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ENCONTROS DE

COGNIÇÃO MUSICAL
Série Encontros de Cognição Musical
Encontros de Cognição Musical: Processos Criativos (2020)
Guilherme Bertissolo e Marcos Nogueira (Orgs.)
ENCONTROS DE
COGNIÇÃO MUSICAL
Processos Criativos
SÉRIE ENCONTROS DE COGNIÇÃO MUSICAL I

Organizadores
GUILHERME BERTISSOLO
MARCOS NOGUEIRA

Curitiba/PR, Brasil

2020
Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva
Vice-Reitor
Paulo César Miguez de Oliveira
Assessor Especial
Paulo Costa Lima
Pró-Reitor de Pesquisa, Criação e Inovação
Sérgio Luís Costa Ferreira
Pró-Reitora de Extensão Universitária
Fabiana Dultra Britto
Diretor da Escola de Música
José Maurício Brandão
Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Música
Acácio Piedade (UDESC) Flávia Candusso

Catarina Domenici (UFRGS)


Claudia Zanini (UFG)
Cristiane Otutumi (UNESPAR)
Damián Keller (UFAC)
Daniel Barreiro (UFU)
Daniel Quaranta (UFJF) Capa
Danilo Ramos (UFPR) Lia Sfoggia
Diana Santiago (UFBA)
Guilherme Bertissolo (UFBA) Revisão e Formatação
Gustavo Penha (UFMS) Oficina de Composição Agora, Milena Farias de Sousa
Igor Krüger (UFPel)
Igor Maia (UFMG)

Luciane Cuervo (UFRGS) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Luis Felipe Oliveira (UFMS) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Manuel Falleiros (UNICAMP) Encontros de cognição musical [livro eletrônico] :
Marcos Mesquita (UNESP) processos criativos 2020 / organizado por
Guilherme Bertissolo, Marcos Nogueira. — Curitiba :
Mauricio Dottori (UFPR) Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais &
Midori Maeshiro (UFRJ) Programa de Pós-Graduação em Música - UFBA,
Nayana Germano (UFSM) 2020. — (Série Encontros de Cognição Musical ; 1)
Paulo de Tarso Salles (USP) PDF
Rael Toffolo (UEM)
Vários autores.
Ricardo Freire (UnB)
ISBN 978-65-993186-1-0
Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)
Sandra Cielavin (CPS) 1. Cognição 2. Criatividade 3. Música – Instrução e
Sonia Ray (UFG) estudo 4. Percepção musical I. Bertissolo, Guilherme. II.
Thenille Janzen (UFABC) Nogueira, Marcos. III. Série.

20-53311 CDD-780.7
Índices para catálogo sistemático:
1. Música : Estudo e ensino 780.7
Cibele Maria Dias - Bibliotecária CRB-8/9427

Como citar este livro:


Bertissolo, G., & Nogueira, M. (Orgs.). (2020). Encontros de Cognição Musical: Processos
Criativos - 2020. Curitiba: Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais (ABCM);
Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA.
1. Criatividade e motivação na formação do professor de música

2. Motivação e aprendizagem em aulas coletivas de violão

3. Estratégias de escrita: Contribuições da Cognição para o


ensino de Percepção Musical

4. A criatividade nos processos de ensino e aprendizagem de


violoncelo: Um estudo de caso com professores no Paraná
aitê Vitória Alonso, Rosane Cardoso de Araújo
5. Processos criativos no ensino de música: Uma revisão
sistemática de literatura dos artigos publicados nos Anais
do SIMCAM (2015 a 2019)
Brasilena Gottschall Pinto Trindade, Ekaterina Konopleva,
Franklin José Barreto de Araujo, Isabele Ferreira da Silva
6. Processos autorregulatórios na prática e memorização de
jovens músicos: Um estudo de caso
onica Cajazeira Vasconcelos, Diana Santiago
7. Aprendizagem da composição em contexto universitário:
Um estudo sobre motivação para a prática da criação musical
Ramon Fernandes Michelotto de Castro, Rosane Cardoso
de Araújo

8. Afefê 1: Estado de prontidão, mapeamentos e mecanismos de


memória em jogo em um processo criativo colaborativo
Lia Gunther Sfoggia, Guilherme Bertissolo, Ráiden Santos
Coelho
9. Formatos de improvisação musical à distância: Relato de
experiências vídeo-sonoras em tempos de isolamento
Ana Luisa Fridman, Rogério Luis Moraes Costa
10. Circuitos Difusos: A criação de espaços ambiofônicos na
composição acusmática
Frederico Santiago Ribeiro Encarnação
11. A Bricolage como estruturante da linguagem na criação
musical
Yuri Behr
12. O engajamento musical significativo de um compositor
em dois momentos de sua carreira: um estudo de caso
Danilo Ramos, Nicholas Fish Garcia
13. Intertextualidade e tópicas no 1º movimento do Quarteto de
Cordas Op.13 n.2 em Lá menor de Felix Mendelssohn
Ricardo Tanganelli da Silva

14. O conceito de Interatividade considerado à luz da Ciência


Cognitiva
Camila Fernanda Silva de Souza, Rael Bertarelli
Gimenes Toffolo
15. A abordagem ecológica na dinâmica dos processos
colaborativos de produção musical
Gilberto Assis Rosa, Jônatas Manzolli
16. Em busca do tempo expressivo: processos colaborativos
na escolha de guias de sincronização na música
eletroacústica mista
Luciane Cardassi
17. Estratégias de composição a partir da interação entre
temporalidades do compositor, do performer e do
computador
Alisson Gonçalves da Silva, Guilherme Bertissolo

18. Proposição de um experimento piloto para a avaliação do


impacto da música na experiência imersiva do jogador em
um jogo eletrônico
Tharcisio Vaz da Costa de Moraes
19. Sistemas de biofeedback aplicados à trilha sonora de jogos
digitais: uma revisão bibliográfica
Luiz Fernando Valente Roveran
20. Processos criativos da composição Eternal Chase:
a aplicação de conceitos de cognição musical incorporada
no script para o filme Playback
Tharcisio Vaz da Costa de Moraes
21. Processo de aprendizagem musical no canto coral com a
aplicação de tecnologia digital
andra Regina Cielavin, Adriana N. A. Mendes
22. Contribuições da metacognição no enfrentamento do
pânico de palco
, Daniele Briguente, Sonia Ray

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Os processos criativos desempenham um papel central na experiência musical. Ouvir,
compor, tocar e improvisar são atividades criativas que mobilizam imaginação e cons‐
trução de sentido, entrelaçando percepção, ação e pensamento. Este livro traz contri‐
buições para o estudo dos processos criativos em música por diversas perspectivas.
Os textos que compõem esse volume são aprofundamentos dos trabalhos apre‐
sentados no III Encontro de Cognição e Artes Musicais – Internacional, o ENCAM 3,
que ocorreu em formato remoto entre os dia 18 e 20 de novembro de 2020, promo‐
vido pela Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais (ABCM) e organizado
pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia
(PPGMUS/UFBA). Os autores, vinculados a universidades das cinco regiões brasi‐
leiras e do Canadá, apresentaram reflexões em sessões de apresentações de trabalhos
de pesquisa. Os textos foram, aqui, agrupados em cinco seções, que cobrem as te‐
máticas: Cognição e Educação Musical, Criatividade no Ensino de Música, Cogni‐
ção e(m) Processos de Criação, Processos Criativos Colaborativos e Cognição em
Interfaces com Mídias e Público.
A primeira seção, Cognição e Educação Musical, reúne contribuições de três pes‐
quisadoras convidadas do evento, que participaram de Mesa Redonda homônima.
Os principais conceitos discutidos nesta parte foram criatividade, motivação e per‐
cepção. Rosane Cardoso de Araújo (UFPR) abordou as noções de criatividade e mo‐
tivação na formação do professor de música, enquanto Cristina Tourinho (UFBA)
abordou a motivação no contexto de aprendizagem em aulas coletivas de violão.
Caroline Caregnato (UEAM), por sua vez, apresentou interessantes discussões sobre
as estratégias de escrita, que também descortinam contribuições da cognição para o
ensino no campo da percepção musical.
A seção seguinte, Criatividade no Ensino de Música, é dedicada às contribuições
em torno da criatividade no ensino de música. Brasilena Gottschall Pinto Trindade,

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8 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Ekaterina Konopleva, Franklin José Barreto de Araujo e Isabele Ferreira da Silva


apresentam uma interessante revisão sistemática dos processos criativos no ensino de
música, no âmbito dos artigos publicados nos Anais do SIMCAM (2015 a 2019). Os
demais artigos enfocam estudos de caso no contexto do ensino de música. Se, por
um lado, Maitê Vitória Alonso e Rosane Cardoso de Araújo abordam ensino e
aprendizagem de violoncelo em um estudo de caso com professores no Paraná, por
outro, Monica Cajazeira Vasconcelos e Diana Santiago discutem os processos autor‐
regulatórios na prática e memorização de jovens músicos, e Ramon Fernandes Mi‐
chelotto de Castro e Rosane Cardoso de Araújo abordam a aprendizagem da com‐
posição em contexto universitário, propondo um estudo sobre motivação para a
prática da criação musical.
Na terceira seção, Cognição e(m) Processos de Criação, os trabalhos enfocam a
cognição e(m) processos que resultaram em obras e/ou contribuem para seus modos
de operar nos contextos de criação. Lia Günther Sfoggia, Guilherme Bertissolo e
Ráiden Santos Coelho discutem a noção de “estado de prontidão” e os mapeamentos
e mecanismos de memória em jogo no processo criativo colaborativo da obra mul‐
timídia Afefê 1. Ana Luisa Fridman e Rogério Luis Moraes Costa, por sua vez, reali‐
zam um relato de experiências vídeo-sonoras em tempos de isolamento, discutindo
formatos de improvisação musical à distância e seu impacto nas práticas musicais.
Frederico Santiago Ribeiro Encarnação aborda um processo criativo em composi‐
ção acusmática pelo prisma da criação de espaços ambiofônicos. Os demais textos
desta seção enfocam aspectos específicos da dimensão criativa na música. Yuri Behr
aborda a ideia de bricolage como estruturante da linguagem na criação musical, en‐
quanto Danilo Ramos e Nicholas Fish Garcia discutem o engajamento significativo
de um compositor em dois momentos de sua carreira, e Ricardo Tanganelli da Silva
aborda as noções de intertextualidade e tópicas em Felix Mendelssohn, buscando
desvelar processos de criação.
Na quarta seção, intitulada Processos Criativos Colaborativos, os textos discutem
tais processos sob múltiplos olhares. Camila Fernanda Silva de Souza e Rael Berta‐
relli Gimenes Toffolo enfocam o conceito de interatividade à luz da Ciência Cog‐
nitiva, contextualizando a interação na perspectiva de outras artes. Gilberto Assis
Rosa e Jônatas Manzolli, por outro lado, partem da abordagem ecológica dinâmica
para analisar a produção musical em estúdio. Na única contribuição em língua in‐
glesa do livro, Luciane Cardassi discute estratégias colaborativas em direção a um
tempo expressivo na música eletroacústica mista, a partir da noção de guias de sin‐
cronização. Em temática semelhante, Alisson Gonçalves da Silva e Guilherme Ber‐
tissolo discutem estratégias de composição que levam em conta as diversas tempora‐
lidades envolvidas na experiência musical na composição eletroacústica mista, ou
seja, as do compositor, do performer e do computador.
Na seção final, Cognição em interfaces com mídias e público, são apresentadas abor‐
dagens cognitivas que interagem com o universo dos games, da trilha sonora e das
mídias digitais. Os trabalhos de Tharcisio Vaz da Costa de Moraes e Luiz Fernando
Valente Roveran discutem processos criativos no contexto da música para games. O
primeiro propõe um experimento piloto para a avaliação do impacto da música na
experiência imersiva do jogador, a partir de medidas de EEG, enquanto o segundo
aborda os sistemas de biofeedback aplicados à trilha sonora de jogos digitais, a partir de
uma abrangente revisão bibliográfica. Em seguida, em um novo trabalho, Tharcísio
Vaz discute as bases cognitivas implicadas nos processos criativos pelo prisma da apli‐
cação de conceitos de cognição musical incorporada no script para o filme Playback.
Prefácio 9

Por outro lado, Sandra Regina Cielavin e Adriana N. A. Mendes discutem o processo
de aprendizagem musical no canto coral a partir da aplicação de uma tecnologia di‐
gital, desvelando importantes contribuições para o contexto do distanciamento soci‐
al. E por fim, Alfredo Zaine, Daniele Briguente e Sonia Ray abordam o pânico de
palco e as medidas de enfrentamento adotadas por músicos profissionais e estudantes
de performance musical, discutindo causas, sintomas e alguns mecanismos metacog‐
nitivos aplicáveis à situação.
Os desafios para concretizar o evento e esta publicação foram imensos, no con‐
texto das sucessivas crises que atingiram o sistema de pesquisa e pós-graduação no
país, agravadas por uma pandemia. Este livro não seria possível sem a colaboração
intensa da comissão organizadora e científica, da Associação Brasileira de Cognição
e Artes Musicais (ABCM) e da Universidade Federal da Bahia, especialmente pelo
apoio da Pró-Reitoria de Extensão Universitária. Devemos externar nossa profunda
gratidão aos pesquisadores brasileiros e estrangeiros que contribuíram com o EN‐
CAM 3 e com a concretização da publicação deste livro inaugural da Série Encon‐
tros de Cognição Musical.
Esperamos que as discussões e temáticas aqui apresentadas possam contribuir para
o avanço dos estudos sobre os processos criativos em música sob um ponto de vista
interdisciplinar. Com isso, quiçá possamos contribuir para cobrir, em particular, a la‐
cuna editorial no campo dos estudos sobre criatividade em música, temática cuja im‐
portância contrasta com a escassez de publicações que discutam suas bases cognitivas.

Guilherme Bertissolo
Marcos Nogueira
Organizadores
12
1
CRIATIVIDADE E MOTIVAÇÃO NA
FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE MÚSICA
Rosane Cardoso de Araújo
Departamento de Artes/Universidade Federal do Paraná, CNPq, Brasil
rosanecardoso@ufpr.br

Resumo
No presente trabalho, busco aproximar os estudos sobre atuação e formação do professor de música com
foco em dois elementos relevantes na intersecção entre a psicologia e a educação musical: a motivação e a
criatividade. Para este fim, o texto está estruturado em quatro partes: A primeira, na qual trago o resultado
de uma Survey realizada com professores de música sobre suas opiniões e impressões acerca dos elementos
“motivação” e “criatividade” em seus processos de ensino; a segunda e terceira partes, nas quais apresento,
respectivamente, uma discussão sobre teorias que podem ser consideradas no estudo sobre a motivação,
criatividade e prática docente; e, por fim, a conclusão do texto, na qual apresento algumas sugestões sobre
como pensar a formação do professor de música para que elementos sobre motivação e criatividade sejam
incluídos nessa formação. Dentre as conclusões do presente texto, destaco que promover a observação
constante sobre o próprio campo de ensino pode trazer insights que geram novas ideias criativas para
atuação do futuro professor, seja para fortalecer o comportamento autônomo e criativo de seus alunos, seja
para gerar um ambiente de aprendizagem mais motivador tanto para o discente quanto para o docente.
Palavras-chave: Educação musical, motivação, criatividade, formação de professores, cognição.

Introdução
Ao longo do desenvolvimento de minhas pesquisas com foco na psicologia da músi‐
ca, fui percebendo que, além de observar aspectos importantes para a aprendizagem,
como a motivação do aluno, sua autorregulação e os processos metacognitivos, me
deparei com a relevância dos aspectos sociais envolvidos nesse processo, como ques‐
tões ambientais e a importância da relação entre professor e aluno. Entendi que exis‐
tem muitas formas de se buscar a excelência no ensino da música, como, por exem‐
plo, pelo estudo dos processos psicológicos e cognitivos envolvidos na aprendizagem,
pelo estudo dos modelos e metodologias de ensino, mas também, dentre muitas pos‐
sibilidades, pelo estudo dos aspectos envolvidos na atuação docente. Focar os estudos
sobre a aprendizagem a partir do docente é valorizar a profissão do professor (Araú‐
jo, 2006) e isso inclui o pensar sobre sua atuação, seus saberes e sua prática profissi‐
onal cotidiana.
O professor, com seu comportamento, suas escolhas pedagógicas e sua forma de
atuar pode transformar positivamente (ou não) um processo de aprendizagem. Sua
atuação é um elemento relevante para que a aprendizagem musical se torne mais
envolvente, prazerosa e atraente para o aluno.
Nesse sentido, trago, no presente texto, considerações sobre a atuação do pro‐
fessor com foco em dois elementos que considero relevantes pela perspectiva da in‐
tersecção entre a psicologia e a educação musical: a motivação e a criatividade. A
motivação e a criatividade são elementos que promovem positivamente o ambiente
de aprendizagem (Fleith & Alencar, 2010) e, embora existam muito estudos, em di‐
ferentes contextos das práticas de ensino e de aprendizagem da música, essa conexão
entre motivação e criatividade ainda demanda maiores investigações: “Apesar do
avanço das pesquisas [...] são muitas as lacunas existentes sobre a inter-relação entre
criatividade e motivação” (Fleith & Alencar, 2010, p. 226). São, portanto dois ele‐

13
14 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

mentos que estão em confluência e podem ser analisados à luz de diferentes teorias
(Araújo, Veloso & Silva, 2019).
A presente reflexão, portanto, está dividia em quatro partes: a primeira, na qual
trago o resultado de uma Survey ou Estudo de Levantamento (Babbie, 2001) reali‐
zado com professores de música, de diferentes ensinos (instrumento, canto e disci‐
plinas musicais teórico/práticas) sobre suas opiniões e impressões acerca dos elemen‐
tos “motivação” e “criatividade” em seus processos de ensino; a segunda e terceira
partes, nas quais apresento respectivamente, a discussão de duas teorias que podem
ser consideradas no estudo sobre a motivação e prática docente e outras duas teorias
que podem ser consideradas no estudo sobre a criatividade e ensino de música; e, por
fim, concluo este texto apresentando algumas sugestões sobre como pensar a forma‐
ção do professor para que elementos sobre motivação e criatividade sejam incluídos
nessa formação.

Opiniões e impressões de professores de música sobre criatividade e


motivação nas práticas docentes
Entre 2018 e 2019, realizamos, junto ao Grupo de Pesquisa PROFCEM¹, um levan‐
tamento sobre concepções e opiniões a respeito da motivação e da criatividade em
aulas de música junto a professores (de instrumento/canto e/ou disciplinas teóricas).
O objetivo geral foi assim definido: investigar percepções e opiniões sobre criativi‐
dade musical e motivação, de professores atuantes como docentes autônomos, ou
em instituições especializadas no ensino da música, da cidade de Curitiba e de regi‐
ões próximas. Participaram deste levantamento 71 professores. Dentre os diversos
dados coletados, destaco neste texto alguns deles.

Sobre criatividade docente


Foi questionado aos professores se eles acreditavam que os professores de música,
poderiam conduzir aulas criativas independentemente da disciplina ministrada (ins‐
trumento, canto ou disciplina de formação musical geral). Apenas um professor disse
que não sabia, enquanto os demais (n=70) afirmaram que “sim”, isto é, que o profes‐
sor pode conduzir aulas criativas. Essa afirmação encontra respaldo em estudos de
autores que abordam a prática docente criativa, como Goodkin (2002); Cremin
(2009); Beineke, (2009); Burnard & Murphy (2017); e Levek & Santiago (2019).
Outra questão teve como foco verificar se os professores acreditavam que a criativi‐
dade dos estudantes de música poderia ser desenvolvida durante as aulas. 100% dos
participantes afirmaram que “sim”. (Essa compreensão sobre o potencial para o de‐
senvolvimento da criatividade nas aulas de música pode ser fundamentada nos estu‐
dos de Barrett, 2000; Goodkin, 2002; Bahia & Nogueira, 2005; Levek & Santiago,
2019). Também foi questionado aos professores como eles entendiam que a criativi‐
dade poderia ser manifestada nas aulas. A partir das diferentes opiniões dos professo‐
res, foi possível analisar e categorizar as respostas em 3 categorias principais (dentre
outras): uma forma de “ensino inovador”; uma possibilidade de autonomia discente;
uma forma de resolução de problemas tanto do processo de ensino como de apren‐
dizagem. Tais resultados trouxeram em relevo, portanto, que os professores possuí‐
am opiniões e ideias claras sobre a relevância dos processos criativos em suas práticas
docentes e no desenvolvimento musical de seus alunos.
Cognição e Educação Musical 15

Sobre motivação e docência


Já sobre motivação, a maioria dos professores (n=68) afirmou que a motivação é um
fator importante para o ensino da música, enquanto um participante disse que não
sabia responder à questão e outro disse que a motivação “não” é um elemento rele‐
vante no processo do ensino da música. Observa-se, a partir do resultado, que a mai‐
oria dos docentes traz uma compreensão pertinente sobre a motivação, compreensão
essa que pode estar fundamentada nos estudos de Guimarães e Boruchovitch (2004);
Machado, Guimarães, e Bzuneck (2006); Cereser (2011); Cernev (2011); Araújo e
Bzuneck (2019). Outra questão teve como foco conferir se o professor se sentia res‐
ponsável pela motivação do aluno. Nessa questão, a maioria (n=58) indicou que o
professor é responsável pela motivação do aluno, “mas não o único”; já 17% dos par‐
ticipantes (n=12) indicaram que “sim”, o professor é o responsável e, finalmente, um
professor disse que o professor não é responsável pela motivação do aluno. Neste
caso, a maioria dos professores, isto é, 82% (n=58) estão corretos ao considerar que o
professor tem uma parcela importante na motivação dos alunos, porém outros fatores
podem interferir nesse processo, como por exemplo, os fatores ambientais, sociais e
emocionais (Bzuneck 2001, 2010; Guimarães & Boruchovitch, 2004; Bzuneck &
Guimarães, 2010; Renwick & Reeve, 2012).
Assim, por meio dos resultados dessa pesquisa, as concepções e opiniões dos pro‐
fessores participantes indicaram que a motivação e a criatividade são elementos re‐
levantes em suas práticas e que devem ser considerados e estimulados no processo de
ensino da música. Assim, com base nos resultados da pesquisa e também em estudos
já realizados anteriormente (Araújo, 2019), procuro destacar, a seguir, alguns funda‐
mentos teóricos que considero pertinentes para análise sobre os aspectos motivacio‐
nais e criativos no contexto das diferentes práticas docentes de ensino da música.

Motivação
Sobre a motivação do professor, é possível considerar inúmeras possibilidades dis‐
cursivas, a partir de diferentes abordagens. Uma das abordagens possíveis são os es‐
tudos de Deci & Ryan (2004) para explicar os processos motivacionais na relação
entre os fatores extrínsecos e intrínsecos. Eles introduziram a distinção entre moti‐
vação controlada e motivação autônoma. Eles argumentam que há professores (e
alunos) que atuam mais pela motivação autônoma, enquanto outros seguem uma
motivação controlada (Ryan & Deci, 2017). Nos dois casos, todos estão motivados,
porém, o engajamento nas atividades é superior com a motivação autônoma (Araújo
& Bzuneck, 2019). Nesta reflexão, destaco os estudos de Deci e Ryan (2004) e Ryan
e Deci (2017) sobre a necessidade da satisfação de algumas condições psicológicas do
indivíduo como forma de intensificar o processo motivacional. Os autores indicam
que sua Teoria da Autodeterminação oferece uma abordagem para se compreender
e explicar diferenças na qualidade motivacional e subsídios sobre como chegar à mo‐
tivação autônoma. A teoria sustenta que existem condições que permitem chegar à
motivação autônoma, por meio da satisfação de três necessidades psicológicas básicas:
autonomia, competência e relacionamento (Araújo & Bzuneck, 2019).
Também os estudos de Albert Bandura sobre as crenças de autoeficácia (cons‐
truto pertencente à Teoria Social Cognitiva) são subsídios relevantes para com‐
preender a motivação do professor de música. Segundo Bandura (1989, p. 1176), “as
crenças de autoeficácia das pessoas determinam seu nível de motivação, refletindo
16 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

na quantidade de esforço que elas irão exercer em uma realização e por quanto tem‐
po elas vão perseverar diante dos obstáculos”.
Essas crenças nas capacidades pessoais são intensificadas ou diminuídas à medida
que o professor vivencia suas atividades de ensino por meio de quatro formas espe‐
cíficas de experiência: as experiências diretas, as experiências vicárias, a persuasão
social e os estados fisiológicos e emocionais. As experiências diretas exitosas propor‐
cionam ao professor o aumento do seu senso de competência e o fortaleci-mento das
crenças em suas capacidades; as experiências vicárias permitem a ele observar e se
comparar com outros docentes em relação à sua prática de ensino; a persuasão social,
vivenciada pelo professor por meio do feedback positivo dos alunos e de pares, prin‐
cipalmente de forma verbal, o auxiliam a perceber sua prática como exitosa; e, por
fim, seus estados fisiológicos, que incluem a forma como ele lida com suas emoções,
ansiedade, estresse também lhe trazem um indicador de suas crenças de autoeficácia
em relação às suas capacidades de lidar e superar diferentes experiências em seu tra‐
balho cotidiano.
Analisando, portanto esses dois referenciais sobre motivação, considerando-os
como auxiliares para compreender a motivação do professor, pode-se afirmara que
o fortalecimento das crenças de autoeficácia do professor, bem como sua autodeter-
minação para realizar suas atividades, geram no professor o envolvimento na sua
atividade laboral, bem como a sua persistência e confiança (ver esquema 1).

Esquema 1
Crenças de autoeficácia e autodeterminação do professor.

Criatividade
Embora não exista um consenso sobre a definição de criatividade, muitos autores
concordam que, para ser criativo, o indivíduo necessita, além de conhecer um do‐
mínio específico, estar qualitativamente engajado na atividade, ser persistente, dedi‐
cado, ter imaginação, dentre outros fatores (Lubart 2007; Alencar & Fleith, 2003;
Barrett, 2000). Além disso, Csikszentmihalyi (2014) indica que as influências sociais,
culturais e pessoais trazem consequências para o desenvolvimento da criatividade; e
Wechsler (1993) aponta o ambiente como um dos fatores responsáveis pelo desen‐
volvimento da criatividade, isto é, um espaço onde a criatividade é estimulada ou inibida.
Em relação à criatividade do professor, destaco duas perspectivas teóricas que,
por meio de minha experiência, entendo que podem servir para analisar e com‐
preender processos criativos envolvidos na prática docente: o Modelo Sistêmico de
Criatividade de Csikszentmihalyi (1996) e o estudo da resolução de problemas, ba‐
seado em Sternberg (2009).
Cognição e Educação Musical 17

No modelo sistêmico, Csikszentmihalyi (1996) sugere que a criatividade é con‐


siderada a partir da inter-relação entre o domínio, o campo e o indivíduo: o “domí‐
nio” está relacionado ao conhecimento do indivíduo em sua área de atuação ou ati‐
vidade onde se dá o processo criativo; o “campo” é o âmbito/contexto de atuação no
qual o indivíduo está inserido, envolvendo outros especialistas que irão avaliar/con‐
ferir o produto criativo; já o “indivíduo” é quem atua no campo, especializado em
seu domínio, que irá desenvolver o processo criativo. Nessa perspectiva, portanto,
entende-se que o docente, a partir de suas características pessoais e do domínio que
ele traz sobre um conteúdo ou área de atuação, pode gerar ideias inovadoras para um
determinado campo, reconhecimento dos pares sobre sua prática e, principalmente,
trazer motivação para os discentes em suas aulas.
O estudo da resolução de problemas, por sua vez, é uma referência vinculada à
psicologia cognitiva, que foi explicado por Sternberg (2009) a partir do “Ciclo de
Resolução de Problemas”, um processo que envolve sete etapas: identificação do
problema; definição do problema; elaboração de estratégias; organização das infor‐
mações; alocação de recursos; monitoramento e avaliação. Essas etapas, sequenciais
ou não, podem ser consideradas como um modelo que explica o envolvimento/en‐
gajamento do professor na busca por soluções aos desafios encontrados em sua
prática docente cotidiana. A busca por soluções aos problemas cotidianos do ensino
pode levar o docente a criar propostas didáticas inéditas.
Considerando-se essas duas perspectivas, do Modelo Sistêmico de Criatividade
e do estudo da resolução de problemas, é possível afirmar que a criatividade do pro‐
fessor demanda: a necessidade do domínio em sua área de atuação; a necessidade de
motivação que gere seu interesse em resolver problemas; e a coragem para inovar,
buscando soluções diversas para os diferentes desafios de sua prática cotidiana (ver
esquema 2).

Esquema 2
Criatividade do professor.

Conclusão: Como trabalhar a criatividade e a motivação na formação


do professor de música
É relevante considerar, na formação do professor de música, tanto as reflexões quan‐
to as experiências que o levem a valorizar a motivação e a criatividade em suas práti‐
cas. O professor deve ter domínio dos conteúdos para poder ampliar suas experiências
de ensino, buscando soluções didáticas diversificadas, experimentando possibilida‐
des. Assim, incentivando os estudantes de graduação que irão atuar com docência
18 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

(ou que já atuam) a uma sólida formação musical, bem como a não utilizar apenas
atividades prontas e de modelos de reprodução de ensino em suas práticas docentes,
desafiando-os em suas capacidades criativas, estaremos preparando futuros docentes
mais autônomos e engajados em suas pedagogias.
Assim, ao experimentar diferentes possibilidades de “como ensinar”, o futuro
professor, por meio de experiências de êxito, poderá ter sua percepção de eficácia
ampliada, gerando mais motivação (e autodeterminação), impulsionando-o a novos
processos criativos. Nesse sentido, durante a formação do professor de música, é ne‐
cessário:
-Valorizar os resultados positivos de suas práticas de ensino e trazer críticas
construtivas sobre resultados que não foram positivos, de modo a fortalecer o
senso de competência, a percepção de eficácia, envolvendo fatores vicariantes
que naturalmente estão presentes no contexto de ensino da universidade.
-Auxiliar o futuro docente a perceber os indicativos de seu ambiente de atuação
docente, levando-o a valorizar as suas experiências, e resultados positivos de for‐
ma a promover sua motivação autônoma.
Finalmente, promover a observação constante sobre o próprio campo de ensino
pode trazer insights que gerem novas ideias criativas para atuação do futuro profes‐
sor, seja para fortalecer o comportamento autônomo e criativo de seus alunos, seja
para gerar um ambiente de aprendizagem mais motivador tanto para o discente
quanto para o docente.

Agradecimentos. Agradeço ao CNPq pela concessão da Bolsa de Produtividade que tem


me auxiliado no desenvolvimento de meus estudos desde 2013.

Nota
1 Grupo de pesquisa intitulado Processos Formativos e Cognitivos em Educação Musical,
vinculado ao CNPq e certificado pela UFPR.

Referências
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2
20 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

MOTIVAÇÃO E APRENDIZAGEM EM AULAS


COLETIVAS DE VIOLÃO
Cristina Tourinho
Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Brasil
cristtourinho@gmail.com

Resumo
A motivação em aulas coletivas se constitui em uma estratégia para promover o aprendizado efetivo.
Estudantes de diferentes custas da UFBA, com as mais diversas habilidades e conhecimento, são matri-
culados em uma mesma turma. O professor faz uso de atividades com diferentes níveis de dificuldade para
manter o interesse.
Palavras-chave: Motivação em aulas coletivas, ensino coletivo de violão, aprendizagem colaborativa

Da mesma forma que em outros tópicos escolares, os estudantes de música podem


ser/estar motivados nas aulas de instrumento ou não. Essas reações refletem mais do
que apenas as diferenças entre os indivíduos e são também reações ao meio social e
ao “clima” da aula. O contexto do ambiente — seja da classe ou do professor — pode
vitalizar e nutrir as fontes de motivação intrínsecas e resultar em um comprometi‐
mento entusiasmado, como também pode frustrar as expectativas motivacionais dos
estudantes e resultar em desinteresse, com tarefas sendo cumpridas apenas para aten‐
der às necessidades de aprovação na disciplina.
Este texto foca na perspectiva de introduzir insights para as aulas de instrumento
(violão) voltadas para alunos universitários de cursos que não os de bacharelado em
instrumento. O nosso campo de estudo é a disciplina Instrumento Suplementar (Vio‐
lão) que foi oferecida para os cursos de Licenciatura em Música, Música Popular, Ba‐
charelado Interdisciplinar, e mesmo outros cursos que não fossem de música, da Uni‐
versidade Federal da Bahia, uma universidade pública, gratuita e que atende à demanda
de boa parte dos estudantes baianos da capital e do interior do Estado da Bahia.
Há cerca de dez anos, tentava-se, sem sucesso, estabelecer classes que tivessem
estudantes com conhecimentos semelhantes de habilidade musical no instrumento.
Depois de algum tempo, o insucesso desta tentativa nos fez optar por ofertar horá‐
rios para a disciplina sem qualquer espécie de pré-requisito, a não ser o de estar ma‐
triculado regularmente em um dos cursos da UFBA. No caso dos estudantes da Escola
de Música, devido ao teste de habilidade específica, todos possuíam algum conheci‐
mento de leitura musical. Mas alunos de outras áreas passaram a ser aceitos também,
embora em menor quantidade, e estes nem sempre conheciam a leitura musical. Ve‐
rificou-se que o objetivo de aulas de instrumento para não bacharéis necessitava de
uma abrangência diferenciada da característica conservatorial “técnica x repertório”,
oferecendo possibilidades de utilizar o instrumento também para atividades que não
demandavam imediata utilização da leitura musical (improvisação, transposição,
acompanhamento de canções). Observou-se, também, que alunos motivados pelo
fazer efetivo estavam mais disponíveis e motivados para realizar tarefas que exigiam
o conhecimento da leitura musical, e que o contato com colegas que possuíam essa
habilidade estimulava os mais iniciantes a aprendê-la.

20
Cognição e Educação Musical 21

Um desenho de disciplina foi sendo construído então, ano após ano, levando-se
em conta os resultados obtidos com as diversas atividades, o repertório escolhido e
buscando-se fundamentação teórica na literatura disponível. Seguindo as instruções
de Jones (2009), para motivar os estudantes é preciso lhes oferecer algum domínio
sobre o que estão a aprender, o que veio ao encontro de pesquisas anteriores feitas
por Tourinho (1995) a respeito da seleção do repertório a partir de escolhas do estu‐
dante como fator de influência na motivação da aprendizagem dos alunos. Para a
elaboração de um modelo de disciplina, obteve-se apoio teórico no modelo acadê‐
mico proposto por Jones (2009), que colocou as seguintes componentes como pre‐
missas a serem utilizadas pelo professor: 1) fortalecimento; 2) utilidade, 3) sucesso, 4)
interesse e 5) cuidado. Passamos, em seguida, a exemplificar como foram inseridos
os conceitos de Jones (2009) em nossas atividades da disciplina Instrumento Suple‐
mentar Violão.
Foi considerado, então, que o “fortalecimento” dos estudantes na disciplina, se‐
gundo Jones, seria dar-lhes alguma autonomia sobre o que iriam aprender. No caso
da referida disciplina, como trabalhávamos com indivíduos de diferentes cursos,
cada um vinha com um objetivo pessoal que se procurava conhecer antecipadamen‐
te, através de uma entrevista de entrada. Assim, ao declarar os seus objetivos pessoais
e vê-los atendidos pelo professor, o interesse crescia. Um exemplo disso, era a escola
do repertório individual, negociado entre o estudante e o professor, sem imposição
deste. Outro fator importante, foi criar, em parceria com os estudantes, um calendá‐
rio semestral para a realização das atividades, onde o fator surpresa era completa‐
mente eliminado: a caderneta com as presenças, notas e comentários do professor
acerca do desempenho individual estava sempre disponível para consulta; as ativida‐
des eram planejadas em sequência e ordenamento, bem como as verificações de
aprendizagem a a apresentação do final do semestre decididas por antecipação. Esta‐
va-se então aplicando o que recomendavam Decy e Ryan (1985, p. 11) quando afir‐
mavam que “A motivação intrínseca é a energia que é central para a natureza ativa
do organismo.” O programa da disciplina procurava atender aos objetivos declara‐
dos pelos estudantes na entrevista, propondo exercícios técnicos atrelados ao reper‐
tório e respeitando suas escolhas das peças individuais que iriam ser estudadas
Os estudantes necessitam acreditar que eles conseguirão cumprir as tarefas dadas
(Jones, 2009, p. 276). Isso não significa que tudo deveria ser fácil, mas que a dificul‐
dade de cada atividade teria que ser dimensionada para nem ser banal e nem impos‐
sível de ser realizada. Cada tarefa deveria ser um desafio na medida certa, sendo ne‐
cessário estudo e concentração para a realização, mas com apoio e feedback do
professor quando necessário. Além disso, o professor deveria deixar sempre bem cla‐
ro o que esperava que fosse ser feito, falando das suas expectativas de forma explícita,
sobretudo quando fosse se referir às formas de avaliação que seriam utilizadas.
Qualquer tarefa que fosse feita em classe, ou determinada como estudo, poderia
ter múltiplas facetas designadas individualmente, de acordo com o conhecimento
prévio e habilidade técnica de cada um, ainda que a aula fosse coletiva e que todos
tocassem juntos a maior parte do tempo. Assim, todos poderiam tocar uma peça em
conjunto ou fazer os exercícios técnicos de acordo com sua condição. De acordo
com o conselho de Jones: “Divida as atividades de aprendizagem complexas em
uma ou mais seções gerenciáveis que desafiam, mas não sobrecarregam os alunos”
(1985, p. 276).
Focando no interesse, Renninger e Hidi (2011, p. 112) afirmam que “o poten‐
cial ou interesse está na pessoa, mas o conteúdo e o ambiente definem a direção do

21
22 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

interesse e contribuem para o desenvolvimento”. Sendo assim, as atividades da dis‐


ciplina foram voltadas para manter os estudantes focados em seus objetivos e o pro‐
fessor atento para a necessidade da consciência da sua capacidade de influenciá-los
através da atenção, concentração, pensamentos, memória, compreensão, objetivos e
estratégias de aprendizagem.
Algumas das estratégias para estabelecer as atividades da disciplina Instrumento
Suplementar Violão serão descritas a seguir. Algumas são extramusicais e prece-de‐
ram ao primeiro encontro presencial desses estudantes, consideradas necessárias para
a organização do semestre.
Inicialmente, com a lista de matriculados disponibilizada no site da Universida‐
de, o professor enviou a cada um dos alunos um e-mail ratificando o dia e hora da
aula, bem como algumas informações e solicitações de cunho prático, tais como:
preenchimento de um pequeno questionário de dados pessoais. Esses dados incluíam
telefone para contato e permissão para criar um grupo no Whatsapp para a disciplina.
Foram feitas, também, perguntas acerca do conhecimento musical prévio do instru‐
mento e de leitura de cifras e partitura. De posse desses dados, o professor enviou
uma proposta de programa e atividades da disciplina de acordo com o calendário
acadêmico, que seria discutida e aprovada por todos no primeiro dia de aula. Junto
com a proposta do programa, foi anexado um material em PDF já disponível na
Internet (Delcamp, n.d.) e solicitado que cada estudante escolhesse uma peça para
apresentar na primeira aula, ou que trouxesse uma outra peça que já tocasse. Tam‐
bém foi perguntado o objetivo pessoal do estudante em cursar a disciplina e o reper‐
tório que tocava, caso tocasse.
Na primeira aula, a proposta enviada pelo professor era discutida, analisada e
aprovada pelo grupo. Constava de uma relação dos dias de aula, em ordem cronoló‐
gica, com as atividades distribuídas. Nesse programa, também estavam determinadas
as avaliações que seriam feitas a cada quatro aulas, onde seria atribuído um valor
numérico de 5 a 10 para cada estudante, e mais uma pequena frase que resumia o
valor numérico dado pelo professor e a data da apresentação pública semestral.
As atividades da disciplina foram divididas em dois eixos: as atividades-meio e
as atividades fins, de acordo com a proposta de Swanwick (2003). Como atividades-
meio foram consideradas: os exercícios técnicos, (posição de sentar, cuidados com as
unhas, escalas, arpejos); improvisação elementar (invenção e criação de pequenos
temas e improvisos sobre cadências); leitura (considerando a leitura à primeira vista
no pentagrama e a leitura de cifras e partituras). O repertório considerado atividade
fim constou da escolha e preparação de, pelo menos, duas peças solos e uma peça em
conjunto. As peças solo foram escolhidas nas aulas subsequentes, de acordo com o
gosto musical e habilidade técnica de cada estudante, variando de melodias simples
na primeira posição a peças de média dificuldade, peças de acompanhamento para
violão e voz, dois violões ou outro instrumento melódico. A peça de conjunto foi
escolhida depois de algumas aulas e variou bastante de acordo com o interesse da
turma. Foram considerados arranjos já escritos para quarteto de violões ou arranjos
mistos (parte escrita e parte de acompanhamento de acordes). A apresentação final
foi sempre obrigatória: caso o estudante faltasse, ou não estivesse preparado para to‐
car, poderia não fazê-lo, mas isso influenciaria em seu conceito final.
Como estratégia para que todos participassem da aula, o professor, depois que
as peças foram escolhidas, providenciou duas cópias encadernadas de todo o material
técnico e repertório, garantindo assim que todos tivessem acesso ao repertório que
estava sendo trabalhado. Em semestres anteriores, quando foi deixado a cargo dos
Cognição e Educação Musical 23

alunos trazer a cópia, muitas vezes, a aula não pode ser acompanhada por todos por
falta de partituras.
Uma das dificuldades que a grande maioria dos professores encontra ao traba‐
lhar com aulas coletivas é que é praticamente impossível ter turmas homogêneas
quanto ao conhecimento e habilidade musical no instrumento. Às vezes, alunos que
começam o semestre com conhecimento muito semelhante, rapidamente se distan‐
ciavam em virtude de interesse diferenciado na aplicação aos estudos. Sendo assim,
para resolver problemas, como realizar exercícios técnicos em conjunto, adotou-se
a estratégia de fazer, por exemplo, com diferentes velocidades e dificuldades o mes‐
mo exercício simultaneamente. Essa estratégia permitiu que alunos com diferentes
níveis técnicos pudessem tocar juntos exercícios, como escalas e arpejos, como
exemplificado na figura 1.

Figura 1
Exemplo de parte de exercício coletivo com escalas (Fonte: autor).

Um recurso semelhante foi usado para estudantes tocarem música escrita para
violão a mais de uma voz. Alguns autores (Peter Van der Staak, por exemplo) escre‐
vem música onde a dificuldade é praticamente a mesma em todas as vozes, diferente
do conceito tradicional, onde a voz mais difícil está sempre no primeiro violão. Os
alunos com maior capacidade de leitura tocam todas as notas desde a primeira leitu‐
ra, mas os iniciantes não solfejam uma das vozes. A aplicação ao instrumento se dá
paulatinamente, começando por tocar a primeira nota de cada compasso, por exemplo.
Na escolha do repertório individual, o estudante pôde decidir que gênero de
música desejava tocar. Foram utilizadas peças do cancioneiro popular, música de
mídia, música folclórica, bem como peças do repertório tradicional originalmente
escrito para o instrumento. Em alguns casos, uma melodia escrita foi tocada com
acompanhamento de acordes, como as retiradas dos Songbooks (Chediak 1978).
Concluindo, esta experiência, fundamentada e apoiada pela literatura, resultou
em uma disciplina relevante para muitos estudantes, no sentido de que conciliou o
aprendizado com uma posterior aplicação prática na vida profissional. As aulas de
Instrumento Suplementar na Graduação em Música necessitam reunir a utilização
de conceitos essenciais que possam ser desenvolvidos no exercício da profissão, sen‐
do que a motivação para aprender deve ser constantemente estimulada.
24 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

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24
3
Cognição e Educação Musical 25

ESTRATÉGIAS DE ESCRITA:
CONTRIBUIÇÕES DA COGNIÇÃO PARA O
ENSINO DE PERCEPÇÃO MUSICAL
Caroline Caregnato
Universidade do Estado do Amazonas, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, Brasil
ccaregnato@uea.edu.br

Resumo
Este trabalho aborda a escrita, que geralmente é trabalhada nas aulas de Percepção Musical em associação com
a prática do ditado. Mais especificamente, o objetivo deste trabalho é refletir sobre a efetividade de um
conjunto de estratégias de escrita, associadas aos ditados melódicos, buscando, a partir disso, oferecer
contribuições para o ensino de Percepção Musical e, consequentemente, para o desenvolvimento da escrita
musical dos estudantes dessa disciplina. Para tanto, foram analisadas pesquisas já publicadas sobre o assunto,
situadas especialmente no campo da Cognição Musical, e foram realizados dois estudos experimentais,
buscando responder os seguintes problemas de pesquisa: cantar durante a escrita, ou solfejar música antes de
escrever são estratégia que favorecem a realização do ditado? Os resultados de nossos estudos confirmaram
algumas observações feitas pela literatura já existente, ao mesmo passo em que refutaram outras. Eles ainda
nos chamam a analisar mais do que a superfície, ou os produtos do ditado, levando-nos a repensar algumas
práticas de ensino de Percepção Musical que podem inibir ou favorecer os processos de desenvolvimento da
escrita musical.
Palavras-chave: Escrita musical, Ditado melódico, Percepção musical, Cognição musical

Introdução
A Percepção Musical é uma disciplina presente na quase totalidade dos cursos de
Graduação em Música do Brasil e, no seu escopo, o ditado musical figura entre as
atividades mais praticadas pelos professores e estudantes (Otutumi, 2008). Neste tra‐
balho, iremos nos focar, mais especificamente, em um tipo de ditado: o ditado me‐
lódico. Ele se constitui em uma atividade na qual o professor toca uma melodia, ge‐
ralmente não acompanhada por acordes ou outras vozes. Esse material é tocado pelo
professor, normalmente um número limitado de vezes, e deve ser ouvido, memori‐
zado e escrito pelos estudantes sem o apoio de um instrumento musical ou da voz
(Dourado, 2004). O ditado melódico é praticado, de acordo com White (2002) e
Rogers (2004), pelas habilidades indiretas que ele permite desenvolver, como a de
ouvir notas erradas, ou vozes dentro de um conjunto de instrumentos, permitindo
ao estudante ampliar, em outras palavras, sua “habilidade de ouvir relações musicais
acuradamente e com compreensão”¹ (Rogers, 2004, p. 100).
Estabelecendo paralelos entre o ditado que é praticado durante o processo de
alfabetização e o ditado executado nas aulas de música, podemos dizer que essa fer‐
ramenta tem por objetivo também promover o desenvolvimento da escrita ou, mais
especificamente, da capacidade do estudante de registrar sons. Embora ele seja,
como diz Cravo (2014), um “exercício maldito”, visto como limitado e limitante
dentro do contexto de ensino de línguas e, também podemos dizer, no ensino de
música, acreditamos na validade dessa ferramenta para compreendermos as dificul‐
dades dos estudantes, planejarmos o ensino e promovermos aprendizagens de forma
interativa, consciente e, até mesmo, crítica (Cravo, 2014; Lacerda, 2017; Sousa, 2014).
Partindo do que foi exposto, o presente artigo tem como foco, mais especifica-
mente, um conjunto de estratégias que são normalmente adotadas por estudantes,
ou mesmo sugeridas por professores e teóricos do ensino de Percepção Musical, para
25
26 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

a realização de ditados. Essas estratégias visam favorecer a realização da escrita ou,


em outras palavras, promover a construção de um produto final para a atividade de
ditado que seja satisfatório. Mas, podemos dizer (e, de fato, nos aprofundaremos nes‐
sa discussão ao final deste artigo) que essas estratégias também podem ser concebidas
não apenas como alternativas para que o estudante chegue a um “resultado correto”,
e sim para que ele chegue ao que deve ser o foco desta e de qualquer outra atividade
de Percepção Musical: desenvolver os meios necessários para que se compreenda
ativamente aquilo que se ouve, tendo-se como possibilidade a produção de registros
escritos dessa compreensão.
Este trabalho consiste em um recorte de uma pesquisa maior², e se coloca as
seguintes questões de pesquisa, envolvendo as estratégias de produção da escrita mu‐
sical a seguir mencionadas:
- Cantar durante a escrita é uma estratégia que favorece a realização do ditado?
- Solfejar música antes de escrever é uma estratégia que favorece a realização do
ditado?
Para respondermos essas perguntas, fomos buscar contribuições, principalmente
no campo da Cognição Musical, de autores que realizaram, em sua maioria, traba‐
lhos experimentais ou de observação, verificando a efetividade das estratégias men‐
cionadas. De nossa parte, empreendemos, também, com a colaboração de outros
pesquisadores³, estudos experimentais, a fim de esclarecermos algumas questões le‐
vantadas pela literatura e de investigarmos aspectos que não foram abordados em
estudos anteriores. Na sequência, iremos apresentar, primeiramente, os resultados
dos levantamentos teóricos realizados por nós e, em seguida, uma breve exposição
dos dois estudos que realizamos para responder os problemas de pesquisa aqui elen‐
cados. Podemos afirmar que, de forma geral, nosso objetivo neste artigo é refletir
sobre a efetividade de um conjunto de estratégias de escrita, associadas aos ditados
melódicos, buscando, a partir disso, oferecer contribuições para o ensino de Percep‐
ção Musical e, consequentemente, para o desenvolvimento da escrita musical dos
estudantes dessa disciplina.

Estratégias associadas à realização de ditados


A realização de ditados musicais é, para boa parte dos estudantes de Música, uma
atividade desafiadora. Nesse sentido, não são poucos aqueles que buscam meios para
contornar dificuldades, lançando mão, para isto, de estratégias como cantar de forma
audível durante a realização da escrita, repetindo aquilo que acaba de ser tocado pelo
professor. Essa ação foi observada por Vargas e López (2008), em um estudo realiza‐
do com 14 estudantes universitários que foram convidados a transcrever uma melo‐
dia. O canto durante a escrita foi observado por esses autores em estudantes que
demonstraram um desempenho intermediário na realização de ditados. Curiosa‐
mente, os participantes com melhor e com pior desempenho não cantaram durante
o estudo. Uma explicação para esse comportamento pode ser encontrada em Careg‐
nato (2016), que observou 3 estudantes de música iniciantes, 3 universitários e 3
músicos profissionais durante a realização de um exercício de transcrição. O traba‐
lho desta autora evidenciou que o canto em voz alta durante a escrita era uma ação
característica de participantes categorizados em nível inicial e intermediário de de‐
senvolvimento, que dominam apenas o pensamento de tipo operatório concreto,
que é um pensamento capaz de atribuir significados ao material musical ouvido, mas
valendo-se, para tanto, de recursos concretos, como o apoio de um instrumento
musical, da voz e/ou de gestos de regência, por exemplo. Nesse caso, os participantes
Cognição e Educação Musical 27

de nível inicial do trabalho de Vargas e López (2008) podem ainda não ter atingido
o pensamento operatório concreto, por isso não usam o canto em voz alta, e os par‐
ticipantes de nível mais avançado já superaram esse tipo de pensamento. Em síntese,
o que podemos afirmar, a partir dos estudos de Vargas e López (2008) e de Careg‐
nato (2016), é que o canto em voz alta pode ser entendido, sim, como uma ação
benéfica e necessária para a produção da escrita por pessoas em fase intermediária de
desenvolvimento.
Outros estudos, entretanto, parecem apontar numa direção contrária, mostran‐
do o canto durante a realização de ditados como uma atividade que compromete o
desempenho dos sujeitos. Esse é o caso de um estudo experimental conduzido por
Pembrook (1986) com 136 universitários estudantes de música. Ele observou que os
participantes do grupo que foram convidados a ouvir um conjunto de ditados, repe‐
ti-los cantando e, somente depois disso, escrevê-los, foram os que tiveram o pior de‐
sempenho em comparação com aqueles sujeitos que escreveram livremente enquan‐
to escutavam o ditado e com o grupo que escreveu apenas após ouvir. O canto
contribuiu para uma piora no desempenho dos participantes, segundo o autor, por‐
que os participantes que cantaram o fizeram com falhas de memorização. Essas falhas,
na verdade, foram as responsáveis pelos problemas de escrita observados nesse grupo,
e que levaram a um pior desempenho na realização dos ditados. O canto também foi
observado por Paney (2016) como uma atividade que não favorece a realização de
ditados. Por meio de um estudo experimental, realizado com 64 estudantes de música
de nível universitário, ele observou que os participantes do grupo que foram orien‐
tados a observar aspectos musicais durante a realização de um ditado, cantando o que
foi ouvido, tiveram piores resultados que os do grupo controle, que realizaram o di‐
tado sem receber orientações específicas. Segundo o autor, as atividades solicitadas
aos participantes do grupo experimental provocaram distração, desviando-os da es‐
crita e comprometendo seu desempenho no ditado. Outro trabalho mais recente
(Buonviri, 2019) retomou a questão do canto, desta vez solicitando a 44 estudantes
universitários que realizassem ditados em silêncio, produzindo sons voluntários, e
repetindo a melodia ouvida por meio do canto. De todas as três condições testadas,
a que levou a um pior desempenho foi, novamente, aquela envolvendo a repetição
da melodia a ser escrita por meio do canto. O autor justifica seus achados de forma
semelhante ao que foi dito por Pembrook (1986): o canto só pode auxiliar na reali‐
zação do ditado se for realizado de forma correta, sem erros de memorização.
O solfejo pode ser entendido como uma atividade estreitamente relacionada ao
canto que reproduz a melodia ditada pelo professor, uma vez que o solfejo também
requer a realização de vocalizações, e também pode ser feito sobre padrões musicais
semelhantes aos do ditado. Nesse sentido, parece plausível pensarmos que o ato de
solfejar, assim como o ato de cantar, pode trazer contribuições para a escrita musical.
Ao menos, alguns autores concordam conosco nesse sentido. Solfejar, antes ou em
paralelo com a realização de ditados, é uma estratégia de ensino apontada como be‐
néfica por pedagogos da Percepção Musical, como Benward e Kolosick (2005),
Duþicã (2016), Johnson (2013), Karpinski (2000), Rogers (2004) e White (2002).
Um estudo experimental realizado por Gonzales et al. (2012), com 21 coralistas de 9
a 16 anos, dá respaldo para o que afirmam esses professores. Aqueles pesquisadores
observaram os efeitos da aprendizagem de questões harmônicas, acompanhada e de‐
sacompanhada do canto. Eles verificaram que o grupo que cantou durante as aulas,
realizando uma espécie de solfejo, desenvolveu melhores habilidades de escuta har‐
mônica, verificadas por meio de pré e pós testes, que o grupo que não cantou. Pes‐
28 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

quisas como as de Larson (1977), Norris (2003) e Rogers (2013), comparando o de‐
sempenho de estudantes na realização de diferentes atividades musicais, também nos
sugerem que boas habilidades em solfejo tendem a aparecer associadas a boas habili‐
dades na realização de ditados.
Se os autores e estudos apontados até aqui sugerem que o ato de solfejar pode
favorecer a realização da escrita, os dados de um estudo quase experimental condu‐
zido por Buonviri (2015) são menos animadores nesse sentido. Ele avaliou ditados
produzidos por 49 estudantes universitários, que realizaram atividades de escrita em
três condições: envolvendo o canto de um exemplo antes da realização do ditado;
envolvendo um momento de silêncio para concentração pessoal antes da realização
do ditado; e envolvendo a escuta do ditado logo após a execução dos acordes de
orientação, sem canto ou silêncio prévio. Curiosamente, a primeira condição (canto
antes do ditado) levou a um desempenho significativamente mais baixo em compa‐
ração com a terceira (realização do ditado sem canto ou silêncio prévio). De acordo
com o autor, isso ocorreu porque a tarefa adicional de cantar pode ter se constituído
em uma distração, que usurpou o processamento cognitivo dos participantes, levan‐
do-os a um pior desempenho na escrita.

Estudo 1
O primeiro estudo que será relatado aqui buscou responder à seguinte pergunta:
“cantar durante a escrita é uma estratégia que favorece a realização do ditado?”. De‐
talhes sobre este trabalho podem ser consultados em Lima et al. (no prelo).

Participantes
Participaram deste estudo 68 estudantes de graduação em Música da UEA - Univer‐
sidade do Estado do Amazonas, e da UEPG - Universidade Estadual de Ponta Gros‐
sa. Os participantes eram estudantes de cursos de licenciatura e de bacharelado, ma‐
triculados em disciplinas de Teoria e Percepção Musical, com idade média de 24
anos, variando entre 17 e 47 anos de idade, e declaram ter, em média, 8 anos de
estudo musical, variando de 1 a 34 anos o seu tempo de experiência.

Materiais e experimento
Esta investigação foi realizada por meio de um estudo experimental. Os participan‐
tes que foram alocados dentro do grupo experimental (n = 35) foram convidados a
realizar um ditado, cantando audivelmente o que foi ouvido, enquanto escreviam.
Os membros do grupo controle (n=33) foram instruídos a não cantar durante a es‐
crita do mesmo ditado.
Figura 1
Melodia usada durante o ditado do estudo 1.

Para o experimento, foi criado um ditado melódico, usado com ambos os gru‐
pos (figura 1). Procurou-se produzir um excerto musical que pudesse ser transcrito
por calouros em música e por estudantes mais experientes, de diferentes instituições
de ensino superior. A execução do ditado foi feita ao vivo em piano e todo o traba‐
lho foi realizado de forma coletiva, com os estudantes dispostos dentro de suas pró‐
Cognição e Educação Musical 29

prias classes de Teoria e Percepção Musical, diferindo de estudos anteriores seme‐


lhantes a este (Buonviri, 2019; Paney, 2016; Pembrook, 1986).
Os alunos receberam uma folha para a escrita do ditado contendo uma pauta
com clave de Sol, armadura de Mi bemol maior, fórmula de compasso 2/4, a primei‐
ra nota do ditado (um Mi bemol colcheia, na primeira linha) e 8 compassos em bran‐
co. Essa folha foi usada para a produção das respostas, tanto do grupo controle,
quanto do grupo experimental.
Nos dois grupos, a execução do ditado começou com uma ambientação na to‐
nalidade da melodia: os participantes foram convidados a cantar em voz alta a escala
correspondente à tonalidade do excerto ouvido e, depois, o arpejo da tríade de tôni‐
ca. Toda essa execução vocal foi realizada em números correspondentes aos graus da
escala. Então, a melodia foi tocada duas vezes seguidas e foi dado um tempo de dois
minutos de silêncio para a escrita. Após esse tempo, houve mais uma repetição da
melodia e mais um minuto final de silêncio.

Resultados e análise
O grupo experimental obteve média de desempenho no ditado de 32,6 pontos (DP
= 20,6), enquanto o grupo controle obteve 51,3 (DP = 27,4), de um máximo de 96
pontos. As medianas foram 32 para o grupo experimental e 47, para o controle. O
intervalo de confiança (95%) da média do grupo experimental variou entre 25,49 e
39,65, e o da média do grupo controle variou entre 41,55 e 60,99. Como a distribui‐
ção das pontuações no ditado dentro dos grupos controle e experimental não aten‐
dia plenamente à condição de normalidade, foi realizado o teste de Mann-Whitney,
que apontou para a existência de uma diferença significativa no desempenho dos
dois grupos, U(Nexperimental = 35, Ncontrole = 33) = 342, z = -2,89, p = 0,004. Portanto, o
canto parece levar a um pior desempenho na realização do ditado, confirmando,
assim, aquilo que havia sido sugerido pela literatura (Buonviri, 2019; Paney, 2016;
Pembrook, 1986).
Com base no que dizem as pesquisas de Caregnato (2016) e Vargas e López
(2008), cantar pode ser uma estratégia benéfica para estudantes em estágios iniciais
de desenvolvimento, que ainda precisem de apoio concreto para a realização de di‐
tados. A fim de testar essa questão, dividimos os participantes em subgrupos com
base no seu tempo de estudo de música. Aqueles que declararam estudar música há
menos tempo do que a média, ou por tempo igual ao desta (8 anos), foram alocados
no grupo dos principiantes, e os que declararam ter tempo de estudo maior que a
média foram postos no grupo dos avançados. Dessa forma, dentro dos grupos expe‐
rimental e controle há participantes considerados principiantes e avançados, for‐
mando quatro subgrupos: Experimental-Principiante (n=24), Experimental-Avançado
(n=11), Controle-Principiante (n=19) e Controle-Avançado (n=14). As estatísticas
descritivas relacionadas a estes subgrupos são mostradas no Quadro 1.
Quadro 1
Estatísticas descritivas dos subgrupos do estudo 1.
30 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Pelo que pode ser observado, os subgrupos Controle-Avançado e Experimen‐


tal-Principiante obtiveram, respectivamente, os maiores e menores valores para mé‐
dia e mediana, mostrando que estes são os subgrupos que tiveram o melhor e o pior
desempenho no experimento. A aplicação do teste de Kruskal-Wallis demonstrou
haver diferença significativa entre as pontuações dos subgrupos: H(3, N = 68) = 9.09,
p = .028. Adicionalmente, então, executamos testes U de Mann-Whitney aos pares
sobre os resultados dos subgrupos. Esses resultados estão relatados no Quadro 2.
Quadro 2
Valores para testes de Mann-Whitney feitos par a par com os subgrupos do estudo 1.

Observa-se que há diferenças significativas entre as pontuações nas comparações


entre o subgrupo Experimental-Principiante e os outros três. O subgrupo Experi‐
mental-Principiante foi o que teve o desempenho mais baixo. Sua média é drastica‐
mente menor que as dos outros subgrupos, e os valores-p de todas as combinações
que o envolvem foram menores que 0,05. Esse desempenho baixo em relação ao
subgrupo Controle-Principiante, bem como em relação aos estudantes avançados
de ambas as condições, sugere que cantar prejudicou especialmente os participantes
com menos experiência. Portanto, embora o canto possa ser considerado uma ativi‐
dade necessária para a realização do ditado em determinados momentos do desen‐
volvimento (Caregnato, 2016; Vargas & López, 2008), sua realização em coletivo
atrapalha, em especial, os sujeitos menos experientes ou menos desenvolvidos.

Estudo 2
O estudo da sequência buscou responder à pergunta: “solfejar música antes de escre‐
ver é uma estratégia que favorece a realização do ditado?”, e maiores detalhes a res‐
peito dele poderão ser consultados, em breve, em um artigo que pretendemos publicar.

Participantes
Participaram desta pesquisa, 54 estudantes de graduação em música, de licenciatura
e de bacharelado, vinculados a três universidades brasileiras: UEA – Universidade do
Estado do Amazonas, UEPG – Universidade Estadual de Ponta Grossa e UNESPAR
– Universidade Estadual do Paraná, campus Curitiba I. Todos os envolvidos fre‐
quentavam disciplinas de Teoria e Percepção Musical, possuíam, em média, 24 anos
de idade, e estavam na faixa etária entre 17 e 55 anos. Com relação ao seu tempo de
estudo de música, a média era de 9 anos, com variação de 1 a 40 anos.

Materiais e experimento
Foi realizado um estudo experimental com os envolvidos. Os sujeitos foram dividi‐
dos randomicamente entre um grupo controle (n=27) e um experimental (n=27).
Todos os participantes foram convidados a realizar o ditado melódico da Figura 2,
criado com base em exercícios de “modelo e ornamentações” encontrados em Benward
Cognição e Educação Musical 31

e Kolosick (2005). Ele foi tocado ao vivo em piano e apresentado coletivamente aos
participantes de cada grupo, buscando-se emular uma situação de sala de aula de
Percepção Musical.
Figura 2
Ditado melódico proposto aos participantes do estudo 2.

Os participantes do grupo experimental, diferentemente dos participantes do


grupo controle, foram solicitados a realizar, coletivamente e em voz alta, o solfejo
da Figura 3 antes de ouvirem o ditado. Esse solfejo, também construído com base
em exercícios de “modelo e ornamentações” observados em Benward e Kolosick
(2005), possui aspectos rítmicos e melódicos muito semelhantes aos do ditado a ser
realizado. Os participantes do grupo experimental foram informados de que o
ditado a ser executado seria baseado na melodia solfejada.
Figura 3
Solfejo proposto aos participantes do grupo experimental do estudo 2.

No momento da realização do ditado da Figura 2, todos os participantes foram


convidados a cantar a escala de Ré maior, acompanhados pelo piano. Em seguida, a
melodia foi tocada duas vezes, com um tempo de silêncio entre cada execução equi‐
valente ao tempo de duração da música. Seguiram-se dois minutos de silêncio e,
após esse tempo, a melodia foi tocada uma última vez, tendo os participantes recebi‐
do mais dois minutos para a conclusão do exercício. Solicitou-se aos envolvidos não
cantar ou fazer qualquer outro tipo de ruído durante a realização do trabalho de escrita.

Resultados e análise
De um máximo possível de 62 pontos, o grupo controle apresentou pontuação média
de 47,6 pontos (DP=13,3) e mediana de 45 no ditado. O intervalo de confiança (95%)
para a média está entre 42,4 e 52,8 para este grupo. O grupo experimental, por sua
vez, apresentou média de 55,1 pontos (DP=11,8) e mediana de 65. O intervalo de
confiança (95%) para a média deste grupo está entre 50,4 e 59,7. O grupo experi‐
mental, portanto, apresentou média e mediana superiores às do grupo controle.
Como os dados não obedeceram à condição de normalidade, realizamos sobre eles o
teste não-paramétrico de Mann-Whitney. Nessa análise, observou-se uma diferença
significativa de desempenho entre os participantes dos dois grupos: U(Nexperimental = 27,
Ncontrole= 27) = 254, z = -1,99, p = 0,05. Esses testes demonstram que o grupo experi‐
mental obteve desempenho significativamente mais alto do que o grupo controle,
sugerindo que a realização de um solfejo antes da realização do ditado é uma ativida‐
de que favorece a escrita. Esse achado contradiz o que havia sido apontado anterior‐
mente pela literatura (Buonviri, 2015) em estudo realizado de forma individual.
Acreditamos que a realização coletiva da atividade de solfejo pode ter contribuído
para que os participantes cantassem corretamente o material escrito. Imprecisões no
canto haviam sido apontadas anteriormente (Buonviri, 2015; Pembrook, 1986)
como as causadoras do baixo desempenho dos sujeitos de grupos que solfejaram.
32 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Conclusão
Conforme apresentamos no início deste artigo, nosso objetivo era refletir sobre a
efetividade de um conjunto de estratégias de escrita, associadas aos ditados melódi‐
cos. Nesse sentido, abordamos aqui duas ações relacionadas ao ato de cantar: o canto
realizado durante a escrita, reproduzindo o que foi ouvido no ditado, e o solfejo,
executado antes da realização do ditado. Conforme iremos discutir a seguir, essas
estratégias podem e precisam ser entendidas como mais do que meros recursos, que
visem a apenas levar os estudantes à realização de um produto final correto para o
ditado. Nesse sentido, precisamos realizar aqui, a título de conclusão de nossa abor‐
dagem, uma discussão um pouco mais aprofundada dos dados apresentados de modo
que se possa chegar, efetivamente, a responder a segunda parte de nosso objetivo,
que era oferecer contribuições para o ensino de Percepção Musical e, consequente‐
mente, para o desenvolvimento da escrita musical dos estudantes dessa disciplina.
Analisando a superfície do que dizem nossos dois estudos apresentados aqui, pu‐
demos constatar, primeiramente, que o canto, realizado durante a escrita e em situ‐
ações coletivas de produção do ditado, é uma atividade que compromete o registro
daquilo que foi ouvido. Esse comprometimento é maior, conforme vimos, em estu‐
dantes menos experientes. Esse achado, em sua primeira parte, corrobora com o que
já havia sido apontado pela literatura (Buonviri, 2019; Paney, 2016; Pembrook,
1986) e, à primeira vista, nos desaponta, já que baseados em outros trabalhos (Careg‐
nato, 2016; Vargas& López, 2008) acreditamos, a princípio, que o ato de cantar po‐
deria favorecer os novatos. Entretanto, é necessário que façamos um exame apro‐
fundado do que diz a segunda parte de nosso estudo 1, pois ela não nos permite
dizer, propriamente, que o canto deve ser banido das aulas de Percepção Musical
porque compro-mete o desenvolvimento da escrita dos estudantes.
O fato de a escrita, associada ao ditado melódico, ser prejudicada quando os
alunos cantam, nos diz apenas que o canto e o ditado são, a princípio e nas condições
aqui expostas, atividades que não se coadunam. No entanto, não podemos defender
a extinção do canto das aulas de Percepção Musical, pois ele é uma necessidade cog‐
nitiva que se manifesta durante o desenvolvimento da escrita musical, e que está asso‐
ciada ao tipo de pensamento dominado pelos estudantes menos experientes (Careg‐
nato, 2016). Nesse sentido, ele pode e deve ser praticado pelos alunos, por exemplo,
em situações individuais de estudo, fora de sala de aula. Dentro de sala, ele pode ser
abordado em conjunto com atividades de execução, composição e improvisação
musical, e não apenas junto com os ditados tradicionais. É importante frisarmos,
ainda, que o ditado tradicional, descrito na introdução deste artigo, é apenas uma
das formas possíveis de se praticar ditado, e que outras variantes, em que o estudante
possa cantar, por exemplo, podem ser desenvolvidas a exemplo do proposto em Cra‐
vo (2014) e Sousa (2014). Portanto, o fato de termos observado os efeitos negativos
do canto sobre o produto final do ditado não nos dá respaldo para afirmar que o canto
irá exercer o mesmo poder sobre o processo de desenvolvimento do estudante na dis‐
ciplina de Percepção Musical.Além disso, não é demais ressaltar que o ditado é ape‐
nas um dos muitos recursos didáticos e avaliativos, que pode e deve ser usado pelo
professor dessa disciplina. Portanto, outras possibilidades de exploração do canto po‐
dem ser experimentadas pelos estudantes para que se concretize seu desenvolvimento.
A existência de correlações, comprovadas por meio de estudos científicos (Lar‐
son, 1977; Norris, 2003; Rogers, 2013), e de relações apontadas por pedagogos
(Benward & Kolosick, 2005; Duţică, 2016; Gonzales et al., 2012; Johnson, 2013;
Cognição e Educação Musical 33

Karpinski, 2000; Rogers, 2004; White, 2002), entre o solfejo e o ditado, ou entre a
leitura e a escrita musical, nos levam, de fato, a acreditar que o canto (presente no
solfejo) e o ditado podem vir a se unir, de algum modo, de forma positiva. Contra‐
riando o que havia sido exposto anteriormente pela literatura (Buonviri, 2015), nos‐
so estudo 2 nos mostrou que a realização de um solfejo, antes da produção de um
ditado, favoreceu a escrita dos participantes. Nesse caso, observamos os efeitos posi‐
tivos de uma estratégia sobre o produto do ditado, mas também acreditamos que sub‐
jaz, por trás dessa observação, uma aquisição mais profunda. Mais especificamente,
o que pretendemos dizer é que a leitura, se constituindo em um tipo de fazer musi‐
cal, quando associada ao ato de escrever, permite ao estudante e ao ensino de Per‐
cepção Musical se aproximarem um pouco mais das situações da vida real de um
músico, em que conhecimentos e fazeres distintos se inter-relacionam, em que não
se veem as distinções entre teoria e prática, ou entre ler e escrever, normalmente
impostas pelos processos tradicionais de ensino de música.
Para além dessa questão, o solfejo, realizado coletivamente pelos participantes
do estudo 2, nos permitiu observar uma das características do processo de aprendiza‐
gem musical: assim como toda aprendizagem, a aprendizagem de música precisa se
dar, e, de fato, só é capaz de ocorrer efetivamente, a partir do coletivo. Os participan‐
tes do nosso estudo 2 fizeram melhor proveito do solfejo associado ao ditado que
aqueles do estudo de Buonviri (2015) porque nosso trabalho foi realizado coletiva‐
mente, com os estudantes mais desenvoltos cooperando com os menos experientes.
O resultado dessa colaboração é visto nos desempenhos individuais dos participan‐
tes, pois, até mesmo aqueles que cantaram corretamente porque foram ajudados por
pares mais capazes (e que supostamente acreditamos que tenham existido em nosso
estudo, como existem em qualquer sala de aula que se possa imaginar), mostraram
haver se apropriado efetivamente dessas contribuições, ao invés de simplesmente te‐
rem se deixado levar por aqueles que sabiam mais. Esse dado apenas evidencia que a
aprendizagem é, de fato, um evento que parte da interação, e nos coloca diante da
necessidade de questionarmos o ensino tradicional de Percepção Musical, calcado
em ditados e em outras tantas atividades que são realizadas individualmente, por
mais que os estudantes trabalhem reunidos em salas numerosas.
Este artigo, em síntese, partiu de referências e de estudos que podem ser situados
no campo da Cognição Musical, mas acabou por nos levar a discussões de caráter
pedagógico, a questionar o que fazemos tradicionalmente no ensino de Percepção
Musical, além de oferecer reflexões que podem se reverter em contribuições para a
prática de professores e de estudantes dessa disciplina. Não temos aqui o espaço para
um aprofundamento (merecido e necessário) dessas discussões, mas esperamos que
fique o convite para que voltemos a esse debate em torno do ditado e do desenvol‐
vimento da escrita musical na aula de Percepção Musical. Acreditamos que há muito
ainda a ser problematizado nesse sentido, e que a Cognição Musical pode nos forne‐
cer importantes evidências para esse debate.

Agradecimentos. Gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do


Amazonas, pelo apoio à realização das pesquisas aqui relatadas, e aos pesquisadores e partici‐
pantes que colaboraram para a efetivação deste trabalho.
34 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Notas
1 No original, “ability to hear musical relationships accurately and with understanding”.
2 Trata-se do projeto de pesquisa “Verificando a efetividade de estratégias usadas por
professores e estudantes para a construção da escrita musical”, que está sendo financiado
pela FAPEAM - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, e que tem
conclusão prevista para agosto de 2021. Este projeto está investigando uma série mais
ampla de estratégias de escrita associadas aos ditados praticados tradicionalmente nas aulas
de Percepção Musical.
3 Colaboraram para a concretização destas pesquisas Cristiane Hatsue Vital Otutumi,
Fernando Gabriel Batista Lima, Luciano Jeyson Santos da Rocha, Pablo da Silva Gusmão,
Rafael Dalalibera Rauski e Ronaldo da Silva.

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36
37
38
4
A CRIATIVIDADE NOS PROCESSOS DE
ENSINO E APRENDIZAGEM DE
VIOLONCELO: UM ESTUDO DE CASO
COM PROFESSORES NO PARANÁ
Maitê Vitória Alonso¹, Rosane Cardoso de Araújo²
¹²Departamento de Artes - Universidade Federal do Paraná, Brasil
¹maitevitoriaalonso@gmail.com, ²rosanecardoso@ufpr.br

Resumo
Esta pesquisa tem como tema a prática criativa nos processos de ensino e aprendizagem de violoncelo no
Paraná. O ensino de violoncelo no sul do Brasil tem sido frequentemente fundamentado em métodos
estrangeiros, fator este que tem fomentado discussões na área da educação musical a respeito das práticas
pedagógicas do instrumento que sejam adequadas ao contexto no qual estão inseridas. Ao mesmo tempo,
estudos defendem que a prática criativa é importante para desenvolver uma metodologia de aula cativante,
para manter os alunos motivados e para realizar adaptações conforme as suas necessidades, para que a
aprendizagem realmente ocorra e seja proveitosa para todos. Devido à diversidade de concepções a respeito
do termo “criatividade”, optou-se por utilizar os enfoques do indivíduo criativo e do processo criativo, a
fim de investigar como os dois professores de violoncelo participantes manifestam a criatividade em suas
práticas pedagógicas. As questões que nortearam o presente estudo, portanto, foram assim redigidas: Os
professores de violoncelo participantes utilizam recursos/estratégias criativas em suas práticas de ensino para
complementar e auxiliar propostas metodológicas contidas nos métodos utilizados? Se sim, como
desenvolvem suas aulas? Quais recursos/estratégias podem ser considerados como práticas criativas? Com
esta pesquisa, pretende-se contribuir com os estudos a respeito da criatividade no ensino instrumental, e
também fornecer conteúdos e reflexões sobre o ensino do violoncelo, enriquecendo o acervo de
ferramentas pedagógicas para o ensino e a aprendizagem desse instrumento.
Palavras-chave: Práticas criativas, Educação Musical, Violoncelo, Ensino instrumental, Criatividade docente.

Introdução
O ensino de violoncelo no Brasil tem sido predominantemente fundamentado na
educação formal e tradicional que herdamos do Conservatório de Paris, conforme
Penna (2015), e em métodos estrangeiros que em sua maioria são provenientes da
Alemanha e Estados Unidos, além dos métodos referentes à proposta Suzuki, con‐
forme o levantamento realizado por Reys (2011). Os professores de violoncelo, no
Brasil, encontram dificuldades para criar condições propícias à aprendizagem dos
alunos, pois, como aponta Abs (2015), há uma carência na formação de professores
de instrumento musical, visto que a maioria dos cursos em conservatórios e as gra‐
duações de Bacharelado em instrumento, de onde vêm a maioria dos educadores,
não preparam os músicos para a docência. Maciente (2008) argumenta que há uma
lacuna no ensino de violoncelo no Brasil, ocasionada pela ausência de trabalhos pu‐
blicados no país sobre a interpretação e a aprendizagem do instrumento. Para a au‐
tora, faltam traduções, trabalhos acadêmicos, livros e interesse de editoras, e é “um
campo totalmente aberto a explorações e a se desenvolver” (ibidem, p. 194). Costa
(2017) verificou que a linguagem dos métodos de ensino de violoncelo é de um
caráter formal e alguns dos exercícios sugeridos são muito complexos.
Sendo assim, embora exista um crescente interesse em desenvolver métodos
com uma abordagem mais prática e direcionados para a iniciação instrumental, eles
ainda não são comuns. Portanto, acaba se tornando incumbência dos professores,
quando necessário, retirar informações de métodos avançados e transformá-las em

39
40 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

práticas pedagógicas e jogos didáticos para que os alunos possam alcançar seus obje‐
tivos. Dessa maneira, as práticas criativas se fazem necessárias na presente situação
educacional, que demanda espaços e produções pedagógicas adequados. A criativi‐
dade na educação se mostra favorável ao promover novas estratégias de ensino, ao
possibilitar que os professores aperfeiçoem suas práticas e ao incentivar a autoconfi‐
ança, a motivação, a autonomia, a autorregulação e a participação e inclusão dos
alunos (Lilly; Bramwell-Rejskind, 2004; Morais; Azevedo, 2011).
Autoras como Alencar e Fleith (2003), Barrett (2000) e Beineke (2012) afirmam
que, a respeito da definição da criatividade, não há um consenso entre as teorias so‐
bre o significado exato do termo. Contudo, Sternberg, Lubart e Amabile (apud LU‐
BART, 2007) concordam que a criatividade pode ser considerada como a capacida‐
de de produzir algo que seja, ao mesmo tempo, novo e adaptado ao contexto no qual
está inserido. Na Teoria do Investimento da Criatividade, proposta por Sternbert e
Lubart (1991), a criatividade requer a confluência de seis recursos distintos, mas re‐
lacionados: as capacidades intelectuais, conhecimento, estilos de pensamento, perso‐
nalidade, motivação e ambiente. Para os autores, a criatividade não está relacionada
apenas a um único fator, mas ao sistema de confluência. A motivação intrínseca é
essencial para a criatividade. Amabile (1996) afirma que uma pessoa está intrinseca‐
mente motivada quando esta busca por prazer, interesse, satisfação da curiosidade,
autoexpressão e desafio pessoal na tarefa. A motivação intrínseca surge a partir de
emoções a respeito de uma determinada ação.
O objetivo geral desta pesquisa é investigar as possibilidades de prática criativa
no ensino do violoncelo na prática de dois professores atuantes no ensino superior
no estado do Paraná. Os objetivos específicos constituem-se de: (a) realizar um le‐
vantamento de metodologias de violoncelo utilizadas pelos professores participantes,
com foco na análise dos elementos que promovem a criatividade; (b) observar as
aulas desses professores com o propósito de verificar aspectos criativos na condução
didática e relacioná-los às teorias da criatividade.

Revisão bibliográfica
O ensino de violoncelo
Durante a história, o ensino do violoncelo sofreu transformações decorrentes das
funções que o instrumento desenvolveu no contexto da música ocidental. O olhar
de compositores, educadores e performers para o violoncelo se adaptou aos mesmos
passos que o avanço do instrumento ocorreu, como a alteração do material utilizado
para produzir as cordas, o aperfeiçoamento do arco e a invenção do espigão¹. As
técnicas de composição se modificaram conforme o advento de novas concepções
estilísticas, mas também devido ao violoncelo, com o passar do tempo, ter se popu‐
larizado como um instrumento solista (diferente do seu papel de acompanhamento
e basso continuo² na música dos séculos XVI e XVII). Smith (1973) constatou que
algumas práticas pedagógicas e métodos elaborados no século XVIII se assemelham
com o ensino do violoncelo moderno. Um desses aspectos é que os livros didáticos
ou tratados são muito similares, como a apresentação de uma imagem de um violon‐
celista nas primeiras páginas para ilustrar as partes do instrumento e a postura corre‐
ta, uma seção introdutória dedicada às noções básicas da música, uma parte específi‐
ca se tratando de escalas, e uma porção extensa de lições e exercícios. Bruner (1996)
aponta que os professores de cello em universidades têm como foco os estudos de
música orquestral e oferecem programas de treinamento intensivo. Esse árduo pro‐
cesso para se tornarem artistas profissionais afeta o que é ensinado fora das universi‐
Criatividade no Ensino de Música 41

dades, como nas aulas particulares, em que os repertórios e estudos são limitados em
algumas peças que marcaram a tradição da prática do violoncelo. Assim, parece ha‐
ver uma dicotomia entre se ensinar crianças e amadores, e os músicos que buscam
uma carreira profissional.
A respeito da criatividade na prática pedagógica de professores de violoncelo, a
abertura dos educadores para novas abordagens no ensino instrumental é necessária
para que a prática de seus alunos se dê de maneira integrada e abrangente. Keith
Swanwick (1994) defende que a aprendizagem se torna mais fácil quando as dificul‐
dades são abordadas sob diversos ângulos, como por exemplo, alterando o caráter
expressivo, a velocidade, a acentuação e a intensidade na prática de uma peça, o que
dá chances de que a técnica melhore e que a performance seja mais interessante. A
construção da liberdade artística, no entanto, se dá pela inclusão de práticas de
aprendizagem relacionadas ao desenvolvimento da criatividade, imaginação e liber‐
dade durante anos de prática instrumental. Marta Brietzke (2018) sugere que a liber‐
dade de relacionamento com o instrumento e de criação musical pode se desenvol‐
ver a partir dos jogos de improvisação, que também promovem a criatividade, a
expressividade, a escuta ativa e a autoestima dos alunos.

A Prática Criativa no Ensino Musical


A criatividade musical, geralmente, é identificada apenas como os processos de com‐
posição e improvisação, mas estudiosos e educadores têm se esforçado para ampliar
essa visão e incluir outros aspectos importantes, como a performance, a escrita e a
análise musical (Tafuri, 2006). Webster (2002) aponta três atividades criativas fun‐
damentais por meio das quais os indivíduos se envolvem em comportamentos mu‐
sicais: (1) a escuta, sendo o comportamento menos estudado como experiência cria‐
tiva; (2) a composição, que ocorre com menos frequência, mas é o processo mais
estudado; (3) e a performance. A criatividade musical, segundo Webster, envolve
uma combinação complexa de variáveis cognitivas e afetivas. Para ele, a criatividade
musical pode ser descrita como o engajamento da mente no processo ativo e estru‐
turado de pensar no som em função de produzir algo considerado novo pelo criador.
Para essa estrutura, o autor designou o termo “pensamento criativo” (Webster, 1990).
No âmbito educacional, há algumas tendências nas investigações sobre criativi‐
dade. Beineke (2015) afirma que há três perspectivas a serem consideradas: o ensino
criativo, o ensino para a criatividade e a aprendizagem criativa. O ensino criativo é
visto como o envolvimento dos professores em tornar o aprendizado mais interes‐
sante e efetivo com o uso de estratégias criativas (Cremin, 2009). Ensinar para cria‐
tividade, no entanto, é o comprometimento dos educadores em identificar as capa‐
cidades criativas dos alunos e estimulá-las. A aprendizagem criativa manifesta-se em
áreas específicas do conhecimento, sendo necessário o desenvolvimento de habilida‐
des e técnicas para a ação criativa (Beineke, 2012). Jeffrey e Woods (2009) defendem
que a ação pedagógica do professor é o elemento fundamental para que a aprendi‐
zagem criativa ocorra, e que as relações sociais entre professores e alunos têm grande
importância no desenvolvimento criativo.

Método
A metodologia empregada para a realização da pesquisa foi o estudo de caso (Gil,
2002). Foram coletados dados de dois professores de violoncelo, utilizando-se de
entrevistas semiestruturadas e observações de aulas. O critério para a escolha dos
professores participantes foi a experiência e atuação desses profissionais no ensino
42 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

superior e o fato de serem formadores de futuros docentes. As entrevistas semiestru‐


turadas eram formadas de 10 questões previamente formuladas, que envolviam: a
caracterização dos participantes, a análise do processo de estruturação de aulas, os
elementos da manifestação criativa e a motivação do professor e seus alunos. As ob‐
servações foram feitas em aulas coletivas e individuais com alunos da graduação do
curso de Bacharelado em Violoncelo durante oito encontros na Universidade A e
dois encontros na Universidade B. Para examinar as informações abarcadas nas en‐
trevistas e nas observações de aulas, optou-se pela análise de conteúdo, que Bardin
(2009) considera ser um conjunto de técnicas de análise das comunicações e proce‐
dimentos sistemáticos para descrever o conteúdo das mensagens, indicadores que
permitem a inferência de conhecimentos. A partir da leitura e da transcrição das
entrevistas, buscou-se classificar, salientar e categorizar trechos das mensagens pro‐
feridas pelos professores participantes.

Resultados e discussão
Averiguou-se que ambos os professores participantes tiveram uma formação musical
e profissional parecida. Em suas práticas docentes, os professores, predominante‐
mente, utilizavam métodos tradicionais de ensino do violoncelo. Contudo, foi pos‐
sível verificar práticas criativas no processo de elaboração e adaptação de aulas, ma‐
teriais didáticos e estratégias de ensino. Diante de um currículo restrito nas
universidades, constatou-se que os professores necessitavam criar, constantemente,
novas maneiras de resolver desafios técnicos e adaptar os métodos empregados para
que os alunos pudessem alcançar os objetivos propostos. A manifestação da criativi‐
dade nesses espaços de ensino fomentou nos alunos a autonomia, o pensamento
crítico e a capacidade de resolução de problemas, habilidades estas que são atributos
do pensamento criativo, de acordo com da Teoria de Investimento da Criatividade
de Sternberg e Lubart (1991).
Os professores demonstraram se preocupar com a criatividade musical dos alu‐
nos e os estimulavam a criar e a utilizar a imaginação em performances, sendo essas
atividades consideradas benéficas para o aprendizado satisfatório (Tafuri, 2006; Bur‐
nard; Murphy, 2017). Os professores apontaram que, apesar de inicialmente segui‐
rem a forma de ensinar que haviam aprendido com os seus professores, eles se depa‐
raram com as dificuldades dos alunos, como por exemplo, irregularidades de
andamento e pulsação, e, devido a isso, eles criavam exercícios na hora, fazendo com
que os alunos caminhassem e marchassem no andamento da música. As necessidades
faziam com que eles criassem alternativas. Alencar e Fleith (2003) argumentam que
o professor criativo é alguém que, ao se deparar com um problema, busca por soluções
formulando e experimentando hipóteses, até desenvolver um resultado satisfatório.
Gardner (apud Barrett, 2000) corrobora essa constatação, definindo que o indivíduo
criativo — aqui considerado como docente criativo — é alguém que, regularmente,
resolve problemas, imagina produtos e define novas questões num domínio. Sendo
assim, compreende-se que os professores participantes foram criativos ao desenvol‐
ver atividades e estratégias que auxiliassem seus alunos a resolver dificuldades técni‐
cas e de compreensão musical.

Conclusão
Constatou-se que há espaço para a criatividade docente no ensino superior, apesar
dos obstáculos ocasionados pelo currículo restrito e pela inclinação das instituições
para exercícios extremamente técnicos, pois a prática criativa deriva, inicialmente,
Criatividade no Ensino de Música 43

da condução didática, dos pressupostos pedagógicos e motivação dos educadores,


embora o ambiente e o ethos escolar possam prejudicar o potencial criativo. Com‐
preende-se que os professores em questão são criativos, pois precisaram pesquisar,
adaptar e criar abordagens e estratégias para resolver os desafios pertinentes ao ensi‐
no instrumental. Os alunos do Bacharelado em Violoncelo se mostraram motivados
a estudar com as atividades criativas, o que corrobora a teoria de Amabile (1996)
sobre a relação positiva entre a motivação intrínseca e a manifestação da criatividade.
Além disso, os estudantes envolvidos com a docência reproduziam as novas práticas
de seus professores, tornando-as práticas comuns em seu contexto, estabelecendo-se,
assim, novos padrões de ensino do violoncelo no Paraná. Foi possível observar que
há elementos específicos da prática pedagógica de violoncelo no Paraná, que não
foram encontrados em métodos tradicionais de ensino do violoncelo, como o uso
de recursos alternativos no processo criativo de resolução de problemas, a predomi‐
nância dos métodos estrangeiros no ensino intermediário e avançado, e o uso da
metodologia Sukuzi na iniciação ao violoncelo.

Notas
1 Espigão é uma haste ajustável de aço ou madeira fixada em uma cavidade no bloco
inferior do violoncelo. Ele é utilizado para suportar o peso do instrumento e controlar sua
altura sobre o chão para o conforto do violoncelista. Embora alguns suportes fixos fossem
usados nos séculos XVII e XVIII, o espigão não ganhou popularidade até a última metade
do século XIX. Muitas fontes atribuem a introdução e uso da haste ajustável ao eminente
violoncelista Adrien-François Servais (1807-1866), que passou a utilizar o espigão para
apoiar seu grande instrumento Stradivari (Randel, 2003).
2 Basso continuo (it., “baixo contínuo” ou “baixo cifrado”) significa que um grupo de
instrumentos, ou um instrumento solo como o cravo ou o órgão, tocam a linha do baixo
em uma obra musical. O basso continuo era comum na música de concerto dos séculos XVII
e XVIII (Kennedy, 2013).

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44
5
Criatividade no Ensino de Música 45

PROCESSOS CRIATIVOS NO ENSINO DE


MÚSICA: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE
LITERATURA DOS ARTIGOS PUBLICADOS
NOS ANAIS DO SIMCAM (2015 - 2019)
Brasilena G. P. Trindade¹, Ekaterina Konopleva², Franklin
José Barreto de Araújo³, Isabele Ferreira da Silva⁴
¹Departamento de Música - Universidade Federal do Maranhão, Brasil
²Programa de Pós-Graduação Profissional em Música - Universidade Federal da Bahia, Brasil
³⁴Grupo de Pesquisa “Música na Educação e na Saúde” - Universidade Federal do Maranhão, Brasil
¹brasilenat@hotmail.com, ²konopleva@gmail.com, ³franklin_sax@hotmail.com,
⁴isabelef14@gmail.com

Resumo
Este artigo apresenta uma Revisão Sistemática de Literatura das produções oriundas dos Anais do Simpósio
Internacional de Cognição e Artes Musicais (SIMCAM / 2015-2019), que tratam de processos criativos no
ensino de música. Seus objetivos específicos são: refletir sobre processos criativos no ensino de música e
pesquisar os artigos publicados nos Anais do SIMCAM — 2015-2019. Sua questão problema responde:
Quais as principais demandas sinalizadas nos artigos dos Anais SIMCAM — 2015-2019 — que discutem
sobre processos criativos no ensino de música? Este tema se justifica pelas vivências dos autores, instrumen‐
tistas e/ou educadores, que acreditam ser fundamental no ensino de música, mas, intencionalmente, pouco
trabalhado, independentemente dos níveis e espaços de atuação. Sua metodologia, representada pelas pes‐
quisas de abordagem qualitativa e de procedimento — Revisão Sistemática de Literatura —, fundamenta-se
em autores que versam sobre criatividade, ensino de música, criação/composição e práticas criativas. Foram
encontrados dez artigos sobre o tema, no perfil de pesquisas bibliográficas, estudos de caso e relatos de
experiência -, realizados em diferentes espaços (educação básica, escola especializada de música e universi‐
dade). A criatividade foi observada nos processos de ensino de música, envolvendo: composição, teclado,
piano, bateria, clarineta e canto coral. Os autores defendem a criatividade e a criação musical por promover
maior compreensão sobre os conteúdos musicais e obras estudadas e, ainda, por viabilizar a elaboração de
novos produtos.
Palavras-chave: Ensino de Música; Processos Criativos; Criatividade; Improvisação-Composição.

Introdução
Este artigo objetiva apresentar uma Revisão Sistemática de Literatura (RSL) dos ar‐
tigos publicados nos Anais do Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais
(SIMCAM), no período de 2015 a 2019, que tratam dos processos criativos no ensi‐
no de música. Assim, sinalizamos dois objetivos específicos: refletir sobre os cami‐
nhos criativos do ensino de música; e pesquisar os artigos publicados nos Anais do
SIMCAM/2015 a 2019 que versam sobre o tema. Sua questão problema responderá:
Quais as principais demandas sinalizadas nos artigos dos Anais do SIMCAM que
discutem sobre processos criativos no ensino de música?
Justificamos este tema por refletir nossas vivências como instrumentistas (flauta
doce, piano, saxofone e violino) e como educadores musicais (atuando em universida‐
des federais e/ou projetos sociais). Diante de nossas práticas, acreditamos que criativi‐
dade, processos criativos e criação musical devam estar presentes no ensino de música,
mas, infelizmente, são pouco trabalhados em variados níveis e/ou espaços de atuação.
Talvez, pelo fato de que muitas escolas, educadores, educandos e seus familiares, entre
outros grupos afins, focalizam, em especial, o resultado performático do estudo de
música, representado pela atividade de Performance. Sendo assim, o processo de ensi‐
no é centralizado em um determinado caminho de estudo técnico, em direta conso‐
nância com o Repertório Musical a ser apresentado como atividade avaliativa final.

45
46 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Nossa metodologia se enquadra na abordagem de pesquisa qualitativa, por se


apoiar na qualidade dos fatos e no aprofundamento dos valores (Goldenberg, 1997;
Minayo, 2007). O mesmo ocorre na Revisão Sistemática de Literatura (RSL) no que
se refere ao seu procedimento de pesquisa. Esse caminho de pesquisa “requer uma
pergunta clara, a definição de uma estratégia de busca, o estabelecimento de critérios
de inclusão e exclusão dos artigos e, acima de tudo, uma análise criteriosa da qualida‐
de da literatura selecionada” (Sampaio; Mancini, 2007, p. 83). Quanto à nossa funda‐
mentação teórica, tomaremos como base autores que versam sobre: ensino de música,
criatividade no ensino de música, criação/composição musical e práticas criativas.

Breves caminhos criativos do ensino de música


Como já sabemos, a Música é uma linguagem que se faz presente na cultura de todos
nós, independentemente do tempo, espaço, lugar etc. Formada apenas de som e si‐
lêncio, é composta de variados elementos — melodia, ritmo, harmonia, intensidade,
timbre, forma, estilo, texto, entre outros. O ensino de Música se faz legalmente pre‐
sente na educação básica (educação infantil, ensinos fundamental e médio) segundo
a Lei 9.394/96 (Brasil, 1996), e, opcionalmente, nos espaços especializado, social,
religioso, hospitalar, entre outros. Sendo o educador musical fruto de uma formação
superior — Licenciado em Música —, ele deve refletir atentamente acerca dos cami‐
nhos da educação do século XXI. Nesse sentido, apontamos os quatro pilares da
educação geral (aprender a: conhecer, fazer, conviver e ser), perfeitamente aplicáveis
a todas as áreas do conhecimento, inclusive a área de Arte (Delors, et al., 2004).
Pautados nos pilares e na nossa legislação (Art. 3º), consideramos o ensino de
música a ser desenvolvido com base em variados princípios, entre eles: II - liberdade
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
e III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (Brasil, 1996). Consequen‐
temente, a criatividade, de um modo geral, faz-se presente para cumprir o papel do
fazer diferente, da compreensão, do resolver problemas, da aproximação, da inclu‐
são, da formação. Nesse sentido, refletiremos, brevemente, sobre o caminho do en‐
sino de música.
Com base nos reconhecidos educadores musicais dos séculos XX e XXI (Matei‐
ro, Ilari, 2012), nas orientações norteadoras da educação Básica — mediante Refe‐
rencial, Parâmetros e Bases (Brasil, 1997, 1998, 1999, 2000, 2018) — e na educação
pautada na competência (conhecimento, procedimento e atitude), optamos por
considerar relevante a aplicação de variados parâmetros ou atividades musicais no
ensino de música em geral. Esse ensino pode ser ministrado, apoiado em um ou mais
instrumentos específicos, a exemplo de: flauta doce, violão, ukulele, piano, teclado,
xilofone/metalofone, entre outros.
Dessa forma, apontamos Swanwick, com sua conhecida Abordagem CLASP ou
C(L)A(T)E — Composição, Literatura, Apreciação, Técnica e Execução (França;
Swanwick, 2002). Em consonância com Swanwick, também consideramos a Abor‐
dagem Musical CLATEC, a qual defende as atividades de Construção de Instru‐
mentos, Literatura, Apreciação, Técnica, Execução e Criação (Trindade, 2008).
Muitos outros educadores musicais também defendem a aplicação de variadas ativi‐
dades no ensino de música, dentre elas, a criação/composição musical, a exemplo de
Schafer (2011a, 2011b, 1991) e Fonterrada (2015b). Segundo eles, esta atividade es‐
timula a prática de processos criativos, que devem ser desenvolvidos desde o início
do estudo de música, ou de um instrumento musical específico, independentemente
da qualidade e nível de estudos dos envolvidos. Para Fonterrada, “o domínio da cri‐
Criatividade no Ensino de Música 47

ação musical e da improvisação se dá pela experiência viva, seja ao instrumento, seja


com a voz e o corpo” (2015b, p. 3). Para Trindade, a Construção de Instrumentos é
um exemplo de atividade em que se promovem tantas outras atividades — técnica,
apreciação e criação (Trindade, 2008).
Refletindo sobre criatividade, esta pode ter diversas conceituações, mas R.
Sternberg (2008) a define em um conceito que representa um consenso de muitos
pesquisadores, como sendo o processo de se produzir algo diferente, original, que
tenha um valor representativo. Sintonizado com Barrett (2000), a criatividade pode
ser pesquisada a partir de variadas óticas: processos criativos, produtos criativos, pes‐
soas criativas e ambiente criativo. Novaes, citando Torrance, conceitua a criativida‐
de como “processos que torna alguém sensível aos problemas, deficiências, hiatos ou
lacunas nos conhecimentos.” Dessa forma, levando “a identificar dificuldade, procu‐
rar soluções, fazer especulações ou formular hipóteses, testar e retestar essas hipóte‐
ses, risivelmente modificando-as, e a comunicar os resultados” (1971, p. 18).
Sendo assim, a criatividade pode estar presente não somente na atividade de
composição/criação, mas também em variados processos musicais (Barrett, 2000)
que envolvam distintas atividades CLATEC (Trindade, 2008). Necessitamos de cri‐
atividade em contextos “micro, meso e macro,” tanto no ensino quanto na aprendi‐
zagem referente às atividades ligadas diretamente à música — Criação, Apreciação e
Execução —, assim como nas atividades que dão suporte ao fazer musical — Cons‐
trução de Instrumento, Literatura e Técnica.
Importante mencionar que “as práticas musicais em sala de aula não visam ape‐
nas à criação de algo novo para os alunos ou à aplicação de conhecimentos adquiri‐
dos, pois mais do que os produtos elaborados em aula, o foco são as aprendizagens
colaborativas”. Continuando, desenvolver um caminho de aprendizagem musical
criativo, musicalmente falando, “pode indicar uma alternativa possível quando se
deseja construir uma educação musical na escola básica que contribua com a forma‐
ção de pessoas mais sensíveis, solidárias, críticas e transformadoras, quando a criação
abre a possibilidade de pensar um mundo melhor” (Beineke, 2012, p. 56). Em segui‐
da, continuaremos refletindo sobre este tema, mediante as leituras realizadas nos ar‐
tigos encontrados.

Metodologia de pesquisa
Conforme mencionamos na Introdução, optamos pelo procedimento de pesquisa de
Revisão Sistemática de Literatura (RLS), que objetiva responder a uma questão por
meio de levantamento bibliográfico, fundamentado em uma base de dados com uma
temporalidade delimitada (Bottentuit; Santos, 2014). Escolhemos os Anais do SIM‐
CAM, por suas produções estarem sintonizadas com os nossos caminhos de busca,
no sentido de responder à questão problema. Sendo assim, consideramos como des‐
critores de buscas as palavras-chave: Ensino de Música, Processos Criativos, Criação
/Criatividade e Improvisação/Composição. Depois, fizemos nossas buscas, entre os
anos de 2019 a 2015, seguindo a ordem inversa das produções, considerando, pri‐
meiramente, o “ensino de música”, para, depois, os termos seguintes — criativos,
criatividades, improvisação e composição. Checamos os descritores de busca nos tí‐
tulos, resumos e palavras-chave.
Nossa base de dados (Anais do SIMCAM) está na sua XIV Edição, estando todos
disponíveis eletronicamente. O Simpósio é promovido pela Associação Brasileira de
Cognição e Artes Musicais – ABCM, “uma sociedade civil sem fins lucrativos que
congrega pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação e demais interessados
48 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

em cognição e artes musicais. A associação promove e organiza eventos científicos


e publicações acadêmicas na área de cognição musical.” A ABCM também mantém
o periódico Percepta, seguindo a mesma linha de pesquisa — cognição em música
(ABCM, 2020).
A seguir, na Tabela 1, apresentaremos, na ordem inversa de suas produções (de
2019 para 2015), os artigos selecionados sobre o tema, contendo as seguintes infor‐
mações: 1 – Título da fonte e período de busca, endereço eletrônico geral e descri‐
tores; 2 – Identificação de cada encontro, ano e seu respectivo endereço eletrônico;
3 – Número dos artigos, por ordem decrescente, quanto à data, aos títulos e auto‐
r(es).
Tabela 1
Relação dos artigos encontrados nos anais do SIMCAM - 2015 a 2019.

Portanto, foram selecionadas dez produções, em quatro Anais do SINCAM (XI/


2015, XII/2016, XIII/2017 e XV/2019), sendo que: a) nos Anais XI/2015, encontra‐
mos dois artigos; b) nos Anais XII/2016, encontramos três artigos; c) nos Anais XIII/
2017, encontramos dois artigos; e d) nos Anais XV/2019, encontramos três artigos.

Discussões e avaliação
A seguir, apresentaremos as descrições sucintas de cada artigo (título, autor e ano),
mencionando: tipos de pesquisa, objetivo, espaços físicos/institucionais, público
alvo, níveis de escolaridade, instrumentos musicais trabalhados, resultados encontra‐
dos e sugestões. Depois, sinalizaremos a nossa sucinta avaliação.
Artigo 1 – Hamond, Addessi e Beineke (2019) apresentam um “estudo explora‐
tório de caso-ação”, de abordagem qualitativa, com recortes de pesquisas de pós-
doutorado de uma das autoras. Inicialmente, são sinalizados autores que versam so‐
bre: uso de feedback mediado por tecnologia, improvisação e composição no ensino
de música. Seu objetivo geral é investigar o uso pedagógico do software MIROR-
Criatividade no Ensino de Música 49

Impro, por meio de feedback adicional gerado por tecnologia no desenvolvimento


de improvisação em instrumentos de teclado (piano digital).
Os dois graduandos pesquisados (oriundos dos cursos de Bacharelado em Piano
de uma instituição pública brasileira) realizaram duas sessões com tecnologia, regis‐
tradas em vídeo, e duas entrevistas semiestruturadas. Seus resultados afirmam que o
uso do software MIROR-Impro promoveu benefícios e limitações no desenvolvi‐
mento de improvisação em instrumentos de teclado. Os autores sugerem que os re‐
sultados deste artigo instiguem questões mais complexas quanto à formação profis‐
sional desses estudantes de Graduação em Piano — mudança no Currículo do Curso
e oferta de Disciplinas Obrigatórias referentes ao desenvolvimento de habilidades
funcionais, contempladas nos Cursos de Licenciatura em Piano.
Artigo 2 - Santos e Araújo (2019) aplicaram o método: estudo de levantamento
(Survey), e aplicação de um questionário a 20 graduandos (18 a 25 anos) do curso de
Licenciatura em Música. Eles objetivaram investigar as possibilidades de desenvol‐
vimento da criatividade musical, sob a perspectiva dos licenciandos em música. As
autoras se apoiaram em Barret (2000) ao afirmar que a criatividade musical não é
desenvolvida apenas por pessoas superdotadas e que não acontece unicamente nos
processos referentes à composição e improvisação, mas sim em variados processos
musicais. Os resultados indicaram que 95% dos estudantes estão atentos a essa aber‐
tura de concepções, afirmando possibilidades de desenvolver a criatividade de seus
alunos nas atividades de improvisação e a composição. Outras respostas enfatizaram
a possibilidade do uso da criatividade para proporcionar maior envolvimento do alu‐
no, gerando emoção e motivação, principalmente, ao realizarem: atividades rítmi‐
cas, desenhos melódicos, jogos da memória, mapas sonoros etc. Os graduandos pes‐
quisados demonstraram estar atentos quanto ao seu papel de futuro educador, aos
processos criativos das crianças e às suas possibilidades de promoção da criatividade
nas aulas de música.
Artigo 3 - Piekarski e Lüder realizaram uma pesquisa bibliográfica, parte de pes‐
quisas de doutorado de uma das autoras. O problema proposto refere-se à abordagem
da criatividade e imaginação na proposta da psicologia histórico-cultural de Vygotsky,
estabelecendo relações com criação musical no contexto escolar. Para Vygotsky, a ati‐
vidade criativa é própria do ser humano. Assim sendo, o professor de música pode
oportunizar vivências em que a criança combine elementos da música, estimulando o
comportamento reprodutivo, considerando as variações possíveis, e também incenti‐
vando a atividade combinatória desses elementos, por meio de atividades que envol‐
vam imaginação e ludicidade. Ao final, enfatizam a relevância de a educação musical
oportunizar a diversidade de experiências musicais, possibilitando, assim, o conheci‐
mento e desenvolvimento de habilidades técnicas e a aplicação do Repertório.
Artigo 4 - Pscheidt e Araújo realizaram um experimento didático conduzido,
objetivando investigar os comportamentos reflexivos percebidos durante as ativida‐
des de interação reflexiva e de criação, aplicadas no contexto do ensino de bateria,
em uma escola especializada em música, envolvendo duas crianças (6 e 11 anos de
idade). Pautado na hipótese da interação reflexiva humano/humano, que pode ser
usada como um recurso eficaz para o processo criativo (Addessi, 2012, 2014, 2015),
investiga-se o contexto da interação entre professor e aluno em aulas de bateria. Os
resultados indicam que essa interação foi promovida com base nas condutas essenci‐
ais para a qualidade reflexiva da interação, sendo elas: imitação/variação, corregula‐
ção, troca de turno e contingência temporal. Portanto, a interação representou uma
ferramenta didática para desenvolver a criatividade musical, por ter despertado a es‐
50 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

cuta atenta, improvisação, dinâmica e exploração de timbres. Ao final, as autoras


sugerem novas pesquisas nesse caminho.
Artigo 5 - Silva e Araujo apresentam o recorte de uma pesquisa “estudo de caso”,
apontando elementos criativos e motivacionais da prática de docência de uma re‐
gente no processo de ensino/aprendizagem, no contexto de um coro infanto-juve‐
nil, envolvendo 18 crianças e adolescentes (10 a 19 anos). Foram considerados cinco
ensaios corais observados e a aplicação de um questionário a todos, constando: dados
gerais, questões sobre suas participações nos ensaios, o repertório e as apresentações
do coro. Nas observações, foi identificada a realização de variadas atividades musi‐
cais lúdicas e criativas nos exercícios de aquecimento vocal e na prática do repertó‐
rio, além do uso de materiais didáticos diversificados. Ao final, foi possível destacar
as atividades de canto coral enquanto aprendizagem musical e aquisição de habilida‐
des. As atividades criativas puderam influenciar positivamente na motivação e no
desempenho musical dos envolvidos.
Artigo 6 - Oliveira e Rodrigues apresentam um projeto em andamento (relato
de experiência), objetivando discutir o processo criativo com objetos sonoros. Estes,
representados por instrumentos alternativos, de produção artesanal, foram feitos em
sala de aula e como atividade domiciliar por estudantes do ensino fundamental de
uma escola vizinha à Usina de Coleta de Lixo de Vitória (ES). Esta proposta foi fo‐
cada na Criatividade, Imaginação e Performance, sendo imprescindível a confecção
de objetos sonoros alternativos e sua participação na performance musical. Ao ma‐
nipular determinado objeto, o educando tende a ativar esquemas mentais que viabi‐
lizam o desenvolvimento de habilidades artísticas e outros aspectos como a criativi‐
dade, a imaginação e a performance musical, no contexto formal do ensino regular.
Os autores observaram que os processos criativos promoveram aquisição de saberes
e fazeres diferenciados de outras práticas vivenciadas na escola.
Artigo 7 - Mendes Krüge e Gomes Krüger apresentam o recorte de uma pesqui‐
sa, a qual objetiva compreender os processos criativos e motivacionais que ocorrem
em aulas de composição musical, nas universidades brasileiras, tendo como suporte
a Teoria de Sistemas para a Criatividade" (Csikszentmihalyi, 2014; 1996) e a "Teoria
Social Cognitiva" (Bandura, 1997, 1995, 1986, 1977). Essas duas teorias não tratam
do mesmo tema, mas abordam questões semelhantes, chegando a resultados simila‐
res em determinados aspectos. Elas foram construídas de forma sistêmica, abordando
a cognição e o comportamento, baseado na inter-relação entre indivíduos e ambi‐
entes socioculturais. Os autores apontam que o que é denominado de “comporta‐
mento criativo" foi reconhecido nas interpretações combinadas entre as característi‐
cas básicas da agência humana de Bandura e os cinco estágios do processo criativo
de Csikszentmihalyi.
Artigo 8 - Vasconcelos e Santiago realizaram um estudo exploratório-descritivo/
estudo de caso, objetivando investigar a história de vida de 12 licenciandos de três
turmas da disciplina Teclado/Piano, em Grupo do Curso de Licenciatura em Música
na UEFS, para compreender os processos de criação e a relação com suas experiên‐
cias prévias. As autoras objetivaram: obter informações dos discentes e suas forma‐
ções musicais e processos de aprendizados nas aulas de Teclado/Piano; estimular a
criação de uma obra a partir das suas experiências prévias e de um protótipo modelo;
estimular a descreverem seus processos de criação; e analisar os processos de criação
das composições, segundo a Teoria da Aprendizagem Significativa de Azubel. Fo‐
ram reconhecidas como estratégias relevantes: a valorização de experiências prévias
dos discentes no processo de aprendizagem; experiências desafiadoras e prazerosas
Criatividade no Ensino de Música 51

no trabalho criativo de autoaprendizagem; motivação para busca de superação de


problemas; e a valorização do processo da atividade e do produto final.
Artigo 9 - Mendes Krüger, Araújo e Gomes Krüger objetivaram refletir sobre
processos criativos e motivacionais nas aulas de composição musical, com bases na
Criatividade, segundo Czikszentmihalyi (1996) e a Teoria Social Cognitiva de Al‐
bert Bandura (1986). Essas teorias permitem uma visão ampla da complexidade, en‐
volvendo processos criativos e motivacionais da composição musical. Exibem um
gráfico que sintetiza as múltiplas influências que podem ocorrer nos processos criati‐
vos e motivacionais, tendo como base os dois referenciais utilizados no seu trabalho.
Artigo 10 - Tossini e Dourado apresentaram um recorte das pesquisas de mes‐
trado, as quais investigam o papel da improvisação na aprendizagem da clarineta. O
recorte de perfil metodológico “pesquisa bibliográfica” objetiva delinear parâmetros
teóricos que embasam o pressuposto de que a prática da improvisação pode promo‐
ver a autonomia do estudante perante sua aprendizagem instrumental. Seus resulta‐
dos foram favoráveis a esse objetivo, devido ao fato de que a improvisação na apren‐
dizagem instrumental promove uma autonomia do estudante frente à sua
aprendizagem. Ao atribuir significado aos conteúdos adquiridos, sendo capazes de
reorganizá-los e reaplicá-los, os alunos criam um discurso musical próprio.
Em geral, esses dez artigos versam sobre processos criativos e práticas musicais,
envolvendo crianças do ensino regular e jovens dos cursos de bacharelado em piano,
composição e licenciatura em música. Da mesma forma, envolvendo professores dos
cursos de composição e de outros cursos de música. A criatividade foi também ob‐
servada mediante exercício de composição e estudos do: teclado/piano, bateria, cla‐
rineta e canto coral.
Entre os artigos encontrados, podemos sinalizar as possibilidades de reflexão
acerca da criatividade, de processos criativos e da atividade de criação musical em
todos os níveis. A primeira deve estar presente em qualquer momento de interação
musical. Os seguintes devem ser desenvolvidos em uma sequência lógica, para um
fim específico. E, quanto à criação musical, representa o ápice de um processo cria‐
tivo, também desenvolvido em uma atividade específica, representada por um pro‐
duto musical – a improvisação, o arranjo e/ou uma composição.

Considerações finais
Neste artigo refletimos sobre os aspectos referentes à criatividade, processos e cria‐
ção musical. Os dois primeiros estão interligados ao processo de ensino e de apren‐
dizagem, enquanto a última está ligada ao produto final. Portanto, todos os termos
são imprescindíveis para a promoção de um estudante mais conectado com a educa‐
ção contemporânea.
Nossas demandas foram assim consideradas: tipos de pesquisa, espaços físicos/
institucionais, público alvo, níveis de escolaridade, instrumentos musicais trabalha‐
dos, principais resultados e sugestões. Ao final, foram encontrados dez artigos publi‐
cados sobre o tema, fruto das pesquisas - bibliográfica, estudo de caso, relato de ex‐
periência etc., assim como realizados em diferentes espaços não formais e formais. A
criatividade foi observada no ensino de teclado, piano, bateria, composição, clarine‐
ta e canto coral. Os autores defendem a pratica da criação no ensino de música por
promover maior compreensão sobre uma obra musical, e por viabilizar a ampliação
da criatividade na elaboração de novos produtos musicais.
Para alguns autores, mesmo sendo a criatividade um atributo de poucas pessoas,
ela deve ser incentivada e desenvolvida desde a educação musical infantil, envolven‐
52 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

do, ativamente, os professores para motivar e propiciar atividades significativas. Os


artigos sugerem que a atividade de criação musical promove a valorização das expe‐
riências prévias dos envolvidos, experiências desafiadoras e prazerosas, autoaprendi‐
zagem, motivação na busca de superação dos problemas, entre outros.
Este estudo contribui com a área de educação musical, por apresentar autores
que defendem e justificam a importância da criatividade e de processos criativos no
ensino de música, em todos os níveis de estudo, principalmente, na prática da ativi‐
dade criação/composição musical, sendo exemplo norteador para futuras pesquisas.

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6
54 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

PROCESSOS AUTORREGULATÓRIOS NA
PRÁTICA E MEMORIZAÇÃO DE JOVENS
MÚSICOS: UM ESTUDO DE CASO
Mônica Cajazeira Santana Vasconcelos¹, Diana Santiago²
¹Departamento de Letras e Artes - Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil
²Programa de Pós-Graduação em Música - Universidade Federal da Bahia, Brasil
¹moncajazeira@uefs.br, ²disant@ufba.br

Resumo
Este estudo é um recorte de pesquisa de doutorado que, além do estudo de caso aqui apresentado, envolveu
uma pesquisa survey. Essa survey foi aplicada a 170 jovens músicos estudantes de orquestra (Brasil e Portu‐
gal), entre 11 e 17 anos de idade, e buscou investigar suas experiências prévias, estratégias e dificuldades na
prática e na memorização musical. O estudo de caso, exploratório, descritivo e explicativo, procurou com‐
preender os processos autorregulatórios de aprendizagem envolvidos em suas práticas e memorização mu‐
sicais e as variáveis aí presentes. Constatou-se que os músicos ainda não possuíam o hábito de estabelecer
metas para cada etapa da preparação no estudo do repertório. Em relação à escolha e aplicação das estraté‐
gias cognitivas, eles conseguiram perceber quando precisavam desenvolver habilidades, e confiavam no
ensino de seus professores e dos maestros ao sugerirem estratégias para aperfeiçoar suas práticas no instru‐
mento e para motivá-los a ser bem-sucedidos. No monitoramento do seu desempenho, os estudantes ne‐
cessitavam da opinião do professor, motivando-os a se desafiarem mais e buscarem empreender mais esfor‐
ço no estudo das peças. Ao analisar os processos de aprendizagem dos participantes dessa pesquisa, percebeu-
se que, mesmo quando desconhecem as estratégias de memorização empregadas por músicos experientes,
algumas das estratégias que utilizam são semelhantes. Os resultados podem contribuir para a discussão sobre
a aprendizagem autorregulada de músicos estudantes.
Palavras-chave: Autorregulação. Aprendizagem. Memorização. Teoria Social Cognitiva. Orquestras infanto-
juvenis

Introdução
A aprendizagem tem sido, cada vez mais, encarada como um processo que os sujei‐
tos realizam por si próprios, de forma proativa. A autorregulação da aprendizagem
é um construto que vem atingindo destaque na Psicologia Educacional, predomi‐
nando como tema relevante de estudos e intervenções a partir da Teoria Social Cog‐
nitiva (TSC), teoria psicológica que discute o comportamento humano a partir da
lógica das interações recíprocas entre os fatores pessoais, ambientais/ sociais e com‐
portamentais, pautados na não distinção entre mente e corpo, tomando o ser huma‐
no como um ser integral.
Na perspectiva social cognitiva, compreende-se que as pessoas possuem capaci‐
dades básicas que definem o que significa ser humano (Figura 1): intencionalidade,
antecipação, autorreatividade e autorreflexão. A capacidade de ser auto-organizadas
(intencionalidade) porque constroem e planejam objetivos para si mesmas, fazem es‐
colhas e desenvolvem planos de ações para alcançar os seus propósitos, independen‐
temente de terem benefícios, ou não; a capacidade de ser proativas ou prognosticado‐
ras (antecipação), porque antecipam os resultados do desenvolvimento futuro de um
processo resultante das suas próprias ações e escolhas, indicando qual o caminho a
tomar para resolver possíveis problemas. As pessoas têm também a capacidade de ser
autorreguladas (autorreatividade) porque monitoram o seu comportamento, as con‐
dições cognitivas e ambientais em que esse acontece, criando auto-incentivos para se
manter motivadas e regular seus esforços na realização de seus objetivos. Elas são au‐
torreflexivas (autorreflexão) porque possuem a capacidade metacognitiva de refletir
sobre si mesmas e de ser autoexaminadoras de seu funcionamento (Bandura, 2008).
54
Criatividade no Ensino de Música 55

Figura 1
Características básicas que definem o ser humano, segundo Bandura (2008).

A partir dessa concepção, o papel ativo e proativo do indivíduo acontece de


forma consciente e voluntária, contudo, por meio do exercício de controle parcial
sobre suas ações, pensamentos e comportamentos. Os seres humanos não nascem
agentes, tornam-se agentes. A formação da identidade do indivíduo depende das
interações com o ambiente, como estruturam e relacionam suas vidas com o seu
entorno, “é um processo dinâmico e contínuo, no qual as interações sujeito-ambi‐
ente constroem as individualidades que são a expressão das escolhas, dos limites e das
possibilidades agênticas de cada um” (Azzi, 2014, p.32).
Apesar da maior parte das pesquisas que documentam os processos de memori‐
zação ser com músicos experts, há um interesse recente em compreender como estu‐
dantes músicos administram suas práticas (Lee, 2017; Lisboa; Chafin; Demos, 2015).
Neste estudo, os princípios da Teoria Social Cognitiva (Bandura, 1986), sobretudo
da teoria da autorregulação (Zimmerman, 2013; 1989), serviram de potencial para
entender os processos de aprendizagem de músicos engajados em orquestras infan‐
to-juvenis, sobretudo de memorização.

Autorregulação da aprendizagem
A autorregulação engloba qualquer esforço do ser humano em alterar seus próprios
estados internos ou respostas, ou seja, um processo consciente, no qual pessoas regu‐
lam seus pensamentos, emoções, impulsos ou apetites, e desempenhos de tarefas
(Vohs; Baumeister, 2004). Para Bandura (1986), autorregulação é uma capacidade
que faz parte da vida humana. A partir dessa concepção, o papel ativo e proativo do
indivíduo acontece de forma consciente e voluntária, contudo, por meio do exercí‐
cio de controle parcial sobre suas ações, pensamentos e comportamentos. Por que
parcial? Porque vários fatores estão envolvidos: os fatores pessoais internos do indi‐
víduo (aspectos biológicos, afetivos e cognitivos), os padrões comportamentais
(ações, escolhas e declarações verbais que as pessoas elaboram) e as influências do
meio ambiente (o ambiente físico e sócio estrutural, o ambiente potencial e o ambi‐
ente criado).¹ De acordo com a visão social cognitiva, o ser humano exerce um papel
ativo em sua própria vida por meio das capacidades de intervir no ambiente em que
55
56 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

vive, pelas ações intencionais e propositivas, permitindo que transcenda o presente


e regule o seu comportamento através de mecanismos autorregulatórios. A autorre‐
gulação é considerada como um mecanismo consciente e voluntário de controle que
gere os pensamentos, o comportamento e os sentimentos pessoais, tendo como re‐
ferência padrões pessoais de conduta, com o intuito de alcançar metas. O processo
motivacional está presente, o agente se depara com circunstâncias em que precisará
ter iniciativa e persistência quando estiver diante das dificuldades (Polydoro; Azzi,
2008). O construto da autorregulação tem contribuído para entender as particulari‐
dades dos estudantes na aprendizagem, além de frisar o papel ativo deles e destacar
o papel determinante do meio em que estão inseridos: “O meio deve proporcionar
ao aluno métodos e ambientes de aprendizagem que lhe propiciem a oportunidade
para desenvolver as competências necessárias a uma participação ativa” (Veiga Si‐
mão; Frison, 2013, p.6).
Nesta pesquisa, foi considerada a influência dos ambientes, observando os locais
específicos que os músicos escolhem para a prática, como ajustam as condições des‐
ses ambientes e como ativam a busca de informações que possam auxiliá-los. Os
fatores sociais também tiveram ênfase, o que foi observado ao analisar a participação
do professor, o envolvimento da família e dos pares no processo de aprendizagem
dos estudantes e como os músicos selecionam as informações necessárias para desen‐
volverem a capacidade de monitorar e controlar sua aprendizagem.
No campo da autorregulação da aprendizagem, são vários os modelos teóricos que
têm surgido. Nesta investigação, optou-se por utilizar o Modelo de Fase Cíclica de
Aprendizagem Autorregulada de Barry Zimmerman, por algumas razões: 1) por ser
amplamente utilizado nas pesquisas e aplicado em salas de aula; 2) por concentrar-se
no papel proativo do estudante no seu processo de aprendizagem e 3) por conter um
maior número de variáveis que possibilitam a compreensão do envolvimento dos
aspectos metacognitivos, afetivos, motivacionais e contextuais envolvidos nos pro‐
cessos autorregulatórios.

Modelo de fase cíclica de aprendizagem autorregulada


Com a finalidade de relacionar os processos de autorregulação da aprendizagem, as
crenças motivacionais e os resultados da aprendizagem, Zimmerman (2000) propôs
um modelo cíclico de autorregulação de aprendizagem baseado na TSC. De acordo
com o modelo, os processos de aprendizagem do estudante operam através de três
fases: fase de antecipação ou prévia, fase de execução e controle e fase de autorrefle‐
xão. Os processos da fase prévia acontecem na preparação de todos os esforços que
os estudantes concentram para a aprendizagem antes da execução da tarefa. A fase
de execução e controle acontece durante a tarefa, quando os estudantes são motiva‐
dos pelas expectativas e crenças e realizam processos de autocontrole e automonito‐
ramento do desempenho. Por fim, os processos da fase de autorreflexão acontecem
após a aprendizagem; é a etapa de autoavaliação, na qual acontecem os julgamentos
após os resultados alcançados.
Em todas as fases desse modelo (Figura 2), os processos cognitivos, metacogniti‐
vos, comportamentais e motivacionais estão presentes e atuam de forma interdepen‐
dente. A fase prévia influencia a fase de execução e controle, essa, por sua vez, influ‐
encia a fase de autorreflexão, que acaba gerando impacto no ciclo que se inicia
novamente. Esse modelo visa a explicar a persistência e o senso de realização dos es‐
tudantes proativos, assim como a evitar que estudantes reativos cometam equívocos
ou desistam de seus processos de aprendizagem (Zimmerman, 2013; 2000; 1989).
Criatividade no Ensino de Música 57

Figura 2
Ciclo de aprendizagem autorregulada segundo Zimmerman (2000)

A autorregulação se inicia por uma aprendizagem observacional. Os jovens


músicos podem ser capazes de induzir características das estratégias de aprendiza‐
gem a partir da observação de modelos - como o professor ou outros alunos. Eles
precisarão praticar, no entanto, para integrar totalmente as habilidades que estão
aprendendo em seus repertórios comportamentais. As melhorias, durante a prática,
ocorrem quando os alunos têm oportunidades de observar modelos que fornecem
orientação, feedback e reforço social, e que respondem às suas necessidades de refinar
aspectos da habilidade que estão tentando dominar. Durante esse processo, as estra‐
tégias e o feedback são baseados nos esforços do aluno para imitar o modelo desejado.
Isso significa que as habilidades (como um problema de coordenação das mãos no
instrumento) devem ser adquiridas, inicialmente, cognitivamente, através da obser‐
vação (incluindo a escuta) de um modelo. Assim, quando o estudante músico está
inserido nesse processo autorregulatório de aprendizagem, possui consciência sobre
a sua forma de aprender, suas capacidades e limitações. Ele aprende a estabelecer
objetivos e metas para a sua prática musical, escolhe as estratégias eficazes para suas
tarefas, monitora o seu desempenho no decorrer do treinamento do repertório, atri‐
bui significados a seu processo de aprendizagem, procurando a ajuda do professor
ou pares, quando necessário, além de controlar e avaliar seus processos cognitivos,
metacognitivos, motivacionais e comportamentais.

Metodologia
Um dos principais objetivos desta pesquisa foi compreender os processos autorregula‐
tórios de aprendizagem na prática e memorização musical em estudantes de conjuntos
orquestrais infanto-juvenis. Para o estudo de caso, os conjuntos orquestrais foram es‐
colhidos visando à faixa etária e a disponibilidade das instituições de ensino para con‐
tribuir com a investigação. Em Portugal, colaboraram com a pesquisa, duas institui‐
ções: o Conservatório de Música da Escola de Artes da Bairrada (CMB), em Oliveira
do Bairro e o Projeto da Orquestra Geração (POG), em Lisboa. No Brasil, foi escolhi‐
58 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

do para participar do estudo, o Programa Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e


Infantis da Bahia (NEOJIBA), especificamente, a Orquestra Pedagógica Experimental
(OPE), que tem trabalhado com a prática orquestral de crianças e adolescentes.
Após uma survey aplicada a 170 jovens dessas orquestras, que contou com ques‐
tões sobre o contexto do estudante e aspectos de sua prática e memorização musical,
foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 20 dos músicos das orquestras (12
a 17 anos de idade). Foi elaborado um guia de entrevista, que foi submetido à análise
por três juízes, profissionais da área de educação musical, docentes universitárias,
uma brasileira, uma brasileira naturalizada portuguesa e uma portuguesa. No guia
da entrevista, teve-se o cuidado de adaptar a linguagem do português brasileiro para
o português europeu, pois o idioma falado nos dois países possui várias particulari‐
dades, algumas delas com ortografias e/ou sentidos diferentes. As questões da entre‐
vista foram elaboradas com base nos processos que se fazem presentes nas três fases
do modelo teórico de Zimmerman. A partir das fases, estabeleceu-se a inter-relação
com os subprocessos autorregulatórios já elaborados pela própria teoria (ZIMMER‐
MAN, 2013; 2000).
Como demonstrado na Figura 3, o roteiro das entrevistas incluiu três seções:
uma seção sobre a validação da entrevista, uma seção demográfica e uma seção sobre
prática e memorização musical. A primeira constou das informações sobre os proce‐
dimentos da aplicação da entrevista e questões éticas. A segunda, a seção demográfi‐
ca, centrou-se nas características pessoais e contextuais dos sujeitos, incluindo idade,
instrumento musical que toca, tempo de estudo no instrumento, razões para a esco‐
lha do instrumento e gênero de peças que toca. A terceira seção buscou informações
sobre aspectos da prática instrumental e memorização musical: o planejamento da
prática, as estratégias de estudo (gerenciamento do tempo, organização do ambien‐
te, utilização dos recursos de forma eficaz e busca de ajuda) e o automonitoramento
do desempenho. Por fim, buscou-se captar o sentido que o entrevistado deu à pró‐
pria situação da entrevista (uma síntese e metarreflexão sobre a própria entrevista).

Figura 3
Guia da Entrevista (Amado, 2017, p.218).

O processo de análise dos dados foi realizado com o auxílio de um software de


pesquisa qualitativa, o QDA Miner Lite². As questões da entrevista investigaram qua‐
litativamente o envolvimento dos estudantes na memorização instrumental, as estra‐
tégias de memorização utilizadas e as experiências vividas por eles. Nas três fases da
autorregulação da aprendizagem, de acordo com o modelo cíclico de Zimmerman,
há a presença das dimensões cognitiva/metacognitiva, motivacional e comportamen‐
Criatividade no Ensino de Música 59

tal (Zimmerman e Risenberg, 1997; McPherson e Zimmerman, 2002; 2011). Sendo


assim, foram analisadas essas fases e dimensões que explicam a autorregulação como
um processo no qual o sujeito possui consciência sobre a forma de aprender e a capa‐
cidade de gerenciar seu desempenho em direção aos objetivos que deseja alcançar.

Resultados
Na fase prévia, os estudantes não mencionaram fazer um planejamento de estudo
semanal de forma sistemática, como por exemplo, um guia eficaz para a prática. En‐
tretanto, a maioria dos instrumentistas reserva, pelo menos, quatro dias na semana
para se dedicar ao estudo, buscando um local apropriado em casa, sem distrações,
para melhor aproveitamento. A gestão das atividades acontece na medida em que se
desenrolam os estudos, e não previamente. Como exemplo dessa gestão, escolher o
melhor horário e local para o treino e traçar objetivos enquanto vão progredindo,
ou não, com as peças. Nessa fase, os estudantes músicos se envolvem na motivação
para aprender através de suas crenças de autoeficácia, das expectativas dos resultados
que pretendem atingir, do valor que dão às tarefas e da orientação de objetivos. Al‐
guns indicadores apresentados pelos instrumentistas nas entrevistas referiram-se à
determinação em utilizarem as estratégias adequadas na preparação das peças e ao
foco em obter sucesso em tocar com qualidade o seu repertório.
Em relação ao envolvimento dos músicos com o professor e/ou maestro, na fase
de planejamento nesse estudo, isso não foi muito evidenciado. Somente dois dos es‐
tudantes mencionaram que receberam auxílio no planejamento da prática quando
eram iniciantes no instrumento. A variável comportamental está relacionada às ações
do estudante para reunir recursos pessoais, materiais e sociais que impulsionem a exe‐
cução dos objetivos propostos, a construção de estratégias e de métodos que lhe per‐
mitam chegar à aprendizagem (Frison, 2006). O esforço empreendido pelos estudan‐
tes instrumentistas no planejamento e preparação da sua aprendizagem depende de
estratégias para a seleção de atividades e organização e estratégias para gerenciamento
do tempo (Fonseca, 2010). Tais ações são visíveis quando se percebe que os jovens
músicos tomam iniciativa, depositam esforço, agem com intencionalidade para regu‐
larem o próprio comportamento. Observa-se, no entanto, que a escolha do repertó‐
rio é determinada pelo professor/maestro, sem a participação ativa dos estudantes,
podendo causar-lhes desinteresse quanto a avançar, ou até, levá-los à desistência.
A fase de execução é onde o jovem músico organiza o tempo e planeja as estra‐
tégias adequadas para seu estudo. Para os estudantes de orquestra, a maior parte do
tempo de estudo acontece nos ensaios, nos quais o maestro conduz o passo a passo
e faz as observações necessárias na preparação do repertório, na maioria das vezes,
em conjunto. O estudo em casa é um complemento dessa prática, mas que merece
a atenção dos estudantes a fim de otimizar o estudo e aperfeiçoar o seu desempenho.
As entrevistas evidenciaram que os estudantes possuíam bons hábitos de estudo. Eles
tinham consciência de que a qualidade e a disciplina de estudo são fundamentais
para a aprendizagem no instrumento. Entretanto, ao refletirem sobre a organização
e a gestão de tempo no estudo, identificaram que convivem, eventualmente, com
aspectos que impedem a dedicação na aprendizagem, como distrações, o número de
atividades escolares e outros compromissos pessoais.
Dentre as estratégias cognitivas, as que são mais utilizadas pelos músicos estão
relacionadas ao trabalho de aspectos técnicos, à repetição de trechos e à separação
das partes mais complexas das peças para o estudo. É visível que a maior parte dessas
estratégias de aprendizagem foi ensinada por professores. Destacaram-se as seguin‐
60 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

tes estratégias: (i) escutar a música para ter uma visão do todo; (ii) dividir a peça em
partes, debruçando-se sobre trechos que exigem mais trabalho; (iii) fazer marcações
na partitura para indicar pontos a que deveriam dar mais atenção. Os estudantes com
até 4 anos de estudo afirmaram concentrar sua atenção nas partes de outros instru‐
mentistas da orquestra como referência para recordar a música. Aqueles com mais
de 4 anos de estudo informaram utilizar a estrutura formal da peça para organizar o
estudo do repertório, concentrando-se em determinados pontos das mesmas para se
localizar, bem como nas passagens de uma parte para outra. A capacidade de os
músicos jovens se manterem motivados na execução da prática instrumental é im‐
portante para que alcancem os objetivos pretendidos e se autoavaliem, tendo cons‐
ciência de que estão utilizando as ferramentas certas, ou não. As falas dos entrevista‐
dos revelaram que, nem sempre, os estudantes se mantinham motivados, por não
conseguirem se autorregular, por não entenderem o porquê estavam errando e/ou
por não saberem escolher ou adaptar as estratégias mais adequadas, tornando, muitas
vezes, o estudo exaustivo.
Na fase da reflexão, a dimensão cognitiva está presente no fazer musical dos
músicos ao pensarem sobre as ações construídas na preparação do repertório musi‐
cal, de maneira a avaliar a prática realizada e a qualidade de seu desempenho. Ao
refletirem sobre o envolvimento cognitivo e metacognitivo, os jovens músicos, ao
explicarem como estudam, como memorizam e como escolhem determinadas estra‐
tégias cognitivas para os problemas que surgem, nem sempre fazem uma reflexão
intencional, principalmente no que tange à aprendizagem da memorização, que, na
maioria das vezes, acontece de forma inconsciente. Ao tomarem decisões a fim de
avaliar se estão melhorando, ou não, estabelecem suas opiniões a partir de referências
do professor/maestro e pares, bem como de registros videográficos de sua execução
no instrumento. Nos depoimentos dos jovens músicos, as reflexões revelam que o
monitoramento cognitivo e metacognitivo de seus processos de aprendizagem os
conduz à tomada de consciência de onde estão e onde pretendem chegar. Bandura
(2008) evidencia que o comportamento humano é regulado através de consequên‐
cias autoavaliativas, por meio da satisfação pessoal, da autovalorização, também da
insatisfação pessoal e da autocrítica. O ato de tocar um instrumento musical, que
exige variadas habilidades, é um exemplo disso, pois os estudantes estão envolvidos
o tempo todo com reações pessoais avaliativas. De acordo com os resultados das en‐
trevistas, quanto mais experientes, as exigências dos jovens músicos aumentavam,
tornando-os mais críticos e reflexivos quanto ao seu aproveitamento. Na fala dos
entrevistados, o “lidar com seus medos de errar” é bem comum, por isso, acaba sendo
um indicador que motiva os estudantes a estudarem mais, a fim de superarem as
limitações e poderem se sentir seguros ao tocar nos ensaios da orquestra e, conse‐
quentemente, nas apresentações. De modo geral, a tensão imposta pelo próprio pro‐
cesso de aprendizagem do músico (por exemplo, mostrar ao professor, semanalmen‐
te, o que está sendo produzido; a insegurança de tocar de memória, etc.), impulsiona
o instrumentista a monitorar seu desempenho e buscar soluções para as dificuldades
junto ao professor. Essas ações podem gerar sentimentos positivos, como a confiança
em si próprio e um contentamento por ter conseguido atingir os resultados, ou po‐
dem gerar efeitos negativos, trazendo ansiedade, frustração e vontade de desistir.
Zimmerman (2013) chama esse processo de autorreação.
Criatividade no Ensino de Música 61

Considerações finais
Ao analisar os processos de aprendizagem dos participantes deste estudo, percebeu-
se que eles se instrumentalizam com estratégias que potencializam seu estudo no
instrumento musical. Os músicos adolescentes demonstraram, independentemente
dos contextos e condições de aprendizagem, o esforço de se tornarem bem-sucedi‐
dos. Desenvolveram suas habilidades em solucionar problemas de execução, seleci‐
onando estratégias e buscando o auxílio do professor, maestro e pares. A prática da
memorização foi reconhecida como uma atividade essencial na performance desses
músicos, contudo bastante complexa por gerar ansiedade, medo e insegurança, prin‐
cipalmente, por não terem sido ensinados a memorizar o mais cedo possível, ou quan‐
do iniciavam o estudo de uma peça nova. Músicos estudantes devem ser incentivados
e apoiados na organização e planejamento dos seus processos de aprendizagem.
O estudo de caso evidenciou que ainda não era comum o planejamento da
prática na rotina dos estudantes. Geralmente, os professores e maestros se preocupa‐
vam mais com o produto final (performance), dedicando uma atenção reduzida à
condução dos instrumentistas no planejamento de suas sessões de estudo. Estudos
antes deste já sugeriram ferramentas para esse fim, como planos de estudo para os
estudantes definirem suas próprias metas e acompanharem seu desempenho (McP‐
herson; Zimmerman, 2011), ou guias para a preparação dos músicos para exames
avaliativos (Philippe et al., 2020). Sugere-se que professores e maestros possam ori‐
entar seus alunos a definirem objetivos, desde o início da escolha do repertório. Re‐
comenda-se a organização de um plano de estudo detalhado, além da discussão com
os estudantes sobre as habilidades necessárias para que otimizem os seus estudos. Em
relação ao ensino da memorização, ela necessita fazer parte das vivências dos estu‐
dantes. A memorização deliberada pode ser desenvolvida com estudantes músicos de
orquestras, pois, assim como os músicos experts, os estudantes também possuem es‐
tratégias variadas de memorização, necessitando do auxílio do professor para desen‐
volvê-las.

Agradecimentos. À Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PPPG) da Universidade


Estadual de Feira de Santana (UEFS), através do Programa de Ajuda De Custo (PADF), Edi‐
tal nº001/2017 e ao Programa Institucional De Bolsas De Doutorado Sanduíche no Exterior
– PDSE ao apoio financeiro ofertado pela Coordenação de Apoio ao Pessoal de Ensino Su‐
perior (CAPES).

Notas
1 No ambiente físico e sócio estrutural, as pessoas não têm muito controle, mas têm a
liberdade de interpretar e reagir; já o ambiente potencial depende do que as pessoas fazem e
selecionam dele. Caso tenham uma elevada autoeficácia, se concentrarão nas oportunidades
que terão, se tiverem uma baixa autoeficácia, se concentrarão nos impedimentos, nos
problemas. No ambiente criado, as pessoas criam condições para servir a seus propósitos.
Assim, “as crenças das pessoas em sua eficácia pessoal e coletiva desempenham um papel
influente na maneira como organizam, criam e lidam com as circunstâncias da vida,
afetando os caminhos que tomam e o que se tornam” (Bandura, 2008, p.24).
2 O QDA Miner Lite é software gratuito de análise qualitativa produzido pela Provalis
Research (https://provalisresearch.com/resources/tutorials/free-qualitative-data-analysis-
software/). Pode ser usado para codificação e análise de dados textuais, como transcrições
de entrevistas, respostas abertas, etc., bem como para a análise de imagens.
62 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

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62
7
Criatividade no Ensino de Música 63

APRENDIZAGEM DA COMPOSIÇÃO EM
CONTEXTO UNIVERSITÁRIO: UM ESTUDO
SOBRE MOTIVAÇÃO PARA A PRÁTICA DA
CRIAÇÃO MUSICAL
Ramon Fernandes¹, Rosane Cardoso de Araújo²
¹Departamento de Artes - Universidade Federal do Paraná, Brasil
²Departamento de Artes - Universidade Federal do Paraná, CNPq, Brasil
1
ramonfmdecastro@gmail.com, 2rosanecardoso@ufpr.br

Resumo
A composição musical é um desafio de criação humana e é uma ação que ocorre impulsionada por algum
tipo de motivação, intrínseca ou extrínseca. Para compreender essa dicotomia da motivação intrínseca/ex‐
trínseca, tem-se a Teoria da Autodeterminação (Deci & Ryan, 2004; Ryan & Decy, 2017), que discorre
sobre as qualidades motivacionais por meio de um continuum que vai da amotivação até a motivação intrín‐
seca, passando pelas motivações extrínsecas de regulação externa, introjetada, identificada e integrada. Cada
uma delas representa um grau de interiorização da motivação no indivíduo. Quanto mais elevado esse grau,
melhor é a qualidade motivacional, o envolvimento e o desempenho na atividade. Neste sentido, questio‐
na-se neste estudo quais aspectos motivacionais podem estar envolvidos na aprendizagem da composição,
considerando-se os níveis de envolvimento descritos na Teoria da Autodeterminação. A metodologia uti‐
lizada foi um survey de pequeno porte, realizado a partir da “Escala de Autorregulação da Aprendizagem”,
adaptada de Figueiredo (2010). Participaram da pesquisa 16 estudantes de composição de diferentes univer‐
sidades de Curitiba. Os resultados indicaram que a motivação dos participantes variava principalmente en‐
tre a ‘Motivação Extrínseca por Regulação Identificada’ e a ‘Motivação Intrínseca’, pois eles demonstraram
que estudavam composição principalmente por ser uma atividade prazerosa, porque gostavam de compor
e porque gostavam de aprender. Como conclusão, foi possível aferir que os participantes possuíam forte
motivação para seguir em suas atividades. Os principais motivos que levavam os participantes a se dedicar
à composição estavam associados ao prazer pessoal e a questões de identidade, demonstrando altos níveis de
autodeterminação e, consequentemente, motivação.
Palavras-chave: Composição Musical, Teoria da Autodeterminação, Motivação

Introdução
A busca por compreender o processo criativo instiga pesquisadores e pensadores há
séculos. Com a composição musical, não é diferente. Sloboda (2008), em seu livro
A Mente musical: a psicologia cognitiva da música, já alertava para a necessidade da
realização de mais pesquisas nessa área. Nesse sentido, nesta pesquisa, buscou-se tra‐
tar de um dos elementos envolvidos no processo criativo: a motivação, isto é, o mo‐
tivo que faz um indivíduo agir, criar. Partindo-se da ideia de que a motivação está
diretamente relacionada com o processo criativo em si — uma vez que ela pode ser
fundamental para a qualidade do envolvimento na atividade — seu estudo pode for‐
necer ferramentas para auxiliar na elucidação do processo criativo.
Outro ponto relacionado ao processo criativo é o seu aprendizado. Buscar
aprender a compor, a criar, também é relevante, independentemente se de forma in‐
tuitiva, autodidata ou formal. Esse aprendizado também pode ser decisivo na qualida‐
de do engajamento com o processo, e a motivação, por sua vez, é substancial a ambos.
Dentro dessa lógica, portanto, questiona-se: quais aspectos motivacionais podem es‐
tar envolvidos na aprendizagem da composição musical em contexto universitário?
Para nos auxiliar nesses aspectos e embasar este trabalho, foi escolhida a Teoria da
Autodeterminação, dos autores Deci e Ryan (2004), como fundamento teórico.

63
64 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Teoria da autodeterminação
A Teoria da Autodeterminação (TAD) foi elaborada entre as décadas de 70 e 80 e
visa a compreender quais os elementos que compõem a motivação humana. De for‐
ma geral, podemos compreender a motivação como aquilo que nos impele a desem‐
penhar uma atividade, a agir e/ou assumir e manter determinado comportamento.
Em poucas palavras: trata-se do motivo que nos move. A motivação pode ser classi‐
ficada em duas qualidades diferentes: como motivação intrínseca, quando o motivo é
intrínseco à atividade. E como motivação extrínseca, quando a razão de se realizar a
atividade é externo a ela (Buzneck 2001; Engelmann, 2010; Figueiredo, 2010).
Anteriormente, a teoria da autodeterminação e as teorias da motivação conside‐
ravam que a qualidade de envolvimento estava diretamente subjugada a essa ambi‐
valência qualitativa da motivação. Isto é, acreditava-se que uma atividade desempe‐
nhada por motivação intrínseca sempre apresentaria melhores resultados de envolvi‐
mento do que uma realizada por motivação extrínseca. Os autores da TAD, no en‐
tanto, diluíram essa dicotomia e demonstraram que, mesmo motivado extrinseca‐
mente, um sujeito pode ter engajamento em uma ação e qualidades em sua execu‐
ção. Eles chegaram a essa ideia ao perceber que há outros fatores que implicam na
motivação e em sua qualidade (Guimarães, 2004).
Desse modo, os autores defendem que a motivação está relacionada com a satis‐
fação de três necessidades psicológicas básicas: a sensação de autonomia, de compe‐
tência e a necessidade de pertencimento (Ryan & Deci, 2017). Em linhas gerais, a
sensação de autonomia implica em o indivíduo se sentir à frente de suas ações, isto
é, ter a plena sensação de que suas ações são de sua escolha e que ele não estaria sendo
manipulado ou influenciado externamente a realizá-las. A necessidade de compe‐
tência se refere à busca da pessoa em se sentir capaz de interagir satisfatoriamente
com o seu meio. Por fim, a necessidade de pertencimento se caracteriza pelo esforço
em estabelecer relações interpessoais, em se sentir pertencente a um ambiente e em
concretizar vínculos seguros e duradouros. Nesse sentido, quanto mais satisfeitas es‐
tiverem essas necessidades, maior e melhor será a qualidade motivacional e o envol‐
vimento do indivíduo com suas ações (Engelmann, 2010; Figueiredo, 2010).
Por meio da relação entre essas necessidades e a motivação, é possível com‐
preender como a motivação extrínseca pode, também, resultar em autodetermina‐
ção e envolvimento na atividade. De acordo com os autores, isso ocorre a partir do
grau de internalização do motivo relacionado a cada uma das necessidades básicas
(Ryan & Deci, 2017). Tais pontos são clarificados e apresentados por meio de um
processo denominado Continuum de autodeterminação. Com ele, é possível com‐
preender quais são os fatores relacionados às motivações intrínseca e extrínseca, bem
como identificar as quatro formas diferentes de motivação extrínseca, de acordo
com seus respectivos níveis de internalização (Engelmann, 2010).
Os autores da TAD destrincharam a motivação extrínseca em quatro formas
distintas de regulação, são elas: a regulação externa, a introjetada, a identificada e a
integrada. A diferença entre essas regulações se dá no grau de interiorização do mo‐
tivo, o qual, por sua vez, dialoga com as necessidades básicas. Quanto maior for essa
interiorização, maior será a qualidade e o envolvimento na atividade. Em outras pa‐
lavras: quanto mais o motivo de se desempenhar determinada atividade correspon‐
der às necessidades, interesses e valores da pessoa, mais motivada ela estará (Deci &
Ryan, 2004; Ryan & Deci, 2017).
O Continuum da autodeterminação, portanto, organiza a motivação em seis
qualidades diferentes: a amotivação, a motivação extrínseca por regulação externa,
Criatividade no Ensino de Música 65

regulação introjetada, regulação identificada, regulação integrada e, por fim, a mo‐


tivação intrínseca.
A amotivação designa a ausência completa de motivação, ou seja, não há moti‐
vos que façam o indivíduo agir. A regulação externa representa a motivação extrín‐
seca como se compreendia anteriormente, isto é, quando a razão de desempenhar
determinada atividade é exterior a ela.
A regulação introjetada, por sua vez, apresenta um grau um pouco mais elevado de
interiorização por meio de sua relação com a necessidade de pertencimento. Ela acon‐
tece quando o motivo está associado ao vinculo social; quando o sujeito age ou assume
determinado comportamento, pois este é bem visto socialmente, e, com isso, ele se sen‐
te pertencido a um grupo específico, saciando sua necessidade de pertencimento.
Na regulação identificada, o grau de interiorização é ainda maior, consequen‐
temente, o nível de autodeterminação também. Essa regulação se caracteriza quando
o sujeito se identifica com a atividade; quando ele compreende a importância dela e
se interessa por ela. Dessa forma, se relaciona com a necessidade de autonomia, uma
vez que a pessoa se compreende à frente de sua escolha; ela age porque é importante
pra ela e não por estar sendo obrigada ou manipulada de alguma forma.
A última regulação da motivação extrínseca é a integrada. Essa forma regulatória
é a que apresenta o maior grau de interiorização do motivo. Ela ocorre quando o mo‐
tivo é avaliado e demonstra compatibilidade com os valores e necessidades pessoais.
Devido ao alto nível de autonomia, esse estilo regulador apresenta qualidades muito
próximas à motivação intrínseca, diferenciando-se dela apenas pelo elemento prazer.
Por fim, finalizando o Continuum, temos a motivação intrínseca que, como dito
anteriormente, acontece quando o motivo de realizar determinada tarefa é intrínse‐
co a ela. Isto é, quando nos empenhamos em alguma atividade por ela mesma, pelo
prazer e satisfação pessoal que temos ao desempenhá-la, de modo que nos envolve‐
mos por completo e atingimos excelentes resultados.
Por meio desse panorama, podem-se perceber alguns pontos importantes que
auxiliam em um desenvolvimento psicológico saudável do indivíduo. Posto a im‐
portância da motivação intrínseca e da motivação extrínseca por regulação autôno‐
ma, a TAD ajuda a compreender os elementos que compõem tais motivações e as
razões de suas impulsões. Ademais, ressalta-se que, para um envolvimento satisfató‐
rio com qualquer atividade e uma aprendizagem de qualidade, comportamentos au‐
todeterminados são fundamentais, sendo eles tanto intrínseca quanto extrinseca‐
mente motivados.

Método
Com vistas a analisar os níveis de motivação e compreender quais aspectos motiva‐
cionais estavam envolvidos na aprendizagem da composição musical de estudantes
universitários, utilizou-se um survey de pequeno porte a partir da ‘Escala de autode‐
terminação de aprendizagem’ adaptada de Figueiredo (2010). Em termos gerais, tra‐
tou-se de um questionário com 20 afirmações relacionadas com cada um dos níveis
do continuum de autodeterminação. Apenas a regulação integrada não foi contem‐
plada no questionário, devido à sua proximidade com a motivação intrínseca, o que
dificulta a separação clara e definida entre as duas. Dessa forma, cada nível foi con‐
templado com 4 afirmações.
As afirmações se iniciavam com ‘Eu estudo composição...’ e, então, seguiam-se
os complementos associados a cada um dos níveis. O participante respondia confor‐
me seu grau de satisfação com a frase formada e o quanto ele concordava ou não com
66 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

ela de acordo com sua experiência pessoal. As respostas foram dispostas em Escala
Likert de 7 pontos, na qual 1 significava discordo plenamente; 2 discordo bastante;
3 discordo no geral; 4 não discordo nem concordo; 5 concordo no geral; 6 concordo
bastante e 7 concordo plenamente. Desse modo, após ler a afirmação, o participante
assinalava, dentre 1 a 7, o quanto estava de acordo, desacordo ou indiferente.
O conjunto de complementos referentes à motivação intrínseca procurou cor‐
relacionar o estudo da composição com prazer e satisfação, por exemplo: “eu estudo
composição porque é prazeroso”; ou: “eu estudo composição porque eu gosto de
compor”. O grupo de alternativas referentes à motivação extrínseca por regulação
identificada associou o estudo da composição com a importância pessoal da ativida‐
de, por exemplo: “eu estudo composição porque eu gosto de aprender novas habili‐
dades”; ou: “eu estudo composição porque é importante para mim”. O conjunto de
alternativas referentes à motivação extrínseca por regulação introjetada procura vin‐
cular o estudo da composição com a aprovação social, por exemplo: “eu estudo com‐
posição porque quero que os outros pensem que sou competente”; ou: “eu estudo
composição porque me sentiria pressionado caso não estudasse.” O grupo de alter‐
nativas referentes à motivação extrínseca por regulação externa procura relacionar
o estudo da composição com o uso de recompensas ou punições, por exemplo: “eu
estudo composição porque é obrigatório para poder obter boas notas”. Por fim, o
grupo de alternativas referentes à amotivação procura associar o estudo da composi‐
ção com o sentimento de incompetência, por exemplo: “eu estudo composição, mas
não obtenho resultados positivos”.
Assim, pôde-se compreender o nível de regulação dos participantes a partir da
comparação entre os percentuais de respostas de cada grupo de alternativas. Os per‐
centuais foram obtidos calculando-se a média de repostas em cada uma das variáveis
nas diferentes questões.

Resultados
O questionário foi enviado para alunos de composição musical da UFPR (Universi‐
dade Federal do Paraná), EMBAP (Escola de Música e Belas Artes do Paraná) e
UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) que cursavam, do 2º período
da graduação, até alunos de mestrado. Para preservar a identidade dos participantes,
o questionário foi anônimo e não teve nenhuma questão de levantamento dos dados
gerais do participante (tais como idade, sexo, período etc.). Foram obtidas 16 respos‐
tas ao todo, entretanto é importante salientar que as turmas de composição musical
costumam ser pequenas e o ingresso de novos alunos é baixo em relação às outras
habilitações. Dessa maneira, por mais que pareça pequeno, é um número expressivo
nessa área.
Como já mencionado, o questionário utilizado consistiu em uma série de afir‐
mações em que, a partir da frase “eu estudo composição...”, os participantes assina‐
laram as alternativas - dispostas em uma escala de um a sete - conforme sua satisfação
com a frase formada. Para fins de análise, as questões foram agrupadas por estilo re‐
gulatório, de forma que, por meio do cálculo da média das respostas, fosse possível
comparar os níveis de concordância, indiferença ou discordância e os estilos regula‐
tórios. Foram consideras respostas em nível de concordância aquelas localizadas en‐
tre os escores 7, 6 e 5; indiferença 4 e discordância os escores 3, 2 e 1. Somando-se
a média em cada um desses escores, é possível compreender qual estilo regulatório
predomina nos participantes. Desse modo, apresentaremos, aqui, um recorte dos re‐
sultados obtidos e discutiremos brevemente o que eles podem nos dizer.
Criatividade no Ensino de Música 67

Ao pensarmos que a motivação intrínseca se evidencia quando o indivíduo de‐


sempenha uma atividade apenas pelo prazer em realizá-la, quando “tal comprome‐
timento com uma atividade é considerado ao mesmo tempo espontâneo, parte do
interesse individual, e autotélico, isto é, a atividade é um fim em sim mesma” (Gui‐
marães, 2004, p.37), podemos constatar que um meio de identificar a presença ou
ausência dessa forma de regulação motivacional é verificar se os motivos que direci‐
onam as ações do sujeito são pessoais a ele, portanto, os complementos relacionados
a este estilo regulatório foram nesta direção. Assim, ao observarmos as respostas dos
participantes, notamos que 13 (88,55%) deles responderam com altos índices de
concordância, ou seja, afirmativamente, que estudam composição “porque se sen‐
tem bem”, ou “porque é prazeroso” etc. A partir disso, pode-se aferir que a motiva‐
ção intrínseca se apresenta de forma sólida em suas ações, pois são sentimentos de
satisfação, bem-estar e prazer que justificam seu agir.
No entanto, quando os participantes associaram seus estudos a elementos exter‐
nos, isto é, motivados extrinsecamente, prevaleceu a regulação identificada. Confor‐
me Figueiredo (2010), esse tipo regulatório se “caracteriza pela valorização da ativi‐
dade e importância pessoal” (p. 61) atribuída pelo sujeito, ou seja, o indivíduo se
identifica com a ação e a faz porque acha importante. Nesse sentido, Engelmann
(2010) explica que se trata do início de um comportamento consciente, de identifi‐
cação ou empatia com a atividade a ser realizada, de forma que o sujeito passa a de‐
positar importância e valorização à atividade, tornando o locus de causalidade relati‐
vamente interno, ou seja, o sujeito começa a se sentir autônomo e no controle de
suas ações, simbolizando, portanto, “um aspecto significativo no processo de trans‐
formação da regulação externa em auto-regulada” (Engelmann, 2010, p. 55). Desse
modo, pode-se averiguar a presença dessa forma de regulação ao observar se o mo‐
tivo de agir do sujeito está relacionado com valorização e importância pessoal. A
partir disso, quando os dados nos mostraram que 13 participantes (83,30%) concor‐
daram que se dedicam ao estudo da composição musical “porque é importante” para
eles, ou “porque querem melhorar seu nível técnico musical” etc., pode-se concluir
que o que os motiva a estudar composição é a alta valorização pessoal que eles têm
consigo por esta atividade, pela importância que ela tem para eles e por se identifi‐
carem com a composição, caracterizando, portanto, a regulação identificada.
Por meio dos resultados obtidos, foi possível refletir sobre quais aspectos moti‐
vacionais estão envolvidos no estudo da composição dos participantes e, a partir dis‐
so, compreender qual é a qualidade dos motivos que os levam a estudar. Estes dados
e reflexões são relevantes ao ensino da composição e à compreensão do processo
criativo, uma vez que podemos pensar em maneiras de potencializar determinada
qualidade motivacional, mantê-la, ou não a deixar se esvair, contribuindo, conse‐
quentemente, com a qualidade do envolvimento na atividade criativa.

Considerações finais
Considerando os resultados apresentados, é possível concluir que os alunos que es‐
tudam e se dedicam à composição o fazem com alto grau de motivação. Sendo os
principais motivos relacionados com prazer pessoal e questões de identidade, ou seja,
devido à sensação de bem-estar, de competência, satisfação e valorização particular
da atividade. Tais fatores demonstram os altos níveis de autodeterminação e, conse‐
quentemente, de motivação presente nos participantes, categorizadas principalmen‐
te como ‘motivação intrínseca’ e ‘motivação extrínseca por regulação identificada’.
Essas duas formas de motivação, como nos mostra o Continuum da Autodetermina‐
68 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

ção, são as que caracterizam a motivação autônoma e, portanto, garantem a qualida‐


de do aprendizado, bem-estar e envolvimento com o processo criativo.
Os níveis mais controlados da motivação, por sua vez, se mostraram presentes
em menor grau e sempre que se associava a razão de se estudar composição a fatores
externos ou introjetados — tais como notas e culpa, as respostas negativas se acentu‐
avam. Os resultados demonstraram também, que a amotivação, ou seja, a ausência
de motivos para agir, é praticamente nula nesses alunos, o que reforça, ainda mais, a
natureza autônoma da motivação presente nos participantes. Tal disparidade entre
os níveis altos e baixos de motivação — os níveis altos aparecendo em maior grau
conforme exposto pelos resultados — minimiza a relevância do número de partici‐
pantes na pesquisa (que foram 16), visto que, conforme os resultados desta pesquisa,
supõe-se que para esta categoria de estudantes de música (compositores), possivel‐
mente, os resultados não se alterariam expressivamente com o aumento do número
de participantes, pois a composição parece ser uma atividade que exige muito enga‐
jamento e interesse pessoal.
Ao revelar os níveis elevados de motivação presente nos estudantes de compo‐
sição, esta pesquisa converge para outras pesquisas envolvendo motivação e música.
Na pesquisa de Edson Figueiredo (2010) — uma investigação acerca da motivação
de bacharelandos em violão —, por exemplo, os participantes “demonstraram altos
índices de motivação em estudar violão. Esse resultado mostra-se oposto aos estudos
de motivação no ensino superior, que demonstram uma gradual queda na motiva‐
ção dos alunos” (p. 99). Tal constatação sobre a motivação para estudar música, em
oposição a outras áreas do ensino superior em geral, corrobora a ideia de que há um
engajamento muito forte dos estudantes com suas práticas musicais. Nessa mesma
pesquisa, o autor ressalta a potência de uma atividade intrinsecamente motivadora,
que, segundo ele, mesmo com todos os percalços presentes no estudo musical, os
alunos seguem motivados e empenhados em suas atividades (idem, p. 100). Por fim,
os resultados da presente pesquisa demonstraram que, mesmo a composição sendo
uma atividade desafiadora, os estudantes que participaram deste estudo apresentaram
elevados níveis de motivação para realizar suas tarefas, reafirmando, mais uma vez,
portanto, a forte relação entre práticas musicais e motivação.

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Criatividade no Ensino de Música 69

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Sloboda, J. A. (2008). A mente musical: psicologia cognitiva da música (1ª ed.). Londrina, PR:
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72
8
AFEFÊ 1: ESTADO DE PRONTIDÃO,
MAPEAMENTOS E MECANISMOS DE
MEMÓRIA EM JOGO EM UM PROCESSO
CRIATIVO COLABORATIVO
Lia Günther Sfoggia¹, Guilherme Bertissolo²,
Ráiden Coelho³
¹²Universidade Federal da Bahia, Brasil
³Secretaria Municipal da Educação, Salvador/Bahia, Brasil
1
liasfoggia@gmail.com, 2guilhermebertissolo@gmail.com, 3raidencoelho@gmail.com

Resumo
Este texto enfoca uma pesquisa performativa que resultou em Afefê 1, uma obra colaborativa para flauta,
eletrônica e vídeo composta pelos autores durante o período de isolamento social. A ideia inicial desse tra‐
balho partiu do conceito de Estado de Prontidão, oriundo de uma pesquisa performativa, realizada em âm‐
bito formal por Lia Sfoggia no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da
Universidade Federal da Bahia. Estiveram envolvidos também os conceitos de surpreendibilidade, bem
como a noção de mapeamento entre os elementos composicionais (intra-domínios) e entre música e mo‐
vimento (inter-domínios), como formulados por Brower. Estado de Prontidão é um dos conceitos inferi‐
dos no contexto da capoeira e se refere à necessidade do capoeira manter-se alerta e disponível, e como esse
comportamento influencia no modo de se mover. A ideia de imprevisibilidade em relação ao futuro, o fato
de nunca sabermos o que pode acontecer no instante seguinte, a possibilidade de sofrer uma ataque a qual‐
quer momento, a desconfiança. Tudo isso propicia a necessidade de manter-se num constante estado cor‐
poral de prontidão para agir. Em Afefê 1 esse estado foi motivado por uma gravação prévia de uma obra
musical para flauta solo, que foi ímpeto para a criação de um vídeo, posteriormente musicado a partir de
mapeamentos entre a música original e (re)interpretações pelo flautista a partir dos movimentos vídeo. O
processo foi mediado por mecanismos cognitivos da memória, sobretudo no âmbito da memória motora
incorporada, e articularam elementos implícitos e explícitos.
Palavras-chave: Composição Musical, Teoria da Autodeterminação, Motivação

Sobre o estado de prontidão, pesquisa performativa e complexidade


Respire fundo e expire longamente, sinta o ar fluindo através do corpo e trazendo à
tona o movimento. Esse é Afefê¹, a peça colaborativa composta pelos autores e que
coloca em pauta o conceito de Estado de Prontidão. Em seu primeiro desdobramen‐
to – Afefê 1 –, configura-se como uma obra colaborativa para flauta, eletrônica e
vídeo, composta no período de isolamento social provocado pela pandemia da CO‐
VID-19. Imersos num convívio diário que reuniu, além dos autores, suas famílias, a
ideia inicial partiu do conceito de Estado de Prontidão (Sfoggia, 2019) inferido do
contexto da Capoeira Regional². Com o decorrer do processo criativo, identificam-
se, também, os conceitos de surpreendibilidade (Bertissolo, 2013), bem como a no‐
ção de mapeamento entre os elementos composicionais (intradomínios) e entre
música e movimento (interdomínios), como formulados por Brower (2000). Este
artigo apresenta os conceitos que permearam o processo criativo colaborativo, en‐
trelaçando experiências, teorias e configurações de som e imagem.
Entrar numa roda de capoeira é sempre um momento de lacuna. Não há previ‐
sões, e sim uma pluralidade de possibilidades. A ideia de conhecer o oponente, ob‐
servar, traçar tendências e reincidências é possível, mas não há como saber como a
pessoa recriará sua resposta de movimento no diálogo corporal, pois nosso corpo é
continuidade de experiências. A cada minuto, estamos nos reorganizando num pro‐

73
74 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

cesso ininterrupto que se fricciona com memórias armazenadas e o processamento


do espaço-tempo que acontece agora. Dessa forma, o Estado de Prontidão se refere
à necessidade do capoeira manter-se alerta e disponível, e como esse comportamen‐
to influencia no modo de se mover.
O processo de inferência desse conceito ocorreu em relação a uma experiência
pessoal (Lia Sfoggia) no contexto da Capoeira Regional, como um contexto afetivo
delimitado pelo trabalho do Mestre Nenel (Manoel Nascimento Machado)³. Ainda
assim, esse conceito pode ser identificado em várias (se não todas) manifestações de
capoeira, além de diversas configurações da cultura popular. Em Afefê 1 isso se tor‐
nou uma realidade concretizada, visto que, enquanto dois dos artistas se relacionam
com a Capoeira Regional (Lia e Guilherme), outro é praticante de Capoeira Angola
(Ráiden), configurando uma busca multidirecional de fortalecimento da capoeira
como manifestação da cultura popular brasileira, independentemente de sua confi‐
guração. Além disso, na tese que apresenta o Estado de Prontidão (Sfoggia, 2019),
outros artistas não-capoeiristas interagem de forma horizontal, pois a capoeira, nesse
contexto, é um modo de operar e não o conteúdo. A complexidade que a rege e a
mantém pertinente no tempo é o que a coloca num lugar de protagonismo em re‐
lação aos processos criativos em arte.
Para a inferência do Estado de Prontidão, foram realizados laboratórios de análi‐
se de imagens e de movimento⁴, que indicaram pontos que corroboram uma pers‐
pectiva contemporânea, evidenciando a processualidade como elemento fundamen‐
tal no processo criativo:
Não são decisões do artista que regem a obra sob esse entendimento,
mas sim as emergências do processo, que são nada mais que reverbera‐
ções daquele corpo no tempo-espaço por ele vivido em relação com seu
contexto. Obras baseadas nesse ponto de vista não são compostas, são
sim auto-eco-organizadas; e só podem acontecer assim, pois se colocam
como sistemas abertos. (Sfoggia, 2019, p. 16)

Essa ideia se debruça fortemente no entendimento de sistema auto-eco-organi‐


zador⁵ de Morin (2006) e, no contexto da pesquisa em questão, viabilizou-se através
de estratégias de exploração corporal com o Movimento Autêntico⁶ e o Sistema La‐
ban/Bartenieff de Análise do Movimento (L/BMA – Laban/Bartenieff Movement
Analysis), apoiados por autores que vêm evidenciando a capacidade do corpo de tra‐
zer a memória como informação incorporada. A observação e análise da dinâmica
da roda e os laboratórios afloram a pluralidade de resoluções dos desafios corporais.
Há um aprendizado muito rico que, invariavelmente, indica um lugar de não defi‐
nição, porque é impossível traçar uma dinâmica da causa e efeito, tendo em vista a
complexidade dessa relação. Com efeito, o Sistema Laban/Bartenieff viabiliza uma
análise que corrobora a complexidade, de modo que podemos identificar alguns pa‐
râmetros de análise e discussão que se referem (não exclusivamente) a esse conceito,
tais como a pausa dinâmica⁷, a variabilidade de fatores expressivos⁸, o Suporte Mus‐
cular Interno⁹, a Intenção espacial em relação à Categoria Espaço.¹⁰
O Estado de Prontidão, ao se colocar como um fruto da relação do espaço-tem‐
po de cada jogo em diálogo com os corpos (complexos) que se entremeiam em ações
corporais, assume a impossibilidade de traçar parâmetros concretos de análise de
movimento, pois depende do seu acontecimento. Nesse sentido, o entendimento
desse conceito perpassa modos de organização corporal (Categoria Corpo no Siste‐
ma Laban/Bartenieff ), mais do que pela análise de Expressividade, de Forma ou Es‐
paço. São as possibilidades dos corpos que estão em jogo que alimentam essa concei‐
tuação, para além do modo como enxergamos o movimento resultante dessa orga‐
Cognição e(m) Processos de Criação 75

nização. Essas possibilidades, traduzidas num conceito a ser explorado criativamen‐


te, possibilitam ao processo nuances que se desdobram em materiais, como, no caso
de Afefê 1, sonoros e de imagem, através do movimento corporal, que serão descritas
a seguir.
Para concretizar uma proposta tão multifatorial e complexa, emerge a necessi‐
dade de uma metodologia que abrace essas variáveis. É dessa forma que a pesquisa
performativa viabiliza essa obra, pois é uma metodologia que propõe a emergência
do fazer como pressuposto, diferindo-se de uma metodologia qualitativa no modo
de operar e na forma como organiza o conhecimento. Embora a tradição qualitativa
apresente estratégias para análise de situações de prática, tais como a complexidade,
incerteza, instabilidade, singularidade entre tantas outras variáveis (Haseman, 2015,
p. 43), essas são estratégias de pesquisa que se baseiam na prática, mas não a colocam
como elemento central da pesquisa, como o faz a pesquisa performativa. A pesquisa
performativa também vai além de uma pesquisa artística no que diz respeito ao papel
da obra de arte (ou da prática abordada) no processo. É uma fronteira muito delicada
de se perceber, mas fundamental, pois muda o impacto da existência da prática no
ato de pesquisar. Ciane Fernandes aborda essa questão, esclarecendo que há um es‐
tado de relação que se modifica entre a pesquisa artística e a performativa, pois “no
campo artístico, toda Pesquisa relacionada à Prática é artística, mas nem toda prática
artística é pesquisa” (Fernandes, 2013, p. 25). O fazer emerge no contexto performa‐
tivo. Não se trata de olhar para uma prática já existente e analisá-la ou ainda desdo‐
brá-la em outros processos, tampouco precisa necessariamente gerar um resultado
final, pois o processo é a pesquisa, independentemente de onde se chega. Na pesqui‐
sa performativa, há uma associação tão estreita entre pesquisa, criação e realização
que todas se tornam uma coisa só: não há criação e realização sem pesquisa, bem
como criar e pesquisar sem realizar se torna sem sentido, pois é na prática que o
conhecimento proposto acontece.

Etapas do processo criativo


Os laboratórios tiveram como foco principal mitigar as questões de mapeamento
inter e intradomínios, bem como as noções de memória incorporada, seja pelo viés
implícito oriundo da música original que foi o ímpeto do processo, seja em contex‐
tos explícitos que buscaram articular os elementos no resultado final. A principal
contribuição deste trabalho, além da própria obra resultante do processo artístico,
está relacionada à discussão das bases cognitivas envolvidas na criação colaborativa.
Buscamos mostrar como as noções de mapeamento e os diferentes esquemas de me‐
mória estão envolvidos na ideia de Estado de Prontidão. As principais implicações
disseram respeito aos modos de colaboração nos processos de criação, mediados pela
cognição musical contemporânea, ilustrados por um processo criativo com um re‐
sultado concreto, com elementos que foram veiculados a partir de um arcabouço
teórico da cognição incorporada no âmbito de uma pesquisa performativa em cola‐
boração.
Consideramos o processo criativo colaborativo de Afefê 1 como uma ocorrência
em nove etapas distintas: contexto (isolamento coletivo), propulsor criativo, escuta
e análise da partitura, exploração de multifônicos, composição colaborativa, estudo,
prática, memorização e incorporação, gravação da flauta com regência do vídeo,
edição da eletrônica e finalização do vídeo. Essas etapas não seguiram necessaria‐
mente uma linearidade ou causalidade, mas se entrelaçaram de maneira complexa,
ressignificando todo o processo no incessante ir e vir das tomadas de decisão.
76 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

O contexto do processo criativo nos remete a um isolamento coletivo que foi seu
principal propulsor. A possibilidade de isolar-se coletivamente surgiu do envolvi‐
mento pessoal-afetivo entre os participantes que, além de colaboradores, são amigos
e partilham convívio familiar, que envolve filhos e parcerias. Essa tomada de decisão
se refere ao Estado de Prontidão no sentido da variabilidade de fatores expressivos
que, metaforicamente, representam o impulso de aceitar ou não a ampliação da bo‐
lha social em tempos de pandemia, quando o risco de contato pessoal sem distancia‐
mento (éramos quatro adultos, duas crianças de 6 anos, dois bebês de 2 anos e uma
cachorra), opõe-se à necessidade de contemplar a saúde mental de todos – que pul‐
sava por novos horizontes após 5 meses de reclusão. Após o convite, foram muitos
momentos de pausas dinâmicas, nas quais, aparentemente, o tempo se suspendia
numa imobilidade de planejamento e respostas, mas, em verdade, o corpo reunia
uma mobilidade intensa em busca de encontrar a decisão certa. Essa sensação se es‐
tende ao convívio coletivo, no qual a negociação de dois modos de vida familiares
oscila entre convicções diferentes e a busca por eixos norteadores, nessa constante de
variabilidade e pausas. O fato de dividir o convívio com crianças também nos coloca
numa atenção que destaca o Suporte Muscular Interno na intermediação e organiza‐
ção. Afefê 1 começou a acontecer mesmo antes de sabermos de sua possibilidade.
Em relação ao propulsor criativo, o simples fato de reunir três artistas numa mes‐
ma casa já suscitou a oportunidade de aflorar um processo criativo. Já havíamos tra‐
balhado juntos na obra Noite¹¹, há 12 anos, num tempo em que a possibilidade de
compartilhar a vida cotidiana com filhos não era algo que vislumbrávamos, muito
menos num contexto de pandemia. Lia sugeriu que o processo de experimentação
emergisse de uma gravação preexistente, sem que assistíssemos ao vídeo ou ouvísse‐
mos a música novamente. Ráiden sugeriu o seu vídeo de estudo da peça Estudos
Tanguísticos Número 4: Lento Meditativo, de Astor Piazzolla, registrado meses antes
da decisão do isolamento coletivo.
A escolha de se partir de um estudo e gravação preexistentes, realizada pelo flau‐
tista para uma experimentação e ressignificação dos seus elementos, possibilitou que
diferentes mecanismos de memória fossem acionados pelos colaboradores. Estamos,
aqui, nos referindo aos mecanismos descritos por Snyder (2000) e Huron (2006).
Ráiden se relacionava mais intimamente com a obra, com uma memória episódica
das suas sonoridades, além de uma memória motora envolvida nos seus processos
performativos e as memórias implícitas esquemáticas em relação às frases e elemen‐
tos estruturantes da obra. Guilherme e Lia, por outro lado, não conheciam a música
dessa forma, estando sujeitos mais diretamente aos elementos de expectativa que
Huron denomina dinâmicos, relacionados à escuta e atenção na memória de curto
prazo, além, é claro, de compartilhar as memórias esquemáticas implícitas. Nossa
escolha por evitar ouvir a obra repetidas vezes se desenhava justamente na tentativa
de manter esses mecanismos, preservando o Estado de Prontidão, ao mesmo tempo,
tomando os elementos motores e episódicos do músico como materiais para o pro‐
cesso criativo, como discutiremos a seguir.
Foi no meio de uma tarde de estudo, no nosso escritório compartilhado, que
surgiu a ideia inicial da peça. Era um dia de chuva e as crianças brincavam dentro da
casa, afastada do escritório. Era possível escutar as gargalhadas e suas oscilações, ora
mais evidentes e aceleradas, ora distantes. Esse foi o ímpeto criativo de gravar duas
tomadas de vídeo com o mesmo enquadramento, mas com esse diálogo entre o
próximo e o distante. Como não havíamos mais consultado a música, e não era algo
usual na prática da Lia (que gravou os movimentos), o simples fato de diálogo com
Cognição e(m) Processos de Criação 77

a música desconhecida numa gravação espontânea já guarda, em si, o Estado de


Prontidão. Para ir além, a primeira gravação, onde o corpo se coloca mais ao longe
e a temática de exploração de movimento ocorreu na busca pela exploração de cines‐
fera em relação à Categoria Espaço e à variabilidade de fatores expressivos prioritari‐
amente surgindo das partes mais distais do corpo: mãos e pernas. A segunda gravação
ocorre com a movimentação mais próxima da câmera, na exploração de pausas dinâ‐
micas e no jogo mais interno de exploração espacial, localizando o cerne da explora‐
ção no tronco. Ambos os vídeos foram gravados sem cortes e utilizados sem edição,
para que se mantivessem os detalhes da espontaneidade, capturados sem escolha pos‐
terior, pois nos importava o que emergiu na resolução corporal daquele momento.
Para contemplarmos o resultado, realizamos a sobreposição das duas tomadas
(um dos temas de pesquisa visual de Lia), sem um tratamento mais aprofundado,
apenas para possibilitar a emergência das relações. Assim, tínhamos um vídeo de
gravação da música de Piazzolla e esse registro inicial. A seguir, partirmos para a
escuta e análise da partitura. Além da identificação e discussão sobre os contornos me‐
lódicos, os caminhos harmônicos e a tessitura utilizada pelo compositor, pondera‐
mos sobre o uso da respiração enquanto elemento expressivo; seja identificando lon‐
gas frases onde o uso do recurso da respiração circular poderia ser utilizado e sinali‐
zado na partitura, seja identificando trechos onde a respiração é sinalizada e utilizada
antes de cada classe de notas, como recurso de expressão, seja de sentimentos, sensa‐
ções, seja de inteligibilidade dramática.

Figura 1
Esboço da partitura de Afefê 1
Versão preliminar com anotações realizadas no contexto do processo colaborativo
78 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Após a identificação das notas pivô Si e Mi, que serviam na obra original como
pontos de repouso, partimos para a exploração de multifônicos de flauta sobre essas
fundamentais. Essa etapa se entremeou com a seguinte, a composição colaborativa da
música, que envolveu intensa colaboração entre Ráiden e Guilherme. Inicialmente,
nossa abordagem foi baseada na reconstrução de aspectos da obra original, preser‐
vando contornos gestuais, notas pivô e coleções de alturas, entre outros elementos,
em sessões colaborativas que tinham como apoio a escrita em partitura mais tradici‐
onal. Portanto, avançamos para uma etapa de estudo, prática, memorização e incorpo‐
ração da nova obra musical. Na figura 1, apresentamos um trecho do rascunho, uti‐
lizado nessa etapa.
À medida em que avançávamos na criação colaborativa, fomos percebendo que
o Estado de Prontidão ficava comprometido pelo rigor da atenção excessiva à parti‐
tura. Entendíamos que a obra deveria ser tocada de cor, de modo a permitir respostas
performativas mais imediatas. Nesse sentido, buscamos uma notação intermediária,
voltada aos gestos musicais que suportariam a nova obra, dando margem para que
as memórias episódicas e motoras do músico possibilitassem o completamento dos
materiais musicais no ato da performance, desvelando uma maior articulação com o
conceito ímpeto do processo.

Figura 2
Trecho de Afefê 1, uma partitura gestual, mais propositiva do que prescritiva.

Na figura 2, apresentamos um trecho dessa nova partitura, mais propositiva do


que prescritiva, com foco no gesto performativo.¹² Baseados nela, partimos para a
gravação da flauta com regência da imagem, a partir de um jogo corporal-imagético-
sonoro entre o músico e a projeção dos vídeos em uma parede – que, pelo tamanho,
permitia uma visão periférica. Lia propôs tarefas a serem realizadas por Ráiden du‐
rante as gravações, instigando sua espontaneidade e capacidade de resolução corpo‐
ral no diálogo entre sua percepção visual (das performances de Lia) e auditivas (do
Cognição e(m) Processos de Criação 79

seu próprio som), numa fricção que respondeu ao ímpeto do processo criativo. As‐
sim, o flautista gravou uma primeira versão, que dialogava com o primeiro vídeo,
mais distante, enfatizando o jogo com sua percepção de movimentos distais, advin‐
dos de mãos e pés, pernas e braços. Na segunda gravação, ele enfocou os processos
percebidos na parte mais central do corpo, como os movimentos de tronco. O exer‐
cício da colaboração concretiza a pesquisa performativa, pois é na capacidade de au‐
tonomia que o processo reivindica, que o fazer emerge como condição de existência
da obra e, por consequência, da pesquisa.
Não realizamos sessões de ensaio ou gravação, apenas a captura do áudio e da
ambiência da sala. Essas gravações serviram de base para o processamento eletrônico
em um patch no software PureData, planejado para ocorrer futuramente em perfor‐
mances em tempo real. A edição da eletrônica foi então realizada por Guilherme a
partir das duas gravações realizadas na etapa anterior. Após o processo de uso do
registro de estudo da peça original como propulsor de movimento e imagem, obser‐
vação, análise, desdobramento composicional, jogos de prontidão para coleta de
materiais e criação da eletrônica, chegamos à derradeira etapa de finalização do vídeo.
Na ocasião, tínhamos um projeto em vídeo com as trilhas de imagem, duas grava‐
ções de flauta e duas versões da eletrônica para, em princípio, escolhermos as mais
orgânicas de acordo com o processo. Entretanto, ao trabalharmos em versões de so‐
breposição para apreciarmos e tomarmos a decisão final, surgiu a ideia de usar as
duas eletrônicas e flautas sobrepostas. Inicialmente, houve certa insegurança: como
iriam soar os efeitos eletrônicos acrescidos um do outro? Como o todo se modifica
em relação às partes?
Foi ao encarar a constante realidade dúbia de sobreposição (duas interpretações
do vídeo inicial e duas gravações da flauta) que entendemos a necessidade da manu‐
tenção das duas eletrônicas na obra. Esse é um exemplo claro de como ocorre esse
processo de autonomia no ato criativo, no qual nem sempre as coisas ocorrem como
idealizamos, e sim vão se organizando por emergência. Foi assim que chegamos na
parte musical que configura esta versão dessa peça: duas gravações da flauta e duas
eletrônicas. Após essa decisão, vídeos e áudios foram reorganizados no jogo de nu‐
ances e sobreposições, com os devidos ajustes técnicos, sincronização e finalização.

Considerações finais
Afefê 1 é fruto de uma colaboração baseada no conceito de Estado de Prontidão,
motivada por uma gravação prévia de uma obra musical para flauta solo. O processo
foi mediado por mecanismos cognitivos da memória (Snyder, 2000), sobretudo no
âmbito da memória motora incorporada, e articulou elementos implícitos e explíci‐
tos (Huron, 2006). Aversa (2009), ao comentar as implicações da teoria de Huron
para compositores, salienta que, quando ouvimos uma obra ou trecho muitas vezes
durante a composição, eles podem desenvolver uma expectativa verídica (de memó‐
ria de longo prazo explícita). Segundo ela, é preciso não confundir essa expectativa
com aquelas dinâmicas, oferecidas pela obra, o que representaria um erro de julga‐
mento em relação aos materiais que estão sendo desenvolvidos. Ela reforça, nesse
ponto, a importância de feedback sobre trechos musicais, de modo a minimizar essas
questões e se tomar consciência da influência desses processos nas tomadas de deci‐
são. A nossa intenção foi, justamente, basear um processo criativo colaborativo da
interação entre os diversos mecanismos de memória, para a composição de uma
nova obra.
80 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

É preciso salientar que a criação interartística resultante manifesta diversas ins‐


tâncias de mapeamentos inter e intradomínios, como formulado por Candace
Brower (2000), apresentadas na figura 3. Nesse sentido, os mapeamentos interdomí‐
nios se caracterizaram pela interação entre os aspectos da visualidade das performan‐
ces de movimento e os gestos musicais em resposta a esses estímulos. Por sua vez, os
mapeamentos interdomínios ocorreram pela fricção entre os padrões musicais e mo‐
tores, armazenados na memória do músico, que nortearam os gestos musicais na
nova obra composta¹³. No caso de Afefê 1, as interações entre os padrões musicais e
a experiência corporal, que estão na base do sentido cognitivo em música, são po‐
tencializadas pela interação entre as memórias motoras do músico em diálogo com
as suas percepções visuais (do movimento na imagem) e auditivas (no som produzi‐
do nas performances).
Figura 3
Modelo de Candace Brower, mapeamentos entre domínios musicais e
de movimento corporal.

Desde o princípio do processo, a intenção era criar uma obra colaborativa a partir
da noção de Estado de Prontidão, envolvendo flauta, eletrônica e vídeo, gravado a
partir de performances de movimento, desdobradas de uma pesquisa performativa.
Acreditamos que o processo aqui descrito e suas articulações com mecanismos de
memória e mapeamentos, possa contribuir para iluminar o papel dos processos cog‐
nitivos na criação colaborativa.

Notas
1 O vídeo completo de Afefê 1 está disponível em https://youtu.be/Zap31V3JoEw.
2 Trata-se de um dos três conceitos inferidos na pesquisa de Sfoggia (2019): Equilíbrio
Dinâmico, Economia de Meios e Estado de Prontidão. A tese se desenvolve como uma
pesquisa performativa, que se desdobra em obras colaborativas para cada um dos conceitos.
3 O trabalho do Mestre Nenel se concretiza, hoje, na sede da Fundação Mestre Bimba
(FUMEB), situada na Rua Maciel de Baixo, no Pelourinho. Nesse mesmo local, o Mestre
(que é filho do Mestre Bimba – Manoel dos Reis Machado, 1900-1974), desenvolve seu
trabalho com a capoeira e viabiliza as atividades da Filhos de Bimba Escola de Capoeira
(FBEC).
4 Embora os conceitos e laboratórios se apresentem de forma entremeada e indissociável,
para o contexto deste artigo, focaremos na discussão do Estado de Prontidão, de modo que,
Cognição e(m) Processos de Criação 81

havendo interesse, sugerimos a consulta da tese completa, disponível em: https://


repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/29410?mode=full.
5 “Enquanto o sistema fechado não tem qualquer individualidade, nenhuma troca com o
exterior e mantém relações muito pobres com o meio ambiente, o sistema auto-eco-
organizador tem sua própria individualidade ligada a relações com o meio ambiente muito
ricas, portanto dependentes [...]. O sistema auto-eco-organizador não pode, pois, bastar-se
a si mesmo, ele só pode ser totalmente lógico ao abarcar em si o ambiente externo. Ele não
pode concluir, se fechar, ser auto-suficiente” (MORIN, 2006, p. 33).
6 Método criado por Mary Whitehouse que se configura como um modo de busca pelo
que Laban chama de Antrieb – Effort, traduzido por Pulsão ou Expressividade. Nesse
sentido, a autenticidade se refere ao pessoal, às expressões individuais que, partindo das
colocações sobre memória, seriam, no caso dessa pesquisa, um reflexo da experiência no
contexto em questão: a capoeira.
7 “[...] uma aparente pausa (o corpo parado no espaço) pode sustentar uma imobilidade que
mantém uma organização interna viva e capaz de deixar essa inércia aparente e mover-se”
(Sfoggia, 2019, p. 94).
8 “A negaça, através da qual o capoeira transita e constrói seu diálogo com o movimento
do outro, perpassa por essa pausa constantemente, assim como a variabilidade de fatores
expressivos que se alternam entre livre e controlado, forte e leve, acelerado e desacelerado,
direto e indireto. O Estado de Prontidão não consegue traçar uma correspondência com
fatores específicos, pois depende justamente da variabilidade para se concretizar e
multiplicar sua capacidade de surpreender o oponente. Ao tentar identificar padrões de
análise para esse conceito, chegamos justamente no lado oposto dessa intencionalidade,
pois a capacidade de evitar quaisquer padrões é justamente o que atribui maior efetividade
para esse conceito” (Sfoggia, 2019, p. 95)
9 “O Suporte Muscular Interno se baseia no uso da musculatura mais profunda para
estabilização e suporte das ações motoras e perpassa por todos conceitos. No entanto, no
que diz respeito ao Estado de Prontidão, faz-se fundamental no sentido de que, ao delegar
à musculatura interna a tarefa de dar suporte ao corpo, abre-se espaço para que a
musculatura mais superficial possa complementar a resposta aos desafios. Enquanto o
Suporte Muscular Interno mantém o corpo disponível e em movimento, no tocante da
capoeira através da ginga por exemplo, a musculatura mais superficial pode trazer para a
ação o necessário para dar conta dos detalhes da situação que o específico espaço-tempo de
seu acontecimento demanda” (Sfoggia, 2019, p. 95-96).
10 “é através do movimento viabilizado pela musculatura mais superficial que destaco a
Intenção Espacial, pois é através desse Princípio que as particularidades da situação se
solucionam e são projetadas no jogo. Essa intenção não se refere, necessariamente, ao foco
do movimento em relação ao fator expressivo espaço, mas de sua projeção a partir do corpo
no Espaço (físico/contextual), relacionando-se prioritariamente com a Categoria Espaço e
sua ocupação e mobilidade de acordo com a cinesfera dos praticantes” (Sfoggia, 2019, p.
96).
11 Para maiores informações sobre Noite e seu processo colaborativo, cf. Bertissolo (2009).
12 A partitura completa está disponível em https://guilhermebertissolo.com/2020/12/28/
afefe/.
13 Estamos aqui nos relacionando com as modalidades cognitiva (e sua plasticidade) e
performativa (e sua fisicalidade) da criatividade composicional, conforme formulado no
modelo incorporado de Nagy (2017).
82 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

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82
9
Cognição e(m) Processos de Criação 83

FORMATOS DE IMPROVISAÇÃO MUSICAL A


DISTÂNCIA: RELATO DE EXPERIÊNCIAS
VÍDEO-SONORAS EM TEMPOS DE
ISOLAMENTO
Rogério Luiz Moraes Costa¹, Ana Luisa Fridman²,
¹Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo, Brasil
²Instituto de Artes - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
1
rogercos@usp.br, 2tempoqueleva@yahoo.com.br

Resumo
Este projeto partiu da ideia de dois docentes das áreas de improvisação e de percepção musical criando
juntos situações em que fluxos entre essas áreas pudessem ocorrer e se retroalimentar. Observando esses
fluxos intrínsecos entre a improvisação e a percepção, exploramos relações cognitivas externas e internas
em relação aos ambientes e à corporeidade presentes em nossas pesquisas para criar meios que favorecessem,
não só a autopercepção, mas também a interação com o outro através de materiais musicais. Em nosso
desejo de interação, marcado pelo período de isolamento gerado pela COVID-19, escolhemos a improvi‐
sação como forma de interação sonora, sendo que nossa questão central era como manter as relações que
considerávamos mais essenciais nessa prática, mesmo a distância. O suporte visual, que aqui chamamos de
interações vídeo-sonoras, fez com que surgisse uma necessidade natural do uso de elementos gestuais e
relativos à corporeidade dos instrumentistas. Utilizamos, também, outros materiais sonoros além de nossos
instrumentos, tais como a voz, a água, utensílios domésticos e elementos percussivos. A principal contri‐
buição deste projeto foi a criação de propostas de improvisação musical adaptadas à situação de isolamento
e distanciamento e com grande potencial de aplicação em situações pedagógicas. O formato virtual mos‐
trou alternativas que provavelmente não seriam exploradas pela via presencial, apontando para a possibili‐
dade de experimentos híbridos entre as vias presencial e virtual a partir da improvisação musical. O cami‐
nho que percorremos mostrou-se aberto, permeável e passível de continuidade.
Palavras-chave: Processos Criativos, Improvisação, Performance, Cognição Musical

Introdução
A prática da improvisação pressupõe uma abordagem específica com relação à cons‐
trução do conhecimento e ao agenciamento da performance. De um ponto de vista
abrangente, pode-se dizer que a improvisação se fundamenta em uma atitude radi‐
calmente construtivista, baseada na prática empírica, criativa e experimental – mui‐
tas vezes coletiva e interativa – e no pressuposto de que a criação musical envolve a
ação e o pensamento. Nesse sentido, a improvisação pode ser pensada em suas di‐
mensões perceptivas e cognitivas enquanto uma ferramenta para a construção do
conhecimento, da escuta e das habilidades que fundamentam e possibilitam a prática
musical. Num contexto que privilegia os fluxos de troca em ambientes diversos, o
desenvolvimento da percepção – que leva à ação e à reação em momentos de per‐
formance – pode ser integrado nos processos criativos como um elemento constitu‐
inte. Isso porque, a forma pela qual o sujeito constrói a sua percepção condiciona a
estruturação de seu pensamento musical. Assim, a percepção musical, vista como
parte do processo de cognição dentro de ambientes de performance, pode ser gra‐
dativamente configurada e se construir no contato efetivo do sujeito com o fazer
musical, seja este ouvir, tocar, criar ou interpretar. Sob esse ponto de vista, seja num
âmbito pedagógico ou de performance, a improvisação pode ser um meio privilegi‐
ado para promover esse tipo de estratégia, na medida em que se trata de uma prática
que se coloca em ação enquanto exercício criativo, o qual, por sua vez, pode ser
83
84 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

também colocado a serviço da configuração das estruturas cognitivas. Estabelecendo


um fluxo contínuo e de trocas entre a improvisação e a percepção também dentro
de contextos formativos, observamos que, nos cursos de graduação em Música, mui‐
to se discute acerca do repertório utilizado nos estudos da percepção musical, apon‐
tando para a necessidade de se ampliar os materiais existentes (Bhering, 2003) e en‐
volver práticas criativas, como a improvisação, no processo perceptivo (Costa,
2008). Na grade curricular dos cursos de graduação em Música, por exemplo, as
aulas de percepção musical são comumente pensadas para trabalhar a acuidade audi‐
tiva, desenvolver a fluência na leitura musical, estudar estruturas escalares e rítmicas,
entre outros materiais de expressão sonora. Entretanto, mesmo utilizando um reper‐
tório mais diversificado, nem sempre são abarcados processos criativos nesse tipo de
estudo. Também nesse contexto formativo, o estudo da percepção não costuma en‐
volver as relações de interação de um determinado grupo, o aprendizado, ou mesmo
a acuidade auditiva construída a partir do olhar para o outro, do compartilhamento
de experiências dentro de um determinado ambiente musical. Observamos, portan‐
to, que qualquer processo que aborde a improvisação, seja ele formativo ou perfor‐
mativo, deve partir primordialmente de relações perceptivas a partir de uma rede de
trocas, dentro de um espaço de escuta e de aprendizado.

Corpo, interação e espaço


Como músicos e docentes, sempre pensamos em como envolver estudantes de
música em uma experiência imersiva e significativa não só para seu aprendizado,
mas também para dar novos sentidos aos materiais musicais inseridos em seus espa‐
ços cotidianos. Uma de nossas abordagens de pesquisa com tal finalidade baseia-se
em estudos relativos à corporeidade e a relações que envolvem a espacialidade den‐
tro da ideia de ambientes de imersão e cognição. O referencial dessa pesquisa espe‐
cífica está amparado em estudos da Neurociência e da Biologia, mais precisamente
nos conceitos de embodied mind (Varela, Thompson, & Rosh, 2001), affordances
(Gibson, 1986) e chorustree (Ravignani, Bowling, & Fitch, 2014), que abordam a
cognição a partir de trocas e interações com o ambiente e as relações de materiais
musicais com a corporeidade e o deslocamento no espaço. Estudos também apon‐
tam para a cognição e a percepção musical em processos nos quais o corpo tem um
papel crucial como mediador do conhecimento (Varela et al., 1993), incluindo as
relações que envolvem o aspecto rítmico (Fridman, Manzolli, 2016):
O papel do corpo, considerando que ele tem um, é o de conduzir e con‐
verter estímulos mais primários e dados sobre a percepção auditiva para
o cérebro, no qual o real trabalho de cognição musical (transformação,
processamento e representação) é feito¹. (Bowman, 2004, p. 43, tradu‐
ção nossa)

Pensando nas relações ambientais relativas à corporeidade, a ideia de interação


do corpo com o meio foi estabelecida no conceito de affordances proposto por Gib‐
son (1986), onde se propõe que, em qualquer interação entre um agente e um deter‐
minado ambiente, as condições ou qualidades inerentes a cada ambiente definem as
ações que o agente vai executar neste ambiente (Greeno, 1994). Desse modo, o am‐
biente modifica o indivíduo, que, por sua vez, modifica o ambiente, estabelecendo
relações cognitivas dinâmicas, baseadas nas ações e nas incorporações oferecidas em
um determinado ambiente. A concepção de affordances de Gibson traz a ideia do
conhecimento como elemento dinâmico e em constante transformação a partir das
trocas com um determinado meio. Nessa abordagem do conhecimento em ação e
Cognição e(m) Processos de Criação 85

reação com um determinado ambiente, as relações de corporeidade passam a ter um


papel de extrema importância. Outro aspecto que trata da percepção a partir da me‐
diação do corpo é a ideia de propriocepção que, em sentido oposto às affordances,
trata das relações que se desenvolvem internamente, ou seja, dentro do corpo que
sofre as influências do meio em um determinado ambiente.
Entre outros estímulos sensoriais, é através da informação propriocepti‐
va que nós, seres humanos, desenvolvemos o senso de nossos corpos – a
consciência corporal - o nosso próprio sentido físico, a consciência do
self. É pela propriocepção que aconselhamos nosso cérebro se nos senti‐
mos fortes, fracos, cansados, com dor, e assim por diante, com base nos
estados de nossos músculos e articulações, se estão estendidos ou flexio‐
nados, o que os nossos órgãos internos estão fazendo e muito mais².
(Berger, 2016, p. 40, tradução nossa)

É importante enfatizar a questão corporal, uma vez que o que se torna signifi‐
cativo no corpo torna-se apreensão real, cognição, conceito construído, gerador de
novas configurações. Quando pensamos nessa questão dentro da improvisação mu‐
sical, o músico vai, aos poucos, se apoderando e desenvolvendo internamente as es‐
truturas necessárias para um desempenho criativo do pensamento musical. A prática
criativa da improvisação possibilita assim, não só uma “corporificação” dos idiomas
e sistemas – quando se improvisa dentro de ambientes idiomáticos –, mas, também,
um exercício que percorre, cada vez com maior habilidade, superfícies cada vez mais
extensas do pensamento e da cognição musical, num terreno que se desenha no pró‐
prio ato de improvisar. Depois dessas considerações, observando os fluxos intrínse‐
cos que sublinhamos entre a improvisação e a percepção, as relações cognitivas ex‐
ternas e internas em relação aos ambientes e a corporeidade presentes em nossas
pesquisas, pensamos em criar meios que favorecessem não só a autopercepção, mas
também a interação com o outro através de materiais musicais. Com tal finalidade,
nosso projeto partiu da ideia de dois docentes das áreas de improvisação e de percep‐
ção musical criando juntos situações em que esses fluxos pudessem ocorrer e se re‐
troalimentar a cada nova proposta.

Propostas de improvisação a distância


Em nosso desejo de interação, tivemos o primeiro imprevisto: o período de isola‐
mento causado pela pandemia da COVID-19. Com essa singularidade em vista, es‐
colhemos a improvisação como forma de interação sonora, sendo que nossa questão
central era como manter as relações que considerávamos mais essenciais nessa práti‐
ca, como a percepção, a cognição e a complementaridade entre proposta e resposta
(Costa, Iazzetta, & Villavicênzio, 2013, p.12), mesmo à distância. Considerando a
improvisação como um comportamento adaptativo de um organismo dentro de um
ambiente em fluxo constante (Berkowitz, 2010, p.182), partimos para a elaboração
de propostas de improvisação musical com a interação de dois instrumentistas (pia‐
no, saxofone e outros materiais sonoros) no formato vídeo-sonoro ou tele-musical
(Mills, & Beilharz, 2014). Tudo começou de maneira informal, com um projeto de
criação coletiva dentro de um ambiente virtual. Nosso desejo era recuperar um pou‐
co do ambiente de práticas musicais interativas anterior à pandemia. Partimos de
alguns princípios importantes: a ênfase no processo, o respeito pela contribuição de
cada um, a escuta profunda e intensificada de si e do outro, a abertura para o sur‐
preendente e para o inesperado e uma relação experimental com a tecnologia, tan‐
tocom os softwares de edição, quantocom os recursos de gravação e filmagem. Nos‐
so objetivo principal foi, portanto, criar maneiras de interagir à distância por meio
86 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

da improvisação musical. Com esse fim, desenvolvemos formatos que contemplas‐


sem as trocas e a acuidade auditiva dentro dessa prática a partir dos conceitos de
cognição situada (Brown, Collins, & Duguid, 1989), no qual um meio é criado espe‐
cificamente para um determinado aprendizado, e de affordances (Gibson, 1986), além
dos conceitos mencionados anteriormente. Nesses ambientes empíricos, quisemos,
também, questionar quais seriam as diferenças, os desafios e as novas relações per‐
ceptivas e cognitivas (Dean, & Bailes, 2016, p. 41) desenvolvidas a partir da impro‐
visação à distância.

Detalhamento e Metodologia
Foram criados 10 vídeos com três propostas distintas, desenvolvidas sempre a partir
da observação das propostas anteriores, conforme descrito a seguir:

Proposta 1
Na primeira proposta, gravamos improvisações musicais em resposta à improvi‐
sação inicial de um de nós. Começamos com uma proposta de improvisação para
saxofone e piano: de forma alternada, cada um de nós filmou uma performance de
improvisação livre e enviou para o outro. Este, por sua vez, filmou sua performance
interagindo com o vídeo recebido e editou a soma dos dois vídeos num vídeo só.
Aos poucos fomos incorporando outros elementos na proposta: cuidados com a di‐
mensão cênica, movimentos corporais, dança, o uso da voz e de outros instrumen‐
tos, mais camadas de vídeo etc. Foram 6 vídeos finalizados dessa forma, sendo 2
duos, 2 trios e 2 quartetos.
Figura 1
Vídeo 5 da primeira fase do projeto (Costa, Fridman, 2020).

Proposta 2
Depois de nossas primeiras experiências, decidimos modificar o projeto com uma
segunda proposta. Neste segundo momento, resolvemos incorporar estímulos
textuais para a improvisação na forma de versos e frases curtas onde estabelecemos
algumas temáticas/frases iniciais e improvisamos sem que nos ouvíssemos, juntando
o resultado em vídeo no final. Cada um de nós, filmou uma performance com uma
duração preestabelecida levando em conta somente os estímulos propostos, sem
interagir com o outro. A soma dos vídeos produzidos foi editada sem que houvesse
Cognição e(m) Processos de Criação 87

modificações nos materiais originais. Criamos mais 3 vídeos nesse formato,


incorporando a ideia de acaso.
Figura 2
Mergulho no Mar Transparente da Espera, Vídeo 9 da segunda fase do projeto
(Costa, Fridman, 2020)

Proposta 3
No vídeo número 10 – que foi também um vídeo comemorativo de todo esse
período de trocas – surgiu uma terceira proposta. Nesta terceira e última proposta,
criamos uma trilha sonora a partir da improvisação e interação em várias fases, até
chegarmos a um resultado final. Depois desse resultado sonoro, elaborarmos um
vídeo a partir de imagens que fizeram parte do cotidiano de cada um de nós durante
o isolamento social, sendo nosso resultado sonoro a trilha para esse vídeo.
Figura 3
Dentro e Fora: Fluxos Poéticos de Isolamento
Vídeo 10 da terceira fase do projeto (Costa, Fridman, 2020)

Resultados: a escuta para além do sonoro


No início do texto, quando expusemos os pressupostos que orientaram a formulação
do projeto, falamos da ênfase no processo³, no respeito pela contribuição de cada um
88 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

e na escuta profunda⁴ e intensificada de si e do outro. Vale ressaltar que, durante a


realização do projeto, ficou ainda mais evidenciada a importância do acolhimento
incondicional da contribuição de cada um e, consequentemente, da escuta (de si e
do outro). Mas não se trata somente da escuta e da percepção de aspectos acústicos,
sonoros e musicais, mas também, e principalmente, da escuta da alteridade: a escuta,
nesse caso, considerada como o espaço do “entre”. É o “lugar” onde se dão as trocas,
as interações, onde eu me descubro escutando o outro. E para que a escuta seja po‐
tente, é importante a noção de permeabilidade entre os diferentes. Num ambiente
permeável, as assimetrias e as diferenças de potencial é que impulsionam o fluxo so‐
noro e as trocas energéticas (de olhares, sensações, ideias, emoções etc.). Um aspecto
fundamental para o agenciamento desse tipo de ambiente interativo é a ausência de
julgamentos de valor⁵. No nosso projeto, nas trocas entre materiais sonoros ou visu‐
ais enviados de um para o outro, nunca houve julgamento. Sem que houvéssemos
explicitamente estabelecido essa norma, o procedimento adotado sempre foi o da
aceitação de tudo o que o outro produzisse e enviasse. A regra implícita era interagir
com o que viesse, sem nenhuma condição prévia ou consideração posterior. Esse
tipo de escuta é que se abre para o imprevisível e para a o imanente. A ênfase está no
aqui e agora e, mesmo não se dando de forma presencial, a interação acontece atra‐
vés de uma escuta intensa e profunda.

Considerações finais
Durante o desenvolvimento deste projeto, lidamos com desafios constantes, como a
edição caseira de vídeos e áudios, aprendendo a utilizar programas como IMovie,
Final Cut, Reaper e WavePad, além da proposta de criar um meio virtual que possibi‐
litasse as trocas criativas entre nós. O suporte visual, que aqui chamamos por intera‐
ções vídeo-sonoras, fez com que surgisse uma necessidade natural do uso de ele‐
mentos gestuais e relativos à corporeidade dos instrumentistas, experimentando as
relações “com e sem corpo” (Iyer, 2016, p.74). Utilizamos outros materiais sonoros
além de nossos instrumentos, tais como a voz, a água, utensílios domésticos e ele‐
mentos percussivos. A principal contribuição deste projeto foi a criação de propostas
de improvisação musical adaptadas à situação de isolamento e distanciamento e com
grande potencial de aplicação em situações pedagógicas. O formato virtual mostrou
alternativas que provavelmente não seriam exploradas pela via presencial, apontando
para a possibilidade de experimentos híbridos entre as vias presencial e virtual a par‐
tir da improvisação musical. O caminho que percorremos mostrou-se aberto, per‐
meável e passível de continuidade. Os materiais que encontramos serão analisados
comparativamente com os ambientes presenciais para discutirmos futuros desdobra‐
mentos. A abordagem proposta aqui está também ligada à nossa preocupação em
pensar a música enquanto criação artística localizada histórica e geograficamente e
em pleno movimento. Nossa proposta, portanto, se baseia na ideia de que o apren‐
dizado e os contextos formativos da música não devem se ater unicamente aos as‐
pectos puramente técnicos ligados à reprodução dos repertórios consagrados, mas
que podem e devem enfatizar o desenvolvimento da criatividade, em nosso caso,
com propostas de criação à distância. Nesse contexto, consideramos que, para habi‐
litar o músico à prática musical, todas as atividades formativas e performativas deve‐
riam se propor como processos cognitivos que sejam resultado de uma relação ativa
do músico com a criação musical. Assim é que a improvisação pode ser considerada
como um recurso significativo, na medida em que pode ensejar, através da prática
empírica e experimental, uma configuração gradativa das operações e estruturas ce‐
Cognição e(m) Processos de Criação 89

rebrais que se interligam de maneira simultânea e que formam as bases para o funci‐
onamento, cada vez mais complexo, do pensamento musical, seja presencialmente
ou à distância.

Notas
1 “The body’s role, to the extent it has one, is that of a conduit for conveying lower-order
stimuli and auditory sense data to the brain, where the real work of music cognition
(transformation, processing, representation) is done.”
2 “Among other sensory input, it is through proprioceptive information that we humans
develop our sense of our bodies – body awareness – our physical sense of self.
Proprioception counsels the brain about whether it is strong or weak or tired, in pain, and
so forth, based on whether muscles and joints are extended or flexed, what our inner
organs are doing and much more.”
3 A esse respeito, pode-se dizer que “no ambiente da improvisação livre a música é sempre
ação. Isto porque ela se dá em um espaço relacional focado no processo e não na produção
de obras musicais, e o que importa é a preparação deste ambiente...” (Costa, 2020, p.310).
4 Vale mencionar que o conceito de Escuta Profunda (Deep Listening) é investigado e
aprofundado nas pesquisas da compositora, acordeonista e improvisadora estadunidense
Pauline Oliveros (2005).
5 Já dissemos em outra ocasião que “A questão do julgamento no contexto das práticas
interpretativas da tradição musical europeia “erudita” está geralmente ligada às ideias de
excelência e rigor técnico que estão a serviço da execução (reprodução) de um
determinado repertório produzido em tempo diferido e neste caso, há o certo e o errado,
parâmetros de julgamento etc. [...]. No lugar do certo e errado e dos julgamentos a partir
de repertórios de referência, há criação coletiva em tempo real movida por assimetrias e
diferenças de potencial. Há sim, discordâncias, conflitos e desentendimentos. Mas estes são
resolvidos dentro de uma dinâmica coletiva e de forma provisória” (idem, p. 313, 314).

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90
10
Cognição e(m) Processos de Criação 91

CIRCUITOS DIFUSOS: A CRIAÇÃO DE


ESPAÇOS AMBIOFÔNICOS NA
COMPOSIÇÃO ACUSMÁTICA
Frederico Santiago Ribeiro da Encarnação
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
1
frederico_santiago@yahoo.com.br

Resumo
O espaço ambiofônico é um tipo de ambiente de escuta completamente imersivo e difuso (Vande Gorne,
2002). Nessa espécie de espaço, o ouvinte não consegue localizar ou identificar as fontes sonoras, o que
proporciona uma percepção amalgamada dos eventos sonoros que o rodeiam. Ao conceber uma ambiofo‐
nia, o compositor deve oferecer um espaço no qual a atenção não é guiada por sons isolados ou destacados,
mas concentrada em uma observação mais global do todo que o envolve (Lotis, 2003). A composição com
enfoque em massas texturais apresenta uma forte tendência a criar espaços ambiofônicos de escuta devido
ao aspecto homogêneo de temporalidade e da distribuição espacial do espectro de frequências. Na peça
acusmática Circuitos Difusos, a ambiofonia especial foi criada a partir de sinais elétricos retroalimentados
(feedbacks), que, por sua natureza ressonante e circular, apresentam uma morfologia espectral consoante
com esse tipo espacial. A peça propõe, a partir da sobreposição de camadas de eventos ressonantes, a criação
de uma massa sonora que se transforma por variações microestruturais de densidade textural. A partir disso,
podemos analisar a relação estreita entre a natureza morfológica do material sonoro, o processo de estrutu‐
ração composicional e o tipo de espacialização projetado para a peça em questão.
Palavras-chave: Espaço ambiofônico, acusmatismo, percepção espacial, textura

Introdução
No âmbito da cognição musical, percebemos a distinção entre diferentes vozes de
uma polifonia baseados em sua distribuição no espectro harmônico e no espaçamen‐
to temporal entre cada evento. No século XX, compositores como Gÿorgy Ligeti,
Krzysztof Penderecki e Iannis Xenakis desenvolveram a chamada música de massas
sonoras, compondo a partir da imbricação de uma complexa polifonia com micro‐
defasagens harmônicas e temporais, criando uma estética composicional com ênfase
na densidade textural. Ligeti denominou micropolifonia o processo de sequencia‐
mento de um grande número de eventos rítmicos curtos que formam uma complexa
polifonia, na qual cada voz se funde sintetizando uma única massa densa, que pro‐
porciona a percepção de um timbre em movimento. Em suas palavras, "o tecido atinge
tal densidade que as vozes não são mais perceptíveis em sua individualidade e se
pode apreender apenas como um todo, em um nível mais elevado de percepção"
(Ligeti, 2010, p.185).
Denis Smalley (1997) introduziu o conceito de textura espacial no campo da
composição eletroacústica para descrever as formações temporais do espaço em um
processo espectromorfológico. A textura espacial surge devido à coexistência de vá‐
rios processos temporalmente distintos, contínuos e espacialmente distribuídos. A
coesão da textura espacial resulta das proximidades e semelhanças entre os seus ele‐
mentos em termos de espectro, morfologia e propagação temporal. Mas, simultane‐
amente, a complexidade espacial de tal textura depende das microvariações espec‐
trais e temporais projetadas.
Essa concepção de eventos contínuos ou iterativos sobrepostos que se fundem
criando a percepção de uma amálgama sonora remete à primeira espécie de espaço
apresentada por Annette Vande Gorne (2002): o espaço ambiofônico. Nesse tipo de

91
92 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

espaço, a escuta adquire um modo imersivo e envolvente, no qual o ouvinte não


consegue distinguir a fonte e/ou localização dos eventos sonoros que o rodeiam.
Esse tipo de espacialidade estimula um modo gestáltico de percepção, no qual o ou‐
vinte se encontra imerso em um ambiente difuso, permeado por um único grande
evento sonoro que engloba todo o espaço de escuta.
A partir desses conceitos, o presente artigo apresenta uma pesquisa que investiga
a textura na formação espacial, partindo da ideia de que o espaço é gerado e movi‐
mentado pela espectromorfologia, ao invés de ser um recipiente preexistente a ser
preenchido. O objetivo deste artigo é demonstrar como as noções de textura espe‐
cializada e de timbre em movimento foram utilizadas como processos composicio‐
nais para a criação de um espaço ambiofônico de escuta, apresentando como resul‐
tado artístico da pesquisa, a peça Circuitos Difusos.

A ambiofonia na composição acusmática


O espaço ambiofônico é uma espécie imersiva de espaço, um ambiente de audição
completamente difuso. Nessa espécie de espaço, o ouvinte não consegue localizar
ou determinar de onde vêm os sons, o que proporciona uma percepção amalgamada
de todos os eventos sonoros que o rodeiam. Annette Vande Gorne usa como exem‐
plo as igrejas bizantinas que têm “cúpulas cobertas por tesselas de ouro que redistri‐
buem uniformemente por toda igreja a pouca luz ambiente, sem que nenhuma fon‐
te seja localizável” (Vande Gorne, 2002, p.3).
O espaço ambiofônico é o tipo de articulação espacial mais arquetípica que exis‐
te, pois é a que mais se assemelha à forma como percebemos os ambientes sonoros
nas nossas atividades da vida cotidiana. Sua etimologia, derivada do latim ‘ambire’,
que significa “ao redor, envolto”, ratifica o seu significado de uma percepção global
do ambiente que nos cerca. Esse tipo espacial tem duas principais características per‐
ceptuais: a fusão dos elementos sonoros e, geralmente, a evitação da identificação da
fonte sonora.
A ambiofonia pode ser criada pelo compositor a fim de enfatizar uma percepção
ambiental e global. O compositor deve oferecer um espaço no qual a atenção não é
guiada por sons isolados ou destacados, mas concentrada na observação do todo que
o envolve. A percepção de uma sonoridade como um todo, muitas vezes, exige o
sacrifício de elementos individuais, de forma que cada um deles contribua espectral‐
mente para a criação e projeção de um campo sonoro difuso, no qual nenhum tim‐
bre específico protagonize. No âmbito temporal, esse tipo de categoria espacial
apresenta uma morfologia contínua, por vezes até estática, na qual se dificulta a de‐
marcação de pontos estruturais, formais ou fraseológicos da composição. No entan‐
to, a ambiofonia pode apresentar uma grande quantidade de detalhes, cada um con‐
tribuindo para a percepção de um padrão geral, e o compositor pode criar um
bordado sonoro delicado, assemelhando-se a uma espécie de arabesco, um emara‐
nhado de eventos que se fundem na escuta do ouvinte.
Na ambiofonia, a escuta pode oscilar entre a percepção gestáltica das massas so‐
noras e os desenvolvimentos microestruturais dentro do espectro. Assim, uma vari‐
ação do espaço ambiofônico é também chamada espaço dividido (Vande Gorne,
2002). Nesse espaço, é possível uma polifonia de diferentes sons e a sobreposição de
diversos movimentos dentro de um ambiente imersivo em multiplicidades. Apesar
de apresentar pequenos movimentos internos, a experiência espacial é globalizada e
as fontes espaciais não são precisamente identificáveis. As oscilações de amplitude e
de espectro de frequência, além de alterarem nossa percepção em relação ao timbre,
Cognição e(m) Processos de Criação 93

influenciam diretamente a nossa percepção espacial. Segundo Léo Küpper, “uma


mudança espacial no campo acústico significa uma mudança na atenção dada à per‐
cepção do espaço que por sua vez impõe uma mudança na intensidade, na cor do
espectro, na forma e na posição no espaço.” (Küpper, 1998, p.60).
No âmbito da cognição, tão importante quanto a articulação criada pelo com‐
positor, é a postura de escuta do ouvinte. De acordo com Vande Gorne, "é o ouvinte
que realiza a mistura de todos os eventos sonoros" (Vande Gorne, 2003). Afinal, cabe
ao ouvinte a decisão de ficar imerso nas sonoridades projetadas, ou de ser absorvido
pelas alterações espectrais microscópicas que se desdobram com o passar do tempo,
embora isso tenha que ser facilitado pela música e pelo contexto de escuta. A abor‐
dagem gestáltica domina o primeiro caso, enquanto, no segundo caso, é necessária
uma atenção mais focada. Porém, como a atenção nunca é fixa ou estática, é inevi‐
tável que o ouvinte esteja oscilando entre os dois modos de escuta.

A textura espacial como processo composicional


Denis Smalley introduziu, pela primeira vez, o termo textura espacial com o intuito
de apontar “como a perspectiva espacial é revelada ao longo do tempo” (1997,
p.124), descrevendo certos aspectos da estrutura espacial e a maneira pela qual o es‐
paço é gerado pelo movimento espectromorfológico. O movimento textural pode
se apresentar de forma contínua ou descontínua. O movimento textural contínuo é
formado por eventos que se sustentam ao longo do tempo, enquanto movimentos
descontínuos, apresentam uma morfologia mais fragmentada. Smalley define três
níveis de gradação de movimentos texturais, que podem ser iterativos, granulares ou
sustentados. Os iterativos se articulam de maneira fragmentada, com espaçamentos
temporais que fazem com que percebamos a repetição de eventos. Os sustentados
apresentam uma morfologia contínua, enquanto os granulares têm um caráter am‐
bíguo, pois, dependendo da compressão temporal dos eventos, podem ser conside‐
rados mais iterativos ou contínuos.
Kerry Hagan (2017) escreve que “a textura é uma característica de um objeto,
exigindo um substrato no qual existir. Ao focar na textura, o próprio objeto se torna
irrelevante” (Hagan 2017, p.34). Ela se refere à textura musical como um "metaobje‐
to", considerando que é um composto macroscópico de múltiplas atividades sonoras
agregadas. A textura espacial diz respeito às propriedades intrinsecamente relacionais
que emergem com a distribuição espacial e o movimento do som dentro de um me‐
taobjeto textural. A textura espacial surge das relações entre os sons, criando padrões,
estados e formas, como resultado do movimento, mas não deve ser considerada como
uma forma em si, como se fosse uma entidade estática. A sua morfologia se desdobra
em um processo de devir, como um organismo em constante transformação.
Uma música criada a partir da textura inerente ao espaço pode ser contraposta
a uma música impulsionada por gestos. Uma música fortemente gestual instiga no‐
vos materiais e demarcações estruturais, enquanto a música textural estabelece e
transforma um material, propondo um tipo de forma de devir processual. A textura
pode ter um efeito de dissolução na direcionalidade da música, absorvendo o tempo
em ambientes imersivos e levando o ouvinte ao exame de detalhes de baixo nível ou
de paisagens de alto nível. Quando as texturas sofrem mutação, as formas espaciais
podem se integrar e se desintegrar em seu tecido. Esses processos ocorrem em vários
níveis e podem ser apreciados com a compreensão das interações internas entre as
manifestações espaciais na textura. Denis Smalley aponta para essa distinção entre
composições guiadas por gestos e composições com ênfase em processos texturais:
94 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Se os gestos forem fracos, se ficarem muito esticados no tempo ou se


desenvolverem muito lentamente, perdemos a fisicalidade humana. Pa‐
rece que cruzamos uma fronteira confusa entre eventos em uma escala
humana e eventos em uma escala mais mundana e ambiental. Ao mesmo
tempo, há uma mudança no foco da escuta, quanto mais lento for o ím‐
peto gestual direcionado, mais o ouvido procura se concentrar nos deta‐
lhes internos (na medida em que eles existem). Uma música que é prin‐
cipalmente textural, então, concentra-se na atividade interna às custas
do ímpeto para a frente¹. (Smalley, 1997, p.113)

Finalmente, textura espacial será, aqui, definida como uma condição em que a
matéria sonora cobre uma área no espaço, se apresentando coesa como textura, ou
onde eventos sucessivos têm propriedades perspectivas ou espectrais diferentes ou
alteradas, de modo que uma região de espacialidade é criada. Assim, múltiplos fluxos
similares e simultâneos de atividades texturais, em diferentes locais ou estratos espec‐
trais, podem se combinar para criar uma única textura espacial global.

O caso de circuitos difusos


Circuitos Difusos é uma peça em mídia fixa, desenvolvida como parte de meu atual
projeto de mestrado em Processos Criativos, pesquisando poéticas da espacialidade
na composição acusmática. Essa peça foi projetada visando criar um espaço ambio‐
fônico de escuta, no qual o ouvinte encontra-se imerso em um emaranhado de res‐
sonâncias de padrões rítmicos e melódicos variados. A peça apresenta uma ênfase em
um tipo de narrativa textural, morfologia contínua e espacialidade homogênea,
apresentando pequenas variações em meio a um único devir processual.
Para articular as duas principais características de uma ambiofonia, a não iden‐
tificação de fontes sonoras e a fusão dos eventos sonoros, um único tipo de material
sonoro foi utilizado: sinais elétricos retroalimentados. A retroalimentação do sinal
(feedback) se deu em uma mesa de som na qual cada um dos outputs foi conectado a
um input, de forma que nenhum sinal externo foi introduzido, técnica conhecida
como No-inputmixing (Holmes, 2016, p.8). A partir do controle da amplitude do
sinal e das bandas de frequências com equalizadores da própria mesa, é possível criar
extraordinários padrões rítmicos e texturas que vão da altura definida ao ruído. Essa
técnica foi escolhida pelo fato de não possuir nenhuma fonte geradora característica,
apenas sinais elétricos em retroação. Desse modo, a partir de uma sessão de impro‐
viso e experimentação, materiais sonoros foram gerados para que, em seguida, pu‐
dessem ser usados na estruturação da peça.
Em um segundo momento, na montagem da composição, os materiais foram
selecionados e agrupados conforme suas similaridades de espectro, de forma que pu‐
dessem ser percebidos como uma massa de texturas fundidas. A figura 1 abaixo mos‐
tra a linha do tempo de montagem da peça, na qual podemos notar a estrutura geral
da composição. Apesar da concepção amórfica da estética de massas sonoras, pode‐
mos perceber uma narrativa em forma de arco, na qual partimos de poucos elemen‐
tos sobrepostos que vão se somando gradativamente, culminando em um pico de
densidade no meio da estrutura, e, ao final a densidade, volta a se rarefazer novamen‐
te. Outro fator que chama atenção na montagem da peça é a constante presença de
fades de entrada, saída e crossfades. Esses procedimentos foram usados para possibilitar
uma fusão mais eficaz dos eventos, evitando que os eventos surjam de forma abrupta,
se destaquem, ou tenham algum tipo de impacto rítmico ao serem introduzidos.
Cognição e(m) Processos de Criação 95

Figura 1
Linha do tempo de montagem da peça Circuitos Difusos.

Após a etapa de montagem e estruturação da composição, foi de extrema im‐


portância o processo de mixagem e espacialização. O desafio da mixagem foi exata‐
mente criar um equilíbrio entre a amplitude de cada elemento, de maneira que ne‐
nhum tomasse uma posição de destaque em relação aos outros. O equilíbrio do
espectro de frequências também foi crucial para que cada elemento ocupasse certa
faixa do espectro e, ao serem escutados simultaneamente, pudessem se complemen‐
tar harmonicamente, sem criar nenhum tipo de preponderância em uma faixa espe‐
cífica do espectro de frequências.
No caso da espacialização, o desafio foi não criar nenhum tipo de ‘buraco’ na
imagem estereofônica, dessa forma, o ouvinte pode se perceber envolto homogene‐
amente por um tecido sonoro. A espacialização também tem grande influência na
percepção do espectro de frequências. A distribuição de cada evento no espaço este‐
reofônico se deu, principalmente, por fatores timbrísticos, evitando que dois ele‐
mentos com a mesma faixa de frequência ocupassem o mesmo ponto no espaço,
assim é possível alcançar um equilíbrio entre os dois lados da panorâmica, favore‐
cendo a percepção de que a imagem estereofônica é um único objeto, e não uma
imagem dividida.

Conclusão
A ambiofonia é um tipo espacial conectado fortemente à ideia de acusmatismo. Ao
retirar as pistas quanto às fontes sonoras, o compositor desafia o ouvinte a recriar, se
não uma causa aparente, pelo menos uma remota imagem associativa. Partindo de
uma fonte com características indiciais limitadas (feedbacks), pode-se estimular uma
espécie de percepção mais arquetípica, propiciando imagens mentais com maior en‐
foque nas morfologias internas do material sonoro do que na indicialidade das fontes
geradoras. A coesão da textura espacial resulta das proximidades e semelhanças entre
os seus elementos em termos de espectro e morfologia (Nyström, 2017). A escuta
oscila entre a percepção gestáltica da massa de ressonâncias e as transformações mi‐
croestruturais dentro do espectro harmônico.
A estratégia composicional de usar uma única fonte sonora com características
texturais similares permitiu sobreposições dos materiais composicionais, de forma
que não criassem contrastes, mas sim que se fundissem, propiciando um ambiente
difuso e global de escuta, típico de um espaço ambiofônico. Ao focar na textura e
96 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

morfologia de uma massa sonora amórfica, o próprio objeto se torna irrelevante,


enquanto a textura pode ser percebida como um "metaobjeto", por ser uma compo‐
sição macroscópica de atividades sônicas agregadas (Hagan, 2017). A dimensão
temporal adquire uma presença homogênea suportada pela mistura contínua das
ressonâncias retroalimentadas, possibilitando a exploração de sutis movimentos pa‐
norâmicos ondulares na espacialização.

Nota
1 If gestures are weak, if they become too stretched out on a human scale and events on a
more worldly, environmental scale. At the same time there is a change of listening focus the
slower the directed, gestural impetus, the more the ear seeks to concentrate on inner details
(insofar as they exist). A music which is primarily textural, then, concentrates on internal
activity at the expense of forward impetus.

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RevueDEMéter. Université de Lille-3.
Vande Gorne, A. (2018). Treatise on Writing Acousmatic Music on Fixed Media.Volume
9-2018 of Musiques&Recdherches.

Frederico Santiago Ribeiro da Encarnação:


Compositor, artista sonoro e mestrando em Processos Criativos em Música pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
CircuitosDifusos:
https://soundcloud.com/fredericosantiago/circuitos-difusos

96
11
Cognição e(m) Processos de Criação 97

A BRICOLAGE COMO ESTRUTURANTE DA


LINGUAGEM NA CRIAÇÃO MUSICAL
Yuri Behr
Escola de Música e Belas Artes do Paraná - Universidade Estadual do Paraná, Brasil
1
yuribaer@gmail.com

Resumo
Segundo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e o linguista Roman Jakobson (1896-1982), uma única língua
pode comportar várias estruturas fonológicas diferentes, cada uma delas contendo uma operação gramatical
à maneira de uma “metaestrutura”. Porém como estas são demasiadamente complexas para que sejam re‐
constituídas com métodos empíricos de observação, a Teoria Linguística, elaborada por Noam Chomsky,
estabeleceu a noção de recursividade como ferramenta para reduzir a complexidade. A recursividade sin‐
tática é o elemento central, na teoria proposta por Chomsky, através do qual se faz possível encaixar sintag‐
mas dentro de sintagmas. Valendo-se da concepção estrutural paradigmática, constata-se que, a partir do
modelo linguístico, é possível inferir uma estrutura que permite a permutação entre seus elementos. Essa
mesma leitura permitiu a Lévi-Strauss desenvolver o seu estruturalismo e o conceito de bricolage. No âmbito
da música, recentes estudos, a serem discutidos apropriadamente, demonstram que a bricolage tem a potên‐
cia de operar como princípio estruturante de linguagem musical. Através de exemplos composicionais,
pontuados ao longo do texto, será discutido o uso de estruturas baseadas em bricolage na criação musical,
bem como a sua relação com a linguagem. O escopo do presente trabalho é apresentar a possibilidade do
processo de bricolage, a partir de Lévi-Strauss, para se pensar uma composição musical como uma lingua‐
gem que opera através de conexões não lineares. Nesse tipo de conectividade, os elementos podem ser
permutados ao longo da flecha do tempo, à maneira de realimentação, de modo a gerar novas conexões.
Palavras-chave: Bricolage, linguagem, criação, estrutura, recursividade linguística

Introdução
Ao longo de décadas a fio, existe uma controvérsia acerca do fato de a música ser ou
não uma linguagem. À parte dessa questão, por considerar que sua resposta depende
sobremaneira do que se entende por linguagem, retomo a asserção que apresentei
anos atrás – ainda na minha dissertação de mestrado: música (nem sempre) é uma
linguagem. Em concordância com essa proposição, o paleontólogo e professor na
área de arqueologia cognitiva da Universidade de Reading, Steve Mithen, afirma
que “música e linguagem possuem a mesma origem” (2006, p.x). Essa afinidade per‐
mite permanecer na mesma linha de raciocínio que os linguistas, acerca da lingua‐
gem, visto que a música possui uma estrutura. É precisamente nessa senda que este
trabalho se propõe a caminhar, de tal sorte que não se propõe a tratar da função da
linguagem voltada às relações significante/significado. Dentre das funções da lin‐
guagem, em que se pode pensar a presente proposta de investigação, destaca-se a
metalinguagem.
Metalinguagem é, por vezes, um termo mal-usado quando entendida como
sendo um texto que fala de outro. A bem da verdade, a metalinguagem trabalha no
nível do código, isto é, referente à construção das estruturas. Como nos casos que
estudam estruturas de fonemas, as quais, conectadas, perfazem operações gramati‐
cais. Ao observar essa prerrogativa, Claude Lévi-Strauss pensou toda uma teoria
analítica, que recebeu o nome de estruturalismo. Nele, em alternativa à lógica abs‐
trata da ciência europeia, o referido antropólogo propõe uma ciência do concreto.
Trata-se de um tipo de raciocínio baseado na observação do mundo concreto, que
opera por analogia.
97
98 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

A correlação entre o estruturalismo de Lévi-Strauss e a linguística constituiu-se


de uma decorrência da metalinguagem, tal qual postulada por Jakobson. Partindo
desse caminho, em que a linguística é a matriz da estrutura, faz-se necessário enten‐
der como é possível, em termos linguísticos, inferir as relações implicadas – quer
sejam no âmbito das palavras, da mitologia ou dos sons. Para tanto, faz-se necessário
evocar o conceito de recursividade, formulado por Chomsky. Esse tipo de aborda‐
gem somente é possível porque, como explicitado, entende-se a música como um
tipo de linguagem que partilha do mesmo raciocínio estrutural – fundamentado em
Jakobson. Tal como postula Lévi-Strauss, no capítulo Mito e Música do seu livro
Mito e significado, é como se “ao inventar as formas musicais específicas, a música só
redescobrisse estruturas que já existiam a nível mitológico” (Lévi-Strauss, 1977,
p.59), portanto, não é sem razão que este trabalho evoca as relações entre linguagem,
estrutura, e mitologia para falar de criação musical.
Se tentarmos entender a relação entre linguagem, mito e música, só o
podemos fazer utilizando a linguagem como ponto de partida, poden‐
do-se depois demonstrar que a música, por um lado, e a mitologia, por
outro, têm origem na linguagem, mas que ambas as formas se desenvol‐
veram separadamente e em diferentes direções: a música destaca os as‐
pectos do som já presentes na linguagem, enquanto a mitologia sublinha
o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que também está profun‐
damente presente na linguagem. (Lévi-Strauss, 1977, p.62)

De fato, linguagem, mito, e música estão intimamente ligados por seu sentido
estrutural. E, ao insinuar que a música redescobre estruturas que já existem no nível
mitológico, Lévi-Strauss não somente conjectura a dimensão mítica da música, mas
também prenuncia a similitude entre o nível mitológico e a criação musical.

Recursividade
Antes de avançar na investigação sobre a linguagem e a música à luz da bricolage, é
necessário tratar da questão da recursividade; uma vez que esta constitui a operação
basilar para que se possa equiparar a estrutura gramatical, mitológica e musical.
Recursividade é um conceito que tem origem na matemática, nos cálculos em
que o algoritmo envolve uma determinada operação e o resultado anterior; como
nos fatoriais. Por exemplo, 5! (leia-se cinco fatorial) é obtido através da multiplica‐
ção sucessiva de todos os termos, nesse caso específico: 5 vezes 4 vezes 3 vezes 2
vezes 1; o que totaliza 120. Portanto, o fenômeno da recursividade está na proprie‐
dade de realizar a mesma operação, a multiplicação, com diferentes multiplicadores
sobre o valor anteriormente obtido.
Na linguística, essa mesma ideia foi utilizada por Chomsky para demonstrar que
frases são encaixadas dentro de frases, de modo que essas podem se referir a elemen‐
tos anteriores em uma estrutura. Tome-se o exemplo do poema Quadrilha, de Car‐
los Drummond de Andrade (1930, p.17):
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Cognição e(m) Processos de Criação 99

Se não existisse a recursividade na linguagem, este poema não seria possível.


Como se pode observar, as três primeiras frases do poema apresentam o pronome
relativo “que” como elemento recursivo capaz de evocar, respectivamente, cada
substantivo próprio anteriormente apresentado. A essa propriedade, Chomsky dá o
nome de recursividade. No exemplo de Carlos Drummond de Andrade, cada pessoa
ama o próximo da lista, terminando em Lili:
João amava Teresa
{Teresa} amava Raimundo
{Raimundo} amava Maria
{Maria} amava Joaquim
{Joaquim} amava Lili
Lili não amava ninguém.

Aqui, há um algoritmo muito semelhante, em termos de lógica, ao do fatorial


anteriormente descrito. A recursividade aplicada nesse poema nos permite deduzir
que J. Pinto Fernandes casou-se com Lili, que, anteriormente, não amava ninguém,
era amada por Joaquim, o qual se suicidou, mesmo sendo amado por Maria. O que
está por detrás desta lógica é uma estrutura por ramificação. E é também dentro des‐
se raciocínio que Lévi-Strauss concebe o seu estruturalismo.

Estruturalismo e Bricolage
O antropólogo Claude Lévi-Strauss, em sua obra Antropologia Estrutural (1959), lan‐
ça a base de uma nova metodologia derivada da linguística e afirma que “a fonologia
desempenha, em relação às ciências sociais, o papel renovador que a física nuclear,
por exemplo, desempenhou para com o conjunto das ciências exatas” (p.43). Essa
asserção demonstra a importância do estudo dos sons, antes mesmo das classes das
palavras, visto que o caráter sônico é precedente. Sem, contudo, “esquecer a profun‐
díssima diferença existente entre o quadro dos fonemas de uma língua e os termos
de parentesco de uma sociedade” (idem, p.49), Lévi-Strauss observa que é possível
partir desse ponto para estudar as relações de parentesco– seu objeto de pesquisa
àquela época. A partir da linguística, portanto, é possível conceber uma organização
social, ou ainda, elaborar a rede de uma estrutura de parentesco. Entretanto, ao de‐
ter-se mais profundamente na mitologia dos grupos sociais que estudava, Lévi-
Strauss percebeu que existem outras formas de pensamento além da lógica que nor‐
teava o seu sistema estrutural. Foi quando lhe ocorreu a ideia de “ciência do concre‐
to”, que opera por analogia. Em Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss apresenta o seu
conceito de Bricolage, que parte da necessidade de compreender os mitos e os ritos
no contexto das suas sociedades de origem de uma maneira diversa daquela que
propõe a ciência moderna; que a antropologia, então, constata não ser a única viável.
Dessa forma, tendo partido da linguística, agora, o estruturalismo desenvolve uma
metodologia particular, mais próxima de um mosaico, ou caleidoscópio. Portanto,
opera através de fragmentos de eventos anteriores e outros que surgem em conse‐
quência de rupturas. Dessa maneira, Lévi-Strauss procura entender o funcionamen‐
to de uma determinada sociedade, não através da lógica, mas através dos mitos pró‐
prios dessa sociedade.
Ainda, dois aspectos basilares são necessários para se compreender uma estrutu‐
ra: sincrônico e diacrônico, dois eixos que consideram a relação temporal.
100 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Tabela 1
Análise paradigmática aplicada a uma frase.

Ao ler através da primeira coluna (tabela 1) e permutar os substantivos, resulta


que, em potência – num tempo não linear – qualquer pessoa pode amar o outro, o
que é garantido pelo caráter sintagmático (horizontal) da estrutura. Todos os subs‐
tantivos são equivalentes, isto é, pertence à mesma classe.

Tempo e linearidade
Qual tempo não é linear? Esse tipo de “pergunta retórica” quase sempre enseja algu‐
ma resposta capaz de ser refutada. Mas, no caso, tem por objetivo esclarecer que o
tempo linear é também denominado como cronológico. Aquele que é fisicamente
descrito em relação ao deslocamento no espaço, o qual é grosso modo medido pelos
relógios. Não obstante, existem outras acepções de tempo, dentre elas: o tempo mu‐
sical. Este não necessariamente é linear. Em Bach, por exemplo, todo o desenvolvi‐
mento motívico ocorre seguindo a seta temporal (figura 1). Mesmo nos casos em
que ocorrem cânones por movimento retrógrado, estes ainda são orientados por
uma lógica ab initio ad finem¹, isto é, seguem uma ordem de eventos encadeados uns
aos outros cronologicamente.
Figura 1
Bach, Courente da Partita para violino BWV1002.

Muito embora os elementos sejam replicados na linha do tempo, eles não são
permutáveis. Deve-se ter em mente que não existe apenas uma única concepção de
agenciamento do tempo, e mesmo a sua aplicação prática pressupõe mais de um tipo
de engendramento – muito embora o relógio opere sempre numa única direção, e,
irreversivelmente. De tal sorte que a sequência dos eventos, quando opera em tempo
real, é irreversível; o que não significa que o tempo musical siga necessariamente o
mesmo princípio.
Muito geralmente, os eventos que constituem o curso temporal podem
ser dialeticamente agenciados ou não, e podem funcionar ou não com
base no princípio da repetição (os diferentes graus de identidade deter‐
minam então os limiares da memória). (Decarsin, 2001, p.76)

O tempo dialético, ao qual Decarsin se refere, em concordância com o filósofo


Gaston Bachelard (1884-1962), constitui uma alternância entre “tempo vazio² e
Cognição e(m) Processos de Criação 101

tempo cheio” (idem) capaz de explicar a descontinuidade, visto que “o tempo é con‐
tínuo como possibilidade, como nada. Ele é descontínuo como ser” (Bachelard,
apud Decarsin, 2001, p.76).
Valendo-se dessa prerrogativa, é possível constatar que, tal como a bricolage, esse
tipo de agenciamento diz respeito ao aspecto sincrônico da estrutura. Exemplos de
descontinuidade abundam ao longo do século XX, casos clássicos, como em Stra‐
vinsky – A Sagração da Primavera; ou Makrokosmos, de George Crumb. Reservarei
espaço para exemplos mais específicos adiante. Para o momento, deve restar claro que
a continuidade, no tempo musical, opera indo e voltando ao longo diacrônico. Isto
é, os elementos justapostos não estão necessariamente conectados de maneira a cons‐
tituir uma lógica consequente; tal é a natureza do estruturalismo proposto por Lévi-
Strauss. No entanto, a recursividade permite evocar cada um desses elementos dentro
da estrutura, de modo a criar uma nova ordem diacrônica. Esse tipo de construção –
dialética em essência – “permite pensar nas categorias de tensão e relaxamento de
acordo com diferentes graus de atuação”³ (Decarsin, 2001, p.77, tradução minha).
Nicholas Ruwet (1932-2001) desenvolveu um método analítico aplicado à
música conhecido como análise paradigmática, que é muito usado para estudar
músicas de origem não europeia, mas que funciona para qualquer tipo de conteúdo
musical. A figura 2 ilustra a decomposição dos elementos da figura 1 paradigmatica‐
mente, de modo que, em cada uma das três colunas, foi separado um tipo de mate‐
rial. Observe-se que, no caso do pensamento composicional de J. S. Bach, nenhum
desses materiais pode ser substituído livremente, devido ao conceito de linearidade
temporal do referido compositor.
Figura 2
Análise paradigmática do exemplo na figura 1.

Existe, evidentemente, ma estrutura entre os elementos nesse tipo de composi‐


ção. Ocorre que a sua natureza está fundamentada em causalidade simples, o que é
característico do tempo linear. Somente é possível traçar esse tipo de relação entre
um evento e outro se o tempo for irreversível. Assim, cada uma das seis possibilida‐
des do grupo de colcheia pontuada/semicolcheia só existe em função do grupo pre‐
cedente. Qualquer alteração na ordem entre elas implicaria em uma nova operação
– dentro dos princípios composicionais que regem esta música, é claro.
Figura 3
Trecho de A Sagração da Primavera.
102 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Por outro lado, em muitos exemplos de Stravinsky, existe uma total equivalên‐
cia entre os elementos, algo já muito próximo à bricolage (figura 3).
Ao analisar o trecho em ostinato, criado por Stravinsky, pode-se constatar como
os grupos de quatro semicolcheias são totalmente permutáveis. Ao contrário de
Bach, não existe um senso de linearidade temporal entre um elemento e outro, aqui,
tudo se equivale, não apenas como paradigma, mas também como sintagma.
A recursividade, nesse caso, está na reiteração de cada grupo, de tal maneira, que
a concatenação entre eles é uma operação circular – à maneira de um loop. A cada
iteração, uma nova frase é formada, mas essa frase não depende da linearidade do
tempo, uma vez que a operação de justapor um grupo ao outro não implica, abso‐
lutamente, em antes ou depois. Todos se equivalem, e podem ser permutados sem
qualquer relação de consequência com o precedente. Ao contrário, a formação de
frases, através do processo de repetição, é de natureza linear – uma vez que acontece
uma após a outra, e é percebida como tal.

Bricolage e criação musical


O musicólogo tcheco David Kozel afirma que “o pensamento mítico e musical diz
respeito a métodos narrativos específicos, com os quais exploramos e interpretamos
o mundo” (Kozel, 2018, p.191). Bricolage não é apenas uma colagem de pedaços de
materiais sem qualquer relação uns com os outros; tanto quanto desenvolvimento
não é apenas a sequenciação de um único material. Bricolage é, antes de qualquer
coisa, um processo analítico. O uso vulgar da palavra bricolagem, motivo pelo qual
o termo figura em francês neste texto, afasta o seu verdadeiro sentido ao aproximá-
lo da cultura do kitsch. A ideia de bricolagem, da qual se trata aqui, é diretamente
relacionada àquela apresentada por Claude Lévi-Strauss em O Pensamento Selva‐
gem. Nessa obra, o antropólogo emprega a bricolage de maneira a analisar, entender,
e formular a estrutura de um mito. Na tabela 2 encontra-se a análise que realizei do
mito indiano de Ganesha seguindo o modelo que Lévi-Strauss propôs.
Tabela 2
Análise estrutural de um mito.

Ao seguir-se o raciocínio de análise morfológica, resulta a tabela 3. A proprie‐


dade da recursividade permite identificar a estrutura conectiva entre as três colunas.
Ainda que pese a infinidade de variantes presentes no estudo dos mitos e seus
desdobramentos no contexto antropológico, não deixa de ser fato que “Se, além da
diversidade dos discursos mitológicos, existem constantes naturais do pensamento
Cognição e(m) Processos de Criação 103

mítico, deveríamos encontrar algumas delas na música, como Chomsky pensa que
encontramos na linguagem”⁴ (Mâche, 1983, p.47, tradução minha). E, de fato, estão
presentes, pois a recursividade é comum a todos. Motivo pelo qual é viável o paralelo
entre estruturas musicais e mitológicas na criação.
Tabela 3
Análise paradigmática de um mito.

A análise estrutural do mito permite, ainda, passar do léxico para a estrutura, e,


a partir desta, pode-se, eventualmente, abandonar o nível do significado⁵ em favor
do significante, tal como ilustra a figura 4. As palavras são substituídas por outros
símbolos, que podem representar elementos musicais. A partir desse ponto, o mito
não significa mais nada, tudo que importa é a estrutura. Cada um desses símbolos,
por sua vez, possui a mesma função sincrônica que no mito narrado, e assim, são
usados composicionalmente: podem ser permutados e anamorfisados, entre outras
possíveis operações congêneres.
Figura 4
Trecho de Fragmento Imaginário nº5.

Tabela 4
Análise paradigmática de Fragmento Imaginário nº5.
104 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

O cerne desse tipo de construção está, em primeiro lugar, no “pensamento sel‐


vagem” que opera por analogia dentro de um dado sistema, e, a partir deste, é capaz
de projetar um conjunto de transformações dentro de outro sistema (tabela 4). Não
que o capital simbólico, ou seu significado imanente – seja ele qual for –, esteja di‐
retamente implicado no processo, mas porque a análise, e subsequente bricolage,
contém o cerne de um pensamento comum ao mito e a música.
Assim como o paleontólogo Steven Mithen, que, a partir de fragmentos materi‐
ais, traça a origem comum entre música e linguagem, e o bricoleur do Pensamento
Selvagem que usa o que está à sua disposição para construir as suas analogias explica‐
tivas, também o compositor procura servir-se desses fragmentos e analogias. A com‐
posição musical, quer seja ou não baseada no estruturalismo, situa-se no nível mítico.
O processo real de composição pode ser considerado mítico por si
mesmo, uma vez que, como no caso do mito, está alicerçado no
confronto consistente, nas referências e na transformação de outras
estruturas musicais - sejam as próprias do compositor ou retiradas da
música do passado e do presente.⁶ (Kozel, 2015, p.76, tradução minha)

Ademais, a música, enquanto performance, pertence à dimensão do rito. Nesse


sentido, toda análise musical implica em compreender a sua estrutura, e, ainda que
os métodos de análise antropológicos e musicológicos, eventualmente, venham a
divergir do estruturalismo, os estudos da linguística e da paleontologia cognitiva
confirmam a sua validade, de tal modo que a música opera, tal qual a linguagem
lexicográfica e a mitologia, enquanto estrutura.

Conclusão
A aproximação entre música e linguagem é, de fato, bastante reconhecida, tanto
quanto a abordagem linguística, que se desenvolveu muito no século XX. Porém, a
aproximação com as metodologias de investigação da antropologia tem permitido
alçar maiores voos no campo da criação musical. As consagradas teorias de Chomsky
e de Lévi-Strauss revelam-se de renovado interesse quando aplicadas à composição
musical. Através das análises e exemplos apresentados ao longo deste texto, revelou-
se que a música partilha de um sistema comparável ao das ciências que se valem do
léxico fonético. Da recursividade, como mecanismo que explica o encaixe e
equivalência dos elementos da linguagem, até a reconstrução e transformação desses
através de estruturas, a música redescobre paradigmas.
As aplicações da bricolage na criação musical são muito diversas, sendo que as
aqui demonstradas são apenas um exemplo. Destaca-se, entretanto, que não se
devem tomar as teorias pela prática composicional.

Notas
1 Expressão clássica latina para “do início ao fim”.
2 O “tempo vazio” não é de fato “vazio”, mas apenas a projeção do silêncio, e possui níveis
de gradação, os quais Decarsin denomina como intensidade.
3 permet de penser les catégories de tension et de détente selon différents degrés d'activité
(Decarsin, 2001, p.77).
4 “Se, além da diversidade dos discursos mitológicos, existem constantes naturais do
pensamento mítico, deveríamos encontrar algumas delas na música, como Chomsky pensa
que encontramos na linguagem” (Mâche, 1983, p.47, tradução minha).
Cognição e(m) Processos de Criação 105

5 A partir deste ponto, o mito, enquanto narrativa, já não significa mais nada.
6 The actual composition process may itself be considered mythical, since, as in the case of
myth, it is founded on consistent confrontation, references and the transformation of other
musical structures - either the composer's own or those taken from past and present music
(Kozel, 2015, p.76).

Referências
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Behr, Y. (2019). Modelização e pensée sauvage na prática composicional. (Tese de
doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Behr, Y. (2018). Reflexo em cinza e ouro (partitura não publicada)
Decarsin, F. (2001). Inventions rythmiques et écriture du temps dans les musiques après
1945. In F. Lévi (org.), Les écritures du temps (pp. 61-88). Paris: L’Harmattan.
Drummond de Andrade, C., (1930). Alguma poesia. New York: Oxford University Press.
Gonçalvez, A., (2015). Bricolagem e processo de invenção literária: o signo na relutância
icônico/verbal. Revista Texto Poético Vol. 18, p.143.
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www.sciencemag.org acessado em 12/02/2020
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Mithen, S. (2006). The singing Neanderthal. Cambridge: Harvard University Press.
Stravinsky, I. (1989). A Sagração da primavera. New York, Dover.
106
12
Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

O ENGAJAMENTO MUSICAL
SIGNIFICATIVO DE UM COMPOSITOR EM
DOIS MOMENTOS DE SUA CARREIRA: UM
ESTUDO DE CASO
Danilo Ramos¹, Nicolas Garcia²
¹²Departamento de Artes - Universidade Federal do Paraná, Brasil
¹daniloramosufpr@gmail.com, 2nicolasfsgarcia@gmail.com

Resumo
O engajamento significativo é uma ferramenta conceitual criada para examinar e categorizar práticas cria‐
tivas. Em música, ele representa a imersão no processo criativo, ou seja, um modo de trabalho mais refinado
e consciente de criação de novos materiais musicais, que pode resultar em um aumento na intuição e no
contato com o conhecimento implícito adquirido pelo compositor. O objetivo dessa pesquisa é investigar
o engajamento musical significativo de um compositor residente na cidade de Curitiba em dois momentos
de sua carreira, a partir da matriz proposta por Brown e Dillon. Uma entrevista semiestruturada foi realiza‐
da com o referido compositor, seguida da aplicação de um questionário. As perguntas investigaram o seu
engajamento musical referente à produção de dois álbuns: um gravado em 2015, outro gravado em 2019.
Os dados foram analisados por meio da análise temática teórica proposta por Braun e Clarke. Os resultados
indicaram: (a) mudanças na configuração dos modos de engajamento percorridos pelo compositor durante
o processo composicional de ambos os álbuns; (b) mudanças na estética musical do compositor, que acom‐
panharam as mudanças em seus modos de engajamento; (c) alterações em seus objetivos composicionais,
que mudaram a sua própria estética musical de um álbum para outro. Conclui-se que as mudanças em
objetivos composicionais e, consequentemente, nos modos de engajamento percorridos pelo compositor
resultaram em maneiras diferentes encontradas pelo compositor (ainda conscientemente) para expressar
suas emoções em suas obras.
Palavras-chave: Criação musical, engajamento musical significativo, música, emoção

Introdução
Quando um compositor experimenta o processo de criação de uma nova obra mu‐
sical, ele faz uma série de escolhas, conscientes e inconscientes, a respeito da escolha
do material musical a ser trabalhado, bem como de sua organização (Wiggins,
2012). Analisar esse processo de escolha traz uma perspectiva que, por meio da ana‐
lise musical, revela elementos tangenciais do processo composicional (Schoenberg,
1984). Na presente pesquisa, o processo composicional será analisado a partir da
perspectiva das ações que permitem o compositor se engajar com o material musical.
Trata-se do engajamento musical significativo, definido por Brown e Dillon (2012)
como uma ferramenta conceitual para analisar e categorizar práticas criativas. No
contexto da composição musical, ele representa a imersão do sujeito no processo
criativo, isto é, um modo de trabalho mais refinado e consciente de criação de novos
materiais musicais que pode resultar em um aumento na intuição e no contato com
o conhecimento adquirido pelo compositor. O estudo do processo criativo de um
compositor, a partir dessa perspectiva, permite relacionar mudanças estéticas e de
objetivos composicionais com o modo pelo qual ele se relaciona com a música.
Este artigo traz os resultados da primeira etapa de uma pesquisa mais abrangen‐
te. Nela, a relação de um compositor com o seu processo criativo, bem como as
ações que derivam significado da sua prática, foram investigadas por meio de uma
entrevista semiestruturada, seguida por um questionário. Os resultados encontrados
integram a segunda parte da pesquisa, na qual respostas emocionais de um grupo de

106
Cognição e(m) Processos de Criação 107

ouvintes brasileiros foram relacionadas com o engajamento significativo desse com‐


positor em dois momentos de sua carreira.

Engajamento musical significativo


O que é o engajamento musical significativo?
O engajamento significativo é uma ferramenta de análise de práticas criativas no
campo da música. No contexto da composição, ela é abordada a partir de duas di‐
mensões: as ações que possibilitam o engajamento com a música e os contextos nos
quais essas ações podem acontecer (Brown & Dillon, 2012). Esses autores relacio‐
nam o engajamento significativo com as ideias filosóficas de Martin Heidegger, de
modo que a atuação do ser humano no mundo e a interação entre o indivíduo e os
objetos geram significados, de tal maneira que um sujeito imerso neste mundo deixa
de ter uma conexão racional com ele, passando a apresentar uma conexão intuitiva
com a realidade. Para ilustrar a ocorrência do engajamento musical significativo em
uma prática musical, os autores apresentam o exemplo de um atleta de alta perfor‐
mance, que, no momento da competição, manifesta vários comportamentos e rea‐
ções que ocorrem de maneira inconsciente e intuitiva. Essa imersão também foi in‐
vestigada pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi. Trata-se do flow, um estado
mental gerado pelo puro prazer de realizar uma determinada atividade em que o
individuo experimenta uma intensa imersão, na qual nada mais parece ter importân‐
cia a não ser a própria atividade em si mesma (Csikszentmihalyi, 1992). Em sua pes‐
quisa, esse autor entrevistou um compositor musical que relatou a presença desse
estado em suas atividades criativas. Nela, o flow é descrito como um estado extasian‐
te, no qual a imersão e a conexão com a composição faz o sujeito sentir que este
estado não influencia o processo composicional. Trata-se de uma situação que ocor‐
re como se esse estado não existisse, de tal forma que a música esteja apenas fluindo
a partir dele, mas se realizando “sozinha”. Com base nisso, Brown e Dillon (2012)
definem o engajamento musical significativo como uma imersão no processo com‐
posicional, isto é, um modo mais refinado de criação de novos materiais musicais,
no qual o compositor pode entrar em contato com o seu conhecimento implícito e
com sua própria intuição.

A matriz do engajamento significativo


O modelo teórico elaborado por Brown e Dillon (2012) apresenta cinco modos de
engajamento que compositores costumam percorrer durante suas práticas criativas:
apreciar, avaliar, dirigir, explorar e incorporar. No outro eixo da matriz, estão os três
contextos nos quais os modos de engajamento podem atuar de tal forma que derivem
significado a essa atividade: o pessoal, o social e o cultural. Os modos de engajamento
foram primeiramente apresentados na pesquisa de Brown (2001). Nela, o autor ana‐
lisou o engajamento criativo e identificou os modos percorridos nessa atividade. Os
resultados da pesquisa de Brown apontaram o interesse e o envolvimento do indiví‐
duo com tarefas criativas como os motivos centrais para a realização dessa atividade.
Com base nisso, ele combinou sua pesquisa com a de Dillon (2007), que investigou
o engajamento de estudantes em situações de aprendizado relacionadas à música. A
combinação dessas ideias resultou no conceito do engajamento significativo, deriva‐
do da pesquisa de Dillon, e na proposição dos modos de engajamento derivados da
pesquisa de Brown. A tabela 1 ilustra a matriz do engajamento significativo.

107
108 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Tabela 1
Matriz do engajamento significativo proposta por Brown e Dillon (2012). Adaptada de
Brown, A., & Dillon, S. (2012). Meaningful engagement with music. In: D. Collins (Ed.).
The act of musical composition: studies in the creative process. (pp. 79-109). Farnham: Ashgate.

A tabela 1 apresenta as atividades que descrevem as intersecções entre os modos


de engajamento e os seus contextos de significado. O modo apreciar refere-se à ex‐
periência de se distanciar da posição de compositor, se despindo do controle dos
materiais musicais para ouvir a música de uma perspectiva de um ouvinte que esteja
exterior ao processo composicional.
Dirigir é o modo de engajamento no qual o compositor julga e manipula a peça
ou materiais com um objetivo em mente. O componente-chave desse modo é a
intencionalidade das ações por ele exercidas. Mesmo que o objetivo que ele tenha
em mente não esteja claro, suas ações integram um grau de consciência presente
nesse modo.
O modo incorporar se refere a técnicas, ideias ou ferramentas que já são íntimas
ao artista, ou seja, os elementos que foram incorporados em sua prática.
O modo avaliar se refere ao momento do julgamento acerca da obra, conside‐
rando parâmetros estéticos e culturais. Diferentemente do apreciar, o compositor não
se desconecta do controle dos materiais musicais.
O modo de engajamento explorar envolve experimentações abertas feitas pelo
compositor, ou seja, atividades nas quais ele não pressupõe o seu resultado, de tal
maneira que possa criar novos materiais, soluções ou contextualizar novamente pro‐
blemas composicionais.
O aspecto vertical da matriz contempla os contextos com os quais os modos
interagem para derivar significado. O contexto pessoal trata das ações que o compo‐
sitor efetua dentro da sua própria individualidade (por exemplo: compor sozinho
com o uso de algum instrumento musical). O contexto social contempla as intera‐
ções humanas que derivam das experiências composicionais em conjunto (por
exemplo: uma interação entre pessoas a partir de uma atividade de improvisação). O
contexto cultural é fruto da interação entre o compositor e uma comunidade esta‐
belecida (por exemplo: um compositor que apresenta as suas obras em um festival de
jazz irá dialogar com o contexto cultural estabelecido nessa comunidade, seja recri‐
ando conteúdos musicais tradicionais ou apresentando técnicas composicionais ino‐
vadoras).
Apesar de serem separados em categorias distintas, os modos de engajamento
não são mutuamente exclusivos, de tal forma que o papel da matriz é apenas o de
possibilitar a análise de práticas criativas. O principal papel da descrição do processo
composicional a partir de uma perspectiva que não avalie apenas o produto final é a
ampliação da discussão a respeito de processos criativos em música.
Cognição e(m) Processos de Criação 109

Metodologia
A metodologia escolhida para esta pesquisa foi o estudo de caso, que, segundo Yin
(2001, p. 32), é “uma investigação empírica de um fenômeno contemporâneo den‐
tro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno
e o contexto não estão claramente definidos”. Esta pesquisa envolve um estudo de
caso a partir de uma metodologia mista, que, segundo Creswell (2008) contempla
tanto perguntas abertas (nível qualitativo), quanto perguntas objetivas (nível quan‐
titativo), de modo que ambos os pacotes de dados sejam analisados e conectados.
Segundo o autor, a mistura entre as duas abordagens busca apresentar um panorama
mais completo do fenômeno estudado. O objetivo deste trabalho foi o de com‐
preender os modos de engajamento significativo de um compositor residente na ci‐
dade de Curitiba em dois momentos de sua carreira musical.

Participante
O compositor é graduado em produção sonora pela Universidade Federal do Para‐
ná, com mestrado em etnomusicologia pela mesma universidade. Trata-se de um
multi-instrumentista que gravou três discos solo independentes: Ah não ser eu toda
a gente e toda a parte! (2015), Vital (2018) e 80 (2019). O primeiro disco busca retratar
paisagens sonoras de Curitiba junto com ritmos brasileiros, incorporando, princi‐
palmente, a sonoridade do violão de sete cordas em músicas instrumentais. O segun‐
do disco traz, sobretudo, canções em que elementos eletrônicos são nelas incorpora‐
dos. O terceiro disco traz uma obra resultante de um período em que o compositor
morou em Los Angeles e se aproximou do pop /hip-hop /lo-fi, de tal modo a fazer
uso de beats e sample.
Tabela 2
Roteiro de entrevista semiestruturada empregado no presente estudo.

Materiais
O compositor respondeu uma entrevista semiestruturada sobre seu engajamento
durante a produção de dois de seus discos: o primeiro, gravado em 2015 e o último,
gravado em 2019. O roteiro da entrevista encontra-se na tabela 2.
110 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Cada pergunta do roteiro acima faz referência a um modo específico de enga‐


jamento. As perguntas estão organizadas em pares temáticos, para que o compositor
pudesse ter uma chance para reformular a mesma ideia referente a cada modo de
engajamento, em caso de não compreensão da primeira questão. Além disso, como
parte final da entrevista, o compositor respondia a um questionário sobre os modos
de engajamento, que buscava investigar o quanto ele percorreu cada um deles em
cada álbum. Para isso, foram apresentadas questões que eram respondidas em escalas
ordinais (alcance: 0-10). A tabela 3 traz o questionário utilizado.
Tabela 3
Questionário empregado no presente estudo.

Procedimentos
O participante preencheu o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido referente
ao Comitê de Ética e Pesquisa da UFPR. Em seguida, o compositor concedeu a en‐
trevista, que foi feita em duas partes iguais, cada uma em referência a um álbum
diferente. Ela ocorreu da mesma forma para os dois álbuns: primeiramente, foram
apresentadas as perguntas do roteiro e em seguida, as perguntas do questionário. Ela
foi feita e gravada pelo aplicativo de videoconferência Zoom e, posteriormente,
transcrita com o uso do software Microsoft Word.

Análise de dados
A entrevista foi analisada por meio da análise temática teórica proposta por Braune
Clarke (2006) e Boyatzis (1998). Esse tipo de análise é organizado em seis etapas:
familiarização com os dados, codificação inicial, busca por temas, revisão dos temas,
definição e nomeação dos temas e a produção do relatório. Nesta pesquisa, a análise
temática teórica possibilitou a associação do processo criativo do compositor com a
matriz do engajamento significativo. Essa técnica de análise necessita, obrigatoria‐
mente, contemplar a preexistência de temas a serem observados no material coleta‐
do. No caso do presente estudo, esses temas já foram nomeados e consistem nos pró‐
prios modos de engajamento significativo.
Cognição e(m) Processos de Criação 111

Análise da entrevista
A tabela 4 traz as respostas do compositor ao questionário da entrevista sobre os dois
álbuns analisados – o de 2015 e o de 2019.
Tabela 4
Respostas do compositor ao questionário da entrevista sobre os dois momentos
da sua carreira.

O primeiro modo de engajamento contemplado na entrevista foi o apreciar. O


compositor descreve que a experiência de se expor musicalmente (tocar ao vivo e/ou
lançar suas músicas) o fez parar de idealizar o ouvinte. Ele percebeu como as pessoas
reagiam às suas músicas e notou que a complexidade musical era um nicho de inte‐
resse de seus ouvintes. Outra mudança no modo apreciar derivou de uma mudança
estética de um disco para o outro. Enquanto no primeiro disco a maioria das músicas
é instrumental, no segundo disco a maioria foi composta na modalidade canção. Se‐
gundo o compositor, a presença da letra nas músicas incorporou uma nova perspec‐
tiva de apreciação delas. Assim, neste último disco, ele imagina uma perspectiva
híbrida no processo de escuta musical de seus ouvintes, seja envolvendo uma pers‐
pectiva puramente musical, seja envolvendo uma perspectiva textual.
A principal mudança no modo de engajamento avaliar provém de uma mudan‐
ça estética e das ferramentas criativas utilizadas pelo compositor. No álbum de 2019,
ele utiliza novos recursos de produção musical, descritos da seguinte forma: “Hoje
em dia eu já vou gravando, eu já penso um negócio e já penso os plugins e efeitos
que eu posso botar, já penso qual o melhor jeito de gravar em casa”. Ele acrescenta,
ainda, que a maior quantidade de camadas e possibilidades advindas de compor em
um ambiente digital fez com que ele descartasse menos ideias no ato de compor. Se
uma ideia soava simples ou clichê, então já não era mais motivo para descartá-la,
pois o processamento e a adição de camadas abriam muitas possibilidades não possí‐
veis com o uso de apenas um violão.
Em relação ao modo de engajamento dirigir, o compositor descreve que o seu
processo composicional sempre esteve apoiado em alguma estrutura cognitiva raci‐
onal. Segundo ele: “sempre quero inventar um jogo que eu invento essas regras, e
esses jogos e as regras são a composição”. Essa afirmação aponta que a manipulação
do material musical com um objetivo (a definição do modo dirigir) é um aspecto que
se manteve relativamente similar nos dois momentos. Porém, segundo ele, esses ob‐
jetivos mudaram de um álbum para outro: “hoje em dia eu quero uma batida boa,
tem alguma coisa de corpo, saber que o corpo vai reagir com a música, antes eu nem
112 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

imaginava isso”. Ele ainda complementa a afirmação acima alegando não querer se
fechar em uma única maneira de pensar a música: “mas hoje o estado atual que eu
tô pensando tem muito a ver com uma música gostosa de sentir, principalmente que
dê pra se sentir bem.”
O próximo modo de engajamento contemplado foi o incorporar. A mudança nas
ferramentas utilizadas pelo compositor causou uma diferença importante nesse
modo. No álbum de 2015, ele criava dentro do contexto do violão brasileiro, um
gênero mais específico de música, no qual ele seguia algumas convenções. Ele des‐
creve: “no primeiro momento, meus objetivos dentro da composição eram princi‐
palmente pensando em choro eu acho, pensando nessas formulinhas, cem por cento
isso, era só isso”. Assim, os elementos incorporados em sua prática nesse momento
de sua carreira estavam relacionados ao seu instrumento. Ele completa: “eu ouvia um
mundinho muito menor assim e eu achava que eu tava numa caixinha pequena do
violão, talvez violão brasileiro, e eu ia me esforçar pra ir bem nessa caixinha, assim”.
A mudança que ocorreu no segundo momento de sua carreira parece estar relacio‐
nada a uma mudança na forma com que ele encarava a sua própria identidade àquela
época: “A gente se conhecer, que é pensar em se aceitar, eu ouvia isso mesmo, eu
nascia na época tal e a minha cabeça sabe a letra de todos os pagodes anos 90 e os
hardcore e emocore.” O compositor ainda complementa: “Hoje eu já penso em ques‐
tão de identidade, em questão de representar outras pessoas que, parece, viveram
algo parecido. Então já começo a me aceitar melhor e já começo a mexer com coisas
pop, porque antigamente a cabeça encheu de coisa pop”.
O último modo de engajamento abordado na entrevista foi o modo explorar.
Como visto na resposta ao questionário, o compositor sempre percorre esse modo,
mesmo que de maneiras diferentes. Ele demonstrou, na entrevista, uma forte neces‐
sidade de encontrar novas ideias e novos jeitos de tocar. Porém, em relação ao álbum
de 2015, ele descreve: “tinha umas ideias muito fixas, referências fixas, mas ao mes‐
mo tempo cada música eu queria ir pra outro lugar assim, mas não era pra um lugar
tão longe uma da outra”. Apesar de trabalhar, no contexto, violão brasileiro nessa
época – que pode ser mais restrito pelas convenções que o compositor seguia – ele
demonstra um contínuo interesse em explorar novos elementos estéticos durante a
sua prática musical. No momento atual da sua carreira, entretanto, essa exploração
envolve diferentes elementos. Assim, ele descreve que a improvisação no ambiente
digital pode ser simplesmente apertar um botão errado. Pode-se afirmar, portanto,
que a exploração de novos materiais musicais se manteve como um marco de inte‐
resse do compositor ao longo de sua carreira.
Por fim, ele concluiu a entrevista ao descrever a direção presente em seu álbum
mais recente: “antes tinha um pedaço de querer fazer música por música, só porque
isso aqui pode ser legal, mas acho que fica mais legal pra quem tá tocando e tem que
ficar legal pra quem escuta a música”. Essa mudança faz referência ao que foi descrito
no modo de engajamento apreciar: há uma alteração em seu entendimento a respeito
do que faz com que o seu ouvinte se conecte com a sua música. No álbum de 2015,
ele tentava engajar o ouvinte pela complexidade, qualidade da forma e desenvolvi‐
mento estrutural da música. Segundo ele, por estar trabalhando com música instru‐
mental, as suas ideias musicais seriam mais facilmente compreendidas. No álbum de
2019, em contrapartida, ele se apoia na letra, elementos rítmicos dançáveis e na in‐
corporação de outras estéticas musicais.
As mudanças presentes no entendimento do compositor em relação aos ouvin‐
tes podem indicar uma compreensão, mesmo que inconsciente, a respeito de como
Cognição e(m) Processos de Criação 113

ocorre a indução de emoção neles. O desenvolvimento composicional do artista,


nesse caso, parece estar relacionado à maneira com que ele repensou a perspectiva
do ouvinte ao longo de sua carreira. Segundo Juslin (2019), um dos principais ele‐
mentos que rege a experiência musical do ouvinte é a emoção. Portanto, as mudan‐
ças descritas na compressão do compositor sobre esse aspecto podem ser analisadas
e relacionadas com a maneira pela qual a música desencadeia emoção em ouvintes.
Assim, é possível inferir que o compositor em questão criou um entendimento, mes‐
mo que inconsciente ou intuitivo, de maneiras distintas de engajar os seus ouvintes
com sua obra.

Conclusão
As principais conclusões que podem ser retiradas das reflexões oriundas deste estudo
são:
(1) O uso da matriz proposta por Brown e Dillon (2012) foi eficaz para investi‐
gar o engajamento significativo do compositor em dois momentos de sua car‐
reira;
(2) Foi possível perceber que ocorreram mudanças na configuração dos modos
de engajamento percorridos pelo compositor, principalmente em função da es‐
tética musical escolhida por ele. Porém, algumas características de seu processo
composicional se mantiveram através dos anos, mesmo que em ambientes e
configurações diferentes. Essa constância do processo composicional esteve
atrelada ao seu estilo, sua musicalidade e suas motivações pessoais;
(3) O compositor percorreu todos os modos de engajamento durante o processo
composicional dos dois álbuns analisados. Mesmo com as mudanças presentes
de um disco para o outro, ele se manteve engajado nos dois momentos;
(4) Os resultados desse estudo permitem o desenvolvimento da segunda etapa
da pesquisa: a realização de um experimento com o intuito de mensurar respos‐
tas emocionais de ouvintes sobre músicas retiradas dos dois álbuns, desse com‐
positor, aqui analisados.

Referências
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in Psychology, 3(2), 77–101.
Boyatzis, R. (1998). Transforming qualitative information: Thematic analysis and code
development. Thousand Oaks: Sage.
Brown, A. (2001). Modes of Compositional Engagement. Mikropolyphonie, 2012, 1-10.
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act of musical composition: studies in the creative process. (pp. 79-109). Farnham: Ashgate.
Creswell, J. W. (2008). Educational research: Planning, conducting, and evaluating
quantitative and qualitative research. Upper Saddle River: Pearson Education.
Csikszentmihalyi, M. (1990). Flow: the psychology of optimal experience. London: Harper & Row.
Dillon, S. (2007). Music, meaning and transformation. Cambridge Scholars Publishing.
Juslin, P. (2019). Musical Emotions Explained. Oxford: Oxford.
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Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.
Wiggins, G. (2012). Defining inspiration? Modelling the non-conscious creative process.
In: Collins, D. (Ed.). The act of musical composition: studies in the creative process. (233-
254). Farnham: Ashgate.
13
114 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

INTERTEXTUALIDADE E TÓPICAS NO 1º
MOVIMENTO DO QUARTETO DE CORDAS
OP.13 N.2 DE FELIX MENDELSSOHN
Ricardo Tanganelli da Silva
Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista, Brasil
¹ricardo.tanganelli@unesp.br

Resumo
O presente trabalho apresenta considerações acerca da estrutura narrativa do quarteto de cordas Op.13 n.2
(1827) do compositor alemão Felix Mendelssohn (1809-1847). Essa obra apresenta soluções arrojadas na
organização da estrutura formal, frequentemente associada à ideia da forma cíclica, e possui a ocorrência de
algumas figuras musicais e texturas arquetípicas relacionadas a determinados estilos composicionais, cha‐
madas de “tópicas”, particularmente comuns nos períodos barroco e clássico. Utilizando determinados ele‐
mentos composicionais, Mendelssohn elabora sua estrutura narrativa a partir de referencialidades intrínse‐
cas e extrínsecas. Assim, esta pesquisa evidencia o caráter intertextual da obra musical em questão,
ressaltando associações expressivas cunhadas a partir de um léxico de figuras musicais que permeia diversos
estilos e períodos musicais. As elaborações técnicas dessas figuras revelam aspectos intertextuais na obra em
questão, que compõem um diálogo permanente com a história musical a partir da aplicação de estilos com‐
posicionais diversos. Por fim, uma análise que colabora para a elaboração de uma narrativa reforça, ainda
mais, a capacidade comunicativa da obra musical, podendo servir como auxílio para a organização auditiva
das estruturas expressivas musicais particularmente articuladas pela memória.
Palavras-chave: Análise musical, tópicas, intertextualidade, cognição musical, forma musical

Introdução: as tópicas musicais


Conforme apresentadas por Leonard Ratner (1980), as tópicas são um conjunto de
elementos musicais (motivos, texturas, padrões rítmicos, figurações melódicas, an‐
damentos, progressões harmônicas etc.) padronizados pelo uso, utilizadas em com‐
posições desde o início do século XVIII, mais frequentemente associadas a compo‐
sições do classicismo vienense. No romantismo, ganharam nova expressão a partir
da exploração da sobreposição de tópicas contrastantes a fim de enfatizar tensões e
ampliar a dramaticidade expressiva da obra musical. Entre as tópicas mais comuns,
podem-se citar, entre outras: os diferentes tipos de danças estilizadas, por exemplo,
os diversos estilos de minueto – como a passepied, o estilo sarabanda, valsas, ländler,
entre outros –, as bourrée, gavotte, gigue etc.; os estilos militar e de caça, caracterizados
por figuras que lembram toques de fanfarra, sinais de trompa etc., frequentes no re‐
pertório, configurando um importante uso das tópicas; o estilo cantabile, peças com
andamento geralmente moderado e linhas melódicas, apresentando valores relativa‐
mente longos e âmbito preferencialmente restrito de alturas; o estilo brilhante, com‐
posto geralmente por passagens rápidas e virtuosísticas de forte intensidade senti‐
mental; a abertura francesa, de caráter cerimonial, andamento lento de marcha,
caracterizada pelo uso de figuras rítmicas pontuadas; o sturmunddrang, referindo-se
ao estilo literário das primeiras manifestações do romantismo, caracterizado por rit‐
mos turbulentos, alta densidade textural, harmonias no modo menor, cromatismos
inesperados e dissonâncias agressivas; entre outras.
Todas essas tipologias eram chamadas genericamente de estilo galant ou livre, e
estavam ligadas essencialmente ao teatro e a música de câmara (Ratner, 1980). O
estilo a seguir, no entanto, está associado fundamentalmente à música sacra: o estilo
estrito ou estilo aprendido (estilo culto), caracterizado pelo emprego rígido de regras

114
Cognição e(m) Processos de Criação 115

de progressões harmônicas e melódicas, frequentemente contendo passagens imita‐


tivas, caráter fugado ou em cânone e geralmente contrapontístico.
Na figura 1, estão destacadas duas ocorrências tópicas. Enquanto o Adagio apre‐
senta características relacionadas à composição coral e ao estilo sacro – portanto, alto
–, o trinado escrito para as violas no final da seção relaciona-se com o estilo ombra,
ou “sombra”, ligado a eventos sobrenaturais e misteriosos.
Figura 1
Compassos iniciais do Adagio do quarteto Op.13
Destacando o estilo coral de escrita e a tópica “ombra”.

Essas figuras, complementadas posteriormente por Robert Hatten (1994), foram


associadas a determinados afetos e expressividades, suscitando a interpretação das
tópicas sob um ponto de vista social, cultural e histórico. Exemplos disso são as rela‐
ções traçadas entre os chamados estilos “baixos” com a ópera buffa, “médios” com o
estilo galant em geral, e “altos” relacionados à música para a igreja. No entanto, con‐
siderações mais profundas sobre essas questões fogem do escopo desse trabalho.
No que concerne ao uso das tópicas como elemento de articulação formal, po‐
dem-se conjecturar as seguintes relações entre as diferentes seções (tabela 1):
Tabela 1
Quadro relacionando diferentes níveis de interpretação.

Dessa forma, torna-se possível projetar a aplicação das estruturas tópicas para
além da mera descrição de eventos sonoros, relacionando-a diretamente a zonas de
organização formal.

O gênero quarteto de cordas


Em uma obra, o diálogo com a própria história da composição musical é constante.
Pode-se dizer que algum elemento, em algum nível, sempre permanece, enquanto
outros se modificam. O quarteto de cordas Op.13 n.2 (1827) do compositor alemão
Felix Mendelssohn (1809-1847), nesse sentido, é pleno de referências internas e ex‐
ternas, tanto a obras do próprio compositor, quanto a composições e compositores

115
116 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

que, de alguma forma, exerceram influência na sua técnica e pensamento musicais.


De fato, a própria escolha da instrumentação – o quarteto de cordas –, em si, já é um
aspecto da permanência de uma determinada tradição, cuja origem remonta ao trio
sonata barroco (Jones, 2003) e perpassa todos os demais períodos musicais até os dias
de hoje. Mais especificamente, os últimos quartetos de cordas de Beethoven –
Op.127 em Mi bemol maior (1825), Op.130 em Si bemol maior (1825), Op.131 em
Dó sustenido menor (1826), Op.132 em Lá menor (1825), Op.133 “Grosse fugue” em
Si bemol maior (1825), originalmente o finale do Op.130, e Op.135 em Fá maior
(1826) – foram os que mais influenciaram a referida obra de Mendelssohn pelas suas
conexões entre estrutura e dimensão expressiva (Taylor, 2010). Sobre esse assunto,
Hefling discute a tradição austro-germânica do quarteto de cordas no século XIX e
diz que, entre os principais elementos de referenciação entre o Op.13 de Mendels‐
sohn e o quarteto de cordas Op.132 de Beethoven – também em Lá menor –, po‐
dem-se notar as “conexões motívicas entre as duas obras (...), especialmente nos seus
primeiros movimentos, e ambas empregam um apaixonado recitativo do violino
para introduzir os seus finale.” (2003, p.235).

Figura 2
Adagio do primeiro movimento do quarteto Op.13 n.2,
a “pergunta” sem “resposta”.

Figura 3
Adagio come I, coda do último movimento do quarteto Op.13 n.2,
a “pergunta” com a “resposta”.
Cognição e(m) Processos de Criação 117

No entanto, uma referencialidade mais explícita é evidenciada na relação exis‐


tente entre o Adagio do primeiro movimento (figura 2) e a Coda do último movi‐
mento (figura 3). Esse aspecto de ciclicidade é uma das principais características des‐
te quarteto, onde a estrutura coral é utilizada para propor uma espécie de “pergunta”
que terá sua “resposta” apenas no final do último movimento da obra.
A despeito das relações harmônicas existentes entre as duas seções lentas –
relações de dominante e tônica que, por analogia, poderiam ser associadas a uma
estrutura de expectativa e resolução, ou, nesse sentido, à pergunta e sua resposta –,
o que se destaca é a reutilização de texturas e motivos característicos que auxiliam a
organizar os eventos sonoros na memória. Desse modo, um aspecto intertextual em
particular se destaca aqui: o motivo “Ist es wahr?” da peça “frage’ dos 12 lieder Op.9.

O motivo “Ist es wahr?” do Op.9 n.1 e sua relação com o quarteto


As relações de narratividade existentes no Op.13 encontram uma dimensão extrín‐
seca quando se observa o Op.9 n.1 do mesmo compositor. Este opus, composto
também em 1827, compreende doze lieder, dos quais a primeira peça intitulada “fra‐
ge”(“pergunta”, em português) apresenta o mesmo motivo da anacruse para o com‐
passo 14 e compasso 15 do Adagio inicial do quarteto (figuras 4 e 5):

Figura 4
Motivo “Ist es wahr?”de frage, Op.9 n.1.

Figura 5
Motivo “Ist es wahr?” apresentado no Adagio do Op.13 n.2.
118 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Aqui, por narratividade entende-se “a presença de algum princípio organizador,


alguma macroestrutura e sintaxe que permite o entendimento categórico da confi‐
guração de uma obra e sua semântica.” (Pasler, 1993, p.5). Dessa forma, é possível
criar um elo narrativo entre as duas obras, que é ainda potencializado pelo próprio
texto poético do lied. Nesse sentido, a indagação “Ist es wahr?” (“é verdade?”) – frase
inicial do poema de autoria incerta, inicialmente atribuído ao poeta Johann Heinri‐
ch Voss (1751-1826), mas provavelmente escrito pelo próprio Mendelssohn (Tay‐
lor, 2010) –, se relaciona por analogia à ideia da “pergunta” no quarteto, que irá
“pairar” sobre os demais movimentos até, eventualmente, retornar com o mesmo
caráter no final da obra, finalmente, com a “resposta”.
Do ponto de vista geral da obra, o Adagio inicial em Lá maior cria uma estrutura
de expectativas que introduz o Allegro vivace em Lá menor elaborado na forma so‐
nata habitual. No entanto, a narrativa disfórica que se segue a partir da relação tonal
entre modo maior e modo menor e que, apenas no final da obra, retorna ao Lá maior
possui associações expressivas afeitas ao ideário romântico de transcendência, po‐
dendo ser interpretada como “uma queda mítica da graça, seguida por um longo e
agonizante processo de redenção levando à reconciliação final e parúsia, ou como
parte de uma narrativa “flashback”, com os eventos internos sendo recontados como
um tempo passado” (Taylor, 2010, p.48). A figura 6 ilustra essa trajetória da obra.
Figura 6
Trajetória formal paradigmática do quarteto Op.13 n.2 segundo Taylor (2010, p.48).

Além disso, o aspecto cíclico, com o Adagio inicial retornando na coda do último
movimento, contribui para o caráter cíclico da obra em uma estrutura quase de um
arco narrativo (figura 7).
Figura 7
Visão geral da estrutura cíclica em múltiplos níveis de acordo com Taylor (2010, p.49).

Sobre a intertextualidade
O aspecto intertextual, entendido como uma referência a uma narrativa situada fora
do tempo da obra, é ressaltado neste quarteto em diferentes níveis. Além da associa‐
Cognição e(m) Processos de Criação 119

ção motívica e expressiva com o Op.9 n.1, a própria ideia de uma estrutura baseada
em motivos associados a uma pergunta possui precedentes. No caso, a obra mais
diretamente relacionada é quarteto de cordas em Fá maior Op.135 do compositor
alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827). Mais especificamente, a estrutura do
último movimento desse quarteto apresenta motivos igualmente relacionados a uma
ideia de pergunta. Nesse caso, Beethoven intitula o movimento de “Der schwer ge‐
fasste Entschluss” (“a decisão difícil”), e apresenta dois motivos: um interrogativo
chamado “Muss es sein?” (“deve ser?”), caracterizado como uma terça menor descen‐
dente seguido por uma quarta diminuta ascendente; e um exclamativo, chamado “Es
musssein!”(“deve ser!”), compreendendo uma terça menor ascendente seguida por
uma quarta justa descendente (figura 8).
Figura 8
Início do último movimento do quarteto de cordas Op.135 de L. v. Beethoven.

Essa leitura permite criar uma rede de referências que situa o quarteto de Men‐
delssohn como uma obra na qual estrutura e conteúdo expressivo se fundem para
criar uma narrativa intertextual rica em possibilidades interpretativas. De acordo
com Klein, pode-se considerar um texto apenas relacionado ao seu tempo, criando
uma intertextualidade histórica, ou abri-lo a outras temporalidades, se relacionando
a uma espécie de intertextualidade “transhistórica” (Klein, 2005). De qualquer for‐
ma, entende-se que as múltiplas referências que se podem associar a um determina‐
do estilo ou cânone podem enriquecer a apreciação estética da obra como um todo.

Conclusões
Graças às suas particularidades, as figuras tópicas apresentam características que pos‐
sibilitam a articulação formal do discurso sonoro a partir dos seus elementos consti‐
tutivos. Ao lidar com a memória, podem auxiliar a percepção da organização estru‐
tural da obra musical, configurando “zonas” estilísticas contrastantes. Dessa forma,
podem contribuir para a narrativa musical de forma a intensificar os conflitos ex‐
pressivos e ressaltar aspectos estruturais sem necessariamente demandar conheci‐
mentos técnicos por parte do ouvinte. Nesse aspecto, pode-se observar que as rela‐
ções de intertextualidade tecidas pela obra em questão podem enriquecer a audição
musical pelo constante diálogo com diversos estilos e cânones, podendo elevar a ex‐
periência auditiva, contribuindo para a apreciação estética de forma mais ampla.
120 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Agradecimentos. Agradeço aos organizadores do ENCAM 3 pelo aceite e enriquecimento


desse trabalho, aos colegas que contribuíram com opiniões críticas, ao grupo de pesquisa
Cogmus, ao grupo Muda!, ao IA/Unesp e ao meu orientador Marcos Mesquita.

Referências
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Ratner, L. (1980). Classic Music. New York: Schirmer Books.
Hefling, S. E. (2003). The Austro-Germanic quartet tradition in the nineteenth century. In
R. Stowell (ed.), The Cambridge Companion to the String Quartet. Cambridge:
Cambridge University Press.
Klein, M. (2005). Intertextuality in western art. Bloomington: Indiana University.
Pasler, J. (1993). Postmodernism, narrativity, and the art of memory. Contemporary Music
Review, 7:2, 3-32.
Ratner, L. (1980). Classical Music, Expression, Form and Style. New York: Schirmer Books.
Taylor, B. (2010). Cyclic Form, Time, and Memory in Mendelssohn's A-Minor Quartet,
Op. 13. The Musical Quarterly, 93(1), 45-89. Retrieved September 21, 2020, from
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Wyn Jones, D. (2003). The Origins of the Quartet. In R. Stowell (ed.), The Cambridge
Companion to the String Quartet. Cambridge: Cambridge University Press.
Cognição e(m) Processos de Criação 121
122
14
O CONCEITO DE INTERATIVIDADE
CONSIDERADO À LUZ DAS CIÊNCIAS
COGNITIVAS
Camila Fernanda Silva e Souza¹, Rael Bertarelli Gimenes
Toffolo²
12
Departamento de Música e Artes Cênicas- Universidade Estadual de Maringá, Brasil
1
camilafernanda.s@outlook.com, 2rbgtoffolo@uem.br

Resumo
Nas artes visuais e cênicas, Arte Interativa é o conceito que define as obras construídas de modo a superar a
passividade do receptor no processo de significação. Tal conceito transformou-se de modo a protagonizar
o papel do corpo tanto do artista quanto do público, similarmente, segundo Leote (2015), ao ocorrido no
desenvolvimento das ciências cognitivas no que se refere à centralidade corporal para a explicação do co‐
nhecimento (Varela et al., 2003). Conforme Marquez (2020) e Miskalo (2009), a maioria das obras intera‐
tivas musicais estabelecem-se em uma relação entre sistema computacional/obra e intérprete, não incluindo
o fruidor/interator, divergindo, então, das demais linguagens artísticas. Tal diferença pode ser abordada ao
considerarmos que as obras interativas musicais parecem estar próximas dos paradigmas cognitivistas (Oli‐
veira, 2003) apoiando-se em processos criativos algorítmicos, de controle central, de ação/reação pré-de‐
terminadas, entre outros. Desse modo, uma leitura do desenvolvimento do conceito de interatividade à luz
dos paradigmas da Ciência Cognitiva pode contribuir para compreendermos as diferenças entre a interati‐
vidade musical e a praticada em outras linguagens artísticas.
Palavras-chave: Arte interativa, interatividade musical, epistemologia cognitiva, ciências cognitivas, música

Introdução
A interatividade é um conceito que se encontra em ampla discussão em diversas di‐
mensões da pesquisa artística, inclusive no campo da Cognição Musical. Ao consi‐
derarmos a história de criação de obras interativas desde as vanguardas do século
XX, podemos perceber que, gradativamente, tornou-se mais proeminente poética
e esteticamente a ação corpórea do espectador como parte constituinte da obra, ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento das ciências cognitivas outorgou mais
centralidade ao papel do corpo para a explicação do conhecimento. Nesse contexto,
nossa hipótese de pesquisa circunda a possibilidade de se pensar a interatividade em
música de maneira a considerar, de fato, a ação de um ou mais interatores para a
construção de obra artísticas, de modo a superar a prática corrente de obras musicais
interativas de palco, que praticamente desconsideram o papel do público. Buscamos
compreender como a música interativa se encontra na produção contemporânea e
quais transformações são possíveis quando consideramos suas bases epistemológicas
comparadas ao paradigma dinâmico da cognição.

Arte interativa
Ao falarmos em arte interativa¹, nos referimos a uma obra que demanda um prota‐
gonismo do espectador em sua totalidade, de seu corpo e suas ações, de forma que o
mesmo ultrapasse os limites de espectador/receptor e passe a ser um interator.
A busca por níveis e tipos de interatividade, juntamente com o desejo de novos
olhares sobre a arte e sobre o fazer artístico, deriva das atitudes experimentalistas dos

123
124 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

movimentos de vanguarda do século XX que exploraram novos conceitos de obra,


criador, fruição, papel do público, espaço, entre outros.
A arte interativa é, portanto, segundo Ascott (1999), um amplo espectro expe‐
rimental inovador que utiliza diversos meios sob a forma de performances e expe‐
riências, nas quais o espectador age, modifica, interage com a obra, participando,
assim, do seu processo de criação. Portanto, a arte interativa, como considerada por
Ascott, nos mostra que ela se distancia fortemente dos paradigmas tradicionais ar‐
tísticos e dos modos tradicionais de fruição e construção da obra de arte.
Há processos artísticos interativos nos quais um simples movimento do público,
um gesto, ou apenas a presença dele no espaço da obra pode ocasionar algum tipo de
transformação. Portanto, a arte interativa correlaciona, em tempo real, tanto o tempo
da obra quanto o tempo do interator de forma sincrônica, permitindo que ambos
estabeleçam uma relação de mutualidade. Muitos são os aspectos referentes à intera‐
tividade que podem ser considerados. Cornock & Edmonds (1997) destacam quatro
perspectivas para se estudar a interação: obra, audiência, tempo e ambiente/local.
Aqui, nos interessa a relação entre obra e público e, nesse contexto, é possível locali‐
zar diversos estudos que se dedicam aos diferentes níveis e tipos de interatividade.

Tipologias de interatividade na arte


O próprio conceito de interação² parte da ação que uma ou mais partes exercem
entre si e, como sabemos, as possibilidades de ações são múltiplas. Na bibliografia a
respeito da arte interativa, podemos encontrar diferentes tipos e níveis de interativi‐
dade que são classificados de acordo com o comportamento da obra e do interator e
da relação que ambos estabelecem.
No que se refere ao grau de interação de uma obra, Lopes (2001) nos apresenta
uma distinção de intensidade: interatividade forte e fraca. É considerada interativi‐
dade fraca aquela em que as escolhas do interator não influenciam a estrutura da
obra, uma vez que é concedida a ele uma gama limitada de escolhas de ações execu‐
táveis na obra. Já a interatividade forte integra as obras em que sua estrutura é mo‐
dificada, em algum nível, pelas ações do interator. Encontramos, em Primo (2008),
duas classificações que se aproximam dessas, denominadas interação mútua e reativa.
Uma interação mútua é caracterizada como um sistema aberto, em que seus elemen‐
tos são interdependentes, de modo que, quando um é afetado, o sistema se modifica
em um fluxo³ dinâmico, que está sempre em desenvolvimento, sendo transforman‐
do pelas ações. Esse tipo de interação se dá por meio do que Primo chama de relação
de negociação, pois há uma troca de interferências entre o interator e o sistema: o
sistema reage ao interator e vice-versa. A interação reativa se apresenta em sistemas
fechados de relações unilaterais entre interator e obra, nos quais o interator tem pou‐
ca ou nenhuma condição de alterar o sistema total. Esse sistema também não percebe
situações provocadas pelo interator de maneira a não haver uma relação de negoci‐
ação, mas se resume a uma relação estímulo-resposta por meio de ações e reações
repetidas que não se transformam ao longo do tempo da obra, fazendo com que o
fluxo seja linear e predeterminado em eventos isolados.
Graham (1997), em sua pesquisa prática sobre arte interativa sob a ótica da cu‐
radoria, reuniu classificações de Ascott (1967), Cornock & Edmonds (1997) e Bell
(1991), que apresentam subdivisões mais específicas ainda. Graham (1997) propôs
uma “taxonomia de tipos de interatividade dentro da arte” (p.38), uma das contri‐
buições mais valiosas para a área, considerando que são raros os estudos que se dedi‐
cam a realizar tal tipo de classificação. Graham, recapitulando as tipologias existen‐
Processos Criativos Colaborativos 125

tes, afirma que a classificação proposta por Ascott (1967) foi, até certo ponto, esti‐
mulada pela ruptura do modelo de comunicação linear entre arte e público com o
surgimento das manifestações artísticas de vanguarda da década de 1960, como os
happenings e performances colaborativas, e sugere uma bifurcação da produção de
obras de arte no âmbito geral: determinístico e comportamental. O primeiro grupo
faz referência às obras concebidas e realizadas apenas pelo artista, obras que estabe‐
lecem algum tipo de predeterminação. E, portanto, no segundo grupo é onde se
enquadram as obras interativas, onde há influência do comportamento do público.
Cornock & Edmonds (1977) apresentam uma grande área denominada Sistema Di‐
nâmico de Arte, que engloba as obras interativas, e a divide em quatro subcategorias
que sintetizamos como:
1. Sistema Dinâmico: definida na dependência organizacional da obra de arte
com certas variáveis de seu ambiente.
2. Sistema Recíproco: contexto em que o espectador e o ambiente da obra esta‐
belecem uma relação recíproca, porém as mudanças que ocorrem na obra só
existem enquanto a relação interativa entre espectador e ambiente ocorre.
3. Sistema Participativo: ambiente em que as ações que um grupo de participan‐
tes executam entre eles e obra são tratadas como uma matriz de dados.
4. Sistema Interativo de Arte: obras que existem na troca mútua entre interator
e seu sistema, em que as mudanças decorrentes dessa relação mútua alterem
a própria obra e a ação do interator sobre ela, fazendo com que a obra se
construa no tempo. Os autores alegam que, nesse contexto, a obra deve exi‐
bir propriedades de um sistema capaz de aprender.

Por sua vez, Bell (1991) problematizou as categorias bifurcadas para a classifica‐
ção de obras de arte, pois determinam que existem obras que não possuem nenhum
tipo de interatividade, observando que é discutível a noção de que o público de
qualquer obra é sempre passivo. Nesse sentido, denominou um grande grupo de
Participativo, em que espectadores usufruem a obra de dentro e/ou fora dela. Dentro
desse grande grupo, considera um subgrupo Interativo, que engloba somente as
obras em que interator e obra são reciprocamente ativos, exercendo influência um
sobre o outro. Argumentando estar mais preocupado com a usabilidade das classifi‐
cações de interatividade, Bell (1991) alega ser mais útil discutir e elucidar diferentes
tipos de interação de forma mais maleável. Seguindo esse raciocínio, o autor buscou
uma forma mais gradual para compreender a interatividade, propondo critérios mais
flexíveis para analisar e entender as obras no grupo Interativo, dentre eles: a maneira
como interatores interagem entre si dentro de uma obra, e os modos que são permi‐
tidos ao interator para se relacionar com a obra e/ou com sua interface. Outro im‐
portante aspecto considerado por Bell refere-se aos fatores psicológicos do interator,
ou seja, seu posicionamento mental: se eles estão alheios a obra, controlando suas
ações de dentro, só observando outras pessoas interagirem, participando da intera‐
ção, entre outros.
Nota-se que o centro de discussão que alicerça a arte interativa, independente‐
mente do parâmetro e nível de classificação, é a relação que se estabelece entre obra e
interator. No entanto, notamos que o cenário majoritário de obras interativas na área
da Música se constrói sob uma perspectiva divergente dos demais domínios da arte.
126 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Interatividade na música: uma relação de liberdade ou restrições?


Como mostramos anteriormente, a preocupação da participação do espectador em
uma obra de arte é uma busca que se inscrevia nos movimentos artísticos caracte‐
rísticos que se iniciaram na década de 1960. Nesse contexto, o criador/idealizador da
obra não é o único a lhe dar existência, os interatores também participam desse pro‐
cesso de criação. Couchot (2008), ao discutir sobre o processo de criação coletiva no
contexto do que denominou estética naturalizada da arte, sustenta que processos cri‐
ativos coletivos inauguram uma nova relação entre as condutas estéticas receptoras
e operatórias, oferecendo à reflexão estética um campo inédito de experiências.
A diferença crucial entre as obras musicais interativas e as obras interativas pro‐
venientes de outras linguagens artísticas, como as Cênicas e Visuais, é o próprio en‐
tendimento do que vem a ser uma relação de interação. Miskalo (2009), em sua pes‐
quisa acerca do tema, aponta que “o que ocorre frequentemente é que a interação
não se dá propriamente entre o público e o sistema interativo, e sim entre o sistema
e os músicos que estão no palco” (Miskalo, 2009, p.59). Esse tipo de relação é o que
Graham (2014) denomina como interação de palco, já que o público não exerce
influência no processo.
Observa-se que, sendo essa a relação interativa considerada na música, tem-se a
permanência da situação de concerto tradicional, onde a obra ocorre em uma di‐
mensão diferente da do público e este, por sua vez, frui a obra a partir dela. Miskalo
(2009) diz que, embora tal situação se mantenha, as questões composicionais e per‐
formáticas do uso das ferramentas interativas (sistemas/interfaces interativas) se so‐
mam ao processo de produção musical, fazendo com que se alterem os conceitos
tradicionais. Essa mudança de postura do intérprete em relação à obra é muito bem
exposta na música eletroacústica mista, área que engloba praticamente a totalidade
das obras musicais interativas, nas quais intérprete e obra se conectam por meio de
uma interface mediada pelas tecnologias eletrônicas. Couchot (2008) discorre que,
depois de um período inicial no qual o computador funcionava como um sistema
fechado, a interatividade no âmbito musical possibilitou a intervenção da ação de
um corpo na máquina para a produção de sons, o que a transformou em um verda‐
deiro instrumento a serviço do compositor e do intérprete. Essa foi uma grande con‐
tribuição dessa relação considerada interativa na música, pois foi justamente essa
possibilidade técnica de interação em tempo real entre os músicos e os sistemas ele‐
trônicos e digitais que trouxe de volta para a música eletroacústica a atividade per‐
formática em uma nova dimensão, permitindo que a obra seja modificada durante a
performance (Miskalo, 2009).
No entanto, por mais que esse tipo de relação interativa tenha provocado alte‐
rações de concepções de performance na música, se analisarmos as bases epistemo‐
lógicas dos paradigmas tradicionais da arte, em especial o musical, notaremos que as
obras musicais interativas ainda são calcadas em suas premissas. Tal fato parece ser o
que justifica a divergência entre a interatividade musical e a das obras interativas dos
outros domínios artísticos, que ainda mantêm uma relação de interação que não
considera o público e sua atuação.
Ao contrário dessa situação típica das artes visuais que autorizava o espec‐
tador a participar da produção da obra, na música a abertura do campo
dos possíveis não se dirigiu prioritariamente ao ouvinte, salvo em raras
exceções; em contrapartida, ela implicou o intérprete, a quem foi confia‐
da uma liberdade muito mais ampla. Liberdade esta muitas vezes mais
teórica do que real, pois a cultura clássica dos intérpretes fazia deles mais
servos dos compositores do que colaboradores. (Couchot, 2008, p. 212)
Processos Criativos Colaborativos 127

Então, o intérprete assume a postura de interator em sua liberdade limitada e o


espectador continua passivo. Com isso, a fronteira conceitual do que é compositor,
intérprete e ouvinte ainda está bem consolidada na música interativa, diferentemen‐
te de outras linguagens artísticas nas quais tais conceitos já estão superados, como
demonstra a própria história de produção de obras. A permanência da aplicação tra‐
dicional desses conceitos faz com que a concepção da obra como artefato artístico a
coloque inscrita nesse contexto tradicionalista. Couchot (2008) ainda afirma que o
criador, para não colocar sua obra em risco com a interação do intérprete, determina
vários fatores que podem intervir nas ações do performer de maneira a não prejudi‐
car a sintaxe de sua obra, evitando que a mesma seja desclassificada enquanto obra
musical pelas próprias premissas do paradigma em que ela se embasa. Antes da exe‐
cução da obra, o intérprete é apresentado às propostas de caminhos, criados pelo
compositor, a serem seguidos na sua performance, funcionando como limites, ou
como uma pré-seleção vinculada à variedade do sistema de obra. Exatamente devido
a isso, Couchot (2008) alega que o intérprete possui uma falsa liberdade, pois a ele
só é permitido escolher dentro das possibilidades que o compositor lhe apresentou,
liberdade essa que, ao invés de ser guiada pela sua percepção e ação para o fazer mu‐
sical, foi reduzida a uma gama limitada de escolhas predeterminadas por alguém
alheio a ele mesmo.
Fica evidente que a música interativa, em sua maioria, é baseada na busca do
reconhecimento de estruturas predeterminadas. Zampronha (2000), ao analisar os
processos criativos tradicionais e as possibilidades contemporâneas de criação, con‐
sidera que
uma composição que seja construída a partir do reconhecer, como ocor‐
re no paradigma tradicional, parte justamente de elementos pré-conce‐
bidos, estereotipados. A preocupação do compositor é justamente fechar
o significado da obra dentro daquilo que o estereótipo determina. A
composição, nesses termos, nada mais é que uma construção musical que
manipula os elementos estereotipados de tal forma a construir um todo
orgânico. A boa composição é aquela que consegue manipular os este‐
reótipos de tal maneira que, quando ouvidos, não pareçam uma cola‐
gem, mas, ao contrário, pareçam estar organicamente conectados, flu‐
entes, equilibradamente arranjados. (Zampronha, 2000, p.252)
Estereótipos, nesse contexto, refere-se a elementos que já estão e são, de alguma
forma, dados e esquematizados de maneira que só basta aplicá-los. Ainda de acordo
com Zampronha (2000), uma forma de diluição ou quebra dos estereótipos é a pró‐
pria modelagem da percepção, de modo que as unidades perceptuais e suas relações
não sejam configuradas por predeterminações. As obras interativas alheias à área
musical já se desapegaram dos conceitos tradicionais de criador, performer e espec‐
tador que exclusivamente concebem, interpretam ou espectam uma obra. Assumir
essa ruptura conceitual no processo criativo faz com que se originem obras que se
constroem na percepção-ação e que são desvencilhadas de preocupações advindas
dos paradigmas tradicionais, como a manutenção da obra no tempo, e que ultrapas‐
sem ou descaracterizem as funções sintáticas e operacionais predeterminadas.
Os argumentos traçados até aqui nos mostram que a superação dos limites im‐
postos pelo paradigma tradicional da música aos processos criativos se faz necessária
para que as obras musicais interativas possam melhor explorar relações interativas
que englobem, de fato, o espectador e suas ações, aproximando-se das obras intera‐
tivas das demais linguagens da arte.
128 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Interatividade musical e os paradigmas da ciência cognitiva


Ao longo da segunda metade do século XX, destaca-se, na evolução da criação ar‐
tística, certa correlação entre a produção de obras e os modelos utilizados na ciência
cognitiva. Mesmo sem possuírem estritamente os mesmos objetivos que os cientistas
e pesquisadores da área, os artistas muitas vezes cruzam essas modelizações (Cou‐
chot, 2008). Assim como a arte foi se desenvolvendo com a busca de novas concep‐
ções para o fazer artístico e seus processos criativos, a ciência cognitiva também pas‐
sou por transformações de paradigmas à medida em que o papel do corpo foi sendo
enfatizado na explicação do conhecimento.
Notamos que a maioria das obras musicais interativas se alinha às premissas cog‐
nitivistas, visto que essa vertente acomodou toda a formatação epistemológica do
paradigma tradicional da música. Tal afirmação não taxa o paradigma tradicional
musical como cognitivista, pois o mesmo é muito anterior a essa vertente da ciência,
no entanto, em ambos os paradigmas, há uma centralidade na noção de representa‐
ção. No cognitivismo, é a representação mental que atua como mediadora da rela‐
ção entre o sujeito e o mundo externo a ele; uma perspectiva dualista, cartesiana, que
deixa explícita a dicotomia ontológica substancial entre mente e corpo. E, como
vimos anteriormente com Zampronha (2000), a composição nos moldes do para‐
digma tradicional é construída a partir do reconhecimento de elementos predeter‐
minados pelo estereótipo regente, ou seja, um processo criativo baseado em repre‐
sentações simbólicas.
Os sistemas composicionais que integram o paradigma tradicional musical são
sistemas consolidados e, por esta razão, a maioria das investigações que relacionam
a composição musical e a ciência cognitiva trabalham sobre esse paradigma que, jus‐
tamente por ser consolidado, possui regras codificadas e bem definidas (Oliveira,
2003). Portanto, os resultados que se obtêm dessas obras podem ser comparados a
paradigmas formais que também são consolidados, como é o caso da vertente cog‐
nitivista. Uma obra musical interativa, próxima às outras linguagens artísticas que,
por sua vez, consideram a interatividade como uma relação em que o espectador
passa a ser um interator, não operaria nessa visão representacionalista, em que o ma‐
terial sonoro pode ser facilmente transformado e tido como representações simbóli‐
cas, além da possibilidade de possuírem condições sintáticas que são difíceis de ser
formalizadas, isso ainda se houver alguma preocupação em formalizá-las. De acordo
com Oliveira (2003), “em sistemas não consolidados, não existem representações
simbólicas, pois não possuem padronização bem definidas, nem sintáticas nem se‐
mânticas” (Oliveira, 2003, p.54).
As vertentes posteriores ao cognitivismo começaram aos poucos a considerar
aspectos biológicos, fisiológicos e psicológicos para o estudo da cognição, do mesmo
modo que vem surgindo na produção musical contemporânea obras musicais inte‐
rativas que carregam os mesmos interesses que essas vertentes, como, por exemplo,
a instalação sonora ADA de Jonatas Manzolli. Ainda são poucas as obras interativas
sob essa perspectiva, o que nos indica que estamos tomando fôlego para a nossa jor‐
nada em busca de um processo criativo musical que não se resuma a regras sintáticas
aplicáveis a representações simbólicas.
Parafraseando Oliveira (2003), no paradigma dinâmico, ou enacionista (Varela
et al., 2003), “o cérebro deixou o vaso e foi pro corpo”, de modo que o corpo em sua
totalidade e o meio em que ele se insere passaram a ser considerados para a explica‐
ção do conhecimento. Não há mais a noção central de representações simbólicas.
No paradigma dinâmico, ser e mundo estabelecem uma relação direta, sem media‐
Processos Criativos Colaborativos 129

ções de terceiros, com o entendimento de que a informação não se encontra isola‐


damente nem no indivíduo e nem no ambiente, mas sim na interação recíproca en‐
tre eles. Não há algo que “ligue” ser e mundo, pois não são entidades separadas que
necessitam de um elo. Varela (2003) nos apresenta ao conceito de acoplamento es‐
trutural, em que indivíduo e ambiente são mutuamente guiados, em uma relação de
causalidade circular. Por outro lado, na abordagem ecológica de Gibson (1966,
1979), nós somos seres sentientes, seres que fazem uma busca ativa no meio pela
informação baseada em propriedades do próprio estímulo, onde atuamos com nos‐
sos órgãos do sentido em sua totalidade, fazendo com que nossa ação seja guiada pela
própria percepção, e a percepção guiada pela ação. Como bem colocado por Olivei‐
ra (2003), o próprio estímulo já é rico o suficiente de dados, não precisando de um
armazenamento e de processamentos de elaborações internas para ser validado ou
não de acordo com premissas tidas como pertinentes.
A interatividade demanda justamente uma relação recíproca entre obra e inte‐
rator, como a de ser e mundo, uma relação que não precise passar por validações para
seguir estruturações e limites predeterminados antes mesmo de sua própria existên‐
cia enquanto obra. Para uma obra emergir do próprio processo de percepção-ação,
é necessário que o interator se sinta realmente livre para atuar como um ser sentiente
que faz uma busca ativa pela informação, guiado por sua própria percepção e atua‐
ção na obra. Concebendo uma obra interativa musical sob tal perspectiva, promo‐
ver-se-á, inclusive, a transformação dos conceitos tradicionais de intérprete, autor e
público, principalmente por considerar que a obra se efetiva no próprio processo de
relação entre seus agentes. A diluição das fronteiras conceituais emerge da própria
troca epistemológica acerca do processo criativo no contexto de uma obra interativa
que se articula dentro do processo de percepção-ação.

Conclusão
Independentemente da abordagem, a correlação entre ciências cognitivas e música
nos aponta para interessantes caminhos e questões relevantes que contribuem para o
estudo de ambas as áreas. No que se refere à arte interativa, as mudanças na forma
de descrever o conhecimento, discutidas nas ciências cognitivas, são uma interessan‐
te ferramenta para compreendermos as transformações ocorridas nesse campo.
Para pensarmos a interatividade na música como uma relação de reciprocidade
entre obra e interator, tal como ela é considerada nas outras linguagens artísticas,
observamos que a mudança de paradigma teórico se mostra necessária para com‐
preendermos em quais bases epistemológicas as obras interativas se alinham de ma‐
neira mais eficiente. A noção de que obra é um processo independente da percepção
não se mostra como o melhor posicionamento para os estudos interativos na arte por
não nos oferecer suporte pra criarmos uma real abertura para a participação do pú‐
blico/interator na obra. Em direção às obras musicais interativas no contexto em que
buscamos, nos afastamos da concepção de que uma obra é o resultado de uma sub‐
jetividade que provém de processamentos internos de estímulos detectados que são
simplesmente dados pelo meio, mas ao contrário, se torna mais interessante pensar‐
mos nelas como obras que nascem dos próprios processos de percepção-ação.
A filosofia fenomenológica que norteia os conceitos centrais do paradigma di‐
nâmico se mostra conveniente para concebermos a interatividade segundo nossos
objetivos enquanto pesquisadores e artistas. Desvencilhando-se das premissas dualis‐
tas cartesianas, o paradigma dinâmico considera um corpo sentiente e atuante no
mundo de maneira a ser guiado pela sua própria percepção e ação. Tal postura, que
130 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

assume que a ação é parte constitutiva da percepção, é justamente o ponto central


para compreendermos a interatividade. Ao abordar as premissas dinâmicas, enacio‐
nistas e ecológicas dessa vertente da ciência cognitiva, podemos conceber uma rela‐
ção de acoplamento entre obra e interator, que vai se desenvolvendo de forma a ser
a própria existência dessa obra. A abordagem dinâmica também permite que se re‐
coloquem na área da Música os conceitos tradicionais de autor, performer e espec‐
tador, assim como fizeram as demais linguagens artísticas, tornando possível a cria‐
ção de obras que se desdobram na relação entre seus agentes.

Notas
1 Ao contrário do observador espectador, que é aquele que somente observa e contempla a
obra, o interator é o agente que participa da ação e realização da obra, está imerso e
interage com o ambiente dela com interferência direta. (Affini & Cardia, 2019).
2 Interação: 1. Ato de reciprocidade entre dois ou mais corpos; 2. Influência de um
organismo em outro; 3. Qualquer atividade compartilhada. In: Moderno Dicionário de
Língua Portuguesa, 2005.
3 Primo (2008) denomina que fluxo é uma sequência de acontecimentos sucessivos.

Referências
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imersiva e realidade vitual. In: Suning, A.; et al. (orgs). Narrativas Imagéticas. Aveiro: Ria
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Zampronha, E. (2000). Notação, representação e composição: um novo paradigma da escritura
musical. São Paulo: Annablume.
130
15
Processos Criativos Colaborativos 131

A ABORDAGEM ECOLÓGICA NA DINÂMICA


DOS PROCESSOS COLABORATIVOS DE
PRODUÇÃO MUSICAL
Gilberto Assis Rosa¹, Jônatas Manzolli²
¹²Instituto de Artes - Universidade Estadual de Campinas, Brasil
¹gilassisrosa@gmail.com, ²jotamanzo@gmail.com

Resumo
A teoria ecológica trata a percepção como um fluxo contínuo de ações em uma relação de complementa‐
ridade entre o animal e o ambiente, um tipo de busca por informações perceptivas invariantes (affordances)
que especificam objetos e eventos no ambiente e sugerem ações por parte do percebedor (Clarke, 2005;
Gibson, 1966, 1986). Entretanto, como estender essa relação para ambientes e objetos criados pelo homem,
tais como os ambientes de gravação e seus artefatos tecnológicos? Para responder essa questão, lança-se mão
principalmente dos conceitos de nicho ecológico e affordances do ambiente propostos por J. J. Gibson
(1966, 1986). Somam-se a esses, os conceitos de solicitações e skilled intentionality propostos por Rietveld,
Denys, van Westen et al. (2018, 2014). Com amparo nesses conceitos, propõe-se uma abordagem da dinâ‐
mica em processos colaborativos de produção musical em estúdio. O objetivo é investigar o fluxo informa‐
cional no ambiente de gravação, visando a compreensão das inter-relações e interações entre agentes, am‐
biente e tecnologias de gravação. Nesse sentido, o conceito de nicho ecológico oferece uma chave para a
abordagem das relações estabelecidas em processos colaborativos de produção musical. Enquanto nicho, o
ambiente de gravação pode ser associado à práticas específicas e habilidades desenvolvidas pelos agentes,
contextos socioculturais etc., além disso, os conceitos de solicitações e skilled intentionality favorecem o en‐
tendimento do engajamento seletivo com uma ou múltiplas affordances simultaneamente (Rietveld et al.,
2014, 2018).
Palavras-chave: Produção musical, percepção ecológica, nicho ecológico, affordances, skilled intentionality

Introdução
Convivemos com a música gravada há mais de um século e recentemente principal‐
mente para aqueles que moram em áreas urbanas, tornou-se quase impossível evitar
a sua presença. Jonathan Sterne (2003) aponta que nos Estados Unidos, em 1982,
cerca de um terço dos cidadãos escutavam música programada (Muzak) em todos os
dias do ano e, é certo, que esse número apenas cresceu desde então (p. 337). Apesar
desse fato, para muitos, o labirinto da produção musical em estúdio, isto é, a dinâmi‐
ca que envolve a criação de música gravada permanece incógnita ou é revestida de
um certo mistério, muitas vezes, como consequência da visão romantizada que atri‐
bui a um único artista todo o processo criativo (McIntyre, 2008).
O objetivo deste artigo é trazer para o debate acadêmico as particularidades da
dinâmica colaborativa dentro do estúdio de gravação, ou seja, a forma como se esta‐
belecem as relações interpessoais, os modos de organização e criação dentro de um
contínuo de possibilidades culminando em um resultado estético definitivo. Para
tanto, propõe-se uma abordagem baseada principalmente na teoria ecológica de J.
J. Gibson (1966, 1986), mais especificamente nos conceitos de nicho ecológico e
affordances.
Com uma preocupação semelhante, mas partindo de uma abordagem etno‐
gráfica, Robert Davis (2009) chama a atenção para a necessidade em se compreender
“os motivos e dinâmica que determinam que certas escolhas e configurações sejam
realizadas, a fim de desvendar a confusão e a mitologia por trás do processo de pro‐
dução” (Davis, 2009, p. 2). Partindo das mesmas premissas, porém percorrendo ou‐
tros caminhos, este artigo propõe um paralelo entre a ideia de nicho ecológico e o

131
132 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

estúdio de gravação. A partir dessa comparação, explora as affordances ambientais e


sociais como suportes para a abordagem da dinâmica colaborativa estabelecida no
processo de produção musical. Os dois conceitos trabalhados neste artigo são abor‐
dados da seguinte forma: a) por affordances ambientais nos referimos às possibilidades
de ação nascidas a partir das relações dos agentes com os ambientes físicos e virtuais
dentro do estúdio e b) por affordances sociais nos referimos às ações e interações pos‐
sibilitadas pelas relações interpessoais ou, como propõe Gibson (1986) o ato de per‐
ceber corretamente ou erroneamente o que a outra pessoa propicia (affords) (p. 135).
Como resultado da visão teórica aqui proposta, entendemos que no estúdio de
gravação, em trabalhos colaborativos, os estímulos longe de emergirem de uma úni‐
ca mente criadora, surgem de um conjunto de interações complexas e extrapolam as
relações interpessoais abrangendo também os espaços físicos, virtuais e os equipa‐
mentos de gravação. Nessa nossa visão de nicho, estímulos podem surgir de todas as
formas e de todos os lugares, seja das respostas acústicas relativas aos materiais estru‐
turais e de seus revestimentos, seja das interações com os softwares de produção mu‐
sical ou das ideias e ações de seus participantes.
A forma como indivíduos conectam-se ao fluxo informacional, ou melhor, com
a rede de affordances advinda da complexidade dessas interações é o que este artigo
visa demonstrar.

Percepção de affordances
J. J. Gibson (1986, p. 124) afirma que ao olharmos um objeto o que percebemos são
as suas affordances e não suas qualidades. Equivale dizer que, do ponto de vista eco‐
lógico, nossa percepção da água é antes a percepção de suas affordances do que, por
exemplo, de sua estrutura molecular, como sugerem as palavras do autor: "O que o
objeto nos oferece (affords) é aquilo que normalmente prestamos atenção. A combi‐
nação especial das qualidades a partir das quais um objeto pode ser analisado normal‐
mente não é percebida" (Gibson, 1986, p. 137). É importante notar que a noção de
affordance é exposta por Gibson (1986) a partir da complementaridade entre o animal
e o ambiente: “As affordances do meio ambiente são o que ele oferece ao animal, o
que ele proporciona ou fornece, para o bem ou para o mal” (p. 137).
Para um aprofundamento da noção de affordance, o princípio de invariância é
fundamental. Guiado pela teoria ecológica, Eric Clarke (2005) relaciona esse princí‐
pio às propriedades que não variam no contínuo de mudanças a que somos constan‐
temente expostos (p. 34). São exemplos de invariância o fato de a água molhar, o sol
aquecer, a bola ter uma forma esférica, o ambiente fechado reverberar etc. e são
exemplos de affordances o ato de beber a água, aquecer-se ao sol, agarrar a bola, den‐
tre outros.
Propondo uma transposição para o campo musical, Clarke (2005, p. 34) cita um
exemplo bastante claro de invariância na identidade do material musical percebido:
o tema/motivo, que permanece intacto mesmo sob transformações de altura ou vari‐
ações globais de tempo. Outro exemplo de propriedade invariante, ainda no campo
da música, apresentado por Andrew Bourbon e Simon Zagorski-Thomas (2017) é o
fato de que no mundo, quanto maior o objeto mais grave será sua ressonância (p. 3).
No campo da acústica, outro exemplo é sugerido por Luis Felipe de Oliveira (2014):
"[...] invariantes especificam um ambiente ou evento através da maneira como o flu‐
xo sonoro é conformado pelas propriedades reflexivas das superfícies de um ambien‐
te, que alteram as propriedades espectrais de um evento sonoro" (pp. 23-24).
Processos Criativos Colaborativos 133

Em linhas gerais, a teoria ecológica considera a percepção e a ação como inter‐


dependentes. Percebemos as propriedades invariantes do ambiente e agimos confor‐
me as possibilidades sugeridas pelas affordances com as quais nos conectamos. Por
exemplo, o que não varia entre os instrumentos musicais é o potencial de gerar sons
quando tocados (invariância), assim, a ação ou atividade sugerida ao serem percebi‐
dos é o ato de tocá-los (affordance). Contudo, embora a affordance seja invariante e,
portanto, independente do percebedor, este poderá ou não atendê-la em função de
suas necessidades. Além disso, Gibson (1986, p. 139) chama a atenção para o enten‐
dimento da affordance como uma via de duas mãos: uma em direção ao ambiente e
outra em direção ao percebedor. É nesse ponto que a affordance do ambiente trans‐
passa a dicotomia subjetivo/objetivo: “ela é igualmente um fato do ambiente e um
fato do comportamento”, pode ser física, psíquica e ainda nenhuma das duas. Não
se trata, portanto, de uma propriedade objetiva, tampouco de uma propriedade sub‐
jetiva mas pode ser ambas (p. 129).
Outro aspecto que deve ser destacado na teoria ecológica da percepção é a não
transmissibilidade da informação. Gibson (1986) sustenta que "o mundo não fala com
o observador", palavras e imagens portam ou transmitem informações "mas a infor‐
mação no mar de energia ao redor de cada um de nós, energia luminosa, mecânica
ou química, não é transmitida. Está simplesmente lá" (p. 244). Nesse sentido, longe
de ser uma interpretação subjetiva, a percepção seria um tipo de conexão com uma
informação estruturada no ambiente. Guiado pelas ideias de Gibson, Eric Clarke
(2005) expõe essa conexão como um tipo de ressonância entre o percebedor e as pro‐
priedades invariantes do ambiente: o sistema sensorial ressoa com a informação sem
a necessidade de um processamento complexo para decodificá-la. Porém, o autor ad‐
verte que esse ressoar com a informação é diferente do ressoar da corda de um instru‐
mento ou de um objeto qualquer: uma corda afinada em 60Hz só ressoará com algum
instrumento emitindo a mesma frequência (ou um de seus harmônicos), enquanto a
percepção é um processo de “autoafinação”, como se o sistema perceptivo realizasse
um autoajuste a fim de otimizar sua ressonância com a do ambiente (pp. 18-19).

Nicho: rede de affordances


Outro ponto fundamental para este estudo diz respeito ao conceito de nicho ecoló‐
gico e a relação de complementaridade do ambiente com o modo de vida do animal.
Gibson (1986) afirma que “o ambiente limita o que o animal pode fazer e o conceito
de nicho em ecologia reflete esse fato” (p. 143). Para explicar, o autor cria uma dis‐
tinção entre nicho e habitat, sendo o primeiro o modo de vida do animal e o segun‐
do o ambiente em que vive. Por fim, sugere que um nicho seja entendido como um
conjunto de affordances (p. 128). Ressaltando a relação de complementaridade, o au‐
tor sustenta ainda que “o ambiente natural oferece muitos modos de vida e diferentes
animais possuem diferentes modos de vida. O nicho pressupõe um tipo de animal e
o animal pressupõe um tipo de nicho” (Gibson, 1986, p. 128).
Partindo das ideias de Gibson, Erik Rietveld e Julian Kiverstein (2014) propõem
que o nicho ecológico seja visto como uma “rede de affordances inter-relacionadas
disponível para uma forma de vida em particular, com base nas habilidades manifes‐
tadas em suas práticas; seus modos estáveis de fazer as coisas” (p. 6). Notem que os
autores se referem à “forma de vida” de um animal e não ao modo de vida, como
propõe Gibson. Rietveld e Kiverstein (2014) amparam-se no livro Feste lebensformen
de Wittgenstein (1993) para associar o conceito de formas de vida aos padrões de
comportamento relativamente estáveis e regulares e aos modos como os animais re‐
134 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

alizam suas tarefas. No caso de humanos, esses padrões se manifestam em comporta‐


mentos relativos aos costumes da comunidade em que estão inseridos (Wittgenstein,
1993, p. 397 apud Rietveld & Kiverstein, 2014, p. 8). Em resumo, uma forma de vida
refere-se a um certo tipo de animal, seu modo de vida e seu nicho ecológico (Riet‐
veld, Denys & van Westen, 2018, p. 5). De imediato, a definição de nicho, por eles
sugerida, apresenta-se apenas como uma outra forma, mais detalhada, de dizer aqui‐
lo que já está implícito nos conceitos de Gibson. Entretanto, Rietveld e Kiverstein
(2014, p. 9) argumentam que humanos partilham algumas habilidades e outras não,
nesse sentido, a noção de forma de vida favorece a apreensão da variedade de práticas
no modo de vida: “O que é comum aos seres humanos não é apenas a biologia que
compartilhamos, mas também a forma como estamos inseridos em práticas sociocul‐
turais: nosso compartilhamento de formas estáveis de viver com os outros, nossas
maneiras relativamente estáveis de seguir em frente” (Rietveld & Kiverstein, 2014 ,
p. 8). Tomando essa ideia como ponto de partida, os autores propõem que as affor‐
dances sejam entendidas como:
possibilidades de ação que o meio ambiente oferece a uma forma de vida
e um nicho ecológico é uma rede de affordances inter-relacionadas dis‐
ponível em uma determinada forma de vida em relação às habilidades
manifestadas em suas práticas; suas formas estáveis de fazer as coisas. (Ri‐
etveld & Kiverstein, 2014, p. 10)

Tal entendimento não parece apresentar contradições em relação à proposição


de Gibson acerca das affordances, ao contrário, parece apenas reforçá-la ao oferecer
um maior detalhamento. Enquanto para Gibson nicho pode ser entendido como o
modo de vida de um animal e também como um conjunto de affordances, para Riet‐
veld e Kiverstein (2014) o termo ganha o sentido de rede de affordances inter-relacio‐
nadas disponível para uma forma de vida em um determinado contexto sociocultural:
Argumentamos que as affordances têm uma existência que depende tanto
do ambiente material quanto das habilidades disponíveis em uma forma
de vida. Alguns humanos podem tocar piano, mas se as pessoas perdes‐
sem para sempre o conhecimento de como tocar, os pianos deixariam de
ter affordances para tocar música. Assim, as affordances têm uma existência
que depende das habilidades e práticas encontradas em uma forma de
vida. (Rietveld & Kiverstein, 2014, p. 24)

Como visto, Rietveld e Kiverstein (2014) atrelam a noção de affordances à diver‐


sidade de habilidades disponíveis em uma forma de vida. No caso de humanos, tais
habilidades seriam adquiridas pela experiência sociocultural (p. 31). Tal ênfase no
quesito habilidade surge como apoio para dar respostas às seguintes questões:
A imensa variedade de affordances disponíveis em um panorama (rede)
de affordances de uma forma de vida levanta a questão de como, em uma
determinada situação, um indivíduo pode estar seletivamente aberto a
esse panorama. Como e por que um indivíduo responde seletivamente
apenas às affordances relevantes entre todas as possibilidades de ação dis‐
poníveis? E como as affordances solicitam um determinado curso de ação
em uma determinada situação? (Rietveld et al., 2014, p. 52)

Um possível caminho para respondê-las seria a noção de não transmissibilidade


da informação proposta por Gibson (1986, p. 244), ou seja, a ideia de que a informa‐
ção está no ambiente e o percebedor conecta-se à sua invariância por meio do pro‐
cesso de autoafinação ou, como propõe Eric Clarke (2005), por meio do processo de
ressonância do sistema sensorial com as propriedades invariantes da informação (p.
18). Seguindo essa ideia, cada percebedor estaria afinando-se com uma determinada
affordance segundo suas habilidades, conhecimento e práticas socioculturais. De ou‐
tro modo, a affordance simplesmente não seria atendida.
Processos Criativos Colaborativos 135

Contudo, para dar respostas a essas questões, Rietveld, Kiverstein, Denys et al.
(2014, 2018) sugerem um outro caminho que se inicia com a diferenciação entre
affordances e solicitações e se completa com a ideia de skilled intentionality. A noção
de solicitação está relacionada à habilidade de um indivíduo de conectar-se a uma
affordance particular em uma situação concreta. Equivale dizer que da multiplicidade
de affordances disponíveis para um indivíduo, muitas dessas potencialidades serão ir‐
relevantes. Rietveld e Kiverstein (2014) veem as solicitações como tendências para
um certo modo de agir. Potencialidades determinadas pelos interesses e habilidades
que guiam o engajamento a apenas uma, dentre inúmeras disponibilidades de ações
em uma determinada situação (p. 29). Este ponto revela a semelhança entre as soli‐
citações propostas por Rietveld e Kiverstein e o ‘ressoar’ com as propriedades inva‐
riantes dos estímulos proposto por Eric Clarke (2005, p. 18).
Ainda no sentido de dar respostas às questões anteriormente elencadas, Rietveld,
Denys et al. (2018) somam à ideia de solicitações, o conceito de skilled intentionality
entendido como a “tendência para uma conexão ideal em um campo de affordances
relevantes. O termo normalmente descreve a mudança na condição de um indiví‐
duo em resposta a várias solicitações simultâneas” (p. 21). Isto é, “no nível do sujeito
situado, skilled Intentionality é caracterizada como uma resposta integrada ao campo
de affordances relevantes como um todo” (p. 18). Ou seja, em um nicho são as dis‐
ponibilidades que se integram à habilidade do sujeito de se afinar com as suas pro‐
priedades informacionais, invariâncias e graus de relevância.
A ideia contemplando múltiplas affordances e a conexão seletiva em função do
grau de relevância – em razão do caráter convidativo de um ambiente específico –
pode ser transposta para o domínio musical a partir de um exemplo proposto por
Simon Waters (2007) envolvendo o Boehm clarinet: Embora tenha sido projetado
segundo o temperamento igual, quando tocado por um músico do Sul da Índia, pos‐
sibilita (affords) uma música com diferenças idiomáticas e princípios completamente
diferentes, a exemplo das diferenças nas subdivisões do tom entre algumas escalas
utilizadas na Índia e no resto do mundo (p. 2). As diferenças idiomáticas pontuadas
pelo autor não decorrem das propriedades acústicas inerentes à construção do Boehm
clarinet, mas sobretudo da conexão entre um músico pertencente a um determinado
contexto social e as affordances que se apresentam a ele como relevantes (Skilled In‐
tentionality). Portanto, as affordances oferecidas pelo Boehm clarinet não variam em
função das necessidades ou habilidades de um músico em particular e sim em razão
do seu contexto sociocultural.
Do ponto de vista ecológico, a partir da noção de Skilled Intentionality, a multi‐
plicidade de affordances disponibilizada pelo Boehm clarinet diz respeito àquele nicho
específico, o Sul da Índia. Músicos de outras partes do mundo irão se conectar às
affordances em relação aos seus próprios contextos. É provável que essa seja a origem
das diferenças idiomáticas assinaladas por Waters (2007), muito embora um ser hu‐
mano em particular tenha a possibilidade de estudar outras culturas, aprender outros
idiomas, acessar práticas culturais distintas, aumentando, dessa forma, o âmbito de
relevância das redes ou panoramas de affordances a que se expõe. Esse fato parece
justificar a razão pela qual um músico, por exemplo, brasileiro possa se aproximar da
forma de tocar de um músico indiano e vice-versa.
136 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

O estudo de gravação como nicho ecológico


Abordar o estúdio de gravação como um nicho ecológico é considerá-lo um
ambiente de criação envolvendo aspectos acústicos, tecnológicos e sociais. Se como
sugere Richard Burgess (2016), “a produção musical engloba composição, arranjo,
orquestração, interpretação, improvisações, qualidades timbrísticas e performances
em um todo sonoro imutável” (p. 1), o estúdio pode então ser entendido como um
ambiente no qual se estabelece um conjunto de práticas e técnicas musicais e
experiências sociais. As interações entre pessoas ou animais dão origem, segundo
Gibson (1986), às affordances mais elaboradas do ambiente (p. 135): "O que outras
pessoas possibilitam, abrange todo o domínio da significância social para os seres
humanos" (Gibson, 1986, p. 128). No estúdio, pessoas com habilidades e conheci-
mentos muito específicos encontram-se e interagem com um propósito unificador:
participar ativamente de um processo que envolve o desenvolvimento de concep-
ções criativas e um conjunto de práticas voltadas à produção musical e seu registro
definitivo. Assim, criar e produzir fundem-se em (co)criar.
Ao lado do conjunto de relações sociais envolvendo engenheiros, músicos,
produtores, estagiários e outros, deve-se também considerar a configuração arquite-
tônica do estúdio um fator determinante, pelo menos de parte dessas relações. Para
Allan Williams (2007) a ampliação das dimensões da sala de controle em estúdios e
o acréscimo de um sofá determinam um espaço possível para a presença de visitantes
observadores, ampliando consequentemente as possibilidades de interação social:
Às vezes, esses visitantes do estúdio tornam-se participantes mais ativos,
atuando como defensores do músico. Muitos produtores e engenheiros
registram seu desconforto tentando limitar a quantidade de tempo ou as
circunstâncias em que a presença de um estranho é permitida. Os
produtores podem valorizar o grupo de amigos e apoiadores ao tentar
estimular a performance de um artista, até mesmo solicitando opiniões
ou permitindo que os visitantes expressem encorajamento ao artista que
encontra-se do outro lado do vidro. (Williams, 2007, p. 4)

Tais considerações vão ao encontro da proposição de Eliot Bates (2012) que


sustenta a ideia de que os contornos arquitetônicos do estúdio moldam as interações
sociais e performances que nele ocorrem:
Argumento que os estúdios devem ser entendidos simultaneamente
como ambientes acústicos, como locais de encontro, como tecnologias
de contêiner, como um sistema de restrições de visão, som e mobilidade
e como tipologias que facilitam interações particulares entre humanos e
objetos não humanos, enquanto estruturam e mantêm relações de poder.
(Bates, 2012, p. 1)

Levando em conta os aspectos físicos e sociais, propomos que o estúdio de


gravação seja entendido como um nicho ecológico cujas redes de affordances são
oferecidas a uma forma de vida que dispõe de um conjunto de habilidades
específicas. Nesse estúdio/nicho, cada agente irá se conectar a uma affordance ou
simultaneamente a uma rede interconectada de affordances segundo suas habilidades,
conhecimentos e motivações. Nesse ambiente de criação, os estímulos advêm das
relações interpessoais, dos artefatos tecnológicos e do próprio espaço em razão de
seus contornos arquitetônicos, mobiliário e respostas acústicas. Trata-se, portanto,
como sugere Gibson (1986) de um ambiente que proporciona affordances recíprocas
em um nível bastante alto de complexidade comportamental (p. 137). Uma arqui-
tetura viva de possibilidades interacionais.
Processos Criativos Colaborativos 137

Quadro 1
O estúdio de gravação enquanto nicho: projeção e interação dos conceitos.

Apreensão dos conceitos em uma produção hipotética


Para que este assunto seja circunscrito à dinâmica do estúdio de gravação, apresen‐
tamos a seguir as linhas gerais das etapas de pré-produção, gravação e mixagem de
um processo hipotético, porém comum, de produção de gravação de uma canção
(Rosa & Manzolli, 2019; Moylan, 2002):
Etapa 1: Pré-produção
O compositor cria a melodia, harmonia e letra, grava o seu protótipo em uma DAW
ou em um celular e o envia ao arranjador que, por sua vez, adiciona suas contribui‐
ções: contrapontos melódicos, variações rítmicas, combinações instrumentais, rear‐
monizações etc. Em seguida, músicos ensaiam o arranjo e partem para o estúdio
onde as gravações serão realizadas.
Etapa 2: Gravação
No estúdio, o produtor musical sugere uma ordem para que os instrumentos sejam
gravados. Normalmente, o técnico de som e o produtor decidem os tipos de micro‐
fones que serão utilizados e seus respectivos posicionamentos visando uma captação
adequada à sonoridade que se pretende atingir. Nesse momento, o estúdio pode ou
não receber a visita de amigos ou familiares que, comumente, são posicionados em
um sofá na sala de controle. Tais convidados muitas vezes reagem como um tipo de
plateia em função da performance que ocorre na sala de gravação (Williams, 2007).
Após vários takes, produtor e compositor escolhem, segundo critérios técnicos e
subjetivos, aquele que atende melhor suas expectativas.
Etapa 3: Mixagem
Gilberto Assis Rosa e Jônatas Manzolli (2019) observam que no estágio de pós-pro‐
dução, uma vez editado, o take escolhido é enviado para a mixagem que será reali‐
zada por um participante ou um novo integrante que, eventualmente, reavaliará as
edições. “O responsável pela mixagem frequentemente transforma o material ou
adiciona novos materiais aos já gravados” (p. 55). Esta etapa do processo é responsá‐
vel, entre outras coisas, pela manipulação do timbre e do equilíbrio dinâmico do
138 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

material gravado. Uma vez finalizada, a mixagem é enviada para a última etapa da
pós-produção: a masterização.
É importante ressaltar que apesar da aparente linearidade nesta descrição resu‐
mida do processo, suas etapas são frequentemente retomadas e não raro modificadas
(Rosa & Manzolli, 2019). Trata-se de um movimento criativo semelhante àquele do
escritor sobre o papel ao apagar certas palavras e substituí-las por outras.

Aplicação dos conceitos nas etapas descritas


Vê-se que o processo tem seu início na etapa de pré-produção com o esboço da
canção e a composição do arranjo, ainda fora do estúdio de gravação. Apenas após
a audição desse esboço, o arranjador poderá iniciar o seu trabalho. Para quem tem
habilidades musicais, a canção em sua fase embrionária é uma fonte de estímulos, ou
para utilizar o termo sugerido por Rietveld & Kiverstein (2014) uma rede inter-re‐
lacionada de affordances. Aspectos do texto podem solicitar o uso de certos instru‐
mentos em detrimento de outros, o andamento lento pode solicitar o uso de notas
longas que, por sua vez, pode solicitar a escolha de instrumentos que favoreçam a
sustentação das notas, a invariância das alturas da melodia pode solicitar a criação de
contrapontos ou rearmonizações etc.
Todas as escolhas poderão ser feitas em comum acordo com o compositor, caso
contrário após a conclusão do arranjo, modificações, provavelmente serão por ele
solicitadas. Ainda na fase de pré-produção, os músicos deverão ensaiar antes das gra‐
vações e é possível que acrescentem algo ao arranjo, em função do engajamento
com as affordances dos ensaios. Por exemplo, o baterista poderá sugerir ‘viradas’ ou
ataques nos pratos em resposta às invariâncias formais ou em resposta às affordances
do texto etc. O mesmo provavelmente ocorrerá com os outros músicos que atuarão
criativamente em resposta à conexão seletiva com as redes de affordances disponíveis
no ensaio.
Na fase de produção, depois de gravados vários takes, um deles deverá ser esco‐
lhido. Nesse momento, todos os envolvidos encontram-se na sala de controle para
a audição do material. No ato da audição, os envolvidos são expostos a uma multi‐
plicidade de affordances. Tais affordances estão disponíveis para uma forma de vida
pertencente a um nicho muito específico, o estúdio de gravação. São indivíduos cu‐
jas habilidades e práticas no campo musical determinam seu modo de vida. Indiví‐
duos “skilled responsiveness” que irão se conectar seletivamente com as múltiplas so‐
licitações simultâneas de affordances (Rietveld et al. 2018, p. 22).
Na etapa de pós-produção, durante o processo de mixagem, decisões são toma‐
das e diversos procedimentos são realizados em função de um conceito preestabele‐
cido pelo compositor e/ou pelo produtor. Além disso, timbres são manipulados, a
dinâmica poderá ser processada e efeitos poderão ser adicionados. Outros envolvi‐
dos, como músicos ou pessoas próximas, poderão ouvir a mixagem e as affordances
de suas reações, sejam elas na forma de opiniões, expressões faciais ou corporais po‐
derão solicitar alterações no processo. Depois de aceita como finalizada, a mixagem
é enviada para a última etapa da pós-produção: a masterização.
Neste ponto, vale a pena ressaltar as affordances dos equipamentos de gravação.
Partimos do pressuposto que os designs dos equipamentos, sejam eles analógicos ou
digitais, são desenvolvidos com finalidades específicas e, portanto, não devem ser
encarados como meios passivos. Se tomarmos como exemplo a maioria dos softwares
de produção, veremos que suas ferramentas favorecem algumas ações em detrimen‐
to de outras, embora no ato do processo de produção tal favorecimento possa ser
Processos Criativos Colaborativos 139

subvertido em favor da criação, e isso frequentemente ocorre. Isto é, as affordances


apontam para dois lados (Gibson, 1986, p. 129): embora o usuário possa ser levado
a tomar decisões em função do que o software determina, esse mesmo usuário pode
transformar o ambiente – nesse caso virtual – para que as novas affordances decorren‐
tes dessa transformação atendam seus propósitos criativos. Tal proposição vai ao en‐
contro da pergunta formulada por Gibson (1986) e para a qual ele mesmo oferece a
resposta: “Por que o homem mudou as formas e substâncias de seu ambiente? Para
mudar aquilo que o ambiente lhe disponibiliza, ressaltando tudo que o beneficia,
tornando menos angustiante aquilo que o fere” (p. 130).

Conclusão
Com o objetivo de estudar e descrever a dinâmica dos processos colaborativos em
estúdios de gravação, este artigo lançou mão da abordagem ecológica como suporte
para a compreensão das relações interpessoais e da interação dos agentes com o am‐
biente de produção e tecnologias de gravação. Traçou-se uma analogia do estúdio
de gravação com a ideia de nicho ecológico proposta por Gibson (1986) e revisitada
por Rietveld et al. (2014, 2018). Verificou-se que no estúdio de gravação em traba‐
lhos colaborativos, os estímulos não emergem de apenas uma mente criadora e sim
de um conjunto de interações bastante complexas. Pessoas interagem entre si, mas
também interagem com o espaço arquitetônico e seus aparatos tecnológicos, que
por sua vez também são fontes de estímulos. Nesse ambiente, a configuração arqui‐
tetônica, suas qualidades acústicas inerentes e seus equipamentos de gravação confi‐
guram um nicho cujas redes de affordances desencadeiam ações de diversas naturezas
(Williams, 2007; Bates, 2012). Por exemplo, as respostas acústicas que podem solici‐
tar desde o posicionamento dos músicos na sala, a quantidade de microfones a ser
utilizada, o local onde serão posicionados, até a maneira de tocar ou cantar de um
músico. Este poderá, por exemplo, aumentar ou diminuir a intensidade de sua per‐
formance ou prolongar ou diminuir a duração das notas executadas (Waters, 2007).
Além disso, os músicos podem ser afetados positivamente ou negativamente quando
realizam suas performances em ambientes sem reverberação alguma ou com rever‐
beração excessiva.
Portanto, o ambiente de gravação associado à práticas e habilidades específicas
ligadas à produção de música gravada, tais como, arranjo, composição, performance
vocal e instrumental, engenharia de áudio etc. pode ser visto como nicho ecológico,
um ambiente que disponibiliza suas redes de affordances inter-relacionadas (Rietveld
& Kiverstein, 2014, p. 6) aos agentes da produção musical cujo engajamento a uma
solicitação particular ou uma rede ou panorama simultâneo ocorre em razão de seus
conhecimentos, habilidades e motivações manifestadas na prática, em seu modo de
vida (Rietveld et al., 2014, 2018). Desse tipo de conexão derivam ideias e ações que
retroalimentam o processo e indicam novos possíveis caminhos técnicos/estéticos
dos quais emergem novas affordances. É justamente essa dinâmica que caracteriza os
aspectos criativos e colaborativos do processo. Uma dinâmica que não se limita às
relações mantidas entre os agentes, mas, para além delas, desenvolve-se e retroali‐
menta-se por meio do engajamento dos agentes às affordances ambientais e sociais
do espaço de gravação.
Ao postularmos essa apreensão da abordagem ecológica como forma de carac‐
terizar a dinâmica dos processos colaborativos de produção musical, reiteramos que
a criação nesse nicho não é um fato e nem se descreve na materialidade do objeto
final: a faixa musical produzida. A criação é ao mesmo tempo produção técnica e
140 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

interação humana, assim como na visão ecológica que adotamos o "ambiente trans‐
passa a dicotomia subjetivo/objetivo". Dessa forma, este artigo coloca que a dispo‐
nibilidade de recursos técnicos se alia à potencialidade de recursos humanos. Um
processo contínuo e sinergético, no qual conceitos, ideias, recursos materiais e dis‐
ponibilidades ambientais se fundem na emergência de uma arquitetura de diálogos
e saberes.

Referências
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140
16
Processos Criativos Colaborativos 141

IN SEARCH OF EXPRESSIVE TIME IN MIXED


MEDIA WORKS: COMPOSER-PERFORMER
COLLABORATION, SYNCHRONIZATION
CUES AND CUSTOMIZED CLICK-TRACKS
Luciane Cardassi
Programa de Pós-Graduação em Música - Universidade Federal da Bahia, Brasil
luciane.cardassi@gmail.com

Abstract
Composers and performers are challenged by time and its complexity, as musical time can be incompatible
with chronometric time (Langer, 2006). However, the flexibility—or lack of it—in mixed media works, is
due primarily to the way composers structure their work (Menezes, 2002). When a click-track does seem
unavoidable, Ferreira (2014) argues that composers need to make compromises between precision and ex‐
pression. In other words, composers do not seem to consider a shared decision-making process, with the
performer, on issues directly related to the performability of the work. The performers’ temporality is
rarely taken into consideration. Building on the current literature on distributed creativity (Clarke & Doff‐
man, 2017), music collaboration (Taylor, 2017; among others), and performance cues (Chaffin & Lisboa,
2008), as well as my own practice as creative collaborator and performer, I propose that decisions regarding
synchronization cues, when shared during the collaborative process, have the potential to incorporate the
performer’s temporality and expressiveness into the work. The following questions have been guiding my
collaborative work, as well as the development of this paper: 1) how to maximize the use of synchroniza‐
tion cues that value the performer’s expressiveness and temporality; and 2) when a click-track is necessary,
how to customize it in order to maximize the performer’s expressive freedom? The primary objective of
this paper is to discuss ways to choose synchronization cues and strategies that consider both precision and
musical expressiveness, by providing approaches to address practical problems of synchronization in mixed
media works.
Keywords: Mixed media works, synchronization cues, collaborative processes

Introduction
Since the beginning of mixed media music, in the second half of the 20th century,
strategies for synchronization between acoustic instruments and electroacoustic
sounds have been chosen entirely by composers. I believe that this has contributed
to mixed media works, especially in regard to fixed electronics—which are the focus
of this text—often being considered by performers as challenging, inflexible, me‐
chanical. The performers’ temporality was rarely taken into consideration.
As pointed out by Langer (2006), composers and performers are challenged by
time and its complexity, as musical time can be incompatible with chronometric
time. However, despite being challenged by this paradox, composers believe, as
pointed out by Menezes (2002), that the flexibility—or lack of it—in mixed media
works is due primarily to the way they structure their work. Going beyond, when
a click-track does seem unavoidable, Ferreira (2014) argues that composers need to
make compromises between precision and expression. In other words, they do not
seem to consider a shared decision-making process, with the performer, on issues
directly related to the performability of the work.
Building on the current literature on distributed creativity, music collaboration,
and performance cues, as well as my own practice as creative collaborator and per‐
former, I propose that decisions regarding synchronization cues, when shared dur‐
ing the collaborative process, have the potential to incorporate the performer’s tem‐
porality and expressiveness into the work. This way, there is no need to compromise
expressiveness for precision, nor vice-versa. The inflexibility of the pre-recorded
141
142 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

soundtrack can then be embraced in a more holistic creative manner that focuses on
the whole of the musical performance, instead of its individual parts.
I argue that, when composer and performer share a decision-making process
regarding synchronization, decisions can be rooted in the musical perception of the
performer, incorporating their temporality, leading to performances that are more
expressive and less constrained. The primary objective of this paper is to discuss
ways to choose synchronization cues and strategies that consider both precision and
musical expressiveness, providing elements to help solve practical problems of syn‐
chronization in mixed media works. I will provide examples from two collabora‐
tions: 1) Ramos, developed in 2016 with composer Paulo Rios Filho, and 2) Berim‐
bau, developed in 2018 and 2019 with composer Alexandre Espinheira.
Throughout the paper I will often return to the following questions, which
have been guiding my collaborative work for years:
1) how to maximize the use of synchronization cues that value the performer’s
expressiveness and temporality?
2) when a click-track is necessary, how to customize it in order to maximize
the performer’s expressive freedom?

Conceptual framework
This paper is deeply grounded in the understanding that creativity is distributed
among all participants in the creative process: composers, performers, listeners. Un‐
til recently, especially in regard to the Western classical music tradition, composers
were seen as the sole “creators” of musical works, with less creative roles attributed
to performers, leaving hardly any creative role to listeners. As proposed by Clark
and Doffman (2017), building on studies of musical consciousness and cognition,
distributed creativity embraces creative processes in their complexity and their dis‐
tributed ways, as being developed in more horizontal, less hierarchical relationships
among the participants.
A second concept which is instrumental for the development of these ideas is
the understanding of creative process as an interplay of mental and physical pro‐
cesses, while considering the embodiment of musical meaning (Nagy, 2017). When
collaborating, composer and performer can embark on a shared journey, in which
mental and physical processes are braided together in a distributed, horizontal,
process.
However, this is not always the case, with many instances of so-called collabo‐
rations happening in very “undistributed” ways. Thus, it is imperative to define here
what we mean and understand by collaboration, as the term can evoke a wide range
of understandings. For the purpose of this paper, I will borrow Taylor’s definition:
“the term collaboration should be limited to cases where the imaginative tasks are
shared rather than divided between participants.” (Taylor, 2017, p. 6) The author
states that it is also essential to note whether there are hierarchies between the par‐
ticipants, which can influence their decision-making process. This approach seems
to be in line with what Hayden and Windsor (2007) had previously noted in their
definition of a collaborative composer-performer relationship: “the development of
the music is achieved by a group through a collective decision-making process”
(Hayden & Windsor, 2007, p. 33). Not all decisions are taken in a shared manner,
but they are part of a more dynamic type of collaboration, one in which ideas
brought by one individual will be reflected upon, reacted to, developed, challenged
by the other artists. As we wrote elsewhere, this path toward creative decisions is
Processos Criativos Colaborativos 143

formed, slowly, “throughout which the artistic vision is shared and enriched among
the collaborators” (Cardassi & Bertissolo, 2020, p. 8).
Embracing the concepts of distributed creativity and the interplay of mental
and physical processes that take place during collaborative interactions between
composer and performer, I present the next important concept for this paper: per‐
formance cues.
Addressing memorization of musical works, its challenges and possible strate‐
gies, Chaffin and Lisboa developed the concept of performance cues, which are
“mental landmarks that an experienced musician attends to during performance,
thoroughly rehearsed during practice so that they come to mind automatically and
effortlessly as the piece unfolds” (Chaffin & Lisboa, 2008, p. 118). These cues pro‐
vide a safety net during a performance, as the performer is continually monitoring
his or her progress in real time. This aspect is of great importance for the present
research.

Synchronization cues
Building on Chaffin and Lisboa’s performance cues, I propose a parallel concept—
synchronization cues—which are cues in the electronic track that are chosen to help
the performers get comfortable with the electroacoustic track, by allowing them to
monitor their synchronization in real time. I argue that if these synchronization cues
are chosen during the collaborative creative process, the performer’s temporalities
are incorporated within the creative process, so their resulting performances can be
more engaging, comfortable and expressive, without compromising precision.
Let us discuss briefly why these cues are different from others, such as synchro‐
nization cues in chamber music performance. When one makes chamber music,
there is an underlying agreement of tempo, of who leads, and when, in order for
the ensemble to synchronize throughout the performance. These cues are often
gesturing that indicates breathing, tempo, and entrances, reinforcing the feeling of
“togetherness”. Hence, musicians are synchronizing with each other via non-verbal
cues. Conversely, with music that mixes acoustic instruments with electronic
sounds, especially in regard to fixed media, those non-verbal cues do not apply.
Synchronization with fixed media requires new skills from the musician. These
skills can involve following auditory or visual cues, memorization of the electronic
counterpart, using a stopwatch, and the most dreaded of all, using a click-track, or
a metronome in one’s ears. In any case, most musicians are not trained for those
skills in their formative years.
Playing with fixed media is at times seen as something rigid and old-fashioned.
I would argue that when the “tape” part has been well learned by the performer, the
actual performance differs much less from a normal chamber music performance
than one may think. It would be like playing with an incredibly consistent per‐
former, who plays exactly the same way each time. We learn to navigate through
this stubbornness and make creative and inspired music, nevertheless. I agree with
pianist Shiau-uen Ding that a well performed piece for acoustic instruments and
soundtrack can be an exciting journey for both performers and audience:
Many people overlook the rich variety of musicality inherent in interac‐
tive works for live acoustic instruments and tape. With acoustic instru‐
ments as a ‘live element’, music for instrumental performance and tape
may offer the same degree of interaction between players and audience,
contributing to the excitement of its performance. (Ding, 2006, p. 256)
144 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Strategies for synchronization are not a novelty. Composers have been reflect‐
ing upon the many different ways to promote synchronization for their fixed media
pieces. What I reinforce here is that those choices can—and I argue, should— be
made in collaboration with a performer, to enable the musical performance to be‐
come as expressive, and least mechanical, as possible.
Synchronization cues will differ with each piece but will always be chosen from
the sounds from the electroacoustic part (or even from a video, in this case, visual
cues).
Sometimes, perfect synchronization requires only auditory synchronization
cues, such as easily identifiable sounds, or a clear beat at a passage, with the help of
a stopwatch, to provide only a couple of, perhaps, over-simplistic examples. During
sections where a strict synchronization is required for their musical goal to be
achieved, and the electronics do not offer clear anchors for the performer to interact
with, or even when the instrumental part is very complex, or both, a click-track
may be necessary.

Customizing click-tracks
A click-track means a metronome sound sent to one or more musicians in order to
help them synchronize with each other or, more often, with other media. When
one uses a click-track it means that they receive, through headphones or earbuds, a
controlling electronic unit, a beat repeated at regular intervals throughout the mu‐
sic. It may have accents to highlight the downbeat of each measure, or specific cues
to guide the performers, but overall, playing with a click-track means playing with
the metronome. This is a resource often used in recording studios when the differ‐
ent musicians are part of a recording but cannot (or should not) record the piece at
the same time.
In this paper I address a specific type of click-track: a customized click-track
that allows one or more musicians to synchronize their performance with an elec‐
tronic counterpart. Despite the widespread use of click-tracks as a synchronization
tool in fixed media works, little has been written about how to customize them in
order to provide the musician with the cues that are needed, while minimizing the
straight-jacket feeling. This article addresses key elements of creating such custom‐
ized click-tracks which incorporate synchronization cues decided during the col‐
laborative process, thereby liberating the performer’s expressiveness and temporality
in the work as a whole.
One of the main problems with click-tracks is that they are often merely an
afterthought, once the composition is finished. This click-track is often simply a
continuous stream of indistinguishable beats, which can only bring angst to the
performer. Instead, a simple customized click-track can do wonders for the music,
as well as go a long way towards building a respectful relationship between artists.
As general guidelines for creating a customized click-track that is less invasive
and more helpful to the performer, I suggest considering the following 3 main points:
Differentiate up and downbeats. This is a recurrent problem: the choice of sound
for the downbeat is either too similar or too low in volume, which cannot be clearly
recognized while musicians are playing their instruments. Keeping in mind that
these are personal choices (one may prefer a high pitch downbeat, or low pitch, or
different timbres), the main point is to make sure the first beat of all measures can
be easily distinguished even when someone is playing their instrument loudly.
Processos Criativos Colaborativos 145

Add regular cues with measure numbers. A simple indication every 5 or 10 bars
goes a long way to support the performer in monitoring their synchronization. It
also makes rehearsal time a lot more productive. When practicing specific sections,
performers want to feel free to repeat, with or without click, and it is essential to
know where on the track we are. Having to go back to the top every time is a ter‐
rible idea, one that can lead to confusion during rehearsals and insecurity during
performance. When on stage, a cue every few bars is essential for reassurance and
to provide a safety net for the performer.
Silence is golden. When there is a long section of electronics alone, it is abso‐
lutely unnecessary to keep the click going. Sometimes even if it is a long bar of 7 or
8 beats, if the performer is not playing, please give our ears a break and cut out the
metronome beats. Nothing is worse than having to count empty beats just waiting
for the next entrance or having to play while listening to the continuous click when
a section could make use of other audio cues.

Examples of customized click-tracks


The three basic guidelines presented above are the absolute minimum, valid for all
click-tracks. However, each work will bring its own challenges, which go far be‐
yond those three simple suggestions. In this article, I discuss two examples of cus‐
tomized click-tracks from my recent repertoire.¹

Example 1. Customized click-track for Ramos, by composer Paulo Rios Filho


Ramos is a 14-minute-long work for piano, voice and electronics. From the begin‐
ning of our collaboration, Paulo and I anticipated that synchronization would be an
issue, as the piece alternates sections in which synchronization has to be absolutely
precise, and other sections where the performer has a lot more flexibility to interact
with the electronics. I was not interested in having a non-stop metronome in the
more fluid sections where I dialog with the pre-recorded voice on the tape. How‐
ever, I needed help at the sections that are highly complex, with continuous changes
in time, metric, and with very little room for uncertainty.
The process of customizing the click-track for Ramos was a long one.
Throughout my learning of the piece, as the various PDF’s arrived in sections and
in new versions throughout the composition process, I made a number of requests
to the composer. This was the path to developing a customized click-track that al‐
ternates between sections with clear (and welcome) metronome, with measure
numbers to help monitor the timeline, and sections when the metronome is off,
providing more freedom to with interact with the audio track. Leading up to sec‐
tions of highly complex interaction or with precise lining-up of piano with partic‐
ular sounds on the tape, the click brings a countdown, with either 2 or 4 beats.
In this example — https://youtu.be/z23tmHAqwyc — we can follow the 4
pages at the beginning of Ramos, with its customized click-track. From measures 1
to 15, the click-track has strict, non-stop beats, changing according to the unit, and
also with the measure numbers to help synchronization. From measure 15 on, the
click-track disappears, and the interaction is made mainly with audio cues. The
score highlights the lines from the speech (in the electronics) the pianist should di‐
alog with. This strategy frees the performer to create on the spot and allows for a
very organic section. There are moments of much flexibility and improvisation as
well (for example on page 3, end of the first system). When those occur, the click
track brings either 4 counts or 2 counts to anticipate the next entrance for the per‐
146 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

former. We found this solution to be the best, as it gives us confidence without


compromising flexibility.

Example 2. Customized click-track (initial section) for Berimbau, by composer


Alexandre Espinheira
The composer and I agreed from the beginning of the creative process that we
would choose synchronization cues together, fine-tuning the electronics so that the
cues would be clearly noticeable. If an initial choice of cue was not audible enough
when occurring at the same time as the piano playing, we would adjust the volume
or choose a different sound as synchronization cue. This is especially true regarding
the improvisatory-like section that takes place at the beginning of Berimbau. The
decisions regarding these anchors for synchronization considered my timing of pi‐
ano gestures and required a lot of experimentation in our workshops. It is there that
I believe my contribution as an experienced performer made a difference. We de‐
cided how to play the musical gestures, in an expressive manner, and from that,
chose the anchors we would line up. The final result is of a seemingly improvised
section, although fully notated.
The initial 2 pages of the score with customized click-track of Berimbau, as
shown here — https://youtu.be/niH7tg2l4TE — indicate the synchronization cues
with a red arrow on the score. Each of those cues were selected, tried out, revised,
and confirmed, during our collaborative process. This segment of the customized
click-track also shows one of the rhythmic sections that occurs in the piece, which
we expected would provide me with sufficient rhythmic cues to synchronize, with‐
out the need for a metronome. This was true for most of the piece. However, the
treatment chosen for the electronics at the very end of the piece, which builds sev‐
eral layers of berimbaus playing in slightly different tempi, became a big challenge
for me to synchronize with. The intended busyness on the electronics could com‐
promise my feeling of precision in lining up with the downbeats. Furthermore, the
very last sound on the electronics should happen in perfect synchronicity with a
loud piano cluster. We had no other choice than to change the initial plan and adopt
a click-track to guarantee such precision. Although most of the piece can be played
without a click, we took the need for a metronome for this section as an opportu‐
nity to build a customized track to which we added some countdowns and to rein‐
force the volume of synchronization cues throughout the piece.

Example 3. Final section of the customized click-track for Berimbau


In this example — https://youtu.be/9Wb1uiepN9o — we can follow the final sec‐
tion of Berimbau, with the customized click-track supporting the synchronization,
which would be challenging otherwise. The call for measure number at specific
points, also suggested by the performer, reinforces the monitoring aspect of these
cues, added as a safety net to the pianist.

Final remarks
When decisions regarding synchronization in mixed media works are taken in a
shared manner, with composers and performers working together, it is not neces‐
sary to choose between expression and precision. Both can be aspired to and
worked towards, without compromising one for the other. The examples show
how this can open new possibilities, which seem to have been otherwise overlooked
Processos Criativos Colaborativos 147

by composers of mixed media music. A customized click-track imprints the per‐


former’s expressiveness in its core. It is built on a particular performer’s way of play‐
ing and temporality. Certainly, when a different performer plays the piece, it is a
new rendition. However, I argue that the human expressiveness is imprinted so
deeply in the construction of the work, and especially on its customized click-track,
that each new rendition will bring a new perspective. A new version of expressive
synchronization will take place.
Ultimately, customized click-tracks can be built to enhance the confidence of
the performer, providing as many cues as needed, without an exhausting non-stop
metronome. This way, instead of scaring away performers tired of the straight-
jacket effect of a carelessly built click-track, a customized track can enable an enjoy‐
able creative experience. Practice with a customized click-track is undoubtedly
more positive and effective than with a basic click-track. It supports precisely syn‐
chronized—and expressive—performances, even of fully notated scores of mixed
media works with fixed electronics.

Acknowledgements. I would like to thank Jess Harding for his contribution in editing
drafts of this text.

Note
1 For released recordings of the works discussed in this text, please visit https://
redshiftmusicsociety.bandcamp.com/track/ramos-paulo-rios-filho and https://
redshiftmusicsociety.bandcamp.com/track/berimbau-2019-by-alexandre-espinheira

Referências
Cardassi, L., & Bertissolo G. (2020). Shared musical creativity: teaching composer-
performer collaboration. Vórtex, 8:1, 1–19.
Chaffin, R., & Lisboa, T. (2008). Practicing perfection: How concert soloists prepare for
performance. Ictus, 9:2, 115–142.
Clarke, E., & Doffman, M. (2017). Distributed Creativity: Collaboration and Improvisation in
Contemporary Music. New York: Oxford University Press.
Ding, S. (2006). Developing a Rhythmic Performance Practice in Music for Piano and
Tape. Organised Sound, 11:3, 255–272.
Ferreira, J. L. (2014). Música mista e sistema de relações dinâmicas. (Unpublished doctoral
dissertation). Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal.
Hayden, S., & Windsor, L. (2007). Collaboration and the composer: Case studies from the
end of the 20th century. Tempo, 61, 28–39.
Langer, S. (2006). Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva.
Menezes, F. (2002). For a morphology of interaction. Organised Sound, 7:3, 305–311.
Nagy, Z. (2017). Embodiment of Musical Creativity: The Cognitive and Performative Causality
of Musical Composition. New York/London: Routledge.
Taylor, A. (2017). ‘Collaboration’ in Contemporary Music: A Theoretical View,
Contemporary Music Review, 35:6, 562–578.
17
148 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

ESTRATÉGIAS DE COMPOSIÇÃO A PARTIR


DA INTERAÇÃO ENTRE TEMPORALIDADES
DO COMPOSITOR, DO PERFORMER E DO
COMPUTADOR
Alisson Gonçalves da Silva¹, Guilherme Bertissolo²
¹²PPPGMUS - Universidade Federal da Bahia, Brasil
¹alissong.silva17@gmail.com, 2guilhermebertissolo@gmail.com

Resumo
A prática de música interativa tem sido alvo frequente de estudos nas últimas décadas. Diversos projetos
vêm sendo desenvolvidos pela comunidade de compositores interessados em compor música baseada na
interação performer e computador. No universo das obras eletroacústicas mistas, encontramos comumente
duas estratégias quanto ao tipo de interação estabelecida entre a eletrônica e o performer: suporte fixo e
eletrônica em tempo real. A interação baseada em apenas uma dessas estratégias traz consequências sobre
as relações temporais durante a performance, visto que um dos aspectos mais problemáticos para sua inte‐
ração é o sincronismo entre os tempos dos performers e da máquina. Considerando que a percepção da
passagem do tempo está relacionada diretamente com as relações e as experiências do cotidiano, em nossa
pesquisa, realizada durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal
da Bahia, buscamos investigar e discutir os embates relativos ao tempo cronológico da máquina e o tempo
musical do performer, considerando as discussões em torno das problemáticas da temporalidade, compreen‐
dendo uma reflexão teórica em torno da música eletroacústica mista e pensando o desenvolvimento de
ferramentas para a sua composição, as quais potencializam a interação entre as temporalidades do compo‐
sitor, do performer e do computador. Pensamos essas questões no contexto de um conjunto de obras musi‐
cais compostas durante a pesquisa. Assim, este texto enfoca nos possíveis embates concernentes à relação
entre tempo cronológico e tempo musical na música mista, propondo estratégias de composição que res‐
pondem aos desafios da interação entre os agentes de uma composição.
Palavras-chave: Música eletroacústica, música computacional, composição musical, temporalidade, música
algorítmica

Introdução
No universo das obras eletroacústicas mistas, encontramos comumente duas estraté‐
gias quanto ao tipo de interação estabelecida entre a eletrônica do computador —
que envolve o som criado por ele, assim como seus processos de síntese e escolhas —
e o performer: suporte fixo e eletrônica em tempo real. A interação baseada em apenas
uma dessas estratégias traz consequências sobre as relações temporais durante a per‐
formance. Considerando que a percepção da passagem do tempo está relacionada
diretamente com as relações e as experiências que temos no cotidiano, esse trabalho
busca investigar e discutir os embates relativos ao tempo cronológico da máquina e
o tempo musical do performer na música mista, pensando essas questões na composi‐
ção de duas obras musicais.
No tocante às obras eletroacústicas mistas, pode-se dizer que o trabalho de criar
música interativa abrange variados conhecimentos, tais como teorias da composição
musical, síntese sonora, análise e processamento de dados e/ou de sinais digitais, bem
como o de linguagens de programação de computadores. A prática de música inte‐
rativa, seja por compositores ou por intérpretes, tem sido alvo de vários estudos nas
últimas décadas (Winkler, 2001; Fritsch, 2008; Figueiró, 2012), e diversos projetos
vêm sendo desenvolvidos e adotados pela comunidade de compositores interessados
em compor música baseada na interação performer e computador.

148
Processos Criativos Colaborativos 149

A principal característica da música eletroacústica mista é, justamente, a intera‐


ção entre os participantes ativos e o sistema computacional usado na obra. Esse pro‐
cesso abarca, necessariamente, a atividade da performance e, consequentemente, a
maneira como sua interação com o computador ocorre. Assim, a interação é um
conceito central para os estudos desse campo. Quando falamos de música eletroa‐
cústica mista, precisamos, portanto, sempre observar, com a devida importância, o
momento da performance e a maneira como o performer vai se relacionar com o
sistema computacional.
Um dos aspectos mais problemáticos para a interação durante a performance é
o sincronismo entre o tempo dos performers e o tempo da máquina. As duas estraté‐
gias predominantes na música mista, que são o suporte fixo (tempo cronométrico),
e o tempo real (tempo musical), trazem consigo vantagens e desvantagens que in‐
fluenciam a liberdade da interpretação e o resultado expressivo da obra. Tais ganhos
e perdas, a depender das estratégias, fragilizam o sentido da interação.
Empreendendo uma visão sistemática da problemática da interação de músicos e
computadores durante a performance, pelo viés do tempo cronométrico do compu‐
tador e do tempo musical dos intérpretes, propomos aqui um enfoque na temporali‐
dade e seus desafios inerentes aos processos de composição. O tempo, em sua com‐
plexidade, oferece dificuldades ao compositor e aos intérpretes, uma vez que o tempo
musical e o tempo cronométrico, por vezes, não são compatíveis (Langer, 2006).
Na música mista, a interação entre computador e intérprete ocorre, ora pela
adaptação do músico ao tempo computacional (tape¹), ora com o computador rea‐
gindo, em tempo real, aos eventos musicais gerados pelo músico. O click-track² tor‐
na-se um útil aliado quando a textura musical da parte eletrônica é rica em aconte‐
cimentos que exigem certa sincronização. Dessa forma, o compositor arca com o
compromisso entre a precisão e a expressão (Ferreira, 2014).
No processamento em tempo real, grande parte das investigações se relaciona
às problemáticas em torno da performance: questões como o gesto do intérprete, ou
como processar os dados de entrada durante a interpretação, ou ainda, como produ‐
zir material, são alguns desses desafios. Talvez a questão principal, porém, concen‐
tre-se em aspectos ligados ao sincronismo. Isto porque o processamento em tempo
real indica que as ações da eletrônica ocorrem ao mesmo tempo em que os eventos
no ambiente estão a acontecer. Nesse sentido, é comum considerar que a única pos‐
sibilidade de um computador reagir dessa forma, ou seja, simultaneamente à perfor‐
mance, é se ele tiver a capacidade de antecipar os eventos no tempo.
Considerando esses desafios, fica evidente que, em todos os processos, seja na
performance, ou na escuta da obra, necessitamos considerar o suporte e suas estraté‐
gias, para assegurar uma coerência entre os polos instrumental e eletrônico. Diante
das questões aqui introduzidas, colocamos a seguinte problemática: como estabele‐
cer processos de interação na música mista que considerem as diferentes temporali‐
dades do compositor, do intérprete e do computador? Que possibilidades expressivas
poderiam ser adicionadas ou transformadas, durante a performance, se o meio ele‐
trônico for também capaz de interpretação, como o performer? Buscamos pensar es‐
sas questões no contexto das obras criadas durante a pesquisa, e considerando os di‐
ferentes níveis de escrita, de flexibilizações temporais e imprevisibilidade.
O objetivo principal da pesquisa foi desenvolver ferramentas para a composição
de música mista que potencializem a interação entre as temporalidades do composi‐
tor, do performer e do computador. Fizemos isso, na prática, no contexto de um con‐
junto de obras musicais compostas para esse fim. Também tivemos como objetivo:

149
150 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

problematizar a temporalidade nos processos de composição de música mista; com‐


por obras musicais mistas que apliquem diferentes estratégias de temporalidade e
interação; identificar problemas na interação em processos e estratégias de composi‐
ção das obras da pesquisa; apresentar um conjunto de algoritmos no Pure Data³ (Far‐
nell, 2010; Grahan, 2011; Puckette, 1996; Kreidler, 2009), bem como ferramentas
para a resolução dos problemas levantados quanto à composição das obras da pesqui‐
sa; além de organizar um memorial analítico-descritivo das obras compostas no âm‐
bito da investigação.
Pensando em um traçado de investigação progressivo, que conduziu a pesquisa
dos seus aspectos mais gerais a pontos cada vez mais específicos, efetuamos um le‐
vantamento bibliográfico abrangendo os principais temas correlacionados. Sob a
perspectiva da temporalidade e dos conceitos e observações, criamos laboratórios de
experimentos de pequenos materiais composicionais, os quais serviram como esbo‐
ços, e tiveram a finalidade de enumerar estratégias criativas para a atividade da com‐
posição. Assim como os experimentos, a colaboração dos performers foi de extrema
importância para o desenvolvimento e para os resultados científicos e artísticos desta
pesquisa. Dessa forma, é importante salientar que se trata de um desenho metodoló‐
gico baseado na prática composicional, tomando as obras e patchs, assim como os
textos escritos, como resultados igualmente importantes para a pesquisa.

Temporalidade
A música tem uma relação fundamental com o tempo, visto que necessita dele para
ser percebida, não podendo, portanto, ser dele separada. Sua existência só é possível
através do tempo (Irlandini, 2003, p. 189), sendo também “uma forma de ação no
tempo” (Lima, 2016, p. 102). Essa relação de proximidade, e até mesmo de depen‐
dência, implica vários desdobramentos. Um deles é a percepção da passagem do
tempo através da música.
A passagem do tempo é uma experiência que decorre da relação entre as pessoas
e os fenômenos percebidos por elas. A música exerce uma influência direta na per‐
cepção temporal do ouvinte, moldando o tempo para ele. Segundo Paulo Costa
Lima, compor música é trabalhar diretamente com a temporalidade das coisas, dos
materiais. O autor coloca que música é objetivar o tempo, interferindo na consciên‐
cia temporal. É manipular, dentro do possível, a duração em si (Lima, 2016, p. 102).
Alguns compositores, no século XX, apresentaram preocupação com relação à
fundamentação sobre esse tema, e também quanto à noção do tempo musical. Oli‐
vier Messiaen, em Traité de rythme, de couleur et d'ornithologie (2002), discute a per‐
cepção das durações, noções do tempo presente e passado, tempo biológico, tempo
relativo e psicológico, tempo microfísico, periodicidade e alternância (Copini, 2014,
p. 1). Brian Ferneyhough, em The tactility of time (1988), expõe considerações sobre
um tempo que se torna “palpável quando são efetuadas mudanças no fluxo temporal
através e ao redor de objetos e estados” (Copini, 2014, p. 1). Já Pierre Boulez, ao
definir qualidades do espaço (de alturas) e do tempo musical, menciona duas catego‐
rias: espaço-tempo liso e espaço-tempo estriado. O tempo liso seria aquele amorfo,
em que não se poderiam reconhecer cortes, pulsos, acentos com ritmo periódico. Já
o tempo estriado é pulsado, suas inflexões são audíveis, reconhecemos os cortes e
notamos a sua passagem, mesmo que se organize de modo complexo, como, por
exemplo, fazendo uso do conceito de duração, e não mais de ritmo, não tendo uma
pulsação como referência (Boulez, 1986, p. 87).
Processos Criativos Colaborativos 151

Outra abordagem relacionada ao tempo é de Gérard Grisey, compositor e pen‐


sador representativo da Música Espectral, para o qual uma das características a serem
consideradas é a associação do timbre e dos espectros sonoros. Grisey coloca que “a
música espectral surge de origem temporal, e era necessário dar forma à exploração
de um tempo extremamente dilatado e permitir um preciso grau de controle na
transição de um som para o próximo” (Grisey, 1998, p. 121). Esse pensamento leva
em conta o valor perceptivo das diferenças entre os sons e os efeitos psicoacústicos
resultantes da exploração de parâmetros sonoros (Copini, 2014, p. 2).
Jonathan Kramer (1988) foi um dos pensadores a propor teorias e considerações
a respeito do tempo na música, e cujo trabalho amplamente influencia os discursos
sobre o tema. Seu pensamento questiona a ideia da análise e investigação do ritmo
e da métrica, e como esses elementos se manifestam em uma composição. Kramer
afirma que grande parte dos trabalhos sobre tempo musical é dedicada a discutir,
justamente, elementos como ritmo e métrica, parâmetros notados.
Menos óbvios do que o ritmo e a métrica, e também mais difíceis de discutir,
até mesmo pela escassez de estudos que partem dessa abordagem, são elementos
como movimento, continuidade, progressão, proporção, duração e tempo. Para ele,
“são esses preceitos que precisam ser estudados para que a força total do tempo mu‐
sical seja compreendida” (Kramer, 1998, p. 2). O que o autor propõe é um estudo da
relação entre tempo e música, partindo do princípio de que “música ganha signifi‐
cado no e através do tempo” (Kramer, 1998, p. 1). A partir desse pensamento, esta‐
belece duas amplas categorias que descrevem os tipos de temporalidade manifestados
no fenômeno musical, a saber, o tempo linear e o tempo não-linear. Kramer descre‐
ve de forma bastante clara:
Definamos tempo linear como o continuum temporal criado pela suces‐
são de eventos nos quais eventos prévios implicam os subsequentes, e
eventos subsequentes são consequências dos prévios.... Nós ouvimos os
eventos subsequentes no contexto destas expectativas, que são completa
ou parcialmente satisfeitas, atrasadas ou frustradas. Cada nova ocorrên‐
cia, entendida e, subsequentemente, lembrada sob a influência de expec‐
tativas prévias, implica o futuro. Assim, a linearidade é uma complexa
rede de implicações (na música) e expectativas (do ouvinte) em constan‐
te mutação.... A não-linearidade é entendida como algo que não “cres‐
ce”, ou muda, ou que não guarda relações de causalidade entre eventos
subsequentes.... A dinâmica de entendimento da não-linearidade de
uma obra musical está em apreender suas relações imutáveis. (Kramer,
1988, p. 20-21)

Partindo desse pensamento, pode-se dizer, então, que, no tempo linear, os ma‐
teriais musicais guardam uma intensa relação de causalidade, de modo que o fluxo
musical pode ser entendido como um processo direcional e evolutivo de uma ideia
inicial. A linearidade se apresenta como a percepção da composição musical, levan‐
do-se em conta eventos e materiais musicais ocorridos anteriormente na obra. As‐
sim, a linearidade está profundamente conectada ao progresso da obra, como uma
meta ou direção clara a ser atingida. Essa perspectiva guarda fortes relações com a
criação de expectativa, mencionada pelo autor. E, em se tratando de expectativa, o
tempo linear se aproxima do pensamento predominante da cultura ocidental, que
concebe o tempo, de uma maneira geral, nas relações entre o binômio passado e
futuro, esperando encontrar também essa lógica no tempo musical.
Enquanto o princípio da linearidade está em fluxo constante, uma situação de
não-linearidade tende a não se desenvolver, a não mudar. Não é progressiva, por
assim dizer. Dentro da lógica não-linear, os eventos musicais não guardam relações
causais, mas manifestam-se como resultado de princípios preestabelecidos, os quais
152 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

governam uma obra ou determinado trecho dela. Este é o tempo fincado no presen‐
te (Amaro, 2015, p. 23-24). A não-linearidade, portanto, não possui, necessariamen‐
te, relação com eventos anteriores na composição — cujas implicações, na lógica
linear, estão em constante mudança —, ou com uma meta e direção clara a ser atin‐
gida. Ao contrário, relaciona-se com elementos imutáveis na composição. Kramer
coloca que “a não-linearidade é um conceito, uma atitude composicional e uma es‐
tratégia de escuta que se preocupa com a permanência da música: com aspectos de
uma peça que não mudam e, em casos extremos, com composições que não mudam”
(Kramer, 1988, p. 19). É de extrema importância ressaltar que ambos os conceitos —
linearidade e não-linearidade — não são mutuamente excludentes quando estuda‐
mos o tempo. A música pode ser, por exemplo, linear em um nível estrutural pro‐
fundo e não linear em sua superfície. Kramer aponta que qualquer tentativa de vin‐
cular uma obra ou um trecho dela a apenas um conceito de temporalidade deve ser

Figura 1
A linearidade, um processo direcional e evolutivo de uma ideia inicial,
em trecho da obra Nephele.

Figura 2
A não-linearidade, na qual os objetos tendem a não se desenvolver, no
trecho da obra Nephele.
Processos Criativos Colaborativos 153

evitado (Kramer, 1988, p. 18). No ambiente da obra Nephele, criada durante a pes‐
quisa, busco explorar esses gestos e trajetórias com base nos contextos estabelecidos
por Kramer (1988): tempo linear (os materiais guardam uma intensa relação de cau‐
salidade, o fluxo musical como um processo direcional e evolutivo; ver o exemplo
na Figura 1) e o tempo não-linear (não se desenvolve, os eventos não guardam re‐
lações causais; ver exemplo na Figura 2).
A definição de “tempo virtual”, elaborada por Susanne Langer (2006), procura
determinar o tempo próprio da música, que é diferente do tempo científico e do
tempo social. É, na verdade, um tempo vital em que a música se desenvolve. Esse
tempo é experienciado, o que permite alegar sua proximidade com a determinação
de tempo formada na consciência. Langer declara que o tempo musical que se de‐
senvolve em um tempo considerado como fluxo, como passagem, é uma ilusão. Essa
passagem é ocupada pelo conteúdo audível em movimento, e esse intervalo entre
uma coisa e outra é, para a autora, uma experiência tão ilusória quanto o tempo
mensurável do relógio. A duração musical quase se confunde com a duração da
consciência, tal sua aproximação com ela (Krewer, 2012).
A duração, na música, assim como o espaço, não é um fenômeno real, mas algo
extremamente diferente do tempo científico e mecânico do relógio. É incomensu‐
rável, é um tempo “vivido”, que só pode ser medido pela percepção, pela tensão e
pela emoção. O tempo musical está intimamente ligado às formas e continuidades
específicas deste ou daquele acontecimento ou fluxo musical (Irlandini, 2003, p.
190). Ao afirmar que “música torna o tempo audível e torna sensíveis suas continui‐
dades” (Irlandini, 2003), Langer aponta não só para a natureza sensível e sonora da
música, mas também do tempo musical. Trata-se de uma espécie de tempo que de‐
corre auditivamente. A recíproca é verdadeira, pois a música também decorre tem‐
poralmente. Sendo assim, tempo e música se identificam com a experiência sensível
do som, graças a essa reciprocidade.
A música é uma das formas de duração. Suspende o tempo comum e se oferece
como um equivalente e ideal substituto. Nada é mais metafórico ou mais forçado na
música do que a sugestão de que o tempo está passando enquanto a ouvimos. Langer
ressalta que a divergência do tempo virtual para com o tempo real está em sua pró‐
pria estrutura, seu padrão lógico, que não é da ordem unidimensional que supomos
para efeitos práticos. A autora argumenta que o tempo virtual criado na música é
uma imagem do tempo em um modo diferente, isto é, funcionando a partir de dife‐
rentes termos e relações (Langer, 2006, p. 117-118).
O conceito de tempo que emerge de tal mensuração, segundo Langer, é muito
afastado do tempo como conhecemos pela experiência, esse tempo que é essencial‐
mente “passagem”, com o sentido de transitoriedade, movimento. A partir dessa
perspectiva, a problemática das diferenças das temporalidades do performer (musical
simultâneo, vívido), do computador (cronométrico), e do compositor (tempo dife‐
rido, imaginado) é potencializada. Ainda que seja necessário pensar essa problemáti‐
ca, propomos aqui, que as diversas temporalidades podem contribuir para contextos
composicionais em geral.
Bob Snyder aborda a linearidade pelo viés da metáfora da causalidade — ao que
aludimos anteriormente no capítulo. Para ele, a linearidade é o modo de construir
música de maneira que eventos em sequência pareçam conectados e crescendo uns
em relação aos outros. O autor também veicula noções de organização de padrões e
direcionalidade para pensar o linear e o não-linear. Nesse sentido, menciona padrões
não-lineares como incluindo aqueles nos quais valores paramétricos não mudam ao
154 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

longo do tempo, mas meramente se repetem, flutuam entre valores fixos sem uma
ordem particular, ou são escolhidos aleatoriamente (Snyder, 2000, p. 62). Para escla‐
recer o que considera como característico da linearidade, Snyder traz a noção de
fronteira de um esquema temporal. Essa fronteira seria o ponto em que um esquema
acaba e outro começa, e é baseada na existência de alvos. A ideia de alvos, de certa
forma, relaciona-se com o pensamento de Kramer, já que remete à noção de ligação
entre memória, previsibilidade e expectativa — visto que a ideia de um alvo, normal‐
mente, implica que o presente é, de alguma maneira, estruturado por uma ideia de
como o futuro será ou deveria ser (Snyder, 2000, p. 115). Assim, também o presente
é estruturado por uma expectativa preestabelecida a partir da vivência do tempo pas‐
sado. É progressivo. Portanto, estamos no domínio da linearidade e da incisividade
(Bertissolo, 2013).
A ideia de movimento de Snyder se estabelece a partir da articulação do movi‐
mento na memória. Assim, o autor argumenta que a noção de movimento em música
está ligada às ideias de proximidade e similaridade, sendo possível, então, identificar
eventos subsequentes uns aos outros, e criar a imagem metafórica de que esses eventos
são uma coisa que está se movendo (Snyder, 2000, p. 113). Snyder coloca que movi‐
mento envolve mudança, e que o movimento musical é feito pela mudança progres‐
siva de um ou mais parâmetros. Dessa forma, constrói o conceito de que a metáfora
de movimento em música está relacionada com a percepção de causalidade, de movi‐
mento direcionado (Bertissolo, 2013, p. 46). Nesse sentido, compomos com a noção
de gesto, também os aspectos direcionais, e operamos movimento através de trajetó‐
rias no fluxo musical, em direção a alvos (Bertissolo, 2013).

Interação
Na atividade musical eletroacústica, pode-se dizer que o termo “interação” remete a
intervenção e controle, ou ainda, ao ser reativo ou passivo em comparação ao outro.
Entretanto, o conceito de interação engloba diversos valores semânticos específicos
para diferentes áreas do conhecimento, os quais influenciam e se relacionam com este
que usamos aqui. Daí a importância de considerá-los, ainda que superficialmente.
Alguns pesquisadores, como Winkler (2001) e Neuman (2008), costumam
exemplificar e caracterizar “interação” conectando o termo ao conceito de diálogo,
por exemplo. Portanto, pensam a interação, geralmente, através da imagem do mo‐
delo de conversação entre seres humanos. A partir dessa perspectiva, a interação
pode ser entendida como um tipo de relação que ocorre entre duas ou mais entida‐
des, quando a ação de uma delas provoca uma reação da outra ou das demais.
Por oposição à unidirecionalidade característica da causalidade, a bidirecionali‐
dade — ou mesmo, interatividade — é essencial à ideia de interação, daí a compara‐
ção com o diálogo. Vejamos a construção feita por Winkler na introdução do livro
Composing Interactive Music:
Interação é uma via de mão-dupla. Nada é mais interativo do que uma
boa conversa: duas pessoas compartilhando palavras e pensamentos, duas
partes engajadas. As ideias parecem voar. Um pensamento afeta espon‐
taneamente o próximo. Participantes de um diálogo presumem que haja
muita experiência vivida e encontram estímulo na experiência compar‐
tilhada. Diálogo implica um contexto consistente o qual cria um senti‐
mento de compreensão mútua, sem ser previsível. Por outro lado,
quando apenas uma pessoa fala, não é interativo — é uma palestra, um
solilóquio. Computadores simulam interação.... São mímicos habilido‐
sos capazes de representar imagens, sons, e ações do mundo real e de
Processos Criativos Colaborativos 155

mundos imaginados. Computadores simulam interação neste mundo


virtualmente construído. (Winkler, 2001, p. 3)

Assim, com a compreensão de qualquer interação a partir do entendimento de


que esta é uma consequência da troca de comunicações ou ações, tem-se um
elemento-chave para pensar a interação: a capacidade de responder (Ferreira, 2014,
p. 71). A interação passa, então, pela ideia de que o que um sujeito diz ou faz
depende de outro, uma noção claramente baseada na conversação entre humanos.

A construção da eletrônica e as temporalidades


Em relação aos sons eletrônicos, para categorizar os tipos de materiais sonoros, uti‐
lizei como base a análise do processo composicional proposto por Schaeffer sobre os
objetos sonoros, discutido em seu Traité des Objets Musicaux (1966), e sintetizado por
Zampronha (2011, p. 68). Ele descreve algumas fases desse processo, facilitando o
entendimento e a aplicação na análise do processo composicional (Nicolino, 2013).
Algumas fases: a) fase preliminar: o primeiro passo consiste em produzir e/ou coletar
os objetos sonoros que serão utilizados; b) primeira operação - tipologia: fase de
classificação do som de acordo com alguns critérios, como sua frequência, densida‐
de, amplitude e duração; c) segunda operação - morfologia: fase de comparação en‐
tre os objetos sonoros, buscando características em comum entre eles; d) terceira
operação - caracterização: fase de agrupamentos desses objetos sonoros que possuem
características em comum; e) quarta operação - análise musical: fase na qual, a partir
da percepção do músico ou pesquisador, os objetos que possuem características em
comum são classificados em ordem escalar, de acordo com a experiência da escuta.
Utilizando esse processo de análise, a classificação dos sons coletados ficou mais cla‐
ra, o que facilitou a busca por novos objetos sonoros no decorrer do processo de
composição da obra.
Durante o processo de experimentações para a composição das obras, busquei
mais dinamismo na interação entre o sistema computacional no Pure Data (Figura
3) e os músicos. Meu objetivo era que o computador pudesse ter uma autonomia
para tomar decisões e criar materiais a partir de informações, bem como que os
músicos tivessem espaço para executar suas escolhas durante a performance.

Figura 3
Parte do patch usado no Pure Data na obra Nephele.
156 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Uma preocupação constante na música eletroacústica mista é a sincronização


entre os músicos e a parte eletrônica durante a performance. Menezes (2002, p. 308)
afirma que “a flexibilidade ou a falta dela na música eletroacústica mista se deve antes
ao modo como o compositor estrutura sua obra.” Assim, fica evidente que, em todas
as fases do estudo desse tipo de trabalho, seja na leitura, na escuta ou na performance,
devemos considerar o suporte, seguindo os eventuais tipos de sincronização que se
apresentam, para, dessa forma, garantir uma coerência entre as dimensões eletrônica
e instrumental.
Em se tratando de um sistema interativo como o Pd, que está a responder aos
músicos em grande parte no decorrer da obra, o sistema se torna, em parte, relativo
às ações e as temporalidades dos músicos. Porém, em alguns momentos, a resposta
eletrônica é derivada de materiais pré-gravados que têm durações definidas, o que
faz com que os performers precisem ser reativos ao material.

Conclusão
Considerando as principais questões sobre a complexidade do tempo, relacionando
os paradigmas da interação na música eletroacústica mista, essa relação coloca desa‐
fios, uma vez que o tempo musical e o cronométrico, por vezes, não são compatíveis
(Langer, 2006). Entretanto, a liberdade expressiva da performance é alcançada
quando os universos eletrônico e acústico se encontram em equivalência, implican‐
do que o agente computacional seja maleável, tornando-se performático. Esses pres‐
supostos nos levaram à formulação de estratégias, que não só revelam implicações
em nível de viabilidade das expressões performativas, mas também no nível da com‐
posição das obras.
Imagino que possíveis desdobramentos desta pesquisa, no futuro, serão direcio‐
nados para a dimensão cognitivo, para o estudo de processos de construção do sentido
e da percepção, integrando com os ambientes computacionais. Especialmente, a
computação cognitiva, que vem se apoiando em conceitos de inteligência artificial e
aprendizagem de máquinas como pilares para a construção de sistemas que interagem
de forma mais natural com os seres humanos. Essa interação se dá por meio da com‐
preensão da linguagem natural, da capacidade de aprendizagem e do reconhecimento
de padrões de dados não estruturados, que são habilidades do cérebro humano.
O filósofo David Chalmers evidencia o uso da computação no estudo atual da
cognição. Ele afirma que a computação é o fundamento central da ciência cognitiva
moderna (Chalmers, 1993). As tendências em computação cognitiva estão voltadas
à aplicação massiva de técnicas de machine learning, como deep learning, aprendizado
com redes neurais⁴ profundas e técnicas de processamento de linguagem natural,
que promovem maior integração entre as tecnologias de processamento de fala e as
tecnologias de inteligência artificial.

Notas
1 Tape é uma faixa de áudio pré-gravada
2 Click-track é um termo normalmente usado no estúdio de gravação ou no ambiente de
performance ao vivo, que se refere ao metrônomo. Geralmente, é executado em um
computador ou aplicativo e é definido em um tempo ou velocidade predeterminado.
Processos Criativos Colaborativos 157

3 Pure Data (ou abreviadamente Pd) é uma linguagem de programação visual, um


ambiente de programação gráfica orientada a objeto, desenvolvida por Miller Puckette na
década de 1990 para criação de música eletrônica, música electroacústica, música interativa,
e trabalhos multimídia. Apesar de Miller Puckette ser o seu autor principal, o Pd é uma
linguagem opensource com uma base de desenvolvedores bastante extensa.
4 Redes neurais são sistemas de computação com nós interconectados que funcionam
como os neurônios do cérebro humano. Usando algoritmos, elas podem reconhecer
padrões escondidos e correlações em dados brutos, agrupá-los e classificá-los, e – com o
tempo – aprender e melhorar continuamente.

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Processos Criativos Colaborativos 159
160
18
PROPOSIÇÃO DE UM EXPERIMENTO
PILOTO PARA A AVALIAÇÃO DO IMPACTO
DA MÚSICA NA EXPERIÊNCIA IMERSIVA DO
JOGADOR EM UM JOGO ELETRÔNICO
Tharcísio Vaz C. de Moraes
Escola de Música - Universidade Federal da Bahia, Brasil
tharcisiovaz@gmail.com

Resumo
Este trabalho apresenta um experimento piloto para a coleta e avaliação de dados com o propósito de inves‐
tigar a influência da música no nı́vel de imersão em jogadores experts durante a interação de um jogo ele‐
trônico, a partir de imageamento cerebral. Para a aplicação deste experimento inicial foi escolhido o Cup‐
head, um jogo eletrônico do gênero plataforma e run and gun inspirado nos desenhos animados da década
de 1930. O experimento piloto consistiu na coleta de dados de um jogador expert, através do uso de um
eletroencefalograma durante a interação com o game. Foram captadas imagens cerebrais durante 4 sessões
em que os recursos auditivos do jogo (música e efeitos sonoros) estavam ou não habilitados. Os dados co‐
letados foram analisados sob a ótica de estudos sobre neurociência afetiva (Posner, Russel, & Peterson,
2005), estado de fluxo (Csikszentmihalyi, 1990) e Music Design (Thomas, 2017) para se compreender a
interferência da música na experiência do jogador. Com base nos dados coletados, foi possı́vel concluir que
a música contribuiu para a elevação do nível de atividade no Lobo Pré-Frontal esquerdo, associada a sen‐
sações de prazer e excitação (Posner; Russel; Peterson, 2005). Embora reconheçamos a complexidade dos
sistemas neuronais e a plasticidade cerebral, esperamos poder realizar comparações com um maior número
de jogadores, com perfis variados de experiência musical e interação com games, de forma a nos permitir
inferir questões para o desenvolvimento de estratégias de composição musical para jogos eletrônicos que
promovam imersão.
Palavras-chave: Música, jogos eletrônicos, imersão, neurociência, bci

Introdução
A composição musical desempenha um importante papel no contexto dos jogos ele‐
trônicos, contribuindo significativamente no processo de imersão do jogador (Hui‐
berts, 2010). Tendo em vista seus aspectos interativos, o processo de criação musical
para jogos eletrônicos difere do processo empregado em mı́dias lineares como o ci‐
nema e TV. Uma vez afirmada a necessidade de o jogador interagir constantemente
com as ações que ocorrem na tela, o compositor deve criar uma música capaz de se
adaptar dinamicamente às decisões tomadas pelo jogador durante sua interação. Por
outro lado, em um filme, o compositor pode criar e sincronizar sua música previa‐
mente a um número de quadros pré-determinados (Sweet, 2015).
O presente experimento reflete minha experiência prática como compositor de
trilhas sonoras para games e minha experiência como pesquisador, em que busco in‐
vestigar os processos criativos de composição musical para Games considerando sua
natureza enquanto produto audiovisual, e também seus aspectos interativos devido
às liberdades de escolha do jogador.

Sobre o experimento piloto


O experimento piloto consistiu na coleta e avaliação de dados com o propósito de
investigar a influência da música no nı́vel de imersão em um jogador expert durante
a interação de um jogo eletrônico, a partir de imageamento cerebral. Para a apli‐
cação deste experimento inicial foi escolhido o Cuphead (2017), um jogo eletrônico
161
162 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

do gênero plataforma e run and gun inspirado nos desenhos animados da década de
1930, desenvolvido pelo estúdio canadense Studio MDHR e com trilha sonora ori‐
ginal criada pelo compositor Kristofer Maddigan. O experimento piloto consistiu na
coleta de dados de um jogador expert através do emprego de um eletroencefalogra‐
ma durante a interação com o game. O jogador testado interage diariamente com
jogos eletrônicos desde os 5 anos de idade e possui formação acadêmica na área de
música. A análise dos dados coletados irá contribuir para a realização de uma série
de testes futuros, com o intuito de embasar a proposição de processos criativos de
música para jogos eletrônicos.

Sobre as sessões de testes e a coleta de dados


Foram realizadas quatro sessões de testes do jogo Cuphead com duração de dois mi‐
nutos cada. Para a interação do jogador, foi utilizado o console portátil Nintendo
Switch conectado a um par de fones de ouvido para maior isolamento dos ruídos
externos. Em cada sessão de testes o jogo foi iniciado com diferentes combinações
de recursos de áudio (música e efeitos sonoros) habilitados através do menu do jogo,
sendo que:
a) durante a Sessão 1, nenhum recurso de áudio foi habilitado;
b) na Sessão 2, somente os efeitos sonoros foram habilitados;
c) na Sessão 3, somente a música foi habilitada; e, por fim,
d) na Sessão 4 todos recursos de áudio (música e efeitos sonoros) foram habilitados.
Para a captura dos dados referentes à atividade cerebral do jogador durante a
interação com o jogo, foi utilizado o eletroencefalograma da empresa Open Source
Biosensing Computer Interface (OpenBCI), modelo UltraCortex Mark IV Headset 8
channel, conectado à placa Cyton Biosensing Board 8 channel (Figura 1). E para a lei‐
tura dos dados coletados, foi utilizado o software da Open BCI, executado em um
computador com sistema operacional macOS.

Figura 1
Eletroencefalograma Open BCI modelo UltraCortex Mark IV Headset 8 channel e
placa Cyton Biosensing Board 8 channel (Open BCI, 2020).
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 163

Sobre os referenciais teóricos


Para a análise dos dados coletados, foram abordados diferentes referenciais teóricos:

Imersão e Estado de Fluxo


O psicólogo húngaro Csikszentmihalyi (1990) descreve a imersão através do con‐
ceito de estado de fluxo, que seria “o estado em que as pessoas estão tão envolvidas
em uma atividade que nada mais parece importar; A experiência em si é tão agra‐
dável que as pessoas vão fazê-la mesmo com um grande custo, pelo simples prazer
de fazê-lo” (p. 6).
O estado de fluxo referido pelo autor é descrito de forma semelhante por milha‐
res de pessoas entrevistadas, sendo homens, mulheres, jovens, idosos, independente
de seu background cultural (Csikszentmihalyi, 1990). O estado de fluxo no contexto
dos jogos eletrônicos corresponde ao conceito de imersão, definido como “a expe‐
riência prazerosa de ser transportado para um lugar simulado, fantasioso, com a sen‐
sação de estar envolvido por uma realidade estranha que se apodera do sistema sen‐
sorial” (Audi, 2016, p. 88). O jogador de um videogame, ao se focar e imergir no
jogo, sente-se como se estivesse sendo isolado do mundo real e transportado para o
mundo virtual (Huiberts, 2010).
A teoria do estado de fluxo possui relação direta com a música, sendo a mesma
capaz de num primeiro momento dar prazer e aliviar o tédio do ouvinte e, num
segundo momento, focar a sua atenção, evocar imagens, sentimentos e induzir o
estado de fluxo em ouvintes profundamente concentrados (Csikszentmihalyi, 1990).
A música tem também o poder de potencializar a imersão do jogador em um jogo
eletrônico independente de seu caráter, estilo e tonalidade (Huiberts, 2010).
Tendo estabelecido o conceito de imersão e sua relação com a música no con‐
texto dos jogos eletrônicos, o objetivo deste experimento é buscar uma maior com‐
preensão da influência da música no estado imersivo do jogador para embasar pro‐
cessos criativos do compositor para Games. Posto isto, o conceito de Music Design se
torna também um importante referencial teórico.

Music Design
Sendo os jogos eletrônicos uma mídia audiovisual, é importante considerar a relação
entre som e imagem e seu impacto na experiência do jogador. No artigo Music as a
source of emotion in film, a pesquisadora Annabel Cohen, defende que a música fornece
uma camada de informação essencial para que o espectador possa melhor compreen‐
der e interpretar a cena de um filme (Cohen, 2001). Ampliando este entendimento
no contexto dos jogos eletrônicos, o conceito de Music Design nos ajuda a com‐
preender não somente as possíveis relações entre música e imagem, mas também as
relações entre a música e os elementos interativos de um game.
O termo Music Design foi cunhado inicialmente pelo compositor veterano da
indústria de games, Guy Whitmore (2003) em seu artigo intitulado Design with music
in mind: a guide to adaptive audio for game designers, e mais tarde definido pelo igual‐
mente experiente compositor Chance Thomas, como um “planejamento abrangen‐
te que descreve o objetivo, ferramentas e logísticas para todos os usos de música em
um jogo” (Thomas, 2016, p. 57), incluindo estados de jogo, pontos de transição, etc.
Assim, o compositor será capaz de organizar e executar seus processos criativos de
forma mais eficiente, levando em consideração os aspectos interativos e adaptativos
164 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

dos jogos eletrônicos, gerando uma composição mais flexível, funcional e melhor
integrada à experiência proposta para o jogo (Thomas, 2016).
Dada a importância do conceito de Music Design, elaborei uma tabela (Tabela
1) com o intuito de auxiliar a etapa inicial de concepção musical nos processos cria‐
tivos do compositor para Games, relacionando elementos de jogo e elementos mu‐
sicais. Utilizo esta tabela, por exemplo, durante processos de análise de jogos em sala
de aula na disciplina intitulada Music Design, que leciono na Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), para auxiliar desenvolvedores e compositores a melhor com‐
preender as escolhas musicais em jogos utilizados como possível referência para seus
próprios projetos.

Tabela 1
Relações entre Elementos de Jogo e Elementos Musicais (Moraes, 2020).

Aplicando os conceitos desta tabela ao jogo Cuphead é possível correlacionar,


por exemplo:
a) Cada segmento do jogo (Menu, Cutscene introdutória, Mapa de escolha de
fases, Fase 1, Fase 2 e assim por diante) aos seus respectivos segmentos musicais
próprios;
b) A referência visual dos desenhos cartoon da década de 30 a uma paleta sonora
de big bands de jazz, repleta de efeitos musicais caricatos e músicas no estilo
ragtime, comumente utilizados nos desenhos animados da época;
c) O ritmo intenso e ágil da jogabilidade de Cuphead, em que o jogador deve se
desviar constantemente de inimigos e obstáculos, a uma música de andamento
acelerado no estilo jazz bebop.
Diversos experimentos realizados com o objetivo de comparar o nível de imer‐
são em diferentes grupos de jogadores interagindo com um mesmo jogo com e sem
a presença da música, aplicando questionários ao final da interação, concluíram que
a música prepara o ambiente, eleva o nível de atenção do jogador (Sanders; Cairns,
2010) e provoca distorção temporal, fazendo com que jogadores tenham dificuldade
em estimar o tempo que passaram interagindo (Zhang; Fu, 2015).
Com o intuito de aprofundar a compreensão do impacto da música na expe‐
riência imersiva do jogador, o campo da Neurociência Afetiva foi também utilizado
como referencial teórico para embasar a análise dos dados do experimento.
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 165

Neurociência Afetiva
A Neurociência Afetiva é o campo da neurociência dedicado ao estudo do impacto
das emoções no comportamento humano (Almada, 2014). Os pesquisadores (Posner
et al., 2005) em seu artigo The circumplex model of affect: An integrative approach to
affective Neuroscience, cognitive development, and psychopathology propõem que todos
os estados afetivos podem ser representados por dois sistemas neurofisiológicos in‐
dependentes: Valência, que se refere a estados afetivos agradáveis e desagradáveis e
Excitação ou Alerta. Ambos sistemas podem ser representados pelo Modelo Cir‐
cumplexo de Afeto (Figura 2), proposto por Russel (1980). Neste modelo, cada ex‐
periência afetiva pode ser compreendida através da combinação dos sistemas de Va‐
lência e Excitação em diferentes níveis (Posner et al., 2005). O estado afetivo de
“Alegria, por exemplo, é conceituado através de um estado emocional que é produto
de intensa ativação dos sistemas neuronais associados a Valência Positiva ou prazer,
combinada a ativação moderada nos sistemas neuronais associados à Excitação ou
Alerta” (Posner et al., 2005, p. 2).

Figura 2
Modelo Circumplexo de Afeto (Russel, 1980).

O aspecto dimensional do Modelo Circumplexo de Afeto pode ser uma eficien‐


te ferramenta estatística e metodológica para, por exemplo, interpretar imagens
neuronais captadas em um eletroencefalograma (Posner et al., 2005), aplicação feita
neste experimento piloto.
Experimentos empíricos sugerem que o Córtex Pré-Frontal auxilia na interpre‐
tação de sensações de Prazer e Excitação em diversos contextos (Posner; Russel; Pe‐
terson, 2005). Estudos utilizando eletroencefalograma apontam que a ativação assi‐
métrica do Córtex Pré-Frontal está relacionada a experimentação de emoções posi‐
tivas e negativas (Davidson et al., 1990), sendo maior a ativação no lobo direito
quando relacionada a emoções de Valência negativa e maior ativação no lobo es‐
querdo quando associada a emoções de Valência positiva (Jones & Fox, 1992). Já o
nível de atividade cerebral está diretamente relacionado ao nível de Excitação (Keil;
Muller; Gruber; Wienbruch; Stolarova 2001), em especial o nível de ativação no
166 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Córtex Pré-Frontal, que está associado a sensações de prazer e relacionada a sistemas


de recompensa e punição (Damasio, 1994).
Conforme mudanças neurofisiológicas ocasionadas pelas emoções são detecta‐
das nos sistemas de Valência e Excitação, interpretações cognitivas podem ser em‐
pregadas para conceituar e analisar tais mudanças em relação ao estímulo (Russel,
2003). No caso deste experimento piloto, os conceitos de Imersão e Music Design
foram empregados para embasar e analisar os dados catalogados durante a interação
do jogador.
Com base em reflexões sobre os referenciais teóricos apresentados, a hipótese
testada no experimento piloto foi que nas sessões de testes em que a música se en‐
contra ativada, o Music Design aplicado na música original composta para o jogo
resultará em elevado nível de atividade cerebral no Lobo Pré-Frontal esquerdo do
jogador, significando ativação positiva da Valência e alto nível de ativação de Exci‐
tação, resultando em maior nível de imersão do jogador. Tendo em vista essa hipó‐
tese, a seguir serão apresentadas as imagens e dados coletados no experimento.

Sobre o experimento piloto


As imagens coletadas no experimento piloto em cada sessão foram geradas através
do software da Open BCI, que permitiu a visualização do nível de atividade cerebral
em 8 diferentes regiões: Lóbulos Pré-Frontais esquerdo e direito, Lóbulos Tempo‐
rais esquerdo e direito, Lóbulos Parietais esquerdo e direito e Lóbulos Occipitais
esquerdo e direito. O software exibiu o nível de atividade cerebral em cada região
representado através das cores azul e vermelho em tons claros e escuros. Sendo a cor
azul e tons claros significando menor atividade cerebral, e a cor vermelha e tons
escuros maior atividade cerebral. Além disso, o software exibe o nível de voltagem
através da medida Vrms. Considerando a hipótese testada neste experimento piloto,
foi observado o nível de ativação do Lobo Pré-Frontal Esquerdo em cada uma das
sessões de testes, obtendo os resultados apresentados nas figuras 3, 4, 5 e 6).

Figura 3
Mapeamento cerebral durante Sessão 1:
interação sem recursos de áudio habilitados (Moraes, 2020).
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 167

Figura 4
Mapeamento cerebral durante Sessão 2:
interação somente com efeitos sonoros habilitados (Moraes, 2020).

Figura 5
Mapeamento cerebral durante Sessão 3:
interação somente com a música habilitada (Moraes, 2020).

Figura 6
Mapeamento cerebral durante Sessão 4:
interação com todos os recursos de áudio habilitados (Moraes, 2020).
168 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Resultados e conclusões
Após a realização das sessões de testes foi constatado maior nível de ativação do Lobo
Pré-Frontal esquerdo durante as Sessões 3 e 4, em que a música esteve habilitada
durante a interação. Sendo assim, é possível concluir que a Música contribuiu para
a elevação do nível de atividade no Lobo Pré-Frontal esquerdo, associada a sensa‐
ções de prazer e excitação (Posner; Russel; Peterson, 2005). Do ponto de vista do
Music Design, a paleta sonora escolhida pelo compositor Kristofer Maddigan e a músi‐
ca com andamento elevado, efeitos caricatos e rítmica constante em Cuphead inseriu
maior dinâmica ao gameplay, contribuindo para maior imersão do jogador.
O experimento demonstrou potencial na detecção do estado imersivo através
de medição de atividade cerebral, podendo embasar processos criativos musicais. No
entanto, é necessário realizar novos testes com um maior número de jogadores de
perfis variados de experiência musical e de interação com games. Além disso, deverão
ser realizados experimentos com diferentes versões de músicas implementadas em
um mesmo jogo e aplicação de questionários de forma semelhante aos experimentos
de distorção temporal citados (Sanders & Cairns, 2010; Zhang & Fu, 2015).

Referências
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19
170 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

SISTEMAS DE BIOFEEDBACK APLICADOS À


TRILHA SONORA DE JOGOS DIGITAIS: UMA
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Luiz Fernando Valente Roveran
Departamento de Música/Instituto de Artes - Universidade Estadual de Campinas, Brasil
roveranluiz@gmail.com

Resumo
A aferição de parâmetros fisiológicos de grupos de voluntários é uma prática corrente no campo da com‐
putação afetiva. No videogame1, a medição de respostas do corpo — tais como variação da frequência car‐
díaca, atividade cerebral e atividade eletrodérmica — serve a pesquisadores como uma ferramenta integrada
à modulação de aspectos do jogo digital, entre eles, seu áudio. Nesse sentido, este trabalho buscou fazer um
levantamento da produção acadêmica voltada para o estudo do uso de biofeedback em jogos digitais. Mais
especificamente, almejou elencar e discutir criticamente os textos produzidos sobre sistemas cíclicos que
sirvam à adaptabilidade em tempo real da trilha sonora de videogame. Para tanto, estabeleceu-se um recorte
temporal de trabalhos publicados entre 2005 e 2020 e, a partir disso, fez-se um backward snowballing com
arcabouço pré-selecionado de publicações sobre o assunto. Posteriormente, adotou-se o forward snowballing
para cobrir o período de tempo entre 2016 e 2020 — não contemplado pela seleção inicial. O resultado
desse processo foi a descoberta de que os trabalhos sobre biofeedback e adaptação de aspectos interativos do
jogo digital superam em grande número aqueles que abordam a adaptabilidade da trilha sonora. Sobre o
pequeno número destes, notou-se que a discussão sobre o biofeedback ligado ao modelo de arousal/valência
enquanto modulador de trilha sonora permanece, eminentemente, no campo teórico, embora alguns tra‐
balhos apontem caminhos para sua vindoura concretude.
Palavras-chave: Trilha sonora, computação afetiva, biofeedback, jogos digitais

Introdução
A intersecção entre os campos da computação afetiva e dos jogos digitais tem, em
sua raiz, uma relação de mútuo benefício. Se o raison d’être da computação afetiva jaz
na tentativa de “dar aos computadores a habilidade de reconhecer, expressar e, em
alguns casos, ‘ter’ emoções” (Picard, 2000, p. 1), o videogame se postula como um
laboratório de enormes potencialidades. Do outro lado da linha, um melhor enten‐
dimento do funcionamento das emoções humanas permite, aos criadores de jogos
digitais, pensar seu meio sob uma nova ótica e se fazer algumas perguntas: as respos‐
tas afetivas podem guiar a elaboração de um jogo digital? A interação jogador-jogo
pode ser modulada a partir de um modelo pautado na psicofisiologia?
Explica-se, afinal, que o surgimento dessa intersecção tenha se dado em um vide‐
ogame que ainda tentava consolidar seu espaço como uma mídia estabelecida na in‐
dústria do entretenimento. Em 1983, a empresa estadunidense Atari desenvolveu um
protótipo de controle de videogame via atividade cerebral, o Atari Mindlink (Nacke
et al., 2011). O dispositivo não chegou a ser comercializado. A versão japonesa de
Tetris 64 (Amtex, 1998) contava com um sensor de frequência cardíaca. Em seu modo
para vários jogadores, o jogo modulava o ritmo do quebra-cabeça de acordo com a
aceleração/desaceleração dos batimentos de cada competidor. Mais recentemente, o
estúdio independente Flying Mollusk lançou Nevermind (2015), um game de horror
para computadores pessoais, cuja arquitetura de fases é modulada pelo movimento
ocular do jogador, captado por webcam, ou por sua frequência cardíaca.
Concomitantemente, o corpus de produções acadêmicas sobre o tema se confi‐
gurou de maneira multidisciplinar. Trabalhos produzidos no início dos anos 2000
buscaram estabelecer um diálogo com a área médica, frutificando em pesquisas que
se valeram do videogame como um meio terapêutico (Bersak et al., 2001; Sharry et
170
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 171

al., 2003). Nos textos mencionados, os parâmetros fisiológicos do jogador eram afe‐
ridos e subsequentemente interpretados pelo sistema de jogo como elementos de
modulação do comportamento dos avatares e do espaço virtual. Assim, para vencer
os desafios propostos pelo game, o jogador devia relaxar para ser contemplado com
vantagens e menor dificuldade.
Nesse sentido, o trabalho de Bersak et al. (ibid) foi o primeiro encontrado por
esta pesquisa a se valer de um sistema de biofeedback para erigir as bases de seu expe‐
rimento. Aqui, apoiamo-nos na definição proposta por Tom Garner, que define o
biofeedback como um sistema circular em que “estímulos influenciam informação
fisiológica e, em troca, a informação fisiológica influencia os estímulos em um loop
contínuo” (Garner, 2013, p. ix). Não é nosso objetivo, aqui, fazer uma revisão dos
métodos de aferição de respostas afetivas usados na contemporaneidade. Contudo,
para melhor compreensão do tema, expomos que a psicofisiologia trabalha tanto
com respostas ligadas ao Sistema Nervoso Central, como a eletroencefalografia2,
quanto com aquelas ligadas ao Sistema Nervoso Autônomo, tais como avariação da
frequência cardíaca e a atividade eletrodérmica3 (Bontchev, 2016).
Posteriormente, outros estudos imergiram no campo da psicologia afetiva com
outros objetivos. Em artigo seminal, Ravaja et al. (2004) estudaram as respostas fisi‐
ológicas e comportamentais de um grupo de voluntários que testou quatro jogos
diferentes. O trabalho abriu portas para uma discussão sobre quais variáveis devem
ser levadas em conta por game designers4 a fim de criar situações potencialmente mais
interessantes e imersivas.5
A coleta de dados fisiológicos durante sessões de jogo tornou-se uma das ferra‐
mentas acessíveis a pesquisadores do campo dos jogos digitais, tendo sido emprega‐
da em trabalhos sobre a experiência do jogo de tiro (Kuikkaniemi et al., 2010), jogos
de azar (Dixon et al. 2007), interface do usuário (Tennent et al., 2011) e, natural‐
mente, a própria viabilidade de sistemas adaptativos de jogo (Tijs et al., 2008). De‐
notar essa pluralidade de pesquisas é essencial para que possamos definir o escopo do
presente texto.
Este trabalho é fruto da pesquisa de doutorado, em andamento, de seu autor —
que encontra no biofeedback uma ferramenta valiosa à sua própria imersão no campo
da computação afetiva. Nosso objetivo, portanto, é elencar os trabalhos produzidos
sobre esse conceito na área dos jogos digitais e, mais especificamente, discutir criti‐
camente aqueles com enfoque na trilha sonora de videogame.
Vale notar, contudo, que percebemos o biofeedback como um dos muitos cami‐
nhos que podem ser tomados para tentar desnublar o campo hipotético da seguinte
pergunta: quais relações concretas podemos estabelecer entre a percepção sonora e
a resposta afetiva do ser humano? É, inclusive, devido a esse fato que um sistema
preciso de modulação em tempo real de trilha sonora ainda pode ser algo discutido
teoricamente. Daí emerge a relevância deste trabalho: buscar compreender quantos
e quais passos foram dados nesse sentido nos permite formar um panorama mais acu‐
rado para enxergar o caminho à frente de forma mais nítida — tanto para apoiarmos
a produção acadêmica contemporânea sobre computação afetiva quanto para susci‐
tar novos pensares acerca da trilha sonora e seu métier.

Método
Em primeiro lugar, adotamos um recorte temporal para a revisão sistemática de lite‐
ratura sobre nosso objeto de estudo: estabelecemos o período entre os anos de 2005 e
2020 como enfoque. A escolha levou em consideração que a documentação de traba‐
171
172 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

lhos pré-2005 já está suficientemente estruturada, assim como cremos que um espaço
de 20 anos de revisão bibliográfica fugiria em demasia do escopo desta publicação.
Em seguida, optamos pelo snowballing como nossa forma de revisão da literatu‐
ra. O snowballing é “uma estratégia de busca em que, partindo de um conjunto ini‐
cial de artigos, visitam-se referências dele (backward snowballing) e para ele (forward
snowballing). Esse processo é repetido até que não existam mais referências a serem
adicionadas” (Campos, 2019).
Nosso arcabouço inicial de trabalhos, matéria-prima do snowballing, foi uma co‐
letânea de três publicações. Embora o número pareça pequeno, notamos que já havia
revisões substanciais de bibliografia na língua inglesa sobre psicologia afetiva e vide‐
ogames, assim como textos de longa extensão e com amplo número de referências.
Desse modo, os textos escolhidos foram:
● Adaptation in Affective Videogames: A Literature Review (Bontchev, 2016);
● Review on Psychophysiological Methods in Game Research (Kivikangas et al.,
2010);
● Game Audio from Behind the Sofa: An Exploration into the Fear Potential of
Sound & Psychophysiological Approaches to Audio-centric, Adaptive Game‐
play (Garner, 2013).
Buscamos atentar à escolha por um trabalho substancial sobre áudio para vide‐
ogames, a fim de trazer nossa especificidade logo nos primeiros passos do desenvol‐
vimento desta pesquisa. Embora os trabalhos de Bontchev (ibid) e Kivikangas et al.
(ibid) alcancem uma ampla gama de referências, ainda ficamos com uma lacuna en‐
tre os anos de 2016 e 2020 a ser preenchida por nossa revisão. Portanto, buscamos
contemplar esse período na fase de forward snowballing.
Sabemos que a adoção de qualquer método deve ser feita de forma crítica e en‐
tendemos que o snowballing devia ser complementado por outro recurso para miti‐
gar o risco de trabalhos relevantes serem ignorados por nossa pesquisa. Dessa forma,
recorremos também à busca por trabalhos sobre videogame afetivo nas plataformas
JSTOR e Google Scholar para enfrentar esse problema em potencial.

Resultados e discussão
Número de publicações encontradas
Embora o trabalho de Bontchev (2016) elenque mais de 100 referências em seu tex‐
to, quando aplicamos nosso recorte temporal e temático, acabamos encontrando 32
publicações que se encaixam no perfil que buscamos. Nesse sentido, acrescentamos
mais 22 trabalhos citados por Kivikangas et al. (ibid) e outros 9 mencionados por
Garner (2013). Na fase de reverse snowballing, portanto, totalizam um número de 63
publicações — entre artigos, teses, dissertações e capítulos de livros.
Na fase de forward snowballing e busca paralela nos repositórios mencionados,
focada nos anos de 2016 a 2020, foram encontrados mais 18 trabalhos sobre video‐
games e afetividade. Somam-se em nossa revisão, enfim, um total de 81 trabalhos
sobre o assunto. Um fato que salta aos olhos imediatamente é que, no período men‐
cionado acima, um número considerável de revisões de literatura em língua inglesa
sobre nosso tópico de interesse foi realizado: dos 18 trabalhos que encontramos,
quatro tinham esse objetivo.
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 173

Afetividade no videogame versus afetividade na trilha de videogame:


proporção entre as temáticas de publicações
Outra informação notável, embora esperada, é a relativamente baixa quantidade de
publicações que tratam, específica ou tangencialmente, da adaptabilidade da trilha
sonora de videogame no contexto da computação afetiva. Dos 81 trabalhos contem‐
plados por nossa coletânea, 15 abordam a questão do áudio — somando 18,5% do
volume total. Vale notar, também, que algumas dessas publicações são desdobra‐
mentos ou passos de trabalhos mais extensos, algumas, inclusive, replicadas ipsis lit‐
teris como artigos independentes.
Majoritariamente, os trabalhos coletados aqui têm seu enfoque na adaptabilida‐
de da experiência do jogador em relação ao espaço virtual. Algumas dessas publica‐
ções tinham como elemento norteador a regulação dos níveis de dificuldade do
game (Liu et al., 2009). Outros incluem relatos de experiência na construção de jo‐
gos comerciais que se valem da resposta afetiva como elemento de mudanças no
estado de jogo (Lobel, 2016).
Percebe-se, também, o alcance do trabalho de Ravaja et al. (2004), pioneiro na
proposta de um modelo de aferição da fisiologia do jogador: foram encontradas pu‐
blicações posteriores que propõem métodos e sistemas para o desenvolvimento de
jogos adaptados afetivamente (Tijs, 2008). No mesmo sentido, estudos comparativos
de experiência do jogador abundam. Kuikkaniemi et al. (2010) conduziram um ex‐
perimento para comparar a influência de biofeedback direto e indireto em uma sessão
de jogo de tiro em primeira pessoa6. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que
o biofeedback indireto, quando o jogador não tem total consciência de sua existência,
pouco influencia o jogador. Em contraste, o biofeedback direto, que “tem o propósito
de tornar os sujeitos mais cientes de seus processos corporais ao dispor informações
sobre os mesmos de forma clara e perceptível” (Kuikkaniemi et al., 2010, p. 860),
apresentou influência maior nas tomadas de decisão e fluir das partidas. Outra con‐
tribuição importante que o texto traz é que seus dados apontam para a possibilidade
de os jogadores controlarem de forma consciente sua própria atividade eletrodérmi‐
ca — um dos parâmetros fisiológicos ligados ao nível de arousal do ser humano. Esses
achados são posteriormente respaldados por Nacke et al. (2011), que publicam, um
ano depois, um estudo comparativo sobre o uso de biofeedback direto e indireto no
controle do jogador. Em seu experimento, os pesquisadores desenvolveram um jogo
de tiro em 2D, em que controles, tanto voluntários quanto involuntários, alteravam
parâmetros do game, tais como a altura e velocidade do pulo do avatar, o alcance da
rajada de fogo de uma arma e o tamanho de seus alvos. Os autores argumentam que,
nas entrevistas concedidas pelos participantes do experimento, a sensação de contro‐
le sobre os parâmetros do jogo se perdia naqueles que eram controlados por dispo‐
sitivos acionados involuntariamente. Por outro lado, aqueles cuja resposta era mais
perceptível obtiveram respaldo positivo dos jogadores: tais como a medição da fre‐
quência respiratória e a movimentação dos músculos da perna — medida por meio
de eletromiografia.7 Algumas dificuldades notadas incluem a ativação simultânea de
dois parâmetros correlatos, no caso, a frequência cardíaca e a eletromiografia na re‐
gião da perna. Talvez devido a isso, além da posição consolidada dos controles tra‐
dicionais, os autores do artigo sugiram que o biofeedback direto sirva a um aumento
das capacidades dos controles já existentes. Ao mesmo tempo, defendem que o bio‐
feedback encontre maior utilidade na adaptação do plano dramático do jogo digital
— modulando aspectos audiovisuais.
174 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Resposta afetiva e trilha sonora nos videogames:


revisão crítica da literatura existente
Elencamos, na tabela 1, os 15 trabalhos que dispõem considerações sobre a adapta‐
bilidade da trilha sonora de videogame, assim como suas respectivas naturezas, pla‐
taformas usadas para experimento e parâmetros fisiológicos aferidos:

Tabela 1
Trabalhos angariados pela revisão sobre resposta afetiva e trilha sonora de videogames.

O primeiro ponto a ser destacado sobre nosso levantamento é que, afinal, opta‐
mos pela inclusão de trabalhos não focados, especificamente, sobre biofeedback. Um
fato levantado por diversos textos consultados é que o desenvolvimento de um sis‐
tema de trilha sonora adaptável à resposta afetiva do jogador é, por ora, uma hipóte‐
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 175

se. O fator crucial acerca disso é a carência de um modelo computacional de inter‐


pretação de dados suficientemente assertivo. Discute-se, também, o papel do som
nas variações de respostas afetivas do ouvinte. Logo, uma forma precisa de avaliação
ainda é um objetivo a ser alcançado. Grimshaw-Aagaard (2020) afirma:
O uso de dispositivos de encefalografia para gerar biofeedback em jogos
de computador ainda está em sua infância. Em parte, isso se deve ao fato
de que uma forma de interpretar dados oriundos da encefalografia ainda
está em desenvolvimento, assim como ainda se pensa em como usar esses
dados de forma significativa. (Grimshaw-Aagaard, 2020, p. 91)

Em sua própria revisão de literatura, Mitchell corrobora o argumento:


Enquanto se revisa o expansivo corpus de literatura científica disponível
atualmente, logo se torna aparente que ainda há muito que não com‐
preendemos acerca da complexa interação entre respostas fisiológicas e
emocionais, tais como o medo, especialmente dentro do contexto da
vida cotidiana. (Mitchell, 2015, p.38)

Um ano depois, Garner (2016, p. 210) reforçou essa ideia ao afirmar que “à data
de redação, esse tipo de tecnologia [biometria aplicada à experiência do jogador] (...)
continua sendo, eminentemente, uma área de pesquisa e desenvolvimento ao invés
de uma tecnologia comercialmente viável”.
Os trabalhos de natureza empírica encontrados sobre o assunto também con‐
vergem para esse lugar comum. A tese de doutorado de Tom Garner (2013), pionei‐
ra na tentativa de criar um sistema de biofeedback para trilha sonora de jogos de hor‐
ror, não estabeleceu conclusões assertivas sobre a influência dos parâmetros do som
na intensidade do medo percebido pelo jogador.
A questão acerca da precisão da interpretação de dados objetivos explica também
o alto número de trabalhos de natureza teórica sobre o assunto. As publicações de
Ekman (2008; 2009), Weinel et al. (2014), Mitchell (2015) e Grimshaw-Aargaard
(2020) trazem consigo reflexões e propostas de modelos interpretativos. Mesmo as
pesquisas experimentais, como o supracitado trabalho de Garner (2013), tratam do
assunto sob a ótica de uma prova de conceito e apontam caminhos com potencial para
render bons frutos. Concomitantemente, os modelos de descrição de resposta emoci‐
onal se mostraram ferramentas valiosas para outras formas de se pensar a trilha afetiva.
O trabalho de Williams (2018a) é focado no desenvolvimento de um algoritmo de
composição musical baseado no modelo circumplexo elaborado por Russell (1980).
Williams (ibid) propõe um modelo de composição algorítmica para games ba‐
seado em afeto — que o autor chama de AAC (Affectively-Driven Algorithmic Com‐
position10), onde todas as passagens das situações dramáticas do jogo digital são cate‐
gorizadas dentro do modelo circumplexo. Ao fazer a leitura dos gatilhos presentes
na programação do game, o algoritmo adapta a trilha. O algoritmo foi aplicado ao
game World of Warcraft (Blizzard, 2004) e testado por voluntários familiarizados com
o jogo — que também desfrutaram do game original no experimento. Segundo o
texto, embora a trilha algorítmica seja executada por um piano sintetizado, os joga‐
dores, em entrevista, afirmaram sentir que essa música se adaptava melhor à emoção
do plano dramático do que a trilha original.
Esse tipo de experimento, por mais animador que seu resultado seja, deve ser
abordado com cautela. O modelo circumplexo, assim como seus derivados, pode
nos prover com uma ferramenta poderosa para descrever as respostas humanas de
afetividade. Contudo, ele não pode ser encarado como um fim em si mesmo. A
elaboração de um modelo de trilha afetiva deve partir, afinal, da resposta afetiva de
quem usufrui daquela determinada experiência.
176 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Em experimento complementar, Williams (2018b) propõe um modelo de com‐


posição musical baseado no monitoramento da atividade cerebral com vistas ao diá‐
logo com o AAC para induzir respostas afetivas no ouvinte. Aqui, o autor reitera as
dificuldades já mencionadas nesta seção:
A pesquisa sobre música cerebral computadorizada (BCMI) envolve três
maiores desafios: a extração de informações de controle significativas dos
sinais emanados pelo cérebro, o desenho de técnicas musicais que respon‐
dam a estas informações, e a definição de caminhos em que essa tecnolo‐
gia seja colocada à disposição de forma efetiva. (Williams, 2018b, p. 52)

A adoção de tal método, aliado a um algoritmo de composição musical, pode


render bons frutos no futuro. Por ora, os resultados encontrados pelo autor refletem
os desafios persistentes na área:
A avaliação do sistema descrito acima mostrou que esta abordagem do
AAC foi capaz de gerar uma gama completa de respostas emocionais
induzidas... Entretanto, muitas das respostas individuais exibiram varia‐
ção significativa em relação à média. A natureza da resposta emocional
do indivíduo à música sugere que um sistema generalizado, em especial
um com vistas ao uso terapêutico, obterá um resultado abaixo do ideal.
Uma solução a longo prazo para tanto inclui treinar algoritmos de inte‐
ligência artificial que aprendam a manipular os parâmetros musicais
contribuintes ao mapeamento da afetividade — em resposta às medidas
biofisiológicas. (Williams, 2018b, p. 57)

Um ponto importante levantado pelo texto de Williams (ibid) é a interdiscipli‐


naridade dessas tecnologias com a área médica. Nesse sentido, Headlee et al. (2010)
desenvolveram uma interface de geração de paisagens sonoras a partir de três parâ‐
metros fisiológicos monitorados: frequência cardíaca, respiração e um sensor de de‐
formação acoplado aos dedos e joelho do usuário. Dessa forma, a modulação do am‐
biente é feita tanto pelos movimentos do usuário quanto por suas funções vitais. As
pesquisadoras descrevem dificuldades na manipulação dos instrumentos por parte
dos jogadores, mas apontam para a potencialidade do uso de um sistema como tal
para fins terapêuticos, ou mesmo como um sistema de música generativa.
Sobre os métodos adotados pelas pesquisas de natureza empírica, reforça-se a
importância da análise cruzada de dados coletados de forma quantitativa e qualitati‐
va. Em revisão sobre métodos de aferição psicofisiológica, Garner (2013) aponta
para os prós e contras de parâmetros associados ao sistema nervoso central e periféri‐
co — incluindo imprecisões em potencial. Por exemplo, a atividade eletrodérmica é
condicionada pela sudorese do indivíduo, logo, isso pode ser devido tanto à variação
de arousal quanto à regulação térmica e movimentação do indivíduo. Faz-se mister,
assim, que outras formas de coleta de dados sejam associadas à pesquisa quantitativa
para que um retrato mais fidedigno seja constituído. Nesse sentido, o trabalho de
Nacke et al. (2010) traz um resultado interessante: enquanto os dados de eletromio‐
grafia facial e atividade eletrodérmica não apontam para relações estabelecidas entre
a música de games e as respostas afetivas, o mesmo não pode ser dito acerca da coleta
de dados qualitativa, feita por meio de um questionário chamado GEQ (Game Ex‐
perience Questionnaire11). Mais importante, a análise cruzada de todos esses dados foi
vista como algo “com muito potencial” (Nacke et al., p. 7) pelos pesquisadores.

Conclusão
Embora o número de trabalhos sobre a afetividade no áudio para games seja relativa‐
mente baixo quando comparado à totalidade do arcabouço levantado aqui, é possível
notar um crescente interesse pelo tópico. A partir disso, pensamos que a maior poten‐
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 177

cialidade desse tipo de pesquisa jaz na sua interdisciplinaridade. Como já ressaltamos


ao longo do texto, o videogame pode prover a computação afetiva com um labora‐
tório interessantíssimo para estudo da escuta ecológica e da percepção multimodal.
Sobre o emprego do biofeedback nessa área, pensamos que o mesmo não pode
ser visto como um fim em si mesmo, mas como uma ferramenta para testar hipóteses
acerca da própria natureza da escuta. Por ora, os esforços no campo de estudo dos
jogos digitais e afetividade se concentram em questões similares àquelas do grande
campo da computação afetiva: precisamos entender mais sobre como reagimos aos
estímulos para, então, pensarmos em modelos viáveis de retroalimentação afetiva nas
mídias. Vale ressaltar, também, a importância de se pensar a percepção sonora como
um fenômeno multimodal, influenciado por todo o contexto em que o ouvinte se
insere — o mesmo vale para a escuta no espaço virtual.

Notas
1 Embora seja um termo de língua estrangeira, optamos pela grafia da palavra sem itálico
tanto por seu uso constante ao longo do texto quanto pela internalização do termo na
sociedade urbana brasileira. Nesse sentido, também utilizaremos os sinônimos “game” e
“jogo de computador”.
2 Monitoramento da atividade elétrica do cérebro.
3 Medição da atividade das glândulas sudoríparas, também mencionada em outros trabalhos
como condutância galvânica da pele.
4 Profissional responsável pelo desenvolvimento do sistema de regras que irá nortear um
jogo.
5 Aqui, frisamos, não entendemos a imersão como algo quantificável, mas enquanto ato
voluntário de suspensão da descrença a fim de se usufruir de uma experiência fantástica de
qualquer natureza. (Murray, 2003) e que proporciona um novo tipo de vivência. Não
como anti-realidade, mas como realidade expandida por sensações que não podem ser
obtidas no mundo real (Gasi, 2016).
6 Gênero de jogo digital em que o combate se dá por meio de armas de fogo e a câmera é
posicionada nos olhos do avatar.
7 Método de monitoramento da atividade elétrica de um determinado músculo.
8 Relacionado com o trabalho de número 11, daí sua inclusão na lista.
9 Mesmo pesquisador mencionado nos números 3 e 9.
10 Em tradução nossa, Composição Algorítmica Orientada por Afetividade.
11 Em tradução nossa, Questionário da Experiência do Jogador.

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180
20
Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

PROCESSOS CRIATIVOS DA COMPOSIÇÃO


ETERNAL CHASE: A APLICAÇÃO DE
CONCEITOS DE COGNIÇÃO MUSICAL
INCORPORADA NO SCRIPT PARA O FILME
‘PLAYBACK’
Tharcísio Vaz C. de Moraes
Escola de Música - Universidade Federal da Bahia, Brasil
tharcisiovaz@gmail.com

Resumo
Este artigo trata dos processos criativos da composição para quarteto de cordas Eternal Chase, criada para a
cena de abertura do script para o filme Playback, escrito por Raymond Chandler em 1958, que conta a estória
de um caso investigado pelo detetive Philip Marlowe, em que a jovem Betty Mayfield foge após ser acusada
de assassinar seu rico marido. A composição foi submetida ao concurso Young Talent Media Music Award,
realizado em 2019 na Alemanha. Considerando a ausência de imagens, foram adotadas estratégias criativas
através da aplicação de conceitos relacionados ao sentido musical e à cognição incorporada extraı́dos do
artigo “A cognitive theory of musical meaning” de Candace Brower, a exemplo dos Esquemas de Imagens e
mapeamento, para construir musicalmente a ideia de constante fuga de Betty Mayfield. Neste artigo são
apresentados esboços musicais e anotações, incluindo mapas temporais e motivos musicais dos personagens,
relacionando ao script do filme. Os processos criativos aplicados contribuı́ram para uma maior articulação
dos gestos musicais com a narrativa do script, que resultaram em feedbacks positivos dos jurados no concurso
Y.T.M.M.A. e premiação como 2º colocado. A presente experiência demonstrou o potencial da aplicação de
conceitos de cognição incorporada no contexto da composição musical para audiovisual, articulando com
a narrativa do script e podendo se explorar em outros contextos e mı́dias, a exemplo dos jogos digitais. Neste
caso, podendo relacionar também à narrativa do jogo e, possivelmente a elementos de interação no cenário
e ações do jogador.
Palavras-chave: Processos criativos, música para cinema, cognição musical, cognição incorporada, esque‐
mas de imagens

Introdução
Este trabalho é resultado da busca por novos processos criativos em minha prática
diária como compositor de trilhas sonoras para cinema e games, através de experi‐
mentações e reflexões no campo da cognição musical, representando a continuação
de minha pesquisa de Mestrado (Moraes, 2017), em que discursei sobre os Processos
Criativos no Audiogame Breu, um jogo eletrônico sem interface visual. A composi‐
ção Eternal Chase, cujos processos criativos são descritos neste artigo, pode ser escu‐
tada em versão de vídeo-partitura através do link: https://www.youtube.com/wat‐
ch?v=QPrejS29ZSc.

Sobre a composição e o script do filme


Eternal Chase é uma composição para quarteto de cordas criada para a cena de aber‐
tura do script para o filme Playback, escrito por Raymond Chandler em 1958, que con‐
ta a estória de um caso investigado pelo detetive Philip Marlowe, em que a jovem
Betty Mayfield foge após ser acusada de assassinar seu rico marido. Mesmo tendo sido
absolvida no tribunal, Betty se vê perseguida por uma série de detetives particulares
contratados pela família de seu falecido marido, com o objetivo de encontrar pistas
que possam incriminá-la. Devido às constantes perseguições de detetives e reprova‐
ções por parte de amigos e admiradores de seu marido, Betty decide fugir do país.
Na cena de abertura do script, Betty Mayfield embarca num trem com esse objetivo
180
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 181

e se vê preocupada com o agente da alfândega pedindo os passaportes dos passagei‐


ros presentes no vagão.
A composição fez parte do concurso Young Talent Media Music Award, no âm‐
bito do evento Media Music Hamburg realizado em 2019 na cidade de Hamburgo,
na Alemanha. O concurso prestou homenagem ao roteirista Raymond Chandler, um
bem-sucedido roteirista americano que teve Playback como seu único roteiro não
produzido em filme. Considerando a prática comum de se compor música sincroni‐
zada à imagem (geralmente em um corte ou edição final) no contexto de criação de
trilhas sonoras para audiovisual, a ausência de imagem fez com que o script fosse o
único referencial narrativo. Sendo assim, busquei referências no campo da cognição
musical incorporada que pudessem sugerir novas formas de expressar através da
música alguns elementos do script. A seguir, são apresentados os principais referen‐
cias teóricos que guiaram os processos criativos da composição Eternal Chase.

Sobre os referenciais teóricos


Cognição Incorporada
A ciência cognitiva é um amplo e multidisciplinar campo do conhecimento, com
inúmeras ramificações, dedicado ao estudo da mente (Varela et al., 1993). Uma des‐
tas ramificações se refere a Cognição Incorporada, que defende que “o conhecimen‐
to depende do estar em um mundo inseparável de nossos corpos, nossa linguagem,
e nossa história social – em resumo, de nossa incorporação” (p. 149). Ou seja, o “co‐
nhecimento emerge de nossas capacidades de compreensão”, que “estão enraizadas
nas estruturas de nosso incorporamento biológico, mas são vividos e experimenta‐
dos num domínio de ação consensual e histórico cultural” (p. 149).
Em seu artigo A cognitive theory of musical meaning, a pesquisadora Candace
Brower (2000) afirma que o “pensamento consiste, pelo menos em parte, no mape‐
amento de padrões de pensamento a padrões de experiência” (p. 323). O filósofo
Mark Johnson (1987) sustenta a ideia de que nosso pensamento em boa parte é me‐
tafórico e envolve o mapeamento de padrões de um domínio da experiência humana
para outro. Os padrões descritos por Johnson derivam da experiência de nossos cor‐
pos. O autor cita como exemplo que, desde quando crianças em nossas primeiras
tentativas em alcançar um objeto, nós aprendemos em nossas ações guiadas a metas,
sobre fenômenos de causa e efeito, movimento, força, energia e equilíbrio (Johnson,
1987). Este processo de aprendizado guiado por padrões é denominado por Johnson
como Esquemas de Imagem, que nos ajudam a compreender nossas experiências em
domínios mais abstratos e variados como a arte, emoção, interação social e mate‐
mática. Por exemplo, o esquema de Equilíbrio, que aprendemos através do equilí‐
brio de nossos corpos, nos ajuda a compreender as noções de equilíbrio visual, emo‐
cional e equilíbrio de uma equação (Johnson, 1987). A seguir, são apresentadas
relações entre os esquemas de imagem e o campo da Música.

Esquemas de Imagens e Significado Musical


Os “esquemas de imagem incorporados – especialmente aqueles que envolvem força
e movimento – também parecem constituir a base de nossa compreensão sobre
música” (Brower, 2000, p. 324). Segundo a autora, o sentido musical pode surgir
através de padrões que ouvimos em uma peça musical, podendo ser mapeados em
três diferentes tipos de padrões armazenados (Figura 1): 1) Padrões intra-opus:
padrões mapeados na própria obra; 2) Esquemas musicais: padrões abstraídos de

181
182 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

convenções musicais; 3) Esquemas de imagens: padrões abstraídos através de


experiência incorporada.

Figura 1
Mapeamento de Padrões Musicais (Brower, 2000).

Os Processos Criativos da composição Eternal Chase envolveram a utilização de


padrões intra-opus, por exemplo através da alternância de diferentes fórmulas de
compasso com o intuito de gerar no ouvinte sensações de instabilidade e estabilida‐
de. No entanto, este artigo irá focar em descrever a exploração do terceiro tipo de
padrão acima mencionado, os esquemas de imagem (Johnson, 1987). Estes, que
“emprestam coerência para a nossa experiência incorporada são metaforicamente
refletidos em padrões convencionais de melodia, harmonia, estruturas de frase e for‐
ma” (Brower, 2000, p. 325). As afirmações sucessivas de um padrão podem ser inter‐
pretadas como uma sequência de ações que compõem uma narrativa, que podem
revelar significados metafóricos de uma obra musical (Brower, 2000). Partindo deste
conceito, a seguir apresento alguns esquemas de imagem, sua relação com a narra‐
tiva do script Playback e a aplicação na composição Eternal Chase.

Esquemas de imagem utilizados na composição Eternal Chase


Esquema de Contenção
O Esquema de Contenção está relacionado à concepção de espaço, em que uma
fronteira ou divisa delimita duas regiões: interna e externa (Figura 2). Dito isso, suas
propriedades físicas podem inferir alguns pontos (Brower, 2000): 1) um objeto pode
estar situado dentro ou fora da zona de contenção; 2) o movimento de dentro ou
fora da área de contenção é limitado por sua divisa; 3) as fronteiras da área de
contenção podem ser fixas ou flexíveis; 4) uma fronteira flexível pode se expandir
ou contrair em resposta a mudanças de pressão interna ou externa.
Em Eternal Chase, o Esquema de Contenção pode ser relacionado ao sentimen‐
to de angústia de Betty Mayfield por estar sendo observada e perseguida por detetives
particulares que desejam incriminá-la, e seu desejo de viver em paz tranquilamente.
O Esquema de Contenção foi combinado ao Esquema de Origem-Trajetória-Meta,
exemplificado a seguir.
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 183

Figura 2
Esquema de Contenção (Brower, 2000).

Esquema de Origem-Trajetória-Meta
O Esquema de Origem-Trajetória-Meta (Figura 3) refere-se à nossa experiência de
movimento. Sobre este esquema, Brower (2000) enfatiza alguns pontos importan‐
tes: 1) o movimento é feito por um agente que deseja se movimentar; 2) o ponto
final pode não coincidir com a meta inicial; 3) o movimento pode ou não seguir o
caminho rumo à meta; 4) outras forças como a gravidade ou inércia podem inibir,
bloquear ou desviar o movimento rumo à meta; 5) o bloqueio produzido por outras
forças pode ser superado por ação repetitiva que aumenta a propulsão ou através de
caminhos alternativos de movimento; 6) o caminho à meta tende a vir acompanhada
por um aumento de tensão, e a chegada à meta, por um relaxamento, diminuição ou
interrupção do movimento.
Figura 3
Esquema de Origem-Trajeto-Meta (Brower, 2000).

Segundo Brower (2000) o Esquema de Origem-Trajetória-Meta também pode


ser relacionado ao parâmetro ritmo, conforme explica:
Distribuindo 12a música ao longo de um eixo temporal, nós podemos
ver como o ritmo também contribui para a nossa experiência da música
como movimento direcionado a um objetivo através de nosso mapea‐
mento de mudanças na duração para o movimento de início, parada,
aceleração e desaceleração. (Brower, 2000, p. 351)

Na composição Eternal Chase, o Esquema de Origem-Trajetória-Meta é mape‐


ado ritmicamente por uma série de colcheias tocadas continuamente (Figura 4) em
andamento relativamente acelerado, com o intuito de gerar no ouvinte uma sensa‐
ção de movimento constante, relacionando-se com a fuga de Betty Mayfield de seus
problemas, acusações e angústia causada pelo constante sentimento de estar sendo
perseguida e observada a todo momento. Além disso, as mudanças de compasso e
184 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

uma série de acentos rítmicos em contratempos, em diferentes instrumentos tocados


consecutivamente e alternadamente, têm a intenção de gerar uma sensação de ins‐
tabilidade no ouvinte, relacionada com a apreensão de Betty na cena de abertura, por
não ter certeza se conseguirá embarcar no trem para fugir do país, e por conta das
tentativas do detetive Marlowe em extrair a “verdade” através de uma série de con‐
frontamentos e interrogatórios. O Movimento constante, a tensão e instabilidade
são interrompidos momentaneamente no compasso 102 (Figura 5), em que notas
longas inicialmente com muito vibrato diminuem sua intensidade, relacionando-se
com o desejo de Betty de viver em paz.

Figura 4
Movimento constante em colcheias (Moraes, 2019).

Figura 5
Interrupção do movimento constante (Moraes, 2019).
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 185

Esta interrupção do movimento constante pode ser interpretada como uma


combinação dos Esquemas de Contenção, mencionado anteriormente, e Origem-
Trajetória-Meta (Figura 6) de forma que a persistência do movimento barrado no
limite de contenção nas tentativas anteriores de “fuga”, eventualmente permite sua
ruptura (Brower, 2000).

Figura 6
Tentativas de fuga em um recipiente (Brower, 2000).

Esquema de Centro-Verticalidade-Equilíbrio
O Esquema de Centro-Verticalidade-Equilíbrio (Figura 7) reflete a forma com que a
gravidade atua em nosso corpo, fazendo com que nos mantenhamos eretos em posi‐
ção equilibrada em relação ao solo (Brower, 2000). A força da gravidade faz com que
percebamos o chão como um ponto de origem e equilíbrio, especialmente quando
distribuímos igualmente o peso em torno do eixo vertical, deixando o corpo alinhado
ao centro e estável. Qualquer mudança que provoque deslocamento do eixo faz com
que o corpo naturalmente busque se ajustar para restaurar seu ponto de equilíbrio.

Figura 7
Esquema de Centro-Verticalidade-Equilíbrio (Brower, 2000).

O Esquema de Centro-Verticalidade-Equilíbrio foi aplicado na composição


Eternal Chase nos materiais de alturas, de modo que os dois temas musicais criados
para os personagens principais da trama, sendo um para a Betty Mayfield (Figura 8)
e outro para o detetive Marlowe (Figura 9), estabelecem um diálogo musical cons‐
tante de forma semelhante a um cânone. E, neste diálogo, o tema de Betty se relaci‐
ona musicalmente com sua necessidade de viver em paz através das tentativas de
estabilização do material melódico na nota Sol (um centro tonal, gravitacional ou
ponto de equilíbrio), por meio de uma resolução melódica descendente, uma vez
que “uma nota melódica instável geralmente resolve de forma descendente e/ou para
sua nota vizinha mais estável” (Brower, 200, p. 333). No entanto, sua tentativa de
equilíbrio é sabotada por uma série de cromatismos, grandes saltos melódicos de até
186 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

duas oitavas e contratempos, que sugerem o desequilíbrio e insegurança da persona‐


gem, somado ao tema do Detetive Marlowe que busca “tirar o foco” do centro tonal
(nota Sol).

Figura 8
Tema da personagem Betty Mayfield (Moraes, 2019).

Figura 9
Tema do personagem Detetive Philip Marlowe (Moraes, 2019).

Apresentação de esboços e mapas temporais


Considerando os esquemas de imagem apresentados e empregados na composição
Eternal Chase, foi realizado no início do processo criativo, durante etapa de
planejamento dos elementos a serem explorados na obra, um “Mapa Temporal de
Forças” atuantes na peça (Figura 10). Este mapa teve como intuito selecionar os
esquemas que seriam aplicados em diferentes segmentos da composição, marcados
em duração aproximada em segundos.

Figura 10
Mapa Temporal de Forças atuantes (Moraes, 2019).

Foi gerado também um esboço do planejamento da composição como um todo


(Figura 11), elencando os conceitos, esquemas de imagem e possíveis motivos
rítmicos e melódicos a serem aplicados na obra.

Resultados e conclusões
A composição Eternal Chase demonstrou potencial na aplicação de conceitos de
Cognição Incorporada e sentido cognitivo em música no contexto da composição
para cinema, através da articulação com a narrativa do script Playback. A composição
obteve feedbacks positivos dos jurados do concurso Young Talent Media Music Award
2019, tendo sido premiada em 2º lugar. Por também se tratar de uma mídia audio‐
visual, os esquemas de imagem (Johnson, 1987) deverão ser aplicados no contexto
de criação musical para jogos eletrônicos em estudos futuros. Neste caso, estabele‐
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 187

cendo relação com a narrativa do jogo e, possivelmente com elementos de interação


no cenário e ações do jogador.

Figura 11
Esboço do Planejamento da Composição Eternal Chase (Moraes, 2019).

Referências
Brower, C. (2000). A Cognitive Theory of Musical Meaning. Journal of Music Theory, 44,
323–379. Durham: Duke University Press.
Johnson, M. (1987). The Body in the Mind: The Bodily Basis of Meaning, Imagination, and
Reason (1st ed.). Chicago: University of Chicago Press.
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Moraes, T. (2019). Eternal Chase [Partitura]. Salvador (13 p.). Quarteto de cordas.
Varela, Thompson, & Rosch (1993). The embodied mind: Cognitive science and human
experience (1st ed.). Massachusetts Institute of Technology.
21
188 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

PROCESSO DE APRENDIZAGEM MUSICAL


NO CANTO CORAL COM A APLICAÇÃO DE
TECNOLOGIA DIGITAL
Sandra Regina Cielavin¹, Adriana N. A. Mendes²
¹²Departamento de Música - Universidade Estadual de Campinas, Brasil
¹cielavsandra@gmail.com, ¹aamend65@gmail.com

Resumo
O canto coral é uma prática coletiva que pode ser desenvolvida com integrantes de diferentes faixas etárias,
bem como ser um espaço de aprendizagem de diversos conceitos musicais. Indivíduos adultos que partici‐
pam de coros não profissionais podem apresentar dificuldades de afinação, ritmo, leitura de partitura, entre
outras. Este trabalho é resultado de uma pesquisa concluída que teve por objetivo explorar tecnologias di‐
gitais e propor uma aplicação prática em um coro de adultos do ponto de vista do desenvolvimento da
percepção, produção, aprendizagem e memória musical dos integrantes. A metodologia consistiu em um
estudo de métodos mistos, por meio de uma pesquisa-ação com 18 participantes de um coro de adultos,
durante 3 meses. As atividades foram aplicadas nos ambientes presencial e virtual semanalmente. A funda‐
mentação teórica considerou o uso de tecnologias digitais com base no modelo do Conhecimento Tecno‐
lógico Pedagógico e de Conteúdo (TPACK). Os resultados demonstraram que as gravações enviadas pelos
integrantes à regente revelaram um interessante material para análise e avaliação da produção sonora do
grupo, bem como possibilitaram o diálogo em relação aos elementos que poderiam ser aperfeiçoados. O
questionário final demonstrou que o incentivo à prática de diferentes tarefas oferecidas aos integrantes du‐
rante a semana contribuiu com o aumento da frequência diária das atividades relacionadas à escuta musical
e produção vocal. Conclui-se que o contato com a música, proposto de forma organizada e contínua aos
integrantes com o uso de tecnologias digitais, contribuiu com a aprendizagem do coro nos aspectos de
produção vocal, percepção e memória musical.
Palavras-chave: Percepção musical, canto coral, aprendizagem, tecnologia digital

Introdução
O canto coral é uma prática coletiva que pode ser desenvolvida com integrantes de
diferentes faixas etárias, bem como ser um espaço de aprendizagem de diversos con‐
ceitos musicais. Indivíduos adultos que participam de coros amadores podem apre‐
sentar dificuldades de afinação, ritmo, leitura de partitura, entre outras. A prática
coral permite que os integrantes desenvolvam suas habilidades musicais dentro de
um grupo e esse fato pode contribuir com a integração dos processos de apreciação,
criação e do fazer musical que são essenciais para que a aprendizagem ocorra de ma‐
neira global e consistente. Um fato que emerge na sociedade contemporânea está
relacionado à utilização da tecnologia digital de forma criativa no intuito de auxiliar
o regente no desenvolvimento do canto coral de adultos, considerando os diversos
temas relacionados ao grupo. Este trabalho é resultado de uma pesquisa concluída
que teve por objetivo investigar e fazer um levantamento de tecnologias digitais que
sirvam de suporte ao regente, contribuindo com sua formação, e propor uma apli‐
cação prática em um coro de adultos do ponto de vista do desenvolvimento da per‐
cepção, produção, aprendizagem e memória musical dos integrantes.

Método
Participantes
A metodologia consistiu em um estudo de métodos mistos, por meio de uma pes‐
quisa-ação com 18 participantes do coro adulto da Faculdade de Tecnologia de Ita‐
petininga, durante 3 meses. O coro é formado por alunos, ex-alunos e membros da

188
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 189

comunidade. Dos 18 integrantes que participaram da pesquisa, 14 são mulheres e 4


são homens. As atividades foram aplicadas de forma presencial e virtual semanal‐
mente. Todas as atividades propostas foram integradas no ambiente virtual de
aprendizagem Google Classroom e tiveram o intuito de propor a continuidade dos
estudos musicais durante a semana para os coristas. Os dados foram coletados por
meio de diário de campo, de tarefas desenvolvidas pelos participantes, que envolve‐
ram atividades de apreciação, de gravação de canções e de estudo do repertório atra‐
vés de programas como o editor de áudio Audacity, o editor de partituras MuseScore,
o programa de percepção musical GNU Solfege e a plataforma de compartilhamento
de vídeos, YouTube. No início das atividades que envolveram as tecnologias digitais,
os integrantes receberam um treinamento no laboratório de informática de forma
que pudessem estar familiarizados com o uso dos programas. Além das atividades
propostas, foi realizada a aplicação de um questionário em dois momentos: no início
e no final da coleta de dados. É interessante mencionar que o estudo foi desenvolvi‐
do antes do evento da pandemia da Covid-19 que enfrentamos no ano de 2020.
A fundamentação teórica considerou o uso de tecnologias digitais com base no
modelo do Conhecimento Tecnológico Pedagógico e de Conteúdo (TPACK),
proposto por Mishra e Koehler (2006) e que tem sido utilizado na educação musical
conforme apontado por Bauer e Mito (2017), Mroziak (2017). O modelo TPACK
deriva dos estudos de Shulman (1987) sobre as conexões entre o Conteúdo e a Pe‐
dagogia. A Tecnologia foi adicionada pelos pesquisadores Mishra e Koehler (2006).
No que se refere ao modelo TPACK, foram articulados, neste trabalho, aspectos que
envolvem o Conhecimento Tecnológico do Conteúdo e o Conhecimento Pedagó‐
gico Tecnológico. O ConhecimentoTecnológico do Conteúdo trata de experi‐
mentar diferentes formas de aplicar um conteúdo estudado com o uso de tecnologias
digitais mais adequadas para o aprendizado, reaproveitando recursos tecnológicos
que não foram desenvolvidos para fins educacionais, mas que poderiam ser persona‐
lizados para atingir objetivos pedagógicos.

Aplicação das tecnologias digitais no coro adulto


Em coros não profissionais que podem ser encontrados em locais, tais como: igrejas,
empresas, escolas, associações, entre outros, e cujo objetivo é propiciar a participa‐
ção de todas as pessoas, não há seleção de vozes e, portanto, a presença de alguns
indivíduos desafinados ou com dificuldades rítmicas é recorrente. A ato de cantar
individualmente ou em grupo deveria ser uma atividade executada naturalmente
por pessoas adultas, no entanto, por diferentes razões, isto nem sempre é verificado.
Diversos elementos estão envolvidos na produção musical dos participantes de
um coro. Sobreira (2003, p. 69) indica que problemas respiratórios, tensões muscu‐
lares ou o uso inadequado do registro vocal podem prejudicar a emissão vocal. Para
que a produção vocal ocorra de maneira satisfatória, existem questões ligadas à per‐
cepção e aos processos cognitivos. Sloboda (2008, p. 5) aponta que “a maneira como
as pessoas representam a música para si mesmas determina a maneira como a lem‐
bram e a executam. A composição e a improvisação requerem que sejam geradas
essas representações, e a percepção depende de um ouvinte que a constrói.”
As emoções são outro ponto crucial no fazer musical. Sloboda (2008, p. 3) afir‐
ma que muitos indivíduos participam de atividades musicais porque a música des‐
perta “emoções profundas e significativas”. Uma das perguntas referentes ao questi‐
onário aplicado na pesquisa buscou compreender quais eram as motivações dos
integrantes para participarem do coral. Em primeiro lugar, sugiram respostas que
189
190 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

envolviam questões emocionais, tais como: “a atividade me faz bem”, “me faz feliz”,
“gosto de cantar”, “amo cantar”, entre outras. No entanto, indivíduos que apresen‐
tam dificuldades para cantar de forma afinada podem ter tido alguma experiência
desagradável relacionada à produção musical, no sentido de ser rotulado como “de‐
safinado” por algum professor, colega, entre outros, ou ainda ter passado por alguma
experiência de fracasso ao tentar cantar ou estudar um instrumento musical.
Outro fator a ser considerado é o desenvolvimento da memória musical. Para
Levitin (2006), ao ouvir música, percebemos sete dimensões diferentes: a altura, o
ritmo, o andamento, o contorno, o timbre, o volume e a localização. No entanto,
para que exista a percepção musical é necessário que a memória musical seja acessa‐
da. É possível que os indivíduos que apresentam algum tipo de dificuldade de afina‐
ção não possuam alguns elementos musicais armazenados na memória. Krumhansl
(2006, p. 79) afirma que “a pesquisa empírica tem procurado descobrir se as estrutu‐
ras de altura, tais como a escala, a harmonia e a tonalidade, influenciam o modo
como as sequências de alturas são codificadas e lembradas” e Sobreira (2003, p. 67)
sugere que “a pouca memória musical seja consequência da falta de exposição à
música”, e que, consequentemente, isso influencie a capacidade dos indivíduos de
reter e produzir eventos musicais.
As tecnologias digitais que foram aplicadas na pesquisa, durante 3 meses de en‐
saios do coro de forma presencial e de estudos durante a semana, tiveram o intuito
de contribuir com o aperfeiçoamento da percepção, produção, aprendizagem e me‐
mória musical dos integrantes e serão descritas a seguir.
A utilização do programa MuseScore ocorreu no ambiente presencial e nas ati‐
vidades de estudo propostas durante a semana. Em relação aos conhecimentos mu‐
sicais prévios dos coristas, alguns integrantes estudaram e tocam instrumentos, tais
como piano e violão. Após a aplicação de diferentes atividades com o MuseScore,
percebeu-se que houve, nesses integrantes, um aumento no interesse em tocar e es‐
tudar as músicas propostas no repertório por meio da partitura, bem como os coris‐
tas indagaram sobre como poderiam fazer transposições. Outro aspecto foi verifica‐
do na aplicação presencial do MuseScore no ensino de um cânone, no qual o coro foi
dividido em dois grupos. Os grupos estavam com dificuldades rítmicas e, ao propor
a atividade no programa MuseScore demonstrando e explicando as figuras rítmicas e
as pausas da canção de forma mais lenta para que o coro pudesse reproduzir de forma
correta, observou-se que a associação da imagem com o som contribuiu bastante
para melhorar o entendimento do grupo. Bauer (2014, pp. 71-72) aponta que o edi‐
tor de partitura pode ser utilizado em atividades de criação de frases musicais em
forma de perguntas e respostas, criação de variações a partir de uma melodia e de
pequenas composições com ideias de repetição e contraste.
No programa GNU Solfege foram propostas atividades rítmicas em forma de
jogo com o objetivo de proporcionar o contato com as figuras musicais, de modo
que os coristas pudessem visualizar, ouvir e produzir sons corporais por meio de
palmas, batidas dos pés, buscando propiciar uma atividade interativa. Savi e Ulbricht
(2008) sugerem que os jogos digitais podem contribuir com a aprendizagem devido
ao efeito motivador e facilitador no desenvolvimento de habilidades cognitivas. So‐
bre técnicas de aprendizagem interativa que já foram fundamentadas em jogos digi‐
tais estão: prática e feedback, aprender na prática, aprender com os erros, aprendiza‐
gem pela descoberta, aprendizagem guiada por perguntas, aprendizagem contextu‐
alizada, treinamento e aprendizagem construtivista (Prensky, 2012, p. 222).
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 191

O editor de áudio Audacity permitiu o desenvolvimento de gravações individu‐


ais durante a semana e em grupo nos ensaios presenciais. Quanto ao modelo
TPACK, buscou-se conectar a aplicação do programa Audacity em atividades de
gravação propostas pela regente, como indica Bauer (2010), com a finalidade de fo‐
mentar a análise, a reflexão e o diálogo dos integrantes no sentido de avaliarem suas
próprias gravações, elaboradas de forma individual ou com o coro. As gravações
enviadas pelos integrantes através do ambiente virtual Google Classroom para a re‐
gente possibilitaram um acompanhamento mais individualizado, visto que foi pos‐
sível ouvir cada integrante e dar um feedback personalizado.
De acordo com Creswell (2014, p. 151), no desenvolvimento de um estudo,
podem ocorrer “informações surpreendentes que os pesquisadores não esperavam
encontrar”. Em relação às gravações, percebeu-se que uma determinada integrante
que, quando estava com o grupo cantava sempre com um volume mais baixo, possui
um bom potencial vocal e, ao enviar as gravações, demonstrou mais segurança can‐
tando em um volume mais alto e de forma bem afinada. Por outro lado, foi possível
detectar outra participante que, quando canta em grupo, consegue afinar com mais
facilidade, mas, ao enviar a gravação de forma individual, teve bastante dificuldade
em executar os exercícios com notas ascendentes e descendentes. Como o tempo do
ensaio, na maioria das vezes, não permite um acompanhamento mais individualiza‐
do do corista, o envio de gravações mostrou-se uma ferramenta interessante para o
acompanhamento de exercícios e da execução de canções realizadas pelos coristas,
de forma que a regente poderia corrigir algumas questões de respiração, afinação,
entre outras, visando ao aprimoramento do coro de uma forma geral. Nos feedbacks
das gravações e atividades, seria interessante que o regente começasse sempre com
uma palavra de estímulo, procurando os pontos positivos, e depois fizesse as corre‐
ções e sugestões com o objetivo de incentivar o estudo e o aperfeiçoamento indivi‐
dual do integrante.
O intuito da aplicação do serviço de compartilhamento de vídeos, YouTube, foi
proporcionar a ampliação da escuta musical do coro na proposta de assistirem gru‐
pos com diferentes sonoridades, bem como observarem novas possibilidades musi‐
cais no âmbito de músicas brasileiras, de diferentes períodos da História da Música
e de músicas de outras culturas. “Por meio de serviços de música como o Spotify,
professores e alunos têm acesso a milhões de gravações de músicas de todos os estilos
e gêneros que estão disponíveis a qualquer hora, de qualquer lugar onde possam se
conectar à Internet” (Bauer & Mito, 2017, p. 95, trad. nossa). A utilização do ambi‐
ente virtual Google Classroom permitiu a postagem dos links referentes aos coros do
YouTube em atividades nas quais os coristas puderam fazer comentários e construir
diálogos sobre as gravações, pesquisar sobre os compositores das obras, a época em
que foram compostas e refletir sobre os aspectos de diferentes posturas dos coristas,
impostação vocal, expressões faciais, entre outros.
Na coleta de dados, além das atividades de gravações, estudo e comentários de‐
senvolvidas pelos participantes, foi aplicado um questionário composto por 24 ques‐
tões relacionadas à aprendizagem musical e ao uso das tecnologias digitais no início
e no final da pesquisa.
As respostas da questão 20 - “Você conhece ou utiliza aplicativos musicais para
aprender leitura musical ou para outras finalidades relacionadas à aprendizagem mu‐
sical?” - demonstraram que, inicialmente, apenas 22,2% responderam afirmativa‐
mente, no entanto, nas respostas finais, 72,2% dos integrantes indicaram que conhe‐
ciam aplicativos para estudos musicais. Embora existam diferentes aplicativos para
192 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

smartphones e programas de computador que podem ser instalados de forma gratuita,


nem sempre o corista conhece ou utiliza os recursos tecnológicos para algum tipo
de estudo musical de forma espontânea.
A questão 17 - “Que dispositivos ou programas você utiliza para ouvir ou co‐
nhecer novas músicas?” - apontou que o serviço de compartilhamento de vídeos
YouTube foi de 77,78% nas respostas iniciais para 88,89% nas respostas finais, e o
item aplicativos no smartphone foi de 66,67% nas respostas iniciais para 88,89% nas
respostas finais.
Na questão 22, os coristas deveriam assinalar um ou mais itens com os quais as
tecnologias digitais poderiam contribuir. Dentre as opções, estavam os seguintes
itens: agilidade na comunicação, acesso às informações, aprendizagem de novas
músicas, ampliação de conhecimentos diversos, melhoria da percepção musical e fa‐
cilidade nas interações do coral. No segundo questionário, os itens acesso às infor‐
mações e aprendizagem de novas músicas apareceram com 100% das respostas. Os
itens “agilidade na comunicação” e “melhoria da percepção musical” foram escolhi‐
dos por 94,4% dos participantes.
A questão 12 - “Com que frequência você ouve ou canta músicas no seu dia a
dia?” - foi formulada no intuito de conhecer os hábitos musicais dos coristas. As
respostas iniciais da opção “diariamente” aumentaram de 72,22% para 88,88% nas
respostas finais, como demonstra a Figura 1. A utilização das tecnologias digitais que
envolveram o uso de diferentes programas e do serviço de vídeos YouTube nos en‐
saios presencias e nos estudos durante a semana pode ter contribuído com a amplia‐
ção do contato dos coristas com a música na execução das atividades propostas, que
envolveram as ações de ouvir, perceber, cantar e refletir.

Figura 1
Resumo das respostas iniciais e finais da questão 12.
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 193

Considerações finais
As gravações enviadas pelos integrantes à regente revelaram ser um interessante ma‐
terial para análise e avaliação da produção sonora do grupo, bem como possibilita‐
ram o diálogo em relação aos elementos que poderiam ser aperfeiçoados. As respos‐
tas do questionário final demonstraram que o incentivo à prática de diferentes tarefas
oferecidas aos integrantes durante a semana contribuiu com o aumento da frequên‐
cia diária das atividades relacionadas à escuta musical e produção vocal. O regente
pode valer-se de diferentes tecnologias digitais, tais como programas e serviços de
vídeo que são oferecidos atualmente, bem como elaborar atividades de forma criati‐
va que contribuam com o desenvolvimento da prática coral.
Conclui-se que o estudo musical com o auxílio das tecnologias digitais realizado
durante a semana possibilitou maior interação da regente com o grupo, ampliando
a possibilidade de acompanhamento do desenvolvimento vocal dos coristas a partir
de reflexões e diálogo. O contato com a música proposto de forma organizada e
contínua aos integrantes com o uso de tecnologias digitais contribuiu com a apren‐
dizagem do coro nos aspectos de produção vocal, percepção e memória musical.

Referências
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teachers. In: Proceedings of Society for Information Technology & Teacher Education
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Trad.) Londrina: EDUEL.
Sobreira, S. (2003). Desafinação vocal. Rio de Janeiro: MusiMed.
22
194 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

CONTRIBUIÇÕES DA METACOGNIÇÃO NO
ENFRENTAMENTO DO PÂNICO DE PALCO
Alfredo Faria Zaine¹, Daniele Briguente², Sonia Ray³
¹²Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista, Brasil
³Escola de Música e Artes Cênicas - Universidade Federal de Goiás, Brasil
¹alfredo.zaine@unesp.br, ²d.briguente@unesp.br, ³sonia_ray@ufg.br

Resumo
O presente estudo discute o pânico de palco e as medidas de enfrentamento por músicos profissionais e
estudantes em formação na área de performance musical. A discussão está organizada em quatro partes: 1)
a compreensão das origens do pânico de palco (a exemplo da fobia social); 2) discussão de causas, sintomas
e possíveis consequências e/ou prejuízos do pânico de palco para a performance musical; 3) apresentação
de alguns mecanismos metacognitivos aplicáveis a preparação, execução e avaliação de performances mu‐
sicais. Aspectos como autopercepção e relatos orais de situações vividas em performance musical e na vida
contribuem para o enfrentamento do pânico de palco, uma vez que permitem ao intérprete identificar e
gerir seus próprios processos mentais, inclusive aqueles responsáveis por gerar o pânico de palco. Por fim,
na parte 4 propõe-se a utilização dos mecanismos apresentados na parte 3. Como metodologia foi feita
revisão de literatura referente à fobia social, pânico de palco e metacognição aplicadas à performance mu‐
sical. O texto traz contribuições do estudo de Dueti (2016), propõe técnicas de reprocessamento de ima‐
gens traumatogênicas (EMDR), apresenta as fobias sociais como um dos transtornos fóbico-ansiosos e de‐
fende a importância dos aspectos psicológicos do músico nos momentos de preparação, execução e
avaliação da performance musical. Kenny (2011) oferece evidências empíricas acerca da fobia social e de
transtornos de ansiedade social, além da compreensão desses problemas no contexto da performance musi‐
cal. Freire (2013) demonstra a utilização de mecanismos metacognitivos no processo que desenvolve a ex‐
pertise musical. Assim, os referidos autores fundamentam a discussão e elucidam o objeto aqui abordado.
Palavras-chave: Fobia social, pânico de palco, processos cognitivos, metacognição na performance musical

Fobia social: Compreendendo o problema


A palavra “fobia” origina-se do grego e significa medo. O termo fobia social apare‐
ceu, primeiramente, no ano de 1980, no Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders para designar pessoas que apresentavam medo em situações específicas,
como falar em público. Essa definição foi expandida, na edição de 1987 do mesmo
manual, e passou a incluir indivíduos que possuem um tipo de ansiedade social mais
abrangente (Kenny, 2011, p. 37, tradução nossa). “A característica central do trans‐
torno de ansiedade social é a ocorrência de uma ansiedade intensa quando se desem‐
penha uma tarefa que é observada de alguma maneira por outros” (Kenny, 2011, p.
36 como citado em Hofmann e Barlow, 2002, tradução nossa).
Dueti (2016, p. 20) explica que existem dois subtipos de fobia social: aquela na
qual o medo é limitado a uma situação, e aquela direcionada a um objeto. Esta últi‐
ma, também chamada de “fobia específica” ou “ansiedade de desempenho”. Medo e
ansiedade, embora estejam associados, apresentam características diferentes:
Medo é a resposta emocional a ameaça iminente real ou percebida, en‐
quanto ansiedade é a antecipação de ameaça futura. Esses dois estados se
sobrepõem, mas também se diferenciam. O medo é associado a períodos
de excitabilidade autonômica aumentada, necessária para luta ou fuga,
pensamentos de perigo imediato e comportamentos de fuga com mais
frequência. Já a ansiedade é mais frequentemente associada à tensão
muscular e vigilância em preparação para perigo futuro e comporta‐
mentos de cautela ou esquiva. Às vezes, eles se sobrepõem e o nível de
medo ou de ansiedade é reduzido por comportamentos constantes de
esquiva. Os transtornos de ansiedade se diferenciam do medo ou da an‐
siedade adaptativos por serem excessivos ou persistirem além de períodos

194
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 195

apropriados ao nível de desenvolvimento e, diferem do medo ou da an‐


siedade provisórios, por serem persistentes. (Dueti, 2016, 20)

A explicação de Dueti explicita a íntima relação que os estados de medo e ansi‐


edade, geralmente têm nos pacientes que apresentam tais transtornos. Porém não
são estados idênticos e subdividem-se em diferentes subtipos com características
particulares. De acordo com Mejía (2016, p. 20), no ano de 1980 a ansiedade social
foi incluída no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III) como
doença mental. Porém a edição de 2013 (DSM- V) apresenta essa morbidade com
10 diferentes critérios de diagnóstico atualizados. O primeiro deles refere-se ao
“medo ou ansiedade evidente sobre uma ou mais situações na qual a pessoa é exposta
ao escrutínio. Exemplos disto são as interações sociais, ser observado jantando em
um restaurante e realizar uma performance pública” (2013, p. 190, tradução nossa).
A citada publicação especifica a ansiedade na performance como sendo o medo res‐
trito a falar ou realizar performance pública (Mejía, 2016. p. 21).
Os estímulos ansiosos são provocados pela discrepância entre o desejo de causar
determinada impressão e uma eventual falta de habilidade percebida. Transtornos
cognitivos incluem crenças negativas sobre si mesmo e sobre os outros e são ativados
durante um momento de avaliação e/ou um evento considerado ameaçador. Para
lidar com a situação o indivíduo adota comportamentos que julgue seguros, tais
como evitar ou fugir da situação de ameaça. Essa reação resulta em uma resposta
ansiosa, fundamentada em determinadas crenças e supostos, constituindo assim, um
círculo vicioso mental (Kenny, 2011, pp. 36-7, tradução nossa).
O tópico seguinte discute as características e consequências do pânico de palco
e da Ansiedade na Performance Musical (APM), entendidos como subtipos de fo‐
bia social.

Pânico de palco: Causas e consequências


Estudos mostram que são muito comuns as comorbidades (presença de dois ou mais
transtornos de ansiedade ou medo no mesmo indivíduo) entre fobia social e outros
transtornos de ansiedade como a ansiedade na performance musical. Portanto, a
APM não deve ser considerada isoladamente. No entanto, as situações que provo‐
cam a fobia social, como comer em um restaurante, interagir socialmente em uma
festa ou no trabalho ou mesmo assinar um documento no banco, não são tarefas
complexas que necessitam de longos períodos de treino para desempenhá-las. Por
outro lado, o esporte e a música, exigem habilidades complexas, práticas intensivas,
ensaios físicos e mentais, e memória. Sendo assim, “a performance musical deve
compor uma seção integral da formulação teórica e tratamento da ansiedade na per‐
formance musical” (Kenny, 2011. pp. 62-3, 65, tradução nossa).
Para Ray (2006)
a estrutura emocional de um músico precisa ser trabalhada tanto quanto
suas habilidades motoras e aprofundadas juntamente com o crescimento
do seu conhecimento do contexto musical das obras que ele executa....
Ser capaz de expressar sua musicalidade em público é desejo de todo per‐
former. Entretanto, a musicalidade dificilmente se fará notar se o conte‐
údo não estiver assimilado, se o corpo não estiver bem preparado e a
mente não estiver bem equilibrada.... No momento da performance
musical, a reconstrução do que foi estudado, planejado, idealizado e
contextualizado durante a preparação da performance é indispensável
para que a musicalidade possa ser percebida e transmitida pelo perfor‐
mer. (Ray, 2006. pp. 45, 48-9)

195
196 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Está colocada a totalidade do músico no posicionamento acima. As dimensões


cognitivas, físicas e mesmo afetivas devem ter desempenho pleno e orgânico para
que a performance musical efetive sua comunicação com o público. A autora teste‐
munha que em seu trabalho como musicista, docente e pesquisadora, frequente‐
mente se depara com estudantes que enfrentam “situações de stress no palco”, che‐
gando, não raro, aos níveis de pânico (Ray, 2009, p. 158). O estado de pânico “trata-
se de um mecanismo de defesa do ser humano, quando sinais de alerta são disparados
para avisar que o indivíduo está diante de um iminente perigo. No caso da perfor‐
mance musical o perigo seria a vergonha pública de não se fazer uma performance
competente” (p. 160).
Diferentes estudos têm se voltado ao problema do pânico de palco e procuram
desenvolver estratégias para atenuar ou evitar que os sintomas desse transtorno e suas
devastadoras consequências ocorram. Segundo Ray (2009, p, 161), os pesquisadores
Connoly e Williamon elaboraram no ano de 2004, estratégias que podem ser apli‐
cadas durante o processo de preparação da performance. São elas: 1) relaxamento, 2)
ensaio imaginário (visualização), 3) desenvolvimento de habilidades para situações
específicas de performance e 4) o uso de habilidades mentais para aprendizado de
longa duração e preparação para a performance.
Em alguns casos de pânico de palco faz-se necessário o uso de medicamentos.
Porém este recurso é recomendado após se esgotarem todas as estratégias naturais de
tratamento, incluindo consulta com psicólogo, quando possível, especializado no
problema em questão. Medicamentos devem ser indicados exclusivamente por um
psiquiatra. Este profissional é especializado em distúrbios que envolvem o funciona‐
mento do cérebro e, portanto, pode oferecer grande ajuda. Medicamentos não po‐
dem ser transferidos ou indicados por colegas da área, uma vez que os corpos são
únicos e apresentam funcionamentos diferentes (Ray, 2009. p. 166).
O pânico de palco e a APM podem se manifestar em toda e qualquer perfor‐
mance pública, não necessariamente em espaços onde haja grande público, mas
também em apresentações para bancas ou quando o músico está inserido em peque‐
nas formações. “Há casos comprovados de trajetórias prejudicadas, ou redireciona‐
das, simplesmente, por situações traumatizantes desencadeadas pelo medo de palco
ou pela falta de preparo à situação que o cerca” (Berti, 2016. p. 244). A preparação
para a execução de uma obra musical e para a sua performance são processos que têm
objetivos diferentes. A crença de que o preparo musical exaustivo resolveria os sin‐
tomas de ansiedade e pânico tem sido refutada pelo fato de que profissionais com
carreiras consolidadas, por vezes apresentam sintomas desses transtornos em dado
momento, precisando de algum tipo de suporte (p. 245).
A falta de uma definição clara de APM e, principalmente, de critérios que a di‐
ferenciam de outros tipos de transtornos de ansiedade, configura-se como um im‐
pedimento teórico ao campo que desenvolve os tratamentos para aqueles que neces‐
sitam. As inúmeras suposições acerca do tema da APM precisam ser articuladas e
discutidas, a fim de se obter uma definição aplicável do conceito (Kenny, 2011. p. 50).

Metacognição aplicada à preparação, execução e avaliação da


performance musical
Etimologicamente, a palavra “metacognição” significa “para além da cognição”, isto
é, a capacidade de conhecer o próprio ato de conhecer, ou, por outras palavras, cons‐
ciencializar, analisar e avaliar como se conhece. Segundo Ribeiro (2003), a metacog‐
nição está na “faculdade de planificar, de dirigir a compreensão e avaliar o que foi
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 197

aprendido” (p. 109). Esta afirmação, quando aplicada ao campo da música, especial‐
mente da performance musical, pode ser vista tanto do ponto de vista da preparação
para a performance, onde o músico pode entender o panorama da sua preparação,
avaliando o passo-a-passo de seu processo, como também das etapas resultantes dessa
preparação, que são a performance propriamente, bem como sua avaliação. Segundo
Concina (2019), o que se ouve num concerto depende muito do que se passa durante
sua preparação, uma vez que performances bem sucedidas requerem esforço de
aprendizagem e aperfeiçoamento, compreensão dos resultados e estruturação.
A metacognição ou o “aprender a aprender” pode ser o processo chave para as
etapas que podem resultar nesta bem sucedida performance, sendo através do uso de
ferramentas organizacionais, como os mapas conceituais (Zaine & Briguente, 2020)
ou de técnicas de concentração, como a prática mental (Clark & Williamon, 2011;
Coffman, 1990; Sousa & Ray, 2020), que serão oportunamente discutidas. O uso de
tais ferramentas pode otimizar e controlar algumas das etapas da performance: sua
preparação, o momento da performance per se, e a análise dos resultados, a fim de se
traçarem estratégias para se otimizar a próxima performance.
Como afirmam Sousa e Ray (2020), “a música antes de acontecer no instrumen‐
to, acontece na mente” (p. 148). Com essa afirmação justifica-se o uso de ferramen‐
tas e estratégias que preparem e deem suporte ao músico, especialmente àqueles que
sofrem de pânico de palco e APM. Hallam (2001) apresenta pontos que podem levar
ao desenvolvimento de processos metacognitivos como:
[compreensão dos] pontos fortes e fracos pessoais; avaliar as dificuldades
das tarefas; seleção de estratégias para a prática apropriada; estabelecimento
de metas e monitoramento do progresso; avaliação de desenvolvimento;
formas de desenvolver interpretação; estratégias de memorização; aumen‐
to da motivação; gerenciamento de tempo; melhoria da concentração; es‐
tratégias de desempenho. (Hallam, 2001, p. 38, tradução nossa)¹

Esses conceitos apresentados por Hallam (2001) mostram dois pontos importan‐
tes: autoconhecimento e autocontrole, sendo que o autoconhecimento está direta‐
mente ligado à metacognição, onde, se aplicarmos ipsis litteris o conceito de apren‐
der a aprender da metacognição, podemos aplicar essas ideias às ferramentas e
estratégias que atenuam os sintomas do pânico de palco e da APM.
Entende-se que a performance musical inclui uma variedade de habilidades e
conhecimentos previamente adquiridos e preparados pelo músico, exigindo muitas
vezes altos níveis de concentração. Todo esse processo, que pode incluir estudos téc‐
nicos e análises, por exemplo, nos levará ao preparo para a performance musical,
momento em que este músico poderá avaliar todo o processo e sua eficácia, por meio
da exposição e interação com o público (Sinico & Winter, 2012).
Embora realizado por meio de preparação, o momento da performance contém
uma parcela de imprevisibilidade. Logo, planejar as etapas e definir objetivos antes
mesmo do início deste processo pode ser um importante auxiliar no controle da
APM. Este planejamento pode ser elaborado através do uso de ferramentas auxiliares,
dando ao músico chance de entender, compreender e visualizar ideias e conceitos
que muitas vezes são levados ao palco de forma automatizada, repetitiva e sem sua
devida compreensão. Clarke (2002) afirma que a “performance musical em seu mais
alto nível demanda uma extraordinária combinação de habilidades físicas e mentais”
e, para que tais habilidades possam funcionar de forma adequada, é exigido do músi‐
co um alto nível de concentração, inclusive durante o processo de preparação, de‐
pendendo, por sua vez, de níveis controlados de ansiedade por parte do músico.
198 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Madeira (2014) apresenta três fases que poderiam coordenar a performance,


bem como sua preparação, podendo assim auxiliar os que sofrem com a APM: fase
de pensamento prévio (fase predecessora de qualquer ato ou ação e dependente da au‐
tomotivação e autoeficácia), fase de controle da performance (entendida por todos os
processos que ocorrem durante os esforços de aprendizagem efetivos, em que o au‐
tocontrole e autoinstrução ocorrem) e fase da autorreflexão (posterior ao processa‐
mento das informações registradas durante a performance, com intuito de avaliar o
resultado da tarefa e do esforço despendido).
Com base nestas observações, serão apresentadas duas possíveis estratégias para
o auxílio no combate à APM e ao pânico de palco, que são: mapas conceituais e
prática mental.

Estratégias metacognitivas para o enfrentamento ao pânico de palco


Estratégias e ferramentas para o auxílio na concentração e, por conseguinte, subsi‐
diárias no controle da APM e do pânico de palco, existem e atuam em diferentes
formas, com diferentes aplicações e abordagens. Como exemplo temos o uso con‐
trolado do tempo e preparação dos estudos, mapas conceituais, prática mental, aten‐
ção plena, dentre outras (Ray et al., 2020). Para este texto focaremos em duas destas
estratégias e suas aplicabilidades, que são os mapas conceituais e a prática mental.
Mapas conceituais são ferramentas representacionais, utilizadas primeiramente
na área da educação, desde a segunda metade do século XX. Possibilitam o planeja‐
mento controlado de ações e a análise de resultados. Posteriormente, no início do
século XXI, foi utilizado na área da música, especialmente no que se refere a conte‐
údos de análise musical.
Desenvolvido na década de 1970 por Joseph Novak, professor de educação e de
ciências biológicas da Universidade Cornell (Estados Unidos), os mapas conceituais
serviram como ferramenta para acompanhar e compreender as mudanças no apren‐
dizado de ciências por crianças, sendo esta uma ferramenta representacional (Novak
& Musonda, 1991). Esses mapas podem ser definidos a partir da psicologia cognitiva
como uma representação externa, em oposição a uma representação interna (men‐
tal), pois traz para o plano visual o que existiria, de certa forma, apenas em uma con‐
cepção mental, de forma organizada e hierarquicamente conectada (figura 1).
Ainda que exista uma crença sobre um processo contínuo, cumulativo e auto‐
matizado da aprendizagem, Novak (1984) apresentou argumentos que refutam tal
ideia, pois “toda atividade humana, quando levada a um estado da destreza suficien‐
te, cria seus próprios conceitos, termos, palavras, ações e formas de trabalhar”.

Figura 1
Detalhe de mapa conceitual.

Os mapas conceituais têm se mostrado como uma ferramenta profícua no pro‐


cesso de ensino e aprendizagem eficazes (Trujillo-Vargas et al., 2006), apresentan‐
do-se como um fluxograma que facilita a visualização dos métodos a serem adota‐
dos, especialmente para a assimilação de etapas a serem executadas. Logo, entende-
se que o uso de mapas conceituais estará atrelado à tentativa de controlar de forma
Cognição em Interfaces com Mídias e Público 199

consciente os estágios da performance, criando assim um mapa visual de tudo que


se deve, de alguma forma, tirar do inconsciente e trazer para o consciente. Assim, o
indivíduo entende o motivo de seu êxito ou do não êxito e adquire a capacidade de
avaliar se uma estratégia é mais adequada em comparação a outra, notando assim
vieses em sua percepção, pensamento e julgamento (Hussain, 2015).
Outra estratégia aqui apresentada é a prática mental, que consiste, resumida‐
mente, em se imaginar uma ação sem que esta atividade seja fisicamente executada
(Marangoni & Freire, n.d.; Sousa & Ray, 2020). Segundo Marangoni (2016) a “práti‐
ca mental vem despertando o interesse dos pesquisadores há pelo menos 50 anos e
atualmente os resultados das pesquisas já permitem afirmar que ela proporciona be‐
nefícios significativos para a performance nos esportes e na música”. Jorgensen
(2004) sugere que a prática com objetivo de aprendizagem pode ser dividida em
playing practice (prática no instrumento) e non playing practice (prática fora do instru‐
mento), e sugere equilibrar o tempo da prática no instrumento e fora do instrumento
(Jorgensen, 2004, como citado em Sousa & Ray, 2020). Esta estratégia é colocada
como complementar à prática tradicional.
A prática mental, quando aplicada ao campo da performance musical, define-se,
segundo Mielke e Comeau (2017), como o
uso de imagética (auditiva, sinestésica, motora, visual) em uma execução
cognitiva repetida de uma atividade com o objetivo de adquirir ou man‐
ter proficiência em um instrumento musical ou voz, [pode ser definida
como] representações mentais (auditiva, sinestésica, motora e/ou visual)
de objetos, eventos ou movimentos. (Mielke & Comeau, 2017, como
citado em Sousa, 2020)

Sousa e Ray (2020) apresentam ainda alguns exercícios que podem ajudar o
músico na habilidade da prática mental, salientando que, para que a prática mental
seja efetiva o intérprete deve desenvolver a capacidade de imaginar e visualizar men‐
talmente todos os aspectos da performance musical (Sousa & Ray, 2020). Com base
nesta proposta, os autores apresentam os seguintes exercícios, para serem praticados
mentalmente:
Imaginar um ambiente específico, que pode ser uma sala de estudos ou
uma sala de concerto; fazer exatamente o que faria na situação real: entrar
na sala e se aproximar do instrumento; pegar a partitura e colocar na
estante; pegar o instrumento ou se aproximar dele e se colocar em posição
para tocar; visualizar a partitura na estante, observar os primeiros compas‐
sos da obra selecionada e realizar estes compassos iniciais; na sequência
fazer mais uma repetição do trecho, focando na sensação do corpo e
mãos no instrumento; repetir o trecho pela terceira vez, focando no som,
ouvindo a sonoridade do instrumento e realizando uma frase perfeita; dei‐
xar o instrumento e se retirar do local. (Sousa & Ray, 2020, grifos nossos)

Considerações finais
Este trabalho apresentou duas estratégias que se valem da metacognição no enfren‐
tamento do pânico de palco. Cada uma delas com características próprias e, por ve‐
zes, bastante opostas com relação ao seu funcionamento. Os mapas conceituais or‐
ganizam os pensamentos relativos às ações da performance, trazendo-os para o for‐
mato gráfico e textual, através do uso de fluxogramas ou diagramas; estes, por sua
vez, são constituídos por palavras e linhas de conexão, seguindo uma estratégia hie‐
rárquica para uma fácil compreensão e organização, especialmente para a assimila‐
ção das etapas a serem executadas. Já a prática mental trará justamente o oposto:
transformar em imagética o que é da tatilidade usual do performer.
200 Encontros de Cognição Musical – Processos Criativos 2020

Mesmo sendo estratégias inversas, ambas levam consigo a ideia da visualização


do todo e de sua organização, para que o processo da performance, incluindo aqui
os estágios preparatórios e avaliativos, possa ser compreendido como um todo, dan‐
do ao intérprete oportunidade de visualizá-lo, organizá-lo, repensá-lo, avaliá-lo e
reestruturá-lo. Isto vai ao encontro dos pontos anteriormente apresentados por Hal‐
lam (2001), que envolvem compreender pontos fortes e fracos, avaliar as tarefas e
desempenho, por exemplo, que são, segundo o autor, parte do desenvolvimento de
processos metacognitivos.
Logo, estas estratégias, quando conectadas à conceituação apresentada sobre
processos metacognitivos, abrem espaço para a aplicação destas ferramentas em pro‐
cessos que serão organizacionais por funcionalidade e também auxiliares na concen‐
tração, podendo, consequentemente, se mostrarem coadjuvantes no controle do pâ‐
nico de palco e da APM.
Os autores aqui entendem que, estas estratégias são ferramentas que, a depender
do nível de pânico e de ansiedade enfrentado pelo músico, podem não ser efetivas ou
instrumentalmente capazes de solucionar problemas mais avançados e, patologica‐
mente estabelecidos. Estas estratégias podem, sim, ser ferramentas ou recursos que po‐
dem ser combinados a outros métodos de controle do pânico e da ansiedade, abrindo
caminho para uma busca de autocontrole e autoconhecimento que são frequente‐
mente negligenciados por músicos, em diferentes níveis de sapiência e habilidade.

Nota
1 Personal strengths and weaknesses; assessing task difficulties; the selection of appropriate
practising strategies; setting goals and monitoring progress; evaluating performance; ways
of developing interpretation; strategies for memorisation; enhancing motivation; time
management; improving concentration; performance strategies.

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