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K
GROSSAS E cheias de cicatrizes apertarem o couro do volante
quando fez a última curva em direção ao ponto de troca informado
por Dom. Ele sentia o suor frio acumulado sob as palmas, a
umidade viscosa entre sua pele e o couro. Por um segundo,
imaginou que aquela umidade fosse o sangue do líder dos
Snakes depois de rasgar sua boca da orelha à garganta, depois
de desfigurar e foder seu cadáver de uma forma tão animal, tão
incompreensível, que ninguém jamais poderia identificá-lo. Farei
isso, ele pensou, não tem a mínima chance desta noite terminar
sem que a minha garganta, ou a de Dom, esteja aberta neste
maldito asfalto.
D A N G E R O U S : AT O I N O F O R M AT O F Í S I C O
DIREITOS AUTORAIS
D E D I C AT Ó R I A
P L AY L I S T
N O TA D O A U T O R
AV I S O D E C O N T E Ú D O
SOBRE OS SNAKES
SOBRE OS SCORPIONS
S O B R E A G O L D M A N E N T E R TA I N M E N T
PRÓLOGO
PA R T E I
INTERLÚDIO
FRÁGIL, PT. I
FRÁGIL, PT. II
OLHOS NA ESTRADA
DOMINIC
OLÁ
E U M ATA R I A P O R V O C Ê
AJOELHE-SE
DEIXE TOCAR
ASSOMBRADO
INIMIGO
O M A I O R PA U D E T O D O S
INTERLÚDIO
PA R T E I I
INTERLÚDIO
FLORENCE WINGSROAD
C U R AT I V O S
BRIANNA
OS ARQUIVOS
INTERLÚDIO
A V I O L Ê N C I A N A T E M P E S TA D E
INTERLÚDIO
REAL
SEU
MEU
EU VEJO VOCÊ
VINGANÇA X JUSTIÇA
DOENTIO
H I P Ó C R I TA
P U TA D O R D E C A B E Ç A
JUDE GOLDMAN
B R AV O V I A J A N T E
INTERLÚDIO
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE O AUTOR
cuidadosamente organizada
E S S E L I V R O P O S S U I U M A P L AY L I S T
para complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do
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NOTA DO AUTOR
Querido leitor, este não é o final.
sempre seu,
MM.
AVISO DE CONTEÚDO
Este livro é recomendado para maiores de 18 anos por conter:
Abuso de drogas
Conteúdo sexual gráfico
Linguagem imprópria
Violência explícita (gore)
Jude Goldman
ignorante quanto seu irmão — digo
— VO C Ê É T Ã O I N S O L E N T E E
para Noah. — Deve ser algo que corre no sangue.
Merda.
Merda. Merda. Merda.
— AH ! P O R R A !
Kim evitava discutir isso, mas sempre que seu pai estava
bêbado, se trancava com Noah num dos quartos da casa; antes
de receber um soco estômago ou um golpe de cinto no rosto,
Noah precisava ouvi-lo tagarelar sobre como a fuga de sua mãe
fora culpa do menino — unicamente dele. E então vinha a dor —
emocional e física — até Kim chegar em casa. Então Kim
brigava com seu pai e levava Noah para seu quarto, prometendo
que em breve os tiraria dali. Então Kim saía para o trabalho no
outro dia, e tudo se repetia.
Por que Kim não havia contado aquilo para ele antes?
Será que também não conhecia aquela palavra estranha? Idiota.
Talvez ele devesse apresentá-la ao irmão quando ele chegasse
dali a algumas horas.
O sol já havia se posto havia bastante tempo, e nem sinal
de seu pai chegar. Noah caminhou até a sala parcialmente
encoberta por penumbra e ligou o interruptor das luzes da
varanda. Com alguma sorte, seu pai não acharia o caminho para
casa naquela noite.
1 ANO AT R Á S
AGORA
Ele está na cama, como sempre. Olhos fechados, como sempre. Soro
na veia. Monitor cardíaco ao lado. Rosto pálido, barba por fazer, braços
inertes. Parece tão frágil, tão... vulnerável. É estranho vê-lo dessa forma; é
como ver a carne tenra, vermelha e cheia de sangue sob um pedaço de pele
esfolado — algo que você definitivamente não deveria ver.
— Papai?
Bufo.
— Por favor, Jude... — ela ri. — Acha mesmo que qualquer homem,
especialmente um de seus empregados, pode dizer “não” para mim? Para
mim? — Nega com a cabeça. Passeia uma das unhas vermelhas, longas e
afiadas pelo vidro. — Sou sua mulher. Devo estar ao seu lado na saúde, e na
doença... — sobre os ombros, fita Kim de relance — seja lá de quem for.
— Então está sendo uma tola. Sabe que não me importo com ela.
— É o que diz em voz alta. Mas aqui — ela aperta o lado esquerdo do
meu peito — sei como se sente. Sei, porque me sinto da mesma forma. Ela é
seu sangue. Você a ama, não importa o quanto tente se convencer do
contrário.
E antes que eu possa revidar, uma terceira voz naquele quarto atrai
minha atenção.
Audrey apanha a mão de Kim próxima de si, a que está envolta com a
pulseira identificadora de pacientes, e a balança.
— Senhor? Senhor, por favor, acorde. Viemos aqui só pra visitar você
— ela diz.
— Brianna?
Encaro Florence.
— O que está acontecendo aqui? — uma voz irritada soa ao meu lado.
FRÁGIL, PT II
venha pegar meu coração de vidro
e, em troca, me dê o seu amor
espero que você esteja disposto
a catar os estilhaços
porque eu sou frágil
fragile — kygo, labrinth
Sei que foram os Snakes e, quando contei isso a Jude... ele parecia já
saber.
5 NOITES AT R Á S
— TEM CERTEZA DISSO? — Jude questionou depois que lhe contei tudo o que
houve na noite do acidente. De braços cruzados, ele manteve o rosto voltado à
janela do quarto, um tanto evasivo.
Puxei-o contra mim, envolvendo sua cintura com a mão livre. Ele se
segurou em meus ombros e pisou nos meus pés, olhando-me de baixo.
— Me beije — ordenei.
Ele abriu a boca e inspirou. Fitou meus olhos e então meus lábios, da
mesma forma que o fiz com os dele. Será que os mesmos pensamentos
passaram por sua cabeça?
Ele agarrou minha cabeça com as duas mãos e me beijou. Não, não
me beijou: esmagou os lábios contra os meus de maneira desesperada,
intensa, quase irracional. Era como alguém morrendo de sede que finalmente
encontrava um largo e vasto oceano e bebia tanta água quanto conseguia de
uma vez só.
Nos beijamos por longos minutos, o suficiente para saciar minha sede
de seu gosto e para envenená-lo com o meu. Quando afastei nossos lábios,
mantendo as mãos em sua cintura, percebi um Jude mais relaxado, a boca
aberta e vermelha dando-me a impressão de que poderia cuspir seus
segredos a qualquer momento.
Toquei sua testa, levando uma mecha de cabelo para trás da orelha.
— Não tô pedindo que se desculpe. — Seus olhos estavam fixos nos
meus. Seu rosto permanecia parcialmente encoberto pelas sombras da luz da
lua e pela penumbra da luz do quarto. — Só quero que admita que precisa
me escutar às vezes, que não tá no controle de tudo. — Ele cerrou as
pálpebras, evasivo como antes. — Abra os olhos, Jude. — Acariciei os ossos
de sua bochecha. Ele voltou a me encarar, surpreso com meu toque. — Não
seja cruel. Quase morri atropelado; conceder alguns dos meus pedidos é o
mínimo que pode fazer.
Uma lufada de ar escapou de sua boca. Ele virou o rosto para o lado.
Meu polegar tracejou seu rosto até alcançar a ponta dos lábios finos.
Tudo nele parecia elétrico e familiar: sua pele macia e delicada; a forma como
seu corpo se encaixava no meu; o tênue equilíbrio entre frieza e
vulnerabilidade que compunham a armadura envolta de suas emoções.
Aquele era o Jude que havia prendido na cama e obrigado a me contar a
história de como se tornou pai; o Jude que esporadicamente me fitava —
arisco e ansioso como uma criança — pelos vãos de sua armadura azul e
dourada.
— Minha culpa?
— Fardo?
— A preocupação que sinto por você, Kim... — ele afastou minha mão
de seu rosto e atirou-a para baixo — me deixa louco. É uma faca se
arrastando pelo meu cérebro — aponta para a cabeça —, uma mão
esmagando meu coração — e então para o peito. — Não consigo controlá-la:
domina minha mente, domina meu corpo. Nunca senti essa merda antes.
Ele tentou me empurrar e se afastar, mas não permiti. Segurei sua face
com as duas mãos e o obriguei a me encarar profundamente.
A frase ecoou entre nós dois por alguns segundos, procedida por um
silêncio calmo e morno; aconchegante e contemplativo. As íris de Jude
estavam presas em mim, mas sua mente viajou para outro momento em seu
passado, um momento que eu nem poderia começar a tentar adivinhar. A
frase ecoou entre as quatro paredes do quarto até Goldman fechar dois
punhos em meu peito. Empurrou-me para trás e ganhou distância.
— Tudo bem, pode fazer o que quiser com ele. — Jude afastou a mão
da minha ereção e voltou a se aproximar do meu ouvido: — Eu crio as regras.
— Nossos olhares se cruzaram somente para que pudesse dizer: — Voltarei
em breve. — E então caminhou para fora do quarto.
— Eu sei que tentou matar meu cão — disse para a pessoa do outro
lado da linha. — Não tenho ideia do porquê e, honestamente, não me
importo, mas escute bem: não importa o que conversamos antes, as
promessas que me fez, os acordos que propus, se você tentar algo parecido
novamente, se seus gângsters voltarem a cruzar nosso caminho num beco
escuro, numa avenida, numa loja de conveniência qualquer... isso será
guerra. E acredite em mim: os Scorpions não passam de uma brisa perto da
tempestade de merda na qual transformarei sua vida. Este será seu único
aviso.
AGORA
É uma noite de sábado, já passa das 22h. Mais uma vez, ele está me
obrigando a trabalhar numa folga. Mais uma vez, prova que não suporta a
ideia de me deixar sozinho com Noah. Ciúmes do meu irmão? Sério? Quão
insuportável ele pode ser? Se eu ignorar que é meu terceiro dia de
recuperação fora do hospital, essa situação ainda é uma merda.
Não sei para onde Jude quer ir, ou mesmo por que é tão importante
que seja eu a levá-lo esta noite. Ele sobreviveu bem até agora com seus
outros motoristas. Talvez queira me mostrar algo. Ou talvez seja um local que
quer manter escondido, até mesmo dos outros choferes — o que explicaria
sua implicância em não me dizer o endereço.
— Em risco?
— Sua relação com ele não manteve os Snakes longe quando eles te
atropelaram com um caminhão.
— E quanto tempo ele vai durar mesmo, Kim? Por quanto tempo você
precisa trabalhar pra Jude Goldman?
— Mas como isso vai acontecer se você ainda recebe o dinheiro? Não
devia ser como um escravo, trabalhando de graça até que o valor seja
devolvido? Uh? Como você fazia nos ringues.
Jude não está com cara de muitos amigos — e sei que descobrirei o
motivo logo. Está acompanhado de Jake e Miles, um de cada lado, dando-lhe
uma aura de inalcançável e precioso. Inalcançável e precioso é o meu cu.
Não tenho tempo de passar o cinto sobre o peito quando ouço sua voz
novamente:
Mas abrir o peito para Jude sobre isso seria chover no molhado. Ele já
sabe de todos os esses problemas, conversamos sobre isso no hospital.
Então me atento a quem me tirou do sério nesta noite em particular:
— Ele não tá feliz, não aceita... que você me chame pra trabalhar em
todas as minhas folgas. — Viro o rosto para Jude. — Desconfia de você,
desconfia da nossa relação. — Pisco longamente. — Hoje, antes de sair... eu
quase...
— Quase?
— Quase disse a ele que nosso contrato... — passo a mão pelo rosto
inteiro e então pelos cabelos, até alcançar minha nuca e apertá-la — não é só
sobre ser seu chofer. Ele quer saber como a dívida tá sendo paga de volta.
— Não vou dizer pro meu irmão que tô comendo o chefe dele —
rebato tenso, sentindo o latejar na cabeça voltar vagarosamente.
— Escuta, já é o suficiente ter que lidar com essa merda com Noah em
casa, agora vou ter que discuti-la também com você? — Fito-o. — Me poupa,
Jude. Meu saco já tá muito cheio.
Improviso rapidamente:
— Ele é o seu pai — diz num tom triste. — É difícil odiar as pessoas
que nos trouxeram pra este mundo. — E afasta a mão de mim, virando a
cabeça para frente.
Ele ergue os olhos até os meus. O sinal da rua abre, os carros passam
a se movimentar, os faróis dançam sobre o rosto do homem que odeio tanto,
tanto... que não consigo suportar a ideia de ficar longe.
— Sim — sussurra.
— Quero te beijar — digo quase sem voz, tão perto que nossos
narizes se tocam, tão próximo que respiro o mesmo ar que ele. — Posso?
Pressiono seu rosto tão forte contra o meu que acho que a qualquer
momento vou partir sua mandíbula. Seus dentes afiados esmagam o interior
dos meus lábios, causando uma sensação dolorosamente alucinante. Tateio
sua língua macia e dissimulada com a ponta da minha, e então arrasto-a ao
redor de sua boca, pelos dentes, pelas bochechas. Quando ele faz menção
de fechar a boca e encerrar o beijo, forço-o a abri-la, e recomeço tudo de
novo. Enlouqueço...
O filho da puta loiro, por outro lado, está tão impecável quanto entrou
no veículo.
Penso, penso e penso no que ele disse, mas minha conclusão final é:
— Não entendi.
— O quê?
Sua expressão, seu sorriso e seu tom desinibido fazem minha ereção
despertar outra vez. Desvio o rosto, preocupado. Estico as pernas sobre a
cama. Encaro meu pau semiereto. Jude acompanha meu olhar. Cerro os
punhos nos lençóis. Há um calor bem específico nas palmas das minhas
mãos.
Mas não faço nada. Ainda há tensão sobre mim, ainda sinto as cordas
de Jude esmagando meus pulsos.
Seus olhos estão fixos no meu pau, na minha mão, talvez na forma
como minhas bolas sobem e descem, acompanhando o vai e vem. Ele
semicerra os dentes, arrastando uma fileira sobre a outra. Solta um suspiro
lânguido.
— Cale a boca.
— Porque você—
Umedeço os lábios. Olho para baixo, para o pau em minha mão. Meus
dedos se movimentam, mas não sinto muita coisa. O balde de água fria que
ele acabou de jogar em mim arruinou o pouco prazer que tirava disso.
— Mais forte — diz e senta sobre os próprios joelhos, como eu. — Use
as duas mãos.
— Pensei que tinha mandado você se calar — replica num tom mais
malicioso do que severo. — Use as duas mãos.
— Solte — diz.
Entreabro os lábios. Ele está próximo demais para que eu não imagine
seu gosto.
Gosta disso? era o que Olivia repetia quando eu gozava depois de tê-
la enforcado. Enrijeço e me afasto alguns centímetros. Meu pau desliza em
sua mão, mas ele aperta forte, me prendendo perto de si. Seu olhar se
estreita.
Uma mecha amarela cai sobre seu rosto, obstruindo minha visão de
seus olhos. Tento tirá-la do caminho, mas ele me impede.
— Não.
Acompanho seu olhar. Antes que perceba suas intenções, ele envolve
minha cintura com a mão esquerda e me empurra para o lado. Caio de costas
na cama. O loiro deita de bruços em minha frente, não larga meu pau por um
segundo. Seu corpo fica preso no espaço entre minhas pernas abertas. Fita-
me com uma lascívia tímida, asfixiada — o tipo que se vê num adolescente
rebelde quando está prestes a experimentar uma droga nova.
Ele ainda é tão grande e forte quanto no dia em que invadiu minha
casa. Os fios escuros jogados para trás, casualmente bagunçados, fazem-no
parecer mais jovem do que provavelmente é. O terno preto e a calça de linho
branca, por outro lado, deixam-no formal demais, bem diferente do selvagem
que conheci um ano atrás — ao menos no visual.
Mas agora não é como da última vez. Minha dívida foi transferida, e
Jude não tem envolvimento com os Snakes. Pelo menos não que eu saiba.
Minha própria voz ecoa em minha mente. Pelo menos não que eu
saiba. Meus olhos desviam da figura imponente do mafioso em minha frente
para a figura relativamente menos imponente do sobrinho de Brianna
Goldman.
“Não importa o que conversamos antes, as promessas que me fez, os
acordos que propus.” Aquela ligação ecoa em minha mente. Que promessas?
Que acordos?
“Tem coisas que vou precisar fazer, pessoas das quais terei que me
aproximar... para descobrir o que aconteceu com você, para evitar que se
repita.”
Sou obrigado a olhar para ele neste momento, e não há uma fibra no
meu corpo que não se retorça para pular em seu pescoço — nenhuma
sequer. Ele retribui meu olhar raivoso com uma piscadela irritante.
Jude suspira. Olha para mim, então para Dom, então para mim outra
vez. Seu semblante fechado e surpreso torna-se entediado enquanto faz as
honras:
Ele não desvia o olhar de mim por um segundo sequer. Posso sentir a
ameaça silenciosa nas suas íris abissais, a força que faz ao colocar essa
carapaça civilizada na frente de Jude.
Dom toca meu ombro com força suficiente para me machucar; para
quem olha de fora, no entanto, não se parece com um golpe. Ele aperta o
local, seus dedos afundando no meu terno. A dor se espalha pelo meu braço
em uma descarga, mas logo desaparece. Abaixo os olhos para seus dedos
tatuados e pesados.
Agarro sua mão e a atiro para longe. A surpresa em seu rosto dura
apenas até uma espécie de satisfação dominá-lo. Uma satisfação sádica.
Apoio-me na mesa para me erguer e encará-lo no mesmo nível.
— Pensei que hoje seria um ótimo dia pra cobrar minha dívida.
Coloquei meus homens pra seguir você até aqui.
Ele sabe disso, sabe que estou a um triz de perder o controle. Vejo em
seu olhar uma provocação silenciosa para que eu quebre seus dentes e
finalmente me vingue. Essa provocação, porém, é a única coisa que me
impede de prosseguir.
— Kim. Pare.
Ele soa genuinamente aflito. Se não fosse por seu deslize mais cedo,
jamais adivinharia que está bêbado.
— Não, não. Por favor, continue. — A voz de Dom ressoa tão próxima
dos meus ouvidos que me dá náuseas. Ele faz questão de se inclinar na
minha direção um pouco mais. — Eu adoraria terminar o serviço que comecei
naquela noite, cumprir a cláusula do contrato que foi violada quando você
caiu naquele ringue de quatro igual uma puta.
Agarro seu colarinho com uma mão e uma das garrafas de vinho sobre
a mesa com a outra. Vou quebrar a garrafa na sua maldita cabeça, abrir uma
fenda tão grande que ele vai morrer antes que uma ambulância consiga
chegar aqui.
Não vai ser agora, mas vou quebrar a cara desse filho da puta em
algum momento. Tenho certeza disso. Ele vai engolir cada palavra e cada
ofensa junto com seus dentes.
Não importa o histórico que tenha com esses filhos da puta: se quer
matar um Snake, deve saber que há maneiras melhores de se fazer isso. Mas
provavelmente estou superestimando sua inteligência.
— Ele não tem respeito algum. Se acha superior demais pra um cão.
Dom se senta em minha frente, na cadeira antes ocupada por Kim. Ele
mantém uma das mãos próxima à coxa, e a outra repousada sobre a mesa.
Os anéis grandes e grossos em seus dedos chamam atenção contra a toalha
branca.
— Sim, sim, sim, aquela história de novo. Já te falei que dentre todas
as formas que tenho de matar um homem, ou um cão, nesse caso,
atropelamento não é uma delas, Jude.
Ele não é difícil de ler, até porque geralmente não há muito o que ler
em seu rosto. Talvez ascender tão rápido à liderança de uma máfia
organizada tenha tornado Dom apático ao mundo ao seu redor: seu rosto
perdeu lentamente os traços de emoção nos últimos meses, desde que o
conheci. Não posso sequer imaginar as atrocidades que teve que cometer
para chegar onde chegou — e tenho certeza de que seu histórico com Kim é
apenas mais uma delas.
Não deixo que ele veja a dúvida passar pela minha cabeça. Kim é
mesmo apenas isso para mim? O que ele é para mim, exatamente?
A verdade é que não sei, e já não sei há um bom tempo. Não tenho a
mínima ideia. Desde que comprei o cão perdedor de uma luta particularmente
sangrenta no ringue clandestino dos Snakes, meus planos não estão
exatamente correndo como o esperado. Não estou me sentindo da forma
como esperava me sentir, nem me comportando da maneira que deveria me
comportar. E isso me enfurece, me preocupa, me excita, tudo ao mesmo
tempo.
Estou afundando mais e mais num caminho que não calculei, que não
construí, que pode mandar tudo pelo que trabalhei nos últimos seis anos por
água abaixo.
Fito o Snake. Ele devolve meu tom insolente com uma risada rouca.
Esfrega a barba por fazer. Suas unhas fazem um som irritante quando
coçam os pelos curtos. Enquanto meu silêncio — e meu desprezo — se
prolongam, ele murmura:
Inspiro profundamente.
— É claro que recusei. Sei o que você está planejando. Sei que não
quer apenas cumprir sua vingança com Olivia, que quer usá-la para algo
muito maior. Ela é só uma peça no seu tabuleiro, não é? Só mais um peão
para ajudá-lo a alcançar a rainha. Quando isso acontecer, que fim terão os
Snakes? Fomos nós que colocamos a operação em prática afinal de contas.
Que fim terei eu, que sou o líder?
Paro de respirar. Meu sangue corre mais rápido nas veias. Algo quente
e viscoso espalha-se em meu peito diante dessas acusações. Ainda assim,
sou muito bom em manter uma expressão vazia mesmo nas mais intensas
das situações, então não tenho problemas em encará-lo com o mais distante
dos olhares.
As acusações são verdadeiras, claro que são. Mas são acusações que
nunca pensei que partiriam de Dom: não julguei que ele tivesse intelecto
suficiente para perceber minhas intenções. O brilho frio e intimidador de seu
olhar me balança. A certeza com que ele fala faz com que eu sinta que parte
da minha armadura foi desconstruída de forma bruta e súbita.
Ele sabe que quem quero derrubar é Brianna? Não, não sabe. Está
focando apenas no próprio umbigo, como uma criança mimada.
— Você tem ideia das atrocidades que eu faria com qualquer outra
pessoa que me pedisse o que você pediu? — Aponta para a mesa com o
indicador. — Qualquer outra pessoa que sequer pensasse em falar uma coisa
dessas, pedir a cabeça de um dos meus diretamente para mim?
A ira contida derrama-se em sua voz. Ele parece prestes a pular sobre
mim, para me esganar ou me beijar. Não sei qual das opções seria pior — ao
menos já me acostumei com o fetiche de Kim em enforcamento.
Agora, ele parece refletir sobre algo. Quando retorna o olhar na minha
direção, tem uma suavidade nada característica nas íris.
Nunca realmente tive motivos para acreditar que estava sob perigo na
companhia de Dom. Também sou ótimo em perceber se estou em uma
situação perigosa, ou quando estou sendo enganado. E quando ele continua
seu discurso meloso, comete o erro fatal de tentar me enganar:
Reviro os olhos.
Estico-me sobre a mesa e recupero a taça que ele roubou. Sirvo mais
vinho e bebo um gole longo e frio. O álcool faz a semente de enxaqueca
germinar. Provavelmente estou desidratado.
Ele agarra meu braço e me puxa para a frente de forma brusca. Fico
semidebruçado sobre a mesa. Por um milagre, consigo desviar da taça e não
derrubar o líquido rubro na toalha branca — o que seria uma tragédia para o
garçom gentil que me deu a garrafa.
— Eu quero você, e não vou permitir que escape de mim fácil — Dom
ladra contra meu rosto. Ele expira pela boca tão profundamente que consigo
ver seus caninos protusos. — Quero que você seja meu ao menos uma vez
— sussurra. Depois disso, esfrega a lateral de seu rosto contra a minha mão,
que ele agarrou e puxou à força, em uma carícia não consensual e
desconfortável.
Para piorar tudo, Dom fecha os olhos e mantém meu pulso firme.
Minha palma se abre contra seu rosto morno. As pontas dos dedos tocam os
fios curtos das laterais de sua cabeça.
Dom aperta mais meu pulso e puxa meu braço para baixo, batendo
minha palma aberta na mesa. Agora sim fico debruçado sobre a toalha
branca. Ele se projeta mais à frente como uma cobra, prendendo-me no
lugar. Seu hálito quente bagunça meus sentidos.
— Não brinque comigo. Já ouvi os rumores sobre o que você faz com
seu cão quando estão sozinhos.
Ele estreita os olhos em minha direção, não diz nada por um tempo.
Vejo uma incerteza crescente em seu rosto. É óbvio que ele não sabe que eu
mesmo orquestrei esses rumores, é óbvio que ele não sabe de todo o meu
plano. E, pela primeira vez, me questiono se sua acusação inicial não foi
apenas um blefe muito, muito sortudo.
— Pare de falar.
Ele rumina sobre a pergunta, seu olhar distante e frustrado quando diz:
— Está me chantageando?
Reteso a mandíbula.
Mais uma vez, sinto as rédeas dos meus planos escaparem de minhas
mãos, serem atiradas de um lado para o outro e alterando o curso da rota
que eu deveria controlar. Tudo deveria ser bem simples, mas, desde que
conheci Kim, simples é exatamente o oposto do que vem acontecendo.
Posso recusar o pedido de Dom. Ele não se forçará em mim, sabe que
se me tocar terá consequências tão graves quanto se eu o tocasse. No
máximo, manterá seus homens no meu encalço e tentará outras vezes me
convencer a dormir com ele.
Mas isso significa que a vida de Kim continuará ameaçada, que não
poderei retirar meus olhos dele por um segundo sequer, que terei que
continuar sendo inconveniente e afastando-o do irmão sem dar maiores
explicações.
Não há honra nesse acordo. Não há honra entre vilões. E, como ele
disse, eu não sou um herói.
Mas há uma forma de contorcer esta situação e retirar dela algo que
seja útil. Uma forma que, provavelmente, consertará a rota e endireitará o
curso do meu plano, fará tudo correr conforme deveria outra vez. Por azar, ou
sorte — muita sorte —, Dom é o único homem que tem algo fora do meu
alcance. É justamente quem tem o recurso do qual estou desesperadamente
atrás, o recurso que me deixará um passo mais próximo de cumprir minha
vingança.
Minha tia uma vez disse que vingança é um prato que se come em
uma noite escura e tempestuosa, na companhia de seus piores pesadelos.
Engulo em seco.
— E?
— Se você não for meu, Jude, vou estripar seu cão e arrastar suas
entranhas pelas ruas de Nova York, do Bronx ao Upper East Side.
Engulo em seco e aperto mais o volante. Pelo canto dos olhos, vejo o
outro homem recostado na Lamborghini.
— Por que ele veio ao seu prédio? Por que caralhos está te
esperando? Você... você é amigo desse filho da puta?
— Entendo que você tem suas próprias questões com ele, Kim. Não
sou estúpido. Mas eu tenho as minhas, e não pense por um momento sequer
que vou colocar os seus interesses, seus... sentimentos... sobre meus
objetivos, sobre meu maldito plan—
— Não saia. Não suba — interrompo-o. — Não faça a merda que você
está prestes a fazer — digo firmemente. — Deixe que eu lide com Dom.
Sei que ele percebe que estou falando a verdade. Sei, pela forma
como sua expressão se confunde entre protesto e dó, entre compaixão e
irritação, negação e satisfação.
— Por que está fazendo isso? — e minha voz sai mais ríspida do que
eu gostaria. Estou perdendo o controle sobre o meu corpo. — O que ele tem
contra você?
Algumas mechas de seu cabelo caem sobre a testa quando ele curva
a nuca para baixo, em direção ao espaço vazio entre seus pés.
— Ele tem algo de que preciso — balbucia, tão baixo que preciso me
inclinar mais para trás para ouvi-lo.
— O quê?
Eu sei que é inútil querer qualquer coisa a mais de Jude, agir como se
eu significasse mais do que um cão de estimação que serve aos seus
interesses, que está aqui para ajudar em seu plano fodido e acatar ordens.
Eu sei de tudo isso. Mesmo assim, continuo fazendo exatamente o contrário.
Então rolo a tela um pouco mais para cima. Encaro o número que
quase disquei na festa da filha de Jude, o número que costumava fazer parte
da minha vida todos os dias, o número que nunca imaginei que um dia me
provocaria tanta dúvida ao discá-lo. O número dela.
Aperto o celular nas minhas mãos. Sequer estou com a mente certa
para uma conversa como essa?
Disco o número.
— Kim?
OLÁ
olá, sou eu
queria saber se depois de todos esses anos
você gostaria de sair
para conversar sobre tudo o que aconteceu
dizem que o tempo cura
mas não acho que me curei
[…]
olá, como você está?
é tão típico de mim falar só sobre mim
desculpe
espero que você esteja bem
você chegou a sair daquele lugar
onde nada nunca aconteceu?
hello — adele
Ela fica em silêncio do outro lado por volta do mesmo tempo que eu.
Talvez esteja passando pelo mesmo estrato de sentimentos. Uma lufada de
ar silenciosa escapa dos meus lábios. Quase posso ver seu rosto em minha
frente.
— Achei que você nunca ligaria — continua depois de alguns
segundos. Ouço o clique de um interruptor, e então uma cadeira sendo
arrastada pelo chão. Ela está em casa, não no ringue. Graças a Deus. —
Como você tá? Eu... — balbucia. — Eu passei na sua casa depois que tudo
aconteceu, mas você não tava lá.
— Fiquei preocupada.
— Por quê?
Olivia suspira.
Minha risada cessa. Foi a primeira vez que ri assim desde que deixei o
ringue.
— No trabalho.
Seu tom é tão diferente do de Jude que comparar os dois seria como
comparar água e vinho. Olivia é assertiva, há preocupação genuína em sua
voz. Ela sabe pelo que passei, passou muito disso ao meu lado. Jude se
importa apenas com me manter no lugar, com apertar a coleira em meu
pescoço quando acha que está frouxa demais. Olivia não me vê como um
inferior, como uma ferramenta para seus planos.
— Kim?
— Você sabe que não posso deixar os Snakes, Kim — lamenta, o tom
cauteloso como se falasse com uma criança. — Quer que eu remova minha
tatuagem com laser também? — Expira fundo do outro lado. — Eu estaria
morta em dois dias. Isso é uma sentença pra vida.
Cerro os punhos.
— Kim... — resmunga.
— Você sabe que nenhum deles é páreo pra mim, Olivia. — Reteso a
mandíbula. — Então me leve a sério — me queixo. — Por favor... deixe eles.
— Sei que nenhum deles é páreo pra você. Acha que já duvidei que
cumpriria seu contrato? Que sobreviveria a todas as 365 lutas? — Contraio
os lábios. Ela se interrompe, esperando por uma resposta que não vem. —
Nunca. Em nenhum momento sequer — afirma. — Todos os caras que
passam por lá duram duas, três semanas no máximo. E então são
esmagados. Mas, no momento em que te vi, eu tive a certeza... — suspira. —
Tive certeza de que sobreviveria, Kim.
— Acha que dou meu número pra todos os caras que fodo? — replica
em protesto.
Olivia sempre deixou claro que não me ama, e sempre pediu para que
eu não a amasse também. Mesmo depois de tudo o que falou esta noite, sei
que ela tem medo de se apaixonar por alguém fadado a morrer uma morte
violenta e obscura, que não sairia em jornal algum e seria simplesmente
apagada da história. Ela conhece bem a organização para a qual trabalha.
Eu sabia que não era o único lutador com quem ela fazia isso, com
quem fodia. Mas, quando estávamos juntos no vestiário, eu acreditava que
era o único. E acreditar na fantasia criada em minha cabeça sempre foi o
suficiente. Tanto que aqui estou eu, sofrendo por finalmente ter que cortar as
asas dessa fantasia.
— Não posso sair, Kim — ela finaliza num tom triste. — Não há saída.
Aperto o celular em minhas mãos com tanta força que meus dedos
começam a doer. Levo alguns segundos até responder:
1 ligação perdida.
— Merda.
— Eu sei, eu tava—
— Eu quero que você espere por mim no carro. Não vá embora. Essa
é uma ordem.
— Você tá bem?
— Jude, me diz o que fazer. Porra, me diz o que eu posso fazer pra te
ajudar.
— Pode ficar comigo esta noite. Diga que vai ficar. Preciso ouvir as
suas palavras.
3H41.
2
Meus olhos estão presos nos caracteres vermelhos acesos no rádio
do carro. 23h41.
Abro a boca, mas a voz fica presa na garganta. Inspiro fundo. Não sei
muito sobre a relação entre os dois, mas preciso acreditar que Jude não
procuraria voluntariamente por um Snake, certo? Certo? Ele poderia ser tão
estúpido?
— Seu querido Jude veio até mim, de joelhos, pra pedir ajuda com seu
plano, além de implorar pela sua vida, cão — murmura num tom canalha. —
Seus olhinhos azuis me olhavam de baixo, seus lábios diziam as palavras,
mas tudo no que eu pensava era em como queria tê-los em volta do meu
pau.
— Ele tá encurralado, por sua causa e por causa do maldito plano que
não consegue colocar em prática sem mim. Sou o único que pode ajudá-lo
agora. — Ergue as sobrancelhas, insolente. — Vai ser um prazer encontrar
sua cara de merda sempre que eu vier aqui pra fodê-lo.
— Vamos lá. Use seus culhões. Acabe comigo aqui e agora — ordena
ríspido, a mandíbula tremendo. Vejo as veias saltadas em sua testa e no
pescoço, sinto as batidas violentas de seu coração através do cano da arma
fortemente pressionado contra o peito. É assustador. — Se não o fizer, Kim
— cicia —, se uma bala não entrar no meu peito agora... você vai se
arrepender tanto, mas tanto... — Fecha os olhos e nega com a cabeça.
Meu dedo roça o gatilho. Eu deveria fazer. Deveria acabar com ele.
Deveria meter uma bala em seu peito, apagar seus sorrisos cínicos e olhares
desafiadores para sempre. Mas se eu cortar a cabeça da serpente, o que
acontece com o ninho?
— Vamos lá, sua putinha! — grita do fundo dos pulmões, a voz rouca e
fanha ecoando por todo o estacionamento.
— A única razão pela qual vou te deixar sair vivo daqui hoje é porque
sei que Jude se importa o suficiente pra pagar muito mais do que deveria
nessa sua cabeça de merda, pra me implorar pra não te matar. Por quê? Que
caralhos você pode oferecer a ele pra deixá-lo... rendido dessa maneira, eu
não sei. Não tenho a porra da mínima ideia. Mas não pense por um segundo
que meus laços com ele serão o suficiente pra te salvar numa próxima vez,
cão.
Estreito os olhos em sua direção. Duvido de suas palavras, duvido que
um mero aviso seja tudo o que tem para mim depois que ameacei matá-lo.
Ele descarrega a arma, retirando a munição e guardando-a no bolso. Atira o
revólver contra meu rosto em seguida. Ergo os braços para me proteger do
golpe. Quando afasto os braços do rosto, ele está agachado em minha frente.
Agarra meu queixo.
Mas isso não faz sentido. Sou mesmo uma parte tão valiosa desse
plano? Do plano que insiste em esconder de mim? Não valho 900 mil dólares,
e sei muito bem disso. Dom sabe disso. Jude sabe disso. Foi dinheiro demais
por um homem qualquer; um cão, como eles chamam, ele disse logo depois
que acordei em sua cama.
Se ele não se importa comigo, então por que pediu para que eu
ficasse no carro? Se não se importa, por que me contou sobre sua filha?
Por quê?
Sempre que esse celular tocar... atenda. Não importa o que esteja
fazendo.
Aceito a chamada.
— Alô?
— SU B A .
EU CORPO CONTINUA SE DESLOCANDO para a frente, um passo após o
M
outro, uma inspiração profunda depois da outra, mesmo que minha mente
esteja desligada.
Não quero que Jude me veja desta forma, sangrando e quebrado. Não
quero que sinta pena de mim, não quero que me considere fraco, não quero
que olhe para mim e veja algo que precisa de proteção, um animal que
precisa de cuidados. Quero que ele me olhe e veja um homem. Talvez assim
resolva de uma vez por todas se se importa comigo ou não.
Subo as escadas.
AJOELHE-SE
ele me chama de Diabo, eu o faço querer pecar
toda vez que eu bato,
ele não consegue evitar me deixar entrar
deve estar desesperado por algo real
eu sou o mais real que pode ter
você ainda me amaria
mesmo se eu te estrangulasse
hotter than hell — dua lipa
Não deixe que outras pessoas façam com ele o que acabei de fazer.
Não consigo fitar Jude por muito tempo. Isso deveria ser sexy? Ele
está tentando me seduzir? Tudo o que sinto é uma repulsa fervente em meu
peito. Quero quebrar, destruir, aniquilar alguma coisa, mas me mantenho
imóvel, inerte. Tudo o que faço é virar o pescoço para o lado, fitar a parede
mais próxima enquanto minha respiração se exaspera.
— Kim — Jude murmura. Sua voz é suave como seu olhar. Ele
endireita a postura, mas mantém o joelho arqueado, se mantém aberto aos
meus olhos hesitantes. — Se aproxime — ordena. O tom é tranquilo e baixo,
mas ainda é uma ordem.
Cerro os punhos.
— Se aproxime.
Bufo. Uma, duas, cinco vezes, mas a fúria dentro de mim não se
desfaz. Estou chegando perto, muito perto do meu limite. Um misto de
sentimentos, dores e palavras asfixiadas borbulha dentro de mim, deixa meus
nervos alterados. Achei que vencer 365 lutas consecutivas em um ringue
ilegal seria a coisa mais difícil que enfrentaria na vida. Mas estava errado, a
coisa mais difícil é lidar com esse filho da puta prepotente e cheio de si em
minha frente, é não revidar seus golpes, me forçar a suportar suas
humilhações calado e tentar entender de que buraco escuro dentro de seu
peito parte as merdas que faz, que porra exatamente ele quer de mim.
— Kim, olhe pra mim — sua voz soa às minhas costas. Me volto para
ele vagarosamente. — Olhe bem como ele me deixou.
STREITO OS OLHOS, MAS ELE não me dá muito tempo de reagir. Logo seus
E
lábios estão grudados nos meus, entreabrindo-os, ressecados e levemente
salgados pelo suor que escorreu até ali. Sua boca é quente e molhada, macia;
ácida, porém suave. Sua pele pode estar fedendo ao mafioso, mas a boca tem
o gosto familiar de sempre, o gosto com o qual já estou acostumado, o gosto
que me deixa entorpecido. Dom não o beijou. E, embora eu devesse empurrá-
lo para longe e cair fora daqui, esse é único pensamento que cruza minha
mente. Não importa o que aquele homem disse, não importa o que fez comigo,
a boca de Jude ainda é minha. E vou tomá-la.
Minha língua entra em sua boca, percorre cada espaço que consegue
enquanto aprofundo o beijo. E Jude não hesita, não reluta, não se contrai por
um momento sequer. Pelo contrário: puxa minha nuca para baixo,
esmagando nossos rostos, nossos lábios.
Passo uma mão em sua cintura e puxo-o para frente, esmagando seu
peito contra o meu. Jude afasta nossos lábios, retira minha mão de seu
corpo. Seu olhar permanece preso no meu enquanto ele cai de joelhos.
Ele abre meu cinto, o botão da calça, puxa o zíper para baixo. Seu
rosto está tão perto da minha ereção pungente que sinto seu fôlego através
do tecido da cueca quando diz:
Olhe pra mim enquanto estiver com meu pau na sua boca, eu disse na
primeira vez em que ele fez isso, e parece que minhas palavras estão
soldadas em sua mente desde então. Ele expira fundo, seu rosto navega de
uma serenidade dócil até um desejo ferino. Abre os lábios vagarosamente,
move a mandíbula de um lado para o outro em preparação.
Volta a chupar, desta vez com a ajuda da mão. Ele masturba o corpo
enquanto concentra os lábios na cabeça, na pele avermelhada mais frágil e
delicada logo abaixo. Sua mão e sua boca trabalham num mesmo ritmo, lento
e constante.
E eu sei que não deveria acreditar nisso, sei nas minhas entranhas
que me deixar ser levado por Jude outra vez acabará em tragédia, em
mágoa, em mais alguns ossos quebrados. Mas quando ele se levanta do
chão, me beija gentilmente e então vira de costas, puxando-me em direção à
cama, tomo a decisão de ignorar esses pressentimentos, ignorar os sinais
vermelhos, ignorar meu próprio instinto de sobrevivência. Quando ele se
arrasta pela cama até a cabeceira e me arrasta junto, sobre si, mergulho
numa maré alta e calma com as pernas quebradas. Não sei mais se
conseguirei voltar à superfície.
Meu pau se esfrega no dele quando nos beijamos deitados, suas
pernas cuidadosamente se abrindo para me acomodar, suas mãos tocando
meu rosto e meu pescoço, o suor parcialmente seco em sua pele fazendo
seu toque parecer viscoso, mais denso do que o normal. Nossos corpos se
encaixam como peças de um quebra-cabeças, formando uma imagem triste,
destrutiva e frágil, mas deliciosa de se olhar quando completa.
Jude separa nossas bocas e traça uma linha de beijos pela minha
bochecha até alcançar o ouvido:
Afasto meu rosto e o encaro. Ele está vermelho dos olhos ao pescoço.
Parece totalmente entregue a mim, aos meus braços; os lábios entreabertos
estão sedentos, chamam pelos meus. Não consigo ficar afastado por muito
tempo. Afundo em sua boca e esmago nossos corpos. Jude geme, rouco,
enquanto seu pau se esfrega junto ao meu em nossos abdomes.
— Sim, é isso que eu quero — ele grunhe contra meu rosto quando
beijo seu pescoço. Provo sua pele oleosa pelo suor, seu gosto salgado
preenche minha língua. — Tudo em que eu pensava era no momento em que
você estaria sobre mim, em que você estaria dentro de mim. — Ele aperta os
fios curtos e arrepiados da minha nuca, puxa-os para trás. Pulo em sua boca
ferozmente, irritado por ter sido interrompido. Ele morde meu lábio inferior, me
obrigando a me afastar. Encaro-o confuso até ele pegar minha mão esquerda
e levá-la ao próprio pescoço. Força meus dedos a envolverem sua garganta.
— Pode me enforcar se quiser. Sei que você gosta. — Volta a encerrar a
distância entre nossos lábios. — Quero fazer tudo o que você gosta — diz
entre um beijo agressivo e outro.
— É isso que sou pra você? — murmuro quando meus dedos relaxam,
minha consciência ainda tentando o melhor para entender suas intenções. —
Um pau ambulante?
Jude assente, sem pensar demais. Olho no fundo dos seus olhos,
buscando algum sinal de que é mentira, mas não encontro. As íris continuam
frias e cintilantes; o corpo permanece inquieto, buscando por mais do meu
toque. Sequer sei se ele é capaz de mentir neste momento.
Achei que ficaria triste, mas a verdade é que não sinto nada. Não
estou zangado, frustrado ou decepcionado. Não é a primeira vez que uma
pessoa me trata deste jeito. Olivia era igualzinha, e veja onde chegamos.
Veja onde estou chegando por Jude.
Jude tenta me beijar, mas aperto sua garganta, mantendo sua cabeça
bem presa no colchão. Ele esganiça, sem ar.
Jude soca meu peito. Um gemido abafado me escapa com a dor, meus
pulmões ficam sem ar por um segundo. Agarro sua cintura, afundando meus
dedos em sua carne. Sua pele fica vermelha sob meus dedos pesados.
Minha ereção começa a se tornar insuportável, especialmente quando ele
esfrega a bunda contra ela desta forma.
Ele se arrasta para trás até estar de cara com meu membro outra vez.
Agora, não há brilho dócil em seu olhar, não há submissão ou qualquer
merda no meio. Há apenas um desejo ardente de brincar comigo, de me fazer
gemer e tremer sobre a cama, de fazer minhas costas se curvarem para
cima, de arrancar suor dos meus poros e gritos roucos da minha garganta. Há
apenas Jude e o sadismo que o faz me machucar, para então reparar, para
me machucar outra vez. Estou lutando um novo tipo de luta desde que saí do
ringue e sequer percebi. E se não tomar bastante cuidado, vou acabar com a
segunda derrota consecutiva.
Ele me segura com uma das mãos e desliza um pouco mais para baixo
na cama. Abro as pernas sutilmente para acomodá-lo enquanto ele apoia os
dois braços ao redor dos meus joelhos. Aproxima a face do local onde
minhas bolas se juntam ao corpo do membro. Engole uma de cada vez, o
olhar hipnoticamente preso no meu.
Suas íris podem ser frias, mas sua boca é quente — e toda minha. Sua
língua é ágil também, e reprimo o desejo de questionar onde aprendeu a
movê-la desta forma. Ele realmente nunca chupou outro cara antes de mim?
Ou essa foi apenas mais uma de suas mentiras?
— Deixe tocar — dita. Depois, engole meu pau inteiro de uma vez.
Deixo o braço inerte no ar e fecho os olhos. Sinto o aperto suave e morno de
sua garganta até ele retirá-lo outra vez. — Não pense que vai sair daqui
antes de me dar leite, Kim — murmura enquanto passeia a língua pela lateral.
Ele desliza uma das mãos sobre meu abdome até alcançar meu peito.
Pinça um dos meus mamilos entre o polegar e o indicador, ambos úmidos. A
sensação elétrica dentro de mim apenas se intensifica, o calor que me
cozinha de dentro para fora torna-se cada vez mais insuportável, mais e mais
próximo de se libertar. Meus joelhos começam a se inquietar, meu peito sobe
e desce mais intensamente, suor escorre do meu corpo pelo esforço em me
manter sob controle, meus músculos se tensionam, meus dentes cerram.
Minha boca seca quando vejo seu rosto parcialmente encoberto pela
minha ereção. Ele a coloca de volta na boca lentamente, sem desviar os
olhos dos meus. Me estimula em lugares delicados com os dedos, acelera a
velocidade do vai e vem gradualmente e não afasta mais os lábios de mim
até ter exatamente o que pediu.
O loiro caiu no sono logo depois de gozar, uma hora atrás, e estou me
acostumando com isso. Me acostumando ao seu corpo, aos seus hábitos, às
suas peculiaridades — que não são poucas. Estou me acostumando, mas
com um sorriso no rosto.
Jude certamente gostaria que eu ficasse, mesmo que não tenha dito
em voz alta. Ficaria satisfeito em acordar pela manhã e me ver aqui. E, o
mais incrível disso é que... quero satisfazê-lo. Quero arrancar um sorriso
bobo de seu rosto e fazer seu coração palpitar. Quero segurá-lo em meus
braços e fazer exatamente o que Dom me disse: “não deixe que outras
pessoas façam com ele o que acabei de fazer”. Quero protegê-lo de qualquer
outro que se aproxime.
Viro calmamente em direção a Jude, apertando mais a cabeça contra a
mão sobre o travesseiro. Observo seu rosto por alguns segundos, os lábios
finos levemente entreabertos, as mechas douradas que caem sobre o rosto,
as bochechas pálidas. Desço o olhar para seu pescoço, para as marcas que
deixei ali com a boca, sinalizando que é meu, somente meu — ao menos na
minha cabeça, ao menos até ele cobri-las com maquiagem pela manhã.
É isso que vou te dar: um pau. É a única coisa que terá. Nada de
conversa fiada. Nada de assuntos desnecessários. Nada de conhecer meu
passado. Nada de amor. Uma risada silenciosa deixa meus lábios. Que
hipócrita, Kim Henney.
Não consigo sequer enganar a mim mesmo. Sei que o que sinto por
Jude é mais do que carnal, mais do que físico. Talvez ele só se interesse pelo
meu corpo, mas não sou desse jeito, não sou programado para ter fodas
descartáveis e seguir em frente. Sou mais complicado do que isso. E se ele
se incomoda tanto com meus ciúmes, que pena.
Essa é a mesma coisa que sinto por Olivia? É possível amar duas
pessoas dessa forma ao mesmo tempo? Se eu continuar ao lado de Jude,
Ollie vai desaparecer da minha mente? Finalmente conseguirei romper todos
os meus laços com os Snakes? Finalmente conseguirei proteger minha
família?
Estico o pescoço para trás para fitar o homem nu, de bruços sobre os
lençóis. Eu quero dormir ao seu lado, mas não vou. Não ainda. Há tanto que
ainda preciso descobrir sobre ele, tanto que preciso entender antes de fazer
isso. Saber que sinto algo por Jude é diferente de escolher me entregar ao
sentimento, é diferente de pular de cabeça em sua maré agitada e profunda,
em sua maré cheia de tubarões.
Nunca entrei lá, mas não faria mal pegar uma camiseta emprestada,
certo? É parte da minha recompensa por fazê-lo gozar. Sorrio. Além disso,
devolverei a camiseta amanhã — e não é como se ele fosse sentir falta de
qualquer jeito.
Não posso permitir que outra situação como aquela se repita, não
depois que entrei em paz com meus sentimentos por Jude. Ele me arrastou
para dentro de sua vida, então é meu direito descobrir o que puder sobre ela,
mesmo que não seja da boca dele.
Viro-me para encontrar um Jude pelado logo atrás de mim. Seus olhos
sombrios e rosto encoberto por sombras me fitam de forma perturbadora,
aterrorizada, como se estivesse diante de seu pior pesadelo.
Fico paralisado. Não tenho ideia do que dizer, como dizer, como reagir
sem exaltá-lo demais.
— Você não deveria ter metido o nariz em assuntos que não são seus
— cospe, exaltado. — Eu te avisei um milhão de vezes pra não fazer esse
tipo de merda.
A ofensa passa por mim como uma lufada de vento. Olho para o meu
próprio reflexo na porta espelhada atrás de Jude, a camisa dele cobrindo meu
torso, minha própria camisa ensanguentada jogada sobre os ombros.
Lembro-me da sensação enlouquecedora de saber que ele estava com outro
homem, da dor por ter sido esmurrado, do prazer em tê-lo nos meus braços
apenas algumas horas atrás. Olho para mim, e parte do que vejo é ele.
Sua voz ecoa pelo quarto, pela varanda, pela casa. A hostilidade me
faz cair na real do que está acontecendo aqui: Jude não está disposto a
colocar o mesmo esforço que eu nesta relação. Na verdade, não está
disposto a colocar esforço algum. E eu sou o otário por achar que pudesse
estar.
Assim como imaginei, não sou muito mais para ele do que um animal
de estimação.
Assim como imaginei, não era uma boa ideia dormir ao seu lado.
Se eu fizer isso, vou conseguir dizer adeus uma segunda vez? Vale a
pena reabrir uma ferida que apenas começou a se fechar?
Veste uma camisola prateada, de alças finas e que desce até o meio
das coxas. Os fios longos descem atrás da cabeça. Os pés estão descalços.
Posso ver as tatuagens que cobrem os braços, a parte superior do peito e se
projetam às escápulas como uma voraz cobertura de tinta sobre sua pele
marrom-escura. A familiar — e maldita — serpente está em seu pescoço,
como se se enrolasse e estrangulasse a jugular dilatada.
— Você veio mesmo — ela atesta, mais para si mesma do que para
mim.
Nego com a cabeça e fico confuso até tocar meu próprio rosto no
espaço entre o lábio superior e o nariz e sentir o líquido morno escorrendo
das narinas.
Pelos cantos dos olhos, vejo Olivia abrir a maleta e retirar os itens de
sempre: algodão, álcool e uma pequena gaze branca. Ela deixa a maleta de
lado e se concentra apenas no que tem em mãos: molha a gaze no álcool e a
aproxima do meu nariz. Esfrega a pele exterior, limpando-a. O cheiro é forte,
mas, depois de tantas lutas e ossos quebrados, já me acostumei. Ela tateia a
cartilagem no nariz e observa minhas reações cuidadosamente. Percebe
onde está deslocado e o local onde é mais doloroso. Seus lábios se curvam
para cima numa expressão de desgosto quando percebe que coloquei a
cartilagem de volta no lugar depois do golpe.
Ela é cuidadosa ao apalpar meu nariz, evita o local doloroso desta vez.
Coloca as extremidades do clipe em cada uma das minhas narinas e o solta.
Sinto uma leve pressão na cartilagem, mas nada que incomode demais.
— Eu também.
— Como você cruzou com ele? E ainda entrou numa briga? Kim...?
— Não faça isso de novo. É a primeira vez que ouço falar de alguém
que brigou com Dom e saiu vivo pra contar história.
— Não vou discutir com você sobre isso de novo — sussurra de volta.
— Não — minto.
— Kim... — suspira.
Esfrego o rosto.
Olivia ainda leva alguns segundos até caminhar para longe, talvez um
tanto desnorteada por minha recusa súbita. É a primeira vez que isso
acontece, então não estranho tanto. Sempre que ela me chamava, eu vinha.
Sempre que me mandava ir embora, eu ia. Sempre que ordenava, eu
obedecia. Sempre que me machucava, eu perdoava.
Preciso de Jude, mas não posso tê-lo sem antes conseguir algumas
respostas.
Não vou mais ajudá-lo até saber exatamente o que está fazendo.
— Como?
Expirou superficialmente.
— Não.
AGORA
— O quê?
— Não pretendo colocar você, ou sua filha, em risco. Não tô aqui como
uma ameaça.
— Sim, mas não estou — rebato sério. — Estou aqui apenas pra
conversar.
— Conversar?
— Sim.
— Então por que invadiu minha casa? Fiz algo que te desse a
impressão de que não estou disposta a conversar com você a não ser que
seja à força?
— Porque sei que Jude tá planejando algo contra a tia dele. E sei que
tem algo muito errado nesse plano, algo que ele... quer esconder de mim.
— Também sou uma parte dessa merda desde que Jude comprou
minha dívida, goste você ou não.
— Na primeira vez em que nos vimos, você queria que eu comesse ele
na sua frente — comento, ácido.
Franzo o cenho.
Ela guarda a garrafa e retorna à sala com as duas taças em mãos.
Chega próximo o suficiente para me oferecer uma.
— Não bebo — recuso, inclinando bem a nuca para trás para encará-
la.
Sigo encarando-a por mais algum tempo até apanhar a taça de suas
mãos, contrariado. Levo um gole aos lábios, e isso é o suficiente para
satisfazê-la. Florence retorna ao sofá em minha frente e cruza as longas
pernas pálidas e finas.
Arqueia as sobrancelhas.
Reteso a mandíbula.
— Não tô fazendo exigências — vocifero baixo —, só quero saber a
porra da verdade.
Respiro fundo.
Numa espécie de choque, ela entreabre os lábios, mas não diz uma
palavra. Olha ao redor, um tanto perdida.
Fito-a um pouco exaltado. Começo a ficar nervoso pelo rumo que isso
está tomando, ansioso para descobrir que merda ela está disposta — ou não
— a me contar sobre Jude. Toda a fúria e a mágoa que eu sentia por ele se
escondem no fundo da minha mente, superadas pelo meu desejo de
entender o que diabos está acontecendo em sua vida.
Está em dúvida?
Ela pisca longamente, logo força um sorriso triste e feio a se abrir nos
lábios vermelhos.
— Você notou que meu casamento com Jude não é convencional. Não
temos nenhum tipo de ligação emocional além de nossa filha. — Pausa por
um momento e pondera. — Jude argumentaria que não temos ligação
emocional alguma. — Uma lufada de ar debochada deixa seus lábios. —
Cometemos um erro inconsequente e aqui estamos, ligados pra vida inteira
pelos desejos de outra pessoa.
— Depois de um tempo, percebi que minha filha não tem culpa alguma
de tudo o que aconteceu. Que, dentre todos nós, ela é a única inocente.
Nesse período, decidi mantê-la o mais afastada de Brianna o possível. —
Florence cerra os punhos sutilmente e suspira. — Foi quando ela me
sequestrou e ameaçou tirar a guarda da criança de mim se eu movesse um
dedo para mantê-las longe uma da outra, caso eu sequer colocasse um pé
para fora de Nova York.
— Quem?
— Jason. Seu melhor amigo de infância. — Ela apanha sua taça do
chão e termina com o líquido restante em apenas um gole.
— Não tô pedindo.
— Não interessa.
Ela ri.
— Medo?
— Medo de que você se aproxime demais e veja seu lado feio. O lado
grotesco, eviscerado e sangrante que ele trabalha tanto pra manter
escondido. Ele está com medo... — seu olhar torna-se contemplativo — de
que você o abandone quando descobrir a verdade.
— Acredite em mim: você ainda não viu nada. E Jude não é fraco: se
ele está com medo, é porque você fez algo pra merecer esse medo.
— Ele não quer te perder, sente algo por você. O que, exatamente, é
difícil de saber. Os sentimentos de Jude Goldman são um labirinto por si só.
— Do quê?
— Você, talvez não. Mas seu irmão, sim. Ele vai entrar no meio disso
eventualmente, se ainda não o tiver feito.
Mordo o lábio inferior. Como se meu único problema com Jude fosse a
dívida...
— Você diz que não quer minha ajuda — sussurra e espalma meu
peito. — Seria porque quer ajudá-lo no plano voluntariamente? — Arqueia
uma sobrancelha.
— Não.
Uma mulher pode mesmo fazer isso com outra? Com uma nora?
Florence tem razão. O que Brianna Goldman seria capaz de fazer comigo?
Com a minha família?
— Mas sua filha merece uma mãe um pouco mais... — volto minha
atenção à mulher de preto — decidida.
— Não pense que pode me dizer como criar minha filha, Kim.
— Então não ache que pode dizer o que devo ou não fazer quanto ao
meu irmão.
Consegui um nome: Jason. Mas ainda não sei como ele se encaixa no
plano de Jude; não sei como eu mesmo me encaixo. Só vou conseguir o
resto da história se for direto à fonte, mas a fonte talvez esteja fechada para
mim.
Preciso tentar mais uma vez, certo? Ao menos mais uma vez.
Mas por que eu tenho que tentar? Por que ele não me procura?
É pedir demais que Jude demonstre ao menos uma vez que precisa de
mim? É realmente pedir demais?
Procurar por Jude foi a primeira coisa que Brianna fez, e também
exatamente o que ele queria. Ele não está tentando fugir dela — está
tentando atraí-la. Penso em todas aquelas fodas no escritório, as em sua
casa, em quando me levou para a festa de sua filha, e em quando me
expunha como uma espécie de troféu a cada oportunidade que tinha: ele
queria que ela soubesse, queria que todos soubessem.
Esse filho da puta estúpido e egoísta quer me usar para atrair Brianna
direto para as suas garras? Essa é a minha parte em seu plano? Ser a isca?
A chamada toca, toca, toca, mas ninguém atende. Ele não me atende.
Meus olhos são atraídos direto para o sedan, meu meio de transporte
até Jude. Parecia tão próximo até Olivia se enfiar em meu campo de visão e
obstruir a imagem do veículo.
— Não, não. — Bufo. Abro espaço para ela passar pela porta. — Foi
mal. Pode entrar. — Olivia força um sorrisinho agradecido no canto dos lábios
e segue minha deixa. Observo suas costas enquanto entra na casa e fecho a
porta atrás de mim. Sigo-a em direção ao balcão de mármore que separa a
cozinha da sala. — Aconteceu alguma coisa?
Sai daqui!, o tom hostil de Jude ecoa em minha mente como uma
sirene. Tão feroz, tão egocêntrico. Tão distante.
— Kim? — e então a voz suave de Ollie, tão calma, tão familiar, tão
próxima.
— Viu? Não demorou nada, seu idiota — diz. Mesmo diante da minha
resistência, ela passa o polegar sobre o clipe nasal, se certificando de que
está bem fixo sobre as narinas. — Por que é sempre um porre te convencer a
se sentar, calar a boca e me deixar fazer o meu trabalho? — Se afasta e
cruza os braços.
— Pare de exagerar.
— O quê?
Ela aperta meu rosto de maneira mais firme e me faz virar totalmente
para encará-la. Ollie se afasta alguns centímetros sobre o colchão, segura a
barra da camisa preta e puxa-a para cima, revelando seu torso liso e pintado
pelas tatuagens daquela organização maldita — os seios estão protegidos
por um sutiã preto e justo.
— Eu sei.
Quando seus dedos relaxam sobre os meus, consigo puxar minha mão
para longe. Ela estreita os olhos em minha direção. Consigo ver sua
respiração se aprofundar.
— Vou tentar.
Umedeço os lábios.
10 ligações perdidas.
10M A L D I TA S , F O D I D A S , M I S E R Á V E I S L I G A Ç Õ E S perdidas.
— Jude.
Não ouço nada, nenhum chiado sequer. Fito a tela: está acesa e
indicando que a ligação está tocando, embora não haja som algum saindo de
seus alto-falantes.
10 ligações.
10 chamadas perdidas.
E se estiver em perigo?
E se quiser se desculpar?
Fito-o. Conforme ele nota meu estado transtornado, fica mais alerta.
— Kim...?
O número para o qual você ligou não está disponível no momento, por
favor, deixe um correio de voz depois do—
— Pra quem está ligando? — a voz fria e ríspida assopra atrás de mim
como a brisa da morte em um dos meus pesadelos.
Ela repete meu gesto com sua taça, tomando um gole que parece
surpreendê-la. Ao afastar a borda de cristal dos lábios, observa a taça com
uma contemplação sobressaltada.
— Elas não são sua nora e neta, se bem me lembro. Você não é minha
mãe.
Engulo em seco, mas não consigo engolir tudo o que preciso para me
recompor. Então uso mais um gole de álcool para fazê-lo.
— Sério?
Suas íris não pairam sobre meu punho uma única vez, seguem fixas
no meu rosto. Contrai os lábios; eles perdem a cor. É o pouco indício de falta
de decoro que Brianna Goldman se permite expor.
— Que pena. Senti tanta falta da minha querida tia nos últimos meses
— resmungo.
— Como o quê?
Ergo o olhar até o rosto cruel da minha tia e vejo ali a sombra de algo
que nunca vi antes, algo que me deixa atento. Aperto os lábios sem sequer
perceber.
— Você tem o tom cínico do seu pai quando mente. O mesmo apertar
de lábios quando está tenso, também.
O vinho para de girar em minhas mãos. Sei que o que ela diz é uma
ameaça silenciosa, seu modo de exercer dominância mesmo numa conversa
casual. Não existe trivialidade ou conversa fiada quando se trata de Brianna,
tudo sempre é um jogo. Um jogo em que seus interesses devem sempre ser
os vencedores.
Estica um dos braços sobre a mesa. Encaro suas unhas pretas num
contraste terrível contra a toalha de mesa branca. Imagino qual seria a
sensação de arrancá-las uma a uma com um alicate.
— Sobre quem?
— Você.
— Um tom diferente?
— Um tom difamatório.
— Por que está agindo de forma tão defensiva quando nossa conversa
apenas começou? — questiona lenta e séria como um felino que brinca com
sua presa. Arrasta as garras afiadas sobre mim, me fazendo sangrar um
ferimento por vez. Há uma nuance de repreensão em suas palavras, em seus
lábios cruéis e na forma como parece se alimentar do meu nervosismo
reprimido.
— Um homem que não entra em defensiva quando está com você, tia,
é um idiota.
E eu sabia que ela faria isso. Minha tia está ficando mais previsível a
cada vez que tenta me machucar.
Meu sorriso se alarga quando vejo uma mancha rosada crescer a partir
de seu pescoço e alcançar suas bochechas. Ela descruza os braços e cerra
os punhos sobre a mesa. Parte de seu rosto está encoberto por sombras
quando diz:
Ela realmente acha que vou permitir que toque em mim novamente?
— Se livre do cão.
Por alguns segundos, a tensão sobre ela me faz acreditar que vai
mesmo pular em cima de mim e cortar meu pescoço com a faca de prata ao
seu alcance. Pouco importa que estejamos no meio do restaurante e
rodeados de espectadores.
Ela estreita o olhar e, sem replicar nada, o desvia para as mesas mais
próximas. Talvez estupefata, talvez contemplativa. É difícil de dizer sob a
meia-luz do restaurante. Encaro a lateral exposta de seu pescoço.
— Sei o que está passando na sua cabeça — sussurro. — Que há
apenas duas explicações plausíveis pra isso: ou estou falando a verdade... —
ela retorna a atenção a mim bruscamente — ou aprendi a enganá-la tão bem
que não sabe mais se o que estou dizendo é verdade ou mentira. Qual das
duas possibilidades te assusta mais?
Minha desconfiança estava certa. Essa puta tentou mesmo matar Kim.
Estou ocupado demais tentando não ser engolido por seu olhar
asfixiante ou seu hálito repulsivo para perceber o movimento de seus dedos
sobre a mesa. Recosto-me na cadeira para me afastar dela. Alguns segundos
depois, sinto, no topo da cabeça, algo líquido, que se intensifica e se espalha,
desce pelas laterais do meu rosto, pescoço, ombros, pelo meu torso inteiro. A
sensação gelada e arrepiante me atravessa.
Brianna não desvia os olhos dos meus por um maldito segundo sequer
enquanto me banha com o vinho da própria taça. Pelo contrário: quando o
líquido escorre pelo meu rosto, ela parece ainda mais interessada, como se
eu fosse uma obra de arte que ela estivesse pintando. Seus dedos são os
pincéis. Meu corpo, sua tela.
Minha mente emudece depois dessa breve fantasia. Não penso, não
reajo, não sinto. Tudo o que consigo fazer é existir. Existir por mais um
tempo, até que essa desgraçada receba tudo o que merece.
Direciono a ele um olhar tão feroz, tão alterado, tão cheio de fúria e
rancor e mágoa e medo e ansiedade que ele interrompe seus passos
imediatamente e ergue as mãos no ar em sinal de rendição.
Meu peito pesa, ciente de que Kim está sob risco de morte. Não será
difícil para minha tia descobrir tudo sobre sua vida, sumir com ele antes que
eu possa sequer pensar em fazer alguma coisa. Eu já sabia que isso iria
acontecer. Mas então por que me sinto assim? Por que não sinto apatia? Por
que me importo tanto?
“Quero saber mais da sua vida”, ele me disse. “Não sou seu inimigo”.
E não posso ser quebrado. Não agora. Não quando estou tão perto.
— Filho da puta.
I S PA R O PA R A F O R A D O R E S TA U R A N T E me sentindo duplamente humilhado.
D
Os olhares curiosos das pessoas ao redor acompanham meus
passos até me verem deixar o local. A ira em meu olhar faz o corredor que
leva até o elevador parecer vermelho, manchado de sangue. Posso ouvir
seus sussurros cruéis se erguerem às minhas costas até, por fim,
desaparecerem. Apesar do rubor em meu rosto, meus passos são firmes e
decididos. Entro no elevador.
Ela não blefa, então sei que eliminar Kim é um item prioritário em sua
lista.
Preciso avisá-lo sobre isso. Não deveria, mas preciso. Não é parte do
plano, mas preciso. Isso só fará as coisas piorarem, mas preciso.
Reviro os olhos.
— Sim. Venha buscá-los. — Sua voz se torna mais baixa, mais grave.
— No ringue — sussurra.
— Não.
— Pro inferno.
ISSO NÃO É A VIDA REAL
meus demônios estão implorando pra que eu abra a boca
preciso que eles deixem as palavras saírem mecanicamente
eles lutam contra mim, furiosos
lambem as chamas que eles mesmo criam
vendi minha alma ao Diabo
e ele me disse que eu era santo
me fez ficar de joelhos
hold me down — halsey
Isto não é um esporte. Acho que ninguém discordaria disso. Está mais
para um espetáculo — sádico e sangrento, perverso e violento, incômodo e
visceral. E é bem-sucedido nisso pelo menos. A luta entretém. Você não
precisa se preocupar com nada em meio à escuridão da arquibancada ou aos
gritos dos outros sociopatas ao seu lado. Pode esquecer de seus problemas
fora destas paredes, de sua vida na superfície. Sua vida agora consiste em
tentar adivinhar qual miserável terminará esta noite com a garganta cortada;
seu único problema é apostar no cão certo, aquele cheio de fúria e garra
suficiente para ver a luz do sol mais uma vez. Por 364 dias, este foi Kim.
Estava prestes a ganhar sua 365ª luta... quando seu olhar se cruzou
com o meu. E o mundo parou por um instante; ficamos congelados nessa
troca de olhares. Eu existia apenas para ele. Ele existia apenas para mim.
Senti algo que esqueci que podia sentir; algo que estivera cozinhando
dentro de mim por muitos anos — desde que perdi Jason. E por mais que eu
não quisesse admitir — e ainda não quero —, eu estava rendido.
Então o primeiro soco atingiu seu rosto, tão forte que o atirou no chão.
Vários outros se seguiram, até seu rosto se tornar uma poça de sangue.
Ele vai ser morto, é tudo no que eu conseguia pensar. Não posso
permitir que isso aconteça.
Mas imagino Kim outra vez no lugar daquele desgraçado tendo seu
queixo quebrado e mandíbula partida em dois enquanto a plateia aplaude e
explode em excitação. Fico enojado. Eu colocaria estas paredes abaixo com
minhas próprias mãos antes de permitir que isso acontecesse; arrebentaria
as cordas do ringue e o incendiaria. Se alguém se metesse em minha frente,
teria a garganta destroçada.
Rio.
— Você devia falar isso a ele. Tô certo de que vai adorar descobrir que
sua morte vai ser só de mentirinha. — Gargalha.
Suspiro.
Viro-me para ele. Dom tem a cabeça apoiada em uma das mãos, os
lábios esticados num sorriso safado. O torso peludo e coberto pelas
tatuagens da máfia está exposto, mas, da cintura para baixo, está coberto
com os lençóis, a silhueta de seu pau semiereto desenhada sob o tecido.
— Já deu pra mim essa noite — digo com desdém. — Estou exausto.
Suspiro uma terceira vez, sem lhe dar mais do que um olhar de relance
irritado. Fecho a pulseira do relógio no pulso e fito a tela apagada do meu
celular. Meus dedos se aproximam dela, mas param no meio do caminho.
Não posso lidar com mais merdas hoje. Coloco o celular no bolso sem checar
as notificações.
— Por quê?
— Eu tava dentro de você até agora. Isso aqui não é nada — sussurra,
seu hálito quente arrepia os pelos sensíveis na minha nuca.
— Quem tá tentando enganar quando diz que a gente não foi feito um
pro outro? Cê foi feito pra mim.
Tenho que me controlar para não socar seu rosto e retirá-lo da minha
frente à força. Meus punhos se cerram, no entanto.
Kim.
Kim.
Kim.
— Vou ficar. — Caminho para fora do quarto sem olhar para Dom
diretamente. — Em breve.
— Não brinque comigo — resmunga contra minha face, seu hálito forte
me deixando enebriado. Posso sentir em sua voz ríspida toda a frustração
que está sentindo. Além da voz, o peito exasperado é uma boa indicação
disso.
— Nem um pouco.
— Senhor?
E desliga.
Eu preciso ser assim. Preciso aprender a ser uma máquina como ele.
Nenhum ser humano é capaz de sair vitorioso de uma briga contra Brianna
Goldman.
Minha morte está próxima. Sei disso. Estou metido num buraco do qual
nunca conseguirei sair.
Desço do carro.
E tudo isso faz minha dor piorar. A cada vez que o som irritante do
elevador indica a passagem de um novo andar, preciso apertar bem os olhos
para ter algum alívio. Vou me dopar de remédios e cair na cama. Talvez nem
consiga tomar banho. Minhas palmas suam frio, e a pasta em minha mão
esquerda torna-se pegajosa. A mão direita está no bolso; minha nuca,
curvada sutilmente para baixo, fugindo das luzes no teto do elevador.
Meus passos solitários ecoam pelo corredor. Já menti tanto para Kim
que isso sequer parece relevante. Alcanço a porta. O que ele deve estar
fazendo neste momento? Minha cabeça martela. Talvez espere que eu ligue
de volta para ele. Pego minhas chaves no bolso e levo uma delas à
fechadura. Esse é o tipo de merda que eu não posso mais me dar ao luxo de
fazer.
— Kim? — chamo.
Bufo alto para que ele me ouça e afasto a bunda de seu pau.
— Por que está com a camisa dele? Por que procurou ele e não a
mim?
Levo alguns segundos até entender do que ele está falando. Ainda
estou com a maldita camisa de Dom. Me seguro no balcão da pia com as
mãos, pronto para me virar e confrontá-lo.
Me curvo o suficiente para fitar seu rosto; seus olhos estão furiosos,
sombrios, cruéis. Kim está diferente de todas as vezes em que o fitei,
completamente estranho em relação ao homem que achei que conhecesse.
Seu rosto está contraído numa ira vertiginosa, o tipo de ira que leva à
loucura. As veias saltadas na testa, no pescoço e nos braços parecem
prestes a explodir.
— Que merda Jude — rosna contra meu ouvido. — Por que fez isso?
Por que foi até ele? Hein? — Seu tom agressivo, irritado, faz minha pele
vibrar. — Foi por que não atendi? A culpa é minha? Você devia ter insistido
um pouco mais, não devia ter corrido pros braços dele desse jeito.
— Me solte, Kim — digo baixo e grave, sem emoção, sem dor. — Essa
é a última vez que vou pedir. — E o fito de relance outra vez.
Ele se afasta apenas o suficiente para morder meu lábio, mas para no
limite tênue antes de me machucar. Uma descarga elétrica irradia pelo meu
corpo a partir desse local. Seu torso está comprimido contra minhas costas;
tão comprimido que consigo sentir cada traço delineado de seus músculos;
tão comprimido que cada uma de suas inspirações e expirações exasperadas
causa uma fricção delirante contra minha pele sensível; tão comprimido que
sua pelve se esmaga conta minha bunda; tão comprimido... que sinto cada
batimento de seu coração acelerado.
— Que se foda seu contrato — balbucia contra meu ouvido; seu hálito
quente me deixa arrepiado.
— O que deu em você hoje? Enlouqueceu? Pra onde foi toda aquela
preocupação e cuidado? — Contraio os lábios. Ele me fita cauteloso, mas
sem uma pífia fração de medo. Esfrego a região no pescoço castigada pelos
seus dentes. — Já disse que não quero mais ter que lidar com seus ciúmes.
— Sim.
— Por quê?
Expiro fundo.
— Porque não estamos juntos, seu filho da puta estúpido. Seu cérebro
é pequeno demais pra entender isso?
Sua mão força meu braço para o lado, afastando a lâmina de sua
garganta. Minhas opções são degolá-lo ou seguir sua deixa. Por mais que
minha mente me ordene a decidir pela primeira opção, as pequenas gotas de
sangue que vazam do corte delgado que fiz em seu pescoço são o suficiente
para fazerem minhas entranhas se contorcerem. Cheguei ao ponto de não
conseguir sequer imaginar matar esse filho da puta. Isso é preocupante,
especialmente se ele tiver mais surtos de ciúmes como esse.
— Quero que você seja meu — murmura tenso e baixo, como uma
lâmina deslizando por uma ferida aberta. Aproxima o nariz do meu pescoço.
Inclino as costas para trás, sobre a pia, quando sua pele roça a minha. —
Quero que o único cheiro em você seja o meu. — A mão livre desce pelo
interior da camisa, abre botão por botão até expor meu torso completamente.
— Quero que use minhas roupas baratas, que se molde a mim. — Afasta o
rosto da minha garganta, me fita intensamente. — Quero que corra pra mim
quando precisar de alguém, de qualquer coisa. — A mão que abriu a camisa
desliza sobre a calça, apertando o resquício da minha ereção. Ergue as
sobrancelhas quando confessa: — Quero que goze somente comigo.
Minhas têmporas pulsam. Sinto uma brisa fria envolver meu corpo,
embora as janelas e portas do apartamento estejam fechadas. Meu peito
afunda numa frustração enlouquecedora. Encaro bem sua camisa amassada,
todas as dobras e vincos nela. Subo o olhar enfurecido até suas íris trêmulas.
Arregala os olhos.
— Não quero ouvir mais uma palavra sequer. Você se acha tão
moralmente superior, não é? Detentor da razão e da verdade. Sempre o justo
e altruísta, incompreendido, injustiçado. Pobre Kim, abandonado pela mãe.
Pobre Kim, filho de um bêbado que se importava mais com putas do que com
ele. Pobre Kim, arrastado pro ringue dos Snakes sem escolha. Mas quer
saber de uma coisa? A sua vida fodida não te abstém de nada e não te torna
superior a ninguém. Você é só mais um traidor e mentiroso... igualzinho o seu
pai.
Ele esfrega a boca e fica calado por um tempo, até caminhar para
longe. Me apresso e golpeio suas costas, empurrando-o para mais longe com
toda a força restante em meus músculos. Ele acelera à frente, antes de parar.
A mão em seu rosto cai para o lado, inerte como a outra. Vejo seus ombros
voltarem a se tensionar.
Reviro os olhos.
Só noto que Kim não deu outro passo sequer para longe de mim
quando sua voz ressoa sobre o latejar da minha mente:
— Vou sair. Mas não vou voltar — diz calmamente. Com o gosto
amargo da aspirina na boca, me viro em sua direção. Ele me encara sobre os
ombros. — Não pra cá pelo menos. — Suspira como o perdedor de uma luta.
— Pra mim, isso acabou aqui. Não vou mais transar com você. — Cerro os
punhos. Meu rosto se contorce numa careta de fúria, e Kim a analisa com
cuidado. Antes que eu possa rebater com alguma das atrocidades que
passam pela minha mente, ele completa: — Vou pagar minha dívida com
trabalho. Estou cansado de ser seu pau acessório. Você pode achar um
desses em qualquer esquina lá fora. Não sou seu puto.
Ele se volta para mim e ergue o queixo. Seu olhar é analítico demais,
pretensioso demais. Sinto um desejo visceral de pegar de volta a faca e
cortar seus dois malditos olhos fora.
— Está me subestimando?
É como ser emparedado por sua postura fria, fuzilado por suas
palavras cruéis. Nunca me senti dessa forma, nem mesmo com Brianna ou
Florence. Ninguém nunca importou o suficiente para que eu me importasse
com o que tivesse a dizer. E aqui estou, me importando pela primeira vez e
recebendo tudo o que mereço por isso.
Seguro a respiração e fito o fundo de suas íris escuras, íris que podem
me foder, que podem foder com todo esse plano amaldiçoado. Íris que eu
deveria deixar partir, para o bem dele e para o meu. Mas não posso.
— Medo é a última coisa que tenho. Mas esse é o meu limite. Estou
farto de toda essa merda. — Vira de costas, então caminha em direção à
porta do apartamento. — Estou farto de você.
— Está errado.
E sei que ele está usando estes breves segundos de silêncio para
tentar se recompor a partir dos pedaços, esconder a fúria que tão
subitamente deixou explodir, colocar todas as peças de seu quebra-cabeça
complexo no lugar em que estavam antes de serem violentamente
bagunçadas. Não posso permitir que ele o faça. Não posso permitir que volte
a ser o Jude de antes. Se eu o fizer, então não haverá mais falácias: o terei
perdido para sempre. Inspiro fundo.
Esse olhar faz um gosto amargo subir à minha boca. Não permito que
me atinja demais, no entanto. Não permito que ele me manipule com mais
olhares como esse, com palavras como essas.
— Jude.
— Jude...
— Me solte! — Soca meus ombros, meus braços. Sua voz sai sôfrega,
angustiada. — Me solte... — Finalmente parece cansar de se debater.
Espalma meu peito; sua respiração quente e profunda reverbera entre nossos
corpos, sem espaço para escapar. — Por favor... — Suas mãos se arrastam
pelo meu peito lentamente até alcançarem o pescoço. As unhas se cravam
em minha nuca e ele me aperta mais forte do que jamais apertou. Puxa
minha cabeça para baixo bruscamente, desesperado. — Por favor não vá. —
Seus lábios descansam próximos de meu ouvido. — Prometa que não vai
embora.
— Agora você diz isso? — digo quando a risada cessa. Afasto nossos
rostos, mas mantenho seu corpo preso em meus braços. Encaro-o. —
Pensou nisso quando comprou minha dívida dos Snakes? Pensou nisso em
todas as vezes que fodeu comigo?
Jude continua em silêncio, me observa com olhos simultaneamente
duvidosos e solícitos. Olhos perdidos, incertos.
Jude fecha os olhos e respira fundo. Sob meu toque, ele amolece, a
tensão em seus músculos se dissolve — assim como a dos meus. Nossos
corpos então se distanciam naturalmente.
Quando volta a abrir os olhos, Jude afasta minha mão de seu rosto.
— Não é tão fácil assim — resmunga, o olhar fixo nos afiados cacos de
vidro no chão. — Eu já te dei coisa demais. — Soa mais como uma
contemplação do que como uma recusa. Caminha para longe de mim com
um ar melancólico.
Não sou estranho à violência parental, não depois do inferno que vivi
com meu pai. Mas nunca pensei que Jude, especialmente Jude... Nunca
imaginei que ele tivesse passado por um inferno parecido. Meu coração
afunda, aperto bem os olhos e encubro minhas pálpebras fechadas com as
mãos.
— É isso que Brianna faz — Jude comenta num tom ainda mais
amargo —: ela se livra de quem entra no caminho dela e apaga todos os
registros. Não foi a primeira vez que fez isso com alguém.
Aceno sutilmente.
Ele parece frágil ao abrir seu corpo e seus segredos mais íntimos para
mim. Talvez confidenciar isso em voz alta lhe cause dor — não pensei nessa
possibilidade antes. E, honestamente, se causar dor, se estiver sofrendo, que
seja. Eu o quero por inteiro, de todas as formas, com todas as dores e todos
os demônios.
— Porque ela quer ter controle completo sobre a minha vida. Brianna
não aceita a ideia de ter um filho que não seja exatamente como quer. E,
para a minha sorte, desde que assassinou meus pais pelo dinheiro, sou o
mais próximo que tem de um. — Faz uma breve pausa. Quando volta a falar,
sua voz está mais ríspida, baixa: — Há poucas coisas tão perigosas quanto
uma pessoa muito homofóbica... e tão poderosa.
Você não devia ter visto isso, sua voz aterrorizada retorna à minha
mente.
— E meu irmão?
— Bom.
— Foi por isso que dormi com Dom. Antes, e hoje de novo. Por essa
maldita pasta.
— Não tenho mais que foder com ele, Kim — sussurra quando toco o
plástico acobreado, e seus olhos finalmente reencontram os meus. Estão
frios, assim como sua voz. — E não vou. — Trinca os dentes e ergue as
sobrancelhas. — Está feliz?
Expiro fundo.
Kim, sua voz suave, calma e familiar ressoa em meu ouvido como uma
alucinação.
Está bem aqui nesta foto, me encarando de volta com as feições sérias
e afiadas, o cabelo preso atrás da cabeça num coque, os olhos castanhos e
letais.
Fico nauseado.
Trinco a mandíbula.
O que Jude planeja fazer com essa informação? O que planeja fazer
com Olivia? Vai matá-la?
— Kim? — uma voz suave, calma e familiar ressoa ao meu lado.
— Prometa que não vai embora. Prometa que vai ficar comigo.
— O quê?
Desço o polegar até o furinho em seu queixo e puxo sua boca até a
minha. Envolvo-a, domino-a, penetro-a com a minha. Seu gosto doce e
inebriante me atinge imediatamente; faz meu coração palpitar, minha pele
arrepiar, meu cérebro derreter. Pressiono o rosto contra o seu em busca de
mais. Meus pés flutuam no chão da cozinha. Pequenas descargas elétricas
atravessam meus dedos quando toco sua pele — a cintura sob a camisa, o
pescoço sob o colarinho.
Afasto nossas bocas o suficiente para fitar o fundo de seus olhos. Pela
primeira vez, vejo o que reside sob sua armadura de ouro e gelo: o jovem
inocente, assustado, sangrando naquele local escuro por dias sem ninguém
para ajudá-lo, forçado a reprimir tudo o que é para conseguir sobreviver. Eu o
vejo.
— Não.
Assinto sutilmente.
— Eu sou.
— Nunca me deixe, Kim Henney. — Jude agarra mais meu moletom e
sussurra em meu pescoço: — Não me solte.
— Nunca.
— Jamais.
— Prometa.
Uma de suas mãos desliza pelo meu pescoço, pelo meu ombro, pelo
meu peito. Em resposta, as pontas dos meus dedos se afundam um pouco
mais em sua bunda.
A mão que estava em meu peito sobe até a lateral do meu rosto. Um
sorriso malicioso se desenha em sua boca.
Jude se empurra contra mim. Sua ereção roça em meu abdome. Sinto
a minha dolorosa sob a calça, implorando por alívio, qualquer tipo de alívio.
Não. Não qualquer tipo de alívio. Implorando por ele. Apenas por ele.
— Desculpa por não ter atendido. Desculpa por não estar disponível
quando precisou de mim — sussurro contra seu rosto. — Nunca mais vou te
deixar longe da minha vista de novo, não importa o quão teimoso ou
desagradável você seja.
Reviro os olhos.
Ele estreita os olhos, mas não tem tempo de rebater. Alcanço a cama e
deito-o delicadamente. Suas costas tocam o colchão, seus braços se soltam
do meu pescoço. Jude se arrasta para trás pelos cotovelos. Mantém o olhar
centrado em mim, os lábios entreabertos como se sentisse falta da minha
língua entre eles, como se não conseguisse viver sem ela. Ele se arrasta até
a cabeceira, o olhar arrogantemente desejoso de um príncipe que espera ser
servido.
Eu vou te servir, pequeno príncipe.
Olho para baixo. Espalmo meu próprio peito, arrastando a mão sobre a
pele, desenhando os músculos, agarrando as partes sensíveis. Desço-a para
o abdome, para a pelve, e brinco com o botão do jeans. Meu pau duro pulsa
antes mesmo de ser tocado.
Fito Jude, mas ele não me fita de volta. Está absorto, centrado no
volume em minha calça — a boca ainda mais aberta, os lábios brilhantes e
umedecidos.
Jude finalmente ergue os olhos até os meus outra vez. Há uma mistura
de ódio e anseio em seu olhar. Meu sorriso cínico se alarga.
Retiro os coturnos com a ajuda dos pés. Abro o botão da calça jeans,
deslizo o zíper para baixo e retiro a peça, jogando-a sobre as outras duas.
De cueca, apoio um joelho de cada vez na cama, então uma mão de
cada vez. De quatro, engatinho sobre Jude. A cada centímetro que me
aproximo, seu corpo afunda e relaxa mais. Sua boca praticamente suplica
pela minha. Seu peito acelerado clama pelo meu. Suas pernas se abrem e se
arrastam pelas minhas, se fechando ao redor da minha cintura, implorando
por mim assim como eu imploro por ele.
Minha mão agarra seu pescoço com mais força e seus dedos puxam
meus fios um pouco mais. Suas pernas estrangulam minha cintura, me
puxam mais e mais contra si. Não sei o que é dor, não sei o que é prazer. Sei
apenas que lágrimas suaves se formam em meus olhos e se derramam pelas
minhas bochechas, alcançando nossas bocas e se misturando à saliva.
Quando percebe o gosto salgado, Jude puxa minha cabeça para trás.
Observo seu rosto, e noto que também possui lágrimas acumuladas nos
olhos — embora não haja um traço úmido sequer em suas bochechas.
De alguma forma, isso parece mais íntimo do que sexo. Mais privado
do que sexo.
Inclino o pescoço para o lado, mas não respondo nada. Talvez seja
melhor que eu continue sem dizer nada pelo resto da noite. Posso ter
passado um pouco do limite, sim.
— Não te pedi pra parar — meio que repreende, meio que ordena.
Antes que eu possa responder, ele continua: — Os administradores do ringue
não me avisaram que você era tão territorial quando te comprei.
E, por mais fodida que seja, essa afirmação retira uma risada genuína
do meu peito.
— Eles eram mafiosos que não sabiam porra nenhuma sobre mim.
— Conheço cada pedaço seu — diz. Suas mãos descem das minhas
costas, seguindo a linha da coluna. Alcançam a lombar, e a bunda. Os dedos
caminham sob o tecido fino da minha cueca, puxando-a para baixo,
apertando e arranhando, reiterando tudo o que fala. — Conheço cada
centímetro de pele, cada extremidade da sua boca. Sei o seu gosto, sei o que
pensa, sei o que quer e o que não quer. E quero te conhecer mais ainda.
Sua respiração úmida e morna me deixa com sede. Sede por ele.
Sede por tudo o que tem a me dar nesta noite. Uma sede que somente ele
pode aplacar.
Seus lábios roçam nos meus. Viro o rosto em sua direção, tentando
consumar o beijo. Ele não permite, desviando a cabeça para o lado oposto.
Acentuo o toque em seu pescoço, movo os quadris contra os seus. Não vou
conseguir me controlar por muito mais tempo.
Meu cenho se franze. Ele ainda tem alguma dúvida? Ainda acha que
vou deixá-lo? E, então: O que posso fazer para convencê-lo de que vou
cumprir a porra do que disse?
Entreabro os lábios.
Envolvo seu peito como se não fosse soltá-lo nunca mais. Cravo os
dentes em sua nuca como se fosse arrancar um pedaço de sua carne. Sinto
o gosto salgado e adstringente de seu suor na ponta da língua — e é o
melhor sabor que já provei na vida.
Meu pau entra e sai de Jude como se seu corpo tivesse sido feito
exatamente para isso, moldado aos mínimos detalhes para mim, como se sua
respiração fosse minha, como se seu prazer fosse meu — e realmente é. Ele
é meu. Quando o penetro fundo e um som estridente de carne se chocando
contra carne ecoa pelo apartamento, assim como seu grito abafado pelo rosto
colado no colchão, tenho a confirmação disso.
Uso todo o meu autocontrole para parar nessa última estocada. Minha
cintura repousa pressionada contra sua bunda. Meu pau lateja em seu
interior. Estou perto demais de gozar. Mais três ou quatro movimentos e não
vou conseguir me segurar. Apoio o rosto na parte de trás da sua cabeça e
respiro profundamente. Aspiro o cheiro adocicado e fresco de lavanda em
seus fios úmidos. Meu peito esmaga seus ombros contra a cama.
— Mais forte.
— Mais forte.
— Mais forte.
E, então, a um vermelho-vivo.
— Mais forte.
Até quando, finalmente, a dor parece incomodar e ele afunda o rosto
no colchão outra vez.
Deslizo para fora dele. Jude geme. Deito ao seu lado, passando um
braço sob seu pescoço. Envolvo suas costas, repousando a mão em sua
cintura, e puxo-o para mais perto. Ele fica de lado na cama, de frente para
mim, e me beija. Sua língua morna e ávida percorre minha boca como se
quisesse fazer isso há algum tempo.
Como seus olhos podem ser tão frios enquanto seu corpo é tão
quente?
Seu olhar repousa sobre meu peito por um breve momento. Ele pensa
um pouco antes de responder:
Grunho baixinho, apenas para que ele saiba o efeito que essa voz e
essas palavras me causam.
Impulsiono meu quadril para cima, fodendo sua mão. Com cuidado,
envolvendo sua cintura com as duas mãos, me viro até estar sobre seu corpo.
Seus dedos soltam meu pau. Jude me abraça, abre as pernas e me envolve
com elas.
— Vou te enforcar — murmuro contra sua pele. Olho para ele de baixo
para cima. — Mas não hoje. — Subo a mão de sua perna até o pescoço,
tateando as marcas. — Uma vez já é o suficiente.
Ele não concorda nem discorda. Parece preso entre o desejo de teimar
comigo e me obrigar a enforcá-lo; ou se preservar e aceitar minha decisão.
Na verdade, enquanto seus lábios se abrem, não tenho certeza de qual dos
dois impulsos vencerá no final. E talvez ele também não. Mantém a boca
aberta por um tempo, os lábios rosados e úmidos estranhamente mudos.
Tento não me deixar afetar demais por isso, por precisar mentir para
ele agora. Jude definitivamente mataria Olivia se descobrisse que já fodi com
ela.
— Ainda quero que diga que sou seu único — diz quando nos
separamos.
Desta vez, há em sua voz certa severidade, que se abranda diante da
intimidade. Ele está me manipulando.
— Quero que diga que sou o único que vai foder daqui pra frente.
— Então me diz que sou o único pra quem você vai mostrar essa
carinha. Diga que sou o único que tem permissão pra entrar em você. O
único. — Volto a fodê-lo, num ritmo lento e profundo, tomando meu tempo
para mapear cada centímetro do interior de seu corpo, incluindo o ponto
macio e arredondado que o faz se arrepiar e apertar meus ombros. — Toda
vez que entro em você, perco um pouco mais do controle. — Aproximo o
rosto do vão de seu pescoço. — Enlouqueço apenas de te imaginar com
outra pessoa — sussurro contra seu ouvido.
Suspira.
— Você é o único que pode me foder. O único que pode ver meu rosto
enquanto me come. O único... — Retiro totalmente o pau e penetro-o, tudo de
uma vez. — Ah! — Ele não consegue conter o grito. — Filho da puta.
Jude bufa, mas não consegue manter a pose emburrada por muito
tempo. Pisca longamente e completa:
— Não importa o que você ouça sobre mim. Não importa o que
descubra sobre mim, sobre o meu passado. Se lembre do que acabou de
dizer. — Seus dedos passeiam pelos meus fios e seus olhos se distanciam.
Vincos profundos se desenham em minha testa. A expressão dele, no
entanto, assim como a voz, continua serena: — Se lembre de que sou seu, e
de que você é meu.
Jude me puxa para mais um beijo, suave e doce, embora eu saiba que
por trás da suavidade há espinhos, e por trás da doçura há um amargor
nauseante.
— Por que está falando assim? — pergunto assim que nossos lábios
se descolam. Um pouco preocupado, um pouco desconfiado, meu peito
acelera.
— Sou um homem ruim, Kim. Um dos piores que vai encontrar na vida.
Talvez pior do que aqueles que te tornaram um cão nos ringues. Sou ingrato,
egoísta e desprezível segundo minha própria tia. — Me abraça, afundando o
rosto em meu ombro. — Talvez você seja bom demais pra mim.
Penso muito no que dizer a seguir. “Eu te amo” soa adequado. “Não
consegue ver que eu te amo, seu idiota filho da puta?” soa ainda mais
adequado. Mas talvez esteja cedo demais. Temos todo o tempo do mundo
afinal de contas.
— Nada disso tem sentido pra mim. Não importa quem você é, quem
foi, quem será. Nada importa... desde que esteja comigo, desde que seja
meu.
— Sim, entendi.
SEU
você manda em tudo, amor
eu só quero ser seu
segredos que guardei no coração
são mais difíceis de esconder do que pensei
talvez eu só queira ser seu
eu quero ser seu
i wanna be yours — arctic monkeys
Essa foi uma das piores noites da minha vida, e uma das melhores
simultaneamente. De tudo o que aconteceu, há apenas uma coisa da qual
quero me lembrar quando acordar pela manhã, e ela é quente sob meus
dedos.
Kim esfrega meu ombro com uma delicadeza estranha ao homem que
achei conhecer. Uma delicadeza que, por lógica, não poderia existir; que
poderia ter sido suprimida por todos os calos e cicatrizes em seu corpo. Ele
não consegue esconder de mim esses calos e cicatrizes quando estamos
juntos, quando está despido — física e moralmente. Tremo quando imagino o
inferno pelo qual Kim passou naquele ringue e penso na forma como isso
poderia tê-lo destruído, dizimado qualquer traço de decência e humanidade
em seu interior.
Não há razões para questionar. Eu sei que é. Sei que ele não merece
isso.
Mas eu o avisei.
— É minha especialidade.
Kim me abraça com força. Durmo sobre seu peito desejando que a
manhã nunca chegue.
REAL
por favor, diga que sou seu amor
olhe por quanto tempo você me deixou esperando
me dei completamente a você
eu conhecia seu amor antes mesmo de te beijar
e até agora tudo o que você fez foi me deixar com saudade
[...]
porque estou doente de amor
e sequer tenho vergonha disso
estou ansioso pra passar um tempo nos seus lençóis
porque estou doente de amor
lovesick — BANKS
Meus olhos estão abertos, distraídos pelo quarto iluminado pela luz do
sol ainda fraca. São 6h, talvez 6h30 de uma manhã de segunda. Logo temos
que estar no prédio da Goldman, mas o tempo parece congelado. Já senti
isso antes, em raras ocasiões. E sempre antes de algo trágico. Por isso,
estou aterrorizado.
— Não sei. — Toco seu queixo e puxo-o para cima. Beijo-o outra vez.
Seus lábios causam pequenas descargas elétricas nos meus. Me curvo um
pouco até encostar nossas testas. — Ter você nos meus braços ainda não
parece real o suficiente.
— Não. Foi o melhor sono que tive em meses. E foi por sua causa. —
Batuca minha mandíbula com o indicador.
Não, não amor. Felicidade. Isso é o que você sente quando está feliz.
Sou retirado dos meus devaneios por seus lábios carinhosos em meu
pescoço. Jude agora está sobre mim. Esfrego suas costas com as mãos e
tomo sua boca para mim, penetrando-a com a língua.
Torço para que ele não perceba minha ereção desperta. Tento jogá-lo
para o lado e me sentar, mas Jude não permite. Em vez disso, me força
contra o colchão.
— Não ouse levantar dessa cama, chofer. — Ele se estica até a mesa
de cabeceira e toca duas vezes na tela do celular para ver as horas. — Minha
primeira reunião é só daqui a 2h. — Retorna a atenção a mim. — E você
pode tirar o dia de folga hoje. É o mínimo que te devo depois de ter sido tão...
— Tão...?
— Eu insisto, Kim — diz num tom mais severo. — É pela sua saúde.
Não discuta comigo.
Uma folga? A ideia soa absurda para mim. Mas não vou insistir. Depois
da conversa com Noah, vou apenas stalkear Jude de longe, sem que
perceba.
Abro a porta.
Merda.
— Tente de novo.
PRONTO PRA MORRER
esse é o fim
inspire fundo e conte até dez
skyfall — adele
Quando o filho da puta fala mais uma vez, meu bom senso derrete.
— Por que acha que fiz alguma coisa? Talvez tenha achado o número
por engano — do outro lado da linha, a voz é jocosa, irônica.
— Eu juro por Deus: se você encostar num fio de cabelo dele — meio
que grito, meio que sussurro —, será a última coisa que fará.
Respiro fundo uma, duas, três vezes. Apoio-me na parede que acabei
de socar, encostando minha testa no meu antebraço, e sinto o mundo girar.
Suor frio começa a escorrer do meu rosto.
Noah grita — sua voz ecoa asfixiada, aguda e alta, como se estivesse
em dor.
Minha mente está tão fodida que não presto atenção nas palavras.
Estou chorando e hiperventilando ao mesmo tempo, preso no grito abafado e
doloroso do meu irmão.
— Se ainda quer ver seu irmão com vida, sugiro que encerre as
ameaças por aqui.
— Então foder ele não é tudo o que você quer. Você quer mais... —
insinuo. — Quer ele só pra você. — E então a verdade me atinge, tão intensa
e feroz quanto uma bala no meio da testa. — Você é apaixonado por Jude.
— Nós vamos acabar com isso, cão, mas não do jeito que você quer.
Seu irmão tem 12h de vida. Me encontre às 21h no endereço que vou te
mandar por mensagem, sozinho. Se estiver acompanhado, ou se contar
sobre isso pra alguém, seu irmão morre. Não faço promessas banais,
especialmente pra merdinhas como você. Esteja pronto pra morrer.
— Que merda!
Não posso permitir que essa merda aconteça. Não posso permitir que
o desgraçado do Dom continue brincando e aterrorizando nossas vidas.
Enquanto ele estiver vivo, Noah e eu estaremos em perigo.
— Jude...
CELULAR TOCA SOBRE A minha mesa. Desvio os olhos da tela do monitor
O
onde planilhas financeiras estão abertas em sua direção. Engulo em seco e
deixo a chamada tocar mais algumas vezes antes de apanhar o aparelho com
certa hesitação.
Hoje é um dia crítico, e não posso me deixar ser distraído por ele.
— Kim? — atendo.
— É essa porra mesmo que você ouviu. Ele não vai descansar até me
ver morto, Jude. Só vamos ter paz quando aquele filho da puta parar de
respirar.
— Está tudo bem? — A maldita voz aguda e afiada ecoa atrás de mim.
De onde eu a conheço?
Onde já a vi antes?
Aperto os dentes.
NOITE EM QUE MEU pai morreu volta à minha mente como uma bala no meio
A
da testa. Relembro de tudo, desde a ligação com o paramédico até o
momento em que vi a mulher loira entrar na delegacia e levar embora o
suspeito de conduzir o carro que matou meu pai. A última coisa de que me
lembro é do rapaz encapuzado, o rapaz que jurei encontrar algum dia e fazer
justiça pela negligência que ocorreu naquela noite.
Meu corpo treme. Dou um passo cambaleante para trás, então outro e
outro e outro. Perco o equilíbrio e preciso me segurar nas paredes ao redor
para não cair. Meu queixo perde a sustentação; minha boca se abre, larga e
incrédula. Algumas lufadas de ar escapam, me esqueci de respirar. Meu
coração para, palpita, então para novamente; segue num ritmo
descontrolado, incapaz de seguir bombeando sangue para meu cérebro, que
também titubeia.
Jude, por outro lado, hesita por um segundo. Parece engolir em seco,
pensar duas vezes. Não consigo decifrar o que se passa em seu rosto. Mas,
sem muita demora, afasta-se como a tia e os outros homens e me dá as
costas, caminhando para trás, sozinho, em direção ao seu escritório. Ele
caminha com a confiança fria que achei ter demolido, com os movimentos
retesados e afiados que achei ter reformulado, com a indiferença que achei
ter descontruído de sua armadura. Está tudo ali, tão familiar e hostil quanto
da primeira vez em que o vi, quando não éramos nada além de estranhos,
quando achei nunca tê-lo visto antes em toda minha vida.
Mas ele sabia a verdade. Ele sabia que não éramos estranhos. Ele
sabia muito bem que já tínhamos nos visto antes do ringue.
Quando contei a ele sobre a noite em que meu pai morreu, a noite em
que perdi tudo, ele sabia.
Abro a boca para tentar respirar, gritar ou emitir qualquer tipo de som,
mas não consigo. Minha garganta se fecha, dolorida. Meus joelhos finalmente
cedem, assim como as lágrimas que sequer notei se acumularem em meus
olhos.
— Ei, toma cuidado! — ele grita, e sua voz soa distante, aguda.
— Mamãe...
Ainda devo voltar à Goldman e pedir sua ajuda para lidar com Dom?
Cada segundo que passo neste estado, confuso e sem rumo, é mais
um segundo que Noah permanece sob as garras daquele arrombado
desgraçado.
Ele abre os braços e então curva a nuca para trás, deixando que a luz
do sol banhe seu rosto.
Não reajo por vários segundos. Fico preso naquele limbo familiar de
quando se é confrontado com uma situação absurda.
VINGANÇA
Porra.
Tá.
Tá.
Tá.
Estreito os olhos.
Há algo errado.
— Claro...
Sei que não posso desistir. Não ainda, pelo menos. Mas
merdas como essa me fazem duvidar da minha capacidade de
vencer essa mulher. Me sinto um garoto estúpido e
desobediente, do tipo que é punido em público sem que uma
mão seja erguida para defendê-lo, do tipo que chora sem ser
ouvido, que cresce acreditando que merece todo o mal que lhe é
feito.
Merda.
Levanto-me da cadeira.
Eles nunca me pegarão vivo, Kim, sua voz ecoa em minha mente.
Entendeu?
Afasto as mãos do volante, mas meu pé continua suave no acelerador,
aproximando-o da cena lentamente. Encubro a boca com uma das palmas
livres e toco o cano do revólver em minha cintura com a outra — o revólver do
meu pai. Uma bala me acertou no peito, e uma lâmina afiada se arrastou pelo
meu abdome, trazendo para fora tudo o que deveria ficar lá dentro, me
eviscerando.
— Noah... — repito.
Não sinto mais meu próprio corpo. Não me mexo, não pisco, sequer
respiro. Entro numa espécie de transe, como se estivesse sentado numa sala
de cinema vendo um filme se desenrolar em minha frente — um filme terrível,
sangrento, assustador. Um filme que se aproxima e fica cada vez maior,
engloba mais e mais do meu campo de visão. Um filme que me drena
completamente.
— Então, Kim — Dom volta a preencher a avenida escura com sua voz
áspera —, preparado pra se juntar a nós outra vez? — Arqueia uma
sobrancelha, estufa o peito e ergue o queixo, me mirando de cima com um
olhar viperino. — Seu irmão precisa de uns curativos com urgência. Depois
que se entregar a mim, prometo que ele será levado pro melhor hospital da
cidade. — Estala a língua. Vira-se para trás, em direção a alguns de seus
capangas mais próximos, semiautomáticas e fuzis bem empunhados. Eles
trocam algumas risadinhas. — Cortesia da casa.
Cerro os punhos. Minha mandíbula está tão tensa e dolorida que não
tenho certeza de como ainda não rachou em algumas dezenas de pedaços.
Noah espalma o chão e se ergue com dificuldade, voltando a ficar de joelhos.
Cospe sangue no asfalto, limpa a boca com a barra suja da camisa.
O terno azul que destruiu minha vida e a de meu irmão, que nos
roubou de um futuro decente, que fez questão de enfiar uma faca em meu
peito não uma, não duas, mas sim três vezes.
— Vou levar meu irmão pro hospital quando terminarmos aqui, Dom —
digo calma e pausadamente, voltando-me ao desgraçado de terno escuro. —
Mas você não vai ter o mesmo luxo. Quando terminarmos, não haverá nada
que os médicos possam salvar de seu corpo; seus capangas filhos da puta te
carregarão direto pro cemitério... ou pro necrotério — dou de ombros —, não
acho que haverá o suficiente para ser enterrado, também.
Sim. A resposta vem instantânea. Sim, sim e sim. Vou matar Jude
Goldman esta noite.
— Que garantia tenho de que você só não vai matá-lo logo depois que
me matar?
Expiro fundo.
Este é o único jeito que ele poderá me compensar pelo que fez.
— Então, Kim, que tal acabar logo com essa enrolação? — A voz do
líder dos Snakes me traz de volta à realidade terrível ao meu redor. Encaro-o.
— Faça o que precisa ser feito. — É um ultimato.
— Kim, não—
MM.
SOBRE O AUTOR
MISTER M (PSEUDÔNIMO DE MARK MILLER)é escritor pela
manhã, leitor pela tarde e apreciador de filmes de terror e séries
de comédia pastelão pela noite. Nasceu na região norte do Brasil,
mas mudou-se para São Paulo aos 14 anos de idade.
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