O hei tiki é um dos poucos objetos presentes na exposição Maori que pode ser
visto também na exposição permanente do Museu do quai Branly. O exemplar de hei
tiki no Plateau des Collections tem as dimensões da palma de uma mão e encontra-se
misturado a vários outros objetos expostos em uma vitrine vertical pouco iluminada,
sustentado por um prego contra um fundo preto e acompanhado de uma numeração que
indica a pequena legenda que o identifica como um pingente maori da Nova Zelândia do
início do século XIX, cujo produtor se desconhece, figurando apenas o nome do
colecionador a quem pertencia – Dominique de Vivant-Denon – antes de chegar ao
Museu de Artes da África e Oceania. Esta apresentação difere bastante de sua
onipresença no museu francês observada durante a exibição da exposição Maori, que
contava com um hei tiki no cartaz principal, cuja reprodução foi espalhada por toda a
cidade, em espaços publicitários do metrô e das ruas parisienses e nas fachadas do
museu. Exemplares de hei tiki de diversos tamanhos, além de sua imagem reapropriada
em diversas obras, povoam todo o percurso da exposição. O pingente verde figura
também em capas de livros e revistas, em cartões postais e ímãs vendidos na lojinha de
souvenires.
99
Quando o capitão britânico James Cook fez as primeiras grandes viagens de exploração pelo Oceano
Pacífico, no século XVIII, e chegou ao território que viria a ser a Nova Zelândia, marcando oficialmente
o primeiro encontro entre europeus e maoris, levou para a Inglaterra diversos objetos que havia trocado
com os nativos da região. Um deles especificamente, um pingente hei tiki de jade de uso pessoal do
capitão, foi oferecido por ele como presente, demonstração de amizade e gratidão ao Rei George III
(Henare, 2005, p.43).
139
Figura 51: Objetos maori na exposição permanente do Museu do quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
Figura 52: Cartaz da Exposição Maori no metrô de Paris. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
Figura 53: Pingente Hei Tiki pertencente à coleção do museu. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
quais os objetos foram obtidos, por compra, transferência ou doação. Assim, podemos
dizer que foi feita uma escolha de minimizar a contextualização na exposição
permanente. Muitos críticos apontaram a seleção de objetos e a forma de apresenta-los
neste espaço como sendo regida por critérios puramente estéticos.
100
Este tema é especialmente discutido em Price (2000). A autora mostra como o chamado “bom gosto”
Ocidental acredita que o objetivo de um objeto é a apreciação estética pura, uma “tarefa” exclusivamente
sensorial e realizada de forma mais apurada por pessoas que teriam uma capacidade “inata” de perceber o
valor estético. Para essas pessoas, os connaisseurs, a contextualização, especialmente feita sob forma
escrita ao lado das obras de arte, poluiria e interferiria com a experiência da fruição estética.
101
Mack afirma que: “(...) talvez a questão [da distinção entre objeto de arte e objeto etnográfico] se
coloque menos em termos de objetos do que em termos de tipo de instituições nas quais o objeto é detido
ou exposto” (Mack In Latour, 2007, p.22).
141
Torre Eiffel, entre outros aspectos arquiteturais, inviabilizaram muitas das propostas dos
antropólogos e museólogos envolvidos na concepção da exposição (Price, 2007)102.
102
A autora conta sua experiência pessoal quando, em encontro com o responsável pelo continente
americano no museu, corrigiu a legenda e o posicionamento de uma capa bordada vinda do Suriname. A
capa deveria ser exibida na horizontal e não na vertical. Suas considerações foram acolhidas, mas na
configuração final da exposição, a capa permaneceu na vertical pois a vitrine na qual foi instalada não
podia ser modificada, pois havia sido concebida daquela forma por Nouvel, tendo sido acrescentada uma
placa explicando a “errata”. (Price, 2007)
142
Figuras 54, 55, 56, 57: Diferentes formas de exibição de objetos no Plateau des Collections, exposição permanente do Museu do
quai Branly. Foto: Nicolas Borel (54)/Cyril Zannettacci (55)/Claude Germain (56)/Pomme Célarié (57) ©museeduquaibranly
Caminhamos por um espaço regado por uma luz baixa, com grandes paredes
laterais feitas de vidro e cobertas por adesivo vinílico translúcido estampado com
folhagens, passamos por cavernas de couro, nos perdemos por continentes e nos
deparamos com objetos de todos os tamanhos, alguns grandes e isolados e outros que se
perdem em imensas vitrines abarrotadas. O “estilo” da exposição permanente do Museu
do quai Branly seria melhor definido como uma “fantasia primitivista” do que como
uma galeria de Arte Primitiva. O primitivismo não é apenas um termo pejorativo, um
adjetivo, é considerado pela História da Arte como uma corrente artística, especialmente
desenvolvida pelos artistas surrealistas e cubistas, como já vimos.
Figura 58: Plateau des Collections, zona “Ásia”. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
143
Figura 59: Plateau des Collections, esculturas africanas. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
103
“Modernism is thus presented as a search for ‘informing principals’ that transcend culture, politics and
history. Beneath this generous umbrela, the tribal is modern and the modern more richly, more diversely
human.”.
144
104
Taylor, comunicação pessoal. Entrevista realizada no Museu do quai Branly em dezembro de 2011.
Taylor afirmou que a exposição permanente vem sofrendo modificações e que “deve passar a ser vista
cada vez mais como uma reserva aberta”.
145
105
“Pour affirmer une nouvelle définition de musée des cultures non-occidentales, il fallait un musée
absolument contemporain, dégagé de notre passée colonial et du style des années 1930, un batiment
inspirant, qui puisse apparaître comme un outil sans precedent de découverte et d’interrogation.”.
146
106
“contrôle” em francês é a palavra usada para verificações, testes nas escolas.
107
Artigo escrito pelo crítico de arte Michael Kimmelman, publicado no New York Times em 02 de julho
de 2006.
108
Editorial publicado no Dossiê Pedagogique – Plateau des Collections 2013, disponível no site do
museu.
147
109
“Je pense donc qu’un film, dans un musée tel que celui-ci, a le fantastique potentiel à nous rappeler la
présence et la modernité, la contemporaneité des peuples dont les ancêtres ou parentes ont fabriqué ces
objets. Ils existent dans notre monde maintenaint.”
110
“Le concept de cet espace part d’une sorte d’opposition à la proposition du musée de l’Homme [...] qui
représentait peu ou prou um substitut à un voyage [...] maquete universelle des cultures”.
111
“Il ne s’agit pas du même monde: le monde extérieur a changé, tout comme le monde du musée lui
même.”.
112
Termos utilizados por Jacques Kerchache, colecionador, amigo e parceiro do presidente Chirac no
projeto do museu.
149
as relações entre a civilização europeia e as outras não têm continuidade nos dias de
hoje”113 (Chirac apud L’Estoile, 2007, p.31)114, em outras palavras, que com este museu
pode-se “virar a página” do colonialismo. Mas, implícita na forma de exibição adotada
por sua exposição permanente, está uma construção de memória e “memorialização em
museus é sempre seletiva e necessariamente acompanhada por amnésia.”115 (Shelton,
2006, p.487).
113
“Les vieux schémas de domination qui ont pu régenter les relations entre la civilizaton européenne et
les autres n’ont plus cours aujourd’hui.”.
114
Discurso de Jacques Chirac proferido aos participantes de encontro internacional de comunidades
ameríndias, 20 de junho de 1996.
115
“Memorialization in museums is always selective and necessarily accompanied by amnesia.”.
150
116
“ongoing historical, political, moral relashionship – a power-charged set of exchanges, of push and
pull.”.
117
“how subjects are constituted in and by their relations to each other.”; “improvisational dimensions of
colonial encouters”.
118
“Cabelos Queridos: frivolidades e troféus”, em cartaz entre setembro de 2012 e julho de 2013.
151
esta exposição, além de fotografias, pinturas, esculturas, o museu lançou mão da grande
quantidade de objetos contendo cabelos ou feitos deste material de origem humana,
entre eles foram exibidas várias cabeças reduzidas Jivaro/Shuar e escalpos norte-
americanos compondo a seção sobre cabelos enquanto “troféus”, apontando para a
potência post-mortem do cabelo, “destinados a fazer circular uma energia
frequentemente associada à fertilidade, à prosperidade do grupo e às relações
apaziguadas com os Ancestrais.”.
Figura 61: Crânios exibidos na exposição “Cheveux Chéries”. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
119
Publicação disponível impressa no museu e em www.museeduquaibranly.fr, na rubrica Dossiê de
Presse
120
“Vermelho Kwoma: pinturas míticas da Nova-Guiné”, exibida entre outubro de 2008 e janeiro de
2009.
154
Figura 62: Ilustrações míticas feitas por artistas Kwoma, da Papua Nova Guiné, para a exposição “Rouge Kwoma”. Foto: Antoine
Schneck. ©museeduquaibranly
A exposição foi concebida em diálogo com a população local, buscando
“trabalhar com eles” e não “falar por eles” (Rovere, 2012, p.5). O curador afirma que “o
objetivo era conceber uma exposição em completa colaboração com os artistas, torna-la
fiel ao estado de espírito deles, à pedagogia kwoma e à sua própria maneira de
apresentar as obras.” (ibid.: 4,5). O percurso da exposição era guiado pelo mito de
origem kwoma e apresentava os novos trabalhos dos artistas contemporâneos kwoma,
bem como os antigos objetos já presentes no museu, desta vez contextualizados pelas
narrativas nativas sobre eles e com os nomes dos artistas que os produziram, a data, seu
clã de origem, etc. Além disso, a exposição abordava este processo colaborativo
explicitamente.
Outro exemplo interessante é a exposição Artistes d’Abomey: dialogues sur un
royaume africain121. Gaëlle Beaujean-Baltzer, responsável pelas coleções africanas,
concebeu esta exposição em parceria com Joseph Adandé, da Universidade de Abomey-
Calavi, e Leonard Ahonon, gestor dos palácios reais de Abomey122. A curadora francesa
concebeu a exposição a partir de objetos da coleção do Museu do quai Branly que não
eram expostos há muitos anos, devido ao mal-estar dos tempos coloniais que evocavam.
A exposição buscava desmistificar a imagem negativa dos reis de Abomey, conhecidos
como escravizadores e promotores de sacrifícios humanos, explorando a relação entre
121
“Artistas de Abomey: diálogos sobre um reino africano”, exibida entre novembro de 2009 e janeiro de
2010.
122
O reino de Dahome, cuja capital é Abomey, fica no atual Benim.
155
os artistas e os reis, bastante particular nesta sociedade. Para qualificar a coleção antiga
que possuía no museu, Baltzer se propôs a atuar como um “prisma de compreensão”
(Baltzer, 2010, p.6), mantendo intenso diálogo com os pesquisadores africanos. As
missões que realizaram juntos permitiram conhecer descendentes dos reis e dos artistas
que produziram cada uma das obras que seriam expostas, tornando possível o foco no
trabalho dos artistas.
A exposição aborda, identificando nominalmente, o pertencimento familiar,
clânico e ligação com a realeza de cada artista. Em seu percurso são exploradas as
distinções entre as artes feitas por eles, seja com relação ao material utilizado ou à
destinação das obras, e o papel dos artistas na construção da imagem que os reis
queriam exibir. O diálogo entre os pesquisadores, que aparece até no título da
exposição, foi longo, e durante os anos acabou por definir a abordagem que seria
proposta de objetos há tanto tempo guardados. Esta colaboração é visível materialmente
na exposição, especialmente no uso de legendas “a duas vozes”, onde o visitante podia
ler uma legenda escrita por Baltzer e outra pelos pesquisadores africanos, oferecendo
dois pontos de vista, duas narrativas ou interpretações diferentes para cada objeto. O
áudio de conversas gravadas entre os pesquisadores e entre eles e os descendentes dos
artistas também compunham a exposição.
Figura 63: Vitrine da exposição “Artistes d’Abomey” com legenda “a duas vozes”. Foto: Antoine Schneck .
©museeduquaibranly
Estes dois exemplos apontam para o interesse e disposição de funcionários do
Museu do quai Branly de qualificar suas coleções e de trabalhar em colaboração com
pessoas e grupos que podem trazer novas perspectivas para as exposições temporárias
do museu. A exposição Maori foi celebrada por ser a primeira experiência de
acolhimento de uma exposição com “curadoria nativa”, mas outras tentativas de
156
123
“Exibições: a invenção do selvagem”, em cartaz entre novembro de 2011 e junho de 2012.
157
Figuras 65, 66: Cartazes de “apresentações exóticas” que exibiam seres humanos durante o período colonial. Foto: Fanny
Duval. ©parispelemele
O que há de interessante aqui, é que esta não é apenas mais uma exibição do
Outro, mas sim uma exposição focada em mostrar como o Ocidente exibiu estes Outros.
Embora existam relatos de que algumas destas pessoas exibiam-se voluntariamente e
fizeram disso sua profissão, sabe-se que a maior parte delas era explorada por
empresários e muitos morreram durante sua estadia na Europa devido às péssimas
condições de tratamento e doenças desconhecidas. Mas o que mais choca na exposição é
a violência simbólica, a construção do preconceito. São expostos muitos cartazes e
souvenires dos variados tipos de eventos que exibiam “selvagens”, além de artefatos
científicos, como moldes, desenhos e aparelhos de medição fisionômica, documentos
históricos, além de alguns vídeos muito antigos destas apresentações. Os espaços da
exposição eram escuros e a cenografia apresentava cortinas, como se entrássemos nos
bastidores de um teatro, e espelhos posicionados em locais estratégicos, fazendo com
que víssemos repentinamente nossa imagem refletida e a dos outros visitantes. Alguns
desses espelhos provocavam distorções da imagem, oferecendo aos outros uma imagem
estranha de nós mesmos. “Exibições...” é, portanto, uma tentativa de colocar em cena
um fenômeno que hoje provoca incômodo nos próprios europeus que encaram o
158
passado recente de sua história e que pretende, assim, passar uma mensagem clara
contra os preconceitos e discriminações124.
124
Tive a impressão que, apesar da transmissão explicita desta mensagem, especialmente no fim da
exposição, a possibilidade de os visitantes relacionarem a história que viram ali à história da formação da
coleção do Museu do quai Branly não era manifestamente estimulada, apesar de ambos os processos
serem, evidentemente, estreitamente ligados e paralelos, já que no mesmo período, pode-se dizer que
colecionava-se gente e objetos, assustadoramente sem muita distinção. O museu parece se eximir de
explicitar seu papel ou o de seus precursores nesta complexa história de disputas e construções.
159
125
Uma descrição mais detalhada do percurso destas três exposições está disponível no Anexo desta
dissertação. Decidi retira-las do texto para não dispersar a atenção do leitor que poderia se afastar
demasiado da exposição central analisada aqui.
126
“O que é um corpo?” em cartaz entre junho de 2006 e novembro de 2007.
127
Breton é pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École
des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Realizou pesquisa de campo por muitos anos
entre os Wodani, nas terras altas da Papua Nova-Guiné, tratando de temas como troca, bruxaria, noção de
pessoa, corpo e sexualidade. Breton realizou um filme na Nova-Guiné, chamado “Eux et Moi”, em 2001,
e passou a se dedicar cada vez mais à produção de filmes etnográficos, tendo realizado onze filmes até
hoje, em diversas partes do mundo.
161
“A antropologia é um instrumento de ótica, uma maneira não apenas de ver os dois sentidos, mas
de ver o olhar. [...] A antropologia nasce na cena do encontro de dois indígenas se esforçando
com dificuldade para falar a língua um do outro. Não é uma ciência positivista descrevendo
objetos que já existem, por exemplo, os corpos, mas uma forma de ver o olhar do outro. São
necessários dois olhares para fazer um antropólogo, precisa-se de dois para dizer a verdade do
corpo.”128 (Breton, 2006, p.17, 20).
128
“L’anthropologie est un instrument d’optique, une manière non seulement de voir dans les deux sens,
mais de voir le regard. [...] L’anthropologie naît sur la scène de la reencontre de deux indigènes
s’efforçant avec dificulte de parler le langage de l’autre. Ce n’est pas une Science positive décrivant des
objets qui existiraient déjà, par exemple des corps, mais une façon de voir le regard de l’autre. Il faut deux
regards pour faire un anthropologue, il en faut deux pour dire la vérité du corps.”
162
Figura 67: Espaço introdutório da exposição “Qu’est ce q’un corps?” com instalação criada pela curadoria. Foto:
Nicholas Borel. ©museeduquaibranly
129
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do cenógrafo: http://www.druot.net/qqc.html
130
Região conhecida na França como “Afrique de l’Ouest”, ou “África do Oeste”.
131
“Planeta Mestiço: misturar ou não misturar?”, em cartaz entre março de 2008 e julho de 2009. Uma
análise desta exposição exclusivamente foi feita por mim, no artigo “Planète Métisse: uma exposição
antropológica no Museu do quai Branly” (Vincent, 2013).
163
O processo de mestiçagem, que vem sendo trabalhado por Gruzinski 133, aparece
como um fenômeno universal, exacerbado pelos movimentos de mundialização, que
tem suas raízes no início da expansão marítima do século XVI. Esses encontros seriam
“processos de recomposição permanente”, situações de trocas, de “misturas
culturais”134. Esses encontros que produzem inevitavelmente mestiçagens são
analisados por Gruzinski, como encontros produtivos em uma guerra de imagens que,
longe de produzir apenas substituições, é feita de acomodações e adaptações (Gruzinski,
2006 [1990]).
132
Gruzinski é francês, também pesquisador e professor do CNRS e da EHSS, em Paris. Ele se dedica ao
estudo das colonizações da América e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de
mestiçagem e de nascimento de espaços híbridos, e das primeiras manifestações da mundialização.
133
O conceito é especialmente trabalhado em seu livro “O pensamento Mestiço” (2001 [1999]).
134
O autor deixa claro que o termo é falacioso. É preciso notar que o termo “cultura” induz a
compreensão de que estas seriam conjuntos abstratos, estáveis e delimitados, quando, na verdade, trata-se
de “sociedades, ou seja, de indivíduos, de grupos e de classes sociais que se afrontam, se misturam,
trocando ou impondo fragmentos de patrimônios dos quais são, conscientemente ou não, portadores.”
(Gruzinski, 2008, p.17).
135
As mestiçagens apresentadas consistem em criações de imagens/objetos decorrentes dos encontros e
influências entre “culturas” de continentes diferentes, em sua maioria entre europeus e “outros”,
excetuando-se os exemplos de misturas entre Estados Unidos e México ou Ásia, o que não caracteriza
verdadeiramente uma exceção pois este país é tratado como representante do “primeiro mundo”. Talvez
isso se deva à distinção feita pelo autor entre “mestiçagem” – entre continentes diferentes – e
“hibridismo” – dentro da mesma civilização (Gruzinski, 2001). Mas de toda forma não são abordadas as
trocas entre diferentes culturas “não-ocidentais”.
164
e suas culturas em termos de circulação e de conexões [...] [pois] eles nos estimulam a
repensar a diferença em termos dinâmicos.” (Gruzinski, 2008, p.22).
Para tornar palpável esse “fenômeno planetário”, a exposição exibe 290 objetos,
pertencentes à coleção do Museu do quai Branly ou emprestados de outras coleções,
objetos antigos e contemporâneos. Seu percurso foi dividido em quatro partes, que não
derivam de divisões geográficas nem estritamente cronológicas, mas que consistem em
uma linha argumentativa que pretende definir o objeto tematizado e a mensagem
transmitida – a mestiçagem enquanto mecanismo inevitável. Inicia-se por uma sala
introdutória de desestabilização de pré-noções e definição do “objeto mestiço”,
passando em seguida por uma contextualização histórica dos encontros culturais, as
diferentes formas pelas quais as trocas de ideias, técnicas e relações de poder aparecem
nos objetos, terminando com exemplos de mestiçagens contemporâneas.
Com o objetivo de fazer com que os objetos “dialoguem entre si, que os
mecanismos de mestiçagem apareçam”, o mezanino foi completamente transformado
por uma cenografia que pretendeu “criar um percurso contínuo, um espaço amplo,
dividido por colunas criando nichos para mis-en-scènes específicas”. Utilizando
materiais leves e visualmente porosos como fios luminosos, véus, telas de lâminas
metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam espaços redondos ou ovais,
chamados pelo cenógrafo responsável, Reza Azard, de “corpos híbridos”136.
Figuras 68, 69: Exposição “Planète Métisse”, cenografia. Fonte: projectiles.fr ©M. Blondeau
No catálogo da exposição, Gruzinski define a problemática que se propôs a
abordar, revelando com clareza a presença de uma “mensagem” a ser transmitida pela
exposição para o público que o curador imagina como alvo:
“[...] a mistura de culturas não é apenas um efeito de moda, domínio no qual nada é adquirido.
Ainda preferimos muito as oposições marcadas do que a complexidade e imprevisibilidade das
coisas. [...] Sobre esses reflexos pesa fortemente ainda uma maneira de ver o mundo que o
136
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do escritório de design Projectiles.
165
Concebida para ser vista predominantemente por europeus, que “ainda preferem
as oposições marcadas à complexidade e imprevisibilidade”, a exposição oferece uma
resposta clara à pergunta que compõe seu título: “misturar ou não misturar?”. “Seria [a
mestiçagem] o fermento de um perpétuo enriquecimento e de uma constante abertura
para o outro?”, pergunta Gruzinski (2008, p.20). Salientando que não podemos esquecer
que as mestiçagens nunca são neutras, aponta para a resposta: “reservemo-nos, portanto,
a celebrar uma mestiçagem cultural destinada a preencher positivamente fraturas sociais
e econômicas dificilmente reduzidas de outra forma.” (Gruzinski, 2008, p.20).
La Fabrique des Images138foi a terceira exposição antropológica realizada no
museu, com curadoria do antropólogo francês Phillipe Descola139. A exposição
apresentava quatro formas diferentes de figurar, ou criar imagens. Elas correspondem às
quatro formas ontológicas de conceber a natureza (modelos analíticos de cosmovisões)
– analogista, totemista, naturalista e animista140.
A criação deste modelo é o caminho utilizado por Descola para desconstruir o
binarismo “natureza x cultura”, sustentado no pensamento ocidental pela noção de que
somente nós, humanos, somos dotados de consciência reflexiva, pensamento cognitivo e
julgamento moral, e que somos rodeados por algo que é matéria pura, desprovida de
intencionalidade, a saber, a natureza. Questionando a universalidade desta proposição, o
autor parte de sua experiência etnológica com os Jivaro para mostrar que, para eles,
todos os elementos do mundo podem ser humanos, há uma humanidade contínua entre
os elementos, sejam animais, plantas ou espíritos, com os quais se estabelece relações
sociais.
137
“(...) le mélange de cultures n’est pas seulement un effet de mode et qu’en ce domaine rien n’est
acquis. On prefere encore trop les oppositions tranchées à la complexité et à l’imprevisibilité des choses.
[...] Et sur ces reflexes pèse encore lourdement une maniére de voir le monde qui le cristalize en
catégories et camps antagoniques, trop simples et trop réducteurs pour ne pas dissimuler les passages, les
paradoxes et les milles ambiguïtés troublantes dont est tissé le réel. [...] C’est d’abord de cette dificulte et
de cette résistance que voudrais rendre compte Planète Métisse.”
138
“A Fábrica de Imagens”, em cartaz entre fevereiro de 2010 a julho de 2011.
139
Sucessor de Claude Lévi-Stauss na direção do Laboratoire d’anthropologie social (LAS) e na cadeira
de Antropologia da Natureza no Collège de France, Descola também é professor na EHSS e pesquisador
do CNRS. Suas pesquisas etnográficas foram realizadas entre os Jivaro, população indígena da Amazônia
equatoriana.
140
Modelo desenvolvido em seu livro “Par-delà nature et culture” (2005).
166
141
Este modelo está baseado em diferentes relações entre interioridade e fisicalidade por um lado e as
relações entre humano e não-humano. Naturalismo seria caracterizado por uma continuidade física entre
os elementos “naturais”, enquanto a cultura seria atributo interior exclusivo dos humanos, em ruptura com
a natureza; o Animismo por uma continuidade da interioridade entre humanos e não humanos, que seriam
distinguidos pelo corpo; o Totemismo demarcaria uma continuidade e identificação tanto física quanto
interior entre grupos que abarcam tanto humanos quanto não humanos; e o Analogismo seria a
descontinuidade total entre fisicalidade e interioridade, sendo elementos humanos e não-humanos unidos
por diferentes tipos de analogias entre polos de qualidades sensíveis (Descola, 2005)
167
Figura70: Exposição “La Fabrique des Images”. Caminhos demarcados por cores no percurso. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly
Figura 71: Exposição “La Fabrique des Images”. Painel explicativo das quatro ontologias que dividem a exposição. Foto: Nina
Vincent
objetos expostos testemunham este aspecto transversal. Esta abordagem não é exclusiva
das exposições antropológicas, mas bastante rara nas exposições temporárias, que em
sua maioria focam alguma região do mundo não-europeu, alguma sociedade específica
ou um determinado tipo de produção artefatual desenvolvido por algum grupo. A
diferença entre outras exposições transversais e as antropológicas é justamente a
abordagem conceitual característica da disciplina, que faz com que sejam abordados
fenômenos ou mecanismos culturais “universais”.
142
Segundo Taylor (comunicação pessoal, 2011), os empréstimos solicitados junto a grandes museus é
um dos principais problemas das exposições antropológicas. No caso de “A Fábrica de Imagens”, por
exemplo, as pinturas pertencentes ao Louvre foram cedidas por meio de um contrato que limitava o
empréstimo a uma duração de três meses, tempo regular de uma exposição temporária. Por ter ficado em
cartaz durante 18 meses, a exposição foi modificada várias vezes, pela substituição de peças.
169
“Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços
não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. A tradição
intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação. A
cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. Hoje, a cultura
popular na França já é uma cultura mestiça.” (Gruzinski In Romeiro)
“Eu quis fazer uma exposição que pudesse romper a noção de progressão histórica que está
enraizada na cabeça das pessoas, que se dizem ‘primeiro há o primitivo, em seguida a arte antiga
e depois a ocidental’. É por isso que coloquei o naturalismo, em contraste com o animismo
evidententemente, logo após [este]. E depois nos deparamos com o totemismo, então não há
nenhuma continuidade histórica. Eu penso que operações como esta são simples, mas têm
efeitos.” (Descola, comunicação pessoal, 2012).
143
Ver Anexo 1.
170
Branly, o que seria visível no produto final. Alguns enganos cometidos no aspecto
visual fizeram de “O que é um corpo?”, que teve seu cenógrafo alterado duas vezes,
uma exposição não tão bem sucedida. Taylor conta que foi uma experiência “muito
complicada. De fato, ela não alcançou absolutamente o que desejávamos na realidade.
[...] Do ponto de vista cenográfico, foi um fracasso, porque era heteróclita demais,
condensada demais, insuficientemente explícita (...)” (comunicação pessoal, 2011).
“muitas pessoas diziam ‘Ah! Agora compreendo melhor o resto do museu, com esta
exposição’.” (comunicação pessoal, 2012)145.
“A perspectiva indígena sobre si é sempre enviesada [...]. Apenas a comparação permite superar
isso. Por este motivo é que não tememos retirar os objetos de seu contexto local e apresenta-los
nesta exposição, enfraquecidos pelas vitrines, emudecidos pela abstração museográfica.
145
Encontrei um comentário sobre Planeta Mestiço registrado em um blog, que aponta para o mesmo
sentido: “É tempo [...] de nos darmos conta que a exposição, no mezanino do MQB, domina toda a
coleção permanente do museu: esta educação do olho e do espírito poderá então ser aplicada a outros
objetos, a outros fenômenos, pois o verdadeiro planeta mestiço espera pelo espectador na saída do
museu.” (Boris Jeanne).
173
146
“La perspective indigene sur soi est toujours biasée [...]. Seul la comparaison permet de s’affranchir.
Voilà pourquoi nous ne craignons pas de sortir les objets de leur contexte local et de les présenter dans
cette exposition, affadis par les vitrines, rendus muets par l’abstraction muséographique. Essentializer les
contextes est une vue anti-anthropologique. Nous préferons mettre ceux-ci en perspective et les comparer.
C’est par son effet de déplacemente qu’une telle exposition peut être utile: ele rend possibles des regards
croisés”
174
4. CONCLUSÃO
147
“is the very quality that enables them to become instruments of education and experience.”.
175
um sentido definitivo, mas a rede de relações que ele materializa e na qual atua naquele
momento.
Nesta cultura, a relação com os objetos é tão estreita que grande parte de sua
cosmologia e de sua história pode ser contada por meio deles. Por isso, vemos que o
museu, instituição imposta pelos colonizadores, ganha outras dimensões na Nova
Zelândia, tornando-se uma das mais importantes instituições na luta politico-identitária
maori. Definir a categorização de seus objetos é uma questão política para os Maori,
pois está ligada a uma disputa de poder. Definir a forma (material e estética) como estes
objetos são apresentados tem também caráter político, no sentido de estabelecer como
as pessoas que olham para os objetos irão se relacionar com eles, para além de como
vão entendê-los. O nível de intimidade, de proximidade, de reverência e de
compreensão oferecido na exibição dos objetos é controlado pelos curadores e varia de
acordo com suas intenções e com o público para o qual a exposição se destina.
176
Além de todo tipo de matéria prima, europeus levaram para seus países objetos
confeccionados por nativos, com os mais diversos propósitos, que transitaram por
148
Não somente, é claro. Não posso falar com propriedade da vida cotidiana maori na Nova Zelândia nem
de uma dimensão profunda do ser maori atual, pois não tive contato com esta realidade. Falo apenas sobre
o que transpareceu em minha experiência de campo na Exposição Maori na França. Há outros pilares da
cultura maori amplamente preservados e difundidos na sociedade contemporânea, como a relação com o
meio ambiente e os esportes – a canoagem e, surpreendentemente, o Rugby – por exemplo.
149
“(... first is the recognition that) colonialism was profoundly material and that colonized and imperial
centers were critically linked by a traffic in objects that was the sensorially figured: [...]”.
177
O’Doherty dedica seu livro O cubo branco ([1976] 1999) a esta transformação,
que se inicia na Europa no final do século XIX, quando alguns movimentos começam a
romper com a chamada “pintura de cavalete”, que consistia em representações ilusórias
da realidade, criando quadros autocontidos, isolados dos outros quadros por sua
moldura e sua perspectiva interior autossuficiente. Com o Impressionismo, o horizonte
pintado se amplia, transborda e aponta para fora da tela, mas não para uma realidade
outra, e sim para as paredes, rompendo com os limites cognitivos da moldura. Isso se
acentua com a Colagem e seus elementos que saltam da tela, tornando inevitável a
conscientização sobre o espaço expositivo. Neste momento surgem questões como “de
que forma pendurar o quadro?” ou “perto de que outras obras estará exposto?”, “Qual o
178
espaço necessário entre elas?” e toda uma série de questionamentos sobre os elementos
exteriores à pintura.
Museus voltados para um grande público investem cada vez mais em criar
interesse no espaço, seduzir cenograficamente e propor novas formas de
contextualização, borrando ainda mais a separação entre o espaço de exibição e aquilo
que é exibido, tornando o espaço cada vez mais potente enquanto objeto artístico. O
150
La Fontaine (1917).
151
O nome completo da obra é “Twelve Hundred Coal Bags Suspended from the Ceiling over a Stove” e
foi montada para a Exposition Internationale du Surréalisme, em Paris. A segunda obra citada, Mile of
String, foi exposta em Nova York na mostra First Papers of Surrealism.
152
Já no período pós-guerra, dois outros grandes “gestos”, como os chama O’Doherthy (1999), marcaram
a historia do espaço da galeria. The Void (1957), de Yves Klein, que apresentava uma galeria parisiense
totalmente vazia, oferecendo apenas suas paredes brancas para a contemplação; e em resposta à Klein, Le
Plein (1960), de Armand Arman, que apresentou a mesma galeria completamente cheia de lixo e detritos,
deixando o visitante pela primeira vez a observar o espaço do lado de fora.
179
caráter social e educativo que edifica a Nova Museologia têm nesta missão sua principal
distinção com relação ao mundo extremamente elitizado e autocentrado da Arte
contemporânea e suas galerias voltadas para o comércio. Isso pode ser notado também
na proposição de atividades educativas, no acolhimento de performances, no uso de
tecnologia interativa e nas estratégias cenográficas, de utilização do espaço, de criação
de suportes para obras que podem ser vistos como uma instalação artística em si, além
de outros recursos que se agregam aos objetos expostos, todos eles utilizados no Museu
do quai Branly. Como argumenta Gurian (1991, p176), “não é o conteúdo que pré-
determina o design da exposição, as estratégias e instalações que usamos; ao contrário,
o conteúdo e a apresentação da exposição são inseparáveis”. E os diferentes “estilos” de
exposição são ferramentas poderosas na expressão de intenções e no empoderamento ou
isolamento do público.
153
Alpers (1991) explora o “efeito museu” (museum effect) em grandes museus de arte europeia. Este
“efeito”, segundo ela, impõe uma “forma de ver” (way of seen) por meio da articulação de elementos que
cercam as pinturas. A autora cita como exemplo o Museu D’Orsay, em Paris, para mostrar como a
obsessão pela contextualização cultural empregada nesta instituição fez com que “ver” fosse praticamente
impossível.
180
por um objeto seriam então uma questão de contextualização, já que quando inseridos
na vida, artefatos e performances são contingenciais, não são feitos para “ficar
sozinhos”154, ser objeto exclusivo de atenção estética (Ibid.). Essa é uma afirmação
complexa, mas acredito que não é cerne da questão, que deve, a meu ver, ser invertida:
objetos nunca aparecem sem contexto.
Não se trata de uma falta inerente a ele, mas sim de sua natureza relacional e da
natureza relacional das dinâmicas culturais e sociais. Procurei seguir uma linha de
raciocínio que analisa objetos em sua materialidade e como agentes em redes de
relações, e não como elementos discursivos. Uma anedota resume bem a questão. Uma
antropóloga e curadora de origem indígena trabalhava na reserva técnica de um museu
canadense quando outro antropólogo mostrou a ela um chocalho e perguntou “não é
lindo?”, “sim”, disse ela, “mas”, continuou o antropólogo, “como você o lê?”, pergunta
a qual respondeu com impaciência “droga, Wilson, eu não leio essas coisas, eu as
chacoalho!”. Mais tarde, a mesma antropóloga afirmou que é assim que o mundo se
divide, entre leitores e chacoalhadores155. Desta perspectiva, a questão de saber se
“objetos são capazes de falar por si próprios”, sem contextualização, parece deslocada.
Quem fala por meio de objetos são as pessoas. Objetos não falam, mas agem.
Assim, a análise das exposições desenvolvida aqui me leva a crer que o curador
desempenha o duplo papel de falar por eles, atribuindo-lhes e projetando neles
significados com base em sua interpretação, mas ele também age por meio do conjunto
de objetos organizados esteticamente, a exposição. Espero ter evidenciado neste
trabalho que não existe ambiente “neutro” ou “dado” no qual os objetos possam
simplesmente “existir”. Resta ao antropólogo que estuda cultura material, objetos, arte,
imagens, ou como se queira chama-los, buscar uma compreensão ampla e aprofundada
dos processos de contextualização e redes de relações. Estes processos ocorrem em
diversos níveis, sejam discursivos, práticos, políticos e, como busquei enfatizar, todos
eles são interdependentes e, de alguma forma, estéticos.
154
“stand alone”.
155
Edwards et al. (2006), na introdução de Sensible Objects, que leva o nome “Readers and Shakers”,
fornecem este diálogo entre Gloria Cranmer Webster e Wilson Duff no University of British Columbia
Museum em 1970. “He picked up a raven rattle, brought it over to me and asked ‘Isn’t it beautiful?’ ‘Yes’
I replied, and went back to my typewriter. He than asked ‘But how do you read it?’ Impatiently I said,
‘Shit, Wilson, I don’t read those things, I shake them’”.
181
O caráter temático e cada vez mais específico das exposições também aumenta o
valor dos conhecimentos especializados do curador. Ele passa a desempenhar um papel
administrativo de negociador com instituições e financiadores, ser responsável pela
seleção de colaboradores de diferentes disciplinas, pelo posicionamento formal em
relação ao conceito, à temática e ao estilo das escolhas de apresentação, a coordenação
de uma equipe que inclui arquitetos, designers de cenografia e luz, entre outros, e pela
organização dos materiais impressos e do catálogo da exposição (Ibid. p. 236).
(1996), que o diretor de cinema a partir da década de 1960, e isso fica evidente na forma
como a mídia passa a apresentar exposições, citando o nome do curador como autor do
objeto, tal como estamos acostumados a ver nos filmes chamados “autorais”156.
Nos casos estudados aqui, o curador além de poder ser visto como um artista,
criador do objeto de arte/exposição constituído pelos objetos e outros elementos
expostos, é também autor da cultura apresentada. Ele é, em muitos sentidos, um
mediador e um inventor cultural, pois produz relações que constituem as culturas que
são apresentadas e interfere nelas por meio da exposição. Este é um dos pontos mais
complexos relacionados às disputas que ocorrem hoje nos museus etnográficos.
156
A comparação proposta pelos autores entre curador de exposições e diretor de cinema propõe um
paralelo entre as formas de legitimação da função e aumento de prestígio, que colocam ambos na posição
de controle da obra. Os autores escrevem baseados na realidade francesa das profissões, criando um
contraponto com os diretores de cinema americanos de Hollywood, que seriam em sua maioria ainda
subjugados aos interesses de um produtor. Na França, os custos e o tempo de produção, números de
público e custo de acesso de um filme e de uma exposição são bastante próximos (Heinich e Pollack,
1996).
184
Segundo Karp, (1991, p.15) “o que está em jogo no controle pela forma de exibir é,
finalmente, a articulação da identidade.”157.
157
“What is at stake in struggles for control over objects and the modes of exhibiting them, finally, is the
articulation of identity.”.
158
Fala de abertura do Colóquio “S’exposer au musée. Réprésentations muséographiques de soi.”. 2011.
159
Como os exemplos apresentados por James Clifford de dois museus tribais da América do Norte que
encontraram soluções diferentes para apresentar objetos do Grande Potlatch restituídos recentemente a
suas comunidades, um com proposta curatorial mais histórica querendo ser um centro catalizador para
artistas contemporâneos se relacionarem com o exterior e outro que valoriza mais as questões cotidianas
locais e apresenta os objetos como propriedades individuais, lembranças íntimas da comunidade que vive
ali sua memória e seu presente.
160
Destaca-se neste cenário o Museu Maguta, no Amazonas, dos índios Ticuna. O Museu conta com uma
exposição permanente sobre a questão das terras, apresentando mapas desenhados pelos próprios índios,
aspectos culturais considerados por eles como importantes de serem preservados ou resgatados e uma
parte dedicada à vontade de atualização da cultura e reinterpretação do mundo (Bessa, 2003).
185
161
Laurent Jêrome detalhou os planos de ação colaborativa do Museu da Civilização e das Primeiras
Nações no Quebec, que deram origem à exposição permanente “Nós, as primeiras nações” e houve ainda
um exemplo de museu que decidiu deixar de ser “museu” para ser “centro cultural”, o Centro Cultural
Tjibaou da Nova Caledônia, apresentado por Emmanuel Kasarhérou, onde parte-se primeiramente de
dança, gesto e performance, e não de exposições de objetos para representar a cultua Kanak, muito mais
apegada ao patrimônio intangível.
162
Este tipo de narrativa de exposições nas quais aparece a palavra “nós” é bastante frequente nos grandes
museus e atesta a tentativa de afirmar a participação dos grupos minoritários. Um bom exemplo é
fornecido pela dissertação de Bertolossi (2010), escrita no Brasil, mas que aborda o National Museum of
the American Indian, nos Estados Unidos, mostrando como sua concepção, desde a arquitetura até as
exposições, é fruto de demandas feitas por indígenas de diferentes tribos, que participam também de sua
estrutura administrativa, fazendo do museu testemunha viva da complexidade da criação de um “nós”,
decorrente do “pan-indianismo” que se constrói nesse país.
163
A exposição foi exibida em 1988 no Center for African Art, em Nova York.
186
de uma proposta curatorial. Gurian (1991) sugere, por exemplo, que as legendas
deveriam ser escritas em primeira pessoa, evitando o tom de objetividade e
imparcialidade geralmente conferido a elas. Uma exposição assinada, diz, deve ser
narrada pelo curador, pois “é um ato pessoal, criativo e análogo a uma obra de arte
assinada, e torna-se intencionalmente uma exposição autobiográfica.”164 (Gurian, 1991,
p.187). Uma exposição não assinada, ao contrário, reforça a ideia de uma autoridade
“quase-divina” por trás da seleção dos objetos e outros elementos.
Porém, como aponta Mieke Bal (apud Basu; Macdonald, 2007) as exposições
que reconhecem abertamente o papel autoral do curador, resposta mais comum às
críticas sobre a ausência de autoria nas exposições, não necessariamente desafiam a
autoridade do curador. Explicitar a autoria curatorial não resolve o problema da
autoridade curatorial. Esta crítica, se pensarmos na história da Antropologia, remete ao
processo de desconstrução da autoridade etnográfica, como problematizada por Clifford
(1998), e deve tornar-se um profícuo objeto de discussão na medida em que mais e mais
antropólogos se lancem no desafio de conceber exposições.
Assim como nas representações feitas por meio da escrita etnográfica, nenhuma
das exposições deve ser vista como mais “verdadeira” do que outra. Nem a curadoria
164
“is a personal, creative act analogous to a signed work of art, and intentionally becomes an
autobiographical exhibition”.
187
Sally Price afirmou em seu livro sobre o Museu do quai Branly que “culturas
não dialogam... pessoas sim.”165 (Price, 2007, p.126). Ainda se cobra muito deste museu
o estabelecimento de diálogo para além das “representações”, diálogo em termos de
participação efetiva e possibilidade de mudanças internas. Fala-se também na
necessidade de maior circulação das coleções. Para os museus poderem ser, como
defende Henare (2005), o centro da continuidade das relações entre objetos e pessoas,
talvez seja necessário que se pare de tratar objetos como textos, matéria inerte sobre a
qual o significado é construído e se invista mais em sua capacidade real de agenciar
relações (Henare, 2005 e Henare; Holbraad; Wastell, 2006), inclusive, acrescento, em
suas propostas curatoriais, possibilitando não apenas “camadas de discurso”, mas
interações em múltiplos níveis.
165
“(...) cultures don’t dialogue... people do.”.
188
Mas deve-se atentar para o fato de que a recepção do público não pode ser
reduzida às intenções do curador. A agência da exibição (agency of display) existe
apenas na relação. No momento do contato com a exposição, diferentes visitantes terão
diferentes impressões, sensações, visões e entendimentos. Assim, não podemos reduzir
a agência de cada objeto apresentado à agência total da exposição, nem determinar o
efeito da exposição pelas intenções de sua curadoria. Esta pesquisa não pretendeu, nem
teve condições, de dar conta das reações do público. Esta seria uma outra e grande
empreitada.
189
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passees/colloques-et-symposium/saison-2009/des-collections-anatomiques-aux-objets-
de-culte-conservation-et-exposition-des-restes-humains-dans-les-musees.html
Colóquio S’exposer au musée. Representations muséographiques de soi. Comunicações
verbais.
Sites
197
www.museeduquaibranly.fr
www.ymago.quaibranly.fr
www.tepapa.govt.nz
www.parispelemele.fr
www.blissinthecity.fr
project-iles.net/projets/exposition-planete-metisse
www.googleearth.com
198
Anexo 1
166
“O que é um corpo?” em cartaz entre junho de 2006 e novembro de 2007.
167
Breton é pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École
des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Realizou pesquisa de campo por muitos anos
entre os Wodani, nas terras altas da Papua Nova-Guiné, tratando de temas como troca, bruxaria, noção de
pessoa, corpo e sexualidade. Breton realizou um filme na Nova-Guiné, chamado “Eux et Moi”, em 2001,
e passou a se dedicar cada vez mais à produção de filmes etnográficos, tendo realizado onze filmes até
hoje, em diversas partes do mundo.
168
Região conhecida na França como “Afrique de l’Ouest”, ou “África do Oeste”.
199
elas. Segundo o cenógrafo que trabalhou com Breton, Frédéric Druot, a exposição se
articula entorno de quatro “instalações específicas”, “simplesmente religadas pelo
deslocamento e pelo olhar do público.” A organização espacial e o mobiliário de cada
parte são diferenciados e específicos, “levando o visitante ao argumento antropológico,
até colocar seu próprio corpo em perspectiva”169. O percurso contava com muitas
vitrines, poucos elementos cenográficos e grande parte dos textos aplicada sobre o piso,
tablados ou parte inferior das vitrines170.
169
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do cenógrafo: http://www.druot.net/qqc.html
170
Ver Figura 67 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
200
representação (Breton, 2006). Assim, nesta seção, o objeto de destaque é uma escultura
romana do século XII de cristo pregado à cruz. Havia ainda pinturas de artistas
consagrados, como Francis Bacon. A representação imagética do corpo ocidental
moderno, secularizado e marcado fortemente pelas concepções biológicas é abordada
numa instalação que apresenta uma série de monitores exibindo em alta velocidade as
representações virtuais do humano nas culturas ocidentais, “figuras deformadas,
flutuando como ‘lugares-comuns’ no espaço”171.
Figura 01: Exposição “Qu’est ce q’un corps?”, seção “Europa Ocidental”. Instalação imagética criada pela
curadoria. Foto:Nicolas Borel ©museeduquaibranly
171
Descrição do percurso no site do museu.
172
Breton apresenta os casos da África Ocidental e da Nova-Guiné como sendo próximos por serem
determinados por um ponto de vista intra-humano, mas sua diferença seria o eixo da relação – vertical na
África e horizontal na Nova-Guiné. Estes dois casos teriam sido escolhidos por oferecerem exemplos de
diferenciação complementar à oposição mais marcada e antitética entre os casos Europeu e Amazônico.
201
masculino” e apresenta alguns desses rituais nos quais o corpo masculino é marcado por
elementos femininos.
Figura 02: Exposição “Qu’est ce q’un corps?”, seção “Amazônia”. Vitrine com artefatos plumários ameríndios. Foto: Nicolas Borel
©museeduquaibranly
173
“Planeta Mestiço: misturar ou não misturar?”, em cartaz entre março de 2008 e julho de 2009.
174
Gruzinski é francês, também pesquisador e professor do CNRS e da EHSS, em Paris. Ele se dedica ao
estudo das colonizações da América e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de
mestiçagem e de nascimento de espaços híbridos, e das primeiras manifestações da mundialização.
175
O conceito é especialmente trabalhado em seu livro “O pensamento Mestiço” (2001 [1999]).
176
O autor deixa claro que o termo é falacioso. É preciso atentar para o fato de que o termo “cultura”
induz a compreensão de que estas seriam conjuntos abstratos, estáveis e delimitados, quando, na verdade,
estamos falando de “sociedades, ou seja, de indivíduos, de grupos e de classes sociais que se afrontam, se
misturam, trocando ou impondo fragmentos de patrimônios dos quais são, conscientemente ou não,
portadores.” (Gruzinski, 2008, p.17).
203
Para tornar palpável esse “fenômeno planetário”, a exposição exibe 290 objetos,
pertencentes à coleção do Museu do Quai Branly ou emprestados de outras coleções,
objetos antigos e contemporâneos. Seu percurso foi dividido em quatro partes, que não
derivam de divisões geográficas nem estritamente cronológicas, mas que consistem em
uma linha argumentativa que pretende definir o objeto tematizado e a mensagem
transmitida – a mestiçagem enquanto mecanismo inevitável. Com o objetivo de fazer
com que os objetos “dialoguem entre si, que os mecanismos de mestiçagem apareçam”,
o mezanino foi completamente transformado por uma cenografia que pretendeu “criar
um percurso contínuo, um espaço amplo, dividido por colunas criando nichos para mis-
en-scènes específicas”. Utilizando materiais leves e visualmente porosos como fios
luminosos, véus, telas de lâminas metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam
espaços redondos ou ovais, chamados pelo cenógrafo responsável, Reza Azard, de
“corpos híbridos”178.
A primeira seção, chamada “Mestiços?”, se pretende um momento de
descoberta, de percepção da alteridade e questionamento de ideias supostamente gerais.
O visitante é interpelado pela apresentação de pares de objetos, como esculturas e peças
de moda, acompanhados de binômios provocativos, como: “Antigo ou Primitivo?”,
“Neo-clássico ou Primevo?”, “Clássico ou Étnico?”, “Folclórico ou Exótico?”. A ideia
aqui é desestabilizar as categorias que se imagina que o visitante já traz consigo e
mostrar que a mestiçagem está presente por toda parte.
177
A ideia de mestiçagem como mecanismo produtor de imagens é especialmente desenvolvida por
Gruzinski em “A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019)” (2006
[1990]).
178
Ver Figuras 68 e 69 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
204
Figura 03: Exposição “Planète Métisse” – Antigo ou Primitivo? Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figuras 04, 05: Códex Barbonicus. Exposição “Planète Métisse”. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 07: Árvore de músicas mestiças criada pela curadoria da exposição “Planète Métisse”. Fonte: projectiles ©M.
Blondeau
“[...] a mistura de culturas não é apenas um efeito de moda, domínio no qual nada é adquirido.
Ainda preferimos muito as oposições marcadas do que a complexidade e imprevisibilidade das
coisas. [...] Sobre esses reflexos pesa fortemente ainda uma maneira de ver o mundo que o
cristaliza em categorias e campos antagônicos demasiado simples e redutores para não
dissimular as passagens, os paradoxos e as mil ambiguidades perturbadoras que teçem o real. [...]
É desta dificuldade e desta resistência que tenta dar conta Planeta Mestiço.” 179 (Gruzinski, 2008,
p.16,17).
179
“(...) le mélange de cultures n’est pas seulement un effet de mode et qu’en ce domaine rien n’est
acquis. On prefere encore trop les oppositions tranchées à la complexité et à l’imprevisibilité des choses.
[...] Et sur ces reflexes pèse encore lourdement une maniére de voir le monde qui le cristalize en
catégories et camps antagoniques, trop simples et trop réducteurs pour ne pas dissimuler les passages, les
paradoxes et les milles ambiguïtés troublantes dont est tissé le réel. [...] C’est d’abord de cette dificulte et
de cette résistance que voudrais rendre compte Planète Métisse.”
208
Concebida para ser vista predominantemente por europeus, que “ainda preferem
as oposições marcadas à complexidade e imprevisibilidade”, a exposição oferece uma
resposta clara à pergunta que compõe seu título: “misturar ou não misturar?”. “Seria [a
mestiçagem] o fermento de um perpétuo enriquecimento e de uma constante abertura
para o outro?”, pergunta Gruzinski (2008, p.20). Salientando que não podemos esquecer
que as mestiçagens nunca são neutras, aponta para a resposta: “reservemo-nos, portanto,
a celebrar uma mestiçagem cultural destinada a preencher positivamente fraturas sociais
e econômicas dificilmente reduzidas de outra forma.” (Gruzinski, 2008, p.20).
La Fabrique des Images
A terceira exposição antropológica realizada no museu foi La Fabrique des
Images180, com curadoria do antropólogo francês Phillipe Descola181. A exposição
concebida por Descola apresentava quatro formas diferentes de figurar, ou criar
imagens. Elas correspondem às quatro formas ontológicas de conceber a natureza
(modelos analíticos de cosmovisões) – analogista, totemista, naturalista e animista182.
Estas formas ontológicas corresponderiam, e se constituiriam, por quatro formas de
figurar, de produzir imagens.
Assim, a exposição proposta por ele é dividida em quatro seções,
correspondentes às quatro formas ontológicas de figuração. A exposição tem caráter
bastante didático e se inicia por uma sala introdutória que explica o pressuposto teórico
e define as quatro ontologias. Cada uma delas é identificada por uma cor, presente nos
textos explicativos e demarcada no piso do espaço, guiando o visitante pelas respectivas
seções. As quatro formas de figurar são ainda localizadas num mapa, apresentando
sociedades representativas destas ontologias e seus respectivos objetos. Segundo
Descola, as ideias sobre como deveria ser o percurso da exposição já estavam bastante
claras para ele, mas foram complementadas pelas ideias trazidas pelo
arquiteto/cenógrafo, Pascal Rodriguez183.
180
“A Fábrica de Imagens”, em cartaz entre fevereiro de 2010 a julho de 2011.
181
Sucessor de Claude Lévi-Stauss na direção do Laboratoire d’anthropologie social (LAS) e na cadeira
de Antropologia da Natureza no Collège de France, Descola também é professor na EHSS e pesquisador
do CNRS. Suas pesquisas etnográficas foram realizadas entre os Jivaro, população indígena da Amazônia
equatoriana.
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Modelo desenvolvido em seu livro “Par-delà nature et culture” (2005).
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Ver figuras 70 e 71 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
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da América do Norte exibida entreaberta, deixando ver seu exterior de animal e seu
interior de humano, apontando para o caráter transformacional das fisicalidades em
sociedades caracterizadas por este tipo de ontologia, totalmente dissociadas da
interioridade. A figuração animista segue um mecanismo chamado de “comutação”, que
permite dar a ver a interioridade comum que torna possível uma vida social e cultural
partilhada entre todos os seres. As imagens presentes neste “mundo animado” tornam
perceptível esta subjetividade ou humanidade comum a todos apesar da diversidade de
suas aparências.. Segundo Descola, a metamorfose desta máscara, possibilitada pelo
duplo ponto de vista que oferece, revela a interioridade humana nos espíritos animais, já
que (In Blanc, 2010:7), “no mundo animado do animismo, o movimento denota uma
intenção e toda intenção remete necessariamente a uma interioridade, para a qual os
humanos servem de modelo.”.
Figura 08: Máscara de transformação. Exposição “La Fabrique des Images”. ©blissinthecity
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Goldstein (2012) explora em sua tese sobre as dreampaintings a relação de artistas contemporâneos
aborígenes e o Museu do quai Branly, que conta com trabalhos feitos por eles na estrutura arquitetônica
de seus prédios. Curiosamente, estas telas estão entre os pouquíssimos objetos recentes na exposição
permanente do museu, ainda que não seja possível perceber isso pela forma de expor, a menos que se
procure a data de produção na legenda. Além disso, estas pinturas, que têm obtido grande prestígio no
mercado de arte e alcançado altos preços de venda, foram organizadas em uma exposição recente no
museu – Aux sources de la peinture Aborigène – cujas imagens recebi pela divulgação e me chamou
atenção o estilo de exibição exatamente como numa galeria de arte, ou o mais próximo disso que já
observei no museu.
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Figura 09: Tela de pintura aborígene australiana exibida na horizontal. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Schneck
©museeduquaibranly
Figura 10: Pintura em casca de árvore, Austrália. Exposição “La Fabrique des Images. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
partes dos corpos de outros seres, compondo um ser fabuloso, híbrido, como é o caso da
estátua do homem-tubarão, originária do reino de Abomey, na África, que surge
associada a uma narrativa contextual, na qual o último rei deste povo, em guerra com a
França, se comparou a um tubarão para atacar a esquadria inimiga (Descola In Blanc,
2010, p.23). Por meio da imagem, a “qualidade tubarão” lhe é conferida e a criatura
ganha verossimilhança. Outra forma de unir elementos heterogêneos é ligar redes
espaciais e temporais, criando um laço entre o macrocosmos e o microcosmos, como
acontece nos jardins chineses, que apontam para a vida humana como uma versão
reduzida do cosmos, ou ainda em imagens como as cruzes huichol, do México, em que
cada elemento é esquecido em prol da imagem global resultante da combinação dos
elementos.
Figura 11: Escultura do Reino de Abomey, África. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Schneck
©museeduquaibranly
Figura 12: Cruz Huichol, México. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Shneck ©museeduquaibranly