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NINA VINCENT LANNES

“Curadoria nativa” no Museu “do Outro”:


Um estudo sobre a exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” e
outros diálogos curatoriais no Museu do quai Branly

UFRJ/IFCS/PPGSA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

“Curadoria nativa” no “Museu do Outro”:


Um estudo sobre a exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” e
outros diálogos curatoriais no Museu do quai Branly

NINA VINCENT LANNES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e


Antropologia como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Sociologia e Antropologia.

Orientadora: Prof. Dra. Els Lagrou

Rio de Janeiro,

2013
V768c VINCENT LANNES, Nina.
“Curadoria nativa” no “Museu do Outro”: Um estudo sobre a exposição “Maori.
Seus tesouros têm alma” e outros diálogos curatoriais no Museu do quai Branly./ Nina
Vincent Lannes. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2013.
xviii, 187 f.: il.; 29cm.
Orientadora: Els Marie Lagrou. Dissertação (mestrado) – UFRJ, IFCS, PPGSA, 2013.
Referências bibliográficas: f. 188 a 196.
1. Museu do Quai Branly 2. Maori 3. Arte 4. Objetos 5. Museu 6. Exposições 7.
Curadoria 8. Estética 9. Agência 10. Museologia. I. Lagrou, Els. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia. III. Título
Para Monique, Rogério e Tiago
Agradecimentos
O processo de pesquisa e escrita desta dissertação foi longo e por vezes árduo.
Ele não seria possível sem a ajuda de muitas pessoas.

À minha orientadora, Els Lagrou, que me ensinou tantas coisas ao longo destes
anos de trabalho, abrindo caminhos e permitindo que meus interesses e descobertas nos
guiassem nessa experiência. Agradeço também aos colegas do Núcleo de Arte, Imagem
e Pesquisa Etnológica (NAIPE), que ouviram e contribuíram para o desenvolvimento
desta pesquisa.

Aos funcionários e professores do IFCS e do PPGSA, pela convivência e


aprendizados de longa data. Aos professores Reginaldo Gonçalves e Regina Abreu
(PPGMS) por me abrirem um novo leque bibliográfico e de reflexão em suas aulas.
Agradeço à CAPES, pelo fomento à esta pesquisa.

Aos meus pais, Rogério Lannes – pelo estímulo e pela leitura generosa das
muitas versões destes capítulos – e Monique Vincent – pela escuta e por me mandar
parar um pouco e ir à praia de vez em quando. Obrigada aos dois por me inspirar e me
ensinar, por acreditarem em mim sempre, e me apoiarem em todos os momentos, e por
tantas escolhas que fizeram me permitindo chegar até aqui. E continuar.

Agradeço também a minha (boa) madrasta Paula Lacombe, fonte inesgotável de


positividade, e as minhas irmãs: Julia Vincent, minha pequena e notável companheira
da vida, e Mariah Lacombe, que chegou para ser parceira nas aventuras e desventuras
do caminho. O carinho de vocês, de perto ou de longe, me ajuda muito.

Agradeço imensamente a toda minha família, primas e primos, tias e tios, que
acompanham meu crescimento e minhas conquistas, contribuindo para minha formação,
e especialmente pela ajuda na viabilização do projeto de estudar na França. Aos meus
três avôs: Michel, Valdir e Wilson, pessoas tão diferentes e tão admiráveis, que me
proporcionaram tanto, em tantos níveis. E as minhas três avós: Elza, que me incentivou
a ter meu próprio “bom gosto” e a ver arte em tudo, Leuza, que conhecia as histórias e
as artes de todos os artesanatos, e Isis, que me ensinou a arte de falar francês.

Às minhas lindas amigas de sempre: Clarice Nicioli, Monique Peçanha, Camila


Bastos, Marina Motta, Patrícia Salles e Juliana Tillman. Queridas, obrigada por escutar
meus dramas e me colocar pra cima, além de alimentar minhas discussões intelectuais
com seus conhecimentos tão múltiplos. Vocês tornam minha vida mais alegre.

Aos amigos e colegas de profissão, Ana Gabriela Morim, Diego Madi, Bruno
Cardoso, Maria Lima e Diogo Lyra, obrigada pelas trocas e por compartilharem suas
experiências comigo.

Foi imprescindível o apoio e cumplicidade dos amigos que fiz na turma do


mestrado, grata surpresa da vida, com os quais troquei preciosas reflexões e
experiências. Obrigada por tudo, vocês são incríveis!

Agradeço ainda à Maria Silvia Hanna, por cuidar da minha mente, e Ana Paula
Carvalho, por cuidar do meu corpo. Ambos foram frequentemente confrontados com
seus limites neste processo.

Fazer trabalho de campo fora do Brasil foi uma decisão complicada. Algumas
pessoas foram fundamentais para a viabilização desta viagem. Agradeço a ajuda de
Aurélio Vianna e Justa Helena Franco, sem a qual eu não teria podido ir à campo.
Agradeço também ao Gérome Ibri, Ana Gabriela Morim, Maxime Échadour, Camila
Áreas, Luciana Heymann, Diaba Dialou e Marina Motta pela prontidão em encontrar
abrigo para esta pesquisadora, e a Ana Coutinho pela acolhida e pela prazerosa troca de
ideias.

Agradeço ao Musée du quai Branly e seus funcionários – mesmo aqueles que


nem sabiam que tinham virado objeto desta pesquisa – e, especialmente, à Anne
Christine Taylor e Philippe Descola, pela disponibilidade em contribuir com a pesquisa.

Por fim, agradeço ao Tiago Coutinho, meu companheiro, interlocutor, crítico e


apoiador constante. Obrigada pelo carinho, por me ouvir (muito), por me falar coisas
que precisava ouvir, por compartilhar comigo a vida e suas reflexões sobre meu
trabalho, sobre o seu e sobre o mundo. E tantas outras coisas.
Resumo

Vincent, Nina. “Curadoria Nativa” no Museu “do Outro”: Um estudo sobre a


exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” e outros diálogos curatoriais no Museu do
quai Branly. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

Esta dissertação analisa a exposição “Maori. Seus tesouros têm alma”


apresentada no Museu do quai Branly, em Paris - França, de setembro de 2011 a janeiro
de 2012, que apresentou a cultura e a arte dos Maori, povo indígena da Nova Zelândia.
A exposição foi caracterizada como a primeira experiência de “curadoria nativa”
realizada na instituição e culminou com o repatriamento para a Nova Zelândia de vinte
crânios mumificados maori que pertenciam a coleções de museus franceses. Ela marca o
encontro do Museu Te Papa Tongarewa da Nova Zelândia, que preconiza controle
nativo sobre os objetos levados para Europa por colonizadores, e o Museu do quai
Branly, um museu de “arte etnográfica”, herdeiro de coleções coloniais e de uma visão
universalista de culturas e de suas produções artísticas. Partindo de descrição
etnográfica e análise estética, pretende-se explorar o processo de atribuição de agência a
uma exposição, através da atividade curatorial. Para tanto, são relacionados elementos
visuais e discursivos presentes na exposição e mobilizados para sua realização,
explicitando o papel desempenhado por ela no discurso de “diálogo entre culturas”
proposto pela instituição francesa. São trazidos contrapontos encontrados nas propostas
curatoriais de outras exposições temporárias da mesma instituição e de sua exposição
permanente, revelando o protagonismo do curador – que assume formas variadas, mais
ou menos explicitadas – como principal mediador entre público e construções culturais
traduzidas esteticamente.

Palavras chave: Arte, Objetos, Museu, Exposições, Curadoria, Estética, Agência,


Museu do quai Branly, Maori
Abstract

Vincent, Nina. “Native Curatorship” at the Museum of “the Other”: a study on the
exhibition “Maori. Their treasures have a soul” and other curatorial dialogues in the
quai Branly Museum. Dissertation (Master in Sociology and Anthropology). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

This dissertation analyzes the exhibition “Maori. Their treasures have a soul”,
which took place at the Quai Branly Museum, in Paris, France, from September 2011 to
January 2012. The exhibition which presented the art and culture of the Maori, the
indigenous people of New Zealand, was characterized as the museum’s first “native
curatorship” exhibition and culminated with the repatriation to New Zealand of twenty
maori mummified heads which were part of French museums collections. The
exhibition marks the interaction between Te Papa Tongarewa Museum, which
advocates native control over maori objects taken to Europe by colonizers, and Quai
Branly Museum, an “ethnographic Art” institution, heir of colonial collections and of a
universalist notion of cultures and their artistic productions. Based on an ethnographic
description and an aesthetic analysis, the research aimed to explore the process of
attributing agency to an exhibition through curatorial practice. In order to do so, visual
and discursive elements present in the exhibition and mobilized for its conception were
articulated, stressing its role on the “dialogue between cultures” discourse proposed by
the French institution. To further illustrate this process, these elements are contrasted
with other curatorial proposals developed by the institution at other temporary
exhibitions and at its permanent exhibition, revealing the curator’s role – that appears
more or less explicitly – as the main mediator between public and cultural constructions
aesthetically translated.

Key-words: Art, Objects, Museum, Curatorship, Exhibitions, Aesthetics, Agency,


Quai Branly Museum, Maori
Lista de Imagens
Capitulo 1
Figura 1: Localização do Museu do quai Branly na cidade de Paris, França. Fonte:
Google Earth
Figura 2:Vista exterior do Bâtiment Musée do Museu do quai Branly e suas “caixas
cenográficas”. Setembro/2007. O jardim do museu, concebido pelo paisagista Gilles
Clément foi realizado graças ao patrocínio da Fundação GDF Suez. Foto: Nicolas Borel
©museeduquaibranly
Figura 3: Muro vegetal, criado por Patrick Blanc, instalado na fachada dos prédios
administrativos do Museu do quai Branly. 2005. Foto: Nicolas Borel
©museeduquaibranly
Figura 4: Distribuição e apresentação dos espaços do Museu do quai Branly. Fonte:
www.museeduquaibranly.
Figura 5: Planta do Batiment Musée. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

Capítulo 2. 1
Figura 6: Cartaz da Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme no Museu do quai
Branly.2011. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
Figura 7: Vitrine da loja de lembranças do museu. 2011. Foto: Nina Vincent
Figura 8: Planta da Galerie Jardin no Museu do quai Branly. Fonte:
www.museeduquaibranly.fr
Figura 09: “Du noir à la lumière”. Te Putahitanga O Rehua – 2005. Reuben Paterson
Video 4’30”. Foto: Nina Vincent
Figura10: Pedra Mauri e legenda “touchez cette prierre!”, na exposição Maori. Leurs
trésors ont une âme. Foto: Nina Vincent. 2011.
Figura 11: “Hine Haitaka” (Pedra-para-tocar de Pounamu) Iwi (tribo) Poutini Ngai
Tahu, rio Arahua, Ilha do Sul. Pounamu (Jade da Nova Zelândia-Aotearoa). Pertence ao
Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
Figura 12: “PW1 (Tiki Remix)”. 2001. Saffron Te Ratana. Caneta e óleo sobre tela.
Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the
city.
Figura 13: Sala introdutória da exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto:
Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
Figura 14: Painel sobre o Tratado de Waitangi na exposição Maori. Leurs trésors ont
une âme. Foto: Nina Vincent.
Figura15: Molde do rosto de Wiremu Te Manewha. Entorno de 1885. Gottfried
Lindauer e Sir Walter Buller. Gesso pintado. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa,
NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 16: “Waka ama monoplace (piroga a remos) Surffriger”. 2008. Concebida por
Kris Kjeldsen, Northland. Fabricada por Aqua Fibrecraft, Napler, Baia de Hawke.
Resina de poliéster e fibra de vidro, alumínio, tubos de fibra de carbono. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto: Gautier Deblonde. ©museeduquaibranly
Figura 17: “Taurapa (Popa de canoa) proveniente da waka taua (canoa de guerra)
Kahutiaterangi. Madeira e concha de paua (abalone). (1800-1900). Pertence ao Museu
Te Papa Tongarewa, NZ. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 18: Whare tupuna (casa de reunião ancestral), chamada Tokopikowhakahau.
Madeira de Totara, concha de paua, abalone. Por volta de 1872. Pertence ao Museu Te
Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Fonte:
www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 19 e 20: “Metaphi #4, Metaphi#5, Metaphi #6” de Darryn George. Óleo sobre
tela. 2006. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme. Foto: Nina Vincent
Figura 21: Sala Bastion Point na exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do
quai Branly, 2011. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly
Figura 22: Instrumentos antigos de tatuagem (moko). Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 23: Instrumentos modernos de tatuagem (moko). Exposição Maori. Leurs trésors
ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 24: Painel Ta Moko, encomendado pelo antropólogo Augustus Hamilton,
esculpido por Tene Waltere, 1896. Madeira de totara, concha de paua (abalone) e
pintura. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 25: Vitrine com dois “Tekoteko” (escultura posicionada no vértice frontal do
telhado das casas de reunião). Madeira de totara, nacre. Entre 1500 e 1900. Pertencem
ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 26: Capa de plumas. Entre 1800 e 1900. Plumas e fibra de linho. Pertence ao
Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent
Figura 27: “Nga Puhihi o Nga Whetu – Rays of the stars” de Diane Prince. Capa de fios
de cobre. 2004. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Foto: Nina Vincent.
Figura 28: “Taranga” de 1982 e “Hine-Titama” de 1980, de Robyn Kahukiwa. Óleo
sobre painel de madeira. Foto: Nina Vincent
Figura 29: Flauta moderna, feita por Rangi Kipa, em Corian e concha de abalone, em
2000; Flauta antiga esculpida, feita de madeira, concha de abalone e fibras, entre 1500 e
1900. Foto: Nina Vincent.
Figura 30: Fotografia de John Miller da Marcha pela Terra, em Wellington, 1975. Foto:
Nina Vincent.
Figura 31: “Mesa posta de whare kai (sala de jantar)”. Mesa de cavaletes, assentos,
louça e decorações. Louça, talheres e decoração emprestados pelo comitê do Marae Te
Ore Ore. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Foto: Nina Vincent.
Figura 32: “Nêmesis” de Reubent Patterson. Purpurina e pó de diamante. 2005. Foto:
Nina Vincent.
Figura 33: “Pataka (depósito) de chefe, chamado Te Awhi. Madeira de totara e concha
de abalone. Esculpido por Te Metara em 1839. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa,
NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto:
Nina Vincent.
Figura 34: “Foreshore defender” (guardião do litoral) de Bett Graham. Ferro forjado.
2004. Pertence ao Museu Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont
une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent
Figura 35: Sala Marcha pelo Litoral e Fundos Marinhos. Foto: Gautier Deblonde
©museeduquaibranly
Figura 36: Vitrine com vários “Pa Kahawai” (acessórios de pesca). Feitos em osso de
baleia, abalone, pedra de jade e fibra de linho, entre 1800 e 1900. Pertence ao Museu Te
Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 37: “Koura (lagosta) dentro de um kete (cesto)”. Fotografia de Ian Batchelor.
Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina
Vincent.

Capítulo 2.2
Figura 38: Painéis cenográficos iluminados com padrões gráficos Maori. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Fonte:
www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 39: Vitrine mostrando remos modernos (entre 200 e 2008). Diversos tipos de
madeira e carbono. Fabricada por Tai Paddles, Raglan, Nova Zelândia. Exposição
Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai Branly, 2011. Foto: Nina Vincent.
Figura 40: “Heitiki, Whakakitenga – Revelation” de Fiona Pardington, 2002. Pertence
ao Museu do quai Branly. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011. Fonte: www.blissinthecity.fr ©bliss in the city
Figura 41 e 42: Hei Tikis danificados fotografados por Fiona Pardington. Fonte:
museeduquaibranly.fr ©museeduquaibranly

Capítulo 3.1
Figura 43: “VEE” de Shane Cotton, 2006. Tinta acrílica sobre tela. Pertence ao Museu
Te Papa Tongarewa, NZ. Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme, Museu do quai
Branly, 2011.
Figura 44: Ilustração representando Saartje Baartman, a Vênnus Hottentotte. Na
exposição “L’Invention du Sauvage”, no Museu do quai Branly, 2011. Fonte:
www.parispelemele.fr ©paris pelemele
Figura 45: Fredéric Mitterrand discursando na cerimônia de restituição dos toi moko.
Fonte: Radio NZ (http://www.radionz.co.nz/news/national/96666/return-of-toi-moko-
heralds-%27new-chapter-of-respect%27)
Figura 46: Mulheres maori em ritual de acolhimento dos toi moko. Foto: Laurent
Cipriani. Fonte: Art Daily
(http://www.artdaily.com/index.asp?int_new=53199&int_sec=2#.UP2egPKgSA4)
Figura 47: Passarela que dá acesso ao Plateau des Collections do Museu do Quai
Branly com a instalação “The River”, de Charles Sandinson. Julho, 2010. Esta obra foi
realizada graças ao apoio de Pernod Ricard, primeiro grande mecenas do Museu do quai
Branly. Foto:Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 48: Vista do Plateau des Collections, que abriga a exposição permanente do
Museu do Quai Branly. Foto:???. ©museeduquaibranly
Figura 49: “La rivière”, Plateau des Collections do Museu do quai Branly. Visita
contada com crianças deficientes visuais. 2008. Foto: Pomme Célarié.
©museeduquaibranly
Figura 50: Painel no Plateau des Collections com a planta da exposição permanente do
Museu do quai Branly, dividida por áreas geográficas/culturais. Foto: Nina Vincent
Figura 51: Plateau des Collections, zona Oceania. Objetos maori na exposição
permanente do Museu do Quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 52: Cartaz da Exposição Maori. Leurs trésors ont une âme no metrô de Paris,
convidando o público para a exposição e para os eventos ligados ao Mundial de Rúgby
ocorridos no Museu do quai Branly em função da exposição. 2011. Foto: Cyril
Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura53: “Hei Tiki”, pingente antropomórfico maori feito de pedra de jade, pertencente
à coleção do Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
©museeduquaibranly
Figura54: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Oceania. 2006. Foto:
Nicolas Borel. ©museeduquaibranly
Figura 55: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona África, Museu do
quai Branly, 2013. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 56: Plateau des Collections do Museu do Quai Branly, zona Américas, Museu
do quai Branly, 2011. Foto: Claude Germain. ©museeduquaibranly
Figura 57: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Américas, 2008.
Foto: Pomme Célarié. ©museeduquaibranly
Figura 58: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Ásia, 2013 Foto:
Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 59: Plateau des Collections do Museu do quai Branly, esculturas africanas, 2013.
Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly
Figura 60: Cartaz da exposição “Primitivism” in 20th Century Art: Affinity of the tribal
and the modern. (setembro 1984/janeiro1985 – MoMA, Nova York, EUA. Esta imagem
é também a capa do catálogo da exposição, editado por seu curador, William S. Rubin.
Fonte: http://www.africapicasso.wordpress.com
Figura 61: Vitrine da exposição “Cheveux Chéris: frivolités et trophées”, no Museu do
quai Branly, apresentando cabeças reduzidas Jivaro. 2012. Foto: Gautier Deblonde.
©museeduquaibranly
Figura 62: Ilustrações míticas feitas por artistas Kwoma, da Papua Nova Guiné, para a
exposição “Rouge Kwoma” no Museu do quai Branly, 2008. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly
Figura 63: Vitrine com “legenda à duas vozes” da exposição Artistes d’Abomey.
Dialogue sur um Royaume africain, no Museu do quai Branly, 2009. A exposição foi
realizada graças ao patrocínio da Fundação Total e de Marie-Christine e Lionel Zinsou
da Fundação Zinsou. Foto: Antoine Schneck. ©museeduquaibranly
Figura 64: Cenografia da entrada da exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Gautier Deblonde. ©museeduquaibranly
Figura 65: Cartaz presente na exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Fanny Duval ©parispelemele
Figura 66: Cartaz presente na exposição Exhibitions. L’Inventions du Sauvage, no
Museu do quai Branly, 2011. Foto: Fanny Duval ©parispelemele

Capítulo 3.2
Figura 67: Sala introdutória da exposição Qu’est ce q’un corps?, no Museu do quai
Branly, com instalação criada pela curadoria. 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 68: Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, no Museu do quai Branly,
cenografia de Reza Azard. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M Blondeau.
Figura 69: Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, no Museu do quai Branly,
cenografia de Reza Azard. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M Blondeau.
Figura 70: Cenografia de Pascal Rodrigeuz para a exposição La Fabrique des Images no
Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck. ©museeduquaibranly
Figura 71: Painel explicativo da divisão da exposição La Fabrique des Images no
Museu do quai Branly. Foto: Nina Vincent

Figuras Do ANEXO 1
Figura 1: Instalação com imagens do corpo na Europa Ocidental, na exposição Qu’est
ce q’un corps?, no Museu do quai Branly, 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 2: Vitrine com artefatos plumários ameríndios na exposição Qu’est ce q’un
corps?, no Museu do quai Branly, seção “Amazônia”. 2006. Foto: Nicholas Borel.
©museeduquaibranly
Figura 3: Vitrine com duas esculturas: “Antigo ou Primitivo?”, na exposição Planète
Métisse: to mix or not to mix?, no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly
Figura 4: Códex Barbonicus, México Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?,
no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 5: Códex Barbonicus, México. Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?,
no Museu do quai Branly. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 6: Bandeira Voudu, Haiti. Exposição Planète Métisse: to mix or not to mix?, no
Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr
Figura 7: Árvore de músicas mestiças na exposição Planète Métisse: to mix or not to
mix?, no Museu do quai Branly. Fonte: http://project-iles.net/projets/exposition-planete-
metisse- ©M. Blondeau
Figura 8: Máscara de transformação, América do Norte, na Exposição La Fabrique des
Images no Museu do quai Branly. Fonte: www.blissinthecity.fr ©blissinthecity
Figura 9: Tela de pintura aborígene australiana na Exposição La Fabrique des Images
no Museu do quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club
Enterprises 2009-2010. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 10: Pintura em casca de árvore, Austrália, na Exposição La Fabrique des
Images. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club Enterprises 2009-2010.
Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 11: Escultura do Reino de Abomey, África. Exposição La Fabrique des Images
no Museu do quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club
Enterprises 2009-2010.Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly
Figura 12: Cruz Huichol, México. Exposição La Fabrique des Images no Museu do
quai Branly. A exposição foi realizada graças ao patrocínio de Club Enterprises 2009-
2010. Foto: Antoine Shneck ©museeduquaibranly
Sumário

1. Introdução _________________________________________________________ 18
2. A exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” ______________ 41
2.1 Visita guiada _______________________________________________________ 42
2.1.1 Whakapapa (identidade e interconexão) _____________________________________ 51

2.1.2 Mana (prestígio e autoridade) ______________________________________________ 63

2.1.3 Kaitiakitanga (proteção e preservação) ______________________________________ 68

2.2 Estratégias expográficas: agências e discursos ____________________ 76


2.2.1 Mana Taonga: exibindo “tesouros” que têm “alma” ____________________________ 80

2.2.2 tino rangatiratanga: a autodeterminação de uma cultura viva _____________________ 94

2.2.3 Um display político: controle cognitivo e objetos que ilustram textos _____________ 104

3. O Museu do quai Branly: etnografia de um diálogo ______ 107


3.1 Curadoria nativa no “Museu do Outro” __________________________ 108
3.1.1 Mokomokai: objetos em disputa __________________________________________ 109

3.1.2 Sacralidade modernista e amnésia museal ___________________________________ 130

3.2 Outros diálogos no Museu do quai Branly _______________________ 150


3.2.1 Experiências colaborativas _______________________________________________ 152

3.2.2 Diálogos antropológicos _________________________________________________ 160

4. Conclusão _________________________________________________________ 174


Referências _____________________________________________________ 189
Anexo ___________________________________________________________ 198
18

1. Introdução
A pesquisa que apresento nesta dissertação é resultado de uma reflexão acerca
das relações entre Antropologia e Arte. Tomamos como objeto central a exposição
“Maori. Seus tesouros têm alma”, exibida no Museu do quai Branly, na França. Parte-se
da premissa de que a análise desta exposição revela relações entre os atores envolvidos
em sua realização – pessoas, elementos materiais e imateriais – que nos permitem
propor articulações entre estas e um esboço mais geral do perfil deste museu. Para
tornar mais clara para o leitor a discussão que realizaremos, apresentarei primeiro o
Museu do quai Branly, o cenário onde se desenvolve esta pesquisa. Em seguida,
esboçarei alguns referenciais teóricos que contribuíram para a escolha do recorte
adotado e para a análise do objeto, explicitando as perspectivas adotadas e apontando os
assuntos, eventos, atores e relações que serão explorados ao longo da dissertação.

Em 23 de junho de 2006 foi inaugurado em Paris, considerada uma das mais


importantes capitais culturais do mundo, o Musée du quai Branly, um museu
inteiramente consagrado à Arte não europeia. Ele fica numa região prestigiosa da
cidade, o 7ème arrondissement, na rive gauche (margem esquerda) do Rio Sena.
Chegando de ônibus ou de metrô ao local, passa-se pelo Rio Sena, de onde se tem uma
das mais belas vistas da cidade, de suas pontes, arquitetura e dos numerosos grupos de
turistas que se aglomeram no Champs de Mars, onde se localiza a Torre Eiffel, ponto
turístico mais famoso da capital francesa, a poucos metros do novo museu.

Nos arredores do cais Branly, vê-se prédios residenciais do século XIX , uma
grande concentração de sedes de instituições oficiais ou políticas, hotéis, lojas e
restaurantes de luxo. Há também outros museus, como o Musée d’Art Moderne de la
ville de Paris, o Palais de Tokyo, o Musée Rodin, mais à frente, na mesma margem do
rio, o Musée d’Orsay e, na margem direita, mais distante um pouco, o Musée du
Louvre, dois dos museus mais visitados no mundo1. O museu fica próximo a outros
pontos turísticos celebres e de grande visitação como os Jardins do Trocadéro, a
Esplanada dos Inválidos, a Avenida Champs Élysées e o Arco do Triunfo.

1
Segundo seus sites oficiais, o Musée d’Orsay recebeu 3 579 130 visitantes em 2012 e quase 10 milhões
de pessoas foram ao Musée du Louvre, garantindo sua permanência confortável no primeiro lugar
mundial em número de visitação.
19

Figura 1: Localização do Museu do quai Branly na cidade de Paris. Fonte: Google Earth

O Museu do quai Branly começou a ser projetado em 1996 pelo então presidente
francês Jacques Chirac, um amante da chamada “Arte Primitiva”, com a intenção de ser
“uma experiência estética incomparável ao mesmo tempo que uma lição humanista
indispensável para nosso tempo.”2. Seu projeto inicial consistia em fazer entrar as
“Artes Primitivas” no Louvre, o que acabou ocorrendo na forma de um pavilhão que
hoje é visto como um “representante” do quai Branly no Louvre3. A decisão de
construir um novo museu, inteiramente dedicado às “artes de povos não ocidentais”,
mobilizou muitos atores, como antropólogos, museólogos, colecionadores e ativistas,
envolvidos em sua concepção ou tornando-se críticos incansáveis do projeto.

Projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel4, o museu deveria se fundir com
seus jardins, criando uma espécie de floresta urbana conceitual. O jardim, que é também
uma de suas atrações, ocupa 18 000 m2, ou seja, 75% da superfície total do museu, e
possui uma grande diversidade de espécies vegetais dispostas de forma a dar a

2
Discurso inaugural do museu proferido por Jacques Chirac, então Presidente da República da França,
em junho de 2006.
3
O chamado Pavillon des Sessions é um espaço alugado e administrado pelo Museu do quai Branly que
abriga as “200 grandes obras-primas da arte não Ocidental”. A expografia, idealizada pelo colecionador
de Arte Primitiva, Jacques Kerchache, é minimalista, desprovida de contextualização, que singulariza e
valoriza aspectos formais e estéticos dos objetos. Foram selecionadas para o pavilhão predominantemente
esculturas antropomórficas, organizadas por áreas geográficas para as quais se apresenta apenas um mapa
por continente. No final do percurso há uma “sala de interpretação”, onde se tem acesso à postos
interativos com material audiovisual explorando aspectos formais dos objetos e algumas informações
sumárias sobre seus contextos de proveniência.
4
Vencedor de um concurso lançado pelo governo da França para a construção do museu, Nouvel é
conhecido por projetos arrojados como o Instituto do Mundo Árabe, em Paris, e a Torre Aigües, em
Barcelona.
20

impressão de um jardim selvagem. Há ainda um enorme “muro vegetal” criado em parte


da fachada frontal do museu, uma superfície vertical de 800 m2 coberta por cerca de
15.000 plantas de 150 espécies exóticas e um lago onde vivem alguns patos e aves.

A fachada frontal do museu, na entrada pelo cais Branly, é demarcada por um


grande muro transparente, onde adesivos gigantes anunciam a programação do
momento e exibem os cartazes das exposições atuais. Por trás do jardim é possível ver o
prédio principal, composto por grandes cubos pintados de cores terrosas que flutuam
sobre pilotis. Além deste prédio, o batiment musée, existem mais quatro, todos
interligados por passarelas com vista para o jardim.

Figuras 2 e 3: Fachada frontal do Museu do quai Branly. Fotos: Nicolas Borel ©museeduquaibranly
21

Diversos tipos de atividades são realizadas no museu, oferecendo informação e


entretenimento para um público com objetivos e interesses variados. Há apresentações e
performances de música e dança, oficinas artísticas, ateliês temáticos, palestras, aulas
oferecidas em parceria com as principais universidades da cidade, visitas guiadas com
diferentes focos, como “descoberta”, “gourmet”, “contada” etc., colóquios científicos,
ciclos de filmes. A própria estrutura física do museu oferece outras atrações além das
exposições em cartaz.

O complexo do museu conta com dois restaurantes, um no jardim e outro no


terraço, onde são oferecidos cafés, lanches ou refeições sofisticadas com nomes e
ingredientes exóticos. Perto da entrada há uma loja de lembranças que vai muito além
dos souvenires produzidos pelo próprio museu como ímãs e caderninhos estampados
com sua logomarca. Vende literatura especializada em Antropologia e Arte, objetos
artesanais de todo o mundo, comercializados seguindo as regras do “commerce
équitable”5, CDs e DVDs de música tradicional e folclórica, brinquedos, acessórios de
moda etc. A vitrine da loja é arrumada especialmente para as exposições em cartaz,
exibindo produtos temáticos.

Há ainda o Teatro Claude Lévi-Strauss, com uma grande sala para 390 pessoas e
uma sala de cinema para 100, três salas de aula, três ateliês, um salão de leitura e uma
mediateca especializada em Antropologia e Arte, onde estão disponibilizadas 25.000
obras em livre acesso e dez vezes mais sob demanda, além de documentos e
iconografias. Esta confortável biblioteca ocupa 1.350 m2, tem vista panorâmica para a
cidade e a Torre Eiffel e equipamento eletrônico moderno patrocinado pela Sony.

5
Muito em voga entre as classes média e alta na França, esta forma de comércio pretende garantir, por
meio de um preço mais elevado, o pagamento de valores justos a artesãos e produtores em geral
originários de países do terceiro mundo, sendo uma das bases do desenvolvimento sustentável.
22

Figura 4: Distribuição e apresentação dos espaços do Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

A coleção do Museu Branly conta com mais de 300.000 obras, entre artefatos de
todos os tamanhos, instrumentos musicais, tecidos, joias, pinturas, fotografias
documentos, etc. Muitos destes objetos foram herdados do antigo Museu do Homem,
também em Paris, que fechou suas portas. Sua reserva técnica, no subsolo, ocupa 6.000
m2 e há ainda uma “reserva aberta”, no centro do prédio principal, exclusiva para a
grande coleção de instrumentos musicais. Nela, os objetos estão armazenados em
estantes dentro de um largo cilindro de vidro que pode ser visto por quem passa pelas
escadas, acompanhados de gravações de sons diversos emitidos de forma superposta em
volume baixo que causa surpresa naqueles que os percebem. Há um trabalho constante
de produção de imagens digitais a serem disponibilizadas na internet acompanhadas de
informações técnicas sobre os objetos. Um grande número de objetos já está acessível
online, mas o número continua pequeno se comparado à dimensão da coleção.

Apenas um décimo de toda a coleção é exibido na exposição permanente do


museu. O Plateau des Collections exibe cerca de 3.000 objetos, organizados por áreas
culturais, compreendendo África, Américas, Ásia e Oceania. Trata-se de um ambiente
amplo, de 5.300m2, visível de vários pontos do prédio. A arquitetura interna é indutiva
de determinada leitura: o uso de cores terrosas, iluminação baixa, nichos em forma de
caverna e informação discreta sobre os objetos, assim como a própria seleção dos
objetos expostos, fizeram com que a concepção do Plateau des Collections fosse alvo
de críticas sobre o conceito primitivista que guia a expografia do museu. Há, no entanto,
outros quatro espaços expositivos: a Galeria Jardim, situada no térreo, próxima à
entrada, o Mezanino Atelier Martine Aublet6 e os Mezaninos Leste e Oeste, acessíveis

6
Até 2011 o espaço abrigava o Mezanino Multimídia. Esta nova ocupação do espaço faz homenagem à
fundadora do programa de mecenato do Museu do quai Branly. Sua cenografia, segundo o site do museu,
23

por escadas dentro da exposição permanente. Nestes espaços há lugar para outros estilos
de expografia relativamente independentes daquela usada na exposição permanente.

Figura 5: Planta do Batiment Musée. Fonte:www.museeduquaibranly.fr

Desde sua inauguração, em 2006, o Museu do quai Branly recebeu mais de 8


milhões de visitantes, quase 1,5 milhão no último ano (2012)7. Frequentação
comemorada pelo museu, mas certamente bem menor do que a de outras instituições
mais tradicionais da cidade. A porcentagem de turistas que visitam o museu não é
majoritária, mas expressiva: cerca de 30%8. Os estudantes, geralmente em grupos
guiados, representam uma boa parte do público, desde os mais novinhos, que percorrem
os grandes espaços do museu de mãos dadas em filas, até os mais velhos, adolescentes
tagarelas que parecem demorar a desgrudar os olhos das telas de seus celulares para
observar os objetos expostos. Há também muitas famílias que vão às exposições
especialmente no final de semana e pessoas sozinhas ou em pares, das mais diversas
idades9.

Em sua grande maioria, trata-se de um público altamente escolarizado, francês,


especialmente parisiense, o que tem demandado investimento em atividades festivas e
informativas dirigidas a outros públicos, como as realizadas em regiões da Grande-Paris
e em outras cidades da França, além do aumento de parcerias com instituições
internacionais. Mesmo assim, segundo o diretor, Stéphane Martin, o maior objetivo do

é “inspirada em um gabinete de curiosidades” e acolhe instalações, pequenas mostras de coleções vindas


de fora ou novas aquisições, propostas por artistas e personalidades que tem “carta branca” para criar.
7
Números divulgados pelo museu em comunicados à imprensa.
8
http://www.atlantico.fr/decryptage/quai-branly-publics-populaires-peur-musees-paris-cultures-non-
europeennes-134293.html
9
Informações obtidas através da observação em loco, e em pesquisa na imprensa. Em 2012, 55% dos
visitantes estavam em família, 35% em casal e 26% sozinhos. Sexo e idade dos visitantes não parecem ser
critérios muito desiguais, apenas note-se que o público jovem (menos de 18 anos) vem crescendo e em
2012 chegou a 22% dos visitantes (Comunicado à imprensa “Fréquentation 2012”).
24

museu não é bater recordes de numero de visitantes. O que se deseja é atingir um


público que normalmente se sente intimidado por um museu e não tem o hábito deste
passeio, por isso as parcerias com organizações sociais e iniciativas como a distribuição
gratuita de bilhetes que incluem até o transporte para chegar ao museu10. Além de atrair
um público popular, outra prioridade apontada pelo diretor é fidelizar os visitantes, o
que já vem acontecendo, visto que no ano de 2012 atingiu-se pela primeira vez a marca
de 50% dos visitantes retornando ao museu após no mínimo uma visita.11

O nome do Museu do quai Branly é acompanhado de um slogan: “Lá onde


dialogam as culturas”12. Esta frase resume a missão oficial do museu: “legitimar
culturas que permaneceram pouco conhecidas por muito tempo, tornando-as enfim
acessíveis ao grande público” e ser “um fórum de pensamento aberto para o mundo,
favorecendo o estabelecimento de um diálogo entre culturas de todos os países (não
ocidentais e ocidentais).”13

Levando a sério o objetivo expresso pelos organizadores, procuraremos nesta


dissertação compreender o museu a partir dos diálogos que ocorrem dentro dele. Como
aponta Gonçalves, nos estudos antropológicos recentes sobre museus e objetos

“as coleções e museus etnográficos deixam de aparecer como conjuntos de práticas


ingênuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaços onde se constituem formas
diversas da autoconsciência moderna: a do etnógrafo, a do colecionador, a do nativo, a do
civilizado, do primitivo, etc.” (Gonçalves, 2007, p. 26).

Certamente, muitas vozes foram ignoradas durante a formulação de seu projeto e


funcionamento e os diálogos possíveis neste museu não coincidem totalmente com o
discurso humanista presente em sua proposta. Mas, após mais de seis anos de sua
abertura, não seria possível nem desejável permanecermos atrelados às mesmas análises
e críticas dirigidas à instituição no período anterior e logo após a abertura do mesmo,
sendo necessária uma análise mais neutra e atual dos diálogos que de fato ocorrem na
instituição.

10
Iniciativa realizada em Montreuil, na região metropolitana de Paris em 2011.
11
http://www.atlantico.fr/decryptage/quai-branly-publics-populaires-peur-musees-paris-cultures-non-
europeennes-134293.html
12
“lá oú dialoguent les cultures”.
13
Esta é a “dupla missão” do museu, retirada do Dossiê de Presse – Le Musée du quai Branly”.
25

Conheci o museu pessoalmente em 200914. Na realização desta pesquisa, o


período que passei em Paris antes de ingressar no mestrado revelou-se extremamente
valioso. Frequentando sistematicamente o museu e suas dependências e visitando
diversas exposições, pude observá-lo calmamente, mergulhar em sua atmosfera, ao
mesmo tempo em que pude conhecer melhor a história de sua criação e da formação da
coleção que abriga, por meio de publicações e relatos. Foi também a ocasião de ter
contato com a cultura francesa, seu intenso hábito de frequentar museus e sua forma de
olhar a arte e as culturas de outros povos. Neste período pude igualmente aprimorar meu
conhecimento da língua francesa, ferramenta indispensável para esta pesquisa15.

Grande parte dos cursos oferecidos no museu e da literatura de Antropologia da


Arte que já conhecia investigavam os usos e significados daqueles objetos, que não
foram feitos para serem exibidos em museus, buscando entender seu “contexto
original”. Mas estudar aqueles objetos de dentro de um museu me fazia mudar a
perspectiva e questionar “o que tinham se tornado lá dentro?”. A atmosfera de um
museu popular e movimentado, com uma programação intensa de atividades e
exposições temporárias, me trouxe uma série de questões: Como expor este tipo de
objeto e em quê estas escolhas influenciam na compreensão que teremos deles? Em quê
se transformam os objetos em cada uma dessas exposições? Como ideias se expressam
por meio de objetos? E quando as ideias expressas não são aquelas daqueles que
fabricaram os objetos? Pode-se concluir que se fabrica então um objeto, que é a própria
exposição.

Uma de minhas primeiras pesquisas na Iniciação Científica teve como tema a


comparação de duas exposições que contavam com objetos de “arte não ocidental” no
Rio de Janeiro. O contraste entre a exposição “Por ti América” (2005) e “Trópicos –

14
Estava no final da graduação em Ciências Sociais quando realizei um intercâmbio através do convênio
da UFRJ com a Université Paris X- Nanterre. Passei todo o ano de 2009 e o início de 2010 morando em
Paris, cursando disciplinas nesta universidade. Neste período, tive a oportunidade de frequentar o Museu
do quai Branly como visitante das exposições, como ouvinte de alguns cursos oferecidos em sua
Universidade Popular e ainda realizando levantamentos iconográficos e bibliográficos no acervo do
museu para uma pesquisa que desenvolvia no Brasil junto ao NAIPE (Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa
Etnológica) – UFRJ, sob coordenação de minha orientadora Els Lagrou.
15
Optei por traduzir livremente a integralidade das citações em língua estrangeira (que não possuem ou
não consegui consultar versão em português) para facilitar a leitura e o acesso ao conteúdo. Apresento em
notas a versão original das citações bibliográficas acadêmicas e de alguns nomes importantes. Textos de
exposição, catálogos, entrevistas e notas de colóquios serão apresentados apenas em português, tradução
livre minha.
26

visões do centro do globo” (2008)16, já apontava para questões que me acompanhariam


na pesquisa de mestrado. O que dizem as formas de exibição desses objetos sobre as
intenções e concepções da curadoria? E de que forma estas escolhas curatoriais
interagem com os objetos expostos investindo-os de novos significados? E com o
público? Que agência passa a ter aquela exposição, da forma como é concebida? Estas
duas exposições me mostraram, embora começasse apenas a delinear a complexidade da
discussão, dois caminhos bem marcados na exibição de objetos de culturas “outras”, um
modo mais “etnográfico” e o modo mais “artificante”.

Grande parte dos debates ocorridos no momento de construção do museu girou


em torno da classificação dos objetos da coleção. São obras de Arte? São artefatos
etnográficos? De que forma devem ser expostos? Deve se levar em conta critérios
eurocêntricos de beleza e valorização estética ou informações antropológicas a respeito
de seu uso e destinação “originais”? Estas perguntas são úteis para evidenciar o quanto
as categorias nas quais são inseridos os objetos respondem por grande parte do
significado que será apreendido deles, o que se reflete nas escolhas feitas sobre a forma
de apresenta-los ao público.

A distinção entre Arte e artefato ou artesanato é uma polêmica constante quando


se trata de objetos produzidos fora do campo institucional da Arte Ocidental. Definir se
um objeto pode ser considerado Arte ou não é uma preocupação que ocupa há tempos o
pensamento ocidental. Quando esta distinção é imposta a objetos produzidos em
contextos não ocidentalizados, tal separação pode ser vista como uma rotulação
arbitrária e etnocêntrica ou como uma tentativa mais ou menos bem intencional de
valorizar produções e estéticas de outras culturas. Durante muito tempo, a distinção
permaneceu atrelada à questão da beleza, atrelada ao paradigma kantiano que considera
Arte aquilo que tem por objetivo a fruição estética pura, algo visto como universal.

Gell (2001) aborda esta antiga questão da definição da “obra de Arte”


desconstruindo teorias idealistas que pressupõem algo intrínseco que possa sustentar a
definição17. O autor mostra que, de um ponto de vista antropológico, não há distinção

16
Ambas foram apresentadas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro.
17
Aponta para a existência de três teorias definidoras: uma teoria “estética” que segue afirmando a
possibilidade de julgar um objeto por suas características intrínsecas ligadas à sua beleza; uma
“interpretativa”, que representa uma visão da arte “conceitual” pós-Duchamp, na qual objetos, mesmo
não sendo “belos”, têm valor artístico por terem sido produzidos com a intenção de ser Arte e
interpretados de acordo com ideias fundamentadas em uma tradição artística historicamente estabelecida;
27

possível entre arte e artesanato, ainda que exista sim um trabalho a ser empreendido na
análise das relações mediadas por tais objetos, chamando atenção para situações
especiais de uso de determinados objetos, para sua destinação conceitual e para a
apropriação de objetos de outras culturas pelo “mundo da arte” do ocidente. Olhando
para recentes trabalhos sobre as “artes” de outras culturas percebemos que nossa crença
na Arte como algo separado da vida cotidiana é uma ilusão já que “objetos condensam
ações, relações emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem,
se relacionam, se produzem e existem no mundo” (Lagrou, 2009, p.13). De um ponto de
vista analítico da Antropologia, isso é verdade também para culturas ocidentais.

Apesar do termo “estética” ser historicamente construído no Ocidente e, em sua


acepção disciplinar, intransponível para outros contextos, podemos repensar o termo, a
partir de trabalhos recentes da etnologia18, e propor que estética seria a maneira pela
qual as relações são visualmente expressas e constituídas. Assim, a análise estética será
recorrente nesta dissertação, seguindo a concepção apresentada.

O Museu do quai Branly será apresentado nesta pesquisa da mesma forma que se
apresenta para o mundo, sendo simultaneamente um Museu de Arte e um Museu
Etnográfico. Isso é pertinente do ponto de vista dos discursos que encontrei em campo e
de um ponto de vista analítico, já que esta própria distinção pode ser desconstruída em
uma análise propriamente antropológica dos objetos.

Acompanhado de perto por muitos antropólogos, o projeto de concepção deste


museu e sua ligação com a cultura francesa e seu histórico colonial já foram bastante
explorados por importantes autores (Price, 2007; L’Estoile, 2007; entre outros)19. Em
torno da constituição de sua enorme coleção estão histórias de colecionamento europeu,
questões políticas extremamente relevantes, histórias de opressão, fascinação, obsessão
e roubo, a própria história do contato intercultural via colonização. Assim, a ausência de
objetos europeus em suas exposições e de menções ao processo de formação das

e uma terceira, “institucional”, que prioriza um olhar sociológico, permitindo ver como objetos que não
foram produzidos para ser arte podem também tornar-se por meio da cooptação e legitimação de pessoas
do meio artístico, como artistas, colecionadores e críticos.
18
Tenho em mente aqui especialmente os trabalhos de Els Lagrou sobre a arte Kaxinawá (2007, 2009), de
Marlyn Strathern sobre a construção da pessoa na Melanésia (2006) e de Joanna Overing sobre a estética
da produção entre os Piaroa (1991).
19
Cito estes dois autores, pois publicaram logo após a inauguração do museu livros completos tendo a
instituição como objeto central. Muitos outros se manifestaram em relação à instituição, abordando
diferentes aspectos, em artigos publicados em revistas e coletâneas que, em sua grande maioria,
aparecerão ao longo da dissertação.
28

coleções suscitaram muitas críticas à instituição e uma grande suspeita sobre suas
intenções.

Um museu como o quai Branly poderia suscitar muitos tipos de análises. A


história das coleções etnográficas europeias e de seus museus está intimamente
relacionada com o desenvolvimento da própria Antropologia e as formas de coletar,
conservar, exibir e analisar objetos passaram por diversas mudanças, acompanhando
transições paradigmáticas ocorridas na disciplina (Gonçalves, 2007; Clifford, 1994).
Este museu é herdeiro de projetos coloniais, que viam no colecionamento de “objetos
exóticos” uma forma de ordenar um mundo que se considerava que iria fatalmente
desaparecer (Ibid.).

Durante o mestrado, meu interesse em estudar o Museu do quai Branly se


consolidou, influenciado pelo impacto que ele continuava causando na Antropologia e
nas relações entre esta disciplina e a História da Arte. A grande dificuldade residia na
amplitude de questões teóricas possíveis de serem abordadas a partir deste museu e na
dimensão superlativa da instituição em si. Fui especialmente estimulada a prosseguir
com este tema pela realização de uma exposição “diferente” no museu. Desde minha
estadia na França, costumava receber informativos por correio eletrônico e acompanhar
pelo site os acontecimentos no Museu do quai Branly. Em meados do ano de 2011
recebi notícias que divulgavam e celebravam a primeira experiência de
“autorrepresentação” a ser realizada na instituição. O material de divulgação anunciava
a próxima exposição que entraria em cartaz – Maori. Leurs trésors ont une âme (Maori.
Seus tesouros têm alma) – que apresentaria a “arte e a cultura dos Maori, população
polinésia autóctone da Nova Zelândia de um ponto de vista Maori contemporâneo”20.
Foi o anúncio da primeira exposição com “curadoria nativa” no Museu do quai Branly
que motivou minha empreitada de reunir recursos para voltar à França.

A possibilidade de aprofundar a pesquisa acompanhando uma exposição com


este caráter inédito no museu se apresentou como uma forma interessante de construir
um contraponto à visão por vezes hermética das críticas feitas a ele. Além disso, meu
desejo de retratá-lo de um ponto de vista mais atual possível, buscando oferecer uma
imagem da diversidade de elementos que atuam dentro do museu, na prática, encontrou

20
Frases retiradas do “programa de outono” de 2011 do Museu do quai Branly, divulgado por correio
eletrônico e disponível no site e impresso dentro do museu.
29

aí um alento. Esta dissertação parte, então, do estudo de caso de uma exposição


temporária exibida dentro do Museu do quai Branly que não foi realizada por sua equipe
nem por um curador convidado, a exposição “Maori. Seus tesouros têm alma”, que
viajou pronta da Nova Zelândia para Paris.

A decisão de centrar a dissertação em uma exposição concebida fora do Museu


do quai Branly impôs alguns desafios e limitações. Por outro lado, a possibilidade de
abordar aspectos essenciais deste museu a partir de uma experiência considerada por ele
como extremamente inovadora e importante me atraiu, especialmente pela oportunidade
de construir um trabalho que tratasse deste museu hoje, no presente. E, assim como o
estudo da incorporação da “arte do ‘Outro’” expõe os limites das concepções de arte no
Ocidente, acreditamos que refletir sobre a entrada do “Outro” num museu que
normalmente expõe sob seu ponto de vista os objetos dos “outros”, seria uma forma
interessante de refinar a compreensão sobre ele. Focamos então o trabalho em um
momento onde há desestabilizações, questionamentos e redefinições de limites, regras,
papéis e pré-noções.

O surgimento dos museus é marcado por valores europeus que desenvolvem


suas disciplinas e formações discursivas, articulando poder e conhecimento, ainda que o
colecionamento seja um traço muitas vezes considerado universal nas sociedades
humanas (Clifford, 1994, Gonçalves, 2007; Shelton, 2006). Análises antropológicas
sobre grandes museus ocidentais revelam a importância de tais instituições na
construção e invenção de alegorias que apresentassem uma Nação como um todo
coerente e coeso (Abreu e Filho, 2007; Gonçalves, 1996), mostrando que esta coerência
“seria menos um dado ontológico do que o efeito daquelas estratégias narrativas”
(Abreu e Filho, 2007, p.21).
Diversos autores vêm mostrando, especialmente dentro de uma herança
foucaultiana, as distintas relações de poder constituídas no e pelo exercício de formas
específicas de conhecimento, gerando mecanismos, técnicas e tecnologias específicos
que moldam pensamentos, sentimentos, percepções e comportamentos (Bennet, 2004).
Assim, não são apenas produtores de representações, mas ativos na construção de
realidades (Shelton, 2006). Como mostra Gonçalves, museus traduzem em sua estrutura
material e conceitual “concepções diversas da ordem cósmica e social” (2007, p.25).
Por isso “a instituição parece estar intimamente associada aos processos de formação
30

simbólica de diversas modalidades de autoconsciência individual e coletiva no Ocidente


moderno” (Ibid.).
Muitos autores enxergam no tempo presente o desenvolvimento de uma nova
“era dos museus”, marcada pelo aumento numérico destas instituições e pela renovada
importância que adquirem. Este momento é fortemente marcado pelos resultados de
discussões realizadas no ICOM21, especialmente a partir da década de 1970, que
repensaram e consolidaram o papel social dos museus e por novas abordagens
antropológicas que passam a ver os museus como produtores de memória e lançam
olhares críticos sobre a noção de patrimônio, questionando grandes narrativas, tentando
frear a homogeneização cultural e valorizando “bens imateriais” e a preservação dos
“conhecimentos de povos tradicionais” (Abreu, 2010). Esta “síndrome de museus” pode
ser vista como reação a um “mundo sem memória, rompido com o passado, em que as
fronteiras são cada vez mais fluidas e móveis.” (Abreu e Chagas, 2003, p.13).
Com isso, muitas interferências de pessoas de culturas não europeias em museus
europeus vêm ocorrendo, bem como o surgimento de novos museus em diversas partes
do mundo. Clifford aponta como uma das particularidades dos museus etnográficos é
seu caráter de “zona de contato”22 (1997), loco de relações históricas e políticas
transculturais, marcados pelo desequilíbrio de poder característico dos contatos
coloniais, que acabam revelando mais sobre a própria cultura dominante do que sobre
aquelas representadas. Como coloca Kopytoff (2008:93), “o que é realmente
significativo sobre a adoção de objetos estrangeiros – e ideias estrangeiras – não é sua
adoção, mas sim a maneira pela qual eles são culturalmente definidos e colocados em
uso”. Quando falamos de um museu “do Outro”, “exposições nos dizem quem somos e,
o que é talvez mais significativo, quem não somos.”23 (Karp, 1991:15).
A renovada atenção da Antropologia para a chamada “cultura material”, para os
objetos que povoam a vida social, chama atenção para os modos pelos quais objetos são
sucessivamente deslocados e recontextualizados. Objetos, assim como pessoas, têm
identidades e estas são criadas e alteradas por suas trajetórias e inserções em diferentes
regimes de valor. Estudar a “biografia dos objetos” é uma forma de compreender os
diferentes regimes de classificação nos quais se inserem (Appadurai, 1986). Ao estudar

21
International Council of Museums.
22
“contact zones”
23
“exhibitions tell us who we are and, perhaps more significant, who we are not”.
31

um museu, devemos ter em mente que aquele é apenas um momento da “biografia”


daqueles objetos (Kopytoff, 2008 e Hoskins, 2006).

A importância dos momentos de reclassificação dos objetos é apontada também


por James Clifford (1994) que analisa o esquema de circulação em que transitam entre
as categorias de Arte e Cultura levando em conta os processos de legitimação e de
exibição para dotar objetos de diferentes status. Price (2000) também explora a
transformação de objetos “primitivos” em Arte evidenciando o processo de
singularização, descontextualização deliberada e legitimação por connaisseurs.
Kopytoff (2008:93) chama atenção para o fato de que “as reações culturais a tais
detalhes biográficos revelam um emaranhado de julgamentos estéticos, históricos e
mesmo políticos, e de convicções e valores que moldam as nossas atitudes quanto a
objetos designados como ‘arte’”.

A ida dos objetos para os museus, saindo de seu contexto original, é chamada
pela museologia de musealização, que seria um “processo de valorização dos objetos”,
derivado de uma seleção daquilo que deve ser transferido de seu contexto para o
contexto dos museus24, dotando o objeto de um “status museal” que passa a vê-lo como
um “documento” (Cury, 2005, p.24). O conceito é recente, ainda que possa ser utilizado
para se falar de procedimentos realizados no passado. Atualmente, a definição desse
processo leva em conta a reflexividade necessária ao profissional de museu. Para Mário
Chagas (apud Cury, 2005, p.25), o “processo de musealização” é, “grosso modo” um

“(...) dispositivo de caráter seletivo e político, impregnado de subjetividades, vinculado a uma


intencionalidade representacional e a um jogo de atribuições de valores socioculturais. Em outros
termos: do imensurável universo do museável (tudo aquilo que é passível de ser incorporado a
um museu), apenas algumas coisas, a que se atribuem qualidades distintas, serão destacadas e
musealizadas. Essas qualidades distintivas podem ser identificadas como: documentalidade,
testemunhalidade, autenticidade, raridade, beleza, riqueza, curiosidade, antiguidade, exoticidade,
excepcionalidade, banalidade, falsidade, simplicidade e outras não previstas.”

Neste processo, a museologia procura entender os critérios de seleção para


aprimorar e potencializar as possibilidades de comunicação do objeto no contexto do
museu. Muitos antropólogos e estudiosos da cultura material, da arte e dos museus vêm
chamando atenção para a especificidade desta instituição, tipicamente europeia, baseada

24
Atualmente, esse processo caracteriza também a valorização in situ, como nos casos dos ecomuseus ou
museus de território.
32

em regimes de valor ocidentais, e para as perdas ocorridas em termos de compreensão e


relação com os objetos musealizados. É certo que, na prática, o fato de serem retirados
de seu contexto “original” interrompe o uso para o qual foram destinados por seus
produtores e o fluxo de sua agência na vida cotidiana, limitando drasticamente as
relações que as pessoas podem desenvolver com eles.

As diversas correntes de pensamento empenhadas em trazer para o centro da


discussão antropológica a materialidade dos objetos provocaram um afastamento dos
paradigmas estruturalista e pós-estruturalista, que concebiam os objetos como textos e
seus significados. Atentar para a materialidade permite evidenciar diversos aspectos do
objeto que são suspendidos por sua ida para o museu. O objeto musealizado deixa de
cumprir as funções para as quais foi concebido, não pode mais ser manipulado
livremente, vestido, alimentado, banhado, receber oferendas, ser transportado,
acompanhado de música e danças, entre muitas outras ações nas quais poderia estar
envolvido anteriormente e que eram parte constituinte de sua existência no mundo.
Passa também a ser apreendido segundo uma hierarquia dos sentidos tipicamente
ocidental, que coloca a visão acima de outros processos sensoriais (Edwards et al.,
2006).

Ao afirmar que “artefatos etnográficos são objetos da etnografia”25,


Kirshemblatt Gimblett (1998, p.17) explicita o caráter construído, e mesmo artificial,
dos artefatos expostos em museus etnográficos, evidenciando “o paradoxo de se expor
objetos que nunca destinaram-se a serem exibidos”26 (Ibid. p.2). A exibição do artefato
etnográfico, para a autora, desestabiliza a noção de que o interesse visual seria o pré-
requisito para se exibir objetos, pois a “ausência de interesse visual [destes objetos]
(num sentido convencional) aponta para os modos como o interesse de qualquer tipo é
criado e conferido”27 (Ibid.).

Podemos discordar da premissa de que artefatos etnográficos são objetos sem


interesse visual algum e que nunca tiveram a intenção de serem exibidos, de alguma
forma. Porém, acompanhamos a argumentação da autora no que diz respeito ao
processo de deslocamento deste objeto e à configuração de sua exibição, que o tornaria

25
“ethnographic artifacts are objects of ethnography”.
26
“the paradox of showing things that were never meant to be displayed.”.
27
“The very absence of visual interest (in a conventional sense) points to ways that interest of any kind is
created and vested.”
33

um “artefato etnográfico autônomo”. Ao dotar o artefato de autonomia, deslocando-o de


seu contexto e justapondo-o com outros objetos em um novo contexto, exposições criam
um espaço de abstração, no qual

“(...) fazem pelo mundo da vida aquilo que o mundo da vida não pode fazer por si mesmo.
Colocam juntos espécimes e artefatos nunca antes encontrados no mesmo lugar e ao mesmo
tempo e mostram relações que, de outra forma, não poderiam ser vistas.”.28

O museu é um local onde os objetos se inserem em novas relações e mudam de


categorias constantemente. Nesta pesquisa pretendemos mostrar que, além das inúmeras
categorizações pelas quais passam os objetos em seus percursos, sua inserção na
coleção de um museu aparece não como um fim, um local onde a categoria “obra de
arte” ou “objeto etnográfico” se sobrepõe às outras definitivamente, aprisionando o
objeto. Nos bastidores dos museus, por exemplo, funcionários de conservação
estabelecem relações com os objetos da coleção, classificando-os, agrupando-os,
trabalhando em conjunto com pesquisadores no intuito de qualifica-los e tendo,
inclusive, o privilégio de entreter relações sensoriais exclusivas com eles. Além deles,
curadores de exposições compartilham esta exclusividade, podendo transmitir para o
público estas relações privilegiadas com os objetos por meio das exposições.

As categorias e agências dos objetos sofrem alterações também em relação com


as formas escolhidas para apresenta-los nas exposições. Isso toma proporções
amplificadas no cenário museológico atual, no qual as exposições temporárias e autorais
vêm ganhando força. Atualmente chamadas de “exposições de média ou curta duração”,
as exposições têm se tornado o meio por excelência da difusão da arte e da apresentação
das coleções de museus. Segundo Bittencourt (2008) seu número e alcance têm crescido
de forma notável nos últimos anos. Exposições são “o meio (no sentido de “mídia”, ou
seja, “elemento de produção e suporte de dados e informações”) de fazer a “arte” se
difundir.” (Bittencourt, 2008, p.5). Para não restringir a definição ao campo da Arte
institucional, acrescenta-se que “exposições são um dos meios de se difundir todo e
qualquer fazer humano, seja ele da ordem da arte, das ciências, da tecnologia, da
história.” (Ibid.).

28
“do for the life world what the life world cannot do for itself. They bring together specimens and
artifacts never found in the same place at the same time and show relationships that cannot otherwise be
seen.”.
34

Pretendemos investigar aqui a possibilidade de objetos serem ressignificados não


somente do contexto “original” para o contexto do museu, mas também dentro do
próprio museu, de acordo com diferentes propostas curatoriais e respectivas formas de
exibição. O conjunto de elementos que forma uma exposição contextualiza os objetos
exibidos, e, como afirma Kirshemblatt-Gimblett (1998, p.21), “Há tantos contextos para
um objeto quanto estratégias interpretativas existentes”29. Mas nossa análise pretende
entender a exposição como mais do que uma “contextualização”. Ela pode ser vista
como um objeto, produzido pela relação entre os elementos envolvidos em sua
composição, isto é, os objetos, os elementos cenográficos, espaciais, textuais e as
interações destas “coisas” com as pessoas e entre as pessoas envolvidas em sua
realização.

Nestas relações, os objetos não aparecem como elementos passivos, sendo


apenas alvos de classificações. A produção de uma exposição é um exemplo de
“processos através dos quais elas [as coisas] são investidas de personalidade e podem
causar impacto”30 (Hoskins, 2006:75). A principal noção a guiar essa concepção é a de
agência (agency), que se disseminou nos estudos antropológicos com a publicação de
Art and Agency, de Alfred Gell (2009 [1998])31. Seguindo a ideia de que objetos podem
ser como pessoas, Gell evidencia a atribuição a eles de uma intencionalidade, nos
colocando diante da perspectiva de que são participantes ativos na construção das
realidades sociais e das relações que as constituem. Para o autor, certos objetos são
produzidos para causar efeitos nos pensamentos e ações de outros, não sendo, portanto,
apenas classificados de diferentes formas, mas agindo na mediação de intencionalidades
complexas.

Através das exposições temporárias, emerge a complexidade do Museu do quai


Branly e o caráter dialógico que pretendemos buscar neste trabalho. Pretendemos
investigar as formas pelas quais diferentes apresentações dos objetos os inserem em
novas redes de significados e relações. Não farei aqui a análise da biografia de um
objeto exclusivo, mas dos atores que se relacionam com um determinado conjunto de

29
“There are as many contexts for an object as there are interpretative strategies”.
30
“process through which they are invested with personality and may have impact.”.
31
O livro Art and Agency. An anthropological theory de Alfred Gell foi publicado em 1998. A primeira
tradução da obra foi publicada em francês, no ano de 2009, quando morei na França. Consultei durante a
escrita da dissertação a versão francesa, por isso sigo citando sua data de publicação.
35

elementos agrupados para uma exposição, entre eles, os próprios objetos, alguns deles
trazendo reflexões mais produtivas para nossa discussão do que outros.

No caso que me proponho a analisar, a exibição de uma exposição em um


museu, o que nos interessa perceber é a intencionalidade não de um objeto, mas de um
conjunto de “coisas”. Gell sugere o uso da noção de “estilo”, normalmente empregada
pela História da Arte para caracterizar a obra completa de um artista, uma escola ou
movimento artístico, mas que pode ser produtiva antropologicamente na análise de
conjuntos de produção artística de culturas específicas. Para compreender um conjunto
de objetos produzidos pela mesma “unidade cultural”, que compartilham de certas
características formais comuns, deve-se notar que as obras não funcionam
individualmente, elas cooperam entre si. Sua hipótese é que “a afinidade estilística entre
as obras de arte faz eco à unidade de pensamento que conecta os membros de um grupo
social.”32 (2009, p.198).

O estilo seria para as obras de arte o que o pertencimento a um grupo é para os


agentes sociais. Assim, um corpus de obras não é apenas uma coleção de objetos
distintos, mas um objeto único, constituído de vários objetos subordinados e regidos por
relações análogas às relações sociais daquela cultura, sendo produto de iniciativas
sociais que refletem uma sensibilidade específica (Gell, 2009). No caso das exposições
do Museu do quai Branly, que trazem objetos de culturas “tradicionais”, mas são
concebidas e apresentadas em um contexto ocidental, as propriedades formais que
buscaremos ressaltar são aquelas do corpus formado pelos objetos e os demais
elementos expositivos no contexto intencionalmente organizado pela curadoria. No
museu, os objetos são vistos primeiramente como partes de um todo minimamente
ordenado, um corpus, que é a coleção. Em seguida passam a integrar e ser colocados em
relação com outros elementos, como a cenografia, os discursos, as atividades, enquanto
componentes do objeto exposição. Estes elementos são atores nos encontros entre
culturas que se expõem e se observam, entre pessoas e obras de arte, entre objetos e
pessoas de diferentes culturas.

A forma como uma cultura se apresenta por meio de objetos, assim como
objetifica a cultura do outro e se relaciona com os objetos dele, não é neutra nem dada.

32
“L’affinité stylistique entre les oeuvres d’art fait écho à l’unité de pensée qui relie les membres d’un
groupe social.”
36

Presentificados em exposições dentro de museus, estes processos constituem um


entrelaçamento indissociável entre ética e estética. Nosso objetivo é compreender de
que forma as pessoas que concebem uma exposição, geralmente realizada por uma
grande equipe e mobilizadora de um número enorme de atores e elementos, conferem a
ela agência, por meio das estratégias de apresentação dos elementos exibidos. Partimos
da noção que uma exposição pode ser ela mesma entendida como “um artefato cultural
que articula as visões, enviesamentos e preocupações de um produtor”33 (Gurian, 1991,
p.178).

A figura do curador aparecerá então como principal agente mediador das


relações entre instituição, equipe, objetos e público, o que faz dele o grande
conceitualizador da exposição, aquele cuja agência se manifesta por meio da
visualidade criada. A museologia costuma analisar uma exposição como um discurso, e
este discurso é constituído pelo curador. A definição de seu papel, de sua atividade, é
recente e controversa, especialmente pela rejeição dos profissionais da área de um
modelo curatorial muito centralizado na personalidade do curador.

Bruno (2008) fornece um histórico da atividade para esboçar sua definição e


mostra que, a princípio, ele seria o responsável pela seleção dos objetos para compor a
coleção da instituição para a qual trabalha. Mas a prática de conceber exposições e a
própria virada de foco da museologia cada vez mais voltada para a extroversão do
patrimônio e relação com o público se tornou tão frequente que o termo passou a
designar muito mais aquele que propõe e media a produção das exposições. Isso
favorece o surgimento de modelos institucionais de curadoria mistos, como é o caso do
Museu do quai Branly, em que atuam como curadores funcionários e equipes do museu,
mas também pessoas externas a ele. Também fortalece o caráter autoral da atividade,
que valoriza o conhecimento que a pessoa tem sobre o tema abordado, possibilitando
seu protagonismo na criação do “discurso expositivo”.

Diferentes formas de exibição produzem efeitos distintos. Karp, no prefácio de


Exhibiting Cultures: poetics and politics of museum display (1991), ressalta que os
autores que contribuíram com artigos para o volume parecem pensar as exposições de
dois modos: como um veículo para a exibição de objetos ou como um espaço para se
contar uma história. Os dois modos, privilegiando o contexto ou o objeto, confirmam

33
“a cultural artifact that articulates a producer’s visions, biases, and concerns”.
37

que exposições são um meio e um local para representação e esta será sempre
controlada por alguém e jamais neutra. Como aponta Baxandall (1991) no mesmo livro,
os agentes envolvidos na exposição – produtores de objetos, expositores de objetos
prontos e visitantes de objetos exibidos – entram em contato no “espaço entre o objeto e
a legenda”34 (Baxandall, 1991, p.37) e, eu diria, este é um espaço de atuação, de relação,
no qual a intencionalidade da curadoria interage com o mundo.

Kirshemblatt-Gimblett (1998) fala em agência da exibição (agency of display)


para propor um estudo de exposições dentro de uma “economia política do exibir”35.
Afirmando que “exposições são fundamentalmente teatrais, pois são a forma como
museus performatizam o conhecimento que criam”36 (Kirshemblatt-Guimblett, 1998,
p.3) a autora mostra que as classificações, hierarquias, convenções discursivas e práticas
representacionais desenvolvidas em uma exposição não são apenas espelhamentos de
uma imagem. A representação constitui os sujeitos e a própria imagem “(...) e, no
processo, estabelece os termos para a ação.”37 (Ibid. p.80). Seu livro Destination
Culture, traz diversos estudos de caso de encenação e exibição cultural, passando por
exposições, feiras, festivais e turismo, e mostra que “a forma de exibir é a interface que
media e consequentemente transforma o que é exibido em tradição”38 (p.7). Assim,
prossegue, “a forma de exibição (display) não apenas mostra e fala, ela também faz.”
(Ibid. p.6)39.

Na primeira parte da dissertação, apresento a exposição “Maori. Seus tesouros


têm alma”, começando por um capítulo que conduz o leitor por uma “visita guiada”.
Apresento um detalhamento dos elementos que compõem seu percurso, incluindo sua
estrutura física e argumentativa, a cenografia adotada, os objetos expostos, os textos que
os acompanham e algumas impressões pessoais. Esta apresentação é fruto do trabalho
de campo que realizei no museu, nos meses de novembro e dezembro de 2011, curto,

34
“In the space between objects and label”.
35
“political economy of display”.
36
“Exhibitions are fundamentally theatrical, for they are how museums perform the knowledge they
create”.
37
“and, in the process, set out the terms for action.”.
38
“display is an interface that mediates and thereby transforms what is shown into heritage”. Decidi
traduzir heritage por “tradição” pois acredito que o termo, central nos movimentos de resgate,
renascimento e preservação cultural e identitária presentes em várias partes do mundo, é o que mais se
aproxima daquele nos discursos de mesmo gênero no Brasil.
39
“display not only shows and speaks, it also does.” Apesar de a autora não citar o conceito de agência de
Gell, o que poderia ser explicado pelo fato de ambos os livros terem sido lançados em datas próximas, me
parece pertinente a relação entre os dois pensamentos.
38

mas intenso. Procurei visitar a exposição Maori com diferentes olhares, admirando os
objetos, tomando notas, lendo atentamente todos os textos e registrando em fotografias
a integralidade da exposição. Acompanhei alguns grupos de visita guiada, com
diferentes monitoras e visitantes de diferentes idades, atentando para o discurso
construído pelos guias e os comentários e reações emitidos pelos visitantes, além de
acompanhar a visita de pessoas conhecidas e amigos, estudantes ou profissionais da área
de Ciências Sociais40.

No segundo capítulo, para analisar a “estética expositiva” e as escolhas


curatoriais desta exposição, proponho um mergulho nas concepções maori de objeto,
evidentemente ligadas à cosmologia maori mais geral. No entanto, não se trata de fazer
um estudo etnológico, o que não seria possível dado meu limitado conhecimento sobre
este povo. Faremos o exercício de investigar como uma visão de mundo se traduz
materialmente nos diversos elementos de uma exposição, e para isso podemos nos servir
das explicações fornecidas em seu próprio percurso e em seu rico catálogo (Smith,
2011). Busquei também me apropriar de parte da extensa bibliografia de estudos
antropológicos publicados por especialistas na cultura maori e sua arte. Tomamos
sempre esta “estética expositiva” não como a tradução material de uma suposta cultura
existente, mas sim como fruto da mediação realizada pela curadoria que produz a
exposição.

Neste capítulo, aponto para algumas “estratégias” que pude identificar nas
escolhas curatoriais, como a instauração de uma sacralidade em torno dos objetos e da
própria cultura maori, associada a certo misticismo que, sem dúvida, encanta os
visitantes deste museu. Este aspecto é reforçado pelas explicações sobre o estatuto dos
objetos na cultura maori e pelas relações visuais criadas entre os elementos expostos.
No entanto, o caráter fortemente político e combativo que também está presente na
exposição contribui para um afastamento desta esfera mística, deixando claro para o
visitante que aqueles objetos e aquela cultura estão ali para serem admirados e
respeitados, mas que o público estrangeiro não faz parte dela, reafirmando a diferença
cultural.

40
As reações à exposição que pude coletar foram especialmente aquelas registradas no livro de ouro da
exposição e na internet, onde pude encontrar comentários em blogs e artigos publicados pela imprensa.
Foi de grande ajuda o contato com a pesquisadora Gaëlle Crenn, que realizava um estudo de recepção de
público na exposição durante minha estadia.
39

Na segunda parte da dissertação, abrimos um pouco o foco, buscando trazer para


a discussão elementos exteriores à exposição em si, que permitem enriquecer a
compreensão dos atores e relações envolvidos e mediados por ela e contextualizar a
Exposição Maori num quadro mais geral do Museu do quai Branly, para delinear
melhor o lugar que ela ocupou neste museu e como outras experiências ocorridas na
instituição são, ou não, influenciadas por este evento. Para tanto, articulo minha
observação da Exposição Maori à pesquisa realizada em outras atividades que
ocorreram no museu durante sua exibição e aos contatos que tive com algumas das
pessoas envolvidas41.

O terceiro capítulo aborda elementos surgidos no encontro entre a Exposição


Maori e o Museu do quai Branly, ou entre a “cultura maori” e a “cultura francesa”, ou,
ainda, entre representantes de dois grandes museus. Parto de uma discussão bastante
atual sobre repatriação de objetos musealizados, que surgiu em meu campo com a
conquista do Museu Te Papa Tongarewa do direito de reaver vinte crânios pertencentes
a museus franceses, entre eles o quai Branly, episódio que está por trás da realização da
Exposição Maori. O Museu Te Papa da Nova Zelândia, curador da Exposição Maori e
receptor dos crânios repatriados, pode ser visto como um símbolo da atuação de museus
em lutas identitárias na atualidade. Este evento evidencia como distintas concepções de
objetos coexistem na contemporaneidade e como a agência destes objetos segue
mediando relações em diversos níveis.

Para compreendermos melhor a amplitude deste evento, abordo aspectos da


cultura francesa no que diz respeito ao colecionamento e aos museus etnográficos, que
culminaram na formação do Museu do quai Branly. Através da descrição da Exposição
Permanente do museu, pretendo estabelecer comparações entre a forma de exibir
objetos proposta pela Exposição Maori e aquela tradicionalmente empregada na
instituição. Assim, podemos perceber o quanto a estética da Exposição Permanente nos
fornece dados sobre o museu, bem como a importância dos contrapontos fornecidos
pelas Exposições Temporárias.

41
Além das visitas à exposição, compareci ao colóquio de dois dias organizado pelo Museu do quai
Branly sobre o tema da autorrepresentação em museus, que contou com especialistas e pesquisadores do
tema em várias partes do mundo. Outras atividades foram propostas pelo museu em torno da exposição
Maori, como palestras, contações de estórias e mitos para crianças, encontros com artistas, apresentação
de dança tradicional no metrô e transmissão da final da Copa de Rúgbi no museu. Algumas das atividades
ocorridas em datas nas quais não me encontrava na cidade estavam disponíveis em vídeo ou foram
relatadas por pessoas com quem pude conversar.
40

No último capítulo, proponho um panorama de outras experiências mais ou


menos colaborativas ocorridas neste museu. Apresentarei brevemente outras Exposições
Temporárias realizadas pelo Museu do quai Branly que acredito servirem de
contraponto ou complementação à Exposição Maori no que diz respeito à proposta do
museu de ser um “lugar onde dialogam culturas”. Estas exposições acrescentam à nossa
análise outras estratégias empreendidas na busca pela polifonia na instituição. Com a
proliferação de museus locais e discursos nativos em busca de controle sobre as
representações feitas de sua cultura, a pouca ou quase inexistente participação de
pessoas das comunidades produtoras dos objetos expostos no quai Branly fica ainda
mais evidente e é alvo de duras críticas.

Citarei algumas exposições mais reflexivas, nas quais o conteúdo e/ou a forma
escolhida para se exibir os objetos levam em conta tais processos contemporâneos do
fazer museológico. Certas exposições buscaram um diálogo concreto com populações
nativas e tentaram trazer este contato para a estética expositiva, construindo situações
bastante raras nesta instituição e contribuindo para a abertura de brechas na museografia
inicial e de caminhos para amenizar ou superar as críticas recebidas pelo museu,
partindo de dentro de sua estrutura. Muitas dessas estratégias de multiplicar os olhares e
discursos oferecidos no museu têm partido de antropólogos, apontando para novas
possibilidades de atuação destes profissionais em museus contemporâneos.

Por isso, serão apresentadas as Exposições Antropológicas do Museu do quai


Branly, uma categoria à parte dentro das exposições temporárias do museu, que contam
com renomados antropólogos como curadores. Elas testemunham um duplo movimento
de reaproximação: o aumento de interesse na antropologia pelos objetos, as imagens e a
arte e a revalorização dos museus enquanto campo de atuação para os profissionais da
área. Esta inserção ocorre das mais diversas formas, sendo o exemplo das exposições
antropológicas um deles, no qual o diálogo com as concepções estéticas e cosmológicas
de outras culturas, inerente ao fazer antropológico consegue adentrar o museu. Este tipo
de atuação curatorial ocorre concomitantemente, ainda que se distinga em aspectos
fundamentais, ao movimento de antropólogos que trabalham em prol da participação
nativa em instituições museais. Esta configuração faz da Antropologia parte integrante
do objeto de estudo deste trabalho e não apenas como perspectiva teórico-disciplinar na
qual eu e meu trabalho estamos inseridos.
41

2. A exposição “Maori. Seus tesouros têm alma”


42

2.1 Visita guiada


Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo no Museu do quai Branly. Há sempre
muita gente circulando por seus jardins, tirando fotos e conversando; as filas para a
bilheteria costumam estar cheias e a fila para entrar no museu também; há sempre
muitas crianças em grupos liderados por professoras nervosas que parecem contrariar o
tom de voz baixo característico dos franceses ao tentar dominar a excitação infantil de
seus alunos e mantê-los de mãos dadas, dois a dois, em fila indiana; pessoas de todas as
idades aguardam sua vez para entrar neste local quase mágico para uns, assustador para
outros e sempre um pouco “obrigatório” para os estudantes, especialmente os mais
velhos, mais preocupados com seus celulares e com as brincadeiras internas com os
amigos.

Desta vez, ao chegar ao museu no final de um novembro tipicamente cinzento e


chuvoso, o muro alto e transparente que percorre a calçada em frente aos seus jardins e
sua fachada apresentava em tamanho gigante um pingente verde em formato
antropomórfico e o título da exposição Maori. Leurs trésors ont une âme. Ao lado desta
imagem vinham muitas outras um pouco menores: listas de atividades que ocorreriam
no museu naquela semana e cartazes das outras exposições que aconteciam. Após entrar
pelo jardim frontal, passar pela bilheteria e me encaminhar para a entrada, passo pela
loja do museu, ainda do lado de fora, que também tem paredes de vidro decoradas com
o mesmo adesivo gigante que anunciava a Exposição Maori. Eu já havia visto esse
mesmo cartaz logo que cheguei à cidade, espalhado pelos espaços publicitários urbanos,
como bancas de jornal e paredes de estações de metrô.
43

Figura 6: Cartaz da Exposição Maori. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

Figura 7: Vitrine da loja de lembranças do museu. Foto: Nina Vincent.

Entrando no museu, após a habitual revista das bolsas pelos seguranças e


passagem pelo detector de metais, o foco muda um pouco. Simultaneamente à
exposição Maori, estavam em cartaz mais duas mostras, além das diversas atividades,
palestras, aulas, ciclos de filmes e música, e as atenções no hall de entrada pareciam
todas voltadas para dois enormes cavalos em tamanho natural sendo empinados por
guerreiros asiáticos ricamente vestidos que foram colocados bem no meio do espaço de
maior circulação do museu. As esculturas, expostas ali a titulo da exposição temporária
Samuraï. Armure du guérrier, faziam um sucesso estrondoso especialmente entre as
crianças, mas também entre os adultos, fazendo os meninos saírem invariavelmente
brincando com espadas imaginárias e provocando uma grande algazarra.

A entrada pela rampa, chamada La Rivière, leva ao Plateau das coleções


permanentes e aos dois mezaninos de exposições temporárias que exibiam, naquele
mês, as exposições Samurai e Exhibitions. L’Invention du Sauvage. Sem passar pelo
mesmo caminho, apenas virando à direita depois do controle de entrada e apresentando
um bilhete separado, que, por 7 euros dava direito a entrar somente nesta exposição -
diferentemente do bilhete para a coleção permanente que permitia ver também as outras
duas exposições por 8,50 euros - entra-se na Exposição Maori. Passa-se primeiro por
44

uma pequena lojinha organizada excepcionalmente para os produtos ligados a esta


exposição, à qual é possível retornar ao fim da visita.

A exposição esteve em cartaz no museu do quai Branly entre os dias 04 de


outubro de 2011 e 22 de janeiro de 2012 na Galeria Jardim que recebe as exposições
chamadas “Internacionais”, realizadas pelo quai Branly em parceria com instituições
estrangeiras. A galeria, que fica no térreo do museu e ocupa 2000 m2, é um espaço
amplo e curvilíneo, que acompanha o formato da fachada lateral do museu e da rampa
interna que passa por cima dele levando para os demais locais de exposição, formando
diversos espaços de exibição como um caracol. Ao subir a rampa, era possível ver de
relance algumas partes da exposição que se encontrava embaixo e era comum ver
visitantes, especialmente crianças, “espiando” para ver o que se passava por lá. Da
exposição Maori, uma impressionante casa cerimonial feita de madeira entalhada podia
ser avistada do alto.

Figura 8: Planta da Galerie Jardin no Museu do quai Branly. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

A Exposição Maori se iniciava por duas salas “introdutórias” que apresentavam


ao público dois “princípios guia” da exposição e da cultura maori e dividia-se então em
três grandes seções – Whakapapa (identidade e interconexão); Mana (prestigio e
autoridade); Kaitiakitanga (proteção e preservação). Em cada uma das partes, existem
subtemas, como as canoas e a navegação, a casa cerimonial, a tatuagem, a língua e a
música, a pesca, entre outros. Ao longo do percurso, aparecem três focos históricos, de
caráter fortemente político, que abordam a Independência e assinatura do Tratado de
Waitangi, a Marcha pela Terra e a Marcha pelos Fundos marinhos.

Neste primeiro espaço, havia um grande mapa da Nova Zelândia, chamada ao


longo de toda a exposição, e em todo material produzido para ela, de Nova Zelândia-
Aotearoa, nome oficial do país que incorporou a nomenclatura em língua maori após as
45

lutas políticas pelo projeto bi-cultural da nação42. Neste mapa estão marcadas as tribos
maori (iwi) e sua disposição no território. Do outro lado vemos um grande texto que
explica como serão localizados no tempo os objetos expostos ali, seguindo uma linha
temporal criada por Hirini Moko Mead para marcar a presença Maori na Nova Zelândia.
A cronologia segue uma metáfora do crescimento, em que o primeiro período, chamado
Nga Kakano (os grãos), seria o do povoamento humano inicial do território, o segundo,
Te Tipunga (crescimento) seria marcado pela diferenciação da cultura maori em relação
àquela de seus ancestrais do Pacífico, seguido do Te Puawaitanga (a florescência) que
marca a realização e desenvolvimento de uma sociedade dinâmica e sofisticada, e o
período mais recente, Te Huringa (a virada), caracterizado pelas mudanças, adaptações
e conflitos consequentes do encontro entre as sociedades maori e europeia.43

O primeiro princípio enunciado logo a baixo do título da exposição na maior


parede da primeira sala é Tino Rangatiratanga, escrito em maori, inglês e francês44,
assim como a integralidade dos textos da exposição, cuja significação apresentada seria:
“A aptidão a escolher seu próprio destino, expressa também por termos como soberania,
autoridade e chefia.”. Anuncia-se que “este conceito está no coração da exposição, [na
qual] tesouros ancestrais [...] são apresentados ao lado de obras contemporâneas a fim
de mostrar a profundidade artística e as aspirações políticas desta cultura autóctone, rica
e vivaz”. Fio condutor da exposição, a incessante busca do povo maori pela
autodeterminação e controle sobre seus “tesouros” permeia todo seu percurso.

Este conceito serve para introduzir outro princípio, o de Mana Taonga, no texto
que apresenta a exposição como “uma exposição do museu neozelandês Te Papa
Tongarewa” o Museu Nacional do país, “guardião dos tesouros culturais e naturais da
nação”. Neste texto, o museu se apresenta assim:

“O Te Papa conserva as coleções de arte, de história, de história natural e das culturas


do Pacífico. No coração das coleções nacionais estão os taonga maori (tesouros culturais maori).

42
Na língua maori, Aotearoa significa “longa nuvem branca”, que teria sido a forma pela qual a esposa de
um de seus primeiros habitantes, vindos de outras ilhas do Pacífico, chamou a ilha do norte da Nova
Zelândia. Hoje, todo o país, composto por três ilhas, é reconhecido por este nome. A exposição apresenta
o uso do nome sempre ao lado de “Nova Zelândia” como expressão do reconhecimento da igualdade
entre as duas culturas que compõem o país: os Maori, primeira nação a se formar no país, e as populações
que se seguiram à chegada dos europeus, chamados Pakeha, formando a segunda.
43
Esta tabela aparece na exposição e no catálogo. Sir Sidney Hirini Moko Mead, antropólogo, artista e
líder político Maori, desenvolveu esta cronologia em seu livro “Te Toi Whakairo: The Art of Maori
Carving”, publicado em 1961.
44
Todas as transcrições de textos presentes na exposição, assim como em seu catálogo, são traduções
livres feitas por mim a partir de suas versões em francês.
46

Para os Maori, estes taonga são mais que simples objetos. Eles representam um laço sagrado com
o passado – um passado que influencia o presente e que guia os Maori em direção ao futuro.
Reconhecendo isto, o Te Papa aplica o princípio de mana taonga (consciência das conexões): o
museu conserva os taonga em nome das iwi (tribos) e comunidades maori, que participam
ativamente da pesquisa, preservação, gestão e apresentação destes taonga. O Te Papa é, assim,
um local onde os Maori podem exercer o tino rangatiratanga (autodeterminação ou controle
Maori sobre todas as coisas Maori).”.

Estes painéis mostravam também algumas fotos que mostravam certos objetos
que veríamos mais adiante na exposição e imagens de outras exposições e atividades
realizadas no museu Te Papa. Além das fotos, um vídeo de apresentação da exposição
trazia imagens de cerimônias maori, manifestações políticas e muitas cenas gravadas no
museu Te Papa.

Nesta primeira sala, dois objetos são expostos, no centro do espaço. Iniciamos
com uma obra de arte contemporânea, uma projeção de vídeo partindo do teto para um
suporte horizontal feito de compensado pintado de branco que serve de tela onde vemos
uma sequencia aparentemente infinita de mandalas, estrelas e formas espirais luminosas
sempre em preto e branco feita pelo artista Reuben Paterson. Chamada “Do negro às
luzes”, a obra é apresentada em sua placa de identificação como “uma obra em torno da
fluidez, do saber e da energia do universo. A luz surge de um oceano de obscuridade
para formar e repetir modelos caleidoscópicos complexos”.

Figura 09: “Du noir à la lumière” de Reuben Paterson. Foto: Nina Vincent

Ao lado da projeção, em um suporte pouco mais alto, há uma grande pedra de


jade verde escuro com a inusitada frase escrita em uma placa: “Toque esta pedra”.
Imediatamente me dei conta de que, talvez, uma exposição concebida por um povo
herdeiro de uma cultura não ocidental poderia, de fato, trazer novas propostas para a
experiência de visita a museus, sempre tão cheia de restrições. Toquei a pedra. Apenas
47

por alguns segundos antes que minha mão fosse expulsa por várias pequenas mãozinhas
que se deliciavam com a ideia de poder tocar (ou esfregar, bater, cutucar...) um objeto
exposto num museu. Especialmente se tratando de uma “pedra mágica”, como contava
para um grupo de crianças a guia do museu que os conduzia pela exposição.

A chamada “Pedra Mauri” era apresentada como:

“o ponto de ancoragem espiritual da exposição. O Mauri é a força vital presente em todos os


elementos, vivos ou inanimados, e que os religa entre si. Trata-se de uma pedra pounamu (jade da
Nova Zelândia), apreciada pelos Maori por sua força, longevidade e beleza, assim como por seus
laços com os ancestrais.”

A pedra era mesmo a grande estrela da sala e todas as atenções se voltavam para ela e
para o prazer transgressor e potencialmente místico de tocá-la. Mas a inovação
sensorial, pelos dizeres da placa, se anunciava curta: “Você está convidado a tocar esta
pedra para religar seu mauri ao dela. Entretanto, pedimos que não toquem os outros
tesouros apresentados na exposição.”.

Figura 10: Pedra Mauri – “toque esta pedra!” Foto: Nina Vincent

Figura 11: Pedra Mauri. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly

Estes dois objetos escolhidos para abrir a exposição convidam o visitante a


entrar em um outro registro, reforçando uma dimensão espiritual dos objetos que serão
apresentados e da cultura maori. Essa dimensão espiritual está presente ao longo de todo
o percurso e sua importância ficou evidente quando pude ler no catálogo que a mesma
exposição havia sido apresentada na Nova Zelândia anteriormente, sem grandes
modificações, mas com outro nome: “E Tu Ake: Standing Strong”, um nome que
sugeria uma ênfase mais explícita no caráter político e guerreiro da cultura maori do que
na aura mágica e espiritual enfatizada no título da versão francesa.
48

Seguindo para a segunda sala “introdutória”, vemos uma pintura contemporânea


fixada à parede, composta por quatro quadros retangulares que se encaixam, chamada
“PW1 – Tiki Remix”, de Saffron Te Rattana. A legenda diz que “formas tradicionais
sempre influenciaram artistas maori contemporâneos.” São dadas então significações
para cada cor e tipo de traço utilizado, representando cada um o espírito, o guardião
espiritual, etc. As formas humanas que se repetem seriam uma espécie de samplers, um
remix de um tiki, pingente antropomórfico maori. Diz-se que as telas pintadas foram
dispostas pela artista em forma de corpo humano.

Figura12: “PW1(Tiki Remix)” de Saffron Te Rattana. ©blissinthecity

Na parede ao lado vê-se escrito: “A sobrevivência de nosso povo e de nossa


cultura depende da renúncia ao poder pelos pakeha.” A frase pronunciada por Diane
Prince em 2009 introduz as lutas e reivindicações do povo maori em busca da
recuperação de seu poder político sobre o país, então inteiramente controlado pelos
pakeha – brancos de origem europeia. No centro da sala estão expostos em vitrines três
objetos: uma capa feita de tiras de pele de kurï (cachorro do Pacífico), uma borduna de
guerra em pedra de jade e uma caixa de madeira entalhada usada para guardar tesouros.
A capa, usada apenas por grandes chefes em momentos importantes e objeto de troca
entre eles, carrega seu mana e denota prestígio e autoridade. A borduna em jade foi
ofertada a um representante da coroa britânica por um dos mais importantes chefes
49

tribais no momento da assinatura do Tratado de Waitangi e doada posteriormente pelos


descendentes deste representante para o povo neozelandês. Assim, é apresentada como
um objeto que carrega em si a história da construção da Nova Zelândia–Aotearoa
moderna e uma fotografia de Louise Walls vestindo a capa que herdou de sua avó
durante seu primeiro discurso no Parlamento, em 2008, figura no painel que trata das
políticas de autodeterminação. A caixa de tesouros, de cerca de um palmo e meio, é
apresentada para evocar a “dependência do homem em relação à natureza e a
necessidade de protegê-la”. Seu formato é comparado ao das canoas maori e explica-se
que, assim como as canoas transportam homens e provisões, estas caixas serviam para
transportar objetos preciosos, como as plumas de huïa, um pássaro hoje extinto.

Figura 13: Sala introdutória da Exposição Maori. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly

Estes três objetos representam a força da cultura Maori e apresentam o tema do


Tratado de Waitangi, bastante explorado na exposição, que marcou profundamente a
história dos Maori e da Nova Zelândia. A Independência da Nova Zelândia e a
assinatura do Tratado de Waitangi são os assuntos abordados neste primeiro “foco
histórico” da exposição. Vemos a bandeira criada no momento da Declaração de
Independência, uma reprodução do documento original do Tratado, diversas fotografias
de manifestações reivindicando seu cumprimento, além de uma aprofundada explicação
do momento histórico e dos termos do tratado, com algumas cláusulas escritas em
destaque nas paredes e frases célebres proferidas sobre o tema.
50

Figura 14: Painel sobre o Tratado de Waitangi. Foto: Nina Vincent.

As frases que apareciam no painel que apresentava o Tratado eram bastante


representativas do tom político da exposição:

“Não se deve falar de colaboração para depois considerar os tangata whenua (primeiros habitantes
da Nova Zelândia-Aotearoa) como conselheiros, um simples grupo de “stakeholders” à margem.
Voltemo-nos para os autóctones e utilizemos suas ideias audaciosas.” (Tariana Turia, 2008);
“Como para todas as pessoas que foram destituídas pela colonização, a esperança de recuperar a
autoridade ou rangatira da qual fomos por tanto tempo privados permanece tão forte no seio de
nosso povo quanto os laços que nos conectam a nossa terra” (Moana Jackson, 2009);

As falas eram de advogados, políticos e políticos maori, além de uma da Rainha


Elizabeth II:

“Hoje [dia do 150o aniversário da assinatura do Tratado de Waitangi], somos suficientemente


fortes e honestos para tirar as lições destes cento e cinquenta últimos anos e admitir que o Tratado
não foi observado corretamente. Eu considero isso como a herança de uma promessa a ser
mantida.”

Escrito em tamanho maior, ao lado do painel, lê-se os dizeres do Dr. Papaarangi Reid,
da Universidade de Auckland:
51

“Tudo remete ao Tratado/o tempo todo./Você tem uma grande casa/cheia de espaço, e/você quer
um companheiro./Mas 153 anos depois,/nós temos o canil/lá fora, eles têm/a casa e estão/nos
45
cobrando aluguel./E se esqueceram/que tinham um acordo de empréstimo.”

Selado em 6 de fevereiro de 1840 em Waitangi, região de Northland, o tratado foi


assinado por cinquenta e dois chefes tribais Maori, que estavam oficialmente no poder
desde 1835, quando o país foi declarado independente. O texto no painel conta que
grande parte dos chefes via a parceria com a coroa britânica e a aquisição de novas
tecnologias e possibilidades comerciais com bons olhos. Redigido em inglês e traduzido
em maori, deveria atender a diversos objetivos, como a proteção dos interesses e do
bem-estar dos Maori e dos colonos, o encorajamento da imigração, a instauração de um
governo e de um sistema de ordem-pública britânicos, fazendo da Nova Zelândia uma
dependência britânica.

Para os Maori, ele deveria também garantir a propriedade de suas terras, de seus
recursos e de sua autoridade tribal. A tradução do texto do Tratado deu margem a
grandes divergências, discutidas até os dias de hoje. Enquanto os Maori consentiam em
dar à coroa britânica o papel de governador, a versão inglesa lhe atribuía direito
soberano sobre a nação. A luta para que este tratado seja respeitado e tenha valor
constitucional continua sendo a principal bandeira dos líderes maori. Outra frase
presente neste painel, atribuída ao chefe tribal Nopera Panakareao em 1840 na ocasião
da assinatura do tratado, diz: “A sombra do território vai para a Rainha, mas a
substância permanece conosco”.

2.1.1 Whakapapa (identidade e interconexão)

No próximo espaço, uma espécie de corredor pouco iluminado com paredes pintadas de
preto, entramos na primeira seção, que aborda a importância da genealogia para os
Maori. O painel que abre esta seção explica que, “na visão de mundo maori, tudo está
ligado – as pessoas, o meio-ambiente, os objetos animados e inanimados”. Esta
interconexão é o que constituiria o whakapapa. Diz-se também que ele se exprime por
meio das genealogias, ritos e histórias e estas heranças formam um saber que permite
aos homens definir quem são e como estão ligados uns aos outros e ao mundo que os

45
Apresento o original por tratar-se de um poema: “It goes back to the Treaty/all the time./You’ve got a
big house/plenty of room, and/you want a flatmate./But 153 years later,/we’ve got the kennel/outside,
they’ve got/the house and they’re/charging us rent./And they forgot/ they had a lease/agreement”.
52

cerca. “No seio da sociedade maori, o whakapapa descreve os laços estreitos entre uma
whanau (família), sua hapu (subtribo) e sua iwi (tribo). [...] Religa também uma pessoa
a sua waka (canoa ancestral) e a sua whare tupuna (casa de reunião ancestral). A arte
maori tradicional e contemporânea, assim como o ta moko (tatuagem) descrevem muitas
vezes essa ligação.”

Nas paredes vemos fotografias de famílias reunidas, formando uma espécie de


árvore genealógica, sendo todas as pessoas identificadas pela legenda, que nos permite
perceber que se tratava de núcleos familiares. Diferentes rostos, tipos físicos e gerações
reunidas. Uma fotografia panorâmica muito comprida de várias pessoas sentadas lado a
lado em um longo banco, todos descendentes de Wiremu Te Manewha.

Não havia outros objetos nesta sala, nada sobre o chão. Mas no canto, num nicho
recuado e iluminado apenas por um foco de luz baixa, vê-se um objeto protegido por
uma vitrine, uma cabeça com o rosto todo coberto por tatuagens, bastante realista.
Como explicava a placa de informação sobre o objeto, de difícil leitura sob aquela luz,
trata-se de um molde do rosto do grande chefe tribal, Wiremu Te Manewha, o ancestral
reverenciado por todas aquelas gerações de parentes que apareciam nas fotos anteriores.
“Este precioso molde representa para seus parentes seu whakapapa (genealogia)” diz a
legenda. Wiremu era um guerreiro e dirigente maori muito reconhecido, e seu status
pode ser percebido por seu moko (tatuagem maori). Diz-se que suas tatuagens ilustram
seu pertencimento tribal, sua ligação com determinada casa cerimonial e com a canoa de
seu ancestral, ligando-o a sua ascendência primordial com os primeiros habitantes de
Aotearoa. Este molde foi feito com seu consentimento, realizado pelo artista Gottfried
Lindauer na segunda metade do século XIX. O chefe teve suas tatuagens refeitas para
que se tornassem mais profundas e aparecessem com precisão no molde, chamado na
exposição de “máscara de vida”.
53

Figura 15: Molde do rosto do chefe maori Wiremu. ©blissinthecity

Adentra-se então o espaço mais amplo da exposição, um enorme salão, bem


iluminado e cheio de objetos que atraem o olhar. Painéis de compensado branco formam
uma espécie de biombo ou pilastras que fazem a divisão do espaço. Eles são
tridimensionais, retilíneos e possuem padrões desenhados vazados que formam espirais
iluminadas por dentro, refletindo sua decoração no chão. Estes painéis, segundo uma
das guias de visitas de grupo, “foram a única coisa realizada pelo Museu do quai Branly
para esta exposição, e mesmo os desenhos feitos neles foram enviados pelo museu Te
Papa da Nova Zelândia.” Quem visita a exposição acompanhado de guias ou é adepto
de um modo mais “ordenado” de visita, segue o percurso “correto” observando o que
está exposto próximo à parede do lado direito. Mas muitos visitantes e especialmente as
crianças passeiam livremente pelo espaço, provavelmente em direção aos objetos mais
imponentes, a algum outro que tenha chamado sua atenção ou mesmo a algum dos
bancos acolchoados disponíveis para se sentar em frente a algum vídeo ou objeto.

À direita, uma projeção exibe em tamanho gigante um vídeo de pessoas remando


em uma canoa moderna pelas águas do Pacífico. Em frente à projeção está exposta a
canoa, que têm o mesmo formato das antigas canoas polinésias, mas é toda feita com
materiais modernos. O vídeo se chama “Adaptação moderna de uma tradição antiga” e
pretende mostrar como a waka ama, corrida de canoas, é uma tradição viva e bastante
54

popular entre pessoas de todas as idades e regiões da Nova Zelândia. Um grande painel
escrito apresenta este primeiro subtema, chamado de “Waka Nunui – Barcos
excepcionais”. Conta-se como os primeiros habitantes da Nova Zelândia-Aotearoa
vieram da Polinésia oriental navegando em canoas de dois cascos e encontraram na ilha
muitas árvores propícias para a construção de suas embarcações. Até hoje, quando se
apresentam, os Maori costumam fazer referência ao nome da canoa em que vieram seus
ancestrais. “Operadas por centenas de guerreiros, elas eram investidas do prestígio e do
espírito dos membros e chefes da tribo.”

Figura 16: canoa moderna e vídeo sobre navegação na cultura maori. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly

Em 1990, por ocasião do aniversário de 150 anos da criação da Nova Zelândia-


Aotearoa moderna, 21 canoas de guerra foram encomendadas por diversas tribos,
revitalizando as técnicas necessárias para construí-las e dirigi-las e consolidando esta
tradição como um “símbolo de identidade e orgulho tribal”. A canoa que está exposta é
uma embarcação de dois cascos, grande, mas feita para duas pessoas, toda branca com
detalhes em aço brilhante e decorada com adesivos desenhados com formas tradicionais.
Criada por Kris Kjeldsen e Nikora Ngaropo, ambos navegadores, sua forma retoma a
das canoas ancestrais utilizando a mais alta tecnologia e os elementos de sua
ornamentação são detalhadamente explicados simbolicamente por Ngaropo. Há
fotografias de sua construção e de seus criadores navegando com ela.

A corrida de canoas é um dos esportes mais populares da Nova Zelândia e,


explica uma pequena placa com uma foto da equipe neozelandesa no campeonato
mundial de waka ama na Nova Caledônia em 1996, “é muito mais que um esporte”,
“favorece o espírito de equipe e de competição e reforça o whanau (laços familiares).”
55

O texto conta um pouco de como este esporte e a construção das canoas foram
retomados no país e como sua prática representa “uma expressão de tino rangatiratanga
(autodeterminação), encorajando os participantes a tomar as rédeas de seu bem-estar
físico, mental e espiritual”.

Outro painel com fotografias compõe esta parte, chamado “mestres


navegadores”, onde se pode ver diversos modelos e tamanhos de canoas, utilizadas em
diferentes contextos, em imagens recentes e outras mais antigas. Ao lado da canoa, em
vitrines embutidas na parede, encontram-se um remo antigo e três remos fabricados nos
anos 2000, além de uma “caixa de tesouros” cujo formato é inspirado naquele das
canoas tradicionais. Ainda sobre navegação, está exposto um monumento de madeira
entalhada de coloração avermelhada de grandes dimensões, feito a partir do casco de
uma canoa de guerra, cuja legenda explica que uma waka (canoa) “simbolizava seu
prestígio e autoridade. Quando o chefe morria, a waka era frequentemente desmontada
para ter seu casco esculpido e erguido em sua homenagem.”.

Encerrando o tema, vemos, no centro do grande salão, uma proa e uma popa de
pirogas antigas, feitas de madeira e delicadamente decoradas com entalhes que formam
espirais e rostos com a língua pra fora e olhos brilhantes de abalone. A tahiu (proa),
além de ser uma belíssima escultura na parte frontal da canoa, “estava impregnada de
mauri (força vital) e tinha por missão indicar o caminho assegurando a segurança dos
passageiros. O rosto seria o de um humano, e as duas espirais atrás dele seriam, segundo
a legenda, “Ranginui (o pai-céu) e Papatuanuku (a mãe-terra), o casal de divindades que
está na origem da história de criação maori.” Quando as canoas não eram mais
utilizadas, proas como esta, rica em detalhes, eram conservadas com zelo e passadas de
geração em geração. A taurapa (popa) é apresentada como fornecedora de “proteção
divina”. Diz-se que os “motivos espirituais que ornamentam esta taurapa protegem e
inspiram os guerreiros à bordo da waka taua.” O conjunto de seus motivos, com a figura
de uma divindade protetora em sua base, “conecta os guerreiros à bordo da waka à seus
ancestrais e à história da criação maori”.
56

Figura 17: Popa de canoa © blissinthecity

O segundo tema dentro da seção Whakapapa é o das whare tupuna, casas de


reunião ou cerimônias. Estas casas são “o símbolo mais forte e mais durável da
identidade Maori [...] Quando se entra em uma casa cerimonial, está se entrando no
corpo do ancestral”. O interior de uma whare tupuna é caracterizado pela figura
esculpida da divindade Rongo-ma-Tane, como um local de paz e reconciliação. Já o
exterior, espaço de desafios e conflitos, é o domínio de Tu-mata-uenga, divindade da
guerra. Estas casas são o centro dos marae (centros comunitários tribais), presentes em
toda a Nova Zelândia, mesmo escolas e administrações públicas possuem um destes.
Vemos então uma série de fotografias coloridas mostrando diferentes casas, umas mais
decoradas e outras mais simples, e diferentes situações ocorridas em seu interior, como
reuniões políticas (com cadeiras e mesa de trabalho posicionadas dentro da casa
cerimonial) ou celebrações.

Uma estrutura enorme, ainda que incompleta, de uma casa de reunião é o objeto
de maior destaque deste grande salão. Grandes painéis de madeira entalhada de
coloração avermelhada compõem esta estrutura, que tem no centro o rosto de uma
figura ancestral. Os dois painéis que descem a partir do rosto formando a frente do
telhado seriam os braços do ancestral e a sustentação perpendicular do telhado sua
coluna, de onde partem as vigas laterais de sustentação que seriam as costelas (estas não
estão presentes na exposição). Essa explicação é fornecida por uma legenda que conta
57

também com um desenho da estrutura completa e uma fotografia da cerimônia de


despedida da casa, realizada pelos descendentes do chefe tribal a quem pertenceu no
momento de sua entrada para o Museu de Arte e História de Waikato. A legenda a
apresenta como “uma casa viva”.

Figura 18: Casa de Reunião Ancestral. © blissinthecity

Outros elementos que compõem as casas estão expostos, como uma série de
esculturas que são os “suportes físicos” de uma casa de reunião, os pou tokomanawa,
personagens ancestrais esculpidos na base da coluna central das wharenui. As esculturas
apresentadas foram produzidas em diferentes épocas, mostrando “a evolução e as
continuidades da arte de esculpir”. Dispostas sobre uma plataforma branca à meia
altura, sem proteção de vitrines, duas delas representam figuras ancestrais masculinas e
uma feminina. Além das explicações sobre sua função dentro da casa de reunião, há
também a simbologia de seus gestos. Os ancestrais masculinos têm o rosto tatuado,
portam um tiki ancestral (pingente antropomórfico), um deles tem seu órgão sexual
erguido por uma de suas mãos – “simbolizando o poder de procriação” -, o outro tem as
mãos sobre o ventre - “uma posição ancestral tradicional” que denota o “desafio ao
inimigo”. As figuras femininas não são caracterizadas como um ancestral específico,
mas como representantes dos “princípios femininos do mundo Maori” e têm uma das
mãos apoiada sobre o ventre “simbolizando sua aptidão feminina a dar à luz e nutrir”.
58

Ao lado destas esculturas há mais algumas outras, menos “tridimensionais”, mas


também compostas por figuras antropomórficas. São “painéis” verticais esculpidos,
espécies de pilastras que sustentam as paredes da casa de reunião, mas também,
“simbolicamente, a estrutura social da iwi (tribo)”. Os motivos entalhados nestas
pilastras são imagens de ancestrais e evocações de seus grandes feitos, ou de momentos
históricos da tribo e de seu chefe, como grandes batalhas. As legendas explicam as
particularidades de cada uma destas esculturas, a tribo que as produziu e as histórias que
contam seus motivos.

Afastando-nos um pouco da grande casa, vemos uma vídeo-arte, com


banquinhos posicionados em frente. Uma tela digital dentro de uma moldura grossa
retangular exibe uma sequencia de desenhos geométricos que vão se alterando e
formando diferentes padrões, tornando-se aos poucos um tanto hipnótica. As cores são
frias e projetam-se sobre os visitantes que se aproximam da tela. Sentar-se ali parece
criar uma pausa relaxante após tanta informação. Na legenda anterior, que descrevia a
arquitetura da wharenui, dizia-se que suas paredes internas, quando em uso, eram
cobertas por painéis de tecido. Esta obra em vídeo que observamos agora se remete a
estes painéis, como se fosse um “vídeo-tecido”. Estes painéis, chamados tukutuku,
“ilustram as histórias que incarnam valores importantes como o whakapapa
(genealogia), o mana (prestígio e autoridade) e o manaakitanga (respeito e
hospitalidade)”.

Outra obra contemporânea inspirada em motivos presentes na casa cerimonial


aparece aqui. São quadros retangulares, pintados com cores sóbrias mas contrastantes e
desenhos retilíneos que lembram os kowhaiwhai – motivos pintados nas “costelas” das
casas cerimoniais. As linhas se relacionariam numa dinâmica de “positivo/negativo”
“utilizando um vocabulário tradicional para explorar a ideia de espiritualidade e
iluminação em um contexto maori ancestral”. A legenda evoca ainda que esta pintura
dialoga com outros artistas do século XX que já utilizavam “a metáfora de uma simples
linha vertical para significar a ligação com Deus.”.
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Figuras 19 e 20: “Metaphi #4, Metaphi#5, Metaphi #6” de Darryn George. Foto: Nina Vincent

Entrando em uma sala relativamente pequena, que apresentava a iluminação


mais baixa de toda a exposição, temos o primeiro “foco histórico” do percurso,
chamado “He whenua Maori a Takaparawhau – Bastion point é uma terra Maori”.
Aqui vemos a história do local que marcou o acirramento dos protestos maori contra o
desaparecimento de sua cultura e a desapropriação de suas terras. “Bastion Point é uma
terra Maori”, diz o primeiro painel informativo. Esta área, chamada Takaparawha, ou
Bastion Point, em Auckland, uma das últimas terras ancestrais da tribo Ngati Whatua,
foi escolhida pelo governo para receber um plano de construção imobiliária em 1976.
Em forma de protesto, o local foi ocupado pelos Maori e uma casa de reunião chamada
Arohanui (“amor absoluto”) foi construída ali como símbolo do tino rangatiratanga
(autodeterminação). A ocupação pacífica durou 506 dias e terminou quando a polícia
armada foi enviada para dispersar os manifestantes, prendendo 222 pessoas por violação
de propriedade e derrubando suas construções, inclusive Arohanui. Em 1985, o governo
se desculpa formalmente pelo ocorrido e restitui as terras à tribo, juntamente com uma
indenização financeira.
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Figura 21: Sala Bastion Point. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly

Ao lado do painel há um vídeo de cerca de 5 minutos sobre Bastion Point, com


cenas e entrevistas gravadas durante a ocupação. Na parede ao lado, lê-se as frases “Nós
somos sem-terra em nossa própria terra.” e “Perder este último pedaço de território seria
a morte do Mana, da honra e da dignidade de nosso povo.”. Em seguida, protegida por
uma vitrine, há uma bandeira, réplica daquela hasteada em Bastion Point no momento
da ocupação, decorada com um motivo chamado mangopare (tubarão-martelo),
“símbolo de tenacidade e de força indefectível”. Ao lado da bandeira viam-se alguns
cartazes de celebração da ocupação de Bastion Point, o maior deles, pela ocasião do
aniversário de 30 anos, com ilustração de uma paisagem local e os dizeres: “The
Turning Point”. É assim que os Maori costumam se referir ao episódio Bastion Point,
como um “momento de virada”. Outros itens comemorativos estão expostos, como
camisetas e bonés estampados com a bandeira de Bastion Point, inclusive a camiseta
usada no dia da ocupação por Joe Hawke, líder do movimento. Algumas fotos
ampliadas em preto e branco estão fixadas na parede em frente, mostrando imagens
aéreas da ocupação, situações familiares cotidianas, assembleias e o confronto com a
polícia no último dia.

O terceiro tema que ilustra o conceito de genealogia explorado na seção é “Ta


Moko: um marcador de identidade” e aborda a tatuagem maori. Seu significado é assim
interpretado na exposição: “Os motivos do Ta Moko revelam a identidade daquele que
61

os porta descrevendo seu whakapapa (genealogia), suas realizações e sua posição na iwi
(tribo).” E segue explicando a técnica particular usada tradicionalmente nas tatuagens
maori, que consiste na “arte de fazer incisões na pele e depois colori-las com pigmento
preto [...] servindo-se de ‘tesouras’ para gravar a pele tal como fazem sobre a madeira,
criam motivos que revelam a identidade daquele que os portam descrevendo sua
genealogia, suas realizações e sua posição na tribo”. Conta também o mito de origem da
tatuagem e aponta para o ressurgimento de interesse pelo Moko tradicional na
contemporaneidade. O texto também faz referência ao fato dos chefes terem assinado o
Tratado de Waitangi com reproduções de suas tatuagens.

Nesta parte podemos ver em vitrines independentes posicionadas no centro do


espaço vários utensílios para fazer tatuagem, desde os mais antigos, feitos de osso com
um martelinho de madeira, os pós-contato feitos de metal e até os mais modernos,
máquinas elétricas com agulhas e tintas industrializadas, utilizados por Derek Lardelli
há 20 anos, quando se iniciou na arte de tatuar, tornando-se hoje um dos mais eminentes
artistas maori. Segundo a legenda “esse estojo contém a história de todas essas pessoas,
entre as quais eminentes dirigentes maori, que receberam o moko das mãos de Derek.
Ele evoca o laço entre o artista e o receptor.”

Figuras 22 e 23: Instrumentos de tatuagem. Foto: Nina Vincent

Exibia-se também fotografias coloridas de pessoas e suas tatuagens e em uma


pequena tela um vídeo de uma sessão moderna de tatuagem com método tradicional.
Uma grande parede que fazia transição desta parte para a próxima exibia uma série de
fotografias em preto e branco feitas por Marti Friedlander nos anos de 1970, quando
viajou pelo interior do país em busca de mulheres velhas que ainda tinham o queixo
tatuado, numa época em que a cultura maori havia sido bastante apagada e pensava-se
que esta prática desapareceria.
62

Algumas esculturas em madeira representam pessoas tatuadas. Em duas vitrines


incrustadas na parede vemos dois interessantes objetos. Uma espécie de painel
tridimensional, no qual são representados três rostos tatuados, que não se parece
exatamente com as outras esculturas vistas até então. Trata-se de uma encomenda feita
pelo etnólogo Augustus Hamilton em 1896 para ilustrar uma das primeiras obras de
referência sobre arte maori. O escultor Tene Waltere praticava e ensinava a arte da
escultura na Nova Zelândia e realizou este trabalho inovador, no qual “combinou a
escultura maori tradicional com a abordagem europeia da escultura para criar uma
ilustração extremamente realista do ta moko”. Dos três rostos, dois são de homens,
cobertos integralmente por suas tatuagens e um é de mulher, com moko kauae (tatuagem
feminina que cobre os lábios, o queixo e às vezes alguma outra parte do centro do
rosto).

O outro objeto exposto é um tekoteko (escultura humana) de uma mulher


portando um moko integral – normalmente restrito aos homens - e segurando um bebê
nos braços. A legenda diz que ela “representa a figura bíblica da ‘Virgem com a
criança’. O escultor decorou o rosto de Maria com um moko (tatuagem tradicional)
integral assimilando-a assim a uma ariki tapairu – a filha mais velha de uma família
maori de alto nível. As ariki tapairu eram sagradas e não podiam nem se casar nem ser
tocadas por nenhum homem. O moko integral em seus rostos era um sinal de seu
mana”. Interessante notar que, não se sabe exatamente a partir de que momento, a
palavra “bíblica” presente na legenda desta peça apareceu rabiscada de caneta, e assim
permaneceu por alguns dias, ao menos até a data da minha partida.
63

Figura 24: Painel Ta Moko. Foto: Nina Vincent

Figura 25: Esculturas que compõem o telhado das casas de reunião foto: Nina Vincent

2.1.2 Mana (prestígio e autoridade)

A segunda grande seção da exposição apresenta o conceito de mana. O mana,


um dos conceitos fundamentais da visão maori do mundo, é central também nos estudos
clássicos de Antropologia. Assim, estava curiosa para ver a abordagem proposta “pelos
próprios Maori” deste conceito na exposição e na escolha de objetos. O primeiro painel
fornece a seguinte explicação:

“Prestígio e Autoridade. Mana é uma força, ou qualidade espiritual, encontrada nas pessoas,
animais e objetos inanimados. O mana é transmitido graças ao whakapapa e adquirido por meio
das realizações de cada um. Reafirmando seu próprio tino rangatiratanga, aqueles que possuem
mana podem transmiti-lo, reforçando o mana dos outros. [...] estes objetos [exibidos aqui]
recebem seu próprio mana via seu produtor, seus laços tribais, sua significação simbólica e os
eventos importantes aos quais estão associados. A exposição Maori, seus tesouros têm alma,
explora a influência do mana sobre as formas tangíveis e intangíveis dos taonga (tesouros
pessoais), sobre as relações dos homens com estes taonga e sobre as relações mantidas entre eles,
seus tupuna (ancestrais) e as gerações futuras. (...)”.

A primeira parte desta seção apresenta “tesouros pessoais”. Estão expostas


várias capas, de diferentes materiais, utilizadas ou fabricadas por pessoas importantes,
cuja história é contada nas legendas. Há uma capa mais antiga, feita com fibras naturais
64

e plumas e detalhes em osso de baleia, e algumas contemporâneas, como a


confeccionada pela tecelã Diane Prince, que retomam técnicas ancestrais utilizando
materiais modernos, como tecido industrial e mesmo fios de cobre. As legendas
ressaltam a importância de se perpetuar a arte da tecelagem como “maneira de
reconhecer o mana (prestigio e autoridade) de seus ancestrais e o dom que representa a
tecelagem”.

Figura 26: Capa de plumas. Foto: Nina Vincent

Figura 27: “Nga Puhihi o Nga Whetu – Rays of the stars” de Diane Prince (Capa de fios de cobre) Foto: Nina Vincent

Há também ornamentos, como os pingentes hei tiki, um tipo de pingente


tradicionalmente usado em torno do pescoço, uma figura antropomórfica, reprodução
estilizada do corpo de um ancestral. Estão expostos vários exemplares destes pingentes,
alguns em uma vitrine vertical, sustentados por alfinetes, e outro dentro de uma
whakanui (caixa de tesouros), exibida aberta para que se possa ver seu conteúdo, dentro
dela há outros elementos preciosos como duas penas, uma pluma, um par de pingentes
de orelha feito de dentes, dois pequenos pingentes de jade e um pente, todos elementos
ligados à cabeça de um grande chefe, considerada a parte mais sagrada do corpo.

O segundo tema abordado na seção “Mana” é Te Reo Maori, a língua Maori, que
“possui seu próprio mana (prestígio e autoridade), [...] É um taonga (tesouro) único que
requer cuidado e proteção”. A prática falante desta língua declinou fortemente no fim do
65

século XIX e ao longo do século XX. Políticas governamentais como a interdição de


falar a língua nas escolas reforçaram essa tendência, levando estudiosos a declararem a
língua maori como em vias de desaparecimento completo nos anos de 1970. Nesta
década, junto aos protestos de militantes e movimentos de revitalização da cultura
maori, a língua maori foi sendo reabilitada, bem como seu ensino, como símbolo de
orgulho identitário.

Alguns objetos apresentam este “tesouro” imaterial, como uma grande moldura
em madeira decorada, dentro da qual há um texto impresso. Trata-se de uma tipografia
utilizada antigamente na impressão de bíblias na qual se lê em língua maori “Glória a
Deus nas alturas e paz aos homens por Ele amados”. A bíblia foi o primeiro livro a ser
traduzido em maori, em 1868. Na vitrine seguinte, vemos um bastão ricamente
decorado com entalhes e conchas de abalone, ao lado do qual está escrito “O peso das
palavras. O tokotoko (bastão de orador) é utilizado para pronunciar um whaikorero
(discurso formal). Ele simboliza o mana (prestígio e autoridade) da arte oratória maori.”
Estes discursos associam o encantamento, a genealogia, a história, a poesia, a sabedoria
proverbial e os comentários refinados e humorísticos que caracterizam o domínio desta
arte considerada o apogeu da te reo (língua maori). Os rostos esculpidos neste bastão
representam três ancestrais reputados por seu talento como chefes e oradores.

Há na parede lateral um extenso painel com uma cronologia desta “língua viva”
que “desempenha papel fundamental na vida cotidiana da Nova Zelândia-Aotearoa” e
que “na segunda metade do século XX conheceu um novo crescimento. Porém, seu
futuro nunca foi tão promissor.” Nesta cronologia estão marcadas com textos e imagens
as datas de importantes publicações em língua maori, períodos e fatos histórico-
políticos na trajetória da língua e de seu uso no país. São registros das primeiras
aparições da língua maori escrita, traduções importantes e eventos políticos que
marcaram o declínio e a retomada do uso da língua. A dimensão e localização do painel,
associadas à luz baixa empregada nesta parte tornavam sua leitura integral difícil e, pelo
que pude notar, bastante rara entre os visitantes.

Ao lado deste espaço, podia-se entrar em uma pequena salinha recuada da


exposição onde estavam dispostos quatro bancos em fileiras para que os visitantes se
sentassem e assistissem alguns programas da Maori Television, criada em 2003 com o
objetivo de revitalizar a língua e a cultura Maori.
66

Seguindo a diante, passava-se pelo terceiro tema da seção Mana – “Vozes fortes:
figuras femininas”. Aqui se via pinturas de estilo realista, realizadas por Robin
Kahukiwa nos anos 1980, representando mulheres em situações mitológicas, cujas
narrativas e simbolismos são explicitados detalhadamente nas legendas. Há também um
livro, exposto dentro de uma vitrine, que conta mitos da cosmologia maori tendo
mulheres como personagens principais “diferente das transcrições orais que datam do
século XIX, nas quais as mulheres têm apenas papeis de figurante”.

Figura 28: “Taranga” e “Hine-Titanga” de Robyn Kahukiwa ©bliss in the city

Outro tema abordado é “Taonga Puoro: a música dos deuses” que traz os
instrumentos musicais. As legendas explicam a origem mitológica não só dos
instrumentos – descendentes do casal ancestral que deu origem ao mundo – mas da
própria música: “Ranginui [o pai-céu] deu origem à melodia (um dos sentidos da
palavra ‘rangi’ é melodia) e os batimentos do coração de Papatuanuku [a mãe-terra] dão
o ritmo”. Também por meio de textos, somos informados que “os próprios instrumentos
possuem um mana que vem dos deuses e que são encarnados nas formas tradicionais”.
Estas “formas tradicionais” são as ornamentações feitas sobre os instrumentos,
sobretudo flautas, cujos desenhos e sons são descritos nas legendas.

A importância da música maori vem também de sua ligação com a língua maori.
As canções teriam sido um dos elementos de maior resistência no uso dessa língua. Elas
67

acompanham cerimônias, celebrações e pronunciamentos realizados nas casas de


reunião, estão sempre presentes nas performances de dança tradicional e são o principal
contato com a língua para aqueles que não têm desenvoltura na fala corrente. Nesta
parte há fotografias e um vídeo de uma oficina de produção e utilização de instrumentos
musicais tradicionais, ministrada por um grupo chamado Hau Manu, considerado o
“principal agente da reabilitação destes instrumentos”. Em vitrines incrustadas na
parede são exibidos vários exemplares de “instrumentos musicais tradicionais”, flautas
de diferentes tamanhos e berrantes de búzios gigantes, além de releituras
contemporâneas, como uma flauta feita de resina plástica pelo artista Rangi Kipa.

Figura 29: Flautas. Foto Nina Vincent

O segundo foco histórico do percurso encerra a seção. “Mais nenhum hectare de


terras maori” apresenta, ao longo de uma passagem escura com paredes pretas, a
Marcha pela Terra, ocorrida em 1975. Face à contínua desapropriação de terras maori
pelo governo e por especuladores, “os Maori decidiram passar à ação direta”. Uma
anciã maori, Whina Cooper – cuja biografia é detalhada em outro painel menor,
organizou uma marcha que reuniu cerca de 40 000 pessoas (maoris e pakehas) e
percorreu 1.126 km até o Parlamento de Wellington para apresentar um abaixo assinado
pelo controle e retenção das terras pelas tribos maori.

A marcha é apresentada no texto como “um dos maiores eventos de protestos


maori na Nova Zelândia – Aotearoa e uma manifestação sem precedentes do tino
68

rangatiratanga.”. No espaço há uma série de fotografias da marcha, além de bandeiras e


cartazes utilizados na ocasião. Uma vitrine exibe um bastão de combate,
tradicionalmente utilizado em guerras e fincado no solo para delimitar terras. Após
Whina Cooper ter abatido uma árvore de sua terra para esculpir um bastão de combate,
este se tornou o emblema da Marcha, sendo carregado pelos habitantes de cada território
tribal atravessado no percurso.

Figura 30: Fotografia da Marcha pela Terra (de John Miller, 1975). Foto: Nina Vincent

2.1.3 Kaitiakitanga (proteção e preservação)

A terceira seção aborda questões ligadas ao meio-ambiente. O primeiro grande


painel de texto diz: “Na visão maori do mundo, todos os elementos, vivos ou
inanimados, descendem de Papatuanuku (mãe-terra) e Ranginui (pai-céu). Os seres
humanos fazem parte desta ordem natural, da qual são também guardiões. Esta relação é
expressa através da Kaitiakitanga (proteção e preservação).” Segundo este princípio, o
povo maori “deve proteger e gerir os recursos de sua própria zona tribal. Garantindo que
estes sejam utilizados de maneira judiciosa e durável, o manaakitanga (cuidado e
hospitalidade) pode continuar a se exprimir no seio das comunidades, bem como para
com os visitantes e convidados recebidos.”.
69

O primeiro tema é “Nascidos da Terra”, explorado em um grande painel com


textos e fotografias explicando que “Whenua é o nome dado ao mesmo tempo à terra e à
placenta.” É costume entre os Maori enterrar a placenta após o nascimento de um bebê
na terra de seus ancestrais. “Esta tradição vêm da crença de que o primeiro ser humano
foi criado a partir do corpo de Papatuanuku (mãe-terra). Enterrar a placenta permite
enraizar o recém-nascido à sua terra e sua whakapapa (genealogia) mas também é uma
forma de devolver à terra aquilo que se tomou dela”. Sem terra, ou com a poluição e
devastação dela, os valores maori se perderiam ou tornar-se-iam de difícil transmissão.
Os Maori devem, portanto, ser kaitiaki (guardiões) da terra para que possam continuar a
usufruir da nutrição física, espiritual, emocional e intelectual que ela possui, mantendo o
equilíbrio entre o povo e a whenua (terra).

O primeiro objeto desta grande sala branca é uma enorme mesa de madeira,
apoiada em cavaletes, com dois grandes bancos de madeira, arrumada para receber uma
grande quantidade de pessoas, com pratos, talheres, copos, flores e muitas pedrinhas
espalhadas sobre a toalha de mesa. Atrás dela, fixadas na parede, algumas fotos
coloridas mostram pessoas em torno de mesas similares, reuniões familiares ou de
amigos. A “instalação”, chamada “Mil à mesa”, é uma mesa trazida de uma verdadeira
casa de reunião na qual mil pessoas foram servidas em 2004 na ocasião do encontro em
defesa do litoral e fundo marinho. Este tipo de mesa, fácil de armar, representa a
disposição das iwi (tribos) para a tarefa de alimentar muitas pessoas e “lembra a
importância da whare kai (sala de jantar) no seio dos complexos marea (centros
comunitários tribais)”. É aí que “percebemos claramente a expressão tangível e prática
do manaakitanga (respeito e hospitalidade)”.
70

Figura 31: “Mil à Mesa”. Foto: Nina Vincent

Ao lado da mesa, há um quadro feito por Reuben Patterson, o mesmo artista que
realizou a videoinstalação da primeira sala da exposição. É uma tela toda coberta de
purpurina e poeira de diamante preta e branca que formam uma grande estrela no
centro, rodeada por outras menos e por raios curvilíneos que partem delas. A legenda
correspondente a esta obra fala do “laço com a terra” explorado por Patterson na ocasião
de sua residência artística na região de Otago, na ilha sul da Nova Zelândia. O motivo
caleidoscópio seria sua representação da paisagem da região e dos traços deixados por
seus ancestrais.
71

Figura 32: “Nêmesis” de Reuben Patterson. Foto: Nina Vincent

Ao lado do quadro, protegida por uma corda de isolação, há uma “casinha”,


menor do que a grande casa de reunião pela qual passamos antes, mas muito
ornamentada, apoiada sobre pilotis e com a fachada mais completa do que aquela. Essa
pataka é um depósito que era usado por um chefe para armazenar principalmente a
comida de sua tribo. Uma das grandes atribuições de um chefe é a de gerenciar bem os
recursos disponíveis e poder garantir hospitalidade aos convidados. “O mana do chefe e
de sua iwi (tribo) emana justamente desta capacidade”. Além de mais informações sobre
as funções de um “depósito”, a legenda conta também que este, especificamente,
pertencia a uma determinada tribo e que foi adquirido pelo Museu Nacional para
protegê-lo da degradação. Em troca, a construção de outro novo para a comunidade foi
financiada pela instituição.

Figura 33: Depósito do chefe. Foto: Nina Vincent


72

Após um vídeo sobre a necessidade de reconexão dos Maori com a terra, há mais
um grande painel com textos e fotos chamado “A transmissão de uma Herança”. Neste
painel diz-se que “A identidade e o bem-estar maori estão inextricavelmente ligados ao
meio-ambiente que os cerca.”. Em seguida fala do “Empobrecimento da terra Ngati
Whare”, uma região da ilha do norte que concentrava diversas tribos que, diante da
demanda crescente de madeira, passou a fornecer madeira nativa e recebeu espécies
exóticas, causando grande destruição e um embate entre governo, comerciantes,
ecologistas e membros das comunidades locais. Em 1985, o governo fez cessar a
exploração neste local e toda retirada de madeira de florestas nativas. A comunidade
passou a controlar o reflorestamento da área e a trabalhar em parceria com agentes
ambientais para adaptar as técnicas tradicionais de proteção aos problemas ecológicos
contemporâneos. As fotos deste painel mostram a riqueza das densas florestas nativas,
além de estudantes, líderes comunitários e famílias que vivem nesta área. Em uma delas
aparece um avô e um neto fazendo o comprimento tradicional maori onde se tocam com
o nariz.

Mais uma obra contemporânea, realizada por Bett Graham, é exibida aqui. Uma
escultura de parede, de cor terrosa, em formato triangular lembrando uma arraia,
chamada “Guardião do Litoral”. Na legenda, chama-se atenção para sua semelhança,
além da arraia, com um bombardeiro furtivo (um avião em forma de W, indetectável por
radar destinado a lançar bombas e até ogivas nucleares), caracterizando-se como uma
resposta da artista à polêmica Lei dos litorais e fundos marinhos de 2004.

Figura 34: “Guardião do Litoral” de Bett Graham. Foto: Nina Vincent


73

O último tema, chamado “Reverter o curso”, apresenta um foco histórico de um


dos momentos políticos mais marcantes na história recente maori. Em 2003, uma
enorme polêmica mobilizou os neozelandeses em torno do direito de propriedade sobre
o litoral e os fundos marinhos do país. “O governo estimava que o litoral pertencesse a
ele, invocando essencialmente antigas decisões jurídicas. Entretanto, diversas
comunidades maori reivindicavam um direito de propriedade costumeira, colocando na
mesa o tempo de suas posses e as garantias do Tratado de Waitangi.” Este debate
provocou muitas reações por parte dos neozelandeses “não maori”, que temiam que seu
direito de “passar um dia na praia” poderia ser ameaçado.

Porém, “para os Maori, não se tratava de uma simples interdição de acesso ao


litoral, mas de provar legalmente o fundamento de sua reivindicação de beneficiar e
gerir os recursos litorâneos. Fundamentalmente, este debate concernia o direito dos
Maori de exercer seu tino rangatiratanga (autodeterminação e autoridade) e
kaitiakitanga (proteção e preservação).” “Sem o tino rangatiratanga (poder) sobre suas
zonas tribais, as aspirações maori [de exercer o kaitiakitanga] foram fortemente
colocadas em questão”.

Os Maori conseguiram o direito de se pronunciar no parlamento, mas a lei que


atribuía a propriedade dos então nomeados “litorais e fundos marinhos públicos” ao
governo da coroa foi promulgada. Jamais tantos manifestantes, maori, simpatizantes,
advogados, foram vistos em frente ao parlamento. Diversas fotografias das
manifestações podem ser vistas aqui, com representantes do povo maori vestindo suas
capas cerimoniais, mostrando suas tatuagens, carregando suas bandeiras pretas e
vermelhas, faixas de protesto, seus bastões e dançando músicas tradicionais.
74

Figura 35: Sala Marcha pelo Litoral e Fundos Marinhos. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly

Alguns destes objetos levados à marcha pelo litoral e fundo marinho estão
expostos, como os taiaha (bastões de combate), feitos em madeira, com dois rostos
ancestrais em sua base que, olhando cada um em uma direção “representam a vigilância
do guerreiro”, e uma lâmina na outra extremidade. Alguns dos rostos esculpidos nestes
bastões têm a língua pendurada para fora (motivo chamado “arero”) que “atesta sua
dimensão espiritual guerreira”. Outros adornos compõem o bastão, como pelo de
cachorro e uma fita vermelha. A mau taiaha (arte marcial de combate com bastão) é
ensinada até hoje, para homens e mulheres, e os grupos guerreiros costumam vir na
frente das manifestações maori, como na marcha pelo litoral. As legendas contam
também a história dos proprietários destes bastões e seu papel na luta política maori
contemporânea.

São exibidos também camisetas, bonés e uma bandeira com o logotipo do tino
rangatiratanga, “produtos que se tornaram símbolos”. A imagem de fundo preto e
vermelho com uma mistura de onda e espiral no centro ficou famosa durante este
processo político. “(...) suas cores e seu motivo remetem a conceitos maori e ilustram
suas aspirações. O preto, elemento masculino, representa Te Korekore, a longa
obscuridade. Foi deste universo que surgiu a vida. O branco simboliza Te Ao Marama
(o mundo da luz) que reúne harmonia e equilíbrio. O vermelho, por fim, lembra Te
Whai Ao (o reino do ser em devir) e constrói uma metáfora de Papatuanuku (a mãe-
terra). O koru (espiral) simboliza a vida nova e a esperança de um belo futuro.”
75

Depois temos uma parte sobre a pesca, atividade constitutiva dos Maori. “Pescar
nessas águas era indispensável a sua sobrevivência e constituía uma atividade relativa à
crenças espirituais e valores fortes”, dizia o texto, que seguia descrevendo as técnicas
tradicionalmente empregadas pelos Maori na pesca. São exibidos utensílios tradicionais,
como uma armadilha para enguias, anzóis ornamentados com figuras ancestrais, feitos
de diversos materiais, como conchas, madeira, osso e fibra de linho, e fotografias de
pescadores trabalhando nas belas praias neozelandesas.

Figura 36: Anzóis. Foto: Nina Vincent

Figura 37: Fotografia lagosta no cesto (de Ian Batchelor). Foto: Nina Vincent

A exposição se encerra com uma instalação audiovisual em um nicho recuado,


que cobre integralmente duas paredes angulares. Em frente a esta projeção há dois
grandes bancos onde algumas pessoas se sentam, mas não cheguei a vê-los cheios
nenhuma vez. As imagens mostram bem de perto cachoeiras e rios, com suas águas
correndo e seu som característico. As imagens foram feitas por Nathalie Robertson em
sua terra natal, a região das geotérmicas da Baia de Plenty. Estas águas termais foram
contaminadas por dejetos químicos tóxicos lançados por duas empresas de papel
instaladas na área com autorização do governo. Segundo a legenda ela “se apoia nas
lendas maori locais para sublinhar a importância do papel dos kaitiaki (guardiões) e para
examinar os paradoxos do desenvolvimento econômico e da destruição do meio-
ambiente e do bem-estar humano.”.
76

2.2 Estratégias expográficas: agências e discursos


Após este passeio pela exposição “Maori. Seus tesouros têm alma”, proponho
que aprofundemos a compreensão de alguns conceitos da cosmologia Maori abordados
pela exposição associando-os a certas formas de apresentação dos objetos, que
chamaremos de “estratégias expográficas”. Para a Museologia, expografia é a parte da
museografia46 que diz respeito à forma das exposições. Essa disciplina estuda e propõe
práticas para todo o processo de “musealização”, que inclui a valorização de
determinados objetos, seu deslocamento para o contexto do museu, a pesquisa,
documentação, conservação - que são formas de introversão - e o processo de
“extroversão patrimonial” ou “de conhecimento”, que tem na exposição seu recurso por
excelência.

Segundo Cury, exposição é:

“conteúdo e forma, sendo que o conteúdo é dado pela informação científica e pela concepção de
comunicação como interação. A forma da exposição diz respeito à maneira como vamos
organizá-la, considerando a organização do tema (enfoque temático e seu desenvolvimento), a
seleção e articulação dos objetos, a elaboração de seu desenho (a elaboração espacial e visual),
associados a outras estratégias que juntas revestem a exposição de qualidades sensoriais.” (2006,
p.42).

Para os estudos de Museologia, o museu é o “local da experiência de


apropriação de conhecimento” e a exposição é vista como “lugar de negociação de
sentido” (Cury, 2006, p.10). Toda a ideologia moderna do museu fórum, e não mais
templo, se traduz na compreensão do encontro do museu com o público em termos de
comunicação. Cury nos mostra que a exposição torna-se central com a democratização
dos museus e seus acervos e é o principal elemento de comunicação entre o museu e o
público, por meio do qual os museus se apresentam para a sociedade e afirmam sua
missão institucional.

Os recursos expográficos considerados pela museologia são variados, incluindo


textos, legendas, ilustrações, fotografias, cenários, mobiliário, sons, texturas, cheiros,
temperatura, entre outros. A autora nos diz que a experiência de conceber uma
exposição “significa tomar decisões quanto ao o quê e como (...) com o objetivo de
estabelecer uma relação dialética entre o conhecimento que o público já tem sobre o
46
A museografia, por sua vez, é a estratégia de funcionamento do museu como um todo, incluindo suas
mais diversas atividades.
77

tema em pauta e o novo conhecimento que a exposição está propondo.” (Ibid. p.42,43,
grifos da autora). Assim, do ponto de vista de profissionais de museu, os elementos são
estratégias comunicativas que devem potencializar o discurso museológico estruturado
na articulação entre os objetos museológicos e esses outros recursos no espaço. “A
articulação dos objetos (e dos outros elementos expográficos) – formando uma lógica
textual – estrutura a narrativa da exposição, a retórica do discurso e a argumentação pela
persuasão.” (Ibid. p. 46).

A distinção entre forma e conteúdo presente na teoria museológica leva à


separação de dois aspectos analisáveis no processo de concepção de uma exposição – o
expológico, conceitual e temático, e o expográfico, relativo à forma e ao espaço. Mas
Cury reconhece a interdependência dos elementos na concepção e montagem da
exposição, afirmando que o desenho da exposição “materializa os valores embutidos no
enunciado central e no seu desenvolvimento conceitual. [...] A forma é o que permite a
comunicação” (Ibid. p.113). Nesta análise, procederemos na investigação destes
elementos conjuntamente, pois, de um ponto de vista antropológico, a cisão entre forma
e conteúdo não nos parece produtiva.

Certo que os elementos centrais dos quais falaremos são os mesmos anunciados
pela teoria museológica, inclusive porque pretendemos dar conta do produto de
profissionais que operam nesta lógica, a visualidade e o conceito embutido nela nos
parecem entretanto inseparáveis, pois os objetos e estratégias expográficas não são
apenas veículos de uma mensagem, e nem a mensagem deve ser vista como algo dado.
Tanto os recursos visuais quanto aquilo que se pretende transmitir conscientemente são
índices da agência da curadoria, mas essa agência deve ser complexificada e não
reduzida à mensagem explícita. A visualidade criada, acreditamos, materializa uma rede
bastante vasta de relações e fatores culturais, políticos, históricos, presentes ou ausentes
naqueles objetos e elementos e nas escolhas feitas pela curadoria. Ela condensa
relações, não apenas transmite mensagem.

A forma como a curadoria de “Maori. Seus tesouros têm alma” concebe esta
exposição é a materialização do conceito artístico que quer dar a ver e do discurso
cultural legitimado por sua posição dentro da Nova Zelândia. Concebemos esta
exposição como um “objeto de arte”, no sentido delineado por Gell (2009), por ser um
“artefato” que age no contexto relacional que é a vida deste museu que me proponho a
78

estudar. A Exposição Maori é um objeto por meio do qual a curadoria age, ela expressa
suas intencionalidades. Assim, todos os elementos contidos na exposição, sejam textuais
ou materiais, além da extensa rede de elementos associados para permitir sua realização,
formam uma situação artística na qual relações se concretizam.

A exposição foi montada na Galeria Jardim que ocupa 2.000 m2, um espaço
amplo e curvilíneo que acompanha o formato da fachada lateral do museu. Neste local,
200 objetos foram expostos, uma quantidade relativamente pequena para o espaço,
dividido em salas bastante amplas. A exposição contava, assim, com muitos espaços
livres, permitindo a circulação de um grande número de visitantes. Como nem sempre
estava cheia, os visitantes desacompanhados podiam visualizar vários objetos de uma
vez, sendo em alguns momentos atraídos mais por uns do que por outros, se deixando
levar por seus interesses, criando seu próprio ritmo de visita. Entravam, entretanto,
nesta espécie de caracol formado pela arquitetura do espaço que faz com que não seja
possível “pular” praticamente nenhuma parte do percurso, que passa a ter um sentido
obrigatório, uma entrada e uma saída.

Os ambientes criados eram agradáveis, mas sóbrios, geralmente bem iluminados,


ainda que os objetos recebessem luz focal individual. Pode se dizer que havia um
equilíbrio na alternância de objetos maiores e menores, expostos em caixas de acrílico
transparente acopladas sobre suportes retilíneos feitos de compensado pintado de branco
ou incrustadas nas divisórias de madeira, protegendo-os do toque, do ar, da incidência
direta de luz, com exceção de objetos maiores expostos em “pedestais” sem vitrine e a
distância a ser mantida deles era demarcada pelos tablados de madeira. Os bancos
dispostos em frente a alguns objetos também eram retilíneos e brancos.

Toda a exposição era dividida por paredes pintadas de branco, com exceção de
algumas paredes coloridas de vermelho, roxo, preto e azul, que complementavam ou
davam destaque à objetos expostos contra elas. Em todo o percurso, foram colocadas
algumas divisórias decorativas, painéis feitos de compensado nos quais foram
perfurados desenhos tradicionais maori estilizados, como as recorrentes espirais. Eram
iluminadas por dentro, produzindo um efeito de sombras nas paredes e no chão.
79

mqb
80

Figura 38: Painés com padrão gráfico maori. ©bliss in the city

A Exposição Maori informava que seriam vistos ali os “tesouros culturais


maori” do ponto de vista “dos próprios Maori”. Para apresentar sua cultura, foram
selecionados objetos de vários tipos, diferentes mídias, suportes, materiais e técnicas. O
percurso criado pela curadoria se dividia entorno de três conceitos da cultura maori –
Whakapapa, Mana e Kaitiakitanga – explicados por meio dos textos, sempre presentes
em francês, inglês e maori, e pelos objetos. Além destes conceitos, dois princípios
guiavam a exposição – o de Mana Taonga e Tino Rangatiratanga. Notamos assim que o
“tema” escolhido para a exposição foi desenvolvido de forma extremamente conceitual,
fugindo de formas clássicas de apresentação de uma cultura por divisões geográficas,
recortes cronológicos, instituições culturais (religião, política, rituais, vida cotidiana,
etc.) ou estilos de sua cultura material.

2.2.1 Mana Taonga: exibindo “tesouros” que têm “alma”

Como vimos, Mana Taonga é apresentado na exposição Maori como o princípio


que guia o tratamento dos objetos na Nova Zelândia, mais especificamente no museu Te
Papa Tongarewa. O termo é de fato atribuído aos intelectuais e ativistas responsáveis
pela reconfiguração deste museu nacional, que desde os anos 1980 se tornou um dos
mais importantes representantes das reivindicações maori no âmbito cultural. Se o
termo mana taonga, enquanto locução, é localizado na história recente dos Maori, estes
81

dois conceitos aparecem como fundamentais para a compreensão da cultura maori, tanto
no passado quanto no presente.

Ao lermos monografias clássicas da Antropologia, nos deparamos com o


interesse de acadêmicos em noções que evidenciavam concepções fundamentalmente
distintas das ocidentais sobre pessoa, relações, mundo material e imaterial. Hoje
devemos ter em mente que esses conceitos permanecem valorizados não somente pela
fascinação que despertam naqueles que vêm de fora, mas por serem constantemente
evocados e atualizados pelos próprios Maori, seja por sua classe intelectual, por seus
representantes políticos ou por meio de representações culturais e artísticas que fazem
de si mesmos, como no caso da exposição apresentada na França.

Os objetos são apresentados na exposição como “tesouros que têm alma”, são
taonga, e são taonga porque têm mana. Vejamos então de que forma estes conceitos são
apresentados na exposição, por meio de textos, objetos e recursos expográficos,
relacionando esses elementos a outras interpretações e análises dos mesmos termos
feitas por alguns autores que exploraram sua dimensão cosmológica, politico-cultural e
as visualidades criadas em torno deles.

Mana é o conceito explorado pela segunda seção da exposição Maori, mas o


termo é evocado diversas vezes ao longo da exposição. Este conceito, um dos grandes
conceitos fundantes do mundo maori, é central também nos estudos clássicos de
Antropologia. Assim, estava curiosa para ver a abordagem proposta “pelos próprios
Maori” deste conceito na exposição e na escolha de objetos. No texto da exposição
(citado no capítulo anterior) mana é definido como “uma força, ou qualidade espiritual,
encontrada nas pessoas, animais e objetos inanimados”. Ele é transmitido dentro da
trama genealógica e aumentado de acordo com realizações pessoais e de troca. Os
objetos “recebem seu próprio mana via seu produtor, seus laços tribais, sua significação
simbólica e os eventos importantes aos quais estão associados”.

Os termos utilizados nessa resumida explicação desse complexo conceito são, em


grande parte, os mesmos que já apareciam em relatos dos primeiros contatos entre maori
e britânicos e na obra de Marcel Mauss, que dedica parte do “Esboço de uma Teoria
Geral da Magia” à definição do mana e continua a explorar o conceito no “Ensaio sobre
82

a Dádiva” ((2003 [1950])47. Mauss procurou compreender o conceito de mana por lhe
parecer central na concepção de magia e na visão geral de mundo tanto da Nova
Zelândia quanto de praticamente todas as sociedades polinésias e melanésias. Em sua
análise, depara-se com a complexidade desta “força”, de difícil definição.

O aspecto abrangente e versátil do mana me parece ser o que mais dificulta o


entendimento do conceito por leitores de outras culturas, sendo, ao mesmo tempo e por
isso mesmo, o que confere sua centralidade para estas sociedades e sua constante
evocação ao longo dos tempos, na Antropologia bem como no senso comum. Mauss
(2003, p.142) explica que “o mana não é simplesmente uma força, um ser, é também
uma ação, uma qualidade e um estado. [...] a palavra é ao mesmo tempo um substantivo,
um adjetivo e um verbo”. Esta característica permite que o mana seja algo transmissível
por excelência, mas não é apenas algo que se transmite ou se adquire, é também a coisa
ou pessoa em si que é mana, sendo ao mesmo tempo produzida pelo mana.

Fortemente relacionado à circulação de coisas e pessoas, o mana, essa “força


mágica”, costuma ser associado à força de espíritos, de antepassados ancestrais. Mas
pode ser também, como já salienta Mauss, a força de algo inanimado, como o mana de
uma pedra. Assim, temos a impressão de que há vários manas, porém Mauss alerta que
“os diversos manas não são senão uma mesma força, não fixada, simplesmente
repartida entre os seres, homens ou espíritos, coisas, acontecimentos, etc.” (Ibid. p.145).
Essa noção é responsável pela compreensão de que coisas, pessoas e os acontecimentos
que as conectam estão todos ligados e dotados dessa “força mágica”.

A associação de mana à “prestígio e autoridade”, como é feita nos textos da


exposição e na seleção de objetos para a seção “Mana” também já aparece em Mauss.
Aquele que recebe um objeto de alguém importante – seja um chefe tribal, um ancestral
mitológico ou um dos primeiros europeus a realizar trocas com os Maori - aumenta seu
mana, ao mesmo tempo em que aquele objeto é/possui/transmite mana enquanto
manifestação do prestígio de seu produtor ou dono que o passou adiante. O mana é a
fonte do prestígio e da autoridade porque é o próprio prestígio e autoridade. Ele é
“propriamente o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor

47
Ambos os textos foram publicados em português em 2003 no livro Sociologia e Antropologia, tradução
da edição francesa de 1950. O “Esboço de uma teoria geral da magia” foi extraído de Anné Sociologique,
[1902-03] 1904; o “Ensaio sobre a dádiva” foi extraído de Année Sociologique, [1923-24] 1925. Seguirei
citando a edição brasileira, que consta na bibliografia.
83

religioso e mesmo valor social [...] A posição social do indivíduo está em razão direta
da importância de seu mana” (Ibid. p.143).

A estratégia da curadoria de apresentar objetos espacialmente relacionados a um


conjunto de outros objetos e textos que explicam que são materializações do mana de
pessoas importantes e mediadores de situações marcantes se repete ao longo de todo o
percurso da Exposição Maori. Não somente as legendas dos objetos localizam
constantemente sua presença em situações importantes para os Maori e ressaltam os
nomes das pessoas de grande prestígio que os utilizaram, mas também a escolha da
localização dos objetos reforça essa ideia.

Como aponta Kirshemblatt-Gimblett, o significado conferido aos objetos


“etnográficos” deriva de sua justaposição nesse novo contexto que é a exposição. Ao
colocar lado a lado objetos que nunca seriam encontrados no mesmo lugar no “mundo
da vida”, o espaço abstracional de uma exposição revela relações que não poderiam ser
vistas de outra forma (1998, p.3). Nesta exposição, cria-se uma relação entre os objetos
que visa fortalecer a compreensão de sua significação para os Maori e provocar no
visitante a valorização de um objeto e a compreensão de que ele “tem mana”, por meio
de sua relação com outros elementos.

Na primeira seção da exposição, Whakapapa (genealogia), há uma sala escura na


qual podemos ver o molde do rosto de um grande chefe maori, com suas tatuagens
faciais características. Ao lado desse objeto vê-se uma fotografia horizontal bastante
comprida que mostra uma família inteira sentada em um longo banco. Após lermos as
explicações sobre a importância da genealogia na cultura maori e a associação das
tatuagens faciais com o pertencimento genealógico, tem-se que aquele molde do rosto
do chefe é um objeto precioso, importante, que materializa a força espiritual (mana) do
chefe e de sua descendência genealógica, que liga o indivíduo maori a sua ascendência
ancestral.

As linhagens são tão importantes para a cultura maori que cada pessoa deve ser
capaz de reconstituir sua ascendência até os primeiros polinésios que ocuparam a ilha. O
mito fundador do povo Maori da Nova Zelândia - amplamente aceito hoje enquanto
História oficial - é contado textualmente nesta mesma seção, relatando a chegada de
navegadores polinésios em sete canoas. Cada uma destas canoas deu origem a uma tribo
e a partir daí se constituiu o povo Maori. Ao lado desse texto há uma enorme canoa
84

moderna, feita de fibra de vidro e aço, decorada com motivos tradicionais maori,
exaustivamente explicados e decodificados na legenda. Do outro lado da sala vemos os
fragmentos de canoas antigas e, ao lado, vários remos, desde muito antigos aos mais
modernos. Cada um deles é associado a pessoas importantes que os utilizaram, sejam
chefes ou campeões de navegação em pirogas modernas, modalidade na qual os
neozelandeses são grandes expoentes.

Figura 39: Remos modernos. Foto: Nina Vincent

Esses remos não são, poderia se dizer, exatamente o que se espera ver em um
museu de arte, apesar de suas claras potencialidades estéticas. Mas também não estão lá
apenas como artefatos contemporâneos representativos de uma cultura. Estão ali pois,
enquanto objetos utilizados em situações e por pessoas importantes, materializam mana.
Esta questão nos remete à contribuição de Mauss para a Antropologia da Arte. Foi entre
os Maori (e outras sociedades do Pacífico) que Mauss identificou uma relação entre
pessoas e objetos diferente, que o permitiu questionar a validade mais geral desta cisão
ontológica. Para a Antropologia da Arte, especialmente em Gell, é justamente a ideia de
que não há nada intrínseco em um objeto que faça dele um “objeto de arte”, mas sim seu
papel em situações relacionais, que lhe confere capacidade de ser um agente, o que faria
do objeto um elemento importante para a compreensão das relações desenvolvidas em
tal situação.
85

Nesta exposição, vemos claramente que a valorização dos objetos (afinal foram
escolhidos para estar ali, compondo uma exposição em um museu importante) não
advém somente de propriedades intrínsecas como beleza ou complexidade. Parece
coerente com o que sabemos da cultura maori pela literatura antropológica que sejam
expostos objetos de importância relacional, objetos que carregam mana, seja por seu
material, por aquele que os fabricou, por seu proprietário ou ainda pelas situações em
que esteve presente.

Assim, a capa de tecido e pele de cachorro que aparece na segunda sala


introdutória, onde é apresentado o conceito de tino rangatiratanga, é posicionada
próxima a uma fotografia em que uma militante maori discursa vestida com ela no
Congresso Nacional; uma instalação composta por uma grande mesa posta chamada
“Mil à mesa” é o primeiro objeto que se vê após sair de uma sala onde textos e
fotografias contam o episódio da ocupação de Bastion Point, onde todos sentaram juntos
à mesa; mesmo os utensílios de pesca tradicional maori ganham assim uma significação
extra ao serem apresentados em uma parte sobre preservação do meio ambiente, ao lado
da projeção audiovisual que mostra um rio poluído por dejetos de uma grande empresa
de papel. Os objetos são todos devidamente contextualizados de modo a ganharem
importância. Em alguns casos (as camisetas e remos modernos são os que me vêm
primeiro em mente) podemos dizer que essa estratégia é a única razão para estarem ali.

Além da justificativa cosmológica, esta forma de apresentar os objetos pode ser


compreendida ainda em termos de estratégia expográfica, pois, como aponta
Kirshemblatt-Gimblett (1998), objetos etnográficos são fragmentos, muitas vezes
apresentados como testemunhas materiais daquilo que se quer mostrar. Mas para dotá-
los de sentido nesse contexto estranho à vida que é o museu são necessários processos
de contextualização. Na Exposição Maori, identificamos a estratégia que a autora chama
“in context”. Nesse tipo de exibição, objetos são contextualizados por meio de
informação escrita em painéis e legendas, mapas ou diagramas, mas também por meio
da relação estabelecida pela curadoria entre os objetos seguindo uma ordenação
coerente. É por meio desta estratégia de apresentação que a curadoria cria um
framework para os objetos, provendo referencial teórico para o visitante. Assim, cria-se
interesse mesmo sobre objetos triviais, pois passam a ser “objetos-aula”, por meio dos
quais se apreende aquilo que a exposição transmite (Kirshemblatt-Gimblett, 1998,
p.23).
86

O conceito de mana está mais extensamente explicado no catálogo da exposição,


que é considerado mais um elemento de contextualização teórica dos objetos
apresentados em uma exposição. Nele podemos ler que “O mana existe em praticamente
todas as esferas, especialmente no poder de expressão criativa que origina as formas
tradicionais e contemporâneas dos taonga presentes em Maori. Seus tesouros têm
alma.” (Smith, 2011, p.94). Assim podemos perceber que essa “força espiritual” é o que
produz a estética maori, é o que dá forma e que dota essa forma de potência. Se o mana
é algo que transcende o individual por estar distribuído por toda parte, ele se caracteriza
por sua imanência, pois materializa-se em objetos e pessoas que circulam nas redes de
trocas. É por não apenas “carregar” mana, mas por serem expressões materiais do mana,
que objetos são preciosos. Por isso objetos são chamados “tesouros”, são taonga.

Tomemos como exemplo o hei tiki, pingente antropomórfico que figura no


cartaz da exposição Maori. O material utilizado para fazer um hei tiki é,
tradicionalmente, a pedra de jade verde da Nova Zelândia, chamada em maori pounamu,
aquela mesma apresentada no início da exposição, na qual se podia tocar, uma pedra
“mágica”. Essa pedra é extremamente resistente e duradoura e continua sendo usada
pelos neozelandeses para produzir joias e esculturas. Na exposição e em outras ocasiões
paralelas, o mito de criação da pounamu era narrado. Poutini, filho do deus do mar
Tangaroa, se apaixona por uma bela mulher chamada Waitaiki, originária da ilha Tuhua
(Mayor Island, a ilha norte da Nova Zelândia) e a rouba de seu marido Tama-ahua. O
marido então os persegue até o rio Arahura, que fica na costa oeste da ilha sul. Poutini
teme que sua amada seja recapturada e, para evitar que isso aconteça, transforma-a em
pounamu, a pedra de jade. Desde então, Poutini passa a ser reconhecido como o
guardião espiritual de pounamu, junto com o povo e a terra da costa oeste da ilha sul48.
Esse mito conta porque esta pedra é tão poderosa, tem muito mana.

Mas não é somente pela origem mitológica ancestral de seu material que o hei
tiki é dotado de mana. Na exposição Maori, os hei tiki são apresentados como
“tesouros”. Na parte que apresenta “tesouros pessoais”, um hei tiki aparece posicionado
dentro de uma “caixa de tesouros”. Essa caixa de madeira é ricamente decorada com
entalhes em espiral e exibida aberta, de modo que se possa ver seu conteúdo. Dentro
dela estão: duas penas, uma pluma, um par de pingentes de orelha feito de dentes, dois

48
Versão resumida do mito, que pude ouvir oralmente em duas ocasiões e ler no catálogo da exposição.
87

pequenos pingentes de jade, um pente e um pingente hei tiki. Esses objetos, tipicamente
encontrados em caixas de tesouro, são considerados sagrados (tapu) e estão associados à
cabeça de uma pessoa de grande status (Smith, 2011).

Apresentá-los assim, como “tesouros”, dentro de uma “caixa de tesouros”,


próximos a outras vitrines que contêm objetos que também são considerados preciosos,
explicitando sua associação com pessoas importantes, nos provê uma contextualização
sobre o uso dos objetos. O hei tiki, por exemplo, é usado por uma pessoa importante e
guardado em local protegido, junto com outros tesouros. Percebemos que em algumas
das esculturas em madeira que representam grandes chefes, localizadas em outra seção
da exposição, estes estão portando hei tiki em volta do pescoço. Essa maneira de expor
o objeto, dentro da “caixa de tesouros” aberta, não apenas contextualiza o pingente, nos
dá informações sobre seu uso e sua proveniência, mas também agrega significado a este
objeto para além da informação contida na legenda.

Quando observamos o hei tiki dentro desse esquema visual criado para a
exposição olhamos para ele como um objeto que tem “algo a mais”. Não é apenas um
artefato etnográfico, sobre o qual podemos consultar a legenda para saber a tribo à qual
pertence, em que data foi produzido ou coletado e o que sua forma representa - um é a
“representação de um ancestral”, outro é um “híbrido de corpo humano e cauda de
animal marinho”, etc. Não é tampouco apenas um objeto bonito, a ser apreciado por
suas qualidades formais e dificuldade técnica, ainda que a coloração verde da pedra de
jade seja atraente e que muitos possam ter imaginado a dificuldade de se esculpir em
dimensões tão reduzidas um material tão resistente, além de ouvir no áudio-guia
informações sobre “seus olhos, sempre grandes e bem redondos, adornados com
conchas abalone ou com cera vermelha, que exprimem seu conhecimento e seu poder”.

Mas o que seria então esse “algo a mais”, essa “alma dos objetos”? A forma
como os objetos são apresentados contribui para uma estratégia dupla: mostrar que são
objetos importantes para a luta política maori por terem sido feitos ou pertencido a
pessoas importantes e participado de situações históricas marcantes, evidencia seu
estatuto como expressões de valores que continuam guiando o povo maori nos dias de
hoje e que legitimam o direito de autodeterminação desta cultura. Para marcar a
singularidade destes valores, a exposição ressalta, por meio de explicações e das formas
escolhidas para a apresentação dos objetos, seu caráter de conexão ancestral, de
88

portador de mana. Eles ganham então outro status, que vai além da noção de ornamento,
especialmente se contextualizados na noção maori de taonga. O conjunto de recursos
expográficos nos faz ver o caráter “místico” do objeto apresentado.

A noção de taonga, apesar de o termo ser repetido diversas vezes ao longo da


exposição e no material complementar, não é tão extensamente explicada. Logo no
primeiro painel, onde era apresentado o princípio de mana taonga, o termo aparece
apenas seguido de um parêntesis que diz “(tesouros culturais maori)”. No material de
divulgação da exposição, no catálogo gratuito, no comunicado à imprensa, etc., taonga
é traduzido como “tesouros ancestrais”. Cruzando as duas definições, somos levados a
crer que é “cultural” aquilo que é “ancestral”. Definições jurídicas de taonga
obviamente levantam extensos debates, mas na legislação neozelandesa, considerada
vitoriosa pelos Maori, os taonga tuturu (tesouros tradicionais) são os únicos objetos
concernidos pelo Objects Protection Act de 1975 a ter uma regulação específica e são
definidos assim: “Objetos relacionados à cultura, historia ou sociedade Maori; que foi,
ou aparenta ter sido, manufaturado ou modificado na Nova Zelândia por um Maori; ou
trazido à Nova Zelândia por um Maori; e tem mais de 50 anos.”49 (Haikiwai, 2007,
p.51).
Esse termo aparece desde as primeiras etnografias feitas sobre os Maori e é
examinado por Mauss em seu estudo sobre a dádiva, onde o autor procura entender a
troca como um fato social total, isto é, como um fenômeno social que articula as mais
diversas esferas da vida social. No sistema de trocas descrito como “dádiva”, observado
nas sociedades do Pacífico, objetos circulam entre pessoas, tribos e ilhas enquanto
presentes, dádivas. Esta troca de dádivas é aparentemente voluntária, mas acaba
colocando em relação diferentes grupos e formando alianças baseadas na reciprocidade
obrigatória.

Para compreender esse caráter obrigatório, Mauss investiga que força existe na
coisa dada que faz com que seja retribuída. Os presentes trocados seriam os taonga. Em
algum momento, Mauss chega a nomear essas coisas trocadas de talismãs, palavra que
não aparece na exposição Maori, mas que se aproxima à ideia de tesouro. Segundo

49
“Objects that: relate to maori culture, history, or society; and was, or appears to have been
manufactured or modified in New Zealand by Maori; or used to be Maori; and is more than fifty years
old.”
89

Henare (2006, p.47), o termo em língua maori taonga corresponde a “um tesouro, algo
precioso; daí, um bem ou objeto de valor”50.

A autora afirma que taonga pode ser tanto uma arma feita de osso de baleia ou
uma planta nativa, quanto um conhecimento – “distinções entre o que é material e o que
é efêmero não são relevantes aqui. Nem ideias sobre entidades animadas versus
entidades inanimadas” (ibid.) E acrescenta os exemplos: “mulheres e crianças podem
ser trocadas como taonga, e certos taonga como capas de tecido são muitas vezes
portadas como ancestrais ou instanciações do efeito do ancestral”51 (Henare, 2006,
p.47). Assim como Mauss (2003, p.191) já havia dito que “O que eles trocam não são
exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente.
São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras (...)”.

Ao investigar o que seria então o “espírito da coisa dada”, já que podem ser
coisas tão diversas e que o que têm em comum é o estabelecimento de um contrato
relacional que cria a obrigação da reciprocidade, Mauss ressalta que “Os taonga são [...]
fortemente ligados à pessoa, ao clã, ao solo; são o veículo de seu mana, de sua força
mágica, religiosa e espiritual.” (Ibid. p.197). E, inseridos no que chama de “sistema de
prestações totais”, conclui que “Os taonga e todas as propriedades rigorosamente ditas
pessoais têm um hau, um poder espiritual [...] ele é movido pelo hau de minha dádiva”
(Ibid. p.198). Por isso o proprietário da coisa seria obrigado a oferecê-la e o destinatário
a retribuí-la, porque o hau, que é o “espírito das coisas”, é fortemente ligado a seu
território, a seu dono, sua casa, é “nativo”.

A principal contribuição da releitura proposta por Henare da descrição de Mauss


sobre o sistema que articula mana, hau e taonga é a junção daquilo que, segundo ela,
Mauss via como coisas separadas, o entendimento de que os taonga não são um mero
veículo do hau, mas “são o próprio hau”52 (2006, p.48). O aspecto salientado aqui é a
inseparabilidade, a identificação precisa da coisa com o espírito. Este deslocamento
aparentemente simples tem consequências importantes para a discussão contemplada
neste estudo e dialoga com diversos autores contemporâneos que vêm desenvolvendo

50
“a treasure, something precious; hence an object of good or value.”
51
“distinctions between the material and the ephemeral are not relevant here. Nor are ideas about animate
versus inanimate entities; women and children may be exchanged as taonga such as woven cloacks are
often held as ancestors or instantiations of ancestral effect”.
52
“it is hau”.
90

pesquisas que buscam conferir a coisas e pessoas o estatuto de agentes e concebê-los


dentro de um paradigma presentacionalista.

A casa cerimonial exibida na Exposição Maori é um bom exemplo desta noção.


A legenda a apresenta como “uma casa viva”. Quem entra na casa cerimonial está
literalmente entrando no corpo do ancestral. Este aspecto é salientado na exposição, que
complementa a exibição de fragmentos de uma casa cerimonial por meio de recursos
como desenhos da casa completa, referências a seu uso cerimonial e uma
“decodificação” detalhada de seus elementos. À luz do que pude ler sobre estas casas
maori, essa decodificação ganha outro sentido. Não são elementos simbólicos que
compõem a casa, mas elementos que, reunidos fazem dela um índice - e não uma
representação - de uma agência coletiva. As whare tupuna ou wharenui, como são
chamadas estas casas, são artefatos constantemente evocados quando se fala de arte do
Pacífico e as mudanças em sua composição assim como a importância histórica da
construção de diversas delas é assunto frequente na bibliografia sobre os Maori.

Thomas (apud Gell, 2009, p.300) afirma que estas casas não devem ser
entendidas como “símbolos”, mas como “veículos da potência da coletividade. [...]
índice da vitalidade do grupo e da impotência dos outros, real ou não”53. A observação
de Thomas sobre a fusão das distinções entre função e significação, uso e expressão,
instrumentalização e simbolismo percebida nesta demonstração coletiva da eficácia
tribal influenciou Gell no desenvolvimento de sua teoria sobre o objeto de arte enquanto
índice de agência. As casas cerimoniais ou de reunião, enquanto objetos de arte que são
índices da agência tribal, aparecem disseminadas pelo território neozelandês no século
XIX, substituindo os meios guerreiros tradicionais empregados entre eles e contra os
europeus colonizadores. A construção de inúmeras casas de reunião impulsionava
escultores e pintores a se superar em relação às construções de seus vizinhos e rivais,
concentrando seu espírito competitivo nesta empreitada.

As casas de reunião têm por objetivo comum objetivar a riqueza, o refinamento,


o talento técnico e a ascendência dos ancestrais de cada comunidade que é capaz de
construir uma casa, provocando ciúme e causando intimidação nos hóspedes
estrangeiros. Sua eficácia enquanto índice vem do fato de ser ela mesma um corpo.

53
“des véhicules de la puissance de la collectivité [...] l’indice de la vitalité du groupe et de l’impuissance
des autres, réelle ou non.”.
91

“Entrar em uma casa é penetrar no interior de um espírito, de uma sensibilidade [...]. Os


Maori situam o espírito e a vontade nas vísceras. Entrar em uma casa é, assim, entrar no
ventre do ancestral e se deixar envolver por sua presença.”54 (Gell, 2009, p.301). Essa
casa-corpo, que contém outros corpos (os dos membros da comunidade dentro dela), é
um elemento vivo, atuante, que exerce a agência do ancestral não num tempo passado,
memória de sua agência, mas atua por ele no presente imediato.

Essa agência coletiva, posto que engloba os membros da tribo que passam a
“compor” o ancestral/casa, remete, enquanto artefato “tradicional”, algo retrospectivo,
objetifica uma memória, mas enquanto agente coletivo, é também um gesto político
prospectivo (Ibid. p. 305). A ação de construí-la visa um futuro, no qual ela deve agir
por meio de sua sofisticação enquanto exaltação dos ancestrais de determinada
comunidade e humilhar os membros de comunidades rivais, ameaçando-os pela própria
ação de produzir uma casa que pode ser potencialmente a ideal. Seu triunfo antecipado é
a intenção de seus produtores.

Na exposição, vemos que também são considerados taonga pelos Maori


elementos “imateriais” como a música e a língua. Estes elementos apresentam uma
dificuldade expositiva, por não serem “objetos” prontos para serem dispostos em uma
exposição e olhados pelo público. Para abordar a música maori, a curadoria escolheu
apresentar objetos concretos relacionados a essa expressão intangível. O único momento
em que podemos escutar alguns sons é em um vídeo exibido numa pequena tela que
mostra uma oficina de produção e utilização de instrumentos musicais tradicionais. Em
vitrines incrustadas na parede são exibidos vários exemplares de “instrumentos musicais
tradicionais”, os taonga puoro, cujos desenhos e sons são descritos nas legendas.

Para apresentar a língua maori, como vimos na parte anterior, alguns elementos
são associados, como um grande painel cronológico e alguns objetos. Na pequena sala
que exibia programas da Maori Television, podia se ver dois episódios de séries
voltadas para o público jovem, um cômico em que duas amigas praticam esportes e
interpretam um esquete bastante caricatural e outro com situações mais “realistas” ou
cotidianas em que os personagens misturam falas em inglês e maori, com legendas
embaixo para incentivar o aprendizado da língua; outro vídeo é um clipe da música

54
“Entrer dans une maison, c’est pénétrer à l’intérieur d’un esprit, d’une sensibilité. [...] Les maoris
situent l’esprit et la volonté dans les viscères. Entrer dans une maison, c’est donc entrer dans le ventre de
l’ancêtre et se laisser envélopper par as présence.”.
92

“Tangaroa”, 2007, de Tiki Taane, um vídeo em preto e branco que evoca a mistura entre
tradição e modernidade para uma música pop com influências de dub; por último, exibe-
se um clipe da música “Poi E”, uma canção em maori com tratamento bem
característico dos anos 80, um estilo funky com linhas de baixo fortes e batida marcada.

Da primeira vez que visitei a exposição, não compreendi muito bem este vídeo.
Quando fui acompanhada de uma pesquisadora que fez seu trabalho de campo
recentemente na Nova Zelândia, ela me explicou que o clipe era uma montagem de uma
música que fez muito sucesso nos anos de 1980 no país, lançado por Patea Maori Club
sendo a primeira música em língua maori a alcançar o primeiro lugar nos rankings de
músicas mais tocadas e permanecendo no topo das paradas por 22 semanas. Neste clipe,
produzido em 2010 para os créditos do filme “Boy” do cineasta Taika Waititi, as
imagens do clipe original, com a textura dos filmes da época, as danças de rua,
vestimentas e estética características e cenas de manifestações e danças tradicionais
maori, são misturadas a imagens extremamente engraçadas em que os personagens do
filme imitam o clipe “Thriller” de Michael Jackson, ícone da década de 80, misturando
sua coreografia com um haka, dança tradicional maori.

Este vídeo, que a princípio pareceu-me apenas hilário, acabou ficando marcado
em minha memória como uma expressão legítima e criativa deste renascimento cultural
maori e sua releitura contemporânea, pois seu olhar bem humorado, jocoso, sobre a
reconstrução da cultura maori passa forte impressão de sinceridade, espontaneidade e
vocação popular.

A sala de vídeos suscitava considerável interesse, seja por seu conteúdo ou por
oferecer uma das poucas oportunidades do visitante se sentar, descansar um pouco, e
entrar no mundo maori através de imagens em movimento. O público, mesmo sem
entender uma palavra do que estava sendo dito nos vídeos, costumava sentar por um
bom tempo nos banquinhos em frente à tela e sair, geralmente, rindo bastante e
parecendo apreciar o que vira. Porém, visitantes conduzidos por guias do museu eram
sistematicamente dissuadidos da ideia de entrar na salinha. Por vezes escutei uma das
monitoras dizendo “aqui tem alguns vídeos... são besteiras, coisas para crianças! E
seguindo adiante...”. Não compreendi bem por que motivo, além da óbvia falta de
tempo de uma visita guiada, aquele elemento não seria importante. Refletindo um pouco
mais e atentando para o tipo de comentários e escolha de “paradas” nas visitas guiadas,
93

esta fala contribuiu para uma impressão que já vinha tendo. A intenção era mostrar a
língua maori como um tesouro, uma “língua sagrada”, uma “língua viva”, mas viva à
custa de muita luta e devido ao seu espírito forte, a sua carga de energia, ao poder de sua
ancestralidade. Para reforçar esta visão, as mediadoras do museu francês pareciam não
optar por valorizar breves momentos em que a “cultura maori” era tratada com humor e
naturalidade.

Se a parte sobre a língua maori permite um momento de descontração pela


presença discreta de vídeos engraçados, este senso de humor certamente não está
presente no restante da exposição. A atmosfera criada pelo projeto curatorial é quase
solene. Parece nos solicitar leitura e admiração. Ou seja, quando o visitante não estava
lendo os textos, estava observando objetos “sagrados”, ainda que, para olhos ocidentais,
ou olhos constituídos dentro dessa tradição, muitos dos objetos expostos na Exposição
Maori não parecessem sagrados, alguns deles nem mesmo são antigos ou decorados.
Mas são todos exibidos com o mesmo destaque, com a mesma solenidade.

O que se parece tentar transmitir na exposição é que o que está exposto são
objetos “sagrados” por terem participado de vidas e situações “sagradas”, importantes.
Como já vimos na teoria antropológica sobre os Maori e seus objetos, as coisas
envolvidas nos sistemas de troca maori não seriam, então, apenas objetos, matéria
inerte, e seria este aspecto que moveria os sistema de reciprocidade segundo a análise de
Mauss. “O presente [...] mesmo abandonado por seu doador, ainda conserva algo dele.”
(Mauss, 2003, p.198) “Donde resulta que apresentar alguma coisa a alguém é apresentar
algo de si.” (Ibid. p.200) Por isso, a transmissão da coisa “é um vínculo de almas, pois a
própria coisa tem uma alma, é alma” (Ibid.).

Essa sacralidade conferida aos objetos presentes na exposição é transmitida por


meio da relação entre objetos e explicações, mas também pela forma individualizada de
apresentação de cada objeto. O modo de exibição dos objetos em vitrines, cada uma
delas contando apenas com um único ou com poucos objetos, iluminados por focos
dramáticos de luz branca, nos leva a enxergar por meio de tais dispositivos cenográficos
o tratamento sacralizante destes objetos. São tesouros, são o próprio ancestral, têm força
vital, espírito, têm alma. Devem ser vistos como tal, independente de suas
características e “apelo visual”. São, novamente, as contextualizações, de todo tipo,
criadas pela curadoria, que dão sentido e determinam o olhar “correto” sobre os objetos.
94

2.2.2 tino rangatiratanga: a autodeterminação de uma cultura viva

O tom político e reivindicativo da exposição se anuncia desde o início, quando é


introduzido seu mais importante princípio, o de Tino Rangatiratanga. No texto da
exposição, era definido como: “A aptidão para escolher seu próprio destino, expressa
também por termos como soberania, autoridade e chefia.”. Anuncia-se que este conceito
está no coração da exposição, na qual “tesouros ancestrais [...] são apresentados ao lado
de obras contemporâneas a fim de mostrar a profundidade artística e as aspirações
políticas desta cultura autóctone, rica e vivaz”. No catálogo, lemos que a origem do
termo vem da palavra “rangatira”, o nome dado a um chefe ou líder tribal, mas que se
estende a pessoas exercendo diversas funções, sempre ligadas à detenção de autoridade
em uma esfera de influência, “ela equivale à autoridade de um soberano” (Smith, 2011,
p.23). O acréscimo do termo “tino” antes da palavra “rangatiratanga” é um
intensificador, “confere um sentido de completa autonomia” (Ibid.).

Para os Maori de hoje, “o termo ‘tino rangatiratanga’ resume sua aptidão a


controlar ou determinar o curso das coisas que lhes são próprias: seus recursos, sua
maneira de se organizar e se expressar segundo o destino que aspiram, enquanto povo
intrinsecamente ligado e assimilado à Nova Zelândia Aotearoa” (Ibid. p.22). Este
conceito permeia toda a exposição, pois é o que une a dimensão cosmológica
apresentada à luta política maori ao longo da história.

Um dos aspectos políticos da apresentação dos objetos era a presença constante


dos nomes dos artistas que fabricaram os objetos expostos ou, no caso do
desconhecimento deste, o nome de um ou mais proprietários do objeto. A presença dos
nomes nas legendas pode ser sinal de respeito à descendência tribal para um visitante
neozelandês e saber quem foi o dono parece de fato ser bastante importante para um
visitante maori. Para um visitante francês, ou “não-neozelandês”, esse nome pode não
ter muita importância em si, mas dialoga com as explicações fornecidas anteriormente
que dizem que o objeto é a materialização do mana daquele a quem pertenceu.

Para além da relevância cosmológica, esta é uma estratégia de respeito aos


artistas que se configura em resposta a uma das maiores críticas feitas à apropriação da
Arte Primitiva pelo Ocidente: o apagamento das individualidades e a estratégica falta de
importância dada aos artistas nativos, que se traduz no constante anonimato da Arte
Primitiva (Price, 2000). Assim, eram apresentados dados biográficos dos objetos, de sua
95

trajetória de propriedade e de seus produtores por meio de histórias detalhadas da vida e


atuação dos chefes tribais e artistas ligados a eles.

Há uma dimensão cosmológica fortemente presente nas escolhas curatoriais da


forma de apresentação dos objetos. Na prática, conceitos cosmológicos e política são
indissociáveis. Na história do povo Maori, da qual nos aproximamos brevemente por
meio dos momentos abordados pela exposição montada na França, percebemos esse
entrelaçamento e podemos notar também a importância que os objetos desempenham no
estabelecimento destas relações históricas. Vejamos de que forma estes momentos são
apresentados, com o objetivo de perceber como o objeto “exposição” atua hoje na
mediação de mais uma situação que advém de um encontro cultural que é, como não
poderia deixar de ser, uma situação tanto “artística” quanto “política”.

A contextualização dos objetos exibidos na exposição encontra sua forma mais


clássica na apresentação de fatos históricos marcantes da história do povo Maori. O
aspecto político da exposição pode ter sido suavizado pela alteração de seu nome55, mas
certamente, o que vemos na proposta da curadoria é a articulação de elementos
cosmológicos por meio de um discurso eminentemente político. Esta é a característica
mais destoante do que se costuma ver nas exposições do Museu do quai Branly: uma
forte mensagem de engajamento em lutas sociais e identitárias. Digo mensagem, porque
este aspecto era de fato transmitido de forma predominantemente textual. Porém, com
um olhar mais atento, poderemos nota-la também nas formas de apresentação.

Grande parte das reivindicações do povo maori recai sobre os descumprimentos


por parte dos governos de acordos estabelecidos pelo Tratado de Waitangi, considerado
o documento fundador da Nova Zelândia moderna. O momento da assinatura do
Tratado, em 1840, é o primeiro foco histórico abordado na exposição, ainda na parte
introdutória do percurso. Todos os outros focos históricos abordam momentos em que
aspectos do tratado foram reivindicados pelos Maori, já que sua reinterpretação e
cumprimento irrestrito foi a grande bandeira da luta política deste povo na segunda
metade do século XX, quando ocorre o chamado Renascimento Maori.

As discordâncias com relação ao Tratado estão ligadas a problemas de tradução e


de importância política, o que está demonstrado nos painéis explicativos desta parte da

55
O nome da exposição quando foi exibida na Nova Zelândia era “E tu Ake: Standing Strong” e em Paris
foi modificado para “Maori. Leurs trésors ont une âme”, claramente mais “místico” do que “político”.
96

exposição. Mas, como aponta Henare (2005) a questão da tradução não remete somente
a problemas de comunicação linguística, evidencia incompreensões e diferenças
essenciais nas visões de mundo de europeus e maoris, especialmente em suas
concepções de sistemas de troca. A autora explora as divergências sobre os termos do
Tratado como exemplificação das distinções apontadas por Mauss nos sistemas de troca
europeu e maori, que seriam decorrentes de diferentes concepções de pessoa e coisas e
da ideia de posse.

As duas formas de troca presentes na cultura maori, hoko – trocas prosaicas de


objetos destinados ao consumo e compartilhamento – e tuku – trocas em que algo
importante é transferido para a guarda de outrem com expectativa de relação contínua –
aparecem como uma só transação na versão inglesa do documento, articulada em termos
europeus nos quais a Rainha concordava em

“‘proteger os devidos direitos e propriedades’ dos Maori em troca de ‘reconhecimento da


autoridade soberana de sua majestade’ sobre a terra. Os chefes estariam concordando assim em
‘ceder’ à rainha ‘absolutamente e sem reservas todos os direitos e poderes de soberania’ que eles
possuíssem sobre ‘seus respectivos territórios. [...] A rainha concordava então em garantir e
confirmar a ‘completa e exclusiva posse de suas terras, florestas, pescas e outras propriedades
enquanto desejassem mantê-las sob sua posse’. [...] A versão inglesa do Tratado ilustra aquilo a
que Mauss se referiu como a ‘distinção estrita [...] entre direitos reais e direitos pessoais, coisas e
pessoas’, que considerava ser expressa no ‘rigor, abstração e desumanidade dos nossos
[europeus] códigos legais”56 (Henare, 2005, p.122).

Além da questão das trocas, a importância dada de fato pela coroa para o
documento também não foi compatível com aquela dada pelos chefes maori. Henare
mostra como o Tratado tinha suma importância, quase um caráter sagrado, em sua
própria materialidade. O texto escrito tinha uma relevância muito inicial para os Maori,
que começavam a ter contato com a tradição escrita através do trabalho de missionários.
Mas sua particular concepção de objeto fazia com que atribuíssem valor especial aos
livros, carregando muitas vezes um livro qualquer quando iam à igreja (Henare, 2006).

56
“to ‘protect [the] just Rights and Property’ of the Maori in return for ‘recognition of Her Majesty’s
soveraign athority’ over the land. The chiefs agreed to ‘cede’ to the Queen ‘absolutely and without
reservation all the rights and powers of Sovereignity’ wich the chiefs themselves possessed ‘over their
respective Territories [...]. The Queen then confirmed and guaranteed to them ‘the full exclusive and
undisturbed possession of their Lands ans Estate Forests Fisheries and other propertys... as long as it is
their wish and desire to retain the same in their possession. [...] The english version of the Treaty
illustrates what Mauss referred to as the ‘strict distinction ... between real rights and personal rights,
things and persons’, wich he considered to be expressed in the ‘rigour, abstraction and inhumanity o four
[European] legal codes.”.
97

Assim também o Tratado não era visto apenas como um conteúdo, tinha valor em si, era
a materialização do acordo de reciprocidade entre os chefes e a rainha.

Pode-se notar que isso é válido ainda hoje, quando vemos a fotografia do
documento original na Exposição Maori. Ele foi arquivado em 1877 e encontrado no
subsolo de um prédio administrativo em 1908, muito degradado por umidade e ratos. A
intensa mobilização em torno do documento e de sua significação nas últimas décadas
do século XX levaram a sua restauração e, desde 1990, ele se encontra exposto nos
Arquivos Nacionais de Wellington.

Muitos dos chefes tribais que assinaram o Tratado, o fizeram por meio da
reprodução de sua tatuagem facial (moko) no documento. Isso foi determinante na
compreensão que se teve do tratado, devido à agencia poderosa destas tatuagens. A
tatuagem é um dos elementos selecionados para ilustrar a parte sobre whakapapa
(genealogia). Este tema é bastante explorado na exposição e, de fato, é um dos
elementos da cultura maori mais reconhecidos mundialmente. Na literatura sobre os
Maori, a fascinação por suas tatuagens, feitas a partir de uma técnica única e que
chegavam a cobrir o corpo inteiro de uma pessoa, está sempre presente. Na exposição,
um grande painel de texto conta seu mito de origem e faz referência ao fato dos chefes
terem assinado o Tratado com suas tatuagens. Mas o que é mais enfatizado é a
persistência histórica da prática da tatuagem entre os Maori. Ainda que o método
tradicional de incisões na pele quase não seja praticado hoje em dia, este é um dos
elementos onde a ideia de continuidade é mais ressaltada.

A tatuagem maori é um bom exemplo da mudança ocorrida nos estudos


antropológicos que tendiam a enxergar grafismos e todo tipo de desenho e pintura
indígena como uma espécie de escrita primitiva, um sistema simbólico de comunicação.
Hoje, muitos antropólogos recusam esta perspectiva, apontando para o papel agentivo
dos motivos. Entre os Maori, como mostra Henare (2006, p.52),

“A cabeça é a parte mais tapu [sagrada] do corpo e as cabeças dos rangatira [chefes], ou pessoas
de grande status, intrincadamente tatuadas de forma a trazer o whakapapa, ou genealogia, para a
superfície de sua pele, estavam entre os objetos espirituais mais potentes que se poderia
encontrar. Ao desenhar as marcas de seu moko no Tratado, os chefes estendiam seu próprio
98

mana para o documento, fazendo dele uma instanciação de sua pessoa enquanto ‘face viva’ de
sua linhagem.”57.

Assim, bem como no caso dos livros, o Tratado passa a ser algo sagrado em sua
materialidade, uma vez que foi inserido no sistema cosmológico de trocas e linhagens
maori.

Segundo Gell, os motivos das tatuagens maori, que conferem ao rosto de um


homem uma “careta” permanente de desafio e desdém, eram considerados bens valiosos
não por causa de uma sacralidade divina, mas por serem evidencias materiais de sua
riqueza e prestígio (1993, p.244). As tatuagens eram reproduzidas como assinatura
devido ao fato de serem vistas como “tesouros” dos mais valiosos, uma vez que não
podiam ser roubados. O método utilizado pelos Maori antigos era bastante peculiar, pois
com o uso de laminas ou algum instrumento cortante martelado pouco a pouco sobre a
pele, produziam rasgos que depois eram cobertos com pigmento preto, criando o efeito
de alto relevo, de uma escarificação pigmentada. Estes motivos tão antigos das
tatuagens maori, e polinésias de modo mais geral, estão entre os mais reproduzidos no
mundo todo. A exposição maori aborda o sucesso contemporâneo da tatuagem maori,
apontando ao mesmo tempo para suas raízes ancestrais.

Apesar de uma grande ênfase nas tentativas de apagamento da cultura maori por
parte dos colonizadores e das perdas inestimáveis acarretadas por essa opressão, uma
das estratégias centrais da exposição era apresentar a cultura maori como continuo entre
o tradicional e o contemporâneo construindo uma imagem de “cultura viva”. Isso
aparece fortemente nos momentos em que objetos antigos e modernos são apresentados
não como contrastantes, mas como complementares, ressaltando suas características
comuns.

Essa é a sensação que temos ao ver os remos e partes de canoas antigos


próximos aos remos e à grande canoa moderna, intensificada pelo vídeo projetado atrás
dela que, além de mostrar momentos de competição, com muitos competidores e
torcedores, tem algumas passagens bem calmas, em câmera lenta, onde o close no
contato entre o remo e a água e o som do mar e da respiração dos remadores dá uma
57
“In Maori, the head is the most tapu part of the body, and the heads of rangatira or high-born people,
intricately tattooed in a manner that brought the person’s whakapapa or genealogy out onto the surface of
their skin, were among the most spiritually potent objects one might encounter. In drawing their moko
marks onto the Treaty, the chiefs extended their own mana to the document, rendering it na instantiation
of their personhood as the ‘living face’ of their line.”.
99

ideia de atemporalidade, de gestos ancestrais. Para todos os objetos que podem ser
classificados como “utensílios” há exemplares de diversas épocas, como os
instrumentos de tatuagem e os anzóis de pesca.

A apreciação da “Arte Primitiva” se apoia fortemente na construção de uma


atemporalidade que localiza seus produtores sempre dentro de tradições antiquíssimas,
mas sem historicizá-las, condenando-os a um eterno presente que rejeita as inovações e
mudanças ocorridas em sua cultura e visibilizadas em sua produção artística (Price,
2000). Essa temporalidade imposta aos objetos de arte não ocidentais é que determina
também a valorização daqueles que seriam “tradicionais e “puros”. Essa ideia está
fortemente presente nas escolhas adotadas pelos colecionadores, sejam do mundo da
Arte ou da própria Antropologia. A noção de que deveriam ser preservados objetos de
culturas que estariam em vias de desaparecer totalmente ou de se aculturarem devido ao
processo evolutivo ou à inevitável homogeneização cultural do mundo esteve, e ainda
está, muito presente.

A principal estratégia presente na exposição Maori para marcar a ideia de


continuidade cultural parece ser a mistura de objetos de diversas épocas, incluindo
objetos contemporâneos. Esta opção, por não seguir uma ordem cronológica na
disposição dos objetos, não remete apenas a uma negação de hierarquia de valor entre
objetos considerados “arte” e outros que não o seriam, mas sim a construção de uma
linha que conecta os Maori antigos aos Maori de hoje. E, a julgar pela forma como são
articuladas as relações entre estes objetos, o que nutre essa conexão é a persistência dos
conceitos culturais maori. Assim, não apenas os objetos de pouco “interesse visual”
(convencionalmente) são revestidos de importância e novos significados ao serem
relacionados com outros objetos ou explicações, os objetos de Arte Contemporânea, que
poderiam ser vistos como obras que dispensam contextualização, são apresentados na
Exposição Maori segundo uma estratégia relacional entre objetos, apontando para uma
agência específica.

Esta associação de obras contemporâneas e objetos antigos, que se repete ao


longo de toda a exposição, é estabelecida especialmente pelos textos que explicam o
significado dos objetos e dos motivos utilizados neles, para então produzir o
entendimento da sua relação conceitual. A ideia transmitida e reforçada pelas estratégias
expositivas, na proximidade de objetos, na própria semelhança de motivos presentes
100

neles e as conexões explicitadas textualmente, é que os valores maori permanecem os


mesmos, sua forma de ver e se relacionar com o mundo perdura e é retomada
criativamente por artistas contemporâneos, chegando a dar a impressão de que estes
estariam produzindo objetos com o mesmo objetivo. E são estes valores ancestrais vivos
que justificam a necessidade e o direito dos Maori de exercer seu tinorangatiratanga.

Logo na primeira sala, introdutória, vemos a “pedra mágica” que podemos tocar
e, ao lado dela, o vídeo de Reuben Pattinson que aparece como uma expressão artística
contemporânea que dá a ver esse universo mágico no qual vivem os Maori. Na parte
sobre a casa cerimonial, além de vermos a estrutura da casa tradicional, vemos dois
trabalhos de artistas contemporâneos, a vídeo-arte de Lisa Reihana e as telas de Daryn
George. Como mostrei, os dois são apresentados como obras que trabalham a noção de
entrelaçamento pela genealogia expressa pela arte da tecelagem tradicional. Ambas
aparecem logo após a casa tradicional, após termos visto imagens de diversas casas em
fotografias, com seus painéis de tecido no interior, casas mais antigas e outras
construídas mais recentemente, algumas mais simples outras mais ornamentadas e
coloridas. As legendas repetem expressões como “serve-se da imagem do tukutuku”,
“utiliza um vocabulário tradicional”, “faz referência à técnica tradicional”, etc.

Os mesmo termos são retomados na parte que apresenta capas de tecido, na qual
vemos capas antigas e modernas, apresentadas fora de ordem cronológica de produção,
com legendas que ressaltam a importância de se “perpetuar a técnica da tecelagem”
como maneira de reverenciar o mana dos ancestrais. Rigorosamente, já não estamos no
mesmo universo de objetos, já que as capas são uma coisa e os painéis que ornam as
casas são outra. Mas o que conecta os objetos é justamente a ideia da tecelagem,
explicada pouco a pouco por meio de cada objeto e que faz com que todo artefato que
deriva desta técnica seja uma materialização do entrelaçamento das pessoas e suas
linhagens ancestrais.

A figura que aparece mais vezes dentro desta estratégia é, sem dúvida, o hei tiki
(pingente antropomórfico). Além de aparecerem em fotografias, vitrines, dentro da
caixa de tesouros e adornando o pescoço de esculturas, suas apropriações na arte
contemporânea fazem dele um grande ícone da cultura maori nesta exposição,
contribuindo para a compreensão da importância que se deseja atribuir ao objeto e
mostrando a influência que sua imagem continua a ter. Simultaneamente, agrega esse
101

significado especial às obras de artistas maori contemporâneos, que, não fosse por essa
“conexão”, provavelmente não teriam seus trabalhos expostos nesse contexto.

Ao lado da primeira fotografia de um hei tiki tradicional, no painel introdutório,


aparece outra, do mesmo fotógrafo que trabalha para o museu Te Papa, onde vemos um
close de vários hei tiki coloridos, feitos de plástico. Estes têm autoria, foram criados por
Rangi Kipa, um renomado escultor maori contemporâneo. As telas que compõem “Tiki
Remix” de Saffronn Te Ratana, aparecem logo no início do percurso acompanhadas por
uma legenda que começa afirmando que “as formas tradicionais costumam influenciar
os artistas contemporâneos maori” e interpreta cada elemento do quadro, inclusive sua
disposição que deveria formar uma figura antropomórfica. As camadas de cor
representariam o hinengaro (espírito), os fios vermelhos e a figura do manaia (guardião
espiritual) indicariam que a autora parece “convidar o espectador a uma certa
introspecção”, traços do ta moko (tatuagem) e samplers do tiki confirmariam que ela
“explora aqui a cosmologia, as histórias ancestrais e a identidade pessoas”.

O hei tiki aparece novamente no trabalho da fotógrafa Fiona Padington. Sua


série de fotografias que ocupa toda uma parede da exposição tem a textura de
radiografias e foi feita a partir dos tiki originários da tribo da qual descende,
conservados no museu de Auckland e de Okains Bay, Canterburry, NZ. Ao invés de
fotografar os mais belos tiki da coleção, a artista escolheu registrar os pingentes que
estavam guardados na reserva por estarem danificados, com pedaços partidos ou
arranhados – por isso a fotografia radiográfica -, aqueles que provavelmente não seriam
exibidos, não sairiam das reservas técnicas. Segundo a legenda, sua intenção seria
“recriar metaforicamente os tiki a partir de suas imagens e assegurar que fossem vistos
novamente”.
102

Figura 40: Série “Heitiki, Whakakitenga – Revelation” de Fiona Pardington. ©bliss in the city

Figuras 41 e 42: hei tikis danificados fotografados por Fiona Pardington. Fonte: museeduquaibranly.fr ©museeduquaibranly

No catálogo, lê-se que sua abordagem do hei tiki mostra a noção de mana taonga
operando, ao confrontar a “tradição da natureza morta na fotografia e da fotografia
etnográfica” e o “dinamismo de sua conexão com o passado e o presente”. Em relação
com os outros objetos da exposição, especialmente os outros hei tiki apresentados, o
trabalho da artista aponta justamente para o “algo a mais” que povoa esses objetos. Seu
resgate destes hei tiki danificados pode ser visto como rejeição explícita à primazia de
um critério estético ao se tratar de objetos maori.
103

O esquema não cronológico da disposição dos objetos permite à curadoria


mostrar repetidas vezes objetos tradicionais, que definem os conceitos principais da
cosmologia maori, momentos de luta política em que esse povo quase perdeu tudo que
tinha mas foi guerreiro e conseguiu sair vitorioso, e obras contemporâneas que retomam
os temas tradicionais e as situações de conflito, mostrando que ainda estão vivos e
regidos pelos mesmos princípios.

Percebe-se claramente essa função na disposição bastante discreta da obra de


Bett Graham, a escultura de parede cujo formato lembra uma arraia. A forma como está
posicionada, em uma parede meio escura, entre painéis de texto e tendo do outro lado da
sala objetos grandes e atraentes não condiz com a forma como costumamos ver expostas
obras de arte contemporânea. A legenda nos faz ver que, além de se parecer com uma
arraia, seu formato se assemelha também a um bombardeiro furtivo (um avião em forma
de W, indetectável por radar destinado à lançar bombas e até ogivas nucleares), o que
reforça o caráter combativo da peça, inserida na parte sobre a defesa dos fundos
marinhos. Sua estética também é interpretada, chamando atenção para o contraste da
“dureza do tema tratado na obra” e sua superfície “coberta por motivos delicados
chamados whakarare, termo que significa deformar ou deslocar”.

Mas essa “demonstração”, esse ciclo “valores tradicionais/lutas


políticas/continuidade contemporânea”, não se dá nessa ordem extensamente ao longo
do percurso, como numa linha reta com sentido único, e sim em ciclos. Na teoria
museológica sobre criação do desenho de uma exposição, a maneira como o visitante
circula pelo espaço, ainda que seja um percurso de livre escolha, é pré-definida pelo
museu e “corresponde a uma forma de apropriação do conhecimento” (Cury, 2006,
p.47). Cury destaca dois modelos de organização espacial, um linear (sequencial, passo
a passo e com começo meio e fim), quando a compreensão de um momento depende do
anterior, e outro episódico, em que “o público faz as suas escolhas e constrói
criativamente seu caminho”.

O percurso da exposição Maori parece ser uma mistura dos dois, já que o sentido
é obrigatório e o entendimento de uma parte depende de outras, uma fazendo sempre
referência às anteriores como na construção de um texto argumentativo. Mas esses
ciclos se repetem durante a exposição, como uma espiral, motivo gráfico tão presente
nos objetos maori, que, segundo as informações da exposição, é a imagem da criação do
104

mundo maori, quando a luz penetra entre o pai e a mãe fundadores separando-os e traz a
ideia de movimento perpétuo vivido por um povo que concebe “o passado à frente e o
futuro atrás”.

2.2.3 Um display político: controle cognitivo e objetos que ilustram textos

A principal mensagem explícita da exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” é


a da continuidade. A apresentação dos conceitos centrais de sua visão de mundo e a
escolha dos objetos, antigos e contemporâneos, está claramente guiada pela intenção
expressa na frase de apresentação da exposição em seu catálogo: “Maori.Leurs trésors
ont une âme apresenta a cultura vivaz e dinâmica dos Maori, o povo indígena da Nova
Zelândia Aotearoa, de um ponto de vista Maori contemporâneo” (Smith, 2010, p.12).
Como estamos interessados aqui em delinear uma análise para além da mensagem da
exposição, é necessário ressaltar uma estratégia paradoxal. Na tentativa de compreender
que tipo de agência expressa a intencionalidade da curadoria por meio da forma como é
materializada visualmente, nos deparamos com a enorme importância dos textos da
exposição. Já descrevemos estratégias cenográficas, de seleção de objetos e de
associação criada espacialmente entre eles. Mas fica claro nestas descrições que os
textos ocupam lugar central na estratégia expositiva adotada.

A pouca quantidade de objetos exibidos em cada sala parecia solicitar a leitura


da grande quantidade de textos que ocupava as paredes e as também longas e
aprofundadas descrições presentes nas plaquinhas de legenda dos objetos. Os textos
presentes na exposição me pareceram bastante claros e de fácil entendimento em sua
estrutura discursiva, apesar da complexidade do conteúdo que se tentava transmitir.
Tentava-se transmitir aos visitantes muitas noções complexas como a de mana, e o
porquê daqueles objetos serem chamados taonga, ou tesouros. Desde o primeiro
momento me lembrei do clássico estudo de Marcel Mauss (2003) que tanto inspirou o
retorno das atenções aos objetos na antropologia a partir dos anos de 1980 (Gonçalves,
2007), e achei intrigante que fossem abordados na exposição com uma ênfase tão
grande nas palavras.

A extrema contextualização dos objetos era feita por meio de recursos


complementares como vídeos, fotografias, desenhos, citações de pessoas importantes,
poemas ou frases emblemáticas, mas em sua maioria eram explicações didáticas
oferecidas aos visitantes, em francês, inglês e maori, a respeito de aspectos e conceitos
105

da visão de mundo maori e especialmente do significado de seus objetos. Faz-se assim


com que seja necessário sempre ler os textos para contemplar as peças. Tive o impulso,
que observei também em muitos outros visitantes, de olhar um objeto, ler um grande
texto, e depois olhá-lo novamente, como se aí então fizesse sentido.

Em algumas ocasiões, a própria museologia considera um texto como objeto,


quando é ele mesmo o objeto da exposição e não algo complementar aos objetos
expostos. É o caso de museus da língua e de diversas exposições sobre algum autor
literário, por exemplo. De toda forma, os textos de uma exposição são sempre
elementos expográficos, pois sua presença no percurso afeta o visitante de forma
sensorial, interferindo no tempo da visita e na relação que será estabelecida com o
espaço e os objetos. Na exposição Maori, os textos me parecem no mínimo tão
importantes no percurso criado quanto as imagens e objetos exibidos.

Por isso levamos em conta na análise realizada até aqui a integralidade dos
painéis de texto, tanto enquanto “momentos de leitura” quanto em termos de conteúdo.
De seu conteúdo podemos extrair a construção de um discurso, de uma narrativa, e sua
função no estabelecimento de relações entre objetos, entre objetos e imagens e entre
objetos e ideias. Associando essa dupla função, os textos da exposição apontam
claramente para uma ação de controle cognitivo. Apesar do tom místico criado para a
exposição em sua versão francesa, a solicitação constante de leitura, além da
complexidade do que era lido, demandava do visitante um acompanhamento racional de
apreensão de conhecimento proposto, expresso de forma mais narrativa do que
sensorial.

Essa dominação narrativa na concepção de exposições é apontada por Henare


(2005) como característica marcante dos museus no século XX, fruto principalmente
das grandes viradas linguísticas na Antropologia que influenciaram a relação com os
objetos desta e de outras disciplinas correlatas. Começando com a ênfase no trabalho de
campo aprofundado em busca de categorias psicológicas preconizada por Malinowski, e
especialmente com o estruturalismo de Lévi-Strauss, que colocou a linguagem como
mecanismo fundamental do acesso a categorias universais de pensamento, fazendo da
pesquisa antropológica um esforço de abstração, culminando na reação do pós-
modernismo que desconstrói a própria noção de “realidade”, restando apenas a
possibilidade de estudar representações e narrativas a respeito das práticas sociais, ,
106

tudo, segundo a autora, afastou a antropologia dos objetos materiais. Grande parte dos
chamados museum studies, e mesmo dos material culture studies, articulam suas
reflexões em termos de objetos que são “lidos”, que “significam”, museus que
“simbolizam a identidade nacional”, exposições que “contam histórias”, “culturas que
falam” no museu ou exposições nas quais o “discurso” é mais ou menos democrático e
compartilhado.

Nesta exposição, estratégias expositivas criam visualidades que se articulam a


textos formando um complexo visual e explicativo que age na direção de sacralizar a
arte maori, revesti-la de aspectos cosmológicos particulares e compor uma significação
fechada dos objetos apresentados. Provavelmente, existiriam outras formas possíveis de
se produzir cenograficamente essa dimensão espiritual dos objetos maori. A experiência
sensorial oferecida no início da exposição, de tocar uma “pedra mágica” e “compartilhar
com ela sua força vital”, serve para introduzir o visitante no registro que lhe será
apresentado ao longo do percurso, mas não se repete ao longo dele. Não há outras
oportunidades de “compartilhar” ou “sentir” o mana ou outros aspectos que povoam
aqueles objetos. Não somos convidados a entrar na casa cerimonial/corpo do ancestral,
fazendo assim parte da agência exercida por ela. O visitante é o paciente sobre o qual a
agência é exercida. A casa que intimida os rivais por meio da fascinação de sua
sofisticação e suntuosidade parece dever fazer o mesmo com os visitantes.

O que a estética expositiva nos mostra é que estes objetos são tesouros maori,
são sagrados para eles. Somos afetados pela agência de um display político. A
dimensão de alteridade é construída sempre de forma atrelada à noção de “controle”,
expressa pelo tino rangatiratanga. Controla-se a apreciação estética por meio das
interpretações formais bastante precisas das legendas, deixando o visitante sempre a par
do quão especiais e particulares aqueles objetos são para os Maori, o quanto devemos
respeitar sua relação com o mundo e, de certa forma, o quanto não podemos pretender
fazer parte deste mundo nem imaginá-lo de formas diferentes daquela que nos é
oferecida.
107

3. O Museu do quai Branly: Etnografia de um diálogo


108

3.1 Curadoria Nativa no Museu do “Outro”


Na primeira parte da dissertação, vimos como as intenções da curadoria são
expressas nos elementos expográficos articulados na exposição Maori. Essa exposição
foi apresentada, segundo fui informada por algumas pessoas que visitaram a exposição
“original”, de maneira praticamente igual no Museu Te Papa Tongarewa, na Nova
Zelândia. Assim, poderíamos pensar que há provavelmente pouca diferença entre a
exposição original e aquela levada para a França. Mas para o que interessa na reflexão
que desenvolvo aqui, muitos outros elementos podem ser articulados a esta exposição,
permitindo compreendê-la de forma relacional e contextualizada. O fato de ter sido
levada para a França, para o Museu do quai Branly especificamente, é um ponto
fundamental para nossa análise, pois mostrará justamente o “diálogo” no qual a
exposição se insere, nosso interesse central nesta dissertação.

Há um objeto na exposição Maori que não foi mencionado nos capítulos


anteriores. Trata-se de uma tela de pintura a óleo, exposta na parte sobre tatuagem da
seção Whakapapa. Esta tela, de Shane Cotton, mostra um crânio carregado por pássaros
à beira de um rochedo. Na parte de baixo da tela estão representados os sinais, como os
de aparelhos de reprodução de música ou vídeo, de stop, foward e rewind, tendo este
último uma cor mais clara, como se tivesse sido selecionado. Em visita à exposição,
acompanhada de uma pesquisadora de tatuagem e religião maori, soube que aquela tela
havia sido objeto de uma polêmica dentro do Museu Te Papa, pois o crânio
representado é um “mokomokai”, troféu de guerra para os Maori antigos, que se tornou
um dos artefatos mais cobiçados por colecionadores europeus. Tais crânios não podem,
segundo o protocolo cultural maori, ser exibidos ao público nem representados em
imagens. Isso implicou em problemas no momento da aquisição da obra e acusações
contra o museu, mas a controvérsia acabou sendo vista como um mal entendido, já que
a obra de Cotton é bastante expressiva e engajada na luta política maori.
109

Figura 43: “ZEE” de Shane Cotton.

Menciono agora esta tela, pois estes famosos “mokomokai” serão nosso ponto
de partida para abordar o “encontro cultural” ocorrido no Museu do quai Branly com a
recepção da exposição Maori. Não se mencionava a polêmica em torno dos mokomokai
em nenhum momento do percurso, mas muitas das perguntas que fiz a diversas pessoas
envolvidas na exposição Maori quando estive no Museu do quai Branly, ansiando por
explicações sobre os mais diversos detalhes da configuração expositiva, apesar de não
levaram a respostas específicas, apontavam constantemente para a importância
diplomática da exposição e para o fim de uma longa disputa jurídica entre França e
Nova Zelândia a respeito do repatriamento de alguns objetos. Estes objetos eram os Toi
Moko ou Mokomokai, crânios tatuados preservados pelos Maori. Trata-se de objetos que
transitaram por diversas categorias, muitas vezes superpostas, mediando diversos tipos
de relações, encontrando-se na origem do processo de realização da exposição Maori no
quai Branly.

3.1.1 Mokomokai: objetos em disputa

A prática de mumificar e conservar os crânios de importantes chefes tribais é


atribuída à cultura maori pré-colonial. Eles podiam ser preservados por seus
descendentes para demonstrar respeito ou por seus inimigos como troféus de guerra,
uma vez que os conflitos intertribais eram bastante frequentes no tempo anterior à
colonização europeia. Os chefes tribais ou pessoas de alta posição social tinham seus
rostos integralmente cobertos por tatuagens tradicionais (moko). Como vimos
anteriormente, os motivos dessas tatuagens identificam um indivíduo por seu
110

pertencimento a determinada tribo e clã, marcando fisicamente a presença de seus


ancestrais em seu corpo. A tatuagem está no centro da motivação do processo de
mumificação e do valor atribuído a esses crânios (Vuille, 2011).

Vuille (2011, p.11) distingue em três momentos diferentes a prática de


mumificação de crânios tatuados. Num primeiro momento, destaca o papel de
“testemunhas de uma linhagem”58 desempenhado pelos crânios, “conectando os
ancestrais míticos de sua tribo (iwi) às genealogias que ligam os vivos às divindades
(hatua)”. São conservados em um espaço consagrado (wahi tapu), ao abrigo dos olhares
e apenas especialistas do sagrado (tohunga) podem manipulá-los, em ocasiões
particulares. Em seguida, no “tempo das guerras tribais”, as relíquias das tribos vencidas
eram roubadas e as cabeças de adversários mortos nos campos de batalha eram
mumificadas “para exibir como troféus de guerra”. Segundo a autora, nesta fase, “as
tribos deixam de mumificar seus próprios ancestrais por medo de que as preciosas
relíquias sejam roubadas e desonradas”. Com a chegada dos colonizadores e o grande
interesse dos colecionadores pelos mokomokai (o primeiro crânio foi adquirida por eles
em 1770), inicia-se a terceira fase, durante a qual, “em troca de armas de fogo, os Maori
fornecem aos mercadores cabeças de outros Maori.”. O tráfico de cabeças foi tão
intenso que teve importante papel na queda populacional do povo Maori. Eles passaram
a matar uns aos outros para obter cabeças, tatuando-as post-mortem59.

De objetos curiosos e exóticos, os crânios passaram a objetos científicos,


integrando coleções de museus ocidentais. Dentro destas coleções, transitaram pelas
diferentes classificações feitas nos diferentes momentos e pelas formas de exibição
correspondentes. Esses crânios eram exibidos como artefatos etnográficos e apreciados
por sua decoração complexa. Porém, sua significação para a cultura maori acabou por
confrontar as práticas exibicionárias europeias, que vigoravam também dentro da
própria Nova Zelândia no período colonial e a restrição à sua exibição foi uma das

58
“Dans une première phase, témoins d’une lignée, ils rejoignent les ancêtres mythiques de leur tribu
(iwi) dans les généalogies qui relient les vivants aux divinités (atua). [...] Ensuite, au temps des guerres
tribales [...] pour en faire des trophées de guerre qu’ils exhibent. Lors de cette deuxième phase, les
tribus cessent de momifier leurs propres ancêtres de peur que les précieuses reliques ne soient volées et
déshonorées. [...] en échange d’armes à feu, des Maori fournissent aux marchands des têtes d’autres
Maori.”.
59
A nomenclatura mokomokai é contestada, pois o termo se refere aos crânios preservados de escravos
cativos. Toi Moko é o termo mais genérico, utilizado devido à extensão da prática a outras categorias de
pessoas e também devido ao entendimento contemporâneo de que o escravo de alguém é sempre o
parente de outra pessoa, merecendo respeito (Vuille, comunicação pessoal, 2012).
111

grandes lutas do movimento político maori na Nova Zelândia. Porém, fora do país,
muitos outros crânios pertencentes a coleções públicas e particulares continuaram a ser
exibidos ao público, inseridos em um regime de tratamento e significação radicalmente
diferente daquele de seus produtores (parentes ou inimigos).

Inicialmente, as lutas das lideranças maori se focaram em promover mudanças


nas práticas dos museus instalados em seu próprio país. A partir daí surgiram demandas
de repatriação de objetos encontrados em museus mundo a fora. Na década de 1980, a
Nova Zelândia lançou um programa chamado Karanga Aotearoa - Return for homeland
que mapeou os objetos maori presentes em coleções estrangeiras e iniciou demandas
oficiais de repatriamento. Os crânios tatuados se encontram no centro dessas demandas
por seu caráter sagrado, por serem considerados materializações dos ancestrais e,
especialmente, por ser proibida sua exposição ao público, de acordo com as práticas
culturais maori. O responsável pela condução das demandas de restituição de objetos
maori é o Museu Te Papa Tongarewa, museu nacional da Nova Zelândia.

Quando ouvimos e lemos em todo canto que o Museu do quai Branly está
recebendo uma exposição com “curadoria nativa” é preciso parar para pensar o que isso
significa neste caso específico. Quem de fato concebeu esta exposição? Quem são “os
nativos”, “os Maori”? Além da reflexão sobre a construção de uma identidade maori
contemporânea, a afirmação de uma curadoria nativa envolve também um
englobamento dos sujeitos individuais maori. Evidentemente não foram todos e cada
maori que concebeu esta exposição. O curioso é que, para além da informação
facilmente obtida de que o curador dessa exposição foi “o Museu Te Papa”, não
consegui obter quase nenhuma informação a respeito das pessoas que compõem a
equipe responsável pela sua concepção60.

Se todos os objetos presentes na Exposição Maori são detalhadamente


identificados, com o máximo possível de informação sobre seus produtores e seus
detentores, o mesmo não se pode dizer da exposição como um todo. Price (2000) aborda
a questão do anonimato associado à Arte Primitiva como um dos aspectos que mais a

60
Nos créditos da exposição, a “curadoria” é atribuída ao Museu Te Papa Tongarewa. Abaixo, aparece o
nome de Magalie Mélandri, que trabalha na Unidade Patrimonial Oceania do Museu do quai Branly,
como “colaboradora científica”. Em seguida aparecem dois nomes de cenógrafos: Léa Saito e Massimo
Quendolo, tendo este último trabalhado em outras exposições do museu francês. Há os créditos às
empresas de iluminação, sinalização e montagem, e, por último, aparecem dez pessoas que trabalharam
na produção da exposição para sua versão francesa.
112

distingue dos critérios utilizados na História da Arte ocidental. Este anonimato seria o
resultado de diversas projeções ocidentais sobre as outras culturas, tais como a ideia de
que todas elas são regidas pela coletividade, negando-se assim o papel da criatividade
individual e, consequentemente, presumindo a falta de identidade individual.

Este mecanismo é bastante bem combatido nas legendas e forma de apresentação


dos objetos na exposição Maori. Mas a concepção da exposição permanece sendo
referida, tanto pelos neozelandeses quanto pelos franceses, como algo anônimo ou
coletivo, como se não fosse interessante mostrar o processo de construção do discurso
apresentado pelo Museu Te Papa enquanto representante do povo maori e muito menos
abrir espaço naquela ocasião para as dissidências internas existentes na experiência
cotidiana de ser maori hoje.

O Museu Te Papa Tongarewa é o Museu Nacional da Nova Zelândia, localizado


na cidade de Wellington. O museu não é, portanto, apenas um museu “dos Maori”, é um
museu neozelandês. Entretanto, sua criação se deu durante o período de renascimento
cultural maori e seu compromisso com a política bi-cultural da nação fez dele um dos
representantes mais legítimos desta cultura. As políticas museológicas praticadas pelo
Te Papa, são hoje referência dentro da Nova Zelândia e mundo afora. Algumas pessoas
com quem tive contato visitando a exposição que já visitaram este museu, disseram
tratar-se de uma exposição “sem sombra de dúvida” correspondente ao “mais típico
estilo de exposições maori no Te Papa”.

O “estilo” do Te Papa, ou aquilo que McCarthy analisa enquanto sua “cultura


exibicionária”61, é resultado de uma complexa rede de relações desenvolvidas entre
pessoas e objetos, maori e pakeha, ao longo da história do contato na Nova Zelândia. A
categorização destes objetos enquanto taonga está longe de ser a única e de ser
universalmente adotada e os critérios expositivos contribuem para a constituição destes
objetos enquanto pertencentes a determinadas categorias e classificações, levando-os
hoje a ser (novamente) considerados como taonga, agenciando novas estratégias
(McCarthy, 2007).

Os museus desempenharam papel importante no período colonial na Nova


Zelândia. No início do processo colonizador, após as famosas viagens do Capitão Cook,
por volta de 1769, muitos artefatos maori foram levados para a Europa como
61
“exhibitionary culture”.
113

“curiosidades” ou souvenires de terras longínquas. Com o estabelecimento dos colonos


no território, estes artefatos passaram a ser exibidos em museus como “troféus”
arranjados como um arsenal de armas na casa de um soldado (McCarthy, 2007, p.13).
Mostrar artefatos maori naquele tempo implicava em mostrar o domínio sobre aquele
povo e sua terra. A forma de exibição foi rapidamente influenciada pelas novas
correntes científicas que ganhavam força na Europa durante o período colonial e as
ideias do evolucionismo darwinista que determinavam que os museus deviam
colecionar espécimes, expondo-os como uma reserva aberta, apresentando o maior
número possível de objetos justapostos, em vitrines, armários de vidro, pendurados no
teto, tendo como objetivo maior “explorar, descrever e classificar” o país.

O fortalecimento da disciplina antropológica e sua introdução na Nova Zelândia


marcam a forma de expor objetos maori como tentativa de documentar um estilo de vida
tradicional que sofria mudanças radicais, mas já reconhecendo que esse povo não iria
desaparecer. Os objetos passam a ser categorizados como artefatos e sua apresentação é
cercada de legendas que contextualizam objetos na vida social e utilizam suas
nomeações em língua maori. O museu era concebido como uma biblioteca
tridimensional na qual objetos ilustram textos e exposições são pensadas como
narrativas (Ibid. p.68). Em meados do século XX surge a noção de “artesanato” e são
criadas escolas de “artesanato maori”62. Com a intensa migração dos Maori para as
cidades, mudanças ocorrem tanto na forma de produzir e apresentar seus objetos quanto
na relação deles com os museus.

A década de 1980 marca o período de renascimento cultural maori e a invasão


maciça do público aos museus e galerias. Há a efervescência de um discurso
nacionalista indígena e a consolidação de uma identidade maori independente. Um
evento marcante ocorrido neste período foi a exposição “Te Maori”, exibida no
Metropolitan Museum of New York em 1984, passando por diversas cidades norte-
americanas, até retornar a Nova Zelândia, no Museu Nacional em 1986, onde foi vista
por 25% da população (McCarthy, 1995:28). Apresentando antigos artefatos de forma
“artificante” lado a lado com “obras de arte contemporânea maori”, a exposição alçou
objetos maori à categoria de “Arte”, valorizando-os por suas qualidades formais e
introduzindo pela primeira vez o termo taonga no discurso sobre estes objetos e em seu

62
Maori Arts and Crafts.
114

projeto curatorial. Ao promover uma justaposição desses conceitos, utilizando uma


forma de apresentação moderna, mas profundamente ligada ao passado maori, objetos
antigos tornaram-se símbolos do presente maori.

Acompanhada por cerimônias e performances de anciãos e artistas maori - algo


inédito, visando simultaneamente apresentar os objetos como Arte, mas inseridos na
cultura maori - a exposição promoveu a primeira experiência de participação efetiva de
líderes tribais, que tiveram que autorizar a utilização e saída dos objetos da Nova
Zelândia. Neste momento, considerado o “tempo da descolonização”, muitos Maori
conseguem entrar nas estruturas administrativas governamentais e dos museus,
aumentando a consciência política dos jovens maori e fazendo dos taonga/Arte Maori,
“emblemas de identidade” (Ibid. p.137). O termo taonga passou a ser utilizado não
somente pelos Maori, mas pelas equipes de museus, jornalistas, público em geral,
inclusive em documentos, ganhando finalmente sua tradução amplamente aceita:
“tesouros” (treasures) (Ibid. p.139). Estes tesouros deveriam ser tratados reconhecendo-
se os valores espirituais da cultura maori e sua apresentação negociada para que lhes
fosse concedido o devido valor dentro da cultura moderna da Nova Zelândia.

Os anos de 1990, em uma Nova Zelândia já totalmente modificada pela política


bi-cultural que tomou o lugar da integracionista, marcam o retorno definitivo do “poder
dos tesouros” (mana taonga) para as mãos dos Maori. Este princípio é regulamentado e
guia o tratamento de todos os taonga maori na Nova Zelândia, garantindo aos Maori o
controle sobre as representações deles feitas em museus, dentro e fora do país. A junção
destes dois termos em uma locução – mana taonga – é de fato atribuída ao museu Te
Papa63 e à sua trajetória de consolidação da presença de valores maori em políticas
públicas e coloca o “poder dos tesouros” no centro da agenda político-cultural maori.
Essa é uma interpretação de valores maori que não surge sem contestações, mas que
colocou a questão do tratamento dos objetos como prioridade e o Museu Te Papa como
um dos mais legítimos representantes da cultura maori.

O princípio de Mana Taonga é central na política de tratamento dos objetos


desenvolvida pelo museu TePapa. Por reconhecer o poder desses objetos de conectar os
Maori contemporâneos a seus ancestrais e considerar que objetos acumulam

63
O termo foi criado por Api Mahuika durante o projeto de criação do museu Te Papa, nos anos 1990
(McCarthy, 2011, p.114).
115

“significações, valores, histórias e narrativas transmitidas de uma geração à outra”


(Smith, 2011, p.133), o museu neozelandês vê como necessária a manutenção dos
vínculos entre pessoas, tribos, comunidades e seus “tesouros”. Assim, os “tesouros”
maori são conservados pelo Te Papa, mas continuam a ser vistos como propriedade dos
descendentes daquele que os fabricou e o museu procura manter um diálogo constante
com comissões formadas pelas tribos para participar das decisões sobre “a conservação
dos taonga, a maneira de falar deles e a determinação de seus usos” (Smith, 2011,
p.134). Desta forma, o museu acredita estar reconhecendo a “dimensão espiritual” dos
taonga e recorre a suas qualidades para “reavivar os laços que eles estabelecem com os
representantes das tribos e das famílias” (Ibid.).

Esse princípio adotado pela instituição permite que cerimônias sejam realizadas
dentro do espaço do museu, que abriga algumas casas cerimoniais, e também que
objetos de sua coleção saiam do museu para participar de cerimônias importantes que
ocorrem nos locais de encontro das tribos. Nesses casos, os objetos são “confiados à
vigilância” de membros de uma tribo e “usados por seus guardiões como a encarnação
viva de um passado ancestral” (Ibid.). O museu desenvolve assim uma relação bastante
próxima com as tribos maori no presente e contribui para a preservação da cultura
maori.

No museu do quai Branly, a visão geral que se tem dos objetos está bastante
distante daquela da Nova Zelândia. O Museu ocidental é um espaço laico. A dificuldade
da restituição, especialmente no caso da França, reside no fato de que objetos de arte ou
científicos são considerados como propriedade inalienável do povo francês. A cultura
ocidental preservacionista está baseada na crença de que objetos de arte e de uso
científico são universalmente considerados como tal e que esta categorização está acima
de possíveis usos que tenham tido em outros momentos. A tentativa de associar um
significado fixo ou classificar definitivamente um objeto é sempre arbitrária e esconde
as complexas relações nas quais ele se insere. Como afirma Kirshemblatt-Gimblett
(1998), a própria ideia de um artefato etnográfico remete no fundo a uma construção da
disciplina etnográfica sobre e pelos objetos que estuda e, “se neste processo os objetos
deixam de ser o que foram um dia, é uma questão aberta e importante” apontando
116

justamente para o fato de que “a resposta testa a alienabilidade daquilo que é coletado e
exibido”64 (Kirshemblatt-Gimblett, 1998, p.3).

Price (2007), ao analisar detalhadamente o sistema dos museus franceses, seus


regulamentos e sua relação com o Estado, mostra que, enquanto comprar e aceitar
presentes e empréstimos de peças é algo corriqueiro nos museus franceses, apenas em
circunstâncias muito excepcionais e após um processo extremamente complicado,
objetos podem ser vendidos trocados ou devolvidos, sendo necessária a aprovação do
Ministro da Cultura e do Parlamento. Esse entrave jurídico revela mais do que apenas a
cultura burocrática da França. Disputas por restituição de objetos evidenciam a
impossibilidade de uma classificação universal de certos objetos e revelam dinâmicas de
relações sociais interculturais.

A França já havia lidado com um caso complexo de demanda de restituição de objetos


de sua coleção quando os restos mortais de Saartje 'Sarah' Baartman, conhecida como a
“Vênus Hottentote”65, foram restituídos à África do Sul. Esta sul-africana que trabalhou
em freak shows em Londres e Paris - muito comuns no final do século XIX, chamou
atenção de cientistas interessados em teorias evolucionistas raciais, que a submeteram a
procedimentos de mensuração e análises de sua fisionomia. Recusando-se a prosseguir
com o escrutínio dos cientistas, foi após sua morte que Saartje pode ser integralmente
examinada, pois seu corpo foi comprado pelo administrador do Museu Nacional de
História Natural da França. Um molde extremamente realista do corpo de Saartje, seus
órgãos genitais preservados em formol e seu esqueleto integraram a coleção do Museu
do Homem, em Paris, por muitos anos e ficaram expostos na seção de “pré-história”, até
que Nelson Mandela, em 1994, fez um pedido de restituição de seus restos mortais. A
devolução dos elementos corporais de Saartje aconteceu apenas em 2002, após a
votação de uma lei especial; seus restos mortais foram então purificados e cremados, de
acordo com as tradições locais dos San da África do Sul, seu grupo de origem.

64
“The answer tests the alienability of what is collected and shown.”.
65
Para uma versão ficcional impactante da história de Saartje Baartman, ver o filme Vénus Noire (“A
Vênus Negra”) de Abdellatif Kechiche, 2010.
117

Figura44: Ilustração de Saartje Baartman, a “Vênus Hottentote”©parispelemele

Durante a gestação do projeto do Museu do quai Branly, a questão dos direitos


de propriedade sobre os objetos das coleções foi assunto recorrente. Em entrevista a
Sally Price, a responsável pelas relações internacionais do Museu do quai Branly
afirmou que as questões relacionadas a restituições seriam tratadas no nível diplomático
e que a intenção seria sempre a de evitar criar precedentes legais. Em suas alegações,
fica claro que, para além das justificativas que afirmam que os corpos ou suas partes não
foram roubados, mas entregues aos exploradores e que nunca foram identificados ou
utilizados como restos humanos, há a insistência em afirmar que estes corpos se
tornaram objetos de arte, objetos etnográficos e que, por isso, não poderiam ser
destruídos (Price, 2007). 66

A postura do museu é guiada pelo princípio extremamente caro à França de


laicidade. “O museu não é um espaço religioso”67 disse a assessora (Le Guevel apud
Price, 2007, p.124). E o próprio Germain Viatte, diretor museológico da instituição, em
1999, ao ser questionado sobre como o museu lidaria com estas questões, explicitou:

“A França é universalista e secular. Precisamos reconhecer que coleções museológicas


pertencem à história do nosso próprio país, mas também a culturas que podem ter desaparecido,

66
De fato, existe na lei francesa um comentário sobre a possibilidade de algum resto humano tornar-se
parte de uma coleção patrimonial caso tenha sido “transformado de tal maneira que possa ser considerado
uma obra de arte” (Palman, Norman, 2011).
67
“The museu is not a religious space”.
118

ou estar em vias de, ou na esperança de um revival cultural. Tudo isso deve ser levado em conta,
mas sem ceder a um tipo de paternalismo, confinando outras pessoas a suas particularidades e
reservando o universalismo exclusivamente para nós por estarmos com medo de ser
‘politicamente incorretos’.”68 (Viatte apud Price, 2007:124).

A mesma visão é corroborada pelo presidente do museu, Stéphane Martin, que


afirmou que o quai Branly não pretende ser um museu de apologia aos nativos nem
passar mensagens baseadas em heranças étnicas, postura que estaria sendo adotada
pelos museus do Canadá e dos Estados Unidos. Segundo ele, a França

“tem uma visão mais objetiva da cultura. Esta é livre de qualquer instrumentalidade [...], por isso
tem se tornado cada vez mais difícil defendê-la. [...] O argumento para devoluções de conteúdos
de museus para seus países de origem é uma rejeição, pura e simples, da tarefa do museu, que
consiste em mostrar o ‘Outro’ – o que quer dizer, por definição: fora de seu ambiente de
origem.”69 (Martin apud Price, 2007, p.125).

Estas declarações, no entanto, foram colhidas por Price durante o projeto de


concepção do Museu do quai Branly. Após sua inauguração, o museu “onde dialogam
as culturas” precisou enfrentar as questões relativas à propriedade de objetos e as
pressões das diferentes concepções culturais de museu de forma mais concreta.

A França contava com 20 crânios maori espalhados pelas coleções de seus


museus. Já há alguns anos eles não eram mais expostos, mas ficavam disponíveis nas
reservas técnicas e sua restituição à Nova Zelândia vinha sendo negada, desde o
primeiro pedido oficial em 2002. Porém, um fato ocorrido no Museu de História Natural
da cidade de Rouen, também na França, alterou os rumos desta história. Após uma
autorização concedida em 2007 pela direção do museu de restituir um crânio maori que
pertencia à sua coleção, a questão passou alguns anos sendo tratada no âmbito jurídico
até que, em 2009, uma lei foi aprovada por unanimidade no Senado francês e
sancionada em 2010 pela Assembleia Nacional retirando esses objetos da classificação

68
“France is both universalist and secular. We need to recognize that [museum Collections] belong to the
history of our own country, but also to cultures that may have disappeared, or be on the way out, or be
hoping for cultural revival. We need to take all this in account, but without giving in to a kind of
paternalism, confining other people to their particularities and reserving universalism exclusively for
ourselves because we are worried about being “politically incorrect.”.
69
“In France we have a more objective vision of culture. It’s free of all instrumentality [...], though it’s
becoming more and more difficult to defend... [...] the argument for returning the contents of museums to
their countries of origin is a rejection, pure and simple, of the museum’s calling, which is to show the
‘Other’ – which means, by definition: outside of its original environment.
119

de objetos de coleção dos museus franceses, que os tornava inalienáveis, de “domínio


público”70.

Após o precedente conquistado em Rouen, o Museu do quai Branly acabou


cedendo às pressões políticas e diplomáticas da Nova Zelândia, bem como da
comunidade intelectual envolvida em suas atividades e concordou com o repatriamento
dos crânios para a Nova Zelândia. O museu já vinha realizando discussões sobre o tema
das restituições e da musealização de restos humanos em algumas ocasiões 71. Este tema
não podia mais ser ignorado, pois proliferam no mundo, especialmente a partir da
década de 1990, demandas de restituição de todo tipo de objeto.

Em praticamente todo material de divulgação da exposição Maori que encontrei


em jornais, revistas e blogs anunciava-se a devolução dos crânios tatuados maori. Um
dos objetos exibidos na exposição, o molde do rosto de um grande chefe tribal maori,
feito em vida e com seu consentimento (figura 16), era frequentemente confundido
pelos visitantes com um dos “tais crânios” cuja polêmica aparecia constantemente na
mídia. A própria realização desta exposição já aponta para algumas mudanças em
relação aos discursos herméticos colhidos por Price alguns anos atrás.

No encerramento da Exposição Maori, em fevereiro de 2012, uma cerimônia foi


realizada no museu para que a devolução de vinte toi moko fosse realizada72, com a
presença de uma comitiva neozelandesa que incluía a Embaixatriz da Nova Zelândia,
Rosemary Banks, uma equipe do Museu Te Papa Tongarewa, anciãos, líderes
espirituais e seis artistas maori. Além dos representantes da Nova Zelândia, estiveram
presentes o Ministro da Cultura da França, Fréderic Mitterrand, e os responsáveis dos
museus franceses que entregavam os crânios naquele momento, incluindo o diretor do
quai Branly, Stéphane Martin, entre outros convidados. A cerimônia teve intensa
cobertura da imprensa francesa e internacional.

A cerimônia ocorreu no Teatro Claude Lévi-Strauss, no subsolo do museu, e


iniciou-se com a performance de cantos e danças fúnebres entoados por homens e
70
Os primeiros apelos jurídicos recorreram a um artigo do código civil que diz que “o corpo humano,
seus elementos e seus produtos não podem ser objeto de um direito patrimonial”, em seguida, buscou-se
respaldo no “princípio de dignidade”, mas apenas uma lei tratando especificamente dos crânios maori
resolveu a questão (Renold, 2011).
71
Em fevereiro de 2008 o museu organizou o colóquio “Des collections anatomiques aux objets de culte:
conservation e exposition des restes humains dans les musées”.
72
Estima-se que cerca de 500 crânios mumificados maori, além de outros restos humanos, ainda
encontrem-se em países da Europa e América do Norte.
120

mulheres maori, vestidos tradicionalmente. Os vinte toi moko encontravam-se em uma


grande caixa coberta por um pano preto e alguns mantos tradicionais. Rodeada por
folhagens, a caixa permaneceu fechada durante toda a cerimônia, caracterizada por
Stéphane Martin como “uma cerimônia emocionante”. Derek Lardelli, artista e tatuador
maori, manifestou-se durante o evento dirigindo-se aos crânios: “Vocês são o sopro da
vida, vocês, nossos ancestrais. [...] Pouco importa como vocês chegaram a essa terra
estrangeira [...] agradeço ao povo francês. Hoje, os ancestrais lhe sorriem por nos
permitir levar vocês de volta”73. Após seu discurso, Lardelli depositou pequenos
saquinhos de tecido contendo presentes diante dos representantes de museus franceses
por “terem preservado esses crânios durante cerca de duzentos anos”74.

Figura 45: Fredéric Mitterrand discursando na cerimônia de restituição dos toi moko. Fonte: radionz.co.nz

Figura 46: Mulheres maori em ritual de acolhimento dos toi moko. Foto: Laurent Cipriani. Fonte: artdaily.com

73
Le Monde, 23/01/2012.
74
Le Point, 23/01/2012.
121

O destino destes crânios na Nova Zelândia contemporânea não é exatamente o


mesmo que tinham nos tempos pré-coloniais. O Museu Te Papa Tongarewa, designado
oficialmente como receptor dos restos mortais repatriados, conserva estes crânios em
um local considerado sagrado, de acesso extremamente restrito. Em algumas ocasiões,
quando se consegue identificar a origem por meio da análise das tatuagens e exames de
DNA, retornam à sua tribo, onde são também guardados em locais sagrados, podendo
ser estes em pequenos museus locais. Segundo Vuille, isso acontece cada vez menos e a
maioria dos Maori sente-se satisfeita em ver estes crânios serem conservados em
instituições representativas como o Museu TePapa Tongarewa, em Wellington. O
renascimento cultural maori no final do século XX foi acompanhado – e possibilitado –
por um apagamento dos conflitos intertribais em prol de uma construção identitária
unificada, o que faz com que os crânios sejam percebidos como “ancestrais de todos”
(Vuille, 2011, p.11).

É interessante notar, a partir deste caso, que apesar das discussões acadêmicas
girarem em torno da não legitimidade dos valores universalistas ocidentais projetados
sobre objetos de outras culturas e do necessário empoderamento de povos que sofreram
com processos de colonização, a questão da restituição de objetos, na prática, depende
de uma definição bastante genérica dos objetos. Apenas conseguiram deixar as coleções
francesas objetos que deixaram de ser vistos como “artefatos etnográficos” ou “arte”,
tendo sido recategorizados enquanto “restos mortais humanos”.

A exposição maori no Museu do quai Branly aparece então como um índice


deste encontro de dois museus, um encontro essencialmente político, mas que evidencia
relações não somente jurídicas como também relações entre pessoas com referências
culturais distintas, especialmente no que diz respeito à concepção de museu e
tratamento de objetos. A exposição “Maori. Seus tesouros têm alma” foi preparada em
apenas um ano. Para um museu que costuma iniciar a concepção de suas exposições e
seus projetos cenográficos até três anos antes de exibi-las, é evidente que a situação era
bastante diferente. Em conversa com uma funcionária do museu que se ocupa do
transporte de objetos e de sua instalação nos espaços expositivos75, o ineditismo do

75
O contato com esta funcionária surgiu em decorrência do convite feito por Gaëlle Crenn, professora da
Université de Nancy, para que eu acompanhasse as entrevistas que ela estava fazendo para sua pesquisa
de recepção do público da Exposição Maori no Museu do quai Branly. Como a entrevista não foi
concedida à mim, diretamente, não cito o nome da funcionária. Os resultados desta pesquisa ainda não
foram publicados.
122

sistema de acolhimento da exposição Maori voltou a ser frisado, marcado pelo fato de a
montagem ter sido fortemente controlada pela equipe neozelandesa. Contou-me que,
como esta exposição já veio pronta para a França, o desafio da equipe francesa foi,
juntamente com a equipe da Nova Zelândia, adaptá-la ao espaço fazendo o mínimo de
modificações possível.

Para isso, o cenógrafo do Museu do quai Branly foi à Nova Zelândia visitar a
exposição original, no Museu Te Papa Tongarewa, e uma equipe deste museu
coordenou a montagem na França, uma equipe que “esteve muito presente e sabia
exatamente como queria que a coisa fosse montada, o que não é comum nesse museu,
mesmo no caso de outras exposições convidadas” dizia a funcionária. E reforçava “o
objetivo era realmente não alterar nada, ainda que a localização das obras, dos textos, a
articulação dos nichos, acabem tendo que ser adaptadas”. O foco na autenticidade da
concepção da exposição, no rigor da equipe neozelandesa em apresentar a exposição
segundo seus preceitos e na independência garantida à equipe pelo quai Branly era
repetidamente valorizado em diversas ocasiões.

A mesma funcionária contou-me que o ambiente da montagem da exposição foi


marcado por uma “calma e uma serenidade” atribuídas ao bom entendimento entre as
equipes dos dois museus. A equipe enviada pelo Te Papa contava com uma mulher
responsável por “cuidar do bem-estar dos tesouros” que entoava cantos em língua maori
para cada objeto, “para lhes receber”. Isso certamente não faz parte das práticas
habituais do museu francês. Segundo ela, “aqueles que queriam participar,
participavam, mas ninguém era obrigado a seguir o ritual”. No entanto, apesar do
discurso laico do museu enquanto instituição, a prática cotidiana daqueles que
convivem de perto com os objetos na reserva abre brechas para o estabelecimento de
relações, no mínimo, afetivas com as “coisas”.

A funcionária disse que os objetos trazidos para a exposição “são objetos que
têm muita energia e que devem ser tratados como pessoas. Quando todos
compreenderam isso, tudo correu bem!”. Apesar das distintas concepções culturais, a
convivência com a equipe maori já a fazia evocar os objetos enquanto sujeitos: “Os
tesouros foram muito receptivos e criaram uma atmosfera muito boa.” Segundo ela, o
que “fica é a experiência positiva da cooperação”, um encontro no qual conheceu
pessoas que se relacionam com “objetos vivos”, o que provocou uma identificação com
123

parte dos funcionários que trabalham com as coleções do museu, que têm sempre em
mente o caráter “sagrado” que várias peças têm para outras culturas, mas também criam
este caráter por meio de suas funções cotidianas e relação íntima com os objetos nos
bastidores da instituição. Esta experiência extremamente rica de troca cultural, de
encontro e superposição de valores, categorias e relações com objetos agindo na prática,
ocorreu longe da presença do público.

A independência curatorial concedida pelo quai Branly “aos Maori” era


celebrada e frisada a todo momento. Nas visitas guiadas que acompanhei, as monitoras
chamavam atenção para um funil, feito de madeira ricamente entalhada, que serve para
alimentar uma pessoa enquanto recebe sua tatuagem facial, exposto em uma vitrine na
posição em que seria usado. Elas repetiam que aquele era um bom exemplo das
diferenças do modo de exibir “dos Maori”. Dizia ela que, se fosse pelo museu francês,
aquele objeto estaria exposto virado ao contrário, de forma que se pudesse ver melhor
os detalhes de sua decoração, e não assim, na posição em que era usado. Além desse
exemplo, iniciavam as visitas dizendo que “a exposição havia sido integralmente
concebida pelos Maori” e que as divisórias iluminadas tinham sido “a única coisa
realizada pelo Museu do quai Branly, seguindo os padrões gráficos enviados pelo
Museu Te Papa”.

Sobre a concepção curatorial da exposição, a responsável pelo departamento das


coleções da Oceania, Magali Mélandri, afirmou que o Museu do quai Branly “jamais
teria pensado uma exposição cuja estrutura fosse integralmente sustentada pelos
conceitos maori. Nós teríamos apresentado a organização social, a arquitetura, a troca, a
relação com as divindades, teríamos utilizado códigos sociais de apresentação para uma
exposição sobre uma civilização.” (Mélandri, 2011, p.15). Nesta fala, o caráter
conceitual da exposição aparece como principal marca diferenciadora das demais
exposições realizadas no museu. Ainda que possamos perceber a forte conceitualização
de certas exposições realizadas pela instituição, o que reforça o ineditismo da exposição
Maori é que, além de não ser baseada em um percurso histórico, nem numa separação
arbitrária de “esferas” da vida e da cultura maori ou mesmo em estilos de sua produção
artística, não seguindo assim critérios cronológicos ou estilísticos na seleção e
distribuição dos objetos no espaço, seu percurso é guiado por conceitos nativos.
Chamou-me atenção que o título da exposição usasse o pronome “seus” em vez
de “nossos” [tesouros têm alma] diante de tantas afirmações do caráter
124

autorrepresentativo da exposição. Em uma conversa com Arapata Haikiwai, diretor do


Museu Te Papa, ele confirmou minha hipótese de que o título havia sido modificado
pelo Museu do quai Branly “para algo que atraísse a atenção do público”, tendo sido
adotado um nome bem mais “místico” do que o fortemente politizado “Standing
Strong” pelo qual era chamada em sua versão original. O uso da palavra “alma”, que
não aparece em nenhum outro texto da exposição nem nas principais definições de
conceitos maori como mana, hau e taonga, também me chamou atenção e foi
considerado por Haikiwai como sendo “bastante inexato”. Mas o que de fato parecia
importar para ele era o respeito que essa exposição podia construir na Europa com
relação à arte maori. Sua primeira exigência quando foi procurado por Stéphane Martin,
diretor do quai Branly, foi que eles “fizessem tudo e que usassem os objetos da coleção
do Te Papa”. Contou que o francês fez “uma careta de medo”, mas que aceitou o desafio
e “essa é a nossa maior conquista”.
O “desafio” ao qual se referiu Haikiwai parece ter sido a resposta do Museu do
quai Branly a questões extremamente discutidas no mundo contemporâneo dos museus
e além deles. O Museu do quai Branly nasceu num contexto político marcado pela
intensificação de movimentos identitários e étnicos, aparados inclusive por políticas
públicas preservacionistas fomentadas por organizações como a Unesco e a ONU
centradas no uso da noção de “cultura” para legitimar o foco nas diferenças e
singularidades das chamadas “populações tradicionais”, buscando a preservação do
“acervo de conhecimentos tradicionais” da humanidade (Abreu, 2010). Esta nova
configuração dos movimentos sociais é o cenário no qual aparecem as demandas de
repatriamento de diversos tipos de objetos, fruto, em grande parte, do debate a respeito
dos direitos de propriedade dos “povos indígenas” que, como aponta Brown (2004),
reuniu vários pequenos movimentos isolados em torno da ideia de que “herança/tradição
[heritage], tanto tangível quanto intangível, é uma forma de propriedade de grupo que
deve ser devolvida a seu lugar de origem”76 (Brown, 2004, p.3). Assim, por toda parte,
grupos e organizações “embarcaram em uma campanha global para assegurar controle
sobre elementos da cultura que consideram parte de seu patrimônio”77 (Ibid. p.2).
Evidencia-se aí que “cultura”, antes um conceito, uma abstração analiticamente útil,

76
“[...] heritage, both tangible and intangible, is a form of group property that must be returned to its
place of origin [...].”.
77
“[...] have embarked on a global campaign to assert control over elements of culture that they consider
part of their patrimony.”.
125

agora é “uma criatura que tem vida própria”78 (Ibid. p.4), um recurso inalienável e
mesmo, de certo ponto de vista, uma commodity, uma mercadoria.

Paralelamente à exposição Maori no Museu do quai Branly, foi organizado o


colóquio “Expor-se no museu: representações museográficas de si”79, sobre a questão da
autorrepresentação. Em outras ocasiões já se havia debatido no quai Branly o tema do
museu enquanto espaço laico ou espaço ritual e a questão das restituições de objetos
caracterizados como restos humanos, temas que podem ser relacionados à exposição
Maori. Porém, para o contexto da exposição o tema escolhido foi o da
autorrepresentação e diversos profissionais de museu e antropólogos foram à França
apresentar seus estudos de caso, teorias e experiências com o tema. Neste colóquio
passei a conhecer museus “locais” ou “nativos” de diversas partes do mundo 80 que
propõem formas diferentes de conectar comunidades e seus objetos ancestrais, antigos
significados e novas concepções e categorizações de objetos, museus e artistas
contemporâneos.

As diferenças entre eles são inúmeras, ligadas à história de suas criações e a


questões culturais locais, mas, como resume Clifford (2003)81, alguns aspectos são
constantes na maioria dos museus tribais, como a busca por um público local, o
interesse pelas tradições, histórias e significados locais. Segundo o autor (Clifford,
2003, p.270), que pesquisou quatro museus da costa noroeste dos Estados Unidos,
“podemos dizer que os museus regionais expressam a cultura local, o parentesco, a
etnicidade, a tradição e uma política de resistência. Já os museus maiores articulam
cultura cosmopolita, ciência, arte e humanismo – frequentemente com uma tendência
nacional”.

Pude perceber esta oposição entre objetivos locais e globais em diversos casos
apresentados no colóquio. Porém, chama atenção o fato de que o próprio Museu Te
Papa Tongarewa parece escapar a essa definição. Trata-se de um museu nacional, que
parece tentar combinar, ainda que paradoxalmente, os objetivos dos dois tipos de museu
delineados por Clifford. Ainda assim, este museu foi o único exemplo neozelandês

78
“[...] a creature that now has a life on its own.”.
79
S’exposer au musée: réprésentations muséographiques de soi. O colóquio ocorreu no Teatro Claude
Lévi-Strauss, no Museu do quai Branly, nos dias 29 e 30 de novembro de 2011.
80
Curiosamente, nenhum exemplo brasileiro constava nas apresentações.
81
Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 1996 e a pesquisa nele desenvolvida foi
apresentada pelo autor no colóquio “S’exposer au musée...” no Museu do quai Branly em 2011.
126

representado no colóquio. Existem outros museus maori na Nova Zelândia, museus


propriamente “tribais” ou “locais”82, mas estes não foram apresentados no colóquio na
França. Tampouco se discutiu no colóquio a exposição cuja programação ele compunha.
“Maori. Seus tesouros têm alma” não foi tema de nenhuma das palestras e debates,
sendo citada apenas no início de algumas falas com a intenção de parabenizar o Museu
do quai Branly pela louvável iniciativa de hospedar uma exposição com curadoria
nativa.

O colóquio parecia dominado por uma louvável vontade da Antropologia pós-


colonialista de legitimar a voz dos nativos, antes submetidos a narrativas coloniais e a
representações eurocêntricas de suas culturas. Além de mobilizar lideranças políticas
nacionais, locais e indígenas em diversas partes do mundo, estes debates acabam por
interpelar a comunidade antropológica sobre as possíveis formas de se engajar na
realidade e sobre a instrumentalização de conceitos forjados em seu bojo, especialmente
o de “cultura”. No entanto, há uma forte preocupação por parte dos intelectuais com este
uso da “cultura”. O risco de “antigos argumentos já desacreditados se esconderem por
trás de novas palavras”83, como salienta Kuper (2003, p.389), é que “cultura” venha se
tornar um eufemismo para “raça” e os “aceitáveis” “nativo” ou “indígena” para
“primitivo”. No polêmico artigo “The Return of the Native”, Kuper aponta para os
perigos de uma essencialização da cultura que seria subjacente às políticas que
conferem direitos privilegiados aos descendentes dos habitantes originais de um país,
aproximando a “retórica de movimentos indígenas” de “proposições populares entre
partidos de extrema-direita na Europa” para os quais “imigrantes são simples hóspedes e
devem se comportar como tal”84 (Ibid. p.390).

Kuper ataca a essencialização das culturas apontando para o risco de serem


congeladas e aprisionadas em definições românticas sobre autenticidade e
tradicionalismo. No entanto, os exemplos que justificam sua indignação com
movimentos que lutam por direitos indígenas evidenciam sua própria essencialização
quando se apoia nas transformações acarretadas pelo contato comercial e colonial e
mesmo pela influência exercida por ONGS para negar sua particularidade e coerência

82
Sobre os museus tribais maori na Nova Zelândia ver Henare, 2005.
83
“discredited old arguments may lurk behind new words.”.
84
“The retoric of indiginous peoples movement [...] The initial assumption is that descendants of the
original inhabitants of a country should have privileged rights, perhaps even exclusive rights, to its
resourses. Conversely, immigrants are simply guests and should behhave accordingly. These propositions
are popular with extreme right-wing parties in Europe [...].”.
127

cultural. A realidade destes povos pode muitas vezes estar distante dos termos presentes
nas convenções da ONU e nas representações “românticas” das ONGs ecológicas que
generalizam sua perfeita harmonia com a natureza que faria deles seus legítimos
guardiões. Mas o fato de não corresponderem a representações feitas deles não quer
dizer que se deva retirar a possibilidade de direitos baseados em aspectos culturais e
reparação histórica.

Diante do fenômeno das demandas de repatriamento de objetos, Véran (2012)


aponta para uma nova versão das teorias da Antropologia Biológica do século XIX
apresentada pela Antropologia Cultural pós II Guerra Mundial, na qual o determinismo
cultural incidiria no mesmo problema tautológico de “confirmar pela natureza aquilo
que os homens estavam fazendo pela política” (Véran, 2012, p.247). Assim, as
diferenças raciais que outrora justificaram dominação, direitos especiais e tratamento
desigual seriam as mesmas presentes no discurso atual que celebra a diversidade étnica
no mundo globalizado garantindo acesso a direitos especiais e tratamento diferenciado,
alterando-se apenas o fato de serem hoje afirmadas positivamente e antes discriminadas.

Para Véran, a questão do balanceamento do poder buscado no mundo pós-


colonial evidencia que estas demandas de repatriação de objetos e símbolos não estaria,
no entanto, questionando a relação entre conhecimento e poder. Assim, o que estaria
silenciado nestes debates seria o fato de que a luta pelos direitos nativos de falarem por
si mesmos de sua própria história e de controlar os elementos e usos de sua própria
herança cultural, bem como as respostas “politicamente corretas” a elas, “baseiam-se na
episteme implícita de que coisas podem e devem ser ordenadas, ou melhor, reordenadas,
e dessa vez da forma correta.” (Ibid. p.249). Véran explicita que “a repatriação em si
mesma é limitada em sua possibilidade de transformação da relação entre antropologia e
povos indígenas devido a suas premissas ontológicas orientadas para o objeto” (Ibid.
p.249). Ao demandar controle total sobre as representações feitas sobre sua cultura, uma
vez que os direitos indígenas implicam em restrições à observação e estudo de certos
elementos culturais, reificariam a lógica ocidental que os reduz à objetificação
científica. O que move estas demandas hoje não seria então a necessidade de
observância de costumes particulares, mas sim a exacerbação e instrumentalização de
um discurso antropológico ultrapassado.
128

Os próprios Maori já foram analisados dentro de uma perspectiva similar. O


artigo “The making of the Maori: culture invention and its logic”, de Allan Hanson
(1989), explora formas de construção do que se conhece como “cultura maori” por meio
da analise de elementos trazidos por antropólogos, membros do governo e pelos
próprios Maori. Hanson pretendia mostrar que culturas não são realidades estáveis que
passam de geração em geração e que a “invenção da tradição” responde a diferentes
propósitos, envolvendo questões de legitimação, variando assim de acordo com “quem a
inventa”. Importantes traços da cultura e história maori são questionados pelo autor,
inclusive o movimento chamado Maoritanga ou Maoriness, que, para superar as
tentativas assimilacionistas do governo e reforçar o projeto de constituição de uma
nação bi-cultural, estaria focando seu discurso cultural em aspectos considerados
ausentes ou decadentes entre os brancos, tais como a espiritualidade e a relação íntima
com a natureza.

O autor aponta a legitimação generalizada de teorias como a das sete canoas


polinésias que teriam povoado inicialmente o país, como uma construção, que
acompanha outros movimentos como a exposição Te Maori, de 1984, na qual, pela
forma de apresentação dos objetos, conseguiu-se de forma definitiva apresentar os
objetos maori como tendo uma dimensão espiritual além do valor artístico. O sucesso da
exposição reforçou a percepção identitária maori e aumentou o respeito dos brancos em
relação a eles permitindo o surgimento da noção de “propriedade cultural”, decisiva
para a valorização do pertencimento tribal e para os objetivos da Maoritanga de trazer a
“herança” maori para o controle maori.

O objetivo de Hanson era exemplificar os mecanismos por meio dos quais uma
cultura se inventa e cria, no processo, uma realidade. O autor afirma que a tarefa da
Antropologia é perceber de que forma interfere ela mesma neste processo e analisar os
processos de legitimação desta construção, lembrando sempre que se trata de um
processo seletivo e guiado por interesses. Apesar de estar em consonância com
trabalhos de diversos autores contemporâneos, o argumento de Hanson gerou grandes
polêmicas e reações explosivas, assim como o artigo de Kuper citado acima.

Henare (2005) aborda o impacto do artigo publicado por Hanson


internacionalmente e na Nova Zelândia. Muito bem recebido enquanto um “exemplo
lúcido da crítica antropológica pós-moderna” por importantes autores, foi visto por
129

antropólogos e ativistas maori como altamente irresponsável. Os argumentos presentes


no artigo levaram a um aparecimento massivo na imprensa neozelandesa de matérias
deslegitimando demandas e conquistas de direitos dos Maori, que tiveram a
Antropologia por muito tempo como grande parceira. A autora chama atenção para a
necessidade de se rever os aspectos éticos e a implicação política de desconstruções
antropológicas como esta que se pretendem exteriores às forças políticas em jogo, mas
que certamente não o são.

Clifford (1994) já apontava para uma objetificação da cultura por parte dos
próprios antropólogos, ao estudá-la como um objeto passível de ser possuído,
apresentando o pesquisador como um “colecionador de culturas”. Esse tipo de reflexão
sobre o próprio fazer antropológico foi o que levou a disciplina a questionar seus modos
de representação e construção da imagem do “Outro”, buscando caminhos mais
autorreflexivos, nos quais culturas são entendidas como produtos dinâmicos e
relacionais de sujeitos que a “imaginam”, inventando-as constantemente num processo
dialético (Gonçalves e Head, 2009). Vemos atualmente a antropologia se esforçar em
compreender os usos deste termo a partir de sua objetificação por parte dos “nativos”
sem perder de vista as diferenças entre essa versão e as desconstruções do conceito
realizadas em sua fase “pós-moderna” (Carneiro da Cunha, 2009). Este caráter dialético
da visão pós-moderna de cultura se estende à própria ideia de representação, uma noção
complexa que não teremos tempo de explorar mais profundamente. O que pretendo reter
desta discussão é que, finalmente, nem a representação feita pelos antropólogos, nem
aquela feita pelos próprios nativos e nenhuma representação cultural apresentada em um
museu será jamais completa e “verdadeira”, levando-se em conta que esta suposta
“realidade” já não é mais considerada algo acessível ou mesmo existente (Gonçalves e
Head, 2009).

É a partir desta perspectiva dialógica que o episódio da restituição dos crânios


deve ser compreendido aqui; Não pretendo tratar de “invenção da tradição” de um ponto
de vista do “falso”, apenas propor que olhemos para este caso pelo ponto de vista das
forças, discursos, atores e imagens atuantes no presente momento. Ao se tentar explicar
fenômenos contemporâneos apenas por meio do passado, pode-se perder o foco
desejado. Henare aponta para o fato de que existem registros, tanto europeus quanto
maori, de que muitos objetos que se encontram hoje espalhados pelo mundo foram
trocados em transações voluntárias e recíprocas, mas que isso não invalida as demandas
130

de repatriação “que podem ter muito mais a ver com almejos contemporâneos do que
com uma correção do passado”85 (Henare, 2005, p.48). Ao contrário, sugere que “as
relações entre indígenas e europeus, incorporadas em seus artefatos que estão nos
museus, podem continuar a ser ativamente cultivadas e mantidas por meio de novas
trocas [...]”, como em certos casos de devolução de objetos. (Ibid.).

A exposição Maori no museu francês atua como uma imagem específica da


cultura maori que está intimamente ligada ao processo da devolução dos crânios e pode
deste modo ser percebido como uma situação de troca. Na prática, trata-se de uma troca
entre instituições, entre dois grandes museus de países desenvolvidos, que diferem em
muitos aspectos importantes, mas que souberam encontrar denominadores comuns.
Nossa tarefa de delinear as intencionalidades presentes na exposição Maori serve para
mostrar o quanto foi forte seu papel de objeto mediador dessa relação de troca, deste
encontro cultural, desse “diálogo”. “Maori. Seus tesouros têm alma” não é apenas um
discurso, uma voz dentro desse “diálogo”, traz em sua materialidade a concretude de
uma situação relacional e, mais do que mostrar coisas, ela faz.

3.1.2 Sacralidade Modernista e amnésia museal

O caso da demanda de restituição dos crânios maori não foi o único episódio a
lançar luz sobre a controversa história da coleção do Museu do quai Branly. Como
vimos, no caso de objetos que são restos mortais humanos, a possibilidade de restituição
pode ser vislumbrada, ainda que com dificuldade. Outros objetos apresentam mais
obstáculos. Mas a restituição não é a única questão levantada. As origens das coleções
que hoje pertencem ao museu representam também as relações desiguais entre a França
e países não ocidentais que se reproduzem ainda hoje, nas quais os objetos
desempenham papel importante.

Na ocasião da abertura do museu, em 2006, a socióloga Aminata Traoré fez uma


denúncia impactante, por meio de uma carta publicada no jornal francês Libération.
Quando ocupava o cargo de Ministra da Cultura do Mali, foi procurada pela Ministra da
Cultura francesa com a intenção de que seu país efetuasse a compra de uma estátua Tial,
propriedade de um colecionador belga e que provavelmente teria saído ilegalmente do
Mali, para doar ao Museu do quai Branly. Traoré percebe a situação como uma
85
“[...] may have as much to do with contemporary aims as with the redress of past wrongs. On the
contrary, it suggests that relationships between indigenous peoples and europeans, embodied in their
artifacts held in museums, may continue to be actively cultivated and manteined through the exange”.
131

operação de “lavagem” (blanchissement) e pede que a própria França compre a peça e


proceda à restituição dela ao Mali que poderia empresta-la ao museu. Sua proposta foi
negada com a justificativa de que o dinheiro do contribuinte francês não servia para
estes fins. Após deixar o cargo, soube que a transação se passou de fato como havia
solicitado o governo da França.

Lagrou (2008) analisou este episódio mostrando como é bastante representativo


da tentativa de separação entre valorização estética e política internacional na França, e
o quanto a maneira pela qual os europeus vêm valorizando objetos vindos de outras
culturas evidencia esta lógica. Na carta, Traoré chama atenção para o fato de que a
França aprovava no mesmo momento da inauguração do museu a Lei de Imigração
seletiva (Loi de l’immigration choisie), que restringia ainda mais a entrada de
imigrantes no país. Segundo ela,

“(...) eu retenho o Museu do quai Branly como uma das perfeitas expressões destas contradições,
incoerências e paradoxos da França em relação à África. No momento em que este abre suas
portas ao público, continuo a me perguntar até onde irão as potências deste mundo na arrogância
e roubo de nosso imaginário. Somos convidados hoje a celebrar junto com a antiga potência
colonial, uma obra arquitetural incontestavelmente bela, assim como nossa própria decadência e
a complacência daqueles que, atores políticos e institucionais africanos, estimam que nossos
bens culturais estão melhor nos belos edifícios do norte do que sob seu próprio céu. O Museu do
quai Branly é fundado, de meu ponto de vista, sobre um profundo e doloroso paradoxo, a partir
do momento em que a quase-totalidade dos africanos, ameríndios, aborígenes da Austrália, cujo
talento e a criatividade são celebrados, jamais cruzarão suas portas devido à lei da imigração
seletiva.”86

O Museu do quai Branly nasce com o propósito de ser um local de diálogo, mas
desconectado de uma possibilidade de diálogo político, de alteração das posturas
colonialistas europeias frente aos outros continentes, especialmente suas antigas

86
(…) je retiens le Musée du quai Branly comme l’une des expressions parfaites de ces contradictions,
incohérences et paradoxes de la France dans ses rapports à l’Afrique. A l’heure où celui-ci ouvre ses
portes au public, je continue de me demander jusqu’où iront les puissants de ce monde dans l’arrogance et
le viol de notre imaginaire. Nous sommes invités, aujourd’hui, à célébrer avec l’ancienne puissance
coloniale une oeuvre architecturale, incontestablement belle, ainsi que notre propre déchéance et la
complaisance de ceux qui, acteurs politiques et institutionnels africains, estiment que nos biens culturels
sont mieux dans les beaux édifices du Nord que sous nos propres cieux. [...] Le Musée du quai Branly est
bâti, de mon point de vue, sur un profond et douloureux paradoxe à partir du moment où la quasi totalité
des Africains, des Amérindiens, des Aborigènes d’Australie, dont le talent et la créativité sont célébrés,
n’en franchiront jamais le seuil compte tenu de la loi sur l’immigration choisie”.
132

colônias. Dentro do próprio museu, as questões contemporâneas que permeiam as


relações internacionais não são tratadas de forma direta. Como coloca Lagrou,

“Parece que o que se vê no Musée du quai Branly não é uma arte pós-colonial contemporânea
do terceiro mundo e muito menos uma arte que comenta a presença neste mundo do colonizador
[...] são as relíquias de um mundo desaparecido onde ‘dialogam culturas’ dos outros num tempo
mítico de antes do branco chegar. Um ilustre ausente neste diálogo das culturas é o próprio
homem do Ocidente [...] [que] vem ver, mas não é exposto.” (2008, p.221).

A ausência de menção aos processos políticos atuais pode ser vista como uma
continuidade de uma postura de valorização do “exótico”, do “Outro”, fortemente
marcada pelo olhar das vanguardas artísticas do início do século XX, especialmente
pelas escolas do cubismo e depois pelo dadaísmo e surrealismo. Os artistas deste
período, frustrados com o racionalismo europeu que fizera o continente mergulhar em
guerras, buscaram inspiração na produção artística de outros povos, especialmente na
África e na Oceania, para questionar dogmas formais ocidentais. Os traços, formas,
cores e motivos das culturas materiais com as quais começavam a ter contato por meio
de objetos trazidos por colonizadores, associavam-se à uma idealização bastante
genérica do “primitivo” como sendo aquele que não foi contaminado pelos processos
repressivos do Ocidente.

Para alguns artistas renomados dessa época, como é o caso de Picasso, a


apropriação de estéticas “exóticas” ocorreu praticamente apenas no âmbito formal.
Picasso afirmava que “tudo que preciso saber sobre a África se encontra nestes
objetos”87 (Picasso apud L’Estoile, 2007, p.324), o que faz sua abordagem
“radicalmente estrangeira à abordagem etnográfica”88 (L’Estoile, 2007, p.324). Para
outros, alguns declaradamente anticolonialistas, não somente as formas, mas todo um
conjunto de características associadas ao “homem primitivo” contribuíam com a
tentativa de romper com o tradicionalismo europeu. O “primitivo” era visto como a
“infância da humanidade”, alguém que produzia arte livre de cânones, mais próximo
dos instintos e da espontaneidade humana, comumente aproximado às crianças, aos
loucos e aos estados alterados de consciência (Lagrou, 2008; Price, 2000)89. De modo
geral, como afirma L’Estoile (2007, p.323), “as vanguardas partilhavam largamente os

87
“Tous ce que j’ai besoin de savoir de l’Afrique se trouve dans ces objets.”.
88
“Cette démarche est radicalement étrangère à la démarche ethnographique.”.
89
Alguns artistas como Max Ernst iam mais longe na sua identificaçãoo e pesquisa do universo indígena
superando o primitivismo ingênuo que marca a visão da maioria dos Modernistas (Lagrou, 2008).
133

preconceitos de seu tempo. A arte primitiva é valorizada exatamente por encarnar aos
olhos dos artistas e escritores a alteridade absoluta, a antítese do Ocidente”90. Essa
atribuição de características consideradas imanentes aos objetos de arte primitiva é o
que lhe confere valor por transforma-los em “suporte material que permitiu o
desenvolvimento de uma mitologia interna ao Ocidente”91 (Ibid. p.329).

Explorando o percurso de Michel Leiris, escritor, etnólogo e crítico de arte que


fez parte do movimento surrealista, Lagrou (2008) aponta para a importância que
tiveram os museus etnográficos para a sensibilidade destes artistas. As visitas ao Museu
do Homem, do qual o Museu do quai Branly é herdeiro, eram programa obrigatório para
artistas da época. A maioria deles nunca chegou a pôr os pés nos distantes países onde
aqueles objetos foram produzidos, mas alguns, como Leiris participaram de expedições
de coleta de material etnográfico associadas à empreitadas coloniais, contribuindo para
a formação das coleções que hoje compõem o acervo do Museu do quai Branly. Leiris
confessa em seu diário, expondo seus sentimentos paradoxais, diversas situações em
que ele e seus parceiros literalmente roubavam objetos e enganavam os nativos, tudo em
nome da Arte (Lagrou, 2008 e Price, 2000).

Se a prioridade era coletar objetos, ainda que de forma perniciosa, para que estes
pudessem ser vistos na Europa, e isso era mais importante que desenvolver um
conhecimento aprofundado sobre os produtores daqueles objetos, seu trabalho parece ter
tido sucesso e ser bastante reconhecido. Na exposição permanente do Museu do quai
Branly, o chamado Plateau des Collections, o nome de Leiris, assim como os de muitos
outros colecionadores, são os únicos que se pode ler. Numa imensa parede que ladeia a
escada que dá acesso ao andar inferior do museu uma infinidade de nomes estão
gravados. São os nomes dos colecionadores, patronos e donatários responsáveis pela
constituição da coleção do Museu do quai Branly e viabilização de seu projeto.

O Plateau des Collections é o maior espaço expositivo do museu, e chegamos a


ele passando por uma longa rampa onde nomes de tribos e de cidades de todo o mundo
não europeu são projetadas no chão92. Ao fim da rampa, a luminosidade diminui e
adentramos o enorme pavilhão que comporta a exposição permanente. Cortando ao

90
“Les avant-gardes partageaient largement les préjugés qui étaient ceux de leur temps. L’Art primitf est
valorisé précisement parce qu’il encarne aux yeux des artistes et écrivains l’altérité absolue, l’anthitèse de
l’Occident.”.
91
“support materiel permettant le développement d’une mythologie interne à l’Occident.”.
92
Trata-se da instalação multimídia “The River”, concebida por Charles Sandison.
134

meio o espaço, há um longo corredor sinuoso revestido de couro marrom, chamado La


Rivière (O Rio) ou Le Sérpent (A Serpente). Nas paredes deste corredor há informações
em braile, desenhos, mapas e alguns pequenos alto-falantes nos quais se pode ouvir
trechos dos diários e relatórios de exploradores, missionários e etnógrafos que
participaram de expedições coloniais, como a famosa Missão Dakar Djibouti,
coordenada por Marcel Griaule e integrada por Leiris e outros pesquisadores, que
atravessou o continente africano, do Senegal à Etiópia coletando dados e objetos. Essa é
a única menção ao processo de composição da coleção etnográfica francesa presente na
exposição.

Figura 47: Passarela que dá acesso ao Plateau des Collections do Museu do Quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci.
©museeduquaibranly

Figura 48: Vista do Plateau des Collections, que abriga a exposição permanente do Museu do quai Branly. Foto:.
©museeduquaibranly
135

Figura 49: “La Rivière”, o corredor que atravessa o Plateau des Collections, oferece informações táteis e em braile para deficientes
visuais. Foto: Pomme Célarié ©museeduquaibranly

A coleção francesa de objetos dos “outros” se constitui à medida que a expansão


colonial progride e novos pedaços do mundo são anexados ao domínio imperialista. O
colecionamento dos objetos encontrados em regiões longínquas guiava-se por algumas
premissas concomitantes como o mapeamento das invenções humanas, percebidas de
um ponto de vista universalista, a classificação destes produtos segundo lógicas
evolucionistas que hierarquizavam as sociedades ou difusionistas que buscavam traçar a
história dos contatos e empréstimos desta humanidade universal. Ciência do Homem e
expansão colonial caminhavam de mãos dadas, e as afirmações destas correntes de
pensamento justificavam as investidas “civilizatórias”.

No plano simbólico, possuir os objetos era possuir as culturas, por meio de sua
compreensão enquanto um todo coerente e objetivo (Clifford, 1994). Como mostra
Gonçalves (1996), a construção de uma história coerente e objetiva, assim como de
noções como a de “nação”, “cultura” ou “identidade”, transforma-a em um objeto de
desejo distante, algo que deve ser buscado, pois foi ou está sendo perdido, no processo
inexorável do “progresso”. No plano concreto, essa “retórica da perda” estimulava o
colecionamento de objetos fabricados por culturas que fatalmente desapareceriam, ainda
que, paradoxalmente, fossem estes mesmos colecionadores os responsáveis pelo suposto
desaparecimento delas por meio da repressão colonial e ambição civilizadora.

Acompanhando as mudanças dos objetivos e relações coloniais bem como das


teorias desenvolvidas nas Ciências Humanas, especialmente na Antropologia, que em
seu início era extremamente ligada aos museus, as categorizações dos objetos coletados
vão se alterando. A genealogia do colecionamento, exibição e, portanto, categorização
de objetos estrangeiros na França, desenhada por L’Estoile (2007) mostra como o
“gosto pelo Outro” passou por diversos estágios até chegar à forma expressa no Museu
do quai Branly. Alternando diversas vezes entre “maravilhas” e sinais de primitividade,
estes objetos vêm compondo coleções de cabinets de curiosités, museus coloniais,
exposições universais, feiras de entretenimento, museus etnográficos e galerias de arte.
A constituição do Museu do quai Branly, segundo o autor, não seria mais que uma
atualização destas diversas facetas que apresentam os objetos do “Outro” para definir o
“Nós” com base em uma oposição negativa.
136

Muito já foi dito sobre o Plateau des Collections, que abriga a exposição
permanente do Museu do quai Branly, talvez por ilustrar tão bem as críticas feitas ao
projeto de concepção do museu, mas certamente também por ser o único elemento
analisável desde o início, e a maioria dos trabalhos de antropólogos sobre o museu foi
publicada quase imediatamente após sua inauguração. James Clifford (2007, p.30, 31) o
descreveu como um lugar onde “a dominação da arquitetura sobre o conteúdo é
extrema. Entramos no alto de uma longa rampa de acesso encurvada que mergulha
subitamente na obscuridade (semelhante à entrada de um parque temático) e emergimos
num mundo incerto, povoado por formas impressionantes, às vezes mesmo
misteriosas.”.93

Entre as descrições feitas por pesquisadores, encontramos quem diga que o


Plateau seja como uma “caverna de Ali Babá”94 (Chaslin, 2007, p.44), um “labirinto
saturado”95 (Bernand, 2007, p.165), um espaço “muito sombrio” no qual paredes de
vidro cobertas por imagens translúcidas de vegetação criam “uma fantasia ocidental e
convencional da floresta tropical”96 e nichos em forma de caverna lembram os mesmos
clichês da exposição de arte africana planejada pela Disney nos anos 1980 (Vogel,
2007, p. 179, 185, 186), de um “exotismo ingênuo e kitsch”, onde reina um clima
“sepulcral semi-tenebroso [...] condenando os objetos ao mutismo [...] iluminados
artificialmente favorecendo o surgimento teatral de certas peças e conferindo a outras
uma presença fantasmagórica”97 (Choay, 2007, p.60, 61). A lista de críticas
criativamente adjetivadas escritas por antropólogos, jornalistas e críticos de arte poderia
continuar por algumas páginas...

O Plateau é um espaço de 5.300 m2 onde temos acesso a quase 3.500 objetos.


Muitos, mas menos de um décimo da coleção de mais de 300.000 peças pertencente ao
museu. A exposição é organizada geograficamente, por áreas culturais. A divisão entre
os quatro continentes representados no museu é demarcada apenas pela cor do linóleo

93
“[...] la domination de l’architecture sur le contenu est extreme. On entre au sommet d’une longue
rampe d’accès incurvée qui plonge soudain dans l’obscurité (um peu comme a l’entrée d’une atraction
foraine [fun house] et émerge dans un monde incertain peuplé de formes frappantes, parfois
mysterieuses.”.
94
“caverne d’Ali Baba”.
95
“Labyrinthe sature”.
96
“trop sombre [...]. [...] une fantasie occidentale et conventionelle de la forêt tropicale.”.
97
“[...] d’un exotisme à l’occurence à la fois naïf et kitsch. [...] sépucrale [...] semi-ténèbres [...] les objets,
condamnés au mutisme [...] un éclairage entièrement artificiel, qui favorise le surgissement théatral de
certainess pièces e confere aux autres une présence fantomatique”.
137

que cobre o chão. O espaço da África é amarelo, o da Ásia é laranja, as Américas têm o
chão azul e a Oceania vermelho, todos em tons queimados criando um aspecto rústico.
Os espaços não são separados por divisórias e a forma de exibição dos objetos –
pedestais, vitrines, iluminação e formato das placas de legendas - praticamente não
difere. Esta configuração parece sugerir, como aponta Launay (2007, p.56), a intenção
de “simbolizar uma certa unidade do mundo, uma abertura das culturas, que se
encontram unidas em um mesmo e único espaço de exposição”98. As únicas partes
separadas do espaço são pequenas salas de exposição que ficam dentro dos cubos
projetados por Nouvel, aqueles que vemos do lado de fora, na fachada do museu. Estes
costumam ter iluminação bastante baixa e concentrar peças selecionadas de acordo com
alguma temática.

Figura 50: Planta da exposição permanente do Museu do quai Branly, dividida por áreas geográficas/culturais. Foto: Nina Vincent
Quando voltei ao quai Branly durante meu período de trabalho de campo, prestei
atenção particular à parte da Oceania, já que conta com objetos produzidos pelos Maori
da Nova Zelândia, aqueles que não foram utilizados para compor a exposição “Maori.
Seus tesouros têm alma”, já que esta foi toda montada com objetos vindos do Museu Te
Papa Tongarewa. Curiosamente, a coleção de objetos da Oceania é a maior do museu.

98
Le décloisonnement de la galerie symboliserait une certaine unité du monde, un décloisonnement des
cultures qui se retrouvent unies dans un seul et même espace d’exposition.
138

Um dos itens mais vistos na Exposição Maori na Galeria Jardim era, sem dúvida, o hei
tiki, pingente antropomórfico, reprodução estilizada do corpo de um ancestral. Alguns
destes pingentes estão entre os primeiros artefatos maori levados para a Europa99.
O hei tiki é um dos poucos objetos presentes na exposição Maori que pode ser
visto também na exposição permanente do Museu do quai Branly. O exemplar de hei
tiki no Plateau des Collections tem as dimensões da palma de uma mão e encontra-se
misturado a vários outros objetos expostos em uma vitrine vertical pouco iluminada,
sustentado por um prego contra um fundo preto e acompanhado de uma numeração que
indica a pequena legenda que o identifica como um pingente maori da Nova Zelândia do
início do século XIX, cujo produtor se desconhece, figurando apenas o nome do
colecionador a quem pertencia – Dominique de Vivant-Denon – antes de chegar ao
Museu de Artes da África e Oceania. Esta apresentação difere bastante de sua
onipresença no museu francês observada durante a exibição da exposição Maori, que
contava com um hei tiki no cartaz principal, cuja reprodução foi espalhada por toda a
cidade, em espaços publicitários do metrô e das ruas parisienses e nas fachadas do
museu. Exemplares de hei tiki de diversos tamanhos, além de sua imagem reapropriada
em diversas obras, povoam todo o percurso da exposição. O pingente verde figura
também em capas de livros e revistas, em cartões postais e ímãs vendidos na lojinha de
souvenires.

99
Quando o capitão britânico James Cook fez as primeiras grandes viagens de exploração pelo Oceano
Pacífico, no século XVIII, e chegou ao território que viria a ser a Nova Zelândia, marcando oficialmente
o primeiro encontro entre europeus e maoris, levou para a Inglaterra diversos objetos que havia trocado
com os nativos da região. Um deles especificamente, um pingente hei tiki de jade de uso pessoal do
capitão, foi oferecido por ele como presente, demonstração de amizade e gratidão ao Rei George III
(Henare, 2005, p.43).
139

Figura 51: Objetos maori na exposição permanente do Museu do quai Branly. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly

Figura 52: Cartaz da Exposição Maori no metrô de Paris. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly

Figura 53: Pingente Hei Tiki pertencente à coleção do museu. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

O aspecto “sagrado” deste objeto construído na exposição Maori está bastante


distante do que pode ser inferido pela forma de apresentação que recebe na exposição
permanente do museu. No Plateau des Collections, como praticamente não há paredes,
as placas que contém as legendas e mapas que contextualizam os objetos estão
posicionadas na lateral das grandes vitrines ou no chão, na altura dos tornozelos,
bastante distanciadas dos objetos. As informações são escritas com letras pequenas,
difíceis de ler na penumbra, e contém, geralmente, pouca informação, como os materiais
utilizados, alguma menção ao uso do objeto, proveniências inexatas e datas
aproximadas. O que nunca falta é a menção às coleções, particulares ou públicas, das
140

quais os objetos foram obtidos, por compra, transferência ou doação. Assim, podemos
dizer que foi feita uma escolha de minimizar a contextualização na exposição
permanente. Muitos críticos apontaram a seleção de objetos e a forma de apresenta-los
neste espaço como sendo regida por critérios puramente estéticos.

Porém, acredito que, analiticamente, a contextualização pode vir de outros


fatores e levar a outros tipos de conclusão, diferentes daquelas almejadas pelos
etnólogos frustrados com a falta de informação no espaço. A ideia de que a ausência de
contextualização é necessária ao processo de alteração do status de objetos etnográficos
introduzindo-os na categoria de Arte já foi amplamente discutida100. Mas o Plateau des
Collections se revela mais complexo. As informações escolhidas para serem
apresentadas pela instituição que abriga a coleção já são uma forma de contexto que
determina a classificação dos objetos (Mack In Latour, 2007)101. Este espaço expositivo
está longe de ser uma galeria no estilo “cubo branco” na qual são exibidos objetos
impactantes da Arte Primitiva. Há ali uma mistura de diversas referências. Para
compreender a imagem geral construída pela exposição, devemos continuar em nossa
tentativa de levar em conta os diversos aspectos estéticos articulados e intencionalidades
materializadas.

A arquitetura interna do museu é bastante marcante e impositiva. Price afirma,


com base nas entrevistas com funcionários do museu realizadas por ela, que as escolhas
curatoriais foram bastante limitadas pela concepção do arquiteto Jean Nouvel, que
projetou não somente a estrutura do edifício do museu, mas também suas características
internas. As vitrines, sua disposição e tamanhos, foram todas previamente estabelecidas
por Nouvel. A luz, a disposição espacial, a altura do pé direito dos mezaninos – que não
comportam objetos que tenham mais de 1,5m de altura – o fluxo do percurso dos
visitantes, os pontos que deveriam permanecer livres para não atrapalhar a vista para a

100
Este tema é especialmente discutido em Price (2000). A autora mostra como o chamado “bom gosto”
Ocidental acredita que o objetivo de um objeto é a apreciação estética pura, uma “tarefa” exclusivamente
sensorial e realizada de forma mais apurada por pessoas que teriam uma capacidade “inata” de perceber o
valor estético. Para essas pessoas, os connaisseurs, a contextualização, especialmente feita sob forma
escrita ao lado das obras de arte, poluiria e interferiria com a experiência da fruição estética.
101
Mack afirma que: “(...) talvez a questão [da distinção entre objeto de arte e objeto etnográfico] se
coloque menos em termos de objetos do que em termos de tipo de instituições nas quais o objeto é detido
ou exposto” (Mack In Latour, 2007, p.22).
141

Torre Eiffel, entre outros aspectos arquiteturais, inviabilizaram muitas das propostas dos
antropólogos e museólogos envolvidos na concepção da exposição (Price, 2007)102.

102
A autora conta sua experiência pessoal quando, em encontro com o responsável pelo continente
americano no museu, corrigiu a legenda e o posicionamento de uma capa bordada vinda do Suriname. A
capa deveria ser exibida na horizontal e não na vertical. Suas considerações foram acolhidas, mas na
configuração final da exposição, a capa permaneceu na vertical pois a vitrine na qual foi instalada não
podia ser modificada, pois havia sido concebida daquela forma por Nouvel, tendo sido acrescentada uma
placa explicando a “errata”. (Price, 2007)
142

Figuras 54, 55, 56, 57: Diferentes formas de exibição de objetos no Plateau des Collections, exposição permanente do Museu do
quai Branly. Foto: Nicolas Borel (54)/Cyril Zannettacci (55)/Claude Germain (56)/Pomme Célarié (57) ©museeduquaibranly

Caminhamos por um espaço regado por uma luz baixa, com grandes paredes
laterais feitas de vidro e cobertas por adesivo vinílico translúcido estampado com
folhagens, passamos por cavernas de couro, nos perdemos por continentes e nos
deparamos com objetos de todos os tamanhos, alguns grandes e isolados e outros que se
perdem em imensas vitrines abarrotadas. O “estilo” da exposição permanente do Museu
do quai Branly seria melhor definido como uma “fantasia primitivista” do que como
uma galeria de Arte Primitiva. O primitivismo não é apenas um termo pejorativo, um
adjetivo, é considerado pela História da Arte como uma corrente artística, especialmente
desenvolvida pelos artistas surrealistas e cubistas, como já vimos.

Figura 58: Plateau des Collections, zona “Ásia”. Foto: Cyril Zannettacci ©museeduquaibranly
143

Figura 59: Plateau des Collections, esculturas africanas. Foto: Cyril Zannettacci. ©museeduquaibranly

Além de caracterizar a busca de inspiração de artistas europeus na cultura de


outros povos, podemos recorrer a um exemplo marcante do Primitivismo traduzido em
termos de projeto curatorial. A exposição Primitivism in 20th Century Art: affinity of the
tribal and the modern, exibida no Museum of Modern Art (MoMa) em Nova York no
ano de 1984, apresenta no discurso e na forma de apresentação dos objetos, ideias que
persistem até hoje e que fazem deste termo mais que um movimento historicamente
datado. Exibindo de forma justaposta objetos etnográficos de várias partes do mundo e
obras de artistas de renome internacional, como Picasso, Gaugin, Matisse, Ernst, a
exposição mostrava as “afinidades” e semelhanças entre objetos tão diversos. As
semelhanças não eram apresentadas como coincidências, mas como uma genialidade
modernista em compreender elementos universais da expressão estética humana. Como
disse Clifford “O modernismo é assim apresentado como uma busca por “princípios
formadores” que transcendem cultura, política e história. Sob este generoso guarda-
chuva, o tribal é moderno e o moderno mais rico e mais diversamente humano.”103
(Clifford, 1985, p.191).

103
“Modernism is thus presented as a search for ‘informing principals’ that transcend culture, politics and
history. Beneath this generous umbrela, the tribal is modern and the modern more richly, more diversely
human.”.
144

Figura 60: Cartaz da exposição “Primitivism”, MoMA, NY. Fonte:africapicasso.wordpress.com

Nesta exposição no MoMA, exibidos sem contextualização alguma, os objetos


de Arte Primitiva ganham status ao serem destacados por suas qualidades estéticas, mas
não apenas isso. Segundo Price (2000), ainda que todos saibam que as máscaras
africanas expostas ali foram produzidas muito antes de Les demoiselles d’Avignon de
Picasso, o quadro do pintor é percebido como o original, e o valor atribuído à mascara
passa a ser o de cópia, uma vez que os visitantes a apreciam por sua semelhança com a
pintura, já suficientemente estabelecida em suas mentes. Picasso seria genial justamente
por produzir algo inspirado na máscara, mas de forma intencional, elemento crucial para
a concepção de criação artística no ocidente. Essa forma de exibir Arte Primitiva,
elevando seu status pela valorização de seus aspectos formais e pela função que
desempenhou no modernismo se tornou extremamente popular na Europa, considerada
por muitos como uma forma justa de valorizar objetos de outras culturas.

A exposição permanente do Museu do quai Branly não é oficialmente assinada.


Esse é um elemento importante nesta análise, pois aponta para uma estratégia
museográfica que pretende apresentar esta exposição como “neutra”, como algo dado,
aparentemente livre de intenções, ou, como sugeriu positivamente Anne Christine
Taylor, “uma reserva aberta”104. Ao longo deste trabalho, estamos apontando, de
diversas formas, para a impossibilidade de tal premissa. A exposição permanente é,

104
Taylor, comunicação pessoal. Entrevista realizada no Museu do quai Branly em dezembro de 2011.
Taylor afirmou que a exposição permanente vem sofrendo modificações e que “deve passar a ser vista
cada vez mais como uma reserva aberta”.
145

evidentemente, fruto da colaboração de muitas pessoas. Além dos aspectos claramente


atribuídos à arquitetura de Jean Nouvel, estão por trás dela muitos funcionários, em sua
maioria antropólogos, que compõem as equipes das chamadas Unitées Patrimoniales,
uma para cada continente e mais uma responsável pela coleção de documentos e
iconografias históricas. Mas todas essas pessoas trabalharam na concepção da exposição
de cada área geográfica seguindo uma linha, uma proposta de museografia estabelecida
pelo Diretor Museológico, escolhido pelo então presidente Jacques Chirac durante a
concepção do projeto do museu, Germain Viatte.

Formado em letras pela Sorbonne e em História da Arte na École du Louvre,


Viatte tem um longo percurso de atuação em museus franceses, sendo reconhecido
especialmente por seu trabalho no Centre Georges Pompidou, no Musée Nacional d’Art
Moderne e no Musée des arts Africains, Oceaniéns et Américains. A presença de Viatte
dirigindo a concepção museológica da instituição é apontada por alguns autores como
uma evidência da intenção do projeto de criar um museu “de verdade”, quer dizer, um
museu de Arte, alterando assim o status dos objetos antes vistos como “simplesmente
etnográficos” nos museus que habitavam anteriormente. Viatte declarou sua afinidade
com a concepção de Jean Nouvel, declarando que: “Para afirmar uma nova definição de
um museu de culturas não ocidentais, era necessário um museu absolutamente
contemporâneo, afastado de nosso passado colonial e do estilo dos anos 1930, uma
construção inspiradora, que possa aparecer como um instrumento sem precedentes de
descoberta e de interrogação.”105 (Viatte apud L’Estoile, 2007, p.404).

Germain Viatte, que pode ser considerado o curador da exposição permanente


do museu, é um especialista no Primitivismo modernista. Isso certamente é visível na
museografia desenvolvida para o Museu do quai Branly. Os objetos selecionados para a
exposição permanente são majoritariamente tridimensionais – esculturas e máscaras – e
esteticamente impactantes. A ausência de maiores contextualizações corrobora a adoção
do estilo modernista. Como vimos, há mais na paixão modernista pelo primitivo do que
apenas apreciação formal, há também a construção de todo um universo mítico em torno
da figura do “selvagem”. Esta fantasia é o que está presente no Plateau des Collections
por meio dos elementos expográficos empregados, como a luz, as cores, e a forma de

105
“Pour affirmer une nouvelle définition de musée des cultures non-occidentales, il fallait un musée
absolument contemporain, dégagé de notre passée colonial et du style des années 1930, un batiment
inspirant, qui puisse apparaître comme un outil sans precedent de découverte et d’interrogation.”.
146

introduzir informações. Alguns objetos contam com legendas um pouco maiores,


complementadas por informações oferecidas no áudio-guia, geralmente interpretando as
expressões faciais e posições corporais de figuras antropomórficas com adjetivos como
“expressam medo”, “numa posição de perdão”, “representam a virilidade” etc., típicas
do olhar ocidental sobre obras de arte e provavelmente pouco relacionadas com as
pesquisas documentadas sobre as interpretações nativas dos objetos.

O público que frequenta a exposição permanente é bastante diverso, há pessoas


desenhando, inspiradas nos objetos expostos, visitantes em grupos ou sozinhos, de todas
as idades, mas frequentemente muitas crianças. Certa vez conversei com algumas
crianças que vinham de outra cidade num passeio escolar e que preenchiam uma ficha-
tarefa fornecida pelos educadores do museu. A tarefa consistia em encontrar
determinados objetos ou identificar elementos de um objeto dado, por exemplo, “o que
falta nesta máscara para ser completa, nariz, olhos?”, perguntei se tratava-se de um jogo
e a resposta soa curiosa se traduzida literalmente: “é um controle”106. Os meninos me
disseram que gostaram do museu, ainda que às vezes encontrassem “coisas muito
bizarras!”, que “davam medo” especialmente por que em algumas partes “estava muito
escuro...”.
A iluminação baixa, que é ainda mais reduzida em certas partes que apresentam
a África, tem sido apontada como um dos principais elementos da crítica à fantasia
primitivista da exposição, exemplificada pelo correntemente citado artigo “A Heart of
107
Darkness in the City of Light” , pois daria a sensação de que se trata de objetos e
culturas “verdadeiramente estranhas, até mesmo impossíveis de conhecer” (Vogel In
Latour, 2007, p.66). Hoje, após tantas críticas, o diretor de Patrimônio e Coleções
defende o museu:
“E a claridade? Recentes pesquisas de público realizadas no museu mostram que, além da
problemática da proteção às obras, a penumbra provoca um mistério apreciado, sombras
propícias a perder-se em sonhos diante das obras, descobertas e reinventadas por cada um, aqui,
no coração de Paris.”108 (Yves Le Fur, 2013).
Esta forma de apresentar os objetos pouco tem em comum com os museus
etnográficos do passado, austeros e voltados para o conhecimento científico.

106
“contrôle” em francês é a palavra usada para verificações, testes nas escolas.
107
Artigo escrito pelo crítico de arte Michael Kimmelman, publicado no New York Times em 02 de julho
de 2006.
108
Editorial publicado no Dossiê Pedagogique – Plateau des Collections 2013, disponível no site do
museu.
147

Catherine Clément resume bem o paradoxo estético do Plateau:


“Este novo museu está repleto de objetos sagrados que não são considerados como tal quando
são expostos. Mas as iluminações, as vitrines, a atmosfera, a mise-en-scène são feitas para
sugerir uma certa sacralidade, ou ao menos alguma coisa ligada ao sagrado. Tratar-se-ia de uma
sacralidade laica? Talvez. Poderia tratar-se de uma ideia de sacralidade sem nenhum laço com o
caráter sagrado real dos objetos” (Clément In Latour, 2007, p. 146).
Assim, o que vemos no Plateau des Collections seria uma espécie de “sacralidade
modernista”, bastante diferente da sacralidade que tenta transmitir a exposição Maori
sobre seus objetos, ainda que alguns dos elementos, como o uso de vitrines
particularmente, coincida e concorra para o mesmo objetivo.
Na última parte da carta de Aminata Traoré, a socióloga se dirige aos objetos,
chamando-os de “obras do espírito”, evocando a compreensão distinta que povos não
ocidentais têm de seus objetos. Ela diz a eles que “fazem uma falta enorme” e pergunta
se estão escutando os lamentos dos africanos que sofrem com a pobreza e as agruras dos
imigrantes. Se ouvem, continua, “não permaneçam mudos, não sintam-se impotentes.
Sejam a voz de seus povos e testemunhem por eles.”. Os argumentos cristãos anti-
fetichistas responsáveis pela destruição de inúmeros objetos e proibição de tradições
religiosas em países colonizados e catequizados parecem não se aplicar ao fascínio
moderno pelos objetos “exóticos”, já que a sacralidade modernista da exposição
permanente alimenta os
“novos idólatras, os visitantes do Musée quai Branly que vêm adorar as relíquias de um passado
supostamente perdido. Trata-se de um fascínio misturado a uma culpa coletiva por ter a Europa
ajudado a supostamente fazer desaparecer o motor de produção destas imagens consideradas
‘autênticas’” (Lagrou, 2008, p.221).
É esse poder que exercem enquanto fetiches ou ídolos que dá esperança à Traoré de que
possam ser porta-vozes da situação de seus povos.
Mas a informação que se tem sobre a realidade contemporânea dos produtores
daqueles objetos e mesmo sobre os aspectos históricos de sua produção, uso e coleta,
como já dissemos, está bastante minimizada na exposição. O corredor sinuoso de couro
que corta o Plateau abriga também alguns pequenos nichos com aspecto de cavernas
onde se encontram telas táteis interativas. Atribuída à rejeição de se apresentar
informação “demais” nas proximidades dos objetos e ao fato de que “Jean Nouvel
detesta telas” (Colleyn In Latour, 2007, p.55), as cavernas concentram toda a
informação etnográfica disponível. Nas pequenas telas o visitante pode selecionar
documentários sobre rituais, mitos, técnicas artísticas, entre outros aspectos passados e
148

presentes de determinados grupos étnicos que deveriam, segundo Colleyn, mostrar


contrastes entre as formas dos objetos, seu ambiente e as pessoas em torno dele, “que
cria toda a estética para as próprias pessoas” (Ibid, p.54).
Numa das discussões inaugurais do museu, o tema do uso de vídeos foi discutido
e Vogel resume sua importância:
“Então, eu creio que um filme em um museu como este tem o imenso potencial de nos lembrar a
presença e a modernidade, a contemporaneidade dos povos cujos ancestrais ou parentes
fabricaram estes objetos. Eles existem em nosso mundo neste momento.” 109 (Vogel In Latour,
2007, p.52).
Sem entrarmos na discussão das inúmeras possibilidades dos usos de vídeos em museus,
resta apenas dizer que sua potencialidade é bastante desfavorecida pela opção estética
do projeto. As cavernas são pequenas e desconfortáveis, atraindo basicamente crianças
ávidas por todos os tipos de recursos tecnológicos que se possa encontrar num museu,
mas que não parecem prestar muita atenção no conteúdo dos filmes exibidos.
O diretor do museu, Stéphane Martin, faz incansáveis defesas da proposta da
instituição, especialmente do espaço da exposição permanente, ressaltando que “o
conceito deste espaço parte de uma espécie de oposição ao Museu do Homem [que
representava] um substituto de viagem, uma maquete universal das culturas.”110
(Martin, 2007, p.14). Porém, como mostra L’Estoile iniciando seu livro “Le goût des
Autres” com a transcrição do Carnet de Voyage distribuído na entrada do novo museu,
o que é oferecido ao visitante é a velha fórmula do “tour do mundo”, cujo tempo vem
diminuindo – um dia nos slogans de uma Exposição Colonial em 1931, duas horas na
brochura do Museu do Homem e sessenta minutos no “diário de bordo” do museu
Branly. Mas, chama atenção, “não se trata do mesmo mundo: o mundo exterior mudou,
assim como o próprio mundo do museu”111 (L’Estoile, 2007, p.09).

Para o ex-presidente Jacques Chirac, a abertura do novo museu representa uma


passagem do “tempo do desprezo” para o “tempo do reconhecimento”112, oferecendo a
possibilidade de mostrar ao mundo que “os velhos esquemas de dominação que guiaram

109
“Je pense donc qu’un film, dans un musée tel que celui-ci, a le fantastique potentiel à nous rappeler la
présence et la modernité, la contemporaneité des peuples dont les ancêtres ou parentes ont fabriqué ces
objets. Ils existent dans notre monde maintenaint.”
110
“Le concept de cet espace part d’une sorte d’opposition à la proposition du musée de l’Homme [...] qui
représentait peu ou prou um substitut à un voyage [...] maquete universelle des cultures”.
111
“Il ne s’agit pas du même monde: le monde extérieur a changé, tout comme le monde du musée lui
même.”.
112
Termos utilizados por Jacques Kerchache, colecionador, amigo e parceiro do presidente Chirac no
projeto do museu.
149

as relações entre a civilização europeia e as outras não têm continuidade nos dias de
hoje”113 (Chirac apud L’Estoile, 2007, p.31)114, em outras palavras, que com este museu
pode-se “virar a página” do colonialismo. Mas, implícita na forma de exibição adotada
por sua exposição permanente, está uma construção de memória e “memorialização em
museus é sempre seletiva e necessariamente acompanhada por amnésia.”115 (Shelton,
2006, p.487).

113
“Les vieux schémas de domination qui ont pu régenter les relations entre la civilizaton européenne et
les autres n’ont plus cours aujourd’hui.”.
114
Discurso de Jacques Chirac proferido aos participantes de encontro internacional de comunidades
ameríndias, 20 de junho de 1996.
115
“Memorialization in museums is always selective and necessarily accompanied by amnesia.”.
150

3.2 Outros diálogos no Museu do quai Branly


Conferindo centralidade à exposição Maori e à devolução dos mokomokai nesta
pesquisa, pudemos ver o quanto desestabilizaram algumas premissas do Museu do quai
Branly. Pensar o museu não apenas como uma estrutura organizada entorno de uma
coleção, mas sim como lócus e produto de “relações históricas, politicas e morais
contínuas – uma série de trocas carregadas de poder, de empurra e puxa”116 (Clifford,
1997:192) permite vislumbrar seu caráter de “zona de contato” (Clifford, 1997).
“Contato” entendido aqui como uma perspectiva que enfatiza “como sujeitos são
constituídos em e por suas relações um com o outro” (Pratt apud Clifford, 1997, p.192)
criando uma zona de interação “recíproca”, porém jamais igualitária, que instaura
“dimensões improvisadas de encontros coloniais”117 (Ibid.). Assim, é possível
complexificar a proposta do Museu do quai Branly de ser um lugar “onde dialogam as
culturas”, retirando da ideia o caráter harmônico e superficial que permeia a imagem
que o próprio museu veicula.

No entanto, é necessário lembrar que este museu desenvolve muitas atividades


ao mesmo tempo, apresenta diversas exposições, cada uma apontando para diferentes
formas de expor objetos e abordar temáticas, cada uma envolvendo pessoas e objetos de
forma singular. O impacto da exposição maori e da restituição dos crânios talvez ainda
não pode ser sentido, mas, por outro lado, o caráter pontual destes eventos é bastante
claro. A “amnésia museal” da qual sofre o museu em relação ao passado colonial,
praticamente ausente de sua exposição permanente, permeia também outros eventos.

A exposição Maori se encerrou no dia 22 de janeiro de 2012, com a cerimônia


de restituição dos crânios. Em setembro do mesmo ano entrou em cartaz a exposição
Cheveux Chéris: frivolités et trophées118, com curadoria de Yves Le Fur, o diretor do
Departamento das Coleções e Patrimônio do Museu do quai Branly. Esta exposição
abordou a importância dos cabelos, considerados um “tema universal”, enquanto
componentes de personalidade, de concepções relativas à beleza, símbolo de sedução,
suporte de memória, relíquia, talismã e símbolo da perda e da morte. O curador reuniu
objetos de várias partes do mundo, incluindo abordagens do cabelo no Ocidente. Para

116
“ongoing historical, political, moral relashionship – a power-charged set of exchanges, of push and
pull.”.
117
“how subjects are constituted in and by their relations to each other.”; “improvisational dimensions of
colonial encouters”.
118
“Cabelos Queridos: frivolidades e troféus”, em cartaz entre setembro de 2012 e julho de 2013.
151

esta exposição, além de fotografias, pinturas, esculturas, o museu lançou mão da grande
quantidade de objetos contendo cabelos ou feitos deste material de origem humana,
entre eles foram exibidas várias cabeças reduzidas Jivaro/Shuar e escalpos norte-
americanos compondo a seção sobre cabelos enquanto “troféus”, apontando para a
potência post-mortem do cabelo, “destinados a fazer circular uma energia
frequentemente associada à fertilidade, à prosperidade do grupo e às relações
apaziguadas com os Ancestrais.”.

Figura 61: Crânios exibidos na exposição “Cheveux Chéries”. Foto: Gautier Deblonde ©museeduquaibranly

Esta exposição me parece um bom exemplo da considerável independência entre


as atividades do museu. O quai Branly reconheceu o direito dos Maori de reaver os
crânios de seus ancestrais, e o fez em grande estilo. Mas isso não altera a dinâmica geral
da instituição e sua compreensão sobre os objetos que contém matéria de origem
humana, nem mesmo outros crânios, inegavelmente similares aos mokomokai, que
continuarão a ser exibidos sem contestação, a menos que outros grupos manifestem o
interesse e alcancem o poder de pressão e negociação obtido pelos Maori da Nova
Zelândia.

A maioria dos críticos iniciais do museu, como já vimos, concentrou suas


análises sobre a exposição permanente. Após seus primeiros anos de funcionamento, é
preciso reconhecer que o Museu do quai Branly fez algumas modificações, ainda que
sutis, em sua exposição permanente e em suas políticas de regimento interno. Price
reconhece em “Return to quai Branly” (2010) algumas destas mudanças, citando novas
152

placas e legendas, a colocação de mapas e a realização de diversos eventos culturais e


acadêmicos. Alguns dos materiais de divulgação mais recentes do Museu do quai
Branly apresentam o Plateau des Collections por meio de um texto cujo título é: “Uma
exposição permanente?”. Assim, o museu pretende chamar atenção para as mudanças
ocorridas ao longo dos anos na exposição de suas coleções, bem como para a
mobilidade existente no Plateau, ainda que essas alterações sejam bastante limitadas.

Anne Christine Taylor, diretora do Departamento de Pesquisa e Ensino do


museu, afirmou que, desde a abertura, cerca de 60% das vitrines da exposição
permanente foram refeitas e confirma o acréscimo de legendas, especialmente de
mapas, para permitir melhor contextualização dos objetos, além do sutil aumento na
intensidade de luz, especialmente na parte africana. Segundo Taylor, essas mudanças
não são fáceis de notar, pois foram feitas muito progressivamente. O objetivo da atual
equipe do museu é “tornar cada vez mais o mais neutra possível a apresentação dos
objetos de referência, de maneira que seja simplesmente uma espécie de reserva,
evidentemente uma reserva aberta ao público, que o familiarize com os tipos de objetos,
tipos de estéticas, etc.” (Taylor, comunicação pessoal, 2011). Essa busca pela
“neutralidade” na exposição permanente faria com que aparecessem melhor os
“contrapontos” oferecidos pelas exposições temporárias, as quais “efetivamente, mudam
constantemente de olhar” (Ibid.).

3.2.1 Experiências colaborativas

De fato, nas exposições temporárias é que encontramos os indícios de que


outras concepções expográficas acabam penetrando, mais ou menos discretamente, o
discurso hegemônico deste museu. Durante minha pesquisa, percebi que a chave para
uma compreensão mais atual do museu está em suas exposições temporárias, que
ocupam efetivamente metade do espaço expositivo do museu e são tão múltiplas, tão
diferentes entre si, que permitem estabelecer uma série de contrapontos com a
exposição permanente e uma melhor visão sobre a proposta do museu de apresentar
discursos diversificados. Na brochura que apresenta a instituição, diz-se que:

“As exposições temporárias, concebidas por personalidades de horizontes e formações diferentes


– franceses ou estrangeiros – exploram campos vastos e diversificados: grandes temáticas de
civilização, problemáticas da atualidade, mestiçagem e alteridade, imaginários e representações,
153

com níveis de discurso e graus de complexidade bastante diferentes de acordo com os


119
assuntos.” .
Algumas exposições, anteriores à exposição Maori, apontam para estratégias
expositivas mais reflexivas, ou seja, que questionam não somente o tema abordado na
exposição, seu conteúdo, mas também a forma de apresentar os objetos, de construir a
estética expositiva. A questão do “ponto de vista nativo” ou da “participação nativa” foi
trazida por outros curadores do museu. Se na exposição Maori a curadoria foi delegada
a um grande museu já bastante estabelecido em um país onde a população nativa se
encontra fortemente representada no cenário político nacional e diplomático
internacional, este nem sempre é o caso.
A exposição Rouge Kwoma: peintures mythiques de la Nouvelle-Guinée120, por
exemplo, engajou o Museu do quai Branly em uma experiência colaborativa, que teve
como mediadores os curadores da exposição, Magali Mélandri – responsável pela
coleção Oceania do museu – e Maxime Rovere, filósofo. Rovere desenvolvia uma
pesquisa entre os Kwoma, da Papua-Nova Guiné, sobre seus mitos e pretendia publicar
um livro. As ilustrações desenvolvidas por três artistas locais – Kowspi Marek,
Chiphowka Kowspi, and Agatoak Kowspi – para compor o livro foram adquiridas pelo
museu, dando origem a uma missão colaborativa que resultou na exposição. Os
curadores foram à Papua-Nova Guiné, trabalharam na coleta dos mitos, forneceram
material para as pinturas, o que resultou na produção de objetos de arte inovadores –
ilustrações narrativas em tinta acrílica sobre papel – financiaram a construção de uma
casa cerimonial desejada pelos habitantes locais, que serviu ao mesmo tempo aos
interesses internos tribais e ao estabelecimento de um laço entre a população e o museu
francês, e recolheram e documentaram as interpretações e informações sobre os objetos
da região que já compunham a coleção do museu, provendo significações nativas,
nomes dos artistas, datas e regiões de produção.

119
Publicação disponível impressa no museu e em www.museeduquaibranly.fr, na rubrica Dossiê de
Presse
120
“Vermelho Kwoma: pinturas míticas da Nova-Guiné”, exibida entre outubro de 2008 e janeiro de
2009.
154

Figura 62: Ilustrações míticas feitas por artistas Kwoma, da Papua Nova Guiné, para a exposição “Rouge Kwoma”. Foto: Antoine
Schneck. ©museeduquaibranly
A exposição foi concebida em diálogo com a população local, buscando
“trabalhar com eles” e não “falar por eles” (Rovere, 2012, p.5). O curador afirma que “o
objetivo era conceber uma exposição em completa colaboração com os artistas, torna-la
fiel ao estado de espírito deles, à pedagogia kwoma e à sua própria maneira de
apresentar as obras.” (ibid.: 4,5). O percurso da exposição era guiado pelo mito de
origem kwoma e apresentava os novos trabalhos dos artistas contemporâneos kwoma,
bem como os antigos objetos já presentes no museu, desta vez contextualizados pelas
narrativas nativas sobre eles e com os nomes dos artistas que os produziram, a data, seu
clã de origem, etc. Além disso, a exposição abordava este processo colaborativo
explicitamente.
Outro exemplo interessante é a exposição Artistes d’Abomey: dialogues sur un
royaume africain121. Gaëlle Beaujean-Baltzer, responsável pelas coleções africanas,
concebeu esta exposição em parceria com Joseph Adandé, da Universidade de Abomey-
Calavi, e Leonard Ahonon, gestor dos palácios reais de Abomey122. A curadora francesa
concebeu a exposição a partir de objetos da coleção do Museu do quai Branly que não
eram expostos há muitos anos, devido ao mal-estar dos tempos coloniais que evocavam.
A exposição buscava desmistificar a imagem negativa dos reis de Abomey, conhecidos
como escravizadores e promotores de sacrifícios humanos, explorando a relação entre

121
“Artistas de Abomey: diálogos sobre um reino africano”, exibida entre novembro de 2009 e janeiro de
2010.
122
O reino de Dahome, cuja capital é Abomey, fica no atual Benim.
155

os artistas e os reis, bastante particular nesta sociedade. Para qualificar a coleção antiga
que possuía no museu, Baltzer se propôs a atuar como um “prisma de compreensão”
(Baltzer, 2010, p.6), mantendo intenso diálogo com os pesquisadores africanos. As
missões que realizaram juntos permitiram conhecer descendentes dos reis e dos artistas
que produziram cada uma das obras que seriam expostas, tornando possível o foco no
trabalho dos artistas.
A exposição aborda, identificando nominalmente, o pertencimento familiar,
clânico e ligação com a realeza de cada artista. Em seu percurso são exploradas as
distinções entre as artes feitas por eles, seja com relação ao material utilizado ou à
destinação das obras, e o papel dos artistas na construção da imagem que os reis
queriam exibir. O diálogo entre os pesquisadores, que aparece até no título da
exposição, foi longo, e durante os anos acabou por definir a abordagem que seria
proposta de objetos há tanto tempo guardados. Esta colaboração é visível materialmente
na exposição, especialmente no uso de legendas “a duas vozes”, onde o visitante podia
ler uma legenda escrita por Baltzer e outra pelos pesquisadores africanos, oferecendo
dois pontos de vista, duas narrativas ou interpretações diferentes para cada objeto. O
áudio de conversas gravadas entre os pesquisadores e entre eles e os descendentes dos
artistas também compunham a exposição.

Figura 63: Vitrine da exposição “Artistes d’Abomey” com legenda “a duas vozes”. Foto: Antoine Schneck .
©museeduquaibranly
Estes dois exemplos apontam para o interesse e disposição de funcionários do
Museu do quai Branly de qualificar suas coleções e de trabalhar em colaboração com
pessoas e grupos que podem trazer novas perspectivas para as exposições temporárias
do museu. A exposição Maori foi celebrada por ser a primeira experiência de
acolhimento de uma exposição com “curadoria nativa”, mas outras tentativas de
156

diálogos, de “consulta”, de curadoria “compartilhada” ou “colaborativa” vêm sendo


feitas e estes esforços são visíveis nas exposições, ainda que não sejam tão constantes.
Outro exemplo de exposição que aborda um assunto reflexivo e que destoa da
visão geral oferecida pelos críticos do museu é a exposição Exhibitions: L’invention du
sauvage123, exibida simultaneamente à exposição Maori. O curador geral desta
exposição foi Lilian Thuran, ex-jogador de futebol francês que comanda hoje uma
fundação contra o racismo, mas teve como “curadores científicos” os historiadores
Pascal Blanchard e Nanette Jacomijn Snoep, especialistas na temática abordada. Esta
exposição de caráter histórico aborda a exibição de seres humanos considerados
“selvagens” ou “aberrações” na Europa, do início do século XIX até o início do século
XX. O percurso segue uma linha cronológica que mostra como progressivamente mais e
mais indivíduos e famílias eram exibidos no continente e atraíam interesse de públicos
diversos. Foram objeto de estudo das ciências do homem, que buscavam o “elo perdido”
entre o homem e o macaco, ilustravam discursos colonialistas nas grandes Exposições
Universais, eram exibidos para a curiosidade e entretenimento do público europeu nos
Jardins d’Aclimatation e Zoológicos Humanos ou assimilados a pessoas com anomalias
físicas e mentais nos populares Freak Shows.

Figura 64: Entrada da exposição “Exhibitions”. Foto: Gautier Deblonde. ©museeduquaibranly

123
“Exibições: a invenção do selvagem”, em cartaz entre novembro de 2011 e junho de 2012.
157

Figuras 65, 66: Cartazes de “apresentações exóticas” que exibiam seres humanos durante o período colonial. Foto: Fanny
Duval. ©parispelemele

O que há de interessante aqui, é que esta não é apenas mais uma exibição do
Outro, mas sim uma exposição focada em mostrar como o Ocidente exibiu estes Outros.
Embora existam relatos de que algumas destas pessoas exibiam-se voluntariamente e
fizeram disso sua profissão, sabe-se que a maior parte delas era explorada por
empresários e muitos morreram durante sua estadia na Europa devido às péssimas
condições de tratamento e doenças desconhecidas. Mas o que mais choca na exposição é
a violência simbólica, a construção do preconceito. São expostos muitos cartazes e
souvenires dos variados tipos de eventos que exibiam “selvagens”, além de artefatos
científicos, como moldes, desenhos e aparelhos de medição fisionômica, documentos
históricos, além de alguns vídeos muito antigos destas apresentações. Os espaços da
exposição eram escuros e a cenografia apresentava cortinas, como se entrássemos nos
bastidores de um teatro, e espelhos posicionados em locais estratégicos, fazendo com
que víssemos repentinamente nossa imagem refletida e a dos outros visitantes. Alguns
desses espelhos provocavam distorções da imagem, oferecendo aos outros uma imagem
estranha de nós mesmos. “Exibições...” é, portanto, uma tentativa de colocar em cena
um fenômeno que hoje provoca incômodo nos próprios europeus que encaram o
158

passado recente de sua história e que pretende, assim, passar uma mensagem clara
contra os preconceitos e discriminações124.

Mas nem a consulta, colaboração ou participação nativa na concepção das


exposições, nem o teor, a temática abordada são critérios de distinção na classificação
das exposições do Museu do quai Branly. As exposições temporárias, cerca de 60
realizadas até o momento, ocupam diferentes espaços, segundo sua “categoria”: as
Exposições Internacionais na Galeria Jardim (como a Exposição Maori), as Exposições
“Dossiê” no mezanino leste e as Exposições “Antropológicas” no mezanino oeste. As
Exposições Internacionais são geralmente produzidas em colaboração com outros
museus e alternam “a descoberta de grandes civilizações, de produções artísticas e
rituais comunitários, de tradições artísticas pouco conhecidas e de temáticas
transversais”. Para a realização destas exposições, o Museu do quai Branly já trabalhou
em parceria com instituições do México, da Suíça, da Alemanha, da China, da Nova
Zelândia, entre outros. Entre as exposições inseridas nesta categoria encontram-se duas
recordistas de público, Teotiuhacan: cité des dieux (2009/2010) e Maya: de l’aube au
crépuscule, Collections nationales du Guatemala (2011), que atraíram 236 mil e 220
mil pessoas, respectivamente.
As Exposições “Dossiê” (como Rouge Kwoma e Artistes d’Abomey, por
exemplo) permitem apresentar novos olhares sobre a coleção do museu, apresentando
possibilidades de relações entre eles, valorizando a riqueza de certas coleções - como o
acervo histórico, ou de tecidos, por exemplo – ou ainda apresentar o percurso de
determinados exploradores e etnólogos responsáveis pela formação de alguma coleção e
de recentes pesquisas arqueológicas. Estas são as exposições presentes em maior
número entre as temporárias e geralmente têm como curadores funcionários do museu,
responsáveis pelas coleções de determinadas áreas geográficas/culturais, que oferecem
recortes sobre a coleção do museu, mas também têm na montagem das exposições uma
ferramenta para a incorporação de objetos à coleção por meio da aquisição de novas
peças para compor as mostras.

124
Tive a impressão que, apesar da transmissão explicita desta mensagem, especialmente no fim da
exposição, a possibilidade de os visitantes relacionarem a história que viram ali à história da formação da
coleção do Museu do quai Branly não era manifestamente estimulada, apesar de ambos os processos
serem, evidentemente, estreitamente ligados e paralelos, já que no mesmo período, pode-se dizer que
colecionava-se gente e objetos, assustadoramente sem muita distinção. O museu parece se eximir de
explicitar seu papel ou o de seus precursores nesta complexa história de disputas e construções.
159

As Exposições de Antropologia são definidas pela escolha de seus curadores:


antropólogos renomados são convidados pelo museu ou apresentam suas propostas para
conceber exposições que abordem “fenômenos universais”. Oficialmente, segundo a
grande maioria dos documentos e informações institucionais do museu, as Exposições
Antropológicas realizadas até hoje são: Qu’est ce q’um corps? (2007); Planète Métisse:
to mix or not to mix? (2008) e La Fabrique des Images (2010). Mas encontrei alguns
materiais disponíveis no site que incluem nesta categoria duas outras: Exhibitions e
Cheveux Chéris. Todas elas têm em comum o fato de não apresentarem uma cultura
específica, mas sim objetos de diversas partes do mundo, organizados por uma temática
transversal. Porém, na definição que me foi fornecida por Anne Christine Taylor,
diretora do departamento de ensino e pesquisa do museu, a diferença é que estas duas
últimas não abordam “fenômenos” no sentido “conceitual”.

O surgimento dessa categoria de exposições é fruto da intensa pressão da


comunidade antropológica durante o projeto de concepção do museu para que a nova
instituição não enterrasse a relevância acadêmica das coleções que passou a centralizar
em nome de uma perspectiva puramente estética. No início, como me contou Taylor, a
ideia era que antropólogos criassem em algumas áreas do Plateau des Collections
nichos que abordassem aspectos culturais de determinadas sociedades, como “o ritual”,
“o político”, entre outros. Segundo ela, a ideia de uma galeria permanente temática foi
recusada pela direção do museu, pois concluiu-se que ficariam rapidamente “defasadas
com relação ao estado da disciplina”. Como as alterações na exposição permanente são
burocraticamente complexas e custam caro, teriam chegado à proposta de que o
mezanino oeste, um espaço de 800 m2, fosse constantemente ocupado por exposições
com abordagem antropológica, que seriam temporárias com duração mais longa do que
o normal, cerca de dezoito meses.

Esta configuração permitiria que exibissem exposições aprofundadas, de acordo


com as linhas de pensamento e paradigmas teóricos da Antropologia contemporânea.
No dossiê de apresentação geral do museu, as Exposições Antropológicas são definidas
como aquelas que “tematizam questões universais, interrogam-se sobre as relações e
filiações entre civilizações, objetos, homens e estabelecem passarelas entre história da
arte e antropologia”.
160

3.2.2 Diálogos antropológicos 125

Qu’est ce qu’un corps?126 Foi a primeira Exposição Antropológica, realizada


pouco depois da abertura do Museu. Nela, eram apresentadas, por meio dos objetos
expostos, ideias desenvolvidas nas pesquisas de alguns antropólogos sobre diferentes
formas de conceber o corpo pelo mundo. O curador da exposição foi o etnólogo e
cineasta Stéphane Breton127. Para responder antropologicamente à pergunta que dá
nome à exposição – o que é um corpo? – Breton aposta justamente na desestabilização
da noção de corpo, tal como o público ocidental está acostumado a concebê-lo. Parte-se
da noção de que a pessoa social deve ser entendida como uma relação, não um termo
que pode ser reduzido ao corpo. Exemplos etnográficos de sociedades não-ocidentais
mostram que a pessoa social não é necessariamente uma singularidade e uma entidade
abstratas e interiores, como costuma-se conceber no Ocidente, ideias que não passam de
um “efeito de nossas técnicas e de nossos mitos do corpo e do espírito” (Breton, 2006,
p.14).

A ideia de corpo veiculada no Ocidente, segundo a qual ele seria o lugar do


“eu”, o recipiente e a substância que circunscreve a pessoa social que é o indivíduo, no
sentido sociológico, não é um fato natural. É um valor cultural moderno e ocidental que
tem suas raízes na história da invenção cristã do corpo e da interiorização da relação
solitária do homem voltada para Deus. Mesmo na contemporaneidade secularizada, o
corpo ocidental continua o mesmo, “elemento da relação entre o sujeito e seu princípio
generativo. [...] Tornando-se puramente psicológico, interiorizado, [...] a transcendência
toma a forma imanente do código genético (alma de um mundo sem Deus).” (Breton,
2006, p.19). Esta compreensão, para Breton, só pode surgir da comparação, do encontro
entre corpos diferentes.

125
Uma descrição mais detalhada do percurso destas três exposições está disponível no Anexo desta
dissertação. Decidi retira-las do texto para não dispersar a atenção do leitor que poderia se afastar
demasiado da exposição central analisada aqui.
126
“O que é um corpo?” em cartaz entre junho de 2006 e novembro de 2007.
127
Breton é pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École
des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Realizou pesquisa de campo por muitos anos
entre os Wodani, nas terras altas da Papua Nova-Guiné, tratando de temas como troca, bruxaria, noção de
pessoa, corpo e sexualidade. Breton realizou um filme na Nova-Guiné, chamado “Eux et Moi”, em 2001,
e passou a se dedicar cada vez mais à produção de filmes etnográficos, tendo realizado onze filmes até
hoje, em diversas partes do mundo.
161

Servindo-se, no texto introdutório do catálogo, de um exemplo melanésio que


aponta para uma ideia de corpo que não pode ser delimitada à pessoa, já que esta é
definida pelas relações internas com outras pessoas e, assim, integralmente social,
Breton, explicita os contrastes que aparecem no encontro entre diferentes corpos – e não
diferentes concepções sobre algo supostamente dado, o corpo – e acaba por definir o
que acredita ser a antropologia:

“A antropologia é um instrumento de ótica, uma maneira não apenas de ver os dois sentidos, mas
de ver o olhar. [...] A antropologia nasce na cena do encontro de dois indígenas se esforçando
com dificuldade para falar a língua um do outro. Não é uma ciência positivista descrevendo
objetos que já existem, por exemplo, os corpos, mas uma forma de ver o olhar do outro. São
necessários dois olhares para fazer um antropólogo, precisa-se de dois para dizer a verdade do
corpo.”128 (Breton, 2006, p.17, 20).

Seguindo a mesma ideia, define também o objetivo da exposição, que é o de


mostrar não o corpo do antropólogo visto pelo antropólogo, mas o corpo do antropólogo
visto pelo indígena e o do indígena visto pelo antropólogo, “o corpo de um visto pelo
outro, o corpo sempre apreendido em uma perspectiva simétrica” (Ibid. p.20) que seria,
segundo ele, própria à antropologia. A antropologia seria uma “curiosa das relações”,
tratando as coisas como elementos de relações, em vez de termos positivos. Assim,
pretende mostrar que o corpo é concebido, em cada sociedade, “como o signo e o
instrumento dessa relação” (Ibid, p.20). Para Breton (2006, p.22), na concepção da
exposição, “não são as representações do corpo que nos interessam [...], mas a forma
como tal ou tal cultura define aquilo com o que uma relação é estabelecida sob a forma
do corpo.”.

Na exposição, Breton escolheu apresentar o corpo em quatro regiões diferentes e


trabalhou em colaboração com outros antropólogos, que articularam suas teorias
desenvolvidas nas pesquisas etnográficas às propostas curatoriais. A exposição
apresentava 155 objetos, dos quais 68 vinham de outros museus, da França e do
exterior. As seções do percurso eram divididas de acordo com as quatro regiões
abordadas, buscando transmitir o argumento central por meio do contraste entre elas.
Segundo o cenógrafo que trabalhou com Breton, Frédéric Druot, a exposição se articula

128
“L’anthropologie est un instrument d’optique, une manière non seulement de voir dans les deux sens,
mais de voir le regard. [...] L’anthropologie naît sur la scène de la reencontre de deux indigènes
s’efforçant avec dificulte de parler le langage de l’autre. Ce n’est pas une Science positive décrivant des
objets qui existiraient déjà, par exemple des corps, mais une façon de voir le regard de l’autre. Il faut deux
regards pour faire un anthropologue, il en faut deux pour dire la vérité du corps.”
162

entorno de quatro “instalações específicas”, “simplesmente religadas pelo deslocamento


e pelo olhar do público.” A organização espacial e o mobiliário de cada parte são
diferenciados e específicos, “levando o visitante ao argumento antropológico, até
colocar seu próprio corpo em perspectiva”129. O percurso contava com muitas vitrines,
poucos elementos cenográficos e grande parte dos textos aplicada sobre o piso, tablados
ou parte inferior das vitrines.

Figura 67: Espaço introdutório da exposição “Qu’est ce q’un corps?” com instalação criada pela curadoria. Foto:
Nicholas Borel. ©museeduquaibranly

Michèle Coquet e Michael Houseman colaboraram na seção sobre a África


Ocidental130, Jean-Marie Schaeffer na seção Europa Ocidental, o próprio Breton se
encarregou da seção Nova-Guiné e Anne-Christine Taylor e Eduardo Viveiros de Castro
na seção Amazônia. Exibindo objetos e teorias sobre os habitantes destas regiões do
mundo, aflorariam relações com Deus, com o sexo materno, com os seres que povoam o
mundo, enfim, relações que vão além do que entendemos normalmente sobre o que é
um corpo. Segundo Breton, a exposição não mostra objetos, mas “um argumento”, que
seria “figurado” pelos artefatos, uma vez que estes são entendidos por ele como “signos
e instrumentos – ou seja, agentes – que servem a fabricar a relação da qual falamos, não
somente representações formais, ilustrações.” (Breton, 2006, p.23).

Planète Métisse: to mix or not to mix?131 Foi a segunda exposição a compor o


grupo e trazia ao público objetos de várias partes do mundo que testemunhem processos

129
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do cenógrafo: http://www.druot.net/qqc.html
130
Região conhecida na França como “Afrique de l’Ouest”, ou “África do Oeste”.
131
“Planeta Mestiço: misturar ou não misturar?”, em cartaz entre março de 2008 e julho de 2009. Uma
análise desta exposição exclusivamente foi feita por mim, no artigo “Planète Métisse: uma exposição
antropológica no Museu do quai Branly” (Vincent, 2013).
163

de mestiçagem, “choques entre culturas” e processos históricos nos quais objetos,


técnicas, símbolos, materiais e funções foram trocados e incorporados, transformando a
arte de cada povo na medida em que eram eles também transformados pelos contatos
com diferentes sociedades. O curador desta exposição, Serge Gruzinski132, não é
exatamente um antropólogo, mas um historiador que tem intenso diálogo com a
antropologia.

O processo de mestiçagem, que vem sendo trabalhado por Gruzinski 133, aparece
como um fenômeno universal, exacerbado pelos movimentos de mundialização, que
tem suas raízes no início da expansão marítima do século XVI. Esses encontros seriam
“processos de recomposição permanente”, situações de trocas, de “misturas
culturais”134. Esses encontros que produzem inevitavelmente mestiçagens são
analisados por Gruzinski, como encontros produtivos em uma guerra de imagens que,
longe de produzir apenas substituições, é feita de acomodações e adaptações (Gruzinski,
2006 [1990]).

A História da Arte, agregando processos ocorridos fora da Europa, é apontada


por Gruzinski como o âmbito que melhor preservou a imagem desta mobilização
impressionante de pessoas e coisas que foi o processo colonial e que continua ocorrendo
com a mundialização. Um objet métis se define, segundo Gruzinski (2008, p.21), por ser
“uma obra pela qual se lê o encontro e o choque de civilizações”, algo que surge da
confluência entre os mundos europeus e as sociedades asiáticas, americanas e
africanas.135 Afirma ainda que esse tipo de objeto tem sido subestimado e pouco
explorado pelos museus. A importância de exibi-los seria nos incitar a “pensar o mundo

132
Gruzinski é francês, também pesquisador e professor do CNRS e da EHSS, em Paris. Ele se dedica ao
estudo das colonizações da América e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de
mestiçagem e de nascimento de espaços híbridos, e das primeiras manifestações da mundialização.
133
O conceito é especialmente trabalhado em seu livro “O pensamento Mestiço” (2001 [1999]).
134
O autor deixa claro que o termo é falacioso. É preciso notar que o termo “cultura” induz a
compreensão de que estas seriam conjuntos abstratos, estáveis e delimitados, quando, na verdade, trata-se
de “sociedades, ou seja, de indivíduos, de grupos e de classes sociais que se afrontam, se misturam,
trocando ou impondo fragmentos de patrimônios dos quais são, conscientemente ou não, portadores.”
(Gruzinski, 2008, p.17).
135
As mestiçagens apresentadas consistem em criações de imagens/objetos decorrentes dos encontros e
influências entre “culturas” de continentes diferentes, em sua maioria entre europeus e “outros”,
excetuando-se os exemplos de misturas entre Estados Unidos e México ou Ásia, o que não caracteriza
verdadeiramente uma exceção pois este país é tratado como representante do “primeiro mundo”. Talvez
isso se deva à distinção feita pelo autor entre “mestiçagem” – entre continentes diferentes – e
“hibridismo” – dentro da mesma civilização (Gruzinski, 2001). Mas de toda forma não são abordadas as
trocas entre diferentes culturas “não-ocidentais”.
164

e suas culturas em termos de circulação e de conexões [...] [pois] eles nos estimulam a
repensar a diferença em termos dinâmicos.” (Gruzinski, 2008, p.22).

Para tornar palpável esse “fenômeno planetário”, a exposição exibe 290 objetos,
pertencentes à coleção do Museu do quai Branly ou emprestados de outras coleções,
objetos antigos e contemporâneos. Seu percurso foi dividido em quatro partes, que não
derivam de divisões geográficas nem estritamente cronológicas, mas que consistem em
uma linha argumentativa que pretende definir o objeto tematizado e a mensagem
transmitida – a mestiçagem enquanto mecanismo inevitável. Inicia-se por uma sala
introdutória de desestabilização de pré-noções e definição do “objeto mestiço”,
passando em seguida por uma contextualização histórica dos encontros culturais, as
diferentes formas pelas quais as trocas de ideias, técnicas e relações de poder aparecem
nos objetos, terminando com exemplos de mestiçagens contemporâneas.
Com o objetivo de fazer com que os objetos “dialoguem entre si, que os
mecanismos de mestiçagem apareçam”, o mezanino foi completamente transformado
por uma cenografia que pretendeu “criar um percurso contínuo, um espaço amplo,
dividido por colunas criando nichos para mis-en-scènes específicas”. Utilizando
materiais leves e visualmente porosos como fios luminosos, véus, telas de lâminas
metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam espaços redondos ou ovais,
chamados pelo cenógrafo responsável, Reza Azard, de “corpos híbridos”136.

Figuras 68, 69: Exposição “Planète Métisse”, cenografia. Fonte: projectiles.fr ©M. Blondeau
No catálogo da exposição, Gruzinski define a problemática que se propôs a
abordar, revelando com clareza a presença de uma “mensagem” a ser transmitida pela
exposição para o público que o curador imagina como alvo:

“[...] a mistura de culturas não é apenas um efeito de moda, domínio no qual nada é adquirido.
Ainda preferimos muito as oposições marcadas do que a complexidade e imprevisibilidade das
coisas. [...] Sobre esses reflexos pesa fortemente ainda uma maneira de ver o mundo que o

136
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do escritório de design Projectiles.
165

cristaliza em categorias e campos antagônicos demasiado simples e redutores para não


dissimular as passagens, os paradoxos e as mil ambiguidades perturbadoras que teçem o real. [...]
É desta dificuldade e desta resistência que tenta dar conta Planeta Mestiço.” 137 (Gruzinski, 2008,
p.16,17).

Concebida para ser vista predominantemente por europeus, que “ainda preferem
as oposições marcadas à complexidade e imprevisibilidade”, a exposição oferece uma
resposta clara à pergunta que compõe seu título: “misturar ou não misturar?”. “Seria [a
mestiçagem] o fermento de um perpétuo enriquecimento e de uma constante abertura
para o outro?”, pergunta Gruzinski (2008, p.20). Salientando que não podemos esquecer
que as mestiçagens nunca são neutras, aponta para a resposta: “reservemo-nos, portanto,
a celebrar uma mestiçagem cultural destinada a preencher positivamente fraturas sociais
e econômicas dificilmente reduzidas de outra forma.” (Gruzinski, 2008, p.20).
La Fabrique des Images138foi a terceira exposição antropológica realizada no
museu, com curadoria do antropólogo francês Phillipe Descola139. A exposição
apresentava quatro formas diferentes de figurar, ou criar imagens. Elas correspondem às
quatro formas ontológicas de conceber a natureza (modelos analíticos de cosmovisões)
– analogista, totemista, naturalista e animista140.
A criação deste modelo é o caminho utilizado por Descola para desconstruir o
binarismo “natureza x cultura”, sustentado no pensamento ocidental pela noção de que
somente nós, humanos, somos dotados de consciência reflexiva, pensamento cognitivo e
julgamento moral, e que somos rodeados por algo que é matéria pura, desprovida de
intencionalidade, a saber, a natureza. Questionando a universalidade desta proposição, o
autor parte de sua experiência etnológica com os Jivaro para mostrar que, para eles,
todos os elementos do mundo podem ser humanos, há uma humanidade contínua entre
os elementos, sejam animais, plantas ou espíritos, com os quais se estabelece relações
sociais.

137
“(...) le mélange de cultures n’est pas seulement un effet de mode et qu’en ce domaine rien n’est
acquis. On prefere encore trop les oppositions tranchées à la complexité et à l’imprevisibilité des choses.
[...] Et sur ces reflexes pèse encore lourdement une maniére de voir le monde qui le cristalize en
catégories et camps antagoniques, trop simples et trop réducteurs pour ne pas dissimuler les passages, les
paradoxes et les milles ambiguïtés troublantes dont est tissé le réel. [...] C’est d’abord de cette dificulte et
de cette résistance que voudrais rendre compte Planète Métisse.”
138
“A Fábrica de Imagens”, em cartaz entre fevereiro de 2010 a julho de 2011.
139
Sucessor de Claude Lévi-Stauss na direção do Laboratoire d’anthropologie social (LAS) e na cadeira
de Antropologia da Natureza no Collège de France, Descola também é professor na EHSS e pesquisador
do CNRS. Suas pesquisas etnográficas foram realizadas entre os Jivaro, população indígena da Amazônia
equatoriana.
140
Modelo desenvolvido em seu livro “Par-delà nature et culture” (2005).
166

Colocando no mesmo plano as concepções ocidentais e as de outros povos,


Descola desenvolve um esquema geral que classifica distintas formas pelas quais
indivíduos de determinadas sociedades reconhecem e se relacionam com seu ambiente e
com os outros141. Desenvolvendo a aplicação de sua teoria no âmbito da criação de
imagens, cada uma destas ontologias resultaria em formas de figuração correspondentes.
Segundo Descola, após algum tempo de reflexão, percebeu que, de fato, estas formas de
figuração não seriam apenas ilustrações de uma forma de pensamento e relação com o
mundo, mas também agentes produtores desta relação (comunicação pessoal, 2012).

Assim, a exposição proposta por ele é dividida em quatro seções,


correspondentes às quatro formas ontológicas de figuração. A exposição tem caráter
bastante didático e se inicia por uma sala introdutória que explica o pressuposto teórico
e define as quatro ontologias. Cada uma delas é identificada por uma cor, presente nos
textos explicativos e demarcada no piso do espaço, guiando o visitante pelas respectivas
seções. As quatro formas de figurar são ainda localizadas num mapa, apresentando
sociedades representativas destas ontologias e seus respectivos objetos. Segundo
Descola, as ideias sobre como deveria ser o percurso da exposição já estavam bastante
claras para ele, mas foram complementadas pelas ideias trazidas pelo
arquiteto/cenógrafo, Pascal Rodriguez.

141
Este modelo está baseado em diferentes relações entre interioridade e fisicalidade por um lado e as
relações entre humano e não-humano. Naturalismo seria caracterizado por uma continuidade física entre
os elementos “naturais”, enquanto a cultura seria atributo interior exclusivo dos humanos, em ruptura com
a natureza; o Animismo por uma continuidade da interioridade entre humanos e não humanos, que seriam
distinguidos pelo corpo; o Totemismo demarcaria uma continuidade e identificação tanto física quanto
interior entre grupos que abarcam tanto humanos quanto não humanos; e o Analogismo seria a
descontinuidade total entre fisicalidade e interioridade, sendo elementos humanos e não-humanos unidos
por diferentes tipos de analogias entre polos de qualidades sensíveis (Descola, 2005)
167

Figura70: Exposição “La Fabrique des Images”. Caminhos demarcados por cores no percurso. Foto: Antoine Schneck.
©museeduquaibranly

Figura 71: Exposição “La Fabrique des Images”. Painel explicativo das quatro ontologias que dividem a exposição. Foto: Nina
Vincent

As três exposições com curadoria antropológica são bastante diversas tanto em


sua apresentação final quanto em seu processo de concepção. Entretanto, compartilham
de algumas características fundamentais. Em primeiro lugar, observamos que são
marcadas por propostas curatoriais transculturais, no sentido de abarcarem exemplos e
objetos de diversas origens. Culturas de várias partes do mundo são tematizadas e os
168

objetos expostos testemunham este aspecto transversal. Esta abordagem não é exclusiva
das exposições antropológicas, mas bastante rara nas exposições temporárias, que em
sua maioria focam alguma região do mundo não-europeu, alguma sociedade específica
ou um determinado tipo de produção artefatual desenvolvido por algum grupo. A
diferença entre outras exposições transversais e as antropológicas é justamente a
abordagem conceitual característica da disciplina, que faz com que sejam abordados
fenômenos ou mecanismos culturais “universais”.

Outra característica é a presença constante de objetos europeus, tomados em


empréstimo de outros museus – já que o Museu do quai Branly não conta com objetos
europeus em sua coleção, à exceção de documentos e fotografias – que são apontados
como uma das principais dificuldades técnicas na realização deste tipo de exposição142.
Este aspecto nos aponta para a particularidade e importância destas exposições para a
relativização do discurso museal da instituição, bem como para uma percepção atual da
antropologia. A ideia de que o olhar das ciências humanas é propriamente ocidental, de
que suas investigações sobre os “outros” devem ser feitas reconhecendo o
etnocentrismo inevitável de suas categorias analíticas e devem levar a questionamentos
do próprio pensamento ocidental sobre sua cultura me parecem ser as razões da
invariável presença do caso europeu nas comparações culturais realizadas nas
exposições antropológicas.

A tematização da cultura ocidental, mais especificamente europeia, nestas


exposições, como se pode aferir na descrição dos objetos e percursos feita no Anexo 1,
aparece também no discurso dos três curadores. Breton aponta para a importância da
simetria no olhar antropológico e para a necessidade de se partir de comparações para
entender as diferenças e o caráter relacional e construído das próprias noções que
permeiam nosso pensamento e entendimento. Exibir o ocidente em um exercício
comparativo é uma estratégia do pensamento das Ciências Humanas em termos de
inteligibilidade, mas também uma estratégia pensada em termos de consequência para a
alteração das mentalidades.

142
Segundo Taylor (comunicação pessoal, 2011), os empréstimos solicitados junto a grandes museus é
um dos principais problemas das exposições antropológicas. No caso de “A Fábrica de Imagens”, por
exemplo, as pinturas pertencentes ao Louvre foram cedidas por meio de um contrato que limitava o
empréstimo a uma duração de três meses, tempo regular de uma exposição temporária. Por ter ficado em
cartaz durante 18 meses, a exposição foi modificada várias vezes, pela substituição de peças.
169

Em “Planeta Mestiço”, Gruzinski aborda a influência das culturas longínquas


sobre a europeia, como a forte influência asiática na Europa, ou as referências
constantes do mundo da moda à culturas “exóticas”. O exemplo mais claro em sua
abordagem é a absorção de elementos de culturas das Américas pelo catolicismo
europeu que, apesar de se impor sobre os povos colonizados, não pode se impedir de
incorporar referências. Assim, tenta mostrar que a mestiçagem sempre existiu e sempre
existirá, constatação que ganha dimensão de mensagem quando ele diz que

“Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços
não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. A tradição
intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação. A
cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. Hoje, a cultura
popular na França já é uma cultura mestiça.” (Gruzinski In Romeiro)

A preocupação é compartilhada também por Descola, que expressa a questão de forma


concreta ao falar do projeto expográfico de “A Fábrica de Imagens”:

“Eu quis fazer uma exposição que pudesse romper a noção de progressão histórica que está
enraizada na cabeça das pessoas, que se dizem ‘primeiro há o primitivo, em seguida a arte antiga
e depois a ocidental’. É por isso que coloquei o naturalismo, em contraste com o animismo
evidententemente, logo após [este]. E depois nos deparamos com o totemismo, então não há
nenhuma continuidade histórica. Eu penso que operações como esta são simples, mas têm
efeitos.” (Descola, comunicação pessoal, 2012).

Percebe-se neste tipo de estratégias empregadas na construção do percurso das


exposições que há uma dimensão reflexiva e conceitual forte nelas. Apesar de estreantes
na função de curadores, os intelectuais conhecem bem a formação de um discurso
argumentativo. Todos os três exibem argumentos claros que pretendem transmitir suas
teorias científicas. Alguns recursos monográficos são empregados, como a presença de
uma sala “introdutória”, que aparece nos três percursos143, destinada à desconstrução de
pré-noções e a esboçar o conceito abordado, seja do corpo enquanto produção
relacional, do objeto mestiço como fruto inevitável dos contatos culturais e da diluição
de identidades estáveis ou ainda das imagens como figurações dependentes de
distinções ontológicas.

A “mensagem” ou “narrativa”, seguindo os termos museológicos, exploradas


nestas exposições é propriamente a teoria de seus curadores. Estas teorias buscam
compreender e descrever “mecanismos culturais”, processos de construção das culturas

143
Ver Anexo 1.
170

apresentadas nas exposições. Se pensarmos no nome da exposição de Descola – “A


fábrica de imagens” – e no título de uma das seções criadas por Gruzinski – “fábrica de
mestiçagens” – fica claro que há um interesse em apresentar o processo, o mecanismo
cultural por trás dos objetos expostos. Isso pode ser mais ou menos bem sucedido, pois,
em termos de conceitualização do mecanismo, a exposição pragmática de Descola
oferece uma explicação bastante clara e didática para os processos apresentados,
enquanto Gruzinski aponta para uma imprevisibilidade das consequências dos
encontros:

“Escolhas, seleções, imposições, empréstimos, mas evidentemente também exclusões e


degradações reagem sempre a relações de força e assim a contextos históricos mutáveis que não
podem ser abstraidos se desejamos apreender os mecanismos de mestiçagem, sua alquimia
imprevisível e desconcertante complexidade.”144 (Gruzinski, 2008, p.17)

A natureza claramente diferente das teorias de Descola e Gruzinski certamente daria


origem a exposições diferentes e, talvez pelas próprias conclusões de suas pesquisas, na
exposição do segundo transpareçam menos “mecanismos” do que “exemplos” de um
fenômeno. Mas isso, acredito, tem mais ligação com o universo teórico do que com a
transposição da teoria para um espaço expositivo, visual, que é o que nos interessa aqui.

Estas exposições tem em comum o fato de serem fruto de um exercício de


mediação empreendido por curadores que não tem a museologia como ferramenta usual.
São cientistas, habituados a expor suas ideias por meio de palavras e da escrita.
Conceber uma exposição constitui uma forma nova de atuar, de expressar ideias, um
exercício de tradução para o mundo material, imagético, estético, daquilo que existia
enquanto discurso, pensamento abstrato. Assim, as duas principais tarefas que se
impõem a eles são as de selecionar objetos, adotar uma forma de apresenta-los e inseri-
los em uma composição espacial. Estas tarefas vão compor a visualidade, a estética
expográfica, a materialização do conceito.

O trabalho colaborativo com o cenógrafo responsável certamente é muito


determinante para essa materialização. Segundo Taylor (comunicação pessoal, 2011),
tanto Gruzinski quanto Descola trabalharam próximos aos cenógrafos responsáveis por
suas exposições e foram bastante apoiados pela equipe de realização do Museu do quai
144
“Choix, séléctions, impositions, emprunts mais bien évidemment aussi exclusions ou déperissements
réagissent toujours a de rapports de force et donc a des contextes historiques changeants dont on ne
saurait faire abstraction si l’on désire saisir les mécanismes des métissages, leur alchimie imprévisible et
leur déconcertante complexité.”
171

Branly, o que seria visível no produto final. Alguns enganos cometidos no aspecto
visual fizeram de “O que é um corpo?”, que teve seu cenógrafo alterado duas vezes,
uma exposição não tão bem sucedida. Taylor conta que foi uma experiência “muito
complicada. De fato, ela não alcançou absolutamente o que desejávamos na realidade.
[...] Do ponto de vista cenográfico, foi um fracasso, porque era heteróclita demais,
condensada demais, insuficientemente explícita (...)” (comunicação pessoal, 2011).

Descola, que realizou “etnografias da visita” da primeira exposição


antropológica quando já flertava com a ideia de conceber sua exposição, declarou que
“serviu bastante como um modelo de coisas que não se deve fazer” (comunicação
pessoal, 2012). Observando o quê o público parava pra ver e como se deslocava no
ambiente, percebeu que o percurso muito aberto, livre, fazia com que pulassem partes
importantes, como o texto introdutório, por exemplo, o que influenciou sua decisão de
propor um percurso mais didático e “um pouco forçado, digamos assim...” (Ibid.). A
primeira exposição antropológica teria sido, portanto, um projeto interessante, que não
resultou em uma exposição à altura. Para Taylor, o catálogo foi o grande sucesso da
exposição:

“O catálogo é muito interessante e vendeu notavelmente. Vendeu quase 10 mil exemplares, o


que é muito. Jamais venderíamos tanto se fosse um simples livro, publicado por uma editora...
Por que, infelizmente, os livros de antropologia não vendem mais. O público teve dificuldades
para compreender a proposta da exposição e, provavelmente por isso, compraram o catálogo.
Eles ficaram intrigados, não compreenderam nada. Bem, ao menos ela os intrigou o suficiente
para que comprassem o catálogo...” (comunicação pessoal, 2011).

A visibilidade alcançada pelas exposições, em oposição às formas habituais de


divulgação de conhecimento científico, foi um dos aspectos mais positivos apontados
por Descola. Sua exposição foi vista por cerca de 300 mil pessoas, um público
impensável para um livro de antropologia.

O objetivo do desafio de “tradução” ou “mediação” enfrentado por estes


intelectuais ao tornarem-se curadores de uma exposição é oferecer a um grande público
sua perspectiva teórica por meio dos objetos apresentados. O caráter comparativo das
três exposições aparece como um contraponto à exposição permanente do museu e às
outras exposições temporárias, agregando novos significados aos objetos ao inseri-los
em estéticas exibicionárias específicas. Segundo Descola, a tarefa, ao menos para ele,
teve sucesso, atestado por comentários deixados no Livro de Ouro de sua exposição:
172

“muitas pessoas diziam ‘Ah! Agora compreendo melhor o resto do museu, com esta
exposição’.” (comunicação pessoal, 2012)145.

Fica claro nestas exposições que a contextualização criada pelos curadores


investe os objetos expostos de novos significados. Eles aparecem como elementos de
um todo – a exposição – que pode ser vista como um objeto conceitual, e, por que não,
um objeto de arte, criado pelo antropólogo curador. Em exposições fortemente
conceituais como estas, não podemos dizer que é a “significação nativa” dos objetos que
é oferecida ao público, ainda que fique evidente o quanto estudos aprofundados dessas
“concepções nativas” tenham guiado a aproximação proposta pela curadoria, já que
fazem parte da construção teórica antropológica. Breton (2007, p.23) afirma que
“levamos a sério a ideia de que os artefatos são signos e instrumentos – ou agentes –
que servem a fabricar a relação da qual falamos, não apenas representações formais,
ilustrações (...).”, mas ao mesmo tempo explicita uma ideia central para nosso
entendimento da tarefa do antropólogo como curador: “Não mostramos aqui objetos,
mas um argumento” (Ibid.). Assim, se individualmente, cada objeto esta ali como
agente do mecanismo cultural apresentado, a exposição como um todo pode facilmente
ser vista como ilustração do discurso do curador, ou como materialização de sua
agência, de toda maneira dizendo tanto sobre ele quanto sobre os produtores dos
objetos.

A divulgação do conhecimento científico é o objetivo central das Exposições


Antropológicas e, por isso, distanciam-se dos projetos realizados, muitas vezes por
antropólogos, que têm como foco a participação efetiva dos “nativos”. A questão da
ressignificação dos objetos, pelo simples fato de estarem em um museu, e ainda entre
uma exposição e outra, parece dispensar esse aspecto participativo quando se valoriza a
produção de conhecimento científico, optando pelo foco na comparação:

“A perspectiva indígena sobre si é sempre enviesada [...]. Apenas a comparação permite superar
isso. Por este motivo é que não tememos retirar os objetos de seu contexto local e apresenta-los
nesta exposição, enfraquecidos pelas vitrines, emudecidos pela abstração museográfica.

145
Encontrei um comentário sobre Planeta Mestiço registrado em um blog, que aponta para o mesmo
sentido: “É tempo [...] de nos darmos conta que a exposição, no mezanino do MQB, domina toda a
coleção permanente do museu: esta educação do olho e do espírito poderá então ser aplicada a outros
objetos, a outros fenômenos, pois o verdadeiro planeta mestiço espera pelo espectador na saída do
museu.” (Boris Jeanne).
173

Essencializar os contextos é uma visão anti-antropológica. Preferimos coloca-los em perspectiva


e compará-los. É por seu efeito de deslocamento que tal exposição pode ser útil; ela torna
possíveis olhares cruzados.”146 (Breton, 2007, p.22,23).

Nas exposições antropológicas, culturas “dialogam” em um sentido conceitual.


Por meio da teoria do curador, materializada em obra de arte/exposição, diferentes
culturas são postas em relação. Entretanto, isso acontece no plano da abstração, ou nos
bastidores da pesquisa etnográfica que levou o cientista àquela teoria, ocasião no
mínimo distante espaço-temporalmente do que ocorre no museu. O interesse dessas
exposições para a presente reflexão talvez seja o quanto elas podem dialogar com o
restante das atividades ocorridas no mesmo espaço, com outras formas de
contextualização dos objetos da coleção, com outras propostas curatoriais.

146
“La perspective indigene sur soi est toujours biasée [...]. Seul la comparaison permet de s’affranchir.
Voilà pourquoi nous ne craignons pas de sortir les objets de leur contexte local et de les présenter dans
cette exposition, affadis par les vitrines, rendus muets par l’abstraction muséographique. Essentializer les
contextes est une vue anti-anthropologique. Nous préferons mettre ceux-ci en perspective et les comparer.
C’est par son effet de déplacemente qu’une telle exposition peut être utile: ele rend possibles des regards
croisés”
174

4. CONCLUSÃO

As análises feitas por antropólogos e sociólogos durante o projeto de concepção


do Museu do quai Branly e no momento de sua inauguração não podiam prever a
dimensão que ganhariam as exposições temporárias propostas pelo museu. Nem mesmo
a equipe de funcionários da instituição poderia prever o futuro. O fato é que, apesar de a
exposição permanente continuar sendo o que define a “identidade” do museu, são as
exposições temporárias que batem recordes de público, promovem atividades paralelas
de caráter acadêmico, performático e de entretenimento e possibilitam aos funcionários
buscar novas formas de expor os objetos da coleção e estabelecer diferentes tipos de
diálogo em vários níveis. Assim, este trabalho pretendeu somar às analises iniciais do
museu novas reflexões acerca de experiências particulares, partindo da proposta de um
olhar específico sobre exposições.

Um museu costuma ser entendido como sinônimo de sua exposição permanente.


Estas são geralmente vistas como “neutras” – o que, como vimos, é altamente
questionável – e esta suposta neutralidade moral, como afirma Karpp (1991, p. 14), é
“precisamente a qualidade que permite que se tornem instrumentos de poder, bem como
instrumentos de educação e experiência”147. É a crença na neutralidade que lhe confere
autoridade. Certamente, a exposição permanente do Museu do quai Branly é, no
mínimo, uma afirmação da museografia geral proposta pela instituição. Mas nas
exposições temporárias, de curta e média duração, é que se explicitam as relações mais
cotidianas e dinâmicas do museu e o trabalho autoral dos curadores. A partir delas
pudemos vislumbrar agências curatoriais mais palpáveis, perceber diferentes discursos
presentes no museu e mesmo lançar outro olhar sobre a exposição permanente.

O papel dos objetos na vida social é extremamente importante, e, ao serem


destacados do cotidiano e inseridos na coleção de um museu, passam a desempenhar
novas funções e mediar novas relações. Muito já foi dito sobre a infinita gama de
possibilidades interpretativas sobre os objetos, e pudemos perceber que há muitas
formas diferentes de apresentá-los, modificando sua significação por meio da relação
proposta entre o conjunto de objetos e de dispositivos expográficos. Apesar das redes de
relações nas quais um objeto já se inseriu, no momento específico de sua exibição em
um projeto expositivo, a forma de exibição é que vai determinar não seu significado, em

147
“is the very quality that enables them to become instruments of education and experience.”.
175

um sentido definitivo, mas a rede de relações que ele materializa e na qual atua naquele
momento.

A exposição criada pelo curador pode englobar seus possíveis significados


anteriores, mas o insere em um contexto de significação maior, a do objeto exposição,
que se constitui esteticamente pela relação entre objetos expostos e demais elementos
expográficos. Esta estética é a expressão também das diversas relações entre pessoas e
instituições mobilizadas para a construção da exposição. Se, como já foi afirmado,
curadoria em museus jamais será algo neutro, evidenciar as relações em questão nas
exposições abordadas foi o exercício desenvolvido aqui.

Os objetos produzidos pelos Maori, os taonga apresentados no Museu do quai


Branly, mostram claramente a importância das escolhas curatoriais neste processo de
estabelecimento de significados e relações. Por meio dos autores que analisam
diferentes aspectos de inserção destes taonga na vida social maori compreendemos
melhor sua trajetória por diferentes usos, diferentes instituições museais e as mudanças
nas categorias empregadas em sua definição. Este trânsito dos objetos e das formas de
colecioná-los, analisá-los, nomeá-los e exibi-los, nos mostra o quanto são decisivos e
participantes nas relações mediadas entre pessoas e “coisas” e o quão insistentes são as
relações específicas que este povo desenvolve com seus objetos. Os taonga foram – e
ainda são – inseridos em diversos regimes de valor e apreciados em diferentes contextos
estéticos, mas sua importância para os Maori persiste.

Nesta cultura, a relação com os objetos é tão estreita que grande parte de sua
cosmologia e de sua história pode ser contada por meio deles. Por isso, vemos que o
museu, instituição imposta pelos colonizadores, ganha outras dimensões na Nova
Zelândia, tornando-se uma das mais importantes instituições na luta politico-identitária
maori. Definir a categorização de seus objetos é uma questão política para os Maori,
pois está ligada a uma disputa de poder. Definir a forma (material e estética) como estes
objetos são apresentados tem também caráter político, no sentido de estabelecer como
as pessoas que olham para os objetos irão se relacionar com eles, para além de como
vão entendê-los. O nível de intimidade, de proximidade, de reverência e de
compreensão oferecido na exibição dos objetos é controlado pelos curadores e varia de
acordo com suas intenções e com o público para o qual a exposição se destina.
176

O controle sobre este tipo de instituição e, assim, sobre as formas de apresentar


os objetos que abriga, passou a ser um dos principais meios de preservação e afirmação
cultural dos Maori, o que acabou por colocar a “arte” numa posição central dentro da
discussão sobre a particularidade de “ser maori”. Atualmente, em tempos de
“patrimonialização das diferenças” (Abreu, 2010), em que direitos político-sociais são
cada vez mais atrelados ao reconhecimento e valorização de diferenças culturais
expressas por meio daquilo que é selecionado enquanto patrimônio, o que distingue os
homens e mulheres maori – em grande parte indivíduos altamente escolarizados, que
exercem profissões diversas, vivem em meio moderno e urbano – do restante da
população neozelandesa é sua “cultura”. Esta “cultura com aspas”, no sentido proposto
por Carneiro da Cunha (2009), objetificada e performatizada entre eles e para fora, é
articulada com habilidade ímpar pelo povo maori àquela cultura que a autora define
como “esquemas interiorizados que organizam a percepção e ação das pessoas e que
garantem um certo grau de comunicação entre grupos sociais” (Carneiro da Cunha,
2009 p.313). Tanto as expressões da “cultura” “para si” (Ibid.) quanto as relações
cotidianas dos Maori parecem ocorrer e se articular, em grande parte, em sua produção
artística/material148.

O período colonial foi “profundamente material e os centros coloniais e


imperiais eram ligados criticamente por um tráfico de objetos vivenciados
sensorialmente”149 (Edwards et all., 2006, p.3). As relações foram mediadas por objetos
trocados, roubados, vendidos e transportados entre os continentes. Povos nativos de
diversas partes do mundo receberam um enorme afluxo de objetos europeus. Contas de
vidro, espelhos e outras coisas consideradas quinquilharias pelos colonizadores
passaram a desempenhar papeis cruciais na produção artefatual e relações locais de
troca; armas de fogo e instrumentos de trabalho agrícola modificaram técnicas e criaram
novas relações de poder.

Além de todo tipo de matéria prima, europeus levaram para seus países objetos
confeccionados por nativos, com os mais diversos propósitos, que transitaram por

148
Não somente, é claro. Não posso falar com propriedade da vida cotidiana maori na Nova Zelândia nem
de uma dimensão profunda do ser maori atual, pois não tive contato com esta realidade. Falo apenas sobre
o que transpareceu em minha experiência de campo na Exposição Maori na França. Há outros pilares da
cultura maori amplamente preservados e difundidos na sociedade contemporânea, como a relação com o
meio ambiente e os esportes – a canoagem e, surpreendentemente, o Rugby – por exemplo.
149
“(... first is the recognition that) colonialism was profoundly material and that colonized and imperial
centers were critically linked by a traffic in objects that was the sensorially figured: [...]”.
177

categorias como curiosidades, espécimes científicos, artefatos etnográficos, referências


exóticas para artistas de vanguarda, obras de Arte. Por meio de objetos, constituiu-se o
contato, relações sensoriais, relações de dependência, de troca, de poder, de
conhecimento, etc.

As categorizações que emergem destas relações, já na Europa, foram


determinadas em grande parte pela forma como se apresentava estes objetos. O que
percebemos no estudo da Exposição Maori recebida pelo Museu do quai Branly, é que
as relações entre estes países continua a ter uma dimensão mediada pelos objetos
musealizados. Estas escolhas parecem ser obras do acaso quando observadas à
distância, mas há muito a ser compreendido olhando-as mais de perto. Além de dizerem
muito sobre as relações coloniais e reações culturais e políticas ao contato com este
“Outro”, “selvagem” e “exótico”, as formas de apresentar os objetos vindos de fora têm
relações fortes com as formas de apresentar quaisquer objetos, especialmente aqueles
expostos em museus.

Esta dissertação flertou com culturas “não-ocidentais”, mas é necessário manter


em foco o fato de estarmos falando de um museu ocidental, situado em uma capital
mundial da Arte. As relações entre História da Arte e Antropologia são por vezes
obscuras, mas acredito que podem ser profícuas. Permito-me uma pequena digressão
para chamar atenção para o fato de que as formas de apresentar as obras de arte
ocidentais também passavam por grandes mudanças, no mesmo período em que estes
“objetos exóticos” chegavam ao continente europeu.

O’Doherty dedica seu livro O cubo branco ([1976] 1999) a esta transformação,
que se inicia na Europa no final do século XIX, quando alguns movimentos começam a
romper com a chamada “pintura de cavalete”, que consistia em representações ilusórias
da realidade, criando quadros autocontidos, isolados dos outros quadros por sua
moldura e sua perspectiva interior autossuficiente. Com o Impressionismo, o horizonte
pintado se amplia, transborda e aponta para fora da tela, mas não para uma realidade
outra, e sim para as paredes, rompendo com os limites cognitivos da moldura. Isso se
acentua com a Colagem e seus elementos que saltam da tela, tornando inevitável a
conscientização sobre o espaço expositivo. Neste momento surgem questões como “de
que forma pendurar o quadro?” ou “perto de que outras obras estará exposto?”, “Qual o
178

espaço necessário entre elas?” e toda uma série de questionamentos sobre os elementos
exteriores à pintura.

Com o surgimento das vanguardas artísticas europeias na virada do século e,


especialmente, com os trabalhos de Duchamp, o espaço expositivo passa a ser o que
define a arte. Seu famoso urinol150 mostra a capacidade de transformação institucional
da Galeria de Arte, pois só foi considerado Obra de Arte por estar neste local. Mas
foram suas obras 1,200 coal bags (1938)151 – que ocupou o teto da galeria (espaço antes
considerado inutilizável) com sacos de carvão pendentes sobre um pequeno forno – e
Mile of String (1942) – em que amarrava todo o espaço da galeria com fios
emaranhados – que realmente colocaram o espaço em cena, e com ele o próprio público,
transformando o contexto no próprio conteúdo. Este tema foi intensamente explorado
pela arte contemporânea no intuito de desconstruir as noções de atemporalidade,
eternidade, neutralidade e de supressão do corpo do expectador nas galerias modernas
de Arte, do estilo cubo branco152.

Esta virada modernista ocidental em direção ao contexto é, para O’Doherthy


uma das mais importantes características da Arte até os dias de hoje. A dissolução da
moldura transferiu a função ilusória ou artificial para o espaço da galeria. Assim, foi
responsável inclusive pelo persistente fracasso em reconectar a Arte com o mundo,
aquele de fora da galeria, já que a separação entre Arte e vida cotidiana instaurada por
ela ainda é o dogma mais fundamental para definir o que é ou não é Arte. Quando
entramos em um museu como o quai Branly, percebe-se logo que ele em nada se parece
com as galerias de Arte descritas por O’Doherthy. Nada ali é branco, clean ou retilíneo.
Mas certamente este olhar sobre o contexto expositivo salta à vista.

Museus voltados para um grande público investem cada vez mais em criar
interesse no espaço, seduzir cenograficamente e propor novas formas de
contextualização, borrando ainda mais a separação entre o espaço de exibição e aquilo
que é exibido, tornando o espaço cada vez mais potente enquanto objeto artístico. O
150
La Fontaine (1917).
151
O nome completo da obra é “Twelve Hundred Coal Bags Suspended from the Ceiling over a Stove” e
foi montada para a Exposition Internationale du Surréalisme, em Paris. A segunda obra citada, Mile of
String, foi exposta em Nova York na mostra First Papers of Surrealism.
152
Já no período pós-guerra, dois outros grandes “gestos”, como os chama O’Doherthy (1999), marcaram
a historia do espaço da galeria. The Void (1957), de Yves Klein, que apresentava uma galeria parisiense
totalmente vazia, oferecendo apenas suas paredes brancas para a contemplação; e em resposta à Klein, Le
Plein (1960), de Armand Arman, que apresentou a mesma galeria completamente cheia de lixo e detritos,
deixando o visitante pela primeira vez a observar o espaço do lado de fora.
179

caráter social e educativo que edifica a Nova Museologia têm nesta missão sua principal
distinção com relação ao mundo extremamente elitizado e autocentrado da Arte
contemporânea e suas galerias voltadas para o comércio. Isso pode ser notado também
na proposição de atividades educativas, no acolhimento de performances, no uso de
tecnologia interativa e nas estratégias cenográficas, de utilização do espaço, de criação
de suportes para obras que podem ser vistos como uma instalação artística em si, além
de outros recursos que se agregam aos objetos expostos, todos eles utilizados no Museu
do quai Branly. Como argumenta Gurian (1991, p176), “não é o conteúdo que pré-
determina o design da exposição, as estratégias e instalações que usamos; ao contrário,
o conteúdo e a apresentação da exposição são inseparáveis”. E os diferentes “estilos” de
exposição são ferramentas poderosas na expressão de intenções e no empoderamento ou
isolamento do público.

Responsáveis também por esta configuração são os antropólogos, eternamente


em busca das relações entre as coisas e as pessoas e da melhor contextualização, pois é
nisso que trabalhamos afinal. A grande disputa encontrada na literatura sobre objetos
em museus – e não somente objetos de “outras culturas”153 – é entre aqueles que
valorizam sua autonomia e uma grande maioria que defende a necessidade de mais, ou
melhor, contextualização. Isso remete à questão de saber se os objetos são ou não
capazes de “falar por si só”. Diversos autores utilizados aqui para embasar a reflexão,
apontam para a ausência de propriedades intrínsecas aos objetos que permitam definir
seu significado. Especialmente quando se trata de artefatos etnográficos, muitos
afirmam que sua exibição não está ligada a um suposto interesse visual contido nele.

Kirshemblatt-Gimblett (1998) afirma que há aí um paradoxo que consiste em


mostrar coisas que não foram criadas para ser exibidas e que é justamente em sua
“ausência de interesse visual” que se desestabiliza a certeza de que este interesse visual
seria precondição para a exibição de alguma coisa. Assim, as diversas significações
possíveis de um objeto dependeriam das “estratégias interpretativas” (Kirshemblatt-
Gimblett, 1998) adotadas, o que está diretamente relacionado ao foco de nosso estudo,
as formas de exibir os objetos. A categorização, bem como o “significado” e o interesse

153
Alpers (1991) explora o “efeito museu” (museum effect) em grandes museus de arte europeia. Este
“efeito”, segundo ela, impõe uma “forma de ver” (way of seen) por meio da articulação de elementos que
cercam as pinturas. A autora cita como exemplo o Museu D’Orsay, em Paris, para mostrar como a
obsessão pela contextualização cultural empregada nesta instituição fez com que “ver” fosse praticamente
impossível.
180

por um objeto seriam então uma questão de contextualização, já que quando inseridos
na vida, artefatos e performances são contingenciais, não são feitos para “ficar
sozinhos”154, ser objeto exclusivo de atenção estética (Ibid.). Essa é uma afirmação
complexa, mas acredito que não é cerne da questão, que deve, a meu ver, ser invertida:
objetos nunca aparecem sem contexto.

Não se trata de uma falta inerente a ele, mas sim de sua natureza relacional e da
natureza relacional das dinâmicas culturais e sociais. Procurei seguir uma linha de
raciocínio que analisa objetos em sua materialidade e como agentes em redes de
relações, e não como elementos discursivos. Uma anedota resume bem a questão. Uma
antropóloga e curadora de origem indígena trabalhava na reserva técnica de um museu
canadense quando outro antropólogo mostrou a ela um chocalho e perguntou “não é
lindo?”, “sim”, disse ela, “mas”, continuou o antropólogo, “como você o lê?”, pergunta
a qual respondeu com impaciência “droga, Wilson, eu não leio essas coisas, eu as
chacoalho!”. Mais tarde, a mesma antropóloga afirmou que é assim que o mundo se
divide, entre leitores e chacoalhadores155. Desta perspectiva, a questão de saber se
“objetos são capazes de falar por si próprios”, sem contextualização, parece deslocada.

Quem fala por meio de objetos são as pessoas. Objetos não falam, mas agem.
Assim, a análise das exposições desenvolvida aqui me leva a crer que o curador
desempenha o duplo papel de falar por eles, atribuindo-lhes e projetando neles
significados com base em sua interpretação, mas ele também age por meio do conjunto
de objetos organizados esteticamente, a exposição. Espero ter evidenciado neste
trabalho que não existe ambiente “neutro” ou “dado” no qual os objetos possam
simplesmente “existir”. Resta ao antropólogo que estuda cultura material, objetos, arte,
imagens, ou como se queira chama-los, buscar uma compreensão ampla e aprofundada
dos processos de contextualização e redes de relações. Estes processos ocorrem em
diversos níveis, sejam discursivos, práticos, políticos e, como busquei enfatizar, todos
eles são interdependentes e, de alguma forma, estéticos.

154
“stand alone”.
155
Edwards et al. (2006), na introdução de Sensible Objects, que leva o nome “Readers and Shakers”,
fornecem este diálogo entre Gloria Cranmer Webster e Wilson Duff no University of British Columbia
Museum em 1970. “He picked up a raven rattle, brought it over to me and asked ‘Isn’t it beautiful?’ ‘Yes’
I replied, and went back to my typewriter. He than asked ‘But how do you read it?’ Impatiently I said,
‘Shit, Wilson, I don’t read those things, I shake them’”.
181

O grande ator na mediação entre os elementos que se relacionam em uma


exposição é o curador. A função de curador não existiu sempre, oficialmente, ainda que
as escolhas sobre a maneira de se expor objetos sempre tenham tido impacto sobre as
relações estabelecidas com eles. O surgimento desta função está atrelado à um contexto
específico da história da arte ocidental marcado especialmente pela virada em direção à
“arte conceitual”, que colocou em evidência novas relações entre arte e espaço
expositivo. Ao longo do século XX, com o aumento da importância do “pendurador de
quadros”, e especialmente a partir da década de 1960, a figura do curador ganhou força,
atraiu profissionais e passou a ser fonte de autoridade.

O caráter conceitual da arte contemporânea afasta a questão do belo enquanto


cânone artístico em prol da capacidade da obra de exprimir ideias sobre o mundo e
experiências sensoriais. Gell (2001) já afirmava que há muito mais em comum entre a
arte conceitual contemporânea do ocidente e as artes de outras culturas do que se
costuma supor, já que ambas tem como valor sua capacidade de veicular significados e
intencionalidades complexas (Lagrou, 2009). Esta “novidade” (já nada nova) no
Ocidente encontra eco nas produções artísticas de outras culturas e talvez seja
responsável, de um lado, pelos movimentos de saída dos espaços museais – tanto nos
casos de museus de território, turismo folclórico, festivais étnicos quanto de
fortalecimento das chamadas street arts, das performances e intervenções urbanas – e,
de outro, das reformulações dos museus e centros culturais em busca de participação do
público em vários níveis e de tornarem-se fóruns e locais de manifestações culturais
mais diversas e vivazes.

Com o predomínio do “conceito” e da “ideia” em detrimento de um suposto


valor intrínseco do objeto de arte, o papel do curador é cada vez mais necessário para
mediar a transmissão destas ideias para o público e tornar as forma de exibir as obras
condizentes com os conceitos trazidos pelo artista. Assim, as exposições foram se
tornando cada vez mais conceituais e a atividade curatorial mais visível. Hoje
costumamos ver menos exposições com recortes temporais ou apenas biográficos e mais
exposições com recortes temáticos propostos pela curadoria, que ressignificam tanto as
obras apresentadas que chegam a se sobrepor às intenções dos artistas. O curador é o
artista da obra de arte/exposição.
182

Heinich e Pollak (1996) mapeiam a trajetória da profissão de curador, que tinha


uma posição inicialmente apagada, ou “disfarçada”, já que era responsável pela
formação de coleções públicas, o que implica na mistura entre gosto pessoal e critérios
supostamente neutros de adequação à instituição e seu público. A função passa a
caminhar na direção de uma singularização da pessoa a medida que o curador ganha
crédito por suas escolhas e pela inevitável influência decorrente de sua atuação como
comprador no mercado de Arte. A transformação de curador em autor advém de
diversos fatores, entre eles o aumento da divisão de tarefas nos museus, que passam a
ter funcionários distintos para exercer as funções que este acumulava anteriormente,
como a salvaguarda da coleção, o direcionamento de novas aquisições, a pesquisa e a
extroversão das coleções, ou seja, a concepção de exposições. Esta última tarefa é a que
permite certa singularização e proporciona um ganho de status.

Antes considerada a menos importante das funções curatoriais, a concepção de


exposições passa a ser a tarefa que define a profissão do curador, em um momento em
que há um aumento da legitimidade conferida àquele que entra em contato com os não-
iniciados (o público) e no qual percebe-se um fenômeno de aumento em número e
importância das exposições temporárias, em detrimento de exposições permanentes e
supostamente neutras (Heinich e Pollack, 1996). As exposições temporárias alcançam
uma quase-autonomia em relação às coleções, articulando relações entre instituições por
meio dos empréstimos de peças e da itinerância das mostras e potencializando as
relações pessoais do curador dentro do meio artístico/científico como relevantes para o
desempenho da função. É exatamente esta a realidade que encontramos no Museu do
quai Branly.

O caráter temático e cada vez mais específico das exposições também aumenta o
valor dos conhecimentos especializados do curador. Ele passa a desempenhar um papel
administrativo de negociador com instituições e financiadores, ser responsável pela
seleção de colaboradores de diferentes disciplinas, pelo posicionamento formal em
relação ao conceito, à temática e ao estilo das escolhas de apresentação, a coordenação
de uma equipe que inclui arquitetos, designers de cenografia e luz, entre outros, e pela
organização dos materiais impressos e do catálogo da exposição (Ibid. p. 236).

Tornando-se cada vez mais um objeto em si mesmo, a exposição é claramente


autoral, e faz do curador um autor, no mesmo sentido, segundo Heinich e Pollack
183

(1996), que o diretor de cinema a partir da década de 1960, e isso fica evidente na forma
como a mídia passa a apresentar exposições, citando o nome do curador como autor do
objeto, tal como estamos acostumados a ver nos filmes chamados “autorais”156.

A enorme quantidade de pessoas envolvidas hoje na concepção de uma


exposição acaba por diluir as responsabilidades e conceder mais autoridade ao curador
geral. Nas exposições do Museu do quai Branly, o comissaire d’expositions – o curador
– tem seu nome apresentado com destaque evidente, à frente de uma equipe de no
mínimo dez pessoas, além de instituições e patrocinadores, mas pode-se presumir que
haja ainda mais gente envolvida indiretamente nas exposições. No caso da Exposição
Maori, a ficha técnica certamente não dá conta da quantidade de pessoas realmente
envolvidas em sua produção, já que mobilizou funcionários de dois grandes museus,
que aparecem quase que apagados pela curadoria do “Museu Te Papa Tongarewa”, que
já consiste em um apagamento de participações em si.

A particularidade das exposições do Museu do quai Branly, e de exposições de


arte etnográfica em geral, é que, se o curador de Arte Contemporânea (ocidental) tem
sua atividade autoral comparada e confrontada com a dos artistas, em um museu como o
quai Branly, que exibe objetos que não são amplamente vistos como “arte” e,
especialmente, cujos produtores são dificilmente entendidos como “artistas”, e quase
nunca recebem crédito por suas produções, a autoria do curador de exposições torna-se
um processo ainda mais complexo. Se entendemos o curador como artista, então o
curador de arte etnográfica corre o risco de ser o único artista da situação, o verdadeiro
autor da exposição, aquele que assina a “obra de arte”.

Nos casos estudados aqui, o curador além de poder ser visto como um artista,
criador do objeto de arte/exposição constituído pelos objetos e outros elementos
expostos, é também autor da cultura apresentada. Ele é, em muitos sentidos, um
mediador e um inventor cultural, pois produz relações que constituem as culturas que
são apresentadas e interfere nelas por meio da exposição. Este é um dos pontos mais
complexos relacionados às disputas que ocorrem hoje nos museus etnográficos.

156
A comparação proposta pelos autores entre curador de exposições e diretor de cinema propõe um
paralelo entre as formas de legitimação da função e aumento de prestígio, que colocam ambos na posição
de controle da obra. Os autores escrevem baseados na realidade francesa das profissões, criando um
contraponto com os diretores de cinema americanos de Hollywood, que seriam em sua maioria ainda
subjugados aos interesses de um produtor. Na França, os custos e o tempo de produção, números de
público e custo de acesso de um filme e de uma exposição são bastante próximos (Heinich e Pollack,
1996).
184

Segundo Karp, (1991, p.15) “o que está em jogo no controle pela forma de exibir é,
finalmente, a articulação da identidade.”157.

Muitos museus ou exposições concebidos por ou em colaboração com povos


indígenas vêm traçando estratégias para que a forma de apresentar seus objetos seja ao
mesmo tempo mais justa com seus antepassados e mais contributiva para a vida
presente da sociedade em questão. A proliferação de museus nativos e experiências
colaborativas não pode ser caracterizada por um “estilo nativo” determinado de
conceber exposições. No colóquio organizado pelo Museu do quai Branly na ocasião da
Exposição Maori escutei relatos sobre experiências interessantes, fruto do que Anne
Christine Taylor, organizadora do evento, caracterizou como “uma mudança ocorrida
nos últimos vinte anos na representação museal de perspectivas ‘de fora’ para
‘perspectivas simétricas’”158.

Muitos exemplos apresentados no colóquio vinham de museus locais ou


comunitários159, vários deles formados a partir de objetos restituídos à comunidade por
grandes museus inclusive de outros países. Em torno destes museus são organizadas
experiências de memória de grupos sociais, que costumam ao mesmo tempo fortalecer
suas lutas por direitos. Esta emergência de museus locais encontra paralelos com a
realidade brasileira, ausente do colóquio, mas bem delineada por Bessa (2003) no artigo
“A descoberta do museu pelos índios”, que mapeia algumas iniciativas de etnias
indígenas particulares, geralmente motivadas pela afirmação identitária com vistas à
garantia do direito à terra160. Os vários Grupos de Trabalho sobre museus étnicos,
periféricos, de território e “pontos de memória” nos últimos congressos antropológicos
testemunha este movimento de expansão.

157
“What is at stake in struggles for control over objects and the modes of exhibiting them, finally, is the
articulation of identity.”.
158
Fala de abertura do Colóquio “S’exposer au musée. Réprésentations muséographiques de soi.”. 2011.
159
Como os exemplos apresentados por James Clifford de dois museus tribais da América do Norte que
encontraram soluções diferentes para apresentar objetos do Grande Potlatch restituídos recentemente a
suas comunidades, um com proposta curatorial mais histórica querendo ser um centro catalizador para
artistas contemporâneos se relacionarem com o exterior e outro que valoriza mais as questões cotidianas
locais e apresenta os objetos como propriedades individuais, lembranças íntimas da comunidade que vive
ali sua memória e seu presente.
160
Destaca-se neste cenário o Museu Maguta, no Amazonas, dos índios Ticuna. O Museu conta com uma
exposição permanente sobre a questão das terras, apresentando mapas desenhados pelos próprios índios,
aspectos culturais considerados por eles como importantes de serem preservados ou resgatados e uma
parte dedicada à vontade de atualização da cultura e reinterpretação do mundo (Bessa, 2003).
185

Outros exemplos de curadoria participativa lançam olhar sobre grandes museus,


geralmente museus do Estado, mais comparáveis ao Museu do quai Branly e também ao
Te Papa da Nova Zelândia. Estas experiências161 pretendem solidificar identidades
locais e nacionais, integrando as particularidades de grupos “minoritários” ao
imaginário geral do país, recorrendo a propostas curatoriais de estilo variado e contando
com maior ou menor participação efetiva de nativos, valorizando em muitos casos a
perspectiva dos próprios grupos sobre sua cultura e história162.

É constante nestas experiências a presença de antropólogos que atuam muitas


vezes como mediadores ou como curadores que valorizam a participação nativa. Mas há
outros caminhos sendo explorados por antropólogos, como aqueles apresentados por
meio das Exposições Antropológicas do Museu do quai Branly. Nestas exposições, o
sentido conceitual e as teorias sobre objeto, materialidade, arte e imagens ganham
importância e o ponto de vista do curador ganha legitimidade pela intensidade e respeito
atribuídos a suas pesquisas etnográficas prévias. A curadoria autoral e as reflexões feitas
dentro da Antropologia sobre as formas de expor objetos têm provocado ainda o
surgimento de “meta-exposições”, como no exemplo mais emblemático fornecido por
“Art/Artifact”163 com curadoria de Susan Vogel. Nesta exposição, cada sala exibia
objetos de arte africana inseridos em uma estética ou estilo característicos de uma
época, que reflete determinados pontos de vista e concepções ocidentais sobre a cultura
material dos povos africanos, sejam os gabinetes de curiosidades do século XVI, os
museus etnográficos do século XIX ou as galerias de arte contemporânea do século XX.

O importante é que estas exposições são assumidamente uma contribuição


particular, apresentadas como uma versão, uma proposta de olhar sobre os objetos, e
não uma verdade definitiva sobre eles. Há muitas formas de se afirmar a particularidade

161
Laurent Jêrome detalhou os planos de ação colaborativa do Museu da Civilização e das Primeiras
Nações no Quebec, que deram origem à exposição permanente “Nós, as primeiras nações” e houve ainda
um exemplo de museu que decidiu deixar de ser “museu” para ser “centro cultural”, o Centro Cultural
Tjibaou da Nova Caledônia, apresentado por Emmanuel Kasarhérou, onde parte-se primeiramente de
dança, gesto e performance, e não de exposições de objetos para representar a cultua Kanak, muito mais
apegada ao patrimônio intangível.
162
Este tipo de narrativa de exposições nas quais aparece a palavra “nós” é bastante frequente nos grandes
museus e atesta a tentativa de afirmar a participação dos grupos minoritários. Um bom exemplo é
fornecido pela dissertação de Bertolossi (2010), escrita no Brasil, mas que aborda o National Museum of
the American Indian, nos Estados Unidos, mostrando como sua concepção, desde a arquitetura até as
exposições, é fruto de demandas feitas por indígenas de diferentes tribos, que participam também de sua
estrutura administrativa, fazendo do museu testemunha viva da complexidade da criação de um “nós”,
decorrente do “pan-indianismo” que se constrói nesse país.
163
A exposição foi exibida em 1988 no Center for African Art, em Nova York.
186

de uma proposta curatorial. Gurian (1991) sugere, por exemplo, que as legendas
deveriam ser escritas em primeira pessoa, evitando o tom de objetividade e
imparcialidade geralmente conferido a elas. Uma exposição assinada, diz, deve ser
narrada pelo curador, pois “é um ato pessoal, criativo e análogo a uma obra de arte
assinada, e torna-se intencionalmente uma exposição autobiográfica.”164 (Gurian, 1991,
p.187). Uma exposição não assinada, ao contrário, reforça a ideia de uma autoridade
“quase-divina” por trás da seleção dos objetos e outros elementos.

Em um grande museu como o quai Branly, é de extrema importância que as


curadorias sejam cada vez mais explicitadas e múltiplas. Na fala de Taylor
(comunicação pessoal, 2011) sobre as exposições do museu, percebi dois caminhos para
o problema da ausência de curadoria declarada na exposição permanente do museu, o
primeiro, que vem sendo seguido, segundo ela, é tentar modificar lentamente a
exposição em busca de uma maior neutralidade, fazendo dela cada vez mais uma
“reserva aberta”; o segundo, apontado como extremamente necessário, mas que percebi
que não será feito tão cedo, é explicitar com mais clareza a autoria curatorial de
Stéphane Martin. Sobre as exposições temporárias, entretanto, Taylor afirmou que há
uma clareza dentro do museu de que não há discurso verdadeiro ou correto a ser
apresentado e que, em sua opinião, o que funciona melhor para este tipo de museu é
buscar “camadas de discurso”, por meio de exposições que apresentem pontos de vista
os mais variados possível.

Porém, como aponta Mieke Bal (apud Basu; Macdonald, 2007) as exposições
que reconhecem abertamente o papel autoral do curador, resposta mais comum às
críticas sobre a ausência de autoria nas exposições, não necessariamente desafiam a
autoridade do curador. Explicitar a autoria curatorial não resolve o problema da
autoridade curatorial. Esta crítica, se pensarmos na história da Antropologia, remete ao
processo de desconstrução da autoridade etnográfica, como problematizada por Clifford
(1998), e deve tornar-se um profícuo objeto de discussão na medida em que mais e mais
antropólogos se lancem no desafio de conceber exposições.

Assim como nas representações feitas por meio da escrita etnográfica, nenhuma
das exposições deve ser vista como mais “verdadeira” do que outra. Nem a curadoria

164
“is a personal, creative act analogous to a signed work of art, and intentionally becomes an
autobiographical exhibition”.
187

nativa, ou a autorrepresentação, pode superar todas as outras possíveis formas de se


apresentar objetos. Mas existem questões éticas implicadas no fazer curatorial e museal
que justificam a necessidade do aumento da participação ou colaboração na construção
das representações. Muitas críticas ao museu permanecem pertinentes. As relações
obscuras da coleção do museu com o período colonial e com o mercado da Arte; a
persistente resistência em tratar seriamente as demandas de restituição de objetos; a falta
de uma incorporação efetiva e inteligente da população imigrante da França, que conta
com muitos descendentes dos produtores dos objetos do museu; e, com relação à
curadoria das exposições, o fato de que estas “camadas de discurso” ainda incluem
muito pouca participação nativa efetiva.

Sally Price afirmou em seu livro sobre o Museu do quai Branly que “culturas
não dialogam... pessoas sim.”165 (Price, 2007, p.126). Ainda se cobra muito deste museu
o estabelecimento de diálogo para além das “representações”, diálogo em termos de
participação efetiva e possibilidade de mudanças internas. Fala-se também na
necessidade de maior circulação das coleções. Para os museus poderem ser, como
defende Henare (2005), o centro da continuidade das relações entre objetos e pessoas,
talvez seja necessário que se pare de tratar objetos como textos, matéria inerte sobre a
qual o significado é construído e se invista mais em sua capacidade real de agenciar
relações (Henare, 2005 e Henare; Holbraad; Wastell, 2006), inclusive, acrescento, em
suas propostas curatoriais, possibilitando não apenas “camadas de discurso”, mas
interações em múltiplos níveis.

Exploramos aqui o processo de concepção e materialização de uma exposição,


os mecanismos intencionais de curadorias de exposições realizadas no Museu do quai
Branly, contextualizados em discursos e relações históricas e transculturais, e como eles
afetam e são afetados pelos objetos. Desta forma pode-se perceber como as exposições
passam a ser objetos dotados de intencionalidade. A atribuição de intencionalidade à
uma exposição por parte do curador, que buscamos compreender neste estudo, é um
processo complexo de articulação de elementos de vários tipos que dota o objeto-
exposição de agência. Entretanto, devemos ter em mente que a agência não é algo que
segue uma fórmula dada, não é uma mensagem explicita com transmissão garantida.
Como nem sempre os discursos dão conta das situações, as intencionalidades foram

165
“(...) cultures don’t dialogue... people do.”.
188

consideradas aqui dentro de uma análise da visualidade das exposições, de sua


materialidade, e também de relações exteriores a ela, levando em conta estratégias
declaradas e inferidas, presenças e ausências.

Mas deve-se atentar para o fato de que a recepção do público não pode ser
reduzida às intenções do curador. A agência da exibição (agency of display) existe
apenas na relação. No momento do contato com a exposição, diferentes visitantes terão
diferentes impressões, sensações, visões e entendimentos. Assim, não podemos reduzir
a agência de cada objeto apresentado à agência total da exposição, nem determinar o
efeito da exposição pelas intenções de sua curadoria. Esta pesquisa não pretendeu, nem
teve condições, de dar conta das reações do público. Esta seria uma outra e grande
empreitada.
189

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Comunicado à imprensa “Fréquentation 2012” www.museeduquaibranly.fr
Symposium International “Des collection anatomiques aux objets de culte: conservation
et exposition des restes humains au musée”. Realizado no Museu do Quai Branly em 22
e 23 de fevereiro de 2008. Transcrição disponível em:
http://www.quaibranly.fr/fr/programmation/manifestations-scientifiques/manifestations-
passees/colloques-et-symposium/saison-2009/des-collections-anatomiques-aux-objets-
de-culte-conservation-et-exposition-des-restes-humains-dans-les-musees.html
Colóquio S’exposer au musée. Representations muséographiques de soi. Comunicações
verbais.
Sites
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www.museeduquaibranly.fr

www.ymago.quaibranly.fr

www.tepapa.govt.nz

www.parispelemele.fr

www.blissinthecity.fr

project-iles.net/projets/exposition-planete-metisse

www.googleearth.com
198

Anexo 1

Descrição detalhada das três Exposições Antropológicas

Qu’est ce qu’un corps?

A primeira Exposição Antropológica foi realizada pouco depois da abertura do


Museu. Qu’est ce qu’un corps?166 apresentava, por meio dos objetos expostos, ideias
desenvolvidas nas pesquisas de diversos antropólogos sobre diferentes concepções e
formas de conceber o corpo pelo mundo. O curador da exposição foi o etnólogo e
cineasta Stéphane Breton167 que, para responder antropologicamente à pergunta que dá
nome à exposição – o que é um corpo? –aposta justamente na desestabilização da noção
de corpo, tal como o público ocidental está acostumado a concebê-lo.

Na exposição, Breton escolheu apresentar o corpo em quatro regiões diferentes e


trabalhou em colaboração com outros antropólogos: Michèle Coquet e Michael
Houseman colaboraram na seção sobre a África Ocidental168, Jean-Marie Schaeffer na
seção Europa Ocidental, o próprio Breton se encarregou da seção Nova-Guiné e Anne-
Christine Taylor e Eduardo Viveiros de Castro na seção Amazônia. Exibindo objetos e
teorias sobre os habitantes destas regiões do mundo, aflorariam relações com Deus, com
o sexo materno, com os seres que povoam o mundo, enfim, relações que vão além do
que entendemos normalmente sobre o que é um corpo. Segundo Breton, a exposição
não mostra objetos, mas “um argumento”, que seria “figurado” pelos artefatos, uma vez
que estes são entendidos por ele como “signos e instrumentos – ou seja, agentes – que
servem a fabricar a relação da qual falamos, não somente representações formais,
ilustrações.” (Breton, 2006, p.23)

A exposição apresentava 155 objetos, dos quais 68 vinham de outros museus, da


França e do exterior. As seções do percurso eram divididas de acordo com as quatro
regiões abordadas, buscando transmitir o argumento central por meio do contraste entre

166
“O que é um corpo?” em cartaz entre junho de 2006 e novembro de 2007.
167
Breton é pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École
des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Realizou pesquisa de campo por muitos anos
entre os Wodani, nas terras altas da Papua Nova-Guiné, tratando de temas como troca, bruxaria, noção de
pessoa, corpo e sexualidade. Breton realizou um filme na Nova-Guiné, chamado “Eux et Moi”, em 2001,
e passou a se dedicar cada vez mais à produção de filmes etnográficos, tendo realizado onze filmes até
hoje, em diversas partes do mundo.
168
Região conhecida na França como “Afrique de l’Ouest”, ou “África do Oeste”.
199

elas. Segundo o cenógrafo que trabalhou com Breton, Frédéric Druot, a exposição se
articula entorno de quatro “instalações específicas”, “simplesmente religadas pelo
deslocamento e pelo olhar do público.” A organização espacial e o mobiliário de cada
parte são diferenciados e específicos, “levando o visitante ao argumento antropológico,
até colocar seu próprio corpo em perspectiva”169. O percurso contava com muitas
vitrines, poucos elementos cenográficos e grande parte dos textos aplicada sobre o piso,
tablados ou parte inferior das vitrines170.

A primeira seção apresentava a África Ocidental, sob o título: O corpo e seus


duplos. Era subdividida em três partes, a primeira chamada “o corpo é de terra”,
trazendo objetos criados a partir da terra, que figuram ancestrais por meio de formas não
figurativas. A segunda é “o recém-nascido é um estrangeiro”, que aponta para o
pertencimento dos bebês ao mundo dos ancestrais e “gênios”, sendo necessários
diversos rituais, como a circuncisão e a escarificação para que possa tornar-se uma
pessoa completa. A terceira é “jogo de espelhos”, na qual são apresentadas estátuas que
remetem a figuras míticas exemplares, marcadas por signos formais de seus atributos,
entre eles a nobreza, o poder, a sabedoria, a riqueza e a fecundidade, elementos
figurativos que aparecem como contraponto plástico à indeterminação formal dos
ancestrais e à invisibilidade dos gênios.

Breton pretendeu chamar atenção para o corpo inserido na logica da filiação,


refratado através do tempo e do espaço, um corpo que não seria o ponto de referência
fixo da transmissão ancestral, mas “apenas o resto ou o acidente dessa filiação contínua,
ignorando toda diferença entre o morto, o vivo e o ainda não nascido” (Breton, 2006,
p.202), em suma, “o corpo humano seria apenas a expressão temporária e fugidia de
uma linhagem de genitores.” (Ibid.).

A segunda seção traz a Europa Ocidental e chama-se “O corpo é imagem”.


Breton explora como principal referência do corpo europeu sua construção pelo
cristianismo. Trata-se de um corpo que é a reprodução não-social de um modelo
generativo incorpóreo, seja o divino e transcendente, ou, atualmente, biológico e
imanente. As “cópias corporais individuais” são todas voltadas para seu modelo, mas
não umas para as outras, o que faz com que toda forma de relação seja absorvida pela

169
A descrição do projeto cenográfico encontra-se no site do cenógrafo: http://www.druot.net/qqc.html
170
Ver Figura 67 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
200

representação (Breton, 2006). Assim, nesta seção, o objeto de destaque é uma escultura
romana do século XII de cristo pregado à cruz. Havia ainda pinturas de artistas
consagrados, como Francis Bacon. A representação imagética do corpo ocidental
moderno, secularizado e marcado fortemente pelas concepções biológicas é abordada
numa instalação que apresenta uma série de monitores exibindo em alta velocidade as
representações virtuais do humano nas culturas ocidentais, “figuras deformadas,
flutuando como ‘lugares-comuns’ no espaço”171.

Figura 01: Exposição “Qu’est ce q’un corps?”, seção “Europa Ocidental”. Instalação imagética criada pela
curadoria. Foto:Nicolas Borel ©museeduquaibranly

A terceira seção fala do corpo na Nova-Guiné, região onde o curador realizou a


maioria de suas pesquisas. Sob o título “A matriz masculina”, explora as teorias de
reprodução que formam o corpo, um composto do masculino e do feminino,
fundamentalmente andrógino. A relação em questão nesta seção é horizontal: o corpo é
signo e instrumento da aliança matrimonial entre grupos sociais contemporâneos 172. Ele
é constituído pela incorporação da alteridade dos corpos envolvidos na reprodução. A
primeira parte, “transformação do conteúdo em continente”, apresenta diferenças do
corpo masculino e feminino e a dinâmica englobante necessária para a perpetuação dos
homens, para que se tornem continentes e férteis, o que é alcançado por meio de ritos de
iniciação. Alguns objetos usados neste tipo de ritual são expostos, como esculturas que
figuram esta transformação do corpo e tubos fálicos que transformam o corpo masculino
em órgão englobante. A segunda parte é “o corpo feminino é a forma ideal do corpo

171
Descrição do percurso no site do museu.
172
Breton apresenta os casos da África Ocidental e da Nova-Guiné como sendo próximos por serem
determinados por um ponto de vista intra-humano, mas sua diferença seria o eixo da relação – vertical na
África e horizontal na Nova-Guiné. Estes dois casos teriam sido escolhidos por oferecerem exemplos de
diferenciação complementar à oposição mais marcada e antitética entre os casos Europeu e Amazônico.
201

masculino” e apresenta alguns desses rituais nos quais o corpo masculino é marcado por
elementos femininos.

A última seção da exposição é a Amazônia, cujo título “Um corpo feito de


olhares” aponta para a inconstância do corpo nessa região. O corpo não tem forma
própria e é definido em relação à alteridade. Baseando-se na teoria do perspectivismo
amazônico, Breton apresenta aqui um corpo relacional, definido por uma perspectiva
que pressupõe um olhar externo. As relações entre os seres humanos e não-humanos
que povoam o mundo são regidas pela premissa de uma diferença ontológica. Os seres
não-congêneres são, da perspectiva um do outro, vistos segundo uma relação alimentar,
sendo o corpo do “outro” percebido ora como presa ora como predador. Os não-
humanos veem a si mesmos como humanos quando compartilham o mesmo regime
alimentar. Assim, “o corpo humano é a materialização de uma relação de identidade ou,
mais precisamente, de uma identidade das relações com relação a um terceiro.” (Breton,
2006, p.22).

Na primeira parte, “Corpo de parente”, a construção do corpo é ressaltada por


meio da apresentação vestimentas e ornamentos que visam a inscrição dos valores
sociais no corpo. Em “Corpo de presa e de predador”, a relação de predação aparece
como principal motor da transformação do corpo e novamente são ornamentos que
aparecem, salientando a particularidade das culturas amazônicas que não se preocupam
tanto com a representação do corpo, mas sim com sua fabricação, que passa
constantemente pela ornamentação. Entre os objetos expostos nesta seção encontram-se
cocares e outros artefatos plumários, fotografias das pinturas corporais utilizadas pelos
indígenas e de rituais xamânicos, colares feitos de dentes de animais, entre outros. Estão
expostas também cabeças reduzidas Jivaro, as mesmas exibidas na exposição Cheveux
Chéries, e uma cabeça mumificada mundukuru, que aqui ilustram o processo de “tornar-
se o inimigo”, “transformá-lo em congênere” (Breton, 2006, p.179,182).
202

Figura 02: Exposição “Qu’est ce q’un corps?”, seção “Amazônia”. Vitrine com artefatos plumários ameríndios. Foto: Nicolas Borel
©museeduquaibranly

Planète Métisse: to mix or not to mix?

A segunda exposição a compor o grupo foi Planète Métisse: to mix or not to


mix?173, que trazia ao público objetos de várias partes do mundo que testemunhem
processos de mestiçagem, “choques entre culturas” e processos históricos nos quais
objetos, técnicas, símbolos, materiais e funções foram trocados e incorporados,
transformando a arte de cada povo na medida em que eram eles também transformados
pelos contatos com diferentes sociedades. O curador desta exposição, Serge Gruzinski,
não é exatamente um antropólogo, mas um historiador que tem intenso diálogo com a
antropologia174. Ao longo de sua carreira, Gruzinski vem explorando o tema da
mestiçagem, abordado na exposição175.

O processo de mestiçagem aparece como fenômeno universal, exacerbado pelos


movimentos de mundialização, que tem suas raízes no início da expansão marítima do
século XVI. Gruzinski trata desses encontros como “processos de recomposição
permanente”, situações de trocas, de “misturas culturais”176. Esses encontros que

173
“Planeta Mestiço: misturar ou não misturar?”, em cartaz entre março de 2008 e julho de 2009.
174
Gruzinski é francês, também pesquisador e professor do CNRS e da EHSS, em Paris. Ele se dedica ao
estudo das colonizações da América e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de
mestiçagem e de nascimento de espaços híbridos, e das primeiras manifestações da mundialização.
175
O conceito é especialmente trabalhado em seu livro “O pensamento Mestiço” (2001 [1999]).
176
O autor deixa claro que o termo é falacioso. É preciso atentar para o fato de que o termo “cultura”
induz a compreensão de que estas seriam conjuntos abstratos, estáveis e delimitados, quando, na verdade,
estamos falando de “sociedades, ou seja, de indivíduos, de grupos e de classes sociais que se afrontam, se
misturam, trocando ou impondo fragmentos de patrimônios dos quais são, conscientemente ou não,
portadores.” (Gruzinski, 2008, p.17).
203

produzem inevitavelmente mestiçagens são analisados por Gruzinski, como encontros


produtivos em uma guerra de imagens177 que, longe de produzir apenas substituições,
foi feita de acomodações e adaptações.

Para tornar palpável esse “fenômeno planetário”, a exposição exibe 290 objetos,
pertencentes à coleção do Museu do Quai Branly ou emprestados de outras coleções,
objetos antigos e contemporâneos. Seu percurso foi dividido em quatro partes, que não
derivam de divisões geográficas nem estritamente cronológicas, mas que consistem em
uma linha argumentativa que pretende definir o objeto tematizado e a mensagem
transmitida – a mestiçagem enquanto mecanismo inevitável. Com o objetivo de fazer
com que os objetos “dialoguem entre si, que os mecanismos de mestiçagem apareçam”,
o mezanino foi completamente transformado por uma cenografia que pretendeu “criar
um percurso contínuo, um espaço amplo, dividido por colunas criando nichos para mis-
en-scènes específicas”. Utilizando materiais leves e visualmente porosos como fios
luminosos, véus, telas de lâminas metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam
espaços redondos ou ovais, chamados pelo cenógrafo responsável, Reza Azard, de
“corpos híbridos”178.
A primeira seção, chamada “Mestiços?”, se pretende um momento de
descoberta, de percepção da alteridade e questionamento de ideias supostamente gerais.
O visitante é interpelado pela apresentação de pares de objetos, como esculturas e peças
de moda, acompanhados de binômios provocativos, como: “Antigo ou Primitivo?”,
“Neo-clássico ou Primevo?”, “Clássico ou Étnico?”, “Folclórico ou Exótico?”. A ideia
aqui é desestabilizar as categorias que se imagina que o visitante já traz consigo e
mostrar que a mestiçagem está presente por toda parte.

177
A ideia de mestiçagem como mecanismo produtor de imagens é especialmente desenvolvida por
Gruzinski em “A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019)” (2006
[1990]).
178
Ver Figuras 68 e 69 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
204

Figura 03: Exposição “Planète Métisse” – Antigo ou Primitivo? Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly

Nesta parte encontra-se um objeto interessante, detalhadamente analisado pelas


legendas, que serve a demonstrar a dificuldade de se encaixar um objeto mestiço nestas
categorias. Trata-se do codex barbonicus, calendário divinatório realizado pelos
mexicanos que passaram a incorporar alguns aspectos europeus, como o corte e
organização em formato de livro e o conceito geográfico, mas que mantinham o caráter
histórico e temporal característico dos calendários nativos mexicanos que incluía nos
desenhos uma narração de acontecimentos marcantes. Em espaços deixados vazios,
letras e palavras em espanhol figuravam nos desenhos, como uma representação
concreta da colonização dos calendários pelo alfabeto espanhol. Na exposição, as
legendas indicavam que era necessário, para vê-lo como viam os nativos, circundá-lo. O
códex seria um objeto mestiço por excelência, pois combina diversos elementos
indígenas e europeus, de forma dificilmente detectável a primeira vista.
205

Figuras 04, 05: Códex Barbonicus. Exposição “Planète Métisse”. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly

A segunda seção, “Choques e encontros de mundos”, propõe uma


contextualização mais histórica dos objetos e das culturas, focando nos processos
colonizadores como impulsionadores de mestiçagens. Há uma predominância de
exemplos provenientes do contato entre Portugueses e Espanhóis e os povos por eles
colonizados, tema privilegiado de estudo do curador. É o caso da saleira sapi-
portuguesa, produzida na África no início da colonização, quando o tráfico de escravos
e comércio do ouro colocava africanos e portugueses em contato, trazendo referências
europeias para os escultores que criavam peças de metal e marfim. Há também objetos
utilizados na religião vodu haitiana, apontada como exemplo máximo do sincretismo,
que combinam formas de globo terrestre aprendidas dos europeus, cruzes católicas que
representam também as encruzilhadas, bandeiras como as usadas pelos exércitos e
grafismos que remetem a suas raízes africanas, bordados com contas de vidro trocadas
com os colonizadores.
206

Figura 06: Bandeira Voudu. Exposição Planète Métisse”. Fonte: www.museeduquaibranly.fr

Depois o visitante passa por “Fábrica de mestiçagens”, que pretende mostrar um


pouco do processo de criação dos objetos mestiços, ou diferentes maneiras de unir as
influências diversas na produção de um objeto. Em uma vitrine apresenta-se de um lado
um adorno de cabeça mexicano feito com plumas, de outro a gravura La messe de Saint
Grégoire feita por Van Meckenem Israhel em 1450, que pertence ao museu do Louvre,
enquanto no centro, via-se um mosaico de temática cristã realizado com centenas de
plumas multicoloridas, material extremamente valorizado pelos indígenas, que levava o
mesmo nome da gravura europeia. Esta vitrine parece resumir materialmente o
mecanismo da mestiçagem apresentado pelo curador.
Esta seção aponta para diferentes tipos de mestiçagem, não somente nos
materiais e técnicas, mas também mestiçagens de crenças e mestiçagens no poder.
Gruzinski ressalta a importância das relações de poder nestes processos, já que muitos
dos “contatos” ocorrem em situações coloniais, de dominação e exploração, ainda que
os “objetos mestiços” possam surgir justamente de uma forma de negociação estética,
de “resistência inventiva à supremacia do Ocidente” (Gruzinski, 2009, p.23). Isso
aparece claramente na Estatueta da Rainha Victoria, realizada por um artista yoruba da
Nigéria, testemunha da colonização britânica. Feita em madeira, foi inspirada numa
fotografia oficial da rainha enviada às colônias, mas suas proporções e alguns códigos
formais seriam correspondentes aos tradicionalmente utilizados nas estátuas do rei
sagrado oba.
A última parte, “Horizontes mestiços?”, aborda manifestações contemporâneas
da chamada “mestiçagem cultural”. Um objeto apresentava, nesta parte, músicas
brasileiras consideradas por Gruzinski mestiças, como um samba de Zé Kéti, um rock
do Legião Urbana, uma mistura de eletrônico com maracatu de Chico Science, entre
outras. Para Gruzinski, a música seria o recipiente por excelência da mestiçagem. No
Brasil, a mestiçagem intensa entre sons trazidos pelos africanos que chegam
escravizados no país e a música indígena e europeia parece ser objeto privilegiado para
a exposição. Mas a exibição de um áudio impõe desafios por seu caráter imaterial. A
solução encontrada pela curadoria foi a criação de um objeto-suporte para essas
músicas, uma instalação em formato de árvore feita de tubos coloridos que podiam ser
manuseados pelos visitantes para que aproximassem a saída de um tubo de seu ouvido e
então escutassem uma das músicas. O intrigante aqui é que, para além das composições
sonoras, o próprio suporte pode ser visto como um objeto de arte, criado pela curadoria.
207

Figura 07: Árvore de músicas mestiças criada pela curadoria da exposição “Planète Métisse”. Fonte: projectiles ©M.
Blondeau

Assim como na música, onde se percebe pela heterogeneidade de estilos e


épocas de criação que o processo de mestiçagem é contínuo, a exposição se encerrava
com apontamentos da mestiçagem na modernidade, mostrando cartazes e trechos de
filmes produzidos na Ásia que tiveram grande sucesso em todo o mundo e também de
diversos filmes produzidos em Hollywood que apresentam forte influência do cinema
asiático, seja na estética, no roteiro ou na inspiração na cultura das artes marciais e
outros aspectos da cultura asiática.
No catálogo da exposição, Gruzinski define a problemática que se propôs a
abordar, revelando com clareza a presença de uma “mensagem” a ser transmitida pela
exposição para o público que o curador imagina como alvo:

“[...] a mistura de culturas não é apenas um efeito de moda, domínio no qual nada é adquirido.
Ainda preferimos muito as oposições marcadas do que a complexidade e imprevisibilidade das
coisas. [...] Sobre esses reflexos pesa fortemente ainda uma maneira de ver o mundo que o
cristaliza em categorias e campos antagônicos demasiado simples e redutores para não
dissimular as passagens, os paradoxos e as mil ambiguidades perturbadoras que teçem o real. [...]
É desta dificuldade e desta resistência que tenta dar conta Planeta Mestiço.” 179 (Gruzinski, 2008,
p.16,17).

179
“(...) le mélange de cultures n’est pas seulement un effet de mode et qu’en ce domaine rien n’est
acquis. On prefere encore trop les oppositions tranchées à la complexité et à l’imprevisibilité des choses.
[...] Et sur ces reflexes pèse encore lourdement une maniére de voir le monde qui le cristalize en
catégories et camps antagoniques, trop simples et trop réducteurs pour ne pas dissimuler les passages, les
paradoxes et les milles ambiguïtés troublantes dont est tissé le réel. [...] C’est d’abord de cette dificulte et
de cette résistance que voudrais rendre compte Planète Métisse.”
208

Concebida para ser vista predominantemente por europeus, que “ainda preferem
as oposições marcadas à complexidade e imprevisibilidade”, a exposição oferece uma
resposta clara à pergunta que compõe seu título: “misturar ou não misturar?”. “Seria [a
mestiçagem] o fermento de um perpétuo enriquecimento e de uma constante abertura
para o outro?”, pergunta Gruzinski (2008, p.20). Salientando que não podemos esquecer
que as mestiçagens nunca são neutras, aponta para a resposta: “reservemo-nos, portanto,
a celebrar uma mestiçagem cultural destinada a preencher positivamente fraturas sociais
e econômicas dificilmente reduzidas de outra forma.” (Gruzinski, 2008, p.20).
La Fabrique des Images
A terceira exposição antropológica realizada no museu foi La Fabrique des
Images180, com curadoria do antropólogo francês Phillipe Descola181. A exposição
concebida por Descola apresentava quatro formas diferentes de figurar, ou criar
imagens. Elas correspondem às quatro formas ontológicas de conceber a natureza
(modelos analíticos de cosmovisões) – analogista, totemista, naturalista e animista182.
Estas formas ontológicas corresponderiam, e se constituiriam, por quatro formas de
figurar, de produzir imagens.
Assim, a exposição proposta por ele é dividida em quatro seções,
correspondentes às quatro formas ontológicas de figuração. A exposição tem caráter
bastante didático e se inicia por uma sala introdutória que explica o pressuposto teórico
e define as quatro ontologias. Cada uma delas é identificada por uma cor, presente nos
textos explicativos e demarcada no piso do espaço, guiando o visitante pelas respectivas
seções. As quatro formas de figurar são ainda localizadas num mapa, apresentando
sociedades representativas destas ontologias e seus respectivos objetos. Segundo
Descola, as ideias sobre como deveria ser o percurso da exposição já estavam bastante
claras para ele, mas foram complementadas pelas ideias trazidas pelo
arquiteto/cenógrafo, Pascal Rodriguez183.

A primeira seção, “O mundo é animado”, apresenta objetos das Américas de Sul


e do Norte. Um dos objetos marcantes desta seção é uma “máscara de transformação”

180
“A Fábrica de Imagens”, em cartaz entre fevereiro de 2010 a julho de 2011.
181
Sucessor de Claude Lévi-Stauss na direção do Laboratoire d’anthropologie social (LAS) e na cadeira
de Antropologia da Natureza no Collège de France, Descola também é professor na EHSS e pesquisador
do CNRS. Suas pesquisas etnográficas foram realizadas entre os Jivaro, população indígena da Amazônia
equatoriana.
182
Modelo desenvolvido em seu livro “Par-delà nature et culture” (2005).
183
Ver figuras 70 e 71 na seção 3.2.2 da presente dissertação.
209

da América do Norte exibida entreaberta, deixando ver seu exterior de animal e seu
interior de humano, apontando para o caráter transformacional das fisicalidades em
sociedades caracterizadas por este tipo de ontologia, totalmente dissociadas da
interioridade. A figuração animista segue um mecanismo chamado de “comutação”, que
permite dar a ver a interioridade comum que torna possível uma vida social e cultural
partilhada entre todos os seres. As imagens presentes neste “mundo animado” tornam
perceptível esta subjetividade ou humanidade comum a todos apesar da diversidade de
suas aparências.. Segundo Descola, a metamorfose desta máscara, possibilitada pelo
duplo ponto de vista que oferece, revela a interioridade humana nos espíritos animais, já
que (In Blanc, 2010:7), “no mundo animado do animismo, o movimento denota uma
intenção e toda intenção remete necessariamente a uma interioridade, para a qual os
humanos servem de modelo.”.

Figura 08: Máscara de transformação. Exposição “La Fabrique des Images”. ©blissinthecity

Além do movimento presente em certos objetos expostos, Descola utilizou


elementos visuais e sonoros como uma variação bastante sutil na iluminação e sons de
“passos na neve” – uma referência à algo que percebeu ser constante na literatura do
extremo norte, mas que se assemelha também aos passos sobre as folhas na floresta –
buscando cenograficamente provocar um “sentimento de presença. Passar uma ideia de
que alguma coisa está ali, não se sabe ao certo o quê...” (comunicação pessoal, 2012).

Na segunda seção, “O mundo é objetivo”, é abordada a ontologia Naturalista,


típica da Europa a partir do Renascimento184. No mundo naturalista, a interioridade
concerne apenas os humanos e tudo que está a sua volta faz parte do mundo “objetivo”
da “natureza”. O processo de “representação”, por meio da semelhança extrema com o
“real” é o que denota a verdade das imagens. Apresentando pinturas flamengas e
holandesas dos séculos XVI e VII, Descola explora a ideia de interioridade
184
Antes deste período, a figuração europeia seria condizente com uma ontologia analogista.
210

desenvolvida no Ocidente, especialmente nas “pinturas da alma”, que buscavam uma


visão do interior, ressaltando a singularidade da pessoa representada por sua psicologia
e personalidade, além da singularização do artista por meio da assinatura da obra. Com
o avanço da ciência, a interioridade do indivíduo é reduzida a parâmetros físicos e a
imagem deixa de ser uma representação de algo além dela mesma, “tendendo a tornar-se
uma pura exterioridade, um simples efeito de superfície” (Blanc, 2010:11).

A terceira seção apresenta o totemismo, sob o título “O mundo é subdividido” e


traz somente os aborígenes australianos como exemplo. São exibidas pinturas
tradicionais feitas em casa de árvore (bark paintings) que normalmente apresentam
animais, pintados na chamada “forma raio x”, com as partes do corpo subdivididas por
traços e os órgão aparentes. Este tipo de imagem demonstra a ideia de uma sociedade
fracionada, pois são imagens em blocos, apontando para uma estrutura de mundo
composta por uma multitude de clãs autônomos, que não poderia ser materializada por
uma imagem global. Como aponta Descola, “revelar a estrutura interna do corpo do
protótipo original do clã é sublinhar a homologia existente entre o corpo do ser do
sonho e o corpo social dos aborígenes” (Descola In Blanc, 2010: 19).

Há também algumas telas grandes de pintura à óleo, tradição que se desenvolveu


na Austrália e alcançou reconhecimento no mercado mundial de arte a partir dos anos de
1970. Estas telas retomam as pinturas antes feitas sobre areia em momentos rituais de
transmissão das narrativas míticas e sua composição de infinitos pontos caracteriza os
caminhos percorridos por seres ancestrais fundadores do clã a que pertence o artista,
responsáveis pela topografia atual de sua terra. São chamadas pinturas do “tempo dos
sonhos” (dreamtime) e foram posicionadas nesta exposição praticamente na horizontal,
bem próximas ao solo, em referência à sua “origem”, quando eram feitas sobre areia
(sandpainting), segundo Descola, “mostrando que não se trata somente de pinturas que
encontramos nas galerias de arte” (comunicação pessoal, 2012)185.

185
Goldstein (2012) explora em sua tese sobre as dreampaintings a relação de artistas contemporâneos
aborígenes e o Museu do quai Branly, que conta com trabalhos feitos por eles na estrutura arquitetônica
de seus prédios. Curiosamente, estas telas estão entre os pouquíssimos objetos recentes na exposição
permanente do museu, ainda que não seja possível perceber isso pela forma de expor, a menos que se
procure a data de produção na legenda. Além disso, estas pinturas, que têm obtido grande prestígio no
mercado de arte e alcançado altos preços de venda, foram organizadas em uma exposição recente no
museu – Aux sources de la peinture Aborigène – cujas imagens recebi pela divulgação e me chamou
atenção o estilo de exibição exatamente como numa galeria de arte, ou o mais próximo disso que já
observei no museu.
211

Figura 09: Tela de pintura aborígene australiana exibida na horizontal. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Schneck
©museeduquaibranly

Figura 10: Pintura em casca de árvore, Austrália. Exposição “La Fabrique des Images. Foto: Antoine Schneck ©museeduquaibranly

A quarta seção apresenta o analogismo. “O mundo é emaranhado” traz exemplos


de algumas partes do mundo, que têm em comum uma estrutura de mundo marcada pela
diferenciação total de seus elementos. O analogismo não se focaria na singularização
das existências, mas “nas redes de relações que as colocam em contato”. (Blanc In C d
a, p.22). São apresentados alguns mecanismos de estabelecimento de correspondências
responsáveis por criar um sistema coerente, ligando os fenômenos em universos onde
tudo parece diverso. Um deles é a quimera, uma criatura que pega emprestadas diversas
212

partes dos corpos de outros seres, compondo um ser fabuloso, híbrido, como é o caso da
estátua do homem-tubarão, originária do reino de Abomey, na África, que surge
associada a uma narrativa contextual, na qual o último rei deste povo, em guerra com a
França, se comparou a um tubarão para atacar a esquadria inimiga (Descola In Blanc,
2010, p.23). Por meio da imagem, a “qualidade tubarão” lhe é conferida e a criatura
ganha verossimilhança. Outra forma de unir elementos heterogêneos é ligar redes
espaciais e temporais, criando um laço entre o macrocosmos e o microcosmos, como
acontece nos jardins chineses, que apontam para a vida humana como uma versão
reduzida do cosmos, ou ainda em imagens como as cruzes huichol, do México, em que
cada elemento é esquecido em prol da imagem global resultante da combinação dos
elementos.

Figura 11: Escultura do Reino de Abomey, África. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Schneck
©museeduquaibranly

Figura 12: Cruz Huichol, México. Exposição “La Fabrique des Images”. Foto: Antoine Shneck ©museeduquaibranly

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