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do Nordeste
Felipe da Costa Trotta
Introdução
A sanfona de Luiz Gonzaga ou os
requebros do "E o Tchan"? A
rabeca de Mestre Salu ou a batida de
Nação Zumbi? O canto de
Moraes Moreira e Zé Ramalho oua
energia de Ivete Sangalo? O vio-
lão pop de Lenine ou o violino
"armorial de Antonio Nóbrega? O
erotismo de Calcinha Preta ou o romantismo de
Qual dessas expressões pode
Reginaldo Rossi?
ser caracterizada como música repre-
sentativa do Nordeste?
A latente impossibilidade de obter uma resposta convincente a
esta questão serve de ponto de partida para esta discussão. Parece
obvio que todos esses exemplos representam tempos, modos e
pro-
cessos de elaboração das construções identitárias relacionadas
gião Nordeste, cada um buscando dizer coisas sobre a identidade
à
re-
musical nordestina. É claro também que alguns dos artistas citados
buscaram mais do que outros agregar um sentido propriamente re-
gional a suas práticas musicais, tentando falar em nome da região e
9
narrá-la, seja através de um discurso amplo (como o
Gonzaga), seja através de um conjunto de referências sertão de Luiz
pronrian
local que, por extensão, acaba inculcando um nte
sentimento repianal:
zante às suas práticas (como 0 axë de lvete e o
manguebeat de Nacá.
ção
Zumbi). Porém, tamanha é a pluralidade de referências estética e
tão diverso é o corpo de imagens, sons e
pensamentos que cada um
agrega em suas músicas que tomar o território como elo unificador
de todos eles revela uma parcela de absurdo dessa construção musi.
cal identitária atrelada a um pedaço tão amplo de terra.
Por outro lado, as identidades (locais, regionais ou nacionais) são
construçoes realizadas através de algumas abstrações que se tornam
eficientese fortes o bastante para moldar o compartilhamento de um
imaginário comum em torno de tais ideias. O pertencimento adeter
minada comunidade imaginária tem relação direta com o cultivo de
sentimentos de identificação criados a partir de alguns elementos, cren-
sentimento comum se ma-
ças, práticas e saberes. Musicalmente,
esse
10
desenvolvido narra-
a r t i s t a s tenham
outros
Ainda que da san-
destinidade.
menos
estereotipadas,
ainda hoje o som
e
tivas mais plurais representam
uma certa unidade
de Gonzaga
sorriso aberto
fona e o
reconhecida dentroe
fora dos limites da região,
identitária regional, tem buscado há quase duas
forróeletrônico
o
chamado
Ocorre que conflituoso e ex-
narrativa num processo
desconstruir esta
décadas ele-
musical. Asdisputas entre o forró
reprocessamento
plosivo de um
de serra" são perpassadas por
e os artistas do (agora) pé
trônico norteadores dessa nova identi
debate sobre os elementos
profundo de cidades cada
nordestina, fundada
no jovem cosmopolita
dade
mais influenciadas por
modelos e códigos culturais nacionais e
vez
Música e identidade
11
de modo bastante próprio e profundo noSsa relaç o social com
12
são continuamente reprocessados na própria nmaneira de compor e
modelos e consolidando referências e identidades.
tocar, reiterando
A organização temporal processada pela música é também uma
forma de estabelecer modos de ser e estar em espaços de convívio
cotidiano. Isto porque a música é uma prática social visceralmente
ligada a eventos, rituais e encontros. Assim, ela aponta para um con-
junto de processos culturais que fundem o individual com o cole-
tivo em vivências (essencialmente) não-verbais, ajudando a moldar
ambiências afetivas compartilhadas socialmente. Talvez por isso,
nossa relação com as músicas que gostamos e os eventos musicais
que frequentamos seja dotada de forte carga emotiva, uma vez que a
música parece ser capaz de atingir zonas profundas de nossos senti-
mentos. E só lembrar, por exemplo, do enorme desconforto que nos
causa uma música que não nos agrada, sensação que perpassa todo
o ambiente social, espacial e afetivo,
gerando muitas vezes uma von-
tade intensa de afastar-se dos sons
indesejadoss.
Mas além de estabelecer uma
ambientação afetiva ou de construir
uma hereditariedade temporal, a música é uma atividade humana
que
se caracteriza fortemente por
agregar pensamentos e valores em sua
experiència. Trata-se aqui não de uma arte reflexiva (se é
que se pode
identificar alguma que o
seja), mas de incorporar a noção de que a
própria música é'uma forma de
pensamento social, ou seja, através da
prática musical coletiva os que dela
mundo e códigos culturais,
participam reprocessam visões de
reafirmando identificações,
rechaçando
modelos que parecem não mais
construindo relações
corresponder temporalidade atual e
à
temporais (entre presente, passado e futuro) e
afetivas (entre individuos e
E
grupos sociais).
evidente que essas
identificações não são monolíticas e nem
compartilhadas de modo
uniforme por todos que
determinada experiência musical. A participam de
contradição e a diversidade de
13
apropriações de sentido é uma marca indel vel das práticas culturais5,
o que só faz confirmar o caráter conflitivo deste tipo de producãa
simbólica. Obviamente, certos sujeitos tèm maior identificação com
algumas simbologiase pensamentos manifestos e processados em al
gumas práticas musicais. Outros, iräo se apoiar em outros elementos
mais pertinentes afetivamente para construir
que lhes parecem sua
identidade, que é sempre provisória e momentânea, sendo obrigato-
riamente reconstruída ou reafirmada em outros espaços e outros even-
tos. Um roqueiro sÓ é roqueiro porque ouve rock continuamente e
assiste a shows de rock com frequência, conversa sobre rock e divide
com outros roqueiros o seu pertencimento ao grupo de roqueiros,
manifestando um conjunto de valores identitários constantemente
reafirmado em seu vestuário, em seus vícios de linguagem, sua rede
de relações sociais e, principalmente, em suas práticas de consumo
cultural. Por outro lado, um amigo deste roqueiro pode frequentar
Os mesmos shows mas manter certa diståncia afetiva de outros refe-
renciais do rock, adotando apenas parcialmente as visões de mundo
associadas ao gênero. Esse caráter diverso das identidades musicais
torna temerosas as tentativas de desenvolvimento de uma análise
Comum para um gênero como o rock - isso sem contar que há de-
zenas de subdivisões contidas na classificação, muitas das quais in-
14
sicos" da música erudita, as "velhas guardas" do samba, as "pedras"
do reggae maranhense, etc. Tais musicas e autores são capazes de
responder pelo gênero, servindo como eixos que determinam proce-
dimentose modos de fazer característicos do ambiente identitário e
afetivo de suas práticas musicais.
Noprocesso de identificaço musical, é comum também que
determinadas práticas musicais estejam associadas a certos espaços
geográficos e a certa época. Assim, tempo e espaço na música mar-
cam portas de entrada para o
compartilhamento de identidades e
processamentos e invenções de sentimentos de pertencimento e de
coletividades. E comum associarmos o samba ao Rio de
Janeiro, o
jazz a Nova Orleans, o tango a Buenos Aires, o frevo a Recifee Olin-
da e assim por diante. Os
espaços físicos nos quais
práticas certas
musicais foram gestadas funcionam como
elementos simbólicos que
caracterizam essa música, muitas vezes
reafirmada continuamente
em seu
repertório.Quando os sambistas cariocas falam do "morro,
da "Portela" da "Lapa', estão
ou
15
décadas depois, tornando-se simbolo de uma desejada unidada
na-
cional. Cercado de preconceitose enfrentando conflitos de toda
dem, a prática dos sambistas dos morros foi modificada em
toda or-
ntato
com a sociedade urbana carioca e este processo resultou
numa mie
tura que permitiu sua nacionalização. Assim, o samba nacionaliza do
o
foi um produto radicalmente diferente do samba praticado na virada
do século XIX para o XX, tend0 se transtormado para ser
adotado
(ainda que não de forma homogênea) pela sociedade oficial. O passo
seguinte foi sua "imposição" ao restante do país, através de um po-
deroso sistema de emissões radiotonicas nacional'.
Imposição esta,
diga-se de passagem, nunca plenamente concluída e que sofre conti-
nuamente resistências variadas e contraimposições significativas em
várias regiðes do país.
E claro que com uma música
supostamente regional, o processo
não é muito diferente. Eleger uma música para o Nordeste
significa
escolher elementos (e aceitá-los) que possam unificaro extenso terri-
tório que vai do sul da Bahia ao norte do Maranhäão, forjando uma
identidade musical única ou, senão, que pelo menos seja forte o sufi-
Ciente para representar este amplo e diversificado universo cultural. A
16
mar que ele não exista de fato. Ao contrário.
Sob o ponto de vista
Mas os discursos
narrativos se caracterizam
por uma notória he-
terogeneidade complexidade. Ao mesmo tempo em o Nordeste
e
17
temporal, caracterizando uma construçao imaginária irremediavel
mente localizada longe e antes. Essa defasagem se torna um clichê
forte e recorrente, que ajuda a construir uma certa noção de Nordeste
e
apoiada no forte sentimento de autenticidade que o ambiente rural
evoca, cindindo o imaginário da regiäo a uma suposta ingenuidade e
"verdade rural" do sertanejo-nordestino. Evidentemente, tal conjunto
de ideias traz uma série infinita de problemas e contradições. Afinal,
o tempo presente vivido efetivamente pela população que habita os
limites geográficos da região parece estar alijado de seu processo de
construção simbólica. Vários "Nordestes" ficaram de fora dessa re-
presentação, preteridos em relação ao universo do sertão, o que tem
gerado discursos de não-identificação com este imaginário.
Apontada como a mais significativa produção musical a falar e
cantar em nome do Nordeste, ajudando efetivamente a inventar sim-
bolicamente a região, a obra de Luiz Gonzaga oferece modelos de
identificações específicos que ilustram tais contradições. Em seu re-
pertório,o endereçamento musical éo migrante nordestino residente
nas duas grandes metrópoles nacionais: Rio e São Paulo. Para eles,
Gonzaga construiu um discurso midiático sonorizado com elemen-
tos de identificação regional que teve incrível impacto na indústria
do entretenimento nacional em meados do século XX, alcançando
reverberação nacional. Esta estratégia está baseada na manipulaçao
das ideias de
partida e saudade". A partida do retirante nordestin0
que foge de uma Natureza hostil de seu sertão natal
éimagem recor
rente nas letras de suas
canções, que obtiveram êxito comercial n
conteste no final da década de 1940. Este personagem izade
manifesta um sentimento agudo de saudades do sertão
ao pelo som da sanfona que, na melancolia
represen
dos acordes esticadosdo
fole assume
gradativamente uma função identitária central no ro-
P
eSO de
invenção de uma sonoridade nordestina. Por outro lado, a
18
re-
ambiente de festa do forró, que
que
um
ainda para de
refere-se
as primeiras décadas
saudade "baião" durante
midiático de dança
a
cebe o apelido abrindo espaço para
o lúdico e para
Gonzaga, calor da dança e no
atuação de permitidas no
licenciosidades
e
(com paquera fortemente auxiliada por
Luiz Gonzaga,
do salão). A obra de da capital,
escuro
meios de comunicação
pelos
sua expressiva divulgação à distância, desenvolvem
elementos de identificação
que,
vai fornecer sertanejos de estados
as semelhanças entre
narrativa que realça
uma
moderna da cidade grande.
O sertão passa
frieza
diferentes, unidos
na
visto de longe e idealizado
uma espécie de "cartão-postal"",
a ser
zabumba e pelo triângulo,
som da sanfona,
coadjuvada pela
pelo
bandas de pífano do interior de
Per-
tomados de empréstimo das
"Mestre Lua'.
nambuco, estado natal de
musical de Nordeste pode
De certa forma, o sucesso desta narrativa
encontrados em outras
ser creditado a outros discursos semelhantes
19
pos sociais. Aliás, a contradiç 0 entre o anti-moderno das
represen-
tacões imagéticas e o moderno-universal de sua estrutura de Droduez.
Com realidades
regionais que intencionam narrar o pais a pa de
sua diversidade. e a
O embate musical entre o frevo
pernambucano
20
música dos trios
elétricos baian0s logo no início da conturbada dé-
construção de discursos alternativos
de
cada!'é apenas um exemplo
Porém, deve-se destacar aqui que o frevo
ao referencial gonzagueano.
o axé nunca almejaram agregar sentimentos re-
e posteriormente
como musicas carnavalescas locais, com
gionais. Permaneceram
certos autores
projeções nacionalizantes promovidas por que con-
21
cional, os grupos Chico Sciencee Nação Zumbi e Mundo lire SIA
operaram uma nova visão do Nordeste construida a partir de z0n
onas
urbanas, mesclando influ ncias internacionais com um discursole -
cal politizado, que contou com substantivo apoio e entusiasmo da
imprensa recifense para potencializar sua reverberação naciona|ls
22
alimentos e bebidas cer-
de vendas de
barracas
Camarotes e de um
revezar. limites fisicos dos shows. Trata-se
e s t a b e l e c e n d o os
área, a pagar os 15
cam a
economicamente,
mas disposto
diversificado descontos significa-
núblico garantia
(a compra antecipada
reais do ingresso este recurso,
demonstrando que
a maioria u s o u
tivos e verifiquei que antecedência).
c o m alguma
show havia sido programada
a ida ao debaixo de uma chuva inces-
atraso, o show começa
Com algum à noite e muitos
incorporada
sante. A essa altura, a água já parecia
mais próximos ao palco
desistem de proteger, ocupando lugares
se
se inicia. A entrada
dos artistas
da primeira apresentação, que logo
de iluminação, fumaça de gelo
no é acompanhada de efeitos
palco
música em alto volume, instaurando
uma experiência
seco e uma
A sonoridade é baseada em
sonora e visual de grande intensidade.
referenciais da música pop internacional, equilibrando a base (baixo,
guitarra, teclado e bateria) c o m o naipe de metais (trompete, sax e
trombone) para dar suporte aos cantores.
No primeiro show, a banda de menor projeção mercadológica
apresenta alguns de seus sucessos, sendo recebida pelo público de
forma calorosa e entusiasmada. No repertório, canções relativamente
conhecidas dos presentes, entre as quais se destaca uma que "riva-
liza" com o grande sucesso das rádios nesta época pré-junina, lançado
pela segunda banda a se apresentar, a atração principal da noite. Sem
dúvida, a banda de menor projeção comercial tenta "pegar
no sucesso
carona
de sua concorrente, anexando simbologias e criando uma
espécie de "polêmica". No entanto, é latente o fato das duas bandas
posicionarem-se em um mesmo ambiente sociocultural
imaginário,
movido a rebatimentos recíprocos de referências simbólicas recor
rentes.Neste universo, não há nenhuma referência à
construção
musical da identidade nordestina
consagrada através da obra de Luiz
Gonzaga. Nada de sertão, de seca, de saudade e a sanfona aparece
23
muito pouco. O que se ve no palco e no publico que assiste e d
ssiste e dança
embaixo d'água é uma afirmaçao categorica do próprio universa i
ojo-
vem, atuale cosmopolita. O embate cultural entre as duas banda
ndas-
como reatirmaçao desse universo cultural
que funciona muito mais
comum do que propriamente como um enfrentamento direto entre
tanto a instrumen-
camente todos os presentes.
cènica dos cantores e das dançarinas -
sedução de e de construção
dade com presentes. Como estratégia
os
Chupa que é de
tanto a canção consagrada
de menta.
quanto sua "imitação"- Senta que é
chamar de
usical
que se convencionou
24
da receita de sucesso deste mercado
Possivelmente um dos segredos
seu endereçamento claro: o jovem.
encontra-se no
meados do século XX através de uma ampla in-
"Inventado" em
tegração de indústrias
tornou-se uma figura-chave nas estra-
moda, showbizz o jovem
-
25
das populações jovens, principalmente (mas não exclusivamente)as as
urbanas. Todo o sucesso das liscotecas e da soul music
seguida da emergência de uma cena de rock propriamente nacional
brasileira,
na década de 1980 alinhavam culturalmente um
público heterogêneo
de jovens de todas as regiões do pais em torno de
alguns elementos
dessa cultura transnacional, representante de uma nova
moder.
nidade. Dois dos principais pilares da hegemonia
pop na música
internacional, imediatamente tomados como símbolos de um capi-
talismo musical de sucesso incontestee catalisadores de
público gi.
gantesco em todas as regiðes do planeta, os mega-astros Madonna e
Michael Jackson sedimentaram de vez em seus sucessos
inigualá
veis um conjunto de referências simbólicas e musicais fortemente
identificados pelo ideal modernizante dessa cultura internacional-
popular que se impunha. Teclados, clipes grandiosos e caríssimos,
dança e canto integrados, forte apelo sensual e erótico, espetáculos
megalomaníacos de cores, luzes, figurinos, telões e música em alto
volume: características criadas pelos produtores de Thriller e Like a
virgin que se tornaram um padrão de excelência das produções mu-
sicais no mundo todo.
Todo esse aparato midiático-performático nos conduz à década
de 1990 na música brasileira, onde se encontra um conjunto de ar
tistas e géneros musicais que busca uma identificação visual e sonora
com esses referenciais importados do hemisfério norte e da decada
26
e da televisão, que moldam
uma temporalidade mais
nos do
cinema
dinâmica, e busca em sua experiència musical o reconhe-
aceleradae
que a guarânia Fio de cabelo,
in-
sonoridades. E assim
cimento dessas
Chitäozinho e Xororó alcança grande sucesso
terpretada pela dupla
em
rasgueado de viola, romantismo lírico
1982, conciliando teclado,
anos depois, a famo
cantado em terças e ambientação pop. Alguns
cenário da música brasileira a dupla
síssima Pense em mim, consagra no
irmãos Leandro e Leonardo e sedimenta um
goiana formada pelos
mercado altamente lucrativo para este estilo.
Mais ou menos no mesmo período, o carnaval soteropolitano opera
uma mistura entre o trio elétrico movido a frevo e os tradicionais
blocos afro, inventando um outro segmento de mercado que atinge
27
zida por cantores de indiscutivel carisma que exploravam
intensamente
o tom coloquial em suas apresentações".
Entre a música sertaneja e o axé baiano, o movimento do pagode
romântico surge com força neste mercado incorporando esses
mes.
mos padrões estéticos ao samba tradicional. Com
uma consciente
intenção de "modernizar" o samba, adequando o gênero às neces.
sidades de um universo musical que no tinha mais
espaço para
amadorismo e para os referenciais ingnuos do "fundo de
quintal
grupos como Raça Negra, Só Pra Contrariar e Negritude Júnior pas-
sam aveicular um conteúdo jovem em seus sambas,
incorporando
modelos inspirados na música pop internacional,
Performances
dançantes, algum grau de erotização, duplos sentidos, muito roman-
tismo e uma linguagem coloquial constituíram um conjunto de sím-
bolos que se mesclava com sonoridades modernas (teclado, baixo e
bateria) para estabelecer um referencial sonoro radicalmente dis-
tinto do samba feito até então,
que sintomaticamente passou a ser
veiculado no mercado como samba "de raiz'.
A paisagem sonora do início da década de 1990 esteve fortemente
apoiada na veiculaço exaustiva e massificada dos três gêneros. Su-
cessos como E o amor, Pense em mim, Segura o tchan, O canto da
28
Neste momento conturbado, uma iniciativa isolada e local de um
empresário atento às tendências estéticas e comerciais do mercado
musical começa a estruturar um negócio que vai se tornar altamente
lucrativo. Resultado de observações sobre o mercado de música de
Fortaleza, o empresário Emanoel Gurgel "monta" a banda de forró
Mastruz com Leite. Com nenhuma experiência ou qualificação musi-
cal,Gurgel entra como capitale com a ideia de um perfil estético para
este forró, que deveria ser "progressista e estilizado"2" e encher a pista
de dança. Assim, elege músicos, cantores, bailarinas e canções para
produzir um espetáculo sonoro e visual de grande impacto. Para apoiar
a divulgaço da banda, Gurgel estrutura uma ampla estratégia de di-
vulgação, baseada na criação da rádio via satélite Somzoom Sat, que
funciona como "produtora de conteúdo" a ser retransmitido para ou-
tras emissoras autorizadas. Tendo eixo
como principal a divulgação
do forró, "assim como a Jovem Pan e a Transamérica faziam com a
dance music"3", mas sem concessão
pública para emissão radiofô-
nica, a Somzoom consegue em pouco
tempo espalhar seu sinal por
várias cidades do interior do Nordeste, além da
capital cearense e
ampliar a difusão do estilo, já em sua forma "progressista". O empre-
sário transformado em
produtor decide todas as etapas da produ-
ção musical (escolha das músicas, dos
arranjadores, dos músicos, do
estúdio de gravação,
agenda os shows, paga os cachês e embolsa os
lucros) e alavanca um mercado
vigoroso. Na esteira da Mastruz, sur-
gem diversas outras bandas, também montadas de
maneira seme-
Thante por
produtores-empresários do ramo do entretenimento,
dispostos a investirfilo comercial aberto por
no
Gurgel. A própria
Somzoom configura-se atualmente como uma
espécie de holding
que "detém os direitos de sete bandas de
forró, controla um estúdio
de gravação, uma
editora musical e gera via satélite
para as afiliadas espalhadas
programação
no país afora"2".
29
Há algumas questões que se destacam neste
lugar, é necessário discutir que música é essa projeto. Em primein
sucesso popular e cresce
que atinge tão ráni
exponencialmente desde o início da rápido
de 1990 até os dias atuais. A
análise de certos década
musicais pode ajudar a padrões temáticose
compreender de forma mais aprofundada
elementos e mecanismos
gerenciais e simbólicos de uma prática cul.os
tural de
inquestionável
sucesso popular. Num
segundo momento, é
interessante observar o que essa estrutura
do para o mercado musical e empresarial traz de inusita-
quais suas implicações sobre a autono-
mia artística de seus
protagonistas e sobre o resultado musical
propriamente dito. Por último, podemos pensar de maneira
"novo forró" dialoga com o que este
universo simbólico do
cado inaugurado por Luiz segmento de mer
Gonzaga no final dos anos 1940 tanto em
termos estéticos
quanto éticos, e, sobretudo, que elementos
zam essa música como um
caracteri
reprocessamento de um certo imaginário
nordestino realizado em suas
performances.
Festa, amor e sexo: o texto
Fazer uma música
endereçada ao público jovem não é algo que
serealiza exclusivamente a
partir de intenções mercadológicas. Pard
seduzir o público jovem, o forró eletrônico (assim como o axe,
pagode e a música sertaneja) está construído a
partir de uma apro
Ximação evidente de alguns elementos estéticos que caracterizam a
cultura
internacional-popular jovem, pelo menos em seus aspecto
mais
generalizantes. E necessário entender que a vertente
do forró-
eletro
iniciada pela Mastruz busca dialogar como
-
referencl
Pop, traduzindo-o para o universo sonoro e semiótico da mussica
regional, Assim, as temáticas
das deste
predominantes nas cançoes aas ban-
segmento são formadas por um trinómio conceitual: Tesle
amor e sexo. Desses três
eixos, a noção mais que ega
importante, ag
30
forró eletrônico, a festa é o
o
ideia de festa. E, para
demais é a desti-
produção esmerada
as e
sonoro com
visual e
show, o espetáculo como o Pátio
locais amplos, a céu aberto,
em
nado a ser apresentado
Cordeiro, em Recife.
de Exposições de forma de
a música é uma
voltarmos à ideia de que
E preciso aqui or-
maneira de estabelecer uma
e uma
pensamento compartilhado festa é
social do tempo e das relações afetivas. A noção da
ganização somente um evento
central neste processo,
uma vez que agrega não
induz a uma certa
musical irá ocorrer, mas
no qual a experincia
Não há festa sem
ambiência afetiva compartilhada pelos presentes.
sem encontros
muita gente, sem dança, sem bebida, sem paquera,
Para festa, é preciso que a música
sociais de naturezas múltiplas. ser
A
relações humanas e para o acesso a estados afetivos específicos.
festa é um momento memorável da vida, um acontecimento atipico
em nosso cotidiano, onde, apesar das regras e de sua estrutura rela-
tivamente previsível e fechada, há espaço para o imprevisto, para o
encontro fortuito, para o compartilhamento de laços afetivos provi-
sórios, para a vivncia coletiva de situações não corriqueiras. A festa
Se caracteriza também por uma certa intensidade. Não pode ser fes-
ta se não é
possível mergulhar profundamente no conjunto de ele-
mentos à disposição dos participantes. Música alta e iluminação
parcial (que mostra e esconde rostos, silhuetas, contornos) colocam
0 ambiente da festa
a0 canto
propício
como
para um intenso convite à dança,
coletivo, à formação de grupos e de casais. No caso do torró
eletrónico0, o show é a festa. Como show, funciona como um
espeta-
Culo tortemente
baseado na saturação. Som, luz e várias informa-
Goes são despejadas do
palco para o público, estabelecendo uma
atmosfera saturada de
um
informações. Todas bandas têm mais de
as
cantor (quase sempre 3 ou 4), um naipe de metais, baixo, guitar-
31
ra, teclado, bateria e pelo menos um
ria tem um grupo de
sanfoneiro. Além disso.
a maio
bailarinas (as vezes, -
umente
oes. Mas a
a
grande motivaçâo da festa não é a bebida exclusivamen
nao ser nos casos em que ela serve para "esquecer, sendo eiculo
ente-
para estabelecer estados alterados de consciência
coletivamen
sexuais.
mas os encontros
sociais e, principalmente, os amorosos
esen-
32
bandas em atividade Nor-
Analisando o repertório das principais
no
que falam de sexo apontam para uma realização sexual como uma
parte fisica do próprio amor, ainda que algumas dessas canções apre-
sentem linguagem reconhecida como vulgar e utilizem amplamente
"duplos sentidos" nem tão duplos assim. Esse tratamento do amor
carnal contrasta com o amor idealizado e platônico de dezenas de
canções, por exemplo, do repertório da música sertaneja, que pre-
serva uma certa aura de não-corporificação em descrições estritamente
sentimentais. No forró eletrônico, as narrativas amorosas e sexuais se
aproximam, por exemplo, do tratamento romântico do amor da obra
de Roberto Carlos, na
qual o sexo aparece como parte integrante da
vida romântica do casal. "Lençóis macios" e
"cavalgadas por
toda noite
moldam imagináário romântico no qual amor e sexo não são ex-
um
33
Solteirões do Forró, Gaviðes do Forró, Taradões do Forró e
Cavaleiros
do Forró. Tarados, solteiros, gaviões e cavaleiros são
metáforas di-
intensificadas pelo uso do superlativo, que remetem ao estado
retas,
de um jovem "macho -
em busca de "fèmeas"
para acasalamento
nas noites de festa (forró). Com isso,
reforça-se o endereçamento
deste universo musical para o jovem, entendendo
juventude aqui
como o espaço de tempo vivido entre o ambiente da
infåncia e a
esfera da vida adulta, caracterizada fortemente pelo casamento, pelo
trabalho e pela constituição de uma nova unidade familiar3", numa
visão bastante conservadora mas incrivelmente eficaz para carac-
terizar a ambiência do jovem atual não necessariamente
ligada
exclusivamente a uma certa faixa etária.
Aqui podemos voltaràcena do Pátio de Exposições e comparar as
letras de Chupa que é de uva, lançada por Aviðes do Forró no início de
2008 e Senta que é de menta, da banda Cavaleiros do Forró,
lançada
logo após. O embate superficial entre a uva de Aviöes e a menta de
Cavaleiros representa um jogo de visões compartilhadas e de sím-
bolos trocados. As cançðes têm instrumentações e formas bastante
semelhantes, iniciando com introduções que executam trechos das
melodias principais pelos metais (trompete, sax e trombone, sempre
em bloco) e com praticamente o mesmo andamento e levada. Vale
destacar que as melodias dos refröes das duas canções é bastante se-
melhante, forjando um ambiente de trocas simbólicas evidente. Em
ambas as canções há um diálogo entre um casal de cantores, que en
carnam personagens ideais de homem emulher na narrativa musical.
Aqui é importante destacar que os debates sobre música e sexuali-
dade estão sempre atravessados sobre as diferenças entre gèneros, uma
vez da
que o sexo
canção popular é tratado quase sempre como u ma
atividade heterossexual, que
implica em determinados papéis estereo
tipados relativamente rigidos. Essa visão conservadora sobre o exo
34
não é contestada pela música do forró eletrônico, que mantém sua
homeme mulher explícita. No
énfase numa abordagem de relação
essa evid ncia é confirmada pelo diálogo di-
caso das duas canções,
narrativos descritos
reto entre o casal de cantores, que ocupam papéis
entre eles:
nas letras, instaurando uma conversa
Os dois casos
ilustram bem o tipo de
que o forró eletrônico busca
abordagem de amor e sexo
sublinhar, inclusive ajudando a identi-
ficar modelos
distintos de narrativa erótica. No caso o da primeiro -
35
uva - o uso de uma metáfora sexual bastante evidente (tanto o yerho.
chupar quanto a associação dos genitais a frutas são amplamente
conhecidas) para descrever o ato sexual é complementado com uma
36
Apesar dos
tratamentos diferenciados do sexo" (que poderiam
ser traduzidos sinteticamente como uma abordagem do sexo com
37
de vista apocaliptico dos críticos alemaes, podemos pensar que a re.
peticão de padrões estabelece um modelo de escuta confortável e con.
fortante, a partir do qual a experiëncia musical irá se intensificar e
38
disco que movia o mercado musical, que se confundia com a chama-
No final do século XX, contudo, a popu-
da "indústria fonográfica'.
larização dos gravadores digitais e a invenção do formato mp3
facili-
promoveram uma alteração neste cenário. A partir de então, as
colocaram o consumidor informal-
dades de acesso e multiplicaço
mente em contato diretamente
com as músicas, numa relação não mais
necessariamente mediada pelo suporte disco. Por esta razão -
com
39
Pode-se identificar que entre deslumbrados e
assombrados con-eno.
tram-se discursos
embaçados pela alta carga emotiva de ambos, ane
acabam escondendo que a atual configuração ue
do mercado musical
tecnológica e comercial
aponta para uma
perda de valor
comercial da
gravada. Isso significa que todos os
música onerosos custos e as
múl.
tiplas seleções estéticas que cercavam a gravação e a
discos pelo mercado promoviam parte da
distribuição de
valoração da música gra-
vada, que se revestia em prestigio e num certo valor
financeiro de
cada exemplar vendido. Para essa
engenharia dar certo, consumidores,
empresários e produtores precisam compartilhar que este produto
guarda em si o valor que ele custa. Esse elo se perdeu. Consumidores
com menos de 20 anos talvez nunca
tenham comprado um disco. Isto
porque não lhes parece razoável pagar cerca de 20, 30 ou 40 reais
para
levar para casa uma esfera
pequena digital com
apenas 12 ou 14 can-
ções das quais, provavelmente, ele ouviria apenas duas ou três. E
mais: pagar por este
produto material representa ir na contramão de
sua
própria cultura auditiva, onde o aparelho de som imobilizado no
meio da sala tem sido cada
utilizado como meio de exe-
vez menos
40
do mercado de música, observa-se não uma perda de valor da música,
que simbolicamente amplifica sua importància social através de um
compartilhamento mais ostensivo. E o formato fonográfico enquanto
modelo de circulação musical que deixa de ser uma alternativa econo-
mica para os artistas e empresas.
A diminuição das possibilidades comerciais de fonogramas vem
acompanhada de uma ampliação substancial da valoração da mú-
sica ao vivo. Não quero dizer com isso que atualmente os shows
fi
caram mais caros até há casos em que isso é verdade, mas não é
essa a questão - , mas sim que o valor simbólico de uma experiência
musical in loco se torna a cada dia mais
importante no mercado como
um todo. O aumento do mercado de
DVDs confirma que o "calor"
do show apresenta valor financeiro
compartilhado por produtorese
consumidores. Ao mesmo tempo, o avanço
progressivo das grandes
corporações internacionais para o mercado de shows,
os artistas a
"obrigando"
assinarem contratos que incluam a receita dos
shows ou
que passe a administração desses shows
para a própria gravadora*
ratifica a força de um mercado da
experiência. Explorado há anos
por parques temáticos,
pelo turismo e pelo próprio cinema da era
pré-videolocadora, a venda de experièncias parte da ideia de
pessoa pagará não para obter a quea
mas para passar
propriedade um produto material,
alguns momentos desfrutando de algo peculiar que
se tornará memorável". E essa memória
ter um valor
da experiència que passaa
financeiro e simbólico importante
sical, fazendo
no mercado mu-
com que consumidores disponham de
Somas de dinheiro para passar, por
significativas
veiro como idolo exemplo, quatro noites num sa-
Roberto Carlos. Mais do que um
pacote vende a simples show, o
possibilidade de encontrar o "Rei' no restaurante
jantando ou tomando
água de coco na
piscina do suntuoso barco.
Concilia-se, desta forma, um evento turístico, uma atração cultural
41
ea exploração do cacife simbólico do mito, tornado próximo
no
compartilhamento do passeio de barco - símbolo de status, Trans.
42
substituidas
integrantes das
bandas. Assim, as "peças podem ser
43
dos estúdios de gravação e das faixas dedicadas à divulgacäo
fönica são feitas meticulosamente pelos empresários com o end.
radio
çamento claro para o momento do show, que configura-se comolere
foco
principal desta estratégia, na qual o suporte gravado em disco seru
serve
principalmente como spot de divulgação para execução em rádios
dios.
Através do pagamento de jabá"o para as emissoras de rádio, os da.
nos das bandas "compram" determinada quantidade de execuciee
de uma ou mais faixas desse disco. Convém lembrar que a Som200m
om
Sat foi o pilar de distribuição das músicas da Mastruz com Leite,no
início dos anos 1990, sedimentando a nova estética do forró. Defor
ma análoga, o rádio continua sendo veículo principal de divulgação
musical não somente para o forró, mas para quase todas as práticas
e gêneros musicais.
vendendo nos
os DVDs com edição rápida e qualidade irregult
44
O que importa aqui é o registro da experi-
shows subsequentes).
ência, que será comprada
(ou distribuída pela internet gratuita-
estavam presentes na hora
mente) principalmente por aqueles que
funciona como uma espécie de
da festa. Neste caso, divulgaço
a
45
show de uma banda de projeçao em detrimentode
um de outros
outros gru-
pos e artistas locais ou regionais,
escolhas para
as
46
valorativos a partir de elementos
claramente
senvolver argumentos
estabelecer critérios de valoraçäo absolutos
identificáveis, tentando
sua opinião. Uma crítica baseada exclusivamente no
que justifiquem
credibilidade exatamente por não conseguir con
gosto pessoal perde
sistência argumentativa ou nåo se apoiar em aspectos observáveis.
forró eletrónico, dois argumentos são
recorrentes. Oo
o
Assim, contra
da produção musical, classifican-
primeiro aponta defeitos "técnicos
se chocaria com o
do a música como "padronizada"e "repetitiva', que
principio de inovação e
criatividade norteador de um certo senso com
este critério, vale destacar que
partilhado de qualidade artística. Sobre
de valoração do
ele se consagra a partir da transposição de estratégias
ambiente legitimado das artes eruditas para o campo da música po-
assina obra inova-
pular. A exigència de um artista criativo, que
uma
do
intenção de algumas práticas de música popular de se aproximar
ambiente de valoração compartilhada da música erudita, da sala de
concerto, da liturgia respeitosa que cerca este universo. Ocorre que na
música popular os critérios de valoração caminham com frequència
em direção oposta; buscando valorizar a participação corporal e a
dança como formas ideais de compartilhar da experiência musical.
Um outro aspecto importante é que a experiência de escuta da cha-
mada canção popular depende fortemente da utilização de certos cli-
chès e padròes reconhecíveis, que se tornam caracteristicos de dicções
de artistas, de gêneros musicais e universos simbólicos. Este reconhe-
cimento de padrões molda uma escuta fundada na familiaridade das
sonoridades, soluçðes ritmicas, líricas, melodias e harmonicas. Fami-
liaridade esta que se torna fundamental para o estabelecimento de
uma atmosfera de compartilhamento de ideias e
pensamentos sociais
processados pela experiència sociocultural da música. E claro que a
dosagem entre repetição e inovação funciona como diferenciadora de
47
aalidade em vários contextoS musicais, mas no é possível dor
possível deter
minar exclusivamente atraves deste criterio uma argumentacäo
va
lorativa negativa contundente. Para isso, e necessário associar eses
sa
suposta falta de "criatividade - um conceito vago o suficiente Dars
48
todas essas décadas associado as ideias
forró esteve durante
ginário do rigidez da moral serta
e n v o l v i d a s em uma certa
mas
e festa,
de dança forró
um discurso masculino, o
Fortemente
caracterivado por
neja. viés
tem narrado
histórias e situaçóes que reforçam seu
tradicional
A familia aqui é uma unida-
conservador e sua ambienca amiliar"
um determinado conjunto
social que representa
de de organização
bem detinidos
que moldam papeis
de relações sociais hierarquizadas
na "rua". A funçåo
do "pai" - autoridade má-
de atuação na c a s a e
coercitivo que re
assume, neste ambiente, carater
xima de poder
-
uma certa
ao ambiente lamiliar promover
festa. Por outro lado, cabe
emocional e financeira, constituind0-se assim um espaço
segurança
forte sentimento de pertencimento.
de tranquilidade fundado num
49
de abusos sexuais e físicos, a amnli.
papel da mulher, a condenação
ção da participação comunitária nas tomadas de decisões doméstiecas
e coletivas)0. Para o jovem, sobretudo, o sistema de relações repres.
sivas da família parece ser ainda menos importante nos dias de hoie
o que o leva a acionar espaços e interaçóes sociais menos regulado.
ras fora do åmbito doméstico. Neste contlito geracional (os pais nunca
admitem "perder" os filhos para a "rua'"), a sexualidade aparece como
um dos aspectos mais tensos de negociação moral, para ondeapon
tam várias questões relacionadas à normatização de condutas, re
gras de comportamento e at mesmo as ações mais corriqueiras e
cotidianas dos individuos em sua vivência familiar. E, dentre as prá-
ticas culturais que evidenciame processam toda gama de disputas sim
bólicas do jovem com o mundo que lhe cerceia, a música se torna um
meio particularmente eficaz de estabelecimento de elos sociais, redes
de identificação e núcleos de convívio social alternativos. Assim, o
Sexo é um tema que atravessa o ambiente musical e que catalisa e ex
50
são alvo mais ácido de criticas
das de forró eletrônico, e que, por isso,
como se a explicitação de temáticas
de toda ordem. Tudo funciona
ligadas à sexualidade em letras de canções fosse um elemento ine
de pensa-
quívoco de aferição negativa de qualidade,
numa corrente
51
condutas sexuais episódicas, éntase no
apelo erótico de cancäes
per
formancese juvenilização do publico (cada vez mais cedo os adol
centes aderem a
práticas musicais do nmundo
adulto, acesando
temáticas, danças e retrões que processam uma
ambiência cultural
compartilhável) são
componentes presentes no forró eletrônicoc
apontam para graves problemas éticos que a sociedade que
através de
-
tem se
estorçado para enfrentar.
Neste contexto, é inegável
conteúdo expresso de
que o
52
como um processumento
musical
se
entendemos a pråtica
Porém, modos de ser.
comportamentos e
valores. pensamentos,
de ideias, pessoas,
somos obrigados a
como
mundoe c o m as
estar e interagir e a diversidade dessas ideias.
assumir a complexidade
e
interpretar conflitos e dilemas.
destacando s u a s contradições,
etc,
pensamentos, ban-
quase todas
as
em
sexual, por exemplo,
empregada
A temática variantes estilísticas
apresenta significativas
eletrônico,
das de forró
de tendèncias, pensa-
uma grande pluralidade
que apontam para
morais compartilhados.
A rigor, todos os
valores e códigos
mentos,
variadas de
forma lidam com esferas
musicais de alguma
gêneros umas com as outras.
Não
temática, entram em choque
inserção que
"defesa" da liberdade de
estou querendo, com
isso, elaborar uma
de seu público, mas buscar um aprofunda-
expressão das bandas e acio-
os usos e os filtros
mento no debate que possa complexificar
música e de qualquer outra. Não
nados pelos consumidores desta
-
53
Orecurso do riso -
usado como
estratégia de identificação
e relativização da importäncia ideolôgica dessas parcial
canções e refräee
aponta para uma negociação dificil de normas morais vigentes,
- dur
mente combatidas por um crescente fundamentalismo
religioso u ee
reverbera em graus variados por porcentagens
significativas da popu-
lação das grandes cidades. Achar graça de unma situação que usual.
amplamente condenada pela moral politicamente correta
mente seria
é um recurso de escamoteamento das
próprias contradições desta
moral que se impõe de modo
irregular e ainda precário na socie
dade. Talvez na contradição entre o efetivamente
observado e o ideo
logicamente indicado esteja uma das chaves para a
dessa identificação to compreensão
popular que conteúdos éticos atingem. E
tais
como se uvas e mentas
apontassem que "o rei está nu', chamando a
atenção para o estágio ainda precário de
dade como
maturação ética da socie
todo.
um
54
evidenciando o processo de ne-
cerca tais julgamentos,
eletrizante que
estreitamente relacionados ås práticas
valores morais,
gOciação destes música não são as notas,
se discute
de música popular. Afinal, quando
harmônicos que estão em
e
nordestinidade: um pós-texto
c o m um sorriso nos lábios. Polí-
E comum falarmos de cultura
aos produtos
empresários se referem
economistas e
ticos, jornalistas,
sinônimo de felicidade, de alegria,
de
culturais como se eles fossem
sociedade é
sobre a cultura, seu papel na
lazer. Por conta desta visão
a um plano inferior
e secundário, que se
constantemente relegado
secretarias, na baixa re-
reflete no baixo orçamento de ministérios e
55
Eleger uma música como representativa da região
tarefa delicada. O jogo das representações geográficas e
Nordest
é complexo demais e parece refratário: esse tipo de identitárias
sintese. Assim,
ao apresentar o forróeletrönico como eixo de uma das
mais
ignifi
representações musicais contemporåneas da região..
cativas
estou
demarcando um processo de renegociações contínuas referentes
à
própria identidade regional, ou seja, um
conjunto de dispositivae
temáticos, estéticos simbólicos que
e tenta elaborar um
sentimento
comum, nunca plenamente atingido. Trata-se de um produto cult.
ral de inconteste relevância em toda a região, cuja
população, que-
rendo ou no", interage atraves do consumo com
significados,
pensamentos e valores veiculados massivamente pelas bandas. Seu
alcance geográfico e sua popularidade apontam para este
universo
de ideias, valorespensamentos compartilhados, fortemente atra
e
Sexo do torró
eletrônico, os jovens nordestinos marcam uma uid
tinção geracional (rejeitando os modelos de identidade regional se-
8uidos por pais e avós) e simbólica (rejeitando a vinculação a um
sentimento de nordestinidade associado a um
sertão distante e iaed
56
sentimento de perten-
construção identitária, o
lizado). Como toda
identidade nordestina ocorre em opo-
cimento a um tipo peculiar de
identidade, expressadas n o só
no campo
a outras
formas de
sicão
cultural. As-
em outras esferas de circulação
musical, mas também
identidade nordestina do forró busca a primazia
sim, a disputa pela
"cosmopolita" frente a um referencial for-
da vertente "moderna"e
seus adeptos, precisa
rozeiro "atrasado" e "sertanejo', que, segundo
também aponta paranegociação identitária
uma
ser superado. Mas
uma visibilidade do Nor-
exterior aos limites territoriais, impondo
A neste caso, é estabelecer
deste na cena musical nacional. intenção,
uma mudança efetiva de representações, fazendo o Nordeste ser re
conhecido não através de uma música associada a um ambiente agro-
debate sobre a
"invenção" do Nordeste proposto por Durval Albu
57
querque Junior -, construida a partir de narrativas e discuree
cul.
turais, midiáticos, politicos e econômicos.
Neste universo de alta carga emocional, começam a se configurar
novas representações de Nordeste processadas pela música, inicial.
mente elaboradas e consumidas na
propria regiao, mas que passam
cada vez com mais desenvoltura a se projetar
para outros espacos
geográficos, ampliando seu alcance cultural. Negociando símbolos
nacionais e transnacionais, o forró eletrónico tem cada vez
mais
narrado musicalmente a região de forma consistente e ampla, mol-
dando um sentimento de pertencimento compartilhado por
jovens
de todos os estados nordestinos, com todas suas contradições
morais,
éticas e estéticas.
Notas
'Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social e do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Possui Bacharelado em Música - Habilitação em Composição (Uni-Rio, 1996),
Mestrado em Música (Uni-Rio, 2001) e Doutorado em Comunicação e Cultura
(UFR), 2006). Como pesquisador, tem desenvolvido principalmente temas liga-
dos à circulação da música na sociedade, interpretando as relações entre estética e
mercado, consumo e experiência cultural, sobretudo nos aspectos relacionados às
estratégias de construção de valor. 1° lugar na 1 edição do Concurso Mário Pe
drosa de Ensaios promovido pela Fundação Joaquim Nabuco.
Esta perspectiva está baseada nas obras de diversos
autores da musicologia e da
etnomusicologia, que abordam as relações entre música e tempo em seus traba
Ihos. Podemos destacar
aqui os livros Salsa, sabor y control (de Angel Quintero
Rivera), Music culture and experience (de John
los Sandroni) e
Blacking), Feitiço decente (de ar
Osome o sentido (de José Miguel Wisnik), com os quais mantenho
diálogo mais estreito.
Uma instigante teoria de semiologia musical baseada neste principio é desenvolvi
da pelo musicólogo Philip Tagg em diversos textos entre os
quais se destacam
Analysing popular music (1982), Introductory notes to semiotic of music (19
Fernando the flute (1991);
E verdade
disponíveis no site www.tagg.org.
que aquilo que chamamos de canção popular -
58
Contudo, afirmo aqui uma possibilidade de fusão do
pertencimentos gostos. e musical, manifestando uma cer
não verbal através da performance
verbalcom o
vivermos em uma sociedade
exatamente por
ta énfase no componente nào- verbal sobre teorias da canção, ver Luiz
maior detalhes
logocéntrica (para
de Ruth Finnegan intitulado "O que
extremamente vem
e o excelente artigo
Tatit O cancionista em 2008 no livro Pala-
o texto, a música
ou a pertormance? publicado
primeiro:
sobre poesia, música,voz).
Cantada: ensaios
vra
sobre a construção do gosto e
bastante interessante e aprofundada
Umadiscussão no livro Performing rites, de
chamada música popular encontra-se
do valor na do prazer da música popular é falar
autor destaca que parte
Simon Frith, no qual
o
(2001). Bra-
das Cièncias Humanas no
Em um principais "clássicos" contemporâneos
dos
sil A invenção do Nordeste e outras artes -o pesquisador Durval Albuquerque
numa alusão ao também
famoso livro A invenção das tradições, organizado
Jr.,
pelos historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger, afirma que a noção de Nor
deste foi "inventada" através de um complexo conjunto de dispositivos culturais,
economicos e políticos durante as primeiras décadas do século XX. Tal invenção
identidade nacional
representou um projeto coletivo de processamento de uma
e
cenário nacional.
Albuquerque Jr, 2006, p. 306.
1O imaginário da obra de Luiz Gonzaga está brilhantemente apresentado pela pes-
quisadora Sulamita Vieira em seu livro O sertão em movimento: a dinâmica da
produção cultural, com o qual este ensaio dialoga em vários momentos.
Sulamita Vieira, 2000, p. 78.
Em música bastante conhecida do repertório de Luiz Gonzaga, intituladaEstrada
de Canindé, o cantor descreve as belezas encontradas no cominho da tal estrada
que para serem contempladas o "cristão tem que andar a pé'" Trata-se novamente
aqui de uma idealização de um universo simbólico baseado na falta, na pobreza
C'quem é rico anda em burrico, quem é pobre anda a pé"), que é compensada pela
paisagem bela, "o sole a lua branca no sertão de Canindé'.
Albuquerque Jr., 2006, p. 81.
Ver Renato Ortiz, A moderna
Goli Guerreiro, A trama dos
tradição brasileira.
A
tambores, p. 133.
proximidade intelectual afetiva dos artistas do
setores
da imprensa pernambucana é interpretada com riqueza de detalhes
manguebeat com
jovens
na tese de
doutorado de Carolina Leão intitulada "A nova velha cena', defendida em 2008 no
Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFPE.
59
Para uma interpretaçào bastante ampla desta cpoca e das transtormaçoes no me
cado de bens simbolicos nacional, convém consultar as obras de Renato
Ortir A
maderna tradido brasileira e Mundializaçdo e cultura, que inspirou
subst ancial
mente parte das retlexdes ora apresentadas.
A marca de 45 milhoes de copias vendidas do disco Thriller, de
Michael lackson
lançado em 1982, é, até hoje, a maior da história da indústria fonográfica. Em
2009, após o falecinmento do idolo, noticias de agéncias internacionais
esse numero, atestando sua liderança no mercado mundial até os
dobrava
dias de hojie.
Ver Rosa Nepomuceno: Musica caipira: da roça ao rodeio, 1999
O canto em terças é uma das principais caracteristicas do etilo vocal
sertancio.
desde as modas de viola tradicionais até o ambiente contemporåneo das
sucesso. Trata-se de uma lécnica na qual dois cantores entoam melodias
duplas de
sendo que a segunda voz encontra-se a um intervalo de terça inferior em
paralelas,
relação à
primeira.
Para uma interpretação sobre o carnaval como momento de reversão
de ordem,
onsultar a obra do antropólogo Roberto DaMatta, sobretudo seus clássicos
Car.
navais, malandros e heróis (1979), A casa ea rua (2003) e O
que faz
brasil, Brasil?
(2004).
Ver Quce tchan é esse? da pesquisadora Mônica Leme (2002).
23
Um exame detalhado do surgimento e das caracteristicas dos
grupos de pagode
romántico nos anos
pode ser encontrado na tese "Samba e mercado de músi
1990
ca nos anos 1990", de
Felipe Trotta (UFRJ, 2006).
Sucessos, respectivamente dos artistas e grupos: Zezé di
Camargo e Luciano, Le
andro e Leonardo, £ o Tchan, Daniela
Mercury, Raça Negra e Só pra Contrariar,
todos lançados entre 1989 e 1995.
Segundo o texto de apresentação do site www.mastruz.com, acessado em jan/2008.
2
Entrevista de Emanoel Gurgel concedida à Revista
27
Oliveira Lima, Maria Erica. Somzoom Sat: do local ao
Epoca, 1999.
São Paulo: UMESP, 2005, p. 145.
global. Tese de doutorado,
Em artigo publicado recentemente, o
meia o forró eletrônico de "forró
pesquisador Ricardo Feitosa, da Unifor, no
pop", evidenciando sua associação com a indús
tria do entretenimento internacional e
tentando, desta forma, imputar um valor
positivo à prática (ver Apontamentos para uma aproximação critica do universo do
forró pop, Anais do XXXI Intercom, 2008).
"Esse argumentos estão indicados
em seu site oficial
explicitamente no release da banda publicado
www.avioesdoforro.com.br. Acesso em jan/2008.
A coletânea de
artigos Culturas juvenis no século XXI (2008), organizada por
Silvia Borelli e João Freire Filho traz
discussões atuais sobre o consumo
atual, complexificando a idéia de juventudee de jovem a partir de diversos juven
relatos,
estudos e interpretações sobre os
jovens no inicio do nosso século.
Aqui cabe uma ressalva. A distinção entreas duas cançoes não pode ser
a uma
diferenciação linear entre as bandas. Avioes do Forró tem em seuestenai
reper
rio diversas canções que narram o sexo dissociado do amor romàntico e o
pode ser dito deCavaleiros do Forró, que apresenta diversas musicas de
mesi
Pe
60
continui
devta breve análise é uma
romántico
O que é posuivel apreender de relacóes sociais,
mats mnoldam u m ambiente
duas perspectivas. (ue
dade entre as
jovem do forró eletrônico.
no imaginário
sexuais presente altamente
afetivas e a BMG), nome
(depois da tusáo da Sony com
Atualmente sdo quatro BMG e EMIL
Universal, Warner, Sony
familiares internacionalmente: mecanismo encontra s e no best seller A
sobre este
Uma discussdo
aprotundada "mercado de
a emergència do
"
61
dade brasileira. espaços sociais de interação e definiçâo de panki.
representando
sociais. A casa é um ambiente da segurança, da familla, onde as regras såo claraee
as hierarquias definidas. A rua, ao contrårio, è o espaço do desconhecido, do con-
tato com o outro, das relações mundanas. Em seu estudo, a intimidade da casa.
apresentada a partir de gradações (a varanda, a janela, a sala de estar), assim como
a rua. que torna-se familiarizada dependendo do seu uso e de seus circuitos s
62
Referências bibliográficas
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FIN Massangana; São Paulo: Cortez, 2006
ANDERSON, Benedict. Naçäo e consciència nacional. São Paulo: Atica, 1989
BLACKING, John. Music, culture and experience. Chicago, EUA: Chicago University
Press, 1995.
BORELLI, Silvia e FREIRE FILHO, João (orgs.). Culturas juvenis no século XXI. São
Paulo: EDUC, 2008.
63
LEME, Mónica. Que tchan é esse? Industria e produção musical no Brasil dos au
2002.
90
São Paulo: Annablume,
MANSUR, Fernando. Rádio: um veiculo sub-utilizado? Tese de doutorado a
resen-
tada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UER Dn
Janeiro, 2005.
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed. 34, 1990
9.
OLIVEIRA LIMA, Maria Erica. Somzoom Sat: do local ao global. Tese de doutorado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UMESP. São Paul
lo,
2005.
TAGG, Philip. Analysing popular music. Popular music n. 2, EUA: Cambridge Uni-
versity Press, 1982
64