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● “O mundo não é senão uma perene vacilação. Todas as coisas vacilam nele sem
cessar: a terra, os rochedos de Cáucaso, as pirâmides do Egito, tanto pela vacilação
geral quanto pela sua própria vacilação.” (p. 250)
● “[...] cada homem leva em si a forma inteira da humana condição.” (p. 251)
● “Aqui não pode acontecer o que vejo acontecer tantas vezes, que o artesão e a obra
se contradizem… Uma pessoa sábia não é sábia em tudo; mas o suficiente é
sempre suficiente, também na ignorância. Aqui andamos conformes, e ao mesmo
passo, meu livro e eu. Alhures pode-se recomendar ou acusar a obra,
independentemente do autor; aqui, não; quem toca um, toca a outra.” (p. 251)
● “É uma das numerosas passagens, nas quais Montaigne fala do objeto dos seus
ensaios, da sua intenção de representar a si próprio. Em primeiro lugar, ressalta o
caráter vacilante e mutável do seu objeto; depois descreve o processo que emprega
para o tratamento de um objeto assim vacilante; finalmente ventila a questão da
utilidade da sua empresa.” (p. 251)
● [No que diz respeito ao que Auerbach chama de “a premissa menor do silogismo”,
que é, basicamente, o fato de Montaigne se modificar constantemente, é mostrado
como há uma suspensão da continuidade do que seria dito, ou seja, intersecções de
assuntos dentro do parágrafo, com lógicas que se iniciam mas não possuem uma
continuidade linear. Ou seja, ao invés de explorar a premissa menor, Montaigne faz
uma inversão e revela primeiramente a conclusão, de que é fiel em seu relato, ou
sua pintura, ainda que o objeto retratado não seja sempre o mesmo. Depois, explora
a premissa menor a partir de outro silogismo, relativo à inconstância de todas as
coisas do mundo, e, portanto, dele mesmo, que é parte do mundo.] (p. 252-253)
● (A constância absoluta não existe, portanto, considerando-se que tudo vacila. Estar
constante seria, dessa forma, vacilar com mais receio, ou cuidado, ou pesar, ou
lentidão.)
● (O que Auerbech parece sugerir é que o leitor precisa de uma postura ativista e
reflexiva para compreender o texto de Montaigne, pensado justamente para
desacomodar aquele que o lê. A interrupção da ordem silogística e a interposição de
conclusões antes dos significados menores exige não só um leitor ativo, no entanto,
mas também um leitor crítico ou minimamente treinado. Apreender exatamente o
que Montaigne quer dizer, apesar de ser um dito extremamente lógico, significa ser
capaz de estabelecer ligações implicadas ou expostas de maneira atípica.)
● [Para analisar seu objeto, ele mesmo, Montaigne estabelece dois planos: um irônico
e outro sério e vivo, mais existencial e sincero.] (p. 254)
● “Montaigne fala séria e enfaticamente quando diz que a sua representação, por mais
cheia de mudanças e múltipla que seja, nunca erra caminho, e que, por vezes, pode
se contradizer a si próprio, mas nunca à verdade. Nestas palavras fala uma
concepção do homem de caráter muito realista, originada na experiência e,
sobretudo, na experiência de si próprio: precisamente, a que diz que o homem é um
ente vacilante, sujeito às mudanças do mundo, do destino e dos seus próprios
movimentos interiores; de tal forma, o modo de trabalhar de Montaigne,
aparentemente tão volúvel, não dirigido por plano nenhum, que segue elasticamente
as mudanças do seu ser, é, no fundo, rigorosamente experimental, o único que se
adequa a tal objeto.” (p. 255)
● “É uma tarefa espinhosa, mais ainda do que parece, esta de seguir um rasto tão
vagabundo quanto o de nosso espírito; de penetrar nas profundezas opacas das
suas sinuosidades internas; de escolher e deter tantos pequenos sopros de suas
agitações; e é um divertimento novo e extraordinário, que nos retira das ocupações
comuns do mundo, sim, e das mais recomendáveis. Faz já vários anos que não
tenho senão a mim; e se estudo outra coisa, é para abrigá-la logo sob mim, ou em
mim…” (MONTAIGNE apud. AUBERBACH, p. 256)
● “Estas frases [acima] são importantes também porque demarcam os limites de sua
empresa, porque não somente dizem o que quer fazer, mas também o que não quer
fazer, isto é, estudar o mundo exterior; este interessa-o tão-somente como cenário e
motivação para os seus próprios movimentos interiores.” (p. 256)
● “Ela [sua ignorância] não é somente um meio de lhe abrir caminho para o
conhecimento que lhe importa, o conhecimento de si mesmo, mas é até mesmo um
caminho imediato para alcançar aquilo que é a meta final da sua pesquisa, isto é,
viver corretamente: le grand et glorieux chef d’oeuvre de l’homme, c’est vivre à
propos (3, 13, p. 651); e há dentro deste homem vivaz uma tal entrega à natureza e
ao destino que lhe parece inútil querer conhecer mais acerca deles do que aquilo
que nos deixam sentir de si [...].” (p. 257)
● “[...] finalmente, é ainda o ser o que aparece, enquanto representa a mudança. Estar
à caça de si mesmo, com um tal método, isto já é um caminho de posse de si
mesmo [...].” (p. 258)
● “O método de fazer da vida própria qualquer, com um todo, o ponto de partida para a
filosofia moral, para a pesquisa de humaine condition, está em acentuado contraste
com todos aqueles métodos que investigam um grande número de seres humanos
segundo um plano determinado, à procura, por exemplo, da posse ou da falta de
determinadas qualidades, ou para verificar o seu comportamento em determinadas
situações; todos esses processos parecem a Montaigne abstrações escolares e
vazias; ele não reconhece o homem, isto é, a si mesmo, neles, pois disfarçam-no,
simplificam-no e sistematizam-no de tal forma que a sua realidade se perde.” (p.
262)
● “[...] só o que ´moralmente humano o prende; como Sócrates, poderia dizer que as
árvores nada lhe ensinam, mas somente os homens na cidade.” (p. 265)
● “Essas requintadas sutilezas não são apropriadas senão para os sermões; são
discursos que nos querem enviar bem arreados ao outro mundo; a vida é movimento
material e corporal, ação imperfeita de sua própria essência e desregrada;
empenho-me em servi-la tal qual…” (p. 268)
● “[...] para Montaigne, o corpo possui, como anexo natural, un juste et modéré
tempérament envers la volupté et envers la douleur, enquanto que ce qui aiguise en
nous la douleur et la volupté, c’est la poincte de nostre esprit.” (p. 268-269)
● “Mas aquilo que o conteúdo oferece não é cômico de maneira alguma; trata-se da
condition humaine, com todas as suas cargas, problemas e abismos, com toda a sua
fundamental incerteza, com todas as ligações criaturais que lhe são impostas.
Assustadoramente palpável, sugestiva e horrorizante, assim parece a vida animal e
a morte nela incluída; sem dúvida, um tal realismo criatural, sem a anterior
concepção cristã do homem, especialmente a da tardia Idade Média, seria
impensável, e o próprio Montaigne também o sente; sente que a sua união corpo-
espírito, extremamente concreta, está aparentada com concepções cristãs do
homem. Mas, evidentemente, o seu realismo criatural abandonou a moldura cristã
na qual outrora surgira. A vida terra não mais é uma figura da vida no além, não
pode se permitir desprezar e negligenciar o aqui, por amor a um ali. A vida terrena é
a única que possui; quer apreciá-la [...].” (p. 274)
● “[...] este peculiar equilíbrio do seu ser impede que o trágico, cuja possibilidade é
conferida ao homem no seu quadro, chegue a se exprimir já na sua obra.” (p. 276)