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O QUE É UM CONCEITO?

Gustavo Bernardo

Os dicionários trazem muitas de nições da palavra “conceito”.


Conceito pode ser sinônimo de pensamento: “isso não entra no
meu conceito”. Ou compreensão de uma palavra: “seu conceito
de moral é an quado”. Ou o equivalente da reputação de uma
pessoa: “ela não goza de bom conceito”. Ou ainda, forma de se
referir à avaliação escolar: “só ra conceito A”.
Em loso a, o conceito é “a representação mental de um
objeto abstrato ou concreto”. O lósofo André Comte-Sponville
dis ngue conceito de noção: enquanto a noção é dada, o
conceito é produzido; enquanto a noção resulta da experiência
ou da educação, o conceito resulta do trabalho; enquanto a
noção é um fato, o conceito é uma obra. Logo, “o conceito é
uma ideia abstrata, de nida e construída com precisão: é o
resultado de uma prá ca e o elemento de uma teoria”.
O conceito, portanto, é uma construção ou uma elaboração.
Quem constrói ou elabora um conceito, torna-se responsável
por ele. Essa responsabilidade é dividida com quem usa o
conceito elaborado por outrem, assim como uso o conceito de
“conceito” elaborado por Comte-Sponville.
Essa responsabilidade demanda que se faça manutenção
constante do conceito, re nando-o e elaborando-o melhor a
cada vez que se retorna a ele, assim como fazemos a
manutenção permanente de uma casa ou de uma obra, para
que ela não se deteriore. Posso dizer, então, que o conceito é
um “work in progress”, ou seja, um trabalho em progresso
constante, demandando sempre mais trabalho do pensamento
e do discurso.
Para o lósofo Hans Blumenberg, no livro “Teoria da não
conceitualidade”, o conceito “cons tui um produto da razão, se
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não é exatamente o seu triunfo”. Mas triunfo sobre o quê?,
pode-se perguntar. Talvez sobre a percepção e os sen dos,
pode-se responder. Enquanto os sen dos nos dizem o que se
encontra aqui e agora, a razão especula sobre o que possa estar
lá e acolá.
Quando o homem se torna bípede, passa a ver mais longe.
Exatamente por isso, passa a querer ver mais longe ainda,
mesmo onde sua vista não alcance. Ele quer olhar para cima e
ver o céu estrelado. O ser humano é a criatura da “ac o per
distans”, a saber, da ação à distância. Por isso mesmo, “não é
acidental que a história da ação humana seja dominada pelas
máquinas de arremesso e de ro”.
O homem lida com objetos e possíveis presas que, todavia, não
percebe. Por isso, desenha nas paredes de pedra da caverna
objetos que não estão ali, porque são os objetos do seu desejo
e da sua luta pela vida. Os desenhos na pedra são a imagem no
lugar da coisa: encontram-se no lugar dos animais que ainda
não foram caçados. Logo, os desenhos na pedra são os
primeiros conceitos.
O conceito é uma armadilha simbólica. Construo uma
armadilha orientado pela forma e pelo tamanho, pelo modo de
se comportar e de se mover da presa que desejo capturar.
Enquanto construo a minha armadilha, porém, a presa ainda
não se encontra presa dentro dela. A minha armadilha constrói
um vazio que pretende, no futuro, conter a presa que desejo
prender. Como me encontro distante da presa no espaço e no
tempo, construo a armadilha que pretende trazer o que desejo
para perto de mim, tanto no tempo quanto no espaço.
A armadilha, diz Blumenberg, “é uma ação na ausência tanto da
presa como também, com transferência temporal, do caçador.
A armadilha atua para o caçador no momento em que, estando
ele ausente, a presa está presente, ao passo que a confecção da
armadilha mostra as relações inver das”. Por isso, “a armadilha
é o primeiro triunfo do conceito”.
Quando o homem se levanta sobre as duas pernas, amplia seu
campo de visão mas não ca sa sfeito. Ele levanta também a
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cabeça para olhar as estrelas no céu escuro, pensando que
armadilhas pode construir para capturá-las, bem como aos
demais mistérios do cosmos – por exemplo, o mistério do amor.
Tenho uma vaga noção do que seja o amor, resultado das
minhas experiência e educação. Quero saber o que é o amor
para mim. Preciso então construir uma armadilha simbólica que
ao mesmo tempo atraia o amor e o capture, contendo-o nas
suas paredes. Essa armadilha é o conceito de amor.
O amor capturado nesse conceito, entretanto, parece inquieto
dentro da minha armadilha. Ele se mexe e se rebela, testando a
resistência das paredes da armadilha até o dia em que consiga
rompê-las. O amor que se liberta já se tornou diferente daquele
amor que capturei, porque aprendeu a sair da armadilha.
Preciso então construir outra armadilha, isto é, um conceito
mais elaborado, para capturar novamente o amor.
Sabe-se, desde o trabalho do sociólogo Niklas Luhmann, que a
ideia do amor como paixão é uma construção rela vamente
recente, datando do m da Idade Média. Antes, casava-se por
obrigação e por imposição familiar, não porque as pessoas se
apaixonassem. A paixão até acontecia, mas nas relações fora do
casamento. Amavam-se amantes, não cônjuges.
Os escritores dos primeiros romances de amor são os pedreiros
da reconstrução do conceito “amor”. A literatura captura uma
nova espécie de amor, logo, ensina uma nova forma de amor. A
literatura reelabora o conceito de amor.
Na verdade, a metáfora que cons tui a literatura é o próprio
conceito, devidamente lapidado, bem como vice-versa: o
conceito é a própria metáfora, devidamente lapidada. Ao
ar cular campos distantes de signi cado, comparando, por
exemplo, conceito a armadilha e abstrato a concreto, a
metáfora não apenas captura o imprevisível e quiçá o
inominável, mas também o domes ca.
A domes cação, todavia, não é permanente. A fera, ou seja, a
coisa, se encontra sempre prestes a se rebelar e se tornar...
outra coisa.
Como posso, por exemplo, construir um conceito de mundo?
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O lósofo Ludwig Wi genstein de ne “mundo” de maneira
sinte camente brilhante: “o mundo é tudo o que acontece”.
Sua de nição parte não da noção de espaço, mas sim da noção
que temos de tempo. Para ele, “mundo” não é o planeta que
me envolve, mas sim os acontecimentos que me cercaram,
cercam e cercarão.
O lósofo Hans Blumenberg também tem uma boa de nição de
“mundo”: “o mundo é o lugar geométrico de todos os pontos”.
Assim como Wi genstein constrói uma elaborada metáfora
temporal para de nir o mundo, Blumenberg elabora uma
interessante metáfora espacial.
Entretanto, ele mesmo não gosta muito da sua de nição,
preferindo esta outra: “mundo é uma expressão com a qual a
tenta va de encontrar as regras de determinação das palavras
está cons tu vamente condenada ao naufrágio”.
Nesta de nição, ele ques ona sua própria vontade de de nir
todas as coisas, devidamente representadas pelo mundo. Ele
leva seu ques onamento até à metáfora do naufrágio, vale
dizer, até a necessidade de voltar à tona para rede nir todas as
coisas. Isto acontece porque “a razão desperta as expecta vas
do entendimento e, ao mesmo tempo, as frustra”.
Entre o momento em que quase se realiza o entendimento e o
momento em que se admite a frustração da compreensão,
caminha a humanidade pensante, amante e errante.

ANDRÉ DEMARCHI
Armadilhas

O percurso percorrido por Gell até a noção de armadilha como um


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modo de compreender as obras de arte constitui o início de um
caminho mais longo no sentido de estabelecer uma teoria
“verdadeiramente” antropológica da arte, fundada no entendimento do
objeto de arte (e de sua produção e circulação) enquanto função de
seu contexto relacional,da matriz de relações sociais na qual está
inserido (GELL, 1998). O importante para Gell é compreender os
objetos enquanto índices numa cadeia de relações e interações sociais
onde ocupam o lugar de agentes ou pacientes dependendo de sua
posição nessa cadeia. O conceito de índice, retirado da semiótica
peirceana, torna-se importante porque permite a Gell fugir da análise
do significado de uma obra de arte ou do que ela quer comunicar, e se
preocupar em compreender para onde determinado objeto aponta,
qual a sua capacidade de agir sobre o mundo e transformá-lo. Neste
ponto, outros conceitos importantes são o de agência e o de sua
abdução. Um índice, segundo Gell gera necessariamente a abdução de
agência, uma operação cognitiva particular que permite uma inferência
causal de algum tipo a respeito de intenções e capacidades de objetos
e pessoas (GELL, 1998, p. 13).

No entanto, o tipo de índice valorizado por Gell é o que permite a


abdução de agência social, na medida em que são portadores de
intencionalidades complexas. O papel do antropólogo nessa nova
antropologia da arte seria descobrir para onde essas intencionalidades
apontam; como agem sobre sua “vizinhança”; quais as lógicas de
ações, reações e relações sociais desencadeadas por, ou localizadas
em, um determinado objeto. Aqui podemos retomar a idéia da
armadilha como obra de arte, ou da obra de arte como armadilha.

Ela foi proposta por Gell no contexto de um debate a respeito da


exposição Art / Artifact (realizada em Nova York no ano de 1988), em
que a artista plástica, curadora e antropóloga Susan Vogel, expôs na
entrada da exposição uma rede de caça do povo Zande (África),
provocando a reação do público que não sabia ao certo se se tratava
de uma instalação ou de um mero artefato. Gell aproveita-se da
discussão em torno desse fato e polemiza com o filósofo da arte
Arthur Danto, defensor da idéia de que a rede Zande não é uma obra
de arte devido ao seu caráter utilitário, ou seja, ela não é uma obra de
arte porque não permite “uma interpretação historicamente
fundamentada” que, para o filósofo, diferenciaria a obra de arte do
artefato. Gell (2001) contra- argumenta no sentido de aproximar
instrumentalidade e arte, definindo a armadilha pela sua capacidade
de condensar idéias, significados e conceitos tal como as obras de arte
conceitual:

Esses dispositivos incorporam idéias, veiculam significados, porque


uma armadilha, por sua própria natureza, é uma representação
transformada de seu fabricante, o caçador, da presa animal, sua
vítima e de sua relação mútua que, nos povos caçadores, é
fundamentalmente social e complexa. Isso significa que essas
armadilhas comunicam a noção de um nexo de intencionalidades
entre os caçadores e as presas animais, mediante formas e
mecanismos materiais. Creio que essa evocação de
intencionalidades complexas é o que serve para definir as obras de
arte, e que, adequadamente emolduradas, as armadilhas para
animais poderiam evocar intuições complexas a respeito do ser, da
alteridade, do relacionamento (GELL, 2001, p. 184-5; grifo meu).

Gell questiona com esse argumento toda uma visão moderna, ou


modernista, baseada em princípios estéticos enraizados na concepção
de arte ocidental (e também na antropologia da arte), que, segundo
ele, já foram questionados pela própria arte contemporânea. Uma
nova antropologia da arte deveria ser construída contra os princípios
estéticos enraizados na arte moderna ocidental, se aproximando
assim da arte contemporânea que “não se define mais pela lógica do
belo, e sim pela lógica do trocadilho ou da armadilha conceitual, pelo
complexo entrelaçamento de intencionalidades sociais” (LAGROU,
2006, p. 05).

Para os objetivos deste trabalho é preciso reter a idéia da evocação de


intencionalidades complexas propiciada pelas armadilhas como o
ingrediente central de sua agência; que está próximo o bastante para
não ser percebido da noção de condensação ritual (ou condensação de
conotações contraditórias, por isso complexas) expressas por Severi e
depois reelaboradas para o estudo das imagens quiméricas. Aqui,
nota-se uma primeira aproximação entre as duas abordagens e ela
parece ser proveniente de duas outras idéias centrais para os autores
que são a presentificação (ou o caráter não representativo das
imagens e obras de arte e sua ação cognitiva). Esses três elementos
tornam-se os pressupostos fundamentais destas duas formas de
abordar a imagem, no caso de Severi, e os objetos no caso de Gell.
Para ambos, a presença é fundamental para que ocorra a saliência
cognitiva. Na abordagem de Severi, o contexto de comunicação ritual e
as imagens geradas nele não representam certo aspecto da sociedade:
oque importa em sua análise é a pragmática, o conjunto de ações que
permite a uma imagem ser contra-intuitiva. Severi localiza na
pragmática ritual a explicação de como ocorre cognitivamente esse
processo de presentificação. Ele acontece porque as imagens, textos,
cantos, enfim todo o conjunto de intencionalidades e ordens que
compõe um ritual além de estarem prenhes de conotações paradoxais
e complexas, são formulados em contextos contra-intuitivos de
comunicação e por isso, tornam-se eficazes cognitivamente.

Para Gell, a presentificação concentra-se no próprio estatuto de


pessoa concedido a objetos e obras de arte. Se os objetos são também
pessoas, então eles agem e não representam. Ou no caso da
armadilha,

uma armadilha feita especialmente para capturar enguias, por


exemplo, poderia muito melhor representar o ancestral, dono das
enguias, do que sua máscara, visto que não representa somente
sua imagem, apesar da forma da armadilha ter a forma de uma
enguia, mas presentifica, antes de mais nada, a ação do ancestral;
sua eficácia tanto instrumental quanto sobrenatural e a relação
complexa entre intencionalidades diversas postas em relação como
aquelas da enguia, do pescador e do ancestral (LAGROU, 2007, p.
44).

Embora fique evidente o efeito cognitivo que as armadilhas


proporcionam à presa ou ao espectador, parece haver aqui um ponto
essencial que diferencia a abordagem de Gell e a de Severi. Lagrou
(2007) afirma que a análise de Severi estaria voltada para a
compreensão do

poder das imagens de afetar as pessoas emocionalmente. A teoria


de Gell sobre agência, por outro lado, não exclui absolutamente a
emoção como um dos efeitos possíveis da agência dos índices de
arte, mas ele está mais interessado em entender cognitivamente o
poder da forma e dos objetos de agirem em relações sociais do que
em explorar a imaginação humana (LAGROU, 2007, p. 58; grifo da
autora).

Nota-se então que, embora as duas abordagens contenham princípios


cognitivos, elas apontam para caminhos diferentes. A preocupação
que move Severi na direção de uma antropologia cognitiva é a
compreensão de formas distintas de memória social ou como colocado
acima, o porquê de certas imagens tornarem-se parte da memória de
um povo e outras não. Uma preocupação muito mais voltada para o
entendimento das “artes da memória”, através da articulação de
imagens e narrativas num contexto de comunicação ritual, do que
para a compreensão cognitiva do “poder da forma dos objetos”, ou
mesmo para a compreensão do poder das imagens em afetar
emocionalmente as pessoas.

Para Gell (1998), diferentemente, os princípios cognitivos parecem se


colocar como condição do funcionamento de seu sistema de ação:

For the anthropologist, the problem of ‘agency’ is not a matter of


prescribing the most rational or defensible notion of agency, in that
the anthropologist’s task is to describe forms of thougt which could
not stand up to much philosophical scrutiny but which are none the
less, socially and cognitively praticable (GELL, 1998, p. 17).

Essa preocupação com a descrição de formas de pensamento social e


cognitivamente praticáveis parece ter sido, para Gell, um aspecto
importante de um ambicioso projeto de entendimento antropológico
da mente humana.

Ele se unia na London School of Economics a Maurice Bloch na


ambição de transformar a antropologia numa ciência cognitiva com
capacidade de fazer afirmações universais sobre o funcionamento
da mente humana, nas suas manifestações externas. E não é de se
estranhar que entre os autores que mais influenciaram o
pensamento de Gell destacam-se Lévi-Strauss e (...) Edmund
Leach. Estes autores gostavam, como Gell, de modelos e diagramas
e, pelo menos Lévi-Strauss pensava, como Gell, que existia uma
isomorfia entre a estrutura do mundo cognitivo, mental e sua
objetificação no mundo. Ou seja, era possível estudar a mente
humana através de suas manifestações sociais, culturais, materiais
(LAGROU, 2006, p. 02).

Deve-se considerar que a ênfase na forma e em sua capacidade de


ação cognitiva está ligada a importância atribuída ao índice na trilogia
peirceana do signo. Abandonando o ícone e o símbolo, e concedendo
total importância ao índice enquanto elemento de agência, Gell queria
impor uma visão formal dos grafismos ou da arte, que embora fosse
entendida dentro de seu contexto de relação, possuía certa
independência do seu significado, já que sua ação ocorreria através da
abdução de agência. Este conceito, também retirado da semiótica
torna-se importante por designar uma “classe de inferências
semióticas que são por definição, totalmente distintas das inferências
semióticas que usamos no entendimento da linguagem” (GELL, 1998,
p. 14). A abdução de agência livraria Gell do significado, da
interpretação e da representação. Mas sua lógica não invocaria
também certos sentidos inferidos pelo receptor?

Tratarei desta questão adiante. Neste ponto é preciso reter a idéia de


que a abordagem de Gell, centrada na capacidade agentiva da obra de
arte, em sua capacidade de capturar o receptor por meio de processos
cognitivos, trouxe grande tempestade para os mares calmos da
antropologia da arte provocando apropriações e criticas de suas idéias
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no entendimento das artes dos ameríndios .

A próxima seção demarca um esforço no sentido de compreender uma


dessas apropriações através do trabalho de Els Lagrou (2007), sobre a
arte Kaxinawa. Vejamos então, entre quimeras e armadilhas, quais os
caminhos propostos pela autora.

Segundo Alfred Gell (1998:134)

“a obra de arte pode ser comparada a uma armadilha, pois a obra


sendo vista reativaria as qualidades colocadas intencionalmente
pelo artista, justamente para ativar todas as capacidades
 

presentes na mente das pessoas”. Leonardo da Vinci alertava que


“a pintura é coisa mental” e temos aqui uma nova forma de
entender essa a rmação. Quando Gell (1998:112) aponta que
olhar para uma obra de arte é “como encontrar alguém”, faz
referência ao poder que a obra de arte tem de cristalizar as
intenções do artista e, ao mesmo tempo, de concretizar uma
“rede de intenções” que leva o público a cair na armadilha. Se a
obra fala pelo artista, o público tem que sentir, ouvir e ver para
descobrir as intenções em jogo na obra. Para entender e sentir
uma obra é preciso se jogar na armadilha, cair na rede de
in(tensões) e nalmente, tal como um animal preso, debater-se
com as signi cações simbólicas presentes na obra. Esta metáfora
nos instiga a analisar uma obra de arte tal qual uma armadilha; a
obra de arte necessita de um cenário de captura, de uma vítima (o
público) e de um mecanismo de captura da atenção: uma isca,
uma “estét-isca”. Gell esclarece que “as armadilhas comunicam a
idéia de uma rede de intenções e de relações entre os caçadores
e as suas presas através do material utilizado” (1999:50).
Procurando desenvolver uma “teoria universal da arte”, teoria que
seja capaz de tratar tanto da arte ocidental como da arte tribal,
Gell(1999:78) trabalha com os conceitos de produção, circulação
e recepção da obra de arte, para de nir uma antropologia da arte
capaz de interpretar tanto uma obra contemporânea de Damien
Hirst como uma armadilha Zandé da África Central.Nesse sentido,
o autor concebe a arte como um “sistema de ação” que procura
primordialmente mudar o mundo a ser o mero suporte de
proposições simbólicas. A noção central dessa nova teoria, a 2
“intencionalidade”, coloca em xeque os debates clássicos sobre a
de nição da arte a partir de uma dinâmica fundada sobre a rede
de intenções entre o agente (o artista/a obra), o paciente (o
público) e o contexto (espaço de exposição). De certa maneira,
Gell sobrepõe o conceito de comunicação ao conceito de estética,
considerando a obra de arte como um elemento de comunicação
(e de comunhão) entre os indivíduos. Para Gell, “as obras de arte
nos fazem imaginar as diferente intenções ligadas as suas
produções e nos obrigam as representar-las com intenções
próprias” (1999:148). Ao invés de pensar a arte em termos de
beleza deveríamos, segundo ele, concebê-la em termos de
intenções, sejam imaginárias ou reais: “O que chamamos de
objeto de arte, e muitos outros objetos que não classi camos
como arte, possui uma força ou um poder de fascínio porque
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consideramos esses objetos como indicadores do que as pessoas
que o fabricaram e utilizaram tinham em mente. Assim a Joconde
nos permite apreender tanto as intenções do pintor de produzir um
belo objeto que vai impressionar algumas pessoas, as intenções
da mulher, ela mesma, de seduzir e de ironizar, as da mulher
sendo representada como sedutora irônica, a vontade ou a
resistência do artista a ilustrar o humor que o modelo quer ver
representado, a intenção do colecionador de encomendar o
objeto, de mostrar a sua riqueza ou a beleza das mulheres sobre
as quais ele exerce o seu poder, as intenções do estado francês
de mostrar seu poder e sua riqueza através da aquisição e da
exposição deste objeto... Todos estes espíritos são,
conscientemente ou inconscientemente , representados aqui
através da obra de Leonardo Da Vinci” (GELL,1999:163).
E, é assim que se vê, de acordo com Gell, o poder do objeto de
arte. Se as obras são “redes de intenções”, vemos que um objeto
de arte continua de abrir ou de abrir-se a novas redes enquanto
ele é visto e/ou utilizado.

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