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IM HENNEY FITOU SUAS MÃOS PÁLIDAS, TRÊMULAS,

K
GROSSAS E cheias de cicatrizes apertarem o couro do volante
quando fez a última curva em direção ao ponto de troca informado
por Dom. Ele sentia o suor frio acumulado sob as palmas, a
umidade viscosa entre sua pele e o couro. Por um segundo,
imaginou que aquela umidade fosse o sangue do líder dos
Snakes depois de rasgar sua boca da orelha à garganta, depois
de desfigurar e foder seu cadáver de uma forma tão animal, tão
incompreensível, que ninguém jamais poderia identificá-lo. Farei
isso, ele pensou, não tem a mínima chance desta noite terminar
sem que a minha garganta, ou a de Dom, esteja aberta neste
maldito asfalto.

Depois de entrar na mesma avenida em que quase foi


assassinado algumas semanas atrás pelos Snakes, sua visão
completamente embaçada por ódio foi clareada por algo. No
entanto, caso não fosse forte o suficiente para derrotar Dom, a
garganta de Kim não seria a única aberta no asfalto.
— Noah... — ele murmurou, vendo ao longe, de joelhos e
amordaçado no chão, roupas sujas e rasgadas, rosto
ensanguentado e machucado, seu irmãozinho.

Eles nunca me pegarão vivo, Kim, a voz do irmão ecoou


por sua mente. Entendeu?

As mãos se afastaram do volante, mas o pé continuou


suave no acelerador, aproximando-o da cena lentamente.
Encobriu a boca com uma das palmas livres e, com a outra,
tocou em sua cintura o cano do revólver — o revólver de seu pai.
Uma bala atingiu-o no peito, e uma lâmina afiada arrastou-se
pelos músculos macios de seu abdome, trazendo para fora tudo
o que deveria ficar lá dentro, eviscerando-o dolorosamente.

— Noah... — ele repetiu.

Nunca deixarei que toquem em você, ele se lembrou de


ter dito, tão confiante, tão estúpido. Estúpido. Estúpido. Estúpido.
Filho da puta estúpido e miserável.

Kim não sentia mais o próprio corpo. Não se mexia, não


piscava, sequer respirava. Entrou numa espécie de transe, como
se estivesse sentado numa sala de cinema e assistisse a um
filme se desenrolar em sua frente — um filme terrível, sangrento,
assustador. Um filme que se aproximava e ficava cada vez
maior, englobava mais e mais de seu campo de visão. Um filme
que o drenava completamente.

Seu pé finalmente saiu do acelerador de vez, e o carro


parou. Estava apenas a alguns metros da cena, de seu irmão
amordaçado, ferido e ajoelhado; da gangue de dezenas, talvez
centenas, de homens atrás dele; do mafioso desgraçado em seu
terno escuro e sorriso repugnante, em pé, logo ao seu lado.
— Você demorou — Dom comentou, uma mão no bolso
da calça de alfaiataria, outra no cigarro que tragou e então atirou
para o lado, bem na frente de Noah. — Cheguei a pensar que
não ia aparecer, que ia colocar seu rabinho entre as pernas,
fugir, e deixar o pequeno Noah aqui — ele agarrou os fios de
Noah e puxou sua cabeça para trás e para cima, expondo seu
rosto claramente a Kim. Os olhares castanhos dos irmãos
Henney, marejados por razões diferentes, se encontraram. Noah
chorava de dor. Kim chorava de ódio. — Você sabe que nós
cuidaríamos muito bem dele, Henney. Estivemos com escassez
de putas nos últimos meses. E ele seria uma ótima... —
empurrou a cabeça de Noah para frente, fazendo-o cair de rosto
no asfalto —, ótima puta.

Kim não respondeu. Ele não saberia o que responder,


mesmo se quisesse. E não queria. Não queria falar com Dom,
não queria argumentar com o filho da puta, não queria correr o
risco de escorregar em seu veneno. O que ele queria mesmo era
arrancar suas presas e usá-las para esfolá-lo lentamente. Então
apenas abriu a porta e saiu do carro, manteve os faróis ligados.
Caminhou lentamente, um passo de cada vez, os ombros
rígidos, os olhos centrados no irmão, precisando lembrar-se de
respirar — porque seu corpo não conseguia mais fazer isso
involuntariamente.

— Então, Kim — Dom voltou a preencher a avenida


escura com sua voz áspera —, preparado pra se juntar a nós
outra vez? — Ergueu uma sobrancelha, estufou o peito e ergueu
o queixo, mirando Kim de cima com um olhar viperino. — Seu
irmão precisa de uns curativos com urgência. Depois que se
entregar a mim, prometo que ele será levado pro melhor hospital
da cidade. — Estalou a língua. Virou-se para trás, em direção a
alguns de seus capangas mais próximos, semiautomáticas e
fuzis bem empunhados. Eles trocaram algumas risadinhas. —
Cortesia da casa — o líder dos Snakes finalizou quando retornou
a atenção ao ex-lutador de seu ringue clandestino.

Kim cerrou os punhos, sua mandíbula tão tensa e dolorida


que ele não tinha certeza de como continuava intacta. Noah
espalmou o chão e se ergueu com dificuldade, voltando a ficar
de joelhos. Ele cuspiu sangue no asfalto e limpou a boca com a
barra suja da camisa.

As entranhas de Kim apertaram, o peito preenchido por


chumbo, o cérebro derretido. Suas pálpebras tremiam. Ele abriu
a boca para finalmente responder algo, mas se interrompeu
quando viu alguém se aproximando pelo meio da multidão de
mafiosos, chegando cada vez mais perto de Dom.

Ele reconheceria aquele maldito terno azul em qualquer


lugar.

O terno azul que destruiu sua vida e a de seu irmão, que


os roubou de um futuro decente, que fez questão de enfiar uma
faca em seus peitos não uma, não apenas duas, mas sim três
vezes.

Ele viu Jude Goldman ganhar espaço entre os Snakes e


parar ao lado de Dom. Ele viu o homem que acreditou amar ser
complacente ao seu pior inimigo; ser indiferente ao corpo ferido,
fodido e esmagado de seu irmão, de seu pequeno e indefeso
irmão. Jude sabia o quanto ele amava Noah, sabia que
ofereceria — que ofereceu — sua vida numa bandeja pela mera
possibilidade de salvar o Henney mais novo. Ele sabia que
machucar Noah era como machucar a parte mais frágil e
sensível de seu peito, que ele jamais o perdoaria por aquilo. E,
estando ao lado de Dom, era como se tivesse feito isso com
suas próprias mãos.
Kim sentiu vontade de vomitar, a visão subitamente
escura. Foi tomado por vertigem, mas não moveu um músculo.
Esperou o filme de terror em sua frente ficar nítido outra vez,
virou-se para o lado e cuspiu.

— Eu vou levar meu irmão para o hospital quando


terminarmos aqui, Dom — Kim disse, calma e pausadamente,
voltando-se ao desgraçado de terno preto. — Mas você não vai
ter o mesmo luxo. Quando terminarmos, não haverá nada que os
médicos possam salvar de seu corpo; seus capangas filhos da
puta te carregarão direto pro cemitério... ou pro necrotério — deu
de ombros —, não acho que haverá o suficiente para ser
enterrado também.

E seu olhar fixou-se em Jude.

Ele terá coragem de matá-lo? Pensou.

Sim. A resposta veio instantânea. Sim, sim e sim. Ele vai


matar Jude Goldman esta noite.
MISTERVERSO
PAYBACK
Volume 1 — DANGEROUS
DANGEROUS: ATO I
DANGEROUS: ATO II
Volume 2 — VICIOUS
Em breve
DANGEROUS: ATO II
Copyright © 2023 Mister M.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de
19/02/1998. Proibida a reprodução deste livro, no todo ou em
parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do
autor, exceto em casos de pequenas citações usadas em
resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares,
organizações, eventos e incidentes são, ou parte da imaginação
do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças
com indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são
inteiramente coincidentes.
Os direitos morais do autor foram assegurados.
Leitura Crítica: Brendon Idzi Duhring

Revisão: Brendon Idzi Duhring

Diagramação: Senara Sousa

Capa e Emblemas: Senara Sousa

Ilustrações de Personagens © Arda Artworks

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
Primeira edição, 2023.
Para aqueles que procuram conforto nos livros. Espero que Kim e
Jude sejam o conforto que você precisa agora <3
FOLHA DE ROSTO

D A N G E R O U S : AT O I N O F O R M AT O F Í S I C O

DIREITOS AUTORAIS

D E D I C AT Ó R I A

P L AY L I S T

N O TA D O A U T O R

AV I S O D E C O N T E Ú D O

SOBRE OS SNAKES

SOBRE OS SCORPIONS

S O B R E A G O L D M A N E N T E R TA I N M E N T

PRÓLOGO

PA R T E I

INTERLÚDIO

FRÁGIL, PT. I

FRÁGIL, PT. II

OLHOS NA ESTRADA

BOA NOITE, SENHORES

DOMINIC

DANÇANDO COM O DIABO


CIÚMES

OLÁ

E U M ATA R I A P O R V O C Ê

AJOELHE-SE

ME DÊ TUDO, MENOS AMOR

DEIXE TOCAR

ASSOMBRADO

INIMIGO

O M A I O R PA U D E T O D O S

INTERLÚDIO

PA R T E I I

INTERLÚDIO

FLORENCE WINGSROAD

C U R AT I V O S

O SENTIMENTO MAIS PERIGOSO

BRIANNA

ISSO NÃO É A VIDA REAL

OS ARQUIVOS

INTERLÚDIO

A V I O L Ê N C I A N A T E M P E S TA D E

INTERLÚDIO

REAL

SEU

MEU

EU VEJO VOCÊ

VINGANÇA X JUSTIÇA

DOENTIO

H I P Ó C R I TA
P U TA D O R D E C A B E Ç A

PRONTO PRA MORRER

JUDE GOLDMAN

B R AV O V I A J A N T E

INTERLÚDIO

TERMINE ESTE AMOR

EPÍLOGO

AGRADECIMENTOS

SOBRE O AUTOR
cuidadosamente organizada
E S S E L I V R O P O S S U I U M A P L AY L I S T
para complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do
código abaixo (abra a barra de busca do spotify, clique sobre o
ícone da câmera e o escaneie), ou busque pelas palavras-chave
“DANGEROUS (Atos I e II) – Playlist Oficial” no serviço de
streaming.
NOTA DO AUTOR
Querido leitor, este não é o final.

Como explicado na nota do autor do ato I, cada volume da


duologia foi segmentado em dois atos diferentes para agilizar o
fluxo de lançamentos, permitindo que você receba conteúdo
novo num ritmo que outrora não seria possível. DANGEROUS é
apenas o primeiro volume de PAYBACK, e este livro é a segunda
parte (ato II) de DANGEROUS. O segundo volume da duologia
se chama VICIOUS e será lançado em 2024. Para mais
detalhes, por favor, volte à nota do autor do Ato I.

Dito isso, PAYBACK é uma duologia de dark romance.


Segundo o urban dictionary, em tradução livre deste que vos
escreve, dark romance é “um subgênero de romance que
contém temas controversos ao longo da narrativa ou
personagens com morais questionáveis”. Sendo assim, espere
temas controversos e personagens com morais bastante
questionáveis nesta história. Não espere um romance
convencional, “cenas boiolinhas” entre os protagonistas ou que
eles ajam entre si da maneira que você espera. Este tipo de
narrativa é destinado a adultos por exigir um calibramento de
senso crítico importante durante a leitura, não apenas por conter
cenas explícitas de sexo ou violência ;)

Entre os temas sensíveis retratados aqui, cabe um alerta


para abuso psicológico, físico e verbal; homofobia; violência
conjugal. Além, claro, de violência em vários âmbitos e formas,
linguagem vulgar e conteúdo sexual.

Este livro é mais obscuro, profundo e intenso do que o


primeiro. É mais visceral, e emocionalmente fatigante, talvez até
um pouco agressivo. Estes personagens estão bem longe de
serem perfeitos. São quebrados e carregam cicatrizes do
passado que moldam personalidades cinzas, por vezes de difícil
compreensão, certamente difíceis de amar, movidos por desejos
primais: vingança, justiça, liberdade e amor. Você com certeza
pode escolher só desligar o cérebro e aproveitar as belas
palavras nas páginas ou na tela, mas convido você a se desafiar
e se manter atento a cada parte da jornada, a se colocar nos pés
de cada personagem, a vivenciar cada um dos seus pontos de
vista. Será uma experiência inesquecível.

Agora, vamos para o que te trouxe aqui.

Com todo o carinho do mundo,

sempre seu,

MM.
AVISO DE CONTEÚDO
Este livro é recomendado para maiores de 18 anos por conter:

Abuso de drogas
Conteúdo sexual gráfico
Linguagem imprópria
Violência explícita (gore)

Prossiga com cuidado e lembre sempre de priorizar sua saúde


mental.
SNAKES
É a organização criminosa dominante em Nova York,
Pensilvânia, Ohio, Vermont, Connecticut, Nova Jersey e cerca de
outros treze estados no norte dos Estados Unidos. Através de
suas subdivisões e fragmentação em gangues menores,
controlam as ruas das cidades e estão por trás dos governos,
simultaneamente. Apesar disso, os Snakes possuem um
comando centralizado, passado adiante somente quando seu
líder anterior morre, para a pessoa que o matou. Em 2021, a
liderança foi passada a um garoto de apenas 19 anos, Dominic
Cloud, que se tornou a pessoa mais jovem a assumir o controle
da máfia.

Ao contrário da crença popular em Nova York, os Snakes


nasceram na Pensilvânia, quase um século atrás. Suas primeiras
ações tomaram forma durante a Grande Depressão, quando a
máfia cresceu e se expandiu às custas das dívidas de
trabalhadores, capitalistas e governantes desesperados. A crise
do país permitiu à organização rapidamente tomar o controle de
boa parte do país, e esse controle só se fortaleceu a cada nova
crise (financeira ou política) subsequente ao longo das décadas.

Seu lema é “born to rule”, ressoando a implacabilidade e


imponência com que os mafiosos agem. Buscam o lucro acima
de tudo. Possuem uma política de completa intolerância ao não
pagamento de dívidas e de conseguir recuperar seus
investimentos sob quaisquer custos. Frequentemente, são
contratados por indivíduos ou corporações inteiras para
realizarem seus trabalhos sujos (assassinatos, estelionatos,
sequestros, etc.).

No submundo, são reconhecidos por suas Arenas,


grandes construções subterrâneas que guardam seus clubes de
luta. Os clubes de luta (ou ringues, como são popularmente
conhecidos) são locais de difícil localização, acesso restrito e
extremamente violentos. Estão espalhados ao longo dos estados
onde os Snakes são a máfia dominante, e apresentam dois
propósitos: eliminar devedores, e retirar dinheiro de apostadores
(tornando-os novos devedores) num ciclo vicioso. São tão
reconhecidos que, em 2022, foram incluídos no emblema oficial
da organização.

Seus membros são identificados por uma tatuagem de


serpente no lado esquerdo do pescoço, que se estende da base
da nuca até a traqueia. A remoção da tatuagem de identificação
é considerada traição e punida com o fuzilamento. Outras
tatuagens são adquiridas conforme o membro sobe na hierarquia
da máfia e se envolve em ações hediondas, podendo envolver a
porção superior das costas, os braços, o peito e o rosto.
Somente o líder atual da organização pode ter a costa inteira
fechada com tatuagens, no entanto.
Atualmente, seu líder reside em Nova York e, por isso, o
clube de luta da cidade é o que mais recebe atenção em todo o
país.
SCORPIONS
É a principal máfia rival dos Snakes, sendo a única entre
as duas que tem origem em Nova York. Diferente de seus rivais,
os Scorpions não possuem ações extensas em outros estados.

Estão em guerra com os Snakes pelo controle de NY há


décadas, saindo em larga desvantagem por seu tamanho menor
e falta de apoio do governo local. Apesar disso, possuem uma
notória rede de gangsters de rua, que por vezes conseguem se
sobressair aos gangsters da máfia rival em confrontos físicos
diretos.

Assim como a máfia originária na Pensilvânia, os


Scorpions possuem controle centralizado nas mãos da família
Donovan. Em 2017, após a morte de Liev Donovan, a liderança
da organização criminosa foi passada para seus dois filhos
gêmeos, Maddox e Wolfgang Donovan.
Apesar dos crimes, há um senso de patriotismo ecoado
nas ações dos Scorpions. Possuem uma política flexível quanto
ao pagamento de dívidas, o que reflete em sua conhecida regra
“damos uma segunda chance, mas nunca uma terceira”. Não
vendem seus serviços a indivíduos ou corporações, e não
subjugam seus devedores (são adeptos a execuções rápidas e
limpas).
GOLDMAN ENTERTAINMENT
Goldman Entertainment (GE) é um conglomerado
midiático norte-americano multinacional com interesses primários
na produção e distribuição de programas de TV (através de seu
canal premium GOLDMAN ou de canais de estúdios parceiros).
Foi fundado em 1952 pelo casal de descendência alemã Peter e
Mirella Goldman, e se manteve até hoje como uma empresa de
capital fechado e com controle centralizado nas mãos da família
Goldman.

Em 2008, após o trágico acidente de trânsito que matou


Henry e Amelia Goldman, o controle da empresa foi
unanimemente transferido ao parente mais próximo em idade
legal para liderar, Brianna Goldman, irmã mais nova de Henry, e
única parente viva de Jude Goldman, filho de Henry e Amelia,
que tinha 8 anos quando o evento trágico ocorreu.
Atualmente (2022), apesar de Jude estar em sua
maioridade, Brianna continua ocupando o cargo de CEO da
empresa.
“A única pessoa que não consegue enxergar o que está bem em sua frente é
você.”

Jude Goldman
ignorante quanto seu irmão — digo
— VO C Ê É T Ã O I N S O L E N T E E
para Noah. — Deve ser algo que corre no sangue.

E, com um último olhar de relance a Kim, dou-lhe as


costas, me perguntando quanto tempo levará até que ele
descubra a verdadeira razão pela qual comprei sua dívida, e
quanto tempo tenho até que a peça final do meu plano se
encaixe.

Olivia. Preciso encontrar Olivia.

Encontro o banheiro mais próximo do lugar e praticamente


arrombo a porta. Debruço-me sobre a pia e fecho os olhos
fortemente.

Merda.
Merda. Merda. Merda.

Minhas pálpebras ardem. Aperto a pia com tanta


intensidade que meus braços tremem. Não posso ser fraco. Não
agora. Por favor.

Abro os olhos. Encaro meu reflexo.

Quem fez isso? Quem tentou matar Kim? Os Snakes?


Provavelmente. Mas por que Dom voltaria atrás em sua palavra?
Por que romperia as cláusulas muito claras de nosso acordo?
Isso tudo soa muito estranho. Mesmo que quisesse se livrar de
Kim porque ainda o considera um cão que escapou de seu
ringue, então por que fazê-lo com um atropelamento? Inspiro
fundo. Atropelamento, meu Deus? Que merda é essa? Não
parece nada com o Modus Operandi dos Snakes. Assassinato a
sangue-frio é mais seu estilo.

E de quem era o sangue nas roupas de Kim? Será que


lutou contra eles antes de... antes de... Umedeço os lábios e
coço minha nuca. Foi encurralado e estava fugindo quando foi
atropelado?

A polícia nunca investigará profundamente um crime


relacionado aos Snakes, então essa merda não dará em nada.
Se eu quiser descobrir o que aconteceu esta noite, precisarei ir
até o ninho das serpentes. Precisarei perguntar diretamente a
Dom.

Essa conclusão faz meu estômago se contorcer.

Miro as minhas mãos, pálidas e frias. As linhas azuis e


verdes que se desenham sob a pele parecem finas o bastante
para serem rasgadas com o mais suave dos toques. Kim tocou
nessas mãos tantas vezes, e seu toque não tem nada de suave
— é quente e bruto. Mesmo assim, minhas veias não se
rasgaram. Cerro meus punhos, os nós dos dedos se
pronunciam. Agora são as veias de Kim que estão abertas
naquela cama.

E, por mais que eu não devesse me importar... não


consigo evitar. Não quero que ele morra.

Deixo o banheiro e entro no elevador.

Não quero que suas palmas quentes e brutas se tornem


frias e quebradiças como as minhas.

Volto à recepção do hospital e me dirijo à recepcionista.

— Transfira Kim para seu quarto mais caro e faça o que


tiver de fazer para acelerar seu tratamento — ordeno e atiro meu
cartão de crédito empresarial, cujo limite mais parece um número
de telefone, sobre o balcão. A mulher olha desconfiada, e então
contemplativa. — Se Kim não se recuperar logo, se algo
acontecer com este homem... que Deus me ajude, não vou
apenas destruir a vida da equipe médica e dos malditos donos
deste hospital. — Aproximo-me mais dela e sussurro: — Vou
destruir você, pessoalmente. Vou destruir sua família, seus
filhos, me certificarei de que se tornem estatísticas neste país
cheio de tragédias.

Ela faz uma careta.

— Está me ameaçando, senhor?

— Estou avisando-a. — Expiro e viro de costas. — Não


gasto ameaças com seres insignificantes.

Quero sentir as mãos de Kim sobre as minhas outra vez.

Volto ao estacionamento do prédio. Caminho até o meu


carro. O chofer substituto de Kim se apressa a abrir a porta para
mim. Entro, e retiro o celular do bolso. Minha porta é fechada. O
homem volta ao assento do motorista.

— Para casa — é tudo o que digo ao homem de meia-


idade e expressão ansiosa e entediada ao mesmo tempo.

Ele concorda com o queixo e fixa os olhos à frente, liga o


carro e logo o manobra.

Disco o número dos Snakes, e meu polegar paira sobre o


botão para completar a chamada.

Conforme o veículo se move e o cenário muda ao meu


redor, um questionamento ecoa na parte de trás da minha
mente. E se não foram os Snakes que tentaram matar Kim? E se
Dom não rompeu o acordo?

Afasto o dedo da tela. Bloqueio o aparelho e o atiro no


banco ao lado. Seguro meu queixo e viro-me em direção à
janela, sem realmente prestar atenção na paisagem lá fora.

Os Scorpions querem Kim como aliado, e também não


costumam prestar contas através de atropelamentos. Não foram
eles.

Se as gangues não orquestraram este atentado, então há


apenas mais uma pessoa que poderia fazer isso e sair impune.

A puta da minha tia.


INTERLÚDIO
11 ANOS AT R Á S

— AH ! P O R R A !

Noah afastou sua mão do cabo da frigideira tão rápido quanto a


colocou ali depois de perceber que sua segunda tentativa de
preparar a refeição do irmão mais velho também tinha acabado
em ovos terrivelmente queimados e um bacon gordurosamente
intragável.

— Por que não consigo fazer nada certo nessa merda? —


murmurou para si mesmo enquanto desligava o fogão. Ligou a
torneira da pia e colocou sua mão sob a corrente forte de água
gelada. Sentiu um alívio imediato, mas já desconfiava que o
machucado ficaria feio nas próximas horas. — Parece até que
sou amaldiçoado.

O garoto de apenas sete anos tinha acabado de aprender


uma nova palavra com os colegas na escola. Amaldiçoado:
alguém que tem muito azar. Se encaixava bem na descrição
dele.

Kim evitava discutir isso, mas sempre que seu pai estava
bêbado, se trancava com Noah num dos quartos da casa; antes
de receber um soco estômago ou um golpe de cinto no rosto,
Noah precisava ouvi-lo tagarelar sobre como a fuga de sua mãe
fora culpa do menino — unicamente dele. E então vinha a dor —
emocional e física — até Kim chegar em casa. Então Kim
brigava com seu pai e levava Noah para seu quarto, prometendo
que em breve os tiraria dali. Então Kim saía para o trabalho no
outro dia, e tudo se repetia.

Noah já tinha aprendido a lidar com a dor em silêncio, a


esperar até as luzes se apagarem e seu cobertor estar sobre sua
cabeça para então chorar. A dor era sua amiga agora, uma que
ele encontrava diariamente.

Aquela pequena queimadura não era nada. Ele riu


imaginando quão preocupado seu irmão mais velho ficaria
quando visse aquilo, imaginando as promessas que Kim faria
outra vez, promessas que nunca conseguiria cumprir.

Kim jurava que podia protegê-lo. Mas, mesmo sob esses


juramentos, Noah ainda era machucado todos os dias. Por quê?
Por que aquilo acontecia? Era por que o irmão estava mentindo?
Não. Kim parecia confiante quando falava essas coisas.

Mas, naquele momento, Noah sabia a resposta: era


mesmo amaldiçoado.

Por que Kim não havia contado aquilo para ele antes?
Será que também não conhecia aquela palavra estranha? Idiota.
Talvez ele devesse apresentá-la ao irmão quando ele chegasse
dali a algumas horas.
O sol já havia se posto havia bastante tempo, e nem sinal
de seu pai chegar. Noah caminhou até a sala parcialmente
encoberta por penumbra e ligou o interruptor das luzes da
varanda. Com alguma sorte, seu pai não acharia o caminho para
casa naquela noite.

Mas como o pequeno garoto era amaldiçoado... seu pai


sempre encontrava.

1 ANO AT R Á S

NOAH SENTOU NO SOFÁ DA sala em silêncio, no escuro. Cobriu a


boca com um punho fechado e olhou para o nada, os olhos bem
abertos, a mente vazia. Tentava digerir, compreender o fato de
que o monstro que o criou agora estava morto. Morto. Para
sempre.

Ele tivera um pressentimento estranho, um desconforto no


peito, durante o dia inteiro, mas jamais poderia associar isso a
um acontecimento trágico — especialmente com Do-Yun.

O irmão estava no quarto dele, voltara há poucos minutos


do hospital onde havia feito a identificação do corpo. Kim ainda
estava em choque, profundamente introspectivo, calado e
sombrio. Em luto.

Noah queria sorrir, mas não conseguia. Queria se sentir


feliz, alegre, mas havia um buraco profundo e dilacerante em seu
peito que o impedia. Ele não estava feliz ou alegre, estava triste,
desolado. Mesmo depois de toda a tortura que aquele homem
lhe fez passar durante dezessete anos, mesmo depois das
inúmeras violações físicas, de tentar continuamente destruir sua
vida... ele ainda sentia sua perda.

Que tipo de incoerência é esta? Pensou. Por que não


posso sequer sentir as coisas direito? Sou inútil até nisso? Mas
ele sabia bem o porquê.

Noah odiava Do-Yun. Na verdade, era a pessoa que mais


odiava no mundo — bem, bem de longe. Mas ainda era o seu
pai. Ainda tinham o mesmo sangue. Não importa o tamanho, a
intensidade, a dimensão de seu ódio, o amor de um filho pelo
seu pai nunca desaparece completamente, não importa o quanto
tal filho tente se assegurar disso. É a natureza. Pensou
novamente. A natureza é uma puta desgraçada.

Então ele engoliu em seco. E, por mais que a


contemplação de amar aquele ser desprezível lhe fizesse querer
vomitar suas tripas para fora, sobre o tapete que limpara
algumas horas atrás, ele não o fez. Continuou ali, no sofá da
sala, uma sombra entre tantas, meio existindo, meio não
existindo, num limbo estranho entre estar presente e ausente,
com o corpo em um lugar e a mente em outro. Lembrou-se de
algumas memórias felizes que tinha com Do-Yun. Eram
escassas e pontuais.

E quanto mais Noah refletia sobre aquelas memórias,


mais se dava conta de que, na verdade, elas nunca existiram.
Não com Do-Yun, ao menos. Do-Yun nunca o levou para andar
na roda-gigante do parque de diversões no Bronx. Do-Yun nunca
o esperou na porta do jardim de infância ao final de seu primeiro
dia e o colocou sobre os ombros. Do-Yun nunca o deu um dólar
por tê-lo obedecido e vindo direto para casa quando foi para a
escola sozinho pela primeira vez.
Foi Kim. Lembrou-se. Kim fez tudo aquilo. Kim o levou
para a roda gigante, e para o jardim de infância e lhe deu aquele
dólar na volta. Ele estava lá quando Noah precisou, e quando
não precisou, e quando sequer sabia que precisava. Kim estava
em todas as suas memórias felizes. Sua mente apenas tentou
mascarar seu rosto ao de Do-Yun.

Ele não tinha memória feliz alguma com o próprio pai.


Mas tinha com o irmão.

Antes que percebesse, Kim acendeu o interruptor das


luzes da sala. Noah saiu de seu limbo e passou a existir. E,
mesmo que odiasse o pai falecido, ele não odiava seu irmão, e
seu irmão estava desolado pela perda do pai, despedaçando-se
em sua frente de uma forma que jamais vira — e que tinha
certeza de que jamais veria. E Noah o abraçou. E tentou
confortá-lo, mesmo que parecesse impossível.

Do-Yun não encontrou seu caminho de volta para casa


naquela noite, mas Noah ainda tinha Kim. E Kim tinha a ele.
Aquilo era tudo o que sempre tiveram, então não importava que
o pai estivesse morto. Não de verdade.

Mas, por Kim, ele se deixou fingir que se importava.

AGORA

bolso de trás da calça depois de


N O A H D E V O LV E A C A R T E I R A A O
pagar o barista da cafeteira do hospital. Chegou há pouco mais de
dez minutos no local, depois de passar em casa após o trabalho
para tomar um banho rápido. Pelo seu cansaço, sabe que
precisará de um copo grande de café para suportar a noite ao
lado do irmão.

Apesar das acomodações caras e confortáveis do quarto


em que Kim está — cortesia da generosidade bastante
questionável de Jude Goldman —, há algo inquietante sobre
dormir em um hospital quando não se está doente. Ele não sabe
explicar bem o que é, mas está lá, uma pontada estranha aqui,
um pensamento intrusivo ali. Tudo o que quer é voltar a dormir
em sua casa, em seu quarto, em sua cama, sabendo que Kim
está dormindo na cama dele, no quarto ao lado.

E, com um suspiro e um primeiro gole do café, ele entra


no elevador e aperta o número 37. A caixa de metal espelhada
está vazia e não faz paradas, então a viagem leva apenas
alguns segundos. Ele se olha no espelho. As olheiras estão
perfeitamente disfarçadas; as sobrancelhas feitas; nem um pelo
sequer em seu queixo ou em suas bochechas. Segundo os
médicos, Kim irá acordar a qualquer instante. E ele precisa estar
perfeito para quando o irmão abrir os olhos pela primeira vez
desde o acidente, três dias atrás.

Noah inspira fundo e endireita a coluna. O bipe irritante do


elevador soa pela última vez quando ele para no 37º andar. As
portas se abrem. Noah caminha para fora. Passa pelo balcão
onde os enfermeiros se concentram, as salas onde as equipes
médicas se trancam e discutem, e então pelas dezenas de
quartos com pacientes em variados estados de deterioração.
Muitos estão desacordados, bem como Kim. Essa é a ala de
cuidado intensivo.

O quarto do irmão está no final do corredor longo, no


número 376. Mas Noah não precisa se preocupar muito em
identificar o lugar, já que os dois homens grandes e musculosos,
vestidos em preto, com expressões que, mesmo de longe, gritam
animosidade, são indicativos visuais o suficiente.

Sei que Jude teve um dedo no acidente do meu irmão, o


estagiário da Goldman Entertainment reflete. Mas então por que
caralhos insiste em protegê-lo dessa forma? O que estou
deixando passar aqui?

Noah range os dentes e toma mais um gole do café.


Retira o celular do bolso e verifica o horário. 19h48. Eles
entregarão o jantar dos pacientes e visitantes em breve. Kim
está sendo alimentado por um tubo em seu nariz, e ver a
enfermeira instalar aquilo destrói o apetite de qualquer um — e
Noah sempre teve um apetite delicado.

Ele ignora a presença dos seguranças de Jude e para


subitamente. A porta do quarto de Kim está semiaberta.

Noah franze o cenho, mas não é a primeira vez que isso


acontece. Por mais que apenas membros próximos da família
possam passar as noites com os pacientes, outras pessoas
podem visitar os quartos até as 18h com a devida autorização. E
há uma pessoa que pode visitar qualquer um a qualquer horário
sem a merda de autorização alguma.

O Henney mais novo range os dentes e chuta a porta do


quarto, tendo a visão desagradável, mas esperada, de Jude
Goldman sentado na poltrona ao lado da cama de seu irmão.
Porém, desta vez, ele não está sozinho.

Há uma criança e uma mulher acompanhando-o no


quarto. Os três pares de olhos recaem sobre Noah,
desconfiados, como se ele fosse o intruso ali, como se ele fosse
quem precisasse de autorização para ver o próprio irmão.

— O que está acontecendo aqui? — questiona, irritado.


Seu olhar passa pelas três pessoas no quarto além de
seu irmão.

Primeiro, por Jude: está sentado à direita de Kim, mas


com o pescoço virado para fitar Noah. Ele ergue uma
sobrancelha dourada num questionamento silencioso. As íris de
um azul cristalino estão mais escuras do que o normal sob a
iluminação quente e suave do quarto. Há uma vibração estranha
em seu corpo, em seu rosto. Noah consegue senti-la. Há algo
que Jude está tentando comunicar a ele, mas sua barreira de
aversão ao loiro está impedindo-o de compreender.

Então, pela mulher: é alta, branca e de traços fortes e


afiados. Usa um vestido prateado com um cinto preto marcando
a cintura fina. Ela o mira como alguém olha para um animal num
zoológico, atrás de grades impenetráveis. Seus lábios de um
vermelho mortal, chamam sua intenção particularmente. Ela os
entreabre levemente — não para falar, mas para inspirar. Um
arrepio atravessa a espinha de Noah quando percebe que já viu
aquela mulher antes — em noticiários, em blogs de fofoca, em
programas matinais na televisão. É a esposa de Jude. Florence
Goldman.

Então, ele analisa a criança. É uma garota. Quatro, cinco


anos no máximo. Loira como Jude, de traços finos como a
mulher ao seu lado. Não demora muito a concluir que é a filha do
casal.

Mas o que estão fazendo aqui, junto do leito de seu


irmão? É algum tipo bizarro de reunião de família?

Ele continua analisando a menina e, lentamente, percebe


o que Jude esteve tentando comunicá-lo. A garota — Audrey, se
Noah se lembra bem —, está de mãos dadas com Kim.
E, quando Noah finalmente fita seu próprio irmão...

Percebe que Kim está acordado.

O copo de café cai de sua mão.


eu te daria mais uma chance, me arriscaria
tomaria um tiro por você
preciso de você como um coração precisa de uma batida
e não é nenhuma novidade
que eu te amei com um fogo ardente, que agora está
apagando
e você diz “me perdoe” como um anjo,
[...],
mas estou com medo
e é tarde demais pra pedir desculpas
apologize — timbaland, one republic
FRÁGIL, PT. I
é loucura pensar que um homem não pode se machucar
o amor cobra seu preço toda vez que não dá certo
uma porta fecha, outra abre
mas é difícil seguir em frente quando seu coração está partido
vou te dar minha confiança,
você pode me dar a sua palavra?
fragile — kygo, labrinth

com as reuniões na empresa nos


N T E R C A L E I M I N H A S V I S I TA S A O H O S P I TA L
I
dias seguintes. Decidi não ligar para Dom. Não até Kim acordar e me contar
exatamente o que aconteceu.

A condição dele melhorou drasticamente após as cirurgias de


emergência. Parece que não precisarei me preocupar com aquela
recepcionista, apesar de seus olhares acusatórios e negligentes ainda me
incomodarem. A polícia sequer apareceu para conversar comigo ou com
Noah sobre o que aconteceu. Filhos da puta covardes.

Passo pela recepção, em direção aos elevadores, e a mulher de trinta


e poucos anos com os cabelos firmemente presos num coque apático finge
não me ver. São quase 19h. Provavelmente esteve aqui o dia todo,
trabalhando como uma desgraçada. Está cansada — exausta, talvez. A única
função de sua vida é permitir que homens como eu passem pela entrada do
hospital e se dirijam aos quartos. Como será que consegue viver consigo
mesma? Eu preferiria cortar minha própria garganta.

Acho que algumas pessoas simplesmente nasceram para serem


baratas, sobrevivendo de restos imundos, esperando o momento em que
sapatos sociais — como os meus — irão esmagá-las e acabar com sua
vivência miserável.

As portas do elevador se abrem. Caminho até o quarto de Kim. É


impossível que Noah tenha chegado antes de mim. Vim direto do prédio da
Goldman para cá, de carro. O Henney mais novo ainda terá que pegar o
metrô, ônibus, ou seja lá o que usa para se locomover. Tenho tempo
suficiente a sós com Kim antes de sermos interrompidos. Cumprimento meus
seguranças com um mero olhar de reconhecimento e entro no quarto.

A persiana da janela está aberta. Através dela, a luz noturna se


derrama no ambiente, complementando a iluminação quente e suave. Cruzo
os braços e entreabro a boca. Apoio-me na porta.

Ele está na cama, como sempre. Olhos fechados, como sempre. Soro
na veia. Monitor cardíaco ao lado. Rosto pálido, barba por fazer, braços
inertes. Parece tão frágil, tão... vulnerável. É estranho vê-lo dessa forma; é
como ver a carne tenra, vermelha e cheia de sangue sob um pedaço de pele
esfolado — algo que você definitivamente não deveria ver.

Minha garganta queima. Desvio o olhar para o restante do quarto. Está


perfeitamente arrumado. O distante aroma de lavanda é agradável. Se você
fechar os olhos e ignorar os bipes dos monitores, pode imaginar que não está
no lugar onde as pessoas são levadas para morrer.

Sento-me na poltrona ao lado do meu cão, do meu maldito cão. Engulo


em seco. Tomo sua palma entre as minhas. Mesmo desacordado, seu toque
ainda é quente. Levo-a até meu rosto, e esfrego as costas de sua mão em
minha bochecha. Fecho os olhos. Desligo minha mente. Permito-me
aproveitar a carícia por um instante. Beijo seus dedos calejados — os dedos
dos quais sinto falta a todo instante que não estou ao seu lado.

— Papai?

Me sobressalto. Afasto os lábios de sua pele. Viro-me em direção à


porta do quarto, para encontrar minha filha e minha esposa paradas contra a
luz fria do corredor, projetando suas sombras no piso cinza próximo a mim.

Largo a mão de Kim e me levanto da poltrona. Analiso Audrey por


alguns instantes, o coração disparado. Então, ergo o olhar até Florence. Está
tão linda como sempre: os fios escuros e brilhantes descendo às suas costas;
um par de brincos de pérolas que valem o mesmo que uma casa no Bronx;
um vestido prateado sem alças, que se alonga até a metade das coxas — e
que vale mais do que a vida da recepcionista deste hospital. Limpo a
garganta.
— O que está fazendo aqui? O que ela — indico a criança com o
queixo — está fazendo aqui?

Florence cruza os braços.

— Você não estava atendendo minhas ligações, não estava em casa


quando passei nos últimos dias te procurando, não estava na empresa
quando eu ligava pra sua secretária. Achei que estivesse me evitando... —
Ela caminha vagarosamente para dentro do quarto, explorando seus
arredores simples e apáticos. — Até seus seguranças me informarem que
esteve aqui esse tempo todo.

Minha esposa dá alguns passos até a janela, mirando a paisagem de


Forest Hills lá fora.

Bufo.

— Ordenei claramente praqueles filhos da puta manterem a boca


fechada, mesmo com você — reclamo.

— Por favor, Jude... — ela ri. — Acha mesmo que qualquer homem,
especialmente um de seus empregados, pode dizer “não” para mim? Para
mim? — Nega com a cabeça. Passeia uma das unhas vermelhas, longas e
afiadas pelo vidro. — Sou sua mulher. Devo estar ao seu lado na saúde, e na
doença... — sobre os ombros, fita Kim de relance — seja lá de quem for.

Estreito os olhos. Esfrego a boca e descanso uma mão na cintura. Dou


uma última olhada à minha filha. Ela gira o corpo de um lado para o outro,
distraída. Usa o arco dourado que lhe dei de presente de aniversário algumas
noites atrás.

Aproximo-me da mulher na janela.

— Por que trouxe Audrey consigo? — sussurro, irritado e incisivo. Ela


respira fundo, mas evita meu olhar. — Esse não é o lugar apropriado pra uma
criança, Florence. Leve-a pra casa.

— Apropriado? — rebate com petulância. Me fita com um senso


terrível de superioridade que me incomoda. — Agora você se acha no direito
de decidir o que é ou não apropriado pra nossa filha, Jude? Então por que
não tenta, talvez, ser um pai pra ela? — Desvio o olhar para Audrey
rapidamente e vejo-a brincando com as pétalas de uma das margaridas num
dos vasos de flores espalhados pelo quarto. — Sabe por que a trouxe? —
Florence continua num murmuro suave. — Porque você só parece ter algum
tipo de reação quando a envolvo.

Retorno o olhar à minha mulher rapidamente.

— Então está sendo uma tola. Sabe que não me importo com ela.

Um sorriso desenha-se nos lábios vermelhos em minha frente.

— É o que diz em voz alta. Mas aqui — ela aperta o lado esquerdo do
meu peito — sei como se sente. Sei, porque me sinto da mesma forma. Ela é
seu sangue. Você a ama, não importa o quanto tente se convencer do
contrário.

Afasto sua mão de mim.

— Você não me conhece.

Ela acaricia minha bochecha.

— Eu te conheço muito bem.

E antes que eu possa revidar, uma terceira voz naquele quarto atrai
minha atenção.

— A mamãe disse que a gente vinha visitar um amigo seu, papai. —


Viro em sua direção. Audrey caminha até a cama de Kim, e se senta na
extremidade do colchão. — Esse é o amigo? Ele não parece bem.

Mordo o lábio inferior e me afasto de Florence. Escondo as mãos nos


bolsos e, um pouco relutante, me aproximo da poltrona ao lado da cama de
Henney novamente.

— Ele não está.

— O que aconteceu? — é minha esposa quem pergunta, cruzando os


braços, apoiando-se na parede e observando os monitores cardíacos de Kim.

Sento na poltrona. Por mais desconfortável e inesperado que isso seja,


não há razões para estar tão alerta e tenso com Florence — especialmente
com Audrey no mesmo cômodo.

Esfrego minha testa.

— Um acidente — respondo um tanto frio. Cruzo meus dedos. — Três


noites atrás, depois da festa de aniversário.
Florence caminha até o lado esquerdo da cama e tateia os monitores,
acompanhando os sinais vitais de Kim com mais atenção.

— Não toque nisso — repreendo-a.

Ela apenas me lança um olhar de advertência e continua sua análise.

Às vezes me esqueço de que Florence é formada em enfermagem.

— Ele parece estável — comenta, e volta a se aproximar da janela.

— Sim. Segundo os médicos, vai acordar em breve.

Audrey apanha a mão de Kim próxima de si, a que está envolta com a
pulseira identificadora de pacientes, e a balança.

— Senhor? Senhor, por favor, acorde. Viemos aqui só pra visitar você
— ela diz.

Não consigo suprimir um sorriso tímido, passageiro. Uma breve lufada


de ar pela boca que sei que não passou despercebida pela mulher do outro
lado do quarto.

Mesmo sem resposta de Kim, Audrey esfrega sua mão com os


polegares — a mesma mão que beijei momentos antes.

Sim, Henney, por favor. Por favor, acorde.

— Sabe que ele pode acordar com amnésia, não é? — Florence


dispara, trazendo toda a tensão de antes de volta aos meus ombros. — É
comum em pessoas que sofreram acidentes graves — comenta como se não
fosse nada, olhando a cidade do lado de fora —, especialmente se tiveram
algum tipo de trauma craniâ—

— Kim... — interrompo-a, e minha voz sai rouca, seca, frágil — ficará


bem. — Reteso a mandíbula e viro o rosto em direção à porta. — Ele precisa
ficar bem — continuo, sombrio —, ou essa cidade inteira vai queimar até que
os responsáveis por isso estejam nas minhas mãos.

Aperto os braços da poltrona fortemente, sentindo minha respiração


pesar.

Florence não responde de imediato. Fica calada por alguns instantes.


Está pensando muito, muito bem em suas próximas palavras.
— Só estou dizendo... — ela começa. Sem encará-la, ouço os sons de
seus saltos ecoando pelo piso do quarto enquanto caminha até mim. —
Parece que se importa muito com ele. Se seu chofer acordar sem lembrança
alguma de você, vai se livrar de um problemão com Brianna. — Lentamente,
viro o rosto em sua direção. Meus lábios tremem. — Ela está perto, Jude —
diz num tom tão baixo que preciso me inclinar para ouvi-la —, e nós dois
sabemos que este acidente... não vai ser nada comparado ao que—

— Brianna?

Nos encaramos por um segundo, até percebermos que a voz veio de


uma quarta pessoa no quarto, da pessoa que não disse uma palavra sequer
nos últimos três dias.

Volto-me a Kim, sendo fuzilado por sua expressão desnorteado, por


seus olhos confusos — pelos malditos olhos castanhos com os quais sonhei
nas últimas noites.

— Kim... Oh, meu Deus, Kim — balbucio, e inclino-me em sua direção.


Toco seu rosto, ficando próximo o suficiente para sentir sua respiração. —
Está acordado — os pensamentos deixam meus lábios, minha mente está em
frenesi.

— O que está acontecendo, Jude? — ele questiona, ainda confuso.

Meus músculos paralisam, minhas entranhas gelam.

— Se lembra de mim? — sussurro.

— É claro que me lembro. — Ele toca minha mão em seu rosto e


acaricia meu pulso.

Engulo em seco e mordo minha própria língua, infeliz em como a


possibilidade dele realmente me esquecer me aterrorizou.

Encaro Florence.

— Eu disse que ele ficaria bem.

— O que está acontecendo aqui? — uma voz irritada soa ao meu lado.
FRÁGIL, PT II
venha pegar meu coração de vidro
e, em troca, me dê o seu amor
espero que você esteja disposto
a catar os estilhaços
porque eu sou frágil
fragile — kygo, labrinth

A FRENTE DO ESPELHO DO meu quarto, dou um nó na gravata e o aperto.


N
Observo o reflexo atrás de mim: a janela dá vista a uma pequena parte de
Nova York, do Bronx. A escuridão da noite é interrompida pelas luzes de casas
e prédios, em variadas cores, tamanhos e graus de intensidade. O céu azul
escuro é cortado por um avião, há nuvens cinzas pincelando-o. Suspiro. Me
sinto dormente.

Deixei o hospital duas noites atrás e, mesmo assim, não consigo


afastar essa sensação de que há uma névoa escura ao meu redor, uma
tempestade violenta pairando sobre minha cabeça, algo trágico se alastrando
e crescendo à minha sombra.

Depois de acordar do coma, fiquei mais três noites sob observação. Os


médicos disseram que eu nasci novamente, mas não me sinto grato, feliz ou
tranquilo. Estou terrivelmente preocupado, ansioso, paranoico. O único
policial que me interrogou disse que o caminhão não apenas colidiu comigo,
mas passou por cima do carro, esmagando-o. Seja lá quem tenha sido,
queria se certificar de que eu não veria um novo dia. Mas aqui estou. E essas
pessoas estão lá fora, mais poderosas do que qualquer órgão governamental,
mais poderosas do que qualquer corpo policial.

Sei que foram os Snakes e, quando contei isso a Jude... ele parecia já
saber.

5 NOITES AT R Á S

— TEM CERTEZA DISSO? — Jude questionou depois que lhe contei tudo o que
houve na noite do acidente. De braços cruzados, ele manteve o rosto voltado à
janela do quarto, um tanto evasivo.

Estávamos sozinhos, não por boa vontade de Florence ou sem


protestos de Noah, que quase precisou ser arrastado para fora do quarto
pelos seguranças. A equipe médica já tinha tentado entrar no quarto duas
vezes após serem informados de que acordei, mas foram barrados por Jude
em ambas.

Enquanto estive em coma, em momentos em que não estava


adormecido, consegui ouvir e sentir tudo o que ocorria ao meu redor. Senti as
agulhadas incômodas das enfermeiras, a comida e água descendo pelo meu
nariz e invadindo meu estômago de maneira quase violadora. Ouvi as
briguinhas incessantes de Goldman com meu irmão, Noah entrando todo dia
à noite e saindo de manhã cedo — e seu choro silencioso. Mas,
especialmente... ouvi os suspiros de preocupação de Jude, e seus beijos
solícitos em minhas mãos. Senti sua pele fria toda vez que encostou o rosto
em minhas palmas, seus dedos trêmulos todas as vezes em que os
entrelaçou nos meus.
E, por isso, talvez tenha esquecido — ou perdido noção — de quão
poderoso ele é.

Soltei um grunhido baixo e, lentamente, consegui me sentar na cama.


Minha cabeça ainda doía bastante, e meus olhos estavam sensíveis à luz.
Conseguia sentir o sangue bombeando com mais força nas veias dos meus
braços e pernas depois de passar tanto tempo deitado, praticamente morto.

— Matei cinco dos putos, Jude — resmunguei, mais baixo e grosso do


que o normal enquanto minha garganta se acostumava novamente ao ato de
falar. — E convivi com os filhos da puta por um ano inteiro. Sei identificar bem
aqueles pedaços de merda quando surgem em minha frente.

Analisei o quarto de hospital mais uma vez. Era apático, mas


confortável. Luzes embutidas ao teto, mesas de apoio, cadeiras e vasos de
plantas quebrando o tom branco das paredes. As janelas eram grandes,
cobertas por persianas. Repousei o olhar no banheiro, cuja abertura ficava na
parede oposta àquela em que a cama estava encostada.

Levantei. A sensação do chão gelado em meus pés era refrescante.


Contraí os músculos das costas e estiquei os braços, fechando os olhos. Um
novo grunhido — dessa vez de alívio — ressoou da minha garganta.
Caminhei em direção ao banheiro.

— O que está fazendo? — Jude finalmente me encarou novamente,


sombras dançando em seu rosto tenso. — Precisa ficar na cama.

— Já fiquei na cama por tempo suficiente — respondi continuando


meu caminho, passo atrás de passo, me esforçando para me equilibrar. —
Preciso mijar.

— Quer ajuda? — Ele descruzou os braços e virou-se para mim.

Uma risadinha me escapa.

— Pra mijar? — Fitei-o sobre os ombros com um sorriso provocador.


— Quer segurar meu pau enquanto eu mijo?

— Seu cuzão. — Revirou os olhos, cobrindo a boca com uma mão e


jogando a barra do terno para trás com a outra.

Cruzei a porta do banheiro e alcancei o vaso. Urinei, observando o


líquido amarelo-ouro. Isso explica parte da dor de cabeça. Acionei a descarga
e me voltei à pia. Lavei as mãos e então, só então, observei minha imagem
refletida no espelho da cabine. Foi como levar um gancho num queixo já
quebrado.

Estava destruído. Completa e totalmente destruído. Manchas roxas e


esverdeadas no rosto, pescoço e braços. Cortes em processo de cicatrização
na testa, nas bochechas, na garganta. Um lado do rosto mais inchado do que
o outro. O que esses fodidos fizeram comigo não foi brincadeira.

— Reconheceu algum deles? — Jude se aproximou de mim


ansiosamente. Há algo alarmante em vê-lo dessa forma, inquieto e inseguro.

Desviei o olhar da minha cara para a dele, e percebi as linhas mais


destacadas ao redor de seus olhos e na sua testa, marcas de alguém que
não dormia bem ultimamente.

— Não — respondi e sequei as mãos com o jato de ar quente. — Eram


capangas comuns, que patrulham as ruas de madrugada pra estuprar ou
matar Scorpions.

Me apoiei na pia e encarei o chão, pensando em outro detalhe.

— O que foi? — Jude se aproximou um pouco mais.

— Há mais uma coisa.

— O que foi, porra? Fala logo de uma vez, caralho.

Entreabri os lábios para cuspir mais aquela informação, mas me


interrompi. Ao invés disso, arqueei as sobrancelhas, inclinei-me para trás e
observei a postura de Jude por alguns segundos em silêncio.

— Por que está tão ansioso? Tão... preocupado? — disparei. — Está


surpreso com essa merda? — Apontei para meu próprio rosto fodido. — Isso
é exatamente o que eu te disse que ia acontecer, não se lembra? Te disse
com todas as palavras que esses filhos da puta não iam me deixar em paz,
que viriam atrás de mim e de Noah, mas você deu de ombros e disse que seu
pau era tão grande que nem mesmo a porra da máfia que domina a cidade
teria coragem de desafiá-lo. Então, qual a surpresa, Jude Goldman? Está
realmente perdido agora que percebeu que há forças maiores do que você,
que há pessoas mais poderosas que você?
Minha mandíbula tremia, minha cabeça latejava tanto que sentia
vontade de gemer, mas me controlei. Conviver com dor era minha
especialidade afinal de contas. Aproximei-me mais de Jude, sem permitir que
seu olhar escapasse do meu. Próximo o suficiente para enxergar as veias
dilatadas em seus olhos, sussurrei:

— Talvez se você tirasse a cabeça do próprio rabo e me ouvisse, se


desse algum valor ao que digo, não estaria tão surpreso. Mas sou tão inferior,
não é mesmo? Sou apenas um cão, feito pra te servir. Que uso minhas
palavras podem ter? É assim que sua cabeça — empurro sua têmpora com
um dedo — funciona? — Ira velada começou a despertar sob suas íris
cristalinas. Ele não me respondeu, no entanto, ou revidou de qualquer forma.
Permaneceu parado e próximo, quase como se estivesse ligado a mim
magneticamente. — Os capangas não iam me matar, Jude. — Fiz uma breve
pausa. — Eles iam me levar pra Dom, seu líder desgraçado. Mortes rápidas
são misericordiosas. E misericórdia não tá no vocabulário desses filhos da
puta. — Vi um brilho efêmero de contemplação nas íris de Jude.

Passei por ele, empurrando-o para o lado pelo ombro. Jude


permaneceu no banheiro. Aproximei-me da cama. Quando toquei a cabeceira
fria, expirei e continuei:

— Escuta, não tô dizendo que isso foi culpa sua.

— Bom — ele me cortou bruscamente, ainda de costas. — Porque não


foi. Não planejei nada disso — disse sem me olhar.

Observei seus ombros, sua nuca, os fios dourados da parte de trás de


sua cabeça. Em meio às sombras do quarto iluminado esparsamente,
conseguia ver claramente a tensão esculpida em todos os seus músculos.

— Goldman, olhe pra mim — pedi de longe. Jude não se moveu. —


Jude, vire pra mim, porra — pedi um pouco mais incisivo, mais próximo de
uma ordem.

Lentamente, ele obedeceu. Esfregando os dedos contra suas palmas


de forma nervosa, o rosto fechado, a respiração pesada.

Estendi uma mão.

— Venha aqui — chamei-o.


Ele olhou para os lados, para o chão, levou alguns bons segundos
enrolando e me evitando, mas, por fim, deu um passo em minha direção;
então outro; então mais um; então o último até pegar minha mão.

Puxei-o contra mim, envolvendo sua cintura com a mão livre. Ele se
segurou em meus ombros e pisou nos meus pés, olhando-me de baixo.

— O que está fazendo? — perguntou.

Retirei uma mecha dourada que obstruía minha visão completa de


seus olhos e fiquei em silêncio, admirando os contornos de seu rosto sob a
luz azulada da lua que se derramava no quarto.

Então encarei seus lábios. Os lábios que mentiram, me ameaçaram,


me agrediram e me manipularam tantas vezes; e cujo gosto agridoce eu
simplesmente não poderia largar — nunca.

— Me beije — ordenei.

Ele abriu a boca e inspirou. Fitou meus olhos e então meus lábios, da
mesma forma que o fiz com os dele. Será que os mesmos pensamentos
passaram por sua cabeça?

Ele agarrou minha cabeça com as duas mãos e me beijou. Não, não
me beijou: esmagou os lábios contra os meus de maneira desesperada,
intensa, quase irracional. Era como alguém morrendo de sede que finalmente
encontrava um largo e vasto oceano e bebia tanta água quanto conseguia de
uma vez só.

O único problema é que beber essa água apenas o envenenaria mais


rápido. O oceano é salgado. Mas Jude sabia disso, e gemeu em minha
garganta quando pedi passagem com a língua e toquei o fundo de sua boca,
explorando cada pedacinho, cada milímetro de sua carne que me desse
aquele gosto agridoce que fazia meu cérebro derreter. O conduzi para o lado,
de forma que suas costas encostassem na janela, nos dando algum apoio.

Nos beijamos por longos minutos, o suficiente para saciar minha sede
de seu gosto e para envenená-lo com o meu. Quando afastei nossos lábios,
mantendo as mãos em sua cintura, percebi um Jude mais relaxado, a boca
aberta e vermelha dando-me a impressão de que poderia cuspir seus
segredos a qualquer momento.

Toquei sua testa, levando uma mecha de cabelo para trás da orelha.
— Não tô pedindo que se desculpe. — Seus olhos estavam fixos nos
meus. Seu rosto permanecia parcialmente encoberto pelas sombras da luz da
lua e pela penumbra da luz do quarto. — Só quero que admita que precisa
me escutar às vezes, que não tá no controle de tudo. — Ele cerrou as
pálpebras, evasivo como antes. — Abra os olhos, Jude. — Acariciei os ossos
de sua bochecha. Ele voltou a me encarar, surpreso com meu toque. — Não
seja cruel. Quase morri atropelado; conceder alguns dos meus pedidos é o
mínimo que pode fazer.

Uma lufada de ar escapou de sua boca. Ele virou o rosto para o lado.

— Você continua com essa petulância irritante.

— E você continua tentando se manter distante de mim.

Ele fitou o pouco espaço vazio entre nossos corpos.

— Não estou distante de—

— Sabe que não tô falando fisicamente.

Jude me encarou derrotado e calado.

Meu polegar tracejou seu rosto até alcançar a ponta dos lábios finos.
Tudo nele parecia elétrico e familiar: sua pele macia e delicada; a forma como
seu corpo se encaixava no meu; o tênue equilíbrio entre frieza e
vulnerabilidade que compunham a armadura envolta de suas emoções.
Aquele era o Jude que havia prendido na cama e obrigado a me contar a
história de como se tornou pai; o Jude que esporadicamente me fitava —
arisco e ansioso como uma criança — pelos vãos de sua armadura azul e
dourada.

Ele beijou a ponta do meu polegar e então pressionou o rosto contra


minha mão.

— Eu achei que não me importaria, sabe? — disse suave, baixinho,


apenas para mim. — Com você... se machucando. — Tentou desviar o olhar,
mas segurei-o firmemente. Aproximei-me ainda mais, entremeando minhas
pernas entre as suas, colando nossos peitos; cheguei tão perto quanto
conseguia sem nos atirar pela janela numa morte trágica. Encostei nossas
testas. Jude segurou minha mão em seu rosto. — Quando te comprei, achei
que pudesse assistir suas tripas sendo arrastadas pela rua sem sentir porra
nenhuma. Você deveria ser dispensável, só mais uma das ferramentas pra
me deixar mais perto de concluir meu plano. Essa merda não devia ter
acontecido desse jeito. É tudo sua culpa.

— Minha culpa?

— Você tá se tornando um fardo.

— Fardo?

— A preocupação que sinto por você, Kim... — ele afastou minha mão
de seu rosto e atirou-a para baixo — me deixa louco. É uma faca se
arrastando pelo meu cérebro — aponta para a cabeça —, uma mão
esmagando meu coração — e então para o peito. — Não consigo controlá-la:
domina minha mente, domina meu corpo. Nunca senti essa merda antes.

Ele tentou me empurrar e se afastar, mas não permiti. Segurei sua face
com as duas mãos e o obriguei a me encarar profundamente.

— Não precisa controlá-la — afirmei, convicto. — É parte de você.


Tudo bem se deixar sentir algumas coisas às vezes, sabia? Sei que tá
acostumado a ser frio, a ser distante, sei que construiu uma armadura ao
redor dos próprios sentimentos... — Engoli em seco, mensurando as palavras
com cuidado. No final, decidi desligar o cérebro e deixar o coração falar: —
Mas mesmo as mais perfeitas armaduras têm aberturas.

A frase ecoou entre nós dois por alguns segundos, procedida por um
silêncio calmo e morno; aconchegante e contemplativo. As íris de Jude
estavam presas em mim, mas sua mente viajou para outro momento em seu
passado, um momento que eu nem poderia começar a tentar adivinhar. A
frase ecoou entre as quatro paredes do quarto até Goldman fechar dois
punhos em meu peito. Empurrou-me para trás e ganhou distância.

— Não posso deixar que me quebre desse jeito — disse, também


convicto.

Fiquei parado a alguns centímetros dele, tentando desvendar sua


expressão. Não era enfática como sua voz, ou agressiva como seus punhos.
Era, mais uma vez, enigmática; mais uma das milhares de peças no quebra-
cabeça que é este homem, no quebra-cabeça que eu, sozinho, terei que
montar.

— Vou te quebrar inteirinho — falei calmamente —, mas então vou


pegar cada pedaço do chão e reconstruí-lo. Não importa o quão feio seja, o
quão perigoso se torne, o quanto de mim precise perder no processo.

Goldman fechou o rosto numa careta e espalmou a própria testa,


curvando-se à frente.

— Você não pode falar essas merdas — vociferou quando se


recompôs —, não é justo.

— Como você mesmo disse uma vez: o mundo é injusto.

A lembrança parece atingi-lo abruptamente. Jude ficou parado, como


eu; a respiração lenta e profunda; os lábios entreabertos; a mente capturada
num limbo; o corpo aprisionado num cabo de guerra entre mim, logo à sua
frente, e a janela às suas costas.

Após minutos de espera, ele piscou longamente. Quando abriu os


olhos, havia algo diferente neles — um brilho resoluto, decidido.

Ele deu um passo em minha direção e me abraçou, envolvendo minha


nuca com os braços. Levemente surpreso, abracei-o de volta, tocando os
músculos poderosos em suas costas.

— Tem coisas que vou precisar fazer — sussurrou em meu ouvido —,


pessoas das quais terei que me aproximar... — e se afastou o suficiente para
me encarar — para descobrir o que aconteceu com você, para evitar que se
repita. — Tocou meu rosto de forma tenra. Em suas íris, preocupação voltou a
faiscar. — Coisas e pessoas que atrapalharão meu plano, que darão mais
tempo à minha tia para continuar livre.

— Que coisas? Que pessoas? — me exasperei. — Me diga. Vamos


fazer isso juntos.

— Não... — Apesar da negativa, não se afastou, não se esquivou, não


alterou sua expressão. — É melhor que eu faça isso sozinho. Melhor para
nós dois; para Noah; para Audrey.

A menção às outras pessoas importantes em nossas vidas fez um


calor estranho se espalhar pelo meu peito. Jude está realmente considerando
os interesses e as vidas de outras pessoas no meio disso tudo? No meio de
seus planos?

Ele pareceu ler meus pensamentos, então continuou:


— Eu sei que não tenho o mundo em minhas mãos. — Curvou a nuca
para baixo e retirou as mãos de mim, escondendo-as nos bolsos. — Sei que
existem pessoas mais poderosas do que eu. Tenho muita familiaridade com
as regras deste jogo, Kim Henney. — Expirou fundo e, subitamente, começou
a se afastar. — Inventei muitas delas. Sei muito bem o que estou fazendo. A
única pessoa que não consegue enxergar o que está bem em sua frente é
você — murmurou, dando a conversa como encerrada.

Segurei-o pelo braço, impedindo-o de continuar em direção à porta do


quarto.

— Não agora — repreendi.

Ele coçou as têmporas e recolheu um passo de volta a mim, anulando


a tensão que precisei usar em seu braço.

— Preciso falar com alguém — tentou se explicar.

— Não agora — mas eu estava inflexível.

— Kim... você acabou de acordar de um coma, seus médicos


provavelmente—

— Os médicos podem ir tomar no cu. — Interrompi-o. Jude franziu o


cenho, pasmo com minha firmeza. — Sabe o que eu quero? — Ergui uma
sobrancelha. — Sabe do que preciso? — Apertei meu pau sob a calça branca
do pijama hospitalar. — Preciso sentir sua boca quente aqui novamente. —
Peguei sua mão e a dirigi até meu membro semiereto. — Tá vendo?

Os olhos de Jude fixaram-se no ponto em que sua mão tocava a minha


calça. Seus ombros tensos me diziam que ele estava irritado por ser
contrariado; sua boca aberta me dizia que estava frustrado por perceber que
era incapaz de resistir.

Seus olhos ergueram-se até mim, cintilantes e mais vivos do que


estiveram a noite inteira. Ele quer isso tanto quanto eu. Bastariam segundos
até Jude estar de joelhos no quarto, minha pica em sua boca.

— Senhor? — Uma voz feminina soou atrás dele. Estava no lado de


fora do quarto, impedida de entrar pelos seguranças. Jude virou o pescoço
para encarar a médica ruiva de vinte e poucos anos cercada por uma dúzia
de outros médicos. — Nós realmente gostaríamos de fazer alguns exames
agora. Não sabemos até que ponto está recuperado ou se tem sequelas
internas—

— Tudo bem, pode fazer o que quiser com ele. — Jude afastou a mão
da minha ereção e voltou a se aproximar do meu ouvido: — Eu crio as regras.
— Nossos olhares se cruzaram somente para que pudesse dizer: — Voltarei
em breve. — E então caminhou para fora do quarto.

Ao sair, ele deu um breve aceno para os seguranças — e, logo


percebi, aquele era o sinal para que deixassem os médicos entrarem no
quarto.

Os indivíduos trajados em jalecos, portadores de estetoscópios,


pranchetas e uma caralhada de aparelhos para a realização de exames
invadiram o local e cercaram a minha cama. As perguntas eram infinitas; os
testes, infindáveis. O tempo que passavam conversando entre si era
particularmente torturante. É assim que os ratos de laboratórios se sentem?

Essas pessoas estão aqui para me ajudar, precisei me lembrar quando


fixaram nos meus olhos, pela quinta vez, uma lanterna forte demais. Para
minha sorte, eles foram embora depois de alguns minutos. Outros exames
foram agendados para os próximos dias, o que significa que não poderia
voltar para casa ainda. Merda.

Revirei os olhos quando fiquei sozinho no quarto outra vez e esperei


algum tempo pelo retorno de Jude, que não aconteceu. Ele foi embora do
hospital?

Deixei o quarto, passando pelos seguranças — Jake e Miles — e


cumprimentando-os. Não precisei chegar muito longe no corredor para
alcançar Jude, apoiado contra uma máquina de vendas após a primeira curva
em direção aos elevadores. Ele estava de costas para mim, o celular grudado
na orelha.

Pensei em anunciar minha aproximação, mas a curiosidade mórbida


em meu peito me fez ficar parado, em silêncio, escutando a conversa. Jude
soava mais frio do que antes, mais frio do que jamais o ouvi.

— Eu sei que tentou matar meu cão — disse para a pessoa do outro
lado da linha. — Não tenho ideia do porquê e, honestamente, não me
importo, mas escute bem: não importa o que conversamos antes, as
promessas que me fez, os acordos que propus, se você tentar algo parecido
novamente, se seus gângsters voltarem a cruzar nosso caminho num beco
escuro, numa avenida, numa loja de conveniência qualquer... isso será
guerra. E acredite em mim: os Scorpions não passam de uma brisa perto da
tempestade de merda na qual transformarei sua vida. Este será seu único
aviso.

AGORA

os ombros e apanho minha arma da mesa de


PA S S O O T E R N O P R E T O S O B R E
cabeceira. Coloco-a na parte de trás da calça. Não há mais a menor chance
de eu sair de casa sem o revólver, independentemente da opinião de Jude. Ele
sabe que se eu quisesse explodir seus miolos, já teria feito isso há muito
tempo.

Pego as chaves do novo sedan que Goldman me deu para o trabalho


— é menor do que o último, talvez ele não queira perder mais um carro caro
pra caralho caso outro caminhão resolva passar por cima de mim.

É uma noite de sábado, já passa das 22h. Mais uma vez, ele está me
obrigando a trabalhar numa folga. Mais uma vez, prova que não suporta a
ideia de me deixar sozinho com Noah. Ciúmes do meu irmão? Sério? Quão
insuportável ele pode ser? Se eu ignorar que é meu terceiro dia de
recuperação fora do hospital, essa situação ainda é uma merda.

Não sei para onde Jude quer ir, ou mesmo por que é tão importante
que seja eu a levá-lo esta noite. Ele sobreviveu bem até agora com seus
outros motoristas. Talvez queira me mostrar algo. Ou talvez seja um local que
quer manter escondido, até mesmo dos outros choferes — o que explicaria
sua implicância em não me dizer o endereço.

“Apenas esteja na minha casa às 22h20”, ele disse num tom


degradante, “sem atrasos, cão.”

Como se eu fosse um playboyzinho mimado e petulante igual a ele...

Bufo e deixo o quarto.

Do corredor, já consigo ouvir o barulho da televisão na sala. O volume


está alto, reproduzindo um canal de notícias qualquer.

Cruzo o corredor e entro no cômodo principal da casa.


— Não sei se voltarei pra casa esta noite — digo a Noah, sentado no
sofá, olhos fixos na tela. Sua cara não está nada, nada boa.

— É claro que voltará pra casa — replica, irritado, e desvia a atenção


para mim. — Você precisa descansar — diz pausadamente.

Inspiro fundo. Fecho os olhos e, sob as pálpebras, reviro-os.

— Não vamos ter essa briga de novo.

— Eu só não consigo entender — levanta-se e se aproxima


rapidamente — por que ele insiste em te colocar em risco dessa forma.

— Em risco?

— Eles tentaram te assassinar, Kim. E, graças a Deus, por um milagre,


você sobreviveu. — Meu irmão para a alguns centímetros, obstruindo meu
caminho até a porta. Seus fios bagunçados e o moletom surrado
complementam sua voz paranoica. — Não acha que tentarão terminar o
trabalho? Acha mesmo que aqueles filhos da puta não tentarão mais nada
contra você? — Cruzo os braços e fico em silêncio. Ele franze a testa e abre
os braços. — A polícia não fez e não vai fazer merda nenhuma. São uns
inúteis. Você precisa ter cuidado.

— Eles sabem onde moramos, Noah. Se quisessem terminar o


serviço, não precisariam ficar na surdina me esperando na rua.

Ele contrai os lábios.

— Isso não te assusta, de verdade?

— É claro que assusta — me apresso a responder. — E exatamente


por isso preciso trabalhar pra Jude, preciso trabalhar com Jude pra achar um
jeito de manter esses filhos da puta longe de mim, longe de nós. — Me
aproximo dele com um passo e seguro seus ombros, aprisionando seu olhar
no meu. — Noah, minha proximidade com Jude talvez seja a única coisa que
mantenha esses desgraçados longe.

— Sua relação com ele não manteve os Snakes longe quando eles te
atropelaram com um caminhão.

— Não — umedeço os lábios —, mas se não fosse por Jude, eu


estaria morto na noite em que perdi a luta. E, se esse atropelamento provou
alguma coisa, é que eles planejavam me matar independentemente do
resultado. — Chego próximo o suficiente para que isso fique gravado em sua
mente: — A única razão pela qual tô vivo, pela qual você ainda tem alguém
neste mundo, é porque Jude comprou minha dívida. Precisamos dele. Pelo
menos por agora. Pelo menos... — me distancio por um segundo, refletindo
— até o contrato acabar.

Lentamente, vejo a expressão de Noah mudar, ganhando tons de


malícia.

— Ah, sim, seu contrato de chofer, não é?

Meus ombros enrijecem. Afasto as mãos de Noah.

— Sim — digo tenso, percebendo o erro descomunal que quase


cometi.

— E quanto tempo ele vai durar mesmo, Kim? Por quanto tempo você
precisa trabalhar pra Jude Goldman?

Limpo a garganta e olho para baixo, para meus próprios sapatos.


Desvio de Noah e abro a porta.

— Até que meus salários quitem a dívida.

Meu irmão cruza os braços e estreita os olhos.

— Mas como isso vai acontecer se você ainda recebe o dinheiro? Não
devia ser como um escravo, trabalhando de graça até que o valor seja
devolvido? Uh? Como você fazia nos ringues.

— Não — rebato ríspido. Minha cabeça volta a latejar. — É como um


empréstimo: pago uma taxa pra ele todo mês. — Apoio-me na porta aberta,
de frente ao sedan estacionado na rua, e esfrego minha testa. — Não quero
mais falar sobre isso, Noah.

Parto para o carro sem olhá-lo outra vez.

Noah me observa dar partida e sumir de seu campo de vista.

Soco o volante. Quase deixei escapar que sou a puta de Jude.

Noah me odiaria se descobrisse?

Ou me odiaria por ter escondido isso dele?


De qualquer forma, me odiar parece inevitável. Tudo bem. Sou um ser
desprezível e odiável. Um cão.
OLHOS NA ESTRADA
se não tá pronto, vá embora
disposto e capaz, minhas cartas estão na mesa
e eu acredito nessa coisa que encontramos
[...]
se você não sente o que eu sinto
fale agora, ou cale-se pra sempre
se você não nos enxerga como eu enxergo
então não daria certo, de qualquer jeito
willing & able — disclosure

ao prédio de Jude. A discussão com Noah


S TA C I O N O O C A R R O E M F R E N T E
E
ainda martela em minha cabeça, mas é jogada para algum canto escuro da
minha mente quando vejo a figura de terno azul, traços afiados, semblante
fechado, mãos nos bolsos, Rolex no pulso, cabelos lisos perfeitamente
penteados para trás e olhar tão frio que parece me penetrar mesmo através do
vidro da janela do carro.
É a primeira vez que nos vemos desde que deixei o hospital. Talvez
pelas conversas íntimas, vulneráveis, que compartilhamos naquele quarto
branco e cheio de monitores, pensei que ele iria me recepcionar de forma
calorosa. Com um sorriso nos lábios, talvez. Um pequeno erguer de
sobrancelhas ao ver o carro se aproximando já seria o suficiente. Que
estúpido eu sou.

Jude não está com cara de muitos amigos — e sei que descobrirei o
motivo logo. Está acompanhado de Jake e Miles, um de cada lado, dando-lhe
uma aura de inalcançável e precioso. Inalcançável e precioso é o meu cu.

Desço do carro, abro a porta do passageiro. Ele finge só então notar


minha presença e caminha em minha direção. O rosto sério faz eu me sentir
pequeno, me intimida conforme se aproxima, tornando-se mais e mais nítido.
As íris azuis ardentemente frias fazem atravessarem minha espinha calafrios
— não de medo, mas de excitação.

— Você está 2 minutos atrasado — é como me cumprimenta,


lançando-me um curto olhar de repreensão. Entra no veículo em seguida.

Aperto minha mandíbula e reviro os olhos. Só pode estar fodendo


comigo. Bato a porta com força. Lanço um breve olhar de cumprimento aos
dois homens vestidos de preto na entrada do prédio e volto ao assento do
motorista.

Não tenho tempo de passar o cinto sobre o peito quando ouço sua voz
novamente:

— Se importa em explicar o motivo do atraso?

Uma lufada de ar longa e ruidosa escapa da minha boca. Bato as


mãos nas coxas e encaro-o pelo retrovisor.

— Que tal se você deixar de ser um pau no cu e me dizer logo pra


onde estamos indo?

Goldman está jogado contra a janela, o braço apoiado na porta, o


indicador próximo dos lábios, as pernas bem abertas, dois botões da camisa
social branca abertos, deixando uma porção considerável de seu peitoral
pálido exposto. Uma corrente de ouro fina adorna seu pescoço — algo que
nunca o vi usar antes. Analisando melhor, seu perfume também não parece o
mesmo de sempre. Não consigo indicar especificamente o quê, mas algo está
diferente nele.
Jude semicerra os olhos.

— Não fale comigo nesse tom.

Contraio os lábios e giro a chave na ignição.

— Tá me fazendo trabalhar menos de uma semana depois de acordar


de um coma — replico ríspido. Viro o corpo para encará-lo diretamente. —
Vou falar com você no tom que eu quiser.

O loiro se aproxima como uma serpente pronta a atacar uma presa.

— Você era mais agradável quando tava inconsciente.

Minha paciência, exaurida por Noah, agora se esgota. Agarro o


colarinho de Jude e puxo-o bruscamente para frente. Nossos rostos ficam a
meros milímetros de distância.

— Então talvez você devesse trabalhar com os Snakes pra me matar


ao invés de abrir as pernas pra mim sempre que estamos sozinhos, não
acha? — cuspo.

Ele demora a responder. Permanece me encarando de perto, tão perto


que sua respiração se mistura à minha. Lentamente, toca meu pulso e o
afasta de sua roupa com um movimento abrupto.

— Talvez. Cortar sua garganta, te esquartejar e jogar os pedaços no


esgoto me pouparia de muitos problemas. — Um sorriso sádico desenha-se
em seu rosto. — Algo me diz que o pequeno Noah seria bem mais
complacente ao pagar de volta a dívida da sua família do que você. — Sua
voz é feroz e dissimulada, o canto da brisa de uma tempestade, o som de
uma faca sendo afiada.

Será que nunca se cansará de me ameaçar de maneira tão cruel?

Viro-me de volta à estrada e passo a merda do cinto de segurança


pelo peito. Seguro o volante. A tensão em meus ombros começa a doer.

— Só me diz logo a porra do endereço e vamos acabar com isso —


vocifero baixinho.

Um silêncio breve e suspeito ergue-se no veículo. Após alguns


segundos, Jude abre a porta de seu assento e sai.

— O que está fazendo? — questiono, mas ele me ignora.


Caminha até a porta à minha direita e a abre. Senta-se ao meu lado.
Arregalo os olhos, surpreso, conforme ele se inclina em minha direção e
pergunta firmemente:

— O que há de errado com você?

Instintivamente, me afasto dele. Mordo a língua, encolho os ombros e


desvio olhar para frente.

— Não tem nada errado comi—

— Mentindo agora? — Jude me interrompe num tom ainda mais rígido,


como um pai dando uma bronca num filho. Encaro-o de relance. — Sei de
muitas coisas sobre você, cão, ser um mentiroso não é uma delas.

Sua voz e sua resposta súbita à minha impaciência me deixam


surpreendentemente relaxado. Solto o volante e passeio o olhar pelo painel
do carro. Os últimos dias assombram meus pensamentos — da preocupação
com o próximo momento em que os Snakes me atacarão à angústia em
perceber que meu irmão está sob perigo — e há pouco que eu possa fazer
quanto a isso.

Mas abrir o peito para Jude sobre isso seria chover no molhado. Ele já
sabe de todos os esses problemas, conversamos sobre isso no hospital.
Então me atento a quem me tirou do sério nesta noite em particular:

— É Noah — respondo finalmente, cruzando os braços sobre o peito e


o cinto de segurança.

Jude estreita o olhar.

— O que aconteceu com meu querido estagiário?

Carros passam na rua ao nosso lado constantemente. Toda vez que


acontece, as luzes dos faróis iluminam a face de Goldman, acentuando sua
expressão severa.

Esfrego meu queixo.

— Ele não tá feliz, não aceita... que você me chame pra trabalhar em
todas as minhas folgas. — Viro o rosto para Jude. — Desconfia de você,
desconfia da nossa relação. — Pisco longamente. — Hoje, antes de sair... eu
quase...
— Quase?

— Quase disse a ele que nosso contrato... — passo a mão pelo rosto
inteiro e então pelos cabelos, até alcançar minha nuca e apertá-la — não é só
sobre ser seu chofer. Ele quer saber como a dívida tá sendo paga de volta.

O loiro ergue as sobrancelhas.

— Então diga a verdade — e diz com um descaso revoltante.

Entre todos os absurdos que já ouvi saírem da boca perfeitamente


socável de Jude Goldman, esse é definitivamente o pior. Volto a cabeça à
janela.

— Não vou dizer pro meu irmão que tô comendo o chefe dele —
rebato tenso, sentindo o latejar na cabeça voltar vagarosamente.

— Então você vai só andar em círculos ao redor da verdade até que


ele descubra por conta própria?

Trinco os dentes e limpo a garganta. Essa noite só fica pior a cada


segundo.

— Escuta, já é o suficiente ter que lidar com essa merda com Noah em
casa, agora vou ter que discuti-la também com você? — Fito-o. — Me poupa,
Jude. Meu saco já tá muito cheio.

E é o suficiente para amenizar sua atitude. Ele se joga no banco, meio


de frente, meio de lado, e observa minha face por um tempo. Há uma faísca
de curiosidade em seus olhos.

— Não tô tentando te chatear mais — explica mais baixo, suave e


contido. — Só... — faz um biquinho — pensei que você e seu irmão eram
próximos — comenta. As palavras soam sutilmente dissimuladas.

— Nós somos próximos — afirmo. Então, passos a língua pelos meus


caninos enquanto penso nas melhores palavras para explicar isso. — Só
não... — expiro fundo e reviro os olhos — não compartilhamos esse tipo de
coisa, tudo bem?

— Ele nunca te contou sobre os namorados, transas?

— Não. — Tento não ficar desconfortável com essa conversa, mas é


impossível. — Até onde eu sei, Noah pode muito bem ser virgem.
Um sorriso largo se abre nos lábios do filho da puta ao meu lado.

— Oh, acredite em mim, Kim... — Solta uma risadinha. — Noah não é


virgem nem aqui, nem na China.

Dou um tapa de frustração no volante e me volto para Jude, pasmo.

— Pare de falar do meu irmão desse jeito. — E o sorriso de Goldman


fica maior. Por que ainda deixo que mexa com meus nervos desta forma? —
Ele sempre foi bem retraído quanto a isso — completo com certa pressa —,
talvez por causa de nosso pai.

— Seu pai? — Aquela faísca de curiosidade está ali novamente.

Umedeço os lábios. Minha mente se distancia, vagando até as


lembranças das brigas infindáveis entre meu pai e meu irmão.

— Do-Yun... — balbucio casualmente — não era exatamente o tipo


mente aberta.

E algo nesta frase atinge Jude de maneira inesperada. Ele se arrasta


no banco até seu ombro tocar a porta, o brilho em suas íris se apaga. Seu
olhar torna-se um breu sem luz, sem estrelas, completamente apático.

— Sim... — murmura álgido — eu conheço o tipo.

Analiso aquela mudança de expressão por um tempo. As pessoas ao


redor de Jude sempre souberam que ele também gosta de homens? Ele já
disse que quer que nossa relação seja exposta, então certamente quer que
alguém saiba.

Ele sofreu a mesma coisa que Noah sofreu com Do-Yun?

— No que está pensando? — questiona, e me retira dos devaneios.

Improviso rapidamente:

— Aposto que meu pai tá se revirando no túmulo agora que descobriu


que tem dois filhos que gostam da fruta. — E arregalo os olhos logo depois
de fechar a boca. Que porra acabei de dizer?

Jude encosta a cabeça no recosto do banco, encarando-me


profundamente. Seu semblante torna-se contemplativo.
— Acho que ele tem motivos piores pra se revirar no túmulo — rebate
baixo —, como a dívida milionária que ele te deixou.

Aceno suavemente. Meu olhar paira sobre o painel outra vez.

— É um cu pensar nele porque... mesmo depois de tudo o que fez,


ainda sinto sua falta todo dia.

Sinto um toque morno e delicado no meu braço. Viro-me para


encontrar a mão de Jude me acariciando.

— Ele é o seu pai — diz num tom triste. — É difícil odiar as pessoas
que nos trouxeram pra este mundo. — E afasta a mão de mim, virando a
cabeça para frente.

A rua à nossa frente permanece movimentada. O sinal está fechado,


derramando sua luz vermelha sobre o asfalto; os carros ao lado estão
parados. Alguns pedestres caminham pelas calçadas. Há também um ou
outro ciclista, nada de muito especial. Jude entreabre os olhos, e observa a
cena urbana ordinária com um interesse profundo.

Toco a lateral de seu rosto e arrumo suas mechas atrás da orelha.

— O que foi? — Ele volta a atenção a mim.

Contraindo os lábios, sorrio.

— Eu gosto quando você fica reflexivo desse jeito.

Solta uma lufada de ar pelo nariz.

— Achei que odiasse quando eu fico distante.

— Distante, sim. Reflexivo, não.

Ele fica de lado no banco, virando-se para mim.

— E como eu posso ser reflexivo e estar presente ao mesmo tempo?


— O tom provocativo característico retorna à sua voz grossa e fanha.

Pondero sobre a pergunta.

— Quando deixa os pensamentos escaparem de sua boca — explico.


— Quando não esconde sobre o que está refletindo.
Goldman inspira fundo, de boca aberta, e desvia o olhar para baixo.
Encolhe um pouco os ombros. Sei que também sente a mudança de clima
neste carro, o leve aumento de temperatura, a tensão entre nossos corpos
que agora se torna palpável, inegável, inconfundível.

Retiro o cinto de segurança.

— Quero me aproximar de você. Posso?

Ele ergue os olhos até os meus. O sinal da rua abre, os carros passam
a se movimentar, os faróis dançam sobre o rosto do homem que odeio tanto,
tanto... que não consigo suportar a ideia de ficar longe.

— Sim — sussurra.

Ajeito-me no banco para diminuir a distância entre nossos corpos,


entre nossos rostos. Jude não se move, está parado como uma estátua —
uma estátua com um coração de carne no peito e um rosto cruelmente
perfeito. A penumbra deixa-o misterioso, e achei que odiava isso. Mas agora
percebo que, na verdade, encarar este Jude — o Jude que nunca me
contaria seus segredos por livre-arbítrio e que tem prazer em ameaçar minha
vida das formas mais vis possíveis — é como abrir um pacote de presente,
uma caixa misteriosa. Minhas veias pulsam com a adrenalina, minha boca
seca, sinto um frio na barriga. Quero abrir essa caixa.

— Quero te beijar — digo quase sem voz, tão perto que nossos
narizes se tocam, tão próximo que respiro o mesmo ar que ele. — Posso?

— Pode — ele responde. Ou acho que responde, não tenho certeza. A


próxima coisa de que me dou conta é de nossos lábios unidos, de minhas
mãos ao redor de seu corpo, de suas mãos ao redor do meu.

De olhos fechados, a rua, os carros, as pessoas ao redor


desaparecem. Tudo o que tenho em minha frente é uma escuridão pintada
nas cores de Jude, com o sabor de Jude, impregnada com seu cheiro forte e
cítrico. Eu enlouqueço, e me torno são. Enlouqueço, e me torno são.
Enlouqueço...

Pressiono seu rosto tão forte contra o meu que acho que a qualquer
momento vou partir sua mandíbula. Seus dentes afiados esmagam o interior
dos meus lábios, causando uma sensação dolorosamente alucinante. Tateio
sua língua macia e dissimulada com a ponta da minha, e então arrasto-a ao
redor de sua boca, pelos dentes, pelas bochechas. Quando ele faz menção
de fechar a boca e encerrar o beijo, forço-o a abri-la, e recomeço tudo de
novo. Enlouqueço...

Jude soca meu peito e me empurra para trás. Nossos lábios se


separam contra minha vontade. Ele me mantém próximo, no entanto. Agarra
meu terno e o esmaga em suas mãos. Ele também está enlouquecendo.

Seus dedos se arrastam até meu pau, e trabalham rápido abrindo o


cinto, então o botão, então o zíper. Ele acaricia a protuberância sob a cueca e
a aperta, friccionando minha ereção dolorida. Então mesmo o tecido fino da
cueca é puxado para baixo, e meu pau fica totalmente livre. Ergo o quadril
para cima, para ajudá-lo. Jude não desvia o olhar do meu por um segundo
sequer.

Sua palma quente e macia me aperta na base, e não consegue,


sozinha, cobrir sequer metade do membro. Talvez ele tenha se esquecido de
com quem está lidando. Me envolve com as duas mãos e, mesmo assim,
parte da cabeça fica descoberta. Seus braços trabalham numa punheta lenta,
mas firme.

— Dirija para a Avenida Madison, 88 — Goldman comanda. — Não


pare o carro, mas vá devagar, e mantenha os olhos fixos na estrada. — E
seus olhos finalmente fixam-se no membro em suas mãos.

— O que vai fazer? — pergunto, minha respiração começando a pesar.

Uma risada petulante deixa sua garganta.

— Provar que você já se recuperou o suficiente pra voltar pro trabalho.


E se curva sobre meu colo, caindo de boca no meu pau.

Um mero suspiro de satisfação é o que deixo escapar antes de dar


partida no carro.
VENIDA MADISON, 88.
A
É um prédio comercial de dezenas de andares no coração do Upper East
Side. É luxuoso, mas não particularmente memorável. A entrada é guardada.
Há uma fonte no centro de sua fachada — a água parece refrescante nesta
noite quente sem uma brisa sequer. Mesmo com o ar-condicionado do carro, o
boquete de Jude me fez suar. O colarinho me incomoda.

O filho da puta loiro, por outro lado, está tão impecável quanto entrou
no veículo.

Estaciono o sedan na vaga mais próxima, sob a penumbra silenciosa


do estacionamento do prédio, e retiro a chave da ignição.

— Quem você vai encontrar esta noite? — pergunto casualmente,


fingindo desinteresse.

Não retiro o cinto de segurança. Ao meu lado, Jude o faz, no entanto.


— Alguém rabugento, petulante, que sabe exatamente o que dizer pra
me irritar. — Limpa a garganta. Dá uma última olhada em seu próprio rosto
pelo espelho retrovisor. — Um pouco perigoso. — Ergue uma sobrancelha. —
Certamente agressivo.

Fito-o, desconfiado. Coloco uma mão em sua coxa.

— Quer que eu esteja lá pra te proteger?

Ele ri, baixo e abafado.

— Vai ser difícil me proteger... — volta-se a mim e sussurra — de você.

Vincos profundos se formam em minha testa. Olho ao redor, vendo


alguns casais deixando seus carros e partindo para o interior do prédio.

Penso, penso e penso no que ele disse, mas minha conclusão final é:

— Não entendi.

Jude ri daquela forma novamente. Depois, pressiona a trava do meu


cinto, me libertando.

— Talvez você tenha mesmo ficado com algumas sequelas do coma.


— Fita-me, sugestivo, descontraído. — É você, seu otário — diz e revira os
olhos.

— O quê?

Ele nega com a cabeça e abre a porta do seu lado. Em segundos, me


deixa sozinho no veículo.

— Saia do carro — ordena do lado de fora, abotoando o terno. — Esta


noite, vamos jantar juntos.
BOA NOITE, SENHORES
é você, o seu mundo
e estou preso no meio
peguei a faca pela lâmina
e dói só um pouco
[...]
no fundo da garrafa,
você é o veneno no vinho
lonely together — avicii

E V O U M T E M P O AT É P R O C E S S A R o que ele disse.


L
— O quê?

— Surdo outra vez? — Seus olhos deslizam do meu rosto até o


membro parcialmente oculto entre minhas pernas. — Eu quero ver... —
murmura, mas não termina.

— Quer ver eu bater uma?

— Sim — responde com um sorriso divertido. Deita-se de lado,


apoiando a cabeça com um dos braços. — Quem sabe assim você não
chega mais perto de gozar sem precisar me esfolar vivo no processo?

Sua expressão, seu sorriso e seu tom desinibido fazem minha ereção
despertar outra vez. Desvio o rosto, preocupado. Estico as pernas sobre a
cama. Encaro meu pau semiereto. Jude acompanha meu olhar. Cerro os
punhos nos lençóis. Há um calor bem específico nas palmas das minhas
mãos.

Mas não faço nada. Ainda há tensão sobre mim, ainda sinto as cordas
de Jude esmagando meus pulsos.

Com minha falta de reação, ele murmura:


— Faça. Não estou pedindo. — E ergue o olhar frio até meu rosto.
Embora a voz seja calma, há um comando violento no azul-marinho de seus
olhos.

Inspiro fundo. Encaro a parede branca em minha frente, onde a


cabeceira se apoia. Preciso imaginar algo erótico para recuperar o tesão.
Penso que a primeira coisa que aparecerá em minha mente será Olivia, mas
não é. Minha mente viaja no tempo até alguns minutos antes, quando estava
enterrado no interior de Jude, quando ele se deitou de bruços em minha
frente, seu corpo aberto e impenetrado entregue a mim, seu rosto corado
colado aos lençóis, seu pescoço curvando-se para trás de maneira incômoda
para observar meus movimentos.

Ajoelho-me no colchão. Tiro a camisinha e deixo-a de lado. Fecho a


mão na base do membro. Sentir o aperto da minha carne logo depois de
estar dentro dele é decepcionante, quase uma piada — uma coisa é
incomparável à outra. De qualquer forma, aperto os dedos ao redor e subo a
mão fechada até logo abaixo da cabeça. Começo lentamente, enrijecido,
desconfortável pelo olhar tão atento de Jude. Fecho os olhos, deixo minha
mão trabalhar por conta própria.

Intensifico o movimento. Meu coração acelera, a respiração se


aprofunda vagarosamente. É automático como andar de bicicleta, fácil como
partir o coração de alguém que você não ama mais.

Contraio o maxilar, pressionando a mandíbula. Minha mão acelera


mais. Me lembro dos gemidos baixinhos de Jude durante as primeiras
estocadas, de seu sorriso divertido quando me pediu para fazer isso. Abro os
olhos, encaro-o.

— Você gosta disso? — pergunto entre um suspiro e outro. Minha voz


está tão próxima do tom cínico dele quanto jamais chegará.

Seus olhos estão fixos no meu pau, na minha mão, talvez na forma
como minhas bolas sobem e descem, acompanhando o vai e vem. Ele
semicerra os dentes, arrastando uma fileira sobre a outra. Solta um suspiro
lânguido.

— Cale a boca.

Sua respiração também está alterada. Há algo diferente no olhar, algo


que não estava ali antes. Tesão.
Quando percebo isso, o resto da tensão em meus ombros se desfaz.
Fito Jude enquanto ele fita meu pau.

— Por que está fazendo isso comigo? — pergunto.

— Porque você—

— Não estou falando da punheta.

Nossas íris se encontram. Repreensão asfixia o tesão que esteve ali


por um breve momento, traz à superfície o Jude gélido de antes.

— Não faça perguntas demais — Jude corta. Desacelero a punheta. —


Se preocupe apenas em pagar sua dívida.

Umedeço os lábios. Olho para baixo, para o pau em minha mão. Meus
dedos se movimentam, mas não sinto muita coisa. O balde de água fria que
ele acabou de jogar em mim arruinou o pouco prazer que tirava disso.

Cerro as pálpebras. Toco meus mamilos. Isso parece funcionar — para


mim, não para Jude.

— Mais forte — diz e senta sobre os próprios joelhos, como eu. — Use
as duas mãos.

— Eu sei bater punheta.

— Pensei que tinha mandado você se calar — replica num tom mais
malicioso do que severo. — Use as duas mãos.

Fecho a mão esquerda na base do membro, a direita mais próximo da


cabeça, e faço o que ele diz. Ergo o queixo e observo seu rosto. Há um som
abafado de carne se chocando contra carne toda vez que minhas mãos
completam um movimento. Mordo o lábio inferior.

Por quê?, é a pergunta que martela em minha mente enquanto o


encaro. Por quê? Por quê? Por qu—

— Bom. Agora diminua o ritmo — diz Jude, sereno como um professor.

Faço o que ele pede.

— Aperte o polegar na cabeça.

Coloco o polegar onde ele me diz para colocar e aperto. Um pequeno


suspiro deixa meus lábios.
— Assim.

Seu interesse me deixa confuso — confuso e excitado. Quero largar


uma mão e puxar seus fios para trás, observar seu rosto de cima, mergulhar
naqueles olhos frios enquanto meu interior queima.

— Você só vai me torturar desse jeito? — balbucio.

— Tortura? — Ergue o olhar, um sorriso radiante na face. — Você tem


uma definição estranha de tortura, Kim Henney.

Penso em responder alguma coisa. Quando abro a boca, tudo o que


sai é um suspiro longo. Estou perto.

Jude percebe isso.

— Solte — diz.

Afasto as mãos do pau, deixo-as lânguidas e inertes ao lado do corpo.


Inspiro fundo. Sigo ereto e sensível. Jude se aproxima, os lençóis brancos
arrastam-se ao seu redor. Ele para a meros centímetros — talvez milímetros
— de mim, e fecha a mão direita ao redor do meu membro.

Seus olhos me analisam de baixo, o peito tão próximo do meu que


nossas peles roçam quando respiro fundo demais. Sua mão se move
devagar, tortuosamente devagar, desafiadoramente devagar.

Entreabro os lábios. Ele está próximo demais para que eu não imagine
seu gosto.

— Gosta disso? — sussurra.

Gosta disso? era o que Olivia repetia quando eu gozava depois de tê-
la enforcado. Enrijeço e me afasto alguns centímetros. Meu pau desliza em
sua mão, mas ele aperta forte, me prendendo perto de si. Seu olhar se
estreita.

Uma mecha amarela cai sobre seu rosto, obstruindo minha visão de
seus olhos. Tento tirá-la do caminho, mas ele me impede.

— Uh-uh — repreende, prendendo meu antebraço. — Sem tocar. — E


me solta.

Volta a me masturbar. O corpo nu continua próximo de mim. Em algum


momento, a excitação se intensifica até se tornar frustração e meus ombros
voltam a ficar tensos.

— Pare com isso — esbravejo quando não consigo mais segurar. —


Me deixa te foder de novo. — As palavras me deixam sem controle, sem filtro.

— Não.

É como levar um tapa gentil, mas doloroso.

Jude aproxima-se de vez: cola nossos peitos, as coxas encostam nas


minhas. Inclina meu pau pra cima, esmagando-o entre nossos abdomes,
aumentando a fricção.

Inspiro sobressaltado. Ele não me dá tempo para expirar e enrola o


braço livre no meu pescoço. Os dedos apertam os fios na minha nuca,
puxando-os. A ponta do seu nariz roça no meu.

— Você precisa me obedecer, Kim. Precisa fazer tudo o que eu disser


— cicia contra meu rosto.

Um grunhido baixo sai da minha garganta.

Ele arrasta os dedos por toda a parte de trás da minha cabeça, me


acariciando, deixando a situação um pouco mais complicada para mim.
Chego perto, mas faço um esforço para me segurar.

Isso não o deixa feliz.

Jude se afasta quando percebe a rigidez em meus ombros, seu rosto


inexpressivo. A mecha que obstrui o olhar continua ali. Ele se volta para
baixo, pesa meu pau em sua mão.

— Acho que você precisa de um pouco mais de ajuda — diz para o


espaço entre nossos corpos, não para mim.

Acompanho seu olhar. Antes que perceba suas intenções, ele envolve
minha cintura com a mão esquerda e me empurra para o lado. Caio de costas
na cama. O loiro deita de bruços em minha frente, não larga meu pau por um
segundo. Seu corpo fica preso no espaço entre minhas pernas abertas. Fita-
me com uma lascívia tímida, asfixiada — o tipo que se vê num adolescente
rebelde quando está prestes a experimentar uma droga nova.

— Nunca fiz isso — diz —, então seja paciente — antes de colocar


meu pau na boca.
DOMINIC
eu posso ser um namorado melhor do que ele
boyfriend — dove cameron

— DO M ? — É J U D E Q U E Mpergunta. Estou perplexo demais para sequer


pensar direito no momento.

Ao vê-lo de novo e tão de perto, quase consigo sentir seus punhos


destruindo meu rosto, ver os nós de seus dedos manchados com o meu
sangue.

Ele ainda é tão grande e forte quanto no dia em que invadiu minha
casa. Os fios escuros jogados para trás, casualmente bagunçados, fazem-no
parecer mais jovem do que provavelmente é. O terno preto e a calça de linho
branca, por outro lado, deixam-no formal demais, bem diferente do selvagem
que conheci um ano atrás — ao menos no visual.

A serpente é apenas uma entre as tatuagens que cobrem seu pescoço


inteiro, sobem pela orelha e chegam até a porção superior da sobrancelha
direita.

Cerro meus punhos sobre as coxas abaixo da mesa quando o choque


lentamente se transforma em ira. Meu primeiro impulso é de pular em seu
pescoço e arrancar sua jugular fora com os dentes — o exato mesmo impulso
que tive um ano atrás. Lembro-me do que fez eu me controlar: saber que
minha vida acabaria junto com a dele.

Mas agora não é como da última vez. Minha dívida foi transferida, e
Jude não tem envolvimento com os Snakes. Pelo menos não que eu saiba.

Minha própria voz ecoa em minha mente. Pelo menos não que eu
saiba. Meus olhos desviam da figura imponente do mafioso em minha frente
para a figura relativamente menos imponente do sobrinho de Brianna
Goldman.
“Não importa o que conversamos antes, as promessas que me fez, os
acordos que propus.” Aquela ligação ecoa em minha mente. Que promessas?
Que acordos?

E se eu estiver errado sobre Jude?

“Tem coisas que vou precisar fazer, pessoas das quais terei que me
aproximar... para descobrir o que aconteceu com você, para evitar que se
repita.”

Ele estava falando sobre... sobre... este filho da puta?

Sinto-me golpeado quando percebo o pior dentre tudo isso: o tom de


familiaridade na voz de Jude. Foi como se desse de cara com um velho
amigo.

Dom? Sua reação passa em minha mente como um disco quebrado.


Dom? Dom?

Jude é íntimo do homem que destruiu minha vida? Conhece-o pelo


nome?

Meus lábios se entreabrem. Fitando-o, sinto meu rosto empalidecer.


Cerro tanto os dentes que chego perto de quebrar minha própria mandíbula.

— O que está fazendo aqui? — Jude questiona, estreitando os olhos


na direção do mafioso.

Pelo canto dos olhos, vejo o sorriso do desgraçado se alargar.

— Que rude, Jude. Não vai me apresentar ao seu amigo? — Retira


uma mão do bolso e a aponta para mim.

Sou obrigado a olhar para ele neste momento, e não há uma fibra no
meu corpo que não se retorça para pular em seu pescoço — nenhuma
sequer. Ele retribui meu olhar raivoso com uma piscadela irritante.

Jude suspira. Olha para mim, então para Dom, então para mim outra
vez. Seu semblante fechado e surpreso torna-se entediado enquanto faz as
honras:

— Kim, esse é Dom. — Aponta para o desgraçado. — Dom, Kim. —


Aponta para mim. Depois, cruza os braços sobre o peito e se recosta na
cadeira de maneira relaxada, como se assistisse a um espetáculo. — Algo
me diz que vocês já se conhecem. — Empina o queixo.

Dom estala os dedos, o rosto contemplativo, quase nostálgico.

— Sim, na verdade. Nos conhecemos numa das raras noites em que


eu decidi cobrar as dívidas da minha organização — estica os dedos — com
essas mãos calejadas aqui — e os guarda nos bolsos, em seguida.

Ele não desvia o olhar de mim por um segundo sequer. Posso sentir a
ameaça silenciosa nas suas íris abissais, a força que faz ao colocar essa
carapaça civilizada na frente de Jude.

— O que isso quer dizer? — Goldman pergunta bastante curioso, tão


curioso que me irrita.

— Quer contar a ele, Kim? Sobre o que aconteceu no dia do enterro


do seu pai?

Dom toca meu ombro com força suficiente para me machucar; para
quem olha de fora, no entanto, não se parece com um golpe. Ele aperta o
local, seus dedos afundando no meu terno. A dor se espalha pelo meu braço
em uma descarga, mas logo desaparece. Abaixo os olhos para seus dedos
tatuados e pesados.

— Acho que nunca consegui prestar minhas condolências — continua


numa voz mais suave. Ergo o olhar para a expressão fajuta de pena no seu
rosto maldito. — Sinto muito pelo que aconteceu. Espero que sua família
tenha se recuperado.

Não consigo esconder o nojo em minha face.

— Não fale da minha família, seu imundo.

Agarro sua mão e a atiro para longe. A surpresa em seu rosto dura
apenas até uma espécie de satisfação dominá-lo. Uma satisfação sádica.
Apoio-me na mesa para me erguer e encará-lo no mesmo nível.

— Kim. — A voz ríspida e repreensiva de Jude me imobiliza.

Volto-me a ele bruscamente e vejo seus olhos bem arregalados, o


corpo levemente inclinado sobre a mesa. A expressão em seu rosto é severa.
Enrijeço. Amasso a toalha de mesa, tentando conter a ira que me
descontrola, que faz meu pescoço e meu rosto queimarem.
Viro para o lado oposto ao de Dom, em direção às janelas e à vista
noturna de Nova York. Esfrego o rosto até me sentir remotamente mais
calmo.

Quando o Snake volta a falar, no entanto, essa calma se pulveriza.

— Ele rosna igualzinho um cão. — Uma risada desprezível ecoa de


sua boca.

Fecho os olhos, aperto-os com firmeza. Utilizo todo o autocontrole que


sequer imaginava ter para não usar um dos talheres afiados da mesa contra
o filho da puta.

— O que está fazendo aqui, Dominic? — É a voz de Jude que


consegue me manter controlado, que traz de volta a calma até então
pulverizada.

— Nunca me chamou pelo meu nome inteiro antes — o mafioso diz.

Reviro os olhos sob as pálpebras.

Sinto a postura de Jude se tensionar.

— Responda à pergunta — ordena num tom baixo e grave, o tom de


quando está perdendo a paciência.

O Snake leva um tempo até responder:

— Pensei que hoje seria um ótimo dia pra cobrar minha dívida.
Coloquei meus homens pra seguir você até aqui.

Por um momento, acho ter ouvido errado. Abro os olhos e me volto ao


homem de pé. Ele tem um semblante tão tranquilo que chega a ser cômico.
Então fito Jude.

— Seus homens estiveram atrás de mim o dia inteiro? Me rastreando?


— Ele ergue as sobrancelhas em descrença. Os lábios permanecem
entreabertos enquanto o mafioso assente. Jude pisca longamente, pega sua
sétima taça de vinho da noite e sorve um gole. Seus olhos me evitam o tempo
todo. — Dominic, você sabe que tudo o que precisava fazer era me ligar,
certo?

Dom deixa escapar uma risada de descaso e nega com a cabeça.


— Quem tem tesão em ligações hoje em dia? — Os cantos dos lábios
se curvam para cima num sorrisinho sarcástico, seu pescoço se curva
lentamente em minha direção. — Talvez viadinhos broxas como o Kim. — E
arqueia uma das sobrancelhas.

Não posso mais lidar com esta merda.

Levanto da mesa abruptamente e encerro a distância entre o meu


corpo e o do mafioso quase quinze centímetros mais alto do que eu. Nossos
peitos encostam, minhas veias borbulham enquanto mantenho o olhar irado
centrado no dele. Seu sorrisinho se alarga, e meus punhos coçam para
quebrar seus dentes da forma como ele quebrou os meus.

Ele sabe disso, sabe que estou a um triz de perder o controle. Vejo em
seu olhar uma provocação silenciosa para que eu quebre seus dentes e
finalmente me vingue. Essa provocação, porém, é a única coisa que me
impede de prosseguir.

— Kim. Pare.

Ou melhor, a provocação — a certeza de dar a Dom o que ele quer —


e a voz de Jude.

Ele soa genuinamente aflito. Se não fosse por seu deslize mais cedo,
jamais adivinharia que está bêbado.

— Não, não. Por favor, continue. — A voz de Dom ressoa tão próxima
dos meus ouvidos que me dá náuseas. Ele faz questão de se inclinar na
minha direção um pouco mais. — Eu adoraria terminar o serviço que comecei
naquela noite, cumprir a cláusula do contrato que foi violada quando você
caiu naquele ringue de quatro igual uma puta.

— Senhores... — Jude intervém, mas começa a desaparecer para


mim.

Tudo o que vejo é o saco de ossos, carne e crueldade na minha frente,


embalado nessa roupa de grife asquerosa. Cerro os punhos e mordo a
língua. Meu coração acelera tanto que consigo ouvir os batimentos nas veias
do meu ouvido.

— Se lembra do que eu disse? — Dom provoca. — Que você


encontraria seu pai logo, logo?
Ele curva a nuca para baixo, aproxima-se tanto que nossas testas
ficam a centímetros de se tocarem. Seu olhar perde a serenidade usual,
ganha um brilho animalesco.

— Tem sorte de estarmos em público — rosno contra seu rosto.

— Eu tenho sorte? — Mal consegue conter a expressão de fúria: as


sobrancelhas e a mandíbula tremem. — Me encontre em qualquer beco
escuro, valentão. Vou virar sua pele do avesso. — Seu hálito gelado com
cheiro de fumaça faz meu estômago se revirar.

— Não assistiu nenhuma das minhas 364 lutas?

— Assisti a única que precisava. E não foi algo bonito de se ver.

Minha visão escurece.

Agarro seu colarinho com uma mão e uma das garrafas de vinho sobre
a mesa com a outra. Vou quebrar a garrafa na sua maldita cabeça, abrir uma
fenda tão grande que ele vai morrer antes que uma ambulância consiga
chegar aqui.

Impulsiono meu braço para cima. A garrafa não sai do lugar,


entretanto.

Pisco várias vezes, recuperando a nitidez na visão. Me volto à mesa, à


minha mão agarrando firmemente o vidro gelado.

Jude prende a garrafa contra a mesa. Sua expressão me deixa


completamente desnorteado.

— Kim — murmura, rígido e sem soltar a garrafa. — Me espere no


carro — comanda pausadamente, como se quisesse se certificar de que
compreendi cada palavra.

Apenas diante de seu olhar assustado, mortalmente preocupado,


percebo o que cheguei perto de fazer — o que teria feito se não fosse por ele.

Solto a garrafa, então me dou conta então de algo estranho: não há


barulho, conversas, sussurros ou tintilar de talheres e pratos.

Ergo os olhos e observo os arredores da mesa. Todos os olhares estão


direcionados a mim. Todos os rostos estão voltados para mim. Todos os
lábios estão fechados na antecipação de meu próximo movimento, curiosos
para saber se haverá ou não violência. Algumas pessoas — as mais
próximas — parecem tão assustados quanto Jude.

Estão com medo de mim.

— Tô feliz em te ver bem e saudável, Kim. Tô mesmo — Dom


comenta, uma descontração fingida em sua voz. — É tudo passado entre a
gente, né? — Agarra meu ombro e se aproxima do meu ouvido. — Diga ao
seu irmão que mandei um “Oi”. Nunca me esqueci dele.

O sorriso da besta roça minha pele.

É quando sou atingido pela imagem de Noah encolhido num canto da


cozinha enquanto nossa casa e meu corpo eram quebrados, pelo seu olhar
aterrorizado, pelo terror visceral em seu rosto enquanto eu era arrastado para
longe dele. Tudo me atinge de uma vez só, como aquele caminhão
estraçalhando meus ossos.

Meus ombros se tensionam. Minha visão escurece novamente, e não


tenho certeza da loucura que sou capaz de cometer.

— Kim, vá para o carro. Agora — Jude ordena outra vez, a voz


quebrando no meio da frase. Ele se levanta da cadeira e se apoia na mesa
com as duas mãos.

“Se você se envolver com qualquer coisa parecida com os Snakes


novamente, pode me considerar morto. Se entrarem por aquela porta pra
cobrar alguma merda de dívida que você me deixou, não vão me pegar vivo,
entendeu?” A promessa de Noah me perturba outra vez.

Isso, aliado à postura desesperada de Jude, me faz recuperar o


controle, me faz dar um passo para longe de Dom, então outro, então outro.

— Você deveria dar um pouco mais de liberdade ao seu cão, Jude.

Interrompo os passos e encaro Dom novamente. Meus punhos coçam,


e é uma coceira que sei que só conseguirei aplacar quando derramar o
sangue desse maldito.

Os olhos arregalados de Jude atraem minha atenção. Por favor,


implora sem voz. Continuo encarando-o por um ou dois segundos além do
necessário, até que finalmente viro as costas.
Caminho para fora do restaurante diante de todos os olhares curiosos.
Quando fecho a porta, sei que os cochichos que se erguem são sobre mim.
Um rubor de vergonha acumula-se em minha face. Meus punhos continuam
coçando no entanto. Esfrego-os na descida até o estacionamento.

Não vai ser agora, mas vou quebrar a cara desse filho da puta em
algum momento. Tenho certeza disso. Ele vai engolir cada palavra e cada
ofensa junto com seus dentes.

Essa é uma promessa. E eu sou um homem de palavra.


DANÇANDO COM O DIABO
é tão difícil dizer não
quando você está dançando com o Diabo
dancing with the devil — demi lovato

enquanto ele deixa o restaurante. Só relaxo em


N C A R O A S C O S TA S D E K I M
E
minha cadeira novamente após a porta do local se fechar. Suspiro fundo,
ainda incrivelmente preocupado com a merda que quase aconteceu, com a
merda que ele quase fez. Será possível que não mensure as consequências
de seus atos? Espancar um Snake em público? Está pedindo para ser morto?
Em um momento, está dando um discurso emotivo sobre seu irmão. No outro,
está implorando para deixá-lo sozinho de vez.

Não importa o histórico que tenha com esses filhos da puta: se quer
matar um Snake, deve saber que há maneiras melhores de se fazer isso. Mas
provavelmente estou superestimando sua inteligência.

Observo o mafioso estreitar os olhos na direção do espaço por onde


Kim se deslocou, um sorriso insuportável esticado em seus lábios grossos.

— O que você ganha provocando ele desse jeito? — pergunto, irritado.


Dom finalmente se volta para mim. — Tá fazendo isso só por prepotência?

O sorriso se apaga; dá de ombros.

— Ele não tem respeito algum. Se acha superior demais pra um cão.

Dom se senta em minha frente, na cadeira antes ocupada por Kim. Ele
mantém uma das mãos próxima à coxa, e a outra repousada sobre a mesa.
Os anéis grandes e grossos em seus dedos chamam atenção contra a toalha
branca.

— Parece que você o adestrou bem, mas esqueceu de ensinar o lugar


dele. — Me fita com um olhar acanhado, a voz retorna ao tom calmo de
sempre. Parece uma criança arrependida depois de provocar os pais, embora
suas palavras ainda sejam cruéis. — Um restaurante como esse não é lugar
pra um cão de briga, Jude.

Fecho o rosto um pouco mais. Se Kim estava se esquecendo de seu


lugar, Dom também está se esquecendo de uma coisa importante:

— Até onde me lembro, paguei muito dinheiro por ele. Quase um


milhão de dólares pra impedir que você cortasse sua cabeça fora — rosno
entre dentes cerrados. Me inclino sobre a mesa e digo firmemente: — Ele é
meu. Faço o que eu quiser, levo-o pra onde quiser. Nunca mais pense que
pode colocar as mãos no meu animal de estimação. Achei que tinha deixado
isso bem claro quando te liguei depois do acidente.

— Sim, sim, sim, aquela história de novo. Já te falei que dentre todas
as formas que tenho de matar um homem, ou um cão, nesse caso,
atropelamento não é uma delas, Jude.

— Eu não acredito em você, Dominic, nem por um segundo.

Ele soca a mesa.

— Atropelamento é coisa de covarde, de viados como os Scorpions.

— E os Snakes não são covardes?

— Nós não matamos desse jeito — diz pausada e seriamente.

Rio, sarcástico e ácido.

— Não, é claro que não. Apenas fazem uma emboscada em que o


alvo estava em uma desvantagem de quatro para um. Realmente, não há
nada de covarde nisso. — Afasto-me lentamente, pego minha taça de vinho e
dou um longo gole. Depois de sentir o álcool limpando minha garganta, digo:
— Ele não é mais seu animal de estimação, Dominic. É meu. Se não quer
uma segunda guerra nas costas, é bom que se lembre disso daqui pra frente.

Dom não se move enquanto escuta isso, o cenho se afunda mais e


mais em aborrecimento. Seus dedos brincam com a toalha da mesa da
mesma forma irritante que os de Kim.

Ele não é difícil de ler, até porque geralmente não há muito o que ler
em seu rosto. Talvez ascender tão rápido à liderança de uma máfia
organizada tenha tornado Dom apático ao mundo ao seu redor: seu rosto
perdeu lentamente os traços de emoção nos últimos meses, desde que o
conheci. Não posso sequer imaginar as atrocidades que teve que cometer
para chegar onde chegou — e tenho certeza de que seu histórico com Kim é
apenas mais uma delas.

Retirando as camadas mais externas, os dois são, na verdade, bem


parecidos.

Quando finalmente consigo ler qualquer coisa no rosto de Dom...


percebo que ele está muito fora de si, que o que está sentindo é tão forte que
conseguiu quebrar sua armadura. Por conta disso, sei que preciso tomar
bastante cuidado neste momento.

— Isso é tudo o que ele é pra você? — pergunta vagarosamente,


manhoso. — Um animal de estimação?

Não deixo que ele veja a dúvida passar pela minha cabeça. Kim é
mesmo apenas isso para mim? O que ele é para mim, exatamente?

A verdade é que não sei, e já não sei há um bom tempo. Não tenho a
mínima ideia. Desde que comprei o cão perdedor de uma luta particularmente
sangrenta no ringue clandestino dos Snakes, meus planos não estão
exatamente correndo como o esperado. Não estou me sentindo da forma
como esperava me sentir, nem me comportando da maneira que deveria me
comportar. E isso me enfurece, me preocupa, me excita, tudo ao mesmo
tempo.

Estou afundando mais e mais num caminho que não calculei, que não
construí, que pode mandar tudo pelo que trabalhei nos últimos seis anos por
água abaixo.

Escondo essa dúvida em algum lugar bem profundo dentro de mim,


próximo ao buraco vazio dentro do meu peito, e tomo outro gole de vinho.

Eu não bebo. As palavras de Kim ecoam em minha mente, balançam


dentro de mim como as gotas rubras na taça.

Como ele consegue conviver o tempo todo com seus próprios


pensamentos sem enlouquecer?

— Onde quer chegar, Dom? — indago, descansando a taça na mesa.


Mantenho-a em minhas mãos, já que as palavras de Kim continuam na parte
de trás da minha cabeça. E, ao mesmo tempo em que ele permanece bem
próximo de mim, trabalho em afastá-lo do assunto principal da conversa. —
Me stalkear, sério? Tem ideia de quantos crimes acabou de confessar?

Fito o Snake. Ele devolve meu tom insolente com uma risada rouca.

— E você sabe quantos crimes cometeu ao visitar meu clube e


comprar um dos meus cães? — Arrasta o braço sobre a mesa e retira a taça
de vinho da minha mão. Leva-a à boca, sem afastar o olhar do meu, e
termina com o líquido. Diferente de Kim, Dom bebe mais do que eu. —
Responda à minha pergunta. — Descansa a taça num canto da mesa fora do
meu alcance. — Ele é só um cão pra você?

Pisco longamente diante de sua insistência.

— Por que se importa tanto com essa merda? — rebato.

Ele soca a mesa e abre a mão, controlando o impulso de fúria


rapidamente. Vejo os cantos de seus lábios tremerem, a ira contida
começando a se arrastar para fora.

— Por que não está me respondendo? Ele não é um homem, Jude.


Especialmente comparado a mim ou a você.

Fico em silêncio. Tento controlar minha expressão surpresa, mas não


consigo evitar o leve arquear de sobrancelhas. Sinto pena e desprezo pela
forma como Dom precisa humilhar Kim para se sentir superior em minha
frente. Como se, de alguma forma, ser líder dos Snakes não fosse validação
o suficiente. Ele precisa que o mundo inteiro gire ao seu redor, funcione de
acordo com seus desejos, com o único objetivo de satisfazê-lo. Ele é o pior
tipo de homem: o tipo que acha que pode me convencer a acreditar em
qualquer coisa que eu já não acredite. Tão tolo.

Esfrega a barba por fazer. Suas unhas fazem um som irritante quando
coçam os pelos curtos. Enquanto meu silêncio — e meu desprezo — se
prolongam, ele murmura:

— Ele não merece ser tratado como um homem.

Endireito a postura na cadeira e descanso as mãos sobre as coxas.


Sinto uma pressão distante em minha cabeça, a semente de uma enxaqueca.

— O que você quer, Dom?


Ele cerra os olhos e nega com a cabeça, insatisfeito por minha recusa
a responder suas perguntas depreciativas sobre Kim. Recosta-se na cadeira
e observa a cidade pela janela. A parca iluminação do restaurante faz seus
cabelos e olhos escuros parecerem mais ameaçadores do que o habitual.

— Já disse: cobrar meu pagamento — responde sem me olhar. —


Concordei em manter meus homens longe do seu cão, em deixar alguém que
já esteve nas entranhas dos Snakes andar por aí, livre, vivo. Mas isso tem um
preço, Jude. A vida desse desgraçado tem um preço.

— Sei bem disso, e eu já o paguei. O que você está fazendo não é


bem um favor, Dom. É o combinado, é nosso contrato.

— Combinado? Contrato? — Volta a me fitar. Um sorriso afiado alarga-


se em seus lábios grossos. — Você comprou uma pessoa, Jude. Achou
mesmo que seria tão simples? Acha mesmo que é moralmente superior a
mim? A qualquer um dos meus capangas? Você não é um herói. Você é o
vilão, assim como eu.

Inspiro profundamente.

— Tudo o que eu quero é que você cumpra com sua palavra.

— É isso que você quer? É? E quanto ao que eu quero?

— Toda essa porra é sobre dinheiro? — Franzo o cenho. — Quanto


você quer?

— Nada dessa merda — resmunga. Ele apoia os cotovelos na


extremidade da mesa, inclina-se sobre a toalha e aproxima-se de mim. —
Pode ficar com seu dinheiro, Jude. Não preciso dele.

— Então que merda você quer?

Seus olhos deixam os meus e passam pelos meus lábios, meu


pescoço, meus ombros, e, por fim, meu peito. Me torno subitamente
consciente do botão aberto em minha camisa, das pontas das minhas
clavículas visíveis para ele.

O olhar de Dom é intenso demais, me deixa exposto mesmo que eu


esteja perfeitamente vestido; me deixa inseguro mesmo que não tenha
motivos para isso; me dá raiva, mesmo que ele seja apenas um amigo. Mas
não há nada de amigável neste olhar.
Fecho os olhos, sabendo o que ele vai dizer antes mesmo de seus
lábios vermelhos se abrirem.

— O que eu quero... — sussurra — está bem na minha frente.

Abro os olhos. Inspiro fundo. Umedeço os lábios. O tom da conversa


mudou, a postura de Dom mudou, tudo o que ele disse e fez até aqui ganha
um novo significado. Escondo essa nova noção na parte de trás da minha
cabeça, junto à voz de Kim. Se ele acha que há sequer uma chance de
dormirmos juntos... está insanamente enganado.

— Você se lembra do motivo pelo qual o conheci, Dom? — pergunto.


— O motivo pelo qual estava no ringue naquela noite?

Ele me encara profundamente, sem abrir a boca.

Diante de seu silêncio, completo:

— Porque você se recusou a me entregar a pessoa que estou


procurando, a pessoa que estava lá quando Jason foi assassinado. — E o
desprazer em minha voz soa alto e claro.

Ao invés de se afastar, Dom se aproxima mais. Sua voz rouca


tensiona-se.

— É claro que recusei. Sei o que você está planejando. Sei que não
quer apenas cumprir sua vingança com Olivia, que quer usá-la para algo
muito maior. Ela é só uma peça no seu tabuleiro, não é? Só mais um peão
para ajudá-lo a alcançar a rainha. Quando isso acontecer, que fim terão os
Snakes? Fomos nós que colocamos a operação em prática afinal de contas.
Que fim terei eu, que sou o líder?

Paro de respirar. Meu sangue corre mais rápido nas veias. Algo quente
e viscoso espalha-se em meu peito diante dessas acusações. Ainda assim,
sou muito bom em manter uma expressão vazia mesmo nas mais intensas
das situações, então não tenho problemas em encará-lo com o mais distante
dos olhares.

As acusações são verdadeiras, claro que são. Mas são acusações que
nunca pensei que partiriam de Dom: não julguei que ele tivesse intelecto
suficiente para perceber minhas intenções. O brilho frio e intimidador de seu
olhar me balança. A certeza com que ele fala faz com que eu sinta que parte
da minha armadura foi desconstruída de forma bruta e súbita.
Ele sabe que quem quero derrubar é Brianna? Não, não sabe. Está
focando apenas no próprio umbigo, como uma criança mimada.

Expiro fundo, enrijecido na cadeira.

Dom continua em tom ainda mais baixo:

— Você tem ideia das atrocidades que eu faria com qualquer outra
pessoa que me pedisse o que você pediu? — Aponta para a mesa com o
indicador. — Qualquer outra pessoa que sequer pensasse em falar uma coisa
dessas, pedir a cabeça de um dos meus diretamente para mim?

A ira contida derrama-se em sua voz. Ele parece prestes a pular sobre
mim, para me esganar ou me beijar. Não sei qual das opções seria pior — ao
menos já me acostumei com o fetiche de Kim em enforcamento.

Dom se atira para trás na cadeira; tem os ombros bem abertos e a


postura relaxada, embora seu rosto e sua voz contem uma história diferente.
Ele encara o próprio indicador sobre a mesa. Sob as mangas do terno,
consigo ver parte das características tatuagens dos Snakes que cobrem seus
braços inteiros: uma mistura de figuras abstratas, animais, rosas, palavras em
latim e arame farpado mantendo tudo no lugar. A serpente se projeta no
pescoço como uma cédula de identidade.

Algumas são coloridas, outras não. Algumas são minimamente


detalhadas, outras não. Segundo Dom, são cerca de vinte tatuagens
diferentes que se fundem em uma só, cobrindo os braços, o peito e a parte
superior das costas. O líder de todas as gangues tem ainda algumas
tatuagens extras que cobrem as costas e completam o desenho.

Vi as tatuagens em sua totalidade apenas uma vez, e foram


justamente as de Dom. Nunca vou me esquecer da imagem linda e
simultaneamente pavorosa de suas costas inteiras cobertas de tinta.

Agora, ele parece refletir sobre algo. Quando retorna o olhar na minha
direção, tem uma suavidade nada característica nas íris.

— Mas não com você. Eu nunca te tocaria dessa forma, nunca te


machucaria. — E seu tom é honesto.

Nunca realmente tive motivos para acreditar que estava sob perigo na
companhia de Dom. Também sou ótimo em perceber se estou em uma
situação perigosa, ou quando estou sendo enganado. E quando ele continua
seu discurso meloso, comete o erro fatal de tentar me enganar:

— Além disso, fiz tudo o que pude pra ajudá-lo.

A mesma risada sarcástica de antes se forma em minha garganta, mas


morre na boca.

— Corte a conversa fiada, Dom — digo em tom áspero, rijo. — Você é


o líder dessa gangue de imprestáveis, pode fazer muito mais do que me dar
um passe livre pro seu clube de imbecis cheios de grana e miseráveis
fodidos.

Assim como eu, ele é pego de surpresa. Diferente de mim, ele é


péssimo em esconder suas emoções. Para um cara tão apático, Dom está
particularmente emotivo nesta noite.

Ele entreabre os lábios e respira pela boca algumas vezes, negando


com a cabeça.

— Você faria isso se estivesse no meu lugar? — pergunta com uma


fúria exasperada. Volta a se aproximar de mim sobre a mesa. — Se soubesse
que, no momento em que eu te der o que você quer, vou te perder pra
sempre? Você seria tão estúpido ao ponto de fazer uma coisa dessas?

Reviro os olhos.

— Algumas pessoas considerariam uma benção se livrar de mim —


digo.

Estico-me sobre a mesa e recupero a taça que ele roubou. Sirvo mais
vinho e bebo um gole longo e frio. O álcool faz a semente de enxaqueca
germinar. Provavelmente estou desidratado.

— Eu não — ele murmura quando abandono a taça.

Esfrego o polegar sobre a borda de cristal, até que sinto um toque


sólido e estranho em minha perna. Fico confuso por um milésimo de
segundo, então vejo a expressão solícita do mafioso.

— Pode parar? — Afasto minha perna da dele.

Ele agarra meu braço e me puxa para a frente de forma brusca. Fico
semidebruçado sobre a mesa. Por um milagre, consigo desviar da taça e não
derrubar o líquido rubro na toalha branca — o que seria uma tragédia para o
garçom gentil que me deu a garrafa.

— Eu quero você, e não vou permitir que escape de mim fácil — Dom
ladra contra meu rosto. Ele expira pela boca tão profundamente que consigo
ver seus caninos protusos. — Quero que você seja meu ao menos uma vez
— sussurra. Depois disso, esfrega a lateral de seu rosto contra a minha mão,
que ele agarrou e puxou à força, em uma carícia não consensual e
desconfortável.

Para piorar tudo, Dom fecha os olhos e mantém meu pulso firme.
Minha palma se abre contra seu rosto morno. As pontas dos dedos tocam os
fios curtos das laterais de sua cabeça.

— Veja, agora você está delirando... — Tento puxar minha mão de


volta, mas não consigo. O movimento brusco faz com que ele ao menos abra
os olhos. — Tenho uma esposa e uma filha, caso não se lembre.

Dom aperta mais meu pulso e puxa meu braço para baixo, batendo
minha palma aberta na mesa. Agora sim fico debruçado sobre a toalha
branca. Ele se projeta mais à frente como uma cobra, prendendo-me no
lugar. Seu hálito quente bagunça meus sentidos.

— Não brinque comigo. Já ouvi os rumores sobre o que você faz com
seu cão quando estão sozinhos.

— Ouviu mesmo? — retruco, me projetando à frente como ele. Dom se


afasta alguns centímetros, cauteloso. — E o que os rumores dizem?

Ele estreita os olhos em minha direção, não diz nada por um tempo.
Vejo uma incerteza crescente em seu rosto. É óbvio que ele não sabe que eu
mesmo orquestrei esses rumores, é óbvio que ele não sabe de todo o meu
plano. E, pela primeira vez, me questiono se sua acusação inicial não foi
apenas um blefe muito, muito sortudo.

Dom não parece mesmo ser o tipo de pessoa capaz de me ler.

Aproveito seu breve momento de dúvida para puxar meu braço de


volta. Desta vez, consigo me soltar. Ao redor, há um ou outro olhar
desconfiado, mas nada perto da comoção de quando Dom e Kim quase se
mataram.

Esfrego o pulso dolorido, olhando para ele com desgosto explícito.


Dom suspira, apertando e mordendo os lábios. Ele perde alguns
minutos na busca de uma maneira de continuar a conversa.

— Não tô te pedindo pra ser meu marido ou alguma merda do tipo —


murmura finalmente, calmo e gélido. Há uma insinuação velada em sua voz
quando diz: — Seu casamento foi sempre de fachada? Sei que vocês moram
em casas separadas — ergue as sobrancelhas —, que você quase não vê
sua filha.

— Pare de falar.

— Talvez você devesse deixar essa puta pra lá e se tornar mesmo


meu marido.

— Não fale da minha mulher desse jeito — repreendo firmemente, e


isso o cala. Quando meu pulso não está mais dolorido, pergunto com o
queixo erguido: — E se os rumores forem falsos? E se eu não foder com
homens?

Ele rumina sobre a pergunta, seu olhar distante e frustrado quando diz:

— Ficarei muito, muito decepcionado. — Estala a língua. — E vou


suprimir qualquer impulso de te ajudar que tenho no corpo.

— Está me chantageando?

— Tô te pedindo pra ser meu — afirma com arrogância, como se isso


fosse a coisa mais óbvia do mundo, como se eu fosse incapaz de
compreender a coisa simples e claramente justa que está pedindo.

Reteso a mandíbula.

Mais uma vez, sinto as rédeas dos meus planos escaparem de minhas
mãos, serem atiradas de um lado para o outro e alterando o curso da rota
que eu deveria controlar. Tudo deveria ser bem simples, mas, desde que
conheci Kim, simples é exatamente o oposto do que vem acontecendo.

Posso recusar o pedido de Dom. Ele não se forçará em mim, sabe que
se me tocar terá consequências tão graves quanto se eu o tocasse. No
máximo, manterá seus homens no meu encalço e tentará outras vezes me
convencer a dormir com ele.

Mas isso significa que a vida de Kim continuará ameaçada, que não
poderei retirar meus olhos dele por um segundo sequer, que terei que
continuar sendo inconveniente e afastando-o do irmão sem dar maiores
explicações.

Dom não é confiável; é instável e imaturo. Um adolescente vestindo as


calças de um adulto e perpetuamente marcado com as figuras da máfia que
controla esta cidade. É um garoto com poder demais nas mãos, um garoto
que certamente tentará matar Kim outra vez caso eu não aceite seus termos.

Não há honra nesse acordo. Não há honra entre vilões. E, como ele
disse, eu não sou um herói.

Mas há uma forma de contorcer esta situação e retirar dela algo que
seja útil. Uma forma que, provavelmente, consertará a rota e endireitará o
curso do meu plano, fará tudo correr conforme deveria outra vez. Por azar, ou
sorte — muita sorte —, Dom é o único homem que tem algo fora do meu
alcance. É justamente quem tem o recurso do qual estou desesperadamente
atrás, o recurso que me deixará um passo mais próximo de cumprir minha
vingança.

Minha tia uma vez disse que vingança é um prato que se come em
uma noite escura e tempestuosa, na companhia de seus piores pesadelos.

Agora eu entendo o que ela quis dizer.

Engulo em seco.

— Me entregue quem estou procurando. Me entregue Olivia —


demando, inflexível, ignorando meu orgulho e todas as variáveis negativas
que dormir com Dom poderia me trazer. Concentro-me somente em ter a
cabeça da desgraçada que estou procurando há meses.

— E?

— E serei seu... por uma noite.

Dom brinca com a toalha da mesa enquanto reflete.

— Se você não for meu, Jude, vou estripar seu cão e arrastar suas
entranhas pelas ruas de Nova York, do Bronx ao Upper East Side.

— E daí? — rebato casualmente. Dom me fita, abismado. — Posso


arranjar outro animal de estimação. Se engana friamente se acha que Kim é
indispensável pra mim. Ele sabe foder bem, e é isso, nada mais. Sabe o que
é indispensável pra mim, no entanto, Dominic? Minha vingança. Me entregue
Olivia — reitero firme. — A Olivia que esteve envolvida na morte de Jason, e
te darei o que você quer. Caso contrário, nunca mais nos encontraremos;
nunca mais olharei nos seus olhos; nunca mais trocarei uma palavra sequer
com você.

O mafioso fecha os olhos e contrai os lábios numa expressão que


beira a dor. Ele encobre o rosto com as mãos.

— Essa é minha única condição, inegociável — finalizo, sentindo tensa


cada fibra em meu corpo.

Dom mantém o rosto afogado em suas próprias mãos por um longo


tempo, tempo suficiente para que o garçom se aproxime com os pedidos que
Kim e eu fizemos. Dispenso-o com um gesto de mãos.

Inspiro fundo quando o líder dos Snakes finalmente ergue o rosto.


volante enquanto dirijo de volta para o
I N H A S M Ã O S A P E R TA M F I R M E O
M
apartamento. Não há nada entre mim e Jude além de silêncio. Nada além
de um vazio crescente. E eu estou enlouquecendo.

Olho para o retrovisor. No banco traseiro, Jude está relaxado, o rosto


praticamente colado na janela e a ponta do indicador entre os lábios. Seus
olhos estão frios, muito mais frios do que o normal. Não frios de fúria, mas de
tristeza. Noto por uma inspiração funda que ele percebeu que estou
observando-o e escolheu me ignorar.

Meus dedos embranquecem por conta da força com que seguro o


volante. Concentro-me na estrada. Faço uma curva fechada, e meus olhos
recaem sobre o retrovisor lateral.

Vejo a Lamborghini preta do desgraçado logo atrás, nos seguindo.

Aperto os lábios. Meus punhos coçam. E, no meu peito, tenho certeza


de uma coisa: não há a menor chance desta noite acabar bem.
CIÚMES
se eu continuar te perdoando
talvez acabe acreditando que você nunca quis me machucar
talvez me recupere se você me libertar
mas por que você me faz sentir fraco e pequeno?
por que eu continuo implorando como um animal?
talvez porque eu precise servir alguém
you keep me crawling — aurora

e retiro as chaves da ignição. Os faróis se


S TA C I O N O O C A R R O N O P R É D I O
E
apagam. Não afasto as mãos do volante, no entanto — estou tenso demais
para isso.

Silenciosamente, observo a Lamborghini do mafioso parar a alguns


metros de nós. Seus faróis também apagam e a porta do motorista abre
verticalmente. Dom pisa para fora e ajeita o terno, espera por Jude.

No banco de trás, Goldman suspira fundo e retira o cinto de


segurança. Ele mantém a nuca levemente abaixada quando toca a maçaneta
da porta e tenta abri-la. Pelo retrovisor, vejo um relance de surpresa em seu
rosto quando percebe que não destranquei as portas.

Ele me encara pelo espelho, desconfiado.

— O que está fazendo?

Engulo em seco e aperto mais o volante. Pelo canto dos olhos, vejo o
outro homem recostado na Lamborghini.

— Kim — Jude insiste. Força a maçaneta várias vezes, dando ênfase


à ordem. — Destranque as portas.

— Por que ele está aqui?

O loiro inclina o pescoço para o lado, as sobrancelhas se arqueando,


um brilho de descrença no olhar.
— Não te devo explicações.

— Por que ele veio ao seu prédio? Por que caralhos está te
esperando? Você... você é amigo desse filho da puta?

— Meus negócios com Dom... não te interessam.

Minhas mãos tremem.

— Interessam quando ele é o desgraçado que acabou com a minha


vida — praticamente grito, e sinto um misto de vergonha e revolta em
seguida. — Me diga o que ele veio fazer aqui. Você me deve pelo menos
isso.

Jude fica alguns segundos em silêncio. Quando fala novamente, seu


tom é mais suave:

— Entendo que você tem suas próprias questões com ele, Kim. Não
sou estúpido. Mas eu tenho as minhas, e não pense por um momento sequer
que vou colocar os seus interesses, seus... sentimentos... sobre meus
objetivos, sobre meu maldito plan—

— Não saia. Não suba — interrompo-o. — Não faça a merda que você
está prestes a fazer — digo firmemente. — Deixe que eu lide com Dom.

— Você é mesmo completamente cheio de si, não é? Não sabe seu


lugar? — vocifera. A mandíbula se move de um lugar para o outro enquanto
tenta controlar a ira, mas não consegue. — Você é só um chofer, um
ninguém. O que pensa que pode fazer contra o líder da porra da organização
criminosa mais perigosa da cidade? — dispara num tom casualmente cruel.

Largo o volante e mordo o interior do meu lábio. Fito profundamente o


Snake recostado no carro, sua postura dissimulada, o rosto sem preocupação
no mundo.

— Posso arrancar a garganta dele — me volto a Jude — se você


ordenar.

Sei que ele percebe que estou falando a verdade. Sei, pela forma
como sua expressão se confunde entre protesto e dó, entre compaixão e
irritação, negação e satisfação.

— Então seríamos dois homens mortos — rebate numa lástima.


Fecho os olhos.

“Eu gostaria de poder amar minha filha desse jeito. Eu gostaria... de


sentir isso, pelo menos uma vez.” A voz com que disse essas palavras, bem
como o olhar contemplativo e melancólico que tinha naquele momento,
invadem minha mente.

— Por que ele tem que ir ao seu apartamento? — pergunto.

— Por que você acha?

Esfrego a boca com firmeza, meu peito começa a queimar. Tento


desesperadamente negar o que estou vendo acontecer diante dos meus
olhos, mas não consigo. Sou péssimo mentindo — até para mim mesmo.

“Vai foder com ele?”, chego próximo de perguntar, mas as palavras me


causam nojo. Então, o que sai é:

— Por que está fazendo isso? — e minha voz sai mais ríspida do que
eu gostaria. Estou perdendo o controle sobre o meu corpo. — O que ele tem
contra você?

Algumas mechas de seu cabelo caem sobre a testa quando ele curva
a nuca para baixo, em direção ao espaço vazio entre seus pés.

— Ele tem algo de que preciso — balbucia, tão baixo que preciso me
inclinar mais para trás para ouvi-lo.

— O quê?

A vulnerabilidade furtiva no rosto de Jude desaparece tão rápido


quanto apareceu.

— Você sabe — é tudo o que responde. Força a maçaneta outra vez.


— Destranque a porta. — Não me movo. — Kim Henney — grunhe. — Não
me desobedeça de novo.

Contraio os lábios e me endireito no banco. Vejo as horas no meu


celular — 23h03 — então observo o estacionamento escuro ao redor. Talvez
eu devesse dar partida no carro outra vez e sair daqui, levar Jude para a
minha casa e trancá-lo em um dos quartos até que me prometa que seus
negócios com Dom estão acabados. Essa não parece uma ideia tão ruim
afinal de contas. Mas por que estou pensando nisso? De onde esses
pensamentos estão surgindo?
Minha mente clareia quando Jude murmura novamente.

— Está com ciúmes? — pergunta num tom sugestivo. Abro a boca


rapidamente para dizer um “Não, seu filho da puta. Parece que estou com
ciúmes?”, mas paro no meio do caminho. Estou. Estou com ciúmes. E pior
ainda: não consigo esconder isso. — Está, não é? Que absurdo.

Ele me observa aborrecido pelo retrovisor. Nossos olhares se cruzam,


e meu coração dispara. O tom de repreensão em sua voz me faz sentir
pequeno e infantil.

— Você pertence a mim. Não o contrário. — Chega tão próximo do


meu rosto pela lateral quanto consegue. — Não sou seu. — Franze o cenho
com certa agressividade, como se se controlasse para não explodir. — Repita
isso para si mesmo como um mantra a partir de agora até o final do seu
contrato. Não quero ter que lidar com seu comportamento ciumento outra vez.

Jude se joga para trás. Desvia o olhar, o queixo erguido e o rosto


terrivelmente fechado numa irritação visceral, uma irritação que faz sua
mandíbula se retesar, que faz sua cabeça balançar de um lado para o outro
de maneira sutil. Uma irritação que deixa meu orgulho em fragmentos no
chão do carro.

Eu sei que é inútil querer qualquer coisa a mais de Jude, agir como se
eu significasse mais do que um cão de estimação que serve aos seus
interesses, que está aqui para ajudar em seu plano fodido e acatar ordens.
Eu sei de tudo isso. Mesmo assim, continuo fazendo exatamente o contrário.

Meu pai estava certo. Sou mesmo um otário miserável.

Destranco as portas. Cubro minha boca com a mão e apoio meu


cotovelo no encosto da porta. Deslizo o vidro da janela para baixo. Ouço a
porta de trás se abrir e se fechar bruscamente.

Observo Jude caminhar até Dom e passar por ele em direção ao


elevador do térreo. O Snake me lança um último olhar desafiador antes de
segui-lo.

Quando as portas do elevador se fecham, fico sozinho no


estacionamento escuro. Apenas eu e meu orgulho ferido.
CHO QUE SÓ VOU CONSEGUIR me acalmar depois de alguns minutos
A
afogado no silêncio e na penumbra do carro. O único som é o da minha
própria respiração, e mesmo isso é o suficiente para me irritar. Cerro os
punhos, esfrego e esfrego a barba até me arranhar, ligo e desligo o rádio.
Minha mente não se desliga do tom repreensivo de Jude sequer por um
segundo e, cada vez que penso nele, a inquietação no meu interior piora.

Embora eu tenha sido covarde demais para perguntar, sei o que os


dois estão fazendo lá em cima — o olhar desafiador do mafioso filho da puta
deixou tudo mais do que claro.

Eu deveria dar partida e ir embora daqui, declarar essa noite como


encerrada. Mas se fizer isso... quando verei Jude novamente?

Sou o animal de estimação de um bilionário desgraçado. Jude não


merece metade dos privilégios que tem, não merece uma fração do poder
que tem, não merece uma pífia dose da minha devoção. Não é digno de
porra nenhuma.
Soco o volante. Grito sem voz. Meu sangue ferve nas veias. Preciso
arranjar uma forma de me acalmar.

Pego meu celular. Abro a lista de contatos. Meu dedo viaja


inconscientemente até o número de Noah, e chego muito próximo de ligar
para ele.

Mas me contenho. Preciso mantê-lo o mais afastado dessa história o


possível, não depositar nele os transtornos emocionais que Jude me causa.
Manter meu irmão seguro significa aliená-lo de minha relação com Goldman.

Então rolo a tela um pouco mais para cima. Encaro o número que
quase disquei na festa da filha de Jude, o número que costumava fazer parte
da minha vida todos os dias, o número que nunca imaginei que um dia me
provocaria tanta dúvida ao discá-lo. O número dela.

O que vai acontecer se eu ligar depois de todo esse tempo? Depois de


sair do ringue? Depois de ela me ver derrotado, ensanguentado, quebrado, a
um passo da morte? O que vai acontecer?

Aperto o celular nas minhas mãos. Sequer estou com a mente certa
para uma conversa como essa?

E se ela não me atender? E se tiver se cansado de mim? Sequer é útil


tentar a sorte?

Talvez seja melhor deixar as coisas como estão, cessar todo e


qualquer envolvimento meu com os Snakes. Talvez seja melhor superar ela
de uma vez. Mas eu não costumo tomar as melhores decisões, de qualquer
forma. E sinto falta dela.

Disco o número.

Aproximo o celular da orelha lentamente. Meu peito afunda, minha


garganta seca.

Toca. Toca. Toca. To—

— Kim?
OLÁ
olá, sou eu
queria saber se depois de todos esses anos
você gostaria de sair
para conversar sobre tudo o que aconteceu
dizem que o tempo cura
mas não acho que me curei
[…]
olá, como você está?
é tão típico de mim falar só sobre mim
desculpe
espero que você esteja bem
você chegou a sair daquele lugar
onde nada nunca aconteceu?
hello — adele

voz dela do outro lado. É a mesma voz


I C O PA R A L I S A D O Q U A N D O O U Ç O A
F
suave e melódica de que me lembro. A voz que me acalma. A voz que
sussurrou em meu ouvido tantas vezes enquanto costurava minhas feridas. A
voz que gemeu no meu ouvido tantas vezes enquanto me curava de outras
formas.

— Kim? — ela repete do outro lado da linha. Ouço um arrastar de


tecidos. Provavelmente estava deitada na cama quando recebeu a ligação.

Certo de que é ela do outro lado, relaxo as costas e a cabeça no


banco. Cubro meus olhos e esfrego as pálpebras.

— Sou eu, Olivia — murmuro.

Ela fica em silêncio do outro lado por volta do mesmo tempo que eu.
Talvez esteja passando pelo mesmo estrato de sentimentos. Uma lufada de
ar silenciosa escapa dos meus lábios. Quase posso ver seu rosto em minha
frente.
— Achei que você nunca ligaria — continua depois de alguns
segundos. Ouço o clique de um interruptor, e então uma cadeira sendo
arrastada pelo chão. Ela está em casa, não no ringue. Graças a Deus. —
Como você tá? Eu... — balbucia. — Eu passei na sua casa depois que tudo
aconteceu, mas você não tava lá.

— Eu sei, eu sei. — Meneio com a cabeça. — Noah me disse —


comento suavemente.

Olivia demora um tempo até confessar:

— Fiquei preocupada.

Um sorriso largo abre-se em meu rosto. É bobo, mas não consigo


controlá-lo.

— Desculpa. Eu deveria ter ligado mais cedo.

Ela pigarreia e engole a própria saliva.

— Sou eu que preciso me desculpar.

Apoio um braço sobre a janela aberta da porta do carro e viro a cabeça


em direção ao lado de fora. A brisa noturna parece particularmente fresca
quando não estou pensando em cometer um assassinato.

— Por quê?

Olivia suspira.

— Por deixar você no ringue daquele jeito. — Seu tom se aprofunda,


cheio de remorso. Aperto os lábios, ansioso. — Eu só não consegui te
encarar derrotado por muito tempo. Pareceu... — se interrompe. — Pareceu
surreal demais. Uma puta sacanagem do destino.

Os pensamentos que tive enquanto estava deitado naquele ringue


ecoam em minha cabeça. A dor que senti ao ver Olivia me dando as costas
volta a me atormentar. A sensação de ter uma sentença de morte declarada
enquanto outra pessoa era declarada campeã me perturba.

365 lutas. E eu perdi justamente a mais importante de todas.

— Eu sei — digo de volta, meu tom se aprofundando como o dela. As


lembranças me deixam melancólico. — Acho que, se houver um Deus
sentado nas nuvens lá em cima... ele me odeia.
Uma risada de escárnio me escapa.

— Não fale besteira — repreende.

Minha risada cessa. Foi a primeira vez que ri assim desde que deixei o
ringue.

— Onde você tá?

— No trabalho.

— Trabalho? — Consigo enxergar suas sobrancelhas se erguendo. —


Então é verdade que você trabalha pro cara que te comprou?

— Sou o chofer dele, por mais absurdo que soe.

— Soa absurdo pra caralho.

— Vai soar ainda mais quando você descobrir quem é o desgraçado —


afirmo com um sorriso cínico.

Olivia fica em silêncio por alguns segundos do outro lado. Ouço a


cadeira se arrastando, então cortinas sendo puxadas e uma porta se abrindo.
Deve ter ido à sacada de seu apartamento.

— Eu escutei... rumores — comenta. — É difícil Jude Goldman passar


despercebido em qualquer lugar. Na plateia do ringue, então... — Faz um
som de escárnio com a boca. — Se destaca como um diamante no carvão.

Apoio a cabeça na porta do carro e tateio a lataria preta do lado de


fora. Ouço a respiração serena de Olivia pelo telefone. Um estrato de
lembranças e contestações acumula-se em minha cabeça diante do breve
silêncio que se segue entre nós. Algumas boas, outras nem tanto. Algumas
esperançosas, outras mórbidas.

— Honestamente... — quebro o silêncio —, às vezes, sinto falta do


ringue — confesso. E apenas sou capaz de confessar isso em voz alta
porque estou num espaço aberto e escuro, conversando com alguém em
quem confiaria minha vida num piscar de olhos, alguém que amo. — Parece
que caí de cabeça num furacão nas últimas semanas — finalizo em um tom
triste.

— Nunca mais repita isso, está me entendendo? Isso é uma falácia,


Kim, ou algum tipo de desejo autodestrutivo. Você não sente falta do ringue, e
nunca sentirá. Aquele lugar não é pra caras como você.

Seu tom é tão diferente do de Jude que comparar os dois seria como
comparar água e vinho. Olivia é assertiva, há preocupação genuína em sua
voz. Ela sabe pelo que passei, passou muito disso ao meu lado. Jude se
importa apenas com me manter no lugar, com apertar a coleira em meu
pescoço quando acha que está frouxa demais. Olivia não me vê como um
inferior, como uma ferramenta para seus planos.

Jude sequer merece ser comparado a ela.

— Isso não é verdade — rebato com um sorriso idiota no rosto.

Ela não nota o humor em minha voz.

— Continue tentando se enganar — ralha com desdém. Ouço passos


lentos e perdidos. — Quer passar na minha casa quando terminar por aí?

A pergunta me pega de surpresa. Meus ombros ficam subitamente


tensos. Pigarreio silenciosamente, pensando no que responder. Quero passar
na casa dela? As coisas estão certas entre nós mais uma vez, então o que
me impediria?

O que me impede de ir até sua casa neste exato momento? Não é


como se eu estivesse fazendo alguma coisa muito importante por aqui de
qualquer forma. Depois de gozar, Jude pega no sono rápido. Além disso, que
porra ele ainda poderia querer de mim quando terminar com Dom?

Eu poderia ir na casa de Olivia.

— Kim?

Mas a verdade é que Jude não é o problema aqui.

— Não sei se é uma boa ideia — murmuro baixo.

— Por quê? — pergunta. Coço o nariz, ainda incerto se deveria


mesmo ter esta conversa por telefone. — Me diga, Kim. O que há de errado?

Expiro fundo. Se não falar disso agora, provavelmente nunca falarei.

— Deixe os Snakes, Ollie — peço, enfiando a sutileza no cu. Meu tom


é baixo, mas firme. Encaro o estacionamento vazio. — Você não precisa
deles. Podem encontrar uma outra médica pra cuidar dos desgraçados no
ringue. — Engulo em seco, desentalando isso da garganta. — Lá também
não é lugar pra você.

Sei que estou ultrapassando algumas barreiras. Estou pedindo muito


mais do que deveria, especialmente para uma primeira ligação depois que saí
do clube. Sei que as chances de Olivia ceder são ínfimas, mas preciso tentar.
Tentar é o que sei fazer de melhor, não importam as circunstâncias. Se eu já
tivesse desistido de tentar, estaria morto há muito tempo.

Precisei fazer este pedido. Prometi a Noah que não me envolveria


mais com qualquer coisa relacionada aos Snakes — e Olivia é um membro
importante da gangue. Não vou decepcionar meu irmão por omissão.

Ela toma seu tempo para me responder. Está provavelmente


mensurando o problema, ensaiando palavras e discursos em sua mente.
Sempre foi muito calculista, como uma boa médica.

Quando finalmente responde, parte meu coração outra vez:

— Você sabe que não posso deixar os Snakes, Kim — lamenta, o tom
cauteloso como se falasse com uma criança. — Quer que eu remova minha
tatuagem com laser também? — Expira fundo do outro lado. — Eu estaria
morta em dois dias. Isso é uma sentença pra vida.

Cerro os punhos.

— Eu não deixaria que tocassem em você.

— Kim... — resmunga.

Viajo a alguns minutos atrás, quando Dom estava apoiado em sua


Lamborghini esperando por Jude. Viajo ao que disse a Jude enquanto
prendia-o no carro, à certeza dentro de mim.

— Você sabe que nenhum deles é páreo pra mim, Olivia. — Reteso a
mandíbula. — Então me leve a sério — me queixo. — Por favor... deixe eles.

— Sei que nenhum deles é páreo pra você. Acha que já duvidei que
cumpriria seu contrato? Que sobreviveria a todas as 365 lutas? — Contraio
os lábios. Ela se interrompe, esperando por uma resposta que não vem. —
Nunca. Em nenhum momento sequer — afirma. — Todos os caras que
passam por lá duram duas, três semanas no máximo. E então são
esmagados. Mas, no momento em que te vi, eu tive a certeza... — suspira. —
Tive certeza de que sobreviveria, Kim.

Fecho os olhos, furioso. Furioso com sua capacidade de me embalar


desse jeito, de sempre usar as merdas das palavras certas, de sempre
ganhar nossas discussões. É impossível convencer Olivia a fazer algo que
ela não queira — assim como Jude. Os dois são parecidos nisso.
Irritantemente parecidos.

— Se eu não fizesse parte dos Snakes — continua —, nunca teria te


conhecido.

Uma risada sarcástica escapa da minha garganta.

— Fala isso pra todos os caras que fode?

— Acha que dou meu número pra todos os caras que fodo? — replica
em protesto.

Rimos juntos, embora seja uma risada triste, cheia de sentimentos e


sentidos ocultos relacionados a tudo o que vivemos juntos no último ano.

Olivia sempre deixou claro que não me ama, e sempre pediu para que
eu não a amasse também. Mesmo depois de tudo o que falou esta noite, sei
que ela tem medo de se apaixonar por alguém fadado a morrer uma morte
violenta e obscura, que não sairia em jornal algum e seria simplesmente
apagada da história. Ela conhece bem a organização para a qual trabalha.

Mas e quanto a todas as noites que passou cuidando de mim?


Tocando-me e sussurrando palavras de conforto em meu ouvido? Como ela
queria que eu não me apaixonasse? Como queria que eu apenas a fodesse
sem qualquer tipo de sentimento envolvido?

Eu sabia que não era o único lutador com quem ela fazia isso, com
quem fodia. Mas, quando estávamos juntos no vestiário, eu acreditava que
era o único. E acreditar na fantasia criada em minha cabeça sempre foi o
suficiente. Tanto que aqui estou eu, sofrendo por finalmente ter que cortar as
asas dessa fantasia.

— Não posso sair, Kim — ela finaliza num tom triste. — Não há saída.

— Não posso continuar me envolvendo com uma Snake, Ollie — digo


por fim, devastado, mas fazendo o possível para me manter firme. — Pelo
bem do meu irmão. Pelo meu próprio também.

Engulo em seco. Nego com a cabeça. Essa é uma puta injustiça.

— Acho que isso é um adeus, então — ela comenta como se quisesse


esticar as palavras.

— Acho que sim.

— Se cuide, Kim Henney — sussurra.

Aperto o celular em minhas mãos com tanta força que meus dedos
começam a doer. Levo alguns segundos até responder:

— Você também, Olivia. Você também.

Assim como ela, estico as palavras. É uma tentativa de trapaça, de


fazer deste momento o mais longo possível. Mas, quando o que resta entre
nós é apenas um silêncio calmo e consensual, sei que não há mais nada o
que esticar, para onde fugir ou o que enrolar.

Afasto o celular do rosto e dou uma última olhada na foto de Olivia no


contato antes de desligar.

Uma parte de mim se desliga da realidade junto com o aparelho. Não


há mais muito para mim nesta noite, neste lugar. Sei que, quando voltar para
casa, tudo em que pensarei é nela. Passarei mais uma noite acordado.

Mas não importa. Preciso sair daqui.

Abro o porta-luvas do carro para guardar meu celular e dou de cara


com o segundo aparelho — o que Jude me deu, o que eu devo atender
sempre que tocar. A tela está acesa. Com o cenho franzido, apanho-o.

1 ligação perdida.

Meus músculos enrijecem.

— Merda.

Atiro meu celular pessoal no compartimento e o fecho. Assustado e


confuso comigo mesmo por ter deixado a ligação passar, me apresso em
retorná-la. Encubro a boca com a mão, ansioso.

E se ele estiver correndo algum tipo de perigo? Devo subir o elevador


e—
— Kim? Eu falei pra você atender sempre que o celular tocasse.

— Eu sei, eu tava—

— Eu quero que você espere por mim no carro. Não vá embora. Essa
é uma ordem.

— Você tá bem?

— Ficarei, se você me esperar no carro.

— Jude, me diz o que fazer. Porra, me diz o que eu posso fazer pra te
ajudar.

— Pode ficar comigo esta noite. Diga que vai ficar. Preciso ouvir as
suas palavras.

— Tudo bem. Vou ficar aqui.

E a ligação é encerrada bruscamente.

Encaro a tela, perdido no silêncio vazio do estacionamento.


EU MATARIA POR VOCÊ
acredito em cada palavra que você diz
um beijo é o suficiente pra me fazer esquecer
toda a merda, as batalhas que perdemos, os corpos que enterramos
você não sabe quão longe estou disposto a ir
e cria falhas no meu código moral
[...]
você vai me fazer cometer um assassinato
eu mataria por você
kill for you — skylar grey

3H41.
2
Meus olhos estão presos nos caracteres vermelhos acesos no rádio
do carro. 23h41.

Desliguei a ligação há mais ou menos quinze minutos. Jude me pediu


para esperar no carro. Ainda não tenho ideia do que ele pode querer comigo,
mas aqui estou: esperando.

Estou terrivelmente ciente do meu próprio cansaço. Terrivelmente


ciente dos pensamentos desconexos e macabros que preenchem minha
mente. Terrivelmente ciente de que Dom vai passar por aqui, por mim,
quando sair do prédio.

E assim ele o faz.

As portas do elevador se abrem, a iluminação artificial que vem de seu


interior banha o estacionamento brevemente. Contra a luz, Dom projeta uma
sombra esticada no chão. Ele dá alguns passos para fora e as portas fecham-
se às suas costas. Tem as mãos nos bolsos, o terno perfeitamente alinhado
como se jamais o tivesse tirado. Talvez não tenha mesmo, mas pensar nos
detalhes de sua foda com Jude é a última coisa que quero fazer neste
momento.
Seus passos são casuais e despreocupados. Na penumbra, a
serpente em seu pescoço parece uma mancha sobre a pele. Ele mantém a
nuca curvada para baixo, os olhos centrados no chão à sua frente. Ergue-os
depois de algum tempo e os direciona diretamente a mim — não ao seu
carro, não à saída do estacionamento, a mim.

Retribuo o olhar inexpressivo. Meu rosto se contrai em ódio, meus


punhos coçam, meus músculos imploram para pular sobre esse homem e
quebrar sua cara, mas me controlo. Sigo firme no banco. Tenso,
dolorosamente tenso, mas firme.

Me mantenho assim pelo menos até perceber que ele, na verdade,


não está se aproximando de seu carro, sequer retirou as chaves do bolso.
Está caminhando na minha direção.

O estacionamento está preenchido por um silêncio asfixiante,


interrompido apenas pelo estampido abafado de seus passos. O silêncio se
torna letal, palpável, quando ele para de caminhar e se inclina sobre a janela
aberta do carro, apoiando um dos cotovelos na porta. Ergo o queixo,
encarando seu rosto miserável. De tão perto, consigo ver cada imperfeição,
cada machucado, cada cicatriz. Suas íris parecem dois buracos negros.

— Escute — começa com um tom baixo e despojado —, não importa o


que haja entre nós: seja um bom cão e cuide do seu dono. — Me encarando
intensamente, ele repousa uma mão em meu ombro e o aperta. — Não deixe
que outras pessoas façam com ele o que acabei de fazer. — Arqueia as
sobrancelhas de forma sugestiva.

Meu interior gela num misto incontrolável de fúria e aversão. Horror,


quase.

Minha mente desliga-se por alguns segundos. Quando volto a mim, a


arma que carrego por precaução já está apontada para o meio da testa do
desgraçado, o cano frio a centímetros de sua pele, meu dedo roçando o
gatilho. Jurei que usaria essa coisa contra qualquer Snake que não me
deixasse em paz. Bem, chegou a hora de cumprir a promessa.

— Me dê uma boa razão — destravo o cão —, uma única boa razão —


rosno —, pra não explodir sua cabeça aqui e agora.

Fito-o intensamente, fervendo por dentro. A cólera em meu olhar é


capaz de abrir dois buracos em sua cabeça se continuarmos deste jeito por
muito tempo.

A arma não treme em minhas mãos. O metal gelado já é familiar,


minhas palmas encaixam-se perfeitamente nele. Pequenas descargas de
eletricidade espalham-se pelas pontas dos meus dedos.

O semblante de Dom se fecha, pensativo. Ele encara o cano mirando o


centro de sua testa, então meu olhar rijo e o cano outra vez. Depois de
alguns segundos, um sorriso cínico começa a esticar seus lábios.

— O cão da minha puta tá me ameaçando?

Destravo a porta do carro e chuto-a, forçando sua abertura. Dom é


impulsionado pelo impacto, depois endireita a postura e dá alguns passos
para trás. Saio do veículo com pressa e fecho a porta às minhas costas
bruscamente. O choque é alto e violento, agressivo e feroz. Perigoso.

Não desvio a mira da cabeça do infeliz por um instante sequer.


Recomponho a postura e mantenho alguns passos seguros de distância entre
nós.

Dom não ergue as mãos ao alto em rendição, não se afasta demais,


sequer parece incomodado de alguma forma. Olhando em seus olhos,
percebo que em muito pouco ele lembra um ser humano, se aproxima mais
de uma casca oca e podre.

Firmo o dedo no gatilho. Apenas um movimento brusco será o


suficiente para apertá-lo.

— Quando saí do ringue, achei que meus assuntos com vocês


tivessem acabado. Mas parece que não, então escute bem: — ordeno grave
e rouco — deixe Jude em paz. Me deixe em paz. Estou cheio das suas
merdas. Tenho doze meses de fúria encubada aqui dentro esperando só um
momento, um motivo qualquer, pra explodir.

Ele meneia a cabeça sutilmente, o olhar centrado no chão ao lado. Os


lábios contraem-se numa expressão de desdém, desinteresse. Franzo o
cenho.

Ele não tem medo de morrer?

— Além de me ameaçar — murmura e volta a me encarar —, agora


ele está tentando me dizer o que fazer. Talvez Jude não tenha te adestrado
tão bem quanto pensei. — O sorriso cínico retorna ao rosto.

Ele dá um passo à frente. Os quinze centímetros de diferença entre


nós me fazem curvar o pescoço para cima. Com a aproximação, minha mira
desce da testa ao peito. Ele continua caminhando em minha direção, até
encerrar completamente a distância entre seu torso e o cano da arma, que
afunda em sua camisa. Seguro o revólver de forma mais tensa, meu corpo
completamente retesado.

— Você é só uma cadelinha estúpida — ladra, raivoso. — Tem muito


sobre o seu dono que ainda precisa descobrir. Ou você acha que fui eu que o
procurei primeiro?

Abro a boca, mas a voz fica presa na garganta. Inspiro fundo. Não sei
muito sobre a relação entre os dois, mas preciso acreditar que Jude não
procuraria voluntariamente por um Snake, certo? Certo? Ele poderia ser tão
estúpido?

Dom ri, convencido. Seus ombros relaxam ainda mais, parece


perturbadoramente confortável apesar da arma apontada para o seu peito.

— Seu querido Jude veio até mim, de joelhos, pra pedir ajuda com seu
plano, além de implorar pela sua vida, cão — murmura num tom canalha. —
Seus olhinhos azuis me olhavam de baixo, seus lábios diziam as palavras,
mas tudo no que eu pensava era em como queria tê-los em volta do meu
pau.

Jude implorou pela minha vida?

Isso me dá ânsia. Se eu achasse o mafioso desgraçado digno de


alguma forma, vomitaria sobre ele. Aperto mais a arma contra seu peito. Um
sorriso ameaçador abre-se em seu rosto:

— Ele tá encurralado, por sua causa e por causa do maldito plano que
não consegue colocar em prática sem mim. Sou o único que pode ajudá-lo
agora. — Ergue as sobrancelhas, insolente. — Vai ser um prazer encontrar
sua cara de merda sempre que eu vier aqui pra fodê-lo.

— Seu maldito filho da puta — me descontrolo —, eu vou te—

— O quê? Vai o quê? — rebate ferozmente, o olhar perdendo a calma


de antes, tornando-se animalesco. — Me matar?
Ele pega o cano da arma com as mãos e o arrasta lentamente para o
lado, pousando-o sobre o coração. Com os dedos ao redor do metal, puxa
minha mão para frente, afundando ainda mais o revólver em sua camisa. Seu
rosto está desfigurado em fúria e cinismo.

— Vamos lá. Use seus culhões. Acabe comigo aqui e agora — ordena
ríspido, a mandíbula tremendo. Vejo as veias saltadas em sua testa e no
pescoço, sinto as batidas violentas de seu coração através do cano da arma
fortemente pressionado contra o peito. É assustador. — Se não o fizer, Kim
— cicia —, se uma bala não entrar no meu peito agora... você vai se
arrepender tanto, mas tanto... — Fecha os olhos e nega com a cabeça.

Meu dedo roça o gatilho. Eu deveria fazer. Deveria acabar com ele.
Deveria meter uma bala em seu peito, apagar seus sorrisos cínicos e olhares
desafiadores para sempre. Mas se eu cortar a cabeça da serpente, o que
acontece com o ninho?

Se você se envolver com qualquer coisa parecida com os Snakes


novamente, a voz de Noah preenche minha mente. Depois, a de Jude: Então
seríamos dois homens mortos.

Meu dedo paralisa, curvado em direção ao gatilho. Encaro o fundo dos


olhos de Dom, e sei que ele não está brincando. Sei que me arrependerei de
não puxar o gatilho agora que cheguei tão longe.

— Vamos lá, sua putinha! — grita do fundo dos pulmões, a voz rouca e
fanha ecoando por todo o estacionamento.

Dom agarra meu braço estendido e me impulsiona para a frente. Luto


para permanecer no mesmo local, e puxo o braço de volta grosseiramente. A
arma se afasta de seu peito. Dou dois passos para trás, então me encosto no
carro.

A respiração de Dom se aprofunda, seus ombros sobem e descem


cada vez mais rápido.

— Eu avisei. — É tudo o que ele diz antes de me dar uma cotovelada


forte e brutal no nariz.

Sou jogado para trás, contra o carro. Minha nuca curva-se


bruscamente, a parte de trás da minha cabeça bate no teto do veículo. Minha
visão escurece, e escuto o som de uma cartilagem se quebrando. Meus
sentidos ficam bagunçados por alguns segundos. O revólver cai da minha
mão.

Quando consigo me recompor o suficiente e entrar em modo de


defesa, Dom já apanhou a arma do chão e a está apontando para minha
têmpora. A mão livre se fecha ao redor do meu pescoço, apertando-o, me
pressionando para trás. Não consigo respirar, sinto minhas narinas
preenchidas por sangue — parte dele fica entalado na minha garganta.

O cano pressiona tanto minha cabeça que parece capaz de abrir um


buraco ali sem precisar de um projétil.

O desgraçado respira de maneira tão descontrolada que acho que está


tendo um ataque do coração. Ele cola o rosto no meu, observando bem de
perto o tom roxo da minha face asfixiada, as lágrimas que deixam meus olhos
involuntariamente.

— Se você me ameaçar — rosna contra meu rosto, seu hálito quente,


sufocante e desagradável faz minhas tripas se contraírem —, se você me
olhar torto ou demonstrar qualquer tipo de desconforto na minha presença
outra vez... será a última coisa que vai fazer.

Mantenho o olhar firme no dele, fitando as entranhas desses buracos


negros, o interior vazio de sua casca humana. Agarro seu pulso. A falta de ar
está começando a me entorpecer, minha garganta já está dormente. Ele me
aperta um pouco mais, por alguns segundos, até me dar uma coronhada com
a arma e me soltar.

Caio no chão, desorientado pelo golpe na cabeça e fraco pelo


enforcamento. Agarro meu próprio pescoço e respiro profundamente,
tentando recuperar o fôlego. Cada inspiração dói e piora a dor em meu
crânio. Toco meu nariz. Sangrando. Toco o local onde ele acertou com o
revólver. Sangrando.

— A única razão pela qual vou te deixar sair vivo daqui hoje é porque
sei que Jude se importa o suficiente pra pagar muito mais do que deveria
nessa sua cabeça de merda, pra me implorar pra não te matar. Por quê? Que
caralhos você pode oferecer a ele pra deixá-lo... rendido dessa maneira, eu
não sei. Não tenho a porra da mínima ideia. Mas não pense por um segundo
que meus laços com ele serão o suficiente pra te salvar numa próxima vez,
cão.
Estreito os olhos em sua direção. Duvido de suas palavras, duvido que
um mero aviso seja tudo o que tem para mim depois que ameacei matá-lo.
Ele descarrega a arma, retirando a munição e guardando-a no bolso. Atira o
revólver contra meu rosto em seguida. Ergo os braços para me proteger do
golpe. Quando afasto os braços do rosto, ele está agachado em minha frente.
Agarra meu queixo.

— Da próxima vez... — cospe em meu rosto —, não vai ter dinheiro ou


olhos azuis no mundo que possam te salvar. — Dá dois tapas em minha
bochecha antes de levantar.

Transtornado, machucado e humilhado, observo suas costas largas se


aproximarem da Lamborghini com a mesma calma e despreocupação de
antes. Ele inspira fundo pelo nariz e me dá um último olhar de desprezo antes
de abrir a porta, dar partida no carro e rumar para fora do estacionamento.

Continuo sentado no chão frio mesmo depois de os faróis da


Lamborghini sumirem de meu campo de visão, mesmo depois de me
recuperar, mesmo depois de convencer a mim mesmo de que nunca mais
vou fazer algo tão estúpido — embora saiba que é uma promessa falsa,
apenas para me dar um alívio momentâneo.

Continuo sentado. As palavras de Dom não saem da minha cabeça;


ficam ali, rondando e rondando, me prendendo contra o chão como correntes
duras e pesadas.

Jude se importa o suficiente pra pagar muito mais do que deveria na


sua cabeça, pra me implorar pra não te matar.

O que isso significa de verdade? Jude se importa mesmo comigo? É


claro que não. Ele faz questão de me lembrar disso sempre que estamos
juntos. Só não quer me ver morto porque ainda tenho um papel a cumprir em
seu plano contra Brianna.

Mas isso não faz sentido. Sou mesmo uma parte tão valiosa desse
plano? Do plano que insiste em esconder de mim? Não valho 900 mil dólares,
e sei muito bem disso. Dom sabe disso. Jude sabe disso. Foi dinheiro demais
por um homem qualquer; um cão, como eles chamam, ele disse logo depois
que acordei em sua cama.

Então por que eu? O que preciso fazer?


Minha cabeça gira, gira e gira em busca de uma resposta. Mas não
acho nada, nada que sequer chegue perto de explicar toda essa merda, de
explicar Jude.

Se ele não se importa comigo, então por que pediu para que eu
ficasse no carro? Se não se importa, por que me contou sobre sua filha?

E se se importa, por que me machuca sempre que pode? Por que


transou com meu pior inimigo?

Por quê?

Soco minhas têmporas. Soco, soco e soco. O barulho de carne se


chocando contra carne preenche meus ouvidos. O sangue que escorre do
meu nariz chega até os lábios. Por quê?

Um toque de celular soa ao longe.

Primeiro, acho que estou alucinando. Mas então viro o pescoço em


direção à janela aberta do carro e percebo que está vindo de seu interior.

Sempre que esse celular tocar... atenda. Não importa o que esteja
fazendo.

Uso a porta de apoio para me levantar. Abro-a. Me estico até o porta-


luvas. Abro-o. A tela do celular que Jude me deu está acesa.

Aceito a chamada.

— Alô?
— SU B A .
EU CORPO CONTINUA SE DESLOCANDO para a frente, um passo após o
M
outro, uma inspiração profunda depois da outra, mesmo que minha mente
esteja desligada.

No caminho até o apartamento, paro no banheiro do térreo e limpo o


excesso de sangue em meu rosto. Minhas roupas ainda estão manchadas,
mas o nariz e a cabeça estão em condições apresentáveis pelo menos. A
cartilagem nasal apenas se deslocou, então colocá-la de volta no lugar não é
difícil; já fiz isso tantas vezes que não sinto dor alguma. Meu corpo é
resiliente, assim como meu orgulho.

Não quero que Jude me veja desta forma, sangrando e quebrado. Não
quero que sinta pena de mim, não quero que me considere fraco, não quero
que olhe para mim e veja algo que precisa de proteção, um animal que
precisa de cuidados. Quero que ele me olhe e veja um homem. Talvez assim
resolva de uma vez por todas se se importa comigo ou não.

Aspiro, sentindo o desconforto do ar passando pelas narinas


inflamadas, e ergo a nuca. Reteso os ombros. As portas do elevador se
abrem.

Caminho pelo corredor do andar e alcanço a porta do apartamento


pouco depois. Está aberta, como ele disse no telefone. Entro. Fecho a porta
às minhas costas.

As luzes do primeiro andar estão apagadas. As cortinas das janelas e


da varanda estão abertas, no entanto, e a luz azulada da lua banha o local.
Há um silêncio ruminante em todo o espaço vazio.

O segundo andar, no entanto, está iluminado. Fito as paredes de vidro


que limitam o quarto, as escadas que levam ao segundo andar, e então a
porta pela qual acabei de passar. Tenho a impressão de que esta é mais uma
noite em que chegarei tarde em casa, andando na ponta dos pés para não
acordar Noah.

Tento adivinhar o que Jude está fazendo no quarto. Está na varanda,


fumando, observando os prédios ao redor? Está no banheiro, se livrando do
cheiro de Dom? Está com uma taça de vinho nas mãos, sentado na beirada
da cama? Ou está deitado, me esperando?

Só tem um jeito de descobrir.

Subo as escadas.
AJOELHE-SE
ele me chama de Diabo, eu o faço querer pecar
toda vez que eu bato,
ele não consegue evitar me deixar entrar
deve estar desesperado por algo real
eu sou o mais real que pode ter
você ainda me amaria
mesmo se eu te estrangulasse
hotter than hell — dua lipa

mas sem uma taça de vinho nas mãos. Está


U D E E S T Á S E N TA D O N A C A M A ,
J
me esperando, mas não deitado. Está de costas para os prédios visíveis da
varanda. Está tão impregnado pelo cheiro de Dom que tenho uma vertigem ao
colocar o primeiro pé no quarto. O segundo fica parado no último degrau da
escada, imóvel. Meu corpo inteiro fica estagnado, suspenso entre o desejo de
entrar de vez no quarto e a repulsa que a imagem do homem loiro na cama me
causa.

Ele me fita diretamente, voltado à entrada do cômodo. O joelho


esquerdo está arqueado para cima, a coxa dobrada, o pé sobre o colchão, o
cotovelo apoiado no joelho e o rosto apoiado em uma das mãos. Seus fios
estão grudados na testa, molhados. Seu olhar é tenro e curioso em minha
direção, mesmo que seu corpo esteja totalmente exposto. Consigo ver a
parte interna de suas coxas, a pelve, a genitália flácida, a entrada relaxada e
úmida.

A imagem me pega desprevenido, me deixa lerdo e sem reação. Até


minha mandíbula trincar conforme os pensamentos sobre o que acabou de
acontecer neste quarto me invadem.

Não deixe que outras pessoas façam com ele o que acabei de fazer.
Não consigo fitar Jude por muito tempo. Isso deveria ser sexy? Ele
está tentando me seduzir? Tudo o que sinto é uma repulsa fervente em meu
peito. Quero quebrar, destruir, aniquilar alguma coisa, mas me mantenho
imóvel, inerte. Tudo o que faço é virar o pescoço para o lado, fitar a parede
mais próxima enquanto minha respiração se exaspera.

Já não fui humilhado o suficiente por uma noite?

— Kim — Jude murmura. Sua voz é suave como seu olhar. Ele
endireita a postura, mas mantém o joelho arqueado, se mantém aberto aos
meus olhos hesitantes. — Se aproxime — ordena. O tom é tranquilo e baixo,
mas ainda é uma ordem.

Cerro os punhos.

— Para o que precisa de mim? — resmungo sem olhá-lo, sem me


mover um centímetro.

— Por que está tão frio? — Franze o cenho. Semicerro os olhos em


direção à parede, tentando me controlar. — Olhe pra mim enquanto falo com
você — insiste.

Viro lentamente em sua direção outra vez, o queixo erguido e o peito


estufado, decidido a não encarar mais o local que ele quer que eu encare.

Jude abaixa o joelho e se levanta da cama lentamente.

— Se aproxime.

Engulo em seco. Encaro o fundo de seus olhos gélidos, mas não


consigo descobrir o que está tramando, por que está insistindo em me
maltratar desta forma. Achei que tivesse ganhado alguma experiência em ler
Jude pelo tempo que estamos juntos, mas agora me sinto totalmente perdido,
como um soldado caminhando em um campo minado, como um lutador
vendado no ringue.

Movo os pés cautelosamente; meu coração acelera a cada centímetro


da distância que se encerra entre nossos corpos. Fixo a atenção no olhar de
Jude, mas não deixo de notar seu peito calmo, o suor acumulado em seus
ombros, o pescoço ruborizado, mas sem marcas de chupões ou mordidas.

Quando chego próximo o suficiente para tocá-lo — não fosse pela


repulsa —, suas íris cintilam, a curiosidade em seu rosto se intensifica. Ele
curva o pescoço para o lado, analisando bem cada parte do meu semblante.
Começo a sentir o calor emanando de seu corpo nu.

— Não gosta de me ver dessa forma? De ver o estado em que outro


homem me deixou?

Fecho bem os olhos. A frase ecoa em minha cabeça dolorida e faz


minha pele se arrepiar. Ele está mesmo fazendo essa merda? Meu peito
afunda como se uma bigorna estivesse sobre mim.

Não consigo responder. Tento formular algo que simultaneamente


esconda a náusea em meu interior e me dê um passe para fora daqui, mas
não encontro nada.

— Seu silêncio também é uma resposta, durão — ele murmura depois


de um tempo, arranhando o muro de tensão entre nós.

Inspiro fundo, então deixo escapar a primeira coisa que me vem à


mente:

— Não quero falar sobre essa merda.

— Sobre eu ser fodido por outro homem?

Um estranho sorriso se desenha em sua face. Observo-o por um mero


segundo antes de sentir um tapa forte na minha bochecha. Meu rosto inteiro
vira para o lado. Meu cenho se franze, confuso. Volto o olhar a ele
imediatamente, furioso.

A frieza no semblante de Jude dá lugar a uma frustação fervente. Ele


aproxima mais nossos rostos, esticando-se para cima, chegando bem
próximo de colar nossas testas.

— Você é insolente pra caralho. Age como se me possuísse.

Bufo. Uma, duas, cinco vezes, mas a fúria dentro de mim não se
desfaz. Estou chegando perto, muito perto do meu limite. Um misto de
sentimentos, dores e palavras asfixiadas borbulha dentro de mim, deixa meus
nervos alterados. Achei que vencer 365 lutas consecutivas em um ringue
ilegal seria a coisa mais difícil que enfrentaria na vida. Mas estava errado, a
coisa mais difícil é lidar com esse filho da puta prepotente e cheio de si em
minha frente, é não revidar seus golpes, me forçar a suportar suas
humilhações calado e tentar entender de que buraco escuro dentro de seu
peito parte as merdas que faz, que porra exatamente ele quer de mim.

A bochecha que ele golpeou esquenta.

Jude se senta na cama, ergue o joelho, me fita serenamente outra vez.


Me olhando de baixo, comanda:

— Ajoelhe-se. — Seu pé direito bate no chão, indicando onde quer que


eu o faça.

Uma lufada de ar áspera deixa minha garganta enquanto todos os


meus músculos se contraem em descrença. Fito-o como se visse uma
assombração.

— Não vou fazer isso.

— Ajoelhe-se, é a última vez que vou—

— Não fode — interrompo-o entre meus dentes cerrados. Minha voz


sai como um golpe, ríspida. — Como você pode ser tão cruel, seu filho da
puta? Não acha que me humilhou o suficiente por um dia?

Vejo o semblante de Jude mudar. Ele desliza o joelho para baixo,


passando de imponente e arrogante a confuso e cauteloso. Apoia-se no
colchão com as duas mãos.

— Não estou tentando te humilhar — afirma de forma retraída, o olhar


centrado no meu, mas distante, absorto em seja lá o que esteja passando por
sua cabeça.

Suspiro profundamente e viro de costas. Esfrego o rosto, cansado de


me sentir perdido sempre que estou com Jude.

— Kim, olhe pra mim — sua voz soa às minhas costas. Me volto para
ele vagarosamente. — Olhe bem como ele me deixou.

Percorro seu corpo com o olhar, das íris frias às bochechas, da


mandíbula bem definida aos mamilos rosados, do abdome ao membro
flácido. Quando meus olhos retornam aos seus, ele se levanta da cama e
encerra a distância entre nossos corpos. Uma das mãos envolve minha nuca.
Jude aproxima os lábios do meu ouvido para suspirar:

— Quero que você me deixe ainda pior.


ME DÊ TUDO, MENOS AMOR
você tem alguns às nas mangas?
não tem ideia de que já tá até o pescoço nisso?
sonhei com você todas as noites essa semana
quantos segredos pode manter?
[...]
será que eu quero saber... se esse sentimento é mútuo?
fico triste quando você vai, esperando que fique
ambos sabemos que as noites foram feitas
pra dizer aquilo que você não consegue dizer pela manhã
do i wanna know — arctic monkeys

STREITO OS OLHOS, MAS ELE não me dá muito tempo de reagir. Logo seus
E
lábios estão grudados nos meus, entreabrindo-os, ressecados e levemente
salgados pelo suor que escorreu até ali. Sua boca é quente e molhada, macia;
ácida, porém suave. Sua pele pode estar fedendo ao mafioso, mas a boca tem
o gosto familiar de sempre, o gosto com o qual já estou acostumado, o gosto
que me deixa entorpecido. Dom não o beijou. E, embora eu devesse empurrá-
lo para longe e cair fora daqui, esse é único pensamento que cruza minha
mente. Não importa o que aquele homem disse, não importa o que fez comigo,
a boca de Jude ainda é minha. E vou tomá-la.

Minha língua entra em sua boca, percorre cada espaço que consegue
enquanto aprofundo o beijo. E Jude não hesita, não reluta, não se contrai por
um momento sequer. Pelo contrário: puxa minha nuca para baixo,
esmagando nossos rostos, nossos lábios.

Passo uma mão em sua cintura e puxo-o para frente, esmagando seu
peito contra o meu. Jude afasta nossos lábios, retira minha mão de seu
corpo. Seu olhar permanece preso no meu enquanto ele cai de joelhos.

— Sabe qual foi a melhor parte disso? — Suas mãos ágeis


aproximam-se da fivela do meu cinto. Seus dedos são rápidos ao abrir o pino.
— A melhor parte da minha foda com Dom? Sabe? — insiste num tom
manhoso, lânguido, calmo e hostil, submisso e afiado. — Hmm? — Ergue as
sobrancelhas.

Abro os lábios para balbuciar uma resposta ignorante qualquer, mas


fico preso em seu olhar, em suas íris álgidas me encarando de baixo, na
visão do topo de sua cabeça, em seus joelhos dobrados sobre o chão frio.
Inspiro fundo, incapaz de formular uma frase sequer.

Ele abre meu cinto, o botão da calça, puxa o zíper para baixo. Seu
rosto está tão perto da minha ereção pungente que sinto seu fôlego através
do tecido da cueca quando diz:

— Pensar em você me esperando no carro. — Me encara por um, dois


segundos antes de se voltar ao membro.

Jude puxa o cós da minha cueca, apenas o suficiente para o pau e as


bolas saltarem para fora, em direção ao seu rosto. Minha pele sensível
encosta em sua bochecha, um suspiro abafado escapa dos meus lábios. Ele
volta a me encarar.

Olhe pra mim enquanto estiver com meu pau na sua boca, eu disse na
primeira vez em que ele fez isso, e parece que minhas palavras estão
soldadas em sua mente desde então. Ele expira fundo, seu rosto navega de
uma serenidade dócil até um desejo ferino. Abre os lábios vagarosamente,
move a mandíbula de um lado para o outro em preparação.

— Tudo em que eu conseguia pensar era em você.

A boca semiaberta se aproxima da ponta da cabeça, e a beija.

Enrijeço. Me esforço para conter o gemido que se forma na garganta.


Jude beija toda a extensão sensível entre a cabeça e o corpo, sem as mãos,
me fitando o tempo todo.

Quando parece cansado de me torturar, envolve a ponta do membro


com os lábios, fecha os olhos, e desliza-o para dentro. A língua suporta meu
peso, a boca se ajusta à minha circunferência. Ele chupa uma, duas vezes; a
cabeça se movendo para frente e para trás lentamente, seu interior úmido me
fazendo tremer e grunhir. Algumas mechas rebeldes caem nas laterais de seu
rosto quando ele parte para a terceira, para a quarta, quinta sucção. Fecho os
olhos. Além de aproveitar o boquete, aproveito os sons molhados que sua
boca faz a cada movimento, a sensação de penetrá-lo sem realmente
penetrá-lo, sua saliva me envolvendo, vazando pelos cantos de seus lábios
quando sua mandíbula cansa e se ajusta.

Abro os olhos quando ele segura a base do membro e o retira da boca.


Engole o excesso de saliva antes de me fitar e murmurar:

— Nenhum outro pau pode me satisfazer da forma que o seu faz.


Ninguém consegue fazer o que você faz. Ninguém se compara a você.

Volta a chupar, desta vez com a ajuda da mão. Ele masturba o corpo
enquanto concentra os lábios na cabeça, na pele avermelhada mais frágil e
delicada logo abaixo. Sua mão e sua boca trabalham num mesmo ritmo, lento
e constante.

Cerro as pálpebras. Meu corpo balança e minhas sobrancelhas


arqueiam quando ele estimula um local particularmente sensível, ou quando
aprofunda o pau em sua boca.

Já recebi muitos boquetes na vida, inclusive de Jude, mas este pode


facilmente ser um dos melhores — senão o melhor.

Fecho as mãos no topo de sua cabeça, seus fios emaranham-se entre


meus dedos. Forço-o a ir um pouco mais fundo e projeto meu quadril à frente.
Deslizo até o fundo de sua garganta e permaneço ali por alguns segundos.
Jude engasga. Mesmo assim, solta meu pau e agarra minha bunda com as
duas mãos, me empurrando tão fundo dentro de si quanto possível. Saio com
um gemido, os olhos arregalados em sua direção. Acaricio sua cabeça —
sussurrando um “Você é bom nisso” sem som algum.

Ele tosse e engole o excesso de saliva na garganta. Me fita com os


olhos lacrimejantes e murmura:

— Você é o único que eu quero.

E eu sei que não deveria acreditar nisso, sei nas minhas entranhas
que me deixar ser levado por Jude outra vez acabará em tragédia, em
mágoa, em mais alguns ossos quebrados. Mas quando ele se levanta do
chão, me beija gentilmente e então vira de costas, puxando-me em direção à
cama, tomo a decisão de ignorar esses pressentimentos, ignorar os sinais
vermelhos, ignorar meu próprio instinto de sobrevivência. Quando ele se
arrasta pela cama até a cabeceira e me arrasta junto, sobre si, mergulho
numa maré alta e calma com as pernas quebradas. Não sei mais se
conseguirei voltar à superfície.
Meu pau se esfrega no dele quando nos beijamos deitados, suas
pernas cuidadosamente se abrindo para me acomodar, suas mãos tocando
meu rosto e meu pescoço, o suor parcialmente seco em sua pele fazendo
seu toque parecer viscoso, mais denso do que o normal. Nossos corpos se
encaixam como peças de um quebra-cabeças, formando uma imagem triste,
destrutiva e frágil, mas deliciosa de se olhar quando completa.

Meu quadril se move contra ele espontaneamente, buscando por


alívio. Mergulhado em sua boca, esqueço do cheiro do outro homem ao seu
redor. Dom se torna uma memória distante, uma mera faísca no inferno que
queima entre nossos corpos.

Jude separa nossas bocas e traça uma linha de beijos pela minha
bochecha até alcançar o ouvido:

— Faça o que quiser comigo, como quiser. — Suas mãos repousam


em minha lombar e sobem pelas costas, puxando a camisa e o terno
maltratados para cima; suas unhas arranham a pele sensível sobre minha
espinha, fazem arrepios suaves me atravessarem. — Prove pra mim que
você é melhor que ele — sussurra de forma lasciva, em um tom sensual que
eu nunca tinha ouvido em sua voz.

Afasto meu rosto e o encaro. Ele está vermelho dos olhos ao pescoço.
Parece totalmente entregue a mim, aos meus braços; os lábios entreabertos
estão sedentos, chamam pelos meus. Não consigo ficar afastado por muito
tempo. Afundo em sua boca e esmago nossos corpos. Jude geme, rouco,
enquanto seu pau se esfrega junto ao meu em nossos abdomes.

Sigo estocando o espaço vazio entre nossos corpos, roçando nossas


peles, pelo tempo necessário até impregnar sua boca com meu gosto, até
não saber mais a diferença entre sua língua e a minha, até o cheiro de Dom
desaparecer completamente do quarto, dos lençóis, de sua pele. Quando me
afasto, fico de joelhos sobre a cama e observo o homem sob mim, cada
mínima fibra de seu corpo grita que é meu, cada mínimo suspiro e inspiração
clama por mim. Sua pele está embebida no meu cheiro, assim como estou no
dele.

Abro minha camisa com pressa, praticamente puxando os botões.


Deslizo-a sobre os ombros e pelos braços junto com o terno, e os atiro longe
no chão. Sento na ponta da cama. Jude se apoia nos cotovelos para me
observar. Retiro os sapatos, a calça e todo o resto que ainda me impedia de
estar totalmente pelado, exposto a ele como ele está exposto a mim.

Vejo o olhar de contemplação de Jude sobre mim, sobre a cicatriz em


minhas costas, sobre as marcas em meus ombros das vezes em que os
desloquei, sobre os pelos em meu peito, sobre meu abdome rijo e então
sobre a ereção dolorosa logo abaixo.

Ele descansa a cabeça no colchão quando me debruço sobre seu


corpo outra vez, pedindo espaço entre suas pernas de forma mais grosseira,
exasperada.

— Sim, é isso que eu quero — ele grunhe contra meu rosto quando
beijo seu pescoço. Provo sua pele oleosa pelo suor, seu gosto salgado
preenche minha língua. — Tudo em que eu pensava era no momento em que
você estaria sobre mim, em que você estaria dentro de mim. — Ele aperta os
fios curtos e arrepiados da minha nuca, puxa-os para trás. Pulo em sua boca
ferozmente, irritado por ter sido interrompido. Ele morde meu lábio inferior, me
obrigando a me afastar. Encaro-o confuso até ele pegar minha mão esquerda
e levá-la ao próprio pescoço. Força meus dedos a envolverem sua garganta.
— Pode me enforcar se quiser. Sei que você gosta. — Volta a encerrar a
distância entre nossos lábios. — Quero fazer tudo o que você gosta — diz
entre um beijo agressivo e outro.

Que assim seja.

Aperto os dedos em seu pescoço, sentindo a pulsação das jugulares


sob minhas digitais, a traqueia logo abaixo da minha palma. Jude grunhe e
arqueia as costas, mas mantém o olhar preso no meu. Não aperto o
suficiente para retirar lágrimas de seus olhos, ainda não.

— É isso que sou pra você? — murmuro quando meus dedos relaxam,
minha consciência ainda tentando o melhor para entender suas intenções. —
Um pau ambulante?

Jude assente, sem pensar demais. Olho no fundo dos seus olhos,
buscando algum sinal de que é mentira, mas não encontro. As íris continuam
frias e cintilantes; o corpo permanece inquieto, buscando por mais do meu
toque. Sequer sei se ele é capaz de mentir neste momento.

Achei que ficaria triste, mas a verdade é que não sinto nada. Não
estou zangado, frustrado ou decepcionado. Não é a primeira vez que uma
pessoa me trata deste jeito. Olivia era igualzinha, e veja onde chegamos.
Veja onde estou chegando por Jude.

Parece que tenho um fraco por pessoas que só querem me usar. Me


convenço de que estou farto disso até foder uma delas outra vez. Então me
esqueço de tudo, volto à estaca zero, volto a ser o mesmo otário de sempre.

Mas não desta vez.

Jude tenta me beijar, mas aperto sua garganta, mantendo sua cabeça
bem presa no colchão. Ele esganiça, sem ar.

— Então é isso que vou te dar: — digo firmemente — um pau. —


Encosto meu nariz no dele. — É a única coisa que terá. Nada de conversa
fiada. Nada de assuntos desnecessários. Nada de conhecer meu passado.
Nada de amor. — Minha voz fica mais ríspida, seca, a cada frase. No final,
quase não a reconheço mais.

Solto sua garganta. Jude não perde um segundo sequer: impulsiona


meus ombros para trás com toda a força e me vira na cama. Monta sobre
mim, com cuidado para não sentar diretamente sobre o meu pau. O membro
fica ereto contra sua bunda, a cabeça roçando sua lombar.

— Isso deveria me incomodar? — Espalma meu peito, esmagando-o,


e inclina o pescoço para o lado, me observando com um olhar devasso,
cinicamente atraente. — Deveria, uh?

Move o quadril para cima e para baixo, minha ereção deslizando em


suas costas. Ele morde o lábio e estufa o peito, curvando-se como se fosse
penetrado.

— Acha que pode me punir desse jeito? — pergunto. — É isso que


você quer? Me deixar mal?

Jude soca meu peito. Um gemido abafado me escapa com a dor, meus
pulmões ficam sem ar por um segundo. Agarro sua cintura, afundando meus
dedos em sua carne. Sua pele fica vermelha sob meus dedos pesados.
Minha ereção começa a se tornar insuportável, especialmente quando ele
esfrega a bunda contra ela desta forma.

Suas mãos se mantêm firmes em meu peito enquanto ele se curva


sobre mim, aproximando os lábios dos meus. Para a um, talvez dois
centímetros de distância.
— Se é isso que vou ter — sussurra —, então que seja.

E desliza para baixo, rastejando sobre mim lentamente. Mantém meu


olhar preso no meu como um ímã, acelera meu coração como uma dose de
adrenalina, me faz perder a cabeça de cima — a de baixo, já perdi há muito
tempo.

Ele se arrasta para trás até estar de cara com meu membro outra vez.
Agora, não há brilho dócil em seu olhar, não há submissão ou qualquer
merda no meio. Há apenas um desejo ardente de brincar comigo, de me fazer
gemer e tremer sobre a cama, de fazer minhas costas se curvarem para
cima, de arrancar suor dos meus poros e gritos roucos da minha garganta. Há
apenas Jude e o sadismo que o faz me machucar, para então reparar, para
me machucar outra vez. Estou lutando um novo tipo de luta desde que saí do
ringue e sequer percebi. E se não tomar bastante cuidado, vou acabar com a
segunda derrota consecutiva.

— Me dê tudo, menos amor — diz.

Jude lambe toda a extensão do membro antes de engoli-lo.


DEIXE TOCAR
engatinhe no fundo do poço meu amor
vou te deixar me lamber do chão até a cabeça
porque tô sedento pelo seu amor
e você pode me chamar de puto
[..]
tudo em que eu consigo pensar
é em como você é meu agora
você e eu na minha cama à meia-noite
e você pode me chamar de puto
gimme — BANKS

LÍNGUA DE JUDE TRABALHA com ainda mais agilidade do que antes.


A
Começo a duvidar se sua boca não foi feita exatamente para isso. Ele troca
um olhar ou outro comigo enquanto chupa, desce meu pau em sua garganta
vez ou outra e se engasga. Posso ver em seus ombros que está muito mais
relaxado do que quando fez isso pela primeira vez. Posso ver pela forma como
seu quadril se empina e como esfrega o rosto no membro quando o tira da
boca que está tão excitado quanto eu.

Ele me segura com uma das mãos e desliza um pouco mais para baixo
na cama. Abro as pernas sutilmente para acomodá-lo enquanto ele apoia os
dois braços ao redor dos meus joelhos. Aproxima a face do local onde
minhas bolas se juntam ao corpo do membro. Engole uma de cada vez, o
olhar hipnoticamente preso no meu.

Suas íris podem ser frias, mas sua boca é quente — e toda minha. Sua
língua é ágil também, e reprimo o desejo de questionar onde aprendeu a
movê-la desta forma. Ele realmente nunca chupou outro cara antes de mim?
Ou essa foi apenas mais uma de suas mentiras?

Me puxa com os lábios, esticando a pele sensível até o limite; um


desconforto prazeroso espalha-se pela parte inferior da minha pelve. Jude
então retira as bolas da boca e volta se concentrar no pau. Sua língua toca a
base e sobe junto da protusão da uretra até envolver a cabeça e engoli-la
outra vez.

Arfo roucamente, fecho os olhos e bato a cabeça contra o colchão.


Minha mente fica enevoada, desnorteada diante de todas as sensações que
ele me provoca. Movo a cintura na direção de sua boca, fodendo-a. Jude é
resiliente, só resiste quando o ar começa a lhe faltar.

Ouço um toque de celular ecoando próximo da minha cabeça. Abro os


olhos e fito a mesa de cabeceira ao lado da cama. O aparelho de Jude está
com a tela acesa.

— Seu celular tá tocando — murmuro para ele, e estico um braço para


alcançá-lo. — Deixa eu—

— Deixe tocar — dita. Depois, engole meu pau inteiro de uma vez.
Deixo o braço inerte no ar e fecho os olhos. Sinto o aperto suave e morno de
sua garganta até ele retirá-lo outra vez. — Não pense que vai sair daqui
antes de me dar leite, Kim — murmura enquanto passeia a língua pela lateral.

Observo seu olhar safado e o sorriso cínico que ele me dá antes de


engolir tudo novamente. O toque irritante do celular desaparece entre os sons
molhados e indecentes de sua boca.

Volto a relaxar sobre os lençóis, deixando Jude fazer o que quer.


Nunca me senti tão entregue a uma pessoa antes, nunca senti como se
pudesse explodir com um simples olhar, gozar com um simples sorriso.

Ele desliza uma das mãos sobre meu abdome até alcançar meu peito.
Pinça um dos meus mamilos entre o polegar e o indicador, ambos úmidos. A
sensação elétrica dentro de mim apenas se intensifica, o calor que me
cozinha de dentro para fora torna-se cada vez mais insuportável, mais e mais
próximo de se libertar. Meus joelhos começam a se inquietar, meu peito sobe
e desce mais intensamente, suor escorre do meu corpo pelo esforço em me
manter sob controle, meus músculos se tensionam, meus dentes cerram.

Jude percebe a mudança no meu corpo; me encara com um brilho


sugestivo no olhar. Parece satisfeito em me deixar desta forma e, ao invés de
diminuir a velocidade, o ritmo, a intensidade dos movimentos de sua língua,
da boca e das mãos, ele os acelera, intensifica, exacerba. O estímulo me faz
curvar as costas e a nuca em sua direção. Meus lábios se entreabrem. Estou
próximo de pedir para que pare antes que seja tarde demais quando ouço
seu sussurro lascivo:

— Goza na minha boca. No provador, fomos interrompidos. No carro,


você gozou no meu rosto. Desta vez, quero provar a sua porra.

Minha boca seca quando vejo seu rosto parcialmente encoberto pela
minha ereção. Ele a coloca de volta na boca lentamente, sem desviar os
olhos dos meus. Me estimula em lugares delicados com os dedos, acelera a
velocidade do vai e vem gradualmente e não afasta mais os lábios de mim
até ter exatamente o que pediu.

Não consigo me controlar por muito tempo, não diante do ímpeto de


Jude em me fazer gozar, não diante de sua completa devoção ao ato, ao seu
empenho em sentir o meu gosto.

Então, com um grunhido que beira o animalesco e uma tensão


crescente em minhas bolas, um fervor descontrolado em meu baixo-ventre,
um contrair doloroso em meu pau, gozo dentro dele. Me curvo mais ainda à
frente, praticamente sentando na cama. Agarro os fios longos de sua nuca e
empurro sua cabeça contra minha pelve. A cabeça do pau desliza do céu de
sua boca à garganta, e meus jatos se acumulam ali. Aperto bem os olhos até
liberar toda a tensão dentro de mim, até me sentir completamente exausto e
livre, vazio, absorto em meu relaxamento pós-gozo.

Abro os olhos para encontrar o olhar choroso de Jude centrado em


meu rosto. Meus dedos relaxam em sua nuca e ele a curva para cima,
afastando os lábios do membro, mas mantendo-o preso entre as mãos. Me
encarando, engole, depois inspira fundo. Desvia os olhos para o lado
rapidamente, um tanto retraído. Talvez realmente nunca tenha feito isso
antes.

Toco a lateral de seu rosto e o puxo para mim novamente. A


contemplação não sai da face de Jude, mesmo quando o beijo, mesmo
quando minha língua invade sua boca e explora os mesmos lugares pelos
quais acabei de me derramar. Ele envolve meu pescoço com os braços e se
ajusta, sentando no meu colo. O quadril nu, pesado e quente se esfrega no
meu; nossos paus masturbam-se entre os abdomes — o traço residual de
porra no meu se mistura ao líquido pré-gozo do dele.

Quando nossos rostos se afastam, ele sussurra:


— Acha que ainda tem gás suficiente pra me comer? — E morde meu
lábio, lambendo logo em seguida o ferimento que abriu.

A dor faz minha ereção pulsar.

— Você não tem ideia.

Atiro-o de bruços sobre o colchão.


ASSOMBRADO
você tem um fogo dentro de si
mas seu coração é tão gelado
eu fiz algumas coisas que não posso dizer em voz alta
e tentei te afastar, mas você não se move
então, já que está aqui, por que não mergulha fundo nisso?
estou aqui esperando que você o faça
haunting — halsey

NCARO O TETO ESCURO DO quarto, ouvindo o som baixo e constante do


E
balançar das cortinas contra a brisa da madrugada. Além desse som, há
apenas o ruído suave da respiração de Jude, e a minha própria, no cômodo
silencioso.

O loiro caiu no sono logo depois de gozar, uma hora atrás, e estou me
acostumando com isso. Me acostumando ao seu corpo, aos seus hábitos, às
suas peculiaridades — que não são poucas. Estou me acostumando, mas
com um sorriso no rosto.

Apoio a cabeça no travesseiro com uma das mãos; a outra, descanso


sobre minha barriga. Meu corpo está relaxado, mas insone. Minha mente dá
voltas e voltas, acumulando pensamentos, questionamentos e teorias que
afastam o sono, mas que não me deixam acumular a força necessária para
deixar o quarto — embora eu sequer saiba se quero deixá-lo esta noite.

Jude certamente gostaria que eu ficasse, mesmo que não tenha dito
em voz alta. Ficaria satisfeito em acordar pela manhã e me ver aqui. E, o
mais incrível disso é que... quero satisfazê-lo. Quero arrancar um sorriso
bobo de seu rosto e fazer seu coração palpitar. Quero segurá-lo em meus
braços e fazer exatamente o que Dom me disse: “não deixe que outras
pessoas façam com ele o que acabei de fazer”. Quero protegê-lo de qualquer
outro que se aproxime.
Viro calmamente em direção a Jude, apertando mais a cabeça contra a
mão sobre o travesseiro. Observo seu rosto por alguns segundos, os lábios
finos levemente entreabertos, as mechas douradas que caem sobre o rosto,
as bochechas pálidas. Desço o olhar para seu pescoço, para as marcas que
deixei ali com a boca, sinalizando que é meu, somente meu — ao menos na
minha cabeça, ao menos até ele cobri-las com maquiagem pela manhã.

Aproximo os dedos de seus fios e afasto os que estão sobre a face,


entocando-os atrás da orelha. A expressão calma e vulnerável que ele tem
quando dorme é tão diferente da frieza e arrogância de quando está
acordado. Às vezes, quando transamos, vejo essa mesma calma e
vulnerabilidade reluzindo em seus olhos, e me questiono se não estou
delirando, se há realmente uma falha em sua armadura de gelo.

Eu quero satisfazê-lo, mas não tenho certeza se deveria. Não tenho


certeza se deveria me aprofundar mais nesta maré, mais do que ele já me
obriga. É como trabalhar junto à correnteza para que ela me afogue, trabalhar
junto aos tubarões para que me devorem. Não há cenário algum em que
nossa relação tem um final feliz; não há cenário em que terminamos juntos.

É isso que vou te dar: um pau. É a única coisa que terá. Nada de
conversa fiada. Nada de assuntos desnecessários. Nada de conhecer meu
passado. Nada de amor. Uma risada silenciosa deixa meus lábios. Que
hipócrita, Kim Henney.

Não consigo sequer enganar a mim mesmo. Sei que o que sinto por
Jude é mais do que carnal, mais do que físico. Talvez ele só se interesse pelo
meu corpo, mas não sou desse jeito, não sou programado para ter fodas
descartáveis e seguir em frente. Sou mais complicado do que isso. E se ele
se incomoda tanto com meus ciúmes, que pena.

Meus dedos deslizam de seus cabelos até os ombros expostos,


minhas digitais dançam sobre a pele anormalmente fria mesmo num dia
morno como este.

Meus dedos formam círculos invisíveis sobre os ossos de seus


ombros, então trilham um caminho por suas costas seguindo a depressão de
sua coluna. Sinto o expandir e comprimir de seu peito pela respiração; algo
dentro de mim desperta com este toque.

Meus dedos seguem a espinha até a lombar e param ali, traçando


linhas em ziguezague. Quero tocá-lo com mais força, mas tenho medo de
acordá-lo. Ele parece tão em paz enquanto dorme, não quero retirá-lo disso.
Não quero machucá-lo, não quero vê-lo sofrer. E tenho a impressão de que
Jude está em constante sofrimento quando está acordado.

Engulo em seco. Esse pensamento faz meus dedos se afastarem dele.


Volto a deitar de costas na cama, observando o teto escuro.

Essa é a mesma coisa que sinto por Olivia? É possível amar duas
pessoas dessa forma ao mesmo tempo? Se eu continuar ao lado de Jude,
Ollie vai desaparecer da minha mente? Finalmente conseguirei romper todos
os meus laços com os Snakes? Finalmente conseguirei proteger minha
família?

Fito Jude de relance. Ele é parte da minha família também?

Se eu o amar, ele vai me abandonar também? Como Olivia fez no


ringue? Como minha mãe fez anos atrás?

Sacudo a cabeça. Estou ficando paranoico demais, preso demais em


meus próprios pensamentos. Sento-me na cama, fico de costas para Jude e
escondo o rosto com as mãos. Tentar nos sabotar desta forma também não
ajudará em nada. Suspiro. Pego meu celular da mesa de cabeceira, ao lado
do aparelho de Jude — que tocou várias vezes durante a noite e foi
prontamente ignorado em todas elas.

1h17. Foi uma noite longa. Graças a Deus amanhã é domingo.

Estico o pescoço para trás para fitar o homem nu, de bruços sobre os
lençóis. Eu quero dormir ao seu lado, mas não vou. Não ainda. Há tanto que
ainda preciso descobrir sobre ele, tanto que preciso entender antes de fazer
isso. Saber que sinto algo por Jude é diferente de escolher me entregar ao
sentimento, é diferente de pular de cabeça em sua maré agitada e profunda,
em sua maré cheia de tubarões.

Levanto da cama e, de pé, sigo observando-o por mais alguns


segundos. Enquanto o momento de me entregar não chega, serei seu chofer,
seu segurança pessoal, cumprirei meu contrato, tentarei satisfazê-lo sem
entregar tudo de mim no processo.

Pego minha calça atirada no chão, os sapatos, a camisa e o terno.


Silenciosamente, visto as peças de baixo. Estendo as de cima contra a luz da
varanda e percebo que os tecidos estão completamente fodidos, sujos de
sangue. Não sei como Jude conseguiu se esfregar em mim daquela forma
sem vomitar — outra prova de seu autocontrole sobre-humano.

Observo a vista além da varanda, as cortinas balançando contra a


brisa. Posso simplesmente sair daqui sem camisa e dirigir até em casa.
Duvido que alguém vá me parar na rua e questionar por que há um homem
dirigindo um sedan descamisado na madrugada de Nova York.

Ainda assim, isso não é exatamente o meu estilo.

Analiso a camisa outra vez. Está mesmo deplorável. Me volto a Jude


adormecido nos lençóis impregnados com nossos cheiros, e então ao
banheiro na parede mais distante. Meus olhos viajam até a porta espelhada
do closet.

Nunca entrei lá, mas não faria mal pegar uma camiseta emprestada,
certo? É parte da minha recompensa por fazê-lo gozar. Sorrio. Além disso,
devolverei a camiseta amanhã — e não é como se ele fosse sentir falta de
qualquer jeito.

Dou de ombros; guardo a carteira, as chaves do carro e o celular nos


bolsos da calça; atiro a camisa e o terno sobre os ombros e caminho até o
closet. Deslizo a porta espelhada. O interior do cômodo está escuro, a luz da
varanda não chega até ali com facilidade. Não posso usar o interruptor, então
apanho meu celular do bolso e uso sua lanterna para iluminar o ambiente.

Um arfar de surpresa escapa dos meus lábios. Fico parado na porta


por vários segundos até ter certeza de que meus olhos não estão me
enganando. Sou um idiota por ainda me impressionar com esse tipo de coisa.

O closet tem o tamanho de um segundo quarto, seu interior é muito


maior do que a pequena porta de deslizar deixa a entender. Há galerias e
galerias de roupas nas paredes, prateleiras de sapatos tão altas que
precisam de escadas para serem acessadas, um grande suporte circular
giratório no centro acumulando — o que acredito ser — suas peças
preferidas. Os ternos, camisas, calças e outras peças de alfaiataria estão na
parede à minha direita. As roupas casuais estão na parede esquerda.

Caminho para o interior escuro do espaço. Contemplo o cômodo que,


como Jude, guarda mais segredos dentro de si do que o exterior leva a
acreditar.
Ele iria gostar se eu dissesse em voz alta que se parece com um
closet?

Aperto os lábios enquanto passeio os olhos pelas centenas de


cabides, suportes e gavetas recheados de roupas suficientes para
preencherem uma loja de varejo. Inspiro fundo. Só quero a merda de uma
camiseta, nada mais.

Volto-me à direita, na direção das peças formais. Ele tem ao menos


uma dezena de camisas sociais brancas idênticas, todas do mesmo tamanho,
tecido e estilo. Retiro uma qualquer do cabide, verifico o tamanho. Jude é
dois números menor que eu. Abro os botões e passo a camisa pelos braços.
O tecido é resistente e confortável, não amassa — diferente das minhas
camisas baratas. Ela passa pelos meus braços com uma leve resistência,
mas passa. Ajeito o colarinho, fecho quatro dos seis botões. Serve bem o
suficiente para a viagem curta que farei até em casa.

Preciso ensaiar o que direi a ele quando devolver a peça.

Me preparo para deixar o cômodo, mas meus pés não se movem.


Tenho a sensação de estar deixando alguma coisa passar batida, algo que eu
deveria ter percebido, mas não o fiz; um vulto no canto da minha visão.

Meu olhar paira de relance sobre a fileira de camisas sociais. Encaro


as nove peças restantes em seus cabides, e ilumino-as com a luz da lanterna
do celular. Mas que merda?, murmuro sem voz em direção a uma — pasmo
— porta entreaberta logo atrás dos cabides. Franzo tanto a testa que chega a
doer.

Me aproximo da porta cautelosamente, me sentindo como um bandido


invadindo uma casa. Olho ao meu redor no closet vazio. Não há mais nada
estranho, nada que chame minha atenção como esta porta.

Devo empurrá-la e ver o que esconde? Devo violar a privacidade de


Jude desta forma? Ele é calculista; se quisesse que eu soubesse o que há
aqui, teria me contado. Se não sei, é porque não julga ser importante ou
porque quer esconder de mim.

Paro de me aproximar da porta. Talvez seja só um cofre ou algo


valioso. Uma coleção de relógios caros, talvez; ou alguma coisa tão supérflua
quanto as peças de roupa ao meu redor.

Mas quem guarda relógios atrás de uma porta dentro de um closet?


E se esta for mais uma situação como a da esposa? Mais uma coisa
que eu deveria saber? Mais uma coisa que pode me machucar?

Não posso permitir que outra situação como aquela se repita, não
depois que entrei em paz com meus sentimentos por Jude. Ele me arrastou
para dentro de sua vida, então é meu direito descobrir o que puder sobre ela,
mesmo que não seja da boca dele.

Caminho até a porta do closet e estico o pescoço para fora, na direção


da cama. Goldman está adormecido na mesma posição de antes, sua bunda
branca empinada em minha direção. Espero que esteja num sono bem, bem
profundo.

Expiro fundo. Volto a me aproximar da porta. Seguro o celular com os


dentes, de modo que fico com as duas mãos livres para afastar os cabides
das camisas e deixar meu caminho até a entrada semiaberta na parede
totalmente livre.

A maçaneta é retangular e prateada. Engulo em seco antes de tocá-la


e empurrá-la. A porta se abre lentamente, sem fazer um chiado sequer. Meu
coração acelera. Retiro o celular da boca e aponto a lanterna na direção da
penumbra do outro lado.

Um calafrio atravessa minha espinha.


outro cômodo dentro do closet: uma sala de
P O R TA S E A B R E PA R A E X P O R
A
tamanho médio, sem janelas ou mobília. É apenas o espaço entre quatro
paredes. Inclino-me mais em sua direção, mas sem passar de fato pela porta.
Mantenho uma distância segura.

Na parede em minha frente, do outro lado da sala, vejo a coisa mais


interessante e intrigante sobre o cômodo secreto: um quadro branco
pendurado na parede. É cheio de retratos, fotografias e desenhos; linhas
vermelhas, azuis e verdes conectam-nos numa espécie de rede.

Me inclino mais na direção da sala.

São, pelo menos, cinquenta rostos retratados no quadro, presos por


agulhas ou pinos. Sobre o chão, há pilhas e pilhas de papéis espalhadas.
Vejo imagens de câmeras de segurança e recortes de jornais colados às
outras paredes.

A sala inteira parece um grande quebra-cabeça; fico mais desnorteado


a cada novo detalhe que percebo.
Meu corpo se aproxima inconscientemente — curiosidade mórbida
queima dentro de mim. Quero pular dentro da sala, me trancar e analisar tudo
antes que Jude acorde.

Mas, quando esse pensamento cruza minha mente, sinto um toque em


meu ombro.

Me sobressalto. Um grunhido de susto me escapa.

Viro-me para encontrar um Jude pelado logo atrás de mim. Seus olhos
sombrios e rosto encoberto por sombras me fitam de forma perturbadora,
aterrorizada, como se estivesse diante de seu pior pesadelo.

Fico paralisado. Não tenho ideia do que dizer, como dizer, como reagir
sem exaltá-lo demais.

O silêncio entre nós torna-se afiado, asfixiante. Jude interrompe-o


quando se aproxima da porta e puxa a maçaneta bruscamente, fechando-a.
Puxa também os cabides que afastei, terminando de encobrir a entrada
camuflada na parede do cômodo.

Dou um passo para trás.

Posso ver a tensão lancinante em seus ombros, a forma como cada


fibra em seu corpo está contraída.

Ele se vira lentamente para mim e murmura:

— Você não devia ter visto isso.


INIMIGO
perfurei a agulha e a inclinei
você está me fazendo implorar por um fio
pra costurar esse buraco que abriu na minha cabeça
estupidamente achando que tem tudo sob controle
se amarrando a algo que não entende
não tinha ideia da merda em que estava se metendo
você devia ter desconfiado
[...]
minhas palavras podem sair como projéteis
e não sou muito bom em mirar
mas posso mirar em você
beggin for thread — BANKS

do closet e desliza a porta espelhada às suas


U D E M E P U X A PA R A F O R A
J
costas, fechando-a. Sua respiração está exasperada. Ele não está apenas
defensivo, está completamente apavorado, como em uma situação de vida ou
morte. Posso ver as veias dilatadas em sua testa, o leve tremor em seus
braços.

— Jude? O que é isso? — pergunto, desconfiado.

Tento me aproximar da porta do closet novamente, mas ele se vira e


me empurra para longe bruscamente. O golpe faz uma leve descarga de dor
se espalhar pelo meu peito.

Goldman se retrai contra a porta espelhada. Seu olhar está congelado,


como se eu estivesse prestes a estripá-lo.

— Saia daqui — diz tenso, áspero.

Nego com a cabeça. Volto a tentar me aproximar, mas ele se retrai um


pouco mais. Interrompo minhas investidas. Tocá-lo agora talvez seja uma
péssima ideia.

— Por que está agindo desse jeito?


Fito profundamente seus olhos arregalados, o semblante abalado. Há
algo muito, muito errado com aquela sala para deixá-lo neste estado.

Jude continua guardando a porta como se sua vida dependesse disso.

— Você não deveria ter metido o nariz em assuntos que não são seus
— cospe, exaltado. — Eu te avisei um milhão de vezes pra não fazer esse
tipo de merda.

Semicerro os olhos em sua direção, minha mente ocupada com mil e


uma possibilidades do que pode ou não estar acontecendo aqui neste
momento. Mas o que sai da minha boca é a resposta mais simples em que
consigo pensar:

— Você é um assunto meu.

E observo claramente algo se quebrar dentro de Jude. Ele inclina o


corpo para trás, como se tivesse sido esmurrado. O peito para de se mover.
O rosto fica inexpressivo, até engolir em seco. A saliva desce por sua
garganta, espalhando pelo pescoço e pelos ombros um tremor que ele tem
dificuldade de controlar.

Quando volta a respirar, rosna:

— Seu cão insolente.

A ofensa passa por mim como uma lufada de vento. Olho para o meu
próprio reflexo na porta espelhada atrás de Jude, a camisa dele cobrindo meu
torso, minha própria camisa ensanguentada jogada sobre os ombros.
Lembro-me da sensação enlouquecedora de saber que ele estava com outro
homem, da dor por ter sido esmurrado, do prazer em tê-lo nos meus braços
apenas algumas horas atrás. Olho para mim, e parte do que vejo é ele.

E então observo o homem mortalmente aterrorizado em minha frente,


próximo de um colapso nervoso por seja lá o que as coisas dentro daquela
sala signifiquem. Não quero machucá-lo, mas preciso entendê-lo.

— Escuta — balbucio num tom mais brando, tentando acalmá-lo. Ergo


as duas mãos no ar em sinal de rendição e dou alguns passos para trás,
deixando algum espaço para ele respirar. — Eu quero saber mais da sua
vida. — Paro e penso um pouco. — Quero ser mais pra você do que um pau.
Mas essa é uma via de mão dupla, Jude. Você também precisa colocar algum
esforço aqui.
Ele não se mexe, não respira, não pisca por vários segundos. Fica
parado junto à porta como uma estátua, ruminando.

Quando fala outra vez, não há mais traços de medo, de susto, de


nada. Apenas uma calma gélida e sombria.

— Saia da minha casa.

— Jude, eu não tô pedindo muito aqu—

— Não me ouviu? Saia daqui! — grita do fundo dos pulmões.

Sua voz ecoa pelo quarto, pela varanda, pela casa. A hostilidade me
faz cair na real do que está acontecendo aqui: Jude não está disposto a
colocar o mesmo esforço que eu nesta relação. Na verdade, não está
disposto a colocar esforço algum. E eu sou o otário por achar que pudesse
estar.

Assim como imaginei, não sou muito mais para ele do que um animal
de estimação.

Assim como imaginei, tenho um impulso masoquista em me aproximar


de pessoas que só querem me machucar.

Assim como imaginei, depois que eu mergulhasse de cabeça nisso, ele


iria me abandonar na primeira oportunidade.

Assim como imaginei, não era uma boa ideia dormir ao seu lado.

E todas essas conclusões me esgotam. Dou uma última olhada no


rosto vazio de Jude.

— Não sou seu inimigo — murmuro por fim.

— Deveria ser — rebate, a voz melancólica, mas também cruel.

Saio do apartamento com sua voz ecoando na minha cabeça. Não


posso vê-lo, mas tenho certeza: Jude permanece no quarto guardando a
porta do closet até a minha saída, até ouvir o som da porta se fechando às
minhas costas.
CAMINHO AT É O é tortuoso e cheio de obstáculos.
E S TA C I O N A M E N T O
O
Pareço um boneco ventríloquo, sem controle sobre meus passos, meu
corpo, minha mente. Tudo em que consigo pensar é no quão furioso estou
com Jude e no quão frustrado fico por estar furioso, no quão desnorteado ele
sempre me deixa.

Soco, chuto e bufo contra as paredes do elevador enquanto desço.


Seguro meu celular com força na esperança de que vibre, de que Jude me
chame de volta em algum momento. Mas as portas se abrem e nada
acontece. As portas se abrem e me vejo de volta na penumbra do
estacionamento, em meio às dezenas de carros desligados do bilionário lá
em cima.

Eu estava certo desde o começo. Isso não vai funcionar. Somos


diferentes demais, de mundos separados. Ele quer destruir a própria tia, eu
quero protegê-lo disso. Ele quer me usar, eu quero que dependa de mim. Ele
quer latir ordens e me ter nas pontas dos dedos, eu quero que sinta de volta
o que sinto. Era uma situação fadada ao fracasso desde o começo.
Caminho a passos largos e pesados até o sedan. Destranco-o e me
atiro contra o banco do motorista. Minha cabeça começa a doer: a
combinação da coronhada com a exaustão do sexo e o estresse da briga me
deixa fragilizado. Preciso voltar para casa e dormir. Esquecer de Jude, desse
contrato de merda. Preciso de algum conforto; de algo que relaxe a tensão
em meus ombros, que desfaça o nó doloroso em minha garganta. Eu preciso
de alguém.

Suspiro, apoio a cabeça no banco e aperto o volante. Eu sei de quem


preciso, mas sequer mereço tê-la depois do que disse? Depois do que pedi?

Abro a lista de contatos em meu celular, pairo o olhar ansioso sobre o


número da última ligação no aparelho.

Se eu fizer isso, vou conseguir dizer adeus uma segunda vez? Vale a
pena reabrir uma ferida que apenas começou a se fechar?

Os nós dos meus dedos ficam brancos. Isso é meu impulso


masoquista tomando conta de mim novamente? Aperto os olhos. Que se
foda.

Ligo para o número.

É quase 1h30 da manhã. Sei que os sábados são os únicos dias da


semana em que Olivia tira folga do ringue; por isso, deve estar tentando
dormir o máximo que puder.

Mesmo assim, ela me atende depois de dois toques.

— Alô? — sua voz sonolenta e baixa soa do outro lado.

— A proposta que você me fez antes... — cerro os dentes e encaro a


escuridão em minha frente — ainda tá de pé?
O MAIOR PAU DE TODOS
eu peço a Deus que ele me faça sentir bem
que Ele me deixe viver, ao menos, mais essa noite
[...]
as suas sombras me perseguem e me assombram
pra onde você foi? essa alma aqui é solitária
estou ajoelhado, implorando por favor
tão estupidamente bêbado de amor por essas lembranças
Mãe Maria por favor, tenha misericórdia de mim
o sol já nasceu e não acredito que ele já me superou
enquanto ainda não consegui esquecê-lo
pray — bebe rexha

sua porta. Afasto meu punho logo em


M P O U C O H E S I TA N T E , B AT O E M
U
seguida e escondo-o no bolso da frente da calça. Inclino meus ombros para
frente e encaro o chão. A lua está cheia no céu; minha sombra se projeta pelo
corredor do andar até a porta de madeira.

Estou estranhamente acanhado, mesmo que isso tenha sido ideia


minha. Quero tirar Jude da minha mente, mas não quero ser um incômodo
para Olivia, especialmente por não saber em que pé nossa relação está —
isso não ficou muito claro pelo telefone. Se ela aceitou me receber no meio
da madrugada, posso acreditar que estamos bem mesmo depois da minha
tentativa de acabar tudo?

Sou patético. Estou correndo direto para os braços da mulher que


tentei afastar, para os braços da organização da qual acabei de escapar.
Talvez eu mereça toda a dor, fúria e mágoa que Jude me provoca.

A porta permanece fechada mesmo depois de vários instantes. Olivia


deve ter caído no sono outra vez. Eu não deveria estar sendo tão
inconveniente de qualquer forma — um banho frio deve afastar minha mente
de Jude por tempo o suficiente para dormir. Coço a nuca e viro em direção ao
elevador do andar, frustrado, mas compreensivo.
A porta então se abre atrás de mim. Paro imediatamente e me volto a
ela.

Olivia está bem ali, exasperada, como se sentisse que eu estava


prestes a ir embora. Ela se apoia na porta e na parede. Me observa
intensamente, o rosto contemplativo e sorridente ganhando mais vida a cada
segundo que passamos nos encarando.

Veste uma camisola prateada, de alças finas e que desce até o meio
das coxas. Os fios longos descem atrás da cabeça. Os pés estão descalços.
Posso ver as tatuagens que cobrem os braços, a parte superior do peito e se
projetam às escápulas como uma voraz cobertura de tinta sobre sua pele
marrom-escura. A familiar — e maldita — serpente está em seu pescoço,
como se se enrolasse e estrangulasse a jugular dilatada.

Sua jugular está dilatada, seu coração está acelerado. O pensamento


faz algo quente despertar dentro de mim: a familiaridade de estar na sua
companhia, de estar com ela fora do ringue.

Eu costumava passar aqui uma ou duas vezes por semana, mas só


quando combinávamos, quando ela não estava ocupada com algum outro
assunto importante — quando não estava com outro cara qualquer —, e
sempre me sentia assim: com um frio no estômago, um medo de me tornar
um incômodo. Ela sempre fazia esse desconforto ir embora com um sorriso,
com um piscar sugestivo de seus olhos, com seu tom calmo.

— Você veio mesmo — ela atesta, mais para si mesma do que para
mim.

Aproxima-se rapidamente e me abraça no meio do corredor. Seus


braços finos e quentes envolvem meus ombros e meu pescoço, a lateral de
seu rosto cola-se ao meu, seu peito esmaga-se contra o meu, seu cheiro
natural — de pinho e lavanda — me penetra. Envolvo sua cintura com os
braços instintivamente, sentindo a pele macia e cálida em meus dedos.
Aperto-a mais contra mim, afundando o rosto em seu pescoço, aspirando
tanto de seu cheiro familiar quanto posso de uma vez só. Seus dedos
brincam em minha nuca, entrelaçando-se aos meus cabelos. Quando meu
nariz se arrasta pela pele sensível de seu pescoço, ouço uma risada sutil e
abafada.

Ela afasta os braços dos meus ombros, e meus braços desfazem o


abraço em sua cintura. Suas mãos tocam meu rosto e seguram-no bem
próximo ao seu por algum tempo. Seus olhos castanho-claros fitam os meus
com um interesse genuíno. Olivia é mais baixa, então curva a nuca para cima
sutilmente.

Quando acho que ela está próxima de me beijar e me questiono se o


gosto de seus lábios será tão familiar quanto seu cheiro, ela se vira e me
puxa por uma mão para dentro do apartamento. Fecha a porta atrás de nós e
a tranca, me leva até o sofá da sala em seguida. Sem largar minha mão, se
senta comigo.

Quando seu olhar retorna ao meu rosto, franze o cenho bruscamente.

— O que aconteceu? Está com dor? — pergunta. Seus dedos voltam a


tocar minhas bochechas, o olhar fixo em meu nariz.

Nego com a cabeça e fico confuso até tocar meu próprio rosto no
espaço entre o lábio superior e o nariz e sentir o líquido morno escorrendo
das narinas.

Olho para meus dedos ensanguentados e aperto os lábios fortemente.

— Merda... — murmuro entredentes.

Olivia esfrega o local sob minhas narinas com o polegar, limpando as


gotas residuais de sangue.

— Não se preocupe, vou cuidar disso.

Ela se levanta do sofá e caminha até a cozinha no cômodo adjacente à


sala. Observo suas costas enquanto cubro o nariz com a mão, evitando que
mais sangue acabe escorrendo. Aquele mafioso filho da puta. Aspiro
fortemente, limpando as narinas. Quanto tiver a chance, vou deixá-lo num
estado muito pior.

Olivia retorna à sala depois de alguns segundos, traz consigo sua


maleta branca de primeiros socorros. Acomoda-se sobre o sofá esverdeado
ao meu lado e descansa a maleta sobre suas coxas. Ela toca minha
mandíbula com as duas mãos e me faz deitar a nuca sobre a extremidade do
sofá. Encaro o teto branco do apartamento, muito mais baixo do que o de
Jude. Não é um maldito apartamento de dois andares.

Pelos cantos dos olhos, vejo Olivia abrir a maleta e retirar os itens de
sempre: algodão, álcool e uma pequena gaze branca. Ela deixa a maleta de
lado e se concentra apenas no que tem em mãos: molha a gaze no álcool e a
aproxima do meu nariz. Esfrega a pele exterior, limpando-a. O cheiro é forte,
mas, depois de tantas lutas e ossos quebrados, já me acostumei. Ela tateia a
cartilagem no nariz e observa minhas reações cuidadosamente. Percebe
onde está deslocado e o local onde é mais doloroso. Seus lábios se curvam
para cima numa expressão de desgosto quando percebe que coloquei a
cartilagem de volta no lugar depois do golpe.

— Avisei pra não tentar fazer isso sozinho — resmunga, e afasta a


gaze. Inspiro profundamente, livre do cheiro de álcool.

— Sou bem grandinho, caso não tenha reparado — rebato com um


sorriso cínico. — Posso cuidar das minhas próprias feridas.

— Sim, estou vendo isso tão bem. — Olivia curva-se em direção à


maleta, retira mais alguma coisa de seu interior.

Observo suas costas e sua nuca curvadas ao lado oposto do sofá e


sinto um desejo flamejante de tocá-la. Porém, como um paciente obediente,
sigo na posição em que ela me deixou.

Ollie retorna a mim com um clipe imobilizador nasal e um band-aid. Ela


retira o pequeno curativo do envelope e o entreabre nos dedos. Curva-se
sobre mim, o olhar centrado no que está fazendo. Seu peito está tão próximo
de mim que preciso de um pouco mais do que subserviência para não atacá-
la: uso os resquícios de autocontrole que ainda me restam. Fito seu olhar
concentrado e então o teto além dela, esperando até que termine.

Ela é cuidadosa ao apalpar meu nariz, evita o local doloroso desta vez.
Coloca as extremidades do clipe em cada uma das minhas narinas e o solta.
Sinto uma leve pressão na cartilagem, mas nada que incomode demais.

— Pronto — sussurra contra meu rosto. Seus dedos gentis acariciam


minhas bochechas, se aprofundando mais e mais.

Sem precisar me mexer ou sequer tomar a inciativa, os lábios de Olivia


encontram os meus, molhados mas suaves, desejosos mas leves, tomando
todo o cuidado do mundo para não me machucar mais. É apenas um
encostar de bocas, sem língua, mas o suficiente para me relembrar de seu
gosto, de seu calor, de seu carinho.

Ela se afasta o suficiente para dizer:


— Senti sua falta.

Agarro seus pulsos e os acaricio lentamente, hipnotizado pelo brilho


amendoado de suas íris.

— Eu também.

Ollie desliza no assento do sofá, mas permanece virada para mim.


Solto seus pulsos. Ela pega o pequeno rolo de algodão, retira-o da
embalagem e me alcança. Sinto um déjà-vu ao colocar a pequena massa
branca dentro de uma das narinas, estancando o sangue que ainda possa
escorrer.

Satisfeita com seu trabalho, Olivia apoia-se com o cotovelo na


extremidade do sofá e usa o punho fechado para suportar a cabeça. A mão
livre brinca com o colarinho bagunçado da minha camisa.

— Quer me dizer como isso aconteceu? — Seus olhos estão fixos no


curativo no meu nariz.

Encaro a janela larga na parede em minha frente, o céu noturno e


escuro interrompido pelas luzes de um ou outro apartamento nos prédios
mais altos.

Afundo no sofá ao me lembrar da cotovelada de Dom, de minha


própria arma pressionada contra minhas têmporas.

— Entrei numa briga com seu chefe — respondo com um gosto


amargo na boca, especialmente ao me lembrar da semelhança entre a
serpente nos pescoços de Olivia e daquele desgraçado.

A mão de Ollie para em meu colarinho, sobressaltada.

— Não tá falando de—

— Dom — resmungo. — Aquele filho da puta.

Ao meu lado, a médica do ringue cruza os braços sobre os seios. A


surpresa em sua face dá lugar a uma desconfiança e preocupação veladas.

— Como você cruzou com ele? E ainda entrou numa briga? Kim...?

Pisco longamente, concentrado em minha respiração. O peso da noite


exaustiva e estressante começa a cobrar seu preço sobre meu corpo. O
acidente com certeza levou embora parte da minha força vital.
Umedeço os lábios e murmuro:

— Ele é amigo de Jude.

Também cruzo os braços sobre o peito. Fecho os olhos de vez. Sinto


que posso acabar dormindo aqui mesmo, no sofá de Olivia.

A médica leva um tempo considerável ponderando sobre a minha


resposta, como se juntasse 1 mais 1 e descobrisse tudo o que ocorreu nessa
noite a partir de algumas poucas palavras.

Quando fala novamente, há um distante tom de incredulidade em sua


voz:

— Não faça isso de novo. É a primeira vez que ouço falar de alguém
que brigou com Dom e saiu vivo pra contar história.

Uma risada cínica escapa dos meus lábios.

— Eu te disse. — Abro os olhos e a encaro de relance. — Nenhum


deles é páreo pra mim. — Lanço-lhe uma piscadela.

Ollie revira os olhos e se recosta no sofá como eu, os ombros mais


relaxados neste momento.

— Sim, você tem o maior pau de todos — cochicha, repreensiva. —


Feliz agora?

Abro um sorriso risonho, que logo se fecha.

— Você sabe o que pode fazer pra me deixar feliz — sussurro. A


frustração de nossa conversa pelo telefone mais cedo me domina.

Olivia engole em seco e se retrai para longe. Os ombros se curvam à


frente, os dedos das mãos entrelaçam-se entre seus joelhos afastados. Os
olhos pairam perdidos, acanhados, no chão.

— Não vou discutir com você sobre isso de novo — sussurra de volta.

Curvo os cantos dos lábios para cima, decepcionado, mas não


surpreso.

— Eu tinha que tentar uma última vez.

A coisa mais difícil em amar alguém é respeitar suas decisões...


quando você sabe que são decisões ruins.
Olivia se levanta do sofá, carrega consigo a maleta de primeiros
socorros de volta à cozinha. Não a acompanho com o olhar dessa vez. Retiro
o algodão das narinas — me sinto estúpido com isso. Amasso-o em minha
palma.

— Está machucado em algum outro lugar além do nariz?

— Não — minto.

— Quer um chá de camomila, um descafeinado, alguma coisa para


relaxar?

— Não é isso o que quero.

— Kim... — suspira.

Esfrego o rosto.

— Desculpa, foi uma noite... complicada.

Volto a relaxar no sofá. Estico os braços sobre a extremidade do


estofado, deixo minha nuca pender para trás.

Ouço um compartimento se abrir e se fechar quando Olivia guarda a


maleta. Depois dá alguns passos curtos em minha direção.

— Quer me contar sobre ela?

— Prefiro não contar.

Ela se aproxima vagarosamente como um felino no meio da noite, se


senta ao meu lado com uma das pernas cruzadas sobre o estofado. Seu
olhar aguçado me analisa por alguns momentos até que murmura baixinho:

— Quer dormir aqui?

Encaro a vista escura além da janela. Percebo que já estou


entorpecido o suficiente para sequer ter forças para levantar daqui e deixar o
apartamento.

— Sim... — balbucio. Vejo Ollie pela vista periférica. — Se não for um


incômodo.

Ela arqueia as sobrancelhas, pasma.


— Você nunca é um incômodo pra mim. — A queixa em sua voz me
deixa melancólico.

Ela não sente remorso algum pelo quanto me machucou?

— Às vezes... — um suspiro triste me escapa —, isso é difícil de


acreditar.

Não desvio os olhos do céu no lado de fora. Entre todas as suas


possibilidades, a imensidão azul-escura da noite sempre me deixa com uma
sensação de vazio, como se minha vida estivesse passando e eu fosse
apenas um espectador passivo, sem voz sobre meu próprio destino.

Sempre vivi as consequências das ações de outras pessoas, direta ou


indiretamente. Trabalhei desde que era pequeno para sustentar uma casa
destruída pela partida da minha mãe e pela negligência de meu pai. Fui
arrastado para um clube de luta ilegal pelas dívidas que meu pai deixou
depois de morrer. Fui retirado desse ringue por um homem que quer me usar
para cumprir uma missão estúpida de vingança que, para mim, não faz
sentido algum. Foi Olivia quem decidiu que não teríamos um relacionamento
de verdade em primeiro lugar, e agora foi Jude quem escolheu me tirar de
sua vida totalmente.

Há um vazio frio e profundo dentro de mim, um penhasco bem no meio


do meu peito. Ele só cresce a cada dia, como a imensidão deste céu.

Se eu estivesse sozinho agora, estaria chorando.

Preso em meu monólogo interior, só sinto o toque de Ollie quando ele


já se estendeu demais, quando se aproximou demais, quando suas mãos
quentes estão aproximando nossos rostos.

Agarro seus pulsos e a forço a parar.

— Podemos só dormir hoje?

Seu rosto empalidece e ela recua em algo muito próximo de vergonha.


Solto seus pulsos.

— Claro, me desculpe. — Engole em seco, os olhos perdidos em


algum ponto do espaço vazio entre nós.

Olivia já foi recusada por alguém na vida?


— Você não quer... — ela balbucia, retraída. — Não quer ir para a
cama?

Volto a fechar os olhos, balanço a cabeça de um lado para o outro.

— O sofá é o bastante pra mim. Já tô passando dos limites da sua


hospitalidade aqui...

— Como queira — diz com desdém, e se levanta. — Boa noite.

— Boa noite — respondo sem abrir os olhos.

Olivia ainda leva alguns segundos até caminhar para longe, talvez um
tanto desnorteada por minha recusa súbita. É a primeira vez que isso
acontece, então não estranho tanto. Sempre que ela me chamava, eu vinha.
Sempre que me mandava ir embora, eu ia. Sempre que ordenava, eu
obedecia. Sempre que me machucava, eu perdoava.

Olivia e Jude são muito mais parecidos do que eu imaginava.

Abro os olhos, e não consigo mais fechá-los pelo resto da noite.


Pensei que tudo de que precisava era alguém para me confortar, para me
fazer esquecer dessa noite de merda.

Mas aparentemente não.

Não preciso de alguém que me faça esquecer. Preciso de alguém que


me faça lembrar. Preciso de Jude.

E este pensamento quase me faz vomitar.


RECISO DE JUDE.
P
Encaro meu reflexo no espelho embaçado do banheiro do meu
quarto. Seguro meu queixo e viro o rosto de um lado pro outro, analisando a
barba que cresceu desde o acidente.

Preciso de Jude, mas ele me expulsou de sua casa.

Abro o armário sob a pia e retiro o creme de barbear e o barbeador de


seu interior. Lavo o rosto primeiro. Inspiro fundo e estufo o peito.

Preciso de Jude, mas não posso tê-lo sem antes conseguir algumas
respostas.

Passo o creme, então preparo a lâmina afiada. Aproximo-a do topo da


barba, na porção mais próxima da orelha, e então deslizo-a para baixo
suavemente. Arrasto-a pelo rosto inteiro, então pelo pescoço, tomando
cuidado para não me cortar.
Já são 18h49. Ele não tentou entrar em contato comigo ainda. Talvez
esteja agora naquela sala misteriosa no closet, planejando o próximo passo
de seu plano.

Esse próximo passo envolve a mim, Jude?

A lâmina roça meu pomo de adão com um pouco mais de intensidade,


mas não me machuco.

Você ainda precisa de mim?

Termino com o restante do pescoço e então lavo o rosto outra vez,


deixando o creme escorrer pelo ralo da pia como a minha paciência, meu
autocontrole, minha sanidade.

Não vou mais ajudá-lo até saber exatamente o que está fazendo.

Retiro a toalha que estava enrolada na cintura e uso-a para me secar.

E se você não vai me contar...

Agarro a porcelana branca da pia e aproximo o rosto do espelho,


fitando fixamente o interior das minhas íris.

Então vou ter que achar alguém que conte.

Pelado, saio do banheiro em direção ao quarto. Abro meu guarda-


roupas. Minha atenção para instantaneamente sobre o moletom escuro
pendurado no último cabide.

Há apenas uma pessoa que talvez tenha as informações de que


preciso e que está disposta a falar.

Apanho a peça preta, uma calça jeans surrada e meu revólver.

Por bem ou por mal.


INTERLÚDIO
A SERPENTE E A RAINHA

POIANDO-SE NUMA DAS estendidas de seu chofer,


MÃOS
A
Brianna coloca um pé para fora do carro. Seu salto finca-se
numa poça superficial de lama no asfalto esburacado. Então
coloca o outro pé para fora e deixa o carro, está no beco escuro
onde marcou esta reunião.

Sinceramente, nunca imaginou que parte de sua breve


visita aos Estados Unidos no meio de suas negociações com os
putos da União Europeia acabaria neste lugar, neste horário,
com estes objetivos, mas o que poderia fazer? Brianna Goldman
precisa, mais uma vez, colocar sua família em ordem.

Acompanhada de três seguranças altos e corpulentos, ela


se aproxima do homem apoiado na Lamborghini preta. O beco é
mal iluminado, então ela consegue distinguir poucos traços de
seu rosto. Na realidade, seu corpo chama mais atenção: a
camisa social escura colada e com três botões abertos; as
sombras das tatuagens que cobrem seus braços, o pescoço e
até parte do rosto. Muito naquele corpo expressa imponência. E
quanto mais Brianna se aproxima, mais certa ela fica de que
toda essa imponência exterior na verdade é uma fachada para
encobrir um núcleo inseguro e possivelmente instável.

Homens maduros por fora e imaturos por dentro sempre


foram seu pior pesadelo.

— Ouvi dizer que vocês passaram por mudança no


comando recentemente — ela comenta casualmente em direção
à figura apoiada na Lamborghini, analisando o entorno do beco
cautelosamente.

— A administração antiga não era... — ele estala a língua


— o que precisávamos.

Dominic — Brianna conhecia bem seu nome — se afasta


do veículo e coloca as duas mãos nos bolsos, dando alguns
passos na direção de Brianna. Um dos seguranças passa à sua
frente, impedindo que o líder dos Snakes se aproxime demais.

— Entendo — ela diz com certo desdém. Na verdade,


preferia o gangster que ocupava o lugar até então, que contratou
para o assassinato daquele garoto cujo nome já esqueceu.
Embora menos imponente, o ex-líder era menos... repulsivo.

Dom deixa um riso sarcástico ecoar de seus lábios e


ergue uma sobrancelha.

— O que você quer, Brianna?

Ela umedece os lábios.

— Estou certa de que é do seu conhecimento que


temos... um inimigo em comum.
— Um inimigo que ambos já tentamos matar, mas
falhamos. — Dom diz. Brianna contrai os lábios. — Por favor,
não achou mesmo que eu não descobriria quem estava por trás
do caminhão desgovernado, não é mesmo?

Ele não deveria saber disso. Ninguém deveria.

— Falhamos... — ela trabalha rápido em desviar o


assunto — porque fomos agressivos demais, sem a sutileza
necessária pra lidar com um animal selvagem. Você sabe como
eles se agitam e se sobressaltam quando percebem uma
ameaça vindo em sua direção. Para abater animais selvagens
você precisa... atraí-los docilmente; precisa atacá-los sem que
saibam o que lhes atacou. E acontece... — faz uma pausa
calculada para atiçar a curiosidade do mafioso — que sei
exatamente como podemos fazer isso.

— Como?

Brianna sorri. Seu primeiro sorriso genuíno em anos —


talvez décadas.

— Rasgando seu coração.


INTERLÚDIO
4 ANOS AT R Á S

A SALA FECHADA, FLORENCE RETIROU a camiseta e deitou-se


N
na maca hospitalar. Fitou o teto branco, com luzes quadradas
embutidas. Se ela se concentrasse por tempo suficiente nos
pontos luminosos, sua visão começaria a borrar e escureceria. Ela
poderia então fingir que estava morrendo.

Era tarde demais: gritar já não tinha utilidade alguma.


Ninguém viria para ajudá-la. Então, pela primeira vez, ela ficou
calada e fechou os olhos. Tentou encontrar alguma paz enquanto
entregava seu corpo.

Sem fitá-lo diretamente, ela ouviu o médico sentar-se na


cadeira ao lado e se arrastar até a máquina de ultrassom
próxima à maca. A garota de dezessete anos focou em sua
respiração, tentando acalmar o coração acelerado. Ficou assim
por alguns segundos — talvez um minuto inteiro —, até sentir o
gel frio ser espalhado em seu abdome. Um arrepio atravessou
seu corpo, dançou ao redor de sua espinha, e ela contraiu os
dedos dos pés. Tentou controlar a expressão de desagrado, mas
não conseguiu. Era a sua segunda vez fazendo aquilo, e a
sensação gélida continuava incômoda.

Expirou superficialmente.

Depois do gel, vinha o aparelho de ultrassom. Ela engoliu


em seco ao sentir o aparelho deslizar sobre sua pele, da
esquerda para a direita, de cima para baixo, repetidamente. De
olhos fechados, ela imaginava a imagem se formando no
monitor. Com alguma sorte, o bebê teria morrido. Mas ela não
era uma mulher de muita sorte, e sabia que seu filho ainda
estava vivo — sentia-o.

Pobre criança, pensou. E, por um momento, esqueceu-se


de que estava se referindo ao próprio corpo, ao próprio filho.
Florence sentia que havia perdido o controle sobre o próprio
corpo havia tanto tempo que aquele pensamento intrusivo, às
vezes, lhe tomava conta. Minha criança, ela precisava se
lembrar. Esta criança é minha. Este corpo é meu.

— Parabéns, sra. Goldman. É uma menina — o médico


comentou ao seu lado num tom alegre, animado.

Minha menina. Na escuridão sob suas pálpebras, ela


imaginou uma garota loira e de olhos azuis correndo por um
campo, brincando com um sorriso enorme no rosto. Minha filha.

E então a imagem foi consumida por uma névoa densa.


Ela nunca poderia ser feliz com aquela criança. Não enquanto
Brianna existisse. Certamente não ao lado de Jude.

O que vai acontecer com minha filha depois de nascer?


Um novo calafrio a dominou, dessa vez fazendo seus
pulmões enrijecerem. Ela engoliu em seco; uma saliva mais
álgida e viscosa do que o normal desceu por sua garganta.

— Meu nome ainda é Florence Wingsroad — corrigiu com


certa rispidez.

O médico ficou em silêncio por um tempo, talvez


encarando-a, até perguntar:

— Não quer abrir os olhos para ver sua filha?

Talvez fosse melhor colocar o máximo de distância que


conseguisse entre ela e aquele bebê. Depois que nascer,
Florence pensou, eu vou fugir, sozinha, para algum lugar bem
longe, para um lugar em que Brianna não consiga me achar.

Eu nunca vou ser Florence Goldman.

— Não.

E ela virou o rosto para o lado oposto ao do monitor, em


direção à porta da sala de ultrassom. Abriu os olhos. Pelo vidro,
conseguia ver os rostos dos três seguranças de Brianna que a
acompanhavam em todos os lugares.

Uma lágrima solitária escorreu de seus olhos.

— Apenas termine logo com isso.

AGORA

seu apartamento e entra. As luzes


F L O R E N C E A B R E A P O R TA D E
já estão ligadas, mas ela não estranha isso — talvez a babá de
Audrey as tenha deixado ligadas antes de sair. Caminha direto até
a sala, largando as sacolas de compras sobre o sofá. Estica as
costas, aliviando o desconforto na lombar que lhe atinge
esporadicamente — sequela da gestação. Está acontecendo com
mais frequência nos últimos meses: talvez tenha que procurar um
novo terapeuta.

De costas para a cozinha, ela observa a noite de Nova


York através das janelas da varanda; todos os seus prédios e
luzes coloridas, toda a sua imensidão. A imensidão que quer
desesperadamente deixar para trás.

— Mami! — Audrey grita quando sai de seu quarto e corre


em sua direção.

— Como você está, meu amor? — pergunta num tom


meigo e abre os braços. A criança a abraça, envolvendo os
braços na altura de sua cintura.

Ao se afastar, Audrey questiona:

— Por que você demorou tanto? O amigo do papai tá


esperando esse tempo todo.

— O quê?

A confusão dura um milésimo de segundo, até Florence


acompanhar o olhar da filha em direção à figura encapuzada
sentada numa das banquetas da cozinha.
tenho perguntas pra você:
um; quem você acha que é?
é bem audacioso, tentando estilhaçar minha fé
dois; por que tentou me tratar como um otário?
eu nunca devia ter confiado em você
três; por que você não se tornou a pessoa
que jurou que iria se tornar?
essas perguntas estão me assombrando
I have questions — camila cabello
FLORENCE WINGSROAD
todo dia coloco um sorriso na minha cara fechada
alguns corpos enterrados no jardim sob a grama
coloco-os em uma mala e os levo pro cemitério
[...]
toda manhã, sinto um buraco onde meu coração devia estar
eu nunca te escuto, mas consigo te ver com meus olhos fechados
eu lembro de você pela mancha de terra que deixou
I am not a woman, I’m a god — halsey

E CAPUZ ABAIXADO, SENTO-ME num dos sofás da sala, de costas para a


D
varanda. Curvo as costas para a frente e apoio meus cotovelos sobre os
joelhos, entrelaçando os dedos no espaço vazio entre minhas pernas.

Aguardo Florence retornar do quarto de Audrey, para onde se deslocou


vários minutos atrás. Seu choque inicial é justificável, assim como o desejo de
proteger a filha. Mas a espera está começando a me deixar desconcertado. E
se estiver ligando para a polícia? O pensamento cruza minha mente no
mesmo instante em que ouço uma porta ser fechada. A mulher caminha de
volta à sala, até o sofá em minha frente. Os saltos altos fazem estampidos
abafados contra o piso de madeira. Ela se senta. O vestido decotado e justo
que usa me força a mirar partes de seu corpo que não gostaria de olhar —
especialmente à noite.

Florence cruza as pernas e apoia as duas mãos sobre o joelho. Suas


pulseiras de pérolas e prata balançam. O cabelo longo e solto lhe dá um
aspecto mais jovial, poderia facilmente ser confundida com uma adolescente
que acabou de entrar na faculdade. O que entrega sua idade é a postura
formal demais, tensa demais, a calma forçada e cruel que a circunda.

Acomodada no sofá, repousa seu olhar afiado sobre mim com um


interesse frio. Muito, muito frio — quase tão frio quanto o de Jude.
— Vai me explicar agora o que está acontecendo ou prefere que eu
chame a polícia antes? Jude enviou você aqui?

— Jude não tem nada a ver com isso.

— Então me dê um único motivo pra não chamar a polícia.

— Não pretendo colocar você, ou sua filha, em risco. Não tô aqui como
uma ameaça.

— Não? — Uma risadinha de escárnio lhe escapa e ela passa os olhos


pela sala. — Entro em casa à noite e encontro minha filha com um estranho.
Você não entenderia isso como uma ameaça se estivesse no meu lugar,
Kim?

— Sim, mas não estou — rebato sério. — Estou aqui apenas pra
conversar.

— Conversar?

— Sim.

Ela toma um tempo até responder:

— Então por que invadiu minha casa? Fiz algo que te desse a
impressão de que não estou disposta a conversar com você a não ser que
seja à força?

— Eu estou... — começo a explicar rápido, mas então me interrompo.


Penso bem em minhas palavras. — Tive que tomar medidas desesperadas.

— Por quê? — Aquele interesse frio reluz em suas íris novamente.

Mordo minha língua, hesitante.

— Porque sei que Jude tá planejando algo contra a tia dele. E sei que
tem algo muito errado nesse plano, algo que ele... quer esconder de mim.

Florence se retrai contra o sofá e me fita com uma expressão curiosa.


Inclina o pescoço para baixo, os olhos semicerrados, um sorriso nefasto nos
lábios vermelhos.

— E quem é você pra decidir o que é certo ou errado, Kim Henney?

A resposta me pega desprevenido. Ela é igualzinha a Jude, só que


ainda mais perigosa, traiçoeira.
— Descobri algo no quarto dele, no closet. Uma espécie de sala
secreta. — Ela inspira fundo, analisando-me cuidadosamente. — Sabe do
que tô falando, não sabe?

O sorriso dela não se desfaz.

— E se eu souber? Por que deveria conversar sobre um assunto


íntimo de Jude com você? Até onde sei, você é só o brinquedinho sexual dele
— diz numa crueldade cordial que me deixa pasmo e furioso ao mesmo
tempo.

— Se sou só um brinquedinho sexual, por que ele teve tanto medo de


me perder quando eu tava no hospital? Se você não me acha digno de uma
conversa... — fito-a profundamente — então por que estava lá quando
acordei?

Ela desvia o rosto para o lado, em direção ao quarto de Audrey no final


do corredor à sua direita.

— Você realmente é... — murmura voltando-se a mim — insolente.

— Também sou uma parte dessa merda desde que Jude comprou
minha dívida, goste você ou não.

— Não desgosto de você, Kim. Sinto muito se essa é a impressão que


lhe causei. — Ela suspira e se levanta do sofá. Caminha de volta à cozinha e
apanha uma garrafa de vinho do compartimento mais alto de um dos
armários. — Apenas... preciso ter cuidado ao discutir certos assuntos. Nem
todas as pessoas que cruzam minha vida, a vida de Jude ou a de nossa filha
são de confiança. Quase ninguém, para ser honesta. Você entende, certo? —
Apanha um saca-rolhas e abre a garrafa em questão de segundos.

— Na primeira vez em que nos vimos, você queria que eu comesse ele
na sua frente — comento, ácido.

— Ah... — ela apanha duas taças —, aquela realmente não foi a


melhor das primeiras impressões. Todos nós temos desejos, Kim. —
Preenche os recipientes de cristal com o líquido rubro. — Não pode me culpar
pelos meus.

Franzo o cenho.
Ela guarda a garrafa e retorna à sala com as duas taças em mãos.
Chega próximo o suficiente para me oferecer uma.

— Não bebo — recuso, inclinando bem a nuca para trás para encará-
la.

— Se quer conversar comigo, então vai beber.

Sigo encarando-a por mais algum tempo até apanhar a taça de suas
mãos, contrariado. Levo um gole aos lábios, e isso é o suficiente para
satisfazê-la. Florence retorna ao sofá em minha frente e cruza as longas
pernas pálidas e finas.

O álcool gelado e amargo desce ardendo pela minha garganta.

— Ainda tô curiosa sobre como você conseguiu passar por toda a


minha segurança, no entanto — declara e toma o primeiro gole de sua taça.

— Sua segurança é uma piada.

Arqueia as sobrancelhas.

— Talvez eu devesse seguir os passos de Jude e comprar um cão de


briga.

— Talvez. — Seguro a taça com as duas mãos e fito o líquido cálido.

Florence toma um segundo gole.

— O que você viu na sala de Jude?

— Não muito. — Recosto-me no sofá e abro as pernas. — Ele me


expulsou da casa em seguida, sem me dar explicações.

— Então você foi inteligente o suficiente pra descobrir a sala, mas


estúpido o bastante para deixar que ele te flagrasse?

— Você vai me ajudar ou só arranjar novas formas de me humilhar?

— Uh-uh — repreende com um estalar de língua. — Nunca disse que


iria ajudá-lo. Disse que ia conversar com você. Você invadiu minha casa, Kim
Henney. Não está em posição de fazer exigências.

Reteso a mandíbula.
— Não tô fazendo exigências — vocifero baixo —, só quero saber a
porra da verdade.

— A verdade — ela me corta rapidamente — é que você está numa


situação fodida e que apenas ficará mais e mais fodida à medida que enfiar
sua cabeça nela. — Em sua voz aguda, palavrões soam mais ameaçadores.

Respiro fundo.

— Sei a verdade sobre sua filha — murmuro calma e friamente. A


singela frase é o suficiente para deixar a mulher em minha frente
completamente tensa. Encaro-a. — Sei que não pretendia tê-la, que
considerou fazer um aborto. — Curvo-me em sua direção, esquecendo a
taça. — E sei que a única razão pela qual não pôde... foi Brianna.

Numa espécie de choque, ela entreabre os lábios, mas não diz uma
palavra. Olha ao redor, um tanto perdida.

— Jude te contou isso?

— Como eu disse — digo com firmeza —, estou nessa merda goste


você ou não.

É a vez de Florence ficar contrariada. O vinho desce por sua garganta


pela terceira vez. Um leve tremor em suas sobrancelhas é toda a reação que
tenho nos segundos de silêncio que se seguem. Em certo momento, chego a
imaginar que ela não falará mais nada, que se fechará completamente para
mim. Nesse caso, terei que tomar medidas ainda mais extremas, embora não
queira usar o revólver preso na cintura da minha calça.

O silêncio de Florence se prolonga demais. E minha paciência está se


exaurindo completamente. Descanso a taça no chão e chego próximo de
tocar o metal frio e letal quando ela finalmente diz:

— Não concordo que Jude te puxe pro nosso plano e te deixe às


cegas.

Afasto a mão da cintura e volto a cruzar os dedos.

— Não estou às cegas — me apresso a replicar. — Sei que ele quer


destruir a tia por algum motivo. E que precisa de mim pra isso.

Ela contrai os lábios em algo que parece simultaneamente pena e uma


risada abafada. Como eu, deixa a taça no chão. Esfrega os braços. Inclina o
pescoço para o lado ao ciciar:

— Ele não precisa de você. — Um rubor se acende em minhas


bochechas, como se tivesse acabado de ser esbofeteado. Ela descruza as
pernas e continua: — Você é só um peixe pequeno num mar de tubarões,
Kim. E Brianna é a mais perigosa de todos.

Também descruzo meus dedos e me recosto no sofá. Fito o chão entre


os dois sofás, ruminando sobre isso, mas tudo o que consigo é ficar mais
confuso.

— Por quê? — pergunto um tanto hostil demais. Ouço algo cair no


chão no quarto de Audrey ao final do corredor. Minhas sobrancelhas se
aproximam. — É tudo por causa da criança?

Florence balança a cabeça de um lado para o outro.

— Audrey é só uma pequena parte disso, bem como você.

Expiro fundo, irritado.

— Pode cortar a conversa fiada e ir direto ao ponto?

Fito-a um pouco exaltado. Começo a ficar nervoso pelo rumo que isso
está tomando, ansioso para descobrir que merda ela está disposta — ou não
— a me contar sobre Jude. Toda a fúria e a mágoa que eu sentia por ele se
escondem no fundo da minha mente, superadas pelo meu desejo de
entender o que diabos está acontecendo em sua vida.

Florence entreabre os lábios, mas os fecha em seguida. O olhar evita o


meu sutilmente, buscando qualquer outra distração na sala enquanto pondera
sobre algo.

Está em dúvida?

A serenidade em seu rosto vai embora, é substituída por uma aflição


distante e uma inquietação mais próxima. Quando volta a atenção para mim,
parece uma mulher completamente diferente — incapaz de fazer um homem
foder sua mão em um espelho como o fez com Jude, mas certamente capaz
de permanecer por anos em um casamento no qual não tem interesse.

— Antes de ser Florence Goldman, eu era Florence Wingsroad —


começa, a voz distante e severa, o rosto desprovido de qualquer senso de
humor ou cinismo. A mudança em sua expressão e em sua postura me deixa
alerta. — Minha família pode não ter o mesmo nível de influência da de Jude,
ou concentrar tanto poder, mas não estamos tão longe quanto pode pensar.
— Ergue as sobrancelhas e os cantos dos lábios numa careta sugestiva.
Inspira fundo. — Eu não era a única que queria o aborto. Meus pais também
o queriam, assim como Jude. Todos nós queríamos o maldito aborto. Mas
não o fiz; não pude fazê-lo. Sabe por quê?

Ela toca o próprio pescoço e arrasta os dedos até a clavícula, o rosto


se abre um pouco diante da curiosidade sobre a minha resposta.

Bato as mãos em uma palma silenciosa e balanço a cabeça em


negativa.

Ela pisca longamente, logo força um sorriso triste e feio a se abrir nos
lábios vermelhos.

— Porque Brianna Goldman queria continuar sua linhagem — diz com


um deboche velado, e me fita intensamente. — Ela é infértil, não pode gerar
filhos próprios. Jude é o mais próximo que tem disso, e essa é a única razão
pela qual ele ainda está vivo. Mas há um problema, e você sabe qual é. —
Fujo de seu olhar inquisitivo. — Jude é gay. Então você deve imaginar o quão
milagroso deve ter sido pra ela descobrir que havia um filho biológico de Jude
crescendo dentro de mim. — Ri. — Audrey nasceria mesmo que Brianna
tivesse que me amarrar numa maca por nove meses e então puxá-la pra fora
de mim com as próprias mãos.

Miro o chão sem entender completamente o que isso significa, como


pode ser verdade. Mas então me lembro do que Jude me disse quando
acordei em sua cama: “Meu nome é Jude Goldman. Minha família é dona de
uma pequena empresa bilionária chamada Goldman Entertainment.”

Isso foi um pedido de socorro?

Florence continua, a voz fragilizada deixa uma mágoa profunda vir à


superfície:

— Ela escolheu os médicos que acompanharam a gestação. Escolheu


os cirurgiões que fizeram o parto, o local onde aconteceu. Colocou três
seguranças para me acompanharem 24h por dia em todos os lugares para
garantir que eu não tentasse nada estúpido. Por um breve período, eu, uma
Wingsroad — diz o próprio sobrenome de forma áspera —, me tornei uma
cadela, bem como você.
Ela arqueia as sobrancelhas de maneira cínica, esperando pela minha
reação.

A ofensa me pega desprevenido, mas deixo passar. Inclino-me um


pouco em sua direção e volto a apoiar os cotovelos nos joelhos, incitando-a a
continuar.

Florence cruza os braços sobre os seios. As unhas vermelhas, longas


e afiadas ficam bem evidentes contra o vestido preto e a pele pálida.

— Você notou que meu casamento com Jude não é convencional. Não
temos nenhum tipo de ligação emocional além de nossa filha. — Pausa por
um momento e pondera. — Jude argumentaria que não temos ligação
emocional alguma. — Uma lufada de ar debochada deixa seus lábios. —
Cometemos um erro inconsequente e aqui estamos, ligados pra vida inteira
pelos desejos de outra pessoa.

Ela descruza os braços e puxa a barra do vestido um pouco mais para


baixo. Ajeita-se no sofá. O olhar perdura sobre a varanda atrás de mim por
alguns segundos.

— Casamos assim que completei dezoito anos — continua a história


sem me olhar diretamente —, algumas semanas depois do nascimento de
Audrey. Jude se tornou um alcoólatra e um delinquente depois disso. Eu só
fingia que ele não existia na maior parte do tempo. — Revira os olhos. — Era
difícil, no entanto. Ele estava sempre metido em algum tipo de confusão. E,
toda vez que saía da linha, Brianna arranjava um jeito de colocá-lo de volta.

“Eu tava lá... procurando alguém que pudesse me ajudar a destruir


minha tia de uma vez por todas”. As palavras esganiçadas de Jude ecoam
em minha mente, me fazem querer tê-lo pressionado mais, estrangulado-o
até que cuspisse toda essa maldita história.

— Depois de um tempo, percebi que minha filha não tem culpa alguma
de tudo o que aconteceu. Que, dentre todos nós, ela é a única inocente.
Nesse período, decidi mantê-la o mais afastada de Brianna o possível. —
Florence cerra os punhos sutilmente e suspira. — Foi quando ela me
sequestrou e ameaçou tirar a guarda da criança de mim se eu movesse um
dedo para mantê-las longe uma da outra, caso eu sequer colocasse um pé
para fora de Nova York.

Vejo seu olhar se distanciar outra vez.


O peso de suas palavras paira sobre nossas cabeças como duas
nuvens carregadas. Há rancor, fúria, dor, mágoa e muito, muito ódio em seu
semblante quando murmura:

— Desde então, Audrey e eu estamos nessa jaula, esperando pelo


momento em que finalmente estaremos livres. Brianna é obcecada pela
minha filha. Um dia, tenho certeza de que me matará para tomá-la para si.
Minha única saída é levá-la para o mais longe possível disso, para tão longe
do rastro de destruição do pai e da tia avó quanto eu puder.

Seus olhos fitam o chão, melancólicos, como se retirar isso do peito,


revelar isso a mim, machucasse seu orgulho.

É uma história triste afinal de contas, uma história que provoca


empatia, que te faz querer fazer qualquer coisa para confortar a pessoa que a
contou, que a vivenciou.

Estreito os olhos em direção à melancolia em sua face. Está fazendo a


mesma coisa que fez na festa? Se sim, o que quer de mim desta vez?

— Por que está me contando tudo isso? — pergunto.

Ela expira lenta e superficialmente. A impressão que tenho é de que


esperava pela minha desconfiança, mas se decepcionou com ela de qualquer
jeito.

— Sou a esposa de Jude, uma Wingsroad, e, mesmo assim, ela fez


tudo isso comigo — responde num tom cansado. — Tem ideia do que ela
pode fazer com você? — Ergue uma sobrancelha. — Tem ideia da razão pela
qual Brianna nos forçou a nos casar tão rápido? Sabe por que ela moveu
terra e mar pra garantir que sua Audrey nascesse?

— Porque Jude é gay.

Estala a língua e nega com a cabeça freneticamente.

— Não apenas por isso. — Me encara friamente. — Jude nunca me


amou, mas já amou outra pessoa.

Arrasto-me mais à frente no sofá, a curiosidade tomando o melhor de


mim.

— Quem?
— Jason. Seu melhor amigo de infância. — Ela apanha sua taça do
chão e termina com o líquido restante em apenas um gole.

Florence se levanta do sofá e caminha até a varanda atrás de mim.


Acompanho-a com a cabeça. Ela se aproxima e se apoia no parapeito,
mirando a cidade. A brisa noturna balança seus fios lisos.

— Amigo de infância? — Sigo-a até o lado de fora. — Que merda um


amigo de infância tem a ver com tudo isso?

— Não era qualquer amigo de infância — corrige, distante. — Ele foi o


primeiro amor de Jude. — E cerra os lábios, focando unicamente na
paisagem.

— Se importa em elaborar essa porra?

— Não — é tudo o que responde, fria e retraída.

— Ah, mas vai sim.

Apanho o revólver da minha cintura e aponto-o para a parte de trás de


sua cabeça. Não destravo o cão, no entanto, e mantenho o dedo leve sobre o
gatilho.

Florence não parece incomodada de forma alguma.

— Não, não vou. Esta história não é minha pra contar.

— Não tô pedindo.

— Minha filha está no quarto ao lado, Kim. Teria mesmo coragem de


me matar desta forma?

Aperto os lábios, hesitante. Meu punho treme sutilmente.

— Você não me conhece.

— É verdade. Mas um homem que mantém uma foto do irmão mais


novo como papel de parede não parece um assassino a sangue-frio pra mim.
— Lentamente, vira para trás, para me encarar. Dou um passo para trás. Ela
segura o revólver com as duas mãos. — Então, por que não guarda isto e
continuamos nossa conversa como duas pessoas civilizadas? — E força a
arma para baixo, abaixando-a. O tempo todo, me mantém absorto em seu
olhar. O tempo todo, penso em erguer o revólver e voltar a ameaçá-la. O
tempo todo, meus instintos me impedem de fazê-lo.
Não posso matar uma mãe; não posso traumatizar uma criança dessa
forma.

Quando o cano do revólver mira o chão, Florence volta a se afastar.


Desta vez, continua me observando.

Bufo, e guardo a arma de volta na cintura da calça.

— Jude já bagunçou bastante a sua cabeça, não é?

— Não interessa.

— Como queira. — E vira-se novamente, fitando Nova York.

Levo mais alguns instantes até me convencer de que tomei a decisão


certa. Quando o faço, indago num tom baixo:

— O que quis dizer com “destruição”?

— O plano de Jude terá consequências pra todos nós, Kim.

— Sim, mas que porra de plano é esse? — indago um pouco mais


exaltado. Imediatamente, me arrependo. Erguer a voz com Florence não
parece ser muito útil. Limpo a garganta, coço o queixo e então prossigo num
tom mais calmo: — O que ele pretende fazer?

Ela ri.

— Por que homens têm tantos problemas de comunicação? — Me fita


de relance. — Não percebeu que só vai descobrir isso quando perguntar
diretamente a ele?

— Ele não vai me dizer merda nenhuma. Me expulsou de sua casa


quando descobri aquela sala, disse que eu devia encará-lo como um inimigo.

— Talvez ele esteja com medo.

— Medo?

— Medo de que você se aproxime demais e veja seu lado feio. O lado
grotesco, eviscerado e sangrante que ele trabalha tanto pra manter
escondido. Ele está com medo... — seu olhar torna-se contemplativo — de
que você o abandone quando descobrir a verdade.

Levo um tempo até processar o que ela disse.


— Já vi o lado feio dele — digo. — Já vi coisas que desejava não ter
visto.

— Acredite em mim: você ainda não viu nada. E Jude não é fraco: se
ele está com medo, é porque você fez algo pra merecer esse medo.

— O que quer dizer?

— Ele não quer te perder, sente algo por você. O que, exatamente, é
difícil de saber. Os sentimentos de Jude Goldman são um labirinto por si só.

— Me expulsar daquele jeito foi uma maneira bem fodida de


demonstrar isso.

— Como eu disse, um labirinto.

E ficamos em silêncio por algum tempo, ouvindo apenas o som das


correntes de vento soprando em nossos rostos. É estranhamente solitário
observar a cidade de um ponto tão alto. Olho para baixo e quase não consigo
discernir a avenida. A altura deixa em evidência o vazio que sinto no peito;
essa sensação peculiar e desconfortável. Ou talvez sejam as palavras de
Florence e seu significado. No momento, minha cabeça está confusa demais
para pontuar sua origem exata.

Escondo as mãos nos bolsos do casaco escuro e chego ao seu lado


no parapeito.

— Jude sabe disso? — pergunto com o olhar centrado nos prédios ao


redor.

— Do quê?

— Que você pretende ir embora quando o plano acontecer?

Ela pisca longamente, uma sombra de tristeza dançando em seu


semblante.

— Ele não poderia se importar menos.

— Você disse que isso terá consequência pra todos — sussurro


próximo de seu rosto —, então por que se arriscar? Por que não deixar que
Jude faça tudo sozinho?

— Jude é apenas um homem — responde um tanto distante. — E um


homem sozinho jamais seria capaz de derrubar uma mulher poderosa como
Brianna Goldman.

— E onde você se encaixa nisso tudo?

Ela vira o rosto para o lado, evitando-me por alguns segundos.

— Meu trabalho é manter Brianna distraída das investigações


enquanto Jude faz sua parte — murmura pesarosa.

Me afasto um pouco. Observo a jugular exposta em seu pescoço, o


colar dourado que repousa sobre as clavículas. Sua pele é tão similar à de
Jude que me deixa zonzo.

— Pensei que a odiasse — comento.

Ela aperta o parapeito e se vira para mim lentamente.

— E odeio. Arrancaria sua cabeça do corpo com os dentes se pudesse


— diz com um sorriso cretino. — Por isso sou a pessoa perfeita pro trabalho.
— Seus olhos descem até meu pescoço, então se voltam à frente
novamente.

— E qual o meu trabalho? — resmungo.

A esposa de Jude afasta as mãos da proteção da varanda e toca meu


rosto com elas. Seu polegar faz uma carícia lenta em minha bochecha.

— Você vai saber quando o momento certo chegar.

Agarro seu pulso fino e o afasto de mim.

— O momento certo? O momento certo é agora.

— Não, não é. Todos temos deveres a cumprir.

— Sim. A diferença é que nunca concordei com essa merda.

— E você acha que eu concordei? — rebate rispidamente.

Seus olhos severos me miram como metralhadoras de 50mm. Seu


peito está estufado; sua nuca, angulada o suficiente para prender meu olhar.
Ela não consegue mais esconder a tensão crescente em seus ombros. Além
disso, há certo desprezo misturado à revolta em seu rosto, mas isso não me
afeta mais. Suas palavras, no entanto, afetam.
— É por isso que sinto tanta pena de você — cospe. — Por isso
concordei em conversar. Você parece exatamente o que eu era cinco anos
atrás: ingênua e ignorante. Já disse que não concordo com a forma com que
Jude te puxou pra dentro disso. Sinto muito que esteja no meio de toda essa
merda agora. Queria que alguém estivesse lá pra me dizer o quão fodida eu
estava quando conheci Jude. — Expira lentamente pela boca. — Essa
história não tem um final feliz, Kim Henney. Não pra mim, não pra você; não
pra qualquer um que tenha cruzado o caminho de Jude. Entenda isso cedo, e
não sofrerá tanto.

— Não preciso da sua pena. Não preciso das suas desculpas.

— Você, talvez não. Mas seu irmão, sim. Ele vai entrar no meio disso
eventualmente, se ainda não o tiver feito.

— Jude me prometeu que—

— Jude promete muitas coisas.

Ela volta a tocar o parapeito. Seu semblante muda.

— Talvez eu consiga convencê-lo a te livrar da dívida. Vai levar um


pouco de convencimento, mas Jude nunca foi um desafio pra mim. Talvez
possa livrar você e seu irmão disso antes que seja tarde demais — ela afirma
para a paisagem, então me observa de relance.

Meu sangue borbulha diante da audácia.

— Obrigado — digo com rancor —, mas não quero sua ajuda.

Mordo o lábio inferior. Como se meu único problema com Jude fosse a
dívida...

O olhar de Florence torna-se reflexivo, desconfiado, até ela se afastar


alguns centímetros e murmurar:

— Já é tarde demais, não é? O que você sente por ele?

— Não interessa o que sinto por ele.

Ela inclina o pescoço para analisar melhor meu rosto.

— Ele mexeu mesmo com a sua cabeça. Te manipulou até ficar


assim? É por isso que seu lindo rosto está machucado? Quem abriu essas
feridas, Kim?
— Ninguém manipulou ninguém — retruco pausadamente para ela
entender cada palavra. — E por que caralhos você se importa com a minha
cara?

— As consequências de uma relação com Jude são assim: primeiro a


deformação física, por fora; então a por dentro, na alma.

A mulher passa a ponta da língua pelos lábios finos. O cintilar de


interesse em suas íris me causa repulsa.

— Você diz que não quer minha ajuda — sussurra e espalma meu
peito. — Seria porque quer ajudá-lo no plano voluntariamente? — Arqueia
uma sobrancelha.

— Não.

— Então o que você quer?

Agarro seu pulso e afasto a mão de mim novamente, um pouco menos


delicado desta vez.

— Jude — respondo firmemente. — Eu quero Jude.

Ela abre um sorriso largo, debochado e cheio de dentes no rosto de


traços finos e cruéis.

— Você não entendeu nada do que acabei de dizer? — Se aproxima


do meu ouvido. — Jude está num percurso de autodestruição. Ninguém pode
detê-lo. Ou tê-lo.

— Fale por si mesma — disparo. — Vou mudar isso.

Florence cruza os braços e transfere o peso do corpo todo para a


perna direita.

— Boa sorte. — Seu sorriso se desmancha.

Encaro a postura elegante de Florence e quase consigo ver as


correntes ao redor de seus pulsos e de seu pescoço.

Uma mulher pode mesmo fazer isso com outra? Com uma nora?
Florence tem razão. O que Brianna Goldman seria capaz de fazer comigo?
Com a minha família?

Minha respiração começa a pesar.


— Você disse que pretende fugir assim que o plano de Jude... —
busco as palavras certas — começar a ter efeito. Pra onde pretende ir?

A mulher se vira e encara os prédios em nossa frente.

— Passei muito tempo pensando sobre isso — murmura. — Audrey


gosta do inverno. Talvez possamos nos mudar pra Suíça. — Suspira. — Mas
eu não suporto o frio. Será uma decisão difícil.

— Já não deveria ter decidido?

Uma risada abafada escapa de sua garganta enquanto se volta para


mim novamente.

— Sou o tipo de mulher que gosta de uma aventura. — Dá de ombros.

Pelos cantos dos olhos, fito o corredor.

— Mas sua filha merece uma mãe um pouco mais... — volto minha
atenção à mulher de preto — decidida.

Ela empina o queixo.

— Não pense que pode me dizer como criar minha filha, Kim.

— Então não ache que pode dizer o que devo ou não fazer quanto ao
meu irmão.

Chegamos a um impasse. Ambos estamos fodidos, e fodidos pelas


mesmas pessoas. Ambos temos pessoas inocentes a quem precisamos
proteger. Ambos fomos arrastados para dentro da vida de Jude sem aviso
prévio e sem opção. E ambos precisamos arranjar uma forma de escapar
antes que o pandemônio exploda.

— Você é tão teimoso quanto ele. Não é de se surpreender que


formem um par tão bom.

Ergo uma sobrancelha.

— Acha que seu marido e eu formamos um bom par?

Um sorriso safado estica seus lábios.

— Nunca disse que não achava. — O sorriso morre logo em seguida.


— O que pretende fazer quanto a Jude? — pergunta num misto de
curiosidade e apreensão.
Bato uma palma silenciosa, contraio os lábios e me apoio no parapeito.

— Não sei. Preciso pensar. — O rosto de Jude preenche cada


pedacinho escuro da minha mente quando fecho os olhos. Tudo em mim
anseia por ele, mas preciso ser mais cuidadoso. — Preciso pensar muito em
tudo o que você acabou de falar.

Ouço-a caminhar de volta ao apartamento. Abro os olhos e vejo-a


apanhar as sacolas de compras abandonadas sobre o sofá. Em seguida,
dirige-se à cozinha e desliga as luzes. Volta à sala e, quando alcança o
interruptor da sala, para e me encara:

— Se você realmente planeja fazer alguma coisa, não demore muito.


Brianna voltou da Europa na noite passada. Ela esteve aqui há apenas
algumas horas — diz num tom calmo, e então é envolta em escuridão. — Ah,
e se invadir minha casa ou apontar uma arma pra minha cabeça outra vez,
vou cortar seu pau fora e jogá-lo pras piranhas no rio Hudson. Quero ver qual
utilidade você terá pro Jude depois disso. — Caminha em direção ao corredor
sem olhar para trás. — Tranque a porta quando sair.
CURATIVOS
não há ouro nesse rio
em que estive lavando minhas mãos esse tempo todo
sei que há esperança nessas águas
mas simplesmente não consigo me convencer a nadar
quando estou mergulhado nesse silêncio
[...]
não há espaço pra mudança
quando ambos estamos tão profundamente presos em nossos egos
mas você não pode negar que eu tentei
easy on me — adele

palavras de Florence ruminando em minha


O LT O PA R A C A S A C O M A S
V
mente. Parece que um furacão acabou de passar dentro de mim,
bagunçando e destruindo tudo. Noah foi dormir assim que voltei, então estou
sozinho com meus pensamentos. Caminho pela casa como um cão sem
coleira, perdido, tentando decidir o que fazer, como fazer, quando fazer.

Meu coração me manda correr em uma direção enquanto minha mente


me manda ficar imóvel, observando a lua trilhar seu caminho no céu azul-
escuro.

Consegui um nome: Jason. Mas ainda não sei como ele se encaixa no
plano de Jude; não sei como eu mesmo me encaixo. Só vou conseguir o
resto da história se for direto à fonte, mas a fonte talvez esteja fechada para
mim.

Preciso tentar mais uma vez, certo? Ao menos mais uma vez.

Mas por que eu tenho que tentar? Por que ele não me procura?

E, no impasse deste monólogo interno, estou há meia hora encarando


a tela desligada do celular que ele me deu.
Um número ao qual apenas eu tenho acesso. Então, sempre que esse
celular tocar... atenda, não importa o que esteja fazendo, ele disse naquela
voz baixa e cínica, apertando a corrente no meu pescoço.

Então agora faça o mínimo e me ligue, seu desgraçado, penso.


Apenas ligue para a porra do número que me deu.

Minha mandíbula trinca. O ódio em meu olhar é refletido pelo vidro do


aparelho. Soco a mesa da cozinha, desviando minha frustração do celular, já
que sinto que posso atirá-lo na parede a qualquer momento. Esfrego o rosto
e sento na cadeira, tentando me controlar. Me arrependo do soco logo em
seguida, com medo de acordar Noah. Suspiro contra minhas mãos.

O local está parcialmente encoberto pela penumbra da noite, apenas a


luz do corredor da casa está acesa.

É pedir demais que Jude demonstre ao menos uma vez que precisa de
mim? É realmente pedir demais?

Encaro o aparelho por mais alguns segundos, que se tornam minutos,


que se prolongam em meio ao silêncio e ao vazio da noite. A frustração
dentro de mim — a única coisa deixada para trás depois da passagem do
Furacão Florence — recrudesce e recrudesce e recrudesce, atinge um nível
de fervura e cozinha meus nervos.

Cerro os punhos sobre a mesa e curvo a nuca para baixo.

Se você realmente planeja fazer alguma coisa, não demore muito, as


palavras de Florence ecoam sobre o silêncio ao meu redor como os sinos que
premeditam a chegada de um desastre. Brianna voltou da Europa na noite
passada.

Se é verdade, então as ligações que Jude recebeu enquanto


transávamos deviam ser dela. Quais motivos além da filha ele tem para odiá-
la tanto? Por que Florence tem tanto medo dela?

Então algumas peças do quebra-cabeça finalmente parecem se


encaixar em minha frente.

Procurar por Jude foi a primeira coisa que Brianna fez, e também
exatamente o que ele queria. Ele não está tentando fugir dela — está
tentando atraí-la. Penso em todas aquelas fodas no escritório, as em sua
casa, em quando me levou para a festa de sua filha, e em quando me
expunha como uma espécie de troféu a cada oportunidade que tinha: ele
queria que ela soubesse, queria que todos soubessem.

Te manter em segredo é exatamente o oposto do que quero, ele me


disse.

Esse filho da puta estúpido e egoísta quer me usar para atrair Brianna
direto para as suas garras? Essa é a minha parte em seu plano? Ser a isca?

Que plano incrivelmente egocêntrico.

Se o medo de Florence é algum indicativo, então Brianna Goldman é


tão perigosa quanto qualquer Snake — quanto Dom. E, se descobrir quem
sou, estarei fodido, ameaçado por dois inimigos poderosos diferentes. Mas
não sou o único que está em perigo. Meu coração palpita. Agarro o celular,
meus dedos o pressionam. Se ela estava tão ansiosa para falar com Jude,
isso significa que ouviu os rumores, significa que esse desgraçado também
está correndo riscos. Apenas agora percebo a dimensão da tensão em meus
ombros.

Jude realmente acha que eu o trairia quando, na verdade, fico neste


estado apenas por imaginar que está em perigo?

Desbloqueio a tela do aparelho. Abro as chamadas recentes. Há


apenas um número ali. Levo um mero segundo até decidir discá-lo.

A chamada toca, toca, toca, mas ninguém atende. Ele não me atende.

— Droga, Jude... — murmuro para mim mesmo. Esfrego os olhos.

Tento mais uma, duas, cinco vezes. E tenho o mesmo resultado em


todas.

No final, atiro o celular contra a pia e me levanto de supetão da


cadeira.

— Que se foda — resmungo para ninguém em especial, para a


escuridão que me cerca, enquanto caminho pelo corredor em direção ao meu
quarto.

Entro no cômodo por meros segundos, o suficiente para apanhar


minha jaqueta de couro e as chaves do sedan. Meu revólver ainda está na
cintura; carregado e pronto para estourar os miolos de qualquer um que
ameace Jude — nem que seja sua própria tia.
Fecho o quarto e caminho de volta à sala. Passo a jaqueta pelos
ombros e pigarreio baixo enquanto me aproximo da saída da casa. Não
importa o que aconteceu na noite anterior. Tudo o que importa é que preciso
encontrar Jude, preciso olhá-lo nos olhos e confrontá-lo sobre tudo o que
descobri.

Mas, quando abro a porta da frente, me sobressalto.

— Oh, desculpa. Eu tava prestes a tocar a campainha. — Olivia está


do outro lado, a mão parada no ar em direção à campainha. Parece tão
assustada quanto eu, retrai o braço lentamente. Está inteiramente vestida de
preto e se mescla às sombras da fachada mal-iluminada da casa. A única
exceção é a mochila cinza em seus ombros.

— O que você tá fazendo aqui? — pergunto, olhando ao redor.

Meus olhos são atraídos direto para o sedan, meu meio de transporte
até Jude. Parecia tão próximo até Olivia se enfiar em meu campo de visão e
obstruir a imagem do veículo.

— Desculpa, tô te interrompendo? — Ela toca seu pescoço, acanhada.


— Não quero ficar no seu caminho.

Presto um pouco mais de atenção nela, em sua mochila e mesmo em


seu carro estacionado ao longe. Tudo dá a impressão de que ela queria
chegar sem ser percebida.

Nego com a cabeça, arrependido da minha breve negligência.

— Não, não. — Bufo. Abro espaço para ela passar pela porta. — Foi
mal. Pode entrar. — Olivia força um sorrisinho agradecido no canto dos lábios
e segue minha deixa. Observo suas costas enquanto entra na casa e fecho a
porta atrás de mim. Sigo-a em direção ao balcão de mármore que separa a
cozinha da sala. — Aconteceu alguma coisa?

Guardo as chaves do automóvel no bolso da jaqueta.

Ela retira a mochila das costas e a descansa sobre o balcão. Se senta


na banqueta mais próxima, de frente para mim.

— Comigo? — Ergue as sobrancelhas. — Não sou eu que estou com a


cara quebrada, Kim. Eu sabia que se não viesse pessoalmente trocar os
curativos, você não os trocaria.
Apenas neste instante percebo que ainda estou com o clipe nasal no
lugar e fico pasmo. É como estar pelado e não notar suas bolas balançando
por aí.

Toco o nariz e movo a cartilagem antes deslocada. O desconforto é tão


pífio que nem chega a incomodar. Retiro o clipe e observo o pequeno pedaço
de plástico na palma da minha mão.

— Eu tô bem, Ollie — murmuro de volta e caminho até a cozinha. Jogo


o clipe no lixo sob a pia. Em seguida, sento na banqueta à sua frente.

Olivia se apoia nos cotovelos e revira os olhos.

— Sei que você é durão, mas pode relaxar só por um momento e me


deixar tomar as rédeas quanto a isso? — Puxa a mochila e abre o zíper
principal. De seu interior, retira uma versão em miniatura da maleta de
primeiros socorros que guarda em casa. — Só vai levar alguns minutos. Além
disso, se você continuar deslocando e quebrando sua cartilagem desse jeito,
vai chegar um momento em que ela não vai mais voltar pro lugar, Kim — diz
em tom de bronca.

Expiro fundo e esfrego as coxas. Estico o pescoço em direção à janela


da sala atrás de mim, buscando uma brecha pelas cortinas através da qual
possa ver o sedan estacionado no outro lado da rua.

— Se você tá ocupado — Olivia balbucia um pouco mais baixo —, eu


posso voltar outro dia.

Sai daqui!, o tom hostil de Jude ecoa em minha mente como uma
sirene. Tão feroz, tão egocêntrico. Tão distante.

— Kim? — e então a voz suave de Ollie, tão calma, tão familiar, tão
próxima.

Me sinto amarrado entre duas cordas que me puxam para lados


opostos. Um deles quer me destruir, a outra quer me curar.

— Não — sibilo para Olivia. Levanto-me da banqueta. — Vamos para o


meu quarto. Lá, faça tudo o que precisa fazer.

De pé, vejo uma faísca de satisfação no olhar dela.


O SENTIMENTO MAIS PERIGOSO
se você tiver um minuto
então por que não vem comigo
falar sobre isso num lugar
que só nós conhecemos?
este pode ser o fim de tudo
então por que não vamos
falar disso num lugar que só nós dois conhecemos?
somewhere only we know — lily allen

meu nariz grosseiramente, fazendo uma


L I V I A A P E R TA A C A R T I L A G E M D O
O
rajada de dor se espalhar do local. Faço uma careta e dou um tapa em sua
mão para que se afaste.

— Viu? Não demorou nada, seu idiota — diz. Mesmo diante da minha
resistência, ela passa o polegar sobre o clipe nasal, se certificando de que
está bem fixo sobre as narinas. — Por que é sempre um porre te convencer a
se sentar, calar a boca e me deixar fazer o meu trabalho? — Se afasta e
cruza os braços.

Ela está em pé em minha frente, o kit de primeiros socorros aberto ao


meu lado na cama. A janela do meu quarto está aberta atrás dela, uma brisa
serena balança as cortinas azuladas.

— Pare de exagerar.

— Não tô exagerando e você sabe disso — retruca em seu tom suave


e severo, o tom que sempre usa quando quer exercer sua dominância como
médica. — Às vezes... — continua, mas se interrompe.

— O quê?

Sua expressão se fecha, e sua voz abaixa ainda mais.

— Às vezes, acho que você me subestima.


— Não é isso. Não tô te subestimando, eu só... — me apresso nas
palavras, até que congelo. Percebo que o que estou prestes a dizer é
extremamente vergonhoso, mesmo que seja para uma mulher com quem já
me deitei. — Não estou acostumado a deixar outras pessoas cuidarem de
mim.

Ela inclina o pescoço para o lado, pega de surpresa.

— Mesmo depois de todos esses meses? — sussurra.

— Mesmo depois de todos esses meses.

Entrelaço os dedos, sentindo-me verdadeiramente exposto desta vez.


Desvio o olhar para longe do rosto de Olivia. Sem desviar a atenção do meu,
ela se senta ao meu lado. Aproxima a mão da lateral do meu rosto e acaricia
minha bochecha com cuidado.

— Tem medo de que eu acabe te machucando quando te toco desse


jeito? — pergunta.

Mantenho os olhos afastados dela.

— Não. Eu nunca teria medo de você.

Seu polegar esfrega minha mandíbula.

— Nem mesmo por causa da minha tatuagem?

De relance, fito a serpente que se projeta a partir de seu pescoço. Os


orifícios amarelos dos olhos dela parecem me encarar profundamente. Ainda
assim, engulo minha repulsa.

— Nem mesmo por causa da tatuagem.

Ela aperta meu rosto de maneira mais firme e me faz virar totalmente
para encará-la. Ollie se afasta alguns centímetros sobre o colchão, segura a
barra da camisa preta e puxa-a para cima, revelando seu torso liso e pintado
pelas tatuagens daquela organização maldita — os seios estão protegidos
por um sutiã preto e justo.

Cerro os punhos, sem conseguir desviar o olhar desta vez.

Ela abandona a camisa atrás de si, pega meu punho cerrado e o


aproxima de seu busto. Minha mão se abre ao tocá-lo, ao sentir a pele macia
sob meus dedos, ao tatear as proeminências ósseas e os músculos rijos, ao
sentir a pulsação constante e melódica de seu coração.

— É parte de mim, Kim — ela finalmente murmura. — Parte do meu


corpo. Sabe como me machuca escutar você pedir que eu me livre de uma
parte de mim?

— Uma parte que me manteve enjaulado por doze meses.

Ergo o olhar do busto às suas íris castanhas.

— Ainda assim, uma parte de mim. — Passa a ponta da língua sobre


os lábios e fecha a mão sobre a minha, esmagando mais meus dedos contra
seu corpo. — Eu nunca pediria pra você mudar alguma coisa que te faz quem
você é — diz sóbria, mas impaciente, como se constatasse o óbvio. — Eu me
importo com você.

— Eu sei.

Quando seus dedos relaxam sobre os meus, consigo puxar minha mão
para longe. Ela estreita os olhos em minha direção. Consigo ver sua
respiração se aprofundar.

— Normalmente — diz — você diria que me ama.

Contraio os lábios num meio-sorriso triste.

— Normalmente... — penso em todas as vezes em que isso aconteceu


— eu estaria muito mais quebrado do que estou agora. Acreditaria que você
faria tudo o que eu pedisse, que você era a certa pra mim.

Ela engole em seco. Por um tempo, enquanto me analisa, seus lábios


grossos permanecem entreabertos, até que murmuram:

— E você não acredita mais nisso?

Arfo e me levanto da cama. Me aproximo da janela.

— Não — respondo sem olhá-la.

— O que te fez mudar de ideia?

Me apoio no peitoral da janela, observo a paisagem feia e pobre ao


redor. Fico em silêncio não porque não sei a resposta, mas porque sei que
dizê-la em voz alta vai machucar tanto Olivia quanto a mim.
Suspiro. De qualquer jeito, é melhor arrancar o band-aid do buraco de
bala e deixá-lo sangrar.

Me viro para ela:

— Ollie, eu acho... acho que estou apaixonado por outra pessoa —


afirmo, um tanto relutante.

Ela não responde nada. Entra num estado de introspecção profunda.


Desvia o olhar para o chão enquanto engole em seco. Veste sua camisa
novamente e fecha o kit de primeiros socorros. Guardo-o na mochila e a joga
nas costas. Levanta-se da cama.

— Isso não significa que não podemos ser amigos — digo.

— É claro... — ela responde um tanto apressada, ainda evitando meu


olhar. — Fui eu quem sempre disse pra você não se apaixonar por mim, afinal
de contas. — Uma lufada de ar escapa de sua boca. — Não sei por que
estou surpresa agora.

— Eu te amei. Você sabe disso.

— Não precisa me explicar nada, Kim. — Finalmente me fita. — Mas


amor é o sentimento mais perigoso de todos. E você, em particular, tem um
coração mole. Então tome cuidado. Não quero vê-lo machucado novamente,
por fora ou por dentro.

Aceno sutilmente, e então olho ao redor no quarto escuro.

— Vou tentar.

Ela se aproxima da porta.

— Tô indo agora. Se isso é um adeus... então saiba que nunca me


esquecerei de você, Henney.

Umedeço os lábios.

— Eu também não, Olivia. Eu também não.

Ela me dá um último sorriso de canto, triste, mas cálido, antes de sair.

Quando sou a única alma acordada na casa escura novamente, toco


meu peito, sentindo o vazio crescer, e crescer, e crescer...

O vazio que Jude criou.


Preciso encontrá-lo.

Apanho minha jaqueta, as chaves do carro e caminho com pressa para


fora do quarto, pelo corredor e de volta à cozinha.

Estou prestes a correr em direção à porta da sala quando um brilho


estranho chama minha atenção. É a tela do celular que Jude me deu,
quebrada no chão graças ao meu acesso de frustração. Está acesa.

Mas que merda?

Agacho-me no chão da cozinha, próximo à pia, e apanho o aparelho


trincado.

10 ligações perdidas.
10M A L D I TA S , F O D I D A S , M I S E R Á V E I S L I G A Ç Õ E S perdidas.

Mas como? Como posso não ter ouvido um toque sequer?

Meus dedos tremem enquanto retorno a chamada mais recente.


Pressiono o aparelho fortemente contra a bochecha, a tela fria me causando
calafrios. Agarro meus próprios cabelos e puxo-os. A dor em meu couro
cabeludo me dá um pouco mais de clareza.

— Jude.

Não ouço nada, nenhum chiado sequer. Fito a tela: está acesa e
indicando que a ligação está tocando, embora não haja som algum saindo de
seus alto-falantes.

Merda. Devo ter quebrado a porra dos alto-falantes quando o atirei na


pia.

Desligo a chamada. Mesmo se ele me atender, não conseguirei ouvir


nada do que disser. Começo a perder o controle da minha respiração. A
mistura de desespero e culpa toma o melhor dos meus sentidos.

Aperto a extremidade da pia até os nós de meus dedos perderem a


cor, até minha mão ficar dormente.

10 ligações.

Ele me ligou 10 vezes.

Soco o mármore da pia. Começo a inspirar e expirar pela boca, o


coração acelerado, o peito pesado como se tivesse chumbo no lugar dos
pulmões. Encaro o histórico de chamadas outra vez para me certificar.

10 chamadas perdidas.

E se estiver em perigo?

E se quiser se desculpar?

— Kim? — a voz familiar de Noah soa ao meu lado. Lentamente, viro o


rosto em sua direção. Está vestido apenas em sua calça de moletom, despido
da cintura para cima, os cabelos bagunçados e o rosto sonolento. — O que
houve?

Fito-o. Conforme ele nota meu estado transtornado, fica mais alerta.

— Kim...?

— Volte a dormir, Noah.

E saio de casa praticamente correndo, sem lhe dar maiores


explicações.
BRIANNA
me leve pra igreja
vou louvar como um cão no santuário das suas mentiras
vou te contar todas os meus pecados
pra que você possa afiar sua faca
take me to church — hozier

vez. Ouço a sequência de bipes irritantes do


E FA Ç O A L I G A Ç Ã O P E L A N O N A
R
outro lado por um minuto inteiro pela nona vez.

O número para o qual você ligou não está disponível no momento, por
favor, deixe um correio de voz depois do—

Kim não me atende pela maldita nona vez.

— Pra quem está ligando? — a voz fria e ríspida assopra atrás de mim
como a brisa da morte em um dos meus pesadelos.

Minhas entranhas se enroscam em si mesmas e fico completamente


paralisado. Tento da melhor forma esconder minha tensão e continuar
relaxado por fora, embora não consiga evitar espremer mais o celular em
minha mão.

— Meu chofer — murmuro quase sem voz, sem emoção, sem


entusiasmo algum em iniciar essa conversa inevitável.

— Ele pode esperar; eu, não. Desligue o celular.

Ouvir sua voz mais claramente me causa um enjoo fulminante. Mordo


fortemente a língua para conseguir controlá-lo e não vomitar sobre a mesa.
Encerro a ligação sem deixar uma mensagem de voz e afasto o aparelho do
ouvido. Deixo-o ainda ligado sobre a mesa, a tela virada para cima.

Viro-me apenas o suficiente para ver rastejar ao redor da minha


cadeira a mulher loira, alta, magra e de meia-idade — uma serpente entupida
de botox e com as escamas protegidas por roupas de grife. Ela caminha até a
cadeira à minha frente na mesa redonda. Sob a iluminação parca e os
cochichos baixos do restaurante alemão, seus movimentos parecem ainda
mais obscuros, perigosos e imprevisíveis.

Brianna Goldman descansa sua bolsa prateada com detalhes


dourados sobre a toalha branca da mesa e se acomoda na cadeira
calculadamente, sem retirar os olhos azuis-escuros de mim por um segundo
sequer. Ela parece desconfortável no vestido branco justo, mas sei que isso é
um truque para parecer mais vulnerável do que realmente está. Os fios
presos num rabo de cavalo apertado para trás e os litros de produtos
rejuvenescedores na cara disfarçam suas linhas de idade. Sua carcaça
parece vinte, trinta anos mais nova. Sob a luz certa, parece até mais nova do
que eu. A personificação de um lobo em pele de cordeiro: um ser humano
com um exterior belo e um interior tão podre que poderia intoxicar qualquer
um que o desbravasse.

Minha querida tia.

Apoia os antebraços na extremidade da mesa. Seus dedos finos,


pálidos e ásperos se entrelaçam sobre a toalha, deixando expostas as unhas
pretas e afiadas. Ela mantém a postura desconfortavelmente reta o tempo
todo, até que se inclina em minha direção como uma naja. O pescoço longo
carrega um colar pesado de pérolas grudado à pele, tão fina que é possível
ver as veias mais calibrosas sob ela — pequenos rabiscos verdes e azuis, os
únicos indicadores de que seu coração bate de verdade e de que ela não
está mentindo sobre isso também.

Seu olhar é afiado, corta minhas armaduras e as decapita, deixando


para trás apenas os cadáveres sem cabeça; é asfixiante, me faz esquecer de
como respirar; é intenso, tão intenso que sinto minhas vísceras expostas
sempre que me fita deste jeito. Mas não sou mais um garoto, e não sou mais
uma de suas marionetes. Não sou mais fraco, e não sou mais indefeso.
Posso retornar o olhar afiado, asfixiante, intenso e gélido. Posso me mover
da mesma maneira fria, calculada e fajuta. Ela me fez entender que há poder
em ser subestimado. É melhor que não acabe vítima de seus próprios jogos e
me subestime agora.

Desvia as íris tóxicas de mim para o aparelho ligado sobre a mesa,


então para mim novamente, de volta para o aparelho e para mim mais uma
vez.
— Vou deixá-lo ligado — rebato a ordem implícita em seu olhar — para
caso algo importante aconteça. Tenho que manter meus olhos em todos os
lugares, tia. — Pego minha taça de vinho e tomo um gole longo e lento. O
primeiro de muitos, tenho certeza. Ao final, umedeço os lábios e ergo uma
sobrancelha. — Assim como você.

Ela semicerra os olhos em minha direção, mas um sorriso cordial


estica-se em seus lábios finos e rosados. Sua voz, no entanto, permanece
tão ríspida quanto antes:

— Suponho que tenha te ensinado bem.

Ela repete meu gesto com sua taça, tomando um gole que parece
surpreendê-la. Ao afastar a borda de cristal dos lábios, observa a taça com
uma contemplação sobressaltada.

— Como você está, Jude? — murmura, mantendo os olhos no vinho.


Após alguns segundos, deixa a taça ao lado e volta a se concentrar em mim.

Expiro alto e desvio o olhar para a vista da cidade.

— Nunca estive melhor. — Batuco levemente com um dos indicadores


sobre a mesa. — E você, tia? — Viro-me para ela, para seu semblante calmo
e perverso. — Cansada da viagem emergencial de volta que fez no meio da
noite?

E, com a testa franzida, tomo meu segundo gole de vinho. O álcool


desce mais gelado do que o normal pela minha garganta seca e sinto gota
por gota atingirem meu estômago.

É difícil controlar a ansiedade na presença dela, mesmo depois de


tudo.

— Nem um pouco — responde sem hesitar. O sorriso se alarga. —


Como estão minha nora e minha neta?

— Elas não são sua nora e neta, se bem me lembro. Você não é minha
mãe.

— Criei você desde que era um garotinho, inocente e indefeso. Trouxe


você para a minha guarda; ensinei-o tudo o que sabe hoje. É difícil não sentir
por você o que eu sentiria por um filho.
— Tente — digo de forma ácida, então reviro os olhos. — Quanto a
Florence e Audrey, não sei. Talvez você mesma devesse perguntar a elas.

— Já fiz isso à tarde.

Enrijeço. Meus dedos dos pés se contraem, meus tornozelos tremem,


minha mandíbula range. Ela, é claro, percebe tudo.

Brianna apoia o queixo sobre os dedos entrelaçados, seus olhos


percorrem o entorno.

— Florence pareceu muito chateada com sua insistência em morar em


casas separadas.

Engulo em seco, mas não consigo engolir tudo o que preciso para me
recompor. Então uso mais um gole de álcool para fazê-lo.

— Florence se chateia muito fácil.

— Sério?

— Sim. — Relaxo os ombros. — Não se lembra de como ela gritava


por ajuda sempre que você a arrastava pras consultas de pré-natal? — Abro
um sorriso sugestivo, maldoso, no rosto. Continuo num tom melódico: — Se
ao menos houvesse um médico que quisesse muito, muito fazer um aborto
naquele hospital.

Inspira fundo, o olhar se distanciando como se ela farejasse o


sarcasmo dentro de mim.

— Não estou com paciência para as suas provocações, Jude —


replica, a voz pausada, rígida e hostil.

— Não? — Uma risada de escárnio me escapa. — Então por que não


cortamos a conversa fiada? — Como ela, inclino-me sobre a mesa,
aproximando nossos rostos. — O que está fazendo aqui? — sussurro. — As
negociações da Goldman com a União Europeia ainda estão ocorrendo. Seria
péssimo pra nossa empresa não chegar em um acordo com os governos
europeus por ausência de sua CEO. Pense em todo o trabalho duro que seria
jogado pela janela. — Cerro meu punho e o ergo até seu olhar. Abro os
dedos em seguida, lentamente. — Pffft. Indo embora como o vento.

Suas íris não pairam sobre meu punho uma única vez, seguem fixas
no meu rosto. Contrai os lábios; eles perdem a cor. É o pouco indício de falta
de decoro que Brianna Goldman se permite expor.

— As negociações com a UE estão sob controle — grunhe. — Na


verdade, esperei até que chegassem no patamar em que estão pra voar de
volta até aqui. E, mesmo assim, ficarei em Nova York por pouco tempo.

— Que pena. Senti tanta falta da minha querida tia nos últimos meses
— resmungo.

Brianna abandona a postura rija de antes. Desentrelaça os dedos,


cruza uma perna sobre a outra e se recosta na cadeira, um dos ombros
desnudos voltado parcialmente às janelas.

Volto o olhar à mesa e termino com o vinho restante na minha taça.


Depois que engulo todo o líquido tinto, encontro o olhar incomodado da
minha tia. Dou de ombros e abro um sorriso forçado.

— Há algo que você queira me dizer, Jude? — pergunta num tom


suave, mas sutilmente desconfiado. E essa sutileza é tudo o que preciso para
sentir os rumos da conversa se alterando.

— Como o quê?

— Qualquer coisa fora do comum que tenha acontecido na sua vida


enquanto estive fora.

Destampo a garrafa de vinho sobre a mesa e preencho minha taça até


a metade. Seguro-a pelo bojo e a balanço no ar. Observo o vinho dançar e
dançar em seu ambiente limitado, tão complacente mas tão cheio de ira. Uma
gota seria o suficiente para manchar minha camisa branca. Um pouco mais
de força em meu giro... causaria um desastre.

— Não consigo pensar em nada — respondo com um biquinho,


negando com a cabeça.

Ergo o olhar até o rosto cruel da minha tia e vejo ali a sombra de algo
que nunca vi antes, algo que me deixa atento. Aperto os lábios sem sequer
perceber.

— Você tem o tom cínico do seu pai quando mente. O mesmo apertar
de lábios quando está tenso, também.

O vinho para de girar em minhas mãos. Sei que o que ela diz é uma
ameaça silenciosa, seu modo de exercer dominância mesmo numa conversa
casual. Não existe trivialidade ou conversa fiada quando se trata de Brianna,
tudo sempre é um jogo. Um jogo em que seus interesses devem sempre ser
os vencedores.

Deixo a taça na mesa. A menção inesperada ao meu pai faz um gosto


amargo subir à minha boca.

— Isso pode ser considerado uma calúnia — replico.

— Meu próprio sobrinho vai me processar?

Estica um dos braços sobre a mesa. Encaro suas unhas pretas num
contraste terrível contra a toalha de mesa branca. Imagino qual seria a
sensação de arrancá-las uma a uma com um alicate.

— Talvez você não me conheça tão bem quanto pensa.

Ela percebe meu olhar fixo em suas unhas, e as esconde, cerrando o


punho.

— Que tal se deixarmos meus pais fora desta discussão? — sugiro. —


Falar sobre os mortos atrai... má sorte.

— Sim, atrai — murmura. — Ouvi alguns rumores — e continua,


insinuante como um incêndio se aproximando de uma floresta. O calor me
deixa completamente frio.

— Sobre quem?

— Você.

— Como? Você estava em outro continente.

— Não pode achar que eu deixaria minha família sem guarda


enquanto estivesse fora, não é mesmo? Preciso saber a todo momento que
vocês estão seguros. — Sim, Brianna. É exatamente com isso que eu
contava. — Os rumores, no entanto... — Faz uma pausa longa. — Eles têm
um tom diferente do que eu esperaria.

— Um tom diferente?

— Um tom difamatório.

Cerro os punhos e percebo que estou começando a suar frio.


— Então o problema não está na fonte, mas sim em quem os está
espalhando, não é? — Arqueio uma sobrancelha.

Seu olhar arrepiante aprofunda-se sobre mim como se deixasse de


visualizar somente a superfície e investigasse coisas mais íntimas: meus
ossos, talvez; algo bem profundo e escondido. Enquanto seu olhar se
prolonga, minha pele queima como se fosse esfolada. Preciso me lembrar de
respirar corretamente, de esconder meu nervosismo.

— Por que está agindo de forma tão defensiva quando nossa conversa
apenas começou? — questiona lenta e séria como um felino que brinca com
sua presa. Arrasta as garras afiadas sobre mim, me fazendo sangrar um
ferimento por vez. Há uma nuance de repreensão em suas palavras, em seus
lábios cruéis e na forma como parece se alimentar do meu nervosismo
reprimido.

— Um homem que não entra em defensiva quando está com você, tia,
é um idiota.

— E você não é um idiota, não é mesmo, Jude?

— Me diga você — retruco, seco.

Brianna faz um silêncio mais prolongado desta vez. E, junto a este


silêncio, ergue-se um muro de tensão entre nós.

— Esteve mesmo frequentando os clubes ilegais das gangues desta


cidade nas últimas semanas? — finalmente pergunta. — É verdade que
comprou um dos cães de briga dos ringues?

Bato no cristal da taça com a ponta do indicador, minha unha faz um


estampido agudo e irritante ao encontrar a superfície sólida.

— E daí se for? — provoco. Ergo os olhos até os dela, tão hostis e


severos quanto quando me encontrou comendo Jason seis anos atrás. —
Isso muda alguma coisa na sua vida, titia?

— Por que fez isso?

— Por que você acha? — Meu coração se acelera, chego próximo de


uma síncope. Não posso me concentrar em controlá-lo agora, não quando as
presas da serpente estão finalmente se expondo. Envolvo o recosto da
cadeira com o braço esquerdo e estico o direito sobre a mesa. Mantenho o
olhar dela preso ao meu quando disparo: — Me apaixonei por ele. À primeira
vista. Eu deveria ter ido lá apenas pra assistir à luta, pra apostar como
qualquer um dos outros caras. Mas, quando me deparei com aquele homem
ensanguentado, machucado, derrotado... algo despertou dentro de mim. Algo
selvagem, primal. — Engulo em seco e aperto os lábios. Desvio o olhar para
a mesa à nossa direita, para o casal de mulheres que parece envolto em uma
conversa íntima. — Eu precisava tê-lo. Não havia alternativa. Eu o queria. —
Volto a encarar minha tia. — E você sabe que sempre consigo o que quero.

Brianna tem nojo estampado em sua face. Um nojo viscoso, corrosivo,


o tipo reservado às coisas que mais se odeia no mundo, às coisas que
destruiria se pudesse, que desejaria nunca ter encontrado na vida. Ela
poderia ter escondido isso, mas escolheu não fazê-lo. Quer que eu saiba que
a deixo enojada.

E eu sabia que ela faria isso. Minha tia está ficando mais previsível a
cada vez que tenta me machucar.

— Isso não é amor — ela cospe depois de um ou dois minutos. As


palavras mal passam por sua mandíbula fortemente cerrada. — É
possessividade.

Abro um sorriso de escárnio.

— E qual é a diferença? Você não ama tudo o que possui? — Ela se


pressiona mais contra a cadeira. — Eu só... — me inclino sobre a mesa para
sussurrar — não conseguia conter a vontade brutal — espalmo meu peito —
de tê-lo dentro de mim. É o tipo de coisa que você só acredita quando sente,
tia.

Meu sorriso se alarga quando vejo uma mancha rosada crescer a partir
de seu pescoço e alcançar suas bochechas. Ela descruza os braços e cerra
os punhos sobre a mesa. Parte de seu rosto está encoberto por sombras
quando diz:

— Pare de falar absurdos! E se comporte quando estiver falando


comigo. Não sei o que aconteceu com você enquanto estive fora, mas se
lembre de que sou sua tia, sua parente mais próxima, e puni-lo — inspira
fundo — ainda é um direito meu.

As linhas duras de seu rosto se acentuam depois de dizer isso, o brilho


gelado do olhar torna-se insuportável. Há em sua voz uma promessa de
violência tão explícita que me asfixia, me enlouquece.

Ela realmente acha que vou permitir que toque em mim novamente?

— Tem certeza disso? — replico, áspero e baixo. As palavras doem ao


deixarem minha garganta. — Tem certeza de que você já teve esse direito
algum dia, tia?

Sua expressão desagradada permanece fixa em mim sem sequer


sugerir responder. Já encarei seu ódio ácido antes, e em situações muito
piores do que esta. Já o encarei e senti todo o poder de destruição que tem.
A verdade é que me preparei bastante para este momento, para este
confronto específico. Mesmo assim... mesmo assim...

— Livre-se do cão — ordena depois de um tempo excruciante. — Se


recomponha. Volte a ser quem você era antes.

Ela descruza as pernas e limpa a garganta. Pelas alças, pega a bolsa


que havia repousado na mesa; está se preparando para encerrar a conversa.

— Quem eu era antes? — disparo de volta, enfurecido. — E quem eu


sou agora?

— Você era o herdeiro da Goldman Entertainment. — Ela estufa o


peito, as pérolas brilhantes de seu colar balançam desconfortavelmente sobre
as clavículas pontudas. — O homem que criei. Não esse... — Analisa meu
corpo. Quando termina, contrai os lábios. — Seja lá o que for que esteja na
minha frente.

— Você não criou um homem, Brianna. Criou um projeto, uma


marionete que quer controlar enquanto puder — rosno de volta, tremendo. —
Essa marionete não existe mais. Este sou eu. Você só não quer admitir isso
pra si mesma.

Ela entreabre os lábios, mas permanece em silêncio, observando


minha leve perda de compostura.

— Se livre do cão.

— Seu nome é Kim — replico, firme. — E não tenho intenção alguma


de me livrar dele. — Como ela, estufo o peito. Ergo o queixo e cruzo os dedos
sobre a mesa. Me fixo no ódio e na repreensão mascarados sob seu
semblante calmo e severo, então bato o último prego no meu próprio caixão:
— Eu amo ele.

Suas mãos se afastam das alças da bolsa e suas costas despencam


sobre o encosto da cadeira como se um murro invisível a tivesse atingido.
Observo seus olhos piscarem rápida e seguidamente, a mancha rosada em
seu pescoço se intensificar. Suas sobrancelhas tremem, há um breve
momento em que não vejo seu peito subir nem descer, subitamente estático.

Posso apenas imaginar a intensidade com que ela tenta se controlar


neste momento.

Por alguns segundos, a tensão sobre ela me faz acreditar que vai
mesmo pular em cima de mim e cortar meu pescoço com a faca de prata ao
seu alcance. Pouco importa que estejamos no meio do restaurante e
rodeados de espectadores.

Bem, que se fodam o assassinato de Jason e seus outros crimes. Se


ela apodrecesse na cadeia por me matar, eu já ficaria feliz o suficiente.

Então, durante esses mesmos segundos, permaneço na expectativa,


gritando internamente para que ela faça logo isso, implorando com o olhar
para que finalmente me dê o que vim buscando nesses últimos seis anos.

— Um homem não pode amar outro homem — é tudo o que diz


quando volta a respirar.

Meu pescoço continua intacto, o que me alivia e me frustra


simultaneamente.

Aproximo-me dela e aponto para o meu próprio rosto.

— Olhe no fundo dos meus olhos e veja por si mesma se estou


mentindo. — Ela enrijece, pega de surpresa. As íris acompanham meu dedo,
seu olhar analisa o meu por algum tempo. — Você sempre se vangloriou por
saber quando alguém está ou não dizendo a verdade, certo? — Abaixo o
dedo. — E aí, tia? O que acha?

Ela estreita o olhar e, sem replicar nada, o desvia para as mesas mais
próximas. Talvez estupefata, talvez contemplativa. É difícil de dizer sob a
meia-luz do restaurante. Encaro a lateral exposta de seu pescoço.
— Sei o que está passando na sua cabeça — sussurro. — Que há
apenas duas explicações plausíveis pra isso: ou estou falando a verdade... —
ela retorna a atenção a mim bruscamente — ou aprendi a enganá-la tão bem
que não sabe mais se o que estou dizendo é verdade ou mentira. Qual das
duas possibilidades te assusta mais?

— Não pensa na sua filha? — replica pausadamente, rija como as


fibras de uma corda se estendendo. — O que acha que Audrey vai pensar
quando descobrir que seu pai—

— Audrey tem quatro anos, mal pode pensar por si própria. —


interrompo. — Isso é tudo que você tem, tia?

— E Florence? — Arqueia as sobrancelhas finas e anguladas. — E


eu?

— Quer mesmo que eu responda isso?

Novamente, tenho a vertiginosa sensação de que ela está prestes a


apanhar uma das facas de serra sobre a mesa e abrir minha garganta com
ela. Engulo em seco e estico o pescoço para cima, deixando uma área livre
bem grande para que ela faça o que tiver que fazer. Não confio em sua
compaixão, sei que está pensando no mesmo, e tenho isso confirmado
quando seus olhos descem até a minha garganta com um brilho perverso.

Como a boa covarde que é, escolhe rasgar meu pescoço com


palavras:

— Me recuso a reconhecer que uma gota do sangue da minha família


corre em suas veias. Você não é um Goldman de verdade: é apenas um
bastardo. Um bastardo ingrato e egoísta. Tão mesquinho e prepotente quanto
o seu pai. Tão medíocre e desprezível quanto a sua mãe. — Inclina o rosto
até o meu, seu hálito gelado e denso me causa repulsa imediata. O olhar
perverso se acentua. — Talvez até mais. Seus pais, ao menos... tinham uma
fração de decência. Nunca mancharam nosso sobrenome desta forma.

As palavras cavam buracos em minha pele e penetram pelos


ferimentos como pequenas sanguessugas, alojando-se em meu cérebro.
Minha mente se enevoa diante do eco de sua voz cruel.

Quando me recomponho, ela já levantou da mesa. A bolsa balança em


sua mão direita, enquanto, com a esquerda, alisa a parte frontal do vestido.
Brianna Goldman sempre anda em público afiada como uma navalha, mortal
como uma bala. Invencível, indestrutível, inalcançável.

Há apenas um problema em seu caminho.

— Se eles tivessem tido tempo suficiente, talvez manchassem —


murmuro de volta, áspero, e minha voz a prende no lugar. — É realmente
uma pena que o jato particular deles tenha caído no meio do Atlântico tão
abruptamente, não é mesmo, tia? Quem poderia imaginar; o veículo nunca
tinha apresentado uma falha sequer; o piloto era um dos melhores e mais
caros do mundo; seria um voo rápido para uma reunião igualmente rápida,
tudo tão seguro que eles nem se preocuparam em embarcar com o filho
naquela viagem em particular? Você pode imaginar o que teria acontecido se
eu tivesse insistido para ir com eles para Paris? Eu sempre amei baguetes
francesas, você sabe disso. Consegue imaginar as manchetes dos jornais no
dia seguinte? O final trágico da família Goldman. Pai, mãe e filho mortos num
acidente inexplicável, sem resolução. Exceto que, é claro, ela não teria
acabado. Você ainda estaria aqui, titia, sã e salva. A última alma sobrevivente
de nossa família. Consegue imaginar?

Não há um único traço de reação em seu rosto ou em seu corpo, nada


que indique que o que eu disse a deixou incomodada, o que significa que
consegui atingir um nervo. Sei que, por dentro, ela conseguiu captar a
ameaça em minhas palavras. Sei que já está pensando em alguns cenários
para resolver isso. Sei que não consegue entender o porquê de minha
mudança de comportamento tão repentina. E sei que vai conseguir entender
tudo em breve, vai tirar suas próprias conclusões. Expus minhas próprias
garras e machuquei de volta o felino maior, o que significa que tenho pouco
tempo.

— Sou um ingrato. Sou um homem egoísta, mesquinho, prepotente,


medíocre. Talvez até desprezível — digo com os dentes semicerrados.
Empino o queixo, como ela, e fito o fundo de suas íris. — Mas não sou um
bastardo. Sou o filho único de Henry e Amelia Goldman. Sou seu sobrinho
legítimo, Brianna. O único. Sou o herdeiro da empresa de meus pais. E uma
coisa posso te garantir: você não continuará roubando o que é meu por muito
mais tempo.

Ela aperta a alça da bolsa, um ódio frio domina seu semblante.

Nego com a cabeça.


— E nunca mais vai me tocar. Nunca mais vai tentar me dizer quem
sou; o que posso ou não fazer; quem posso, ou não, amar.

Nos encaramos por alguns instantes. A inquietação se aquece dentro


de mim; a ansiedade por descobrir seus próximos passos me queima, mas
sigo firme.

Brianna continua tensa até o momento em que um sorriso macabro


desenha-se em seus lábios — o sorriso de uma besta.

— Veremos. — Mordisca o lábio inferior e estala a língua. — Obrigada


por desperdiçar meu tempo. Milhões estão escorrendo por meus dedos neste
exato segundo, mas consertarei isso. — Seu olhar percorre o restaurante por
alguns segundos antes de retornar a mim. — Assim como consertarei você.
— Em pé, ela gira sobre o próprio eixo e se volta à minha cadeira. Espalma
uma mão sobre a mesa e se inclina sobre mim como algum tipo de pesadelo
noturno. — Não consegue ver que, não importa quantas vezes você se
rebele, me desafie, saia da linha... sempre te colocarei de volta nela? Como
coloquei seu querido cão no hospital. — Arregalo bem os olhos. — Não finja
surpresa. Achou que os Snakes tinham sido os responsáveis pelo acidente?
É inteligente o suficiente para saber a verdade. Surpreendente é ele ter
conseguido sair com vida. Mas não se preocupe: da próxima vez, garantirei
que isso não se repita.

Minha desconfiança estava certa. Essa puta tentou mesmo matar Kim.

Estou ocupado demais tentando não ser engolido por seu olhar
asfixiante ou seu hálito repulsivo para perceber o movimento de seus dedos
sobre a mesa. Recosto-me na cadeira para me afastar dela. Alguns segundos
depois, sinto, no topo da cabeça, algo líquido, que se intensifica e se espalha,
desce pelas laterais do meu rosto, pescoço, ombros, pelo meu torso inteiro. A
sensação gelada e arrepiante me atravessa.

Brianna não desvia os olhos dos meus por um maldito segundo sequer
enquanto me banha com o vinho da própria taça. Pelo contrário: quando o
líquido escorre pelo meu rosto, ela parece ainda mais interessada, como se
eu fosse uma obra de arte que ela estivesse pintando. Seus dedos são os
pincéis. Meu corpo, sua tela.

Quando termina, repousa a taça sobre a mesa com um estampido


surdo e se afasta.
Meus olhos passeiam pelo restaurante. Todas as atenções estão
voltadas a mim, o desgraçado que acabou de receber uma repreensão
pública de sua própria tia — ou mãe, ou esposa, se não souberem quem
somos. O idiota com a camisa branca manchada de tinto, com os cabelos
grudados no rosto pelo líquido, imerso em álcool e humilhação. Neste
momento, não há sons de talheres, cochichos ou risadas, apenas um silêncio
assustado e curioso. Um silêncio degradante.

Quando meus olhos retornam à responsável pela humilhação, é minha


vez de fantasiar com rasgar seu pescoço, retalhá-lo até o osso, deixar
apenas uma carcaça deformada para trás.

Minha mente emudece depois dessa breve fantasia. Não penso, não
reajo, não sinto. Tudo o que consigo fazer é existir. Existir por mais um
tempo, até que essa desgraçada receba tudo o que merece.

— Tem razão. — Uma lufada de ar escapa de sua boca. Gotas de


vinho despencam sobre meus cílios, atrapalhando minha visão de seu rosto
severo. — Você não é um bastardo. É mesmo meu sobrinho, somos os
únicos sobreviventes de nossa família. Mas sabe o que isso significa? Que
sou a única que sabe o que é melhor para você. — Aproxima-se do meu
ouvido, então sussurra: — Meu amor por você é infinito, Jude. Minha
perseverança, também. — Se afasta o suficiente para me fitar. — Você pediu
por isso.

E, com um último cintilar de ódio em suas íris, vira-se bruscamente,


sem consideração ou despedidas. Observo os ossos pontiagudos de suas
costas esguias e expostas pelo vestido enquanto ela se afasta da mesa e se
aproxima da porta de saída do restaurante. O pisar de seus saltos longos e
finos é o único som no restaurante. Passando entre uma mesa e outra, um de
seus seguranças pessoais — que esteve esse tempo todo escondido nas
sombras — aproxima-se e cobre seus ombros com um casaco preto de pele
de zibelina.

Na porta, ela para e me fita sobre os ombros. Há a promessa em seu


olhar, algo que decidiu entre o momento em que jogou o vinho sobre mim e o
momento em que alcançou a porta. Ela vai tentar matar Kim de novo, e logo.
Desta vez, terminará o serviço.

Brianna deixa o restaurante e o segurança fecha a porta às suas


costas.
Meu estômago se embrulha.

Encaro o chão, subitamente desnorteado.

Pela visão periférica, vejo o vulto da aproximação de um dos garçons.

— Senhor — ele tem um guardanapo de tecido estendido nas mãos


—, por favor, me deixe—

— Não me toque! — repreendo, e minha voz ecoa pelo restaurante


inteiro.

Direciono a ele um olhar tão feroz, tão alterado, tão cheio de fúria e
rancor e mágoa e medo e ansiedade que ele interrompe seus passos
imediatamente e ergue as mãos no ar em sinal de rendição.

Há pavor em sua voz quando diz:

— Perdão. — E se curva, afastando-se tão rápido quanto se


aproximou.

Meu peito pesa, ciente de que Kim está sob risco de morte. Não será
difícil para minha tia descobrir tudo sobre sua vida, sumir com ele antes que
eu possa sequer pensar em fazer alguma coisa. Eu já sabia que isso iria
acontecer. Mas então por que me sinto assim? Por que não sinto apatia? Por
que me importo tanto?

“Quero saber mais da sua vida”, ele me disse. “Não sou seu inimigo”.

Mentiras, mentiras, mentiras. Eu preciso acreditar que são mentiras. É


o único jeito de manter controle sobre o que está acontecendo.

Se eu me permitir acreditar em Kim, se eu me permitir... me sentir


desta forma... então estou entregando mais uma vulnerabilidade minha de
mão beijada à Brianna. Estou, mais uma vez, dando a ela a oportunidade
perfeita para me quebrar.

E não posso ser quebrado. Não agora. Não quando estou tão perto.

Por que dói estar longe dele?

Minha respiração se exaspera. Meu autocontrole se derrama de mim


como as gotas de vinho. Me sinto frio e vazio e angustiado. Pego o celular
esquecido na mesa e disco em alguns segundos o número que dei a Kim.
É a décima maldita vez que tento ligar para ele.

— Atenda — imploro para o vazio à minha frente. A dor em meu peito


irradia para o resto do corpo.

Fecho os olhos, aperto as pálpebras cerradas com os dedos. Meu


rosto se contrai. Quando ouço a décima mensagem me instruindo a deixar
um correio de voz, desisto.

— Filho da puta.
I S PA R O PA R A F O R A D O R E S TA U R A N T E me sentindo duplamente humilhado.
D
Os olhares curiosos das pessoas ao redor acompanham meus
passos até me verem deixar o local. A ira em meu olhar faz o corredor que
leva até o elevador parecer vermelho, manchado de sangue. Posso ouvir
seus sussurros cruéis se erguerem às minhas costas até, por fim,
desaparecerem. Apesar do rubor em meu rosto, meus passos são firmes e
decididos. Entro no elevador.

A verdade é que não há como continuar fugindo: se quero mesmo


destruir minha tia o mais rápido possível, preciso ir até o fundo da cova que
cavei para mim mesmo.

Esmago meu celular contra o peito durante o caminho até o subsolo.


Inspiro e expiro fundo. Preciso colocar meus pensamentos no lugar, analisar
os cenários e os próximos passos de Brianna.

Ela não blefa, então sei que eliminar Kim é um item prioritário em sua
lista.
Preciso avisá-lo sobre isso. Não deveria, mas preciso. Não é parte do
plano, mas preciso. Isso só fará as coisas piorarem, mas preciso.

As portas do elevador se abrem. Entro no estacionamento pobremente


iluminado. Caminho até meu carro. O chofer substituto se apressa para abrir
a porta do passageiro e faz seu melhor para ignorar meu estado. Percebo um
ou outro olhar inconveniente. Vou demiti-lo amanhã por isso.

Suspiro. Navego pela lista de contatos do celular até achar o único


número que pode me ajudar neste momento. Ligo. Meu olhar paira vazio na
janela do carro.

Dom me atende no segundo toque.

— Que surpresa — sua voz soa cínica do outro lado. No fundo, há o


coro distante de uma plateia, sons de golpes e uma voz mais alta, talvez
alguém falando num microfone.

Reviro os olhos.

— Está com os arquivos que me prometeu?

Ouço os gritos da plateia se intensificarem por um breve segundo.

— Sim. Venha buscá-los. — Sua voz se torna mais baixa, mais grave.
— No ringue — sussurra.

Engulo meu orgulho e encerro a ligação.

Em momentos como este, gostaria de estar morto.

— De volta pra casa, senhor? — o substituto pergunta, as mãos


inertes sobre o volante.

— Não.

— Pra onde, então?

— Pro inferno.
ISSO NÃO É A VIDA REAL
meus demônios estão implorando pra que eu abra a boca
preciso que eles deixem as palavras saírem mecanicamente
eles lutam contra mim, furiosos
lambem as chamas que eles mesmo criam
vendi minha alma ao Diabo
e ele me disse que eu era santo
me fez ficar de joelhos
hold me down — halsey

TÃO DESCONFORTÁVEL QUANTO DA primeira vez; tão desnorteante quanto


É
também. Você não acha que estar sentado numa arquibancada pode te
deixar tão perturbado até se sentar nesta.

Os assentos à minha esquerda e à minha direita estão vazios: me


sentei numa das fileiras vazias da plateia, localizadas mais ao topo. Aquelas
mais próximas do ringue estão lotadas, em fervor pela luta que se prolonga
há quase quinze minutos no tatame. Os dois homens em bermudas
esportivas, torsos desnudos e luvas de boxe estão sangrando; um deles tem
um nariz quebrado; o outro, um olho inchado. Mas continuam se esmurrando,
continuam quebrando seus corpos e suas almas na expectativa de escapar
do machado do carrasco por mais uma noite.

Isto não é um esporte. Acho que ninguém discordaria disso. Está mais
para um espetáculo — sádico e sangrento, perverso e violento, incômodo e
visceral. E é bem-sucedido nisso pelo menos. A luta entretém. Você não
precisa se preocupar com nada em meio à escuridão da arquibancada ou aos
gritos dos outros sociopatas ao seu lado. Pode esquecer de seus problemas
fora destas paredes, de sua vida na superfície. Sua vida agora consiste em
tentar adivinhar qual miserável terminará esta noite com a garganta cortada;
seu único problema é apostar no cão certo, aquele cheio de fúria e garra
suficiente para ver a luz do sol mais uma vez. Por 364 dias, este foi Kim.

Esse pensamento é nauseante.


Mas, no meu interior, entendo como esse espetáculo funciona,
entendo seu efeito nos homens, entendo sua necessidade — os cães são
nada mais, nada menos, do que devedores dos Snakes, e morreriam de
qualquer jeito.

Kim também deveria ter morrido.

Relembro da noite em que o vi pela primeira vez, logo depois de


descobrir que Olivia era o nome da pessoa que esteve envolvida no
assassinato de Jason há seis anos. Ele estava logo ali, lutando como um
animal feroz, destruindo seu oponente como se fosse a coisa mais natural do
mundo, como se fosse a única coisa que soubesse fazer. A experiência
nesse tipo de embate era nítida na forma como se movia, como se protegia e
se esquivava, como atacava. Ele era perfeito.

Estava prestes a ganhar sua 365ª luta... quando seu olhar se cruzou
com o meu. E o mundo parou por um instante; ficamos congelados nessa
troca de olhares. Eu existia apenas para ele. Ele existia apenas para mim.

Senti algo que esqueci que podia sentir; algo que estivera cozinhando
dentro de mim por muitos anos — desde que perdi Jason. E por mais que eu
não quisesse admitir — e ainda não quero —, eu estava rendido.

Então o primeiro soco atingiu seu rosto, tão forte que o atirou no chão.
Vários outros se seguiram, até seu rosto se tornar uma poça de sangue.

Ele vai ser morto, é tudo no que eu conseguia pensar. Não posso
permitir que isso aconteça.

E aqui estou outra vez. O que teria mudado em minha vida se eu


apenas tivesse me sentado e deixado-o ser morto pelos capangas de Dom?
Não sei. Não consigo mais imaginar um cenário em que ele não esteja em
minha vida.

Mas imagino Kim outra vez no lugar daquele desgraçado tendo seu
queixo quebrado e mandíbula partida em dois enquanto a plateia aplaude e
explode em excitação. Fico enojado. Eu colocaria estas paredes abaixo com
minhas próprias mãos antes de permitir que isso acontecesse; arrebentaria
as cordas do ringue e o incendiaria. Se alguém se metesse em minha frente,
teria a garganta destroçada.

Estou mesmo perdido.


— Aproveitando a luta? — a voz grossa, fanha e profunda de Dom soa
ao meu lado.

Estive tão absorto em meus devaneios que não notei sua


aproximação.

Continuo fitando o ringue, sem expressão alguma.

— Não tem muito pra se aproveitar aqui.

— Fale por si mesmo. — Ele se senta ao meu lado. — Os caras ali


embaixo discordariam.

— São um bando de lunáticos que não podem derramar sangue na


vida real, então resolvem fazê-lo aqui, indiretamente.

— Acha que isso não é a vida real?

Rio.

— Estamos tão longe da vida real quanto podemos chegar.

O gongo soa. O perdedor da luta é declarado pelo árbitro. Dominic


acompanha meu olhar em direção ao desgraçado quase morto no chão.

— Você devia falar isso a ele. Tô certo de que vai adorar descobrir que
sua morte vai ser só de mentirinha. — Gargalha.

Um arrepio atravessa minha espinha.

Volto-me ao líder dos Snakes:

— Quero os arquivos que me prometeu.

Ele sorri, sugestivo. Agarra minha coxa.

— Então venha comigo buscá-los, na minha casa. Na minha cama.

Isso não é a realidade, repito para mim mesmo enquanto me arrasto


uma segunda vez para foder com um homem que me causa asco. Essa não
é a minha realidade.
OS ARQUIVOS
você está procurando pelo meu amor
no lugar errado
não pense que só porque está comigo
isso é real
wrong — zayn

Á UM FORMIGAMENTO ESTRANHO NA minha espinha quando sento na


H
cama, como se um pequeno inseto tivesse penetrado na minha pele e agora
me devorasse de dentro para fora. O suor em meu corpo é grudento, frio,
desagradável. As lembranças dos beijos de Dom em meu pescoço e em meu
peito são nojentas. Encaro meu pau flácido e tento me lembrar se fiquei duro
em algum momento durante a foda rápida e mecânica. Não.

Suspiro.

Passo a camisa branca de Dom pelos ombros e a abotoo. Seu número


é muito maior do que o meu, mas está limpa ao menos.

A primeira coisa que farei quando chegar em casa é tomar um longo


banho para retirar seu cheiro forte de mim. Enrolo as mangas e suspiro
novamente.

Visto a cueca, a calça, coloco os sapatos e levanto. Observo a


extensão do Upper East Side além das janelas do quarto de Dom sem
realmente prestar atenção em nenhum dos arranha-céus ou apartamentos
vizinhos iluminados. O céu azul-escuro me chama ainda menos atenção:
parece ordinário, feio.

— Tão cedo? — o líder dos Snakes resmunga na cama. — Mal


começamos a nos divertir.

Viro-me para ele. Dom tem a cabeça apoiada em uma das mãos, os
lábios esticados num sorriso safado. O torso peludo e coberto pelas
tatuagens da máfia está exposto, mas, da cintura para baixo, está coberto
com os lençóis, a silhueta de seu pau semiereto desenhada sob o tecido.

A imagem não me causa nada além de tédio.

— Já deu pra mim essa noite — digo com desdém. — Estou exausto.

Me aproximo da mesa de cabeceira e pego meu relógio. Coloco-o no


pulso.

— Você é um cara forte. — Dom ergue-se na cama com a ajuda dos


cotovelos e se inclina em minha direção. Seu sorriso se alarga. — Pode
aguentar mais um pouco.

Suspiro uma terceira vez, sem lhe dar mais do que um olhar de relance
irritado. Fecho a pulseira do relógio no pulso e fito a tela apagada do meu
celular. Meus dedos se aproximam dela, mas param no meio do caminho.
Não posso lidar com mais merdas hoje. Coloco o celular no bolso sem checar
as notificações.

— Os arquivos, Dom — exijo ao mafioso. — Agora.

O sorriso lentamente se desfaz em seus lábios, as linhas duras da


mandíbula e os ombros se tensionam. O olhar permanece fixo em mim, no
entanto, e posso ver um tipo de raiva velada em seu rosto.

Ele afasta os lençóis para longe, ficando com o corpo nu


completamente exposto. Joga as pernas para o meu lado da cama e se
arrasta até se sentar na extremidade, de frente para mim. Me fita de baixo.

— Fique comigo essa noite — pede num tom solícito.

Meu cenho se franze. Escondo as mãos nos bolsos e reviro os olhos,


desviando-os para o lado. Pode ser a desidratação por causa do álcool, mas
cada palavra que sai da boca de Dom martela em minha cabeça
dolorosamente.

— Não, não digo só essa noite — ele continua. Aproxima-se um pouco


mais, o suficiente para tocar meus braços. — Olhe pra mim. — Abaixo o olhar
por instinto e me deparo com a expressão mais patética que já vi no rosto do
desgraçado, uma expressão que eu sequer tinha ideia de que ele podia ter.
— Fique comigo pra sempre, Jude. Não vá embora.

Puxo meus braços.


— Está falando bobagens.

Tento caminhar para longe da cama, mas ele se levanta de supetão.


De repente, nossa diferença de altura se torna preocupante. Meu pescoço dói
ao se curvar para cima. Contra a luz, sombras dançam em seu rosto, embora
o tom solícito continue ali.

— O que é bobagem no que acabei de pedir? — insiste.

Dou alguns passos para trás.

— Não fomos feitos um pro outro.

Ele dá alguns passos para frente.

Afasto-me até não conseguir mais, até ficar encurralado contra as


janelas.

Ele não para, entretanto.

Espalmo seu peito com as duas mãos.

— Não se aproxime tanto — advirto.

— Por quê?

Ele força minha resistência e encerra a distância entre nossos corpos.


Apoia-se no vidro atrás da minha cabeça com a mão, inclina-se em direção
ao meu ouvido.

— Eu tava dentro de você até agora. Isso aqui não é nada — sussurra,
seu hálito quente arrepia os pelos sensíveis na minha nuca.

Dom se afasta o suficiente para me encarar. Uma confiança arrogante,


subjugadora, estampa sua face.

— Quem tá tentando enganar quando diz que a gente não foi feito um
pro outro? Cê foi feito pra mim.

Essa arrogância faz meu sangue ferver.

— Não tô tentando enganar ninguém.

Dom fica parado, sem se aproximar ou se afastar mais, ainda calado.


Me fita intensamente, como uma serpente que analisa uma presa mais
perigosa do que ela e decide como abatê-la.
No fim, ele não parece chegar a uma conclusão clara.

— O que você quer de mim, Jude? — murmura baixo, sôfrego, os


olhos crescendo e se enchendo de um brilho ansioso. — O que você quer pra

— Os arquivos, Dom — interrompo, curto e grosso. — É tudo o que


quero.

Tenho que me controlar para não socar seu rosto e retirá-lo da minha
frente à força. Meus punhos se cerram, no entanto.

Dom se inclina para trás como se tivesse levado um tapa, depois me


encara com cautela. Abaixa os olhos até meus punhos e então fita meu rosto
enfurecido. Ele morde o lábio inferior, decide não continuar me testando.
Decepção e rancor dançam em seu semblante quando assente para si
mesmo e caminha para fora do quarto.

Observo os desenhos complexos de sua tatuagem nas costas


enquanto se afasta, depois expiro, aliviado. Me viro em direção à vista da
janela do quarto novamente, a dor em minha cabeça se afasta. Se afasta
quando penso em Kim.

Kim.

Kim.

Kim.

Repetir seu nome em minha mente me traz um tipo de paz.


Provavelmente só vou conseguir dormir esta noite pensando nele, em sua
voz, em seu rosto — outra vez.

A porta do quarto se abre atrás de mim; os passos de Dom são mais


lentos e pesados desta vez. Fito-o sobre os ombros.

Ele ergue a pasta acobreada.

— Seus preciosos arquivos tão aqui. Agradecido?

Ergo a sobrancelha e me viro para pegar a pasta. Sem perder muito


tempo — especialmente diante da expressão petulante do mafioso —, folheio
os documentos em seu interior. Há fichas de identificação, cópias de
documentos, extratos bancários, históricos de aluguéis, fotos de câmeras de
vigilância.

Uma tontura súbita me atinge, bagunçando o mundo inteiro ao meu


redor. Minhas mãos tremem sutilmente, meu interior treme muito mais. Fico
estático por alguns segundos. Meus olhos passeiam pelos papéis com
descrença, céticos de que o que está na minha frente é real. Parte de mim
simplesmente não consegue acreditar que é real, que finalmente tenho em
minhas mãos todas as peças para colocar meu plano em prática. Deve ser o
instinto autodestrutivo do qual Florence sempre falou.

Analiso a ficha de identificação da miserável.

Olivia Scott. 28 anos. Afrodescendente. Olhos castanhos. A serpente


em seu pescoço não me deixa dúvidas: é a desgraçada, uma das criminosas
que ajudaram a acabar com a vida de Jason.

Minha garganta queima, e preciso engolir o bolo viscoso e amargo que


se forma nela. O rosto da mulher fica preso em minha mente mesmo depois
que fecho a pasta.

— Vou ficar. — Caminho para fora do quarto sem olhar para Dom
diretamente. — Em breve.

Ele me impede de sair, me segura pelo braço. Comigo ainda de costas,


me puxa para perto até nossos rostos estarem colados.

— Não brinque comigo — resmunga contra minha face, seu hálito forte
me deixando enebriado. Posso sentir em sua voz ríspida toda a frustração
que está sentindo. Além da voz, o peito exasperado é uma boa indicação
disso.

Estreito os olhos e vejo o desespero no fundo de seu olhar. Sinto pena.


Pena, pena e pena. Ele não parece muito mais do que um menino com
músculos gigantes e uma camiseta de tatuagens. Patético.

— Obrigado — digo no tom mais complacente que consigo fingir.

Dom envolve minha cintura com o outro braço e me empurra em


direção à janela outra vez. Sinto a superfície rija às minhas costas, a solidez e
frieza do vidro fazem um calafrio atravessar minha nuca.

Meus braços pendem ao lado do corpo, não encostam no mafioso.


— Sei que pode fazer mais do que isso — ele bufa. — Não adianta só
falar. Demonstre.

Abaixa as íris até a altura da minha boca e as repousa ali.

Fecho os olhos e o beijo sem pensar duas vezes. Se o fizesse, iria


desistir. Meus braços são obrigados a envolvê-lo para manter o equilíbrio
enquanto fico na ponta dos pés, mas o toque é frio, apático e desinteressado,
assim como o toque de nossos lábios. Afasto-me tão rapidamente quanto me
aproximei, e deixo-o preso no limbo daquele beijo vazio.

— Feliz? — Faço uma careta de ironia e dou as costas antes de ouvir


sua resposta. Aperto a pasta em minhas mãos e me aproximo da porta.

— Nem um pouco.

— Que pena. Esta é a última vez em que nos encontraremos, Dom.


Com certeza, é a última vez que fodemos. Não tenho mais negócios a tratar
com você. Se mandar seus homens me seguirem outra vez, vou ordenar aos
meus que façam picadinho deles.

— Isso é tudo o que eu era pra você? Negócios?

— Menos do que isso. — Encaro-o sobre os ombros. — Você era uma


perturbação, da qual estou me livrando neste momento. Tenha uma boa
vida... — lanço-lhe uma piscadela — algo me diz que ela não será muito
longa.

E deixo o quarto de Dom.

Quando entro no meu carro e fecho a porta, sei que acabei de me


livrar de um grande peso. Um peso que esteve me esmagando — a mim, e a
Kim.
INTERLÚDIO
O M I N I C O B S E R VA J U D E D E I X A R S E U quarto, seu apartamento,
D
então seu prédio.

As últimas palavras do loiro, e seu tom de convicção,


continuam pairando ao seu redor, sufocando-o.

“Esta é a última vez em que nos encontraremos.”

Ele realmente acha que tem o poder de decidir uma coisa


como essa?

Dom sempre soube que o herdeiro da Goldman


Entertainment era cheio de si: egocêntrico, mimado... um pau no
cu. E era exatamente isso que ele amava nele.

Desde que se conheceram na faculdade — e Dom não


era mais do que um merdinha distribuidor de drogas —, havia
algo em Jude que o deixava perdido, de mãos atadas, um refém
de seus desejos. E ser refém era novidade para Dominic; servir
não era exatamente algo com o qual ele estava acostumado.
Então Dom se apegou àquele sentimento com tanta
intensidade... que nunca conseguiu largá-lo. Nem quando se
tornou o líder dos Snakes, nem quando Jude pediu a cabeça de
uma de suas médicas numa bandeja. Ele deveria tê-lo matado
bem ali, quando aquelas palavras saíram dos seus malditos
lábios finos, rosados e cruéis; mas não o fez, nunca poderia
fazê-lo.

Tudo o que ele disse a Jude era verdade, absolutamente


tudo. E, mesmo assim, Goldman não tinha olhos para ele, não
dava-lhe uma mísera chance sequer. Quando Dom achava que
Jude estava se aproximando, era apenas com seus próprios
interesses em mente — como quando pediu um passe livre para
o ringue.

Goldman tinha olhos, no entanto, para aquele maldito cão.


O cão que ele também deveria ter matado — e se arrependia
todo santo dia de não tê-lo feito.

Ele tentou reiterar seu erro algum tempo atrás, mas


parece que sua primeira impressão sobre o cão estava certa: ele
tem algo especial dentro de si, é duro de matar. Não deve ser
subestimado.

E este é um erro que não cometerá outra vez.

Nu, encarando a vista de Nova York que se derrama em


sua frente através das janelas de vidro, Dom apanha seu celular
e disca o número de Oliver, seu Segundo no Comando dos
Snakes.

O subordinado atende no terceiro toque.

— Senhor?

— Prossiga com o plano pra exterminar o cão, como


instruí.
— Esta noite?

— Esta noite. Amanhã, se não me banhar no sangue dele,


vou me banhar no seu.

E desliga.

Sorri consigo mesmo, imaginando como torturará Kim. Ele


não terá uma morte rápida; ah, não, isto já está fora de
cogitação. Sofrerá muito, e por muito tempo. É o mínimo que lhe
deve depois de todo o transtorno que causou.

E o sorriso se alarga quando imagina Jude vendo o corpo


esquartejado do cão pela primeira vez.

Ter um sentimento não é mais suficiente, Dominic precisa


ter Goldman inteiramente pra si.

E não há uma coisa sequer no mundo que Jude possa


fazer para impedir isso.
A VIOLÊNCIA NA TEMPESTADE
não pertenço à cidade alguma
não pertenço a homem algum
eu sou a violência na tempestade
eu sou um furacão
hurricane — halsey

OU MORRER NO FINAL DE tudo isso?


V
Espio os papéis dentro da pasta várias vezes durante o caminho de
volta para casa. Enquanto isso, traço algumas rotas que podem me levar
àquela mulher e à verdade sobre o que aconteceu seis anos atrás. É uma
empreitada perigosa.

Mas o que a respeito disso não é perigoso?

Com o tempo e a cada vez que o substituto de Kim para em um sinal


vermelho, minha dor de cabeça piora. Começou com algumas pontadas. Em
seguida, se tornou uma dor contínua, intensificando-se cada vez que forço
meus olhos a lerem sob a penumbra ou quando o carro faz uma curva
fechada.

Fecho a pasta e decido abandoná-la sobre o colo. Depois de tomar


uma aspirina em casa, continuarei trabalhando.

Vou morrer quando finalmente tiver minha vingança?

Deixo minha mente viajar pelo trânsito calmo da madrugada, pelos


tons de amarelo, laranja e vermelho da iluminação noturna da cidade, pelas
pessoas preenchendo as calçadas. Por alguma razão, essa visão me dá uma
vertiginosa sensação de solidão. Todo mundo parece ter alguém em quem
pode confiar, em quem pode se apoiar. Eu não tenho ninguém. Costumava
pensar que isso era uma benção, que assim eu poderia acabar com tudo e
deixar esse mundo sem muitos empecilhos. Agora, já não tenho mais tanta
certeza.
O dia de hoje teria sido mais ou menos estressante se Kim estivesse
ao meu lado? Se tivesse atendido às minhas malditas ligações? Se tivesse
ido me buscar depois do encontro com Brianna?

Retiro o celular do bolso e, mais uma vez, não consigo desbloqueá-lo e


checar minhas notificações. Suspiro. Desligo-o definitivamente. Minha cabeça
volta a doer.

Quando me tornei tão patético? Como se a presença de outra pessoa


fosse fazer qualquer diferença agora...

O chofer entra no estacionamento escuro do meu prédio. Seus olhos


estão centrados no caminho à frente como uma máquina; ele faz o que deve
fazer sem questionamentos, segue o caminho que traçou sem desvios.

Eu preciso ser assim. Preciso aprender a ser uma máquina como ele.
Nenhum ser humano é capaz de sair vitorioso de uma briga contra Brianna
Goldman.

Minha morte está próxima. Sei disso. Estou metido num buraco do qual
nunca conseguirei sair.

Mas que se foda. Ao menos, levarei Brianna comigo.

Se ela me matar depois que eu a destruir, morrerei alegremente.

Só preciso aguentar até lá.

Desço do carro.

do que o usual para chegar até o meu andar,


O E L E VA D O R L E VA M A I S T E M P O
o que me deixa enclausurado com meus pensamentos por tempo suficiente
para planejar um sequestro, duas sessões de tortura e três diferentes tipos de
chantagem caso a Snake decida não cooperar.

E tudo isso faz minha dor piorar. A cada vez que o som irritante do
elevador indica a passagem de um novo andar, preciso apertar bem os olhos
para ter algum alívio. Vou me dopar de remédios e cair na cama. Talvez nem
consiga tomar banho. Minhas palmas suam frio, e a pasta em minha mão
esquerda torna-se pegajosa. A mão direita está no bolso; minha nuca,
curvada sutilmente para baixo, fugindo das luzes no teto do elevador.

As portas do elevador se abrem após o que parece uma eternidade.


No final do corredor vazio, me deparo com a porta do meu apartamento.

Com isso, o rosto surpreso de Kim ao ver esse lugar cheio de


seguranças me vem à mente.

Estúpido. Ele realmente achou que eu mantivesse dezenas de homens


parados no lado de fora da minha porta o tempo todo? Sou a porra de alguma
princesa que precisa ser fortemente guardada em sua torre? Ao menos aquilo
serviu para mantê-lo preso na coleira por algum tempo.

Meus passos solitários ecoam pelo corredor. Já menti tanto para Kim
que isso sequer parece relevante. Alcanço a porta. O que ele deve estar
fazendo neste momento? Minha cabeça martela. Talvez espere que eu ligue
de volta para ele. Pego minhas chaves no bolso e levo uma delas à
fechadura. Esse é o tipo de merda que eu não posso mais me dar ao luxo de
fazer.

Tento girar a chave, mas ela continua parada. Que porra?

Seguro o puxador e pressiono-a para frente. A porta abre sem


resistência. Alguém invadiu meu apartamento.

Empurro a porta e sou cercado pela escuridão do apartamento,


quebrada apenas pela iluminação do corredor. Tateio a parede ao lado até
encontrar o interruptor, e o aciono.

Meu coração dispara.


PUTA DOR DE CABEÇA
Aviso de gatilho: violência doméstica
O capítulo a seguir contém uma descrição gráfica de violência doméstica.
Prossiga com cuidado.

só vai ficar parado aí


e me assistir entrar em combustão?
tá tudo bem, porque eu amo essa dor
você só vai ficar aí parado
e me observar chorar?
está tudo bem
eu amo o jeito que você mente
love the way you lie — eminem

da sala, de costas para mim. Reconheço


I M E S T Á S E N TA D O N O S O F Á
K
imediatamente seus fios escuros, curtos e arrepiados. A nuca está
levemente curvada para baixo, uma jaqueta de couro recobre seus ombros. Há
algo de estranho em sua postura. Nenhum músculo sequer se move diante da
minha presença, nenhum sinal de reação. É como se eu fosse um fantasma.

Mesmo reconhecendo-o, fico paralisado na porta.

— Kim? — chamo.

Ele ergue a nuca e suspira. Seus ombros se contraem e relaxam. O


rosto permanece longe de mim, evitando-me.

Franzo o cenho tão forte que o latejar de minhas têmporas se espalha


até a testa. Um grunhido baixo escapa da minha garganta, esfrego o local
com dois dedos.

— O que está fazendo aqui? — pergunto de forma ríspida por causa


da dor. Volto-me ao corredor vazio e então à fechadura destrancada da porta.
— Como passou pela segurança?
— Eu sou parte da sua segurança, esqueceu? — ele rebate rouco,
irritado, como se estivesse se remoendo em mágoas. O tom faz minha
cabeça inteira latejar de uma vez só.

Aperto bem os olhos.

— Como se atreve a entrar aqui sem permissão? — vocifero. Abro os


olhos, persistindo apesar da dor para ver as reações de Kim. Ele inclina mais
a nuca para baixo, me ignorando. Bufo. — Eu deveria chamar a polícia pra te
levar da minha frente. — Contraio os lábios, minha mandíbula enrijece. —
Talvez eles pudessem enfiar algum juízo na sua maldita cabeça.

Afasto-me da entrada do apartamento. Chuto a porta atrás de mim


para fechá-la. O barulho metálico da fechadura ecoa às minhas costas
enquanto caminho até a cozinha.

— Vá embora — ordeno entre um passo e outro, pasmo pela audácia


de Kim em invadir minha casa e, um pouco mais, por seu comportamento
insolente. — Estou cansado demais pra brigar com você esta noite. —
Alcanço a pia. Solto uma longa lufada de ar pela boca. Meus ombros relaxam
minimamente, mas meus olhos começam a lacrimejar. — Puta dor de cabeça.

Jogo a pasta sobre o balcão. Estico-me até o armário sobre a pia e


pego o frasco de aspirinas mais próximo. Sem muito cuidado, desenrosco a
tampa, que escapa dos meus dedos e pula sobre o mármore até descansar
próxima ao ralo. Despejo um, dois, três comprimidos brancos na palma da
mão e os engulo rapidamente, sem água, sem tempo para pensar, sem
arrependimentos. Quero apenas me livrar desta dor o quanto antes.

As pílulas descem pela minha garganta seca com dificuldade. Gemo


baixinho. Fecho o frasco e deixo-o no balcão. A dor está forte demais para eu
subir as escadas neste momento. Decido ficar aqui, parado, esperando o
momento em que Kim passará pela porta e me deixará em paz. O momento
em que estarei sozinho com o demônio em forma de pasta que me espera
logo ao lado.

Expiro fundo lentamente. Preciso cuidar daquela Snake filha da puta


imediatamente. Se Brianna sequer desconfiar de sua existência, ou de que
tenho essa pasta nas mãos... será um pesadelo.

Apoio os cotovelos sobre o balcão da pia e esfrego os olhos. Inclino-


me à frente, buscando relaxar um pouco mais. Algo sólido, porém, se encosta
em meu quadril; há outro corpo atrás de mim.

O que Kim ainda pode querer?

Bufo alto para que ele me ouça e afasto a bunda de seu pau.

— Por que está com a camisa dele? Por que procurou ele e não a
mim?

Levo alguns segundos até entender do que ele está falando. Ainda
estou com a maldita camisa de Dom. Me seguro no balcão da pia com as
mãos, pronto para me virar e confrontá-lo.

Antes que possa fazê-lo, no entanto, Kim enrola um dos braços ao


redor da minha garganta e me estrangula. O outro, segura minha nuca
fortemente e a pressiona para frente, esmagando minha garganta contra seus
músculos poderosos. Um som esganiçado, surpreso, deixa minha boca.

— O que é isso? — consigo rosnar. Minha voz vacila. — O que está


fazendo, seu desgraçado? — Tento acotovelá-lo, mas Kim é uma muralha.

Me curvo o suficiente para fitar seu rosto; seus olhos estão furiosos,
sombrios, cruéis. Kim está diferente de todas as vezes em que o fitei,
completamente estranho em relação ao homem que achei que conhecesse.
Seu rosto está contraído numa ira vertiginosa, o tipo de ira que leva à
loucura. As veias saltadas na testa, no pescoço e nos braços parecem
prestes a explodir.

Minha tranqueia parece prestes a se partir em dois pedaços. Pontadas


lancinantes de dor fazem minha cabeça girar. Um grito rouco ecoa da minha
garganta pelo apartamento até então silencioso, pelo andar vazio. Lágrimas
sôfregas e asfixiadas derramam-se dos meus olhos. Agarro seu braço e tento
puxá-la para longe, mas é em vão. Kim me aperta mais.

Sinto a morte se aproximando.


HIPÓCRITA
Aviso de gatilho: assédio sexual

eu sou apenas aquilo que você faz de mim


e você faz de mim mais e mais um vilão a cada dia
[...]
eu durmo com um olho aberto, um olho fechado
porque vou me enforcar se você me der corda
perdi toda a fé, toda a esperança
de que nossa relação tenha algum significado
um olho quebrado, um olho machucado
porque eu me sacrifiquei por você
seu mentiroso, você não me ama também
isso é só uma falácia pra você
te perder é mais fácil
do que mentir pra mim mesmo que você me ama
easier than lying — halsey

AS NÃO POSSO MORRER. NÃO ainda. Há muito que preciso fazer.


M
Cravo minha unhas em seu bíceps e uso toda a força que me resta
para puxá-lo, me dando algum espaço para respirar.

Não posso morrer enquanto Brianna estiver impune.

Inspiro fundo, exasperado.

— Kim, me solte! Agora! — grito do fundo dos pulmões. É quando vejo


a fúria no olhar do homem que me estrangula vacilar pela primeira vez.

Diante da minha resistência, como se lutasse contra o próprio desejo


de me enforcar até a inconsciência, Kim afrouxa o aperto em minha garganta
e na nuca, mas seu corpo permanece pressionado contra o meu, me
imobilizando. Como um pervertido, encosta o nariz no meu pescoço e
murmura em tom macabro:
— O cheiro dele tá impregnado em você.

Isso faz eu me sobressaltar. Um filme rápido da transa com Dom passa


pela minha mente, e aperto os olhos para me livrar dessas imagens o mais
rápido possível. Meu estômago queima. Me torno subitamente ciente do
julgamento na voz, na postura e no olhar de Kim. E percebo que aquele olhar
não é tão diferente assim: já o vi outras vezes, em intensidades menores,
aquela mesma raiva misturada à mágoa, sob um toque de desespero. É o
seu ciúme.

Mordo o interior do lábio fortemente, sentindo as têmporas latejarem


tanto que podem estourar a qualquer segundo. Ele continua me apertando
firmemente, embora não me estrangule mais.

— Que merda Jude — rosna contra meu ouvido. — Por que fez isso?
Por que foi até ele? Hein? — Seu tom agressivo, irritado, faz minha pele
vibrar. — Foi por que não atendi? A culpa é minha? Você devia ter insistido
um pouco mais, não devia ter corrido pros braços dele desse jeito.

Reviro os olhos antes de fechá-los e inclinar a nuca para trás,


aproximando meu rosto do dele. Tento o meu melhor para relaxar os ombros.
Continuar resistindo apenas deixará tudo pior agora. Como tenho imaginado
desde nossa discussão no carro, a possessividade dele finalmente voltou
para me assombrar.

— Me solte, Kim — digo baixo e grave, sem emoção, sem dor. — Essa
é a última vez que vou pedir. — E o fito de relance outra vez.

Os olhos de Kim se estreitam, e noto que as veias sobressaltadas


desapareceram de suas feições. O aperto em meu pescoço afrouxa mais.
Inspiro e expiro lentamente, meus dentes cerrados, o pescoço e a cabeça
ardendo em dor.

Ele finalmente liberta minha garganta, mas agarra os fios da minha


nuca e puxa minha cabeça para trás com violência, num ângulo
desconfortável e doloroso, mas perfeito para o beijo forçado, desesperado e
sufocante.

Arregalo os olhos, e a surpresa me faz gemer dentro de sua boca. Ele


é voraz como um animal com sede, age como se quisesse me devorar. Seus
lábios forçam os meus a se entreabrirem, sua língua se propulsiona contra a
minha sem aviso. Jogo um dos braços para trás e consigo agarrar seu
pescoço. Cravo as unhas em sua pele e arrasto-as fortemente, arranhando-o,
desejando perfurá-lo e retirar sangue do desgraçado por este maldito beijo.

Ele se afasta apenas o suficiente para morder meu lábio, mas para no
limite tênue antes de me machucar. Uma descarga elétrica irradia pelo meu
corpo a partir desse local. Seu torso está comprimido contra minhas costas;
tão comprimido que consigo sentir cada traço delineado de seus músculos;
tão comprimido que cada uma de suas inspirações e expirações exasperadas
causa uma fricção delirante contra minha pele sensível; tão comprimido que
sua pelve se esmaga conta minha bunda; tão comprimido... que sinto cada
batimento de seu coração acelerado.

Com o olhar praticamente colado ao meu, sussurra:

— Meu pau não é o suficiente pra você? — E a mão que agarrava


meus fios desce pela frente do meu corpo, arrasta-se sobre a camisa de Dom
até alcançar o cós da calça. Seu toque pesado, indiscreto e possessivo me
faz enrijecer um pouco mais. — Eu não sou suficiente pra você? — insiste,
irônico. Seu nariz desliza pela minha bochecha. Minha nuca dói por olhar
para trás por tanto tempo. — Não se lembra do que você mesmo me disse?
Não se lembra — a mão desliza para dentro da cueca e agarra meu pau —
quando disse que minha pica era a única que você queria? O que te fez
mudar de ideia?

Kim não me espera responder. Sequer sei se realmente quer uma


resposta.

Enquanto me masturba de forma seca e bruta, desce o nariz até meu


pescoço, e crava os dentes na minha jugular. Ele tenta arrancar um pedaço
de mim, tenta rasgar fora parte da minha garganta com sua fúria. Finco as
unhas novamente em sua carne. Meu rosto se contrai diante da dor; um
suspiro sôfrego me escapa.

— Está me machucando — grunho. Ele afasta os dentes em seguida.


Mesmo sem ver a marca arroxeada que deixou no local, posso senti-la.
Inspiro fundo, subitamente energizado. — Me solte — insisto, um pouco
menos firme. — Você ainda é contratualmente obrigado a me obedecer.

Afasto as unhas de sua garganta e espalmo o balcão da pia,


recuperando o apoio. Seus dedos continuam apertando meu pau sem
delicadeza alguma, deslizando, me dando uma forma perversa de prazer.
Meu corpo reage espontaneamente a seu toque impetuoso mas morno, rude
mas familiar; minha mente se retorce entre pensamentos confusos e
sensações mais confusas ainda. O estresse em meus músculos começa a
ser substituído por um tipo diferente de tensão. O latejar em minhas têmporas
começa a se distanciar, como se tivesse sido apenas um zumbido irritante
esse tempo todo. E, quando ele finalmente solta meus fios, a forma que meu
corpo encontra de reagir é relaxar em seus braços cruéis.

— Que se foda seu contrato — balbucia contra meu ouvido; seu hálito
quente me deixa arrepiado.

Desabotoa os botões superiores da camisa de Dom e enfia a mão sob


ela. Os dedos ansiosos tateiam meus músculos, apertam a carne e
machucam-na até encontrarem meus mamilos. Ele os aperta. Aproxima os
lábios do meu pescoço, no mesmo local que mordeu antes.

Meu coração dispara em um ritmo inconstante, no ritmo dos


movimentos de sua mão em minha calça. Curvo-me levemente à frente. Meu
peito queima, minha pelve arde. Os pontos sensíveis do meu corpo estão
todos simultaneamente estimulados — exceto um. Consigo me ver gozando
em sua mão, de calça e tudo, se não fizer algo logo.

De relance, presto atenção num grande e belo cabo branco no


faqueiro sobre o balcão adjacente à pia, recostado na parede. Não penso
duas vezes. Me impulsiono à frente, sob a resistência de seus braços, e
consigo apanhar uma faca.

Kim vacila, confuso, e me dá o tempo suficiente para girar em meu


próprio eixo e direcionar a ponta afiada da longa lâmina da maior faca da
minha cozinha em direção à sua garganta, bem entre o pomo de adão e a
jugular. Ele afasta os braços totalmente de mim e estica o pescoço. Aperto a
lâmina mais firmemente. A ponta penetra alguns milímetros em sua pele.

Com o pau duro sob a calça e camisa quase aberta, encaro-o.

— O que deu em você hoje? Enlouqueceu? Pra onde foi toda aquela
preocupação e cuidado? — Contraio os lábios. Ele me fita cauteloso, mas
sem uma pífia fração de medo. Esfrego a região no pescoço castigada pelos
seus dentes. — Já disse que não quero mais ter que lidar com seus ciúmes.

Kim estica o pescoço um pouco mais.

— É demais pedir pra não sentir o cheiro de outro homem em você?


Pra não te ver usando a roupa de outro?
Estreito os olhos.

— Sim.

— Por quê?

Expiro fundo.

— Porque não estamos juntos, seu filho da puta estúpido. Seu cérebro
é pequeno demais pra entender isso?

Ele agarra o braço que estende a faca, fazendo eu me sobressaltar.

— Então eu quero que estejamos juntos — declara em algo que se


assemelha mais a uma ordem do que a um pedido.

Sua mão força meu braço para o lado, afastando a lâmina de sua
garganta. Minhas opções são degolá-lo ou seguir sua deixa. Por mais que
minha mente me ordene a decidir pela primeira opção, as pequenas gotas de
sangue que vazam do corte delgado que fiz em seu pescoço são o suficiente
para fazerem minhas entranhas se contorcerem. Cheguei ao ponto de não
conseguir sequer imaginar matar esse filho da puta. Isso é preocupante,
especialmente se ele tiver mais surtos de ciúmes como esse.

Assim, permito que afaste meu braço de seu caminho e volte a se


aproximar, embora o cabo permaneça firme em minha mão. Kim aperta meu
pulso o suficiente para fazer minha pele esfriar, para provocar pequenas
pontadas de dor que se espalham até meus dedos. Seu olhar se torna mais
sombrio a cada passo, mais inconsequente a cada respiração, mais
obsessivo a cada vez que sua jugular pulsa, centrado em mim como a mira
de uma metralhadora. Estica meu braço totalmente para o lado e cola nossos
peitos.

— Quero que você seja meu — murmura tenso e baixo, como uma
lâmina deslizando por uma ferida aberta. Aproxima o nariz do meu pescoço.
Inclino as costas para trás, sobre a pia, quando sua pele roça a minha. —
Quero que o único cheiro em você seja o meu. — A mão livre desce pelo
interior da camisa, abre botão por botão até expor meu torso completamente.
— Quero que use minhas roupas baratas, que se molde a mim. — Afasta o
rosto da minha garganta, me fita intensamente. — Quero que corra pra mim
quando precisar de alguém, de qualquer coisa. — A mão que abriu a camisa
desliza sobre a calça, apertando o resquício da minha ereção. Ergue as
sobrancelhas quando confessa: — Quero que goze somente comigo.
Minhas têmporas pulsam. Sinto uma brisa fria envolver meu corpo,
embora as janelas e portas do apartamento estejam fechadas. Meu peito
afunda numa frustração enlouquecedora. Encaro bem sua camisa amassada,
todas as dobras e vincos nela. Subo o olhar enfurecido até suas íris trêmulas.

— Você é tão hipócrita ao me exigir tudo isso... — puxo meu pulso de


sua mão e largo a faca sobre o balcão — enquanto tem o cheiro de outra
pessoa sobre você todo. — Reteso a mandíbula com repulsa. Uso o braço
que antes segurava a faca para afastar seu peito do meu. Kim arregala os
olhos, previsivelmente surpreso. — Não pensou em mim enquanto comia
essa outra pessoa, pensou? Então por que tenho que pensar em você? —
Inclino o pescoço para o lado, atento a cada uma de suas reações. — Seus
sentimentos são mais importantes do que os meus?

Arregala os olhos.

— Não é o que tá pensando.

A fúria descompensada, asfixiada dentro de mim vem totalmente para


fora.

— Não se atreva a mentir pra mim, seu filho da puta.

Ele segura meus ombros.

— Eu não comi ninguém — grita contra meu rosto.

— Que tipo de idiota acha que eu sou?

— Porra, Jude, me escuta!

— Não quero ouvir mais uma palavra sequer. Você se acha tão
moralmente superior, não é? Detentor da razão e da verdade. Sempre o justo
e altruísta, incompreendido, injustiçado. Pobre Kim, abandonado pela mãe.
Pobre Kim, filho de um bêbado que se importava mais com putas do que com
ele. Pobre Kim, arrastado pro ringue dos Snakes sem escolha. Mas quer
saber de uma coisa? A sua vida fodida não te abstém de nada e não te torna
superior a ninguém. Você é só mais um traidor e mentiroso... igualzinho o seu
pai.

Ele esfrega a boca e fica calado por um tempo, até caminhar para
longe. Me apresso e golpeio suas costas, empurrando-o para mais longe com
toda a força restante em meus músculos. Ele acelera à frente, antes de parar.
A mão em seu rosto cai para o lado, inerte como a outra. Vejo seus ombros
voltarem a se tensionar.

— Vá à merda, Kim — continuo, firme. Viro para o lado e aperto minha


cabeça com as mãos. A dor está voltando a ficar insuportável. Fecho os
olhos. — Saia da minha casa — murmuro baixo, tentando esconder a dor em
minha voz.

Estico-me em direção ao armário sobre a pia outra vez, bagunçando


tudo o que encontro pela frente até apanhar o frasco com as aspirinas. Deixo-
o no balcão com um golpe forte, começando a bufar pela sensação de que
terei uma síncope a qualquer momento. Engulo a seco mais um comprimido
branco, que rasga minha garganta ao descer. Analiso o plástico amarelo do
frasco. Quanto mais posso tomar antes de ter uma overdose?

Reviro os olhos.

Só noto que Kim não deu outro passo sequer para longe de mim
quando sua voz ressoa sobre o latejar da minha mente:

— Vou sair. Mas não vou voltar — diz calmamente. Com o gosto
amargo da aspirina na boca, me viro em sua direção. Ele me encara sobre os
ombros. — Não pra cá pelo menos. — Suspira como o perdedor de uma luta.
— Pra mim, isso acabou aqui. Não vou mais transar com você. — Cerro os
punhos. Meu rosto se contorce numa careta de fúria, e Kim a analisa com
cuidado. Antes que eu possa rebater com alguma das atrocidades que
passam pela minha mente, ele completa: — Vou pagar minha dívida com
trabalho. Estou cansado de ser seu pau acessório. Você pode achar um
desses em qualquer esquina lá fora. Não sou seu puto.

Cada músculo em meu corpo treme dolorosamente, abismado com a


serenidade de seu rosto ao dizer isso e com a convicção em sua voz. Encaro-
o como se estivesse frente a uma assombração.

— Quer morrer? — grito, minha respiração exasperada, meu sangue


correndo tão rápido que minha visão vira um grande borrão vermelho.

Ele se volta para mim e ergue o queixo. Seu olhar é analítico demais,
pretensioso demais. Sinto um desejo visceral de pegar de volta a faca e
cortar seus dois malditos olhos fora.

— Não acho que você vá me machucar — diz depois de alguns


segundos, sem piscar, sem vacilar uma única vez. Deixo de respirar,
incrédulo. — Não acho que vá machucar minha família. — Kim esconde as
mãos nos bolsos e se aproxima com dois passos curtos, me medindo de
cima. — Acho que não tem esse nível de crueldade dentro de você, embora
seja muito bom em fingir que sim.

Trinco os dentes e penso em um milhão de coisas que poderia


responder. Um milhão, e nenhuma delas traduziria exatamente o tipo de fúria
e frustração que sinto. Um milhão, e todas são inúteis. Eu deveria socá-lo,
retirar essa expressão de superioridade moral de seu rosto à força. Deveria
manchar meus punhos com seu sangue, mas tudo o que consigo fazer é
desviar o olhar para o lado bruscamente, rápido demais para que ele perceba
que está certo, rápido demais para que ele perceba que estou escolhendo
ignorar as milhões de coisas que poderia rebater para, ao invés disso,
perguntar:

— Está me subestimando?

Encaro o restante do apartamento vazio, ansioso e receoso demais


para fitar os olhos do homem à minha frente.

É a primeira vez em muito tempo que me sinto verdadeiramente fraco,


indefeso, sem as armaduras que ergui cuidadosamente ao meu redor nos
últimos seis anos, sem realmente saber o que farei, o que sentirei se ele
disser que sim, que me subestima, que eu mereço ser subestimado.

A voz severa e ríspida de Brianna ecoa sobre o latejar da minha mente


como o sussurro de um fantasma: “Não consegue ver que não importa
quantas vezes você se rebele, quantas vezes me desafie, quantas vezes saia
da linha... sempre te colocarei de volta nela?”. A lembrança daquele quarto
escuro e frio no qual passei fome, sede e vivi com dores insuportáveis por
dias me atinge como um disparo.

Desde o começo, sempre soube que Kim eventualmente decidiria se


afastar, que não suportaria esse contrato até o fim. Mas eu não precisava que
suportasse. Precisava mantê-lo ao meu lado somente pelo tempo necessário
até encontrar todas as respostas, tudo o que preciso para acabar com
Brianna. Só não imaginei que aconteceria tão cedo. E, nem em meus piores
pesadelos, imaginei que ficaria sem reação, que simplesmente o deixaria ir
embora.

Minha boca seca e perco um pouco mais da sanidade a cada segundo.


Kim caminha para longe.
— Não — finalmente diz, e sua voz grave me faz estremecer.

Ergo os olhos até os dele; um vazio insuportável espalha-se dentro de


mim e me deixa instável, desestruturado.

— Sei que você é um homem de mais princípios do que deixa


transparecer — completa vagarosamente, pensando com cuidado em cada
palavra. — Você não é tão impossível de desvendar, Jude. — Os nós dos
meus dedos embranquecem. — E sei também que, por trás de tudo isso... há
apenas um medo irracional de se machucar.

É como ser emparedado por sua postura fria, fuzilado por suas
palavras cruéis. Nunca me senti dessa forma, nem mesmo com Brianna ou
Florence. Ninguém nunca importou o suficiente para que eu me importasse
com o que tivesse a dizer. E aqui estou, me importando pela primeira vez e
recebendo tudo o que mereço por isso.

Talvez eu devesse apenas tê-lo deixado morrer naquele ringue.

— Não sabia que você podia ser tão prepotente — digo.

— Se eu não te falar isso agora, provavelmente ninguém vai.

Engulo em seco, enfraquecendo mais a cada momento que passo sob


seu olhar acusatório; a cada segundo que permito que Kim continue me
machucando.

— Você não tem medo? — pergunto, vacilando.

Seguro a respiração e fito o fundo de suas íris escuras, íris que podem
me foder, que podem foder com todo esse plano amaldiçoado. Íris que eu
deveria deixar partir, para o bem dele e para o meu. Mas não posso.

— Medo é a última coisa que tenho. Mas esse é o meu limite. Estou
farto de toda essa merda. — Vira de costas, então caminha em direção à
porta do apartamento. — Estou farto de você.

Algo se quebra dentro de mim neste momento, um choque tão violento


que me faz perder a audição, tão brutal que me deixa desnorteado. Meus
pulmões sangram e me afogo nesse sangue.

Perco totalmente o controle.


DOENTIO
meu nome
é aquele que você decidir
e eu vou só te chamar de meu
sou louco, mas sou o seu louco
eu amo como o seu nome ecoa na minha cabeça
meu exterior angelical
esconde a obsessão por você no interior
[...]
eu cairia em desgraça
só pra tocar o seu rosto
se você tentar ir embora
vou implorar de joelhos para que fique
don’t blame me — taylor swift

meus passos cessam bruscamente; o


M E R O S C E N T Í M E T R O S D A P O R TA ,
A
som de algo se partindo no chão me assusta. É um som composto: várias
pequenas notas se fundem num único estrondo alto e macabro. Um estrondo
de morte. Me viro.

A cena é estranhamente bonita — do jeito que um incêndio é bonito


até começar a te queimar vivo.

Há cacos de vidro, cristal e porcelana espalhados pelo chão —


pedaços dos copos e pratos que decoravam o balcão. Sobre eles, está o
autor da cena de destruição. Jude bufa e respira fundo, seus braços pendem
sobre o mármore por conta do movimento agressivo que teve que fazer para
derrubar tudo o que estava sobre ele de uma vez. Seu rosto e pescoço estão
intensamente vermelhos; seus olhos, transtornados. Veias pulsam de sua
mandíbula fortemente fechada; seus ombros se elevam como se estivesse
preparado para um ataque.

Quando caminha em minha direção e aponta um dedo para o meu


peito, tenho certeza de que “ataque” é uma descrição adequada para o que
está acontecendo aqui.
— Quem você acha que é? — vocifera. Sua voz sai frígida por entre os
dentes cerrados. — Quem acha que é pra me dizer algo assim? — Me
empurra para trás com o dedo. — Acha que me importo? — A voz reverbera
pelo apartamento, disseminando sua ira.

Encaro-o sem qualquer reação, analisando e absorvendo essa ira. A


ira que provoquei. No fundo de seus olhos azuis, há um ardente brilho de
frustração. Sob a respiração descompassada e os movimentos agressivos, há
um desejo incontido de se aproximar de mim e me tocar. Sob a voz frígida e
áspera, há um tom solícito.

Sua reação repentina volta a despertar algo quente dentro de mim —


parte do ciúme alucinante que me consumiu até pouco tempo — e meu
coração acelera. Agarro seu pulso, afastando seu dedo do meu peito.

— Sim — murmuro friamente e mordo a língua.

Jude puxa seu pulso para longe. Sua fúria se intensifica.

— Está errado.

Cerra os punhos e me dá um último olhar ameaçador, então caminha


de volta aos cacos. O som dos fragmentos de vidro se arrastando sob seus
sapatos contra o chão torturam meus ouvidos, e eu sequer me importo com
isso.

— Tô? — rebato exasperado. Ele para de andar. — Então por que


você fez isso? — Aponto com o queixo para as louças estilhaçadas no chão.

Com um olhar tenso e cauteloso, Jude analisa o caos no qual


transformou a própria cozinha pela primeira vez. Logo parece se dar conta de
que está rodeado por pedaços pontiagudos e afiados de louça que podem
machucá-lo diante do menor desequilíbrio. E, ao invés de se assustar com
isso, parece ficar aliviado. Relaxa os ombros, fecha os olhos. O rosto e o
pescoço queimam num tom escarlate menos vivo.

Permanece dessa forma por alguns segundos, deixando um silêncio


desconfortável e abafado se erguer pelo espaço vazio entre nós.

Esqueço da porta atrás de mim e me concentro totalmente no homem


à minha frente. Sua nuca curvada para baixo parece mais vulnerável do que
jamais esteve, maculada pelas marcas vermelhas — que em breve também
ficarão roxas — do meu braço. Seus fios amarelos cintilam sob a luz artificial
e levemente alaranjada da cozinha, assim como todo o mar de cacos de vidro
e fragmentos de porcelana sobre os quais está de pé. A destruição no chão
parece um mero detalhe frente à destruição em seu interior.

E sei que ele está usando estes breves segundos de silêncio para
tentar se recompor a partir dos pedaços, esconder a fúria que tão
subitamente deixou explodir, colocar todas as peças de seu quebra-cabeça
complexo no lugar em que estavam antes de serem violentamente
bagunçadas. Não posso permitir que ele o faça. Não posso permitir que volte
a ser o Jude de antes. Se eu o fizer, então não haverá mais falácias: o terei
perdido para sempre. Inspiro fundo.

É quando sua voz gélida e distante corta meus pensamentos como


uma lâmina enferrujada:

— Está errado. Não me importo com você. — Jude abre os olhos e me


encara sobre os ombros. É o olhar mais severo que já vi em seu rosto. —
Saia daqui antes que eu faça algo de que vá me arrepender.

Esse olhar faz um gosto amargo subir à minha boca. Não permito que
me atinja demais, no entanto. Não permito que ele me manipule com mais
olhares como esse, com palavras como essas.

— Se você não se importa comigo, então por que se arrependeria


depois?

Vejo suas pálpebras se estreitarem.

Jude permanece em silêncio, me fita como se mensurasse os prós e


contras de arrancar minha espinha das costas com as próprias mãos. Estufo
o peito. Dou passos em sua direção até pisar sobre o mar de destruição no
chão.

Ele se vira, desconfiado.

— Vamos lá — provoco. — Corte meu pescoço com um desses cacos.


Abra meu peito com aquela faca. Faça o que quiser. — Goldman caminha
para trás, arisco, até ser interrompido pelo balcão da pia às suas costas. Me
certifico de prender bem seu olhar ao meu quando digo: — Eu sou
insignificante, não sou? Então por que se importa? Não é como se você fosse
se foder por causa disso. — Começo a segui-lo em direção à pia, um passo
lento de cada vez, um arranhar de vidro sobre o chão polido de cada vez,
uma palpitação descontrolada do meu coração a cada vez. — Tenho certeza
de que você consegue um jeito rápido de esconder tudo. Nem me importo
com o local em que você vai me enterrar. Vá em frente. — Abro os braços em
sinal de rendição. — Me mate.

— Pare de falar esse monte de merda e não se aproxime mais —


retruca com a cara fechada.

Abaixo os braços e de fato obedeço: paro de falar esse monte de


merda e não me aproximo mais; porém por um, talvez dois segundos. Meu
corpo parece magneticamente ligado ao dele. Há uma força incontrolável que
nos atrai, algo em sua pele, em sua boca, em seu interior tortuoso e
misterioso. Algo que faz minha mente e meu coração se desligarem. Algo
que, nem em um milhão de anos, eu conseguiria definir o que é.

Jude é o completo oposto de mim. E eu o odeio. O odeio por tantas


razões diferentes. E ódio está longe de ser o sentimento mais forte que tenho
por ele.

Então tomo uma decisão.

— Jude — balbucio, e retomo os passos lentos.

Não posso perdê-lo.

— Não dê sequer mais um passo, seu cretino — rosna.

Meus sapatos deslizam firmes sobre o vidro estilhaçado no chão.

— Jude.

Ele não me fita diretamente. Assim, quando encerro a distância entre


nossos corpos, quando envolvo sua cintura e seus ombros com as mãos,
quando o esmago contra mim, seu rosto fica preso entre meu peito e meu
pescoço, a visão borrada por mim.

— Me solte! Me solte! — Ele se debate violentamente contra os meus


braços. Tenta me golpear, me machucar, me afastar. Mas não consegue. —
Me solta, caralho!

— Jude...

Não posso perdê-lo.

Seguro a parte de trás da sua cabeça e aperto-a mais contra mim,


pressiono seu rosto contra minha pele. Meus dedos afundam em seus
quadris, meu braço envolve suas costas tão fortemente que nossos torsos se
esmagam um contra o outro. Descanso o queixo sobre sua cabeça e cerro os
olhos. Encontro alguma paz neste abraço, mesmo com o homem atordoado
sob mim.

Ele é meu e não posso perdê-lo.

— Me solte! — Soca meus ombros, meus braços. Sua voz sai sôfrega,
angustiada. — Me solte... — Finalmente parece cansar de se debater.
Espalma meu peito; sua respiração quente e profunda reverbera entre nossos
corpos, sem espaço para escapar. — Por favor... — Suas mãos se arrastam
pelo meu peito lentamente até alcançarem o pescoço. As unhas se cravam
em minha nuca e ele me aperta mais forte do que jamais apertou. Puxa
minha cabeça para baixo bruscamente, desesperado. — Por favor não vá. —
Seus lábios descansam próximos de meu ouvido. — Prometa que não vai
embora.

As palavras suspiradas soam estranhas em sua boca. É como se


pertencessem a alguém que ainda não conheço, um Jude que esteve esse
tempo todo escondido sob a armadura gelada do executivo vingador.

Seguro-o mais forte, sentindo suas costelas em meus dedos,


mergulhando no aroma de pinho e da última brisa da madrugada que emana
de seu pescoço. Me sinto ébrio. Ébrio dele.

— Me dê alguma coisa. Qualquer coisa. — Minha voz sai abafada pela


sua pele. — Prove que confia em mim.

Noto hesitação nos músculos poderosos de suas costas. Jude relaxa


brevemente, diminuindo a intensidade do abraço. Mantenho-o tão perto
quanto antes, não permito que se afaste por um centímetro sequer.

— Eu não... — ele murmura, mas vacila. Após alguns segundos,


continua: — Não quero te trazer mais pra dentro dessa merda do que você já
tá.

Um sorriso de incredulidade desenha-se em meus lábios, então se


estende até uma gargalhada longa e profunda, do tipo que vem dos pulmões.

— Agora você diz isso? — digo quando a risada cessa. Afasto nossos
rostos, mas mantenho seu corpo preso em meus braços. Encaro-o. —
Pensou nisso quando comprou minha dívida dos Snakes? Pensou nisso em
todas as vezes que fodeu comigo?
Jude continua em silêncio, me observa com olhos simultaneamente
duvidosos e solícitos. Olhos perdidos, incertos.

Seguro seu rosto, acariciando sua bochecha com o polegar.

— Confie em mim — insisto.

Jude fecha os olhos e respira fundo. Sob meu toque, ele amolece, a
tensão em seus músculos se dissolve — assim como a dos meus. Nossos
corpos então se distanciam naturalmente.

Quando volta a abrir os olhos, Jude afasta minha mão de seu rosto.

— Não é tão fácil assim — resmunga, o olhar fixo nos afiados cacos de
vidro no chão. — Eu já te dei coisa demais. — Soa mais como uma
contemplação do que como uma recusa. Caminha para longe de mim com
um ar melancólico.

Cabisbaixo, ajoelha-se em meio aos cacos. Estende uma das palmas


abertas em formato de concha e começa a recolhê-los delicadamente, um a
um.

Encaro a parte de trás dos seus fios amarelos, sentindo um vazio


deixado pela distância entre seu corpo e o meu. Esfrego a boca.

— Jude — chamo. Estendo uma mão em sua direção, pronto para


insistir outra vez, pronto para insistir quantas vezes forem necessárias até
fazê-lo se abrir.

Não preciso ir muito longe, no entanto.

— O nome dele era Jason...


VINGANÇA
X
JUSTIÇA
Nota do autor:
“Sinto muito” não é o suficiente para justificar um ato de violência conjugal. Traumas (e mecanismos de
superação) são particulares de cada um, assim como as escolhas a serem tomadas a partir deles.
você me colocou nessa merda,
entrou na minha cabeça
e mesmo assim eu ainda te quero
você me acorrentou
me prendeu dentro do meu próprio cérebro
e, de alguma forma,
eu ainda te quero
love made me do it — ellise

qual me apaixonei — Jude continua. — Era


— FO I A P R I M E I R A P E S S O A P E L A
lindo, extrovertido, forte. Cheio de vida. Basicamente o oposto de mim.
Cresci com ele; desde minhas primeiras lembranças da infância, ele estava ali.
Seu pai e o meu eram amigos próximos. Quando meus pais morreram, os dele
se afastaram, mas nós dois continuamos juntos.

Jude toma um segundo para estabilizar o fôlego.

— Até um dia de inverno: o dia em que minha tia descobriu que


estávamos juntos. Ela... Ela... — Se interrompe. Quando abre a boca
novamente, a voz sai mais baixa, quase como um sussurro, como se tivesse
dificuldade de deixar sua garganta: — Ela me espancou até me deixar
inconsciente, então me trancou numa sala escura por dias. Um porão sem
luz, sem água, sem comida. Quando finalmente consegui sair, descobri pelo
noticiário que Jason tinha “se suicidado” e o velório já tinha acontecido. Meu
primeiro amor virou lembranças e carne apodrecida. Por causa dela. Ela o
matou, nunca tive dúvidas disso. Minha tia matou o cara que eu amava e
forjou provas pra parecer um suicídio. Não pude fazer nada, Kim. Eu tinha 16
anos. Ele só tinha... só tinha 15. Não vi seu cadáver, não fui ao velório. Só
pude ver seu túmulo quando fui libertado.

Agora entendo por que ele hesitou tanto em dizer isso.

Me sinto zonzo, terrivelmente enjoado. Poderia vomitar no chão caso


houvesse qualquer coisa em meu estômago.

Não sou estranho à violência parental, não depois do inferno que vivi
com meu pai. Mas nunca pensei que Jude, especialmente Jude... Nunca
imaginei que ele tivesse passado por um inferno parecido. Meu coração
afunda, aperto bem os olhos e encubro minhas pálpebras fechadas com as
mãos.

Engulo o nó de remorso que se forma em minha garganta, sinto-o me


corroer por dentro. Não me sinto apenas triste, me sinto destruído, obliterado,
o que resta de um osso depois de ser pulverizado.

— É isso que Brianna faz — Jude comenta num tom ainda mais
amargo —: ela se livra de quem entra no caminho dela e apaga todos os
registros. Não foi a primeira vez que fez isso com alguém.

— E qual foi a primeira?

Esfrego a boca, ansioso. Encaro o homem quebrado em minha frente.

Diante do semblante macabro de Jude, um calafrio atravessa minha


espinha. Quando ele finalmente responde, um segundo segue sua deixa.

— Não é óbvio? Meus pais. — Ele retesa a mandíbula e puxa os


ombros para trás. — A filha da puta matou Jason, matou meus pais. É uma
maldita psicopata. Se eu não fizer exatamente o que ela quer... também vai
me matar, assim como a Florence, e então terá a guarda de Audrey só para
si. É isso o que quer: a fortuna da nossa família e um herdeiro com sangue
Goldman — diz num tom sombrio. — Você não pode nem imaginar as coisas
que ela faria com você, Kim.

Não é a primeira vez que ouço isso.

Aceno sutilmente.

O precipício entre mim e Jude se estreitou. Sua armadura fria e


arrogante já não é tão difícil de compreender.
Ele levanta e caminha até a lixeira mais próxima, um cilindro de metal
entre a parede e a pia. Despeja os cacos de vidro que recolheu e, em
seguida, volta a se agachar no chão e a juntar um fragmento pontiagudo por
vez, a nuca curvada para baixo, a espinha exposta sob a camisa manchada.

Ele parece frágil ao abrir seu corpo e seus segredos mais íntimos para
mim. Talvez confidenciar isso em voz alta lhe cause dor — não pensei nessa
possibilidade antes. E, honestamente, se causar dor, se estiver sofrendo, que
seja. Eu o quero por inteiro, de todas as formas, com todas as dores e todos
os demônios.

Isso não é apenas uma declaração de confiança. Me confidenciar sua


verdade é um pacto, um novo contrato que me prende a ele, à sua busca
incessante por vingança, para sempre. Um contrato que assinarei com
prazer.

Apoio a lombar no balcão da pia. Cruzo os braços. Meu coração


desacelera; uma paz peculiar me preenche. Não haverá mais um ponto de
retorno depois disso, depois que toda a verdade tiver sido cuspida de sua
boca. E não poder mais retornar é exatamente o que quero.

— Por que ela fez isso? — pergunto calmamente, incitando-o a


continuar depois do breve silêncio. — Por que sua tia matou ele?

Jude suspira alto, como se pensar na resposta lhe exaurisse.

— Porque ela quer ter controle completo sobre a minha vida. Brianna
não aceita a ideia de ter um filho que não seja exatamente como quer. E,
para a minha sorte, desde que assassinou meus pais pelo dinheiro, sou o
mais próximo que tem de um. — Faz uma breve pausa. Quando volta a falar,
sua voz está mais ríspida, baixa: — Há poucas coisas tão perigosas quanto
uma pessoa muito homofóbica... e tão poderosa.

— É por isso que quer destruí-la? Por vingança? — Ergo uma


sobrancelha.

Um silêncio estranho e mais longo do que os outros deposita-se entre


nós. Afasto-me do balcão e descruzo os braços. Caminho até ele, no meio
dos cacos e estilhaços. Jude curva a nuca um pouco mais para baixo.

— Não é vingança. — Ele segura um pedaço de vidro particularmente


grande e perigoso em uma das mãos. Aponta-o para o centro da outra palma,
aberta, ao ponto de rasgar a própria carne a qualquer instante. — É mera
justiça. — As palavras são frias, os olhos estão fixos no fragmento
pontiagudo. — Sei que nunca poderei expor a verdade por trás da morte de
meus pais, mas o caso de Jason é diferente. Posso e vou expor a verdade.
Quero que Jason receba a justiça.

Me agacho lentamente. Toco o pedaço de vidro em sua mão. Jude vira


o pescoço em minha direção, surpreso. Nossos olhares se encontram. Não
digo nada até puxar o estilhaço de seus dedos.

— Mas você não é um justiceiro — digo sem conseguir conter minha


repreensão. Caminho até a lata de lixo. Abro a tampa. — Você mesmo disse:
sua tia é muito poderosa — falo sobre os ombros. Jogo o pedaço de vidro
sobre os outros e fecho a tampa.

Volto a me agachar ao lado de Jude. Começo a recolher os cacos mais


próximos, os maiores, me certificando de que Jude passará longe deles. Ele
fica parado, me analisando com cuidado. Os olhos se estreitam, os ombros
se tensionam. Tento premeditar o que irá sair de sua boca. “Não preciso de
uma babá”; “Por que você tirou aquele pedaço da minha mão?”; “Posso
recolher minha própria bagunça sozinho”. Alguma coisa nessa linha.

A realidade, no entanto, me surpreende.

— Minha tia é muito poderosa, sim. E eu sou o herdeiro de todo esse


poder. — Suas íris sombrias, macabras, repousam sobre mim. — O príncipe
é o único capaz de decepar a cabeça de uma rainha viúva. E estou perto,
Kim. Muito perto. — Jude levanta lentamente. — É isso que você viu no
closet: um quadro com todas as pistas, evidências e pessoas de interesse
envolvidas no assassinato de Jason, e no meu plano para fazer justiça por
ele.

Você não devia ter visto isso, sua voz aterrorizada retorna à minha
mente.

Vira de costas. Caminha até a pia. Apoia as duas mãos no balcão.


Continua, mais baixo desta vez:

— Tento tirar um pouco do que se acumula na minha cabeça e deixar


lá, naquela saleta, porque se não o fizer... acabo doente.

Abandono os cacos no chão e me aproximo dele. De lado, observando


seu rosto profundamente exausto, questiono:
— Estou nesse quadro?

Ele me olha de relance, mas logo desvia. Parece acanhado ao assentir


— receoso até. Não importa. Tenho completa noção dos riscos que corro por
estar ao seu lado durante essa investigação, durante sua busca incessante
por vingança.

Um pensamento particular, no entanto, me faz ranger os dentes:

— E meu irmão?

Ele se apressa a negar.

— Não. Te prometi que não envolveria ele.

— Bom.

Seus olhos repousam sobre mim; ele entreabre os lábios, me


chamando em silêncio. Vejo os nós de seus dedos embranquecerem pelo
aperto no balcão. Ele murmura tão baixo que preciso me aproximar mais,
curvar a cabeça sobre seu corpo para entender.

— Descobri que Brianna contratou os Snakes para fazerem a parte


mais suja do trabalho. Por isso eu tava no ringue naquela noite, por isso te
conheci. — Há um brilho opaco em suas íris azuis, um tipo de corrosão, uma
mágoa que aperta meu peito. Sua voz vacila ao dizer: — Pensei que você
seria o candidato perfeito pra demolir a reputação indestrutível que minha tia
construiu e conservou pra mim. Eu queria te usar, é verdade. Não pensei em
você. Não pensei na sua família. — Franzo a testa. Ele desvia o olhar para a
parede à frente. — Tudo o que importava pra mim era dar de volta pra
Brianna um gosto amargo de toda a merda que ela fez comigo.

Não tenho ideia do que responder. Sei da estratégia predatória e


vingativa de Jude, e sei que isso pode ser sua ruína. Da mesma forma, sei
que não há nada que eu possa dizer para mudá-la, ao menos não agora.
Descobrirei algo, qualquer coisa que o afaste desse caminho, que o afaste...
da mira de Brianna.

Não permitirei que se sacrifique. Não vou perdê-lo outra vez.

Em outro momento, saberei o que dizer para convencê-lo a escolher a


mim ao invés da vingança. Em outro momento.
Jude estica a mão sobre o balcão até alcançar algo — uma pasta
acobreada de plástico. Os papéis em seu interior projetam-se pelas laterais.
Ele a arrasta até sua frente e apoia as duas mãos ao seu redor, fitando-a de
cima.

— Foi por isso que dormi com Dom. Antes, e hoje de novo. Por essa
maldita pasta.

As palavras me deixam arrepiado, e preciso desviar o olhar para baixo


para não pensar demais em Jude fodendo com aquele mafioso desgraçado.
Cerro os punhos. Se ao menos eu pudesse esfregar a cara do Snake neste
chão cheio de cacos de vidro...

— O que é isso? — Me refiro à pasta.

Ele não responde imediatamente, parece ponderar sobre algo. Analiso


seu rosto distante e absorto. Repouso a mão esquerda em suas costas, no
vão entre as escápulas, sentindo as proeminências de sua coluna em minha
palma. Esfrego o local.

Ele estremece, se contrai e, em seguida, relaxa com meu toque. Pisca


longamente antes de responder:

— A ficha de uma mulher que fez parte do grupo de Snakes contratado


pra assassinar Jason e forjar o suicídio.

Sobre o balcão, arrasta a pasta até mim. Sou obrigado a desfazer o


toque em suas costas para apanhá-la.

— Não tenho mais que foder com ele, Kim — sussurra quando toco o
plástico acobreado, e seus olhos finalmente reencontram os meus. Estão
frios, assim como sua voz. — E não vou. — Trinca os dentes e ergue as
sobrancelhas. — Está feliz?

Ele dá as costas antes que eu comece a processar sua passivo-


agressividade. Encaro sua nuca, um pouco pasmo, um pouco ansioso,
enquanto o loiro se aproxima dos sofás da sala de estar adjacente à cozinha.

Goldman tosse algumas vezes entre um passo e outro e esfrega o


pescoço, da nuca ao pomo de adão. Fico nauseado. Meu coração dói. Aperto
a pasta em minhas mãos com força. Dou um passo na direção de Jude, meus
lábios entreabertos, mas paro logo em seguida.
Ele se senta no sofá de costas para mim, o mesmo que ocupei
enquanto esperava-o chegar em casa.

Expiro fundo.

— Sinto muito pelas merdas que eu disse... — começo. Ele vira o


pescoço parcialmente para trás. Mantém a atenção centrada em mim, mesmo
que nossos olhos não se encontrem. — Pelas merdas que fiz. Sinto muito
por... explodir dessa forma.

Aguardo sua resposta.

— Eu só sabia o nome dessa mulher — é tudo o que diz, cortando o


assunto como uma lâmina sobre uma ferida aberta; doloroso, mas
complacente. Após um tempo, vira-se em direção às janelas e continua: —
Descobri na noite da sua luta. Dom poderia ter me entregado o caralho das
informações nessa pasta antes ao invés de ficar me fazendo andar em
círculos naquele clube com nada além da porra de um nome pra me guiar.
Mas acho que ele sente prazer em me ver andar em círculos. De qualquer
forma, está em minhas mãos agora, e é isso que importa. O nome dela é
Olivia.

Um calafrio súbito atravessa minha espinha. Observo a nuca de


Goldman enquanto minha mente embranquece e os contornos do rosto de
Olivia se tornam nítidos.

Kim, sua voz suave, calma e familiar ressoa em meu ouvido como uma
alucinação.

Meu coração acelera. Curvo-me sobre o balcão e abro a pasta de


supetão, angustiado. Não pode ser. Não pode. Olivia não pode... Não teria
coragem de matar... Teria?

Tem medo de que eu vá acabar te machucando?, a voz dela volta a


ecoar.

Meus dedos agarram o conteúdo da pasta. Como Jude mencionou, há


apenas uma ficha de identificação com dados pessoais e uma foto. Meus
olhos desesperados repousam sobre a foto. Enrijeço completamente.

Olivia é uma assassina.


EU VEJO VOCÊ
você nunca ficará sozinho
estarei com você do amanhecer ao crepúsculo
dusk till dawn — zayn

ELA. É A MINHA Olivia.


É
É como levar um murro bem no estômago.

Está bem aqui nesta foto, me encarando de volta com as feições sérias
e afiadas, o cabelo preso atrás da cabeça num coque, os olhos castanhos e
letais.

Fico nauseado.

Além da foto, as informações na ficha são indiscutíveis.

Olivia Scott. 27 anos.

Nascida em Columbus, Ohio. Mudou-se para Nova York com 13 anos.


Juntou-se aos Snakes com 14.

Nenhum parente vivo.

Aperto os lábios. Fecho a pasta. Encaro o plástico acobreado por


alguns segundos. Como ela pode estar envolvida numa coisa dessas?

“É parte de mim, Kim. Parte do meu corpo. Sabe como me machuca


escutar você pedir que eu me livre de uma parte de mim?”, ela disse sobre a
tatuagem depois de consertar mais uma das feridas abertas pela gangue que
serve de tão bom grado. O que você fez, Olivia? Que merda você fez?

Trinco a mandíbula.

O que Jude planeja fazer com essa informação? O que planeja fazer
com Olivia? Vai matá-la?
— Kim? — uma voz suave, calma e familiar ressoa ao meu lado.

Fito Jude de relance.

Terei que salvar a mulher que amei do homem que amo?

Ele deixou o sofá e caminhou silenciosamente até mim. Agora está


próximo, mas não muito. Um pé no piso elevado da cozinha, outro na porção
rebaixada que leva à sala. Uma mão apoiada no balcão da pia, a outra
pendendo ao lado do corpo.

Se Jude matar Olivia, ainda poderei ficar com ele?

Há uma expressão profundamente solícita em seu rosto delicado, um


brilho ferozmente imponente em seus olhos frios.

Esqueço de chegar a uma conclusão. Esqueço de raciocinar.

Empurro a pasta para longe, esquecendo-a também. Vou arranjar uma


forma de salvar Olivia, mas não agora. Agora, vou esquecê-la.

Meu torso se move na direção de Jude como um pedaço de metal


atraído por um ímã: um ímã perigoso e nefasto, um que minha própria
estrutura não consegue evitar. Observo seus olhos, seu rosto, seu corpo. E, a
cada detalhe sobre o qual meus olhos repousam, meu coração acelera e
acelera e acelera até se tornar insustentável, até eu ter certeza de que vou
infartar nos próximos dois ou três minutos, até minha pele começar a
queimar.

Ele entreabre os lábios finos e, como se eu fosse uma ameaça,


murmura com firmeza:

— Prometa que não vai embora. Prometa que vai ficar comigo.

Faço uma careta.

— O quê?

Ele bufa. Desvia o olhar de mim até a bagunça na qual o chão da


cozinha se transformou. Acompanho-o, e não preciso de muito mais para
entender o que está acontecendo.

— Jude... — balbucio, me aproximando.

Ele vira o rosto para o lado bruscamente.


— Prometa — rosna entredentes.

Interrompo meus passos, minha mão erguida no espaço livre entre


nossos corpos, meus dedos parados na linha reta que leva até sua face.
Procuro dentro de mim alguma coisa — qualquer coisa — que possa me
fazer recuar dessa decisão, recuar dessa promessa. Procuro, procuro,
procuro. Não acho nada. Esqueci de tudo.

Suspiro e encerro a distância entre nossos corpos. Envolvo sua nuca


com uma mão e a cintura com a outra. Colo seu peito no meu. Seguro-o tão
próximo que consigo ver cada detalhe do cintilar feroz em suas íris.

— Eu prometo — afirmo rígido, impassível, certo de minhas palavras


como jamais estive na vida. Estou tão certo delas quanto estou do ar que
penetra em meus pulmões e me mantém vivo; tão certo quanto estou de que
Jude é esse ar. — Mesmo se você tivesse me cortado, me aberto e me
deixado sangrar nesse chão, eu ficaria com você. Algumas louças quebradas
não são nada, podemos limpá-las pela manhã. — Seguro seu rosto,
afundando o polegar sua bochecha. — Você não vai se livrar de mim tão fácil.

Desço o polegar até o furinho em seu queixo e puxo sua boca até a
minha. Envolvo-a, domino-a, penetro-a com a minha. Seu gosto doce e
inebriante me atinge imediatamente; faz meu coração palpitar, minha pele
arrepiar, meu cérebro derreter. Pressiono o rosto contra o seu em busca de
mais. Meus pés flutuam no chão da cozinha. Pequenas descargas elétricas
atravessam meus dedos quando toco sua pele — a cintura sob a camisa, o
pescoço sob o colarinho.

A língua dele é morna e macia sob a minha — mais morna e macia do


que o habitual. Suas mãos percorrem meu corpo com um cuidado estranho, o
receio de quem tateia algo pela primeira vez. É a primeira vez que faz isso
com alguém que conhece seu passado, preciso me lembrar. Agarro uma de
suas palmas e a coloco sobre meu peito para que sinta algo familiar: o jeito
como meu coração bate por sua causa.

Afasto nossas bocas o suficiente para fitar o fundo de seus olhos. Pela
primeira vez, vejo o que reside sob sua armadura de ouro e gelo: o jovem
inocente, assustado, sangrando naquele local escuro por dias sem ninguém
para ajudá-lo, forçado a reprimir tudo o que é para conseguir sobreviver. Eu o
vejo.

Eu vejo você, Jude. Finalmente vejo você.


Eu vejo e aceito você. Não precisa correr. Nunca mais vai precisar
correr.

E há um brilho de aversão em suas íris quando ele percebe isso,


quando percebe o quão fundo em sua alma estou. Jude treme, engole em
seco. Mas esse brilho logo se dissipa, como um choque inicial, e dá espaço a
algo calmo, plácido, inabalável: aceitação.

Ele também me aceita.


MEU
nunca direi isso em voz alta
mas quanto mais perigoso isso fica,
mais eu fico preso no seu amor tóxico
love foolish — twice

UBO AS ESCADAS COM no colo. Seus braços estão fortemente


JUDE
S
agarrados em meu pescoço, suas pernas envoltas em minha cintura.
Seguro-o pelas coxas, meus dedos roçando sua bunda, minhas unhas
arranhando o maldito tecido da calça que separa sua pele da minha.

Em silêncio, um flash de nossa briga passa em minha mente. Um


pensamento específico então arranha a parte de trás da minha cabeça.

— Não tá interessado em saber quem era a pessoa que tava comigo?


— murmuro, hesitante. Apenas tenho coragem de perguntar isso pois sei
que, pela posição em que está, não pode sair dos meus braços.

Jude toma alguns segundos de reflexão até rebater baixinho:

— Vai me contar sobre ela se eu perguntar?

Suspiro, e realmente penso na pergunta. Contarei a ele que conheço


Olivia? Que já dormi com ela?

— Não.

— Então ela não é importante o suficiente pra que eu me interesse. —


Seu rosto afunda na pele sensível de meu pescoço. Um arrepio atravessa
minha nuca quando ele inspira fundo, se enebriando com meu perfume. —
Você é meu agora.

Assinto sutilmente.

— Eu sou.
— Nunca me deixe, Kim Henney. — Jude agarra mais meu moletom e
sussurra em meu pescoço: — Não me solte.

— Não vou — respondo.

— Nunca.

— Jamais.

Sigo subindo os degraus, um de cada vez, completamente ciente do


peso de Jude sobre mim, ciente da abertura do quarto escuro que se
aproxima, ciente do fato de que Jude está prestes a ser meu outra vez. E,
desta vez, será diferente: não estarei me deitando com uma armadura fria,
com um homem vazio me puxando pelo pescoço por correntes. Estarei me
deitando com um homem de verdade. Com o Jude de verdade.

— Prometa.

Um risinho sarcástico deixa meus lábios.

— Quantas promessas vai me pedir pra fazer essa noite?

Ele fica em silêncio até afastar o rosto do meu pescoço e me encarar


diretamente. Há um brilho insolente em seus olhos.

— Vou tentar a sorte até chegar em uma que você vá recusar.

Uma de suas mãos desliza pelo meu pescoço, pelo meu ombro, pelo
meu peito. Em resposta, as pontas dos meus dedos se afundam um pouco
mais em sua bunda.

— Não precisa — afirmo, hipnotizado pelos seus olhos. — Vou


prometer tudo o que você quiser, fazer tudo o que me pedir... — roço o nariz
em sua bochecha, aproximo os lábios de sua orelha — desde que peça do
jeito certo. — Beijo o lóbulo.

A mão que estava em meu peito sobe até a lateral do meu rosto. Um
sorriso malicioso se desenha em sua boca.

— E qual é o jeito certo?

E um sorriso igualmente malicioso — talvez até mais — se arrasta em


minha face.

— Certamente não esse.


Ele me puxa para um beijo delicado e molhado. A ponta de sua língua
passeia pelo interior da minha boca e brinca com a minha. Atiça e retrai, atiça
e retrai. Há apenas alguns poucos degraus restantes até o quarto, mas
preciso parar. Aperto sua bunda. O calor de seu corpo se intensifica contra o
meu. O beijo se acentua, não é mais delicado — é ríspido e desejoso, solícito
de maneira bastante dominante.

Jude se empurra contra mim. Sua ereção roça em meu abdome. Sinto
a minha dolorosa sob a calça, implorando por alívio, qualquer tipo de alívio.
Não. Não qualquer tipo de alívio. Implorando por ele. Apenas por ele.

Merda. Estou perdendo o controle. Talvez acabe fodendo-o aqui


mesmo, na escada.

E, bom, essa não é uma ideia tão ruim.

Afasto nossas bocas, mas mantenho a testa colada na sua. Subo os


últimos degraus até o quarto e nossos corpos são engolidos pela penumbra
da madrugada, envoltos pelo vento calmo da primavera. Envolvo suas costas
com um dos braços e, com o outro, seguro melhor sua perna. Aproximo-me
da cama. Ele desenha minhas sobrancelhas com o polegar.

— Desculpa por não ter atendido. Desculpa por não estar disponível
quando precisou de mim — sussurro contra seu rosto. — Nunca mais vou te
deixar longe da minha vista de novo, não importa o quão teimoso ou
desagradável você seja.

Jude afasta sua testa da minha.

— Desagradável? — indaga com um sorriso descontente nos lábios.

Reviro os olhos.

— Pra colocar em termos leves. Um pau no cu, em termos pesados.

Ele estreita os olhos, mas não tem tempo de rebater. Alcanço a cama e
deito-o delicadamente. Suas costas tocam o colchão, seus braços se soltam
do meu pescoço. Jude se arrasta para trás pelos cotovelos. Mantém o olhar
centrado em mim, os lábios entreabertos como se sentisse falta da minha
língua entre eles, como se não conseguisse viver sem ela. Ele se arrasta até
a cabeceira, o olhar arrogantemente desejoso de um príncipe que espera ser
servido.
Eu vou te servir, pequeno príncipe.

Ainda em pé, abro o zíper do moletom e atiro-o no chão ao longe com


força. Agarro a barra da camiseta surrada e puxo-a para cima. Jogo-a na
mesma direção do moletom. As íris de Jude cintilam enquanto descem do
meu rosto para o torso, e estacionam ali. Sua boca abre um pouco mais,
ávida. Sua respiração se aprofunda. Ergo o canto dos lábios em um sorriso
cínico e mordo o lábio inferior.

Vou te servir bem.

Olho para baixo. Espalmo meu próprio peito, arrastando a mão sobre a
pele, desenhando os músculos, agarrando as partes sensíveis. Desço-a para
o abdome, para a pelve, e brinco com o botão do jeans. Meu pau duro pulsa
antes mesmo de ser tocado.

Fito Jude, mas ele não me fita de volta. Está absorto, centrado no
volume em minha calça — a boca ainda mais aberta, os lábios brilhantes e
umedecidos.

Eu sei o que você quer, principezinho.

Me toco sob a calça, desenhando o contorno da cabeça e do corpo da


pica com a ponta do polegar e do indicador. Uma umidade se acumula na
ponta dos dedos conforme a provocação continua. Merda. Meus movimentos
são lentos e arrastados. Merda. Estou me torturando — mas preciso torturá-lo
um pouco mais.

Agarro o membro e aperto-o. Uma pressão dolorosa e prazerosa


atravessa meu corpo, faz meu coração acelerar. Minha mão inteira não é o
suficiente para encobrir o pau, mesmo esmagado sob as peças de roupa.
Consigo sentir minhas veias dilatadas, alguns dedos tocam minhas bolas.

Jude finalmente ergue os olhos até os meus outra vez. Há uma mistura
de ódio e anseio em seu olhar. Meu sorriso cínico se alarga.

Finalmente percebeu que estou te provocando, não foi?

Ele inclina o pescoço para o lado, seus ombros se tensionam.

Retiro os coturnos com a ajuda dos pés. Abro o botão da calça jeans,
deslizo o zíper para baixo e retiro a peça, jogando-a sobre as outras duas.
De cueca, apoio um joelho de cada vez na cama, então uma mão de
cada vez. De quatro, engatinho sobre Jude. A cada centímetro que me
aproximo, seu corpo afunda e relaxa mais. Sua boca praticamente suplica
pela minha. Seu peito acelerado clama pelo meu. Suas pernas se abrem e se
arrastam pelas minhas, se fechando ao redor da minha cintura, implorando
por mim assim como eu imploro por ele.

Jude se curva para a frente na intenção de me beijar, mas agarro seu


pescoço no meio do caminho e volto a pressioná-lo contra o colchão. Vejo um
lampejo de surpresa em seu rosto, mas é passageiro. Ele agarra os fios de
cabelo em minha nuca e puxa minha testa contra a sua, forçando o beijo.
Meu torso despenca contra o dele, meu pau umedecido se fricciona contra o
seu.

Seus lábios são sedentos, agressivos. O beijo é violento, perigoso,


uma briga de egos e dominância. É amargo e metálico, mas doce e vibrante
ao mesmo tempo — como o último momento de euforia antes de uma
overdose.

Minha mão agarra seu pescoço com mais força e seus dedos puxam
meus fios um pouco mais. Suas pernas estrangulam minha cintura, me
puxam mais e mais contra si. Não sei o que é dor, não sei o que é prazer. Sei
apenas que lágrimas suaves se formam em meus olhos e se derramam pelas
minhas bochechas, alcançando nossas bocas e se misturando à saliva.

Quando percebe o gosto salgado, Jude puxa minha cabeça para trás.
Observo seu rosto, e noto que também possui lágrimas acumuladas nos
olhos — embora não haja um traço úmido sequer em suas bochechas.

Ele segura as laterais da minha face com delicadeza e lambe o trajeto


molhado deixado pelas lágrimas, da boca aos olhos, em ambos os lados. Sua
língua é quente e elétrica sobre a parte da pele que toca. Minha respiração
fica entrecortada. Meu estômago queima. Minha espinha congela.

De alguma forma, isso parece mais íntimo do que sexo. Mais privado
do que sexo.

Quando termina, Jude me fita com um olhar sereno e um sorriso


tranquilo. Há felicidade nele neste momento. Felicidade em limpar minhas
lágrimas depois de tudo pelo que passamos. Felicidade por carregá-lo da
sala ao quarto. Felicidade... pela promessa de que não irei embora.
Meu peito pesa. Quero mantê-lo assim, feliz, para sempre, por todos
os malditos dias que ainda nos restam.

Passo um dos braços por baixo de sua nuca e aguardo alguns


segundos até que se acomode. Seguro seu queixo suavemente.

— Se tentar se livrar de mim, vou me acorrentar a você — sussurro


baixo e rouco. Beijo seus lábios antes de continuar. — Se tentar se afastar de
mim, vou quebrar seus tornozelos — acaricio sua bochecha — e te deixar
num lugar em que possa te observar 24h por dia, pra sempre.

Há o raio efêmero de algo que não consigo desvendar em seu rosto.


Talvez seja surpresa, talvez intimidação. Jude permanece em silêncio por
algum tempo, não demonstra qualquer reação. Quando finalmente responde,
há um tom jocoso em sua voz:

— Isso deveria ser sexy? — Ergue uma sobrancelha. — Isso é


doentio, Kim.

Inclino o pescoço para o lado, mas não respondo nada. Talvez seja
melhor que eu continue sem dizer nada pelo resto da noite. Posso ter
passado um pouco do limite, sim.

Os braços de Jude se arrastam pelas laterais do meu torso. Seus


dedos sobem pelas minhas costas, pelas minhas costelas. Seus dedos
deixam um traço ardente por onde passam. Suas mãos repousam sobre as
escápulas.

Sua expressão se fecha, torna-se impositiva.

— Não te pedi pra parar — meio que repreende, meio que ordena.
Antes que eu possa responder, ele continua: — Os administradores do ringue
não me avisaram que você era tão territorial quando te comprei.

E, por mais fodida que seja, essa afirmação retira uma risada genuína
do meu peito.

— Eles eram mafiosos que não sabiam porra nenhuma sobre mim.

— É? — Morde o lábio inferior. O tom rosado passa a vermelho-vivo


sob os dentes. O semblante sério se torna desejoso. — Mas eu te conheço
melhor do que eles.
Beija meu pescoço, do pomo de adão à parte de trás das orelhas. Sua
boca deixa um trajeto úmido sobre a pele. Jude faz questão de foder com
meu autocontrole quando lambe esse trajeto, lento e firme.

Um gemido abafado, rouco, escapa da minha garganta sem aviso. Isso


parece deixá-lo feliz.

Os beijos prosseguem, agora para minha mandíbula.

— Conheço cada pedaço seu — diz. Suas mãos descem das minhas
costas, seguindo a linha da coluna. Alcançam a lombar, e a bunda. Os dedos
caminham sob o tecido fino da minha cueca, puxando-a para baixo,
apertando e arranhando, reiterando tudo o que fala. — Conheço cada
centímetro de pele, cada extremidade da sua boca. Sei o seu gosto, sei o que
pensa, sei o que quer e o que não quer. E quero te conhecer mais ainda.

Sua respiração úmida e morna me deixa com sede. Sede por ele.
Sede por tudo o que tem a me dar nesta noite. Uma sede que somente ele
pode aplacar.

Seus lábios roçam nos meus. Viro o rosto em sua direção, tentando
consumar o beijo. Ele não permite, desviando a cabeça para o lado oposto.
Acentuo o toque em seu pescoço, movo os quadris contra os seus. Não vou
conseguir me controlar por muito mais tempo.

Seu pescoço se estende a mim, macio e vulnerável. Manchas


vermelhas espalham-se pela pele. Manchas que eu deixei. Esfrego-as com o
polegar e beijo-as, em seguida. Uma por uma, devagar.

Jude parece entrar em combustão sob mim. Quando termino, ele


suspira. Encaro seu rosto. De olhos fechados, murmura:

— Seja um homem de palavra. — E volta-se a mim. O olhar impositivo


ainda está ali. O semblante sério também, especialmente ao dizer: — Nunca
me deixe sozinho.

Meu cenho se franze. Ele ainda tem alguma dúvida? Ainda acha que
vou deixá-lo? E, então: O que posso fazer para convencê-lo de que vou
cumprir a porra do que disse?

Entreabro os lábios.

Ele é mais rápido:


— Me fode — ordena entredentes. Volta a agarrar os fios em minha
nuca com força. Puxa-os para trás bruscamente. Um grunhido dolorido rasga
minha garganta. — Me foda com toda a raiva e rancor que tem borbulhando
dentro de você. Me foda até arrancar o cheiro de Dom de mim, até não restar
nada além do seu. Me foda até o mundo inteiro se tornar obsoleto. Tô pronto
pra você. — Com lágrimas nos olhos, encaro os dele. — Estou sempre pronto
pra você. — E seus lábios tocam os meus suavemente.

Então é isso que preciso fazer para convencê-lo.

desta vez. Não houve


N O S S O S C O R P O S S E E N C A I X A R A M P E R F E I TA M E N T E
resistência, não houve antagonismo ou luta. Houve somente meu desejo por
ele e o dele por mim.

Envolvo seu peito como se não fosse soltá-lo nunca mais. Cravo os
dentes em sua nuca como se fosse arrancar um pedaço de sua carne. Sinto
o gosto salgado e adstringente de seu suor na ponta da língua — e é o
melhor sabor que já provei na vida.

Meu pau entra e sai de Jude como se seu corpo tivesse sido feito
exatamente para isso, moldado aos mínimos detalhes para mim, como se sua
respiração fosse minha, como se seu prazer fosse meu — e realmente é. Ele
é meu. Quando o penetro fundo e um som estridente de carne se chocando
contra carne ecoa pelo apartamento, assim como seu grito abafado pelo rosto
colado no colchão, tenho a confirmação disso.

Uso todo o meu autocontrole para parar nessa última estocada. Minha
cintura repousa pressionada contra sua bunda. Meu pau lateja em seu
interior. Estou perto demais de gozar. Mais três ou quatro movimentos e não
vou conseguir me segurar. Apoio o rosto na parte de trás da sua cabeça e
respiro profundamente. Aspiro o cheiro adocicado e fresco de lavanda em
seus fios úmidos. Meu peito esmaga seus ombros contra a cama.

Beijo a nuca exposta em minha frente, iluminada pela luz


particularmente brilhante da lua esta noite, e me puxo para fora lentamente,
centímetro por centímetro, deixando-o sentir cada mísero milímetro da minha
extensão. Na altura da cabeça, paro. Jude geme baixinho, grave e rouco, me
apertando em seu interior, sem permitir que eu saia completamente.
Um suspiro repentino escapa dos meus lábios. Seu filho da puta. Me
empurro inteiro dentro dele de uma só vez. Suas costas se arqueiam, seu
gemido é mais alto, ríspido, quase um grito.

Espalmo suas costas e me impulsiono para trás. Sento sobre suas


coxas. Com os pés, forço suas pernas a se fecharem mais. Entreabro os
lábios diante da visão completa de seu corpo sob o meu. Abro suas nádegas.
Observo meu pau deslizar para fora, então para dentro, então para fora
novamente. Devagar. Devagar. Devagar. Ele ergue o quadril quando estou
quase completamente fora. A bunda se contrai quando estou completamente
dentro. Seu corpo é quente e úmido e apertado e preciso morder o lado
interno da minha bochecha até sentir o gosto de sangue para conseguir
continuar sem gozar de uma vez.

Após algum tempo, paro de me mover e dou um tapa leve em sua


bunda. O som agudo do golpe ressoa no quarto, a pele fica rosada no local
em que minha mão a atingiu.

Jude usa os cotovelos para erguer o tronco no colchão e vira o rosto


para trás.

— Isso é tudo o que tem? — diz com um sorriso sugestivo.

Estreito os olhos. Abro um sorriso parecido com o dele e dou outro


tapa, desta vez erguendo bem o braço e colocando força no impacto. Me
concentro em seu rosto enquanto o faço. Jude cerra os olhos, e seu sorriso
se aplaina, apenas levemente incomodado pela dor. Quando volta a me
encarar, ordena:

— Mais forte.

E, depois que obedeço, ele repete:

— Mais forte.

E, depois que sua pele passa de um tom rosado para um vermelho


pálido, repete:

— Mais forte.

E, então, a um vermelho-vivo.

— Mais forte.
Até quando, finalmente, a dor parece incomodar e ele afunda o rosto
no colchão outra vez.

Acaricio a nádega vermelha com o polegar, desenhando a forma rubra


e difusa deixada pela minha palma. Ele empurra o quadril para cima, contra
meu dedo, e então para os lados, rebolando sutilmente com meu pau
enterrado dentro de si. Sob minhas pernas, ele não tem muita liberdade para
se mover, mas é o suficiente para fazer um outro suspiro repentino rasgar
minha garganta.

— Eu quero te beijar, vamos mudar de posição — ele resmunga contra


o colchão, o rosto virado em minha direção apenas o suficiente para que
nossos olhos se encontrem.

Deslizo para fora dele. Jude geme. Deito ao seu lado, passando um
braço sob seu pescoço. Envolvo suas costas, repousando a mão em sua
cintura, e puxo-o para mais perto. Ele fica de lado na cama, de frente para
mim, e me beija. Sua língua morna e ávida percorre minha boca como se
quisesse fazer isso há algum tempo.

Jude me envolve com uma das mãos e me masturba do jeito certo, no


ritmo certo, com a pressão certa. Seguro-o mais forte contra mim. Minha mão
se arrasta de sua cintura até a bunda; aperto-a. Uma de suas pernas
descansa sobre a minha. Sua ereção roça meu quadril, deixando ali uma
marca de umidade do seu pré-gozo.

Ele retira a língua da minha boca e me dá um último selinho antes de


se afastar completamente. Meus lábios permanecem entreabertos. Abro os
olhos, observo seu rosto. Ele me observa de volta com uma curiosidade
peculiar enquanto seus dedos se movem em meu membro. Permanecemos
assim, em silêncio, concentrados um no outro, por vários minutos.

Como seus olhos podem ser tão frios enquanto seu corpo é tão
quente?

— Quer me enforcar? — ele pergunta subitamente, sem desviar o


olhar do meu. — Esse não é um fetiche seu?

A punheta lenta me deixa desatento por alguns segundos. Levo três,


quatro movimentos de seu pulso até perceber ao que está se referindo.

— Quer que eu te enforque? — indago, desconfiado.


Meus dedos fazem carícias suaves em sua pele, da bunda aos flancos,
dos flancos à espinha, e então da espinha à bunda novamente.

Seu olhar repousa sobre meu peito por um breve momento. Ele pensa
um pouco antes de responder:

— Nunca pensei em fazer isso. — Volta a me fitar. Sua mão aperta a


base do membro. — Mas quero que você faça tudo o que quiser comigo hoje.
— E arrasta-a para cima. — Somente hoje — sussurra.

Grunho baixinho, apenas para que ele saiba o efeito que essa voz e
essas palavras me causam.

Impulsiono meu quadril para cima, fodendo sua mão. Com cuidado,
envolvendo sua cintura com as duas mãos, me viro até estar sobre seu corpo.
Seus dedos soltam meu pau. Jude me abraça, abre as pernas e me envolve
com elas.

Beijo sua boca, então sua bochecha. Suavemente, desço até as


marcas vermelhas deixadas pelos meus dedos em seu pescoço. Com a ponta
da língua, traço-as de uma extremidade à outra, sentindo o calor moderado e
textura fina da região. Jude geme, arqueando-se sob mim. Arrasto uma das
mãos da parte de trás de sua cintura até uma das pernas que envolve a
minha.

Beijo a depressão entre suas duas clavículas bem no limite entre o


pescoço e o peito.

— Vou te enforcar — murmuro contra sua pele. Olho para ele de baixo
para cima. — Mas não hoje. — Subo a mão de sua perna até o pescoço,
tateando as marcas. — Uma vez já é o suficiente.

Ele não concorda nem discorda. Parece preso entre o desejo de teimar
comigo e me obrigar a enforcá-lo; ou se preservar e aceitar minha decisão.
Na verdade, enquanto seus lábios se abrem, não tenho certeza de qual dos
dois impulsos vencerá no final. E talvez ele também não. Mantém a boca
aberta por um tempo, os lábios rosados e úmidos estranhamente mudos.

Massageio seu pomo de adão com o polegar vagarosamente. Jude


estica o pescoço, me estimulando a continuar. Massageio os músculos tensos
em seu pescoço e o local sensível logo abaixo da mandíbula. Ele fecha os
olhos, respira calmamente. Os batimentos de seu coração estão
desacelerados sob o peito. Mordo o mamilo esquerdo, mantendo-o alerta, e
então beijo a parte logo abaixo, onde seu coração pulsa com mais força.

Peço a Deus que eu nunca tenha que largar este homem.

— Você nunca me disse o nome da pessoa com quem costumava


fazer isso — ele comenta quando abre os olhos.

Novamente, como se estivesse em um transe, meu cérebro demora


até processar o que ele quer de fato dizer.

A última pessoa que comi? Não. A última pessoa que enforquei.

Interrompo a massagem na garganta e volto a aproximar o rosto do


seu. Fito seus olhos acusadores sob a penumbra noturna.

— Ela não é importante — minto com um sorriso sincero.

Tento não me deixar afetar demais por isso, por precisar mentir para
ele agora. Jude definitivamente mataria Olivia se descobrisse que já fodi com
ela.

Por algum tempo, consigo não deixar a mentira transparecer. Mas,


depois disso, o silêncio de Jude torna-se longo demais.

— Não acredita em mim? — insisto.

— Não — responde imediatamente.

Meu sorriso morre.

No rosto de Jude, não há qualquer traço de fúria, mágoa ou


ressentimento. Isso me deixa inquieto. No que está pensando? O que está
sentindo?

— Mas tá tudo bem. — Jude acaricia a parte de trás da minha orelha,


seus dedos roçam os fios curtos de minha nuca. — Sei que vai me contar no
momento certo.

Ele me beija, longa e intensamente, do jeito que o faz quando todas as


suas armaduras estão despidas, quando os muros que construiu para se
proteger do mundo estão ruídos.

— Ainda quero que diga que sou seu único — diz quando nos
separamos.
Desta vez, há em sua voz certa severidade, que se abranda diante da
intimidade. Ele está me manipulando.

Jude segura meu rosto.

— Quero que diga que sou o único que vai foder daqui pra frente.

Aproximo os lábios dos seus na intenção de beijá-lo, mas me afasto no


último segundo. Ele inclina a cabeça para cima e suspira, subitamente
confuso pelo vazio, por não ter meu gosto em sua boca. Seu cenho se franze,
mas um sorriso divertido se arrasta na minha boca.

Suas pernas erguidas facilitam meu acesso ao seu corpo. Posiciono o


pau duro em sua entrada ainda úmida sem sequer precisar usar as mãos,
então o enfio. Seus olhos se arregalam, afunda os ombros no colchão. Ele
aperta os lábios; um suspiro abafado e fanho deixa sua garganta.

— Então me diz que sou o único pra quem você vai mostrar essa
carinha. Diga que sou o único que tem permissão pra entrar em você. O
único. — Volto a fodê-lo, num ritmo lento e profundo, tomando meu tempo
para mapear cada centímetro do interior de seu corpo, incluindo o ponto
macio e arredondado que o faz se arrepiar e apertar meus ombros. — Toda
vez que entro em você, perco um pouco mais do controle. — Aproximo o
rosto do vão de seu pescoço. — Enlouqueço apenas de te imaginar com
outra pessoa — sussurro contra seu ouvido.

Ele geme a cada estocada.

— Sou um homem casado, Kim. Prometer isso é um pouco


complicado.

Esfrega os fios da minha nuca e balbucia um “Hmm” anasalado


quando minhas bolas tocam sua bunda com um pouco mais de intensidade.

— Diga — insisto, firme, teimoso.

Suspira.

— Você é o único que pode me foder. O único que pode ver meu rosto
enquanto me come. O único... — Retiro totalmente o pau e penetro-o, tudo de
uma vez. — Ah! — Ele não consegue conter o grito. — Filho da puta.

Ergo o rosto o suficiente para fitá-lo.


— Você estava dizendo...?

Jude bufa, mas não consegue manter a pose emburrada por muito
tempo. Pisca longamente e completa:

— Você é o único que permito derrubar minhas barreiras desse jeito.

Mordo o lábio inferior, hipnotizado pela vulnerabilidade em seu olhar


outrora gélido, outrora cruel.

— Você é o único com quem quero fazer isso — digo em retorno. — O


único que quero ter em meus braços.

E, para minha surpresa, a vulnerabilidade nele se acentua, embora


seu rosto se torne sério. Algo muda em Jude neste momento, e não sei ao
certo definir o que é.

— Não importa o que você ouça sobre mim. Não importa o que
descubra sobre mim, sobre o meu passado. Se lembre do que acabou de
dizer. — Seus dedos passeiam pelos meus fios e seus olhos se distanciam.
Vincos profundos se desenham em minha testa. A expressão dele, no
entanto, assim como a voz, continua serena: — Se lembre de que sou seu, e
de que você é meu.

Jude me puxa para mais um beijo, suave e doce, embora eu saiba que
por trás da suavidade há espinhos, e por trás da doçura há um amargor
nauseante.

— Por que está falando assim? — pergunto assim que nossos lábios
se descolam. Um pouco preocupado, um pouco desconfiado, meu peito
acelera.

— Sou um homem ruim, Kim. Um dos piores que vai encontrar na vida.
Talvez pior do que aqueles que te tornaram um cão nos ringues. Sou ingrato,
egoísta e desprezível segundo minha própria tia. — Me abraça, afundando o
rosto em meu ombro. — Talvez você seja bom demais pra mim.

Engulo em seco. Encaro os lençóis sob nossos corpos por um tempo,


tentando entender que merda isso significa.

Envolvo suas costas com os dois braços outra vez e me sento na


cama. Puxo-o sobre mim. Suas mãos ao redor do meu pescoço e suas
pernas ao redor de minha cintura o mantém estável. Jude senta em meu colo,
meu corpo dentro do seu, unido a mim da forma mais íntima possível nesta
terra.

Afasto seu rosto de meu ombro. Nos encaramos.

Penso muito no que dizer a seguir. “Eu te amo” soa adequado. “Não
consegue ver que eu te amo, seu idiota filho da puta?” soa ainda mais
adequado. Mas talvez esteja cedo demais. Temos todo o tempo do mundo
afinal de contas.

Por isso, falo a terceira coisa mais adequada:

— Nada disso tem sentido pra mim. Não importa quem você é, quem
foi, quem será. Nada importa... desde que esteja comigo, desde que seja
meu.

Jude entreabre os lábios, mas os fecha em seguida e solta um suspiro.

— Entendeu? — pergunto. Ele me beija da forma que o faz quando


está completamente desarmado, quando quer provar que é meu. — Diga que
entendeu — insisto, inflexível.

— Sim, entendi.
SEU
você manda em tudo, amor
eu só quero ser seu
segredos que guardei no coração
são mais difíceis de esconder do que pensei
talvez eu só queira ser seu
eu quero ser seu
i wanna be yours — arctic monkeys

NQUANTO ACARICIO O PEITO DE Kim, observo, no chão, a sombra das


E
cortinas que balançam embaladas pela brisa da madrugada.

Essa foi uma das piores noites da minha vida, e uma das melhores
simultaneamente. De tudo o que aconteceu, há apenas uma coisa da qual
quero me lembrar quando acordar pela manhã, e ela é quente sob meus
dedos.

— Nunca dormi nos braços de outra pessoa antes — murmuro.

Kim esfrega meu ombro com uma delicadeza estranha ao homem que
achei conhecer. Uma delicadeza que, por lógica, não poderia existir; que
poderia ter sido suprimida por todos os calos e cicatrizes em seu corpo. Ele
não consegue esconder de mim esses calos e cicatrizes quando estamos
juntos, quando está despido — física e moralmente. Tremo quando imagino o
inferno pelo qual Kim passou naquele ringue e penso na forma como isso
poderia tê-lo destruído, dizimado qualquer traço de decência e humanidade
em seu interior.

E tremo mais ainda quando percebo que isso não aconteceu.

Sei que é impossível enfrentar Brianna e sair vivo, e já aceitei isso,


mas... ver a resiliência dele me traz dúvidas, me faz questionar se deveria ter
ido tão fundo nesse poço de merda.
É egoísta querer ele por perto quando sei que vou deixá-lo em breve?
É egoísta não contar a ele o motivo pelo qual o escolhi naquele ringue? É
errado estar aqui, em seus braços, agora?

Não há razões para questionar. Eu sei que é. Sei que ele não merece
isso.

Mas eu o avisei.

— Gosta? — Kim pergunta enquanto beija o topo da minha cabeça.

— Aham. — Fecho os olhos e me aconchego em seu corpo. — Gosto


de ouvir os batimentos do seu coração.

— Tá batendo por você.

— Você sabe como fazer um cara se sentir especial.

— É minha especialidade.

Kim me abraça com força. Durmo sobre seu peito desejando que a
manhã nunca chegue.
REAL
por favor, diga que sou seu amor
olhe por quanto tempo você me deixou esperando
me dei completamente a você
eu conhecia seu amor antes mesmo de te beijar
e até agora tudo o que você fez foi me deixar com saudade
[...]
porque estou doente de amor
e sequer tenho vergonha disso
estou ansioso pra passar um tempo nos seus lençóis
porque estou doente de amor
lovesick — BANKS

OU UM HOMEM RUIM, KIM. As palavras dele ecoam em minha mente, como


S
a sirene de uma ambulância em alta velocidade. Às vezes, mais intensas. Às
vezes, mais fracas. Porém constantes.

Meus olhos estão abertos, distraídos pelo quarto iluminado pela luz do
sol ainda fraca. São 6h, talvez 6h30 de uma manhã de segunda. Logo temos
que estar no prédio da Goldman, mas o tempo parece congelado. Já senti
isso antes, em raras ocasiões. E sempre antes de algo trágico. Por isso,
estou aterrorizado.

Seguro Jude forte em meus braços, como se algo pudesse levá-lo de


mim, como se uma criatura se esgueirasse pelos cantos do quarto esperando
o momento em que ele não estará mais protegido, em que poderá arrastá-lo
para longe.

Engulo em seco. Que porra de jeito mórbido de começar uma semana.


Suspiro.

Então, percebo outra coisa: é a primeira vez em que dormimos juntos


até o amanhecer. O pensamento faz algo quente despertar em meu peito.
Também é a primeira vez que deixo Noah sozinho sem qualquer explicação.
O calor desaparece.
Preciso conversar com meu irmão. Minha relação com Jude já abriu
uma depressão grande demais em nossa relação, e sei que só poderei
consertá-la com a verdade. Talvez eu tenha sido um babaca por evitar e
dançar ao redor do assunto — eu só não estava preparado.

Depois de alguns minutos, Jude começa a se mover sutilmente. Desde


que acordei, estive tomando cuidado para não me mover demais ou sequer
respirar ruidosamente. Seu sono leve será um problema nas próximas vezes
em que dormirmos juntos. Observo o topo de sua cabeça dourada. Ele estica
um braço sobre meu peito e então geme, desapontado.

— Hmm... Está acordado? — balbucia num tom sonolento, adorável.


Quase adorável demais para o homem frio em meus braços.

Ele curva a nuca para me encarar, aproximando o rosto do meu.

— Desde que o sol nasceu — respondo.

Seus lábios tocam os meus suavemente. A mão que repousou em meu


peito durante a noite toda agora acaricia minha bochecha. Ele beija a barba
rala em meu queixo e então se aninha outra vez em meu peito. Aperto-o mais
contra mim sem a menor intenção de soltá-lo.

— Por quê? — pergunta.

— Não sei. — Toco seu queixo e puxo-o para cima. Beijo-o outra vez.
Seus lábios causam pequenas descargas elétricas nos meus. Me curvo um
pouco até encostar nossas testas. — Ter você nos meus braços ainda não
parece real o suficiente.

Sob as cobertas grossas, ele mexe as pernas como se esfregasse algo


entre as coxas.

— Pra mim parece real demais — resmunga. — Ainda posso te sentir


dentro de mim — sussurra baixinho, apenas para mim. Sua respiração morna
e úmida, tão próxima, me deixa embriagado.

Jude me dá um último beijo antes de deitar a cabeça no espaço entre


meu pescoço e meu ombro.

Meu olhar continua fixo nele.

— Teve algum pesadelo?


Boceja.

— Não. Foi o melhor sono que tive em meses. E foi por sua causa. —
Batuca minha mandíbula com o indicador.

Permaneço apreciando a serenidade em sua face, a tranquilidade em


seu sorriso e o conforto em seus movimentos por algum tempo, não sei ao
certo quanto. Segundos. Alguns minutos até. Fico tão absorto nele que me
esqueço do mundo ao nosso redor.

É isso que você sente quando ama alguém?

Não, não amor. Felicidade. Isso é o que você sente quando está feliz.

E felicidade de verdade é muito mais difícil de ser encontrada do que


amor. Não me lembro da última vez em que fui feliz.

Talvez nunca tenha sido.

Sou retirado dos meus devaneios por seus lábios carinhosos em meu
pescoço. Jude agora está sobre mim. Esfrego suas costas com as mãos e
tomo sua boca para mim, penetrando-a com a língua.

Ele é receptivo. Mais do que receptivo, é solícito. Gemidos baixos


escapam de sua garganta e ecoam na minha quando nossas línguas se
tocam.

Um sinal vermelho se acende sob os lençóis.

— Vem — afasto nossas bocas —, preciso te levar pro trabalho daqui


a pouco.

Torço para que ele não perceba minha ereção desperta. Tento jogá-lo
para o lado e me sentar, mas Jude não permite. Em vez disso, me força
contra o colchão.

— Não ouse levantar dessa cama, chofer. — Ele se estica até a mesa
de cabeceira e toca duas vezes na tela do celular para ver as horas. — Minha
primeira reunião é só daqui a 2h. — Retorna a atenção a mim. — E você
pode tirar o dia de folga hoje. É o mínimo que te devo depois de ter sido tão...

— Tão...?

— Depois de ter sido um chefe... complicado nos últimos dias.


— Então admite que foi um cuzão comigo desde o hospital?

— Não falei isso.

— Não preciso de uma folga. Preciso estar perto de você.

— Eu insisto, Kim — diz num tom mais severo. — É pela sua saúde.
Não discuta comigo.

Uma folga? A ideia soa absurda para mim. Mas não vou insistir. Depois
da conversa com Noah, vou apenas stalkear Jude de longe, sem que
perceba.

Goldman move a cintura contra a minha de maneira sugestiva. Ele


percebeu a minha ereção. Merda.

— O que está fazendo agora?

— Agora... vou te mostrar o quão real isso é.

Seu sorriso cínico é contagiante. Ele afasta as cobertas de nossos


corpos e se arrasta para baixo, criando uma trilha de beijos molhados e
lentos por onde passa. Os olhos azuis safados se fixam nos meus por todo o
caminho até o meu pau.

Não há muito que eu possa fazer para pará-lo. E, mesmo se houvesse,


eu não pararia.

Sua mão me envolve como se fosse especialmente desenhada para


isso. Ele beija meu púbis, a base do pau, e as bolas.

— Hoje, você não precisa se preocupar com nada. — Sua língua


percorre toda a extensão da uretra, da base à cabeça, antes de lamber o
orifício no topo. — Apenas se preocupe em gozar pra mim. — E se cala,
deixando meu pau preencher sua garganta.
INTERLÚDIO
AÇÃO CRESCENTE

EPOIS DE SAIR DA CASA de Jude, dirijo direto para casa. São


D
pouco mais de 07h da manhã. Com alguma sorte, ainda
conseguirei encontrar Noah em casa antes que ele saia pro
trabalho. Aperto volante em minhas mãos. Há tanto que
precisamos conversar — e coisas tão complexas. Talvez seja
melhor ligar para Jude e pedir que ele também libere meu irmão
do serviço hoje.

“Eu insisto, Kim. É pela sua saúde.” Como se ele


acreditasse mesmo que vou deixar que saia da minha vista por
um dia inteiro.
Estaciono a SUV na frente da minha casa.

Como sequer devo começar essa conversa? “Você estava


certo esse tempo todo e na verdade eu estive comendo o seu
chefe” não soa exatamente adequado. “Sabe da boa? Você não
é o único viadinho da família” soa ainda pior.

Preciso pensar em algo bom e rápido. Talvez o melhor


seja apenas abrir a boca e deixar as palavras saírem, sem
pensar demais. Eu deveria fazer isso quanto a meus sentimentos
por Jude também.

Merda, vou lidar com um problema de cada vez.

Desligo a engrenagem, apanho minhas chaves e desço


do carro. Abro a porta da frente, esperando encontrar meu irmão
na cozinha tomando seu café da manhã.

— Noah? — chamo quando coloco minha cabeça para


dentro da casa.

Noah não está na cozinha, na sala ou no corredor. A porta


de seu quarto está fechada. Perdeu o horário? Algo começa a
arranhar na parte de trás do meu cérebro, como as garras longas
e afiadas de um monstro invisível. Noah nunca se atrasa para o
trabalho.

Mas a casa está silenciosa e escura. As janelas estão


fechadas. Não parece que ele as abriu esta manhã.

— Noah? — chamo outra vez, mais alto e imponente.


Minha voz ecoa pelas paredes, sem resposta.

As garras se afincam mais em meu cérebro.

Fecho a porta com uma cautela inexplicável, tentando não


fazer barulho, e caminho em direção ao quarto do meu irmão. No
caminho, passo pela cozinha e vejo um prato de comida sujo na
pia. Macarrão à bolonhesa deixado pela metade. O garfo ainda
está enrolado no espaguete; a louça está jogada de qualquer
jeito no balcão, como se alguém tivesse largado-a ali às pressas.

Noah nunca dormiria com um prato sujo na pia.

Meu coração acelera.

No fundo, bem no fundo do meu peito, já entendi o que


aconteceu. Mas tento me convencer de que não. Tento me
convencer de que não tenho ideia do que houve nesta casa
durante a noite em que estive fora sem aviso.

Alcanço a porta do quarto mas hesito a girar a maçaneta.

Cerro os dentes. Não, eu não sei. Não posso saber. Isto


não pode ter acontecido. Por favor, Deus. Por favor...

— Noah? — digo uma última vez, baixinho. Meu queixo


treme.

Abro a porta.

As garras penetram fundo em minha mente, e o


desespero começa a tomar conta de mim rapidamente.

Não há ninguém no quarto. A cama está arrumada; as


cortinas, cerradas.

Merda.

— Noah, onde você tá? — Vasculho meu quarto e os


poucos outros cômodos da casa, mas não apenas não encontro
sinais do meu irmão, como não encontro nada que indique que
dormiu aqui na noite passada.
Quando retorno à sala, praticamente correndo, respiro
com dificuldade. Meu peito começa a pesar. Tiro meu celular do
bolso e abro a lista de contatos. Antes que possa discar o
número de Noah, no entanto, ele me liga.

Mas que porra?

Atendo no primeiro toque.

— Quer me explicar onde esteve na noite passada? — me


exaspero. Aguardo alguns segundos por uma resposta. Do outro
lado, apenas silêncio. — Noah?

— Tente de novo.
PRONTO PRA MORRER
esse é o fim
inspire fundo e conte até dez
skyfall — adele

— EN T Ã O , KIM, SABE QUEM ESTÁ falando? — a maldita voz ressoa


novamente.

Fecho os olhos. Fico paralisado por alguns segundos, como se uma


lâmina tivesse cortado minha espinha. Isto não pode estar acontecendo.

— O que você fez com meu irmão? — pergunto ainda de olhos


cerrados, mais tenso do que jamais estive na vida.

Quando o filho da puta fala mais uma vez, meu bom senso derrete.

— Por que acha que fiz alguma coisa? Talvez tenha achado o número
por engano — do outro lado da linha, a voz é jocosa, irônica.

Aperto meus caninos uns contra os outros. Soco a parede mais


próxima, não sentindo um arranhão sequer.

— Eu juro por Deus: se você encostar num fio de cabelo dele — meio
que grito, meio que sussurro —, será a última coisa que fará.

— Latindo ameaças como sempre. Você é mesmo um animal — ri


como uma hiena prestes a dilacerar uma presa.

Respiro fundo uma, duas, três vezes. Apoio-me na parede que acabei
de socar, encostando minha testa no meu antebraço, e sinto o mundo girar.
Suor frio começa a escorrer do meu rosto.

— Onde tá meu irmão? — insisto, rouco.

Ele fica em completo silêncio por um tempo. Minhas entranhas se


enrolam e o peso em meu peito se alastra por todo o meu corpo. Sinto como
se meus ossos fossem feitos de chumbo.

— Tragam o garoto — ordena a alguém do outro lado. A frase me faz


engasgar com minha própria saliva. Após mais alguns segundos, cicia, mas
não para mim: — Noah, diz pro seu irmãozinho onde você tá.

Murmúrios abafados preenchem meus ouvidos. Cerro os punhos.

— Noah? — Me desespero. É ele. Tenho certeza de que é. — Noah,


você tá bem? Noah, onde você tá? Noah... — Mas tudo o que continuo
ouvindo são os murmúrios abafados, palavras incompreensíveis.

Puxo meus cabelos. Lágrimas acumulam-se nos meus olhos.

— Não consegue entender, né? Deve ser a mordaça.

Noah grita — sua voz ecoa asfixiada, aguda e alta, como se estivesse
em dor.

— Seu filho da puta — grito de volta contra o aparelho. — Seu filho da


puta desgraçado, eu vou rasgar a sua garganta com meus dentes e depois
arrancar suas tripas pra fora com minhas próprias mãos. Eu juro por Deus
que vou.

Minha mente está tão fodida que não presto atenção nas palavras.
Estou chorando e hiperventilando ao mesmo tempo, preso no grito abafado e
doloroso do meu irmão.

A voz dele se distancia, e a risada do homem asqueroso que destruiu


minha vida, e continua a destruir, fica em primeiro plano:

— Se ainda quer ver seu irmão com vida, sugiro que encerre as
ameaças por aqui.

Mordo minha língua e me forço a ficar calado até conseguir pensar


claramente.

— Por que tá fazendo isso? — questiono baixinho.

Ouço um estalar de língua do outro lado da linha. Me preparo para


ouvir uma mentira qualquer.

— Porque você já encheu meu saco demais. Tá na hora de aprender


uma coisa ou outra sobre obediência.
— Obediência? Vai se foder. — Reviro os olhos. Penso em tudo o que
ocorreu nas últimas semanas, em tudo o que pôde resultar no sequestro do
meu irmão, e chego a uma única conclusão. — Você quer foder Jude, não
quer? — Ouço o silêncio do outro lado. — Mas ele não quer você. — E o
silêncio se prolonga. — Ele te detesta, tem nojo de estar na sua presença.

— Tá deixando alguns detalhes passarem batidos — diz com uma


descontração forçada. — Eu já fodi seu precioso dono.

— Então foder ele não é tudo o que você quer. Você quer mais... —
insinuo. — Quer ele só pra você. — E então a verdade me atinge, tão intensa
e feroz quanto uma bala no meio da testa. — Você é apaixonado por Jude.

— Cale a porra da boca — ele vocifera.

Antes de responder impulsivamente, pondero por um momento. Há


uma chance de conseguir libertar meu irmão se eu apelar para o ego inflado
e em carne viva deste desgraçado:

— Você é apaixonado por Jude e não consegue lidar com a situação


em que está agora — paro para inspirar fundo —: o homem que você ama...
prefere engasgar nas minhas bolas do que olhar na sua cara. Você é só um
puto nojento e desprezível. Sem amor, sem ninguém que sinta sua falta se
sua garganta for cortada. Acho que eu também ficaria amargurado se fosse
você. Que tal usar seus culhões uma vez na vida e resolver isso mano a
mano, como homens? Só eu e você: sem armas, sem jogo sujo. Vamos
acabar com essa merda de uma vez por todas. O vencedor leva o cadáver do
outro, e Jude. É homem o suficiente pra isso? Ou é mesmo esse garotinho
cheio de mágoa escondido atrás de um revólver e um terno?

Aguardo uma resposta imediata, mas não a tenho. Ao invés disso, a


ligação se silencia mais uma vez.

— Você não é nada sem os putos ao seu redor, só admita isso —


insisto na provocação. — E ainda não entende por que Jude não dá a mínima
pra você?

O filho da puta balbucia num tom ríspido e engessado, quase inumano:

— Nós vamos acabar com isso, cão, mas não do jeito que você quer.
Seu irmão tem 12h de vida. Me encontre às 21h no endereço que vou te
mandar por mensagem, sozinho. Se estiver acompanhado, ou se contar
sobre isso pra alguém, seu irmão morre. Não faço promessas banais,
especialmente pra merdinhas como você. Esteja pronto pra morrer.

E a ligação é encerrada abruptamente.

— Dom? Dom! — grito do fundo dos pulmões.

Tento retornar a chamada, mas a voz eletrônica me diz que o número


está desligado ou fora de alcance.

— Que merda!

Atiro o aparelho para o lado e chuto a parede. Reviro o sofá, a mesa


de centro. Chego perto de destruir a casa inteira.

Meu pior pesadelo está se tornando realidade.

“Eu rasgaria a garganta de Jude, dos Snakes, de qualquer um que


tentasse colocar um dedo em você.”

Não posso permitir que essa merda aconteça. Não posso permitir que
o desgraçado do Dom continue brincando e aterrorizando nossas vidas.
Enquanto ele estiver vivo, Noah e eu estaremos em perigo.

O que devo fazer? Que opções tenho?

Ele quer que eu me entregue, mas sei que matará Noah


imediatamente depois que eu estiver em suas garras. Não há um cenário em
que consigamos sair ambos vivos disso se eu agir sozinho.

E há somente uma pessoa que pode me ajudar a pensar neste


momento.

— Jude...
CELULAR TOCA SOBRE A minha mesa. Desvio os olhos da tela do monitor
O
onde planilhas financeiras estão abertas em sua direção. Engulo em seco e
deixo a chamada tocar mais algumas vezes antes de apanhar o aparelho com
certa hesitação.

Hoje é um dia crítico, e não posso me deixar ser distraído por ele.

— Kim? — atendo.

Do outro lado da linha, ouço inspirações profundas de alguém que está


sem fôlego depois de correr.

— Onde você tá? Tá no escritório?

Fecho os olhos e aperto minhas pálpebras com os dedos. Me apoio


contra o recosto da cadeira.

— Achei que tivesse te falado pra não—

— Dom sequestrou Noah — me interrompe bruscamente. Pego de


surpresa, giro a cadeira em direção às janelas, ficando de costas para a porta
da sala. Escuto-o com mais atenção. — O filho da puta pegou meu irmão
ontem à noite e quer que eu me entregue às 21h, senão vai matá-lo. — Sua
voz é exasperada e ríspida.

— De que merda você tá falando?

— É essa porra mesmo que você ouviu. Ele não vai descansar até me
ver morto, Jude. Só vamos ter paz quando aquele filho da puta parar de
respirar.

Umedeço os lábios. Pisco rapidamente, tentando raciocinar sobre o


que acabou de me dizer.

Na ligação, ouço passos apressados e pesados ecoarem.

— Kim, o que você tá pensando em fazer?

— Não sei, precisamos conversar. Eu tô entrando, me espera aí.

Arregalo os olhos quando o barulho familiar da chegada do elevador


ecoa do lado da linha de Kim.

— Não, não sob—

Ele encerra a chamada antes que eu possa continuar.

— Porra. — Aperto o celular com força.

Isto não pode estar acontecendo.

Talvez se eu conseguir sair do prédio e persuadi-lo a me encontrar fora


do prédio da Goldman, posso evitar que—

— Está tudo bem? — A maldita voz aguda e afiada ecoa atrás de mim.

Mordo o lábio inferior enquanto viro a cadeira novamente. Encaro


minha tia parada na porta entreaberta da minha sala.

Vou demitir a puta da secretária por isso.

— Sim — respondo secamente e descanso o celular na mesa.

Meu sangue corre rápido pelas minhas têmporas, no entanto. A ciência


de que Kim está subindo neste exato momento para esse andar me
aterroriza.
— A reunião vai começar agora — Brianna diz com os olhos
semicerrados, claramente percebendo alguma parte do meu desconforto. Ela
abre as portas de vez, revelando que não está sozinha. — Vim aqui junto aos
outros membros do Conselho para te acompanhar.

Observo as cinco pessoas mais poderosas desta empresa — além de


mim — reunidas bem ali, no regaço da minha sala, e me dou conta de que há
algo bastante errado acontecendo aqui.

— Me acompanhar? — repito. — Por quê?

Brianna não demonstra interesse em me responder diretamente. Ao


invés disso, vira de costas e começa a caminhar para longe.

— A sua presença é... indispensável.


JUDE GOLDMAN
você devia ter medo de mim
control — halsey

RECISO ENCONTRAR JUDE.


P
Entro no prédio da Goldman. Corro até um dos elevadores. Me
espremo contra a parede de trás, em um dos cantos da caixa de metal.

O elevador leva mais tempo do que o habitual para chegar ao andar do


escritório de Jude pela quantidade anormal de pessoas que resolveram subir
neste exato momento.

Após uma dúzia de paradas, ele finalmente fica vazio. Só resta a


minha.

Mais alguns segundos de angústia passam até a caixa de metal parar


pela última vez. As portas se abrem. Meu rosto é banhado pela iluminação
natural que se derrama no andar pelas janelas. Minha visão fica turva por um
momento. A luz do sol é interrompida por várias silhuetas aglomeradas logo
além das portas do elevador, casuais e distraídas, como se esperassem por
ele. Estão todas de frente para mim, encarando-me.

No breve momento em que as portas do elevador se afastam


completamente, o tempo parece parar, mas não consigo entender o porquê.
Analiso as figuras em minha frente.

Ao todo, são seis; quatro executivos de ternos escuros e rostos


severos, enfileirados com as mãos nos bolsos e olhares mortos, um passo
atrás da mulher e homem que os lideram.

Não fico surpreso ao notar que o homem é Jude: este é o andar de


seu escritório, afinal de contas. Na verdade, fico aliviado, e ansioso para
informá-lo sobre toda a situação com Dom e o sequestro de Noah. Respiro
fundo. Faço menção de dar um passo à frente, mas paro. Jude não moveu
um dedo sequer ao me ver; não sorriu, piscou ou demonstrou qualquer tipo
de reação. Se, para mim, o tempo parece ter ficado mais lento, para ele
parece que parou completamente.

Então a primeira observação desconfiada, incômoda, cruza a minha


mente: ele não percebeu que meu irmão não veio trabalhar hoje?

Então a segunda: quem é a mulher ao seu lado?

Ela limpa a garganta, fitando-me como uma fera pronta para me


dilacerar.

Enquanto absorvo cada detalhe do rosto dela — seus fios, suas


feições, seu corpo —, minha mente embranquece, meus pensamentos
pulverizam-se em rascunhos e rabiscos do que deveriam ser ideias
concretas.

O cabelo dourado e reluzente — de um tom idêntico ao de Jude —


preso de forma justa atrás da cabeça me causa calafrios. As linhas bem
desenhadas de seu rosto estranhamente jovem fazem minhas entranhas se
revirarem. As íris azuis-escuras, tão hostis, ferozes e familiares, me fazem
enrijecer. Seus lábios finos e rosados estão contraídos; o peito sob o vestido
preto apertado afunda, desapontado, enojado.

Ao seu lado, Jude está engolfado na luz natural do andar. Conforme os


segundos se arrastam, sua imagem perde nitidez aos meus olhos; seus
traços e suas cores, tudo o que faz dele Jude, vai embora. Torna-se apenas
mais uma sombra, uma silhueta executiva sem muita definição, algo distante
e intocável — algo que eu nunca deveria ter tocado.

É apenas quando Jude demonstra a mais sutil das expressões ao meu


ver — um triste erguer do lado esquerdo do lábio — que percebo o que está
acontecendo.

Brianna Goldman está em minha frente.

E, enquanto rumino sobre esse pensamento e vários outros


questionamentos se amontoam no meu coração inquieto, me dou conta de
outra coisa:

O rosto de Brianna não é familiar apenas por sua similaridade com o


de Jude. Não. Eu já a vi pessoalmente em outro lugar.
Estreito os olhos em sua direção. Cerro os punhos, sentindo o suor frio
que se acumula em minhas palmas.

De onde eu a conheço?

Minha cabeça dói.

Onde já a vi antes?

Aperto os dentes.

De onde conheço essa filha da puta?


A única pessoa que não consegue enxergar o que está
bem em sua frente é você.
— Sabe o que senti quando vi o corpo esfacelado do meu
pai naquela estrada às 2h da manhã? Sabe? Alívio. Uma
descarga descontrolada e sufocante de alívio. Meus olhos tavam
fixos naquele monte de carne e ossos, e tudo no que pensava
era em como aquele inferno na vida do meu irmão e na minha
tinha finalmente acabado. Sem mais noites acordado me
questionando onde ele estava. Sem mais ligações pra hospitais
durante a madrugada perguntando se ele tinha dado entrada.
Sem mais prostitutas na nossa casa. Sem mais cacos de vidro
de garrafas de bebida no chão. Sem mais brigas. Sem mais
ofensas. Sem mais... ele. Eu orei, agradeci a Deus, pelo maldito
motorista que passou com o carro por cima do meu pai naquela
noite. Claro que esse alívio não durou muito. Na verdade, foi até
os Snakes arrombarem nossa porta alguns dias depois, horas
antes do enterro do meu pai. Ameaçarem estuprar meu irmão,
retirar seus órgãos um a um enquanto ainda estivesse vivo,
enquanto eu observava... caso eu me recusasse a me tornar um
de seus cães de briga no ringue. Sabe o que aconteceu com a
pessoa que matou meu pai? Eu também não. Os registros dos
suspeitos foram apagados. O único advogado público que
consegui achar disse que o caso foi arquivado como um acidente
sem testemunhas ou suspeitos. No final... No final, o único
culpado por sua morte, ao menos oficialmente, foi ele mesmo.
Sabe o que é engraçado, Jude? Vi um suspeito ser levado pra
delegacia na noite em que o corpo foi achado. Ele estava
encapuzado, mas consegui ver que era um homem. Um garoto.
Eles o levaram pra sala de questionamento.

— O que aconteceu com ele?

— Uma mulher entrou na delegacia logo depois.


Conversou com o delegado por um, talvez dois minutos, e então
deixou o lugar junto com o garoto. Eu não consigo me lembrar do
rosto da minha mãe, Jude. Ela fugiu há muito tempo, e não tenho
nenhuma foto dela. Talvez os golpes que recebi na cabeça
nesses últimos meses tenham piorado a situação. Ela
simplesmente desapareceu da minha mente... como um
fantasma, como se nunca tivesse existido. Mas o rosto daquela
mulher... Da mulher que entrou na delegacia e saiu depois de
dois minutos... Eu me lembro de cada detalhe do rosto dela.
Cada. Maldito. Detalhe. Aquele rosto assombra meus pesadelos
todas as noites.
seu rosto tornou-se frio de repente
eu queria te odiar, mas meu coração não deixava
dizem que o tempo cura tudo
mas essas palavras só estão me trazendo mais dor
[...]
todas as pétalas das flores
que floresciam no meu coração caíram
minhas lágrimas estão me levando
ao limite da escuridão
no caminho de volta pra casa durante o pôr do sol
eu finalmente vi a luz da lua
e a partir de agora,
eu vou me amar ao invés de amar você
vou dar um passo de cada vez, seguir em frente
para me acalentar e ser aquele que eu mereço
egoist — olivia hye
BRAVO VIAJANTE
todo o meu amor se foi
gone — ROSÉ

NOITE EM QUE MEU pai morreu volta à minha mente como uma bala no meio
A
da testa. Relembro de tudo, desde a ligação com o paramédico até o
momento em que vi a mulher loira entrar na delegacia e levar embora o
suspeito de conduzir o carro que matou meu pai. A última coisa de que me
lembro é do rapaz encapuzado, o rapaz que jurei encontrar algum dia e fazer
justiça pela negligência que ocorreu naquela noite.

Aquele rapaz. E aquela mulher.

Eu sei onde já a vi antes. Sei exatamente onde já estive com Brianna


Goldman. E o ringue tampouco foi o primeiro local em que encontrei Jude. Na
verdade, meu pai o encontrou antes de mim.

Meu coração se estraçalha, um amontoado de carne e sangue nos


dentes de uma matilha.

Meu corpo treme. Dou um passo cambaleante para trás, então outro e
outro e outro. Perco o equilíbrio e preciso me segurar nas paredes ao redor
para não cair. Meu queixo perde a sustentação; minha boca se abre, larga e
incrédula. Algumas lufadas de ar escapam, me esqueci de respirar. Meu
coração para, palpita, então para novamente; segue num ritmo
descontrolado, incapaz de seguir bombeando sangue para meu cérebro, que
também titubeia.

Me sinto zonzo e enojado e o pior de tudo: traído. Traído de uma forma


que nunca me senti antes. Jude, em quem confiei profundamente, enfiou a
mão dentro do meu peito e arrancou tudo o que encontrou pela frente; me
atingiu pelas costas com um tiro — uma bala fria e azul como os olhos dele,
como os olhos dela.
Ele nota minha perda de equilíbrio, meu descontrole, e aperta os
lábios, decepcionado. Comigo? Consigo mesmo? Eu não sei dizer. Não
agora.

Meus pés se afundam no chão. Meus olhos se arregalam. Encaro


fixamente seu semblante e minha testa se franze. Desejo puxá-lo para dentro
deste elevador e estrangulá-lo até que diga a verdade, até que confesse com
as próprias palavras o que fez, o que teve coragem de fazer a mim e à minha
família.

Ao mesmo tempo, fico completamente petrificado, absorto neste tipo


asfixiante de desespero. Estou me afogando.

Meu nome é Jude Goldman, ele me disse quando nos conhecemos,


depois que acordei confuso e angustiado em seu quarto, amarrado em sua
cama. Minha tia é Brianna Goldman.

Ele me enganou esse tempo todo, me forçou a dormir com a pessoa


que destruiu minha vida de maneiras inimagináveis — ele mesmo.

Meus joelhos enfraquecem. O suor frio acumulado nas minhas palmas


escorre. Não tenho certeza de quanto tempo mais conseguirei continuar de
pé.

Como ele pôde ter sido tão cruel?

Seus olhos desviam de mim como se ele lesse meus pensamentos e o


último, em particular, fosse demais para continuar suportando.

Brianna dá um passo para trás e os executivos ao seu redor fazem o


mesmo. Parecem desistir de entrar no elevador.

Jude, por outro lado, hesita por um segundo. Parece engolir em seco,
pensar duas vezes. Não consigo decifrar o que se passa em seu rosto. Mas,
sem muita demora, afasta-se como a tia e os outros homens e me dá as
costas, caminhando para trás, sozinho, em direção ao seu escritório. Ele
caminha com a confiança fria que achei ter demolido, com os movimentos
retesados e afiados que achei ter reformulado, com a indiferença que achei
ter descontruído de sua armadura. Está tudo ali, tão familiar e hostil quanto
da primeira vez em que o vi, quando não éramos nada além de estranhos,
quando achei nunca tê-lo visto antes em toda minha vida.
Mas ele sabia a verdade. Ele sabia que não éramos estranhos. Ele
sabia muito bem que já tínhamos nos visto antes do ringue.

Quando acordei em sua cama, ele sabia.

Quando me entregou aquele contrato, ele sabia.

Quando contei a ele sobre a noite em que meu pai morreu, a noite em
que perdi tudo, ele sabia.

Ele sempre soube.

Jude Goldman matou meu pai.

Abro a boca para tentar respirar, gritar ou emitir qualquer tipo de som,
mas não consigo. Minha garganta se fecha, dolorida. Meus joelhos finalmente
cedem, assim como as lágrimas que sequer notei se acumularem em meus
olhos.

A porta do elevador se fecha. A última coisa que vejo é o corte do


terno azul de Jude entre os dois empresários que lhe deram passagem, indo
para longe, cada vez mais longe.

Ele não olha para trás.

do elevador se abrem por conta do ruído


S Ó P E R C E B O Q U A N D O A S P O R TA S
metálico que fazem. Apoio-me nas paredes e cambaleio para longe, para fora
do prédio. No caminho, não consigo distinguir nada nem ninguém em minha
frente. Tudo parece um amontoado de sombras e silhuetas sem cor, sem vida.

Caminho sem equilíbrio, tropeço, engatinho pela calçada suja


enquanto agarro a base do meu pescoço com força, trincando meus dentes e
sentindo a dor irradiar da mandíbula para o rosto inteiro. Concentro-me nessa
dor para me recompor, mas outra, muito pior e mais devastadora, toma seu
lugar. Uma dor um pouco mais baixa que aperta meu peito inteiro. Suspiro em
busca de ar. Esbarro em um homem qualquer em minha frente.

— Ei, toma cuidado! — ele grita, e sua voz soa distante, aguda.

Recebo a maior parte do golpe e me equilibro na parede mais próxima


para não cair no chão outra vez.
Memórias de todas as vezes em que transei com Jude me invadem
como uma colagem doentia. Minha pele coça. Ele sabia. Ele me escolheu no
ringue porque sabia que tinha matado meu pai.

Esbarro em outra pessoa.

— Qual o seu problema?

Ele me odeia tanto assim? Por que simplesmente não me matou


também?

E tropeço em outro filho da puta.

— Sai do caminho, cara.

Por que não escolheu outro homem qualquer?

— Mamãe...

Paro bruscamente ao ouvir a voz baixinha e assustada da criança em


minha frente. É loira, branca; seus olhos azuis, mais quentes e suaves do que
os de Jude. Um chapéu rosa protege seu rosto do sol que banha a rua, e
uma de suas mãos está firmemente agarrada na da mulher ao seu lado. Ergo
o olhar até o rosto da mulher, uma versão trinta anos mais velha do rosto de
sua filha. Um olhar de repulsa repousa sobre mim.

— Continue andando, Charlotte — ela rosna e puxa a filha,


caminhando para longe.

Lentamente, viro o corpo na direção delas e as acompanho com o


olhar. Vejo suas costas se afastarem cada vez mais, até desaparecerem em
meio às outras pessoas na calçada. A garotinha e sua voz assustada são o
choque que preciso para finalmente voltar a mim.

Ergo os olhos para cima e vejo o letreiro da Goldman Entertainment


sobre minha cabeça; as letras gigantes e douradas me cegam por um
momento. Curvo a nuca para baixo e olho para minhas mãos. Estão trêmulas,
pálidas e sujas. Meus lábios estão secos, apesar de eu sentir as trilhas
deixadas pelas lágrimas em minhas bochechas. Minha calça está rasgada
nos joelhos. Meu peito está vazio, apesar da dor lancinante.

Jude sabia que eu descobriria quem realmente é uma hora ou outra.


Então por que deixou as coisas chegarem neste ponto? Por que não cortou
tudo antes? Porque queria me machucar o máximo que conseguisse. É a
única explicação — a única em que consigo pensar neste momento ao
menos — e é nela em que vou acreditar.

O que devo fazer agora? O que sequer posso fazer?

Ainda devo voltar à Goldman e pedir sua ajuda para lidar com Dom?

Prefiro a morte. Além disso, não tenho autocontrole o suficiente para


olhá-lo de novo e não tentar matá-lo.

O que devo fazer?

Preciso salvar meu irmão.

O que devo fazer?

Me viro para longe da Goldman.

Caminho a esmo, a nuca curvada para baixo, observando os blocos


cinza da calçada sob meus pés.

Cada segundo que passo neste estado, confuso e sem rumo, é mais
um segundo que Noah permanece sob as garras daquele arrombado
desgraçado.

E se eu chegar às 21h e ainda não tiver qualquer tipo de plano para


salvá-lo?

O que devo fazer?

Meu coração acelera enquanto possibilidades e respostas se


acumulam em minha mente, e nenhuma delas é boa.

O que eu devo fazer, merda?

No fim, talvez me entregar seja a única saída que me resta. Se eu fizer


tudo conforme Dom quer, e exigir uma garantia de que meu irmão realmente
será libertado, há chance de que Noah consiga escapar com vida.

Mas mesmo se ele o fizer... estará sozinho. Terei falhado com as


incontáveis promessas de nunca deixá-lo, de protegê-lo.

Mesmo na morte, eu terei falhado.

Cesso meus passos abruptamente. Uma figura familiar se destaca das


outras em minha frente, interrompendo meu caminho. O chapéu fedora
projeta uma sombra em seu rosto; os óculos escuros escondem seus olhos; o
sobretudo de couro marrom, longo e imponente, contrasta com as roupas
escuras e discretas. As mãos estão encobertas por luvas pretas.

Ele retira o cigarro ardente dos lábios e expele a fumaça. Me fita. Um


sorriso petulante desenha-se em sua boca.

— O que você tá fazendo aqui? — pergunto desnorteado, meu cenho


francamente franzido.

Ele abre os braços e então curva a nuca para trás, deixando que a luz
do sol banhe seu rosto.

— Eu vim ajudar esta estrela brilhante a iluminar um caminho na sua


mente enevoada — volta a me fitar — meu bravo viajante.

Não reajo por vários segundos. Fico preso naquele limbo familiar de
quando se é confrontado com uma situação absurda.

— Mas de que merda você tá falando? — cuspo.

O sorriso no rosto dele se apaga lentamente. Quando percebe que


realmente não entendi sua merda de piada, retira os óculos escuros e os
guarda no bolso interno do sobretudo.

— Eu acho que você tem um problema, boxeador — apanha uma


submetralhadora 9mm da parte de trás da calça em plena luz do dia —, e
acho que eu — retira um carregador do bolso frontal esquerdo do sobretudo e
carrega a arma sem retirar os olhos dos meus — e meus irmãos — pelo
menos cinco carros estacionam ao nosso redor ao mesmo tempo e, deles,
dezenas de homens vestidos de maneira similar ao gangster em minha frente
descem e se aproximam, caminhando até alcançarem suas costas —
podemos te ajudar.

Um calafrio atravessa minha espinha diante da manada de mafiosos


me encarando — um calafrio de contemplação, não de medo. Seus rostos
fechados, olhares cruéis e escorpiões tatuados nos pescoços não me
transmitem mais a mesma repulsa de antes. Mesmo as íris verdes de
Wolfgang, que segurou uma faca afiada contra minha garganta na primeira
vez em que nos conhecemos, não parecem mais exatamente ameaçadoras.
Elas ainda são selvagens e perigosas, com certeza, mas familiares,
acolhedoras.
E quando seu irmão atravessa a multidão e se posiciona ao seu lado,
com uma metralhadora automática idêntica nas mãos, algo perigoso desperta
dentro de mim:

— Pare de fugir da sua escuridão, Kim Henney. Abrace-a. Se torne um


escorpião... e vamos ver se serpentes morrem quando mordem o próprio
rabo.
INTERLÚDIO
SE EU NÃO VOU TER AMOR, E N TÃ O VOU TER

VINGANÇA

BRO OS BOTÕES DO TERNO e me acomodo na cadeira mais


A
próxima da porta, na extremidade da longa mesa cinza de
reuniões no 98º andar — o último andar do prédio. Imediatamente
me sinto desconfortável. Meus instintos de sobrevivência se
ativaram assim que vi minha tia e seus capachos me esperando
fora do meu escritório, mas meu desconforto vem de outro lugar.
Aquilo não devia ter acontecido. Kim não devia ter vindo
para o prédio hoje, não devia ter descoberto a verdade sobre
mim — não ainda. Tentei tudo o que podia para impedir que ele
encontrasse Brianna, mas acho que o universo simplesmente
não está cooperando comigo hoje. Está tudo bem. Sabia que
esse momento chegaria cedo ou tarde. Sabia que suas
promessas de não se importar com o que descobrisse sobre mim
eram banais; sei que o amor que diz sentir por mim não é amor
de verdade.

Talvez eu seja incapaz de ser amado.

E se eu não vou ter amor, então vou ter vingança.

Observo a cadeira na outra extremidade da mesa, a


cadeira na qual costumo sentar nessas situações, a cadeira dela.

Brianna passeia pela mesa lentamente, como um felino


reconhecendo seu território. Mantém os olhos fixos em mim, dois
lasers azuis. Sinto seu julgamento queimar em minha pele, mas
a dor não me incomoda mais. Pigarreio e ergo o queixo. “Não
está feliz por finalmente encontrar o cão com quem estive
dividindo minha cama?”, devolvo com o olhar.

Ela interrompe seus passos e os outros membros do


Conselho às suas costas se interrompem também. Cinco pares
de olhos tensos, secos e hostis depositam-se sobre mim. Seguro
os cinco por um, dois, dez segundos. Embora meu rosto
continue inexpressivo, cerro os punhos, arranhando minhas
coxas sob a mesa. Há algo errado aqui — bastante errado, e eu
não consigo apontar o que é.

Porra.

Minha certeza se acentua quando Brianna abre um sorriso


fino nos lábios violentamente vermelhos. Quebrando o contato
visual frio, ela volta a caminhar em direção à sua cadeira no
outro lado da mesa. Cada passo de seus saltos altos ecoa entre
as paredes como o tambor de um revólver preparando uma nova
bala para ser disparada.

Tá.

Tá.

Tá.

Até que os passos de minha tia cessam e ela ocupa a


cadeira diretamente oposta a mim. Os outros membros do
Conselho acomodam-se nas cadeiras restantes, e
permanecemos em silêncio por um breve momento. Meu
desconforto se acentua.

— Por que estou sentindo que essa não é uma reunião


normal do Conselho? — atiro com uma risadinha baixa,
completamente desprovida de humor.

— Porque não é, Jude. — Brianna cruza as longas mãos


cadavéricas sobre a mesa e se inclina. — Como você sabe,
tenho que voltar pra França esta noite para finalizar as
negociações entre a Goldman e a União Europeia. Ficarei fora
por mais algumas semanas — diz casualmente, a voz firme e
tranquila de um carrasco prestes a cortar um pescoço. — Antes
disso, no entanto, há um assunto urgente demais para ser
adiado.

Estreito os olhos.

O membro do Conselho imediatamente à direita dela —


Jones — coloca sobre a mesa a pasta azul-escura que
carregava. Não há uma pífia reação em seu rosto — em nenhum
de seus rostos.
Minha tia puxa a pasta para si com uma delicadeza
viperina.

— E o que seria isso, Brianna? — pergunto, tentando


acalmar meu coração acelerado.

Há algo errado.

Ela abre a pasta e expõe os papéis guardados em seu


interior.

— Você. — Ergue os olhos das folhas timbradas até mim.


— Depois da conversa que você e eu tivemos ontem à noite, me
reuni com os outros membros do Conselho e discutimos uma
decisão em caráter emergencial.

As batidas do meu coração se interrompem por um


momento. Meu sangue ferve.

— Sou parte do Conselho também — rebato entredentes,


devagar e severo, apertando meus punhos. — Não podem se
reunir, muito menos tomar decisões, sem a minha participação.

Brianna me observa com cuidado. Entreabre os lábios,


mas os fecha logo em seguida. Pisca algumas vezes até
responder em uma repreensão leve, sutil — tão sutil que talvez
apenas eu seja capaz de entendê-la:

— A decisão não foi tomada ainda. Como eu disse,


apenas discutimos.

— E eu não deveria ter voz aqui?

— Não quando o assunto é você.

Aperto os lábios, mas os relaxo em seguida. Por dentro,


estou transtornado, em chamas, desejando poder explodir a
cabeça de alguém com minhas próprias mãos; por fora, preciso
manter a calma. Minha compostura e minhas palavras são as
únicas armas que tenho, não posso desperdiçá-las.

— Tudo bem, Brianna. Então me diga: que decisão é


essa?

Ela mantém o olhar gélido preso no meu enquanto fecha a


pasta azul-escura e a empurra sobre a mesa com um impulso
suave, mas forte o suficiente para fazê-la deslizar até o meu
colo.

Franzo a testa profundamente, sem conseguir esconder


minha confusão. Os cinco pares de olhos me fitam enquanto
toco o couro aveludado e abro a maldita coisa.

— Infelizmente... — Brianna suspira — você será afastado


de seu cargo no Conselho e das demais posições ocupadas na
Goldman Entertainment após esta reunião e por tempo
indeterminado.

Sua voz ecoa na parte de trás da minha cabeça como um


barulho metálico, irritante e distante. Meus olhos percorrem as
páginas do termo de rescisão; as palavras se embaralham mais
e mais ao longo dos parágrafos longos e escritos em letras
pequenas.

É exatamente o que ela disse: todas as minhas


responsabilidades com a empresa foram revogadas — e todas
as responsabilidades da empresa comigo também o foram.
Estou sendo demitido.

Demitido antes de conseguir expor a verdade da morte de


Jason e concluir meu plano.
Engulo em seco. Minha saliva desce trêmula pela
garganta. Meus dentes rangem, minha mandíbula trinca. Perco a
noção do meu entorno, minha visão embranquece.

Os papéis escorregam das minhas mãos de volta à pasta


enquanto ergo os olhos furiosos em direção a Brianna.

— O quê? — vocifero. Minha garganta arde.

Ela suspira longamente. Recosta-se na cadeira pela


primeira vez, deixando parte da postura tensa se desfazer.
Abaixa os ombros sob o blazer branco e grosso, o peito afunda
sob a blusa preta e fina.

— Os rumores recentes sobre indiscrições da sua vida


pessoal estão se espalhando na mídia e impactando a imagem
pública da empresa. — Estala a língua, mantendo o olhar gélido
no meu. — E não de uma maneira boa.

Contraio os lábios. Me inclino à frente.

— Que rumores, tia?

Ao redor, os outros quatro membros do Conselho se


entreolham de maneira sugestiva. Dois deles se aproximam para
cochichar algo. Quando se afastam, vejo sorrisinhos insinuativos
em seus lábios.

Brianna revira os olhos e volta a apoiar os pulsos na


mesa.

— Jude, por favor — rebate em tom mais duro. — Guarde


um pouco da dignidade que lhe resta — faz um gesto de desdém
com as mãos em minha direção — e aceite a decisão de cabeça
erguida. — Faz uma pausa contemplativa antes de continuar. —
Acredite ou não, também estamos fazendo isso pelo seu bem.
Minhas entranhas tremem. Uma sensação fria preenche
meu estômago, e meu esôfago queima. As palavras saem com
um gosto amargo:

— Estamos? Todo mundo aqui teve igual poder de


decisão neste assunto? — Percorro com o olhar todos os
indivíduos sentados à mesa, todos os rostos tranquilos, todos os
olhares indiferentes. Encaro-os bem. Apesar dos cochichos, ódio
velado e promessas de violência emanam de apenas um deles.
— Ou foi uma ideia puramente sua, tia?

Brianna estreita os olhos, impassível.

— Os membros do Conselho têm igual poder de decisão.


Cada um possui apenas um voto, caso não se lembre.

— Claro...

Pisco longamente, expiro fundo. Me atiro na cadeira e


esfrego os olhos fechados.

— Pare de resistir, Jude — ela praticamente sussurra do


outro lado, suave como uma nuvem branca no céu, ácida como a
nuvem cinza de um incêndio.

Imagino como seria cortar o pescoço da minha tia aqui e


agora, como seria rasgar a carcaça frágil que mantém um ser tão
desprezível em pé. Ela sorri de canto, como se soubesse
exatamente o que se passa em minha mente.

Canalizo essa fúria e replico:

— Acha que me afastar da empresa vai resolver tudo? —


Soco a mesa, fazendo a superfície toda tremer. Todos os
membros do Conselho se sobressaltam, exceto Brianna. —
Hein? — insisto diante de seu silêncio.
— Não — diz, apática. — Mas é um começo. — E expira
brevemente.

Finalmente afasta a atenção de mim, voltando-se aos


outros executivos na mesa. Certos olhares são trocados: olhares
de confirmação, de constatação, de decisão. Olhares que me
ignoram, apesar de tão claramente discutirem sobre mim.
Olhares que me aprisionam.

— Sempre fazendo o que é melhor pra mim, não é? —


balbucio quando percebo que é tarde demais, que não há como
vencer Brianna desta vez. Minha voz sai angustiada apesar de
meus esforços em controlá-la; sai sôfrega, dormente.

Sei que não posso desistir. Não ainda, pelo menos. Mas
merdas como essa me fazem duvidar da minha capacidade de
vencer essa mulher. Me sinto um garoto estúpido e
desobediente, do tipo que é punido em público sem que uma
mão seja erguida para defendê-lo, do tipo que chora sem ser
ouvido, que cresce acreditando que merece todo o mal que lhe é
feito.

Ela faz eu me sentir desse jeito. E talvez seja bom que eu


me sinta assim, que ela ainda consiga me torcer e me machucar.
E é bom que veja isso estampado no meu rosto, no meu corpo,
nas minhas tentativas falhas de me controlar diante dela, de me
mostrar mais forte do que realmente sou, mais cruel e insensível
do que realmente sou. É bom que presencie e acredite em tudo
isso.

Assim ela não vai saber o que a atingiu quando chegar a


hora.

— Todos a favor do afastamento temporário e


indeterminado de Jude Goldman de todos seus cargos, posições
e responsabilidades em relação a Goldman Entertainment, por
favor... — seu olhar repousa sobre o meu enquanto a voz
aveludada ecoa pela sala fria — levantem as mãos.

Cinco palmas são erguidas no ar, firmes, poderosas.

— Todos contra, por favor, levantem as mãos.

Sigo encarando-a fixamente, sem mover um músculo.


Sinto meu peito subir e descer pela respiração dificultosa; sinto
meu sangue pulsar em minhas têmporas. Sinto a raiva
canalizada dentro de mim.

— Está se abstendo? — Brianna insiste. Ergue uma


sobrancelha. Seguro seu olhar acusatório por um tempo até uma
risadinha áspera escapar de seus lábios. — Encararemos seu
silêncio como uma afirmativa. — Desvia o olhar de mim
rapidamente, desinteressada. Se volta aos outros na mesa com
um tom cansado: — A reunião está encerrada. Um novo CTO
será apontado ainda esta manhã.

Brianna se ergue da cadeira, arrasta-a para trás. Em pé, o


sol ilumina metade de seu corpo, dando-lhe um brilho quase
angelical. O brilho de um lobo em pele de cordeiro que acabou
de abater sua nova presa. Os quatro homens ao seu redor se
levantam, logo ajeitam os botões de seus ternos escuros. Viram
de costas e caminham em direção à porta da sala sem
despedidas, sem um mero olhar de consideração.
Provavelmente estão medindo seus paus e tentando descobrir
quem me substituirá.

Continuo sentado, imóvel, enquanto os passos ecoam


para longe da mesa. A porta é aberta. Os homens saem,
começam a sussurrar alto entre si logo em seguida. Estou
absorto demais em meus próprios pensamentos e anseios para
prestar atenção no que estão dizendo. Em um estado quase
catatônico, concentro-me na luz do sol que alcança a mesa.

— Sugiro que você tome esse tempo e fique em reclusão


— a voz dela, fria e viscosa, ecoa à minha direita.

Pelo canto dos olhos, posso vê-la segurar a porta


entreaberta e aproveitar o último momento que teremos sozinhos
por um tempo. Não tenho coragem o suficiente para voltar o
rosto inteiro em sua direção, mas, pelo pouco que vejo, consigo
distinguir claramente o sorriso monstruoso desenhado em seu
rosto.

— Volte pra sua esposa, pra sua filha — ela murmura —,


pra suas responsabilidades como marido e pai. Encare isso
positivamente, como um sinal de aviso. Assim que os rumores
desaparecerem, sua posição e seu cargo serão restaurados.

Inspiro fundo e pisco várias vezes. Tento o meu melhor


para continuar imóvel, para fingir que não a estou vendo nem
escutando. Há certos males que, quando ignorados, te deixam
em paz. Uma gripe. Um miserável pedindo esmola nas ruas. Um
cadáver. O Diabo.

Mas não Brianna. Nunca Brianna.

Ela fecha a porta e se aproxima de mim com passos


lentos. Apoia-se na mesa com uma das mãos; com a outra,
envolve meus ombros. Se inclina em direção ao meu ouvido.

— E nunca, nunca mais... — sussurra — tente passar por


cima de mim. — A mão esfrega meus ombros suavemente. —
Seus pais tentaram isso uma vez. — Encosta os lábios na minha
orelha. — Foi a última coisa que fizeram.
Volto-me em sua direção bruscamente, buscando seus
olhos. Os olhos de minha tia estão ali, os mesmos olhos cruéis e
dilacerantes de sempre. Os mesmos olhos que me prenderam
naquele lugar por dias, semanas; que me deixaram faminto e
machucado. Os olhos que teriam me matado caso eu não
tivesse feito exatamente o que ela queria. Os olhos da mulher
que perseguiu e aterrorizou Florence durante a gravidez de
Audrey. Olhos tão certos de sua impunidade ao ponto de
confessar um assassinato em voz alta. Os olhos que mataram
Jason.

É o mesmo olhar que conheci a vida inteira.

É a mesma porra do olhar que um dia vou apagar. Pode


não ser hoje, amanhã, ou no futuro próximo. Mas um dia
apagarei. Destruirei tudo o que esse olhar conquistou de forma
suja, trarei justiça a todas as pessoas que morreram em sua
trilha sangrenta — incluindo eu mesmo.

O sorriso monstruoso se alarga, alcança seus olhos.


Brianna me dá um tapa leve no ombro antes de finalmente se
afastar, satisfeita com a expressão de terror e fúria em meu
rosto. Dá as costas. Aproxima-se da porta. Os saltos
pontiagudos fazem seus passos ecoarem pela sala. Abre a
porta. Antes de sair, me fita sobre os ombros uma última vez.
Uma última promessa de violência, um último lembrete de sua
onipresença, de sua capacidade de foder com meus planos
mesmo sem a menor ideia do que estou tramando.

Como se eu precisasse disso, sua puta.

A porta se fecha às suas costas. Expiro fundo


longamente, aliviado e desesperado. O ar deixa meus pulmões
sofregamente. Apoio os braços na mesa, o olhar perdido na sala.
Não sou mais CTO da Goldman. O que devo fazer?

Devo voltar a Florente e a Audrey, fingir ser um marido e


um pai até ter minha posição na empresa reestabelecida?

Devo sequestrar Olivia e torturá-la até retirar qualquer


mísera informação que tenha sobre a relação entre minha tia, os
Snakes e a morte de Jason?

Devo apenas... não fazer nada?

Devo voltar a Kim? Pedir sua ajuda? Implorar por algum


tipo de perdão?

Não. Isso nunca esteve nos planos. Nunca precisei de sua


ajuda, não preciso me desculpar. Ele sabia dos riscos. Sabia de
todo e cada maldito risco quando aceitou ficar. Não tenho merda
nenhuma para falar com ele agora e, mesmo que eu tente, ele
não vai acreditar em nada.

Talvez seja bom que ele se afaste de mim por um tempo.


Assim, ao menos, posso me assegurar de que Brianna não terá
motivos para atacá-lo logo. Conseguirei ganhar algum tempo
depois do encontro no elevador.

Minha perna balança freneticamente. Um calafrio


atravessa minha espinha. Esfrego minha nuca. Aperto bem os
olhos.

“Dom sequestrou Noah.”

Ele estava vindo até mim para pedir ajuda.

Prometi que Dominic não encostaria mais nele depois que


saiu do ringue e se tornou meu, mas eu deveria ser mais
inteligente do que confiar num acordo com os Snakes. São
bandidos, afinal de contas — bandidos da pior categoria. Honra
não deve existir em seu vocabulário.

Grunho baixinho, e então cubro minha boca com um


punho fechado.

Mesmo assim, é estranho que Dom tenha decidido agir de


maneira tão desesperada tão subitamente. Sequestrar o irmão
de Kim para chantageá-lo é penoso, teatral; não é algo que um
líder dos Snakes faria. Novamente, posso estar sendo tolo, mas
minha intuição não me deixa desacreditar da ideia de que há
algo estranho nessa situação.

Me atiro contra o recosto da cadeira, tenso. Reteso a


mandíbula.

Kim veio até mim por ajuda, e eu estilhacei seu coração.


O que pretende fazer para resgatar o irmão? Será que tem
algum plano?

Ele já se entregou aos Snakes uma vez pelo irmão; com


certeza o faria de novo.

Merda.

Me envolver com essa gangue maldita é a última coisa


que preciso fazer agora. Mas Kim está certo: enquanto Dom
estiver vivo, teremos problemas.

Levanto-me da cadeira.

Foda-se Florence. Foda-se Audrey. Foda-se Olivia. E,


especialmente, foda-se Brianna.

Agora, preciso ajudar Kim.


Deixo a sala de reuniões do Conselho e caminho
apressado até o elevador. Enquanto espero a caixa de metal
chegar no andar, apanho meu celular e disco o número do
desgraçado mais uma vez.

Ele atende no terceiro toque.

— Preciso falar com você.


TERMINE ESTE AMOR
abra seus olhos
não resta mais nada no corpo pra você ver
eu tentei mil vezes, tentei dizer “eu te amo”, mas você não ouviu
e você é passivo-agressivo
me convenceu que mais ninguém se importa comigo
[...]
e imaginar que você me levaria até o altar
na verdade, eu estaria te seguindo como um cão com sede
admita que você me queria inferior
se você me deixasse crescer,
podia ter mantido meu amor
gemini feed — BANKS

ITO MINHAS MÃOS PÁLIDAS, TRÊMULAS, grossas e cheias de cicatrizes


F
apertarem o couro do volante quando faço a última curva em direção ao
ponto de troca informado por Dom. Suor frio acumula-se sob minhas palmas, a
umidade viscosa penetra entre minha pele e o couro. Por um segundo,
imagino que esta umidade seja o sangue do líder dos Snakes depois de rasgar
sua boca de orelha à garganta, depois de desfigurar e foder seu cadáver de
uma forma tão animal, tão incompreensível, que ninguém jamais poderá
identificá-lo. Farei isso, penso, não tem a mínima chance desta noite terminar
sem que a minha garganta, ou a de Dom, esteja aberta neste maldito asfalto.

Depois de entrar na mesma avenida em que quase fui assassinado


algumas semanas atrás, algo passa pela minha mente: caso não seja forte o
suficiente para derrotar Dom, minha garganta não será a única aberta no
asfalto.

— Noah... — murmuro quando vejo ao longe, de joelhos e


amordaçado no chão, roupas sujas e rasgadas, rosto ensanguentado e
machucado, meu irmão.

Eles nunca me pegarão vivo, Kim, sua voz ecoa em minha mente.
Entendeu?
Afasto as mãos do volante, mas meu pé continua suave no acelerador,
aproximando-o da cena lentamente. Encubro a boca com uma das palmas
livres e toco o cano do revólver em minha cintura com a outra — o revólver do
meu pai. Uma bala me acertou no peito, e uma lâmina afiada se arrastou pelo
meu abdome, trazendo para fora tudo o que deveria ficar lá dentro, me
eviscerando.

— Noah... — repito.

Nunca deixarei que toquem em você, eu disse, tão confiante, tão


estúpido. Estúpido. Estúpido. Estúpido. Filho da puta estúpido e miserável.

Não sinto mais meu próprio corpo. Não me mexo, não pisco, sequer
respiro. Entro numa espécie de transe, como se estivesse sentado numa sala
de cinema vendo um filme se desenrolar em minha frente — um filme terrível,
sangrento, assustador. Um filme que se aproxima e fica cada vez maior,
engloba mais e mais do meu campo de visão. Um filme que me drena
completamente.

Tiro o pé do acelerador e o carro para. Estou a apenas alguns metros


da cena, do meu irmão amordaçado, ferido e ajoelhado; da gangue de
dezenas, talvez centenas, de homens atrás dele; do mafioso desgraçado em
seu terno escuro e sorriso repugnante, em pé, logo ao seu lado.

— Você demorou — Dom comenta, uma mão no bolso da calça de


alfaiataria, outra no cigarro que traga e então atira para o lado, bem na frente
de Noah. — Cheguei a pensar que não ia aparecer, que ia colocar seu
rabinho entre as pernas, fugir e deixar o pequeno Noah aqui. — Agarra os
fios de Noah e puxa sua cabeça para trás e para cima, expondo seu rosto
claramente para mim. Como o dele, meu olhar também está marejado, mas
por razões diferentes. Noah chora de dor; eu choro de ódio. — Sabe que nós
cuidaríamos muito bem dele, Henney. Estivemos com escassez de putas nos
últimos meses. E ele seria uma ótima... — empurra a cabeça de Noah para
frente, fazendo-o cair de rosto no asfalto —, ótima puta.

Não respondo. Não saberia o que responder mesmo se quisesse. E


não quero. Não quero falar com Dom, não quero argumentar com esse filho
da puta, não quero correr o risco de escorregar em seu veneno. O que quero
mesmo é arrancar suas presas e usá-las para esfolá-lo lentamente.

Então apenas abro a porta e saio do carro, mantendo os faróis ligados.


Caminho lentamente, um passo de cada vez, ombros rígidos, olhos centrados
no meu irmão, precisando me lembrar constantemente de respirar.

— Então, Kim — Dom volta a preencher a avenida escura com sua voz
áspera —, preparado pra se juntar a nós outra vez? — Arqueia uma
sobrancelha, estufa o peito e ergue o queixo, me mirando de cima com um
olhar viperino. — Seu irmão precisa de uns curativos com urgência. Depois
que se entregar a mim, prometo que ele será levado pro melhor hospital da
cidade. — Estala a língua. Vira-se para trás, em direção a alguns de seus
capangas mais próximos, semiautomáticas e fuzis bem empunhados. Eles
trocam algumas risadinhas. — Cortesia da casa.

Cerro os punhos. Minha mandíbula está tão tensa e dolorida que não
tenho certeza de como ainda não rachou em algumas dezenas de pedaços.
Noah espalma o chão e se ergue com dificuldade, voltando a ficar de joelhos.
Cospe sangue no asfalto, limpa a boca com a barra suja da camisa.

Minhas entranhas se apertam, meu peito preenchido por chumbo, o


cérebro derretido. Minhas pálpebras tremem. Abro a boca para finalmente
responder algo, mas me interrompo quando vejo alguém se aproximar pelo
meio da multidão de mafiosos, chegando cada vez mais perto de Dom.

Eu reconheceria aquele maldito terno azul em qualquer lugar.

O terno azul que destruiu minha vida e a de meu irmão, que nos
roubou de um futuro decente, que fez questão de enfiar uma faca em meu
peito não uma, não duas, mas sim três vezes.

Observo Jude Goldman ganhar espaço entre os Snakes e parar ao


lado de Dom. Vejo o homem que acreditei amar ser complacente ao meu pior
inimigo; ser indiferente ao corpo ferido, fodido, esmagado de meu irmão. Jude
sabe o quanto amo Noah, sabe que ofereceria — que ofereci — minha vida
numa bandeja pela mera possibilidade de salvar meu irmão. Sabe que
machucar Noah é como machucar a parte mais frágil e sensível do meu peito,
que jamais o perdoarei por isso. E, estando ao lado de Dom, é como se
tivesse feito os cortes e hematomas no rosto de Noah com as próprias mãos.

Tenho ânsia; minha visão escurece subitamente. Não movo um


músculo, no entanto. Espero o filme de terror em minha frente ficar nítido
outra vez. Viro-me para o lado e cuspo.

— Vou levar meu irmão pro hospital quando terminarmos aqui, Dom —
digo calma e pausadamente, voltando-me ao desgraçado de terno escuro. —
Mas você não vai ter o mesmo luxo. Quando terminarmos, não haverá nada
que os médicos possam salvar de seu corpo; seus capangas filhos da puta te
carregarão direto pro cemitério... ou pro necrotério — dou de ombros —, não
acho que haverá o suficiente para ser enterrado, também.

E fixo o olhar em Jude.

Terei coragem de matá-lo?

Sim. A resposta vem instantânea. Sim, sim e sim. Vou matar Jude
Goldman esta noite.

— Você é um mal perdedor, né? — Dom comenta em seu tom


asqueroso. — Mesmo na hora de se entregar, não consegue manter a boca
fechada. Sua mentezinha de merda não deve estar processando o que tá
acontecendo. Então deixa eu te ajudar — dá um passo à frente —: venha até
mim, e então deixarei seu irmãozinho ir embora com vida.

Silêncio preenche a avenida. Pondero sobre suas palavras. Fito meu


irmão.

— Que garantia tenho de que você só não vai matá-lo logo depois que
me matar?

Dom semicerra o olhar e então volta-se ao loiro ao seu lado.

— Jude vai levar ele em seu carro.

A declaração curta me causa um breve calafrio. Retorno a atenção a


Goldman. Ele parece estranhamente confiante. O rosto está sério,
inexpressivo, mas acena com a cabeça, como se quisesse reiterar as
palavras de Dom.

Expiro fundo.

— E o que pode me garantir que você não vai matá-lo também? —


questiono a Dom, sem desviar o foco do desgraçado que assassinou meu pai
e me colocou em toda esta merda. Quase não presto atenção em minhas
próprias palavras, quase não percebo o ressoar distante de preocupação em
minha voz.

Dom fecha o rosto ainda mais, quase fazendo uma careta.

— Não vou — afirma pausadamente, para que eu ouça com clareza.


Sou incapaz de retirar os olhos de Jude. Há tanto que quero dizer,
perguntar, gritar e esmurrar. Quero destruir seu rosto, sentir a pele partindo
sob meus dedos, então a cartilagem. Quero ouvir os sons dos ossos de seu
rosto partindo-se sob meus punhos fechados, quero banhar minhas mãos
com seu sangue. E então quero fazer todas as perguntas, e quero ouvi-lo
engasgar com as próprias entranhas enquanto tenta me responder.

Quero machucá-lo tanto que jamais poderá se recuperar; desfigurar


sua carcaça bonita como ele desfigurou meu interior.

Este é o único jeito que ele poderá me compensar pelo que fez.

Meus olhos marejam.

— Então, Kim, que tal acabar logo com essa enrolação? — A voz do
líder dos Snakes me traz de volta à realidade terrível ao meu redor. Encaro-o.
— Faça o que precisa ser feito. — É um ultimato.

— Eu já fiz — digo baixo e ríspido. As feições de Dom mudam; a


confiança inabalável mistura-se a uma inquietação curiosa. — Não acho que
sou quem não está processando bem o que tá acontecendo aqui, Dom. — De
relance, miro Jude uma última vez. — A única pessoa que não consegue ver
o que está bem na sua frente... é você.

Goldman franze o cenho; impulsivamente, dá alguns passos em minha


direção, mas então se interrompe. Há certo desespero nas íris quando
murmura:

— Kim, não—

— O que você tá dizendo? — Dom questiona, desconfiado.

E sorrio — um sorriso ansioso e eufórico.

Bato duas palmas no meio da avenida.

Mesmo sob a escuridão profunda e fria desta noite, posso ver as


janelas dos prédios mais próximos sendo abertas e os snipers se expondo
nelas — fuzis de precisão engatilhados em suas mãos, miras calibradas em
direção ao mar de mafiosos no meio da avenida. Outros já estiveram a postos
nos topos dos prédios desde antes da chegada da gangue de Dom.

Faróis se acendem à distância, velozes e inescrupulosos,


aproximando-se como uma matilha selvagem e feroz, cercando os Snakes
por todos os lados.

— Puta que pariu — um deles xinga quando percebe a emboscada.

Dom olha ao redor, a confiança dissolvendo de seu rosto tão rápido


quanto um coração num pote de ácido. Os desgraçados começam a se
agitar, mirando nos snipers e tentando achar proteção entre os veículos
estacionados na avenida.

Dominic me fita, a tempo de me ver largar a jaqueta cuja gola cobria


meu pescoço e apanhar a semiautomática presa em minha calça.

Observo os olhares assustados do líder dos Snakes, de Jude e de


Noah — por motivos diferentes — diante do escorpião tatuado em meu
pescoço.

— Não estou aqui pra me entregar. Estou aqui pra me vingar.

Engatilho a arma, miro e disparo.


DIA SEGUINTE

LORENCE ACOMODA AUDREY NO ASSENTO ao seu lado com


F
um sorriso quente e maternal. Inclina-se sobre a garota e puxa a
faixa de segurança sobre sua cintura.

— Aqui, meu amor. Aperte bem o seu cinto.

— Mami, pra onde estamos indo? — a criança pergunta,


um tanto desnorteada pelos sons do avião e de todas as
pessoas acomodando-se ao redor.

— Para um lugar que você vai adorar — toca a ponta de


seu nariz —, eu prometo — e beija sua testa.

Isso parece ser o suficiente para acalmar a garota por um


tempo, tempo que Florence aproveita para desligar o celular pré-
pago que comprou mais cedo no aeroporto e retirar a bateria.

Não posso correr qualquer risco, pensa.

Então Audrey pergunta:


— O papai tá vindo também?

A mulher engole em seco e volta-se à filha.

— Sim, em breve — murmura de forma menos maternal.

— Sério? — diz uma voz no corredor. Florence vira-se


bruscamente em direção a ela. — Por que não fui comunicada
disso?

— Vovó! — Audrey exclama, um sorriso enorme ao


finalmente ver outro rosto conhecido desde que foi retirada da
cama pela mãe na noite passada. — Você também tá vindo com
a gente?

Nem Brianna nem Florence emitem som algum ao se


verem, no entanto.

Embora seja muito boa em manipular suas próprias


reações, Florence não pode evitar se contorcionar sob a própria
pele diante do rosto que assombra seus pesadelos. E a
percepção de que sua fuga acaba de ser pulverizada demora a
lhe atingir. Por vários segundos, não parece real. Isso não pode
estar acontecendo.

Ela traça seus últimos passos em busca do erro, do


deslize que culminou em ser descoberta, mas não há nada. Ela
tomou todos os cuidados imagináveis, esperou o momento certo,
apagou seus rastros e camuflou suas intenções.

Ela fez tudo certo.

E, mesmo assim, não foi o suficiente.

Florence respira fundo e fecha os olhos. Sob as


pálpebras, ela sente Brianna acomodando-se na poltrona vazia
na fileira de três assentos.
— Estamos indo embora — murmura para a tia de Jude.

— Não, não estão — Brianna rebate num tom divertido. —


Este avião não vai decolar, Florence.

E algo afunda no peito da mulher que parece incapaz de


escapar de qualquer inferno ou tormenta. Ela abre os olhos e
volta-se à mulher mais velha.

— Não se preocupe, não estou com raiva — Brianna a


acalma. — Não ainda.

— Se sabia sobre o voo, então por que não nos parou


antes?

— Queria ver quão longe você estava disposta a ir para


roubar Audrey de mim.

— Ela é minha filha, eu tenho o direito de—

— Por favor, não... — Brianna revira os olhos e recosta-se


na poltrona desconfortável. — Meu tempo é valioso e,
infelizmente, algumas coisas nas últimas semanas me distraíram
e me fizeram perder segundos, minutos e horas valiosas na
busca por respostas. Respostas nas quais... — estala a língua e
fixa os olhos no assento à frente — não consigo chegar. Isso é
profundamente perturbador, Florence. — Volta-se à mulher mais
nova com um sorriso cordial nos lábios finos e rosados. — Mas
você pode me ajudar a chegar nessas respostas.

Florence pensa na situação em que está. Se colaborar


com Brianna e se mostrar arrependida do que tentou fazer,
talvez possa desviar o foco de si mesma o suficiente para ser
poupada.

— O que você quer saber? — Florence indaga.


— Você vai me contar o que meu sobrinho esteve
planejando nos últimos meses, em detalhes, preenchendo todas
as lacunas de informações que estão me fazendo perder tanto
tempo pensando. Você é uma mulher inteligente, Florence. E é a
mulher mais próxima de Jude. Sei que ele é inteligente o
suficiente para não ter te contado tudo, mas também sei que não
é inteligente o suficiente para não ter te contado nada — diz tudo
na mesma entonação confiante e automática, como se estivesse
lendo uma receita. Vira-se à comissária de bordo que passa pelo
corredor neste momento. — Um Martini, por favor. E uma água
para a criança.

A atendente acena, sorri e some pelo corredor em busca


do pedido.

A breve interrupção é o suficiente para que Florence


cozinhe algo que a tire desta situação e, ao mesmo tempo, não
foda o plano de vingança de Jude.

— Bem, você está enganada sobre isso — afirma num


tom levemente emocionado. — Não tenho ideia do que Jude
está planejando, não sei por que se envolveu com aquele...
chofer — diz a palavra com nojo. — Ele não liga para nossa filha
— chora baixo o suficiente para que Audrey não escute — e
rejeita todas as minhas investidas. Não acho que esteja
interessado em se deitar com mulheres apesar de... — Inspira
rapidamente. — Não sei, não posso me intrometer nessa briga
de egos e poderes entre vocês, isso está fora de minhas mãos.
— Umedece os lábios. — Só tentei... só estou tentando levar
minha filha para longe disso. Mas sei que é estúpido, sei que
jamais conseguirei. Eu vou parar de tentar. — E, ao final, até
mesmo ela está convencida de que essa é a verdade.
Florence agarra a mãozinha de Audrey e a beija. Essa
parte realmente é sincera: não importa o rancor que guarde em
seu peito, seu desejo maior sempre será o de salvar sua filha.

Ela tem certeza de que conseguiu convencer Brianna até


virar para encará-la e encontrar o sorriso mais animalesco e
assustador que já viu em sua vida, deformado os lábios da
mulher de meia-idade até se tornarem linhas quase
imperceptíveis.

Brianna não responde nada, apenas sorri por um longo


momento.

E Florence então percebe que o que acabou de dizer


talvez fosse exatamente a mentira que Brianna esperava. Ela
aperta mais forte a mão da filha.

— Seu Martini, senhora — a comissária retorna com o


pedido. — E a água para a criança.
CONTINUA NO LIVRO 2 (VICIOUS) EM 2024
AGRADECIMENTOS

E finalmente estamos aqui, no final do volume 1. Escrevi


este livro muito lentamente, na contagem de algumas centenas
de palavras por dia enquanto tentava balancear o trabalho com a
escrita com uma faculdade em tempo integral. Publicá-lo me
causa uma catarse que senti poucas vezes na vida. Realmente
espero que sua experiência tenha sido inesquecível.

Primeiramente, quero agradecer a todas as pessoas


incríveis que seguem trabalhando comigo. A Senara, no design.
O Brendon, no copidesque. A Arda, nas ilustrações. Todos
fizeram trabalhos incríveis neste segundo ato e contribuíram
para elevar a qualidade do meu manuscrito. Também gostaria de
agradecer aos meus betas e, especialmente, à Lorena, que
sempre demonstrou entusiasmo ímpar para com estes
personagens, e dedicação inabalável a me ajudar a contar suas
histórias. Sou muito grato por trabalhar com pessoas tão
maravilhosas.
Também devo um agradecimento especial ao Sr. Miller,
talvez meu maior fã, e certamente principal figura por trás da
minha inspiração atualmente. Sou muito grato pelas
experiências, surpresas e alegrias que você me proporciona.

Meus amigos e meus pais também são parte importante


da minha vida, e quero agradecer pelo apoio inesgotável.

Por fim, quero agradecer a você, que continua retornando


para se aventurar nas histórias que saem da mente e dos dedos
deste jovem camponês. Eu não seria nada sem você, e espero
que minhas histórias te abracem e te proporcionem
entretenimento, escape, carinho e todo o aconchego que você
merece <3

Vejo você novamente no segundo semestre com meu


novo romance, que preencherá o vazio deixado por Kim e Jude
no Misterverso até o ano que vem.

Um abraço muito aperto,

do seu único e querido

MM.
SOBRE O AUTOR
MISTER M (PSEUDÔNIMO DE MARK MILLER)é escritor pela
manhã, leitor pela tarde e apreciador de filmes de terror e séries
de comédia pastelão pela noite. Nasceu na região norte do Brasil,
mas mudou-se para São Paulo aos 14 anos de idade.

É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique


sua obsessão por café. Não gosta de climas muito quentes, ou
muito frios, adora conhecer a cultura de outros países e ama
gatos.

Escreve pelo simples desejo de ver mais


representatividade em histórias usualmente dominadas pelo
imaginário heteronormativo, buscando leitores que, como ele,
desejam ver mais personagens LGBTQ+ em posições de
protagonismo.

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