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Anais do

VII SIMCAM
Simpósio de Cognição e Artes Musicais
Reitor
José Geraldo de Sousa Junior

Vice-Reitor
João Batista de Sousa

Decana de Pesquisa e Pós-Graduação


Denise Bomtempo Birche de Carvalho

Diretora do Instituto de Artes


Izabela Costa Brochado

Chefe do Departamento de Música


Ricardo José Dourado Freire

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Música em Contexto


Cristina Grossi
Maurício Dottori, editor

Anais do
VI SIMCAM
Simpósio de Cognição e Artes Musicais

Universidade de Brasília
Departamento de Música
Ricardo José Dourado Freire, coordenador geral

Brasília, 24 a 27 de maio de 2011


iv Comissão Científica do SIMCAM7

Coordenação
Maurício Dottori

Pareceristas:
Beatriz Raposo de Medeiros (USP) Maurício Dottori (UFPR)
Clara Márcia Piazzetta (FAP) Ney Rodrigues Carrasco (UNICAMP)
Daniel Quaranta (UFJF) Rael Bertarelli Toffolo (UEM)
Diana Santiago (UFBA) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)
Graziela Bortz (UNESP) Sonia Ray (UFG)
Marcos Nogueira (UFRJ)

Promoção:
ABCM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COGNIÇÃO MUSICAL

Maurício Dottori (UFPR), Presidente


Diana Santiago (UFBA), Vice-Presidente
Graziela Bortz (UNESP), Secretária
Ricardo Dourado Freire (UnB), Tesoureiro
Marcos Nogueira (UFRJ), Relações Públicas
Beatriz Ilari (UFPR), Representante do Comitê Editorial
Rael Bertarelli Toffolo, Webmaster
Prezados Colegas,

O Departamento de Música da Universidade de Brasília e o Programa de Pós-Gra-


duação Música em Contexto tem o prazer de realizar a sétima edição do Simpósio v
Internacional de Cognição e Artes Musicais (SIMCAM). Nesta edição o tema esco-
lhido foi A Mente Musical em uma perspectiva transdisciplinar, com a intenção de
manter o diálogo com as áreas que caracterizam esse fórum aberto de pesquisa e dis-
cussão que é o SIMCAM.
Nesta edição contaremos com as presenças de dois pesquisadores internacionais com
grande impacto nas publicações que relacionam Cognição e Artes Musicais: Emma-
nuel Bigand, da Université de Bourgogne, França, e Karl Anders Ericsson, psicólogo
sueco que leciona na Florida State University (EUA).
Faz-se necessário agradecer os diversos colaboradores que trabalharam com afinco
para a realização deste 7SIMCAM. Esse encontro foi possível pela dedicação da equipe
organizadora formada por Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo e Antenor
Ferreira Corrêa, professores do PPG-MUS, Patricia Pederiva, da Faculdade de Edu-
cação da UnB, e de Afonso Galvão, da Universidade Católica de Brasília. A participa-
ção da Associação Brasileira de Educação Musical foi fundamental, por meio da
orientação e coordenação da parte científica realizada pelo presidente Maurício Dot-
tori. Agradeço também a Sonia Ray, que como coordenadora do V SIMCAM, ofereceu
apoio e ajuda nos momentos mais difíceis.
Merece um agradecimento a equipe de funcionários e colaboradores da UnB que
fazem um trabalho discreto e eficiente na secretaria do Departamento de Música, li-
derados pelo secretario do MUS, Rogério Figueiredo, e coordenados por Alex Cunha.
Agradeço o design gráfico realizado por Haroldo Brito, da criatus design, que além
de fazer um excelente trabalho de criação, foi o responsável pela produção de todo o
material gráfico do evento.
O evento não seria possível sem a parceria com o Memorial Darcy Ribeiro, que pos-
sibilitou o uso do espaço físico de beleza ímpar e ambiente único para a realização de
um evento científico. A colaboração do Programa PAEP da CAPES foi fundamental
para a viabilidade do evento e o Programa de Pós-Graduação Música em Contexto
da UnB ofereceu a estrutura acadêmica para a participação do Departamento de Mú-
sica na realização do 7SIMCAM.
Desejamos que todos os participantes sintam-se bem vindos à Universidade de Bra-
sília e esperamos que todos possam desfrutar as oportunidades de troca de experiên-
cias que caracterizam as diversas edições do SIMCAM.
Brasília, 24 de maio de 2011
Ricardo Dourado Freire
Coordenador Geral do 7SIMCAM
Chefe do Departamento de Música da UnB
Caros Colegas Pesquisadores,

Chegamos ao Sétimo Simpósio de Cognição e Artes Musicais, o sexto desde a funda-


ção de nossa Associação no Segundo Simpósio, em Curitiba. E o que se pode ver é a
lenta, mas firme, consolidação da área. O número de trabalhos selecionados aparenta vii
ser um pouco menor, mas não só a exigência de pertinência às inúmeras facetas dos
estudos cognitivos, entendidos de maneira abrangente, foi mais restritiva, como a
qualidade média elevou-se. Temos, já, uma área quase consolidada, e nas publicações
dos eventos já vemos acumulada uma grande quantidade da pesquisa em Cognição
e Música, feita em nosso país.
Viemos, nestes anos, estudando e debatendo como nossos miolos — estes pedaços
de geléia cujos átomos foram forjados há bilhões de anos no interior de estrelas —
podem perceber ar em vibração como um objeto expressivo (como o fizemos até o
século XVIII); como uma expressão emocional de seu compositor/organizador ou de
seu intérprete/emissor (como fizemos até início do século XX); como uma estrutura
objetiva autoreferencial (como fazemos há um século). Temos estudado os princípios
cognitivos que extraímos daquilo que chega a nossos ouvidos — e, também, do mo-
vimento de nossos dedos, braços, lábios, diafragmas, de nossas pernas — e usamos
para produzir música, seja como intérpretes, seja como compositores. Estudamos
como metáforas — como o são ver a música como linguagem, como movimento,
como estruturas dialógicas ou tensivas-distensivas — possibilitam-nos compreender
um pouco de nossos processos intelectivos, e como há princípios neuro-estéticos en-
volvidos na nossa fruição musical, pelas categorizações e pelas simetrias. E pesqui-
samos como uma das metáforas que está na origem mesma dos estudos cognitivos
— a de que nossos cérebros funcionam como uma máquina informacional — permite
que a interface com o mundo da tecnologia seja profícua em insights sobre a música
que fazemos e como a fazemos. Mais: como nós, animais do ritmo, nos sincronizamos
socialmente pela música e a usamos para a catarse, a terapia. E finalmente, como, pela
sua plasticidade, nossos cérebros se amoldam a ensinarmos e aprendermos música.
São esses, em resumo, os seis temas em que se distribuem — eu diria quase que tra-
dicionalmente — os trabalhos no Simpósio e nos Anais.
Muito obrigado pelo trabalho de todos os envolvidos, em especial na figura do Coor-
denador Geral do Simpósio, Ricardo Dourado Freire, e de toda a diretoria de nossa
Associação, e dos pareceristas que tão abnegadamente leram, em primeira mão, os
trabalhos.

Maurício Dottori
Coordenador Científico do Simpósio
Presidente da Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais
índice

a mente e a percepção das artes musicais


ix
A construção da representação sonora na mente do músico 1
Graziela Bortz
Análise sobre os aspectos psicológicos presentes no processo
de audiação em músicos profissionais 8
Ronaldo da Silva e Ricardo Goldemberg
Música na carne: o advento da experiência musical incorporada 16
Marcos Nogueira
Um estudo sobre a influência da expectativa na cognição
de paisagens sonoras 27
Bernardo A. de Souza Penha, Jônatas Manzolli e José Fornari
A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal 35
Danilo Ramos e José Eduardo Fornari
Investigating absolute pitch with neuroimaging techniques
– Literature review 47
Patrícia Vanzella, Maria Angela M. Barreiros,
Lionel F. Gamarra, Edson Amaro Junior
Um levantamento sobre o ouvido absoluto 59
Rodrigo Fratin Medina e Ricardo Goldemberg
Quais os fatores que podem interferir na percepção da expressividade
interpretativa musical? 67
Márcia Higuchi, Cristina Del Ben, Frederico Graeff & João Leite
Pôsteres
Tempo de resposta em reconhecimento de padrão de acordes na leitura
à primeira vista ao piano 79
Gabriel Rimoldi, Hugo Cézar Palhares Ferreira
Memória de curto prazo para melodias:
efeito das diferentes escalas musicais 86
Mariana E. Benassi Werke
A influência do treinamento musical nos potenciais cognitivos
envolvidos no reconhecimento de alegria e tristeza
em melodias sem palavras 89
Viviane Cristina da Rocha e Paulo Sérgio Boggio
A percepção de melodia e ritmo nas pessoas com Síndrome de Williams
na perspectiva dos testes de Audição Musical
propostos por Edwin Gordon 95
Henrique de Carvalho Vivi
a mente e a produção das artes musicais
Uma improvisação guiada por uma partitura, como uma mente,
segundo os seis critérios do processo mental propostos
x por Gregory Bateson 105
Daniel Puig
Ciclo Portinari: um estudo sobre experiências multissensoriais
nas práticas interpretativas 116
Sheila Regiane Franceschini
O processo de emissão do som na clarineta e a geração de memória muscular:
aplicabilidades no ensino e performance 129
Cristiano Alves
Para medir a sincronização de dois cantores: o caso da bossa-nova 143
Cássio Santos, Beatriz R. de Medeiros e Antônio Pessotti
Música Sistêmica: Intersecções entre processos criativos,
concepção estética e composição musical 149
Felipe Kirst Adami
A memória na psicologia cognitiva e memória musical
na Perspectiva do Intérprete 165
Laura Balthazar e Ricardo Dourado Freire
Métodos de memorização e a construção da performance instrumental 175
Leonardo Casarin Kaminski e Werner Aguiar
Pôsteres
O gesto na performance instrumental 184
Belquior Guerrero Santos Marques
belquiormarques@hotmail.com
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
Aprendizagem e desempenho motor e procedimentos didáticos:
questões no âmbito pianístico 187
Fernando Pabst Silva e Maria Bernardete Castelan Póvoas
A espectromorfologia como discurso: considerações acerca
da obra teórica de Denis Smalley 194
Maurício Perez e Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
A sonoridade no estudo Pour les Quartes de Claude Debussy:
investigando processos composicionais à luz da transdisciplinaridade 199
Thiago Cabral Carvalho
O atual estado da questão da disciplina psicologia na formação
de músicos-intérpretes na academia brasileira 210
Sonia Ray e Leonardo Casarin Kaminski
Representações gráficas para a progressões harmônicas
em música: um experimento verificativo 215
Alexei Alves de Queiroz
Artes musicais, lingüística, semiótica e cognição
Discutindo a constituição da criatividade e da cognição do sujeito músico:
uma reflexão entre pressupostos da abordagem histórico-cultural,
ontopsicológica e da música 219 xi
Patrícia Wazlawick
Compor, apresentar e criticar música: o ciclo da aprendizagem criativa
em um estudo de caso na educação musical escolar 231
Viviane Beineke
As relações texto-música e suas implicações na performance
da canção Rosamor (1966) de Ernst Mahle 243
Eliana Asano Ramos e Maria José Dias Carrasqueira de Moraes
Metro e representação: geração de arquivos sonoros e midi
a partir de textos da tragédia grega 254
Marcus Mota
Estratégias de leitura à primeira vista: resultados, método
e ferramentas de investigação a partir de um estudo piloto 267
Valeria Cristina Marques e José Fornari
Teoria dos Gêneros e Articulação Musical da Trilha Sonora 279
Gustavo Rocha Chritaro, Sandra Ciocci e
Claudiney Rodrigues Carrasco
Pôster
Música e Cinema: diálogos transdisciplinares 290
Glauber Resende Domingues

Tecnologia, artes musicais e a mente


Do caráter transdisciplinar dos sistemas interativos musicais 295
Marcelo Gimenes
Tecnologia x perfomance de instrumentos em grupo para crianças:
aprendendo na e com a rede 303
Beatriz de Freitas Salles e Juliana Rocha de Faria Silva
Ópera no Cinema: o que muda na experiência auditiva? 314
Anselmo Guerra
Em direção a uma fenomenologia da composição de música gravada 322
Luciano de Souza Zanatta
Comparando estruturas rítmicas através sonogramas: um estudo
da percepção métrica do motivo principal
da Sinfonia nº. 5, Op. 67, de Beethoven 337
Pedro Paulo Köhler Bondesan dos Santos
O desenvolvimento paralelo da mente
e das artes musicais
A Experiência Estética e a Cognição Sensível na Musicoterapia 345
xii Clara Márcia Piazzetta
Um estudo sobre representações sociais de alunos de graduação
sobre os conceitos de “música” e “musicalidade” realizado
nos pólos Brasil e Itália 355
Anna Rita Addessi e Rosane Cardoso de Araújo
Aspectos relacionados à percepção e à cognição em propostas
diferenciadas de educação musical 366
Denise Álvares Campos
The MIROR Project: Music Interaction Relying on Reflexion 377
Anna Rita Addessi
Paralelos entre concepções de alfabetização e letramento
em um contexto interdisciplinar 394
Samara Pires da Silva Ribeiro e Ricardo Dourado Freire
A participação do educador no desenvolvimento da mente musical
no ambiente escolar 402
Christiana Damasceno Rodrigues da Silva
Articulações pedagógicas e criatividade musical: um recorte
sobre o desenvolvimento da mente criativa musical 407
Vilma de Oliveira Silva Fogaça
Articulações entre música, educação e neurociências: idéias para
o Ensino Superior 419
Luciane Cuervo
Aplicações da teoria piagetiana à aula de musicalização infantil 430
Jordanna Vieira Duarte

artes musicais e cognição social


Representações sociais e prática musical:
pesquisa-ação com formação de professores 437
Diana Santiago
Musicoterapia e cognição: a importância do fazer musical para estímulo
e manutenção das funções executivas de idosos institucionalizados 440
Flávia Barros Nogueira
A desinstitucionalização da doença mental e da figura do doente mental
através da criação de um espaço de aula de música para pacientes
psiquiátricos em uma escola de música 452
Thelma Sydenstricker Alvares
Eu ensino como você aprende?
Processos cognitivos de aprendizagem em música 459
Simone Marques Braga
A musicoterapia na intervenção precoce:
uma experiência com crianças deficientes visuais 468 xiii
Elvira Alves dos Santos, Claudia Regina Oliveira Zanini,
Luana Anastácia Torres Guilhem e Priscileny Sales Campos
Humanizando por meio dos sons: a musicoterapia melhorando a
qualidade de vida de crianças e adolescentes em tratamento de câncer 472
Jéssica do Carmo Rivas, Lídia Fidelina dos Santos e
Rosângela Silva do Carmo
Motivação para aprender um instrumento musical na vida adulta:
um estudo em andamento 477
Andréa Matias Queiroz
a mente e a percepção das artes musicais

A construção da representação sonora na mente do músico


Graziela Bortz 1
grazielabortz@gmail.com
Departamento de Música – UNESP

Resumo
Embora a representação sonora na mente — o chamado ouvido interno — seja consi-
derada uma habilidade importante nas especialidades da área de música, tais como:
interpretação, composição ou regência, costuma ser considerada, de acordo com Co-
vington (2005), um subproduto de outras atividades envolvidas na formação do mú-
sico. A autora afirma que não há uma preocupação particular dos instrutores em
enfatizar a imaginação sonora em níveis simples ou complexos no treinamento em
solfejo e ditado ou nas atividades de performance. Este artigo discute pesquisas rea-
lizadas sobre o assunto nas áreas de neurociências e ciências cognitivas que apontam
para atividades em áreas do cérebro responsáveis pelo sistema motor, sistema sen-
sorial, representação semântica e episódica enquanto sujeitos imaginam, ouvem ou
tocam música verdadeiramente. Sugere que a formação musical avalie a importância
da prática de mentalização sonora no estudo da performance musical como uma ma-
neira de precaver — possivelmente até auxiliar na cura de — doenças adquiridas pela
prática excessiva ou pela pressão psicológica que envolve a profissão. Menciona, como
apoio, o estudo de Pascual-Leone (2009) que enfatiza a participação crucial do sis-
tema sensorial e de sua interface com o sistema motor no desenvolvimento de ha-
bilidades instrumentais, sendo comprovado o fato de que uma ‘confusão’ no sistema
sensorial como resultado da prática excessiva ocorra na disfunção conhecida como
distonia focal. Conclui enfatizando a necessidade de atualização das disciplinas teó-
rico-analíticas, práticas instrumentais e treinamento auditivo acerca das recentes des-
cobertas científicas nas áreas de saúde e de neurociência cognitiva para evitar ou
tratar de doenças que têm afetado ou mesmo impedido a carreira de muitos músicos
competentes.

Introdução
Quando Covington e Lord (1994) escreveram sua crítica ao ensino objetivista da per-
cepção musical, propondo uma pedagogia baseada na experiência prévia do estudante
aplicada ao que chamaram de ill-structured domains — contextos musicais reais, ao
contrário de domínios propositalmente simplificados para fins didáticos — os estudos
cognitivos em música ainda eram eminentemente concentrados nos resultados de
pesquisas behavioristas (Deutsch 1982; Krumhansl 1983, 1990, Sloboda 1985, Aiello
e Sloboda 1994), ou seja, pesquisas empíricas baseadas em análises de respostas a
determinados estímulos. Daí viria, provavelmente, sua visão das ciências cognitivas
de então ao afirmar que estas logravam “uma compreensão muito melhor de proces-
sos cognitivos em domínios bem estruturados [well-structured domains] (WSD) do
que em domínios não estruturados [ill-structured domains] (ISD)”1 (p. 165).
Os autores viam o ensino tradicional da disciplina percepção musical como exclusi-
vamente pautado na objetividade do estímulo-resposta, objetividade esta facilitadora
2 na quantificação de erros e acertos, já que carrega uma expectativa pré-determinada
no resultado das tarefas, mas problemática na transferência de conhecimentos para
a textura complexa da música real. As críticas às pesquisas cognitivas eram, portanto,
similares àquelas ao treinamento da percepção para estudantes de música.
Desde então, os recursos para pesquisa científica na área de cognição musical têm-
se valido cada vez mais das ferramentas tecnológicas da neurociência, tais como a
tomografia computadorizada e ressonância magnética, entre outros, para examinar
áreas cerebrais ativadas durante as tarefas propostas nas pesquisas laboratoriais, pos-
sibilitando a análise do funcionamento do cérebro humano em atividades mais com-
plexas e a comparação dessas análises àquelas realizadas nas pesquisas behavioristas.

Memória Motora
Halpern (2009, 217) relata seu estudo acerca das ‘representações musicais’ [musical
imagery]2 — “a experiência de ‘repetir’ a música através de imaginá-la em sua cabeça”
— onde utiliza ambas as ferramentas: behaviorista e neurocientífico-cognitiva. Ex-
periências foram realizadas com músicos e não-músicos, incluindo indivíduos que
haviam sofrido lobectomia temporal para tratamento de epilepsia. A autora afirma
que um dos desafios de se estudar a representação sonora construída mentalmente é
o de como “externar o que é justamente uma experiência interna” (p. 218), por isso a
combinação das duas modalidades de pesquisa.
É interessante notar, neste estudo, o resultado apontando para o fato de que uma área
responsável pela escuta no cérebro (córtex auditivo secundário) permanece ativada
tanto na escuta real, como na recuperação dessa audição na memória através da ima-
ginação. Um dos resultados mais surpreendentes mostrado por Halpern, porém, é a
atuação marcante da Área Motora Suplementar (AMS) na construção da representação
musical, superior à sua atuação na escuta musical, “ainda que os sujeitos não estives-
sem verdadeiramente produzindo nenhum movimento motor” (p. 223). Halpern
afirma que a “ativação da AMS tem sido observada quando se é requisitado aos su-
jeitos para que gerem uma fala internalizada e vocalizem a música abertamente”.
Acrescenta que esta ativação “pode refletir um processo de ensaio subvocalizado, seja

1 A tradução de ill-structured domains para ‘domínios não estruturados’ é imprecisa, já que o


termo se refere à música em sua total complexidade, no contexto real. Talvez o termo mais
apropriado fosse ‘domínios complexos’, embora este também detenha certo grau de imprecisão.
2 Por se referir a ambas as acepções neste contexto — visual e sonora — preferi ‘representações
musicais’, no plural, às expressões ‘imaginação’ ou ‘visualização musical’ para traduzir a ex-
pressão original musical imagery.
de palavras ou música como suporte do desempenho [da imaginação sonora] numa
tarefa que de outra maneira seria difícil” (p. 223-224).
É importante frisar que as experiências foram realizadas em duas etapas: a primeira,
cujos resultados foram sinteticamente mencionados acima, utilizou-se de música can-
tada (com letra). Uma segunda etapa utilizou-se de música instrumental. Os resulta- 3
dos para a AMS, porém, foram equivalentes. A autora deduz que os indivíduos se
valham de alguma estratégia de subvocalização durante a imaginação musical. No
entanto, é de se notar que os sujeitos, nesta última etapa, ao contrário da primeira
(onde se utilizou música com letra), tinham, todos, alguma formação musical e que
o resgate da música na memória destes indivíduos poderia se operar de maneira di-
ferente daqueles sem treinamento, idéia confirmada em outros estudos (Washington
1994; Pascual-Leone 2009). Em outras palavras, um indivíduo que tocasse violino
poderia ter recorrido à memória tátil ao recuperar uma canção na imaginação, po-
dendo ter ativado a AMS desta forma, e não necessariamente através da subvocaliza-
ção. Poder-se-ia pensar ainda além, já que os estímulos para esta segunda etapa de
experiências foram feitos com música instrumental: é possível que músicos sejam ca-
pazes de transferir sua experiência no seu instrumento para, digamos, outros timbres.
Ou seja, um violinista poderia se ‘imaginar’ tocando um clarinete e até mesmo ‘sentir’
que o está tocando através da transferência de sua experiência sonora/tátil a outro
instrumento que nunca tocou, mas assistiu/ouviu, ou mesmo interagiu em ensaios.
Aceitando esta hipótese, somos levados a pensar que a vivência que leva um deter-
minado músico à abstração dos elementos musicais seria a provável razão pela qual
músicos experientes num instrumento sejam capazes de aprender rapidamente a
tocar outro instrumento, ainda que já na fase adulta.
Supondo que esse tipo de transferência ocorra na mente do músico, é questionável a
seguinte afirmação de Halpern: “quando pessoas não podem produzir sons de gui-
tarras e clarinetes, o suporte da AMS pode não ser necessário para prover um pro-
grama de ensaio motor” (p. 229). Idéia diferente aparece no estudo de Sergent et al.
(1992) mencionado em Covington (2005, 28) que sugere que a “informação espacial
relativa às notas no pentagrama é gerada e coordenada com [grifo meu] a execução
física real na performance musical”. Este estudo encontra uma relação no “córtex pa-
rietal, que sugere um mapeamento entre a notação e o som numa área adjacente, mas
distinta, à área onde há um mapeamento de linguagem de palavras orais e visuais” (p.
28). Ou seja, o aprendizado instrumental pode operar essa conexão entre notação
musical e ensaio motor, daí a possibilidade de transferência de memória tátil/sonora
para a notação musical e vice-versa.
No entanto, ainda que a memória motora tenha uma participação crucial da repre-
sentação mental da música, é comprovado o fato de que “na maioria das tarefas de
representações auditivas, a voz interna tem um papel importante e, se bloqueada
(como foi feito em certo experimento)3, há uma perda significativa no desempenho”,
o que corrobora o treinamento de solfejo tradicionalmente ensinado há anos nos cur-
rículos de conservatórios e escolas de música (Convington 2005, 29).

Memória Sensório-motora
4 Pascual-Leone (2009) examina a plasticidade do cérebro em estudos onde indivíduos
aprendem novas habilidades instrumentais através da prática diária. O autor corro-
bora o que já é sabido nas esferas não científicas da prática musical: não basta conhe-
cer racionalmente como se toca piano ou violino, é preciso estabelecer um
“mecanismo de tradução”, onde o conhecimento é transformado em ação. Essa tradu-
ção é operada através da prática constante, uma antiga máxima na formação de es-
tudantes de música. Que essa prática deva ser eficiente, também não é novidade
àqueles familiarizados com a tradição pedagógica. Uma boa técnica é essencial para
a saúde do músico e a combinação do excesso de estudo com uma técnica deficiente
pode ser prejudicial. O autor, no entanto, oferece informações surpreendentes a res-
peito de como a prática instrumental se opera no cérebro do músico e menciona a
importância que grandes instrumentistas como Horowitz e Rubinstein davam à prá-
tica mental; o primeiro, antes de seus concertos, para evitar a resposta distinta de
pianos em que não estava habituado a tocar e se lembrar da resposta de seu próprio
Steinway; o segundo, para evitar que a prática real lhe roubasse mais tempo do que
gostaria de dedicar ao piano (p. 401).
Ele enfatiza a importância do sistema sensorial e de sua interface com o sistema motor
no que julga ser crucial para entender como a prática instrumental deixa de ser sau-
dável para o desenvolvimento de habilidades instrumentais. Percepção, prática e me-
mória se retroalimentam neste processo. Ao discorrer sobre a distonia focal em
instrumentistas, afirma: “Desorganização e conseqüente confusão nas recepções sen-
soriais poderiam potencialmente levar a um controle pobremente diferenciado das
representações motoras e ser os mecanismos subjacentes ao risco do controle falho
de alguns instrumentistas” (p. 405). É importante entender que o excesso de prática
pode levar a essa confusão do sistema sensorial, que passa a não diferenciar com a
precisão necessária certos movimentos para se tocar o instrumento. Ele explica: “em
pacientes com distonia, a mesma região do córtex sensorial pode responder a estí-
mulos táteis em mais de um dedo” (p. 406). Sugere que os aspectos sensoriais devam
ser tão enfatizados na aquisição de habilidades musicais quanto os aspectos motores.
Infelizmente, a tradição ainda enfatiza o aspecto motor (a máxima da ‘transpiração’
versus ‘inspiração’), mas é de máxima urgência que os instrutores, bem como os pro-
fissionais envolvidos na produção de música instrumental e vocal — seja ela sinfônica,
operística ou camerística — ocupem-se da economia de esforço físico no ensino e na
prática profissional e que se busque um equilíbrio sadio entre a prática diária — ne-
cessária — e a imaginação, através do treino mental da música como abstração teórica
e perceptiva, assim como do exercício, na memória, do treino físico já adquirido.

3 A autora menciona um estudo em que os sujeitos chupavam bala enquanto realizavam tarefas
de se lembrar de músicas ouvidas pouco antes das experiências ou bastante familiares a todos.
Representação Semântica e Episódica
Covington (2005) afirma que “não podemos presumir que [o ouvido interno] será
simplesmente um subproduto da prática auditivo-motora. Estudantes devem ser trei-
nados a usar seu ouvido interno para dirigir sua interpretação, ao invés de usá-lo para
5
reagir ao som” (p. 32). Assim como o treinamento auditivo das aulas de percepção
musical e das aulas de instrumento podem não ser suficientes para o desenvolvimento
pleno da imaginação sonora, também o treinamento conceitual das aulas teóricas de
música necessitaria de sua contrapartida com ênfase no exercício da representação
mental da obra musical.
Além da ativação dos sistemas motor e sensorial, como vimos, estudos apontam para
a recuperação de uma memória semântica, particularmente na ausência da música
cantada, quando se executa tarefas de representação mental sem o ato de tocar ou
cantar ou quando se escuta música não familiar (Covington 2005, p. 29). Ao se re-
lembrar de alguma obra musical, a não ser que se a tenha memorizado para tocá-la
num concerto-solo, por exemplo, dificilmente a obra será recobrada em sua totalidade.
Em alguns momentos, podem-se recobrar padrões em pequena escala, tais como in-
tervalos, acordes, frases, melodias familiares ou padrões métricos mais simples — o
que a autora chama de memória episódica, aquela relativa a eventos específicos — ou
ainda recuperar relações de estruturas métricas, tonais, rítmicas, formais ou harmô-
nicas em maior escala, o que Covington chama de schema, também conhecida por
memória semântica (p. 31).
Um exemplo anedótico citado por Cook (1994, 88) ilustra a idéia de como a memória
semântica não se torna necessariamente um subproduto da formação teórica. Ao
ouvir o trecho de uma obra pela primeira vez, estudantes de música são questionados
pelo professor sobre em que parte estrutural certa obra foi interrompida. Na ausência
de resposta, o professor continua a audição e, numa segunda interrupção, os alunos
são capazes de responder corretamente. Cook explica: os alunos eram capazes de
ouvir de determinada forma, mas escolheram não ouvir semanticamente na primeira
vez. Sugere que esta — não semântica — é a forma com que a maioria das pessoas
ouve comumente.
Cook, naquele momento, (1994, 81) criticava os estudos de psicologia cognitiva em
música como pretensos estudos sobre a ‘escuta musical’, quando, na verdade, eram
estudos sobre o ‘treinamento auditivo’. Lamentava o fato de que se buscasse uma psi-
cologia da teoria musical, como a pretendida por Lerdhal e Jackendoff (1983), onde
as ‘leis’ teóricas fossem as mesmas daquelas da percepção musical, do contrário, ha-
veria uma falha na comunicação entre compositores e ouvintes (p. 87). Mais tarde,
argumenta que a “percepção musical é pluralística e fluida” e que os ouvintes alternam
constantemente suas estratégias. Diz que o objetivo da teoria seria o de, “talvez, mudar
a maneira com que as pessoas experienciam a música” (p. 89) e, num exemplo sobre
uma análise de Rosen (1976), pergunta-se: “Mas os ouvintes escutam tudo isso? Bem,
talvez eles escutem depois de ter lido a análise de Rosen, que maravilhosamente logra
afiar a percepção” (p. 90). A observação crucial, no entanto, é que a análise em questão
não é necessariamente correta, mas convincente, já que afeta e modifica nossa expe-
riência de ouvir música.

6 Conclusão
Faz-se urgente que o ensino de música, no que se refere às disciplinas teórico-analí-
ticas, assim como as aulas práticas de instrumento e de percepção musical, atente
para as recentes descobertas científicas nas áreas de saúde e de neurociência cognitiva.
Enquanto algumas das antigas máximas têm sido avalizadas, outras têm sido ques-
tionadas ou mesmo desconsideradas por estudos recentes. Muito do material produ-
zido ao longo da história da pedagogia musical permanece válido, no entanto, é
preciso rever a maneira como esse material tem sido utilizado, recriá-lo e adaptá-lo
às necessidades dos músicos.
Neste artigo, frisa-se a importância do sistema sensório-motor na aquisição de habi-
lidades e desenvolvimento da memória musical instrumental e vocal, assim como
nas aquisições mais conceituais através do desenvolvimento da memória episódica e
semântica. Enquanto é possível que essas memórias sejam construídas como um sub-
produto da formação auditivo-instrumental, é preciso atentar para o fato de que, se
não forem enfatizadas na formação, correm o risco de permanecer em estado latente
ou mesmo de afetar negativamente no desempenho profissional do músico. O trei-
namento mental, entre outros benefícios, mostra-se como uma ferramenta de eco-
nomia de esforços, utilizado anteriormente por músicos brilhantes e por atletas
(Pascual-Leone 2009, p. 401), ferramenta esta que poderia evitar sofrimentos futuros.
Finalmente, coloca-se a seguinte proposição: ainda que possam existir outros fatores,
como uma predisposição genética, no desenvolvimento de doenças como a distonia
focal, não teria o estresse emocional, provocado pelas pressões da exigência de per-
feição da profissão ou pelo assédio de superiores, uma participação, ainda que indireta,
em doenças como a distonia focal? Em outras palavras, estando o desempenho do
músico instrumentista extremamente associado à sua imagem na sociedade, poderia
o estresse, através de forçar uma prática neurótica e distorcida pelos aspectos emo-
cionais, causar essa confusão no sistema sensório-motor? Acreditamos que essas e
outras questões relativas à saúde do músico estudante e profissional devam ser ende-
reçadas, amplamente discutidas e trabalhadas em pesquisa.
O sofrimento gerado por doenças adquiridas na profissão do músico instrumentista
é bem documentado em Costa e Abraão (2004). Acreditamos que é possível evitar ou
tratar de doenças que têm afetado ou mesmo impedido a carreira de muitos músicos
através da conscientização e da investigação contínua e esperamos que cientistas e
músicos invistam em pesquisas futuras sobre o assunto.

Agradecimentos à Fundunesp por apoiar a participação da autora no 7Simcam.


Referências
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New York University, 1994).
Análise sobre os aspectos psicológicos presentes no processo
de audiação em músicos profissionais
Ronaldo da Silva
8 ronalldu@gmail.com
Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas;
Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos” de Tatuí
Ricardo Goldemberg
rgoldem@iar.unicamp.br
Pós-Graduação em Música da Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Esse trabalho apresenta a análise sobre os aspectos psicológicos presentes no pro-
cesso de audiação em músicos profissionais. A pesquisa de natureza qualitativa, se
baseou na análise de conteúdos colhidos por meio de entrevista semiestruturada apli-
cada em seis músicos profissionais (dois instrumentistas, dois regentes e dois com-
positores). Os relatos dos depoentes levaram a formação da categoria A audiação na
vida profissional, em que sinalizou a relevância da prática diária da audiação por parte
do músico profissional, pois se verificou de modo geral, que para os instrumentistas,
a prática mental pode acelerar o processo de aprendizagem da obra musical, en-
quanto que para os compositores aparenta ser a genuína força criadora das idéias
musicais.
Palavras-chave
audiação – percepção musical – cognição musical

Introdução
A presença equilibrada da imagem sonora na mente humana pode ser compreendida
como uma atividade psíquica rotineira e desejável. Para os músicos profissionais tem
sido vista como um fenômeno atuante e de extrema utilidade, seja para o instrumen-
tista, o regente, o compositor e para as demais vertentes da profissão musical. Ela não
se manifesta por meio de ondas sonoras; sendo assim, não é regida pelas leis da acús-
tica. De acordo com Sacks (2007, 41), a imagem sonora é a música “que toca na nossa
cabeça”, identificada por Gordon (2000, 16) como uma “imagem vívida ou figurativa
do que o som musical representa”. Essa “imagem vívida ou figurativa” pode passar à
margem de uma compreensão sintática do fenômeno aural, por centrar-se em ques-
tões superficiais da estrutura sonora, o que poderá ser positivo ao músico menos ex-
periente, por favorecer àquele que a processa uma experiência sensorial significativa.
Sloboda (2008), entretanto, identifica duas chaves para a compreensão profunda do
fenômeno sonoro, que envolvem a memória musical: a capacidade de representar em
música uma vasta e complexa gama de elementos estruturais, e a possibilidade em
adquirir um vocabulário específico que descreva esses elementos. Diante disso, a
consciência musical gerada pelo domínio sintático do discurso sonoro poderá oferecer
uma imagem musical majorante, isto é, mais desenvolvida. Gordon (1999, p. 42) a
nomeia como audiação, quando afirma que a “audiação é para a música o que o pen-
samento é para a linguagem”.
Sobre as diversas formas de audiação, Gordon (1999, p.42) explica que: 9
“Se você é capaz de ouvir um som musical e de dar um significado sintático ao que
você vê na notação musical antes mesmo de você tocá-la, antes que alguém a toque
ou, antes mesmo de você escrevê-la, então você está procedendo a audiação nota-
cional.”
Segundo Sloboda (2008) a sintaxe é um dos componentes presentes na linguagem e
na música. A assimilação do seu sistema e a decodificação do seu conjunto de se-
qüências pode favorecer a compreensão dos elementos da estrutura musical, o que
poderá levar ao músico uma organização da conduta cognitiva, remetendo-o à ativi-
dades generalizáveis na prática audiativa. Para Montangero e Maurice-Naville (1998,
167), esse panorama resume o conceito de esquema, cunhado por Piaget (1896 - 1980),
como “o esboço geral que pode reproduzir-se em circunstâncias diferentes e dar lugar
a realizações variadas”.
Um esquema, por exemplo, poderá agregar uma simples célula rítmica, que será um
objeto no qual buscará ser assimilado e acomodado psicologicamente pelo sujeito, se
for identificado nos diversos contextos de manifestação musical (leitura instrumental,
leitura cantada, audição, etc). Caso esse fragmento rítmico não seja percebido em
outro contexto musical, o esquema não foi assimilado. Dessa forma, esse modelo teó-
rico aponta como desequilíbrio a ausência da tomada de consciência por parte do mú-
sico. Com respeito à ausência da equilibração nos diversos âmbitos da consciência
humana, Piaget (1977, 24) comenta que “são de fato estes desequilíbrios o que cons-
titui o motor da investigação; porque, sem eles, o conhecimento manter-se-ia estático.
[. . .] os desequilíbrios desempenham apenas um papel de arranque, porque a sua fe-
cundidade se mede pela possibilidade de os ultrapassar, por outras palavras, pela pos-
sibilidade de se livrar deles”.
De modo inverso, sendo o esquema assimilado, o indivíduo se equilibra sob o ponto
de vista psicológico, pois o problema de identificação e execução do padrão rítmico
foi solucionado, isto é, é reconhecível de modo abstrato em qualquer forma em que
seja apresentado, no contexto musical. Ele está pronto para novos desequilíbrios ainda
mais complexos, por meio do diálogo entre o meio e os seus esquemas já assimila-
dos.
Diante dos argumentos levantados anteriormente, a tomada de consciência de Piaget
apresenta aspectos colaboradores ao entendimento da audiação notacional de Gordon,
pois esta se refere ao pensamento musical consciente no músico profissional, que po-
derá resultar no aprimoramento de sua compreensão sonora à bases mais complexas,
no âmbito mental. Mas, como o músico profissional utiliza, de forma prática, a sua
audiação? Seria a audiação um conceito com maior validade teórica do que prática?
Objetivos
A fim de visualizar as respostas válidas para as dúvidas levantadas, essa pesquisa bus-
cou compreender qual a relevância da audiação no dia a dia do músico profissional.
Identificar, analisar e inferir as características nas quais a audiação é processada.
10

Metodologia
Seis músicos profissionais foram entrevistados separadamente, a saber: dois instru-
mentistas (pianista e percussionista), dois regentes e dois compositores. A maneira
adotada de interagir com os depoentes foi por meio da entrevista semiestruturada,
que, de acordo com Lankshear e Knobel (2008, 174), inclui:
“uma lista de questões previamente preparadas [em que o pesquisador as utiliza
como guia], acompanhando os comentários importantes feitos pelo entrevistado.
[…] Os pesquisadores podem prontamente comparar respostas à mesma questão,
e ao mesmo tempo permanecer abertos a pontos de discussão importantes mas
não previstos.”
As perguntas foram divididas em dois grandes grupos: 1) apresentação dos entrevis-
tados — cinco questões; 2) perguntas que focavam o tema da pesquisa — quatro ques-
tões. O objetivo do primeiro grupo de questões foi o de localizar o leitor diante do
respondente, ao fornecer informações relativas à idade, a citação de professores, con-
certos, gravações, composições e prêmios mais relevantes; o objetivo do segundo
grupo de questões foi o de permitir aos participantes relatar as suas experiências mu-
sicais empíricas diante do processo de audiação. Nessa comunicação, focaremos ape-
nas a terceira pergunta do grupo dois, e as implicações da resposta, emitida pelos
participantes, da questão: Hoje, qual a relevância da audiação em sua vida profissional?
Em quais situações cotidianas e de que forma você a utiliza?
Os dados coletados foram analisados com um conjunto de técnicas sugerido por Lau-
rence Bardin (2008, 44), conhecido como Análise de conteúdo, que pode ser resumido
numa
“análise das comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e obje-
tivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não)
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.”
O objetivo da escolha dessa ferramenta de análise foi transformar as informações
brutas, isto é, apresentadas da maneira em que foram colhidas, e tratá-las a ponto de
tornarem-se acessíveis e manejáveis, a fim de serem feitas representações condensa-
das e explicativas. Como estratégia para atingir esse resultado, Bardin (2008) estabe-
lece a importância de que o processo de investigação passe por três fases: a pré-análise,
a exploração do material e o tratamento dos resultados.
Pré-análise
A pré-análise, momento do primeiro encontro do pesquisador com o material a ser
analisado. Bardin (2008, 121) refere-se a esse momento como
“a fase de organização propriamente dita. Corresponde a um período de intuições,
mas tem por objetivo tornar operacionais e sistematizar as idéias iniciais, de ma-
neira a conduzir a um esquema preciso de desenvolvimento das operações suces-
sivas, num plano de análise.” 11
É possível ocorrer nessa fase atividades não estruturadas, isto é, atividades em que
não há o rigor em segui-las de modo sistemático, nem mesmo é elencada uma ordem
para que elas se apresentem. Há casos em que é aceitável que uma ou mais atividades
sejam suprimidas. Elas são a leitura “flutuante” do material, a escolha dos documentos,
formulação de hipóteses e dos objetivos, referenciação dos índices, a elaboração dos
indicadores e a preparação do material.
a) A Leitura Flutuante
São as primeiras leituras do pesquisador sobre os documentos a serem analisados.
Por ser uma leitura despretensiosa, o texto passa a se tornar conhecido ao investigador,
alimentando-o de impressões e orientações a serem confirmadas por releituras do
material. Com o passar do tempo o texto torna-se mais preciso devido à emersão de
hipóteses, à “projeção de teorias adaptadas sobre o material e [à] possível aplicação
de técnicas utilizadas sobre materiais análogos” (Bardin 2008, 122).
b) A Escolha dos Documentos
Os relatos das entrevistas formam o corpus que “é o conjunto de documentos tidos
em conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos” (Bardin 2008, 122).
Para que a escolha dos documentos seja validada, é necessário que se constitua sobre
a base de quatro regras: 1) Exaustividade – todos os elementos do corpus deve ser
apropriado, sem deixar nenhum de fora por qualquer razão injustificável; 2) Repre-
sentatividade – refere-se à amostra, isto é, parte que represente o universo inicial; 3)
Homogeneidade – utilização do mesmo critério para a seleção dos documentos, evi-
tando as singularidades; 4) Pertinência – servir de fonte útil de informação à análise.
c) A Formulação das Hipóteses e Objetivos
A formulação de hipóteses nem sempre é estabelecida na pré-análise, tampouco é
obrigatória ao se proceder a análise. A formulação dos objetivos indica o ponto de
chegada a que o pesquisador deseja atingir.
d) A Referenciação dos Índices e a Elaboração dos indicadores
A menção de um determinado tema gerou a referenciação de índice desse trabalho,
enquanto que o indicador é a freqüência na qual o tema surge no decorrer do discurso,
seja de maneira explícita ou implícita. Bardin (2008, 131) considera que essa espécie
de análise temática “consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a
comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição podem significar alguma
coisa para o objetivo analítico escolhido”.
Exploração do Material
A exploração do material é o momento em que se codifica o material, por meio de re-
cortes, agregações e enumerações, de modo que os dados atinjam um grau de repre-
sentação do conteúdo. Os depoimentos tidos como respostas às questões foram co-
lhidos na íntegra, respeitando as construções gramaticais de cada depoente, as pausas
para reflexão (indicado por colchetes e reticências, por exemplo, […]), inflexões no
12 tom de voz (quando apresentarem grande ênfase, as palavras foram transcritas em
caixa alta), gírias, entre outros.
Bardin (2008) nomeia ferramentas que facilitam a identificação e a retirada dos ele-
mentos significativos do texto: a unidade de registro (ur) – “é a unidade de significado
a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade base,
visando à categorização e a contagem freqüencial” (ibid., 130), a unidade de contexto
(UC) – “serve de unidade de compreensão para codificar a unidade de registro e cor-
responde ao segmento da mensagem, cujas dimensões são ótimas para que se possa
compreender a significação exata da unidade de registro” (ibid., 133); a categorização
(CAT), de acordo com Bardin (ibid., 145):
“é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por
diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia),
com critérios previamente definidos. As categorias são rubricas ou classes, as quais
reúnem um grupo de elementos [. . .] sob um título genérico, agrupamento esse
efetuado em razão de características comuns destes elementos.”

Tratamento dos Resultados


O tratamento dos resultados resume-se em manipular os dados codificados, em dire-
ção à inferência, que se divide em três elementos: a mensagem – elementos central, e
os polos emissor e receptor.
Análise de Conteúdo - Categorização
A tabela a seguir oferece uma visão panorâmica sobre a categoria A audiação na vida
profissional. Nem todos os entrevistados, identificados como sujeitos (S), ofereceram
informações detalhadas, que pudessem ser utilizadas em todas as ur(s). Na tabela 1,
S1 e S2 referem-se aos instrumentistas (pianista e percussionista, respectivamente),
S3 e S4 indicam os regentes, e S5 e S6 identificam os compositores.

Resultados Finais
De acordo com uma leitura atenta a essa categoria, é possível perceber que, para o
músico de alta performance, a audiação não é uma atitude esporádica, que acontece
de vez em quando. Ele a incorporou no seu estilo de vida. Não é uma apropriação
apenas diante do instrumento, do grupo a ser regido ou da folha pautada em branco.
O estudo musical não depende de material concreto para se realizar. Sendo assim, a
palavra instrumento assume a sua função real: uma interface que leva música às pes-
soas. Essa música não nasce de um pedaço de madeira, mas da cognição humana.
Diante disso, para os instrumentistas e os regentes, a audiação impulsiona o trabalho
TABELA 1 – Quadro panorâmico das unidades de registro, unidades de contexto e nú-
mero de intervenções dos participantes, referentes à categoria A audiação na vida pro-
fissional, resultantes da análise de conteúdo das entrevistas.
UC1: Como audia Sujeitos
ur1: não toca e não ouve gravação S3 e S4 13
ur2: canta S2
UC2: Quando audia
ur1: antes de dormir S1
ur2: durante a refeição S3
UC3: Onde audia
ur1: casa / ônibus S2
UC4: Por que audia
ur1: produz tranquilidade S1
ur2: agiliza o aprendizado S1 e S2
ur3: visão geral da partitura S3
UC5: Objetivo da audiação
ur1: construir a interpretação S3 e S4
ur2: escolher a obra S2
UC6: Benefício da audiação
ur1: independência de instrumentos como suporte S5
ur2: consciência musical S2
UC7: Uso do instrumento como suporte
ur1: usa com naturalidade S2, S3, S4, S5 e S6

de re-criação da obra do compositor. A construção de uma interpretação pessoal, sem


influências diretas de determinadas orquestras, grupos ou solistas, torna o produto
musical de maior valor, pois evita um possível “plágio interpretativo”. Referindo-se a
isso, os entrevistados contribuem: “eu aprendo as músicas sem o aparelho de som, na
mesa estudando. [. . .] Quando eu abro uma partitura já escuto” (S4); outro músico
ainda acrescenta: “Eu pego a partitura e faço uma análise; inclusive eu não gosto nem
de tocar a partitura, não gosto de escutar a gravação da partitura” (S3).
Para um dos sujeitos instrumentistas, o canto pode propiciar uma intimidade para
com a obra musical: “Você começa a batucar: ‘como é que vou fazer?’ [. . .] ‘Eh! Esse
trecho é chato! Vou fazer assim!’ Você começa a cantar aquilo. Apesar de nunca ter
sido tocada, aquilo se torna uma obra que você já é íntimo dela” (S2). Posteriormente
complementa que a leitura cantada pode ser uma ferramenta para conhecer uma
quantidade maior de repertório, sem a necessidade de estar diante do instrumento.
Dessa forma, a escolha e o estudo do repertório não dependem de local e horário. O
músico apto a audiar encontra chances de estudar a obra musical em oportunidades
cotidianas, como afirmam os entrevistados: “Antes de dormir [. . .] NOSSA! NOSSA! É
a melhor hora para aprender. Você vai lá e escuta!” (S1); “Às vezes, eu estou comendo,
ponho a partitura e estou estudando” (S3); “Você pega a partitura, decifra; está em
casa, está no ônibus, está lendo” (S2).
O constante vai e vem de sons na mente do músico, a organização do pensamento
musical, a transcendência da partitura pelos instrumentistas e regentes, e a capaci-
dade dos compositores de arquitetar edifícios sonoros refletem-se na qualidade final
do produto, seja na performance ou na obra grafada. O momento de contemplação
artística sentida pelo público é resultante do árduo estudo do músico que buscou, ini-
cialmente pela audiação, elementos que produzissem em si, tranqüilidade: “o tempo
todo áudio. Aliás, cada vez mais. [. . .] Essa busca me tranqüiliza, ela me localiza” (S1).
14 Da sensação de tranqüilidade resulta a segurança na execução da obra musical.
A audiação promove na vida de S1 e S2 um menor tempo no aprendizado da obra
musical, como seguem os relatos, respectivamente: “Quando eu tenho que aprender
uma música rapidamente, tocar a sonata de Brahms na semana que vem, eu trabalho
muito mais fora do piano do que no piano. O que eu trabalho no piano são questões
físicas, técnicas, mas a música, ela está [. . .] ela é anterior a isso, cada vez mais” e “Por
uma questão de agilizar o estudo, entendeu? Não era sempre que eu podia estar na
frente de um tímpano”.
Para S3, o desafio do regente é manter a unidade da obra, acrescentando o acaba-
mento do fraseado, equalização sonora, adequação do timbre, entre outros. Como re-
sultado, afirma: “eu tenho que ter uma visão geral da partitura” (S3). A audiação
oferece opções para a construção da interpretação do músico. Quando o estudo téc-
nico instrumental precede o estudo pela audiação, o estudante “deixe as dificuldades
técnicas influenciarem a interpretação” (S4).
O compositor que desenvolve um alto nível de audiação torna-se independente de
fontes sonoras externas. Pode trabalhar em qualquer tempo e lugar: “a audiação é
uma ferramenta importante porque te possibilita momentos de criação sem que você
tenha, necessariamente, o suporte de um instrumento” (S5). Da mesma forma, amplia
a consciência musical do intérprete.
Embora os entrevistados entendam que o pensamento musical deva ser autônomo,
não excluem o uso de instrumentos musicais como auxílio ao estudo da obra: “quando
eu vejo que tem uma harmonia que é muito intrincada no vibrafone, por exemplo,
que é um instrumento bem harmônico, [. . .] aí eu olho a melodia e [. . .] ‘UAU! A me-
lodia é bonita, mas como é que vai ficar o som dessa harmonia?’ [. . .] Às vezes eu
tenho que partir para o instrumento” (S2); “[. . .] e usando o piano ou não, pra você,
às vezes, tem uma dificuldade de escutar isso, daquilo” (S3); “Quando tenho algumas
dúvidas, ou preciso ver as harmonias, eu uso o piano” (S4); “Eu acho uma recusa meio
boba; se você tem o piano do lado, por que não consultar o piano em alguns momen-
tos? Veja que uma obra eletroacústica, você não tem exatamente como [. . .] você pre-
cisa do instrumento, no caso o computador, pra sintetizar os sons, pra fazer testes. É
um verdadeiro laboratório” (S5); “Se eu precisar, eu quero uma melodia ‘X’, escrevo,
harmonizo e distribuo, escrevo para os instrumentos sem precisar do piano. Só que
acontece o seguinte: quando eu experimento no piano, sempre o piano me dá mais
opções. Qualquer música que eu escrevo, faço a orquestração, escrevo tudo e tal… eu
só dou por terminada quando eu ponho no piano e leio nota por nota” (S6).
Conclusão
Diante do estudo realizado, concluímos que a audiação é uma atividade relevante e
rotineira na vida profissional dos músicos entrevistados. A assimilação dos esquemas
referentes aos parâmetros e aos elementos musicais de modo profundo, permitiu aos
15
depoentes poderem vivenciar a música no plano mental. Para os instrumentista e re-
gentes, verificou-se o que a ativação da audiação “parece ser suficiente para promover
a modulação de circuitos neurais envolvidos nas primeiras etapas do aprendizado de
habilidades motoras” (Pascual-Leone, apud Sacks 2007, 43). As ativações desses cir-
cuitos neurais podem significar melhora na execução, requerendo menor tempo de
prática física, diante do instrumento, além de uma maior possibilidade de se libertar
das dificuldades técnicas instrumentais, o que propicia um significativo aumento da
qualidade interpretativa. Para os compositores, a audiação tornou-se a matéria prima
para a composição. De acordo com Sessions (apud Gardner 1994, 80), “a imaginação
auditiva é simplesmente o trabalho do ouvido do compositor, completamente con-
fiável e seguro de sua direção como ela deve ser, a serviço da concepção claramente
delineada”.
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Sloboda, John A. A mente musical: psicologia cognitiva da música. Tradução de Beatriz Ilari e
Rodolfo Ilari (Londrina: EDUEL, 2008).
Música na carne: o advento da experiência musical incorporada
Marcos Nogueira
mvinicionogueira@gmail.com
16 Escola de Música – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
A Psicologia Cognitiva e a Neurociência contemporânea vêm comprovando, nas últi-
mas décadas, que nossas inferências intelectuais são produzidas pelo mesmo apare-
lho cognitivo, pela mesma arquitetura neuronal que usamos em nossas ações
perceptivas e corporais. Ou seja, neste contexto não haveria possibilidade de exis-
tência de uma mente separada e independente das capacidades corporais. A razão
usaria essas mesmas capacidades para se constituir. Assim sendo, nosso sentido do
que é real tem origem nas ações do nosso corpo enquanto unidade formada pelo
aparato sensório-motor e o cérebro: nossos sentidos são incorporados
. Neste artigo proponho reconhecer que a experiência do objeto musical envolve três
níveis concorrentes: (a) a percepção dos traços distintivos dos objetos sonoros e o
efeito de “animação” que a sua variabilidade produz no nosso sistema conceitual;
(b) a produção de formas e sintaxes estilísticas resultantes da ação do imaginário e
da habituação de recorrências; e (c) os efeitos emocionais gerados na troca comuni-
cativa entre um conteúdo musical e um conteúdo mental. A experiência de movi-
mento em música e os mecanismos cognitivos que empregamos para conceitualizá-lo
determinam os demais níveis de experiência, sintático e emocional. Saliento que na
experiência do movimento musical buscamos referências reais e essa experiência é
um reflexo da nossa experiência de vida corporal. O artigo discute, pois, os resultados
de um dos vieses da pesquisa por mim iniciada em 2001, dedicada ao campo que
denominei “semântica do entendimento musical”, e que tem como objetivo central
o estudo do processo de produção de sentido no ato da escuta dos objetos musicais.
Está em discussão, em especial, a proeminência do papel das descrições conceituais
(proposições) na revelação da condição incorporada que assume a mente humana
na constituição do sentido musical e sua contribuição para o entendimento das deci-
sões tanto interpretativas (seja de ouvintes ou de executantes) quanto composicio-
nais.
Palavras-chave
sentido musical – metáfora conceitual – objeto musical

Não há música sem a presença de um ser humano capaz de converter sons em música.
Palavras podem descrever os objetos musicais e a sua experiência, mas somente à me-
dida que puderem ter o sentido que a música tem para quem a experimenta. Os ter-
mos “música” e “objeto musical” referem-se a aspectos específicos do mundo humano.
Nesses termos, como lembra Thomas Clifton no início de seu Music as heard, “música
é a atualização da possibilidade de qualquer som que seja de apresentar a algum ser
humano um sentido que ele experimenta com o seu corpo — isto é, com sua mente,
seus sentimentos, seus sentidos, seu desejo e seu metabolismo” (Clifton 1983, 1). Con-
seqüentemente, a diferença entre o som que é música e o som que não é música re-
pousa no uso que fazemos dele na experiência. Um ouvinte em atitude musical está
absorto na significação musical dos sons que experimenta; não, necessariamente,
numa significação simbólica, mas em algo que é apresentado nos sons. 17
Este artigo discute os resultados de um dos vieses da pesquisa por mim iniciada em
2001, dedicada ao campo que denominei “semântica do entendimento musical”, e
que tem como objetivo central o estudo do processo de produção de sentido no ato
da escuta dos objetos musicais. Discuto aqui, em especial, a proeminência do papel
das descrições conceituais, das proposições, na revelação da condição incorporada
que assume a mente humana na atribuição do sentido das coisas, e, sobretudo, na
constituição do entendimento musical.

Intencionalidade e objetos musicais


No ato da escuta musical estão envolvidos percepção, imaginação, sentimento e juízo.
Mas não são aos sons, propriamente, que visamos. A música que podemos experi-
mentar quando alguém usa uma flauta como instrumento musical não é o som par-
ticular que “vem da flauta”. O conhecimento de que o som ouvido tem origem na
flauta — enquanto fonte sonora — não faz parte, estritamente, da experiência musical.
A associação entre os sons e os objetos materiais e as máquinas nos quais são produ-
zidos é apenas um sinal de que algo está ocorrendo no mundo físico, mas a música
não está fatualmente no mundo, como os objetos físicos estão. Num esforço de con-
sideração do objeto da experiência musical, Pierre Schaeffer cunhou o termo objeto
sonoro, a partir do qual desenvolveu uma análise fenomenológica que influenciou
significativamente os estudos acerca da experiência com a música, desde então.
Tradicionalmente, não há em artes visuais reivindicações de correspondência com a
Ótica. Não obstante reconhecermos as evidentes correlações implicadas no processo
sensório da luz e das formas visuais, bem como nas artes que as põem em jogo —
como suportes ou estruturas —, não procuramos explicar uma pintura, uma escultura
ou uma obra arquitetônica segundo as leis da Ótica. Contudo, em seu Traité des objets
musicaux, Schaeffer ressaltou que tal confusão é freqüente entre Música e Acústica,
mesmo em nossa atualidade. Uma das razões para essa confusão é estritamente sen-
sorial. Se “objetos visuais” são também, entre outros, “objetos táteis” ocupantes de
espaços e assinalados assim por mais de um sentido e afirmados por um conjunto de
provas, sons são eventos presentes a uma única modalidade de sentido: sons são “ob-
jetos de audição” — como cores são objetos de visão. Um surdo pode reconhecer a
presença de sons por meio da fisicidade tátil da vibração de ondas sonoras, mas os
sons mesmos não estão incluídos nessa experiência.
Cores são qualidades presentes em todas as coisas — podem ser assim entendidas
como qualidade secundária das coisas –, são dependentes das coisas que as possuem.
Sons, ao invés, não são comparáveis a coisas e tampouco comparáveis com proprie-
dades das coisas, pois não são qualidade de nada. Os objetos não têm sons, do modo
como têm qualidade de cor: eles emitem sons quando postos em movimento pela na-
tureza ou por ações humanas deliberadas ou não. Assim sendo, podemos entender
que o som está na coisa como virtualidade a ser atualizada, ou seja, existe apenas
18 como conseqüência de uma ação exercida sobre a coisa.
Sendo assim, objetos são, de um ponto de vista metafísico, causa dos sons cujas qua-
lidades não incluem os efeitos táteis das vibrações, pois tais efeitos pertencem à outra
ordem de perceptos. Devido à exclusividade do processo auditivo em assinalar os sons,
desenvolvemos, de algum modo, padrões perceptivos que se configuram por corre-
lações diversas entre sons experimentados e coisas da ordem visual, tais como ins-
trumentos musicais, máquinas, animais e fontes sonoras em geral. Schaeffer
chama-nos, a propósito, a atenção para a diferença entre luz e som na nossa atividade
sensorial. Quando percebemos um objeto iluminado, ou seja, a sua “forma”, a fonte
que fornece os raios luminosos de que se reveste o objeto — seja ela o sol ou um pro-
jetor qualquer — é naturalmente negligenciada em proveito do objeto. “Os sons, apa-
rentemente, provêm de fontes; e ao que parece, o que interessa ao ouvido, ao contrário
do que ocorre aos olhos, são os raios sonoros” (Schaeffer 1993, 138).
Em seu discurso, Schaeffer salienta o notável apelo que exercem as causas dos sons
em nossa cultura. Ao ouvirmos um enunciado verbal, visamos imediatamente aos
conceitos que nos são por ele transmitidos; ao escutarmos o som de um latido, visa-
mos ao cão — ou seja, é em relação ao cão que escutamos o som como índice — e,
nesse caso, não há, propriamente, um “objeto sonoro”: há apenas uma percepção, uma
experiência auditiva, através da qual visamos a um outro objeto. Em outras palavras,
é fácil confundir o objeto percebido e a percepção que dele temos. Durante a maior
parte do tempo, a nossa escuta visa a “outra coisa”. Insistimos em ouvir senão indícios
ou sinais: uma escuta que se mantém, de modo geral, num estágio estritamente refe-
rencial. Embora mostremos interesse pelos sons eles mesmos, num primeiro mo-
mento não vamos além de dizer “é o latido de um cão”, ou até mesmo “é um dó grave
de flauta”. E Schaeffer já salientava, em seu Traité, que quanto mais hábeis nos torna-
mos para identificar indícios sonoros, maior se torna nossa dificuldade de entendê-
los como objetos: “quanto mais fácil nos é compreender uma linguagem, tanto mais
difícil nos será ouvi-la” (Schaeffer 1993, 246).
Dessa experiência resulta a pergunta: o som não pode ser pensado sem a coisa a partir
da qual foi produzido? De fato, a possibilidade de uma autonomia para a percepção
dos sons esbarra em sua debilidade e sua impermanência, pois os sons estão sempre
na iminência de desaparecer, dada a ausência de vínculos com as coisas materiais
como aqueles que nestas são sinalizados nas operações sensoriais da visão ou do tato.
Todavia, a possibilidade de haver ainda sons cujas fontes (causas) não sejam identi-
ficáveis ou mesmo que não pareçam responder sonoramente a ações humanas, isto é,
de haver uma desvinculação entre som e causa, trouxe-nos, nas últimas décadas, uma
nova formulação acerca do caráter da experiência do som musical. Se o som sempre
esteve associado ao fenômeno energético que lhe dá origem, até mesmo confundindo-
se com ele na prática cotidiana — incluindo-se aí a musical —, a noção de objeto so-
noro era então negligenciada pela Acústica, que no seu método de remissão dos fatos
às respectivas causas reconhecia como plenamente satisfatória a descrição do fenô-
meno energético (o sinal físico) como fonte sonora. Assim sendo, não havia razão
para que o ouvido, a partir da “propagação de radiações mecânicas no ar”, percebesse 19
outra coisa senão a própria fonte sonora.
Todavia, na experiência do som musical — a forma sonora que denominamos música
— normalmente menos importa como nascem os sons ou qual o mecanismo de sua
propagação, que como são percebidos e apreendidos. Como ensinou Schaeffer, na ex-
periência musical o que escutamos não são nem as fontes nem os sons, simplesmente,
mas sim objetos sonoros, formas sonoras com sentido musical potencial. Portanto, em
algum estágio dessa experiência separamos, espontaneamente, o som das circuns-
tâncias de sua produção e o ouvimos como é em si. E isto Schaeffer denominou ex-
periência acusmática do som — renovando o termo grego akousmatikoi 1, que diz do
som que se escuta sem, contudo, se verem as causas de onde provém.
O projeto de Schaeffer teve como pano de fundo a produção da chamada “música ele-
troacústica” nascente — uma música que devido a seu modo de reprodução original-
mente mecânico, prescindia ineditamente da performance —, e visava, pois, a
deslocar a atenção antes dividida com toda a sorte de “materialidades” (como instru-
mentos e acessórios, sonoridades, partituras etc.) e procedimentos (a aparência, a
respiração, os gestos dos intérpretes-executantes etc.) envolvidos na performance
musical, para a exclusividade do que está no som: o objeto sonoro. Trata-se, portanto,
de uma tentativa aparentemente inviável de violar a tese, de Merleau-Ponty, da inter-
sensorialidade, uma vez que segundo este os diversos canais perceptivos não seriam
passíveis de isolamento — não poderia haver, estritamente, escuta acusmática ou mú-
sica acusmática. Então Schaeffer procurou resolver essa dificuldade com o desenvol-
vimento de uma espécie de “percurso” da escuta, recorrendo para isso à sinonímia,
precisando as variantes lingüísticas do ato da escuta e especializando seus sentidos
(no que entendeu serem os quatro modos de escuta: ouvir, escutar, entender e com-
preender).
Ainda que não seja possível isolarmos os diferentes “modos de escuta”, na cultura mi-
diática as materialidades e os comportamentos comprometidos em uma provável per-
formance que anteceda e determine os objetos “difundidos“ vêm se tornando cada
vez mais irrelevantes. Ao escutarmos objetos sonoros cujas causas instrumentais estão
cada vez mais freqüentemente ocultas, tendemos a nos desinteressar por essas causas
e atentar apenas para os objetos eles mesmos. Cumpre enfatizar, no entanto, que a
dissociação de vista e ouvido — que favoreceria a estrita escuta do que há nos sons
musicais — não seria plena apenas a partir da experiência “acusmática” de Pitágoras.

1 Acusmáticos, dizia-se dos discípulos de Pitágoras, que durante anos ouviam as lições do mes-
tre por detrás de uma cortina, observando silêncio absoluto, desse modo ouvindo apenas a voz
que a eles chegava livre da distração dos olhos.
Somente com a difusão dos novos meios de reprodutibilidade da “base sonora” dos
objetos musicais é que as condições efetivas para promover um desencorajamento da
nossa curiosidade instintiva pelas causas vêm se tornando decisivas. Podemos obser-
var que a repetição do sinal físico da música, que as tecnologias de gravação permi-
20 tiram, nos ajuda na aproximação do objeto sonoro de maneira renovadora. Antes de
tudo, por reduzir, paulatinamente, o interesse pelas fontes, colocando, pouco a pouco,
o objeto sonoro como novo e digno interesse perceptivo. Além disso, em virtude de
possibilitar escutas mais completas e refinadas, a “cultura da repetição” nos revela de
maneira mais intensa e consistente a riqueza potencial dos objetos sonoros da música.
Enfim, com sua incipiente fenomenologia2, Schaeffer evidenciou um conceito — e
cunhou um termo — que viria transformar significativamente a pesquisa acerca da
experiência musical. Existe propriamente objeto sonoro quando tivermos completado
o que Schaeffer denominou uma “redução” — usando o termo husserliano — mais ri-
gorosa que a “redução acusmática” da experiência de Pitágoras. Restringimo-nos,
assim, às informações fornecidas pelo nosso ouvido, que dizem respeito apenas ao
evento sonoro em si mesmo. Portanto, não procuraríamos obter informações sobre
outra coisa. É o próprio som a que visaríamos — intentamos escutar apenas o objeto
sonoro que se dá “no encontro de uma ação acústica e uma intenção de escuta”: uma
escuta reduzida. Essa nova situação produz novos hábitos na relação com o som mu-
sical. E na experiência midiática da música isso tem levado, cada vez mais radical-
mente, à renúncia da presença e da performance, permanecendo na escuta apenas
objetos sonoros com sentido musical: objetos musicais.

Eventos, causas e metáforas primárias


Tendo em vista o que foi discutido até aqui, enquanto ouvimos sons como música
ocorrem simultaneamente três processos: a realidade física das vibrações e das ondas
sonoras; o som que percebemos auditivamente na experiência dessas vibrações; e o
objeto musical que escutamos nos sons como objetos sonoros, isto é, o objeto inten-
cional da escuta musical. Proponho reconhecermos que a experiência do objeto mu-
sical, por sua vez, envolve três níveis concorrentes: (a) a percepção dos traços
distintivos dos objetos sonoros e o efeito de “animação” que a sua variabilidade produz
no nosso sistema conceitual; (b) a produção de formas e sintaxes estilísticas resul-
tantes da ação do imaginário e da habituação de recorrências; e (c) os efeitos emo-
cionais gerados na troca comunicativa entre um conteúdo musical e um conteúdo
mental. A conceitualização da experiência do objeto musical nestes três níveis revela
o quanto somos hábeis em transferir sentidos entre domínios de experiência distintos.
Refiro aqui às projeções metafóricas que estão na base da maior parte da nossa pro-

2 O próprio Schaeffer assim o reconhece: “durante anos exercemos a fenomenologia sem sabê-
lo (…). Apenas tardiamente pudemos reconhecer uma concepção do objeto que a nossa pes-
quisa postulava, cercada por Edmund Husserl de uma exigência heróica de precisão que
estamos longe de pretender ter” (Schaeffer 1993, 237).
dução de sentidos, e que, particularmente, dão origem ao entendimento musical.
A experiência de movimento em música e os mecanismos cognitivos que empregamos
para conceitualizá-lo determinam os demais níveis de experiência, sintático e emo-
cional. Essa experiência do movimento resulta da nossa tendência em identificar
eventos sonoros distintos e em agrupá-los em unidades estruturáveis. Na experiência 21
do movimento musical buscamos referências reais e essa experiência é um reflexo da
nossa experiência de vida corporal. Ao “ouvirmos” movimento, estamos ouvindo uma
espécie de animação: uma “aparência de vida”. Saliento, entretanto, que o ritmo mu-
sical é um fenômeno gestáltico que se assemelha, em alguns aspectos, à percepção
dos padrões visuais. Sua constituição exige a ação direta da imaginação e da subjeti-
vidade dos desejos, uma vez que consiste em agrupações não derivadas de relações
reais com suportes materiais. Ritmo musical é movimento estruturado, uma expe-
riência sintática.
Como já assinalara Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da percepção, nossos ór-
gãos sensoriais não são funcionalmente independentes um do outro, uma vez que
sintetizamos as suas percepções empiricamente separadas. Em cada percepção há
um eu indivisível para quem cada experiência constitui um sentido. Com freqüência,
dizemos que o som produzido no registro médio do fagote é rouco e anasalado. Essas
palavras são, contudo, descritivas de nossa própria experiência corporal. A “textura”
do som, ou melhor, o seu timbre, como fenômeno, não deve ser confundido com um
estímulo acústico atingindo o nosso corpo. O nosso corpo é que produz seus efeitos
sobre as qualidades dos objetos sonoros ao ser ele mesmo afetado pelas propriedades
sonoras daqueles eventos. Podemos entender então que o timbre, como fenômeno
— uma textura que ouvimos nos objetos sonoros como sendo sua propriedade —,
não é imanente ao fagote como presença física, mas aos sentidos dos eventos sonoros
nele produzidos.
O mesmo ocorre quando pensamos a música como algo que tem uma dimensão ho-
rizontal e outra vertical3. É muito comum aí empregarmos também o termo “textura”,
como uma metáfora de tecelagem, na qual a urdidura — os fios dispostos longitudi-
nalmente no tear — representa a dimensão horizontal, os sons sucessivos que formam
linhas melódicas; e a trama — os fios transversais –, representa a dimensão vertical,
os sons simultâneos que formam estruturas acordais. Quando falamos em textura dos
objetos musicais, referimo-nos a como esse “tecido” funciona, a quão densas são as
linhas verticais se comparadas às horizontais, a como as linhas horizontais “mudam”
no tempo, movendo-se conjuntamente ou independentemente, e assim por diante. O

4 O grande apelo desse sistema plano de coordenadas em nosso discurso da música deve-se,
muito provavelmente, à disseminação da prática notacional tradicional da nossa cultura. Essa
técnica, tal qual a espacialização produzida pela escrita literal, atribui à dimensão horizontal
a sinalização da sucessão temporal de eventos, mas sobrepõe verticalmente as várias ocorrên-
cias lineares concorrentes. Entretanto, cumpre aqui salientar que nossa experiência da música
envolve outra dimensão espacial, por meio da qual localizamos objetos em níveis distintos de
profundidade, o que dá à textura plana ao menos o caráter de rugosidade.
emprego da metáfora de tecido implica serem a urdidura e a trama mais que meras
dimensões da música; são organizações que mantêm a música unida do mesmo modo
que as fibras mantêm os tecidos. Textura é o que experimentamos quando ouvimos
durações, regiões de altura sonora (registros), distâncias, intensidades sonoras, pro-
22 fundidades, timbres, direções, enfim, estamos falando de espaço e de objetos cujas
características dependem da nossa percepção de todos aqueles parâmetros. Quando
ouvimos sons como música, distinguimos o espaço físico dos eventos acústicos do
espaço fenomênico dos eventos musicais.
No capítulo que dedica ao espaço, Merleau-Ponty (1994, 328) afirma que: “o espaço
não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual
a posição das coisas se torna possível”. O espaço é, antes de tudo, o campo de ação do
nosso engajamento corporal no mundo e está pressuposto em todo ato perceptivo.
Por isso, a generalidade do espaço é algo que tem origem no ser humano que o expe-
rimenta.4 Além disso, a distinção entre lugar e ocupante assinala uma importante di-
ferença entre espaço e tempo, pois o tempo não é preenchido por coisas que nele
ocorrem, como são os espaços. Um evento sonoro, por exemplo, toma “algum tempo”,
mas não compete com outros eventos pelo tempo que requer: os eventos podem ser
simultâneos. Portanto, o caráter topológico do espaço, como sistema de lugares e su-
perfícies, não se reproduz no domínio acústico musical. Na escuta musical experi-
mentamos não apenas os eventos no tempo, mas confrontamo-nos com o próprio
tempo expandido, espalhado e oferecido à nossa contemplação e apreensão direta e
completa, tal como o espaço está espalhado diante de nós no campo visual. No do-
mínio acústico a ordem temporal é dissolvida e reconstituída como um espaço feno-
mênico. E transferimos para esse espaço nossa familiaridade e os sentidos que
forma-mos em nossas experiências de ação corporal — parece que podemos nos
mover no tempo com a mesma autonomia que exercemos nossa mobilidade espacial.
A experiência do objeto sonoro começa, como já discutido, no reconhecimento de
eventos sonoros. E se é na sucessão temporal dos eventos sonoros, que ouvimos “mo-
vimento”, precisamos estudar mais cuidadosamente as questões relativas a causas,
eventos e tempo. Como Schaeffer observou, se na escuta dos objetos sonoros devemos
nos desinteressar pelas causas dos sons, ao contrário eventos e causas musicais —
como também estados e ações envolvidos — exigem a atenção de quem experimenta
os sons como objetos musicais. O espaço acusmático está sempre associado a uma
causalidade virtual; na escuta musical os objetos sonoros agem uns sobre os outros e
essa causalidade é experimentada tanto como algo de ordem pré-conceitual — um

4 Quanto a isso, Lakoff e Johnson fazem uma observação especialmente pertinente: a nossa
fala apresenta uma ordem linear, dizemos algumas palavras antes e outras depois; como a fala
mantém uma correlação com o tempo e o tempo é conceitualizado em termos de espaço, é na-
tural também que conceitualizemos a linguagem metaforicamente em termos de espaço — e
os nossos sistemas de escrita reforçam essa conceitualização. “Em virtude de conceitualizarmos
a forma lingüística em termos espaciais, é possível a certas metáforas espaciais referirem-se
diretamente à forma de uma frase como a concebemos espacialmente” (1980, 126).
fluxo vital — quanto conceitual e proposicional — resultante de um alto grau de con-
vencionalidade estilística. Quando a causalidade é experimentada como produto de
formas estereotipadas, é percebida como inevitável. Nesse caso, parece-nos que um
objeto sonoro não dá, meramente, origem ao objeto seguinte, mas que cria uma tal
situação que faz seu sucessor significar uma resposta correta e, muitas vezes, previ- 23
sível.
Os filósofos dedicaram-se, no curso da história, a uma variedade de teorias da cau-
sação — envolvendo conceitos tais como forma, propósito, força, condição, relação
— cada qual com a sua própria lógica; e ainda assim todas essas teorias são reconhe-
cidamente teorias da mesma coisa. O conceito literal esquemático dos raciocínios
causais é: “causa é um fator determinante para uma situação”, seja a situação um es-
tado, uma mudança, um processo ou uma ação. George Lakoff e Mark Johnson (1980)
observaram que toda a riqueza de formas de raciocínio causal surge de duas fontes:
um protótipo causal e uma grande variedade de metáforas para causação. Assim, o
centro do nosso conceito de causação é o uso volicional que fazemos de nossa força
corporal para mudar algo fisicamente: uma causação prototípica. Extensões desse
protótipo dão origem aos casos em que uma causa abstrata é conceitualizada meta-
foricamente em termos de força física através da metáfora primária “causas são forças”.
E em virtude da causa ocorrer antes do efeito no caso prototípico, surgem ainda me-
táforas como “precedência causal é precedência temporal”, “causas são correlações”
ou “causas são fontes”.
Estruturamos tanto os movimentos dos nossos corpos quanto os eventos no mundo
com uma mesma estrutura neuronal (um esquema) para evento, que consiste, basi-
camente, de: estado inicial, processo (aspecto central do evento) e estado final (re-
sultante do processo). Algumas metáforas primárias são constituídas a partir desse
modelo geral como estruturas inferenciais. Por exemplo, os estados são conceituali-
zados como “limites” no espaço; mudanças são conceitualizadas como “movimentos”
entre localizações espaciais. Donde podemos concluir que nosso entendimento fun-
damental de eventos e causas vem de duas metáforas: a que conceitualiza evento em
termos de localização e a que o conceitualiza em termos de objeto. Ambas têm como
base as metáforas primárias “causas são forças” e “mudanças são movimentos”, que
possuem um alto grau de convencionalidade em nossa experiência.

A conceitualização dos objetos musicais


O que significa dizer que os conceitos que produzimos no esforço de entendimento
são incorporados? Nosso sistema sensório-motor desempenha um papel essencial na
produção de tipos especiais de conceitos: conceitos aspectuais e espaciais. Qualquer
uso que fazemos de conceitos requer ser constituído por nossa rede neuronal. E a es-
trutura da rede determinará quais conceitos teremos e disso que tipo de raciocínio
poderemos fazer. O que a Psicologia Cognitiva e a Neurociência contemporânea vêm
comprovando nas últimas décadas é que nossas inferências intelectuais são produzi-
das pelo mesmo aparelho cognitivo, pela mesma arquitetura neuronal que usamos
em nossas ações perceptivas e corporais. Ou seja, as ciências cognitivas vêm mos-
trando evidências de que não há uma mente separada e independente das capacidades
corporais; a razão, pois, usaria essas capacidades para se constituir. Assim sendo,
24 nosso sentido do que é real tem origem nas ações do nosso corpo enquanto unidade
formada pelo aparato sensório-motor e o cérebro.
O modo como categorizamos o real é conseqüência de como somos cognitivamente
incorporados. A categorização não é resultado de um “puro raciocínio”, mas em
grande parte determinada pela “experiência” que travamos corporalmente com o
mundo. Nossa condição de seres neuronais estabelece que as categorias que produzi-
remos mentalmente serão formadas por meio de nossa incorporação, sendo assim
partes da nossa experiência. As categorias caracterizam-se como estruturas mentais
que diferenciam aspectos de nossa experiência, destacando-os de um todo antes in-
diferenciado. Nesse contexto, aquilo que denominamos “conceitos” podem ser en-
tendidos como estruturas neuronais que nos permitem constituir conhecimentos
sobre as nossas categorias. Um conceito incorporado é assim uma estrutura neuronal
que usa nosso sistema sensório-motor, e por isso a maior parte das inferências con-
ceituais são inferências de ordem sensório-motora.
Os conceitos de relações espaciais formam o núcleo principal do nosso sistema con-
ceitual. Lakoff e Johnson (1999) evidenciaram que tais conceitos caracterizam a
“forma espacial”, determinam o que ela é para nós e as inferências que fazemos de nos-
sas experiências corporais. Contudo, aqui a questão central da pesquisa cognitiva é
que nossos conceitos de relações espaciais são empregados inconscientemente por
nosso sistema conceitual, quando percebemos uma entidade em ou através de outra.
Ou seja, relações espaciais, em geral, seriam configurações complexas de relações es-
paciais elementares cujas estruturas são constituídas pelo que denominaram esque-
mas de imagem. Há uma lógica espacial construída em esquemas como, por exemplo,
o de “caminho”: origem – trajeto – alvo. Seus elementos principais são, portanto, uma
trajetória e os pontos de partida e chegada. Nosso conhecimento fundamental de
“movimento” é caracterizado por este esquema e sua lógica está assim implícita em
sua estrutura. Enfim, diversos conceitos de relações espaciais são determinados por
este esquema; mas aquilo que mais merece atenção, no presente estudo, são as ope-
rações essencialmente inconscientes que transferem sentidos constituídos em expe-
riências sensório-motoras para outros domínios de experiência. Essa transferência
produz, por exemplo, a partir da experiência de “caminho” e dos conceitos dela gera-
dos, outros conceitos como os de “projeto” ou de “melodia”.
A questão subjacente aqui é que concreto e abstrato são conceitos interdependentes.
Não podemos, por exemplo, falar de uma coisa “que existe” (concreta, do ponto de
vista da realidade), sem conhecer o conceito de “existência” (abstrato, do ponto de
vista do pensamento). O termo “concreto” é um conceito que designa algo que é real
e múltiplo; o termo “abstrato” referencia algo concreto, tirando de sua multiplicidade
alguma qualidade específica. Quando tentamos empurrar um móvel muito pesado,
experimentamos a resistência “desse objeto” ao nosso esforço. A partir das categorias
formadas nessa experiência, elaboramos vários conceitos, dentre eles o de “dificul-
dade”. Só pudemos conceitualizar a experiência, criando, dentre outros, o termo “di-
ficuldade”, porque experimentamos a dificuldade como algo real com o nosso corpo.
Enfim, o corpo é a casa do concreto, pois concreto é aquilo que se pode experimentar 25
sensorialmente e que tem implícitos conteúdos materiais.
Podemos dizer então que concreto e abstrato são sempre resultados de operações
mentais. Abstrato é aquilo que separa o que não está separado na realidade que nos
cerca. Nossa capacidade de abstração nos torna competentes para identificar as inú-
meras propriedades da realidade. A Neurociência nos oferece inúmeros dados que
sugerem que ambos os conceitos, concretos e abstratos, teriam uma representação
verbal comum, enquanto os conceitos concretos teriam uma representação adicional
por visualização mental, dada sua origem nas experiências sensório-motoras. A di-
ferença de tratamento que o cérebro dispensa a cada tipo de conceito pode explicar
por que os termos que nomeiam os conceitos concretos são aprendidos mais cedo e
reconhecidos mais fácil e rapidamente que aqueles que nomeiam os conceitos abs-
tratos. A possibilidade de formação de múltiplas “imagens mentais” do concreto, so-
bretudo visuais, pode explicar sua antecedência na coleção de conceitos que
aprendemos ao longo da vida: é mais fácil visualizar mentalmente o “espaço físico”
ao nosso redor, que o “tempo”, por exemplo. Conceitos abstratos não são intuitiva-
mente representáveis como, por exemplo, “infinito”, “dificuldade”, “raiva” etc. Estes
conceitos não possuem identidade com nenhum objeto existente, não existem por si
na realidade. Por isso, experiências corporais tais como nos manter equilibrados fi-
sicamente, que nos vincula à realidade material circundante, dão origem a quase
todos os nossos conceitos abstratos.
Música é uma experiência que nos coloca diante de uma grande aventura de abstração,
pois quando fechamos os olhos e ouvimos música, estamos mergulhados num mundo
sem matéria, que nos nega radicalmente a experiência visual. Assim sendo, tudo que
passamos a fazer para apreender essa experiência, para torná-la mais concreta e men-
talmente organizável, é traduzi-la corporalmente e, principalmente, produzir uma
expressão visual para a música. É fácil constatar que tudo o que dizemos acerca do
que percebemos na música tem origem em nossas representações visuais da música,
produzidas pela mente. Construímos mentalmente uma “realidade virtual” para a
música, uma espécie de abstração de realidade objetiva, espacial e visual. A anterio-
ridade e a familiaridade que temos do nosso conhecimento do concreto nos leva a
“visualizar” a música como estratégia natural para entendê-la, em virtude do alto grau
de abstração que a música nos exige. Então dizemos que a melodia sobe e desce, que
determinados sons vão e vêm, que a música é mais clara e mais escura, que um som
é mais ou menos áspero, que a instrumentação é mais ampla ou mais estreita, que
um determinado som está ocultando outro, que uma parte da música equilibra a
outra etc. Enfim, a música só pode ser traduzida, conceitualizada e comunicada dis-
cursivamente por meio de metáforas visuais procedentes de nossos conceitos incor-
porados.
Referências
Clifton, Thomas. Music as heard: a study in applied phenomenology (New Haven and London:
Yale University Press, 1983).
Husserl, Edmund. Ideas relativas a uma fenomenologia pura y uma filosofia fenomenológica.
26
Tradução José Gaos (México: Fondo de Cultura Económica, 1992).
Lakoff, George & Johnson, Mark. Metaphors we live by (Chicago and London: University of
Chicago Press, 1980).
———. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. (New
York: Basic Books, 1999).
Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de
Moura (São Paulo: Martins Fontes, 1994).
Nogueira, Marcos. “Comunicação em Música na cultura tecnológica: o ato da escuta e a se-
mântica do entendimento musical”. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, 2004.
Schaeffer, Pierre. Tratado dos objetos musicais (Brasília: EdUnB, 1993).
Um estudo sobre a influência da expectativa
na cognição de paisagens sonoras
Bernardo A. de Souza Penha
berasp@gmail.com 27
Jônatas Manzolli
jjotamanzo@hotmail.com
Departamento de Música, Instituto de Artes – UNICAMP
José Fornari
tutifornari@gmail.com
Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora – UNICAMP

Resumo
Paisagens Sonoras se aproximam de uma organização similar àquela que constitui
uma peça musical. No entanto, as paisagens sonoras são fenômenos auto-organiza-
dos, que nunca se repetem acusticamente, mas que sempre mantém uma identidade
sonora, que pode ser facilmente percebida por qualquer ouvinte. Em paralelo, a Ex-
pectativa é aqui vista como a faculdade mental que nos impulsiona a estabelecer
predições sobre eventos futuros, esperando por acertos e temendo erros. Da mesma
forma que acertar nos satisfaz, errar nos incomoda. A música, tal como outras formas
de arte do tempo, tece uma trama de Expectativas a eventos sonoros — sejam estes
de natureza rítmica, melódica ou harmônica — que são manipuladas durante a pro-
sódia musical; e que advêm da estrutura inicialmente concebida pelo compositor, pas-
sando pela interpretação do músico — nas entrelinhas das pequenas variações
inseridas durante a performance — e finalizando na cognição e afeto musical do ou-
vinte. Isto cria o discurso musical, que muitas vezes nos move e envolve, de forma
tão intensa e intrínseca. Paisagens sonoras são aqui vistas como fenômenos mais
simples de serem analisados, do que peças musicais. Assim, apresentamos neste ar-
tigo um trabalho em andamento que visa inicialmente estudar a influência da Ex-
pectativa de eventos sonoros distintos, na percepção de elementos formantes de
paisagens sonoras. A percepção de tais eventos sonoros é estudada pela psicoacústica,
iniciando-se pela medida referida por JND ( Just Noticeable Difference), que trata da
diferença mínima entre eventos sonoros, em intensidade e freqüência, para que estes
sejam auditivamente catalogados como distintos. Pretendemos assim estudar se a
Expectativa musical do ouvinte altera seu limiar de JND. Com isto, queremos estabe-
lecer as bases para um futuro estudo da influência da Expectativa na percepção de
eventos musicais. Neste artigo apresentamos os princípios introdutórios e metodoló-
gicos desta instigante investigação.
Introdução
Paisagem Sonora
O conceito de paisagem sonora está vinculado à interação entre fontes sonoras e o
28 meio (Schafer 2001). O objetivo da Ecologia Acústica é valorizar a percepção sonora
na sociedade contemporânea com o intuito de ampliar a consciência do ambiente
acústico que nos cerca. Schafer sugere que deveríamos ouvir o ambiente acústico
como uma composição musical, e mais, que temos uma responsabilidade nessa com-
posição. Na década de 1970, juntamente com seus colegas da Simon Fraser University
(SFU), Schafer criou o WSP (World Soundscape Project), tendo como primeiro grande
trabalho o estudo de campo da paisagem sonora de Vancouver. Esta pesquisa envolveu
medidas de intensidade sonora local que foram apresentados como curvas isodecibel,
ou seja, similarmente a um levantamento topográfico, foram geradas curvas de níveis
de intensidade sonora distribuídas pelo espaço geográfico. A partir das gravações de
paisagens sonoras foi possível descrever uma gama de características sônicas obser-
vadas naquela cidade.
Ao longo do encaminhamento da sua pesquisa, Schafer desenvolveu conceitos essen-
ciais, que funcionaram como alicerce para o estudo de paisagem sonora. Estes são:
1) Sons Fundamentais – sons ouvidos com uma constância mínima para caracterizar
um plano de fundo, contra o qual, outros sons são percebidos. Normalmente não são
ouvidos de maneira consciente, mas atuam como agentes condicionadores na per-
cepção desses outros sinais sonoros. Tais sons representariam o fundo, em um para-
lelo com a relação figura-fundo do campo visual; 2) Sinais Sonoros – quaisquer sons,
para os quais a atenção é particularmente direcionada. Esses contrastam com os sons
fundamentais, exatamente da mesma maneira como a figura e o fundo se opõem na
percepção visual; 3) Marcos Sonoros – termo advindo do conceito de “ponto de refe-
rência”, ou “marco divisório” (do inglês, landmark), para referir-se aos sons peculiares
de uma comunidade. Esses sons são únicos ou possuem características que os tornam
particularmente notados pela população dessa comunidade. Dentre os exemplos na-
turais, estão sons de geysers e de quedas d’água, enquanto exemplos culturais incluem
sons de sinos típicos e sons de atividades tradicionais. Schafer ressalta ainda que o
conceito de Marco Sonoro, dá suporte à idéia de que há sons de um determinado local
que, da mesma forma que a arquitetura e a indumentária, expressam a identidade
dessa comunidade. Ou seja, povoados podem ser reconhecidos e caracterizados por
suas paisagens sonoras. Contudo, desde a revolução industrial, este tipo de paisagem
sonora singular tem desaparecido completamente ou, no mínimo, sido abafada por
nuvens de ruídos homogêneos e sem identidade. Esta é a situação que caracteriza a
paisagem sonora da cidade contemporânea, a qual tornou-se marcada por um som
fundamental onipresente, como o som gerado pelo tráfego.
Percepção Sonora
A percepção do som é um processo que ocorre na fronteira entre a fisiologia e a psi-
cologia. Este é influenciado pelo aparato auditivo, que transforma ondas de compres-
são longitudinal do meio elástico (o ar), em impulsos elétricos no ouvido interno. O
estudo dos processos de percepção sonora é realizado pela psicoacústica; a ciência
que trata da sensação e percepção de eventos sonoros, em termos físicos (acústicos)
e fisiológicos. A psicoacústica estuda como as ondas longitudinais de compressão e 29
expansão do meio elástico – as ondas acústicas que chegam ao nosso ouvido – são
percebidas pelo aparato auditivo binaural e enviadas ao cérebro, na forma de impulsos
elétricos neurais, de modo a dar ao ouvinte informações úteis sobre o ambiente ao
seu redor. Do ponto de vista da psicoacústica, o som inicia-se por um fenômeno físico
cujo potencial perceptivo só se manifesta com a participação de um receptor. Como
descrito em Pierce (1992), tal fenômeno inicia-se pelas ondas acústicas — dentro de
uma certa faixa de intensidade e freqüência, a qual somos sensíveis — que se propa-
gam até os dois ouvidos do ouvinte. No fim do canal auditivo, encontra-se o tímpano,
no qual o estímulo, produzido pelas ondas acústicas, ocasiona o deslocamento de os-
sículos, que atingem uma membrana chamada de janela oval. Essa janela marca o
começo de uma cavidade na estrutura óssea do crânio, chamada de cóclea. A cavidade
é preenchida por um líqüido que provoca a movimentação de pequenas fibras capi-
lares, presentes numa membrana que segmenta a cóclea em dois hemisférios. Essa
membrana é denominada de membrana basilar. A movimentação das fibras capilares
transforma energia mecânica em sinais elétricos que, por sua vez, são transmitidos
ao córtex cerebral através dos nervos auditivos de ambos ouvidos.
Percepção de Múltiplos Evento Sonoros
Apesar da informação acústica chegar misturada aos nossos ouvidos, nossa cognição
é capaz de perceber e discriminar eventos sonoros de natureza distinta. Somos capa-
zes — dentro de um certo limite — de prestar atenção numa conversa, estando em
um ambiente tumultuado, com muitas outras conversas ocorrendo simultaneamente.
O limite da nossa capacidade de discriminação de eventos sonoros está também ligada
a fatores psicoacústicos, tal como o efeito conhecido por mascaramento. Este ocorre
quando uma fonte sonora é impedida de ser percebida pela interferência de outra. O
som que mascara impede que outro som possa ser percebido, a não ser que haja um
aumento na sua intensidade. Esta intensidade mínima é denominada de “limiar de
audição”. O mascaramento ocorre de diversas formas, com sons de altura musical
(pitch) definida, que possuam espectro harmônico ou inarmônico, e com sons rui-
dosos (sem pitch), com espectro de banda larga. Quando o mascaramento ocorre com
sons com altura definida, um som intenso de freqüência baixa pode mascarar um
som fraco de freqüência alta. Em oposição e independentemente da intensidade, um
som de freqüência alta não mascara um som de freqüência baixa. Isso ocorre devido
à maneira como a membrana basilar percebe os componentes sonoros de distintas
freqüências. Esta percebe componentes de diferentes freqüências em diferentes re-
giões de sua extensão. Sons agudos são percebidos na região da membrana basilar
próxima à sua base; os graves são percebidos na região próxima a seu ápice. Desta
forma, para chegar nessa posição, o componente sonoro percorre primeiramente a
região de percepção mais aguda, a qual pode ser afetada se o som grave tem intensi-
dade suficiente (Pierce 1992). No caso de um som ruidoso, composto por uma banda
larga de freqüências, o mascaramento é mais efetivo em relação a um som contendo
30 apenas uma freqüência no espectro, ou seja, um som senoidal. O mascaramento
ocorre quando a freqüência central da banda do ruído aproxima-se da freqüência do
som puro. Quando o som que mascara é um ruído branco, o mascaramento ocorre
de modo diretamente proporcional ao aumento de intensidade, independente da lo-
calização no espectro do som senoidal. Como exemplo deste fenômeno, tem-se a in-
terferência cognitiva que o contínuo ruído gerado por aparelhos de ar-condicionado
causam em salas de aulas e, muitas vezes, também em salas de concerto mal dimen-
sionadas.
Um importante processo complementar ao mascaramento é conhecido por JND ( Just
Noticeable Difference). Determina-se a JND comparando eventos sonoros e medindo
o valor mínimo de variação de grandezas acústicas, como freqüência, em Hertz (Hz),
ou Intensidade, em Decibel (dB), onde estes, inicialmente mascarados, passam a ser
percebidos como eventos distintos. O JND varia para cada sujeito (ouvinte), método
de medição, características do evento sonoro (ataque, duração, complexidade do es-
pectro sonoro, etc.), e espaço amostral.
A Expectativa Sonora
Define-se aqui por expectativa, o fenômeno cognitivo sonoro relacionado à tentativa
automática que um ouvinte faz, ao tentar predizer “o que” e “quando” irá ocorrer um
evento sonoro. Na experiência humana, o fator psicológico que está diretamente li-
gado ao fenômeno da antecipação é a emoção. Segundo Huron (2006), há um grau
de correspondência entre a nossa emoção e os processos cognitivos que nos motivam
às ações, em nosso meio ambiente, onde é citado que “. . . emoções com valência po-
sitiva encorajam os organismos a perseguirem comportamentos que são normalmente
adaptativos, e a evitar comportamentos normalmente não-adaptativos” (Huron 2006,
4). Segundo este ponto de vista, a relação entre emoção e expectativa gera um meca-
nismo de reforço do modelo elaborado pela predição, a partir da confirmação ou que-
bra de hipóteses, ou eventualmente, uma neutralidade. Tais relações, em teoria, têm
grande importância na geração das expectativas, porque os eventos que as confirmam
estão associados aos estados emocionais com valência positiva; ao passo que as ex-
pectativas que se mostram falhas geram valências negativas. Segundo Huron, este
processo contínuo antecipatório cria hábitos mentais que, por extensão, podem estar
associados aos hábitos de escuta do indivíduo. Os fundamentos sobre antecipação e
expectativa musical aqui utilizados, vieram de Meyer (1956), que relacionou anteci-
pação e significado musical à Psicologia da Gestalt (Kofka 1935). Ele estudou dife-
rentes perspectivas, considerando o significado e a emoção como sendo congruentes
no processo de “escuta estrutural”. O princípio geral da Gestalt é a lei de Prägnanz,
ou seja, o princípio de concisão, o qual é descrito como a tendência de um modelo
mental sempre buscar a solução na forma ou processo mais conciso, estável, regular,
ordenado, econômico ou simples possível. Este princípio pode ser decomposto em
outros princípios mais específicos como: 1) Boa continuidade, 2) Fechamento, 3) Si-
milaridade, 4) Simetria, 5) Proximidade, 6) Relações figura e fundo. Meyer (1956)
estabeleceu uma correlação entre estes princípios e a noção de que as expectativas 31
são conseqüências de hábitos mentais. Ele entendeu que as respostas afetivas e sig-
nificativas à música provêm da percepção das estruturas musicais e das expectativas
por elas geradas. Segundo Oliveira (2008), esta abordagem é derivada de três concei-
tos diferentes: 1) Significado hipotético, 2) Significado evidente e 3) Significado de-
terminado. O significado hipotético trata de uma geração involuntária de expectativas,
relacionadas a um estímulo que pode ser interpretado com relações probabilísticas
entre antecedentes e conseqüentes. O significado evidente ocorre quando um evento
conseqüente torna-se “atualizado em um evento musical concreto” atingindo assim
um “novo estágio de significado”, ou seja, há uma comprovação auditiva das expec-
tativas geradas anteriormente. O significado determinado trata do caso específico da
objetificação do processo de escuta, que surge da relação entre os significados hipo-
tético e evidente, com uma compreensão de sua totalidade. Ele se manifesta no tra-
balho atemporal da memória. Ao contrário de Meyer, que estabeleceu sua perspectiva
a partir do discurso teórico e das evidências coletadas na análise musical, Huron
(2006) desenvolveu uma teoria, chamada de Teoria da Antecipação Musical. Esta tem
enfoque nas práticas da psicologia experimental e da análise estatística, tendo tam-
bém criado um vínculo entre neuroanatomia cerebral e o domínio psicológico, pro-
porcionando um entendimento biológico das emoções induzidas pela escuta musical.
No recorte proposto para esta pesquisa, vamos realizar experimentos vinculados a
aspectos sonoros e utilizaremos análise estatística dos dados coletados a partir das
respostas dos sujeitos pesquisados.
Objetivos
O objetivo geral deste trabalho é estudar a influência da expectativa na cognição so-
nora através de seus mecanismos de funcionamento, por meio de uma abordagem
interdisciplinar relacionando psicoacústica, psicologia da antecipação sonora e per-
cepção de eventos compositores de paisagens sonoras. Com isso pretende-se criar as
bases para um futuro estudo dos efeitos da expectativa na percepção e discriminação
de aspectos musicais. Os objetivos específicos desse trabalho são: 1) Desenvolver uma
metodologia de análise da cognição sonora partindo do princípio psicoacústico do
mascaramento, dos correspondentes níveis de JND e da expectativa sonora, afim de
avaliar a resposta de cada ouvinte, em protótipos de experimentos relacionando am-
bientes sonoros naturais e sons gerados, através de mecanismos de síntese sonora di-
gital. 2) Desenvolver um estudo de síntese de paisagens sonoras, de acordo com o
ponto de vista de projetos sonoros, como aqueles descritos em Farnell (2008). 3) Ana-
lisar estatisticamente os dados coletados do estudo comportamental.
Método
A metodologia desse trabalho visa realizar experimentos com o objetivo de verificar
a seguinte hipótese: “Se os Marcos Sonoros são sons contextuais dentro do repertório
de paisagens sonoras de cada sujeito, de que forma eles fornecem informações que
32
podem afetar a geração de expectativas, influenciando as suas reações emocionais?”
Sob essa perspectiva, serão desenvolvidos métodos para avaliar as seguintes questões:
1) Como a expectativa afeta a percepção de um evento sonoro frente ao mascaramento
de um ruído de fundo. 2) De que forma a expectativa varia (se é que varia) o tempo
de reconhecimento do evento. 3) Como este tipo de interação influencia o tempo de
habituação a um novo evento sonoro. 4) Como a percepção de novidade do evento
sonoro muda a expectativa do ouvinte. 5) Qual a mudança feita num parâmetro de
síntese que indivíduos diferentes utilizam para melhorar a relação sinal/ruído.
Os experimentos psicoacústicos para medir a variação do JND são normalmente rea-
lizados da seguinte maneira: a) dados dois sons S1 e S2 com intensidades ou freqüên-
cias diferentes, solicita-se ao ouvinte que discrimine qual destes sons tem intensidade
ou freqüência maior. b) se o ouvinte não percebe, a diferença S1 e S2 é aumentada;
se o sujeito percebe, a diferença é diminuída. d) esse processo é repetido recursiva-
mente até que o sujeito perceba, em 75% das tentativas. e) o valor da diferença entre
o som S1 e S2 é a JND do sujeito para o teste em questão.
Sabe-se, da literatura de psicoacústica, que a nossa audição é mais sensível às varia-
ções de freqüência do que as de intensidade sonora. Dos experimentos realizado por
Fletcher e Munson, em 1933, descobriu-se que nossa sensibilidade à intensidade so-
nora é dependente de sua freqüência. Variando-se a freqüência de sons simples (com
um único parcial) do grave ao agudo, pode-se perceber que, apesar da amplitude
deste sinal permanecer constante, a percepção desta intensidade sonora (loudness)
varia, de acordo com uma família de curvas empiricamente mapeadas; as curvas de
“equal-loudness” de Fletcher e Munson (Gelfand 2004).
Foram desenvolvidos dois protótipos de experimentos da variação do JND pela ex-
pectativa, levando em conta as diferenças de percepção de eventos sonoros descritas
pelas curvas de equal-loudness. Com isso pretende-se verificar se um ouvinte estaria
mais apto a detectar, perceber e processar o estímulo de referência, quando os mesmos
estivessem alinhados em relação às expectativas. Segundo Huron (2006), “existem
processos mentais de alto nível que afetam processos sensoriais de baixo nível e assim
redirecionam o sistema sensorial, no sentido de focar em aspectos particulares do
domínio perceptivo”.
Resultados esperados
O trabalho aqui apresentado aborda o referencial teórico e metodológico de uma pes-
quisa que está atualmente em andamento. Pretende-se obter os resultados experi-
mentais através da implementação de dois modelos de investigação, chamados aqui
de protótipos.
O primeiro protótipo baseia-se no método denominado de “Paradigma do Movimento
da Cabeça” (Head-Turning Paradigm), conforme descrito por Huron (2006). Utiliza-
remos um computador e uma câmera para gravar o experimento e captar a mudança
de direção da cabeça do indivíduo. Este protótipo baseia-se na idéia que a percepção
espacial relaciona-se com a reação do sujeito quando exposto a um estímulo novo ou 33
evento surpreendente. A reação descrita pelo movimento da cabeça interage com o
nível de expectativa do sujeito. As 3 etapas são: a) surpresa: quando um som inespe-
rado é processado pelo sujeito e mede-se o tempo de resposta da movimentação, em
função da mudança de direção da cabeça; b) saturação: o estímulo é repetido de forma
que o sujeito não distingue mais a direcionalidade produzindo uma falha na orien-
tação; c) novidade: um novo estímulo é introduzido, para o qual é verificado o tempo
de desabituação medido pelo tempo de resposta vinculado ao movimento da cabeça.
O segundo protótipo visa estudar o limiar mínimo de percepção de marcos sonoros
em paisagens sonoras com a presença de sons complexos que causem mascaramento.
Com isso pretende-se estudar quais aspectos acústicos componentes dos marcos so-
noros são relevantes no contexto da cognição musical. O experimento fará uso de um
modelo computacional de síntese sonora desenvolvido em PD (www.puredata.info).
O ponto de partida para o modelo de síntese encontra-se em Farnell (2008). Este livro
contém vários exemplos de implementações de modelamentos físicos da síntese de
sons ambientais, como: passos, cigarras e canto de pássaros; bem como a síntese de
sons industriais, como o som de: motores, tráfego, armas de fogo, entre outros. Assim,
este protótipo baseia-se na construção de um sistema onde o sujeito possa interferir
no processo virtual de mascaramento, pelo aumento da JND através do controle dos
parâmetros de síntese.
A coleta de dados será feita através de questionário apresentado aos ouvintes, onde
serão recolhidas informações quanto ao repertório de paisagem sonora individual,
delineando dessa forma quais são seus marcos sonoros. Após isso, serão aplicados os
testes descritos nos dois protótipos acima. Aos indivíduos participantes, serão apre-
sentadas amostras sonoras ordenadas aleatoriamente, como foi feito em Groux (2008).
Cada um desses fragmentos sintetizados será definido pelo par: 1) característica do
som; 2) nível da característica.
Finalmente, uma segunda hipótese complementar de coleta de dados estará relacio-
nada ao projeto de pesquisa regular, financiada pela FAPESP, de um dos autores. Si-
multaneamente aos protótipos, será coletado um conjunto de dados fisiológicos dos
ouvintes. Estes são evocados por reações fisiológicas involuntárias, relacionadas a
mudanças do estado emocional do indivíduo (ex: variação da pulsação cardíaca, res-
piração, resistência galvânica da pele). Tais dados serão analisados em relação ao mo-
delo bidimensional de valência afetiva e grau de atenção, segundo o modelo
circumplexo dos afetos (Russell 1980). Tal modelo representa a maioria das categorias
de estado emocional, a partir da combinação das duas dimensões emocionais: valên-
cia e atenção. Essas dimensões possuem um caráter unidimensional que se estende
do triste ao alegre (para a valência) e do relaxado ao tenso (para atenção).
A análise final dos resultados será feita por modelos estatísticos, onde pretende-se
pesquisar a correlação entre as informações qualitativas e populacionais contidas no
questionário, com relação aos testes psicoacústicos.

34
Referências
Schafer, R. M. A Afinação do Mundo (São Paulo: Editora Unesp, 2001).
Pierce, J. R. The Science of Musical Sound (New York: W. H. Freeman and Company, 1992).
Huron, D. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation (Cambridge, MA: MIT
Press, 2006).
Meyer, L.B. Emotion and meaning in music (Chicago: Chicago University Press, 1956).
Koffka, K. Principles of Gestalt psychology (New York: Harcourt, Brace, & World, 1935).
Oliveira, L. F.; Manzolli, J. “Significado musical e inferências lógicas a partir da perspectiva do
pragmatismo peirceano”. Revista de Cognição e Artes Musicais 3 (2008), 30.
Farnell, A. J. Designing Sound (London: Applied Scientific Press, 2006, 2008).
Gelfand, S. Hearing: An Introduction to Psychological and Physiological Acoustics, Fourth Edition
(Marcel Dekker, 2004).
Groux, Le, Valjamae, S. A., Manzolli, J., Verschure, P. FMJ. “Implicit Physiological Interaction
for the Generation of Affective Musical Sounds”, in Proceedings of the International Com-
puter Music Conference (ICMC 2008), University of Belfast, 2008.
Russel, J. A. A circumplex model of affect, Journal of Personality and Social Psychology 39 (1980),
345-356.
A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal
Danilo Ramos
danramosnilo@gmail.com
Departamento de Artes – Universidade Federal do Paraná 35
José Eduardo Fornari
tutifornari@gmail.com
Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora – UNICAMP

Resumo
Alguns teóricos e professores de música sugerem a existência de uma Hierarquia
Modal linear que organiza os sete modos da escala diatônica maior, do mais “claro”
(Lídio) para o mais “escuro” (Lócrio), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico,
Eólio e Frígio, respectivamente. Estes profissionais aplicam esta hierarquia baseados
no senso comum e no uso intuitivo durante suas práticas musicais. O presente traba-
lho procura investigar a ausência ou a existência desta Hierarquia Modal. Para tal,
este estudo foi realizado em duas etapas: análise computacional de arquivos digitais
e um experimento, envolvendo tarefas de escuta musical. O material empregado con-
sistiu de 7 peças musicais instrumentais, para piano solo, com melodia e acompa-
nhamento. Cada peça foi transposta e executada nos 7 modos da escala diatônica,
perfazendo assim 49 gravações de aproximadamente 20 segundos de duração cada
uma. A primeira análise do estudo consistiu do uso de oito algoritmos de descritores
acústicos para a análise das peças. Cada descritor realizou a predição de um aspecto
cognitivo da percepção musical humana, tal como: pulsação rítmica, complexidade
harmônica, etc. A segunda análise consistiu da realização de um experimento envol-
vendo 36 ouvintes, que realizam tarefas de escuta musical e preenchimento de es-
calas de diferencial semântico (alcance 0-10) após cada escuta, com as locuções
Alegria, Tristeza, Serenidade e Raiva. Em ambas as análises, o teste ANOVA foi em-
pregado para comparar os valores obtidos para cada modo em relação à cada medida
utilizada. Os resultados apontam para a existência da Hierarquia Modal linear, que
parece estar relacionada aos níveis de Complexidade Harmônica e de Valência Afetiva
encontrados para cada modo. A existência dessa hierarquia parece ser governada por
processos psicológicos perceptuais relacionados a modificações presentes na estrutura
intervalar de cada modo.

Introdução
As escalas musicais são baseadas na percepção de freqüência da componente funda-
mental de sons aproximadamente periódicos (sons melódicos). Esta percepção é cha-
mada de altura musical, ou pitch. Sons que não despertam tal percepção são algumas
vezes chamados de sons percussivos (sem altura definida), existentes na produção
sonora de certos tambores e chocalhos. As escalas musicais foram constituídas para
representar sons melódicos, em distintos intervalos de freqüências, chamados de
notas musicais. Existe uma grande similaridade de altura entre notas distanciadas
por intervalos múltiplos da original:
Altura (f ) ~Altura (2.i.f) (1)
onde i é um número inteiro.
36 Este intervalo é chamado de oitava. Exemplificando, sendo n a Altura da nota gerada
por uma corda retesada (como as cordas de um violão), a sua primeira oitava superior
2.n pode ser gerada reduzindo a extensão dessa corda à metade. Do mesmo modo,
se dobrarmos a extensão dessa corda, teremos a sua primeira oitava inferior 2-1.n .
Isto é facilmente exemplificado num instrumento de cordas, como o violão. Pressio-
nando-se o intervalo entre os trastes localizados na metade da extensão de qualquer
corda, produz-se uma nova nota, cuja altura é uma oitava acima da nota original-
mente gerada pela corda solta. Uma vez que notas espaçadas por intervalos de oitava
apresentam similaridade da percepção de altura, as escalas tendem a se organizar em
intervalos que são subdivisões da oitava. Assim, se dividirmos a Extensão E dessa
corda hipotética pela metade 2-1.E, tem-se a geração da primeira oitava da nota ori-
ginal.
E → Altura (f) (2)
2-1.E → Altura (2.f)
Se a extensão E da corda for reduzida em um terço, (⅔).E, tem-se a geração do inter-
valo conhecido por quinta. Em termos da percepção de altura musical, a quinta equi-
vale à metade da oitava.
E → Altura (f) (3)
E.(⅔) → Altura( (⅔).f )
Por extensão, é possível criar uma escala cujos intervalos entre as notas sejam cons-
tituídos por sucessivas quintas (conhecido em música, como o Ciclo das Quintas), até
que se aproximar de uma oitava superior:
Altura ((3⁄2)n.f ) ~ Altura (2m.f) (4)
onde: n e m são números inteiros.

Para n = 12, tem-se:


(3⁄2)12 ~ 129,746 27 = 128 (5)
129,746 / 128 = 1,0136 ~ 23 cents
Esta é a base da escala Pitagórica, ou justaposta. Após 12 notas, a escala se aproxima
da sétima oitava superior. Se esta progressão coincidisse com uma oitava, o ciclo seria
fechado, formando, assim uma escala de 12 notas, numa altura múltipla da altura ini-
cial. No entanto, o Ciclo da Quintas nunca coincide com uma oitava superior da altura
inicial. Visando compensar essa aproximação, foi criada a Escala Cromática Tempe-
rada, com 12 notas igualmente espaçadas em intervalos de freqüência c = 2(1⁄12). O
intervalo de altura entre duas notas n e c.n é chamado de semitom (S). O intervalo
entre n e c2.n é equivalente ao dobro de S, e é chamado de tom (T). Os outros inter-
valos superiores são compostos pela agregação de Ss e Ts, conforme é mostrado a
seguir:
Intervalo Estrutura (6)
Segunda Menor: S
Segunda Maior: T 37
Terça Menor: T+S
Terça Maior: T+T

Quarta (justa): T+T+S


Quarta Aumentada T+T+T
Quinta Diminuta (Trítono):
Quinta (justa): T+T+S+T
Sexta Menor: T+T+S+T+S
Sexta Maior: T+T+S+T+T
Sétima Menor: T+T+S+T+T+S
Sétima Maior: T+T+S+T+T+T
Oitava: T+T+S+T+T+T+S

A Escala Diatônica é assim constituída, por 7 notas da escala cromática, com inter-
valos que estão descritos acima, em negrito, e fechando o ciclo na primeira oitava
superior.
TTSTTTS (7)

Os Modos da escala diatônica são ordenados nas seguintes seqüências de intervalos:


Jônio T T S T T T S (8)
Dórico T S T T T S T
Frígio S T T T S T T
Lídio T T T S T T S

Mixolídio T T S T T S T
Eólio T S T T S T T
Lócrio S T T S T T T

Pode-se notar que a ordenação de intervalos dos modos difere apenas em desloca-
mento circular à esquerda, da seqüência original de tons e semitons da escala diatô-
nica. Estes modos são divididos entre modos maiores e modos menores. Os primeiros
possuem intervalos de terças maiores (T+T), enquanto que os últimos possuem in-
tervalos de terça menores (T+S). São assim considerados os modos maiores: Jônio,
Lídio e Mixolídio; e os modos menores: Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio. Uma parte sig-
nificativa de toda a produção musical do ocidente foi construída sobre a escala dia-
tônica e os seus sete modos (Grout & Palisca 1994). O modo é um dos principais
38 parâmetros de estrutura musical que tem sido utilizado no estudo das emoções de-
sencadeadas pela música (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001). Diversos
estudos sugerem que modos maiores (Jônio, Lídio e Mixolídio) estão associados a
emoções positivas, como alegria ou serenidade, enquanto que os modos menores
(Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio) associam-se a emoções negativas, como tristeza, medo
ou raiva (Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Alguns teóricos afirmam que isto se
deve à estrutura intervalar da escala musical que, para cada modo, representa notas
com intervalos de altura distintos em relação à primeira nota da escala. Isto desper-
taria a percepção de um aspecto cognitivo musical, descrito metaforicamente por
“clareza”. Esta percepção representaria as escalas modais numa ordenação entre o Obs-
curo e o Claro. Neste contexto, os modos maiores seriam mais claros e os modos me-
nores, mais obscuros (Wisnik 2004). Além disso, os modos teriam distintos graus de
“clareza”, o que resultaria numa “ordem de clareza dos modos”. Indo do mais claro
(maior) ao mais obscuro (menor), seria possível obter a seguinte ordenação: Lídio
(maior com quarto grau aumentado), Jônio (maior natural), Mixolídio (maior com
sétimo grau menor), Dórico (menor com sexto grau maior), Eólio (menor natural),
Frígio (menor com segundo grau menor) e Lócrio (menor com segundo grau menor
e quinto grau diminuído). A esta ordenação é atribuído o nome de Hierarquia Modal.
Até onde sabemos, a Hierarquia Modal tem sido demonstrada apenas de modo in-
tuitivo. Não se sabe ao certo quais são os aspectos musicais componentes para a per-
cepção de “clareza musical”. No entanto, é possível supor que esta “clareza musical”
esteja associada à percepção musical emotiva. As emoções associadas à música têm
sido estudadas por diversos pesquisadores no campo da Cognição Musical, tais como
os descritos em Sloboda (2001). Existem três modelos principais de estudo das emo-
ções musicais: Categórico, Processo Componente e Dimensional. O Modelo Categó-
rico, originado dos estudos de Ekman (1992), trata a emoção evocada ou constatada
na música por meio da catalogação das emoções básicas em léxicos irredutíveis, como
Alegria, Tristeza, Melancolia, etc. (Juslin 2003). O Modelo do Processo Componente
(Scherer 2001) descreve a constatação da emoção musical como atrelada também à
situação de sua ocorrência, bem como ao estado emocional do ouvinte no momento
da escuta musical. O Modelo Dimensional (Russell 2003) postula que todas as emo-
ções musicais podem ser descritas por um sistema de coordenadas cartesianas, cons-
tituído por dimensões emocionais. Este modelo é chamado de Modelo Circumplexo
do Afeto Musical (Laukka 2005), sendo composto por duas dimensões emocionais:
arousal (estado de excitação fisiológica, que pode ser alto ou baixo) e valência (valor
hedônico, que pode ser positiva ou negativa). Russel (1980) afirma que por meio des-
sas duas dimensões, um amplo espectro de emoções musicais pode ser determinado
por meio das combinações possíveis entre estas duas dimensões (estados de ânimo
com arousal alto e valência positiva, como Alegria, Animação, Energia, etc.; estados
de ânimo com arousal baixo e valência positiva, como Serenidade, Amor, Ternura,
Religiosidade, etc.; estados de ânimo com arousal alto e valência negativa, como Medo,
Raiva, Desespero, etc; e finalmente estados de ânimo com arousal baixo e valência
negativa, como Tristeza, Melancolia, Amargura, etc.). 39
Diversos modelos computacionais têm sido desenvolvidos para a análise de aspectos
musicais que podem ser ilustrados pelas dimensões do Modelo Circumplexo. Estes
modelos são conhecidos pela sigla “MIR” (Music Information Retrieval). Chama-se
aqui de Descritor Acústico um modelo computacional que adequadamente prediz
um aspecto musical. Descritores são catalogados entre baixo-nível – os descritores
psicoacústicos — e alto-nível — os descritores contextuais (Fornari 2009). Existem
atualmente diversos estudos de MIR, tais como (Tzanetaki 2002), que desenvolveu
um modelo computacional para classificação de gêneros musicais. Em um estudo de-
senvolvido por Leman (2004), descritores acústicos foram utilizados no estudo dos
aspectos gestuais relacionados à emoção musical. Wu (2006) e Gomez (2004) utili-
zaram descritores acústicos como o aspecto musical “tonalidade”, para a catalogação
automática de arquivos musicais de áudio digital.
No estudo do desenvolvimento dinâmico das emoções musicais, Schubert (1999) uti-
lizou o Modelo Circumplexo para medir continuamente as emoções constatadas ao
longo do tempo por um grupo de ouvintes sobre algumas peças do repertório erudito
ocidental. O autor desenvolveu dois modelos lineares para cada peça musical anali-
sada. Cada modelo era composto por diversos descritores acústicos e deveriam pre-
dizer as duas dimensões do Modelo Circumplexo — arousal e valência afetiva — para
cada peça, em contraste à medição comportamental feita pelo grupo de ouvintes. Pos-
teriormente, Korhonen (2006) utilizou estes mesmos dados comportamentais para
desenvolver e validar dois modelos gerais das dimensões arousal e valência. Ao con-
trário de Schubert (1999), Korhonen pretendia organizar um modelo para cada di-
mensão emocional (arousal e valência) para todas as peças musicais analisadas.
Os estudos de Schubert (1999) e Korhonen (2006) demonstraram que seus modelos
computacionais foram capazes de prever a medida comportamental da dimensão de
arousal com um alto grau de correlação aos dados comportamentais. Estes estudos
mostram que o arousal está bastante correlacionado ao loudness do arquivo de áudio
musical, o que pode muitas vezes ser adequadamente representado por meio de um
descritor de baixo-nível, como RMS (Root Mean Square). No entanto, a dimensão Va-
lência não foi adequadamente prevista pelos modelos destes estudos. Uma hipótese
para esta não previsão pode ser devido ao fato de que tais modelos utilizaram apenas
descritores psicoacústicos, que costumam não ser suficientes para descrever aspectos
mais contextuais da música, tal como Valência.
Objetivos
O objetivo geral do presente trabalho é demonstrar a existência (até o presente mo-
mento de caráter intuitivo) de uma Hierarquia Modal no processo de percepção das
emoções musicais. Os objetivos específicos aqui propostos se resumem a verificar a
ocorrência da Hierarquia Modal por meio do uso de descritores acústicos de alto-
nível e por meio de respostas emocionais de ouvintes brasileiros não músicos a trechos
musicais de 20 segundos de duração compostos nos sete modos da Hierarquia Modal
40 (Lídio, Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio, Frígio e Lócrio).
Método
Foram realizadas diversas análises por meio de modelos computacionais de descri-
tores acústicos de alto-nível: Os descritores utilizados são: 1) Articulação, 2) Brilho,
3) Complexidade harmônica, 4) Densidade de eventos musicais, 5) Claridade tonal,
6) Caracterização do modo, 7) Clareza do pulso rítmico e 8) Repetição de eventos.
(Fornari 2008).
1. Os Descritores Acústicos
1.1 Articulação
Este descritor visa detectar a forma da articulação da melodia de uma dado trecho
musical. Em música, a articulação da melodia costuma se estender entre staccato, ou
destacada – onde cada nota é tocada destacadamente, com uma clara pausa temporal
entre uma nota e outra – e legato, onde as notas da melodia são tocadas sem qualquer
pausa entre elas, ou seja, ligadas seqüencialmente uma à outra. Sua escala estende-se
continuamente entre zero (staccato) a um (legato).
1.2 Brilho
O descritor de brilho prediz a percepção de brilho do material sonoro de um trecho
musical. Apesar de fortemente influenciado pela presença de componentes parciais
de alta freqüência no espectro musical, outros fatores também podem contribuir para
intensificar este aspecto, tal como a presença de ataques, articulação destacada ou
mesmo a ausência de parciais em outras regiões do espectro sonoro. A escala deste
descritor varia continuamente entre zero (opaco) a um (brilhante).
1.3 Complexidade harmônica
A noção de complexidade musical está relacionada — pela teoria da informação — à
entropia, ou grau de desorganização da informação musical. No entanto, este descritor
mede a percepção desta entropia, e não a entropia em si. Por exemplo, se um dado
trecho musical é extremamente desorganizado ou complexo, a audição não é capaz
de identificar tal complexidade e este será percebido como acusticamente simples
(não complexo). Tem-se assim que encontrar o ponto máximo de complexidade mu-
sical que a cognição musical humana é capaz de assimilar. Este descritor trata apenas
da complexidade da harmonia musical, relevando outras complexidades, como a me-
lódica ou rítmica. A escala deste descritor é contínua e varia entre zero (ausência de
complexidade harmônica) e um (presença de complexidade harmônica).
1.4 Densidade de Eventos Musicais
Este descritor procura medir a percepção de uma densidade de eventos musicais de
qualquer natureza (melódica, harmônica e rítmica), desde que possíveis de serem
percebidos como eventos distintos. Do mesmo modo que no caso da percepção de
complexidade harmônica, aqui é levada em consideração a capacidade máxima de
percepção de eventos simultâneos, que a mente musical é capaz de assimilar; e a partir
da qual, o aumento do número de eventos musicais pode significar a diminuição da 41
percepção de eventos simultâneos. A escala deste descritor varia continuamente entre
zero (percepção da presença de um único evento musical) e um (percepção da pre-
sença de uma grande quantidade de eventos simultâneos).
1.5 Claridade Tonal
Este descritor mede o grau de tonalidade de um dado trecho musical, não importando
qual a tonalidade do trecho musical, mas apenas quão clara é a percepção de um cen-
tro tonal. A escala deste descritor varia continuamente entre zero (atonal) e um (tonal).
As regiões intermediárias dessa escala (próximas de 0,5) tendem a concentrar os tre-
chos musicais com muitas mudanças tonais, acordes dúbios ou cromatismos.
1.6 Caracterização de Modo
Este descritor procura predizer o aspecto musical relacionado à percepção da distin-
ção entre modos Maiores e Menores. Conforme explicado anteriormente, os modos
diatônicos dividem-se entre modos maiores e menores, e a hierarquia modal deter-
minaria uma ordenação dos 7 modos entre maior a menor. A escala deste descritor
varia continuamente entre zero (modo menor) a um (modo maior). Os valores in-
termediários da medida deste descritor podem se referir à modos com menor grau
de polarização neste conceito, bem como à variações tonais encontradas no trecho
musical analisado.
1.7 Clareza do Pulso Rítmico
O pulso musical é aqui entendido como a flutuação sonora aproximadamente perió-
dica e perceptível numa freqüência sub-tona; abaixo de 20Hz. Tal pulso pode ser de
qualquer natureza sonora, desde que seja interpretado pela mente musical como pulso.
A escala deste descritor é continua, estendendo-se dentre zero (ausência de pulso) a
um (clara presença de pulso).
1.8 Repetição
Este descritor trata de expressar a similaridade de trechos temporais. Esta repetição
pode ser de natureza melódica, harmônica ou rítmica, mesmo que transcenda de na-
tureza, ou timbre, durante a repetição. O importante não é a quantidade ou freqüência
das repetições, mas a claridade da percepção da repetição de eventos musicais. A es-
cala deste descritor varia continuamente entre zero (ausência de repetição) a um
(clara presença de repetição).
2. A Análise Comportamental
Participantes: 24 estudantes universitários de um curso de graduação em Filosofia,
sendo 15 homens e 13 mulheres, com idades entre 19 e 26 anos.
Materiais: o estudo foi realizado numa sala silenciosa, com um computador conectado
a um fone de ouvido. A compilação dos dados foi feita por meio do programa e-prime.
Os participantes realizaram tarefas de julgamento emocional de sete composições
musicais, sendo cada uma originalmente construída em um dos sete modos da Hie-
42 rarquia Modal e depois transpostas para os demais modos, totalizando 49 trechos.
Todas as músicas apresentadas tinham 20 segundos de duração e foram retiradas do
cancioneiro folclórico brasileiro.
Procedimento: a tarefa dos participantes consistia em escutar cada composição mu-
sical e preencher escalas de diferencial semântico (alcance 0-10), referentes às emo-
ções Alegria, Serenidade, Tristeza e Raiva após cada escuta. Tanto os trechos musicais
quanto as escalas de diferencial semântico eram apresentados em ordem aleatória
entre os participantes.
Análise dos dados: o teste ANOVA foi empregado para comparar os valores de percep-
ção afetiva obtidos por meio das escalas de diferencial semântico empregadas (design
experimental: 7 (músicas) x 7 (modos). Após a compilação de todos os dados, um
valor de Valência Afetiva foi calculado em relação às respostas emocionais de cada
participante, para cada trecho musical apresentado. Este valor foi obtido pela fór-
mula:
Valência afetiva = (ALE + SER) / (TRI + RAI) (9)
onde: ALE = Respostas emocionais para Alegria
SER = Respostas emocionais para Serenidade
TRI = Respostas emocionais para Tristeza
RAI = Respostas emocionais para Raiva
Este procedimento já foi bastante utilizado em estudos envolvendo a conversão de
dados provenientes de escalas de diferencial semântico para valores de Valência Afe-
tiva (Bigand, Madurel, Marozeau e Dacquet 2005; Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).
Estes valores de Valência Afetiva foram contrastados e correlacionados com os valores
dos dados obtidos pelos descritores acústicos, no sentido a verificar quais foram os
aspectos musicais de maior relevância para a percepção da Hierarquia Modal.

Resultados
Os resultados computacionais revelaram diferenças estatísticas para dois dos descri-
tores utilizados: Complexidade Harmônica (F=2,912; p=0,0296) e Clareza de Modo
(F=3,173; p=0,01). A Tabela 1 ilustra as médias e os desvios-padrão (em parêntese)
obtidos pelos resultados dos dois descritores acústicos acima mencionados e também
pelas respostas emocionais dos participantes, para cada modo musical empregado.
A ordem de apresentação dos modos segue a Hierarquia Modal:

Tabela 1 – Resultados obtidos pelos descritores acústicos “Complexidade Harmônica” e


“Clareza do Modo” e pelas respostas emocionais dos ouvintes
para cada modo musical analisado:
Complexidade Harmônica Clareza do Modo Valência Afetiva
Lídio 0,43 (0,33) 0,51 (1,16) 3,75 (3,23)
Jônio 0,42 (0,29) 0,50 (1,04) 4,60 (3,54) 43
Mixolídio 0,42 (0,29) 0,53 (1,21) 3,96 (3,59)
Dórico 0,41 (0,25) 0,42 (1,45) -0,37 (3,03)
Eólio 0,41 (0,26) 0,38 (1,18) -3,36 (2,57)
Frígio 0,43 (0,30) 0,41 (1,08) -3,34 (2,65)
Lócrio 0,45 (0,48) 0,79 (1,17) -2,66 (2,55)

Os resultados indicam que, de um modo geral, os maiores índices de Complexidade


Harmônica estiveram relacionados aos extremos da Hierarquia Modal (modos Lídio
e Lócrio). Assim, o modo Lídio obteve níveis mais altos do que os modos Jônio
(p=0,03), Dórico (p=0,01) e Eólio (p=0,02) e o modo Lócrio obteve índices mais altos
do que os modos Jônio (p=0,01), Dórico (p=0,005) e Eólio (p=0,02).
Para a Clareza do Modo, os modos maiores obtiveram índices mais altos do que os
modos menores (com exceção do modo Lócrio), sendo que o modo Jônio obteve ín-
dices mais altos do que o modo Eólio (p=0,01). O modo Lídio obteve índices mais
altos do que o modo Dórico (p=0,045), Eólio (p=0,006) e Frígio (p=0,03). O modo
Mixolídio obteve índices mais altos do que os modos Dórico (p=0,02), Eólio
(p=0,002) e Frígio (p=0,02). Não foram encontradas diferenças estatísticas entre os
modos maiores e menores entre si.
As respostas emocionais dos ouvintes mostraram que modos maiores (Lídio, Jônio e
Mixolídio) obtiveram índices de Valência Afetiva similares. Os modos maiores obti-
veram índices de Valência Afetiva superiores aos modos menores (Dórico, Eólio, Frí-
gio e Lócrio; F=2,896; p=0,01). Os modos menores obtiveram diferentes índices de
Valência Afetiva, sendo atribuído ao modo Dórico um índice maior do que os modos
Eólio (p=0,01) e Frígio (p=0,001). O modo Lócrio obteve índice mais baixo que os
modos Dórico (p=0,001), Eólio (p=0,01) e Frígio (p=0,03), respectivamente.

Discussão
Os dados obtidos no presente trabalho parecem dar conta de explicar a existência de
uma Hierarquia Modal Linear, que parece governar os processos psicológicos envol-
vidos na percepção emocional de trechos musicais no contexto ocidental, desmisti-
ficando assim, o uso hipotético e intuitivo acerca dessa questão. A existência dessa
hierarquia pôde ser comprovada por meio dos dados computacionais e comporta-
mentais.
Com relação aos dados computacionais, o descritor “Complexidade Harmônica” pa-
rece reconhecer a existência da Hierarquia Modal. As análises estatísticas feitas a par-
tir dos valores encontrados por este descritor acústico apontam diferenças estatísticas
obtidas entre os modos situados nos dois extremos da hierarquia (Lídio, o mais claro
e Lócrio, o mais escuro) e todos os outros modos. Coincidentemente, estes dois modos
são os únicos que têm um intervalo de trítono (três tons) formado em relação às suas
44 notas de referência (fundamentais). No decorrer da História da Música Tonal Oci-
dental, este intervalo foi classificado como o intervalo do diabo, em música, catego-
rizado por ouvintes, compositores e críticos musicais das diferentes épocas como um
intervalo altamente dissonante, que deveria ser severamente evitado, para que a mú-
sica não se tornasse menos bela (Grout & Palisca 1994). A ocorrência deste intervalo
musical justamente nos dois extremos da Hierarquia Modal (início e fim) sugere a
existência de um “ciclo de dissonâncias” em relação às notas de referência de cada
modo presente na Hierarquia. Assim, ela se iniciaria com um modo dissonante (o
Lídio), tornando-se consonante no decorrer do movimento hierárquico (passando
para todos os outros modos), para tornar-se dissonante novamente no final da hie-
rarquia (com o modo Lócrio). Este “ciclo de dissonâncias” pôde ser verificado por
meio do descritor “Complexidade Harmônica”, que categorizou os modos com inter-
valos dissonantes como modos mais complexos do que os modos envolvendo inter-
valos consonantes em relação à nota de referência de cada modo. Portanto, este
descritor confirma a existência de uma Hierarquia Modal governada por processos
psicológicos relacionados à percepção de “quão dissonante” é o modo.
As respostas emocionais obtidas no presente estudo foram bastante consistentes com
respostas emocionais obtidas em outros estudos envolvendo a influência do modo
musical sobre a percepção das emoções durante tarefas de escuta musical, no qual
modos menores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva negativos,
enquanto modos maiores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva
positivos (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001; Webster & Weir 2005;
Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).
Apesar dessa convergência, a principal contribuição deste estudo está do fato de que
a cognição do modo musical não se resume simplesmente à distinção Maior / Menor.
Mais do que isso, foram encontradas dados que comprovam que uma pequena dife-
rença na estrutura escalar pode modular as respostas emocionais à música, especial-
mente às estruturas escalares dos modos menores. Esta constatação pode ser
comprovada por meio de uma análise da Tabela 1 do presente estudo, no qual dife-
renças estatísticas foram obtidas na análise dos níveis de Valência Afetiva dos modos
menores entre si.
No presente estudo, houve uma relação direta e gradual entre os níveis de Valência
Afetiva encontrados para estes modos e a linearidade da Hierarquia Modal: o modo
Dórico (classificado intuitivamente como o modo menos “escuro”) foi àquele perce-
bido com um grau de Valência Afetiva mais próximo dos modos maiores; os modos
Eólio e Frígio obtiveram níveis de Valência Afetiva parecidos, enquanto que o modo
Lócrio (considerado intuitivamente como o “mais escuro”) obteve os menores índices
de Valência Afetiva. Neste sentido, o intervalo de terças (maior nos modos maiores /
menor nos modos menores) parece não ser o único intervalo que determina a ex-
pressão emocional do modo musical. Por exemplo, os modos Dórico e Eólio se dife-
rem pelo intervalo de sexta (maior no primeiro modo e menor no último). Esta
simples diferença foi responsável pela percepção de níveis de Valência Afetiva dife-
renciados entre um e outro modo. Estes resultados são consistentes com os resultados 45
obtidos por Ramos (2002), no qual mudanças súbitas na estrutura escalar também
foram responsáveis por diferenças na percepção emocional dos ouvintes.
Estas constatações sugerem que o estabelecido conceito “Modo Maior Alegre / Modo
Menor Triste” bastante consolidado na literatura pode ser considerado meramente
como um caso específico de um processo mais geral que governa a percepção das
emoções musicais. Como mencionado acima, os modos musicais são organizados
por uma seqüência formada por tons e semitons. Uma das principais diferenças entre
cada modo se resume à sua nota de referência, que servirá de base para a sua organi-
zação intervalar. Assim, a percepção das emoções musicais esteve relacionada à per-
cepção da nota de partida em relação a pontos de referência cognitivos específicos
(intervalos tonais ou semitonais) que diferem entre os modos.
A importância de pontos de referência cognitivos específicos para a música tonal oci-
dental foi investigado sistematicamente por Krumhansl (1997), no qual a autora es-
tabeleceu que mudanças em pontos de referência cognitivos causados por alterações
na tonalidade de diferentes músicas estão associadas a diferenças de efeitos expres-
sivos na música tonal. O presente estudo confirma esta constatação, mostrando que
a modificação da nota de referência de um dado conjunto de notas (mudanças no
modo) é suficiente para modular julgamentos emocionais.
A conclusão deste estudo é que existe uma Hierarquia Modal linear, que vai do modo
Lídio (mais claro) ao modo Lócrio (mais escuro), passando pelos modos Jônio, Mi-
xolídio, Dórico, Eólio e Frígio, que organiza a percepção emocional dos modos em
relação aos níveis de complexidade harmônica (obtidos por meio de um descritor
acústico de alto-nível) e níveis de valência afetiva desencadeados em tarefas de escuta
musical (obtidos por meio de dados comportamentais envolvendo respostas emocio-
nais à música).
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Investigating absolute pitch with neuroimaging techniques
– Literature review
Patrícia Vanzella
pvanzella@yahoo.com 47
Universidade de Brasília, Departamento de Música
Maria Angela M. Barreiros
mariamb@einstein.br
Instituto do Cérebro, Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert
Einstein, São Paulo
Lionel F. Gamarra
lgamarra@if.usp.br
Hospital Israelita Albert Einstein, Departamento de Radiologia, São Paulo
Edson Amaro Junior
edson.amaro@gmail.com
Universidade de São Paulo, Escola de Medicina,
Departamento de Radiologia

Abstract
The objective of this investigation is to summarize neuroimaging findings about the
neural correlates of absolute pitch (AP). MEDLINE, EMBASE, PsycINFO, and Google
Scholar were searched for articles published between 1995 and 2009. Search terms
were: “Absolute Pitch” or “Perfect Pitch” AND “Neuroimaging” or “MRI” or “fMRI” or
“Magnetic Resonance” or “PET.” We selected studies written in English, reporting ori-
ginal experimental data, involving human subjects, and employing magnetic reso-
nance (MRI or fMRI) and/or positron emission tomography (PET) to investigate AP.
Thirteen articles were selected: six fMRI, two PET/MRI, and five MRI only studies. A
pronounced leftward asymmetry of the planum temporale (PT) was described in AP
individuals. Left temporal cortex activation patterns differed for AP subjects vs. non-
AP musicians and non-musicians when listening to musical stimuli. Different cortical
structures are involved in AP in blind subjects. Early musical training does not seem
to contribute to the anatomical features of AP. This cognitive ability seems to be as-
sociated with anatomical and functional modifications in frontal and temporal brain
lobes, especially in the left side. Nevertheless, a standard method to determine AP
ability and a more homogeneous use of neuroimaging techniques are required to
confirm and advance these findings.
Keywords
absolute pitch – neuroimaging – auditory perception
Introduction
Absolute pitch (AP) is one of the most intriguing traits in auditory perception. This
phenomenon has been defined in the literature as the ability to identify and label the
frequency of any isolated tone (for example, “C” for a frequency of 261 Hz) and/or
48
the ability to produce a specific tone (through singing or manipulating a frequency
generator) without external reference (Bachem 1937, Baggaley 1974, Ward 1999,
Parncutt and Levitin 2003, Zatorre 2003). The prevalence of absolute pitch in the pop-
ulation is estimated to be between 1⁄10,000 (Bachem 1955) and 1⁄1,500 (Profita and
Bidder 1988), and between 5 and 50⁄100 amongst musicians (Wellek 1963, Chouard
and Sposetti 1991). Some studies have reported a greater incidence of AP in musicians
of Asian ethnicity (Gregersen et al. 1999, Deutsch et al. 2006).
The origin of AP remains unknown. There is evidence that this ability develops during
a critical period in the first years of life (Ward 1999). Musicians who begin their mu-
sical training before the age of six seem to have a greater propensity to develop AP
than those who start later (Sergeant 1969, Wellek 1938); however, the early beginning
of musical training alone does not guarantee AP acquisition. A possible explanation
for that could be the existence of some genetic component that would facilitate the
manifestation of AP. Although this hypothesis has not been demonstrated, recent
studies have pointed in this direction (Baharloo et al. 2000, Gregersen et al. 2000).
As a cognitive ability that seems to depend on nervous system response to experiential,
maturational, and genetic factors, AP is a candidate model to explain the role of these
interactions in cognitive development (Zatorre 2003).
AP has been studied since the nineteenth century (Stumpf 1883, Meyer 1899). Nev-
ertheless, in the past few years, there has been an increasing interest in this area, with
the number of publications on the topic having doubled in the last decades of the
twentieth century (Levitin 2006). This renewed interest is partly due to the develop-
ment of novel investigative techniques, which have provided a better understanding
of brain structures and the underlying mechanisms of behavior and cognitive
processes, such as auditory perception. The neuroimaging techniques that appeared
during the last two decades of the twentieth century revolutionized the study of brain
anatomy and physiology, and have become essential to understand the interactions
between brain, cognition, and behavior.
Among these techniques, magnetic resonance imaging (MRI), functional MRI (fMRI),
and positron emission tomography (PET) stand out. While MRI provides high quality
images of brain anatomical structures, PET and fMRI uncover metabolic processes
related to specific cognitive tasks. Based on the principle of hemodynamic response,
both fMRI and PET are capable of showing variations in cerebral blood flow that
occur in brain areas that are activated during the accomplishment of specific tasks.
Since these techniques have opened new perspectives for scientific investigation, lea-
ding to a better understanding about the mechanisms involved in different behavioral
and cognitive traits, we carried out a systematic literature review to summarize recent
neuroimaging findings concerning the neural correlates of AP.
Methods
In order to indentify studies using neuroimaging techniques to investigate AP, Google
Scholar, MEDLINE, EMBASE, and PsycINFO were searched, followed by hand search of
the references of selected articles. The search covered the years 1995 (year of publi-
49
cation of the first investigation looking for neurocorrelates of AP using neuroimaging
techniques) (Schlaug et al. 1995) to 2009.
The following inclusion criteria were defined: publication in English, in scientific jour-
nals or conference proceedings, between February 1995 and August 2009; use of
structural and/or functional neuroimaging techniques (fMRI and/or PET to assess
hemodynamic response or MRI to assess morphometric aspects) to study absolute
pitch; employment of an experimental design.
The following search terms were used: “Absolute Pitch” or “Perfect Pitch” AND “Neu-
roimaging” or “MRI” or “fMRI” or “Magnetic Resonance” or “PET”.

Results
Twenty studies using neuroimaging techniques to investigate AP were selected. Seven
were excluded: six were not experimental and one was in abstract format only. Thus,
the following articles were included in this review: Schlaug 1995; Zatorre et al. 1998;
Onishi et al. 2001; Keenan et al. 2001; Ross et al. 2003; Hamilton et al. 2004; Luders
et al. 2004; Bermudez & Zatorre 2005; Gaab et al. 2006; Wilson et al. 2008; Oechslin
et al. 2009; Bermudez et al. 2009; and Schulze et al. 2009. All these studies focus on
MRI area or volume measurements of brain structures and/or fMRI/PET determina-
tion of hemodynamic response and characteristics of neural networks involved in AP.
1. Morphometric Investigations
While two MRI studies examined the volume of the planum temporale (PT) (Zatorre
et al. 1998, Wilson et al. 2008), three measured the surface of this region (Schlaug et
al. 1995, Keenan et al. 2001, Hamilton et al. 2004). Two other studies (Luders et al.
2004, Bermudez et al. 2009) performed voxel-based morphometry (VBM) of the
whole brain to investigate grey matter asymmetries in AP and non-AP musicians.
Notwithstanding the methodological differences, the results of all but one of these
studies were notably similar, indicating the existence of a pronounced leftward asym-
metry of the planum temporale (PT) in AP subjects.
Schlaug and colleagues (1995) were the first to describe specific structural characte-
ristics of the brain of musicians. Their study revealed an exaggerated leftward PT
asymmetry in musicians with AP when compared to those without AP, who in turn
did not differ from a control group of non-musicians. It should be noted that right-
handed individuals naturally have a leftward asymmetry of the PT. However, the
asymmetry presented by the group of musicians with AP (also right-handed) was sig-
nificantly larger than usual. Another study (Zatorre et al. 1998) did not observe diffe-
rences in the volume of PT in AP vs. non-AP musicians, but reported a larger left PT
when AP musicians (n = 10) were compared to a larger sample of right-handed sub-
jects unselected for musical skill (n = 50). Also, the authors noticed that the larger
the PT volume of AP musicians, the better their performance on the absolute pitch
50 test applied during the investigation.
An interesting observation was made by Keenan and colleagues (2001).Those authors
reported that the leftward PT asymmetry observed in musicians with AP when com-
pared to non-AP musicians and non-musicians resulted not from a larger left PT, but
rather from a significantly smaller right absolute PT. A similar observation was made
by Wilson and colleagues (2008), who compared musicians exhibiting a lower level
of AP performance, whom they called quasi-AP musicians (QAP), with others with
and without AP and observed a lower average volume of right PT in AP vs. non-AP
and QAP individuals. This difference was especially evident between the groups of
musicians with AP and QAP. The average volume of left PT did not differ between the
groups.
Luders and colleagues (2004) studied gray matter (GM) asymmetry with a focus on
both AP and gender, and found that male AP musicians were more leftward lateralized
in the anterior region of the PT than male non-AP musicians, and that male non-AP
musicians had an increased leftward GM asymmetry in relation to female non-AP
musicians. That study was performed using VBM, which differs from traditional re-
gion-of-interest MRI analyses because it allows the entire brain to be examined, de-
creasing user bias. Other authors have recently used a combination of VBM with other
morphometric techniques to study cortical thickness (Bermudez et al. 2009), but did
not observe an exaggerated leftward asymmetry of PT, as described in previous stu-
dies. On the other hand, they found a thinner cortex in AP possessors in areas pre-
viously implicated in the performance of AP tasks, such as the posterior dorsal frontal
cortices (Zatorre et al. 1998, Bermudez and Zatorre 2005).
2. Functional Investigations
The fact that AP fMRI/PET studies (Zatorre et al. 1998, Ohnishi et al. 2001, Ross et al.
2003, Bermudez and Zatorre, 2005, Gaab et al. 2006, Wilson et al., 2008, Oechslin et
al. 2009, Schulze et al. 2009) have employed a range of stimuli poses a challenge to
direct comparison, since the performance of various tasks, even if only slightly diffe-
rent, could lead to the activation (or non-activation) of distinct brain areas. Still, the
main observations of these studies are summarized below.
2.1. Activation of posterior dorsolateral prefrontal cortex
The posterior dorsolateral prefrontal cortex was activated in both AP and non-AP
subjects when they performed tasks requiring the association of a specific sound sti-
mulus to its label (Zatorre et al. 1998, Bermudez and Zatorre, 2005). Musicians with
AP showed activation of the posterior dorsolateral prefrontal cortex in all tasks in-
volving tonal stimuli, since they unconditionally associate pitches with labels. This
activation occurred whether the tasks were active – when subjects were required to
name pitches that were randomly presented (Wilson et al. 2008) – or passive – when
they were required only to listen to a sequence of two pitches (Zatorre et al. 1998) or
to a music excerpt (Ohnishi et al. 2001).
Zatorre and colleagues (1998) observed that only AP musicians had their left posterior 51
dorsolateral prefrontal cortex activated while passively listening to pairs of tones,
played one after the other. However, when the task was to identify and name the in-
tervals formed by the pairs of tones (a task that all trained musicians can perform,
regardless of presenting AP), activation in that same area was observed in individuals
with and without AP. The authors thus remark that whenever an association between
a stimulus and a label was required, activation in the posterior dorsolateral prefrontal
cortex was observed. AP could then be characterized as the ability to retrieve an ar-
bitrary nonspatial association between a stimulus (pitch) and a verbal label (name of
pitch), therefore strongly linked to associative memory (Zatorre et al. 2008).
Bermudez and Zatorre (2005) used a sample of non-musicians in an attempt to test
this hypothesis. The authors designed a task that aimed to reproduce, in non-musi-
cians, a mechanism analogous to the one used by subjects with AP in the identifica-
tion of tones. For the experiment, eight individuals without formal musical knowledge
were trained to associate four distinct triads (major, minor, augmented, and dimi-
nished) to numbers 1 to 4. It was expected that the non-musicians in this experiment
would present an activation of the dorsolateral prefrontal cortex when linking each
triad to its corresponding number, as had occurred with AP subjects in the Zatorre
study when associating a label (e.g. A) to a stimulus (e.g. 440Hz). Two fMRI sessions
were performed, one before and one after the training, and activation of the posterior
dorsolateral prefrontal cortex was indeed observed in both hemispheres during the
post-training session. The importance of this experiment resides in the fact that it
shows that part of the processing chain involved in the identification of tones through
AP – the associative pairing of a stimulus’ dimension to a label and the access to this
information — is a universal ability and involves neural substrates common to indi-
viduals with or without AP.
2.2. Activation of left temporal cortex
When hearing musical stimuli based on the Western tempered scale, AP musicians
presented activation predominantly concentrated on the left temporal cortex (Zatorre
et al. 1998, Ohnishi et al. 2001, Wilson et al. 2008). On the other hand, in non-AP
musicians, or in musicians with a lower degree of this ability, a much greater recruit-
ment of neural networks was observed, especially in the right hemisphere, including
structures linked to pitch working memory (Wilson et al. 2008).
In a study conducted by Onishi and colleagues (2001), patterns of brain activation in
musicians (most of them with AP) and non-musicians were observed as they listened
to a specific musical fragment. When passively listening to the music presented during
an fMRI session, musicians and non-musicians revealed activations in significantly
distinct cortical areas. While in non-musicians the area which showed predominant
activity was the right temporal cortex (Brodmann Areas 21, 22), in musicians the
predominant activity was observed in the left temporal cortex (Brodmann Areas 21,
22). Moreover, when compared to non-musicians, musicians presented greater acti-
52 vation in PT and, again, in the left posterior dorsolateral prefrontal cortex (Brodmann
Area 9), as had already been observed in the studies mentioned above.
3. Absolute Pitch Modulating Factors and Neuroimaging
3.1. Early musical training
Two studies addressed the issue of early musical training (Ohnishi et al. 2001, Keenan
et al. 2001).As previously described, Keenan and colleagues (2001) found an exagge-
rated PT asymmetry in musicians with AP when compared to non-AP musicians and
non-musicians, resulting from a significant smaller right absolute PT size. The fact
that all the musicians selected for both samples of this work (except one in the group
of AP) had started their musical training at the age of 7 or before provides evidence
that the early exposition to musical training does not guarantee an exaggerated left-
ward PT asymmetry. It is therefore more likely that this asymmetry would be deter-
mined by genetic or by prenatal but non-genetic factors and, either way, it could serve
as a marker of predisposition of AP instead of being a result of experiential difference.
The investigation by Onishi and colleagues (2001) revealed a significant negative li-
near correlation between the age at onset of musical training and the degree of acti-
vation in the left PT (Brodmann Area 22). Moreover, an important positive linear
correlation was observed between the performance of musicians of the sample in an
AP test and the degree of left posterior dorsolateral prefrontal cortex activation. In
other words, the earlier the beginning of musical training, the higher the activation
in the PT; and the better the performance in the AP test applied, the greater the acti-
vation in the left posterior dorsolateral prefrontal cortex.
3.2. Working memory
The issue of working memory was raised in two papers (Wilson et al. 2008; Schulze
et al. 2009). Absolute pitch has traditionally been contrasted with relative pitch per-
ception in the literature, assuming that both abilities were independent and incom-
patible, with clearly defined boundaries. Some studies, however, describe significant
differences in the perception of tones within the group of absolute pitch musicians,
indicating different degrees of the same ability (Bachem 1937; Takeuchi and Hulse
1993).
Like most human traits, AP is not an all-or-none ability, but rather exists along a con-
tinuum (Levitin and Rogers 2005). For this reason, the term “quasi-absolute pitch”
has been used by some researchers to describe individuals who would fall somewhere
in that continuum. Some QAP subjects are able to label tones produced by one par-
ticular instrument only. Others have AP for only a single tone and, when required to
name other tones, they use relative pitch to fill in the gaps (Bachem 1937; Levitin and
Rogers 2005).
Wilson and colleagues (2008) studied three subject groups: AP, quasi-AP (QAP) and
non-AP musicians, showing a significant activation peak in the posterior extension
of the left superior temporal gyrus (Brodman Area 22) in musicians with AP during
the performance of a pitch identification task. An analysis combining the groups of 53
AP and QAP musicians revealed an additional and extensive activation in the right
hemisphere and in bilateral frontotemporal regions, areas which have been previously
shown to be involved in functions of pitch discrimination and auditory working me-
mory (Zatorre et al. 1994). The solicitation of more extensive neural networks during
the tone identification process reflected the variation in the degree of precision bet-
ween individuals with AP and quasi-AP. The lower the performance in the pitch iden-
tification task, the greater the involvement of the right hemisphere and of structures
linked to the working memory.
Wilson and colleagues (2008) have also verified that in a task requiring tonal classi-
fication (but not pitch identification) all three groups presented similar activation
along the left superior temporal gyrus and in the right cerebellum. However, when
AP subjects were excluded from the comparison, peaks of activation were only ob-
served in the anterior portion of the left superior temporal gyrus. It is interesting to
note that individuals with QAP presented a faster mean correct response time in the
tonal classification task than in the identification of pitches, while the opposite oc-
curred in individuals with AP.
Schulze and colleagues (2009) have contrasted AP and non-AP musicians to investi-
gate differences in the neural correlates of early encoding and short-term storage of
tonal information. Those authors used a pitch memory task in which subjects were
required to retain a series of tones and later identify whether the last or second-to-
last tone was the same or different from the first. Using this task, the authors were
able to inspect early activity (0 to 3 s after the end of stimulus presentation), reflecting
perceptual encoding, as well as later activity (4 to 6 s after stimulation), possibly re-
flecting post-encoding functions such as working memory. Greater activity was re-
ported in the left superior temporal sulcus (STS) of AP musicians during the early
scanning period, whereas non-AP musicians showed greater activity in the right pa-
rietal areas during both scanning periods.
These findings suggest that a different cognitive strategy is employed by musicians
with and without AP to identify and categorize sounds, with non-AP musicians using
a tonal working memory and/or multimodal encoding to carry out the pitch memory
task. The study raises the question of whether there are correlations between AP and
other facets of cognition, or of whether (some forms of) AP may be manifestations
in the musical domain of broader elements of cognition.
3.3. Verbal nature
Two papers (Zatorre et al. 1998; Oechslin 2009) addressed the notion that AP involves
an association between a stimulus and a verbal label (Zatorre et al. 1998), suggesting
a “verbal nature” for AP ability. Oechslin and colleagues observed significantly diffe-
rent hemodynamic responses to complex speech sounds in AP musicians vs. relative
pitch (RP) musicians, with AP musicians presenting stronger activation of the poste-
rior part of the middle temporal gyrus and weaker activation of the anterior mid-
54 part of the superior temporal gyrus. Based on the notion that AP proficiency should
be reflected in specific auditory-related cortical areas, and assuming an increased
language processing proficiency in AP individuals, those authors argued that AP mu-
sicians would present a left-side lateralization in language comprehension regardless
of linguistic domain (syntax, semantics, phonology). They concluded that pitch pro-
cessing does indeed influence propositional speech perception, that is, perception of
sentence meaning.
3.4. Blindness
Three studies make reference to this topic (Ross et al. 2003; Hamilton et al. 2004;
Gaab et al. 2006). It is estimated that the incidence of AP among blind individuals is
greater than among individuals without visual impairment (Hamilton et al. 2004).
Blind AP musicians use neural networks which include areas distinct from those used
by sighted AP musicians, such as visual association and parietal areas (Ross et al.
2003; Gaab et al. 2006).
The study by Hamilton and colleagues (2004) showed that blind musicians with AP
did not have the same increase in PT asymmetry previously observed in AP musicians
without visual impairment. When compared to other blind musicians without AP,
they showed a greater degree of PT asymmetry variability. Although the number of
blind individuals who participated in the study was small (n = 8) and their selection
was not based on handedness, this study suggests that the neural mechanisms linked
to AP in blind musicians is likely to be distinct from those of musicians without visual
impairment.
Ross et al. (2003) and Gaab et al. (2006) compared fMRI findings in blind and sighted
individuals with AP. Even though they were based on significantly distinct tasks, both
studies observed considerable differences in the patterns of activation between the
groups, suggesting that different neural networks were employed in the processing
and identification of tones. While sighted individuals presented greater activation in
auditory cortical areas, there was a very large recruitment, in blind individuals, of vi-
sual association and parietal areas. Since there is evidence that visual association areas
are involved in the processing and categorization of visual information (Spiridon and
Kanwisher 2002) the arising hypothesis is that, in the absence of vision, these same
areas would facilitate the categorization of auditory information. This notion of brain
plasticity involving the occipital cortex could provide an additional neural substrate
for the development of AP in blind individuals. The results of these two studies —
although not revealing the specific mechanisms that lead to a higher propensity to
the acquisition of AP in blind subjects — show that the appearance of AP in blindness
does not depend on the same auditory cortex structures that are responsible for the
manifestation of AP in sighted subjects.
Discussion
The studies selected for this literature review attempted to identify, through MRI,
fMRI or PET, brain mechanisms and structures that could possibly be involved in
pitch perception by AP. As far as the anatomical findings are concerned, all but one
55
MRI study indicated an exaggerated leftward PT asymmetry in AP subjects. However,
the significance of this finding is still largely unknown. Different morphometric met-
hods were employed across studies: manual measurement of the volume or surface
area of the PT revealed a pronounced leftward asymmetry in individuals with AP
(Schlaug et al. 1995; Zatorre et al. 1998; Keenan et al. 2001; Wilson et al. 2008); one
study using an automated method of analysis (VBM) observed a leftward asymmetry
of PT in male AP-musicians only (Luders et al. 2004); and another study combining
different morphometric techniques did not reveal such asymmetry at all (Bermudez
et al., 2009). Some studies attributed the asymmetry to a larger than usual left PT
(Schlaug et al. 1995; Zatorre et al. 1998), and others to a smaller right PT (Keenan et
al. 2001; Wilson et al. 2008). Manual segmentation analysis of the PT can avoid some
morphological variability intrinsic to automated methods (such as VBM and cortical
thickness); on the other hand, they are more prone to arbitrary delineation definitions
and human error. Based on these considerations, it would be premature to conclude
that an exaggerated leftward asymmetry of PT is an anatomical characteristic of all
individuals with AP.
An interesting and novel structural finding was made by Bermudez and colleagues
(2009), whose study draws attention to brain areas outside the PT, revealing reduced
cortical thickness in multiple loci in AP musicians. One of these areas, the posterior
dorsal frontal cortex, had been identified as involved in AP perception in previous
functional investigations (Zatorre et al. 1998; Bermudez and Zatorre 2005). This study,
thus, serves to delineate potential areas for future investigation about the anatomic
and functional correlates of AP.
Regarding the functional studies included in this literature review, activations in the
posterior dorsal frontal cortex and in the left temporal cortex emerged as characte-
ristics of AP perception in normal subjects (Zatorre et al. 1998; Ohnishi et al. 2001;
Wilson et al. 2008). Blind individuals with AP showed distinctive areas of activation
especially in the parietal and occipital cortices (Ross et al. 2003; Gaab et al. 2006).
However, the samples analyzed in these studies were small and further investigations
with larger samples seem necessary to confirm these findings.
In general, the literature also supports the hypothesis of Zatorre and colleagues (1998)
that the emphasis on the left hemisphere in AP indicates a verbal nature for the as-
sociation that occurs between a sound and a label in AP. Further support to this hy-
pothesis came from the study by Oeschlin and colleagues (2009), which shows
differences between AP musicians and non-AP musicians in terms of speech proces-
sing. Taking into consideration that the PT is a key element in Wernicke’s area, a major
functional area for language comprehension, future studies should investigate the
correlations between language acquisition and processing and AP. Studies on Wer-
nicke’s subareas may also be useful to shed light on AP specificities concerning re-
cognition of different timbres, especially the difficulty in recognizing tones produced
by the human voice (Bachem 1937; Takeuchi and Hulse 1993).
56 Early training is certainly correlated with AP, probably as a trigger to fulfill a genetic
predisposition to the development of this ability (Baharloo 1998; Gregersen et al.
2000; Zatorre 2003). In that sense, age 7 seems to be the cutoff point after which trai-
ning does not guarantee improved AP performance (Takeuchi and Hulse 1993). Ho-
wever, the articles reviewed here have shown that early training does not seem to be
associated with anatomical features such as PT size (Keenan et al. 2001), but rather
with activation of specific brain structures (Ohnishi et al. 2001).
There seems to be strong evidence that AP and other forms of AP such as QAP employ
different cognitive strategies to recognize tones (Wilson et al. 2008; Schulze et al. 2009;
Takeuchi and Hulse 1993; Levitin and Rogers 2005). Further clarification of this dis-
tinction would be useful to determine the boundaries of AP. Even if not all AP indi-
viduals share the same degree of ability, there probably are cognitive features that
characterize AP specifically, and that are not found outside AP.
A word of caution must be said concerning methodological aspects. As stated by Ber-
mudez and Zatorre (2009), there exists no standard method for the behavioral de-
termination of absolute pitch ability. As a result, a variety of methods have been used
to determine AP ability and select study participants, which might account for some
disparity in results. Schlaug and colleagues (1995) chose AP subjects based on the
self-declared ability to produce and recognize pitches without external reference. The
remaining investigations used either a pitch production test (Ohnishi et al. 2001) or
pitch labeling tests. Nevertheless, the timbres employed in these labeling tests were
distinct: sawtooth waves (Zatorre et al. 1998), sine waves (Keenan et al. 2001, Luders
et al. 2004; Hamilton et al. 2004; Gaab et al. 2006; Schulz et al. 2009; Oechslin et al.
2009), or synthesized piano (Ross et al. 2003; Wilson et al. 2008). As previously men-
tioned, the literature describes significant variations in the perception of tones within
the group of subjects with AP, indicating different degrees of this ability (Bachem,
1937). Among AP possessors the extent of sensitivity to timbre, as well the degree of
accuracy or consistency in AP identification and production varies widely (Takeuchi
and Hulse 1993). It is, thus, important to emphasize that the results described in these
neuroimaging investigations should be interpreted with careful attention to the nature
of the selected samples. Subjects who can recognize tones in the piano timbre are not
necessarily capable of recognizing tones produced by sine or sawtooth waves.
Further investigation seems thus to be necessary in order to deepen the search for
anatomical and functional markers that could be related to these variations in AP.
This would contribute to a more detailed understanding of how tone processing oc-
curs in our brain.
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Zatorre, R.J.; Evans, A.C.; Meyer, E. Neural mechanisms underlying melodic perception and
memory for pitch. J Neurosci. 14 (1994), 1908-1919.
Um levantamento sobre o ouvido absoluto
Rodrigo Fratin Medina
medinaum@hotmail.com
Ricardo Goldemberg 59
rgoldem@iar.unicamp.br
Departamento de Música, Instituto de Artes – Unicamp

Resumo
O ouvido absoluto (absolute pitch, perfect pitch) foi um dos assuntos mais polêmicos
e intrigantes durante o séc. XX na área da cognição musical e, em diversos aspectos,
permanece aberto para maiores esclarecimentos. Como podemos definir de fato o
que seja esta habilidade? Quais são os fatores correlacionados válidos para com-
preendê-la? Neste trabalho, e com o objetivo de estabelecer um consenso a partir
daquilo que já se sabe pelas pesquisas de investigadores conceituados, fizemos um
levantamento bibliográfico sobre esta faculdade auditiva. Primeiramente, buscamos
compreender os aspectos mecânicos e psicofísicos do funcionamento do ouvido hu-
mano para, em seguida, avaliar a teoria vigente que relaciona as características so-
noras de croma e peso com o funcionamento da membrana basilar na cóclea. Por
fim, a partir desses elementos, apresentamos uma síntese analítica do pensamento
vigente na busca de uma definição consistente e suficientemente abrangente para a
habilidade em questão.
Palavras-chave
ouvido absoluto – croma sonoro – percepção musical

Introdução
Durante o séc. XX um dos assuntos mais polêmicos e confusos em meio à área de
cognição musical foi o ouvido absoluto (absolute pitch, perfect pitch). Uma habilidade
tida como rara entre as pessoas, mas que mesmo assim parece se manifestar de dife-
rentes maneiras e em diferentes níveis pondo em comparação os seus possuidores.
Então como podemos definir seguramente esta habilidade? Quais são os fatores cor-
relacionados válidos para compreendê-la?
Com essas perguntas em mente, elaborou-se a presente pesquisa que tem como ob-
jetivo primário levantar elementos consensuais e comumente aceitos pela comuni-
dade de pesquisadores nessa área da cognição musical. Com isso, pretende-se
explicitar o que já se sabe a respeito do fenômeno e, ao mesmo tempo, levantar quais
são os aspectos que ainda estão sujeitos à experimentação e comprovação. Dessa
forma, pretende-se oferecer elementos básicos e categóricos que tenham o potencial
de fundamentar teoricamente o caminho de novos pesquisadores.
A metodologia adotada é descritiva e consiste basicamente no levantamento biblio-
gráfico a partir de alguns autores relevantes. Acredita-se que esse levantamento per-
mitirá compreender a evolução nesse campo específico de estudos, e a natureza dos
problemas enfrentados pelos investigadores assim como as respectivas soluções.
Nesse contexto, pretende-se explicitar como o problema vem sendo avaliado do ponto
de vista metodológico e quais são os modelos científicos adotados para a compreensão
60 do fenômeno.
A pesquisa se inicia com uma análise do aparelho auditivo do ser humano, apresenta
a teoria referente às relações entre a membrana basilar e os aspectos sonoros de croma
e peso, e por último relaciona as diferentes definições que esta habilidade tomou na
argumentação de diversos autores chegando ao consenso objetivado.

Fig. 1 – O Aparelho auditivo humano.


Fonte: http://www.colegioweb.com.br/fisica/qualidades-fisiologicas-do-som.html

A estrutura anatômica do aparelho auditivo


O aparelho auditivo do ser humano pode ser dividido em três partes: ouvido externo,
ouvido médio e ouvido interno (Fig. 1). O ouvido externo é formado por uma prega
de pele e cartilagem, a orelha, e pelo canal auditivo. Ele tem a função de captar e en-
caminhar as ondas sonoras para a orelha média, amplificar o som, auxiliar na locali-
zação da fonte sonora e principalmente proteger a membrana do tímpano. Além disso,
ela ajuda a manter um equilíbrio nas condições de temperatura e umidade, necessário
à preservação da elasticidade da membrana. As glândulas ceruminosas produtoras
de cera, os pelos, e a migração epitelial da região interna para a externa contribuem
para estes fatores.
As partes funcionais mais importantes são o ouvido médio e o ouvido interno que
ficam alojados dentro do crânio. O ouvido médio é praticamente uma “bolsa” preen-
chida por ar que se comunica com a nasofaringe através da tuba auditiva, também
chamada de trompa de Eustáquio. Ele possui em seu interior uma cadeia ossicular
composta por: martelo, bigorna e estribo. Estes três pequenos ossos se conectam, for-
mando uma ponte entre a membrana timpânica e a janela oval. Através de um sistema
de membranas, eles conduzem as vibrações sonoras ao ouvido interno. A importância
desta cadeia está relacionada à equalização das impedâncias do ouvido médio (vi-
brações aéreas que invadem a membrana timpânica) e do interno (variações de pres-
são nos compartimentos líquidos do ouvido interno).
\O ouvido interno é composto por uma estrutura de formato espiral chamada cóclea,
pelos canais semicirculares e pelo vestíbulo. Quando ondas sonoras entram no ouvido
elas atingem a membrana timpânica que fica no final do canal auditivo, onde são con-
vertidas em vibrações, as quais são transmitidas à cóclea pelos ossículos. Na cóclea,
as vibrações são transformadas em sinais elétricos nervosos por milhões de micros-
cópicas cerdas das células auditivas. Estes sinais por sua vez são interpretados no cé-
rebro.
Dentro da cóclea temos uma estrutura a destacar neste trabalho. Trata-se da mem-
brana basilar (Fig. 2), cuja principal característica é não ser uniforme, de forma que 61
suas propriedades mecânicas variam de acordo com o seu comprimento. Próximo à
um dos extremos ela é mais fina e tensa, ressoando em freqüências mais altas, en-
quanto no seu final (ápice), ela é espessa e flácida, ressoando então para freqüências
mais baixas.
Segundo a teoria de Von Bekesy, citado por Paulucci em 2005, para um dado estímulo
vibratório (som puro), ele se propagará através de toda a membrana basilar, causando
maior amplitude de movimento em determinado ponto dela (formando espécies de
“envelope” na membrana. Quando vários sons distintos são tocados, a imagem dela
se assemelha a de um teclado), enquanto os demais pontos permanecem próximos
da inércia. Outro fator é que esta membrana permite que sons distintos a estimulem
ao mesmo tempo, vibrando em locais diferentes, ou seja, não ocorre interposição de
ondas.
Isto atribui à membrana uma estrutura tonotópica, ou seja, sons agudos vibram em
um extremo e sons graves em outro. Sons muito graves (menor que 200 Hz) provocam
a mobilização de toda a membrana basilar. Neste caso, a cóclea segmenta o som que
chega ao ouvido, confirmando a cada tom uma região diferente da membrana (Pau-
lucci 2005, 3-4).
Foi com base nas características fisiológicas da membrana basilar que Bachem, ci-
tando uma teoria primeiramente exposta por Helmholtz, propôs uma extensão desta
para explicar o fenômeno do ouvido absoluto. A cada freqüência captada pela audição,
a membrana basilar demonstra vibrações em diferentes locais. Quando esta freqüên-
cia é ouvida novamente, a membrana responde com o mesmo padrão. Em mudanças
de oitava o padrão permanece o mesmo, com só uma pequena adição de componentes
na região aguda e omissão na região grave (comparando com uma oitava mais baixa).
Desta forma, o padrão que se repete independente da oitava tocada é o que gera a
sensação de mudança de tom (croma) e os elementos acrescentados mais ao grave
ou ao agudo é que são responsáveis pelo caráter de peso, o que permite distinguir a
oitava.
Os estímulos percorridos pela membrana basilar repercutem sobre as células que se
localizam no órgão de corti. Estas células são as que convertem a energia mecânica
em elétrica e direcionam estes impulsos para os nervos que levam estes impulsos para
o cérebro. Este mecanismo deve ser o responsável pelas informações que permitem
o reconhecimento dos aspectos de croma e peso no cérebro (Bachem 1937, 150-151).
Fig. 2 – A membrana basilar. Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/corpo-
62 humano-sistema-sensorial/audicao-17.php

Os dois componentes fundamentais da sensação de ouvir


Em 1950 Bachem, analisando pesquisas de alguns dos seus contemporâneos, ressaltou
a informação de que nossas sensações ao ouvir são constituídas de dois componentes.
Um deles é comumente chamado de “peso” (tone height), que varia conforme varia a
freqüência. O outro, segundo a definição sugerida por Bachem e aceita até os dias de
hoje, é chamado de croma (chroma). O croma é o fator que carrega as informações
que permitem que um ouvido reconheça qualquer freqüência como sendo, segundo
o sistema tradicional, um Do, um Ré, Si bemol, etc. Este reconhecimento ocorre in-
dependente da oitava a que a nota esta soando. Desta forma, as freqüências de 32.7
Hz, 65,4 Hz, 130.8 Hz tem todas o mesmo croma, que correspondem a nota Do na
escala tradicional. De acordo com os testes realizados por Bachem, é a capacidade de
reconhecer este componente que diferencia as pessoas com OA das sem OA. Esta afir-
mação é resultado da observação de que nos testes feitos com possuidores de OA, erros
de oitava são muito comuns. Em casos classificados como “ouvido pseudo absoluto”
o primeiro fator é o que o ouvinte leva em consideração para fazer o julgamento, que
costuma ser demorado e cheio de erros. Com base numa estimativa do peso da nota
escutada o ouvinte, praticamente por “chute”, nomeia a freqüência. (Bachem 1950,
81).
Em uma pesquisa realizada em 2003, cientistas observaram o cérebro humano através
de imagens funcionais por ressonância magnética com o objetivo de definir quais re-
giões são mais afetadas pelos dois diferentes aspectos das freqüências ouvidas, croma
e peso. Segundo eles mudanças no carácter de croma produzem mais ativação no
córtex auditivo ântero-lateral (antero-lateral auditory cortex) e alterações no carácter
de peso produzem mais ativação no córtex auditivo postero-lateral (posterolateral au-
ditory cortex)(Warren et al. 2003, 1-4).
\A relação entre os elementos croma e peso podem ser representadas por um gráfico
tridimensional em forma de hélice (Pitch Helix): Uma espiral que ascende sobre a su-
perfície de um cilindro vertical invisível (Fig.3).
63

Fig.3 – A Hélice da relação entre croma e peso (Pitch Helix). Notamos que o croma está
sendo representado numa escala de semitons representada em circunferência inserida
no plano XZ, onde um semitom equivale ao ângulo entre, por exemplo, Dó (C) e Dó
sustenido (C #) em relação ao eixo vertical (Y) que representa o peso. Este pode ser me-
dido em qualquer escala de freqüência, como por exemplo, Hertz. Outro caráter que
este gráfico representa é a classificação das oitavas, bastando olhar em qual bobina se
localiza a freqüência dada (fonte: Warren et. al 2003, 1-4).

Pessoas que tiveram uma educação musical e desenvolveram um bom ouvido relativo
se comportam como se elas tivessem desenvolvido uma escala interna. Um padrão
móvel conceitual que é permanentemente calibrado em termos de relações entre notas
na escala musical tradicional de 12 tons. Se é apresentado a um indivíduo com um
bom ouvido relativo um tom X e é dito qual é o seu croma e em que oitava está, esta
nota dada serve de ponto de referência para denominar todos os outros tons. A espiral
gráfica é mentalmente rodada até o marcador subjetivo de semitom coincidir com
este tom “âncora”, e o músico pode a partir disto localizar todas as outras notas da
escala. O músico assim se prepara para fazer julgamentos dos intervalos musicais
(um conceito que corresponde à distância ao longo desta espiral) que separam este
tom “âncora” de quaisquer outras frequências.
No caso relatado acima, podemos dizer que a espiral é “flutuante”. Ou seja, não existem
degraus permanentes para se fazer julgamentos das notas, só existem temporários.
Se for dado um tom de 440 Hz seguido de um de 525 Hz, o músico reconhecerá ra-
pidamente o intervalo de terça menor, mas só se ele soubesse que a primeira foi Lá
irá denominar a segunda como Do. Se déssemos a informação de que o primeiro tom
foi Ré, o segundo seria nomeado Fá.
Este tipo de engano não ocorre com uma pessoa possuidora de OA. Nesta, a espiral
demonstra ter degraus fixos e permanentes. Dadas as mesmas freqüências de 440 Hz
e 525 Hz o músico imediatamente reconheceria Lá 4 e Dó 5, e se lhe contassem que a
primeira foi Do 5, simplesmente diria que ouve um erro (Ward e Burns 1982, 434).

Conceitos sobre o ouvido absoluto e definições


O ouvido absoluto foi primeiramente citado em meio aos estudos de psicologia por
Stumpf em 1983, mas é tema de discussões entre músicos desde os tempos de Mozart,
que demonstrou ser um genuíno possuidor desta habilidade. Além dele, muitos mú-
sicos notáveis como Beethoven, Chopin, Scryabin, Messiaen e Boulez também de-
monstraram ser possuidores. Ela pode ser definida como a habilidade de identificar
o croma (classe de altura) de uma onda sonora audível fazendo uma discriminação
das diferentes freqüências com termos como C, 261 Hz ou Do sendo esta habilidade
considerada por muitos como OA passivo. Também pode ser demonstrada como a
64 capacidade de reproduzir uma determinada freqüência sem ter sido dada uma refe-
rência exterior, o que os mesmos chamam de OA ativo. Estes conceitos estão presentes
em autores como Bachem, Baggately, e Ward, citados por Parncutt e Levitin (2001,
37).
Este tipo de percepção pode facilmente ser comparado com a capacidade humana de
diferenciar cores. Desta forma é comum a referência a esta habilidade como sendo a
capacidade de ouvir cores, isto sem relações com o fenômeno denominado “sinestesia”.
Neste processo, dado uma onda de, por exemplo, 440 Hz, esta gerará uma determi-
nada vibração num local particular da membrana basilar que por um conjunto de fi-
bras nervosas deste lugar carregará um sinal para o cérebro. Se o ouvinte em algum
momento aprendeu a identificar este som como “Lá 4” (ou qualquer outro nome),
então sempre que este mesmo conjunto de fibras nervosas for estimulado no futuro
o cérebro irá responder com o mesmo nome. Entretanto é muito interessante observar
que enquanto 98% das pessoas reconhecem as cores visuais (considerando a existên-
cia de 2% de daltônicos), menos de 0,01% tem ouvido absoluto. Isto levando em con-
sideração alguns critérios estabelecidos para julgar a existência desta habilidade e
pelo que os estudos mostraram até hoje eles ainda não são muito claros contando que
os casos denominados como sendo deste fenômeno apresentaram variadas caracte-
rísticas.
Considerando as dificuldades em classificar se um ouvinte possui ou não um ouvido
absoluto, em 1937, Bachem escreveu o artigo “Various tipes of Absolute Pitch” no
qual depois de várias pesquisas com muitos casos distintos com a mesma denomi-
nação chegou a uma classificação para distingui-los. Por ela podemos dividir os casos
relatados como ouvido absoluto em três classes: A – Ouvido Absoluto Genuíno, ba-
seado na identificação imediata do croma; B – Ouvido quase absoluto, baseado no
julgamento por intervalos a partir de uma referência fixa interiorizada, como o Lá
440 Hz dos violinistas e C – Ouvido Pseudo Absoluto, baseado numa estimação pela
sensação de peso da nota.
Na classe A temos três subdivisões: na primeira temos o OA universal, podendo ser
infalível (Bachem conheceu sete casos), mesmo realizando variações de timbre, re-
giões e até considerando ruídos diversos como motores de carro e sons de vidros; ou
podendo ser falível, tendo dificuldade com diversos instrumentos e realizando os
erros comumente relatados de semitons e oitavas. Na segunda temos o OA limitado,
podendo o ouvinte ter sua identificação restrita a determinado timbre, a determinada
região de freqüências ou as duas coisas ao mesmo tempo. Já na terceira, temos o OA
classificado como intermediário a estes dois anteriores podendo ser impreciso ou im-
preciso e variado.
Na classe B temos duas subdivisões: na primeira o músico possui uma memória fixa
para determinado tom, como por exemplo, o Lá 440 Hz do violino ou o Dó central
do Piano. Assim, a partir de um conhecimento de intervalos, pode identificar com
certa precisão a maioria das freqüências. Já na segunda o músico reproduz a nota vo-
calmente e com base na associação da tensão de suas cordas vocais a determinadas
freqüências, encontra certos padrões para identificar os sons que ouve. 65
Na classe C, denominada Ouvido Pseudo Absoluto existe uma estimação por parte
do ouvinte com base no caráter de “peso” das notas, algo que é válido para julgar as
oitavas e não o croma. Os ouvintes enquadrados nas pesquisas como possuidores
deste tipo, fazem geralmente um julgamento muito lento, dando a resposta como
“chutes” e cometendo muitos erros, o que já demonstra ser algo muito distante dos
fenômenos apresentados na classe A (Bachem 1937, 149-150).
Entretanto outras divisões já foram consideradas levando em conta o próprio emprego
desta habilidade pelos ouvintes. A habilidade de reconhecer e reproduzir alturas com
precisão e imediatismo foi denominada “OA de tom” (tone-AP) e outra característica
comum, que é o reconhecimento da tonalidade de algumas peças, foi denominada
“OA de Peça” (piece absolute pitch). Curiosamente estas duas não aparecem necessa-
riamente juntas, como disseram Terhardt e Seewann, citados por Parncutt e Levitin,
um músico pode demonstrar uma sem conseguir demonstrar a outra (Parncutt e Le-
vitin 2001, 38).
Segundo Levitin, “fundamentalmente, o OA é uma habilidade cognitiva que depende
de auto-referência (a um modelo internalizado de classe de altura) e um mecanismo
de codificação altamente desenvolvida, que liga os rótulos verbais com representações
abstratas de uma informação perceptiva”. Ainda acrescenta que ao contrário de uma
existência de um mecanismo de percepção altamente desenvolvido, “a maior prepon-
derância de evidência sobre a habilidade do OA é que seja uma habilidade de memória
de longo prazo e codificação lingüística”. Ainda sobre a definição, o mesmo autor cri-
tica o uso do termo perfect pitch (afinação perfeita) como nome alternativo para OA.
Pois o termo sugere que pessoas com o OA têm mais sensibilidade à afinação do que
pessoas sem ele, o que não é fato (Levitin, 1999).
Admitindo-se, em possuidores do OA, a existência de um padrão interno estabilizado
para fazer gerar e reconhecer sons com exatidão, deve-se levar em consideração um
aspecto fisiológico comum nos seres humanos que é chamado presbiacusia. Este
termo refere-se a alterações fisiológicas no ouvido em função da idade, o que leva a
que o ouvinte, com o passar do tempo, a perceber as notas mais altas do que percebia
antes. Citado por Ward & Burns, Vernon relatou que quando estava na idade de 52
anos, as tonalidades estavam soando um semitom acima. Isto foi particularmente
aflitivo, pois como resultado ele ouvia a abertura para Die Meistersinger em Dó sus-
tenido ao invés de Dó e para ele Dó é “forte e masculino” enquanto Dó sustenido é
“lascivo e afeminado.” Posteriormente, aos 71 anos de idade, ele ouvia tudo dois se-
mitons acima. Muitos outros casos semelhantes foram relatados (Ward & Burns 1982
444).
Considerações finais
Correlacionando as argumentações dos autores apresentados neste levantamento,
chegamos ao consenso de que os fatores de croma e peso são de fato muito impor-
tantes na compreensão do OA, uma vez que a única informação que se mantém pre-
66
sente em todas as definições é com relação a uma capacidade auditiva de reconhecer
os aspectos de croma num estímulo sonoro. Também julgamos, no momento, ina-
propriado enrijecer um conceito sobre a forma de manifestar-se esta habilidade au-
ditiva, pois, como ela se mostra muito variada, isto gera algumas dificuldades para
os pesquisadores em julgar precisamente se o indivíduo tem ou não um OA. Fatores
de tempo no julgamento, mudança de timbre, a capacidade de reconhecer em qual
croma está situado o centro tonal de uma peça e a faculdade de reproduzir uma nota
específica sem referência parecem indicar uma habilidade mais comum do que se
imagina, mas que se manifesta em diversos níveis, estando, para cada ouvinte, mais
acessível em algumas circunstâncias musicais e mais obscura em outras.
Uma análise completa do fenômeno sob questão deverá ainda englobar aspectos re-
lativos às possíveis origens do OA, comparando as duas correntes teóricas básicas (de-
senvolvimento e hereditariedade). Assim se faz necessária também uma revisão das
tentativas de desenvolver um OA e, logicamente, uma reflexão sobre a importância
do OA, aspecto que ainda é muito questionado pelos músicos. Embora já se tenha ob-
tido muito conhecimento sobre este fenômeno auditivo, muito existe ainda para ser
averiguado, sendo impertinente no momento fazerem-se afirmações categóricas sobre
alguns aspectos.
Referências Bibliográficas
Ward, D. W.; E. M. Burns. “Absolute Pitch”, in Diana Deutch, ed., The Psychology of Music, 431-
451. San Diego: University of Califórnia Press, 1982.
Bachem, A. “Various Types of Absolute Pitch”. Journal of the Acoustical Society of America 9
(1937), 146-151.
Bachem, A. “Absolute Pitch, Journal of the Acoustical Society of America 27, n. 6 (1955), 1180-
1185.
Parncutt, R. e D. J. Levitin, “Absolute Pitch, The New Grove Dictionary of Music and Musicians
1 (2001), 37-39.
Bachem, A. “Tone Height and Tone Chroma as Two Diferent Pitch Qualities”. Acta Psychol. 7
(1950), 80–88.
Levitin, D. J. “Absolute Pitch: Self-Reference and Human Memory”. International Journal of
Computing and Anticipatory Systems 4 (1999), 255-266.
Levitin, D. J.: “Absolute memory for musical pitch: Evidence from the production of learned
melodies”. Perception and Psychophysics 56, no. 4 (1994), 14-423.
Paulucci, B. P.; R1-ORL-HCFMUSP, 2005, pg. 1-14. Disponível em: . Acesso em: 25/10/2010
Warren, J. D. et. al. “Separating Pitch Chroma and Pitch Height in Human Brain. Proc. Nat.
Acad. Sci. 100, nº 17 (2003).
Quais os fatores que podem interferir na percepção
da expressividade interpretativa musical?
Márcia Higuchi, Cristina Del Ben, Frederico Graeff & João Leite
higuchikodama@uol.com.br 67
Departamento Neurociências e Ciências do Comportamento,
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo

Resumo
Estudos indicam que as performances tocadas com emoção apresentam mais carac-
terísticas relacionadas à expressividade (execuções expressivas) quando comparadas
às performances realizadas com a focalização da atenção dirigida apenas em aspectos
cognitivos (execuções técnicas). Nesses estudos porém, a percepção da expressivi-
dade por ouvintes não foi estudada. Este trabalho tem como objetivo estudar a per-
cepção da expressividade por 3 grupos de estudantes de graduação de ambos os
sexos com diferentes graus de treinamento musical. Os 3 grupos foram formados por
estudantes de área biológica sem conhecimento musical (bio), com conhecimento
musical (biomus) e estudante de música (mus). Os voluntários ouvintes analisaram
4 gravações (2 técnicas e 2 expressivas) executadas por 2 pianistas (um técnico e
outro expressivo). Os resultados indicam que os grupos com treinamento musical per-
ceberam maior grau de expressividade nas execuções expressivas comparadas às
execuções técnicas dos dois pianistas, porém o grupo sem treinamento musical não
identificaram tais diferenças. Embora os primeiros resultados indicassem que a per-
cepção da expressividade musical poderia estar relacionada ao grau de treinamento
musical, uma análise mais detalhada dos dados sugerem que outros fatores também
poderiam influenciar tal percepção. Entre as pessoas do sexo feminino, apenas as
musicistas perceberam diferenças entre as execuções técnicas e expressivas de ambos
os pianistas, com nível de significância (p<0,01). Os outros grupos femininos não per-
ceberam diferenças no grau da expressividade das execuções de forma significativa.
Entre os ouvintes do sexo masculino, apenas os estudantes da área biológica com co-
nhecimento musical distinguiram as execuções técnicas e expressivas dos pianistas
expressivo (p=0,02 ) e técnico (p =0,01). Os outros grupos masculinos perceberam a
diferença do grau de expressividade entre a execução técnica e expressiva do pianista
técnico (bio p=0,01 mus p=0,04), porém não identificaram diferença no grau da ex-
pressividade entre as execuções técnicas e expressivas do pianista expressivo. Esses
dados sugerem que vários outros fatores além do treinamento musical e gênero
podem estar envolvidos na percepção da expressividade musical.
Palavras-chave
percepção – expressividade – performance pianística

Introdução
A música pode provocar várias reações nos estados emocionais (Blood e Zatorre,
2001; Brown, Martinez et al. 2004; Menon e Levitin, 2005; Juslin e Vastfjall, 2008;
Zentner, Grandjean et al. 2008), porém não se sabe ao certo como a música desperta
tais emoções. A idéia de que as propriedades sonoras específicas resultantes da per-
formance do(s) intérprete(s) exercer um importante papel na experiência do ouvinte,
é consensual (Barthet, Depalle et al. 2010)
68 Juslin e Västfjäll (2008) propuseram seis diferentes mecanismos que podem mediar
as respostas emocionais através da música. Um dos mecanismos propostos, denomi-
nado de “Contágio Emocional” explica que a emoção do intérprete no momento da
execução pode vir a influenciar a sua expressividade musical. De acordo com esta
teoria, durante o processamento mental de um estímulo musical que provoque uma
emoção, o sistema nervoso dispara uma seqüência de reações corporais, preparando
o corpo para uma reação emocional específica. As reações procedentes dessas emo-
ções influenciariam diversas as atividades do corpo humano, como: a postura, rubo-
rização da pele, expressões faciais, gestos, entonação da voz, etc., influenciando
conseqüentemente a forma de tocar o instrumento musical. Essas reações resultariam
em variações na agógica (i.e. precisão métrica), na dinâmica, no timbre, na articula-
ção (i.e. legato, staccato), e outros aspectos da interpretação musical (Higuchi e Leite,
2007). Os ouvintes perceberiam essas expressões emocionais do interprete e seriam
internamente contagiados, tanto por meios de realimentação periférica da muscula-
tura, ou da ativação de áreas cerebrais relacionadas à representação de emoções, in-
duzindo os ouvintes a emoções similares (Juslin e Vastfjall, 2008). Portanto, se a teoria
do Contágio Emocional estiver correta, a emoção do pianista durante a performance
tem um papel fundamental na expressividade interpretativa musical.
No meio musical, é comum músicos relacionarem a expressividade com “tocar com
sentimento” (Juslin, Karlsson et al., 2006). A importância da emoção do intérprete
na expressividade é fortalecida por estudos os quais demonstraram que tocar simu-
lando uma emoção pode modelar a forma de tocar, influenciando a qualidade tim-
brística, ritmo, ênfases e inflexões interpretativas (Gabrielsson e Juslin, 1996; Juslin,
1997; 2000; Canazza, De Poli et al., 2003; Juslin e Vastfjall, 2008). Essa hipótese é re-
forçada por vários estudos que têm demonstrado que músicos profissionais conse-
guem tocar uma mesma música em diferentes nuanças expressivas (Canazza, De Poli
et al., 2003) e que tanto músicos especialistas como leigos conseguem identificar a
emoção transmitida através da audição (Juslin, 1997). Outros estudos corroboram a
idéia da importância da emoção na expressividade musical. Nesses estudos, as exe-
cuções de um mesmo repertório tocadas com a atenção focalizada em aspectos afe-
tivos apresentavam mais características relacionadas à expressividade quando
comparadas às execuções com a atenção focalizada em aspectos cognitivos (Higuchi
e Leite, 2009; Higuchi, Fornari et al., 2010). As propriedades sonoras analisadas foram
fraseados, intensidade do toque, a claridade de pulso e articulação. Porém, a percep-
ção da expressividade pelos ouvintes, um aspecto fundamental no processo de trans-
missão de sentimento através da música de acordo com o contágio emocional, não
foi estudada nesses trabalhos. Portanto este presente trabalho tem como objetivo, es-
tudar a percepção da expressividade por ouvintes com diferentes graus de treina-
mento musical.
Método
1. Material e preparação
Gravações: 4 performances de uma adaptação dos 32 compassos iniciais do Trauer
em Fá M, uma das doze peças para piano a quatro mãos para crianças grandes e pe- 69
quenas, opus 85 de Robert Schumann. As gravações são de performances realizadas
por 2 estudantes graduandos em curso de bacharelado em piano do Instituto de Artes
da UNESP, acompanhados pela primeira autora deste trabalho que executou a parte
secondo.
Treinamento: Na preparação para a gravação do material, os voluntários inicialmente
passaram por 5 sessões de treinamentos, com duração de uma hora cada, onde foi
realizado: 1) Todo o processo de memorização, implícita e explícita, desta peça. 2) O
desenvolvimento da expressividade, utilizando um estímulo emocional (descrito
abaixo). 3) As instruções de como deveriam ser realizadas as execuções com a atenção
focalizada em aspectos afetivos e em aspectos cognitivos.
Estímulo emocional: A utilização desse estímulo emocional teve como objetivo as-
sociar a música com cenas tristes para que os pianistas pudessem vivenciar esta emo-
ção, promovendo assim a sua expressão através da interpretação musical. Para a
confecção do estímulo emocional foram apresentadas aos pianistas fotos de contexto
triste, selecionados do IAPAS (International Affective Picture System) com o fundo
musical da peça utilizada nesta pesquisa (Trauer) gravada pelo pianista João Carlos
Martins.
Sessões de gravação: Foi realizada uma sessão de gravação com duração de 1 hora
cada, onde os voluntários tocaram diversas vezes a peça nas duas condições de aten-
ção: afetivas e cognitivas. Na condição afetiva os pianistas foram instruídos a tocarem
sentindo a música, tentando expressar uma emoção de tristeza. Na condição técnica,
os pianistas forma instruídos a tocarem focalizando a atenção em aspectos cognitivos,
ou seja, pensar em cada nota que estavam tocando (execuções técnicas), tentando
manter a métrica.
De cada voluntário foi selecionada uma gravação afetiva e uma cognitiva, considerada
como a que melhor representava cada condição de atenção para que seus graus de
expressividade fossem analisados por voluntários ouvintes. As performances com
atenção em aspectos afetivos foram denominadas expressivas, uma vez que além de
apresentarem mais propriedades sonoras relacionadas à expressividade (Higuchi e
Leite 2009; Higuchi, Fornari e Leite 2010), os próprios pianistas relataram que tocar
dessa maneira favorecia a expressividade.
As gravações foram produzidas utilizando um Piano Steinway série D, 3 Microfones
Neumman KM 184, 2 Microfones DPA 4006, Cabos Canaire, mesa de gravação Mackie
32/8.
Um dos pianistas se autodenominou mais expressivo do que técnico, e outro se auto-
denominou mais técnico do que expressivo.
2. Participantes ouvintes
Cinqüenta e seis estudantes de graduação da Universidade de São Paulo foram divi-
didos em 3 grupos, de acordo com a sua formação acadêmica e musical.
70 O grupo Bio foi formado por 20 estudantes de graduação (10 mulheres e 10 homens)
em área biológica sem treinamento musical ou com máximo 1 ano de aprendizado
musical fora da escola formal e com idade entre 18 e 29 anos (média 21 anos desvio
padrão 2,35)
O grupo BioMus foi composto por 18 estudantes (9 mulheres e 9 homens) de gra-
duação em área biológica com 1 ano ou mais de aprendizado musical e com idade
entre 18 e 28 anos (média 21 anos desvio padrão 2,4). Esses voluntários estudam ou
estudaram música durante 1 a 15 anos (média 5,3 anos, desvio padrão 4,7).
O Mus grupo foi formado por 18 estudantes de graduação em música (9 mulheres e
9 homens) com idade entre 17 e 25 anos (média 20 anos desvio padrão 2, 01). Esses
voluntários estudam música há 2 a 14 anos (média 7,5 anos, desvio padrão, 3,58).
3. Procedimento
Os voluntários inicialmente preencheram a um questionário e receberam as seguintes
instruções:
Nós estamos interessados em saber se a forma como um pianista executa uma
peça influencia na expressividade da sua interpretação.
Nesta tarefa, você ouvirá o mesmo trecho de música tocado de quatro maneiras
diferentes por dois pianistas. Você deverá se concentrar, mas não deve analisar a
execução, apenas senti-la.
Ao final de cada trecho, você deverá informar o grau da expressividade (capacidade
de transmitir emoção) de cada interpretação, numa escala como a apresentada a
seguir:
Após lerem as instruções, apresentamos dois exemplos, um exemplo de uma execução
inexpressiva e uma execução expressiva. Esses exemplos tiveram o objetivo de orientar
os voluntários, uma vez que alguns deles (principalmente os que não tinham um co-
nhecimento musical) disseram não saber o que seria expressividade interpretativa
musical. A expressividade foi definida como capacidade de transmitir emoções, e
para evitar qualquer tipo de indução, não fornecemos qualquer outra informação a
esse respeito além desta definição e dos exemplos.
As seqüências das apresentações das quatro execuções analisadas foram feitas de
forma alternada para que as execuções fossem apresentadas equilibradamente em
todas as ordens.
No decorrer da audição das gravações os voluntários tiveram seus olhos vendados. E
após a audição de cada gravação, a venda dos olhos foi tirada para que pudessem res-
ponder ao questionário.
Os graus de expressividade das 4 gravações (uma técnica e uma expressiva de cada
um dos pianistas técnico e expressivo) foram medidos por escalas analógicas de 10
cm. O início da escala foi determinado 0 e o final da escala foi determinado 10. Os
voluntários foram instruídos a assinalarem com um traço vertical de 0 (representando
ausência de expressividade) a 10 (representando o máximo de expressividade), de-
terminando o grau da capacidade expressiva das performances. As escalas analógicas 71
foram medidas (de 0 a 10 cm)
4. Análise
Os dados foram analisados no pacote estatístico spss, por meio de análises de variân-
cias (ANOVA) com medidas repetidas, sendo considerados os fatores grupo (Bio, Bio-
Mus e Mus), sexo (masculino, feminino) e execuções (execução técnica-pianista
técnico, execução expressiva-pianista técnico, execução técnica-pianista expressivo;
execução expressiva-pianista expressivo. Quando encontramos diferenças significa-
tivas, aplicamos testes post hoc de Bonferroni.

Resultados
As análises de variâncias com medidas repetidas indicam que o grupo Bio não con-
seguiu distinguir a diferença entre nenhuma das execuções técnicas das expressivas
[F (3,57)=1,65; p= 0,18]. Porém, os grupos, BioMus) [F (3,51)= 9,68; P=0,00] e Mus
[F(3,51)=38,35; p= 0,00] tiveram percepções significativamente diferences da ex-
pressividade das execuções.

Figura 1 — Representação das médias e dos erros padrões das avaliações realizadas
nas escalas analógicas referentes ao grau de expressividade percebida pelos voluntários
ouvintes em relação às execuções técnicas e expressivas dos dois pianistas
(o técnico e o expressivo).

A execução técnica do pianista expressivo (média 4,97, erro padrão 0,836) foi perce-
bida como menos expressiva do que a execução expressiva do pianista expressivo
(média 7,31, erro padrão 0,467; p=0,031) pelo grupo biomus. Este grupo também
considerou como menos expressiva a execução técnica do pianista técnico (média
4,283, erro padrão 0,985), em comparação com a execução expressiva do pianista téc-
72 nico (média 7,655, erro padrão 0,673 p= 0,006).
O grupo Mus apresentou diferença na percepção de expressividade entre a execução
técnica do pianista expressivo (média 3,522, erro padrão 0,737) e a execução expres-
siva do pianista expressivo (média 7,039, erro padrão 0,609 p = 0,000). Houve tam-
bém diferença na percepção de expressividade entre a execução técnica do pianista
técnico (média 2,578, erro padrão 0,503) e execução expressiva do pianista técnico
(média 7,583, erro padrão 0,6; p= 0,000).
A MANOVA de medidas repetidas também apontou para interações significativas entre
os fatores sexo [F (2,6, 130,5) = 2,77; p=0,05] e grupo [F (5,22; 130,5) = 4,83; p
<0,001; interação sexo e grupo [ F(5,22; 130,5) = 3,81; p= 0,00].
Entre as mulheres, apenas as musicistas perceberam diferenças entre as execuções
técnicas e expressivas de ambos os pianistas [F (2,22; 24) = 37,57; p<0,01]. Os outros
grupos femininos não perceberam diferenças entre as execuções técnicas e expressivas
de nenhum dos pianistas [Bio F (1,74; 15,6) = 0,63; p= 0,52 / Bio Mus F(2,65; 21,21)
= 1,39; p= 0,27].

Figura 2.A — Médias e os erros padrões das avaliações realizadas nas escalas
analógicas referentes ao grau de expressividade percebido pelos 3 grupos
de voluntários ouvintes do sexo feminino.
73

Figura 2.B — Médias e os erros padrões das avaliações realizadas nas escalas
analógicas referentes ao grau de expressividade percebido pelos 3 grupos
de voluntários ouvintes do sexo masculino.

Entre os homens, todos os grupos apresentaram diferenças significativas [Bio F (2,18;


19,6) = 5,44; p=0,012; Biomus F (1,6; 13,1) = 15,54; p=0,001; e Mus F (1,94; 15,5 =
11,64; p=0,001]. Porém, de acordo com as análises das variâncias com medidas re-
petidas dentro de cada nível, apenas os estudantes da área biológica com conheci-
mento musical distinguiram as execuções técnicas e expressivas dos pianistas
expressivo (p=0,02) e técnico (p =0,01). Os voluntários sem conhecimento musical
conseguiram perceber a diferença entre a execução técnica do pianista técnico com
as execuções expressivas do pianista expressivo (p=0,02) e técnico (p<0,01). Porém
eles não perceberam diferenciação entre a execução técnica do pianista expressivo
com as execuções expressivas de ambos os pianistas. Os estudantes do sexo masculino
do departamento de música não fizeram distinção no grau da expressividade entre a
execução técnica e expressiva do pianista expressivo (p=0.19). Eles reconheceram di-
ferença entre as execuções técnicas do pianista expressivo com a execução e expressiva
do pianista técnico (p=0,04). As diferenças entre a execução técnica do pianista téc-
nico e as execuções expressivas do pianista expressivo (p=0,01) e técnico (p<0.01)
foram também percebidas pelos músicos.

Discussão
Como foi demonstrado na figura 1, não encontramos diferenças significativas entre
as execuções expressivas e técnicas nas avaliações do grupo de estudantes sem co-
nhecimento musical. Porém os voluntários com conhecimento musical tanto da área
biológica como do departamento de música reconheceram as diferenças de forma
significativa. Foi um resultado inesperado, uma vez que havíamos suposto que todos
os grupos reconheceriam a diferença.
Embora os resultados possam indicar que a percepção da expressividade seja depen-
dente de um aprendizado e vários dados possam reforçar tal interpretação, é possível
encontrar outras alternativas para análise desses resultados, assim como encontrar
fatores que contrapõem tal afirmação.
74 Entre os dados que reforçam que a interpretação é dependente de aprendizado, en-
contramos estudos que indicam que o treinamento melhora a capacidade perceptiva
musical (Bigand e Poulin-Charronnat 2006). Outro estudo indica que a ativação ce-
rebral na audição de acordes consonantes e dissonantes, é diferente entre músicos e
não músicos (Minati, Rosazza et al. 2008). Músicos apresentam uma maior ativação
nas áreas motoras comparadas a não músicos durante a percepção rítmica (Grahn e
Brett, 2007). Portanto, se o treinamento melhora a capacidade perceptiva musical, é
possível interpretar que uma parte da diferença da percepção da expressividade entre
os grupos seja realmente resultante de um treinamento ou maior exposição a musica.
Porém, outros dados apresentados neste estudo indicam que a diferença na percepção
da expressividade musical pode não ser resultante apenas de treinamento. Constata-
mos que houve uma grande diferença na avaliação entre os grupos e também entre
os gêneros como vimos nas figuras 2A e B.
Apenas os grupos das mulheres que estudam no departamento de música perceberam
diferenças no grau da expressividade entre as execuções técnicas e expressivas. As
estudantes da área biológica, mesmo com um treinamento musical, não identificaram
tais diferenças de forma significativa, enquanto que no grupo dos homens sem co-
nhecimento musical, identificou diferença entre a execução técnica e expressiva do
pianista técnico. Portanto se os leigos do sexo masculino identificaram diferenças,
não identificadas por mulheres com treinamento musical superior a um ano. Esses
dados reforçam a idéia de que a percepção da expressividade interpretativa musical
pode não ser subordinada apenas ao treinamento musical.
Outros fatores podem estar refletindo em tais resultados. Por exemplo, estudo (Trim-
mer e Cuddy 2008) indica que a inteligência emocional, e não o treinamento musical,
prediz a capacidade do reconhecimento da prosódia emocional da fala. Embora a in-
teligência emocional seja um aspecto complexo de ser utilizado como referência, é
interessante encontrar dados que supõem que outro aspecto diferente do treinamento
musical pode predizer a capacidade do reconhecimento da prosódia emocional. Esses
dados ganham maior relevância nesse presente trabalho pelo fato da expressividade
da interpretação musical ter sido freqüentemente relacionada com a prosódia (Juslin
1997; Juslin 2005; Peretz e Zatorre 2005). Assim é possível supor que outro fator como
a inteligência emocional também influencie esses resultados. É possível também es-
pecular que pessoas com maior inteligência emocional optem por uma profissão que
esteja relacionada à expressividade emocional. Porém, não podemos afirmar que os
grupos que perceberam melhor a diferença entre as execuções, tenham maior inteli-
gência emocional, tão pouco podemos afirmar que os homens possuem uma inteli-
gência emocional maior que as mulheres. Estudo indica que mulheres reconhecem
expressão facial emocionais mais rapidamente que os homens, (Mandal e Palchoud-
hury 1985).
Outro dado que pode influenciar tais resultados reside no fato de pessoas de perfis
diferentes escutarem músicas com objetivos diferentes. Por exemplo, as pessoas ex-
trovertidas e intelectualmente engajadas e aquelas que têm QI mais elevados tendem
a utilizar música de maneira racional e cognitiva. Ao passo que pessoas neuróticas,
introvertidas, e não conscienciosas, geralmente usam para regulação emocional (Cha- 75
morro-Premuzic e Furnham 2007).
Portanto, se pessoas de diferentes perfis utilizam a música de maneiras distintas, é
possível que a audição musical visando objetivos diferentes possam resultar em uti-
lização processamentos musicais diversos. Por exemplo, Juslin e Vastfjall (2008) pro-
põe existência de seis mecanismos distintos de respostas emocionais para música que
são:
Reflexo do tronco cerebral – processo no qual a emoção é induzida por causa de um
ou mais característica acústica da música que é processada pelo tronco cerebral
para indicar um sinal ou evento potencialmente importante.
Condicionamento evolutivo - processo no qual uma emoção é induzida por uma
peça musical simplesmente por que esse estímulo foi pareado repetidamente com
outro estímulo positivo ou negativo.
Contagio emocional – processo no qual a emoção é induzida, pois o ouvinte percebe
as expressões emocionais da música e então mímica essa expressão internamente.
Imaginação visual – é o processo pelo qual a emoção é induzida ao ouvinte por que
ele evoca uma imagem visual enquanto escuta a música.
Memória episódica - é o processo no qual uma emoção é induzida ao ouvinte por
que a música evoca uma memória de um evento particular da vida do ouvinte.
Expectativa musical – é o processo pela qual uma emoção é induzida para o ouvinte
por que uma específica característica da música é violada.

A expressividade utilizada pelos voluntários pianistas está ligada à expectativa musical,


pois justamente encontramos violação da expectativa interpretativa musical na ques-
tão fraseológica e agógica (Higuchi e Leite 2009; Higuchi, Fornari et al. 2010) nas
execuções expressivas deste presente trabalho.
Entendemos que haveria possibilidade de pessoas de sexos diferentes utilizarem me-
canismos distintos para respostas emocionais, pois historicamente exerceram funções
diferentes. Possivelmente as mulheres tenham uma tendência a utilizar mais o me-
canismo do contágio emocional e os homens tendência a utilizar mais a expectativa
musical.
A tendência das mulheres utilizarem mais o contágio emocional, poderia ser expli-
cada pelo fato de historicamente, as mulheres serem responsáveis por cuidar da prole,
enquanto os homens serem responsável pela caça. Para criação da prole, é muito im-
portante entender as expressões dos filhos tanto verbal como prosódica, e reconhecer
incongruência entre ambas.
Evidências, que reforçam a suposição de que as mulheres utilizam mais o contágio
emocional, baseiam-se no fato delas manifestarem maiores interferências quando si-
nais de linguagem e prosódica estão incongruentes (Schirmer e Kotz 2003).
Por outro lado, os homens podem ter a tendência a utilizar mais o mecanismo da ex-
pectativa musical. Essa tendência pode ser explicada, pois, por serem historicamente
76 responsáveis pela caça, os homens tiveram que desenvolver muito mais a percepção
da quebra da expectativa de eventos. Pois a quebra da expectativa sonora de um am-
biente poderia representar uma caça ou um predador.
Por esse motivo, os voluntários do sexo masculino sem conhecimento musical, em-
bora não tenham uma idéia de sintaxe expressiva muito bem definida e a percepção
bem aguçada, já seriam capazes de perceber as diferenças de violações do fraseado
musical entre as execuções técnicas e expressivas do pianista técnico.
Porém, as estudantes da área biológica podem não ter percebido que a violação da
sintaxe interpretativa seria considerada expressividade. Por utilizar mais o contágio
emocional do que a expectativa, elas buscariam mais determinados tipos de música
que trouxessem algum tipo de prazer. Porém, por sentir mais o contágio, e o estímulo
emocional ser tristeza, as estudantes talvez buscassem justamente uma interpretação
que trouxesse alguma emoção de valência positiva, e elas tenderiam a não analisar
uma música tocada de uma forma triste como expressiva. Porém, as voluntárias do
departamento de música, muito mais familiarizadas com tal tipo de mecanismos, já
seriam capazes de reconhecer a quebra da sintaxe interpretativa como expressividade
musical.
O fato das estudantes do departamento de música identificar diferenças nos graus de
expressividade entre as execuções técnicas e expressivas, poderia sugerir que o trei-
namento musical melhora a capacidade de reconhecimento expressivo. Porém, como
não houve diferença entre os grupos das estudantes da área biológica com e sem co-
nhecimento musical, podemos supor que haja também uma diferença entre os perfis
das estudantes de áreas distintas. As musicistas poderiam ser mais ou menos cons-
cienciosas, assim poderiam escutar as execuções utilizando mecanismos distintos
das estudantes de áreas biológicas.
Entretanto é difícil encontrar um motivo pelos quais os voluntários do sexo masculino
do departamento de música não conseguiram identificar a diferença entre as execu-
ções técnica e expressiva do pianista expressivo. Por terem um treinamento musical
maior do que os voluntários da área biológica com conhecimento musical, a priori
deveriam perceber mais as diferenças da expressividade interpretativa. Talvez os es-
tudantes do departamento de música poderiam ser mais sensíveis que os estudantes
da área biológica, assim eles reconheceriam na interpretação técnica do pianista ex-
pressivo, um outro tipo de mecanismo que identificasse mais expressividade nesta
forma de execução.
A análise de todos esses dados permite-nos supor que as mulheres tenham ativações
cerebrais distintas comparadas aos homens na escuta musical. Estudo com EEG (Flo-
res-Gutierrez, Diaz et al. 2009), corrobora essa idéia demonstrando que na audição
de músicas que suscita emoções agradáveis, são sustentadas por coerência oscilações
nos hemisférios esquerdo em ambos os sexos, porém uma rede maior nas mulheres.
Os autores ainda comentam que o fato de homens demonstrarem menos diferenças
significativas que as mulheres, podem implicar em um envolvimento mais subcortical
em homens e mais cortical em mulheres. Em outras palavras, é bastante provável que 77
os diferentes gêneros tenham tendência em analisarem a expressividade interpretativa
musical utilizando dominantemente, áreas cerebrais distintos.
Conclusão
Os resultados das avaliações do grau de expressividade por ouvintes reforçam par-
cialmente a teoria do contágio emocional, pois os grupos com treinamento musical
reconheceram diferença no grau da expressividade entre as execuções técnicas e ex-
pressivas dos dois pianistas. Porém uma análise mais detalhada indica que a percep-
ção da expressividade é uma questão mais complexa, uma vez que os dados obtidos
nesse trabalho indicam que vários outros fatores poderiam influenciá-la. Entre os fa-
tores que podem influir na capacidade de percepção expressiva musical estão: trei-
namento musical, gênero, personalidade e inteligência emocional. Portanto outros
estudos a respeito da percepção da expressividade musical seriam necessários para o
melhor entendimento de quais os fatores poderiam influenciar tal percepção.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer a todos os pianistas participantes. Gostaríamos de agradecer também
aos colegas do Laboratório de Investigação em Epilepsia por apoio em várias situações que
permitiram a realização desse trabalho. Esta pesquisa tem o apoio financeiro da FAPESP.
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PÔSTERES

Tempo de resposta em reconhecimento de padrão de acordes


na leitura à primeira vista ao piano 79
Gabriel Rimoldi
gabriel.rimoldi@gmail.com
Departamento de Música/IA, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Hugo Cézar Palhares Ferreira


hugocezar@yahoo.com.br
Laboratório de Psicologia Cognitiva, Universidade Estadual de São Paulo– USP/RP

Resumo
A leitura à primeira vista é uma competência presente em todo o cotidiano musical,
sejam para os instrumentistas, regentes, compositores ou professores de música. De
acordo com Udtaisuk (2005), o aprimoramento desta habilidade está diretamente li-
gado à capacidade de reconhecimento de padrões, afim de que o músico seja capaz
de reter o maior número de conteúdos informacionais a cada fixação através de uni-
dades estruturais significativas. O objetivo desta pesquisa foi quantificar tempos de
resposta motora ao piano no reconhecimento visual à primeira vista de acordes triá-
dicos. O teste baseou-se na apresentação de imagens randômicas dentro do grupo
de amostra de acordes selecionados, notados em pentagrama disposto no centro de
uma tela branca. Ao receberam a informação visual do acorde, os sujeitos deveriam
executar a leitura do acorde ao piano de maneira mais rápida e acurada possível. Os
resultados demonstraram um menor tempo de resposta para acordes em estado fun-
damental (1327ms), seguido dos de 1ª inversão (1405ms) e, por último, os de 2ª in-
versão (1468ms), sendo ainda o tempo de reconhecimento de acordes maiores
(1348ms) também inferior do que para acordes menores (1445ms). O tempo de res-
posta aumentou progressivamente em relação ao aumento de números de sinais de
alteração e detectou-se um tempo menor na leitura de acordes notados com bemóis
(1466ms) do que sustenidos (1533ms), no caso de acordes enarmônicos. Dos oito
padrões motores encontrados na digitação pianística, os acordes que apresentaram
todos os três sons em teclas brancas (BBB) tiveram o menor tempo de resposta em
seu desempenho (1201ms), enquanto o maior tempo de resposta (1548ms) foi atri-
buído aos acordes formados com as teclas preta-preta-branca (PPB). Abordagens
quantitativas podem auxiliar o desenvolvimento de metodologias de aprendizagem
tanto para a leitura pianística quanto para a leitura à primeira vista.
Palavras-chave
tempo de resposta – leitura à primeira vista – notação musical.
Introdução
A leitura à primeira vista é uma competência presente em todo o cotidiano musical,
seja para os instrumentistas, regentes, compositores ou professores de música.
McPherson (1997) situa a leitura à primeira vista dentre cinco diferentes habilidades
80
de performance musical: o “tocar de ouvido”, “tocar de memória”, a improvisação, a
performance preparada e a leitura á primeira vista. Entretanto, diversos obstáculos
se interpõem à leitura musical de maneira peculiar em relação aos processos de leitura
da maioria das outras linguagens. A fluência é o primeiro destes. Culturalmente, a
interpretação dos códigos musicais não se faz presente no aprendizado tanto quanto
a interpretação dos códigos fonéticos, por exemplo, e mesmo nos casos em que existe
uma aprendizagem musical precoce, não é dado o devido valor à leitura. Diferente-
mente ainda da linguagem fonética, na qual os usuários aprendem primeiramente a
falar e depois adquirem a habilidade da leitura/escrita, o aprendizado da leitura mu-
sical, na maioria dos casos, é concomitante ao aprendizado do instrumento, o que faz
com que em geral instrumentistas tentem memorizar a partitura o mais rápido pos-
sível. Outro aspecto relevante refere-se à forma em que ocorre a leitura musical: a
maioria das leituras de linguagem é feita em silêncio ou, mesmo quando em voz alta
raramente existe uma preocupação que vá além de proferir as palavras certas na
ordem certa. Já na leitura musical, além da captação e interpretação dos códigos,
exigi-se do leitor uma resposta complexa com pouco espaço para desvios em tempo
e qualidade.
Para Mainwaring (1951), o processo cognitivo da leitura deve estruturar-se em três
estágios: a decodificação dos símbolos musicais (visual), a audição interna dos sons
(aural) e, por último, a performance ao instrumento (ação). De acordo com a autora,
grande parte das debilidades detectadas na leitura à primeira vista deve-se a falta de
referência aural precedente à performance instrumental. De acordo com McPherson
(1997), podemos ainda apontar quatro principais aspectos que influenciam a quali-
dade da leitura musical, são elas: tempo de estudo, qualidade de estudo, atividades
de enriquecimento e aprendizado precoce. Tais variáveis atuam no reconhecimento
de padrões, sejam aurais visuais ou motores, que instrumentalizam a leitura musical
a primeira vista.
O mecanismo primário da leitura musical é o movimento dos olhos. A captação de
informações visuais pelos olhos se dá por um mecanismo denominado fixação, em
uma série de tomadas sucessivas captadas cada uma por uma duração média de
250ms. De acordo com Sloboda (2008), a velocidade dos olhos entre diferentes fixa-
ções relaciona-se às necessidades cognitivas do leitor em captar a informação e exe-
cutar uma resposta em tempo hábil. Entre uma fixação e outra, o olho move-se numa
varredura rápida (cerca de 50ms) sobre a informação visual, processo este conhecido
por movimento sacádico. Embora sejamos capazes de receptar um amplo campo vi-
sual instantaneamente, apenas uma pequena parcela pode ser focada a cada fixação,
esta região focada da visão recebe o nome de fóvea, e o que não está nesta região, mas
encontra-se circunscrito na periferia da fóvea é denominado parafóvea. O sistema
ocular permite-nos assim armazenar uma série de fragmentos de imagens mentais,
ficando a cargo de o cérebro remontar os dados informacionais captados. É na re-
montagem dos dados informacionais captados pela visão que o reconhecimento de
padrões faz-se importante, afim de que o sistema executivo central possa agrupar o 81
maior número dados captados em um menor número de unidade estruturais possí-
veis. O tipo de representação visual adequado aos diferentes modos de estruturação
musical influencia, portanto, nos mecanismos da leitura. Uma textura homofônica,
por exemplo, geralmente é processada por uma varredura vertical (de cima para baixo
ou vice e versa) seguida de um deslocamento para a direita e uma nova varredura. Já
numa escrita contrapontística, os mecanismos obviamente seriam outros. A definição
de uma estratégia geral fica, portanto, a cargo do leitor, que necessita encontrar uni-
dades estruturais significativas em fixações sucessivas.
A familiaridade com os padrões e conteúdos musicais são componentes essenciais
para a identificação destas unidades estruturais. McKinight (apud Udtaisuk 2005)
afirma que o conhecimento de padrões tonais aumenta a habilidade de identificação
de notas durante o processo de leitura. Estudos realizados com diversos instrumen-
tistas (McPherson 1994) demonstraram ainda que o aprendizado musical precoce
como um fator relevante na execução musical à primeira vista, não apenas pelo esta-
belecimento de padrões musicais cognitivos, mas também pelo estabelecimento de
esquemas motores mais ágeis na resposta ao instrumento. Wristen (2005) também
afirma que, no caso do piano, a familiaridade com a “geografia” do teclado e o esta-
belecimento de padrões motores-digitais são pré-requisitos para a leitura à primeira
vista.
Objetivo
O objetivo desta pesquisa foi quantificar o tempo de resposta motora ao piano no re-
conhecimento visual à primeira vista de acordes triádicos, ou seja, mensurar o tempo
de varredura vertical sob variáveis visuais presentes na notação musical.

Metodologia
Material
Foram selecionados como material base para esta pesquisa os acordes tríádicos per-
feitos, maiores e menores, em seus estados fundamentais, 1ª e 2ª inversão, em posição
cerrada. Considerando que, na execução pianística, não se difere a posição da mão
em acordes que, por exemplo, utilize apenas as teclas brancas (desde que no mesmo
estado), os acordes foram agrupados de acordo com a “forma” de mão. Sendo assim,
tem-se a variação de oito grupos: o primeiro com os acordes que utilizassem apenas
teclas brancas (BBB); o segundo, terceiro e quarto grupos contêm duas teclas brancas
e uma preta, sendo esta a segunda (BPB), primeira (PBB) e terceira (BBP) nota do
acorde, respectivamente; o quinto, sexto e sétimo grupos apresentam acordes forma-
dos por duas teclas pretas e uma branca, sendo esta respectivamente a terceira (PPB),
segunda (PBP) e primeira (BPP) nota do acorde; por último, o oitavo grupo é formado
por acordes que possuem apenas teclas pretas (PPP). Tendo a incidência de mais de
um acorde num mesmo grupo, foi selecionado apenas um destes para a amostragem
82 do teste.
Considerou-se ainda as variações de enarmonia presente nos acordes. Os acordes que
apresentassem correspondente enarmônico, que possuíssem como sinais de alteração
apenas bemóis ou sustenidos (não considerando nenhum outro tipo de sinal de alte-
ração), foram amostrados em seus dois padrões, ou seja, notados com bemóis e com
sustenidos.
Tabela 1 — Acordes de amostragem do teste
Acorde
Padrão
Fundamental 1ª inversão 2ª inversão
Teclado M m M M M M

BBB C Am G/B Em/G F/C Dm/A

BPB D Cm - Bm/D Bb/F -


E/G#
Bb Gm/Bb Bm/F#
Fb/Ab
PBB - -

Bb/D
Fm/C
E#m/B#
BBP - Bm - A/E

A#m G#/D# F#m/A


B/D#
Bbm Ab/Eb
PPB - -

C# C#m
Bbm/Db B/F#
Db Dbm
PBP - -

G#m/B
Eb/G Bbm/F
Abm/Cb
BPP B - -

F# D#m D#m/F# F#/C#


F#/A# D#m/A#
Gb Ebm Ebm/Gb Gb/Db
PPP

Participantes
Os testes foram realizados com quatro sujeitos, todos eles graduandos em Música,
com habilitação em piano, de faixa etária entre 19 e 23 anos, que apresentaram no
mínimo sete (07) anos de aprendizagem pianística prévia, todos portadores de visão
normal ou corrigida e sem nenhuma deficiência motora nas mãos.
Procedimentos
O teste baseou-se no disparo de imagens de acordes notados em partitura que deve-
riam ser tocados instantaneamente pelo pianista-sujeito logo após o aparecimento
deste no monitor. Os acordes foram notados em clave de sol, numa tessitura restrita
de dó3 a sol#4, permitindo que todos os acordes fossem executados pela mão direita.
Os sujeitos foram instruídos a manter a mão direita sobre as teclas, próximas à região
da tessitura, em uma postura mais próxima possível do repouso. As imagens dos acor-
des foram agrupadas em frames, compostos por um fundo branco e o pentagrama
notado no centro da tela, que permaneciam expostos na tela durante três segundos.
Entre a apresentação de um frame e outro, o sujeito permanecia por mais três segun-
dos exposto a uma tela de fundo branco e, em seguida, era-lhe apresentado uma nova
imagem de acorde, selecionada randomicamente dentre a amostragem. A seqüência
de apresentação dos acordes não apresentou nenhuma relação ordenada, sendo prio- 83
ritária a não manutenção (total ou parcial) de notas, tipo de sinal de alteração (se
bemol ou sustenido), quantidade de teclas brancas ou pretas no teclado, e o estado
(fundamental, 1ª ou 2ª inversão) entre um acorde e outro.
Cada imagem de acorde, quando disparada, emitia um pequeno sinal sonoro ende-
reçado diretamente ao computador, o que marcava o início da transmissão da infor-
mação visual. Todos os testes foram gravados, de modo que, foi possível a medição
do tempo de resposta pela diferença de tempo entre o sinal sonoro de disparo da ima-
gem e o acorde executado em seguida pelo pianista, ambos registrados na mesma
gravação.
O teste foi realizado no Laboratório de Multimeios do curso de Música da UFU com
o auxílio de um computador e um teclado midi conectado ao mesmo. Os pianistas-
sujeitos receberam todas as instruções sobre como deveriam proceder, sendo instruí-
dos que tocassem todas as notas do acorde requerido simultaneamente, isto é, sem
arpejos e de forma mais acurada possível. Os acordes que tiveram respostas incorretas
foram descartados da amostra de análise.
Resultados
Reconhecimento de padrão visual
a) Tipologia de Acordes
Na média geral, os acordes maiores tiveram tempo de resposta mais hábil que os acor-
des menores, em todas as posições de acorde apresentadas. Acordes no estado fun-
damental obtiveram respostas mais rápidas, seguidos dos acordes em 1ª inversão e
por último em 2ª inversão.

Figura 1 — Tempo de reação dos sujeitos em relação à tipologia de acordes.


b) Enarmonia
Nos acordes enarmônicos detectou-se uma variação discreta em relação à notação
dos acordes com bemóis ou com sustenidos.

84

Figura 2 — Tempo de reação dos sujeitos em relação à enarmonia.

Reconhecimento de padrão motor


Os testes indicaram um tempo de resposta mais curto aos acordes que apresentavam
apenas teclas brancas (BBB, média = 1201). O nível de tempo de resposta para os
acordes com apenas teclas pretas (PPP, média = 1414) teve ainda um índice bem alto,
mas este acento não se relaciona ao padrão motor, que é praticamente o mesmo uti-
lizado para acordes com apenas teclas brancas, mas está relacionado às dificuldades
no reconhecimento de padrão visual destes acordes, pela quantidade de acidentes de
alteração contidos na notação deste.
Em padrões heterogêneos, ou seja, que apresentavam teclas brancas e pretas, o tempo
de resposta foi maior, acentuando-se nos padrões em que a tecla não predominante
estivesse no extremo inferior ou superior do acorde (PPB, BBP e BPP).

Figura 3 — Tempo de reação dos sujeitos em relação ao padrão motor.


Conclusão
Este trabalho visou medir tempo de resposta em diferentes padrões de acordes, ou
seja, o tempo de reconhecimento de padrões visuais e a resposta motora adequada
no piano, considerando aspectos relevantes de tipologia e estado dos acordes, acordes
85
enarmônicos e formas de mão no teclado como variáveis na medição.
Nos resultados encontramos diferenças no tempo de resposta entre acordes perfeito
maiores e menores, como também diferenças entre as disposições dos acordes (estado
fundamental, 1ª e 2ª inversões). Os participantes responderam aos acordes maiores
em estado fundamental em menor tempo, o que sugere que a simetria do acorde em
estado fundamental, isto é, a disposição visual de notas em mesmo espaçamento no
pentagrama auxilia na compreensão do acorde como uma unidade estrutural, outra
hipótese é que este estado do acorde é mais recorrente na literatura musical ocidental,
e conseqüentemente possui um maior nível de referencia aural no processo da leitura
à primeira vista.
Por serem acordes que apresentam um mesmo resultado sonoro, podemos notar atra-
vés dos acordes enarmônicos uma maior facilidade do reconhecimento e execução
de acordes com bemóis em relação aos mesmos acordes notados com sustenidos.
No reconhecimento de padrões motores encontramos uma diferença notadamente
maior entre o tempo de execução entre os padrões de três teclas brancas (BBB) e duas
teclas pretas e uma branca (PPB). No primeiro caso, além da ausência dos sinais de
alteração, o que facilita o reconhecimento do padrão visual, a disposição mecânica
da mão encontra-se em um estado mais próximo do repouso, enquanto no segundo
caso o tempo maior de resposta pode estar relacionado à necessidade de deslocamento
de eixo do dedo 1 (polegar) em relação ao repouso.
Referências
Gordon, E. Learning sequences in music: skill, content, and patterns (Chicago: GIA, 2003).
Mainwaring, J. Psychological factors in the teaching of music: part II: applied musicianship.
British Journal of Educational Psychology 21 (1951), 105-21.
McPherson, G. E. Factors and abilities influencing sightreading skill in music. Journal of Re-
search in Music Education 42 nº3 (1994), 217-231.
McPherson, G. E.; Bailey, M.; Sinclair, K. E. Path analysis of a theoretical model to describe the
relationship among five types of musical performance. Journal of Research in Music Edu-
cation 45 nº 1 (1997), 103-129.
Sloboda, J. “A performance Musical”. In: Sloboda, J. A mente musical: psicologia cognitiva da
música. Trad. De Betriz Ilari e Rodolfo Ilari (Londrina: EDUEL, 2008), 87-117.
Udtaisuk, D. “A theoretical model of piano sightplaying component” (Dissertação de Doutorado,
University of Missouri-Columbia, 2005). http://edt.missouri.edu/Winter2005/
Dissertation/UdtaisukD-070705-D1115/public.pdf
Wristen, B. Cognition and motor execution in piano sight-reading: A review of Literature. In:
Update 24 nº 1 (2005), 44-56.
Memória de curto prazo para melodias:
efeito das diferentes escalas musicais
Mariana E Benassi Werke
86 marianawerke@yahoo.com.br
Palavras-chave
alça fonológica – teste de amplitude – melodias

Introdução
No modelo de memória operacional a alça fonológica está relacionada ao armazena-
mento de itens verbais e acústicos na memória de curto prazo (MCP) (Baddeley 2007).
Alguns estudos indicam que a recordação de curto prazo de itens verbais é influen-
ciada por conteúdos semânticos pré-armazenados na memória de longo prazo (MLP).
Com base nos estudos sobre familiaridade com o idioma (Thorn & Gathercole 1999),
pode-se sugerir que a alça fonológica é mais eficaz na manutenção de representações
de palavras de idiomas familiares do que de idiomas não-familiares. Assim, é possível
que a MCP para tons também seja influenciada pela familiaridade, isto é, por con-
textos musicais pré-estabelecidos na MLP.
Objetivo
Verificar o perfil de armazenamento/manipulação de seqüências de tons através de
testes de memória construídos à semelhança do Digit Span Test na ordem direta (OD)
e na ordem inversa (OI), comparando tal perfil ao perfil de armazenamento/mani-
pulação de material verbal. Utilizando-se o teste de amplitude melódica (“Tone span
test”) construído com base na escala diatônica (mais familiar) e cromática (menos
familiar), poderíamos verificar se o mesmo padrão que ocorre na recordação de dí-
gitos (mais familiar) e pseudopalavras (menos familiar) ocorre também nos testes
com estas duas escalas. Se a amplitude na OD do teste na escala diatônica for maior
que na cromática, mas se mantiver baixa na OI, pode-se sugerir que a manipulação
de seqüências melódicas na memória operacional acontece de forma diferente da ma-
nipulação verbal.
Materiais e Métodos
Dez sujeitos foram submetidos a testes de MCP para dígitos, pseudopalavas e tons.
Foi utilizado o Digit Span Test padronizado para o Português (WAIS-III). A partir
deste teste, foi criado um teste de amplitude de pseudopalavras. As pseudopalavras
foram criadas a partir de mudanças de algumas letras que compõem os números e,
então, cada dígito do Digit Span Test foi substituído pela sua pseudopalavra corres-
pondente.
Foram construídos 2 testes de amplitude de tons à semelhança do Digit span test,
sendo um deles com base na escala cromática (utilizando-se 12 notas e a primeira
nota da oitava seguinte) e o outro com base na escala diatônica (utilizando-se 7 notas
e a primeira nota da oitava seguinte). O teste na escala cromática foi desdobrado em
2 testes. Em um deles, as sequencias de tons tinham intervalos de, no máximo, uma
terça; no outro, as seqüencias tinham intervalos livres. O mesmo foi feito para o teste
na escala diatônica.
Assim, foram construídos 4 testes de amplitude de tons: 87
1) Escala diatônica, intervalos até de uma terça (Teste 7_3);
2) Escala diatônica, intervalos livres (Teste 7_X);
3) Escala cromática, intervalos até de uma terça (Teste 7_3);
4) Escala cromática, intervalos livres (Teste 7_X).
A idéia da construção destes 4 testes é criar uma gradação de dificuldade, baseando-
se na hipótese de a escala diatônica ser mais familiar do que a cromática e, portanto,os
tons construídos com base nela seriam mais fáceis de serem recordados. Além disso,
intervalos mais próximos são mais comuns e, portanto, devem ser mais fáceis de
serem recordados do que intervalos mais distantes.
Posteriormente, foi atribuído um dígito para cada tom utilizado nos testes e, assim,
4 testes de amplitude de dígitos, pareados aos testes de tons, foram construídos.
Os sujeitos foram submetidos a um teste de afinação e, em seguida, foram aplicados
os testes de amplitude de dígitos WAIS-III, de pseudopalavras e de tons e dígitos aná-
logos na OD e na OI. Em todos os testes, seqüências crescentes de itens foram apre-
sentadas auditivamente. Ao final de cada seqüência, o sujeito deveria repeti-la na OD
ou OI, conforme avisado antes do teste. A amplitude (span) de cada teste foi o total
de itens contidos na seqüência máxima repetida corretamente.
Resultados e Discussão
Na OD, a recordação foi maior para dígitos do que para tons nos quatro tipos de testes
(p<0,05). Além disso, a amplitude de tons foi maior no teste 7_3 do que nos outros
três testes (p<0,05). O mesmo padrão foi encontrado para dígitos. Podemos supor a
partir destes dados que, como a amplitude dos testes 7_X não foi maior do que a dos
testes 12_3 e 12_X, a quantidade de elementos não influenciou a recordação, já que
nos testes 12_3 e 12_X havia mais dígitos e mais notas (13 notas e, portanto, 13 dí-
gitos).
Por outro lado, as amplitudes dos testes feitos na escala diatônica diferiram entre si
e esta diferença pode ser atribuída à diferença de salto melódico, pois no teste 7_3 os
saltos melódicos eram menores (mais comuns), do que no teste 7_X onde os saltos
eram livres.
Nos testes de dígitos análogos encontramos a mesma diferença. Como no teste de dí-
gitos 7_3 os dígitos eram mais próximos uns dos outros, poderíamos supor que seja
mais fácil armazenar e recordar dígitos que estão mais próximos do que dígitos mais
distantes uns dos outros. Talvez isso ocorra por um possível aumento da ocorrência
de chunks, isto é, de agrupamentos de números formando apenas um item para re-
cordar e não vários.
Na OI observamos o mesmo perfil da OD, sendo que a amplitude de recordação de
dígitos foi maior que a de tons (p<0,05) e a amplitude de tons e de dígitos foi maior
no teste 7_3 do que nos outros testes (p<0,05). Porém, as amplitudes de tons na OI
foram muito menores que as amplitudes de tons na OD.
88 Para evidenciar esta diferença entre OD e OI dos testes de dígitos e de tons, criamos
um Índice, definido deste modo: (amplitude na OD – amplitude na OI) / amplitude
na OD.
O Índice apontou que a diferença entre OD e OI foi significativamente maior para
tons do que para dígitos (p<0,05), isto é, a recordação na OI de tons é significativa-
mente menor que a recordação inversa de dígitos. Não houve diferença entre os testes
de tons, nem entre os testes de dígitos.
Em uma revisão de literatura, aplicamos a fórmula de índice em resultados de testes
de amplitude de dígitos em outros idiomas como inglês e espanhol, hebraico e alemão.
Os resultados variaram entre 0.09 to 0.26. Neste estudo, os índices de dígitos variaram
entre 0,05 (pseudopalavras) e 0,24 (dígitos 12_X). No entanto, um valor diferente foi
obtido com Mandarin, um idioma tonal, cujo índice foi 0.48 0.05, resultado seme-
lhante aos encontrados nos índices melódicos em nossa pesquisa (0,48 a 0,60). Essa
similaridade indica que a manipulação de tons na memória operacional é mais difícil
do que a manipulação de itens puramente verbais, com ou sem significado.

Conclusões
1) Em geral, o perfil de recordação tonal é similar ao perfil de recordação verbal,
mas o número de itens lembrados é menor.
2) O número de itens recordados no teste de amplitude melódica 7_3 é maior do
que nos outros testes de amplitude.
3) A recordação da OI é mais difícil em testes de amplitude melódica (mostrado
pelo Índice).
Supomos que o cérebro humano é capaz de manipular vários tipos de materiais me-
lódicos, mas, aparentemente, não é capaz de inverter materiais melódicos como é
capaz de inverter materiais verbais. Pode-se sugerir, conforme hipótese inicial, que a
manipulação de seqüências melódicas na memória operacional se dá de forma dife-
rente da manipulação de material verbal.
Referencias Bibliográficas
Baddeley, A. D. Working memory, thought and action (Oxford: Oxford University Press, 2007).
Baddeley, A. D. & Hitch, G. “Working memory”. In G. H. Bower (Ed.), The Psychology of Lear-
ning and Motivation 8 (1974), 47-90.
Thorn, A. S. C. & Gathercole, S. E. (1999). Language-specific knowledge and short-term me-
mory in bilingual and non-biligual children. The Quarterly Journal of Experimental Psy-
chology 52A nº2, 303-324.
A influência do treinamento musical nos potenciais cognitivos
envolvidos no reconhecimento de alegria e tristeza
em melodias sem palavras
Viviane Cristina da Rocha 89
vivianerocha85@gmail.com
Paulo Sérgio Boggio
paulo.boggio@mackenzie.br
Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social e Programa de Pós-
Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Centro de Ciências Biológicas e da
Saúde, Universidade Presbiteriana Mackenzie

Resumo
Por meio das tecnologias de imageamento cerebral e de investigação eletrofisiológica,
pode-se compreender melhor o funcionamento do cérebro ao ouvir música ou exe-
cutá-la, sem que sejam necessárias técnicas invasivas de exploração neurológica. Este
trabalho tem como objetivo geral investigar o processamento cerebral de melodias
de conotação alegre ou triste por pessoas com e sem treinamento musical. Participa-
rão do estudo 30 adultos, entre 21 e 35 anos, falantes língua portuguesa, divididos
em dois grupos: G1, composto por cantores líricos profissionais e G2, por pessoas sem
formação musical. Os dois grupos serão submetidos a teste composto por melodias
cantadas sem palavras, divididas em melodias de conotação alegre e melodias de
conotação triste, compostas especialmente para o experimento. Todos os trechos
serão cantados em vocalise, seguidos de uma palavra cantada, congruente ou incon-
gruente semanticamente ao trecho que a precede. No total, serão apresentados 80
excertos musicais, 40 relacionados à alegria e 40 à tristeza. Os participantes terão
que julgar, para cada trecho ouvido, se a palavra cantada ao final do excerto é con-
gruente ou incongruente semanticamente em relação à melodia que a precedeu. Será
feita análise estatística por meio do pacote SPSS Statistics 17.0 ANOVA fatorial, esta-
belecendo-se erro =5%. Serão analisados individualmente os potenciais N1 (relacio-
nado ao processamento auditivo perceptual), P2 (relacionado a julgamento afetivo e
estético), N2 (relacionado a processamento de melodias), N400 (relacionado a in-
congruência semântica) e P600 (relacionado a incongruências sintáticas em texto e
em música – violação de expectativa harmônica) e sua média para cada grupo. Es-
pera-se obter diferenças no tempo de reação para realização da tarefa entre grupos
(músicos e controle), além de diferenças no número de acertos dos participantes com
e sem formação musical. Espera-se obter, ainda, como resultados, diferenças signifi-
cativas de amplitude dos potenciais evocados, em especial do potencial N400 (rela-
cionado à incongruência semântica) nos dois grupos.

Introdução
O estudo da música e suas relações com o cérebro humano tem se beneficiado, re-
centemente do uso de tecnologias de imageamento cerebral e de investigação eletro-
fisiológica (Peretz; Zatorre 2004; Zatorre; Chen; Penhume 2007). Por meio dessas tec-
nologias pode-se compreender melhor o funcionamento do cérebro ao ouvir música
ou executá-la, sem que sejam necessárias técnicas invasivas de exploração neurológica.
Dentre as tecnologias que se conhece atualmente, a eletroencefalografia tem, como
90 vantagem, o fato de não ser invasiva e apresentar grande precisão temporal (Amodio;
Bartholow, no prelo). Sua alta precisão temporal faz com que essa técnica seja de
grande valia para o estudo do funcionamento do cérebro enquanto se ouve música,
já que a música se desenvolve ao longo do tempo. Estudos com essa técnica têm mos-
trado que a música é capaz de evocar potenciais elétricos relacionados a eventos (PE
– potenciais evocados) no cérebro semelhantes aos da linguagem (Koelsch et al. 2004).
Um exemplo disso é o potencial N400, descoberto inicialmente como resposta a in-
congruências semânticas em frases como “fui ao banheiro tomar chá”. O N400 é evo-
cado quando há uma palavra incongruente semanticamente ao final de uma frase,
tendo menor amplitude quando não há incongruência semântica na frase (“fui ao
banheiro tomar banho”) (Kutas; Hillyard 1980; Khateb et al. 2010). Posteriormente,
descobriu-se que o N400 poderia ser evocado por meio de incongruências semânticas
relacionadas também a imagens e música (Koelsch et al. 2004; Besson; Macar 1987).
Além da relação entre música e linguagem, que ainda está em pleno debate entre pes-
quisadores da cognição e psicologia da música, a capacidade da música de evocar
emoções é inegável (Koelsch, 2010). Estudos com emoções básicas têm indicado que
mesmo pessoas sem conhecimento musical podem compreender emoção em música
(Fritz et al. 2009; Scherer; Banse; Wallbott, 2001). Embora haja opiniões diversas
sobre a capacidade da música de evocar emoções do dia-a-dia, sua relação com a
emoção parece ser intrínseca à sua natureza (Peretz; Zatorre 2004; Koelsch 2010;
Blood; Zatorre 2001). Teorias sobre música e evolução indicam que a capacidade da
música de evocar emoções teria sido importante para o desenvolvimento do cérebro
humano que hoje se conhece (Mithen 2009).
Objetivos
Objetivo Geral
Com base no que se sabe a respeito de linguagem, música e emoção, este trabalho
tem como objetivo geral investigar o processamento cerebral de melodias de conota-
ção alegre ou triste por pessoas com e sem treinamento musical.
Objetivos específicos
Os objetivos específicos do trabalho incluem:
1. Investigar, por meio do EEG (eletroencefalografia), os potenciais evocados rela-
cionados a eventos (PE) na audição de melodias sem palavras;
2. Investigar a influência do treinamento musical na compreensão semântica e na
integração semântica entre música e palavra;
3. Investigar a correlação entre número de acertos em tarefa de reconhecimento de
incongruências semânticas com priming musical seguido de palavra e o treina-
mento musical dos participantes;
4. Investigar as relações entre a prosódia musical e a semântica textual;
5. Investigar as relações entre o tempo de reação para a resposta da tarefa proposta
e o nível de experiência musical dos participantes. 91

Método
Participantes
Participarão do estudo trinta adultos, entre 21 e 35 anos, falantes língua portuguesa,
divididos em dois grupos. Um grupo será composto por cantores líricos profissionais
e outro por pessoas sem formação musical e sem nenhum tipo de atividade regular
amadora relacionada à música. Serão excluídos participantes com perda auditiva ou
com histórico de problemas neurológicos. Serão excluídos, também, participantes
com depressão ou nível de ansiedade muito elevado, o que poderia comprometer a
identificação correta dos trechos musicais apresentados.
Materiais e equipamentos
Trechos musicais e palavras
Os participantes serão submetidos a teste composto por melodias cantadas sem pa-
lavras, divididas em melodias de conotação alegre e melodias de conotação triste.
Serão utilizadas melodias compostas especialmente para o experimento, sendo se-
guidas regras de composição da música ocidental tradicional tonal, sem modulações,
sem ambigüidades de tonalidade e com finais conclusivos. Os dois tipos de trechos
serão facilmente distinguíveis. Os trechos alegres serão compostos em tons maiores,
terão andamento rápido, tessitura aguda, mais pausas e notas de curta duração. Os
excertos com conotação triste serão compostos em modo menor, com andamento
lento, notas longas e tessitura grave (Scherer 1995; Peretz; Gagnon; Bouchard 1998;
Juslin; Laukka 2003; Bigand et al. 2005). Todos os trechos serão cantados em vocalise,
seguidos de uma palavra cantada, que poderá ser congruente ou incongruente se-
manticamente com o trecho que a precede. No total, o teste será composto por 80 ex-
certos musicais, 40 relacionados à alegria e 40 relacionados à tristeza. As palavras
escolhidas terão relação com alegria ou tristeza e serão distribuídas randomicamente
entre os trechos. Serão utilizadas 4 palavras, 2 relacionadas à alegria e 2 à tristeza.
Equipamento de eletroencefalografia
O experimento será realizado em sala especial com aparelho de Eletroencefalografia
de 128 canais da marca Electrical Geodesics, Inc. (EUA) modelo EEG System 300,
sendo programado no software E-prime. O registro da atividade encefalográfica será
realizado pelo software NetStation.
Procedimento
Os participantes serão submetidos a avaliação audiométrica realizada por uma fo-
noaudióloga. Caso não tenham perdas auditivas, poderão participar do experimento.
Após a audiometria, serão aplicados testes de ansiedade e depressão por meio dos in-
ventários BAI e BDI (Beck Anxiety Inventory e Beck Depression Inventory). Os partici-
pantes serão levados para sala preparada para o equipamento EEG, onde serão
submetidos à audição dos trechos e terão que julgar, para cada trecho ouvido, se a
92 palavra cantada ao final do excerto é congruente ou incongruente semanticamente
em relação à melodia que a precedeu. Cada trecho será apresentado duas vezes, po-
dendo ser apresentado seguido por uma palavra congruente ou incongruente ao tre-
cho semanticamente. Os trechos serão apresentados de maneira randomizada.
Análise de dados
Após as fases de pré-processamento e pós-processamento para eliminação de even-
tuais ruídos no sinal do EEG, será feita análise estatística por meio do pacote SPSS Sta-
tistics 17.0 ANOVA fatorial, estabelecendo-se erro α=5%. Serão feitas correlações entre
os dados comportamentais, tais como tempo de reação e acertos, e os dados eletrofi-
siológicos, como amplitude e latência dos potenciais. Serão analisados individual-
mente os seguintes potenciais:
1. N1, relacionado ao processamento auditivo perceptual (Neuhaus; Knösche, 2008);
2. P2, relacionado a julgamento afetivo e estético (Chen et al. 2008; Müller et al.
2010);
3. N2, relacionado a processamento de melodias (Minati et al. 2010);
4. N400, relacionado à incongruência semântica (Patel et al. 1998; Besson 1987;
Besson et al. 1998; Koelsch et al. 2004; Patel, 2008; Koelsch et al. 2005; Miranda;
Ullman 2009; Bayer; Sommer; Schacht 2010; Daltrozzo; Schön 2009);
5. P600, relacionado a incongruências sintáticas em texto e em música – violação
de expectativa harmônica (Patel et al. 1998).

Resultados esperados
Espera-se obter diferenças no tempo de reação para realização da tarefa entre grupos
(músicos e controle), além de diferenças no número de acertos dos participantes com
e sem formação musical (Tervaniemi 2009; Bigand; Poulin-Charronat 2006; Schlaug
et al. 1995; Schlaug et al. 2009). Espera-se obter, ainda, como resultados, diferenças
significativas de amplitude dos potenciais evocados, em especial do potencial N400
(relacionado à incongruência semântica) nos dois grupos. O treinamento musical de-
veria ter relação com maior destreza na tarefa realizada, traduzida em menor tempo
de reação para realização da tarefa, além de possível maior amplitude dos potenciais
relacionados ao processamento de melodias (N2) e ao processamento de incongruên-
cias semânticas (N400). No entanto, os dois grupos devem ser capazes de realizar a
tarefa sem problemas, uma vez que os trechos musicais utilizados são muito simples
e claramente distinguíveis em dois grupos (melodias alegres e tristes), mesmo con-
siderando-se o ouvido leigo (Bigand & Poulin-Charronat 2006).
Considerações finais
O trabalho, ainda em andamento, visa compreender melhor as bases neurobiológicas
da identificação de conteúdo semântico em música, por meio da análise de compo-
nentes eletrofisiológicos do cérebro de pessoas com e sem treinamento musical. Visa,
93
ainda, investigar o papel do treinamento musical na capacidade de integração semân-
tica dos sujeitos.
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A percepção de melodia e ritmo nas pessoas
com Síndrome de Williams na perspectiva
dos testes de Audição Musical propostos por Edwin Gordon
Henrique de Carvalho Vivi 95
henrique.vivi@ufpr.br
Mestrado em Música – Universidade Federal do Paraná

Resumo
Esta pesquisa, em fase inicial, tem como objetivo verificar se as pessoas de um grupo
especial são capazes de perceber e discernir aspectos de melodia e ritmo, segundo a
teoria musical ocidental, especificamente pelos testes de Audição Musical propostos
por Gordon. Os participantes do estudo serão pessoas com a Síndrome de Williams-
Beuren, que apresentam uma série de particularidades de origem genética. A deleção
de 26 a 28 genes no par de cromossomos 7 é responsável por um fenótipo peculiar
deste grupo, que inclui características na formação de órgãos, características físicas,
linhas do rosto marcantes, um quadro cognitivo com várias particularidades, além de
respostas a sons, ruídos e à música. Baseado nos estudos mais recentes envolvendo
Síndrome de Williams, cognição e música, as pessoas deste grupo apresentam uma
sensibilidade maior à música, respostas emotivas, ouvem música por mais tempo e
podem executar peças cantando ou tocando um instrumento. No campo da percepção
e cognição musical, será utilizado Sloboda (1985) e Levitin (2006). Na área da Sín-
drome de Williams serão utilizados como aportes teóricos, Levitin (2003; 2004; 2005;
2006), Bellugi (2005), Sacks (2007), Valtierra (2008), entre outros. A pesquisa traba-
lhará com a metodologia experimental, tendo como categorias de análise a percepção
e a repetição. A pesquisa empírica está em andamento, e a coleta de dados pela ob-
servação e análise crítica dos resultados feitos pelos entrevistados.
Palavras-chave
síndrome de Williams-Beuren – educação musical – inclusão

Introdução
O processo de cognição e percepção musical é um leque vasto. Segundo as palavras
de Sloboda, os campos “cognitivo […] e afetivo” (1985, p.3) são ativados, pois, uma
vez que o ouvinte é exposto a um material musical, ele primeiro há de compreender
o que está ouvindo; e, segundo, ele aprecia o que ouve. Tais subjetividades em cada
fase dependem de cada pessoa, personalidade, humor, etc. Ou seja, cada ouvinte pode
perceber e internalizar o som de maneira diferente, bem como os funcionamentos
cognitivos podem não ser exatamente os mesmos. Tal processo de percepção pode
ser válido se aplicado à Educação Musical; como, por exemplo, em avaliações globais
utilizando um repertório de fácil acesso e suas respostas avaliadas em caráter semi-
aberto.
O processo cognitivo e afetivo em música, propostos por Sloboda, não pode ser con-
siderado habilidades restritas a pessoas com vivência em música (compositores, es-
tudantes, instrumentistas, etc.). Pessoas leigas também possuem tal habilidade, apesar
de que com níveis menores de discernimento e exposição, em palavras, do que foi
percebido ou apreciado (ibid. 1985, 5). Isso não significa que pessoas leigas não ve-
96 nham a desenvolver tal habilidade, bem como vir a atribuir uma habilidade que antes
lhe era desconhecida, ao estudar, apreciar, tocar música, etc. Levitin, por exemplo, le-
vanta a questão de que há pessoas com habilidades de ouvido absoluto e não são mu-
sicais, pois não têm vivência com música, não tocam um instrumento, ou não são
estudantes de música (2006, 28); o que pode ser levado como uma premissa que certos
parâmetros musicais possam ser discernidos igualmente por pessoas leigas e “musi-
cais”.
Se todas as pessoas possuem tais habilidades, este artigo mostrará como pode ser
abordada esta percepção musical em um grupo especial de pessoas com uma disfun-
ção cognitiva, que têm a Síndrome de Williams-Beuren. As pessoas com esta sín-
drome, além de suas características genéticas, físicas, e parâmetros de fenótipo
semelhantes, apresentam algumas características distintas, tais quais: expressão e co-
municação; e também sua sensibilidade aos sons, aos quais serão abordadas mais
adiante. Independente de suas características auditivas, alguns estudos já obtiveram
resultados satisfatórios em laboratório aos quais pessoas podem aproveitar tal carac-
terística musicalmente (Levitin 2005, 8). Não confundir tal idéia a um “facilitador”
musical que este grupo especial viria a possuir desde nascença; a intenção não é va-
lidar que todas as pessoas com Williams terão facilidade para aprender música com-
parados a outros grupos de pessoas. Mas, se estas pessoas especiais apresentam
características cognitivas, que por suas disfunções genéticas, no cérebro “processam
informações de uma maneira diferente” (ibid. 2005, 514), há de se utilizar estes atri-
butos para potencializar qualquer avaliação em música; seja de aprendizagem de ins-
trumento, seja de percepção musical, entre vários outros.
Este trabalho então visa analisar e comparar, por meio de testes de percepção musical
e repetição por execução, as respostas em caráter fechado das pessoas com Síndrome
e Williams, no intuito de desenvolver e potencializar uma maior vivência com a mú-
sica, como meio para inclusão social. Além disso, a pesquisa procurará ser uma fonte
para estudos futuros, visto que não há estudos recentes que falam sobre educação
musical e Williams no Brasil.
Para tal, serão usadas fontes bibliográficas de Sloboda, Gordon e outros autores que
trataram da cognição musical; além de fontes de Williams, Beuren, Levitin, Bellugi,
Sacks, Valtierra, Lenhoff e outros no âmbito da Síndrome de Williams. Como o le-
vantamento bibliográfico ainda está sendo feito, podem aparecer mais textos de outros
autores que não estão listados aqui e poderão ter bastante importância para a elabo-
ração do corpo de texto, ou até mesmo na metodologia utilizada.
Este artigo é parte do estudo em andamento, para dissertação de mestrado, envol-
vendo percepção musical nas pessoas com Síndrome de Williams. Por tal razão, até
a defesa da dissertação, podem haver alterações ou adições no embasamento teórico,
bem como na metodologia que será abordada.
Sobre a Síndrome de Williams
A Síndrome de Williams, também conhecida como Síndrome de Williams-Beuren,
foi pela primeira vez diagnosticada pelo cardiologista John C. P. Williams, em 1961, 97
na Nova Zelândia, ao verificar que um grupo de pessoas apresentava características
físicas e problemas no coração semelhantes (Williams et. al. 1961, 1317). Mais tarde,
em 1962, Alois Beuren, na Alemanha, diagnosticou um grupo de pacientes com as
mesmas características (Beuren et al. 1962, 1239). Por esta razão, à síndrome são atri-
buídos ambos os nomes. Alguns estudos procuraram verificar a incidência de pessoas
com a síndrome, e os números variam de 1 para 7.500 pessoas até 1 para 20.000 pes-
soas (Valtierra 2008, 95; Levitin et. al. 2004, 224).
Mais tarde, foi verificado que a Síndrome de Williams é de origem genética, decor-
rente de um erro de cruzamento de genes durante a mitose, havendo assim a exclusão
de 26 a 28 genes no par de cromossomos 7 (ibid. 2008, 95). Vale lembrar que esta ori-
gem não é congênita, ou seja, não é resultante de alguma ação na gravidez por parte
da mãe ou por algum outro quadro na família. Assim sendo, a Síndrome de Williams
não distingue cor, raça, sexo, e não há nenhum estudo relacionado à maior incidência
de local.
Os genes do par de cromossomos 7 deletados são responsáveis pela produção de al-
guns aminoácidos, reconstituição de algumas células, e mais importante, pela pro-
dução da elastina. O déficit da produção de elastina pela exclusão destes genes, como
conseqüência, define boa parte do fenótipo comum às pessoas com Síndrome de Wil-
liams, como será abordado mais adiante.
Apesar de estes estudos terem sidos publicados há aproximadamente cinqüenta anos,
os estudos mais aprofundados sobre a Síndrome de Williams, ou SW, são recentes.
Com o tempo foi possível realizar diagnósticos mais precisos para identificar se a pes-
soa possui ou não Síndrome de Williams. Até hoje, os quadros clínicos nem sempre
são base para estes diagnósticos, pois algumas características físicas, psicológicas,
cognitivas, etc., podem variar de pessoa para pessoa, pois não há precisões de exata-
mente quantos genes são deletados no par de cromossomos 7, ou seja, ele varia de 26
a 28 genes. Por variar o número de genes deletados naquela região, os resultados fe-
nótipos das pessoas deste grupo também variarão. Porém, ainda faltam estudos para
comprovar tal hipótese. Após alguns anos de estudos, foi possível determinar uma
maneira de diagnosticar a síndrome de maneira mais eficiente, que é com o teste do
FISH, também chamada de “hibridação fluorescente in situ (fluorescence in situ hy-
bridization, Sugayama et. al. 2003, 468). Este teste verifica a seqüência de genes nos
cromossomos e consegue sondar a ausência do gene da elastina, que é a principal ca-
racterística da SW, e tem uma eficácia de aproximadamente 90%.1 De qualquer ma-
neira, alguns estudos já identificaram quadros clínicos, e não só oleculares, que

2 Diagnóstico da Síndrome de Williams , disponível em http://www.swbrasil.org.br


ocorrem na maioria dos casos, como será relatado a seguir.
Estudos recentes procuraram associar a SW com a síndrome de um duende.2 Esta as-
sociação ocorre porque uma das características das pessoas com SW é ter as linhas
de rosto semelhantes a um duende, ou seja, nariz empinado, boca larga, queixo pe-
98 queno, olhos arredondados, além da estatura baixa (Sacks 2007, 303).
As pessoas com Williams também apresentam problemas cardiovasculares, apresen-
tando a Estenose Aórtica Supra valvar (Supra Valvar Aortic Stenosis). Esta estenose,
também chamada de SVAS, acontece em cerca de 75% dos casos das pessoas com Wil-
liams, em que há uma anomalia conseqüente dos estreitamentos dos vasos arteriais
(Morris 2010, 6). Então, este estreitamento pode causar problemas renais, intestinais,
além de pressão arterial constantemente elevada, dificuldades respiratórias e pulmo-
nares, entre outros.
As pessoas com SW podem também apresentar anormalidades urológicas, em um
aumento da freqüência urinária, e problemas endócrinos, incluindo hipercalcemia,
hipotireodismo, problemas ortodônticos e diabetes em alguns adultos5. Também
podem apresentar estrabismo e íris estreladas, apesar de estes dois últimos não ocor-
rerem com tanta freqüência considerando as outras características físicas.
As pessoas com a Síndrome de Williams apresentam um atraso motor e uma “defi-
ciência intelectual geral ou global” (Sacks 2007, 307). O cérebro das pessoas com SW
é relativamente menor, como observado por Sacks, podendo chegar a ser 20% menor
(ibid., 314). Vale ressaltar que não é o cérebro todo que é relativamente menor, algu-
mas áreas são, já outras têm o tamanho preservado. Ainda não há estudos neuroló-
gicos o bastante para revelar exatamente quais áreas são responsáveis por quais
quadros na SW, porém, Levitin et. al. procuraram investigar, por meio de um exame
de ressonância magnética, se as pessoas deste grupo utilizam partes do cérebro fun-
cionando para certas ações aos quais não acontecem em pessoas que não têm SW. Se-
gundo os autores, estas pessoas “[…] ainda apresentam oportunidades de cobrir bases
de comportamentos cognitivos complexos, e em particular, começar a fazer a ligação
entre os genes, neurodesenvolvimento, cognição e comportamento” (Levitin et. al.
2005, 514).
As pessoas com SW possuem, em sua maioria, uma dificuldade visual-espacial (Val-
tierra 2008, 96). Alguns estudos comentam a dificuldade que estas pessoas podem
ter para representar graficamente, por exemplo, desenhando. Além disso, sua capa-
cidade de leitura é limitada, e pode haver uma grande dificuldade ao realizar simples
questões aritméticas (Bellugi et. al., apud Levitin et. al. 2004, 225). Apesar destas ca-
racterísticas, as pessoas com a SW apresentam certas funções visuais bem preservadas.
Algumas pessoas conseguem distinguir e reconhecer expressões faciais com muita
facilidade (Valtierra 2008, 96). Este contraste no campo visual espacial é uma das cu-
riosidades ao qual este fenótipo complexo se apresenta, e merece mais estudos.

3 “What is Williams Syndrome?”, disponível em http://www.williams-syndrome.org


Levando em conta os quadros psicológicos e comportamentais, as pessoas com SW
em geral são bastante ansiosas (Levitin et. al. 2003, 75). Normalmente possuem um
comportamento hipersocial, são desinibidas, procuram ser bastante comunicativas
e fazem um bom uso do vocabulário (Sacks 2007, 308-9). Também têm um bom do-
mínio da linguagem, se utilizando de palavras, semânticas, sinônimos, etc. de maneira 99
forte e independente (ibid. 2007, 308). Valtierra procura associar a característica da
falta de inibição ao tamanho relativamente menor da Amídala Cerebelosa (2008, 97),
localizada no cérebro e que é responsável por regular a agressividade. Sacks procura
associar a linguagem e outras funções cognitivas que “[…] podiam, em termos gerais,
ser explicadas pelo tamanho avantajado e pelas ricas redes neurais dos lobos tempo-
rais” (2007, 314).
Alguns estudos sobre SW procuraram associar as pessoas deste grupo e uma anormal
relação com os sons. Esta relação não foi sempre diagnosticada pela comunidade
científica, e se verifica que os estudos envolvendo SW e sons são recentes. A princípio,
esta relação com os sons foi chamado de hiperacusia (em inglês hyperacusis). O termo
se refere à disposição que o ouvido das pessoas com SW possue de ouvir com mais
sensibilidade todos sons, ou grupos de sons (Hagerman 1999; Klein, Armstrong,
Greer e Brown 1990; Martin, Snodgrass e Cohen 1984; Nigam e Samuel 1994; Udwin
e Yule, 1991, apud Levitin et. al. 2005). Porém, o termo é vago por não especificar
exatamente quais grupos de sons, e se esta sensibilidade é determinada pela freqüên-
cia, altura, dinâmica, timbre, etc. Então, verificando a necessidade de aprofundar o
conhecimento deste fenótipo, um estudo envolvendo vários indivíduos com SW pro-
curou padronizar este quadro. Segundo Levitin et al. (2005, 516), as pessoas podem
apresentar:
• Hiperacusia, como uma habilidade de ouvir sons distantes, em freqüências baixas,
que um ouvido de uma pessoa que não tem SW não ouviria;
• Odinacusia, como uma sensação de dor e/ou desconforto a certo som;
• Alodinia Auditiva, como uma aversão ou medo de um som; e
• Fascinação Auditiva, como uma atração ou admiração por um certo som.

Vale lembrar que o que determina estes quadros varia de pessoa para pessoa, suas vi-
vências, etc. Estes quadros não são únicos, a pessoa com SW pode apresentar mais de
um quadro (ibid. 2005, 519).
A origem desta relação ainda não é claramente explicada. O estudo que envolveu as
pessoas com SW e o funcionamento do cérebro ao ouvir música pela ressonância mag-
nética procuraram dar base a este conhecimento. Ao observar e analisar o cérebro
das pessoas com SW se concluiu que
“[…] os participantes com SW mostraram ativações mais variadas e difusas por
todo o cérebro, […] além de fornecer novas e convergentes evidências que a sua
organização neural pode diferir das pessoas ditas normais” 7
O funcionamento neurológico não parece ser também o único elemento que carac-
teriza este quadro auditivo das pessoas com SW; lembrando que a elastina é respon-
sável pela construção de órgãos internos, talvez a construção do ouvido e o aparelho
auditivo das pessoas com SW sejam diferenciados, o que também caracterizaria este
quadro auditivo. Porém, não há estudos relacionados a esta área que comprovem esta
hipótese.
100 Os estudos também procuram ligar estas características das pessoas com SW ao ouvir
música. As pessoas com SW tendem a mostrar sensibilidade e expressar sentimentos
como alegria ou tristeza através da audição de música, além de ter sensações como
aversão, medo ou admiração por certos sons musicais, instrumentos musicais, ou
peças inteiras (Levitin et al. 2004, 225-6). As pessoas deste grupo tendem a ouvir mú-
sica por mais tempo (ibid. 2003, 74). O mesmo estudo com ressonância magnética
também verificou a maior ativação cerebral das pessoas com SW quando foram esti-
muladas ao ouvir música (Levitin et al. 2003, 79), e pessoas com SW parecem ter mais
interesse em música (ibid. 2004, p.226)
Sacks procura relatar o como as pessoas com SW mostram um interesse em tocar um
instrumento musical ou aprender a cantar músicas em outros idiomas, de outras cul-
turas (2007, 310), além de reproduzir padrões musicais com mais facilidade (p. 311).
Tal relação pode ser explicada pelo paralelo que a música tem como linguagem, parte
do cérebro preservada das pessoas com SW, e são responsivas à música em um nível
emocional (p. 312).
Partindo destes dados de SW e música, algumas questões tendem a aparecer. Nem
todas as pessoas com SW são sensíveis à música e mostram um maior interesse por
peças musicais, sons musicais, etc. Não há nenhum dos estudos que indiquem que
100% das pessoas com SW sejam musicais. Também, não há nenhuma incidência de
habilidade musical nata, que seja convertido em aprendizagem de um instrumento
musical, etc., ou seja, há casos em que a pessoa com SW procura no canto ou na apren-
dizagem de um instrumento musical expressar a sua facilidade com a música, mas
isso não acontece em todos os casos. Pode haver pessoas com SW que tenham interesse
por música, porém, não estejam predispostas a tocar um instrumento musical. Ou
ainda, pode haver a pessoa com SW que não tenha interesse nenhum por música, ape-
sar de apresentar um ou mais de um dos quadros auditivos listados. Também pode
acontecer da pessoa que seja diagnosticada com SW e não tenha o quadro auditivo
peculiar às pessoas deste grupo. Vale então fazer a reflexão de como é introduzida a
música na vida das pessoas com SW que possuam os quadros auditivos. Se, em ne-
nhum momento, esta pessoa tem exercícios de musicalização, aulas de educação mu-
sical, ensino de um instrumento, ela poderá exibir uma facilidade para a música?
Neste artigo, a idéia de que em um ensino apropriado de musicalização a pessoa com
SW tenha uma ponte para se expressar musicalmente tenha um interesse pela música

7 “[…] WS parcitipants displayed more variable and diffuse activations throughout the brain,
and they showed increased activation in the amygdala and cerebellum, thus providing new
and converging evidence that their neural organization may differ from that of normal people”
(Levitin et al. 2003, 81).
e seja inclusa em um grupo social. Por isto esta pesquisa também trata de colocar a
importância no caráter inclusivo das pessoas com SW.
Objetivo geral
A pesquisa pretende verificar se as pessoas com síndrome de Williams são capazes 101
de perceber, discernir e diferenciar elementos musicais de melodia e ritmo, como
forma de ampliar suas capacidades musicais como meio para a inclusão social.
Objetivos específicos
São objetivos da pesquisa proposta:
• Verificar se as pessoas com Síndrome de Williams são capazes de perceber e dis-
cernir aspectos de melodia, segundo a teoria musical ocidental.
• Verificar se as pessoas com Síndrome de Williams são capazes de perceber e dis-
cernir aspectos de ritmo, segundo a teoria musical ocidental.
• Analisar a ampliação do universo musical das pessoas com Síndrome de Williams,
se utilizando da linguagem não da teoria musical, mas da prática musical, utili-
zando instrumentos para coleta de dados adaptados, como caráter inclusivo na
sociedade.
Metodologia
Por se adequar à proposta desta pesquisa, a metodologia trabalhada será o método
experimental. Segundo Pereira, a descrição e características do método experimental
podem ser colocadas da seguinte maneira:
“[…] A pesquisa experimental pode ser realizada em “laboratórios pedagó-
gico-musicais” ou no “campo”. Na pesquisa de laboratório podem ser estudados e
desenvolvidos métodos de ensino através de consultas bibliográficas e informações
teóricas. A pesquisa de campo refere-se a experiências conduzidas nas salas de
aula, onde podem ser comparados métodos de ensino, ou analisadas reações com-
portamentais sob o efeito da música” (Pereira, 1991, p.80)
A interação que é necessária para atingir os objetivos então parte desta comparação
de dois grupos: um composto das pessoas com Síndrome de Williams, e outro de pes-
soas que não possuem a síndrome. Segundo a autora, “Compara-se o rendimento dos
dois grupos: o experimental e o de controle. A comparação é essencial em todas as
investigações científicas” (ibid., 81). A maneira como a pesquisa empírica será apli-
cada em campo está sendo definida em mais de uma cidade (Curitiba e São Paulo, a
início), pelo interesse e disponibilidade de pessoas que participarão da coleta de dados,
reunidas em uma seleção homogênea. As etapas da pesquisa já estão em fase de aper-
feiçoamento sabendo que uma das etapas envolverá a compreensão de melodia e de
ritmo da música, por exercícios de apreciação e percepção. Uma segunda etapa pro-
curará fazer a compreensão dos elementos musicais através de exercícios de repetição
e execução, mas a criação poderá ser introduzida nesta etapa. Se necessário, uma ter-
ceira etapa procurará avaliar a compreensão dos elementos não só pela execução mu-
sical, mas também pelo o que os entrevistados expressarão, afinal, nem toda pessoa
com Síndrome de Williams é esperada executar plenamente sem erros alguma frase
musical, mas também sua capacidade de expressar com facilidade pode ser uma fer-
ramenta auxiliadora na avaliação e análise dos resultados.
Para tal, a maneira de investigar e analisar tais objetivos mais adequada é com as Me-
102 didas Primárias de Audição Musical de Gordon. Apesar de publicado a mais de 20
anos, e com vários outros tipos de testes musicais recentes, acredita-se que com os
testes tonais e rítmicos se consiga verificar com melhor eficácia os objetivos listados.
Além disso, o teste não requer que os entrevistados tenham noções de leitura ou teoria
musical. Para o grupo de pessoas com Williams, isto é vantajoso, visto a dificuldade
que as pessoas deste grupo podem ter com leituras e noções espaciais decorrentes de
suas características cognitivas.
O teste de Gordon não será aplicado em sua totalidade, bem como os materiais utili-
zados deverão ser adaptados. O teste não foi originalmente concebido para abordar
as pessoas com qualquer necessidade especial, bem como, pessoas com deficiência
intelectual. Exatamente quais adaptações serão feitas sem prejudicar a eficácia do
teste e sua análise estão em andamento. A opção por adaptar o teste é baseado nos
estudos de Levitin e Bellugi (1998) que optaram por adequar partes do teste verifi-
cando certas discrepâncias que poderiam aparecer se tivesse aplicado em sua totali-
dade. Por exemplo, o teste rítmico não foi feito após o teste tonal, e a fonte sonora
não foi via CD em aparelho, visto as características das pessoas com Williams em
possuir déficits na atenção e poderiam não responder de acordo.
Categorias de análise
As categorias de análise serão a apreciação, percepção e execução, havendo uma ên-
fase maior na percepção, pois ela é crucial para a execução acontecer com eficácia.
Então o planejamento na pesquisa empírica terá que ser guiada por estes eixos nor-
teadores.
Nesta pesquisa, serão adotadas as definições de melodia e ritmo segundo as caracte-
rísticas do som na música, ao qual são definidas por MED da seguinte maneira: “Me-
lodia, como um conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva (concepção
horizontal da música), […] Ritmo como ordem e proporção em que estão dispostos
os sons que constituem a melodia e a harmonia.” (1996, 11). Então, estes elementos
estão intricados com características do som, sejam elas vibrações regulares ou irre-
gulares, como altura e duração.
Harmonia e timbre não serão abordados nesta pesquisa, pelo fato de que incluir estes
elementos na avaliação iria demandar uma análise muito mais extensa e resultados
podem apresentar variabilidades ou discrepâncias que não auxiliariam no objetivo
geral. Ainda não há estudos envolvendo qual elemento musical a pessoa com Sín-
drome de Williams consegue perceber melhor, porém, esta pesquisa pode ajudar es-
tudos futuros.
As entrevistas e atividades envolvidas neste processo está em planejamento. Um es-
tudo procurou aplicar testes para pessoas com Williams utilizando as “Medidas Pri-
márias de Audição Musical” de Gordon (Don et al., apud Levitin et al. 2004, 225),
mas os resultados não foram os esperados, pois o teste não foi criado para este grupo,
e sim para pessoas que não possuem Síndrome de Williams. Então, uma atividade
padrão ou testes padrões poderiam prejudicar os resultados, e conseqüentemente, os
objetivos da pesquisa. Porém, é importante destacar que as atividades serão planeja- 103
das e introduzidas após o domínio da etapa anterior pela Síndrome de Williams.
Instrumentos de coleta de dados para os testes também estão em desenvolvimento,
pois a pesquisa bibliográfica mais aprofundada trará melhores diretrizes para a pes-
quisa de campo, e assim, ter uma melhor abordagem. O que se têm como indicadores
são testes envolvendo a percepção musical utilizando repertório já existente (e não
fragmentos sonoros), e o discernimento de caráter distinto se baseando apenas por
música neste grupo especial (com repostas de caráter semi-aberto e também por vi-
sualizações do problema a ser resolvido). Com os resultados da amostra, análise e
conclusão esperam-se chegar os indicadores estabelecidos nos objetivos específicos,
e conseqüentemente, validar o objetivo geral.
Grupo participante
O grupo escolhido para esta pesquisa são pessoas diagnosticadas com Síndrome de
Williams, adolescentes com idade entre 12 a 19 anos. A faixa etária escolhida não
precede nenhum estudo ao qual diriam que nesta idade a percepção ou respostas
serão mais eficazes, afinal, os estudos neste sentido são limitados. Alguns estudos co-
mentam sobre o como a idade das pessoas com Síndrome de Williams não altera sua
característica cognitiva (Levitin et al. 2004, 233; Valtierra, 2008, 96). Apesar disso,
um estudo anterior utilizando pessoas com Síndrome de Williams no Brasil e per-
cepção de produtos sonoros revelou maior atenção e respostas mais precisas por parte
dos entrevistados que já eram adolescentes ou estava na fase adulta (Vivi 2007, 25).
Além disto, o grupo será selecionado por pessoas que não tiveram aulas prévias de
música ou musicalização. Por acreditar que as pessoas que já tenham tido, ou estejam
freqüentando uma aula de música ou musicalização iria influenciar uma resposta aos
elementos que poderiam não ser genuínas, ao filtrar estas pessoas, a pesquisa mos-
traria resultados mais satisfatórios para análise. Este fato é colocado em voga quando
se trata de discutir se as pessoas com Williams possuem uma facilidade para música
no Brasil.
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a mente e a produção das artes musicais

Uma improvisação guiada por uma partitura, como uma mente,


105
segundo os seis critérios do processo mental propostos
por Gregory Bateson
Daniel Puig
danielpuig@me.com
Setor Curricular de Música, Colégio de Aplicação da UFRJ
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO

Resumo
A partir dos seis critérios do processo mental, propostos por Gregory Bateson, procuro
demonstrar que um grupo de músicos improvisando a partir de uma partitura pode
ser considerado como uma mente em si mesmo. Contextualizando as contribuições
desse autor, parto para uma análise detalhada dos critérios, procurando sumarizar
seus pressupostos ao propor que este tipo de estruturação seja possível. Aplico, então,
os critérios a uma situação imaginada, considerando: suas partes, a interação entre
elas, o ponto por onde flui energia colateral para o sistema, sua cadeia circular de
determinação e as transformações que ocorrem em seu interior, para, por fim, revelar
uma hierarquia de tipos lógicos imanente a ela.

Acerca de Gregory Bateson


Gregory Bateson figura entre os iniciadores do campo transdisciplinar hoje conhecido
como “visão sistêmica” ou Teoria dos Sistemas. Essa abordagem sofreu influências
da Cibernética, Teoria da Catástrofe, Teoria do Caos e dos estudos de Sistemas Com-
plexos e Adaptivos. A Allgemeine Systemtheorie de Ludwig von Bertalanffy é geral-
mente reconhecida como seu início. Entre outros expoentes, encontramos: Geoffrey
Vickers, Margaret Mead, Norbert Wiener, Warren McCulloch, Stafford Beer, Hum-
berto Maturana, Francisco Varela, Edgar Morin, Fritjof Capra, Ilya Prigogine, James
Lovelock e Mary Catherine Bateson. Das disciplinas que tem recebido suas contri-
buições, destacam-se a Biologia, Epistemologia, Engenharia, Etnologia, Filosofia, In-
formática, Literatura, Lógica, Matemática, Pedagogia, Psicologia, Psiquiatria, Robótica,
Semiótica e Sociologia.
De maneira geral, pensadores com uma visão sistêmica (Ramage e Shipp 2009) cre-
ditam partes significativas da base de suas abordagens às contribuições de Bateson
— biólogo e antropólogo de formação —, cujo trabalho caracterizou-se por envolver
e inaugurar novas perspectivas em diversas áreas do conhecimento. Stanislav Grof
(1981), psiquiatra de origem tcheca que conviveu com Bateson em seus últimos anos
de vida, lembra:
Apesar do fato de ter se envolvido profundamente em muitas áreas diferentes, ele
permanecia um livre-pensador em todas elas. Via sua tarefa como um generalista,
como sendo a de mover-se entre as disciplinas e nas suas interfaces e procurar
linguagens para conectá-las. Seu trabalho é uma mistura muito original, combi-
nando antropologia, psicologia, psiquiatria, cibernética, teoria da informação e
106 de sistemas, lógica, psicologia animal e teoria evolucionária.
E, ainda:
Não há dúvida de que suas contribuições representam um quadro conceitual
abrangente, altamente original e extremamente útil. As dificuldades que algumas
pessoas tinham em entender suas palestras ou seus escritos pode ser explicada
pela originalidade e o escopo de suas contribuições. Sua visão do universo, enten-
dimento da realidade e filosofia da ciência eram drasticamente diferentes do pen-
samento dominante. Muitas de suas contribuições, portanto, só faziam sentido
no contexto do trabalho de toda sua vida e não podiam ser adicionadas facilmente
às teorias e ao conhecimento científico existentes.
Gregory Bateson nasceu em Grantchester (Reino Unido), em 9 de maio de 1904, e
morreu em São Francisco (EUA), em 4 de julho de 1980. Começou seu trabalho cien-
tífico na Papua Nova Guiné, onde estudou diferentes tribos autóctones. Essa pesquisa
resultou no livro Naven (Bateson 1958 e 2006), no qual delineou o conceito de esquis-
mogênese (schismogenesis). O uso desse conceito é hoje corrente na etnomusicologia
a partir do trabalho de Steven Feld (1995) acerca da sua ocorrência nas músicas po-
pulares, inclusive brasileiras. O resultado mais importante das pesquisas de Bateson
na área do Pacífico foi a publicação, em conjunto com sua primeira esposa, Margaret
Mead, de Balinese Character: A Photographic Analysis (Bateson e Mead 1942), cuja
repercussão, como a primeira pesquisa antropológica a fazer uso sistemático de filmes
e fotografias para a aquisição de dados etnográficos e comunicação de resultados, es-
tende-se até hoje.
Nos anos seguintes, Bateson dedicou-se extensivamente à pesquisa da comunicação
entre humanos e animais. Suas conclusões foram importantes para sua compreensão
acerca da mente, com a utilização da teoria dos tipos lógicos, emprestada do trabalho
de Bertrand Russell, e do conceito de metalinguagem, de Benjamin Lee Whorf. Mais
tarde, com base também nessas pesquisas, trouxe seu método etnográfico para o es-
tudo da esquizofrenia (Levy e Rappaport 1982), desenvolvendo o conceito de duplo-
vínculo (double-bind), uma das mais importantes contribuições para a moderna
psiquiatria. Em 1972 publicou Steps to an Echology of Mind (Bateson 2000), onde ex-
plorou a base de sua visão sistêmica em uma coleção de ensaios em antropologia, psi-
quiatria, evolução e epistemologia. Em 1979, Mind and Nature: A Necessary Unity
(Bateson 2002) desenvolveu essa visão e lançou diversos conceitos importantes, in-
cluindo sua lista de seis critérios do processo mental e os princípios do seu método
de análise conhecido como dupla descrição (double description). Depois de sua morte,
Angels Fear: Towards an Epistemology of the Sacred (Bateson e Bateson 2005) foi edi-
tado a partir dos manuscritos por sua primeira filha, Mary Catherine Bateson (co-
autora de alguns de seus livros), e lançado em 1987, desenvolvendo suas idéias acerca
da arte, da religião e do sagrado dentro de uma perspectiva sistêmica. Recentemente,
estudos desenvolvidos no campo da Biosemiótica (Hoffmeyer 2008), contando com
a colaboração de Mary Catherine, revisitaram suas idéias sob a luz de conceitos sur-
gidos nas últimas décadas e colocaram suas contribuições ainda sob nova perspec-
tiva.
107
Os seis critérios do processo mental
Uma das principais contribuições de Bateson para a Epistemologia é o seu conceito
acerca da mente. A partir de uma lista de seis critérios, expande a noção comum desta,
que a vê restrita ao corpo humano. Tal lista, exposta em “Mind And Nature”, leva Ba-
teson (2002, 85, grifos do autor (g.a.)) a afirmar que “se qualquer agregado de fenô-
menos, qualquer sistema, satisfizer todos os critérios listados, direi sem hesitação que
esse agregado é uma mente”. Segundo ele, sua abordagem está sujeita à validade da
idéia de que este tipo de estruturação da epistemologia, da evolução e da epigênese é
possível. Bateson sugere que o problema mente-corpo, como desenvolvido em Des-
cartes, por exemplo, pode ser resolvido por uma argumentação nesta linha de pen-
samento e que “os fenômenos que chamamos de pensamento, evolução, ecologia, vida,
aprendizagem, e outros desse mesmo tipo, ocorrem unicamente em sistemas que sa-
tisfazem estes critérios” (Bateson 2002, 86, g.a.).
Esta idéia acerca dos processos mentais aproxima-se em muito do funcionamento
que gostaria de ver em minha música, na qual lido com questões da imprevisibilidade
e, paralelamente, da identidade da obra. Não hesito em dizer, como compositor, que,
se for possível, através de critérios desta natureza, estabelecer um parâmetro que se
aproxime de algo orgânico, com características estéticas dessa ordem, então esta abor-
dagem me interessa. Acredito que neste caminho possa estar uma questão pertinente
à estética atual da música de concerto, que poderá vir a estabelecer um caminho in-
teressante para se lidar com a metalinguagem em música. Em especial, parece-me
que isto interessa à composição musical que lida com a interação entre diferentes lin-
guagens artísticas.
Por outro lado, é evidente sua aproximação à abordagem de sistemas complexos,
quando fala de cadeias circulares de determinação e do funcionamento não-linear
de processos que acontecem no mundo biológico. Sua aplicação à composição musical
poderá vir a interessar àquela que lida, em especial: com modelos evolucionários;
com sistemas complexos e estocásticos; com a determinação de microestruturas; com
a utilização de modelos complexos na construção de algoritmos com aplicação mu-
sical; e, em última análise, com a Teoria dos Conjuntos.
Tentando, portanto, aplicar estas idéias à composição musical, exponho a seguir a
lista dos seis critérios do processo mental construída por Bateson (2002, 85-86, g.a.),
para depois esclarecer alguns de seus conceitos:
1. Uma mente é um agregado de partes ou componentes em interação.
2. A interação entre as partes da mente é disparada pela diferença, e a diferença é
um fenômeno não-substancial, não-localizado no espaço ou no tempo; a dife-
rença está relacionada à neguentropia e à entropia, em lugar de à energia.
3. O processo mental requer energia colateral.
4. O processo mental requer cadeias circulares (ou mais complexas) de determinação.
5. No processo mental, os efeitos da diferença devem ser considerados como transfor-
mações (isto é, versões codificadas) dos eventos que os precederam. As regras dessas
108 transformações devem ser comparativamente estáveis (isto é, mais estáveis que
o conteúdo), mas estão elas mesmas sujeitas à transformação.
6. A descrição e classificação desses processos de transformação revela uma hierarquia
de tipos lógicos imanente ao fenômeno.

Considerando a lista
Inicialmente, Bateson procura estabelecer que uma mente será sempre formada por
partes menores. Para ele, não pode haver processo mental se não houver interação
entre partes diferentes de um sistema. As partes de uma mente podem funcionar
como submentes, desde que preencham em si mesmas todos os critérios.
O próximo conceito importante é o de diferença:
. . . para o universo material, devemos poder falar comumente que a “causa” de
um evento é uma força ou impacto exercido sobre alguma parte do sistema mate-
rial por uma outra parte qualquer. Uma parte age sobre uma outra parte. Em con-
traste, no mundo das idéias, necessita-se de uma relação, entre duas partes ou
entre uma parte no instante 1 e a mesma parte no instante 2, para ativar um ter-
ceiro componente que podemos chamar de receptor. Aquilo a que o receptor (por
exemplo, um órgão sensório final) responde é uma diferença ou uma mudança
(Bateson 2002, 89, g.a.).
Ele entende que “a diferença que ocorre ao longo do tempo, é o que chamamos de
‘mudança’” (Bateson 2000, 458) e que toda percepção de diferenças está baseada na
percepção de relações. Dentro desse contexto, frisa ainda três aspectos característicos
da diferença: sendo do campo das relações, pode ser considerada como não estando
localizada no espaço ou no tempo, isto é, não-substancial e sem dimensão; sua natu-
reza é qualitativa e não quantitativa; e ela está relacionada ao par neguentropia-en-
tropia, ao invés de à energia.
Entende ainda, que a “informação consiste em diferenças que fazem diferença” (Ba-
teson 2002, 92, g.a.). Aqui, é importante destacar a hierarquia de tipos lógicos exis-
tente nesta proposição, da qual Bateson sempre se utiliza para explicar as relações
existentes entre mensagens e metamensagens. Sua adoção parte do problema clássico
dos paradoxos lógicos. Um paradoxo lógico é uma afirmativa que comporta duas in-
terpretações válidas, porém contraditórias entre si. Paradoxos deste tipo impõe um
problema a uma teoria logicamente estruturada, uma vez que podem colocar por
terra sua validade. Este problema também estava expresso claramente na Teoria dos
Conjuntos, à época em que chamou a atenção do filósofo Bertrand Russell. Se imagi-
narmos um conjunto que contenha todos os conjuntos possíveis, ele contém ou não
contém a si mesmo? Obviamente, se ele não contiver a si mesmo, não contém todos
os conjuntos possíveis, e se contiver a si mesmo, ele não contém o conjunto resultante
disso, não sendo o conjunto de todos os conjuntos. A solução para este paradoxo en-
contrada por Russell e seu colega Whitehead — que desenvolveram a Teoria dos Tipos
Lógicos, utilizada em larga escala na Matemática e na Filosofia —, consiste em per-
ceber que a proposição do paradoxo representa um erro de tipificação lógica. A classe
é de um tipo lógico superior ao de seus membros e não está sujeita às mesmas injun- 109
ções que estes. O conjunto de todos os conjuntos é uma classe, a classe dos conjuntos,
e não pode ser confundida como um membro de si mesma. Bateson se utiliza nesta
frase da mesma palavra — diferença(s) — para se referir a diferenças de tipos lógicos
distintos. A diferença que é percebida como informação, está para as outras diferenças,
assim como a classe está para seus membros.
No terceiro critério, Bateson fala de energia colateral. Exemplificando o que entende
por este conceito, coloca a si mesmo como sujeito e descreve o ato de abrir uma tor-
neira:
Quando abro a torneira, meu trabalho em girar a torneira não empurra ou puxa
o fluxo de água. Esse trabalho é feito por bombas ou pela gravidade, cuja força é
liberada pela minha ação de abrir a torneira. Eu, em “controle” da torneira, sou
“permissivo” ou “restritivo”; o fluxo da água é energizado por outras fontes. Eu de-
termino parcialmente quais caminhos a água irá tomar, se ela vier a fluir. (Bateson
2002, p.95)
Isso equivale a dizer que um processo mental irá necessitar de algum tipo de interação
com outros sistemas, para que seja mantida sua existência. Desta maneira, também,
Bateson foca o entendimento na relação entre os sistemas, ou seja, na qualidade da
interação entre eles.
Seguindo adiante, enfatiza que cadeias circulares de determinação podem descrever
mais acuradamente os processos mentais. Argumenta que a lógica é um modelo pobre
para descrever causa e efeito. E demonstra que, ao desconsiderarmos o fator tempo
em certos tipos de seqüências de causa e efeito, terminamos com respostas auto-con-
traditórias, paradoxos. Um exemplo claro é o circuito do “buzzer” (zumbidor), que é
montado de maneira a que uma peça de metal esteja posicionada próxima a um ele-
troimã, sem tocá-lo. Essa peça funciona ao mesmo tempo como contato, para a pas-
sagem de energia elétrica que irá ativar o eletroimã. Ao ser ligada a corrente elétrica,
o eletroimã é ativado e atrai a peça de metal para si. Ao atraí-la, o contato é desfeito
e o circuito é quebrado. A corrente pára de chegar ao eletroimã e este pára de funcio-
nar. Conseqüentemente, a peça de metal volta a seu lugar original. Em seu lugar ori-
ginal, ela faz contato e fecha o circuito, colocando o eletroimã novamente em
funcionamento. Assim, o ciclo se repete enquanto a corrente estiver ligada, gerando
uma oscilação, um zumbido. Ao se desligar a corrente elétrica, o sistema pára de fun-
cionar. Ou seja (cf. Bateson 2002, 55):
Se o contato é feito, então o eletroimã é ativado.
Se o eletroimã é ativado, então o contato é quebrado.
Se o contato é quebrado, então o eletroimã é desativado.
Se o eletroimã é desativado, então o contato é feito.
Esta sequência está correta e completa, do ponto de vista da causalidade, porém, se
a transpusermos para o mundo da lógica, resulta um paradoxo:
Se o contato é feito, então é quebrado.

110 “O se . . . então da causalidade contém temporalidade, mas o se . . . então da lógica é


atemporal. Segue que a lógica é um modelo incompleto de causalidade” (Bateson
2002, 55, g.a.). Por outro lado, cadeias circulares de determinação possuem, através
do mecanismo de retroalimentação, a capacidade de fazer com que a informação seja
carregada por todo o sistema, vindo a influenciar novamente, após passar pelos outros
componentes da cadeia, o seu ponto de origem. Tal funcionamento acarreta meca-
nismos de auto-regulação no sistema. Seu estudo, como Bateson atesta (2002, 96),
tem origem na Cibernética e na análise que Norbert Wiener fez acerca da máquina a
vapor com mecanismo de auto-regulação de James Watt (séc. XVIII). Bateson demons-
tra, então, que todos os critérios para a existência de uma mente que ele apresenta
até este ponto combinam-se para explicar os mecanismos de auto-correção e auto-
organização presentes em seres vivos. E conclui que “a organização de coisas vivas
depende de cadeias circulares ou mais complexas de determinação” (Bateson 2002,
96).
A partir daqui, passa a argumentar que os efeitos da diferença devem ser considerados
como transformações ou versões codificadas dos eventos que os precederam: “. . . em
todo pensamento ou percepção ou comunicação acerca da percepção, há uma trans-
formação, uma codificação, entre o relato e aquilo sobre o qual se relata” (Bateson
2002, 27). Bateson argumenta que as regras para essas transformações estão elas mes-
mas sujeitas à transformação, mas são invariavelmente mais estáveis que o conteúdo.
Aprofundando esse entendimento, recorre à noção de tipos lógicos, que já expus an-
teriormente, e ao conceito de metacomunicação. Este último estabelece que existem
mensagens que definem o contexto para outras mensagens, ou seja, metamensagens.
A metamensagem classifica as mensagens, ou seja, determina a que classe de men-
sagens elas pertencem. Na metacomunicação, a interpretação de mensagens depende
intrinsecamente da interpretação da metamensagem. Sem o contexto estabelecido
pela metamensagem, as mensagens subordinadas a ela perdem seu significado.
Bateson encerra seus critérios enfatizando que a descrição e a classificação dos pro-
cessos de transformação pelos quais os efeitos da diferença passam em um determi-
nado processo mental, revela uma hierarquia de tipos lógicos imanente a esse
fenômeno. Tentarei aplicar esta noção acerca da mente a uma situação musical muito
comum, que aparece em diferentes culturas e nos mais diversos contextos composi-
cionais, procurando revelar uma hierarquia de tipos lógicos imanente a ela.

Um grupo de músicos improvisando a partir de uma partitura


É importante destacar, que na situação imaginária que me propus, não falo de uma
idéia limitada de partitura. Olhando a partitura de um ponto de vista mais abrangente,
distanciado da definição historicamente construída, para acercar-me de uma que olha
para sua finalidade mais geral, posso pensar nela como: um mapa para a performance
de uma peça musical específica.
Tal mapa pode ser apresentado de diversas formas: como uma partitura tradicional
(p.ex., Lontano, Ligeti), uma partitura gráfica (p.ex., December 1952, Brown), um
texto (p.ex., Aus den Sieben Tagen, Stockhausen), etc. Indo para além da música de 111
concerto ocidental, posso considerar que uma idéia tradicional de como deve se de-
senvolver uma determinada peça musical, também pode ser vista como um mapa
para a sua performance. Seria o caso de: um raga indiano, um tipo estabelecido de
improvisação no jazz, etc. Para fins deste trabalho, também é importante ressaltar
que esse mapa é sempre a criação de um outro sistema, com seus processos mentais.
Vale ressaltar também, que para Bateson o problema da delimitação de uma mente
individual depende sempre intrinsecamente do fenômeno que pretendemos entender
ou explicar (Bateson 2000, 464). Ao olharmos para um fenômeno com características
mentais, nossa descrição passará a envolver o circuito em que as diferenças viajam
pelo sistema e:
Nossa explicação (para determinadas finalidades) irá rodar e rodar dentro desse
circuito. Por princípio, se se quer explicar ou entender qualquer coisa em com-
portamento humano, sempre se estará lidando com circuitos totalizados, circuitos
completos. Este é o pensamento cibernético elementar.
O sistema cibernético elementar, com suas mensagens em circuito é, de fato, a
unidade mais simples de uma mente; e a transformação de uma diferença viajando
em um circuito, é a idéia elementar. Sistemas mais complicados talvez mereçam
mais serem chamados de sistemas mentais, porém, essencialmente, é disto que
estamos falando. (. . .)
(. . .) A maneira de delinear o sistema é desenhar a linha limítrofe de tal modo que
não se corte nenhuma dessas vias de uma forma que deixe as coisas inexplicáveis.
(. . .)
E adicionalmente (. . .), penso que é necessário incluir as partes relevantes da me-
mória e de “bancos” de dados. Afinal de contas, pode-se dizer que o circuito ci-
bernético mais simples tem memória de um tipo dinâmico — baseado não em
armazenamento estático, mas na circulação da informação dentro do circuito (Ba-
teson 2000, 465).
Sendo assim, aterei minha descrição às interações entre os músicos do grupo de im-
provisadores e destes com a partitura que os guia. Não incluirei os aspectos das inte-
rações dos músicos com a platéia, com o espaço de apresentação, etc. Este recorte do
fenômeno se mostra adequado para minha análise tomando por base o pensamento
de Bateson.
Em minha situação imaginária, um grupo, com um número qualquer de músicos,
improvisa em conjunto, em qualquer estilo e com qualquer tipo de instrumento. Segue
uma partitura que guia a improvisação. Os músicos estão instruídos a responder de
maneira musical ao material sonoro trazido à improvisação. Logo que iniciam, estão
ouvindo uns aos outros, respondendo àquilo que os outros tocam e trazendo material
novo ao conjunto, inspirados pelo que a partitura sugere ou solicita. Este tipo de in-
teração implica em ouvir o resultado da improvisação do grupo e abstrair do todo
idéias musicais que faça sentido seguir. Estas devem ressoar na idéia pessoal do que
deve ser tocado naquele contexto específico e, ao mesmo tempo, estar de acordo com
os limites colocados pela partitura. Os músicos ouvem atentamente e tocam com rigor,
112 ao mesmo tempo; ou seja, há uma intensa e refinada atividade mental e física, com
todo tipo de atenção presente. Próximo a um limite anteriormente combinado, a im-
provisação termina.
O que estou descrevendo aqui são os processos de transformação que ocorrem na im-
provisação guiada por uma partitura. Minha opção é por uma descrição geral, que
englobe diferentes possibilidades de grupos e situações, evitando me ater, proposita-
damente, a detalhes estilísticos, de gênero, etnomusicais, técnicos, etc. Obviamente,
os argumentos aqui colocados devem poder ser aplicados a casos específicos, que
levem em conta os aspectos deixados de lado em minha observação ou não poderão
atestar sua validade e utilidade.
Como a situação satisfaz a todos os critérios
A partir de agora vou tentar mostrar como a situação descrita satisfaz a todos os cri-
térios do processo mental propostos por Bateson.
1. Uma mente é um agregado de partes ou componentes em interação.
Esta mente é formada pelos músicos e a partitura. Os músicos devem ser vistos como
submentes do processo mental que abrange também a partitura. Este conjunto so-
mente irá formar um agregado e interagir, satisfazendo o critério para que seja visto
como uma mente, durante o ato de improvisar.
2. A interação entre as partes da mente é disparada pela diferença.
Para Bateson a “informação consiste em diferenças que fazem diferença”. Depois de
imergir na atenção necessária para improvisar, cada um segue “uma idéia musical
que faz sentido seguir” (cf. p.9), ou seja, uma informação. As diferenças que vão cons-
tituir essa informação disparam a interação existente entre os componentes do grupo
e destes com a partitura, naquele momento. Como enfatizado por Bateson, minha
descrição já dá voltas pelo circuito em que as diferenças viajam pelo sistema.
3. O processo mental requer energia colateral.
Esta talvez seja a conclusão mais importante deste trabalho e foi crucial para meu
entendimento da situação como uma mente: a partitura é a fonte de energia colateral
do sistema. Ela funciona como o fluxo de água na metáfora de Bateson, pois traz para
dentro do sistema as mensagens de um outro processo mental, independente dele.
4. O processo mental requer cadeias circulares (ou mais complexas) de
determinação.
Analisando a situação do ponto de vista que me propus, ou seja, atendo-me “às inte-
rações entre os músicos do grupo de improvisadores e destes com a partitura que os
guia” (cf. p.8), vejo uma cadeia circular de determinação presente em minha descrição,
com os seguintes elos:
acessar o resultado musical total;
validar as idéias musicais pela partitura;
contribuir para o resultado musical total.

Se qualquer um dos elos acima for retirado do processo, a cadeia será quebrada e a 113
integridade da improvisação guiada por uma partitura, comprometida. O sistema
terá dificuldades em funcionar como uma mente ou não funcionará no todo. Para
constatar que a improvisação não funcionaria como esperado, basta retirar uma das
linhas acima. Esta cadeia circular carrega a informação obtida de um elo ao outro,
por todo o sistema. Sua recursividade é a responsável pela auto-regulação dinâmica
do sistema, ou seja, faz emergir padrões. Esses padrões identificarão uma improvi-
sação específica, como entidade musical obtida no tempo e no espaço, por sua sono-
ridade característica. Vemos aqui em ação, também, e de forma determinante para
todo o processo, o tipo de memória dinâmica a que Bateson se refere, a partir da cir-
culação da informação dentro do circuito.
5. No processo mental, os efeitos da diferença devem ser considerados como
transformações (isto é, versões codificadas) dos eventos que os precederam.
Uma vez observado que a informação é carregada de um elo a outro da cadeia, posso
assumir que é nas relações entre eles que as transformações dos efeitos da diferença
se dão. Sendo assim, temos um tipo de transformação associada a cada elo. É impor-
tante lembrar a abordagem dinâmica das regras destas transformações, proposta por
Bateson no próprio critério (cf. p.4): elas mesmas estão sujeitas a transformações du-
rante o processo, embora permaneçam comparativamente mais estáveis que o con-
teúdo que por elas passa.
6. A descrição e classificação desses processos de transformação revela uma
hierarquia de tipos lógicos imanente ao fenômeno.
Minha descrição e classificação limita-se aos fluxos de mensagens que se dão durante
a improvisação em si, enquanto ela existe no tempo e no espaço. Trata-se da delimi-
tação de uma mente e, portanto, procuro separar o fenômeno de tudo o que o envolve
sem sacrificar sua explicação e seu entendimento (cf. p.8-9). Não se trata, de forma
alguma, de uma descrição descontextualizada, que possa ser aplicada indiscrimina-
damente a todas as instâncias em que estas palavras venham a surgir como símbolos
de uma ação (verbos). Poderia-se até dizer, e enfatizar, que a escolha destas palavras
em detrimento de outras é pessoal e arbitrária. O que importa mais é o conteúdo des-
crito, o tipo de transformação ou codificação analisada.
Acessar
Acessar o resultado musical total da improvisação implica em uma codificação: abs-
trair do todo idéias musicais que faça sentido seguir. Isto é o mesmo que destacar as
diferenças que fazem diferença, procurar por informação. Há uma diferença entre
aquilo que soa de fato, o resultado musical total, e aquilo que é obtido como infor-
mação, e é isto que queremos descrever com este processo de transformação. A cada
momento, novas partes da informação são desprezadas e outras enfatizadas, segundo
todo o processo mental em jogo. Esta transformação tem um intuito, uma finalidade
direcionada, pois parte de outras mensagens anteriores e procura por aquilo que faz
sentido. O uso consciente do verbo acessar, deixa aberta a possibilidade de que a per-
114 cepção musical se dê também através de outros sentidos, além da audição, e de outros
tipos de percepção que englobam diversos sentidos (p.ex., uma percepção musical
do gesto corporal).
Validar
A atividade de validar as idéias musicais com as quais se está lidando a partir dos pa-
râmetros estabelecidos pela partitura funciona algo como um filtro: coloca sobre o
todo acessado uma nova injunção, que o compara aos parâmetros que a partitura es-
tabelece para o que é possível ser executado; envolve uma compreensão dos objetivos
musicais e poéticos expressados na partitura; funciona sempre em relação ao todo
da improvisação; e leva em conta diferentes níveis de anseio de expressão artística do
executante no decorrer da improvisação, bem como a forma como identifica sua par-
ticipação individual no grupo. Ela se dá dentro de certos limites, colocados na própria
partitura e no contexto no qual ela se insere, e é parte do mecanismo responsável pela
auto-regulação do sistema.
Contribuir
Aquilo que foi acessado e validado torna-se agora energia materializada e é isto que
define esta transformação. Através de ações musculares, o processo mental torna-se
energia presente em forma de som, gesto, etc.; torna-se diferença para a percepção,
passível de ser acessada. Ou seja, o resultado musical total é renovado e fecha-se a
cadeia circular de determinação. Como o entendimento de um processo mental deve
levar em conta o tempo, percebemos que, ao contribuir, cada parte está comunicando
mensagens que desvelam a forma como as transformações se deram em seu interior.
Estas mensagens interagem no tempo umas com as outras e interinfluenciam-se,
criando significados. A única mensagem que está acima de todas elas, regulando seu
funcionamento e relações, é a da partitura.
Revela-se, assim, uma hierarquia de tipos lógicos imanente ao fênomeno, ou seja, que
dele não pode ser separada. Nela, a partitura, como ponto por onde flui a energia co-
lateral advinda de outro sistema, é de tipo lógico superior às outras mensagens, defi-
nindo seu contexto e classificando-as. Estando em uma classe superior, ela não está
sujeita às mesmas injunções que as outras mensagens e pode ser identificada como
uma metamensagem. De fato, toda e qualquer improvisação feita a partir de uma de-
terminada partitura poderá ser identificada como pertencente à classe de improvi-
sações ligadas a ela. As especificidades de cada improvisação levada a cabo, no tempo
e no espaço, não tornarão inválida essa condição. Quanto melhor for a qualidade das
interações dentro do processo mental que envolve os músicos e a partitura, mais bem
definida estará sua identidade como obra artística.
Conclusão e possíveis desenvolvimentos
Tomando por base os argumentos apresentados aqui, parece-me claro que posso con-
siderar um grupo de músicos improvisando a partir de uma partitura, como sendo
uma mente em si mesmo. Todos os critérios propostos por Gregory Bateson foram
115
satisfeitos pela situação apresentada e só me resta lembrar suas palavras: “se qualquer
agregado de fenômenos, qualquer sistema, satisfizer todos os critérios listados, direi
sem hesitação que esse agregado é uma mente”.
Um estudo aprofundado do papel da partitura como ponto por onde flui a energia
colateral para o sistema e das características que contribuem para a definição da iden-
tidade musical buscada pelos processos mentais do compositor, expressados através
dela, pode ser de grande valia para a composição que se utiliza de partituras para a
improvisação guiada. Por outro lado, suponho que o caminho aberto para a análise
da partitura como metamensagem e do fluxo de mensagens em uma improvisação
como a que foi descrita aqui, possa vir a esclarecer aspectos da interação entre a mú-
sica e outras linguagens artísticas.
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Ciclo Portinari: um estudo sobre experiências multissensoriais


nas práticas interpretativas
Sheila Regiane Franceschini
sheilafranceschini@hotmail.com
mestre em música – ia/unesp

Resumo
Este estudo propôs analisar a ocorrência de experiências multissensoriais nas práticas
interpretativas utilizando como objeto de estudo o Ciclo de Portinari, um conjunto de
oito canções para vozes femininas (soprano e mezzo soprano) e piano, do compositor
João Guilherme Ripper (1959-), com textos por Cândido Portinari (1903-1962). Con-
siderando a interação entre os textos literário e musical, típica do gênero “canção”, e
as relações sensoriais decorrentes da escuta e interpretação musicais diante de apro-
ximações com as artes visuais verificadas no estudo, a intenção foi investigar o tra-
tamento musical que o compositor deu aos textos do artista, identificar os elementos
musicais utilizados para reforçar o sentido do texto e revelar possíveis contribuições
para a interpretação musical na transmissão desses elementos ao público, por meio
de leituras e análises dos textos literários, visuais e musicais, demonstrando a ocor-
rência de experiências multissensoriais justificadas por conceitos de interdisciplinari-
dade e/ou sinestesia.
Palavras-chave
canção – interdisciplinaridade – sinestesia
Introdução: apresentação do tema, objetivos e método

Tornam-se cada vez mais freqüentes relatos de ouvintes, estudantes de música e até
de músicos profissionais sobre experiências sonoras envolvendo a prática musical.
Chamamos de multissensorial aquela experiência sonora que envolve outros órgãos 117
dos sentidos, não apenas a audição.
A ocorrência de sons coloridos, sons com formas diferentes e intensidades luminosas
sugerem capacidades neurocerebrais importantes que geram vivências muito parti-
culares e definidas como subjetivas e individuais.
A possibilidade da ocorrência de experiências multissensoriais é reforçada pela idéia
de que escuta e/ou apreciação musicais evocam na memória, seja do ouvinte ou do
intérprete, imagens e sensações. E então os órgãos dos sentidos se comunicam para
favorecer esta percepção.
Sendo assim, compositores e artistas, em suas diversas produções podem levar os in-
divíduos que apreciam suas obras a tais experiências, de maneira intencional ou não,
apenas pela forma como tratam os elementos fundamentais de seus trabalhos.
A interação entre os elementos verbais e não verbais de uma canção, por exemplo, já
nos daria uma imensa gama de sugestões para experiências multissensoriais. Ainda
mais, quando um compositor faz uso de textos com grande potencial imagético é pos-
sível alcançar uma experiência na qual seja presente a interrelação entre som e ima-
gem, música e arte visual, canção e poesia.
Diante de tantas associações e interações é que o Ciclo Portinari, de João Guilherme
Ripper, obra composta de oito canções para vozes femininas (soprano e mezzo so-
prano) e piano, escrita especialmente para as comemorações do centenário de Can-
dido Portinari, no ano de 2003, foi utilizada neste estudo.
Observando-se o objeto de estudo em questão, por meio da escuta musical, pode-se
apreender algo de extramusical presente na composição, algo que ultrapassa a fron-
teira do puramente musical para sugerir imagens e sensações. O compositor em ques-
tão fez uso de textos produzidos pelo eminente artista ítalo-brasileiro adotando
elementos de linguagem musical, tanto nas linhas vocais quanto na linha pianística,
ressaltando as sugestões imagéticas do texto literário, no sentido de alcançar o público
de maneira multissensorial.
O objetivo do estudo foi identificar quais elementos verbais (texto literário) e não ver-
bais (artes visuais e música) presentes na obra confirmam esta idéia; quais as possíveis
relações entre os elementos de linguagem verbal e linguagem musical; quais trata-
mentos musicais, forma e estrutura, foram dados pelo compositor; e ainda, como a
interpretação musical pode favorecer ou reforçar essas possíveis sugestões imagéticas
ao comunicar estes elementos ao público.
É preciso considerar o papel do intérprete como uma atividade de grande relevância:
ele não apenas interpreta um texto musical, expressivo e dotado de características
próprias, definidas pelo contexto histórico, mas também atua e traz à realidade sen-
timentos e sensações impressas num texto verbal, construindo relações imagéticas
por meio dos sons, as quais podem provocar nos ouvintes reações diversas, seja ele
cantor ou pianista, em se tratando de canção. Neste sentido, o texto enquanto imagem
118 literária é uma motivação para o compositor e desencadeia o processo criativo.
Nas palavras de Ripper:
(…) minhas canções têm textos próprios ou de outros poetas. O poema tem que
me mover para que eu crie a música ou o processo fica inverso: crio a música e
vou buscar as palavras que lhe sejam próprias. No final, o resultado tem que ser o
mesmo: uma estreita relação entre música e texto. O mesmo se dá com o acom-
panhamento, que nunca tem um papel subjacente e por isso, tem que interagir
com o (a) cantor(a) no mesmo plano sonoro. O piano comenta o texto cantado
como um outro personagem, reforçando ou contradizendo a mensagem. Geral-
mente minhas texturas pianísticas são homofônicas e contrapontísticas ao mesmo
tempo. Há, assim, outras vozes que devem ser ressaltadas pelo pianista. Natural-
mente, cabe ao cantor ou à cantora a veiculação do texto, da melodia. (Entrevista
concedida por Ripper, em 06 de maio de 2007).
E ao identificar, por meio da análise, os elementos de linguagem verbal e de linguagem
musical presentes na obra, verificou-se a possibilidade da multissensorialidade, bem
como um elo musical entre as artes musicais e as artes visuais proposto pelo compo-
sitor.
Para compreender tal elo entre a obra musical e as artes visuais, no sentido de oferecer
meios de compreensão do repertório musical em questão, no qual a interpretação
funcione como um intensificador dessa relação foram utilizados conceitos como in-
terdisciplinaridade e sinestesia.
Por interdisciplinaridade entende-se a relação de reciprocidade entre os diversos cam-
pos de conhecimento, na qual essa interação proporciona uma compreensão mais
globalizada e abrangente do conhecimento humano (Fazenda 2003, 75). Já Sinestesia
é o nome geralmente dado para dois conjuntos (ou “complexos”) de estados cognitivos
relacionados (Robertson e Sagiv 2004, 12). Entende-se como sendo um fenômeno
neurológico em que os sentidos se comunicam para perceber uma mesma manifes-
tação.Neste trabalho, a sinestesia pode ser compreendida tanto do ponto de vista ar-
tístico, aproximando-se da interdisciplinaridade, como pelo aspecto neurológico.
Assim sendo, há um eixo filosófico que sustenta esta idéia, baseada na fenomenologia
de Merleau-Ponty, pois para o filósofo todos somos sinestésicos. Segundo a pesqui-
sadora Yara Casnok,
Longe da idéia de lidar com a unidade do múltiplo, com a solidariedade dos órgãos
que regulam o equilíbrio e asseguram o funcionamento do todo, como faz a ciência
(corpo/máquina ou corpo/sistema), a fenomenologia propõe pensar a sinestesia
a partir da totalidade do vivido. Ao mesmo tempo, o objeto não é percebido como
um produto da síntese, na qual as equilavências sensoriais tenham sido efetuadas:
ele se oferece como uno, antes de ser submetido ao exame dos vários sentidos. A
coisa deve sua unidade ao seu pertencimento à camada original do sensível, antes
que se definam as diversas qualidades que solicitarão os diferentes sentidos (2003,
128-129).
Desta maneira, investigando a interrelação entre as artes e entendendo a interpretação
enquanto meio de expressão, leitura e vivência do objeto artístico, promove-se a cons-
trução de saberes significativos para o meio acadêmico, buscando a apreciação mu- 119
sical em diferentes níveis sensíveis.
Neste sentido, o método empregado neste estudo foi baseado no levantamento bi-
bliográfico de trabalhos já realizados sobre o assunto que possibilitaram o aprofun-
damento das idéias propostas e estudos analíticos a respeito do objeto de estudo
realizados por meio da leitura da obra, contexto histórico no qual se insere a produção
e sua interpretação.

Resultados alcançados
1. Interrelações entre as linguagens artísticas.
Ao analisar o Ciclo Portinari em seus elementos no sentido de ressaltar neles a ocor-
rência de experiência multissensorial, pode-se observar que o texto literário possui
um potencial imagético, referindo-se a descrições de cenas ou narrativas que remetem
às memórias do autor e descrições estas que correspondem às mesmas que dão vida
às suas pinturas e desenhos, em suas cores e luzes. Portanto, está presente a relação
entre o texto literário e os trabalhos de artes visuais produzidos pelo mesmo, como
pode-se verificar, por exemplo, no trecho a seguir:
As viagens de trem foram as melhores.
Olhando as árvores, as casas, os animais e
Os fios telegráficos, ia sonhando.
As paisagens e seus habitantes
Vistos dali pareciam contentes…
Tudo endomingado. Apreciava o
Ruído do trem. Nas paradas, nas
Pequenas estações, lá estavam os
Mendigos, cegos ou sem perna, os
Meninos apregoando alguma coisa e as
Filhas do chefe vendendo café em
Uma janela. Mocinhas nascidas
Ali, ansiosas por respirar outros
Ares. Tristes mas esperançosas.
Talvez seus sonhos se realizassem…
O sonho era um príncipe. Ele não
Viria. Elas seriam logradas, mas
Era bom morrer
Sonhando com o príncipe.
(“O menino e o povoado”, Poemas Portinari, 21.)
No texto musical, por sua vez, o compositor faz uso de determinados elementos que
acabam reforçando este potencial imagético presente no texto, tais como forma, que
segue a do próprio texto literário; padrões rítmicos que dão a idéia de movimento ou
relaxamento e por vezes descrevem meios de locomoção e efeitos, tessituras que de-
120 signam o próprio espaço e seus planos, a distância e a proximidade entre o enunciador
e o ouvinte, centros tonais variados para indicar mudanças de ambientes ou cenas,
tempo presente ou passado, timbres (vocais e pianístico) para acentuar ou discriminar
momentos específicos na obra.
Tais idéias sugerem a existência de possíveis associações entre imagem e som, bem
como a percepção simultânea destas por meio dos sentidos, sejam essas associações
estimuladas, intencionais ou involuntárias no processo de estudo e apreciação do fe-
nômeno artístico, qualquer que seja ele. Como exemplos, temos:
b œœ .. b œœ œœ b œœ .
& 42 ‰ J‰ J‰ ‰ .?
Piano
œ. œ. ?
& 42 œ . ‰ œJ ‰ œJ ‰ ‰ œ .
œ œ

Figura 1 – As viagens de trem. Compassos 1-3.

Figura 2 – As viagens de trem. Compassos 6-9.

Associações como estas já haviam sido enumeradas no século II, e foram intensa-
mente realizadas por artistas plásticos, poetas e músicos dos séculos XIX e XX que
vêem como produto uma obra que propicia uma experiência ou apreciação multis-
sensorial. Segundo Jorge Antunes,
A associação entre som e cor é uma tendência humana cuja evidência se manifesta
desde há muito tempo. Assim, enquanto em Pintura se fala de tom, timbre, har-
monia, — expressões tiradas da Música — nesta se fala de cromatismo, coloratura,
colorido (orquestral) — termos próprios à Pintura (Antunes 1982, 9). 47
Artistas como Wassily Kandinsky (1866-1944), Arnold Schoenberg (1874-1951), Ale-
xander Scriabin (1871-1915) e Nicolai Rismky-Korsakoff (1844- 1908), entre outros,
procuraram em seus trabalhos essa associação ou proximidade entre as linguagens
artísticas, especialmente as artes visuais e as musicais. Eles eram estudiosos destas 121
manifestações artísticas por acreditarem numa idéia de arte global/monumental ou
ainda no conceito de arte total (Gesamtkunstwerk), bem como na reciprocidade de
seus conteúdos e conceitos na qual todos os sentidos fossem estimulados e solicita-
dos.Muitas foram as formas de aproximação entre as linguagens artísticas e a asso-
ciação entre sons, cores e até mesmo cheiros. Desde a simples atribuição de cores às
obras de grandes compositores até o desenvolvimento de instrumentos de cores es-
tabelecendo relação entre as freqüências do som, timbres e cores, o uso de termos
comuns às artes visuais e à música (forma, movimento, ritmo, cromatismo, tonali-
dade) para justificar ou fundamentar uma obra abstrata, por exemplo, ou ainda, como
a música inspirava a pintura e vice-versa.
Segundo Bosseur,
Conduzidos por um impulso espiritual que visava uma espécie de retorno à uni-
dade original da criação artística, pintores e músicos foram levados, particular-
mente a partir do período romântico, a recusar a separação das artes, julgada
arbitrária, e a interrogar-se sobre a analogia das sensações visuais e sonoras. Esta
aspiração responde à concepção de obras polissensoriais ou exprime-se na vontade
de uma fusão entre várias práticas a fim de chegar à obra de arte integral (Bosseur
1998, 9-10).22
As discussões sobre obra de arte total na qual a integração de várias linguagens ar-
tísticas seja um ideal a ser atingido como forma de expressão integral do indivíduo,
podem gerar entendimentos vários sobre a necessidade ou não de uma fusão entre
as artes, bem como o reconhecimento das especificidades que cada linguagem traz
consigo.
Para Kandinsky, “cada arte ao se aprofundar fecha-se em si mesma e separa-se. Mas
compara-se às outras artes, e a identidade de suas tendências profundas as leva de
volta à unidade.” (Kandinsky 2000, 59) Com isso ele defende a identidade da lingua-
gem artística de forma que nenhuma pode tomar o lugar da outra, propondo a união
delas com o desejo de ver surgir a verdadeira arte monumental, bem como diversas
formas de apreciação.
Diante disso, na busca por essa combinação das funções sensoriais nas artes, não há
como se falar numa padronização de experiências, uma vez que em cada período his-
tórico, as várias teorias tentaram explicar e justificar os processos perceptivos na cria-
ção e apreciação de uma obra.
Além disso, essa experiência multissensorial dependerá do repertório imagético e so-
noro que cada receptor possui, bem como das vivências e experiências que ele traz
consigo e que definem sua capacidade perceptiva sobre as coisas.
Numa abordagem fenomenológica podemos citar Merleau-Ponty que nos diz:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão
minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não
poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vi-
vido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu
sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do
122 mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o
mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é
uma determinação ou uma explicação dele (Merleau-Ponty 1999, 3-4).
Em outras palavras, a relação do espectador com a obra será marcada pela percepção
que o mesmo possui a respeito desta obra, pela unidade entre os sentidos que interliga
o espectador ao mundo e o mundo ao espectador, considerando suas vivências e co-
nhecimentos obtidos, e construindo novos conhecimentos.
2. Interrelação por interdisciplinaridade
Por interdisciplinaridade, etmologicamente e por justaposição, podemos entender
como sendo relação entre disciplinas (inter + disciplinaridade). Porém, o conceito é
bem mais amplo e advém da idéia de disciplina como conjunto de conhecimentos es-
pecíficos sobre algo, guardando características próprias em matéria de ensino, for-
mação, métodos e materiais. Ao pensar as linguagens artísticas como disciplinas
distintas, evocamos conceitos de codisciplinaridade nos quais um conjunto de con-
cepções nos permite unificar o conhecimento das diversas disciplinas mantendo a
originalidade de cada uma delas (Pombo 1994, 92).
Sendo assim, enquanto disciplinas, as artes visuais, competentes para expressar tudo
quanto relativo ao “visual”, e a música para expressar o “sonoro”, mesmo sendo recí-
procas, mantém suas características próprias permitindo a interrelação entre seus
elementos fundamentais e a conseqüente produção de novos conhecimentos, basea-
dos nos fenômenos perceptivos respectivos a esta relação.
Para este tipo de atividade disciplinar, do ponto de vista da exploração científica, dá-
se o nome de interdisciplinaridade. Segundo Olga Pombo, o prefixo inter indica não
apenas pluralidade, justaposição mas também um espaço comum de coesão dos sa-
beres, o que supõe abertura de pensamento na busca por novos conhecimentos frutos
dessa coesão. (Pombo 1994, 93). É, de acordo com vários teóricos, o intercâmbio
mútuo e integração existente entre as disciplinas, propiciando um enriquecimento
recíproco. A interdisciplinaridade elabora uma síntese de métodos e aplicações, bus-
cando um conhecimento novo advindo dessa coesão.
Sendo assim, as linguagens artísticas encontram um lugar para o confronto e a inte-
gração de seus conteúdos, no qual o indivíduo atua na obtenção de um conhecimento
especificamente novo sobre algo, especialmente a obra de arte, resultado da fruição,
da reflexão e compreensão da experiência vivida. Esse lugar é o da interdisciplinari-
dade: uma compreensão mais ampla nos vários setores do conhecimento. Nesse sen-
tido, as linguagens artísticas são também, além de disciplinas, expressão e
comunicação estabelecidas entre um emissor que é o autor, o intérprete e o receptor
que é o leitor/ouvinte/espectador.
Os artistas do século XX que transitavam entre os vários meios de manifestação ar-
tística, sejam pintores, escritores ou músicos, no desejo de produzir novos conheci-
mentos sobre a interrelação destas disciplinas, buscaram experimentar as formas de
associação entre sons e cores, não apenas com o objetivo multissensorial, mas pela
necessidade de transpor os limites formais e estéticos da produção artística, numa 123
integração entre as linguagens que lhes eram comuns.
E mesmo quando a experiência multissensorial não foi o objetivo central de uma pro-
dução artística, a interrelação entre as linguagens artísticas ocorreu pela intenção dos
artistas em produzir obras de arte que utilizavam elementos das diversas manifesta-
ções de arte. Isso demonstra que se assim o fazem, fazem por meio de uma ação in-
terdisciplinar, no qual os conteúdos dessas linguagens foram utilizados para romper
conceitos e transpor limites, criando uma arte libertária e transformadora, tanto para
o criador quando para o indivíduo espectador.
Em se tratando do Ciclo Portinari, havendo elementos de linguagens artísticas diver-
sas, fundidos numa mesma obra, há também a possibilidade do surgimento de novas
concepções no que se refere ao momento da apreciação e da leitura, justificando as
variadas experiências multissensoriais.
Diante disso, tal experiência, pretendida ou não numa determinada obra de arte é
plenamente possível se justificada pela ação interdisciplinar na qual o indivíduo dia-
loga com o autor, com as diversas formas de compreensão desta mesma obra, va-
lendo-se dos conhecimentos que várias disciplinas possam oferecer. Também o
momento da criação é interdisciplinar se o artista utiliza conhecimentos de outras
linguagens para realizar a sua obra de arte que se torna o objeto de fruição pelo
leitor/ouvinte/espectador. E por último, o intérprete, após realizar sua leitura da obra
de arte, também comunica sua experiência numa ação interdisciplinar e a partilha
com o receptor.
3. Interrelação por sinestesia
Ao buscar uma compreensão para o que seja experiência multissensorial observa-se
que ela se apresenta como uma experiência em que vários sentidos são solicitados
e/ou estimulados. E sendo assim, esse tipo de experiência pode ocorrer em todo tra-
balho artístico que se utiliza das diversas linguagens relacionadas a cada um dos sen-
tidos, como os trabalhos que se enquadram no conceito de obra de arte total, por
exemplo, justificados pela ação interdisciplinar, como já exposto. Nestes casos há uma
união de várias linguagens, sem que percam suas qualidades, na expectativa da mul-
tissensorialidade.
Porém, há um tipo específico de experiência multissensorial no qual um fenômeno
perceptível por um determinado sentido se faz perceptível por meio de outro sentido,
também. Ou seja, há uma colaboração entre os sentidos na percepção de algo, invo-
luntária e simultaneamente, de forma aditiva e não excludente. Para isto se dá o nome
de sinestesia. Termo de origem grega significa união de sensações (sin= união + aes-
thesis = sensação).
A sinestesia, numa abordagem neurofisiológica, é descrita por alguns estudiosos,
como Simon Baron-Cohen, como sendo uma disfunção neurológica (Robertson e
Noam 2004, 6), o que justificaria a utilização de uma terminologia médica quase de-
preciativa, como os termos “padecer”, “desequilíbrio”. Por outros, é considerada apenas
124 uma propriedade ou habilidade cerebral no qual um sentido evoca a função de outro,
na percepção de um mesmo fenômeno e que está presente em todos desde o nasci-
mento, manifestando-se na fase adulta em apenas uma porção da população, aquela
que admite ser portadora, cerca de 0.05%, segundo Noam Sagiv (2005, 3).
A psiquiatra Daphne Maurer acredita que as conexões cerebrais no desenvolvimento
cognitivo ocorridas nos primeiros três meses de vida do recém nascido são manifes-
tações sinestésicas e que, portanto, todos os indivíduos vivem experiências sinestési-
cas. No que concordam outros pesquisadores, porém demonstrando que muitos
perdem essa propriedade com o tempo (Maurer apud Baron-Cohen 1997, 225).
Segundo Vilayanur Ramachandran (2003, 52-53), pesquisador da Universidade da
Califórnia no Departamento de Psicologia e Ciência Cognitiva, a razão pela qual a si-
nestesia ocorre, do ponto de vista neurofisiológico, é explicada pelo resultado da ati-
vação cruzada nas várias regiões do cérebro, pela sua proximidade, ocorrendo o
entrecruzamento das conexões cerebrais, bem como das funções sensoriais.
Ainda de acordo com Noam Sagiv, a compreensão da sinestesia abrange e facilita o
entendimento do funcionamento normal de aspectos importantes da cognição hu-
mana, como a percepção, a atenção, a memória e o pensamento, entre outros. Se-
gundo Sagiv,
No contexto da ciência cognitiva, a compreensão da sinestesia envolve não só do-
cumentar o fenômeno, mas também perguntar-nos o que ele nos diz sobre a cog-
nição normal. Deve estar claro já agora que a sinestesia dis respeito a muitos
aspectos importantes da cognição humana: percepção e atenção, consciência, me-
mória e aprendizagem, linguagem e pensamento e, finalmente, desenvolvimento
(Sagiv 2005, 5).
Também o pesquisador Sean Day, enquanto sinesteta, que estuda o fenômeno e man-
tém uma lista de sinestetas no mundo todo, catalogou mais de 60 tipos de sinestesia
que combinam dois ou mais sentidos (in http://home.comcast.net/~sean.day/html/
types.htm).
Algumas características mais comuns da sinestesia são, por exemplo, o caráter gené-
tico e, em geral, a manifestação em vários membros de uma só família. A sinestesia
é automática e involuntária. Também não pode ser aprendida e, normalmente, é du-
rável e permanente sendo ligada à memória e às emoções. Ela é projetada e sentida
no entorno corporal. Os sinestetas podem também apresentar uma memória superior
aos demais e, em alguns casos, dificuldades no raciocínio matemático e na orientação
espacial. E ainda, a sinestesia pode ser congênita ou adquirida, provocada por pato-
logias e acidentes cerebrais ou ainda ocorrer por efeito do uso de drogas e substâncias
alucinógenas (Basbaum 2002, 32).
Em se tratando destas características convém expor a série de abordagens e classifi-
cações a que o termo é submetido. Segundo o pesquisador Sérgio Basbaum, as abor-
dagens mais comuns a respeito do termo são: a) as de caráter neurológico que consi-
dera a sinestesia constitutiva ou patológica e as discussões perceptivas das associações
de modalidades sensórias; b) as do ponto de vista artístico e todas as tentativas, desde
o Renascimento até o momento presente, visando à combinação dos diversos sentidos 125
na apreciação das obras de arte; c) as dos próprios depoimentos de sinestetas, sejam
natos ou pelo uso de substâncias psicoativas; d) a sinestesia como figura de linguagem
(2002, 25-26).
Basbaum também cita a classificação proposta por Baron-Cohen e Harrison na qual
existem duas categorias distintas, a sinestesia e a pseudo-sinestesia. A sinestesia inclui
os casos de sinestesia constitutiva que é aquela em o indivíduo nasce com ela e de ca-
ráter neurológico; a sinestesia adquirida por disfunção neurológica de caráter pato-
lógico e a sinestesia em conseqüência do uso de substâncias psicoativas. Como
pseudo-sinestesia seriam compreendidas a metáfora sinestésica na qual os trabalhos
de arte possuem signos relativos a outra modalidade sensória, e a associação na qual
a sinestesia é treinada e influenciada culturalmente. Esta categoria poderia se apro-
ximar do conceito de interdisciplinaridade, verificada a fusão de informações e con-
teúdos (2002, 27).
Na fenomenologia de Merleau-Ponty as sensações e a percepção são postulados fun-
damentais e por meio deles é possível a compreensão na existência e na comunhão
entre os indivíduos e o mundo, para a construção do conhecimento e da consciência
das coisas.
Segundo Casnok a “sensação e o sentir são uma modalidade da existência e não
podem, por isso, se separar do mundo”. Para ela,
No sentir, não há diferença entre sensação e percepção. A sensação não é um pri-
meiro estágio da percepção, um ato inaugural do conhecimento e ela não procede
de atos de uma consciência da qual o analista pode desembaraçar os fios inten-
cionais — ela pertence ao mesmo tempo ao sentiente (aquele que sente) e ao sen-
tido, ao corpo e ao mundo (2003, 123).
Seguindo a máxima de Merleau-Ponty, de que “o visível é o que se apreende com os
olhos, o sensível é o que aprende pelos sentidos” (1999, 28), ao considerar o sensível,
verifica-se que os órgãos dos sentidos e suas funções são vistos como uma modalidade
de ligação entre o indivíduo e o mundo, na qual um sentido solicita o outro.
Sendo assim, o sensível constitui os sentidos e ao se admitir a unidade do sentir, todos
podemos ser sinestésicos. De acordo com Casnok,
Se se admite uma unidade primordial do sentir e uma indiferenciação também
primordial do sensível, o termo sinestesia perde sua função restritiva de qualificar
apenas alguns seres humanos dotados dessa capacidade: para a fenomenologia,
todos somos potencial e ontologicamente sinestésicos (2003, p. 128).
É por isso que as experiências do indivíduo no mundo, enquanto ser e em relação às
coisas e ao mundo, são valorizadas. Nestes termos, a experiência multissensorial seria
inerente ao indivíduo, sendo justificada por meio da sinestesia, tanto como fenômeno
neurológico, respeitando-se a capacidade individual determinante para experiências
absolutamente diferenciadas e involuntárias, quanto no sentido filosófico que justifica
a abordagem artística, aproximando-se do conceito de interdisciplinaridade, seja qual
for a acepção que o termo sinestesia assuma.
126 Diante destes dados e segundo informações disponíveis no sítio eletrônico mantido
por Sean Day (http://home.comcast.net/~sean.day/html/types.htm), compositores
como Rimsky-Korsakov, Amy Beach, Jean Sibelius e Olivier Messiaen seriam consi-
derados sinestetas por suas experiências e o desenvolvimento de métodos ou instru-
mentos musicais com finalidades sinestésicas. Outros seriam considerados
pseudo-sinestetas, como Kandinsky, Paul Klee e Scriabin por realizarem associações
entre som e cor independentemente da real ocorrência dos processos sinestésicos,
para influenciar nos indivíduos sensações correspondentes.
Em entrevistas com o compositor João Guilherme Ripper, ele faz menção à intenção
pela sinestesia na interrelação entre texto / música, por meio de significados que
emergem do texto, numa abordagem artística. Ele acolhe a idéia de que as influências
históricas ajudam a consolidar esses significados, e o uso dos diversos elementos de
linguagem musical também sofrem influência dos contextos culturais. Quando per-
guntado sobre sinestesia ele assim explicou:
A resposta passa obrigatoriamente pelas sugestões sensoriais que o compositor
procura induzir através de sua música, incapaz de definir qualquer coisa por si só,
mas que na companhia do poema são claramente reconhecidas. Acredito, também,
que determinados gestos melódicos e harmônicos, por sua larga utilização no de-
correr dos últimos 300 anos, já tenham se cristalizado em significados mais ou
menos convencionados, como as expressões de “noturno”, tristeza, amor, religio-
sidade, etc. (Carta do compositor, 10 abr 2010).
Assim, Ripper poderia também, de acordo com este estudo, ser incluído no grupo de
pseudo-sinestestas por pretender a sinestesia, numa abordagem artística, sem que
necessariamente a mesma ocorra em termos neurológicos.

Conclusões
O estudo sobre o Ciclo Portinari nos trouxe informações concretas sobre as algumas
formas de interrelação entre as linguagens artísticas promovendo experiências mul-
tissensoriais, envolvendo a mente e a produção musical.
Enquanto intérprete, o conjunto de sensações e imagens pode induzir a uma perfor-
mance específica, apoiada numa percepção simultânea dos já mencionados elementos.
Porém, isso não exime o intérprete de ater-se ao estudo dos outros elementos pre-
sentes na obra para uma performance mais eficaz, pois a sinestesia, na abordagem
neurológica, não pode ser padronizada, visto que são muitos os tipos de sinestesia já
catalogados, cada qual gerando experiências variadas, e nem tampouco garante outros
aspectos da interpretação necessários à sua adequada produção.
Seguindo a idéia de sinestesia artística, fundamentada pela fenomenologia de Mer-
leau-Ponty, considerando o sensível como anterior à função dos órgãos dos sentidos,
como aquilo nos une ao mundo, podemos todos nos considerar sinestetas e então,
apropriar-nos de toda e qualquer informação que seja útil à interpretação. Por isso,
as informações advindas deste estudo podem colaborar com novas idéias sobre a lei-
tura e o estudo de uma obra, bem como sua comunicação ao público. 127
Especialmente quando artistas pretenderam com seus trabalhos a ocorrência de ex-
periências multissensoriais, eles assim o fizeram seguindo critérios diversos, de
acordo com suas vivências e seus repertórios, fossem imagéticos ou sonoros e in-
fluenciados pelo contexto cultural e histórico. Ao verificar como o leitor/ouvinte/in-
térprete poderia vivenciar essa multissensorialidade observamos que para cada qual
existe uma experiência própria, seguindo os mesmos pressupostos.
A questão é que para os que apresentarem características neurologicamente consi-
deradas como sinestésicas estes terão experiências definidas por essa propriedade
neurocerebral. A sinestesia enquanto figura de linguagem ou tentativa de aproximação
artística, fundamentada fenomenologicamente e aproximando-se do conceito de in-
terdisciplinaridade, propicia a todos a multissensorialidade.
Na medida em que são analisados os elementos de linguagem verbal, os significados
que emergem do texto são essenciais ao intérprete para construção de sua perfor-
mance e ao realizar a leitura deste mesmo texto deve conduzir ao estabelecimento
das linhas melódicas que surgem por meio do ato criador do compositor.
E se o texto contiver, ainda, elementos de caráter pictórico tanto melhor poderá ser
esta interpretação baseada no conteúdo imagético e narrativo do mesmo, podendo o
intérprete não só comunicar esses elementos musicalmente, mas construindo cenas
e ambientes propícios em sua comunicação com o público. Desta relação com o pú-
blico poderá surgir toda a gama de possibilidades multissensoriais disponíveis aos
ouvintes, podendo desfrutá-las de acordo com suas referências e repertório imagé-
tico-sonoro. O momento da fruição artística torna-se o lugar da experiência multis-
sensorial tanto para o intérprete quanto para o ouvinte.
Os elementos de linguagem musical analisados trazem os procedimentos composi-
cionais adotados e, ainda que descritivamente, podem conduzir o intérprete a uma
atuação expressiva de acordo com as indicações de dinâmica, movimentos nas linhas
melódicas, acompanhamento pianístico, forma e centros tonais.
As intenções do compositor podem ser justificadas pela ação interdisciplinar, quando
considerada a fusão entre as linguagens artísticas (texto, imagem e música) para ob-
tenção de um novo conhecimento ou experiência, ou pela sinestesia.
Assim as experiências multissensoriais ocorrerão tanto numa abordagem artística
que se aproxima da interdisciplinaridade e na qual a sinestesia é voluntária e cons-
ciente dos elementos contidos na obra de arte, quanto na abordagem neurológica na
qual a sinestesia é involuntária e determinada por propriedades neurocerebrais liga-
das à percepção e memória, específicas para cada indivíduo que as possua.
Ao considerar as especificidades dos indivíduos no momento da apreciação, respeita-
se a multiplicidade das experiências advindas e valoriza-se o repertório imagético e
sonoro que os mesmos possuam de acordo com seus contextos e vivências, sejam ou
não desencadeados por processos sinestésicos de ordem neurológica.
Sendo assim, observa-se que qualquer que seja a justificativa e a intenção dos artistas
128 na suas produções artísticas a experiência multissensorial advinda dessas produções
é plenamente possível, baseada na interdisciplinaridade e/ou sinestesia.
O Ciclo Portinari, por sua riqueza de imagens sugeridas tanto pelo texto literário, uma
vez baseado em pinturas e desenhos do artista-escritor, quanto pela música cujo com-
positor reconheceu tal potencial imagético e deu o tratamento adequado para que se
tornasse uma verdadeira experiência multissensorial, é uma obra para ver, ouvir e
sentir.
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O processo de emissão do som na clarineta e a geração de
memória muscular: aplicabilidades no ensino e performance
Cristiano Alves
crisclarineta@yahoo.com.br 129
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo
O presente trabalho se dedica à tarefa de discutir o processo de emissão do som na
clarineta, enfocando a perspectiva da geração de memória muscular. Será exposto o
conceito de modelagem sonora — proposta original deste autor —, baseado em parâ-
metros que estabelecem vínculos com processos de retroalimentação auditiva e visual.
São freqüentes as menções de pesquisadores à idéia de que ocorre um processo de
memorização muscular quando da ação prática musical. A produção do som na clari-
neta envolve inúmeras ações físicas e musculares relacionadas a partes do corpo que
não são visualizadas diretamente, como cavidade bucal interna, língua, porção labial
em contato com a palheta, entre outras. A ação do diafragma, bem como da garganta
e de todos os elementos supracitados, são de fundamental importância no referido
processo. Entendê-los de forma abrangente pode agregar imenso valor à performance
e didática musicais.
O processo de produção do som em instrumentos de sopro e, especificamente na cla-
rineta, carece de maior aprofundamento no que tange a elaboração e difusão de es-
tudos mais concretos e abrangentes. Serão expostos paradigmas variados nesta seara,
envolvendo situações relativas ao que será tratado como “sensação muscular”. A efe-
tiva percepção desta sensação muscular envolvida na prática musical conduzirá à ge-
ração da memória físico-muscular. A musculatura facial e todo o aspecto físico em
geral (definido aqui como set-up) tendem a se tornar cada vez mais “familiares”, es-
tando disponíveis numa espécie de “banco de dados”. Estes se tornam acessíveis à
medida que são trabalhados, entendidos e automatizados por meio da prática conti-
nuada e deliberada. O trabalho de verbalização das ações que se desenvolvem es-
sencialmente de forma tácita pode engrandecer sobremaneira o entendimento acerca
da ação física presente na emissão do som, trazendo benefícios à atividade acadê-
mica.
Palavras-chave
clarineta – emissão do som – memória muscular

Introdução
Associar a prática musical (especialmente aquela empreendida com maestria) à idéia
de talento é algo enraizado no senso comum há muitos séculos. O conceito de talento
se relaciona à habilidade inata que, supostamente, nasce com o indivíduo, não po-
dendo ser adquirida ao longo da vida, sendo, portanto “uma aptidão natural para
fazer alguma coisa melhor do que a maior parte das pessoas” (Colvin 2008). Para o
grande violinista Itzhak Perlman, a existência do elemento “talento” é inquestionável,
embora admita que, apenas este não habilita pessoas a se tornarem grandes artistas,
como atesta:
“O talento musical é uma parte essencial da habilidade para se tocar um instru-
mento, mas a prática e a qualidade do professor são extremamente importantes.
130 Ter talento sem ter essas condições não adianta muito. Para alguém ser um grande
músico, é necessário ter os meios técnicos para realizar musicalmente o que se
quer dizer. Técnica não é a capacidade de tocar rápido. É a aptidão para criar co-
loridos e ter controle sobre o que se está tocando” (O Globo, 15/11/2010).
Por outro lado, Colvin (2008) afirma que “em 1992, na Inglaterra, um pequeno grupo
de pesquisadores começou a procurar talentos. Não conseguiu encontrar.” Em Sloboda
et al. (1996) verifica-se que “não há absolutamente qualquer evidência de “caminho
rápido para os muito bem-sucedidos’”.
O presente trabalho aborda aspectos que envolvem conhecimento e aprendizado, sem
que se pretenda negar ou afirmar a idéia de talento. Vygotsky (2000) enfoca a impor-
tância contida no contexto social do indivíduo exposto ao processo de aprendizado.
O contato com realidade, ambiente e outros indivíduos (com suas respectivas habili-
dades, atitudes e valores) afeta a obtenção, percepção, transformação e assimilação
de informações. Para Oliveira (1993), este cenário envolve o que se entende por apren-
dizado ou aprendizagem “e se diferencia das habilidades inatas (que já nascem com
os indivíduos, como a capacidade de mamar para se alimentar de um recém-nascido)
e dos processos de maturação do organismo, independentes da informação do am-
biente”.
Emissão do som
Entende-se emissão do som como tudo que se relaciona ao processo de geração de
um som musical, abrangendo aspectos físicos e mentais. A capacidade de expressão
musical, da mesma forma que se relaciona à consistência do discurso fraseológico e
ao bom uso da técnica, também se refere, consideravelmente, ao controle de emissão
do som. Esta abrange coloridos sonoros, dinâmicas e acentos, articulações e ataques,
bem como projeção, equilíbrio e domínio da sonoridade em todas as regiões do ins-
trumento.
O domínio sobre a emissão do som se revela um valioso patrimônio a ser conquistado
e desenvolvido, constituindo-se um importante diferencial artístico. Diversos campos
do conhecimento humano e autores têm dedicado esforços na busca por uma melhor
compreensão sobre a qualidade de estudo, raciocínio e memorização (Palmer 1989;
Palmer e Drake 1997; Galvão 2006; Figueiredo 2009; Pederiva e Tristão 2006).
É fundamental, também, promover o estímulo ao auto-desenvolvimento. O estudante
em música, muitas vezes, depende excessivamente das informações transmitidas pelo
professor. Além disso, cada mudança de rumo nesta cadeia (sejam encontros com
novos professores ou perspectivas didáticas distintas) pode conduzir o aluno a rejeitar
o aprendizado anterior e retomar — em momentos futuros distantes — níveis de pes-
quisa já alcançados. Convém somar experiências, potencializado-as, ao invés de, ime-
diatamente, promover “substituições”. Pereira (1990) atesta que:
“Enquanto alguns musicistas levam toda uma vida a analisar seus problemas téc-
nicos e a exercitar seu sistema neuromuscular, observando resultados de pesquisas
sobre seu mecanismo vocal, ou instrumental, outros não fazem o menor esforço
para adquirir uma compreensão básica de fisiologia que poderia ajudá-los a do- 131
minar, adequadamente, seus movimentos úteis na técnica instrumental. Por exem-
plo, alguns cantores adquirem seu próprio e particular domínio da respiração
diafragmática, porque estudaram profundamente a anatomia humana” (Pereira
1990, 29)
Pesquisas relacionadas ao processo de emissão do som na clarineta são, ainda, inci-
pientes, quando comparadas ao volume de publicações envolvendo outras áreas. Roe-
derer (2002) atesta tal percepção, afirmando que “o processo de formação do som
num instrumento de sopro é muito complicado e ainda não totalmente pesquisado”
e “muito ainda precisa ser feito no estudo da percepção da qualidade ou timbre dos
sons complexos”.
Objetivos
São objetivos deste estudo:
1. Discutir o processo de emissão do som na clarineta, partindo de paradigmas exis-
tentes, e propondo conceitos próprios deste autor, que englobam procedimentos
de modelagem, sensação e memorização musculares.
2. Fomentar a produção de trabalhos que envolvam pesquisas primárias referentes
à emissão do som na clarineta e em outros instrumentos musicais.

Construção da modelagem sonora e geração de memória


físico-muscular
A geração do som na clarineta
A geração do som na clarineta se dá através do mecanismo de excitação de uma fonte
primária (no caso, a palheta) por meio do ar soprado e direcionado ao interior de
uma coluna de ar (Roederer 2002). Segundo o referido autor, “esse elemento vibrante
(coluna de ar), na verdade, determina a altura musical da nota e, como feliz dividendo,
fornece harmônicos superiores necessários para conferir certa qualidade caracterís-
tica ou timbre ao som”. O que nos permite distinguir os sons de mesma altura e in-
tensidade, em instrumentos diferentes, é o que se conhece por timbre. A altura de
um som se relaciona à freqüência fundamental deste (número de oscilações por se-
gundo), enquanto o volume se refere à intensidade do som.
A qualidade sonora, importante objeto de estudo neste trabalho, se refere diretamente
ao espectro harmônico, ou seja, “à proporção em que outras freqüências superiores,
chamadas ‘harmônicos superiores’, aparecem misturadas entre si, acompanhando a
freqüência fundamental” (Roederer 2002). A forma como se misturam os sons puros
(componentes harmônicos) em determinado som complexo determina a qualidade
deste. O ser humano, por meio da experiência vivida, é preparado para perceber au-
ditivamente esta configuração de harmônicos, bem como identificar com clareza, di-
ferenças entre qualidades sonoras provenientes de músicos distintos que executam
passagens semelhantes nos mesmos instrumentos. Mesmo para um músico expe-
132 riente, seria muito complexo identificar exatamente uma altura produzida por um
meio eletrônico, quando esta se encontra desprovida de harmônicos superiores, uma
vez que “faltam ao sistema nervoso central, importantes informações adicionais, que
normalmente existem nos sons ‘reais’ com os quais ele está familiarizado” (Roederer
2002).
Conceituações e paradigmas referentes à emissão do som na clarineta
Diversos são os conceitos que envolvem o processo de emissão do som nos instru-
mentos musicais. Muitos se encontram descritos em livros, teses e trabalhos afins. A
imensa maioria destes, contudo, é trabalhado e difundido de forma oral nas classes
de música mundo afora. Qual não seria o benefício se grande parte deste conheci-
mento que circula oralmente estivesse acessível a todo instante em todos os lugares?
Peyer (1995) afirma que o instrumentista de sopro é uma espécie de cantor, mencio-
nando que ambos dependem basicamente do uso ativo do diafragma, tórax, pulmões,
garganta e musculatura facial. Todos estes elementos agem no processo de produção
do som. Para o autor, além da musculatura facial, a garganta e os lábios são impor-
tantes atores neste cenário e o termo embocadura designaria a “combinação de mús-
culos, juntamente com os dentes, língua e estrutura óssea”, envolvidos na ação da
produção do som.
O autor considera fundamental entender que a abertura da cavidade bucal e da gar-
ganta são essenciais para a boa emissão do som na clarineta, traçando paralelos com
demandas físicas verificadas no canto. No entanto, diferentemente de um cantor, que
possui seu aparelho fonador inserido em seu corpo, a clarineta apresenta a maior
parte da área de vibração fora da boca, ou seja, de seu corpo. A excessiva tensão física
e a falta de controle sobre as ações empreendidas podem prejudicar sobremaneira a
produção do som.
“Assim como no canto, a capacidade da garganta e da boca pode ‘ajudar’ o som bá-
sico produzido, nesse caso, pela vibração da palheta. Isso é realizado ao permitir
que esta ‘câmara’ permaneça o mais aberta possível sem tensão. Qualquer enrije-
cimento irá abafar as vibrações ao invés de aumentá-las e qualquer estreitamento
da ‘câmara de ressonância’ irá reduzir o volume e a riqueza do som pelo amorte-
cimento dos harmônicos vitais.” (Peyer 1995, 128)
Dessa forma, a cavidade bucal deve apresentar abertura considerável, porém sem ten-
são. A embocadura deve estar relaxada e o controle da palheta é feito através de um
leve contato dos lábios com a mesma. Peyer associa o apoio diafragmático e a abertura
da cavidade bucal ao que ele denominou “correto suporte do som”, afirmando existir
um “paralelo entre o estado das costelas enquanto se respira e o formato correto das
cavidades da boca e da garganta”.
Observa-se em Coelho (1991) que o desenvolvimento da técnica vocal e das Escolas
de canto deve muito do virtuosismo artístico atingido a personagens que dedicaram
suas vidas ao entendimento da ação física envolvida na emissão do som, como o es-
panhol Manuel Garcia Filho que, através do laringoscópio, pôde ver o funcionamento
das cordas vocais, indicando caminhos mais eficazes de produção das notas agudas,
por exemplo. 133
Processos de retroalimentação – auditiva e visual
A prática musical e a busca por aprimoramento de performance dependem fundamentalmente
da capacidade de auto-percepção sobre o resultado produzido. Possíveis ações corretivas, bem
como sedimentação de elementos bem construídos são, assim, viabilizadas. Tais ações, rela-
cionadas ao que se conhece como retroalimentação (feedback), são tão importantes quanto,
muitas vezes, negligenciadas. Pfordresher (2005, 184) expõe tal visão ao afirmar que:
“A ausência de investigação acerca do papel do feedback auditivo pode resultar de
sua importância, aparentemente óbvia, à performance musical. De que outra ma-
neira se poderia aprender música, senão através do acompanhamento de perto
do som? No entanto, algumas evidências indicam que a importância do feedback
auditivo pode estar ainda limitada”
Outros pesquisadores (Gates e Bradshaw 1974; Finney 1997; Repp 1999; Pfordresher
2003) apontam para a importância do feedback auditivo na performance musical, re-
lacionando-o ao trabalho de construção da identidade sonora.
A retroalimentação auditiva pode receber o auxílio de elementos visuais. O uso de
espectógrafos, programas computacionais e ferramentas visuais de análise espectral,
podem contribuir significativamente neste processo. Este não deve substitui o feed-
back auditivo, mas sim atuar conjuntamente. Dessa forma, o feedback visual repre-
senta uma possível forma de embasamento à interação professor-aluno, que conta
com referenciais sonoros diretos bem mais evidentes, quais sejam o próprio resultado
sonoro apresentado por tais agentes quando da atividade acadêmica.
Idealização sonora
Quando se trata de “ideal sonoro”, obviamente observa-se o aspecto particular deste
propósito. Cada indivíduo tem em mente o que considera “metas a serem alcançadas”
em termos de sonoridade. Dessa forma, tanto ouvintes quanto executantes têm, cada
qual ao seu modo, conceitos, preferências, “ideais”. Algumas questões devem ser con-
sideradas neste contexto:
1) Este “ideal” é fruto de gosto pessoal, preferências, influências, possíveis caracte-
rísticas e especificidades físicas (do indivíduo e do material utilizado), entre ou-
tras variáveis.
2) Muitas vezes, o músico adapta seu trabalho e sua “busca sonora” em função das
especificidades do material que deseja utilizar ou do material que lhe seja aces-
sível em dado momento.
3) O ideal sonoro não deve estar restrito a um padrão de sonoridade único. Assim,
como cabe a um pintor escolher que cores utilizar, cabe ao músico eleger que ma-
tizes sonoros são desejados ou convenientes em determinado cenário.
4) Muito embora a “idealização” pareça ser um elemento importante na construção
de uma identidade sonora, muitos músicos alcançam particularidades e diferen-
ciais de forma natural, sem projetarem objetivos específicos, enquanto outros
perseguem ideais claros, de forma metódica e consciente.
134 5) A personalidade artística do professor pode vir a exercer influência — pequena
ou grande; consciente ou inconsciente — sobre a busca sonora e artística do aluno.

A presente proposta de estudo tomará por base a busca de uma sonoridade que evi-
dencie densa e rica gama de harmônicos, em nível espectral. Entre os instrumentistas
de madeira é comum atribuir termos como “escuro”, “gordo”, “amplo” para sonoridade
com maior densidade de espectro harmônico. Obviamente, tais terminologias e con-
ceituações se mostram insatisfatórias enquanto definição e entendimento de para-
digma sonoro, funcionando apenas como possível elemento adicional.
O primeiro estudo publicado abordando especificamente a análise qualitativa de har-
mônicos presentes em um som complexo data de 1636, a cargo do padre e músico
francês Mersenne. Como atesta Roederer (2002), “há muitos séculos já se sabe que o
timbre de um som pode ser modificado reforçando-se certos harmônicos”.
Modelagem sonora
Modelagem sonora, tal qual será proposta e abordada no presente trabalho, vem a
ser o processo de construção e obtenção da sonoridade dita “idealizada”. Será adotado
neste estudo o termo set-up, destinado ao conjunto de ações físicas (configuração fí-
sico-muscular) verificada por ocasião da emissão de um som em determinado con-
texto dinâmico. Além de variável, é passível de entendimento e controle.
Estabelecimento de parâmetros
Alguns parâmetros irão delinear o presente trabalho, orientando a perspectiva de ob-
tenção da modelagem:
1. O início se dará pela nota mi2 , a mais grave do instrumento. Este será o ponto
de partida para toda a seqüência que será trabalhada. Quando a modelagem se
mostrar satisfatória, repetir-se-á o processo com a nota fá2, seguindo cromática
e ascendentemente até, se possível, a nota dó6.
2. Estabelecimento de uma dinâmica inicial padrão, a qual convém que seja “inter-
mediária”: algo como mezzo-piano (P) ou mezzo-forte (F ).
3. Repetições de ataques — projeção da língua ao encontro da palheta — de uma
mesma nota. Não são golpes incisivos, e sim leves e sutis “separações” da nota
(altura) proposta, visando “buscar” auditivamente a sonoridade pretendida ou
ainda “confirmar” padrões desejados e já obtidos. Estes re-ataques não necessitam,
num primeiro momento, de padronização quanto à quantidade de repetições.
Podem ocorrer, inicialmente, em número indefinido. O objetivo maior é “buscar”
ou “confirmar” a sonoridade desejada. A articulação resultante tenderá bem mais
ao tenuto do que ao staccato, face à ação branda e sutil da língua.
4. Quando já fora obtida a modelagem em toda a extensão do instrumento, convém
produzir repetições padronizadas (inicialmente 8 re-ataques para cada nota), sis-
tematizando as ações empreendidas. Os re-ataques podem depois se limitar a 4,
sendo reduzidas, em seqüência, para 3, 2 e uma emissão de cada nota, de modo
a conferir cada vez mais fluência ao estudo.
5. A alteração de set-up que ocorre por ocasião da modelagem não requer, necessa- 135
riamente, pleno entendimento neste momento inicial. Ao contrário, é interessante
a utilização da máxima “do ouvido para o set-up”. Ou seja, ao invés de variar cons-
cientemente um determinado set-up, com base na busca de um “padrão muscular
a ser conhecido em detalhes”, convém buscar auditivamente a qualidade de som
que se pretende emitir, deixando que esta alteração de set-up ocorra espontanea-
mente. Tais ações “modificadas” seriam, por conseguinte, ditadas pelo processo
de feedback auditivo e implementadas como fruto da “busca pelo som”. É válida
também a intenção de alterar conscientemente o set-up, buscando entendimento
das ações implementadas. A escolha por orientar, de forma “explícita” ou “indu-
zida”, a alteração de set-up através da construção da modelagem fica a cargo do
músico, que pode, inclusive, conduzir esta busca de diferentes formas ao longo
do estudo.
A figura 1 sintetiza os conceitos expostos, orientando o entendimento da questão.

Figura 1 – Fluxograma referente aos parâmetros apresentados.


Ações de modelagem
Para Ericsson (2006) o resultado técnico-musical alcançado por um indivíduo está
intimamente relacionado ao emprego de estratégias de estudo contidas no contexto
da prática deliberada. Santiago (2007) apresenta a terminologia empregada por Erics-
son, Krampe e Tesch-Römer (1993) em sua pesquisa sobre performance musical, de-
finindo prática deliberada como o “conjunto de atividades sistematicamente
planejadas que têm como objetivo promover a superação de dificuldades específicas
do instrumentista e de produzir melhoras efetivas em sua performance”. Verifica-se,
portanto, padrões de condutas otimizados que privilegiam a natureza racional das
ações, implicando postura intencional frente às situações de prática, onde o foco de
interesse é atingir o domínio das condições de performance (Santos e Hentschke 2009).
Alguns aspectos são de fundamental importância na construção da prática dita deli-
berada, a saber: concentração, estabelecimento de metas, constante auto-avaliação,
uso de estratégias flexíveis, visualização de planos globais e sentimento de auto-efi-
136 cácia na performance (Williamon 2004). Dessa forma, esta se distingue da prática
pura e simples por não propor a mera repetição rumo ao automatismo inconsciente.
1ª ação: “Busca por harmônicos”
A primeira ação proposta se inicia com a execução de um som da maneira mais “sim-
ples” possível, onde nada seria “buscado” ou “pensado” efetivamente. Após obtida a
sonoridade referente à nota (altura/freqüência) em questão, buscar-se-á a obtenção
de uma sonoridade que contenha um espectro harmônico cada vez mais amplo. Sol-
fejar o som estudado e tentar viabilizar — auxiliado pelo cantar — uma sonoridade
mais rica, revela-se algo valioso no presente contexto. A ação do feedback auditivo é
determinante. Não se trata de apenas repetir notas longas. A idéia do raciocínio en-
volvido no estabelecimento e utilização de estratégias de estudo se faz presente na
busca da idealização sonora.
2ª ação: “Geração de reverberação – ‘mudança de sala’ e ajuste da cavidade
bucal”
As ondas sonoras se propagam, afastando-se da fonte geradora até o ponto em que
são absorvidas ou refletidas. A acústica de um determinado espaço físico se relaciona
exatamente à forma como ocorre o exposto acima (Roederer 2002). A prática musical
ocorrida em ambiente extremamente “seco”, em geral, tende a proporcionar certa sen-
sação inicial de desconforto ao músico. Ambientes com acústica propícia à reflexão
das ondas (reverberação) costumam gerar menor sensação de desconforto, desde que
a reverberação não se apresente em nível extremamente acentuado.
Para Roederer (2002), “o local onde o instrumento musical está sendo tocado pode
ser considerado uma extensão natural do próprio instrumento, exercendo um papel
substancial na modelagem do som real que chega até o ouvinte”. Na frase de Roederer,
percebe-se o uso do termo modelagem sonora, muito embora com conotação dife-
rente da utilizada no presente trabalho. A menção feita à importância da interação
entre o músico, seu instrumento e o ambiente onde ocorre a ação musical, possibilita
perceber a força que a analogia criada em relação à busca de uma sonoridade produ-
zida em “diferentes salas” (mesmo o músico não mudando propriamente de local)
poderia conter.
O ajuste de set-up, seja de forma “explícita” (busca da alteração consciente da abertura
de cavidade bucal, entre outros “ajustes” físicos possíveis) ou “induzida” (busca es-
pecífica da sonoridade com maior reverberação — fruto de uma suposta sensação de
“mudança de sala”) pode otimizar sensivelmente o trabalho de modelagem, produ-
zindo uma caixa de ressonância efetivamente funcional, visando à geração de har-
mônicos e reverb dentro da referida cavidade.
3ª ação: “Busca pelo ‘melhor som’”
Outra ação proposta, aparentemente trivial, seria a iniciativa de procura pelo “melhor
som” que se possa obter. A idealização sonora atua fortemente e os elementos traba-
lhados em outras frentes deverão interagir efetivamente. Por mais simples e abstrato
que tal pensamento possa se revelar, este pode revelar-se importante ferramenta de 137
auxílio ao trabalho em questão. A figura 2 ilustra e interconecta as ações de modela-
gem descritas.

Figura 2 – Fluxograma ilustrativo das ações de modelagem

Sensação físico-muscular
A obtenção da modelagem pode viabilizar a percepção de que as notas possuem “jei-
tos” próprios ou set-ups individuais. As ações físico-musculares caminham rumo ao
entendimento, por meio de sensações experimentadas. Tendem ainda a se tornar
“acessíveis” à medida em que são automatizadas através do trabalho contínuo e focado.
A busca pela percepção de elementos que tomam parte ao set-up envolve a análise
de variáveis como:
• Pressão do lábio inferior e níveis de variação desta.
• Abertura da cavidade bucal e garganta.
• Pressão, velocidade e ângulo de entrada do fluxo de ar no instrumento.
• Posicionamento, relaxamento e vedação da embocadura – musculatura facial.
• Relaxamento físico geral: dedos, braços, pernas, postura, ombros, músculos.
Geração da memória físico-muscular
Aristóteles já estabelecia, em tempos idos, que, embora os animais também possuís-
sem capacidade de memorização, apenas o ser humano poderia recordar e acessar o
passado quando desejasse (Roederer, 2002). A força dos modelos mentais, extraída
de situações memorizadas, é maior do que muitos supõem. Não apenas números, le-
tras, notas musicais ou eventos vividos podem ser memorizados. Sensações e situa-
ções físicas também.
A sensação físico-muscular, relativa à tomada de consciência acerca das ações pro-
cedidas, tende a gerar, quando repetida e produzida sistematicamente, a “memori-
zação” deste contexto. É como se o corpo encontrasse “o lugar”, ou “a configuração
física” de determinado colorido sonoro (e dinâmica agregada), memorizando este ce-
nário e produzindo, paulatinamente, um “banco de dados”. Logo, torna-se possível
reproduzir (mesmo considerando interferências “externas” e falhas inerentes à ação
humana) a sonoridade idealizada, tendo por base a memorização da sensação mus-
138 cular conhecida, sendo esta conseqüência da ocorrência satisfatória da modelagem.
A tendência é obter a segurança de que aquela realidade pode ser reproduzida quando
pretendida, muito embora a emissão não seja uma ciência exata. Assim sendo, ne-
nhum estudo ou paradigma sonoro pode assegurar certeza absoluta quanto à resul-
tados. É fundamental que variantes que interfiram sobremaneira neste contexto
(qualidade e características de materiais utilizados — palheta, instrumento, boqui-
lha,… –, bem como estados extremados de tensão e insegurança quanto ao que será
executado e à performance em si), não se encontrem em níveis muito distantes do
usual.
“… a reprise de uma atividade neural específica pode ser provocada por outras
causas e indícios, além da total reativação sensorial do evento original — uma rea-
tivação parcial da atividade neural ocorrida durante o ato da armazenagem é su-
ficiente para liberar toda a configuração da atividade específica” (Roederer 2002,
232).
Paralelismo com o canto
O ato de memorizar uma conjuntura física que atua na emissão do som é objeto de
estudo em cantores há muito tempo. Coelho (1991) atesta a existência de procedi-
mentos de memorização que envolvem a consciência sobre o “posicionamento físico”
da voz. Além de mencionar a possibilidade da ocorrência de uma memorização mus-
cular — ressaltando um possível “lugar” para a voz –, refere-se também a situações
que remetem ao conceito de modelagem.
“O artista (aqui se referindo ao cantor, especificamente) trabalha sempre para aper-
feiçoar-se e não há resfriado ou rouquidão que prejudique a impostação cessado
o impedimento. A voz continua com a mesma colocação, em caso contrário é por-
que não estava devidamente no molde ideal. A memorização não só da localização
da voz nos seios da face, como também de outras atividades do artista podem ser
adquiridas pelo cultivo da memória. Nós sabemos que esta é inconsciente. Existem
outras formas de memória, como: a automática e a orgânica. Mas ao cantor solista
é necessária a memória cultivada. É tão bom recordar, que parodiando ‘Paul Ge-
raudy’ o grande escritor francês, faço minhas suas palavras: ‘chegará um dia em
que as nossas recordações serão nossa única riqueza’” (Coelho 1991, 26).
A laringoscopia sempre foi uma aliada nos estudos concernentes à produção do som
pelo aparelho fonador. Há décadas existem registros de realização de endoscopia da
faringe com utilização de fibra óptica flexível, onde se pode observar a ação das pregas
vocais, identificando, inclusive, patologias responsáveis por defeitos na emissão da
voz. Por meio de testes averiguou-se, por exemplo, “em que região das pregas vocais
se produzia os sons agudos e graves; como se realizava o ‘vibrato’, como funcionava a
laringe no ‘falsete’ . . . ou ainda . . . a participação da epiglote na emissão vocal e a in-
versão da glote na execução dos instrumentos de sopro” (Barbosa 1991).
Resultados
A importância da ação dos lábios para instrumentistas de palheta e, sobretudo do
lábio inferior para os clarinetistas, é determinante no contexto da emissão do som.
Roederer (2002) ilustra tal cenário afirmando que “também os lábios de um instru-
139
mentista de sopro de embocadura podem ser considerados como um sistema de pa-
lhetas duplas (bem maciças)”. Descontroles de pressão na ação do lábio inferior, por
exemplo, mesmo que sutis, podem comprometer sobremaneira a qualidade sonora,
bem como o resultado de afinação, ligaduras e articulações em geral, ou seja, da ação
musical como um todo. A própria ansiedade provocada pela performance pode acar-
retar uma “onda de tensão” que, propagando-se pelo corpo, traz imenso prejuízo.
Peyer (1995) aborda esta questão e afirma que “tensão desnecessária da mandíbula,
contração do pescoço e movimentos involuntários da língua devem ser evitados”.
Segue atestando a importância de combater a tensão física:
“É óbvio que com interações musculares tão complexas como as envolvidas em do-
minar todos os irregulares padrões de digitação (os quais são mais complicados
na clarineta que em qualquer outro instrumento), o mínimo de tensão permitirá
o máximo de destreza. Uma vez que todos os movimentos físicos são o resultado
de uma atividade muscular, o correto ‘balanceamento’ de tensão e relaxamento é
a chave para uma boa performance” (Peyer 1995, 129).
Freqüentemente verificam-se relatos de músicos de sopro acerca de dificuldades con-
sideráveis em produzir saltos melódicos específicos com qualidade, ou ainda, para
controlar satisfatoriamente determinadas notas e frases, sobretudo em dinâmicas ex-
tremas. A memorização de um contexto físico-muscular pode contribuir neste sentido,
de modo a “barrar” algumas das interferências prejudiciais à performance.
“quando a aprendizagem se completa, terão acontecido mudanças sinápticas ade-
quadas no circuito neural, de modo que a constelação de estímulos em apenas um
canal de entrada (o estímulo condicionado ou ‘palavra-chave’) será suficiente para
gerar todo o padrão de atividade neural específica do evento original completo.
Em outras palavras, o aprendizado não é representado pela armazenagem de in-
formações ou imagens por si, mas por modificações apropriadas da rede de pro-
cessamento de informação, e a memória surge nesse esquema como a
armazenagem de instruções sobre o processamento de informações. Eis por que
o cérebro é chamado de sistema “auto-regulador’” (Roederer 2002, 233).
Segundo Peyer (1995), “tensão, é claro, existe particularmente nos músculos faciais
que estão em contato com a boquilha e palheta, mas é importante que esta seja con-
trolada e que o balanço correto entre tensão e relaxamento seja mantido”.
Emissão Balanceada – três parâmetros referenciais
O trabalho de verbalização de ações que se realizam tacitamente, pode engrandecer
sobremaneira a domínio de emissão do som, trazendo benefícios à performance e à
atividade acadêmica. A construção do entendimento sobre como cada nota pode ser
“moldada” na clarineta, bem como o desenvolvimento da consciência acerca da indi-
vidualidade de cada set-up (expressa na modelagem), paradoxalmente, tende a con-
duzir a padrões mais uniformes de ação física.
Mesmo considerando que inúmeros elementos físicos tomam parte à emissão do som
na clarineta — cada qual com sua relativa importância — é possível destacar três pa-
râmetros referenciais efetivamente contemplados na presente proposta: o controle da
140 pressão do lábio inferior; a abertura da cavidade bucal; e a pressão do fluxo de ar.
O lábio inferior necessita de “liberdade” para atuar relaxadamente. Muitos pensa-
mentos acerca do “relevo melódico” da frase (sobretudo quando muitos saltos de
fazem presentes) geram temor e insegurança de emissão. Situações gerais de estresse
podem “aprisionar” o status de tensão presente. Através da modelagem, o relaxamento
pode ser obtido, memorizado e “disponibilizado para uso freqüente”.
O presente estudo não se ateve à verificação de medidas numéricas específicas en-
quanto pressão neste ponto (contato do lábio inferior com a palheta), mas sim à per-
cepção de sensações experimentadas. Mesmo observadas possíveis especificidades
de set-ups, convém, nesta fase do estudo proposto, entender e valorizar a manutenção
de um bom nível referencial de relaxamento labial. Trata-se de elemento determinante
para a obtenção de uma emissão balanceada e equilibrada, fugindo de oscilações
acentuadas e indesejadas nos níveis de pressão labial.
A abertura da cavidade bucal — igualmente “dispensada” de medidas de área — é de-
terminante no contexto da geração de harmônicos no som. A obtenção da modelagem
pode contribuir no bom funcionamento desta caixa interna de ressonância. O enten-
dimento desta função, por meio da ação prática, conduz à memorização física. A gar-
ganta tende a ser, nesse contexto, será uma “fiel beneficiaria” de tal ação. A tensão
contribui para o estrangulamento das áreas mencionadas, que pode ser evitado e/ou
controlado por meio da ativação de planos de memória.
O controle sobre o fluxo de ar é um elemento essencial no domínio da emissão, seja
pelo emprego de um adequado nível de pressão e velocidade, como pela tomada de
consciência sobre o mesmo. O “apoio diafragmático” é matéria vastamente conhecida
na literatura sobre os instrumentos de sopro e canto. Convém ao clarinetista trabalhar
este elemento de forma contínua, consciente e deliberada. Quando este suporte se
mostra inadequado, a emissão se apresenta consideravelmente comprometida. A mo-
delagem tal qual proposta, deve contemplar tal questão, incorporando-a ao escopo
de elementos passíveis de memorização, inserindo-a no contexto do entendimento
sobre a ação físico-muscular.
A Figura 3 apresenta um esquema ilustrativo acerca de todo o processo, sintetizando
o sistema proposto.
141

Figura 3 – Fluxograma ilustrativo da proposta de modelagem e conseqüente geração de


memória físico-muscular

Modelagem na frase musical


A busca pela obtenção — no contexto de uma frase musical — de níveis satisfatórios
nos parâmetros mencionados anteriormente, requer o estabelecimento de “pontos
de modelagem” cuidadosamente escolhidos na frase, como forma de estabelecimento
de uma linha de redução. Para os pontos escolhidos serão dirigidos objetivos especí-
ficos de modelagem, pensamento e ação. Buscar-se-ão pontos “em elevação”, ou seja,
notas situadas em pontos mais agudos na frase (muitas vezes “a” nota mais aguda).
As frases originadas de tais divisões não guardam relações morfológicas específicas,
nem sugerem efetivamente fraseados musicais. São escolhas “técnicas”, justificadas
por bases contidas nesta proposta de paradigma. O conceito presente na “Emissão
por Elevação” — a ser abordada efetivamente em estudos subseqüentes — contempla
elementos designados “preparação” (quando se antecipa a sensação muscular) e “sus-
tentação” (quando se prolonga a referida sensação) da nota modelada. A emissão do
som, tão complexa quanto importante, é e sempre será tema de intensas reflexões e
proposições, dando suporte à performance e contribuindo à perpetuação da magia
contida na pluralidade das manifestações musicais.
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Para medir a sincronização de dois cantores:
o caso da bossa-nova
Cássio Santos
cassioa.santos@usp.br 143
Beatriz R. de Medeiros
biarm@usp.br
Antônio Pessotti
antoniopessotti@yahoo.com.br
Universidade de São Paulo

Resumo:
A idéia de sincronização é introduzida, bem como sua relação com o ritmo da fala. O
experimento realizado propõe verificar como estão sincronizados (ou não) alguns
pontos da canção produzida por dois sujeitos simultaneamente. Expõe-se, então, o
método utilizado para a medida de lags — ou diferenças possíveis entre dois ataques
simultâneos do canto — que consiste no DTW, algoritmo que mede similaridade entre
duas seqüências que variam no tempo. Os resultados indicam que, independente-
mente de os pontos iniciais e finais da frase corresponderem ao contra-tempo, a sin-
cronização é melhor realizada nos pontos finais.

Introdução
A proposta deste trabalho é descrever o método usado em nossa pesquisa para medir
tempos de latência entre dois cantos simultâneos que se sincronizam. Trata-se do
Dynamic Time Warping (de agora em diante, DTW) que significa literalmente o “ar-
poamento” (pegar com arpão) dinâmico do tempo, ou simplesmente Alinhamento
Temporal Dinâmico. A utilização do DTW já se mostrou eficaz em trabalhos sobre a
sincronização da fala falada (Cummins 2003) e em outros (Medeiros et al. 2008; Pes-
sotti 2010 e em andamento). Assim a finalidade deste trabalho é tornar a descrição
deste método acessível a um maior número de pessoas, notadamente aquelas inte-
ressadas em fazer medidas da fala cantada em pesquisa voltada para aspectos cogni-
tivos do canto.
A hipótese deste trabalho que foca o método, mais do que os resultados finais, é de
que a não-sincronização será tanto maior na execução da canção quanto mais pró-
ximo de uma síncopa ou efeito de síncopa na partitura (ou seja a realização musical
do ritmo) estiver o ponto da frase a ser entoada (inicial / final).
Sincronização e ritmo da fala
A idéia de sincronia neste trabalho pressupõe uma interação, ou mais precisamente
um entrainment entre duas — pelo menos duas — tarefas de movimento, cada uma,
originária de um sistema diferente. O exemplo clássico é o de dois pêndulos que sin-
cronizam seus movimentos se tiverem uma espécie de acoplamento entre eles (pode
ser um elástico).
No caso específico de nossa investigação, os dois sistemas em questão são dois can-
tores cuja tarefa é cantarem em fase (uníssono) a mesma canção. O ritmo de canção
144 escolhido foi o sincopado e assim elegeu-se uma bossa-nova (Corcovado de Tom
Jobim) para constituir o corpus deste trabalho. O ritmo melódico da bossa-nova ofe-
rece desestabilização do ritmo básico, conforme pudemos verificar em um estudo pi-
loto comparando a sincronização obtida no canto cujo ritmo era sincopado à
sincronização no canto não sincopado (Santos e Medeiros 2010). A bossa-nova parece
não facilitar totalmente a sincronização, embora a condição canto possa agir como
facilitadora. Explicamos: o fato de a tarefa ser a produção do canto faz com que o
ritmo musical facilite a sincronização (ver Cummins 2003). No entanto, o ritmo sin-
copado da bossa-nova pode agir como desviante e por isso é proposto aqui como uma
condição diferenciada em tentativa de sincronização de tarefas envolvendo ritmo.
Para facilitar a referência aos componentes da tarefa de sincronização aqui tratada,
propomos, a partir de agora, o uso de alguns termos importantes, que buscamos cla-
rificar no parágrafo abaixo:
Fala cantada é como designamos o canto com texto, portanto, todo cantor entoando
uma canção com letra, está produzindo fala cantada. Cantores executando uma can-
ção simultaneamente, em dupla, são aqui designados sujeitos realizando a tarefa de
sincronização da fala cantada. Cada fala cantada de cada um dos sujeitos pode ser
considerada — e assim chamada — um oscilador. O pulso fundamental ou ritmo bá-
sico da canção pode ser também um oscilador. Assim, também, o ritmo melódico é
também um oscilador. Oscilador é qualquer sistema com movimento de oscilação re-
petitivo ou harmônico. Podemos entender a fala, com a devida parcimônia, como um
oscilador. Na música, tais oscilações como estruturantes do ritmo musical, são muito
mais óbvias do que na fala.
O ritmo da fala é variável e depende da extensão do enunciado. No caso da fala can-
tada, o ritmo da fala se mantém, mas por vezes há a predominância da batida musical
em relação ao acento lexical, e aí ocorrem os deslocamentos da sílaba tônica. Este,
porém, é um detalhe a ser analisado a posteriori, uma vez que este estudo visa analisar
a sincronia entre duas falas cantadas, com fins de saber a influência de um ritmo mu-
sical sobre a sincronia de um tipo de fala, a cantada. Assim, baseamo-nos em Cum-
mins (2003) que revelou a sincronização de fala, sem necessidade de longo período
de prática (dois falantes lendo um texto juntos), como forte indício de um ritmo in-
variável subjacente, embora tal invariabilidade seja difícil encontrar no sinal acústico.
Neste sentido, já esperávamos que a sincronização no canto fosse tarefa fácil, e até
mais fácil do que a sincronia da fala falada. No entanto, introduzimos uma condição
diferente das condições propostas por Cummins (2003), a saber, obviamente a fala
cantada — uma vez que ele só trabalha com a fala falada — e a canção com ritmo sin-
copado, a bossa-nova.
O experimento: sincronização no canto
1. Sujeitos e coleta de dados
Dois cantores profissionais (um homem, HC, e uma mulher, LS), com cerca de 20 anos
de idade, com estudo formal em canto popular e com experiência em cantar bossa- 145
nova, participaram das gravações. Utilizamos apenas uma repetição do canto de Cor-
covado, composta por Tom Jobim, já que nossa intenção é, antes de obter resultados
estatísticos, apresentar o método de rotulagem do DTW. As gravações foram realizadas
em sala insonorizada e os dados de cada cantor coletados em canais separados (direito
e esquerdo), utilizando o software Soundforge. Os microfones utilizados foram Shure
SM58. Os cantores estavam dispostos a cerca de dois metros de distância um do outro
e tinham contato visual entre si. De posse de da letra da canção, receberam a instrução
de cantar em sincronia. Deu-se início às gravações quando os cantores se disseram
preparados, após cantarem algumas vezes para se familiarizarem com a tarefa.
2. Segmentação e rotulagem
Segmentamos a canção em um total de 12 sentenças, iniciadas a partir de pausas mu-
sicais, com base na partitura (Chediak 1990) e na letra (ver abaixo o texto da canção).
Em um único caso a sentença inicia depois de uma nota de 4 tempos (sentença 11).
Krumhansl (2006) afirma que o prolongamento de um som pode funcionar de forma
semelhante a uma pausa. Não tomamos todos os prolongamentos como critério para
segmentação, pois nosso primeiro critério relacionou-se à letra, e não à estrutura mu-
sical. Definidos, assim, os pontos iniciais e finais das sentenças.
Selecionamos também pontos no meio das sentenças, a fim de observar a diferença
da sincronização entre os pontos finais e justamente esses pontos mediais. Cummins
(2003) observou que as assincronias são maiores em pontos iniciais de uma sentença
em comparação com pontos mediais e finais na fala falada. Pautamo-nos em critérios
fonético-acústicos para definir esses pontos mediais nas sentenças, e elegemos onsets
de fricativas e oclusivas que são de fácil identificação no sinal. Na sentença 12, no en-
tanto, colocamos o ponto medial no início da palavra amor, já que essa sentença não
tinha nenhuma palavra iniciada por oclusiva ou fricativa.
Essa segmentação foi feita usando-se a ferramenta TextGrid, do software Praat, que
nos permite rotular o sinal acústico estabelecendo nele pontos específicos (bounda-
ries). Uma primeira rotulagem feita manualmente é usada pelo DTW para segmentar
automaticamente os outros sinais, sendo necessário, após essa segmentação, apenas
pequenos ajustes manuais de posicionamento de algumas boundaries. As sentenças
são as apresentadas abaixo. As barras indicam os pontos inicial e final da segmentação
(apenas as sentenças 6 e 8 tem pontos mediais). As letras entre parênteses indicam
fricativa ou oclusiva:
1. |Um cantinho e um |violão (f)
2. |Este amor, uma |canção (o)
3. |Pra fazer feliz a |quem se ama (o)
4. |Muita calma pra |pensar (o)
5. |E ter tempo pra |sonhar (f)
6. |Da janela vê-se o |Corcovado o Redentor |que lindo (o,o)
7. |Quero a vida |sempre assim (f)
146 8. |Com você perto |de mim até o apagar da velha |chama (o,f)
9. |E eu que era |triste (o)
10. |Descrente |deste mundo (n)
11. |Ao encontrar você eu |conheci (o)
12. |O que é felicidade meu |amor (v)
3. Medidas
Sobrepusemos os rótulos do sinal de HC ao de LS e medimos a duração das lags, ou
seja, da diferença de posição entre cada fronteira inicial e entre cada fronteira medial.
Em outras palavras, buscamos verificar o quanto havia de sincronia entre os pontos
definidos nas sentenças. A figura abaixo traz uma dessas diferenças:

Figura 1 – Lag (faixa vertical) entre o onset da parte inicial da sentença 2. Note-se que a
rotulagem inferior corresponde ao canal superior. Nesse caso a lag mede 94 ms.

4. Sobre o Dynamic Time Warping


Trata-se de uma técnica de reconhecimento de padrão cujo algoritmo permite buscar
a correspondência entre dois sinais ainda que tenham os mesmos fenômenos não-
alinhados no tempo. A base deste algoritmo é considerar que cada frame do sinal
teste ( o sinal fornecido como input ao DTW) pode corresponder à qualquer frame
do sinal de referência (por exemplo, a primeira frase segmentada à mão). A partir
disto é possível calcular a distância/diferença entre os dois sinais, através de uma ma-
triz e ir em busca dos componentes desta matriz que sejam iguais a zero (para detalhes
ver Coleman 2005). No caso deste estudo, o programa de análise acústica da fala uti-
lizado, o Praat, fornece a ferramenta DTW e uma ajuda para sua utilização, a qual se
efetiva a partir da “rodagem” de um script contendo todos os passos necessários para
o alinhamento dos dois sinais-alvo e seus arquivos com rótulos (Textgrids). O script,
escrito em um arquivo txt, é feito a partir do “Praat Objects”, clicando-se em “Praat”
e em seguida em “New Praat script”. Maiores detalhes poderão ser fornecidos a pos-
teriori, por razão de espaço.
5. Resultados
A tabela abaixo mostra os resultados dos dados brutos relativos a apenas uma repe-
tição do canto, conforme explicitado anteriormente. Podemos verificar que, salvo na 147
sentença 3 e outros dois casos a se discutir, a maioria dos pontos iniciais da sentença
apresenta lags maiores (durações em milissegundos) que os lags do ponto final ou
medial. Ou seja, a defasagem entre o ataque da sílaba cantada é maior quanto se en-
contra no início da sentença. Temos, aí, então, menor sincronização dos cantores.
Além de serem pontos iniciais, e mais propensos à assincronia, esses pontos corres-
pondem a uma batida de contra-tempo na partitura, fruto de uma tercina. Neste caso,
a nossa hipótese inicial se confirma. No entanto, assumimos que não ancoramos os
pontos mediais e finais, necessariamente nas sílabas que carregavam a batida no pulso

Tabela 1 – Coluna 1: Número das sentenças e palavra que corresponde ao ponto


escolhido para se medir o lag; Coluna 2: Localização do ponto escolhido na sentença
para medida do lag. Coluna 3: A duração do lag encontrado, valor em milissegundos.
Coluna 4 : Relação da sílaba (primeira sílaba da palavra da Col. 1) com o pulso
fundamental da canção (4⁄4). Coluna 5: Indica se a hipótese foi ou não verificada.

1.Sentença/Palavra 2.Ponto 3.Lag em ms 4.Batida 5.Hipótese


1/um inicial 99 Ct ter sim
1/violão final 35 T
2/esse inicial 94 Ct ter sim
2/canção final 33 Ct sem
3/pra inicial 26 Ct ter não
3/quem final 68 Ct sem
4/muita inicial 142 Ct ter sim
4/pensar final 25 Ct sem
5/e inicial 1000 (sic) Ct ter sim
5/sonhar final 59 Ct sem
6/da inicial 114 ct sim
6/corcovado medial 40 ct
6/que final 69 ct
7/quero inical 29 ct em termos
7/sempre final 39 T
8/com inicial 125 Ct ter em termos
8/de medial 160 Ct sem
8/chama final 60 Ct scol
9/e inicial 144 Ct scol sim
9/triste final 26 T
10/descrente inicial 114 Ct scol sim
10/deste final 63 T
11/ao inicial 10 Ct scol não
11/conheci final 16 Ct ter
12/o inicial 119 Ct scol sim
12/amor final 60 Ct scol
do compasso, por obedecermos ao critério fonético. Ao mesmo tempo, poucas sílabas
da canção coincidem com um dos quatro pulsos do compasso musical. É o caso de
“ti” (cantinho), “mor” (amor), “zer” (fazer), entre outras, mas que por sua vez, como
são semínimas pontuadas, carregam uma síncopa até o fim do compasso. O resto do
148 texto da canção tem suas notas em contratempo, o que faz com que tenhamos prati-
camente todas as notas da canção soando sincopadamente.
Assim, concluímos que, na comparação feita, há não-sincronia no ponto inicial da
sentença lingüística-musical. Valores dos lags próximos a 100, 120 e 140 milissegun-
dos ilustram bem esta não -sincronia. Por outro lado, valores entre 30 a 40 milisse-
gundos (valores semelhantes aos de lags da fala falada) podem ser considerados como
indicativos de sincronização desta fala cantada, o que nos leva a pensar nos pontos
finais como bastante bem sincronizados, mesmo que apresentem-se correspondentes
a batidas de contra-tempo.
Em suma, o valor médio das lags iniciais é de 169 ms, ao passo que nas lags finais, o
valor médio encontrado é de 54 ms. Então podemos afirmar que as sílabas em con-
tratempo, que é o mais recorrente na canção, obedecem mais a uma sincronização
quando em posição medial ou final, ficando as sílabas iniciais da frase sujeitas à não-
sincronização.
No tocante à sentença 7, ponderamos que embora o lag do ponto final seja mais longo
do que o lag inicial (ver tabela), a sílaba “sem” é uma batida em fase com a pulsação
básica da canção, coincidindo com a primeira batida do compasso. O fato da batida
lingüística (a da sílaba) coincidir com o tempo forte do compasso parece ser forte
candidato à sincronia. Quanto ao valor de 160 ms do lag medial da sentença 8, cor-
respondente a sílaba “de”, deve ter havido hesitação de um dos cantores, causando
uma espécie de “erro” na sincronização pretendida. No entanto, casos assim merece-
rão maior atenção de nossa parte ao darmos seqüência ao estudo.
Direções futuras
O DTW propiciou maior automatização para obtenção das medidas desejadas, por
isto seguirá sendo utilizado em nossa pesquisa. O próximo passo é rodar o DTW nas
outras duas repetições da canção e obter valores médios dos lags que sejam passíveis
de sofrer uma análise estatística. A nossa hipótese carece de algum refinamento, dado
que a bossa-nova apresenta desafios interessantes em termos de alocação das batidas
em contra-tempo, em número maior do que esperávamos. Assumimos, assim, que
uma análise rítmica da canção, mais rigorosa que a realizada deve ser feita.
Referências
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Coleman, J. Introducing speech and language processing (Cambridge: Cambridge University
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31, nº 2 (2003), 139-148.
Krumhansl, C. L. Ritmo e altura na cognição musical. In: Ilari, B. S. (org.) Em busca da mente
musical: ensaios sobre os processos cognitivos em música – da percepção a produção (Curi-
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Pessotti, A. C. S. Procedimento semi-automático de segmentação fonética via Algoritmo de Ali-
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Pessotti , A. “Semelhanças e diferenças na produção falada e cantada.” Tese de doutorado em
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Santos, C. e Medeiros, B. “Interações entre ritmo linguístico e ritmo musical na canção” in
Anais do VI SIMCAM, Simpósio de Cognição e Artes Musicais. Rio de Janeiro, 2010.

Música Sistêmica: Intersecções entre processos criativos,


concepção estética e composição musical
Felipe Kirst Adami
felipekadami@gmail.com
Departamento de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo
Este trabalho analisa, em uma abordagem sistêmica, três elementos, ou sistemas
distintos, mas profundamente relacionados à composição musical: o processo criativo,
uma concepção estética baseada nos ciclos vitais e uma obra específica, a Sinfonia
Sistêmica, criada dentro desta concepção. O processo criativo é visto aqui como um
processo dinâmico, que, mesmo apresentando elementos em comum entre dife-
rentes compositores ou diferentes fases de um mesmo compositor, como na visão
da Teoria dos Estágios e na Gestalt
, possui também elementos individuais e que se modificam ao longo do tempo, pelo
processo de memória e aprendizagem. O ponto de vista defendido aqui leva em con-
sideração não só estudos da área da psicologia, mas também da área da psicologia
da arte e da música, bem como da composição musical em si. O processo criativo da
composição possui diversos componentes, sendo a concepção estética um dos mais
importantes, pois cria elementos unificadores no conjunto de obras do compositor.
Da mesma forma, a Concepção Estética, como um elemento pessoal do processo cria-
tivo, pode transformar a forma de ação do compositor. A Concepção Estética dos Ciclos
Vitais, apresentada aqui, propõe uma analogia entre as etapas dos ciclos e o desen-
volvimento musical de uma obra, e inclui elementos do pensamento sistêmico e com-
plexo através de referenciais teóricos de Fritjof Capra e Edgar Morin e elementos da
física e da biologia contemporâneas principalmente através de referenciais de Matu-
rana e Varela e de Ilya Prigogine. A análise da Sinfonia Sistêmica
serve para demonstrar como o processo criativo e a concepção estética ocorrem na
prática, e quais os elementos da obra são identificados como reflexo de componentes
150
desses dois sistemas, mas também como a obra atua como um sistema que interage
com eles e igualmente os transforma.
Palavras-chave:
processo criativo – composição musical – concepção estética – ciclos vitais –
pensamento sistêmico

Introdução
Quando se fala a respeito de composição musical, pode-se pensar num primeiro mo-
mento em um sistema formado por três elementos principais: a obra musical, o com-
positor e o processo criativo. O processo criativo pode ser visto como um elo entre o
compositor e sua obra – é o caminho percorrido desde o momento em que resolve
compor até a concretização de uma obra ou conjunto de obras. Existe ainda mais um
elemento no sistema, o qual age como um fio condutor no processo criativo, mol-
dando o seu produto final: a concepção estética. A concepção estética consiste nos
elementos musicais e extramusicais que informam a criação do compositor, agindo
como elementos cognitivos dentro de seu processo criativo, conscientes ou não, e di-
recionando o compositor em sua produção musical – a concepção estética constitui
a própria forma de ação do compositor na composição musical. Este artigo está cen-
trado, portanto, em uma reflexão sobre os principais elementos envolvidos no pro-
cesso criativo da composição musical e sobre uma concepção estética particular, a
qual se intitulou Concepção Estética dos Ciclos Vitais, bem como na verificação destes
elementos a partir da análise de uma obra musical desenvolvida com esta concepção,
a Sinfonia Sistêmica.
O Processo Criativo da Composição Musical
O processo criativo da composição musical consiste em uma complexa rede de ele-
mentos, envolvendo aspectos técnicos musicais e aspectos psicológicos, neurológicos
e sociais. Enquanto algumas teorias aceitas da área da psicologia analisam o processo
criativo identificando estruturas fixas de ações ou procedimentos padronizados, como
a Teoria dos Estágios (Wallas 1926) ou a teoria da Gestalt, muitos compositores ten-
dem a considerar aspectos mais pessoais do processo, embora freqüentemente tam-
bém busquem uma forma de sistematização.
A Teoria dos Estágios divide o processo criativo em quatro etapas: preparação — na
qual se investiga o problema de diferentes maneiras; incubação — quando o problema
está lançado, mas permanece sem solução; a iluminação — em que a solução do pro-
blema foi resolvida pelo inconsciente, aflorando para o consciente; e verificação —
em que o indivíduo dá forma ao produto de sua iluminação. Um ponto importante a
ser ressaltado é a participação do inconsciente neste processo, não só na fase de in-
cubação, mas também na fase de verificação, quando o produto gerado será verificado
a partir dos “cânones estéticos”, podendo ser rechaçado ou admitido e, no segundo
caso, colocado em prática (Villar 1974, 282). Alguns compositores também falam em
estágios, como Koellreutter (1985), que apresenta um fluxograma do processo com- 151
posicional em diferentes etapas (fig. 1).

Figura 1 — O processo criativo conforme Koellreutter (1985).


Para Reynolds (2002), existem também um processo por estágios, embora afirme que
não necessariamente isso ocorre com todos os compositores. O primeiro estágio seria
o reconhecimento de uma intenção expressiva a ser utilizada na peça, a qual leva a
três importantes questões: qual formato global se apropria à obra; quais os materiais
adequados; e quais os processo de elaboração serão melhores para trabalhar com os
materiais em direção à forma em larga escala. A forma global da composição seria,
ao mesmo tempo, o ponto de partida e de chegada, pois o compositor entende que,
antes de começar a manusear os materiais, deve ter uma boa idéia do desenho formal
para o qual a obra deve evoluir.
As concepções de Reynolds podem ser relacionadas à visão do processo criativo da
Gestalt, na qual
a criatividade é vista como a procura de uma solução para uma gestalt, ou forma
incompleta. O indivíduo criativo perceberia o problema como um todo, as forças
e tensões dentro da dinâmica do problema, e tentaria achar a solução mais elegante
para restaurar a harmonia do todo (Wechsler 1998, 29).
O processo criativo viria então de um impulso inato para obter uma gestalt completa.
A solução do problema vem com um insight (Wechsler 1998, 29-30), semelhante à
etapa da iluminação da Teoria dos Estágios.
Segundo Arnheim, pesquisador que relaciona a criação artística à Gestalt a intuição
152 seria a responsável pela seleção de aspectos importantes do todo, de acordo com ob-
jetivos individuais, ou “forças determinantes, cognitivas tanto como motivacionais”
(Arnheim 1989, 18), e por sua reestruturação de acordo com a necessidade. Diferente
da intuição, o intelecto preenche a função da classificação de elementos, agrupando
as variações “sob uma denominação comum”, e permite “aplicar ao presente o que
aprendemos antes”, isolando os elementos importantes do todo e permitindo a sua
persistência através das mudanças do ambiente (Arnheim 1989, 18-19). Na compo-
sição musical, é muito importante este processo de subdivisão, pois torna possível
colocar em prática uma idéia obtida intuitivamente gerando o suporte físico (como
a partitura).
Conforme Ligeti
O processo composicional tem sido absorvido na música como concebido direta-
mente através dos sentidos, e o estado bruto [de uma composição] já contém tra-
ços do método de trabalho. […] Quando o próprio compositor modifica o contexto
musical de toda uma era, a obra na qual esta modificação ocorreu exerce uma in-
fluência sobre suas idéias posteriores […]. A concepção primária de novas peças
contém a marca dos processos de trabalho utilizados no desenvolvimento de peças
anteriores. A consequência disto é um efeito de realimentação: o estado bruto é
pré-moldado por experiências ganhas durante a composição e é, portanto, já não
completamente ‘bruto’ (1983, 126).
A afirmação de Ligeti também chama a atenção para um elemento cognitivo impor-
tante: quanto mais marcante é para o compositor um elemento de sua música, mais
ele fica marcado em sua ontologia criativa, e terá maior permanência dentro de seus
processos composicionais.
Manzolli tem uma visão semelhante afirmando que a composição “sofre influências
ambientais, que fazem com que cada processo criativo seja único”, mas está interligada
ao desenvolvimento histórico do compositor, já que “entre o domínio sonoro e a es-
tratégia de escolha encontram-se os métodos de estruturação musical e este conhe-
cimento faz parte da bagagem teórica e/ou prática do compositor” (Manzolli 1997,
2).
O conceito de “deriva estrutural”, desenvolvido por Maturana e Varela em sua Teoria
da Autopoiese1 (1997 e 2001) pode ser utilizado analogamente à evolução do processo
criativo da composição musical. No acoplamento estrutural — a relação de um sis-
tema e seu meio — as transformações do sistema ocorrem “de um modo que é deter-
minado a cada momento por sua estrutura”, que por sua vez resulta “de sua história
evolutiva e ontogênica de mudanças estruturais congruentes” com o meio (Maturana

1 Termo que se refere a um padrão de rede em que cada componente participa da produção
ou transformação dos outros componentes da rede.
2001, 185-186). Portanto, ocorrem “seguindo uma dinâmica interna do organismo”,
mas “são contingentes” com as mudanças do meio, que apenas as desencadeiam (Ma-
turana 2001, 82). A história evolutiva do processo criativo do compositor segue, por-
tanto, um caminho de mudanças influenciadas pelas transformações do meio, sempre
a partir de uma bagagem adquirida, mas igualmente transforma o meio no qual está 153
inserindo por sua interação, principalmente a partir da difusão de sua obra. A baga-
gem adquirida pelo compositor ao longo de sua deriva estrutural são os elementos
práticos e teóricos da música, bem como elementos ideológicos, que juntos formarão
sua concepção estética, e se refletirão em suas obras.

A Concepção Estética dos Ciclos Vitais


A Concepção Estética dos Ciclos Vitais (CECV) apresentada aqui se insere no processo
criativo como direcionadora da estrutura musical e do próprio processo criativo. Em-
bora a versão atual dessa concepção estética tenha se tornado em grande parte cons-
ciente, sua ação ocorreu muitas vezes de forma inconsciente, pois nem todos os
elementos que a constituem tinham sido identificados no momento em que uma obra
estava sendo composta. Muitos dos elementos constituintes da concepção foram jus-
tamente alcançados durante e através da composição das obras, o que indica que as
composições são alimentadas pela concepção estética, mas também a alimentam.
Um elemento básico da CECV é a idéia de crescimento da estrutura musical analoga-
mente aos ciclos vitais de nascimento, desenvolvimento, morte e renascimento em
um novo ciclo. O nascimento e desenvolvimento podem ter correspondência musical
através de diferentes procedimentos, sendo os mais comuns a construção gradual de
materiais musicais, o agrupamento ou aproximação gradual de materiais até criar
uma unidade sonora, o adensamento dos parâmetros e da textura e o direcionamento
de estruturas fragmentarias a estruturas unificadas. A estrutura evolui para um auge,
a partir do qual retrocede, utilizando recursos como a fragmentação dos materiais e
a rarefação dos parâmetros sonoros, representando um declínio em direção à etapa
da morte ou indicando a necessidade de uma reestruturação do sistema para que ele
se mantenha ativo.
A CECV é mais ampla do que a simples representação musical deste ciclo, incluindo
diversos elementos relacionados e utilizados em analogia, que constituem suas deri-
vadas, fruto de um entendimento sistêmico do mundo com analogia a diversos ele-
mentos extramusicais que será sintetizado aqui.
Os ciclos vitais aqui propostos se referem não apenas ao ciclo de um ser vivo, mas
também a outros ciclos da natureza, envolvendo desenvolvimento em diferentes níveis.
Segundo Capra (2000, 260):
Todo e qualquer organismo [. . .] é uma totalidade integrada e, portanto, um sis-
tema vivo. [. . .]. Mas os sistemas não estão limitados a organismos individuais e
suas partes. Os mesmos aspectos de totalidade são exibidos em sistemas sociais
[…] e por ecossistemas que consistem numa variedade de organismos e matéria
inanimada em interação mútua.
Essa organização em diferentes níveis, no entanto, possui dualidades, e a ordem mui-
tas vezes é cercada pelo caos. Morin descreve como ocorre esta relação entre ordem
e desordem:
154 […] toda eco-organização nasce de ações ‘egoístas’, de interações ‘míopes’, de in-
tercomunicações banhadas e por vezes mergulhadas no vago, no ruído, no erro,
em nichos ou meios sem clausuras nem barreiras […] É por meio desse fervilhar
cego, míope, egocêntrico, em meio a desordens, destruições, proliferações indes-
critíveis, que um Universo — Umwelt — organiza-se.
É maravilhoso que essa organização […] não seja reduzida à sua mais simples ex-
pressão, mas ao contrário, voltada à sua expressão mais completa; que seja com-
plexa precisamente porque nela a unidade e a diversidade extrema, a solidariedade
e o antagonismo extremo, não apenas coexistem, mas estão ligados pela necessidade.
(Morin 2005, 37)
Nas pesquisas recentes da física e da química, essa aparente desordem é um elemento
essencial para o surgimento e desenvolvimento da vida. Segundo Prigogine, “A vida
só é possível num universo longe do equilíbrio” (1996, p.30). Essa é uma regra fun-
damental de sua teoria das estruturas dissipativas, em que uma estrutura se forma e
é mantida por um fluxo de matéria e energia que passa por ela e se dissipa. Conforme
esse fluxo aumenta a estrutura pode chegar a um ponto de tensão que leva a uma
transformação a um nível de complexidade maior, chamado por ele de ponto de bi-
furcação. Estas estruturas são características dos seres vivos e Capra (2003) a associa
à à teoria da autopoiese, de Maturana e Varela. Autopoiese, incluindo a idéia de deriva
estrutural.
Na matemática do século XX, o estudo da aparente desordem existente em alguns fe-
nômenos da natureza resultou no que é conhecido como “teoria do caos”. A teoria do
caos se relaciona amplamente com a geometria fractal, desenvolvida simultaneamente
a ela por Mandelbrot (Capra 2003). Os fractais são figuras geométricas diferentes das
estudadas na geometria tradicional, por não apresentarem a mesma regularidade. Na
natureza existem diferentes tipos de simetria como a de rotação e a de reflexão, mas
também outros tipos de regularidade sendo uma das mais comuns a proporção áurea
que divide o todo na proporção 0,618 para 0,382 (a diferença da menor parte para a
maior é igual a diferença da maior para o todo). Os fractais apresentam um outro
tipo de coerência: a repetição de padrões característicos em diferentes níveis estru-
turais, sem que eles sejam necessariamente idênticos ou apresentem uma relação de
proporções fixas.
Assim como na seção sobre o processo criativo a concepção estética foi considerada
um elemento essencial, o processo criativo passa também aqui a fazer parte da CECV,
já que consiste no meio de interação entre compositor e obra. Segundo Manzolli (1997,
2) “o fluxo e refluxo de informação sonora, entre o compositor e a obra, modificam
as estratégias de escolha e, eventualmente, criam novos padrões sonoros, que passarão
a fazer parte do próprio domínio de escolha”. Conforme o compositor alimenta a mú-
sica, nutrindo-a com novos materiais musicais, a música cresce e se desenvolve, e os
materiais utilizados, no conjunto, adquirem funções através de sua inter-relação in-
dicando muitas vezes ao compositor o caminho que este deve seguir. O que ocorre é
semelhante ao que Morin chama de “Unitas Multiplex”, quando não só as partes ad-
quirem novas propriedades a partir das inter-relações no todo, mas o todo também 155
cria limitações, sendo “ao mesmo tempo, mais e menos que a soma das partes”, “mais
e menos que o todo”, e sendo as partes também “mais e menos que as partes” (2005,
p. 36).
Serão resumidas agora as das derivadas da CECV geradas a partir das idéias apresen-
tadas acima, incluindo sua forma de utilização na composição:
1) Movimento cíclico de eterno retorno em constante evolução — consiste no re-
torno transformado de materiais ou de processos musicais;
2) Estruturas dissipativas e pontos de bifurcação — na música existe um fluxo de
materiais musicais (a matéria) e crescimento dos parâmetros (a energia) levando
a pontos críticos ou auges (pontos de bifurcação) que conduzem a mudanças es-
truturais;
3) Do caos à ordem — as idéias de caos e ordem são utilizadas conforme as seguintes
definições de Lochhead (2001), que criou algumas classificações da utilização
do caos em composições do século XX: “ordenação para criar um análogo sonoro
do caos” (a estrutura é gerada livremente com esse intuito) e “ordenação para
criar imprevisibilidade” (define-se um processo ordenador para gerar caos a par-
tir da ordem).
4) A presença de opostos e sua superação ou unificação — consiste na utilização de
materiais contrastantes que se integram ao longo da composição.
5) O vir-a-ser contido no germe do ser — consiste na utilização de elementos simples
que se transformam em materiais importantes no decorrer da composição, ou
pequenas transformações em materiais, as quais se amplificam conforme a com-
posição avança.
6) Autopoiese — consiste na criação de novos materiais a partir de materiais já uti-
lizados na obra, que por sua vez transformam os materiais que o formaram.
7) Acoplamento estrutural — ocorre quando dois ou mais materiais diferentes in-
teragem causando transformações um sobre o outro evoluindo conjuntamente,
mas sem que nenhum deles perca sua identidade.
8) A presença de estruturas simétricas, da proporção áurea e de fractais — as sime-
trias podem aparecer na estrutura global de uma composição, por semelhança
de materiais ou processos. A proporção áurea pode ocorrer entre seções, movi-
mentos ou pontos importantes da estrutura e, muitas vezes, as simetrias estão
adaptadas a ela; os fractais aparecem na reprodução de elementos importantes
da obra em diversos níveis estruturais;
9) A unidade orgânica do todo e a Unitas Multiplex — a unidade orgânica do todo
corresponde às inter-relações entre as partes que constituem o todo, e ocorre na-
turalmente pela presença das derivadas anteriores e pelo direcionamento da es-
trutura musical análoga aos ciclos vitais. Como a rede de interações entre as
partes cria uma unidade, o todo é mais do que a simples soma dessas partes, mas,
ao mesmo tempo, estas partes podem constituir novos todos quando utilizadas
em diferentes contextos e, dessa forma, a soma das partes é também mais do que
o todo. O resultado é a existência simultânea de unidade e variedade;
156 10) A composição e o processo criativo em integração — a interação entre compo-
sitor e obra é contínua. Durante o processo criativo o compositor cria materiais
musicais, mas ao mesmo tempo esses materiais direcionam a sua criação. Por-
tanto, certos aspectos do processo criativo podem ser entendidos a partir da obra
e a obra também pode ser melhor compreendida a partir de aspectos do processo
criativo.

Uma visão global do processo criativo da Sinfonia Sistêmica


dentro da concepção estética dos ciclos vitais
A Sinfonia Sistêmica é formada por três grandes movimentos que receberam nomes
referentes a diferentes elementos da CECV, que serviram como principal impetus de
cada um, intercalados por dois intermezzos de curta duração. O projeto de composição
da Sinfonia Sistêmica foi contemplado pela FUNARTE, no Programa de Bolsas de Es-
tímulo à Criação Artística em 2008 sendo uma motivação a mais no desenvolvimento
da obra, além da própria concepção estética.
A pressão para que a obra fosse concluída no prazo levou à busca de soluções inte-
ressantes no processo criativo. A concepção da idéia geral da obra começou a se con-
cretizar quando tomei conhecimento do edital da FUNARTE. Idéias geradas
anteriormente e materiais de composições anteriores foram também utilizados, e o
processo na verdade não tem uma data inicial e final que possam ser concretamente
definidos. A seguir, o processo criativo da Sinfonia Sistêmica vai ser comentado de
uma forma geral, fazendo-se uma analogia às etapas dos ciclos vitais.
1. Nascimento
A idéia de compor uma sinfonia era antiga, mas ficou mais concreta ao se escrever o
projeto da Sinfonia Sistêmica. As idéias iniciais da Sinfonia, no entanto, surgiram
quando pensei em iniciar outra obra, para o Duo Cuervo/Adami: um concerto para
flauta doce amplificada, cravo e orquestra de cordas. O cravo pode ser configurado
de tal forma que um teclado fica inativo, apenas ocorrendo o ruído das teclas baixando.
Isto levou a idéia de um grupo de instrumentos tocando, mas criando somente ruídos.
A música iria surgindo de dentro destes ruídos: a ordem surgindo do caos. Como
havia muito pouco tempo para criar a obra, acabei optando por fazer uma versão con-
certante de uma peça já existente deixando de lado as idéias mencionadas, as quais
acabaram sendo aproveitadas na Sinfonia Sistêmica, como no trecho a seguir.
A idéia de gerar ordem através do caos foi pensada principalmente para iniciar a obra,
mas em diversos momentos se retorna também da ordem ao caos ou novamente se
direciona do caos à ordem. Um dos impetus geradores do primeiro movimento veio
da idéia de Wallin (1991, xix), de que a música parte do silêncio e retorna ao silêncio,
157

Figura 2 – Sinfonia Sistêmica, primeiro movimento, [75-80]2.


mas que o silêncio tem um equilíbrio não estável, ocultando “seu poder para, em
certo momento, liberar todas as combinações imagináveis de energia acústica e ci-
nética em um mundo de música e dança”.
A leitura do livro O som e o sentido (Wisnik 1989) também influenciou a geração de
idéias musicais para o primeiro movimento da Sinfonia. Wisnik exprime da seguinte
forma a relação entre sons periódicos, ruídos e silêncio: “O som periódico opõe-se
ao ruído, formado de feixes de defasagens ‘arrítmicas’ e instáveis” e o som “é um traço
entre o silêncio e o ruído (nesse limiar acontecem as músicas)” (1989, p. 32).
A partir dessas referências, as técnicas não convencionais na Sinfonia foram utilizadas
partindo de sons quase inaudíveis após um momento de silêncio, aos poucos gerando
ruídos mais fortes e depois alcançando os sons convencionais e se direcionando a
uma utilização ordenada do conjunto orquestral. As primeiras idéias estruturais do
primeiro movimento foram então a utilização de silêncio, ruído e sons com altura

2 Os números de compassos aparecem aqui entre [ ].


definida e os primeiros materiais imaginados quando pensei em iniciar a composição,
além dos ruídos gradualmente surgindo a partir do silêncio, foram arpejos surgindo
de uma massa de ruídos orquestrais e depois os primeiros materiais melódicos —
ainda mentalmente difusos — e uma concepção global de levar o movimento a ganhar
158 forte impulso rítmico na sua continuação.
Estas idéias foram utilizadas analogamente na música. No primeiro movimento, por
exemplo, foram utilizadas figuras rítmicas e melódicas aparentemente desordenadas
nas cordas con legno batuto, mas que na sua utilização conjunta com figurações de
outros instrumentos, agrupados em conjuntos de um a dois compassos, seguidos de
pausas antes do próximo agrupamento, acabam formando unidades sonoras identi-
ficadas como padrões auditivos (fig. 3). Na continuidade da música os agrupamentos
criam uma espécie de macropulsação e vão se aproximando até criar um fluxo mais
contínuo, onde essas pulsações são identificadas não mais pela sua alternância com
as pausas, mas pelas oscilações nas alturas. Assim, a ordem estaria sendo alcançada
a partir da desordem.

Figura 3 – Sinfonia Sistêmica, primeiro mov. [87-92]: dois agrupamentos nas cordas
con legno batuto, formando unidades sonoras.
Relacionando com os estágios de Wallas (1926), a idéia de criar a Sinfonia seria parte
do estágio de preparação. Ela ganha novo estímulo ao tomar-se conhecimento do edi-
tal da FUNARTE, entrando claramente na etapa de preparação, onde se começa a de-
finir elementos que pudessem ser utilizados na sua estruturação. A utilização da idéia
de silêncio, ruído e som, antes imaginada para a outra obra, consiste numa primeira
iluminação, que ajudou na elaboração do projeto.
Mas a forma como estas idéias iriam se desenvolver foi temporariamente deixada em
espera. Em um momento em que improvisava e lia uma série de partituras no piano,
anotei uma pequena frase musical gerada na improvisação, pensando-se inicialmente
no primeiro movimento, embora ainda não precisando de que forma ela seria utili-
zada (fig. 4).
159

Figura 4 – Esboço da frase gerada na improvisação.

A leitura de uma peça para piano (fig. 5) que eu compusera um ano antes chamou a
atenção, pois achei que poderia perfeitamente ser utilizada em conjunto com os ma-
teriais da improvisação. No entanto, percebi que os materiais serviriam não como
parte do primeiro movimento, mas que o material gerado na improvisação serviria
de auge de uma seção de um novo movimento, iniciada pela peça para piano, a qual
foi orquestrada e utilizada integralmente [1-26]. Esses materiais parecem ter ditado
a partir daí o caminho a ser seguido na primeira seção do movimento: a criação de
um trecho direcionando da peça para piano até atingir a idéia gerada no improviso.

Figura 5 – Quatro Esquetes para Piano, n°3, peça utilizada na construção


do segundo movimento da Sinfonia.
O aproveitamento de materiais de peças já existentes, bem como de materiais imagi-
nados para uma obra, mas utilizado em outra, demonstra como eles estão constan-
temente retornando à memória do compositor e como processos geradores de uma
composição são revistos e se transformam em um novo ciclo criativo.
2. Desenvolvimento
O segundo movimento acabou sendo composto integralmente antes do primeiro, e
160 esboçou-se um trecho para outro movimento antes de começar a colocar o primeiro
movimento no papel. Novamente, foram iniciadas e deixadas de lado, temporaria-
mente, idéias geradas para um movimento enquanto outro seria composto. Estes pro-
cedimentos acabaram criando um fluxo temporal acronológico no processo criativo,
em que elementos de um movimento agem sobre os elementos de outro, criando uma
forte inter-relação. Embora parte da estrutura do primeiro movimento já estivesse
pré-estabelecida, influenciando a construção do segundo movimento, os elementos,
já concretos, do segundo movimento certamente tiveram reflexo na construção do
primeiro. Arpejos rápidos que seriam utilizados no primeiro movimento, ainda vi-
sualizados difusamente ao ter composto o segundo movimento, por exemplo, con-
duziram à utilização de arpejos que aparecem entre duas seções do segundo
movimento [66-68] (fig. 6a). Este material se torna um dos mais importantes do se-
gundo movimento e seu formato predominantemente quartal e com desdobramentos
que acaba se uniformizando (fig. 6b), define, em contrapartida, o formato em que
serão construídos os arpejos do primeiro movimento (fig. 6c). Assim, embora os mo-
vimentos se desenvolvam como uma sucessão no tempo, eles interagem de forma
quase simultânea, numa espécie de processo autopoiético, onde as unidades celulares
se produzem e se transformam umas às outras.
161

Figura 6 – Comparação entre arpejos em diferentes seções do segundo


movimento (a e b) e no primeiro movimento (c).
O primeiro movimento também contém elementos gerados em uma peça eletroacús-
tica criada anteriormente, Piano Harm (2008). Materiais do final dessa peça, basica-
mente a alternância de acordes entre dois pianos, foram utilizados como elementos
de oposição aos materiais que iniciam a segunda seção do movimento. A utilização
deste material acabou sendo o germe para uma decisão que viria mais adiante, na
composição do terceiro movimento.
3. Morte
Durante o processo de criação do primeiro movimento começaram a surgir dúvidas
sobre como ficaria a estrutura final da obra ao visualizar-se o todo gerado até o mo-
mento, uma espécie de reestruturação gestáltica. A finalização do primeiro movi-
mento foi o ponto em que a avaliação do objeto composicional foi maior, por terem
sido concluídos os dois maiores movimentos da obra. Os esboços que já haviam sido
gerados para iniciar um novo movimento passaram a ser imaginados como prováveis
materiais para um intermezzo antes do último movimento. No entanto, chegou-se à
conclusão de que era preferível ter os três grandes movimentos compostos antes dos
intermezzos, e o processo composicional foi lançado em um período de buscas sem
respostas imediatas, correspondendo à etapa de verificação da Teoria dos Estágios,
em uma macrovisão do processo criativo.
4. Renascimento
O processo é levado a um novo ciclo com o lançamento um novo problema, a cons-
trução do movimento final da Sinfonia. O insight veio no momento em que percebi
que a semelhança de materiais do primeiro movimento da Sinfonia com os materiais
utilizados na obra Piano Harm ultrapassava o material que havia sido utilizado cons-
cientemente no primeiro movimento. Existe também grande semelhança em figuras
com forte caráter rítmico baseado em arpejos quartais com eventuais presenças de
semitom, existentes em ambas as peças (fig. 7).
162

Figura 7 – Comparação entre materiais do primeiro movimento da Sinfonia (a)


com materiais da seção final de Piano Harm (b).
Decidiu-se, a partir desta constatação, utilizar parte da obra Piano Harm na constru-
ção do último movimento da Sinfonia.
3.5 Novo desenvolvimento
A utilização de Piano Harm, se enquadrou perfeitamente na estrutura global da Sin-
fonia dando-lhe um caráter de fechamento, pela reiteração dos materiais nos movi-
mentos extremos. Também resultou numa idéia de renascimento, não só pela
utilização destes materiais, mas pela reutilização da peça Piano Harm em uma nova
acepção, com a transformação da parte eletroacústica em sons orquestrais. O início
da parte utilizada de Piano Harm também mostra relação com uma repetição em eco
de padrões extraídos do segundo movimento, utilizados nos esboços que estavam em
suspenso. Optou-se então por utilizar estes esboços definitivamente como um pe-
queno movimento intermediário, o Intermezzo II, criando um elo entre o segundo e
o terceiro movimentos, e criar outro Intermezzo entre o primeiro e o segundo movi-
mentos. Os intermezzos utilizados na Sinfonia funcionam como resquícios post mor-
tem dos movimentos recém finalizados, bem como uma espécie de resistência a este
destino, levando à necessidade de uma nova existência. Novamente, com a utilização
de Piano Harm e a transformação que ela sofre ao passar ao meio orquestral, levam
a idéia de um processo criativo autopoiético.
6. Ciclos dentro de ciclos
A conclusão do terceiro movimento e dos intermezzos representa a finalização do se-
gundo ciclo criativo da Sinfonia Sistêmica e, ao mesmo tempo, do macrociclo criativo
da obra. No entanto, a idéia de renascimento no processo continuará a existir no mo-
mento em que cada revisão mostra detalhes a corrigir, e cada nova execução repre- 163
senta não só novas possibilidades de revisão por parte do compositor, mas novas
interpretações do texto musical pelos intérpretes, que correspondem também a um
processo criativo de transformação do texto em som. O processo de criação desta
obra também terá consequências e inter-relações com o processo de outras obras, já
tendo trazido inclusive pequenas alterações à Piano Harm.
Conclusão
A influência de outras obras sobre a Sinfonia Sistêmica demonstra como o processo
de interação do processo criativo da obra com o seu meio não é unilateral, e como as
transformações podem ser mútuas, como num processo de acoplamento estrutural.
Na Sinfonia Sistêmica isso ocorre desde o momento em que começou a ser composta,
pela interação com as obras já existentes ou com os pensamentos filosóficos que a
alimentaram, e continua a acontecer enquanto ela for executada, ouvida, analisada,
por estar na ontogênese do compositor ou de quem de alguma forma tiver interagido
com a obra.
O processo criativo pode ser visto também pela ótica da Concepção Estética dos Ciclos
Vitais. Os estágios de Wallas, por exemplo, possui, na busca pela resolução de um
problema, um ciclo de nascimento (preparação), desenvolvimento (incubação), auge
(iluminação e verificação), morte (ao finalizar a verificação, conclui-se a busca pela
resolução do problema) e renascimento (a resolução de um problema normalmente
gera outros problemas, iniciando um novo ciclo).
O processo criativo que começa no nascimento de uma nova composição a partir de
um impetus, se desenvolve de acordo com procedimentos regulares, como na teoria
dos estágios de Wallas, seguindo um padrão de organização, e procedimentos espe-
cíficos, correspondentes à bagagem musical e cultural do compositor e a elementos
provenientes do meio que interfiram durante processo, os quais mantém um fluxo
de energia e de materiais que nutrem o processo e fazem com que ele se desenvolva
no tempo.
O processo criativo de uma composição chega ao fim no momento em que o compo-
sitor sente que os materiais criaram um todo que se sustenta e que eles não poderão
continuar a ser utilizados produtivamente na manutenção da estrutura musical. Com-
parando a um ser vivo, a morte chega quando o seu organismo não consegue mais
manter sua organização aproveitando a matéria e energia do meio. Mas assim como
a matéria e a energia do ser vivo que morreu retornam ao meio e são reaproveitadas
em novos ciclos vitais na cadeia alimentar, existe uma realimentação do ciclo com-
posicional ao finalizar-se o processo criativo. Ele renasce de acordo com o retorno
desencadeado através de sua difusão no meio, incluindo a própria reavaliação, cons-
ciente ou inconsciente, do compositor. Os materiais composicionais e a energia em-
pregada na criação da obra se disseminam pelo meio em que o compositor está inse-
rido e adicionam novos elementos à sua bagagem composicional teórica, prática e
estética e à bagagem de outros compositores.
164 Assim, existem sistemas de interação em diferentes níveis: a obra com o compositor
(e sua concepção estética); a obra com outras obras (e num nível mais amplo com o
conjunto de obras) deste compositor; a obra e/ou o compositor com o meio com o
qual interage recebendo informações, transformando-as e enviando novas informa-
ções; e do meio ao qual pertence com outros meios. Existem, portanto, sistemas den-
tro de sistemas e ciclos dentro de ciclos. Cada sistema evolui em conjunto com o
macro-sistema do qual é parte integrante, numa rede de interações mútuas, que, em
última instância, o liga ao universo que ajuda a construir e que ao mesmo tempo o
constrói.
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A memória na psicologia cognitiva e memória musical


na perspectiva do intérprete
Laura Balthazar
lauraubalthazar@gmail.com
Ricardo Dourado Freire
freireri@unb.br
Universidade de Brasília

Resumo
Executar obras inteiras memorizadas tornou-se historicamente um hábito para intér-
pretes de música. Este tipo de execução, e todo o processo da memorização musical
de uma obra, apresenta aspectos cognitivos e aspectos musicais, concretizando a per-
formance memorizada como uma forma de demonstração de alto nível de conheci-
mento musical. A performance de memória é de extrema importância para o músico,
promovendo um pleno conhecimento da obra executada, além de ser muito bem
visto pela platéia, por demonstrar virtuosismo e alta familiarização com a obra. Porém,
há uma série de fatores que dificultam a execução memorizada, transformando-a em
uma prática que gera medo e insegurança, uma forte barreira entre o músico e a
obra. Essa barreira torna-se um problema, por prejudicar a formação plena do músico.
Para detalhar os processos que levam à execução musical memorizada, e ajudar o
músico a compreender o funcionamento da sua memória, entra a psicologia cognitiva,
para explicar como codificamos e armazenamos a música, como a nossa mente opera
quando confrontada com o desafio de memorizar uma obra e todos os processos que
levam a uma memorização musical de forma plena e eficaz. Nesta pesquisa foi rea-
lizada uma revisão bibliográfica com o objetivo investigar os tipos de memória estu-
dados pela psicologia cognitiva tradicional e os tipos de memória atribuídos especi-
ficamente à memória musical, sendo traçado um paralelo entre ambas, dentro do
contexto da performance musical. Desta forma, a psicologia cognitiva pode tornar-se
um grande aliado do músico no momento da performance.
166 Palavras-chave
memória – performance – psicologia cognitiva

Introdução
Desde que Franz Liszt, em meados do Século XIX, em um momento de fervor inter-
pretativo, jogou suas partituras da estante e continuou seu recital todo de memória
(Lundin 1953), tornou-se costumeiro o hábito de intérpretes de música realizarem
performances inteiras de memória. Hoje em dia, músicos solistas que não apresentam
seu repertório de memória, são vistos com desconfiança, e a platéia geralmente tira
a conclusão que provavelmente o músico não estava bem preparado, ou familiarizado
suficientemente com a obra, e que necessitaria de mais preparação antes de apresentar
a obra em público.
Quando um músico memoriza uma peça, ele a aprende:
“. . . de modo a poder tocá-la “automaticamente”, condiciona seu sistema motor de
tal forma que ele reage de determinadas maneiras a determinadas sensações cor-
porais. Tocar um fragmento de uma composição produz um feedback que traz a
tona movimentos em direção ao próximo fragmento . . .” (Jourdain 1998, 283).
Considerando então o processo de memorização musical como um processo que
ocorre na mente, a psicologia cognitiva, que segundo Sternberg “. . . trata do modo
como as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação”
(Sternberg, 2000, 22) possui um papel importante no estudo sobre a memorização
musical ao identificar as diversas formas, e todo o processo mental pelo qual a me-
morização se dá.
O impulso para este trabalho deu-se pela importância e valorização da execução me-
morizada por parte do intérprete. Porém apesar de sua extrema importância, a exe-
cução musical memorizada é uma prática que ainda gera medo e insegurança,
especialmente entre os estudantes. A execução memorizada então, apesar da sua
enorme importância para o entendimento total de uma obra, acaba por ser uma prá-
tica não muito comum, especialmente entre os estudantes, e a dificuldade para me-
morizar músicas acaba tornando-se um problema, prejudicando a formação do
músico.
Objetivos
A pesquisa realizada foi realizada para um projeto de pesquisa de iniciação científica
e possuiu como objetivo investigar os tipos de memória estudados pela psicologia
cognitiva tradicional, os tipos de memória atribuídos especificamente à memória mu-
sical e traçar um paralelo entre essas memórias.
Assim como traçar este paralelo, a pesquisa enfocou especificamente na importância
da memória na perspectiva do músico executante e de que forma a psicologia cogni-
tiva pode auxiliar estes músicos em sua trajetória até uma performance de alto nível.
A pesquisa relaciona-se com o tema “A Mente e a Música”, considerando-se que a psi-
cologia cognitiva é o estudo da mente e de seus processos, e que a música memorizada
é processada pela mente, como cita Shacter: 167

“A memória recorre ao passado para informar o presente, preserva elementos de


experiências atuais para futura referência e permite que voltemos ao passado
quando desejamos. Os vícios da memória são também virtudes, elementos de uma
ponte através do tempo, que permite que façamos uma ligação da mente com o
mundo.” (Schacter 2003, 250)
Metodologia
O método aplicado para a realização desta pesquisa foi o de uma revisão bibliográfica
de significativas pesquisas sobre memória, tanto no campo da psicologia cognitiva
tradicional quanto da literatura específica sobre psicologia da música. Esta pesquisa
buscou uma fundamentação e discussão teórica da psicologia cognitiva, da impor-
tância da memorização na música e de aspectos específicos abordados na memória
musical.
Para fins organizacionais, a literatura será dividida em duas partes: A Memória na
Psicologia Cognitiva Tradicional e A Memória Musical Específica.
A Memória na Psicologia Cognitiva Tradicional
Na psicologia cognitiva tradicional, a memória é vista como “o meio pelo qual você
recorre às suas experiências passadas a fim de usar essas informações no presente”
(Sternberg 2000, 204). Dentro da psicologia cognitiva tradicional, o modelo tradicio-
nal predominante da estrutura da memória é o modelo sugerido por Richard Atkin-
son e Richard Shiffrin em 1968 (Atkinson e Shiffrin apud Sternberg 2000), o chamado
modelo dos três armazenamentos, que atualmente são designados de “memórias”:
Memória de Curto Prazo (MCP), Memória de Longo Prazo (MLP) e Memória Sensorial.
Segundo Sternberg, esse modelo pode ser caracterizado como:
1. Armazenamento sensorial, capaz de estocar quantidades relativamente limitadas
de informação por períodos de tempo muito breves;
2. Armazenamento de curto prazo, capaz de armazenar informações por períodos
de tempo um pouco mais longos, mas também de capacidade relativamente li-
mitada;
3. Armazenamento de longo prazo, de capacidade muito grande, passível de estocar
informações durante períodos de tempo muito longos, talvez até indefinidamente.

O modelo de Atkinson e Shiffrin, no entanto, não ressalta o importante fato que o es-
tudo da memória se baseia em constructos hipotéticos: “conceitos que não são em si
próprios mensuráveis ou observáveis diretamente, mas servem como modelos men-
tais para compreender-se como um fenômeno psicológico, tal como a memória fun-
ciona” (Sternberg 2000, 209).
Sternberg discorre também sobre experimentos realizados para se “medir” estas me-
mórias, e ressalta o importante fato que a maioria dos experimentos realizados são
168 eficazes para se medir quantidade de informação e tempo de armazenamento das
memórias de curto prazo e sensorial, uma vez que “… não sabemos como testar os
limites da memória de longo prazo e, desse modo, descobrir a sua capacidade. Alguns
teóricos sugeriram que a capacidade da memória de longo prazo é infinita, pelo
menos em termos práticos.” (Sternberg 2000, 213).
Outros modelos mais recentes introduzem a memória operacional, também chamada
de memória de trabalho que seria uma “. . . parte da memória de longo prazo, mas
que também abrange a memória de curto prazo.” (Sternberg 2000, 214). Baddeley
(2004) caracteriza o modelo de memória operacional pela existência de um sistema
executivo central que gerencia as informações e ações armazenadas. Cowan (1995
apud Engle, Tuholski, Laughlin, Conway 1999) destaca que apesar da memória de
curto prazo e operacional serem bastante confundidas, a memória operacional é um
constructo mais complexo que a memória de curto prazo, utilizando a mesma afir-
mação de Baddeley (2004) que a memória operacional possui um sistema executivo
central.
Dentro dessas memórias, destaco também os processos para sua utilização, as cha-
madas três operações: codificação, armazenamento e recuperação (Sternberg 1996).
A codificação sendo o processo como a informação é armazenada; o armazenamento,
a manutenção da informação ao longo de um período de tempo; e a recuperação, a
forma de acessar e recuperar a informação (Baddeley 1999).
A Memória Musical Específica
Nas pesquisas sobre memória musical específica, uma das memórias da psicologia
cognitiva tradicional estudadas é a memória de longo prazo, que seria musicalmente
aplicada na memorização de obras extensas. Porém, como citado anteriormente, na
afirmativa de Sternberg que a memória de longo prazo é difícil de se mensurar, grande
parte dos estudos sobre a memória musical de longo prazo se restringem a formas
de auxiliar o músico a armazenar informações de forma eficaz.
Lundin (1958), por exemplo, divide o seu estudo da memória musical em dois. A cha-
mada “Memória Tonal” e a “Eficiência em Aprender Música”. A memória tonal seria
a memória específica de se lembrar notas e música. Porém, para ele, há um paradoxo
no estudo da memória tonal, pois ele não consegue chegar a uma conclusão definitiva
se ela é decisiva ou não para se medir uma suposta “habilidade musical”. Ele argu-
menta que bons solistas, como o pianista Rubinstein abandonaram o palco por não
executarem peças de memória, porém, eram excelentes instrumentistas. Portanto, a
memória tonal não teria uma relação tão decisiva com o sucesso musical. Lundin
também argumenta que a maioria dos testes conduzidos à época não mediam a me-
morização de obras extensas, apenas de pequenas seqüências de notas. O teste con-
duzido por Seashore (1938), por exemplo, um dos primeiros testes específicos sobre
a memória musical foi feito usando notas não relacionadas, com a justificativa de
Seashore que o talento musical é algo hereditário e que a memória musical deveria
ser medida sem o uso de treinamento musical prévio. No entanto, Lundin (1953) ar-
gumenta que esta pesquisa ignora que a música em geral não é uma série de sons não 169
relacionados e sim uma configuração de sons organizados.
Na parte sobre eficiência em aprender música, Lundin (1953) discorre sobre elemen-
tos que seriam importantes para a memorização a longo prazo de uma obra. A partir
deste estudo, ele então cita uma lista de sete conclusões que podem ser tiradas acerca
da memória musical específica, e de passos que qualquer músico pode realizar a fim
de memorizar uma obra musical:
1. Aprender a peça como um todo é recomendada para peças curtas. Para obras
mais extensas, é recomendável dividir a peça em partes para estudo;
2. O estudo que é espaçado por um período de tempo, ao invés daquele condensado
em uma vez só é mais produtivo;
3. No caso do piano, estudar as duas mãos juntas, ao invés de uma de cada vez é
mais eficiente, contanto que a peça esteja no nível técnico do intérprete;
4. Um estudo analítico da obra antes de executá-la é bastante eficiente para aprendê-
la como um todo;
5. Ao invés de passar um tempo excessivo estudando um peça (“overlearning”),
guardar tempo para outras formas de estudo e para a fixação mental, já que o ex-
cesso de tempo de estudo não comprovou ser uma técnica eficaz de memorizar
músicas;
6. Um período de estudo mental também, não apenas a execução técnica da peça
provou ser eficaz para se aprender uma obra memorizada;
7. A repetição incessante de trechos, na busca por eliminar erros é um método ques-
tionável, e não é recomendado.

Seashore (1938) em uma linha de pesquisa similar, fala sobre “Doze Regras para o
Aprendizado Eficiente em Música”. As suas regras não falam sobre memória musical
em específico, porém, o ato de memorizar uma música pode ser considerado um
aprendizado eficaz. Os doze passos seriam: selecionar um campo de interesse espe-
cífico; querer aprender; confiar em primeiras impressões; classificar dados: aprender
pensando; cultivar um imaginário concreto; construir unidades de pensamento cada
vez maiores; organizar os estudos; descansar economicamente; reorganizar o que foi
aprendido e expressar em ações; revisar em ciclos; e, tornar cada nova coisa aprendida
um hábito e aprender obras de um nível adequado.
Entretanto, as pesquisas de Seashore e Lundin datam de meados do século passado,
e apesar de suas conclusões serem válidas, torna-se necessária uma literatura mais
moderna também. Daniel Levitin (2010), em seu livro A Música no Seu Cérebro dedica
um capítulo ao tema “de que é feito um músico?”. Neste capítulo, um dos assuntos
abordados é a memória musical. Levitin descreve o exemplo de três pessoas, uma
com um repertório de músicas memorizadas marcante, outra com uma memória de
reconhecimento para uma enorme gama de músicas, e também o caso de um menino
clarinetista, que ao sentir dificuldade em um trecho de uma música memorizada, a
toca do início, não apenas do trecho com dificuldade.
170 A partir destes três casos, Levitin descreve três tipos de memória: Memória de Agru-
pamento, Memória de Identificação e a Memória Muscular. Na chamada memória
de agrupamento, que “. . . é o processo de juntar unidades de informação em grupos
para se lembrar-se deles como um todo em vez das partes individuais” (Levitin 2010,
245), os músicos codificam na memória as notas, de forma a facilitar o armazena-
mento da informação.
“Os Músicos também usam o agrupamento de várias maneiras. Primeiro, tendem
a codificar na memória um acorde inteiro em vez das notas individuais; lembram-
se de ‘sétima de dó maior’ em vez dos solos individuais de dó-mi-sol-si . . . Em se-
gundo lugar, tendem a codificar os acordes e, seqüência, em vez de isoladamente.
‘Cadência plagal’, ‘cadência eólia’ ou ‘mudanças de ritmo’ são designações empre-
gadas pelos músicos para facilitar a identificação de seqüências de diferentes du-
rações.” (Levitin 2010, 245-246)
Este caso seria o da pessoa com um repertório de músicas memorizadas marcante.
Porém, ele ressalta que nos músicos, ter uma memória excepcional, não significa me-
mória excepcional também em outras áreas de conhecimento, citando o caso da
mesma pessoa:
“. . . não tem uma memória excepcional para tudo: continua perdendo as chaves,
como qualquer um de nós. Os grandes mestres do xadrez memorizam milhares
de configurações de jogo. Entretanto, o caráter excepcional de sua memória no
xadrez se estende apenas às posições permitidas no jogo.” (Levitin 2010, 244)
Levitin define a memória de identificação como “a capacidade que temos, na maioria
dos casos, de identificar peças musicais que ouvimos antes.” (Levitin 2010, 246). Tal
caso seria o da pessoa com uma memória de reconhecimento para uma enorme gama
de músicas. Porém, ele afirma que os estudos nesta área ainda são recentes, e que:
“Ainda não sabemos por que certas pessoas se mostram mais bem-dotadas neste
sentido do que outras, o que pode ser conseqüência de uma predisposição inata
ou constituinte de como o cérebro foi formado, o que, por sua vez, pode ter origem
genética.” (Levitin 2010, 247).
A memória muscular se aplicaria ao caso do menino que não consegue tocar apenas
um trecho da música memorizada, tendo que tocar ela do início. Segundo Levitin
(2010), o caso do menino ocorreu pois ele estava executando uma seqüência memo-
rizada de movimentos musculares, e a seqüência, após interrompida, teve no cérebro
do menino que recomeçar do início. Tal memória muscular, também chamada de
memória motora, é abordada ainda no estudo “Pesquisa em Performance Musical no
Milênio” (2003), em que Gabrielsson a descreve como: “os dedos parecem saber onde
vão”. É uma memória bastante presente entre os músicos, porém com maior freqüên-
cia entre os músicos não-profissionais, tendo em vista que os profissionais usam muito
também a análise da estrutura da obra, em um processo chamado de “prática plane-
jada”, que seria um estudo direcionado com algum enfoque ou objetivo (como, por
exemplo, memorizar a música).
Ainda acerca da memória musical de longo prazo, relacionada com a performance e
memorização de obras extensas, alguns pesquisadores (Ericsson 1997; Santiago 2001)
investigaram também o uso de imagens e representações mentais no momento da 171
performance para a interiorização da obra. Segundo Santiago (2001) a imagem mental
seria como uma espécie de partitura interiorizada, sendo, portanto, diretamente re-
lacionada à memória musical. Na pesquisa é destacada também a importância das
imagens mentais na execução musical de alta qualidade.
Em uma pesquisa sobre a execução de obras memorizadas especificamente no vio-
loncelo, Chaffin, Lisboa, Logan e Begosh (2010) destacam três princípios que julgaram
importantes e que são presentes no tipo de músicos que chamam de “expert memorists”
(especialistas em memorizar). Estes três princípios são: boa codificação do material,
uma estrutura de feedback (o processo de feedback é a forma como a informação re-
torna ao músico. Segundo Gabrielsson (2003) em performance musical, esse processo
pode ser auditivo, visual, tátil ou cinestésico) e prática de tempo de feedback. Uma
boa codificação seria caracterizada pelo músico já possuir armazenado em sua me-
mória estruturas padrões (escalas, acordes, arpejos) que seriam reconhecidas ime-
diatamente facilitando assim a memorização de uma obra. Uma estrutura de feedback
é caracterizada pela forma como o cérebro resgata a informação armazenada, e o
tempo de feedback diminuiria este tempo de resgate, tornando então a obra pronta
para ser executada de forma memorizada, segundo os autores transferindo a infor-
mação codificada da obra da memória operacional para a memória de longo prazo.
Chaffin, Lisboa, Logan e Begosh (2009) também destacam a importância dos pontos
de apoio dentro de uma obra memorizada. Segundo eles, pontos de apoio, em que o
cérebro possa reiniciar uma linha de análise, geram uma sensação de segurança ao
executar-se uma peça memorizada e são uma forma eficaz de se armazenar uma peça.
É mais eficaz, então, armazenar uma peça dividindo-a em partes com pontos de apoio
na memória do que um bloco único. Os autores inclusive dividem os pontos de apoio
em estruturais, interpretativos, expressivos e básicos. Os estruturais referindo-se à
estrutura da música, os interpretativos referindo-se a um ponto de apoio onde a in-
terpretação muda, os expressivos onde a “sensação” da música muda, e os básicos em
algum lugar que apresente alguma dificuldade técnica.
Além dos estudos específicos sobre memória musical de longo prazo, com a memo-
rização de obras extensas para a performance, há também os estudos sobre a aplicação
da memória de curto prazo em outros contextos de aprendizado musical, como por
exemplo a audição musical:
“A maneira como alguém ouve música depende crucialmente daquilo que é capaz
de lembrar eventos musicais passados. Uma modulação para uma nova tonalidade
é ouvida apenas se alguém se lembrar da tonalidade anterior. Um tema é ouvido
como sendo transformado apenas se alguém consegue lembrar a versão original,
a partir da qual se deu a transformação. E assim por diante, Uma nota ou acorde
não tem significado musical senão na relação com as notas ou eventos anteriores
e posteriores. Perceber um evento musicalmente (isto é, reconhecer pelo menos
parte de sua função musical) é relacioná-lo a eventos passados. Portanto, é im-
portante que nós saibamos até que ponto somos capazes de lembrar eventos mu-
sicais passados, e que saibamos quais são os fatores que auxiliam a nossa memória.”
172 (Sloboda, 2008, 229).
Em uma linha de pesquisa ainda mais recente, Ricardo Freire conduziu uma pesquisa
sobre a memória operacional e a nova teoria dos neurônios-espelho para respostas
musicais imediatas, como ditados ou procedimentos de aprendizagem a partir de
gravações, sendo estes processos chamados de imitações. Existe, porém, uma dife-
renciação entre a imitação operacional e a memória de curto prazo: “A imitação ope-
racional se diferencia da memória de curto prazo por depender da repetição imediata
e da relação entre as informações que estão sendo armazenadas em tempo real”
(Freire 2010, 15). A imitação operacional também é tratada como distinta da imitação
imediata (neurônios espelho), pela reação ocorrer praticamente de forma simultânea
à ação principal. O exemplo utilizado para este tipo de memória é: “. . . quando uma
pessoa tenta cantar uma música que não conhece com outra pessoa que esteja can-
tando. A pessoa tenta acompanhar a outra cantando “um pouco depois” e muitas
vezes completando a frase já iniciada” (Freire 2010, 16).
Discussão e Conclusão
A psicologia cognitiva deve ser usada como uma ferramenta para auxiliar o músico
a entender os seus processos mentais, e assim, melhorar e otimizá-los. Exatamente
como questiona Diana Santiago: “Como poderia a psicologia cognitiva contribuir
para que o músico possa melhor capacitar-se para realizar a performance musical?”
(Santiago 2001, 4).
A partir desta pesquisa bibliográfica, foi possível concluir que a psicologia cognitiva
é uma ferramenta importante na pesquisa sobre a memória musical, e que todas as
pesquisas realizadas e teorias formuladas pela psicologia cognitiva podem ser utili-
zadas como apoio para o estudo da memória musical e como ferramentas para o in-
térprete melhorar cada vez mais a qualidade de sua execução.
As três memórias principais abordadas pela psicologia cognitiva, do modelo sugerido
por Richard Atkinson e Richard Shiffrin em 1968 (Memória de Curto Prazo, Memória
de Longo Prazo e Memória Sensorial) foram também abordadas na literatura musical
específica, nas pesquisas apresentadas, e são sempre apresentadas nas pesquisas sobre
memorização musical. Sem a base da psicologia cognitiva, com seus estudos sobre a
memória na forma de constructos hipotéticos, as memórias musicais provavelmente
não poderiam ser explicadas de forma concisa.
Os estudos e pesquisas sobre a memória na psicologia cognitiva também estão mais
à frente do que os sobre a memória musical específica, em termos de aplicação prática,
experimentos e testes. Estes testes, geralmente realizados com números, palavras ou
imagens, podem ser utilizados para explicar comportamentos realizados para arma-
zenar informações musicais. Santiago (2001) cita, em seu trabalho sobre o processo
de construção de imagens mentais, um estudo de Instons-Peterson (1997), que afirma
que à nossa época ainda é inexistente um modelo da imaginação auditiva, e que ainda
tomamos emprestados modelos de imagens visuais. Entretanto, ele afirma que “em-
bora baseados no trabalho com a imaginação visual, podem ser aplicados com faci- 173
lidade à imaginação auditiva.” (Instons-Peterson 1997 apud Santiago 2001, 6).
Devemos reforçar que a psicologia cognitiva deve ser usada como uma ferramenta
para ajudar a explicar os processos mentais do músico e, assim sendo, um apoio na
hora de tornar a execução cada vez melhor. Ericsson (1997) denomina esse tipo de
busca por uma perfeição cada vez melhor de “expert performance”, a caracteriza como
sendo presente em várias áreas de conhecimento, e também explicita a necessidade
de intensa preparação para tal: “uma performance de elite é alcançada gradualmente,
e cerca de dez anos de intensa preparação são necessários para se atingir um nível
internacional de performance em domínios tradicionais.” (Ericsson 1997, 25)
A busca pela perfeição na execução é o que motiva os intérpretes a buscarem soluções
dentro da psicologia cognitiva para o aperfeiçoamento, como por exemplo com o uso
da “prática deliberada”, termo citado por Gabrielsson. A prática deliberada deve ser
uma prática presente diariamente na vida do executante de música e, segundo Ga-
brielsson (2003), significa que a prática do instrumentista deverá ser cautelosamente
estruturada, para gerar uma melhora na performance. Pressupõe também alta moti-
vação e esforço estendido, e atenção total durante a prática (o que limita a extensão
da prática, para um tempo de armazenamento da informação). A prática do instru-
mentista deverá também incluir o seguimento de instruções explícitas e supervisão
individual por um professor, além da análise meticulosa dos resultados e condições
de ambiente favoráveis.
Estudar horas e horas seguidas e incessantemente (como citado na instrução sete de
Lundin (1953), em que ele diz que esta prática não é recomendada), como é de cos-
tume para alguns instrumentistas pode não ser a melhor solução para se adquirir
uma performance melhor. Músicos devem atentar-se para fatos comprovados por pes-
quisas na psicologia cognitiva, como o de que a informação necessita de um tempo
para ser armazenada no cérebro.
Bonneville-Roussy, Lavigne e Vallerand (2010) pesquisaram também a importância
da paixão na aquisição de uma performance melhor. Segundo eles, em diversas áreas
do conhecimento, quando questionados a causa da sua performance melhor que a
usual, vários “experts” em suas áreas citam quase que imediatamente a paixão. Vários
outros fatores cognitivos, ambientais e psicológicos foram incluídos nesta lista tam-
bém, mas o que chamou a atenção foi a paixão. Devemos prestar atenção também
que Bonneville-Roussy, Lavigne e Vallerand (2010) definem que um dos principais
fatores, que definem uma atividade executada como uma execução de alto nível, é a
internalização total desta atividade. O que seria uma internalização total de uma mú-
sica se não uma memorização dela? Se considerarmos que a execução memorizada
dentro da música é um fator que leva a uma melhor performance, podemos deduzir
que a paixão pode ser um motivador para a execução memorizada, e que o primeiro
passo então para se memorizar uma música é querer memorizá-la.
O músico deve visualizar a psicologia cognitiva como um importante aliado, e buscá-
la como uma forma de auxílio para suas dificuldades. Há em psicologia cognitiva di-
174 versas pesquisas na área de performance de alto nível, e pesquisas em outras áreas
como esportes e atividades intelectuais podem ser utilizadas como referência para os
músicos.
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Métodos de memorização e a construção
da performance instrumental
Leonardo Casarin Kaminski
leockaminski@yahoo.com.br 175
Werner Aguiar
werneraguiar@gmail.com
Programa de Pós-Graduação em Música da UFG

Resumo
O presente artigo enfoca métodos de memorização do instrumentista durante a cons-
trução de uma performance musical, os processos cognitivos da música através dos
sentidos, representações mentais e sua importância. Resultado de uma investigação
bibliográfica sobre memorização musical e da discussão dos dados pelos autores no
decorrer do ano de 2010 no curso de mestrado em música (performance musical) da
Universidade Federal de Goiás, esta investigação se desencadeou a partir das diversas
propostas de estudos existentes que proporcionam amplas possibilidades metodoló-
gicas na abordagem e preparação da performance. Em virtude das representações
mentais diferirem em função de fatores pessoais, circunstanciais e musicais, expõe-
se a importância do respeito à individualidade do instrumentista. O objetivo desta
pesquisa é, através do referencial teórico, esclarecer quais são os métodos de me-
morização utilizados pelos intérpretes na construção de uma performance instrumen-
tal, como ela tem sido abordada ao longo da história e como os autores fundamentam
a importância da realização de uma performance memorizada. Feita a revisão de li-
teratura dos principais textos sobre música e memorização musical ao longo da his-
tória, o trabalho prossegue expondo a importância da memorização musical no estudo
preliminar a uma performance, concentrando atenção na familiarização com a obra,
bem como na diminuição de situações de risco e redução dos níveis de ansiedade. A
parte final do trabalho apresenta os principais elementos que constituem a memori-
zação musical com dados reportados pelo referencial teórico. Podemos concluir que
cada instrumentista forma o seu próprio método memorização musical durante a sua
construção da performance. No entanto, para uma preparação segura deve haver um
equilíbrio entre as memórias visual, cinestésica e auditiva, assim como outros ele-
mentos da cognição musical.

Introdução
O presente artigo enfoca a memorização do instrumentista durante a construção de
uma performance musical, os processos cognitivos da música através dos sentidos,
representações mentais, a importância em uma eventual performance. O termo “Mé-
todos de memorização” se refere aos caminhos que o indivíduo percorre para me-
morizar um obra, e não à sistematização dos processos para chegar ao determinado
objetivo. Esta pesquisa é o resultado de uma investigação bibliográfica e discussão de
dados por parte dos autores no decorrer do ano de 2010 no curso de mestrado em
música (performance musical) pela Universidade Federal de Goiás.
A prática da memorização musical pelos intérpretes pode ocorrer de diferentes formas,
sendo sistematizadas pelo indivíduo através da prática deliberada ou por insistentes
repetições da obra. O ensino desta prática até há poucos anos ocorria quase que ex-
176 clusivamente através da transmissão pelo mestre, que, ao obter êxito em seus proces-
sos de estudos, fazia com que seus estudantes percorressem os mesmos caminhos em
busca de resultados satisfatórios. Nos últimos quarenta anos, ocorreu uma elevação
do número de estudos e publicações sobre a prática da performance e cognição mu-
sical. Tal crescimento demonstra uma preocupação crescente na excelência da for-
mação do intérprete. O objetivo desta pesquisa é, através do referencial teórico,
esclarecer quais são os métodos de memorização utilizados pelos intérpretes na cons-
trução de uma performance instrumental, como ela tem sido abordada ao longo da
história e como os autores fundamentam a importância da realização de uma perfor-
mance memorizada.
A presente investigação tomou como ponto de partida a diversidade de propostas de
estudos pelos professores, concertistas e pesquisadores. A disparidade de informações
proporciona amplas possibilidades metodológicas aos estudantes, muitas vezes con-
fundindo os instrumentistas que não atingiram maturidade suficiente para controlar
suas decisões nos estudos. Por isso, expõe-se aqui a importância de respeitar a indi-
vidualidade do instrumentista, pois a representação mental da música difere segundo
fatores pessoais, circunstanciais e musicais (Gabrielsson 1999; Jorgensen 2004; Chaf-
fin e Logan 2006). Os autores procuram ilustrar os métodos da memorização musical
no decorrer dos estudos de uma obra, tendo em vista a possibilidade destas informa-
ções serem aproveitadas indiscriminadamente por performers de maneira geral.

Um histórico das pesquisas em memorização musical


Materiais que abordam a performance musical vêm sendo publicados há poucas cen-
tenas de anos, principalmente a partir do século XVIII. Estas publicações se caracte-
rizam por métodos instrumentais nos quais os respectivos autores passavam ao seu
público-alvo sua concepção de “como tocar” determinado instrumento.
Desde aproximadamente o ano de 1700, uma quantidade abundante de livros tem
sido escrita sobre métodos e abordagens instrumentais, cada um contendo mate-
rial para a prática individual. A maioria destes trabalhos baseia-se na experiência
pessoal e na opinião dos autores, e suas visões são muitas vezes contraditórias
(Jorgensen 2004, 87).
O século XX acaba tomando alguns outros rumos nesta linha de pesquisa. Embora
continue aparecendo uma quantidade de publicações com propostas metodológicas
para o ensino de diversos instrumentos, a pesquisa em música começa a criar sub-
áreas. Assim, a investigação em performance musical pode oferecer uma gama de ver-
tentes, desde a análise de elementos empregados pelo compositor em uma obra, a
identificação de características interpretativas do performer, até algum elemento téc-
nico do próprio instrumento musical, tais como processos de transcrição ou o uso de
alguma técnica estendida.
Em sua tese de doutoramento, Luis Cláudio Barros (2008) faz um levantamento da
pesquisa empírica a respeito do planejamento da execução instrumental e enquadra
as publicações em temas de pesquisas em categorias de abrangência maior, tais como:
temáticas relativas à análise do comportamento durante o estudo, organização, ca-
racterísticas e tipos de prática; temáticas que abordam estratégias de estudo; temáticas 177
que abordam a representação mental da música e processos cognitivos envolvidos na
memorização. Contudo, neste texto, vamos nos deter na última categoria temática
exposta por Barros (2008).
Aliada à evolução das pesquisas na psicologia da performance nas últimas décadas, a
prática deliberada da memorização começa a ganhar espaço. Da mesma forma que
continuam a ser publicados materiais sobre técnicas de memorização, tais materiais
começam a receber notoriedade científica, abrangendo áreas como a psicologia e neu-
rociências (Ray 2005).
Entre os precursores da investigação sobre música e memorização destacamos o pia-
nista húngaro Sandor Kovacs, que no ano de 1916 reportou suas experiências como
professor ao investigar as problemáticas envolvidas no processo de memorização de
seus alunos (Jorgensen 2004 e Santiago 2001). Jorgensen (2004) expõe que estudos
na área do planejamento são relativamente recentes, sendo que nos 20 anos subse-
qüentes à publicação de Kovacs apenas 3 trabalhos foram apresentados nesta área.
Desde 1975, o número de estudos publicados sobre estratégias de prática indivi-
duais tem aumentado gradualmente a cada década, e aproximadamente dois terços
dos trabalhos publicados de 1916 ao presente têm datas a partir de 1990 (Jorgen-
sen 2004, 87).
Corroborando com esta afirmação, para Gabrielsson (2003), o surgimento das pes-
quisas sobre o planejamento da performance, assim como sobre a memorização, está
relacionado ao aparecimento dos estudos da psicologia cognitiva na segunda metade
do século XX.
Ainda da primeira metade do século XX, a obra Como devemos estudar piano de Lei-
mer e Gieseking (1949), com primeira edição em 1930, aborda aspectos tais como a
memorização e as etapas para se obter um resultado satisfatório na execução de uma
obra musical. O autor instiga o leitor a fazer uma reflexão sobre o que este sendo es-
tudado, realizando um treinamento auditivo do que está sendo tocado e procurando
obter uma boa concentração. Destaca-se por não apresentar um conteúdo didático
para o sujeito iniciar estudos no instrumento, mas a obra é um tratado sobre a cons-
trução da performance em que os autores expõem exclusivamente as suas experiências.
Entre as publicações do século XXI estão Williamon (2002), Ray (2009), Santiago
(2001), Chaffin et al (2009), Chaffin e Logan (2006). Estes trabalhos expõem técnicas
e estratégias de memorização ou estudos de casos com instrumentistas, e contribuem
cientificamente para a performance musical. Os artigos de autoria de Chaffin descre-
vem respectivamente os estudos e performances de uma violoncelista e de uma pia-
nista ao longo de meses, podendo este primeiro ser considerado “a mais completa
descrição do processo de aprendizagem de um músico profissional” (Barros 2008,
71). O estudo de caráter experimental tem autoria de Williamon e Valentine (2002),
onde foram avaliados 22 pianistas de diferentes níveis e discutindo a importância das
fronteiras estruturais para a memorização da performance. Alguns autores como Con-
nolly e Williamon (2004), Ginsborg (2004) e Gordon (2006) sugerem sistematizações
178 para a memorização, incluindo algumas estratégias para um bom funcionamento do
aparato neurológico durante os estudos.
A memorização musical e a sua importância
Muitos são os músicos que procuram sugestões de professores e pesquisadores para
construir a sua performance. Descobrir os caminhos da memorização musical de mú-
sicos profissionais pode esclarecer muito sobre o próprio indivíduo pesquisado, mas
não podemos afirmar que servirá igualmente a todos. Com estas afirmações corro-
boram Williamon e Valentine (2002) e Gabrielsson (1999), sendo que este último re-
porta que existe uma pluralidade de modos para representar mentalmente a música.
Assim, sugere que estas representações se diferenciam quanto ao gênero musical, ao
instrumento, às experiências anteriores, ao conhecimento, à personalidade e ao mo-
mento de estudo. A natureza da interpretação em qualquer área do conhecimento in-
terfere nos respectivos processos de aprendizagem. Assim o planejamento da
performance de cada instrumentista estaria ligado à interpretação, não apenas musical,
mas como estes compreendem as informações de quaisquer natureza. O conheci-
mento destes processos compartilhado por uma quantidade imensurável de instru-
mentistas pode servir como opção para os indivíduos realizarem experimentos
durante o planejamento da performance. Contudo, o encontro da forma que será in-
dividualmente mais adequada ocorrerá após uma série de tentativas e erros em meio
a que geralmente se sobressai uma compilação das experiências e dos métodos ab-
sorvidos.
Muitos instrumentistas trabalham a memorização de diferentes formas, algumas
vezes ligadas a outras etapas do processo de construção de uma performance musical.
Por exemplo, este processo pode ser concomitante à primeira leitura da obra, pela
prática deliberada ou por insistentes repetições. Para o instrumentista este processo
inicia com o “arquivamento” mental das notas musicais e dos elementos da linguagem
da escrita da música.
Memorizar diminui as situações de risco em viradas de páginas ou outros imprevistos
no palco, como a ausência de luz necessária. Também permite maior liberdade e me-
lhor comunicação entre músicos em um grupo de câmara. As pesquisas de Williamon
(2002) reportam várias gravações da performance de uma violoncelista, tocando com
a estante (com e sem partitura), sem estante e com a estante escondida. Com isto, o
autor concluiu que até mesmo o público sofre uma influência visual na avaliação da
performance, preferindo aquelas cujos intérpretes não dividem o palco com estantes
e partituras.
Hoje em dia é freqüente o público presenciar a concertos cujos solistas se apresentam
no palco sem partituras. Para muitos, memorizar pode ser uma tarefa extremamente
árdua, demandando várias horas de estudo dedicadas apenas a isto. Para alguns au-
tores, realizar uma execução sem partitura se tornou sinônimo de competência pro-
fissional (Williamon 2002; Chaffin e Logan 2006). Excluindo esta questão “romântica”
e visual em torno do instrumentista ao ser presenciado pelo público, consideramos
que a memorização já é uma etapa inerente à construção da performance musical. A 179
memorização apresenta ainda uma grande vantagem no que se refere a maior fami-
liarização do instrumentista com a obra, pois há uma maior autonomia e muitas vezes
maior confiança na performance (Williamon 2002 e Ginsborg 2004). Enseja ainda o
controle dos níveis de ansiedade (Ray 2009 e Gordon 2006), pois memorizar induz
segurança ao performer e maior concentração no palco. Assim, o músico que busca
se profissionalizar deve trabalhar a sua capacidade de memorização, pois é provável
que em algum momento de sua carreira isto será necessário.
Os métodos e processos da memorização musical
Analogamente à musculatura, o cérebro necessita de treinamento constante para gra-
var as informações das atividades de estudos e do dia a dia. Existem muitas técnicas
de armazenamento das informações, mas o importante é trabalhar a forma em que
melhor se encaixa o indivíduo. Grande parte dos músicos sabem a importância do
cuidado na realização de movimentos corretos de dedilhados, nas respirações, como
de maneira geral com todo o aparato músculo-esquelético durante as seções de estu-
dos. A mesma atenção deve se ter com o cérebro ao procurar trabalhar corretamente
e evitar desgastes desnecessários. Na música, a memória compreende três aspectos
relacionados aos sentidos. Gordon (2006), Hughes (apud Williamon, 2002), Fernan-
dez (2001) apresentam a seguinte divisão no seu treinamento: visual, cinestésica (tátil,
digital ou muscular) e auditiva. Estes elementos são chamados por Ginsborg (2004)
de memórias sensoriais e podem ser trabalhadas separadamente ou concomitante-
mente a fim de obter uma memorização satisfatória.
A memória visual consiste em armazenar as informações impressas na partitura ou
outras imagens, tais como o posicionamento das mãos no instrumento ou gestos de
um regente. Ao visualizar a partitura no decorrer da performance, o intérprete reali-
zaria uma espécie de leitura mental da obra. Para Chaffin et. al. (2002) a visão é um
dos primeiros caminhos para a memorização de uma obra, momento que o instru-
mentista sente a necessidade de prestar atenção no posicionamento das mãos e dos
dedos ao executar o instrumento. Este mesmo autor considera que muitos instru-
mentistas evidenciam o uso da memória visual ao apresentar dificuldade de trabalhar
com edições diferentes da partitura estudada inicialmente. Nos estudos de Williamon
e Valentine (2002), alguns estudantes de piano demonstraram depositar confiança
na visão ao segmentar a obra para memorizar a partir da representação visual da par-
titura. O treinamento desta memória pode ser realizado a partir de obras curtas e de
pouca dificuldade mecânica, aumentando progressivamente a dificuldade das peças
até o ponto em que freqüentemente será possível visualizar mentalmente uma per-
formance inteira.
A memória cinestésica é uma forma de memorização sensorial relacionada ao tato.
É formada a partir da prática no instrumento arquivando mentalmente sensações
musculares dos dedos, da mão e braço, tais como digitação, saltos e movimentos do
arco no caso de instrumentos de orquestra da família das cordas. Esta memorização
180 pode ocorrer pela prática deliberada ou até mesmo de forma quase inconsciente. Se-
gundo Ginsborg (2004), a memória cinestésica é muito utilizada por amadores ou
quando não há compromisso com a obra. Ocorrendo muitas vezes pelo instrumentista
repetir fragmentos ou toda a obra diversas vezes até que este consiga tocar sem o au-
xílio da partitura. Pode ser bem utilizada em passagens com complexidade técnica
nas quais os instrumentistas possam treinar pequenos trechos como saltos, digitações,
escalas, ou ainda isolar as dificuldades e executar as mãos separadas. Realizar uma
performance utilizando a memória cinestésica como principal guia da obra pode ser
perigoso, segundo Ginsborg (2004), uma vez que a execução musical pautada exclu-
sivamente por esse elemento deixa poucas possibilidades para recuperação em caso
de um erro.
Para realizar a memória auditiva de uma obra, o instrumentista precisa ter a capaci-
dade de gravar mentalmente seqüência de alturas e ritmos, memorizando melodias
e harmonias. Apesar desse aspecto da memória enfatizar o elemento auditivo, Leimer
e Gieseking (1949) chamam isto de memória visual na medida em que cria uma vi-
sualização, isto é, uma compreensão mental de sons imaginários. Segundo estes au-
tores, indivíduos com um bom nível de desenvolvimento técnico possuem uma
tendência natural para reter sons mentalmente. Desse modo, o músico pode imaginar
como soaria a performance sem estar em contato com o instrumento musical, utili-
zando o “ouvido interno”. Ginsborg (2004) afirma que a memória auditiva muitas
vezes é formada a partir da freqüente audição do estudante, em suas diversas repeti-
ções de trechos ou da totalidade da obra, em seus estudos. Segundo Santiago (2001),
existem casos de músicos que desenvolvem um “ouvido fotográfico”, sendo capazes
de aprender obras complexas de diferentes gêneros em apenas com algumas audi-
ções.
Aspectos da memorização na performance musical formados por sentidos como a
visão, o tato e a audição formam respectivamente a memória visual, cinestésica e au-
ditiva, fornecendo os caminhos para uma execução musical memorizada. Mas para
isto, é importante que cada instrumentista conheça suas capacidades e suas limitações
para fazer as suas escolhas durante a construção da performance musical.
O conhecimento musical e interpretativo da obra pelo instrumentista também pode
servir como auxílio para a memorização de uma obra. Para Chaffin e Logan (2006) e
Ginsborg (2004), conhecer os limites estruturais e os elementos de uma composição
pode formar pontos importantes para a memorização. Assim, o instrumentista pode
desenvolver a memória conceitual a partir do momento que a música começa a fazer
sentido para ele, sendo explorada concomitantemente aos caminhos para a memori-
zação formada pelos sentidos. Mas para isto é necessário que o intérprete consiga re-
conhecer estes limites estruturais da obra, trechos da música que possam ser
fragmentados, por sinais expressivos, por aspectos interpretativos, por elementos
composicionais ou mesmo por dificuldade técnica formando assim suas próprias
idéias e conceitos sobre a obra. Para Ginsborg (2004), esta memória explora também
partes maiores da obra, assim como frases, seções, modulações, ritornelos e outros
aspectos que fazem parte da estrutura da obra. Provost diz que Sandor (Provost, 1992) 181
chama a isto de “memória intelectual ou analítica”, expondo que conhecimento da
estrutura e da composição musical ajudam o intérprete na memorização de uma per-
formance.
Chaffin e Logan (2006) abordam alguns pontos-chave para a recuperação do fluxo
da obra em caso de esquecimento, utilizados por instrumentistas para lembrar de
uma obra. Estes pontos-chave seriam “marcos” criados pelos intérpretes ao estudar
uma obra. Podendo estes pontos-chave ser: estruturais, relacionados à estrutura da
obra; expressivos, caracterizados pelas mudanças de caráter da obra, como anda-
mento ou textura; interpretativos, locais onde o intérprete precisa colocar especial
atenção às mudanças da obra; básicos, aspectos técnicos e mecânicos da obra. Pelas
informações podemos compreender que estes pontos-chave sugeridos por Chaffin e
Logan (2006) estão vinculados à compreensão da obra e o uso dos sentidos. Podemos
entender que entre estes pontos-chave, os estruturais e expressivos estariam ligados
à memória conceitual, os interpretativos fazem uso da memória auditiva e conceitual.
Já as pistas básicas recorrem exclusivamente à memória cinestésica.
A memória realizada através de repetições inconsciente com o instrumento pode nos
passar a sensação de segurança ao executar a obra inteira sem interrupções, mas pode
gerar lapsos de memória em uma apresentação pública. Para evitar fatalidades é ne-
cessário que o intérprete se detenha na memorização pela da prática deliberada, es-
tudando conscientemente cada trecho, empregando os métodos de memorização
adequados a cada passagem. Nos estudos de casos descritos por Williamon e Valen-
tine (2000, 2002), Chaffin e Logan (2006) e Chaffin et. al. (2009), informa-se da im-
portância do uso da memória visual, cinestésica e auditiva, de modo que mesmo a
memória cinestésica pode ser fundamental para a recuperação da memória em casos
de lapsos em uma performance. Santiago (2001) expõe as diversas formas como os
instrumentistas podem memorizar uma performance, sendo elas automatizadas pelo
indivíduo ou não.
Apesar de existir variação considerável nos modos pelos quais os músicos proce-
dem para memorizar música, dependendo das percepções que têm de seus pontos
fortes e fracos e das necessidades da tarefa, há, de um modo geral, duas aborda-
gens: uma se baseia em processos automatizados auditivos, cinestésicos ou visuais;
a outra, na análise cognitiva da estrutura da obra (Santiago 2001, 174).
Podemos compreender que a análise cognitiva da estrutura da obra, cuja autora se
refere, estaria vinculada à memorização conceitual da obra, pelo fato da memória ser
formada pela compreensão de elementos presentes na composição musical. Como
parte desta memória conceitual, caracterizada pela compreensão de eventos, Chaffin,
Logan e Begosh (2009) expõem as memórias: emocional, estrutural e lingüística.
Sendo a memória emocional ligada ás nuances e as emoções inseridas na sua inter-
pretação da obra pelo performer. A memória estrutural estariam ligada à organização
das seções da obra. Memória lingüística estaria relacionado ao discurso mental que
o instrumentista faz ao estudar uma obra, advertindo-o ou sugerindo relações com o
182 restante da obra.
Relacionando a memória lingüística com a memória visual e auditiva, os pianistas
Leimer e Gieseking (1949) instigam o leitor ao estudo reflexivo. Assim, uma perfor-
mance pode ser preparada inteiramente pela visualização mental de todos os elemen-
tos da obra — notas, ritmos, harmonias, sinais de expressão e os principais
procedimentos técnicos — na medida em que permite que o instrumentista seja capaz
de descrever sua execução inteiramente de memória. Mas para isto os autores consi-
deram importante o estudo concentrado, o intenso treinamento auditivo durante os
ensaios. Como treinamento, o estudante pode começar por obras de níveis mais ele-
mentares a fim de gravar estas imagens mentais.
Provost (1992) alega que a maioria dos instrumentistas utilizam apenas uma ou duas
formas de memorização entre a visual, cinestésica, auditiva e conceitual, enquanto
recomenda todas estas formas para reter o máximo possível de informações. Por ra-
zões óbvias, uma memorização musical fornecerá maior segurança se cada indivíduo
fizer o uso equilibrado de todos estes métodos, encontrando sua própria fórmula para
a realização de uma performance inteiramente memorizada.

Conclusões
As formas de memorização sensorial tais com visual, cinestésica e auditiva, somadas
a memória conceitual formadas pela memória emocional, estrutural e lingüística, for-
mam os métodos para a realização de uma performance memorizada. Mesmo para
aqueles estudantes de música que consideram esta tarefa extremamente exigente, lem-
bramos que a memorização precisa ser praticada constantemente, fazendo que o pró-
prio intérprete encontre a sua forma adequada e que se sinta seguro para uma
apresentação.
Não é o propósito deste artigo desmerecer uma apresentação que o intérprete faz uso
da partitura na execução das obras, mas de reforçar a importância do conhecimento
de diferentes processos e os caminhos de uma memorização. Os autores tiveram a
preocupação de expor alguns aspectos cognitivos da música para que o estudante
possa formar o seu próprio método de memorização no decorrer da sua construção
da performance musical. Mesmo com a diversidade de propostas de sistematização
dos estudos visando a memorização musical existentes, qualquer processo não é apli-
cável e seguro indiscriminadamente a todos os performers.
Referências
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uma reflexão crítica do sujeito de um estudo de caso” (Tese de Doutorado, Universidade
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PÔSTERES

O gesto na performance instrumental


184 Belquior Guerrero Santos Marques
belquiormarques@hotmail.com
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
rael.gimenes@gmail.com
Universidade Estadual de Maringá – UEM,
Laboratório de Pesquisa e Produção Sonora – LAPPSO

Palavras-chave
gesto musical – performance – actio

O presente trabalho é resultado parcial de pesquisa, pretendendo fazer uma investi-


gação sobre as possíveis contribuições que o gesto corporal do instrumentista podem
trazer à significação musical. Autores como Freitas (2005) afirmam que o gesto cor-
poral do performer pode ser considerado como um elemento construtivo de comu-
nicação e significação, fator epistemológico e expressivo e que contribui para a
construção da significação musical como um todo. O presente trabalho partiu de uma
revisão do conceito de gesto considerando desde o Actio na retórica aristotélica até
os estudos mais recentes sobre o gesto musical e a performance. Posteriormente abor-
damos, segundo atores como Freitas (2005) e Iazzetta (1997), de que maneira o gesto
instrumental encontra-se, em alguns casos, distanciado da performance. Como úl-
tima etapa, pretendemos demonstrar como considerar o gesto instrumental em re-
lação às estruturas musicais de uma obra para violão abordando como o gesto se
relaciona com a técnica instrumental e a partir disso como pode contribuir para a
construção de significação de tais estruturas musicais.
Nos últimos anos, tem sido crescente a preocupação de músicos e pesquisadores
acerca do gesto musical, questões perceptuais e discursivas, e também a investigação
da importância do gesto na prática artística, seja na execução de obras ou na compo-
sição. Tais questões foram levantadas por autores como Smalley (1986), Zagonel
(1992) e Wishart (1996) e vêm sendo exploradas por educadores, compositores e mu-
sicólogos, o que proporcionou uma produção acadêmica considerável sobre o assunto
nos últimos anos. Mesmo despertando um interesse maior somente após a segunda
metade do século XX, a preocupação do gestual como fator contribuinte à significação
discursiva já está presente desde a retórica grega.
Consideramos que o estudo da retórica aristotélica, principalmente do Actio, que
compõe um dos elementos desta arte, é de grande importância ao entendimento dos
processos significativos e expressivos da gestualidade. Aristóteles ao falar sobre a arte
retórica e discorrer sobre as etapas e elementos importantes para um discurso, de-
fende como é importante para o orador se servir da gestualidade para tornar o dis-
curso persuasivo. O gesto deve ser usado então para suscitar no ouvinte paixões,
conduzindo-o na linguagem e reforçando a significação desta pelo gesto.
Os estudos musicológicos têm afirmado que a música instrumental até o final da re- 185
nascença era produzida principalmente a partir dos cânones composicionais típicos
da música vocal e de suas formas intrínsecas de construção de significação a partir
dos elementos retóricos textuais. Somente no barroco é que a música instrumental
realmente se efetiva e as preocupações retóricas e significativas têm que ser conside-
radas em um contexto que agora prescinde do conteúdo semântico textual. Neste sen-
tido, podemos considerar que grande parta da experiência musical que os
instrumentistas e compositores tinham em sua bagagem, provinha do canto, e com
este, faziam associações de todos os aspectos na execução instrumental. Associações
que para sustentar uma coerência prosódica (herança da música vocal) ao discurso
musical, usufruíam também do gesto como elemento musical, sendo este, fator in-
trínseco à execução instrumental.
Trabalhos recentes de autores como Freitas (2005), Iazzetta (1997) Assis e Amorin
(2009) apontam dentre outros assuntos pertinentes ao gesto, como este se distanciara
da prática da performance nos dias de hoje. Freitas (2005), baseando-se na obra de
Gusdorf, aponta que no século XIX pós revolução industrial, a concepção que havia
sido concebida para a produção em larga escala, dividindo as etapas de produção e
especializando a mão de obras para setores específicos, invadiria e influenciaria o
pensamento moderno, afetando, obviamente, a produção científica e artística. Isto
refletiria na música, como herança do romantismo, período em que o instrumentista
assumira uma posição de prestígio até então desconhecida na história da música oci-
dental. O ensino musical pós revolução industrial seria direcionado à formação de
virtuoses, conservatórios se moldariam a uma educação que privilegiasse a técnica,
tornando a formação do músico voltada para esse fim. Essa abordagem técnica estri-
tamente mecanicista, fragmentaria o conhecimento musical, fazendo com que os mú-
sicos desenvolvessem a técnica desvinculada do conteúdo e da experiência musical,
separando o desenvolvimento sensório motor do emotivo, cultural e perceptual.
Acreditamos, que esta fragmentação do aprendizado levantada por Freitas não foi
uma causa isolada que distanciaria o gesto da prática musical. Como aponta Iazzetta
(1997), o surgimento da indústria fonográfica em meados do século XX também seria
um dos fatores cruciais nesta transformação. Iazzetta considera que antes do surgi-
mento da indústria fonográfica músicos e ouvintes associavam o gesto de forma in-
separável da prática musical, uma vez que a música, até então, só podia ser
reproduzida ao vivo. Mesmo no início da era fonográfica, toda a referência de escuta
mantinha relações com o gesto do instrumentista. A música realizada ao vivo era a
referência para a gravação, e a presença do gestual necessário para determinada exe-
cução musical era sustentado por uma convenção, que era perpetuada pelos instru-
mentistas. Este papel de referência, com o passar do tempo se reverteu, tornando
como prática instrumental ideal, a execução da obra que mais se aproxima de grava-
ções da mesma. Esta constatação de Iazzetta pode facilmente ser relacionada à de
Freitas, uma vez que a formação do músico e o contato dele com a música, neste caso,
a referência musical partindo da escuta, se tornam um emaranhado cultural que
186 transforma o pensamento artístico, seja do músico em formação, ou da sociedade,
mudando a maneira de produzir e compreender a música.
Assis e Amorim constatam que a necessidade de indicações cada vez mais detalhadas
na notação musical surgem devido a um distanciamento do gestual. Os autores afir-
mam que no período serial, devido à alta quantidade de determinações precisas dos
aspectos dinâmicos, temporais, entre outros, o interprete ficou limitado na interpre-
tação de tais elementos, diminuindo sua parcela de contribuição interpretativa na
obra.
Sendo assim, acreditamos que a preocupação com o gesto decorrente do ato perfor-
mático pode ser de grande contribuição para a construção da significação musical.
Não é intuito aqui desmerecer ou colocar em xeque práticas musicais que prescindem
do gesto corporal como na música eletroacústica solo, ou outras manifestações do
tipo. Nesse sentido, discursos sobre o gesto enquanto propriedade musical estrutural
ou conceitos de gesto como propriedade significativa que emerge do ato perceptivo
podem apresentar resultados interessantes como propõem Smalley (2008). Porém,
nos restringimos à significação gestual própria da prática instrumental.
A idéia central deste trabalho, e o ponto em que ele se encontra no momento, é in-
vestigar qual é o gestual corporal que emerge naturalmente da estrutura da obra. Cada
tipo de repertório terá suas características principais, dependendo da poética musical
que a suporta, no que se refere a tensão e relaxamento, direcionalidade, entre outras.
Acreditamos que o gestual do performer será diretamente interconectado e emergirá
dessas propriedades estruturais contribuindo efetivamente com a construção da sig-
nificação musical. Vale ressaltar que não pretendemos considerar que os interpretes
não realizam os gestos apropriados durante a performance de uma obra, já que acre-
ditamos que o conjunto gestual geralmente emerge das necessidades técnicas instru-
mentais para realizar a obra e de suas propriedades estruturais, porém acreditamos
que a consciência de tais possibilidades pode ser um fator que contribua tanto com a
performance musical quanto o entendimento de como o gestual pode ou não contri-
buir com a construção da significação musical tanto pelo interprete quanto pelo
ouvinte.
Referências
Assis, Ana Cláudia e Felipe Amorin. “O gesto musical e a expressividade”. Performa: Conferência
Internacional em estudos em performance, Universidade de Aveiro, Maio 2009.
Aristóteles. Arte retórica. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 2002.
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Universidade Estadual de Campinas, 2010.
Smalley, Denis. A imaginação da escuta: a escuta na era eletroacústica. Cognição & Artes Mu- 187
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Smalley, Denis. Spectro-morphology and Structuring Processes, in S. Emmerson (ed.), The
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Wishart, Trevor. On sonic art. New York: Routledge, 1996.
Zagonel, Bernadete. O que é gesto musical. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

Aprendizagem e desempenho motor e procedimentos didáticos:


questões no âmbito pianístico
Fernando Pabst Silva
fernandopabst@gmail.com
Maria Bernardete Castelan Póvoas
bernardetecastelan@gmail.com
Departamento de Música – Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
A intenção da presente investigação foi informar, através do cruzamento interdisci-
plinar de conhecimentos, a concepção de um sistema didático pianístico que funda-
mentasse e justificasse seus preceitos em axiomas primariamente mecânicos e
cognitivos. Trazendo à tona uma discussão acerca de conceitos-chave de áreas como
biomecânica, cinesiologia e ergonomia, este trabalho procurou confrontar os achados
inter-áreas com sua prestabilidade para a área do desempenho pianístico. Perse-
guindo teoricamente os conceitos internos à grande área da coordenação motora e
sua viabilidade para o pianista, encontrou-se dentro da proposta teórica dos “ciclos
de movimento” (Póvoas, 1999, 2006, 2007), recurso estratégico de organização do
movimento, um modelo de trabalho com potencial para a continuidade desta discus-
são. Buscou-se debater, negar ou confirmar os achados da autora ao tê-los aplicados
ao estudo de um determinado trecho de um exemplo musical do compositor Sergei
Rachmaninov, sempre fazendo a ponte com o objeto deste trabalho ao tangenciar a
discussão acerca dos procedimentos didáticos na sua intersecção com questões cog-
nitivas e mecânicas.
Palavras-chave
aprendizagem motora – ação pianística – ciclos de movimento
Introdução
Este artigo visa dar conta de progressos alcançados na pesquisa em andamento, de-
nominada “Técnica, Movimento e Coordenação Motora — Conceitos e Aplicações In-
terdisciplinares na Ação Pianística”. Entre as áreas tangenciadas pelo grupo de
188
pesquisa estão: biomecânica, cinesiologia, ergonomia e controle motor. Através de
levantamento bibliográfico, discussões e o confrontamento de hipóteses testadas pra-
ticamente ao instrumento, o grupo desenvolve pontes interáreas de interesse para os
estudantes e profissionais do piano.
A pesquisa tem como centro de interesse o espaço comum em potencial partilhado
entre a ação pianística e a coordenação motora. Essa articulação não somente é pos-
sível como é desejada, haja vista que o movimento é o elemento-meio da ação pia-
nística (Póvoas et al. 2006, 59), e um dos principais fatores de desempenho desta ação
é a coordenação motora. Convém definirmos ação pianística como uma ação tal
“construída através do processamento das questões envolvidas na música selecionando,
coordenando e realizando tanto os elementos da construção musical que constituem
e caracterizam cada obra quanto os movimentos que possibilitem esta ação” (Póvoas
1999, 80). Portanto, a totalidade do conjunto físico-motor do instrumentista é con-
siderada na sua estreita causalidade com o controle da coordenação motora.
Eixo essencial e fator determinante da ação pianística, a coordenação motora, pro-
cesso ao qual o instrumentista almeja se familiarizar plenamente, informa direta-
mente outros dois conceitos — o desempenho motor e a aprendizagem motora. Esses
conceitos entram em jogo quando o problema de como se adquirir a coordenação
motora desejada é lançado. A aquisição de habilidade passa necessariamente pela fa-
miliarização com as entranhas do processo de aquisição de coordenação motora. “A
compreensão e a elaboração exatas das informações sensoriais de movimento como
base de uma direção e regulação corretas do decurso de movimento [. . .] são conhe-
cidas como processo essencial da coordenação motora” (Meinel 1987, 153).
Situa-se neste espaço o quinhão primariamente motor da ação pianística. Retomando
classificações padrão, sabemos que a ação pianística realiza-se num contexto de alto
grau de previsibilidade ambiental e estabilidade, qualificando-se como uma habili-
dade fechada, de acordo com o jargão da área das ciências do movimento. Também
se encontra contingencialmente situada num meio termo entre habilidade discreta e
seriada (Schmidt; Wrisberg 2001, 20), donde ambas se fazem presentes durante a
execução do texto musical.
A fluência gestual, que requer uma motricidade calculada, deve engajar todo o corpo
e não somente os dedos. Para Whiteside , a transferência do texto musical para efetiva
musical “deve, além de ser centralmente controlada pela imagem sonora, ser coerente.
É o corpo como um todo que transfere a idéia da música para a efetiva produção da
mesma.” Portanto, os dedos do pianista, a parte mais externa do aparelho pianístico,
fazem “parte de um mecanismo que não pode funcionar com todas as suas vantagens
inerentes sem o auxílio de um controle central” (Whiteside 1997, 3). Esse controle
central, essa pré-visão organizacional pode ser definida como sendo o processo au-
toconsciente da aprendizagem motora, onde convergem realizações práticas de mo-
vimentos específicos e uma atenção cognitiva especial.
Reside, na tentativa de se definir separadamente desempenho e aprendizagem mo-
tores, um paradoxo, pois “repetições de performance motora são necessárias para
que os indivíduos alcancem altos níveis de aprendizagem motora, e o nível de apren- 189
dizagem pode somente ser avaliado observando-se a performance motora de cada
um” (Schmidt e Wrisberg 2001, 35). Com freqüência, por via desta ansiedade analítica
de se isolar o desempenho da aprendizagem, pode ocorrer concepções faltosas de di-
dática instrumental. Almejando-se expandir a discussão para uma área mais atinente
à prática, na seção a seguir discutirei a articulação, a meu ver inevitável, entre os con-
ceitos de aprendizagem e desempenho motor.
Aprendizagem e desempenho motor
Resumidamente, aprendizagem motora diz respeito ao ganho “relativamente perma-
nente de habilidades associadas à prática ou à experiência” (Schmidt e Lee 2005).
Nota-se, portanto, a associação direta, desde a mais enxuta definição, que existe entre
a “prática” e a aprendizagem. Como demonstra a literatura da área, somente através
de repetições da prática é possível engendrar o aprendizado motor; mas é importante
ressaltar ainda que o desempenho motor, na conjuntura científica que o separa da
aprendizagem motora, tem função estritamente teórica, onde uma situação-ideal de
desempenho ocorre dissociada de questões de erro, feedback (retroinformação) e, es-
pecialmente neste caso, de aprendizagem.
A aquisição de aprendizagem motora “acontece tanto no decurso da vida de um in-
divíduo quanto através de gerações. [Ela] é a conseqüência da co-adaptação entre o
maquinário neural e a anatomia estrutural” (Wolpert, Ghahramani e Flanagan 2001,
488). Esse recurso adaptativo ocorre constantemente e de maneira secundária, de
traços fisiológicos. A questão mais premente da ação pianística seria: como controlar
e regular este processo para que o mesmo aconteça de maneira privilegiada cogniti-
vamente? Esta questão engendra necessariamente uma reflexão acerca dos procedi-
mentos didáticos disponíveis.
A concepção hegemônica e equívoca de que a aprendizagem motora e o desempenho
motor ocupam pontos extremos de uma linha a ser percorrida pelo sujeito leva ne-
cessariamente a algumas conclusões, quando transportada ao contexto da ação pia-
nística, a listar: que repetições, perfunctórias, de desempenho levarão ao aprendizado;
que o status final do desempenho motor não abarca nenhum nível de aprendizagem;
que ambos são processos assimétricos; que a conexão entre um e outro processo se
dará de forma fisiológica, ao invés de consciente e com níveis de adaptabilidade di-
versos.
Essa concepção, que chamaremos atomista, defenderia que, conseqüentemente, as
partes equivalem ao todo. Praticamente, isso resultaria numa didática que conteria
tipos de prática que são, no nosso ponto de vista, detrimentais para o aprendizado
consistente, como, por exemplo, o estudo lentíssimo, a separação didática dos vários
elementos constitutivos a serem praticados separadamente, como ritmo, articulação,
dinâmica, entre outros aspectos. Segundo Whiteside (1997, 68), “o estudo lento é res-
ponsável pela criação de uma infinidade de hábitos que serão prejudiciais para a ob-
190 tenção de velocidade mais tarde”.
Ao deliberarmos sobre a natureza do sistema músculo-esquelético, veremos que o
mesmo “é altamente não-linear, no sentido de que somar duas seqüências de coman-
dos motores não resulta na soma correspondente dos movimentos” (Wolpert, Ghah-
ramani e Flanagan 2001, 488). Disto extrai-se que o todo não equivale à soma das
partes, mas constitui-se em processo paralelo, mesmo alheio, à segmentação analítica
do movimento, e mostra-se maior do que suas partições. Tem-se, portanto, que uma
didática que advoga a separação de movimentos em micro-unidades, a ponto de des-
caracterizar o movimento final desejado, como ocorre quando o estudo lentíssimo
ao piano é aplicado, resultaria em implicações no mínimo incertas para o instrumen-
tista.
Para uma didática sintética, que considera a primazia da perspectiva final do movi-
mento, a característica final do movimento desejado deve ser mantida na sua prática
desde os momentos iniciais, visto que a colaboração de dois movimentos separados
não resultaria no status motor final. A prática integral do movimento é uma questão
que requer atenção especial, principalmente no que diz respeito à formulação de um
sistema que dê conta de sua realização satisfatória desde os estágios iniciais da prática.
Esta visualização mais global do movimento e da ação pianística tende a ser benéfica
para estudantes e profissionais do piano. Tendo em conta o status motor final alme-
jado como caminho para a aprendizagem motora, e não o contrário, torna-se possível
conjugar os dois conceitos — aprendizagem e desempenho — num só, facilitando a
ocorrência de aquisição de habilidade satisfatória. Deste ponto de vista, pode-se ava-
liar se um expediente didático é ou não sintético no seu tratamento da ação pianística,
em oposição à uma visão analiticamente segmentada.
Para dar conta da ação pianística em seu âmbito de coordenação motora integral, um
sistema deveria, portanto, se conformar ao fato de que não existem maneiras teleo-
lógicas de se percorrer o caminho entre aprendizagem e desempenho motor. Um
exemplo de sistema que pode ser aplicado favorecendo esse ponto de vista é o recurso
“ciclos de movimento” (Póvoas 1999; 2006), que será explicado e ilustrado a seguir.

Ciclos de movimento
Concebido como princípio de relação e regulação do impulso-movimento — ciclos de
movimento — o recurso é assim definido pela autora:
“[…] recurso técnico que prevê a organização do trabalho pianístico por meio da
exploração consciente de movimentos nos eixos x, y e z e cuja flexibilização nestes
eixos é orientada por linhas imaginárias ou desenhadas sobre trechos musicais de
interesse. A opção pela linha de trajetória do ciclo é determinada pelo design mu-
sical, conforme a situação funcional mais eficiente, no sentido de otimizar a ação
pianística” (Póvoas 2007, 544).
Um movimento experto tipifica-se pela negociação de diversos impulsos, por vezes
sendo operado por mais de uma alavanca corporal simultaneamente e, portanto são
mais complexos e naturais do que movimentos caracteristicamente retilíneos. Com
este princípio em mente, optou-se por linhas mais parabólicas, que o recurso prevê
através da decodificação do texto em elementos gestuais e musicais, entre eles o im- 191
pulso e o apoio. De acordo com Póvoas (2006b, 666), são “três as fases componentes
de um movimento: face de impulsão, fase de percurso e fase da queda (apoio)”.
Segue um exemplo da criação de linhas imaginárias em torno da partitura, acordadas
com o design musical, para complementar a explanação anterior, onde as linhas man-
tém o propósito de integrar o aproveitamento do impulso inicial aos impulsos inter-
mediários (Póvoas 2006b, 666).

Para Kochevitsky (1967) “a realização ao piano de distâncias entre eventos musicais


para as duas mãos [mostra-se] como a questão mais difícil a ser resolvida, [. . .] devido
à conformação assimétrica do teclado”. Isto, aliado ao fato de que a coordenação bi-
manual está exposta de uma maneira mais simplificada, justifica a escolha do referido
trecho musical para fins ilustrativos.

Figura 1 – Compassos 1 e 2 do Prelúdio para piano op.23 n.5, de Sergei Rachmaninov


(Rachmaninov, 1970).

Observando-se a imagem sonora pretendida e o design musical que procede do evento,


linhas imaginárias de impulso (setas para cima) e apoio (setas para baixo) foram dis-
postas em volta do texto musical. Contando com a participação dos punhos através
de gestos flexíveis e parabólicos, os eventos musicais em questão são produzidos se-
qüencialmente, mesmo que realizados em uma velocidade de execução menor do
que a velocidade final desejada. Por meio da elaboração encadeada de processos mo-
tores plurais, a tendência de trabalho é de que grandes alavancas (como os membros
superiores) absorvam e flexibilizem a atuação de alavancas menores (como os dedos),
diminuindo, portanto, a interferência negativa de músculos antagônicos no movi-
mento tido como ideal.
A primeira seta para baixo indica um apoio, com o punho vindo em trajetória des-
cendente na nota sol, ao início do compasso 1. Com base na flexibilidade curvilínea
sugerida pelo traço imaginário, o movimento segue sem interrupção para o próximo
evento — as terças no registro mais agudo e quartas para a mão esquerda — em que
o punho, juntamente com o antebraço, realiza uma trajetória de impulso e lançamento.
192 O seqüenciamento das setas, e por conseguinte das trajetórias, contém, em germe, o
movimento balanceado que será imprescindível ao satisfatório desempenho musical
nas etapas finais de aprendizado. E,
“se operacionalizados de forma coordenada e contínua, os ciclos possibilitam que
mais eventos sejam tocados em uma única inflexão do movimento (seta). Tal or-
ganização permite desenvolver uma maior velocidade de execução (rapidez de
movimento) devido à otimização da trajetória dentro de cada ciclo de movimento”
(Póvoas 2007, 545).
Considerado superficialmente, a decodificação do texto musical em gestos parabólicos
pode apresentar-se como simples, mas é importante notar que esta transcrição deve
ser minuciosa, além de orientada por tentativas e erros. Ao trazer nossa atenção para
os tempos finais do primeiro compasso do exemplo, notamos que a concentração de
eventos de flexibilização demanda que a seta ascendente inclua gestos que pouco
antes eram separados por um apoio. Como o compositor especifica a pulsação firme
alla marcia, o excesso de apoios não deve inibir este detalhe. Disto tem-se que pres-
supor a simplicidade das linhas imaginárias pode ser enganoso, visto que não devem
ser traçados de modo automático, sem considerar os diversos fatores envolvidos, mas
de maneira heterodoxa.
Na esfera da didática, “o problema que confronta professores [. . .] é como seqüenciar
a prática de uma variedade de tarefas dentro de uma sessão, a fim de maximizar a
aprendizagem” (Schmidt e Wrisberg 2001, 247). A resposta apresentada pela utiliza-
ção do recurso “ciclos de movimento” é de interesse. Concentrando sincreticamente
o movimento final em germe no estudo parcial, a utilização dos “ciclos de movimento”
chama especial atenção à centralidade da questão da consciência cinestésica e cogni-
tiva para a efetiva produção do aprendizado consistente. Enriquecendo o feedback
proprioceptivo, através das sólidas definições das trajetórias a serem seguidas, o usuá-
rio do recurso desenvolverá uma linguagem particular e, por conseqüência, um re-
pertório de movimentos para confrontar as mais variadas situações técnicas.
De acordo com Whiteside (1997, 6), a descrição de uma coordenação motora apta
“teria de abranger as dificuldades do instrumento utilizando o princípio de que
uma ação repetida por uma alavanca maior pode absorver ações de alavancas me-
nores. A continuidade ativa das repetições das alavancas maiores não deve ser in-
terrompida pelas ações das alavancas menores. Isto é essencial para uma técnica
fluída.”
Além de conceber a coordenação motora de um modo diferente, o recurso “ciclos de
movimentos” também concentra muito do seu atrativo na maneira de conceber a
aprendizagem motora. Como os movimentos estão sendo praticados de uma maneira
não-distante da forma final que adquirirão na fase de desempenho motor, o caminho
e o paradoxo mencionados anteriormente são, de certa forma, solucionados. Como
discorre a autora, os ciclos podem “diminuir a diferença entre a reação muscular du-
rante o período de estudo em que determinada obra é executada em andamento mais
lento e a reação muscular nos estágios” mais próximos da velocidade pretendida (Pó-
voas 2006b, 666). O aperfeiçoamento da habilidade motora advirá de uma conciliação 193
total, e não parcial ou seccionada (analítica) das partes constituintes do movimento
final, quando da aplicação dos ciclos.
Conclusão
A formação da idéia de uma coordenação motora aplicada ao piano é diretamente
responsável na formulação de programas de treinamento instrumentais e, portanto,
de concepções didáticas que necessariamente passam pela discussão acerca da dife-
renciação entre aprendizagem e desempenho motor. Se não aliarmos gestos musicais
a elementos motores mais grandiosos, a aquisição de coordenação, como processo
de aprendizagem motora, sofre. A secção de movimentos em reduções unitárias,
como é o caso do estudo lento de trechos musicais cuja realização instrumental final
deverá atingir altos patamares de velocidade e sem que isto seja previsto, cria verda-
deiras barreiras ao desempenho musical veloz e econômico. Isso acontece porque o
planejamento, quando feito de todo, não leva em consideração o status motor final
desejado e, na secção didática dos elementos musicais que opera, não alia estes ele-
mentos com elementos gestuais. Através da utilização dos “ciclos de movimento”
pode-se desenvolver um método de estudo onde a prática lenta e calculada não re-
sultará em prejuízos para o desempenho final, como é de praxe, mas exatamente no
contrário: com sua negociação interdisciplinar entre design musical e biomecânica,
o percurso do movimento está antecipado e definido a priori, assim como as expec-
tativas sensorimotoras das ações como um todo. A revisão bibliográfica mostrou-se
essencial para corroborar ou não questões e hipóteses que foram levantadas no per-
curso da pesquisa, não extinguindo, beneficamente, os vastos questionamentos ainda
possíveis para o pesquisador das ciências do movimento e da ação pianística.
Referências bibliográficas
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med, 2004).
Kaplan, J. A. Teoria da aprendizagem pianística. (Porto Alegre: Movimento, 1997).
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1967).
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do movimento na ação pianística”, in Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de
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194
Póvoas, M. B. C.; Bencke, E.; Colombi, E. D. “Movimento, coordenação e desempenho músico-
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A espectromorfologia como discurso:


considerações acerca da obra teórica de Denis Smalley
Maurício Perez
mauriciojesusperez@hotmail.com
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo
rael.gimenes@gmail.com
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Laboratório de Pesquisa e Produção Sonora – LAPPSO
Resumo
O texto a seguir apresenta os resultados parciais de um projeto de iniciação científica
em andamento. Este trabalho tem como objetivo a investigação dos processos de sig-
nificação da Música Eletroacústica, em especial da vertente Acusmática, a partir da
organização dos materiais musicais no interior espaço composicional. Para tal propó-
sito estamos utilizando como ferramenta a obra teórica do compositor Denis Smalley.
Para o autor, o gesto e seus desdobramentos constituem uma importante ferramenta
de organização discursiva.
A metodologia utilizada foi inicialmente investigar como o conceito de gesto de Smal-
ley é considerado em seus textos (1986; 1997; 2008) comparando as semelhanças e
diferenças de abordagem do autor ao longo do tempo de desenvolvimento de seu
trabalho teórico. Como meio de demonstrar a relevância da teoria de Smalley, este
trabalho está dividido em duas etapas. Primeiramente iremos analisar uma obra acus-
mática, identificando os fatores constitutivos do discurso gestual, no qual os principais
elementos envolvidos neste processo são aqueles que possuem o movimento como
agente e estão representados nos conceitos de: gesture, gestural surrogacy, motions,
195
structural functions e behaviour. Em um segundo momento pretendemos verificar
como a teoria de Smalley pode ser aplicada como ferramenta composicional no que
tange à organização discursiva pela criação de uma peça acusmática original.
Palavras-chave
Denis Smalley – espectromorfologia – discurso musical

Introdução
Desde o surgimento da Música Eletroacústica, evidenciado nos esforços de Pierre
Schaeffer, são recorrentes discussões acerca da organização dos materiais musicais e
de como tais organizações podem ser significadas. Tal fato pode ser compreendido
pela própria natureza do Tratado de Schaeffer. Em seu Traité des objets musicaux
(1966), o autor centrou-se principalmente na descrição das propriedades do material
musical em si, ou seja, no objeto sonoro, não discorrendo sobre as possibilidades de
organização entre eles, ou sobre suas capacidades semânticas inseridas no discurso
musical. Sendo assim, os compositores eletroacústicos, contemporâneos e continua-
dores das abordagens de Schaeffer, buscaram oferecer paradigmas que dessem conta
desta problemática. Dentre os autores que se debruçaram sobre este tema, destacamos
aqui o compositor Denis Smalley, cuja principal contribuição é a formulação do con-
ceito de Espectromorfologia.
Segundo o autor, o conceito de Espectromorfologia refere-se “à forma dinâmica do
espectro de freqüências de um som ou estrutura sonora no tempo” (Smalley 2008,
29). Este conceito abrange tanto a constituição do material sonoro (tipologia espectral
e morfológica) quanto a maneira pela qual estes materiais podem se desenvolver no
espaço composicional. Nesta última acepção, o autor identifica o conceito de gesture
como uma das mais importantes ferramentas para a construção discursiva.
Para Smalley, o gesto é entendido como uma resultante espectromofológica que dis-
tancia-se de uma determinada meta e/ou dirige-se à uma determinada meta (Smalley
1986, 82). Tal resultante sempre apresentou-se para a música por meio do modelo
do gesto instrumental, ou seja, a aplicação física de energia sobre uma determinada
fonte gera um perfil energético que possui uma relação direta com a ação visual/ener-
gética do gesto físico do instrumentista. Esta relação é compreendida pelo ouvinte
pelo caminho inverso da causalidade gestual (espectromorfologia – fonte – causa).
Devido a particularidade dos materiais sonoros da Música Acusmática, o conceito de
gesto para Smalley passa a ser entendido de maneira mais ampla, buscando abranger
todo o âmbito da experiência sonora e não-sonora. A partir deste princípio o autor
identificou maneiras pelas quais o gesto pode ser compreendido, ou significado, na
Música Eletroacústica.
A teoria dos substituintes gestuais (gestural surrogacy) diz respeito ao processo de
afastamento dos sons em relação ao gesto físico (causa) e a fonte sonora originais.
Esta teoria pode ser entendida tanto com relação aos materiais sonoros e suas refe-
196 rências extrínsecas, quanto no desenvolvimento entre os mesmos no discurso intrín-
seco à composição. No primeiro caso, Smalley propõe que a compreensão e o
significado conferido pelo ouvinte se constitui a partir da relação que os gestos sono-
ros da composição possuem com os gestos da experiência humana (sonoros e não-
sonoros). A partir disto, propomos também neste trabalho a utilização destes
conceitos como agentes de significação a partir do discurso no interior do espaço
composicional. Isto pode ser alcançado por meio do entendimento de relações de he-
reditariedade entre os materiais musicais, que inclui, assim como a teoria dos subs-
tituintes de Smalley, afastamento e indicação gestual.
O primeiro nível de substituição identificado por Smalley incorpora a noção de gesto
primal (a percepção proprioceptiva) ao mundo sonoro. Pode-se dizer que trata-se do
“som primitivo”, o qual não tem uma intenção musical a priori. Neste nível os sons
possuem seu tipo de material e sua causalidade claramente identificáveis. O substi-
tuinte de segundo nível diz respeito ao gesto instrumental tradicional, que contém
todos os gestos sonoros desenvolvidos pela técnica instrumental e as propriedades
espectrais de suas fontes. No terceiro nível de substituição a identificação da causa,
da fonte, ou ambos, passa a ser difícil, duvidosa, ou não completamente satisfeita.
Caso em que o gesto (causa e/ou fonte) passa a ser inferido. Isto se deve à possibilidade
de manipulação do material sonoro por meio das técnicas eletroacústicas. Por fim,
no substituinte remoto, o que resta são “vestígios” de causa e/ou fonte. Estas tornam-
se praticamente desconhecidas ou irreconhecíveis para o ouvinte, o que o força a
adentrar na espectromorfologia dos sons. Neste nível, as atividades gestuais são con-
jecturadas pela trajetória energia-movimento (Smalley, 1986; 1997; 2008). Smalley
(1986; 1997) identificou alguns modelos de trajetórias possíveis que se apresentam
em sua forma essencial neste nível, modelos estes denominados como motions.
A tipologia dos movimentos está presente em todos os níveis gestuais, no entanto,
sua manipulação criativa encontra-se no terceiro nível e é imprescindível para o subs-
tituinte remoto. As trajetórias identificadas pelo autor dividem-se em cinco categorias:
unidirectional, movimentos que possuem uma trajetória linear; reciprocal, quando
um movimento unidirecional é balanceado pelo seu contrário; cyclic/center, movi-
mentos que induzem à existência de um centro ao qual a trajetória se relaciona; bidi-
rectional, movimentos que sugerem alteração da dimensão espacial por oposição de
duas trajetórias; multidirectional, movimentos complexos que sugerem uma direcio-
nalidade difusa.
Segundo Smalley (1986), estes tipos de movimento fazem parte do complexo design
espectromorfológico, que tem como ponto de partida os modelos arquetípicos da
morfologia instrumental (attack, attack-decay e graduated continuant), não-instru-
mental, e sua elaboração por meio de relações de correspondência e junção entre
morfologias. Todas estas morfologias têm como essência o fato de serem constituídas
pelo que o autor chama de spectromorphological expectation. Este conceito propõe
que a significação dos movimentos sonoros se dá pela compreensão da história es-
pectromorfológica dos eventos. Esta, por conseguinte deve satisfazer as três fazes
temporais do movimento: onset, como os eventos começam; continuant, como se 197
mantém; termination, como acabam.
No que diz respeito à organização discursiva, é evidente na teoria de Smalley como o
entendimento de expectativa espectromorfológica é aplicado aos mais variados níveis
de constituição da estrutura, do movimento de um simples objeto sonoro, à perfis es-
truturais de alto nível. Neste último caso o autor propõe o conceito de structural func-
tions, que é representado por termos que procuram explicar características regionais
de movimento. Emergence – prolongation – resolution, são exemplos do modelo onset
– continuant – termination aplicado à níveis estruturais mais elevados.
Por fim, temos que considerar como os materiais musicais, sejam eles objetos ou es-
truturas mais elevadas, interagem no espaço composicional. Ao compreendermos
que o discurso acusmático é constituído pelo gesto e suas consequências, estamos
afirmando que a maneira pela qual estes materiais se relacionam depende fundamen-
talmente da causalidade, ou seja, de como um evento leva a outro. Na teoria de Smal-
ley estas propriedades estão agrupadas no conceito de behaviour (Smalley 1986; 1997).

Resultados parciais
Após compreendermos os aspectos discursivos da teoria de Smalley iremos investigar
como tais conceitos podem ser aplicados na análise dos primeiros 50'' de “Inciden-
ces/Résonances”, primeiro movimento de De Natura Sonorum de Bernard Parme-
giani.
A peça inicia-se com um som nodal percussivo de arquétipo morfológico attack-decay
(1). Este objeto, segundo o conceito de gestural surrogacy de Smalley pode ser classi-
ficado como um substituinte de terceiro nível, pois parece estar no limiar entre o
nível instrumental e o remoto, fazendo com que a identificação deste gesto seja pre-
198 sumida. A fase de decay, que corresponde à ressonância do objeto inicial, é sustentada
nos primeiros segundos, identificando um movimento plano (unidirectional) (2). Ao
poucos o movimento plano começa a se tornar oscilatório (reciprocal) (3) criando a
expectativa de uma nova direcionalidade e estimulando novos eventos de maneira
voluntária (causalidade) (4), ou seja, estes eventos não acontecem de forma confli-
tuosa ou resistente.
Ao considerarmos os níveis de substituintes gestuais intrinsecamente, identificamos
como a ressonância do primeiro objeto se afasta do mesmo por meio de transforma-
ções em seu conteúdo espectromorfológico, fazendo com que a expectativa de com-
portamento do objeto inicial se apresente de maneira inesperada. Tais mudanças nos
fazem colocar em questão sua procedência (causa e fonte), propondo-nos assim a
existência de um novo objeto. Podemos inferir então que o som ressonante se com-
porta como um substituinte de terceiro nível do ataque inicial. No decorrer deste tre-
cho identificamos também como outros eventos (4) estão em relação direta e são
decorrentes do mesmo som inicial por uma herança gestual. Este fator é de funda-
mental importância para a coesão do discurso nesta peça.

Com relação ao perfil estrutural em um nível mais elevado, podemos dizer que esta
primeira seção analisada comporta-se como uma função estrutural de upbeat, enten-
dendo este termo como um perfil estrutural de onset suspensivo, ársico. Enfim, em
nível global, entendemos que esta peça se desenvolve entre o nível de substituição
terciário e remoto, sendo que (1) pode ser considerado como antecedente aos níveis
de substituição, é o “instrumento” da peça, seja este primitivo ou instrumental. Po-
demos conjecturar também que o objeto inicial é o gesto global da peça.
Considerações Finais
Acreditamos que, ao identificar na obra teórica de Smalley os fatores principais pelos 199
quais se constitui o discurso na Música Eletroacústica, temos uma proposta interes-
sante para experimentar como estes conceitos se apresentam em uma obra acusmática
e como os mesmos favorecem a construção da significação musical no interior do es-
paço composicional. Nesse sentido ainda, podemos ressaltar que as propostas do
autor para a organização discursiva podem ser de grande valia para a consideração
de como o discurso musical, em especial da Música Acusmática, pode ser significado
pelo ouvinte. Se para Smalley a construção do discurso apóia-se no conceito de gesto
que por sua vez apóia-se em categorias fenomenológicas ligadas à estruturas de fundo
de origem corpórea e relacionadas com aspectos da escuta de dia a dia (som primi-
tivo), a sua teoria pode ser uma interessante ferramenta explicativa para a área da
cognição musical que se preocupa com as formas de construção de significação mu-
sical, área esta que se encontra em crescimento nos últimos anos.
Referências
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Smalley, Denis. A imaginação da escuta: a escuta na era eletroacústica, Cognição & Artes Mu-
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Smalley, Denis. Spectromorphology: Explaining Sound-Shapes, Organised Sound 2 (2), 107-
126.

A sonoridade no estudo Pour les Quartes de Claude Debussy:


investigando processos composicionais à luz da
transdisciplinaridade
Thiago Cabral Carvalho
thiagocabral@ymail.com
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI)

Resumo
O artigo contempla um ensaio analítico da peça para piano solo Pour les quartes, pre-
sente na coletânea Étude (1915) do compositor francês Claude Debussy (1862-1918).
Numa visão global, a composição apresenta um idiomatismo baseado sobremaneira
nas sonoridades. Ao verificarmos a recorrência deste recurso, detivemo-nos em des-
crevê-lo observando basicamente o comportamento acrônico e diacrônico na intenção
de compreender a diversificação de complexidade/simplicidade através da forma.
Para tanto, elegemos como suporte teorético e metodológico um instrumento de
200
cunho transdisciplinar, capaz de estender-se a conceitos provenientes da teoria mu-
sical, musicologia, estatística, física e computação para auferir a investigação da obra
(Guigue 2007). Ao final, propomos uma reflexão do que fora o ‘projeto da sonoridade’
como gerador de uma estratégia peculiar no pianismo debussysta durante sua fase
‘pós-tonal’. Esta preocupação pode ser vista em outros exemplos, principalmente nas
obras compostas durante a primeira década do século XX, período o qual o compositor
emprega o recurso de maneira maturada (Parks 1989).
Palavras-chave
Debussy – sonoridade – análise musical

Introdução
O período de transição entre os séculos XIX e XX é demarcado por uma série de di-
vergências e antagonismos que, de certa maneira, foram essenciais para a proliferação
das mais variadas correntes estéticas e tendências conceptuais nos processos criativos
musicais durante o século XX. As nomenclaturas implodiam na mesma dinâmica das
transformações: o exemplo é o termo ‘pós-tonal’ que denota, via de regra, o conjunto
de técnicas para expansão do sistema tonal.1 Posteriormente, tal dilatação culminaria
em seu desprendimento total graças às investidas schoenberguianas num sistema to-
talmente alheio as regras ‘do passado’. No mesmo período, os estudos musicais ga-
nham espaço (e status) acadêmico: a musicologia, como disciplina histórica, deteve-se,
por sua vez, na averiguação de um repertório de tradição escrita elaborada entre 1600
a 1900. Pode-se, então, constatar que a publicação de Forkel (1749-1818) sobre a pri-
meira biografia de Bach (1802) é anacrônica se comparado à proposta de Debussy
quanto a uma mudança paradigmática estético-composicional de expansão do tona-
lismo já presente nas suas peças do final do século XIX (Parks 1989).
A mudança só ocorreu no final do século passado quando enfoque especulativo pode
aproximar-se, com a devida consistência, das questões relativas à expansão sistêmica
daquele contexto. O interesse por questões como estas só emergiu no final da segunda
metade do séc. XX quando se percebe uma tendência separatista entre duas disciplinas
muito próximas à musicologia: a análise e a teoria musical contemporânea (p. ex.
Agawu 1997; Cook 2001; Kramer 1995; MacCreless 1996; Morgan 1992; Rosand 1995).

1 Corrêa (2005, 173) classifica em duas “as pluralidades de tendências musicais originadas,
principalmente no início do séc. XX, quer sejam, a orientação ao encontro da manutenção de
centros tonais (conduzindo à criação de técnicas que, de um modo [maneira] mais ou menos
evidente, conservam uma funcionalidade harmônica) e a negação incondicional de quaisquer
espécies de vínculos hierárquicos ou elos tonais (produzindo, num primeiro momento, a au-
sência de significados harmônicos em virtude do desejo de liberdade composicional irrestrita)”.
A valorização da análise musical naquele século é observada através do crescente vo-
lume de publicações acadêmicas. Seus instrumentos metodológicos defendem uma
objetividade argumentativa na interpretação do conteúdo musical, focando, estrita-
mente, os processos e técnicas empregadas no ato composicional. A abordagem es-
trutural2 da música ganha, historicamente (na práxis pós-moderna/contemporânea), 201
um preferencial defendido, inclusive, pela academia: a corrente hanslickiana. Para
Hanslick “toda verdadeira obra de arte estabelecerá uma relação qualquer com nosso
sentimento, mas nenhuma uma relação exclusiva”. A valorização do imanente musical
encontraria, na década de sessenta, seu ponto máximo: nasce o modelo semiológico
de Chomsky (1928), ao qual Molino (1975) e Nattiez (1987) transpunham para uma
realidade musical em suas análises tripartidas.
Com os papéis devidamente seccionados, os musicólogos, compositores e teóricos
puderam desenvolver pesquisas ainda mais específicas no campo da música. Apesar
da crescente tendência em particularizar cada vez mais este conhecimento, os músicos
encontraram o alento investigativo noutros campos do conhecimento, como aconte-
cera na Idade Média.3 Atualmente, observamos que a situação bipolar da musicologia
citada por McCreless (1996) é complementada por pesquisadores ‘não músicos’, oriun-
dos, sobretudo, destas disciplinas ‘irmãs’ (antropologia, cognição, computação, física,
história, matemática, semiótica etc.).
Em linhas gerais, taxonomizamos que o desprendimento progressivo frente às leis
tonais em busca de um novo ideal estético-musical perpassou, basicamente, a desse-
melhança entre duas correntes: o discurso o neumático4 (aqui, tão somente, refe-

2 Sobre a nomenclatura estrutura, tomamos por base o conceito de Kerman, , cujo termo re-
fere-se “à estrutura global das obras de arte – o que faz as composições ‘funcionarem’, que prin-
cípios gerais e que características [peculiaridades] individuais asseguram a continuidade,
coerência, organização ou teleologia da música”.
3 Citamos, por exemplo, a especulações sobre a divisão do monocórdio feitas por Boécio e
Guido d’Arezzo e as contribuições de Zarlino (1517-1590), que se preocupou em codificar e
sintetizar toda a teoria musical do Renascimento, desde a classificação dos instrumentos até
as regras de composição e afinação da escala; e Galileu Galilei (1564-1642), que empreendeu
variadíssimas experiências relativas ao som, onde muitos o consideram como fundador da
acústica experimental. Também é no século XVIII que surge a publicação dos primeiros estudos
sistematizados sobre os fenômenos acústicos: o artigo de Narcissus Marsh (1638-1713), inti-
tulado An Introductory Essay to the Doctrine of Sounds, Containing Some Proposals for the Im-
provement of Acoustics (1683), e Joseph Sauveur (1653-1716), com a obra Système General Des
Intervalles des Sons, de 1701. O desenvolvimento da acústica auxiliou efetivamente o desen-
volvimento da música no período, respondendo o surgimento de um novo instrumental e de
novas possibilidades de estruturação, que, forçosamente, influenciaram nesta prática nos sé-
culos seguintes.
4 Evidentemente, não nos referimos à notação musical empregada no cantochão, mas, sim, res-
tritamente, ao parâmetro altura desconexo do contexto sonoridade que, por sua vez, abrange,
além da altura, outros parâmetros do som.
rindo-nos ao parâmetro altura) e a sonoridade (daí subentende-se o fenômeno físico
em larga escala).
Importante destacar que o fator sonoridade como gerador formal, sob um viés histó-
rico, pode ser notado em exemplos mais tardios:
202 Compor com a sonoridade, todavia, não constitui uma preocupação nascida ape-
nas no século passado. De fato, eu situaria sua origem em Rameau; no século XVIII,
portanto, com uma passagem obbligata, evidentemente, por Berlioz. […] [que]
vai retomar e desenvolver de várias maneiras essas experiências, as quais, no en-
tanto, somente vão encontrar uma descendência muito mais tarde, a partir de Va-
rèse ou ainda de Webern (Guigue 2007, 37, grifo do autor).
Em nossa análise, restringimo-nos ao pianismo do início do século passado, desta-
cando Debussy como o precursor na composição orientada por sonoridades5.
Objetivos
Observar a intencionalidade generativa formal, mormente focando-nos no compor-
tamento das sonoridades em âmbito acrônico e diacrônico. Faz-se mister compreender
que esta orientação parte, fundamentalmente, das noções de unidade sonora composta
e complexidade relativa, respectivamente:
[…] é um momento formado da combinação e interação de um número variável
de componentes. Este momento não tem limite temporal a priori. Ele pode ser
um curto segmento, um período longo, a obra inteira. A unidade sonora sempre
será um múltiplo, que se coloca no entanto como unidade potencialmente mor-
fológica, estruturante da obra (Guigue 2007, 42).
[…] à avaliação do grau de atividade de um dado componente numa unidade e
na geração de uma dinâmica formal, é a sua taxa de complexidade relativa. A
“complexidade” máxima corresponde à configuração que contribui na produção
da sonoridade mais “complexa” possível no domínio de competência do compo-
nente. Na outra ponta, as configurações mais simples são as que puxam as sono-
ridades “para baixo”, para a maior “simplicidade” estrutural (Ibid.).
Também chamamos atenção para a distinção entre componentes ativos e passivos
como paradigmas sobressalentes a análise, pois:
[…] estes remetem a esta necessidade de colocar em perspectiva hierárquica os
elementos constitutivos de uma unidade sonora composta, para resgatar apenas
aqueles que realmente exercem algum impacto sobre a forma (Id., 43).

Metodologia
Na obra Pour les Quartes, detivemo-nos em avaliar os níveis de complexidade auxi-
liados pela biblioteca SOAL (Sonic Object Analysis Library, http://www.cchla.ufpb.br/
mus3/) implementadas no ambiente OpenMusic (http://recherche.ircam.fr/equipes/
repmus/OpenMusic/), analisando dez unidades sonoras selecionadas criteriosamente,
conforme as noções de componentes ativos e passivos comentadas nos objetivos.6

5 Scriabin, Ravel e Satie, por exemplo, também conservam este ideário. Cf. p. ex. Massin 1997;
Griffths 1987; Carpeaux 1999 e Guigue 2007.
Para tanto, confeccionamos dez arquivos no padrão MIDI (Musical Instrument Digital
Interface), privilegiando aquelas unidades que apresentavam contrastes diferenciados
gerados pela polifonia, articulação, intensidades e registros. Trata-se, portanto, de
um estudo comparativo-estatístico (quantitativo) que visa elencar indícios corrobo-
rantes a uma intencionalidade peculiar debussysta. Esta metodologia segue, em seus 203
estágios de aplicação, interpretação e avaliação da sonoridade, observação aos se-
guintes níveis hierárquicos das estruturas musicais:
a) Primário: constituído de classes de notas ou cromas (nível abstrato);
b) Secundário: componentes pertencentes à ordem morfológica ou cinética (acrô-
nicos ou diacrônicos respectivamente) (Guigue 2007, 47-52).
Pour les Quartes e Análise da Sonoridade
Uma constatação imediata, evidente na peça é o agrupamento fusionário e sucessivo
do intervalo de quarta em suas diversas configurações interválicas: justo, expandido
e contraído.7 Por conseguinte, seria impraticável propor uma análise calcada nos
moldes ‘tradicionais’, principalmente por esta disposição acórdica ‘incomum’, pela
ausência de um referencial cêntrico-tonal ou mesmo de um material melódico-
temático a ser desenvolvido.

Figura 1 – Mapeamento dos acordes que compõem o estudo das Quartas de Debussy.

6 Disponibilizamos para download um arquivo compactado contendo as dez unidades sele-


cionadas na análise extraídas da partitura:
http://dl.dropbox.com/u/9146907/Pour_les_quartes_US.zip
7 Intervalo expandido possui o mesmo significado de aumentado, entretanto, para Carvalho
(2009, 26), expandir adéqua-se melhor (terminologicamente) ao acontecimento da dilatação
intervalar – referente ao parâmetro altura, enquanto que aumento é comumente utilizado pelo
parâmetro intensidade como referencial de “ganho”, de volume sonoro. Cf. também Cabral
(2009, 34).
Para uma compreensão mais acurada do posicionamento pós-tonal debussysta, ob-
servamos como o compositor administra este discurso estritamente pela sonoridade.
Critérios Analítico-Comparativos em Pour les Quartes
204 Destacamos os parâmetros âmbito e densidade como elementos norteadores ao estudo
da obra, portanto, hierarquicamente classificados como globais. Numa ordem mor-
fológica, o âmbito é o preenchimento da sonoridade “em relação a um determinado
paradigma (p. ex. a tessitura total dos sons do instrumento de referência)” (Guigue
2007, 49). A densidade é a “quantidade relativa de sons em relação ao máximo possível
dentro do âmbito em que a unidade sonora ocupa” (ibid.). Em seguida, cruzamos
ambos com parâmetros específicos, são eles: altura (registro e seguimento) e duração
(ou seja, componentes cinéticos). Desta maneira, pudemos visualizar progressivamente
a evolução das 10 (dez) unidades sonoras no contexto geral da composição. Abaixo,
enunciamos os parâmetros comparados na referida peça:
a) Âmbito e Densidade;
b) Âmbito e direção das alturas;
c) Densidade e Registro;
d) Densidade e Duração;
e) Duração e Registro.

Na seqüência, apresentamos um quadro explicativo detalhando conceitualmente cada


parâmetro em seus respectivos elementos globais:
Quadro 1 – Elementos globais e seus parâmetros na análise das sonoridades.
Acrônico
Parâmetro Tradução Especificação técnica
Comparação do âmbito global da unidade com um valor
Relative range Âmbito relativo máximo pré-definido (1,0) de ocupação na escala geral (ou
registro global) do piano.
Corresponde aos limites entre as notas inferiores e superiores
Absolute range Âmbito absoluto
das unidades.
Listagem na íntegra dos registros graves aos agudos, o qual, o
Notes per
Notas por registro valor 0, representa a nulidade de uso do registro numa
register
determinada região.
Preenchimento do Mostra o valor relativo do nível de preenchimento dos
Register-filling
registro registros comparando com o total.
Label of the felt Separando em 7 os rótulos numéricos dos registros, tem-se o
Rótulo dos registros
registers valor (-3) o mais grave e (3) o mais agudo.
Um “peso” relativo baseado no valor de entrada definido pelo
Register Distribuição do
usuário como “peso do registro” de acordo com as
distribution registro
especificidades acústicas do instrumento.
A divisão do número de notas da unidade dentro do máximo
Relative
Densidade relativa permitido (um cluster, por exemplo, receberá o valor max.
density
1,0).
Diacrônico
Cálculo da duração da unidade em relação a uma densidade
Relative
Duração relativa de referência (ou seja, a maior duração da obra) em
duration
milissegundos.
Divisão do número de eventos pela máxima possibilidade
Relative events Densidade relativa
numérica destes, dentro da duração atual do arquivo (uma
density dos eventos
informação contida na função file-duration).
Avaliação do Âmbito Relativo
No exemplo que segue, verificamos comparativamente o âmbito e densidade. Pode-
mos identificar uma segmentação formal a partir da 6ª. unidade sonora (dispostas
no quadrante inferior) gerando movimentação oblíqua.
205

Gráfico 1 — Comparativo entre âmbito e densidade em Pour les Quartes.

Apresentamos no gráfico abaixo a presença dos graves e agudos no decurso da peça:

Gráfico 2 — Análise do preenchimento dos registros

Há, portanto, uma estabilização do registro grave da unidade 07 em diante.


Avaliação da Densidade Relativa
Abaixo, demonstramos a evolução da densidade juntamente com o preenchimento
do registro do piano. Identificamos uma paradoxalidade nestes parâmetros, sobretudo
no entrecruzamento destes na unidade 06, formulando um ponto equilibrante no de-
206
curso temporal, motivador de um seguimento sonoro-contrapontístico.

Gráfico 3 — Relações entre densidade e preenchimento do registro


Na seqüência, ainda tomando a distribuição dos registros como parâmetro recorrente,
comparamos este com a duração relativa da peça. Observamos a presença de dois
momentos distintos: a) maior duração: paralelismo (unid. 01 a 04), contraposição
(04 e 05) e aproximação progressiva (unid. 06 e 07); b) menor duração: cruzamento
e inversão parametral das unidades (08 a 10).

Gráfico 4 — Relações entre duração relativa e preenchimento do registro


Podemos então resumir que a contraposição destas unidades avaliadas em diversos
parâmetros gera indícios de particularidade na disposição formal da peça. Ao enun-
ciarmos estes níveis segmentados de complexidade em contra-sentido, tomaremos
aqui as unidades 05 e 09, e comparamos âmbito e densidade:

207

Gráfico 5 — Níveis de complexidade máxima entre âmbito e duração relativa

Enquanto a unidade 05 possui a maior taxa de duração relativa, seu âmbito é baixo e
o inverso ocorre na unidade 09, confirmando, mais uma vez, a hipótese da particu-
laridade discursiva pelo seguimento sonoro-contrapontístico.
É possível visualizar uma confirmação da formal destas unidades em contexto geral
através do sonograma.8 Nele, vemos uma seqüência ascendente de eventos sonoros
enquanto que, num segundo momento, temos a estaticidade como fator contrastante
do primeiro.

Figura 2 — O sonograma de Pour les Quartes: forma gerada pelos contrastes sonoros

Resultados
Ao enfocarmos analiticamente a sonoridade como um processo recorrente na com-

8 O sonograma foi gerado a partir da performance de AIMARD (2003).


posição de Claude Debussy, buscamos enunciar, com base numa preleção técnica, in-
dícios de uma particularidade estética do compositor.
Ainda que a técnica seja, neste caso, o ponto de partida desta investigação, buscou-
se ampliar as limitações da análise restrita ao nível imanente. Ampliamos, portanto,
208 o estudo às particularidades estéticas e estilísticas da peça, sem nos esquecermos de
confrontar os dados com as informações oriundas do contexto histórico.
Ao valorizar a autonomia estilística, entidade inerente à obra, conseguimos com-
preender como Debussy aplicou a técnica da sonoridade na peça: uma preocupação
sonoro-contrapontística é latente e, por sua vez, geradora de dois momentos contras-
tantes significativos. Entendemos que esta orientação prévia seguia sim um programa
ideológico, mesmo que, no estágio pré-composicional, não houvesse necessidade em
materializar cuidadosamente o planejamento, como na música serial, por exemplo.
Salientamos, pois, que o feitio composicional pode ser considerado um parâmetro
passível de análise, como aqui demonstramos. É justamente este elemento que nos
permite discernir o feitio de um compositor para outro, independente de gênero, pe-
ríodo histórico ou localização geográfica.
A sistematização dos princípios técnico-processuais onipresentes no então contexto
‘pós-tonal’ do início do século XX — composição por notas e/ou sonoridades — per-
mitiu-nos compreender como esta expansão sistêmica fora empregada. Procedendo
desta maneira, acreditamos que o mesmo percurso metodológico seja viável a uma
identificação de outras tentativas de expansão do sistema tonal experimentadas ainda
naquele período ou mesmo por seus sucessores. Assim, a opção metodológica ade-
quou-se a uma lógica incitada pela obra. Eventualmente, quando acionamos as in-
tervenções, intuímos, tão somente, uma adequação, ainda mais fidedigna, à dialética
ali intrínseca. Ao adotarmos este posicionamento, concebemos a atividade analítica
como mediadora, porquanto imprescindível quando em favor da música, não para o
método.
Com reflexo, elencamos uma intencionalidade estético-composicional pela recorrên-
cia dos eventos sonoros, seja quando no emprego diversificado da complexidade re-
lativa, ou, num projeto mais amplo, construir uma preocupação formalística através
da sonoridade.
Destarte, o presente estudo defende o envolvimento dialógico com as disciplinas que
atentem direta ou indiretamente às questões de ordem quantitativa e qualitativa na
análise de dados e sua efetiva contextualização, bem como a viabilidade de adaptação
e/ou extensão metodológica a outros objetos de estudo: compositores de outros con-
textos estético-estilísticos, de outros países, de um conjunto de obras de diversos com-
positores de uma mesma corrente estética etc.
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O atual estado da questão da disciplina psicologia na formação
de músicos-intérpretes na academia brasileira
210 Sonia Ray
soniaraybrasil@gmail.com
Leonardo Casarin Kaminski
leockaminski@yahoo.com.br
PPG em Música da Universidade Federal de Goiás

Resumo
O presente trabalho trata da disciplina psicologia na formação do artista-intérprete e
na preparação da performance musical. Sabe-se que o sucesso do instrumentista em
uma apresentação pública está ligado ao trabalho realizado previamente. Vários au-
tores (Kreut; Ginsborg; Williamon 2008; Ray 2009) afirmam que esta preparação inclui
o condicionamento físico, o domínio técnico, o conhecimento do conteúdo musical e
noções de disciplinas afins como neurociência e psicologia. Entretanto, num breve
olhar sobre a estrutura curricular de cursos de música em universidades brasileiras,
nota-se que há poucas evidências de que o preparo psicológico faça parte da forma-
ção dos músicos que se dedicam à performance. O principal resultado que se chegou
ao observar o recorte das IES federais é que a psicologia ainda é pouco estudada na
formação dos músicos e menos ainda na formação dos performers musicais.
Palavras-chave
psicologia da performance – formação do músico-intérprete – preparação para a
performance

Introdução
Com o avanço das pesquisas na área da psicologia da música na segunda metade do
século XX, grupos de pesquisa interdisciplinares passaram a desenvolver trabalhos
que demonstram a necessidade cada vez mais latente de tratar a preparação física e
psicológica na performance musical de maneira estruturada, formal e definitivamente
incluída na formação acadêmica do músico. Resultados de estudos desenvolvidos por
grupos de pesquisa do diretório CNPq têm sido de extrema relevância para estes es-
tudos. Alguns destes grupos são: Performance Musical (UFG), Música, Corpo e Ciência
(UFG-UFMG-UNB), Ensino, Controle e Aprendizagem na Performance Musical (UFMG)
e Núcleo de Pesquisa em Performance Musical e Psicologia (UFBA).
O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar e discutir o atual estado
da questão da psicologia na formação de artistas-intérpretes na academia, em parti-
cular na preparação destes artistas para a performance musical em universidades fe-
derais com cursos de bacharelado e licenciatura em performance. As principais
questões que nortearam a pesquisa são: como a psicologia está sendo empregada na
formação musical do intérprete de acordo com a literatura disponível? Como a psi-
cologia tem sido abordada nos cursos de performance musical das universidades fe-
derais brasileiras? É no processo de investigação destas questões que o presente
trabalho pretende gerar reflexões acerca do objetivo ora proposto.
Através de uma breve revisão da literatura sobre o tema se estabeleceu o estado atual 211
da questão. A pesquisa foi dividida em duas seções: inicialmente foram levantados
estudos de referência para a psicologia da performance musical segundo publicações
de pesquisadores atuantes no Brasil, Europa e EUA. Na segunda parte foi realizada
uma busca pelos currículos de graduação nos cursos de música das universidades fe-
derais brasileiras. O critério de seleção dos cursos seguiu a classificação do ENADE
(Exame Nacional de Desempenho de Estudantes do INEP-MEC) de 2009, o qual con-
siderou os cursos de música que atingiram os melhores conceitos na última avaliação
(conceitos 3, 4 e 5). Subseqüentemente, elaborou-se um quadro comparativo dos cur-
sos selecionados, que serviu de base para a discussão do estado da questão da psico-
logia como disciplina aplicada na formação de artistas-intérpretes na academia
brasileira. O presente estudo está em sua primeira fase. Pretende-se aprofundar a dis-
cussão em trabalhos subseqüentes.
Estudos em Psicologia da Performance Musical
A revisão de literatura evidenciou que as pesquisas empíricas em psicologia da música
tiveram início na primeira metade do século XX, sendo o marco destas pesquisas re-
gistrado por Carl Seashore (1938). O pesquisador desenvolveu trabalhos de análise
de interpretação musical com base em experimentos que são referência principal-
mente para desmistificarem a idéia de que aspectos da percepção não poderiam ser
medidos ou estudados na interpretação musical. Outros marcos se consolidaram ao
longo do século XX desenvolvendo idéias propostas por Seashore bem como novas
propostas surgidas principalmente dos estudos da neurociência e cibernética, na
busca por uma inteligência artificial cada vez mais eficiente. Diana Deutsch (1982 rev.
1999) reuniu textos de alguns dos pesquisadores mais atuantes em psicologia da mú-
sica, entre eles Alf Gabrielsson, que apresenta na publicação uma significativa revisão
da literatura sobre o tema (ampliada em publicação de 2003). Após este marco as pes-
quisas se ampliaram tanto que as revisões sobre o tema não foram são mais possíveis
sem uma subdivisão dos estudos de psicologia da performance musical em sub-tó-
picos tais como: percepção rítmica e performance, percepção corporal e performance,
memória e performance, controle motor e performance, e assim por diante. Quanto
mais os estudos se ampliam menos viável se torna uma revisão ampla da literatura.
Ao mesmo tempo, a demanda sobre estudos específicos de aspectos psicológicos re-
lacionados à performance musical é cada vez mais alta, acompanhando o também
constante aumento da excelência em performance (Rink 2002; Williamon 2004; Chaf-
fin e Logan 2006).
A música começa a buscar apoio em outras áreas do conhecimento como a psicologia
e as neurociências (Ray 2005), conseqüência de uma constante preocupação com o
preparo do intérprete para uma performance. Nota-se também que a psicologia da
música tem se dedicado intensamente em questões como percepção musical, efeitos
sonoros no comportamento da mente humana e aspectos psicopedagógicos da música.
A psicologia da performance focaliza o funcionamento da mente humana quanto os
212 aspectos cognitivos como a memorização, os processos de aprendizagem, realização
de nuances musicais, até as interferências negativas, como a ansiedade, como prová-
veis causadores e sugestões para evitar.
Observou-se também que os músicos vêm se beneficiando cada vez mais dos estudos
envolvendo psicologia, à medida que se unem aos psicólogos e neurocientistas em
propostas de pesquisas interdisciplinares, buscando explorar possibilidades de estudo
da interpretação musical (Gerling; Souza, 2000 e Gerling; Santos, 2007). Num pri-
meiro momento o músico era um participante colaborador em pesquisas, mas no
final do século este papel foi mudando gradativamente para uma atuação mais efetiva
de pesquisadores atuantes e determinantes dos objetivos de muitos estudos em psi-
cologia da música, notadamente nos estudos de performance musical.

Disciplina Psicologia na Formação de Músicos-Intérpretes


no Brasil
Através de uma consulta aos currículos das universidades federais, foi possível traçar
uma visão geral da inserção de estudos de psicologia ao longo da formação do mú-
sico-intérprete. A opção pelas universidades federais se deu por ser um fator delimi-
tador com dados disponíveis on-line em órgãos oficiais (MEC e site das próprias
instituições), eliminando a necessidade de um trabalho de campo neste estágio inicial
da pesquisa. A consulta tomou por base os dados o ano de 2009 e mostrou que eram
então quatorze as IES federais com curso de música entre os conceitos 3, 4 e 5: UFBA,
UFRGS, UFC, UFMG, UFSCAR, UFSM, UFMS, UFG, UFRJ, UNB, UFOP, UFU, UFPR, UFES.
Destas, apenas quatro (UFC, UFSCAR, UFMS, UFPR) não ofereciam cursos de bachare-
lado ou licenciatura em instrumento/canto. Este quadro não mudou até o momento,
de acordo com os sites das instituições pesquisadas, como demonstra o quadro abaixo
(figura 1).
As disciplinas relacionadas à psicologia na formação acadêmica do músico estão em
sua maioria voltadas para a formação de professores sem uma preocupação evidente
de que o músico em formação esteja recebendo informações sobre como preparar a
si mesmo para atuar profissionalmente como intérprete. Ainda que em caráter opta-
tivo, dentre as 10 IES selecionadas, a UFG é a única instituição que oferece a disciplina
psicologia direcionada a preparação do intérprete de forma direta, como componente
da grade curricular. Um olhar mais aprofundado nas ementas das disciplinas ainda
será feito para que se possa determinar como o conteúdo das mesmas abordam a ati-
vidade do músico prático.
Figura 1 – Quadro comparativo dos cursos selecionados (ENADE-INEP-MEC, 2009)
Conceito
Disciplina Relacionada à Carga Horária
IES Curso Caráter Semestral
ENADE
Psicologia 2009
Licenciatura em Psicologia Musical Optativa
Música e Não
UFBA Bacharelado/ Optativa 5
Bacharelado em Psicologia Aplicada à Educação Informada
Instrumento/canto Licenciatura/Obrigatória 213
Licenciatura em
Música e Bacharelado/Optativa
Psicologia e Educação Musical
Bacharelado em Licenciatura/Obrigatória
UFRGS Instrumento/canto 30 5
Psicologia da Educação:
Licenciatura em Licenciatura/Optativa
adolescência I
Música
Psicologia da Educação Licenciatura/Optativa
Licenciatura em
Música e
UFMG
Bacharelado em
Não oferece ------------------ ----- 4
Instrumento/canto
Licenciatura em
UFSM
Música
Não oferece ------------------ ----- 4
Licenciatura em
Música e
Optativa
UFG Bacharelado e Psicologia da Performance I e II
(para todos os cursos)
64 3
Licenciatura em
Instrumento/canto
Licenciatura em
Música e
UFRJ
Bacharelado em
Psicologia da Educação Licenciatura/Obrigatória 60 3
Instrumento/canto
Bacharelado/Optativa
Licenciatura em Psicologia da Educação 1
Licenciatura/Obrigatória
Música e Não
UNB Psicologia da Educação 2 Optativa/Licenciatura 3
Bacharelado em Informada
Psicologia Social
Instrumento/canto Optativa
Historia e Sistemas da Psicologia
Licenciatura em Psicologia da Educação I Obrigatória
UFOP 60 3
Música Psicologia Social e Comunitária Optativa
Psicologia da Educação 60
Licenciatura em
UFU Psicologia do Desenvolvimento Obrigatória 3
Música 45
Musical
Psicologia da Música Obrigatória
Licenciatura em
UFES Psicologia I 60 3
Música Optativa
Psicologia Social

Considerações Finais
Um breve olhar sobre as publicações que abordam a psicologia da performance, dis-
ponibilizadas ao longo do século XX e no início do século XXI, evidenciam uma atua-
ção cada vez mais efetiva de músicos nos grupos de pesquisa, notadamente os grupos
interdisciplinares. Nestes grupos, a interação entre pesquisadores neurocientistas,
psicólogos e fisiologistas com pesquisadores da área de música estão cada vez mais
aprofundadas na medida em que se busca aspectos que fundamentem a preparação
para um performance de excelência. Entretanto, tal desenvolvimento nas pesquisas
ainda têm pouco reflexo nos currículos das universidades federais brasileiras que ofe-
recem cursos de bacharelado em instrumento/canto ou licenciatura em música.
Nota-se claramente que as disciplinas relacionadas á psicologia da música quando
constam nas grades curriculares são quase totalmente voltadas para a atividade de
docência e não para a preparação do estudante para a atuação como músico-intérprete.
Apesar disto, o Brasil vê crescer a cada dia os estudos da psicologia da música em
produtos de grupos de pesquisa interdisciplinares (a exemplo dos sediados pela UFG,
UFMG, UNB e UFBA), além de eventos que agregam pesquisas sobre o tema (como o
SIMCAM e a ANPPOM).
Por fim, o principal resultado que se chegou ao observar o recorte das IES federais é
que a psicologia ainda é pouco estudada na formação dos músicos e menos ainda na
214 formação dos performers musicais.
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Williamon, A. Musical Excellence: strategies and techniques to enhance performance (Oxford:
Oxford University Press, 2004).
Representações gráficas para a progressões harmônicas
em música: um experimento verificativo
Alexei Alves de Queiroz
alexeisp@yahoo.com.br 215

Palavras-chave
progressão harmônica – grafos – notação musical

Introdução
Nesta pesquisa serão abordadas algumas propostas de representação visual gráfica
para progressões de acordes em música. O presente trabalho dá continuidade ao artigo
“Uma Notação Musical para Representação de Progressões Harmônicas Utilizando
Grafos” (Queiroz, 2009) que traz uma sugestão de leitura cíclica e bidimensional vol-
tada para o registro, expressão, entendimento e memorização de ciclos harmônicos.
Para isso utiliza-se a modelagem matemática formal conhecida como Diagrama de
Estados, que tem por característica o entendimento de fenômenos e sistemas como
encadeamentos de estados. A suposição inerente ao diagrama é que sua representação
gráfica se aproxima dos processos mentais associados ao entendimento e memoriza-
ção de sequências de acordes. A proposta do presente artigo, que aborda uma pesquisa
em andamento, é o de iniciar a fase de experimentação do modelo aplicando um teste
comparativo entre estudantes de música. O experimento, ainda não realizado até a
publicação deste trabalho, consiste em verificar a capacidade de associação entre es-
tímulos sonoros e esquemas visuais por meio de comparação. Um questionário é res-
pondido tomando por base a escuta de exemplos sonoros associados ao
questionamentos. Será testada a capacidade de identificação dos símbolos com va-
riados graus de familiaridade e inovação paradigmática perante uma sequência so-
nora de progressões típicas. O objetivo é juntar informações sobre as vantagens e
desvantagens potenciais da notação sugerida e apontar possíveis modificações futuras.
Justificativa
A representação de progressões harmônicas não é, de modo algum, um aspecto es-
quecido dentro da escrita musical tradicional. Há abundante simbologia envolvida
na cifragem e leitura de acordes. Não se trata aqui, portanto, de preencher uma de-
manda reconhecida, mas de tornar evidente uma limitação pouco notada de nossa
notação musical. A idéia subjacente a essa nova notação é que alterações no modo de
escrever podem e devem facilitar, incentivar e desencadear abordagens diferentes e
inovadoras nas áreas de composição, execução e teoria musical. A principal alteração
do novo modelo é a quebra do paradigma da escrita linear, unidimensional, que sem-
pre entende o fluxo da leitura indo da esquerda para a direita, e do alto para a parte
de baixo da folha de papel. Dentro do paradigma dos grafos, o fluxo da leitura se dá
em qualquer direção, possibilitando uma leitura verdadeiramente bidimensional, e
favorecendo assim, em especial, a representação intuitiva de progressões harmônicas
cíclicas.
Metodologia
216
Em 2009 (Queiroz 2009), foi apresentado a primeira especificação formal para o Dia-
grama de Estados Harmônicos Musicais (DEHM versão 2008.3.1). Este diagrama foi
descrito matematicamente, com o auxílio de alguns exemplos, tendo sido apresentado
como uma nova alternativa para a expressão escrita de progressões harmônicas em
música. Faltou ao artigo, entretanto, observar o DEHM em uso, de modo que fosse
possível analisar, em situação realista, suas vantagens e desvantagens. Um experi-
mento que lograsse dar conta disso poderia ser instrumental na obtenção de respostas
para muitas das dúvidas levantadas pelo primeiro artigo. Entre elas apontamos as
quatro seguintes questões. 1) Até que ponto o modelo se mostra intuitivo a alunos
de música experientes ou leigos? 2) Até que ponto o modelo se mostra análogo ou de
algum modo representativo da forma como a mente entende e memoriza as progres-
sões harmônicas? 3) O esforço necessário para que alguém aprenda a ler este dia-
grama pode torná-lo inviável? 4) Que ajustes podem ser feitos que facilitem sua
leitura?
Para ajudar a responder estas quatro questões foi elaborado um teste comparativo.
Diferentes formas de representação, algumas bem conhecidas outras bastante inova-
doras, são misturadas num questionário em que se pede que as pessoas identifiquem
qual o símbolo que melhor representa o exemplo escutado de progressão. Será veri-
ficada assim a capacidade das pessoas de associarem o estímulo sonoro à cada forma
correta de representação, contabilizando os erros e acertos obtidos por cada. Se con-
siderarmos que, a cada exercício, a representação correta irá variar aleatóriamente
entre as diferentes notações musicais utilizadas, o teste irá prover dados relativos à
intuitividade e compreensabilidade destas notações inéditas. Para complementar este
dado objetivo, será pedido que as pessoas respondam questões discursivas que visam
verificar sua compreensão destas notações alternativas. Com a combaniação de res-
postas objetivas e discursivas, espera-se obter uma avaliação que verifica a aplicabi-
lidade tanto quanto discute reflexivamente o DEHM.
Na figura 1, vemos um exemplo de questão a ser aplicada no experimento.
Próximas atividades
O experimento está, em sua maior parte, pronto para ser aplicado, devendo ser real-
izado em breve junto a alunos do curso de música da UnB. A etapa seguinte será o de
análise dos dados, onde o entendimento intuitivo dos alunos dessa notação totalmente
nova, será comparado com outras notações desconhecidas pelos alunos, e algumas
outras já bem conhecidas. Essa análise será feita tomando por base o interesse em
responder as 4 questões listadas na metodologia.
217

Figura 1 – Exemplo de questão. Aqui um exemplo de DEHM pode ser visto


na alternativa b.

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