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AUERBACH, Erich. L’humane condition.

In: Mimesis: a representação da realidade na


literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2004, 5ª edição.

● “Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular,


bastante mal formado; e se tivesse de formá-lo de novo, fá-lo-ia, em verdade, bem
diferente do que é. Mas hoje já está feito.” (p. 250)

● “O mundo não é senão uma perene vacilação. Todas as coisas vacilam nele sem
cessar: a terra, os rochedos de Cáucaso, as pirâmides do Egito, tanto pela vacilação
geral quanto pela sua própria vacilação.” (p. 250)

● “É um relatório de acidentes diversos e mutáveis, de imagens indefinidas e, às


vezes, contrárias, quer porque eu mesmo não seja sempre o mesmo, quer porque
apreenda os objetos em outras circunstâncias ou sob outras considerações. E certo
que me contradigo uma vez ou outra, mas, na verdade, como dizia Demandes,
nunca contradigo. Se a minha alma pudesse ganhar pé, eu não faria experiências
comigo; resolver-me-ia; mas ela está sempre em aprendizagem e sendo posta à
prova.” (p. 251)

● “[...] cada homem leva em si a forma inteira da humana condição.” (p. 251)

● “Aqui não pode acontecer o que vejo acontecer tantas vezes, que o artesão e a obra
se contradizem… Uma pessoa sábia não é sábia em tudo; mas o suficiente é
sempre suficiente, também na ignorância. Aqui andamos conformes, e ao mesmo
passo, meu livro e eu. Alhures pode-se recomendar ou acusar a obra,
independentemente do autor; aqui, não; quem toca um, toca a outra.” (p. 251)

● “É uma das numerosas passagens, nas quais Montaigne fala do objeto dos seus
ensaios, da sua intenção de representar a si próprio. Em primeiro lugar, ressalta o
caráter vacilante e mutável do seu objeto; depois descreve o processo que emprega
para o tratamento de um objeto assim vacilante; finalmente ventila a questão da
utilidade da sua empresa.” (p. 251)

● [Auerbach analisa o primeiro parágrafo do capítulo 2 do livro Essais de Montaigne,


em que Montaigne fala sobre si próprio, por seus silogismos. Ele diz que há três
grupos de pensamentos bem definidos, constituídos por movimentos de ordem: cabe
a outros a formulação humana, a Montaigne, o relato; esse homem formado pelos
outros é universal, mas o relatado por ele é singular e único; este homem, que é
singular e que é Montaigne, já está formado, infelizmente, e apesar de seus desejos
próprios de que assim não fosse.] (p. 252)

● [No que diz respeito ao que Auerbach chama de “a premissa menor do silogismo”,
que é, basicamente, o fato de Montaigne se modificar constantemente, é mostrado
como há uma suspensão da continuidade do que seria dito, ou seja, intersecções de
assuntos dentro do parágrafo, com lógicas que se iniciam mas não possuem uma
continuidade linear. Ou seja, ao invés de explorar a premissa menor, Montaigne faz
uma inversão e revela primeiramente a conclusão, de que é fiel em seu relato, ou
sua pintura, ainda que o objeto retratado não seja sempre o mesmo. Depois, explora
a premissa menor a partir de outro silogismo, relativo à inconstância de todas as
coisas do mundo, e, portanto, dele mesmo, que é parte do mundo.] (p. 252-253)

● “A premissa maior é provida de exemplos e a espécie de modificação do mundo é


analisada como sendo dupla: cada coisa experimenta a modificação geral e, ainda, a
sua modificação própria; logo, segue-se um movimento polivocal, introduzido pela
afirmação paradoxal acerca da constância, que também seria uma forma de
vacilação mais lenta.” (p. 253)

● (A constância absoluta não existe, portanto, considerando-se que tudo vacila. Estar
constante seria, dessa forma, vacilar com mais receio, ou cuidado, ou pesar, ou
lentidão.)

● “O leitor tem de colaborar; é arrastado para dentro da movimentação do


pensamento, mas a todo instante espera-se dele que se surpreenda, investigue e
complete. Deve adivinhar quem são les autres; e também, quem é o particulier; a
oração com or [Or les traits de ma peinture ne fourvoyent pas, quoy qu’ils se
changent et diversifient] parece levá-lo para muito longe, e só depois de um certo
tempo pode reconhecer paulatinamente para onde ela vai; depois, como é evidente,
o essencial lhe é oferecido em uma rica plenitude de formulações, que arrastam
consigo a sua força imaginativa; mas ainda assim, sempre de tal forma que deve
permanecer ativo, pois cada uma das formulações é tão peculiar que pede para ser
elaborada; nenhuma encaixa num esquema pronto de pensamento ou de discurso.”
(p. 253)

● (O que Auerbech parece sugerir é que o leitor precisa de uma postura ativista e
reflexiva para compreender o texto de Montaigne, pensado justamente para
desacomodar aquele que o lê. A interrupção da ordem silogística e a interposição de
conclusões antes dos significados menores exige não só um leitor ativo, no entanto,
mas também um leitor crítico ou minimamente treinado. Apreender exatamente o
que Montaigne quer dizer, apesar de ser um dito extremamente lógico, significa ser
capaz de estabelecer ligações implicadas ou expostas de maneira atípica.)

● [Auerbach faz reflexões sobre a expressividade da linguagem de Montaigne, que faz


pausas e interrupções que são recuperáveis no texto pela sua vivacidade, mas que
se aproximam muito mais de uma conversação por sugerirem recursos que o texto
escrito não possui. O escrito teórico torna-se, portanto, quase um diálogo em si
mesmo, visto que imprime no leitor gestos, entonação e cumplicidade que não são
linguisticamente expressos, mas que estão na constituição do texto mesmo assim.]
(p. 254)

● [Para analisar seu objeto, ele mesmo, Montaigne estabelece dois planos: um irônico
e outro sério e vivo, mais existencial e sincero.] (p. 254)

● “Montaigne fala séria e enfaticamente quando diz que a sua representação, por mais
cheia de mudanças e múltipla que seja, nunca erra caminho, e que, por vezes, pode
se contradizer a si próprio, mas nunca à verdade. Nestas palavras fala uma
concepção do homem de caráter muito realista, originada na experiência e,
sobretudo, na experiência de si próprio: precisamente, a que diz que o homem é um
ente vacilante, sujeito às mudanças do mundo, do destino e dos seus próprios
movimentos interiores; de tal forma, o modo de trabalhar de Montaigne,
aparentemente tão volúvel, não dirigido por plano nenhum, que segue elasticamente
as mudanças do seu ser, é, no fundo, rigorosamente experimental, o único que se
adequa a tal objeto.” (p. 255)

● [A metodologia de Montaigne, explicitada como a que se adequa melhor ao caráter


volúvel do homem (que é ele mesmo) diz respeito ao acompanhamento metódico e
rigoroso das modificações de tal objeto; a descrição deste a partir do maior número
de situações experienciadas, para saber como reage em diferentes circunstâncias,
separando-as e, depois, formando uma imagem a ser atribuída ao conjunto de todas
esses momentos que definam o objeto como uma ou outra coisa.] (p. 255]

● “É uma tarefa espinhosa, mais ainda do que parece, esta de seguir um rasto tão
vagabundo quanto o de nosso espírito; de penetrar nas profundezas opacas das
suas sinuosidades internas; de escolher e deter tantos pequenos sopros de suas
agitações; e é um divertimento novo e extraordinário, que nos retira das ocupações
comuns do mundo, sim, e das mais recomendáveis. Faz já vários anos que não
tenho senão a mim; e se estudo outra coisa, é para abrigá-la logo sob mim, ou em
mim…” (MONTAIGNE apud. AUBERBACH, p. 256)

● (Perseguir a sua própria natureza e analisar-se apesar de suas inconstâncias acaba


se provando, para Montaigne, uma atividade que o consome por inteiro, que toca
todas as coisas do mundo que não ele e as analisa a partir do que ele conhece de
si. O exercício de se conhecer não cessa, pois os movimentos interno e externo
também não cessam, de maneira que se conhecer hoje não significa se conhecer
amanhã.)

● “Estas frases [acima] são importantes também porque demarcam os limites de sua
empresa, porque não somente dizem o que quer fazer, mas também o que não quer
fazer, isto é, estudar o mundo exterior; este interessa-o tão-somente como cenário e
motivação para os seus próprios movimentos interiores.” (p. 256)

● “Ela [sua ignorância] não é somente um meio de lhe abrir caminho para o
conhecimento que lhe importa, o conhecimento de si mesmo, mas é até mesmo um
caminho imediato para alcançar aquilo que é a meta final da sua pesquisa, isto é,
viver corretamente: le grand et glorieux chef d’oeuvre de l’homme, c’est vivre à
propos (3, 13, p. 651); e há dentro deste homem vivaz uma tal entrega à natureza e
ao destino que lhe parece inútil querer conhecer mais acerca deles do que aquilo
que nos deixam sentir de si [...].” (p. 257)

● “A ignorância e a indiferença premeditadas perante as “coisas” pertencem ao seu


método; nelas ele só se procura a si próprio. Em inumeráveis experiências,
realizadas em instantes quaisquer, examina este seu objeto, ilumina-o de todos os
lados, e como que o circunscreve; o resultado não é, porém, um monte de
instantâneos sem referência entre si, mas é a unidade de uma pessoa, apreendida
espontaneamente, composta de multiplicidade das observações.”

● “[...] finalmente, é ainda o ser o que aparece, enquanto representa a mudança. Estar
à caça de si mesmo, com um tal método, isto já é um caminho de posse de si
mesmo [...].” (p. 258)

● “Não há ninguém que, se se escutar a si próprio, não descubra em si uma forma


sua, uma forma dominante.” (MONTAIGNE apud. AUERBACH, p. 258)

● “Montaigne é algo novo; o tempero do elemento pessoal e, precisamente, de uma


única pessoa, apresenta-se pois penetrantemente, e a forma de expressão é ainda
mais espontânea e próxima da linguagem falada quotidianamente [...].” (p. 259)
● “A mim não pode acontecer o que acontece a mais de um especialista: que o
homem e a obra não estejam em concordância; que se admire a obra, mas que se
considere o autor, no trato, bastante medíocre, ou vice-versa. Um homem sábio não
é sábio em tudo; mas um homem inteiro é inteiro em tudo, também naquilo que
ignora. Meu livro e eu somos uma coisa em comum; quem falar de um, falará
simultaneamente no outro.” (p. 260)

● (Nessa passagem, Montaigne, por meio da interpretação e de Aurbach, demonstra


que, por ser sobre ele o livro e dele a habilidade que contempla toda a obra, de uma
linguagem rica e densa como jamais o tinha sido antes, é impossível dissociá-lo da
inteireza e da humanidade que compõem o que escreve. Assim, através da língua,
ele busca revelar a própria essência no livro e falar, dessa forma, de toda a
humanidade.)

● “O método de fazer da vida própria qualquer, com um todo, o ponto de partida para a
filosofia moral, para a pesquisa de humaine condition, está em acentuado contraste
com todos aqueles métodos que investigam um grande número de seres humanos
segundo um plano determinado, à procura, por exemplo, da posse ou da falta de
determinadas qualidades, ou para verificar o seu comportamento em determinadas
situações; todos esses processos parecem a Montaigne abstrações escolares e
vazias; ele não reconhece o homem, isto é, a si mesmo, neles, pois disfarçam-no,
simplificam-no e sistematizam-no de tal forma que a sua realidade se perde.” (p.
262)

● “Montaigne limita-se à exata pesquisa e descrição de um só exemplar, ele mesmo, e


também durante esta pesquisa está muito longe de isolar o objeto de alguma forma,
de desligá-lo das circunstâncias e condições acidentais nas quais se encontra num
momento particular, para assim talvez obter o seu ser propriamente dito, durável e
absoluto; uma tal tentativa de atingir a essência isolando-a das contingências
acidentais momentâneas parecer-lhe-ia absurda pois, na sua opinião, a essência se
perde imediatamente logo que é desligada da causalidade respectiva. Justamente
por isso, Montaigne deve renunciar a uma definição última de si mesmo ou do
homem, pois esta, necessariamente, precisaria ser abstrata; deve limitar-se a se
experimentar a si próprio sempre de novo, e a desistir do se resoudré.” (p. 262)

● (Montaigne abriu mão de se resolver integralmente por entender que a essência


humana diz respeito, também, aos estímulos exteriores, às causas
comportamentais. Dessa forma, não se pode isolar o que se faz, a reação que se
tem, daquilo que acontece, das razões para agir de uma forma ou de outra. Entende
que nunca cessará o conhecimento de si mesmo, porque nunca cessarão as causas
para ser e para reagir no mundo. Continua estudando a essência humana, o objeto,
mas não o isola de tudo.)

● “Para ele, o conhece-te-a-ti-mesmo não é só uma exigência prática e moral, mas


também uma exigência da teoria do conhecimento.” (p. 265)

● “[...] só o que ´moralmente humano o prende; como Sócrates, poderia dizer que as
árvores nada lhe ensinam, mas somente os homens na cidade.” (p. 265)

● “[...] manifesta, assim, o princípio heurístico do qual fazemos uso continuamente,


consciente ou inconscientemente, sensatamente ou não, quando estamos
empenhados em entender e julgar os atos dos outros homens, sejam estes
realizados ao nosso imediato redor, sejam longínquos, históricos ou políticos:
aplicamos-lhes as escadas que a nossa própria vida e a nossa própria experiência
interna nos oferecem; de tal forma que o nosso conhecimento dos homens ou da
história depende da profundidade do nosso conhecimento de nós mesmos e da
amplidão do nosso horizonte moral.” (p. 265)

● “Essas requintadas sutilezas não são apropriadas senão para os sermões; são
discursos que nos querem enviar bem arreados ao outro mundo; a vida é movimento
material e corporal, ação imperfeita de sua própria essência e desregrada;
empenho-me em servi-la tal qual…” (p. 268)

● “[...] para Montaigne, o corpo possui, como anexo natural, un juste et modéré
tempérament envers la volupté et envers la douleur, enquanto que ce qui aiguise en
nous la douleur et la volupté, c’est la poincte de nostre esprit.” (p. 268-269)

● “Ele próprio apresenta-se de forma totalmente séria, a fim de esclarecer as


condições gerais da existência humana; apresenta-se embutido nas situações
casuais quaisquer da sua vida, ocupa-se dos movimentos mutantes, escolhidos a
esmo, da sua consciência, e são justamente o esmo e a falta de escolha prévia que
constituem o seu método. Fala de mil coisas e de uma passa facilmente a outra;
quer conte uma anedota, quer fale das suas ocupações diuturnas, quer pondere um
antigo ensinamento moral ou experimente o sabor da própria morte, tudo é igual
para ele; apenas muda de tom.” (p. 274)

● “Mas aquilo que o conteúdo oferece não é cômico de maneira alguma; trata-se da
condition humaine, com todas as suas cargas, problemas e abismos, com toda a sua
fundamental incerteza, com todas as ligações criaturais que lhe são impostas.
Assustadoramente palpável, sugestiva e horrorizante, assim parece a vida animal e
a morte nela incluída; sem dúvida, um tal realismo criatural, sem a anterior
concepção cristã do homem, especialmente a da tardia Idade Média, seria
impensável, e o próprio Montaigne também o sente; sente que a sua união corpo-
espírito, extremamente concreta, está aparentada com concepções cristãs do
homem. Mas, evidentemente, o seu realismo criatural abandonou a moldura cristã
na qual outrora surgira. A vida terra não mais é uma figura da vida no além, não
pode se permitir desprezar e negligenciar o aqui, por amor a um ali. A vida terrena é
a única que possui; quer apreciá-la [...].” (p. 274)

● “[...] este peculiar equilíbrio do seu ser impede que o trágico, cuja possibilidade é
conferida ao homem no seu quadro, chegue a se exprimir já na sua obra.” (p. 276)

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