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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS, PROPAGANDA E TURISMO

JOÃO VITOR NUNES SILVA - Nº USP 10686508

SORRIA!: UMA ANÁLISE DO ÁLBUM “SMILE” DE KATY PERRY E SUAS


RELAÇÕES COM O STORYTELLING PUBLICITÁRIO

SÃO PAULO
2020
1. INTRODUÇÃO

A cantora estadunidense Katy Perry é uma das principais popstars que


eclodiram na última década. Com cinco músicas do mesmo álbum atingindo número
1 na Billboard, parada de sucessos americana, ela conseguiu um feito que apenas
Michael Jackson tinha, e assim, se consolidou na cena pop do século XXI como
uma das maiores artistas femininas de todos os tempos.
Após um período de declínio nas vendas e do seu sucesso comercial, além
de críticas pela mudança no visual em seu último trabalho, este ano ela lançou seu
sexto álbum de estúdio, “Smile”, objeto de análise para este trabalho.
Com estética circense e um visual que se assemelha a um palhaço, com o
título formando um sorriso no encarte do CD, à primeira vista, têm-se a sensação de
ser um disco alegre, visto da superfície. Entretanto, conforme começamos a prestar
atenção aos detalhes, presentes desde a capa do álbum até as letras das canções,
percebe-se que o storytelling do álbum pode ser mais triste do que feliz, em
contraposição a que o título sugere, além que Katy e sua equipe utilizarem muitas
artimanhas da publicidade na criação de sua nova obra.
Smile, que em português quer dizer “sorria”, nos apresenta uma jornada da
cantora, em busca da alegria e do amor, e pela volta de seu sorriso, entretanto, os
primeiros atos do disco são sobre sentimentos chorosos, atormentados, desabafos
e tristeza. Observa-se então, que desde o título do CD e a composição da capa de
seu álbum, ela utiliza a ironia, recurso frequentemente explorado no universo da
criação publicitária (CARRASCOZA, 2015) como uma das formas pela qual ela se
apropria para contar sua história e jornada no álbum.

2. A JORNADA DA ARTISTA EM BUSCA DE SEU SORRISO


A capa é geralmente o primeiro ponto de julgamento que temos de um álbum.
Aqui, a cor vermelha pode ser associada ao circo e os elementos que ele evoca
(alegria, risadas, palhaçadas), enquanto o azul, em tom sóbrio, contrasta, trazendo
sensações de tristeza, melancolia e solidão.

Figura 1: Capa do álbum “Smile” da cantora Katy Perry. 2020.

Analisando a capa do álbum, embora a composição circense e nariz de


palhaço já mencionados, a sua feição triste contrasta com o título do álbum,
expondo o tom irônico que posteriormente observa-se ao longo do storytelling da
obra. Esse detalhe, muito explorado pela publicidade, é uma artimanha da artista,
que permeia toda a obra, sendo um importante elemento na capa do álbum e que foi
misturado ao longo das canções. Sobre essa técnica, alguns autores afirmam:

“Wood nos lembra de uma declaração de Flaubert a


respeito dessa questão: “Um autor em sua obra deve
ser como um Deus no universo, presente em toda
parte e visível em parte alguma” (WOOD, 2011, p.
48). O crítico argumenta, assim, que o romancista
francês aperfeiçoou a técnica, essencial para a
narrativa realista, de sugerir que os detalhes sejam,
ao mesmo tempo, importantes (porque foram notados
e escritos por ele) e insignificantes (porque estão
misturados, para serem vistos de relance).”
(CARRASCOZA, 2015, p. 41)
Como uma certa sutileza vista em vários anúncios publicitários, ela insere
esses detalhes que funcionam como ponto-chave para entender a obra, desde a
capa: ela é uma palhaça triste e o storytelling do álbum não é a alegria em si, mas a
busca e os desafios para se chegar nela, além da ironia presente que ao longo de
canções do primeiro ato com batidas animadas, as letras são sobre tristeza.
Nesse contexto, a artista ao utilizar a ironia na capa do álbum nos apresenta
sua obra com uma técnica que publicitários utilizam para expor a real intenção de
um anúncio, que ao criarem um ad “[..] os publicitários, não raro, optam justamente
por não esconder, mas escancarar, na forma de ironia, o intuito de sua
propaganda.” (CARRASCOZA, 2015, p. 27)

3. A ESTRUTURA DO ÁLBUM

De acordo com a linguista brasileira Ingedore Koch, coerência é a


continuidade de sentidos entre os conhecimentos ativados pelas expressões do
texto. Analisando sob esse viés, temos que a obra de Katy tem uma história
extremamente coesa. Dividido em 4 atos, o álbum é divido da seguinte forma:

1. Never Really Over


2. Cry About It Later
3. Teary Eyes
4. Daisies
5. Resilient
6. Not the End of the World
7. Smile
8. Champagne Problems
9. Tucked
10. Harley In Hawaii
11. Only Love
12. What Makes a Woman

Dessa forma, podemos estruturar a obra em 4 atos: Cura (faixas 1, 2 e 3),


Resiliência (faixas 4, 5 e 6), Alegria (faixas 7, 8 e 9) e Amor (faixas 10, 11 e 12). Ela
constrói a narrativa como em um roteiro, criando uma apresentação e sequência
para seus sentimentos, o desenvolvimento deles e a solução. Sobre essa estrutura,
temos que:

“Syd Field (1995), teorizando sobre a roteirização no


cinema, ensina que a estrutura canônica de um filme
de longa-metragem é constituída de três atos:
apresentação, conflito e resolução. A passagem da
primeira para a segunda etapa, e da segunda para a
terceira, se dá por meio de um plot point, um ponto de
virada. O filme publicitário, a nosso ver, plasma essa
estrutura, e, tratando-se de comerciais mais longos,
com um minuto de duração, os plot points estão
sempre colados ao aparecimento do produto ou da
marca anunciada.” (CARRASCOZA, p.47)

Assim, podemos analisar o álbum usando essa teoria como: Apresentação,


com bastante figuras de linguagem, transmitindo sua dor e sentimentos (faixas 1, 2
e 3), Conflito, ou aqui, o ponto em que ela começa a amadurecer e evoluir,
percebendo que há uma saída, e como ela começará a sair desse beco (faixas 4, 5
e 6) e Conclusão (faixas 7, 8 , 9 - após a alegria, vem o amor - 10, 11 e 12) sua
jornada foi concluída em busca a alegria e amor tanto almejados.
Os plot points citados por Field também podem ser vistos na obra. Teary
Eyes (“Apenas continue dançando com esses olhos lacrimejando.. 1”) para Daisies
(“...tentaram me derrubar / Peguei aqueles paus e pedras, mostrei que eu poderia
construir uma casa..2”) mostra o ponto da decepção superado e partindo para a fase
de auto-aceitação, tornando-se uma mudança narrativa. Smile, faixa 7 e música-
título do álbum, se mostra como o auge da história, o ponto de virada, na qual aqui,
a cantora se mostra agradecida e a partir desse momento, conseguiu seu sorriso de
volta3 após as longas lágrimas, seguindo sua trajetória na alegria e amor.

1 Katy Perry - Teary Eyes. Disponível em:


<https://www.letras.mus.br/katy-perry/teary-eyes/traducao.html> Acesso em 28 set. 2020.
2 Katy Perry - Daisies. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/katy-perry/daisies/traducao.html>
Acesso em 28 set. 2020
3 Katy Perry - Smile. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/katy-perry/teary-eyes/traducao.html>
Acesso em 28 set. 2020.
4. AS FIGURAS DE LINGUAGEM E INTERTEXTUALIDADES

Figuras de linguagem são uma forma de transmitir sentimentos e emoções.


São de certa forma limitadas se fossem empregadas à forma racional de escrita.
Carrascoza (2015) afirma que as figuras de linguagem são fundamentais no modelo
da propaganda emocional pois injetam mais expressividade ao discurso.
Assim como a publicidade se apropria dessa forma de linguagem em seus
roteiros, Perry também insere-as em seu storytelling como uma forma de aumentar
a expressividade de seus versos e transmitir emoções e sentimentos mais
subjetivos, ampliando a percepção do público.
Podemos notar eufemismo na faixa Daisies em “Eles me dizem que sou
louca / mas nunca vou deixar que eles me mudem / Até que eles me cubram em
margaridas4”, fazendo referência a um velório e enterro, ou metáfora no trecho de
Harleys in Hawaii “Garoto, me diga, você pode me tirar o fôlego? / Navegando pela
estrada em forma de coração / Você balança entre uma pista e outra, não use os
freios / Porque estou me sentindo tão segura 5”, fazendo uma comparação implícita
com uma relação sexual ou ainda em What Makes a Woman “Preciso de lenços
para meus problemas e band-AIDS para meu coração6”. Também é possível notar
sinestesia na mesma canção em “É a maneira como falo doce? 7”, atribuindo paladar
à figura da artista de ser meiga.
Nesse contexto, a cantora por meio das várias figuras de linguagem
consegue transferir uma maior gama de sentimentos e significados através de suas
canções, tal qual a publicidade faz para transmitir mais valores nos seus anúncios.
Além de algumas dessas figuras de linguagem presente na obra,
principalmente a ironia, que permeia um pouco de cada canção a começar pela
capa, têm-se também uma inter-relação de textos, teorizada primeiramente pelo
filósofo russo Bahktin, chamada de intertextualidade. Ela está presente,
principalmente, na música Cry About It Later, em comparação à The One That Got

4 No original, they tell me that I'm crazy, but I'll never let 'em change me / 'Til they cover me in
daisies, daisies, daisies.
5 No original, boy, tell me, can you take my breath away? / Cruising down a heart-shaped highway /
Got you swerving lane to lane, don't hit the brakes / 'Cause I'm feeling so safe.
6 No original, I need tissues for my issues and band-aids for my heart.
7 No original, Is it the way I talk sweet?.
Away, melancólica música sobre um término de relacionamento brusco, lançada há
dez anos atrás no álbum Teenage Dream.

E no meu aniversário de 18 anos, nós fizemos tatuagens iguais


[...]
É hora de encarar a música, eu não sou mais a sua musa

E comparando com o trecho do álbum Smile, 10 anos depois:

Eu acho que estou pronta pra ser a musa de alguém


Eu acho que estou pronta pra uma tatuagem nova

Observa-se portanto uma canção fazendo referência à outra, evocando


sentimentos de nostalgia. Essa técnica, também podendo ser chamada de
dialogismo, é utilizada na publicidade, “quando o produtor de uma mensagem
publicitária, intencionalmente, resgata textos anteriores, levando seu destinatário a
reconhecer traços de outras produções.” (CARRASCOZA, p. 44)
Perry constrói uma narrativa emotiva e com traços subjetivos, fazendo com
que grande parte do público se emocione e tenha empatia pelas suas palavras.

5. INFERÊNCIAS FINAIS

Olhando a partir do mapa geral de consumo (Figura 2) proposto por Andrea


Semprini, que completou-o com base no quadrado semiótico proposto por Floch
(CARRASCOZA, p. 56), temos que “Smile” da cantora Katy Perry entraria dentro do
viés lúdico, e mais presente dentro do quadrante da Euforia, por ser emotivo,
transmitir sentimentos, ao mesmo tempo que diverte e entretém.
Figura 2: O mapa de “valores de consumo”, comum na Publicidade.

Assim como a Publicidade quando quer atingir a emoção do target e gerar


empatia, está inserida no quadrante “Euforia”, o álbum está presente em maior
quantidade nele, querendo atingir o mesmo objetivo. Contudo o desenvolvimento da
artista para chegar ao seu sorriso passa por um processo de sonho e renovação,
para então abraçar o seu eu interior, conteúdo que pode se relacionar com a parte
de “Projeto” do mapa geral. Assim, a cantora abraça o lado lúdico e faz um álbum
emotivo e de renovação.
Outra perspicácia de Katy e sua equipe é como o primeiro e último versos
podem ser relacionados de certa maneira. O álbum é aberto com “Estou perdendo
meu próprio controle..” e a cantora começa a revelar seus sentimentos chorosos e
sua tristeza interior. Ao longo de sua trajetória, a última faixa encerra a obra com “Aí
está Katherin!”, chamando a cantora pelo seu nome verdadeiro, o que traz uma
certa intimidade à narrativa. Podemos atribuir que aqui é o ponto em que vemos que
Katy recuperou seu sorriso, o encerramento que faz total jus à seu título. Temos que
uma narrativa
“como uma metáfora da vida, é tangido pelo escritor
desde sua nascente com um único objetivo: desaguar
no fim. E não importa se esse fim é um happy end, um
grand finale, um desfecho trágico. O conto, desde a
primeira palavra, é “conduzido” pelo e para seu fim.”
(CARRASCOZA, p. 81).
Como afirma o autor no trecho acima, Katy utiliza a mesma estrutura
narrativa e faz uma história em que seu começo vai milimetricamente se formando
para seu fim ao longo de 12 canções. O álbum funciona exatamente na ordem
inserido, e caso usado a função “aleatória”, perde-se esse grande estrutura e muito
do sentido original da obra.
Dessa forma, Katy Perry constrói sua narrativa pegando emprestado vários
recursos da publicidade, gerando reconhecimento com seu público, evocando
sensações, emoções e sentimentos através das figuras de linguagem e
intertextualidades e realiza um storytelling coeso, digno de roteiro de cinema, em
sua jornada em busca de seu sorriso perdido.

6. BIBLIOGRAFIA

CARRASCOZA, João Anzanello. Estratégias criativas da publicidade –


Consumo e narrativa publicitária. São Paulo: Estação das Letras e Cores,
2015.

PERRY, Katy. SMILE. 2020. 37min. Capitol Records. Disponível em


<https://open.spotify.com/album/38hfmutL8qSnflpigbMoLw> Acesso em 27 set. 2020

LETRAS.MUS. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/katy-perry/> Acesso em


30 set. 2020

G1. Katy Perry expõe lado atormentado e choroso em 'Smile', melhor dela
desde 2010. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2020/
08/24/katy-perry-expoe-lado-atormentado-e-choroso-em-smile-melhor-album-desde-
2010.ghtml> Acesso em 30 set. 2020

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