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Poderes do som
Políticas, escutas e identidades
Florianópolis
2020
Insular Livros
Poderes do som – Política, escutas e identidades
José Cláudio S. Castanheira, Dulce Mazer, Pedro Silva Marra,
Marcelo Bergamin Conter, Cássio de Borba Lucas, Mario Arruda (Org.)
Comitê científico
Dr. Acácio Piedade (UDESC) Dr. Marcelo Bergamin Conter (IFRS)
Drª Adriana Amaral (UNISINOS) Me. Mario Arruda (UFRGS)
Drª Ariane Holzbach (UFF) Drª Melina Santos (PUC-RS)
Me. Cássio de Borba Lucas (UFRGS) Drª Patricia Iuva (UFSC)
Drª Dulce Mazer (UFRGS) Dr. Pedro Silva Marra (UFES)
Dr. Fabrício Silveira (UFRGS) Drª Tatyana Jacques
Dr. Guilherme Sauerbronn (UDESC) Drª Thaís Aragão
Dr. José Cláudio S. Castanheira (UFSC) Drª Viviane Vedana (UFSC)
Drª Jhessica Reis (McGill University) Dr. Wilson Oliveira (UNESA)
Ficha catalográfica
Introdução
Em meados dos anos 1990, o produtor, jornalista, músico e
agitador cultural Carlos Eduardo Miranda escreveu na extinta
revista Bizz que Curitiba era a “Seattle Brasileira”1. A entusias-
mada comparação claramente procurava aproximar a efervescên-
cia do grunge, gênero em alta nas paradas de música pop e rock
de todo o mundo, com a proliferação de bandas de rock autoral
underground da cidade brasileira. Mais de duas décadas depois, a
maneira como Curitiba é descrita em termos de rock independente
e/ou autoral é, num geral, menos exaltada. A história apresentada
por Eduardo Mercer no livro Uma fina camada de gelo – o rock
autoral e a alma arredia de Curitiba (2017), por exemplo, nos traz
uma narrativa com sucessivos fracassos do ponto de vista comer-
cial e de reconhecimento nacional; um público local desinteressado
ou que desconhece seus artistas locais; carência de políticas públi-
cas e coberturas midiáticas locais; queixas acerca da ausência de
uma forma de identificação cultural regional que poderia fomen-
tar mesmo um gênero como o rock; precariedade das tecnologias
de som e midiáticas; disputas de espaços culturais e de entreteni-
mento com bandas cover; pouca ou nenhuma sustentabilidade por
parte dos músicos, que frequentemente tomam a carreira como
hobby, e um sentimento de defasagem em relação aos circuitos de
música nacional e à cultura internacional-popular.
Tais desencontros retroalimentados entre indústria da música,
artistas e público tornariam as relações com mercados mainstream
bastante problemáticas. E criariam a suspeita de que Curitiba seria
uma mera consumidora midiática dos artistas de fora do estado,
atuando como uma espécie de capital-teste para as turnês de artistas
1. Ver em http://www.aescotilha.com.br/musica/prata-da-casa/e-se-o-rock-
-de-curitiba-coubesse-em-um-livro/. Acesso em 01/07/2019
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nacionais. Mesmo em relação ao estados do sudeste, a despeito da
proximidade, Curitiba não conseguiria contribuir de forma que
devolvesse na mesma proporção a cultura popular – sobretudo
canção midiática – que consome (SANDMANN, 1996).
A situação relativamente marginal, geograficamente e midia-
ticamente, dos oligopólios da indústria da música se sustentaria a
despeito da atual proliferação das plataformas digitais para down-
load e escuta musical via streaming. A partir de um estudo etno-
gráfico, Kariann Goldschmitt (2014) nos aponta que atualmente
encontramos selos e estúdios de gravação por todo o Brasil. Porém,
Rio de Janeiro e São Paulo concentram juntas quase 70% dos selos
nacionais, com São Paulo sozinha sediando 42,44% dessas produ-
ções. As duas cidades – as mais populosas do país – “formam um
eixo de produção cultural no Brasil” (GOLDSCHMITT, 2014,
p. 500). Curitiba contribuiria com apenas 2,90% dos selos, uma
porcentagem menor do que Porto Alegre (3,49% que, embora tenha
uma região metropolitana um pouco mais populosa, é bem mais
distante do eixo do Sudeste referido pela autora.
Reconhecer um histórico pouco favorável para o rock auto-
ral e para a música independente local, bem como apontar uma
produção quantitativamente pequena em relação a outras capi-
tais, por vezes torna a ideia de entender uma “cena musical de
Curitiba” questionável. Se Pitre-Vásquez e Macan (2017) apontam
que, a partir do programa de rádio Ciclojam, encontramos entre os
anos de 1995 e 2005 uma cena musical – principalmente roqueira –
em Curitiba, podemos dizer que a situação na segunda década dos
anos 2000 é diversa. Há uma série de bandas, projetos e artistas2
a gente vai no show pra ouvir como a gente tá ouvindo em casa (...)
pô, eu curto ouvir em casa, assim, imagina que massa ir ouvir dessa
mesma maneira, só que com meus amigos e tipo, sabe, curtindo uma
berinha [cerveja] talvez, e ouvindo esse som ao vivo mesmo torando
[em volume intenso] nos meus ouvidos (VALENTE, 2018, grifo meu).
7. https://www.youtube.com/watch?v=9bOOsHmbLHs. Acesso em
01/07/2019.
216
Talvez [isso] atraia pessoas que descobrem coisas pela Internet, tipo,
tem um envolvimento muito grande, muito mais introspectivo na hora
de descobrir cultura, assim. Tipo ‘pô, vou descobrir essa banda aqui
na Internet, e tipo, se eu curtir, eu vou no show’ sabe? Então, pode ser
que seja isso, a coisa da introspecção...esteja ligado com como a pessoa
se relaciona na hora de encontrar cultura, na hora de ouvir música.
(VALENTE, 2018).
217
apreciados e como influenciam outros processos musicais e sociais,
indivíduos e grupos” (SEEGER, 2008, p. 239).
O ajuste em relação à etnografia da música originalmente
proposta por Seeger (2008) se faz necessário na medida em que
se reconhece que o campo etnográfico hoje encontra-se parcial-
mente mediado por dispositivos técnicos. Dessa forma, registros
e materiais audiovisuais coletados são mais do que meros obje-
tos de consulta e triangulação com trabalho de campo das obser-
vações participantes. Ao tentar elaborar um arquivo de áudios,
imagens, fotografias, vídeos, conjuntos de notas, diários de inves-
tigação, entrevistas coletadas pela Internet e realizadas por mim,
disponho de um material a ser colocado constantemente entre as
saídas de campo, tão importantes quanto técnicas de observações/
escutas participantes em shows.
Para apoiar o trabalho de campo etnográfico, direcionando
a abordagem do empírico e ajudando a modelar e responder às
problemáticas, compreendo ser necessário um diálogo entre os
estudos de som e as materialidades da comunicação. Tal articu-
lação teórico-metodológica será elaborada na próxima sessão do
presente texto. Em seguida, procuro discutir as noções de regimes
de escuta, virtuosismo da escuta e a produção da introspecção no
rock independente de Curitiba. Por fim, apresento as considera-
ções finais, bem como inquietações e possíveis desdobramentos
para a pesquisa em andamento.
218
disso, interessa-se pelas dimensões concretas, sensuais e sensó-
rias das nossas experiências partindo de uma angulação menos
antropocêntrica, espiritual, transcendental e antitecnológica, mas
mais ecológica e desejosa de discutir articulação entre mente, corpo
e máquinas. Dessa forma, procura compreender como meios ou
“materialidades”, em suas dimensões concretas de articulação e
transmissão, influem na produção, recepção e sentidos transpor-
tados. Em outras palavras, visa despertar uma consciência medial
nas análises, abrangendo toda a sorte de objetos, artefatos e corpos
empregados nas interações musicais. O termo medial derivaria
de medium, isto é, uma materialidade mais primitiva, mas condi-
ção primordial de emergência e transmissão de sentidos. Ou seja,
perspectiva a análise também para “os instrumentos, os suportes
e os recursos técnicos dos quais lançamos mão nos contatos e nos
registros comunicacionais de toda ordem” (SILVEIRA, 2013, p. 65).
Portanto, fundamentais seriam as materialidades – mesmo as
invisíveis, como o caso do próprio som (MARRA, 2015) – e a mani-
pulação via dispositivos e aparelhos desses sons, criando atmosferas
que não se restringem à interpretação de significados. As materia-
lidades da comunicação também direcionam o interesse investi-
gativo para a escuta articulada com a estética como experiência,
procurando dar atenção aos aspectos somáticos, corpóreos, bem
como o papel de toda sorte de suportes, objetos e corpos envolvi-
dos em tal experiência.
Por outro lado, os estudos de som visam “discutir as articula-
ções entre som, música e tecnologias da comunicação” (SÁ, 2010,
p. 91). Abrangem tais temas posicionando-se de forma transdisci-
plinar, com epistemologias e métodos que procuram desmantelar
cânones e hierarquias construídos e mantidos pelos estudos que,
ao fim e a cabo, sustentam uma suposta superioridade estética da
música como formatação de som privilegiada acadêmica e merca-
dologicamente, procurando pesquisar toda a diversidade de sons
existentes no mundo (STERNE, 2012).
Evidentemente, neste trabalho a análise ainda é bastante voltada
para a escuta musical, mesmo que contribuições dos estudos de
som sejam relevantes para justamente atentarmos para os limiares e
219
interpenetrações entre som, música e ruído, processos aliás bastante
presentes no rock independente. Também interessam aos estudos
de som os dispositivos tecno-midiáticos na conformação da escuta
musical, acolhidos no “contexto social e cultural na atenção audi-
tiva” (RICE, 2015, p. 101). Ao procurar abordar dimensões socio-
culturais e estético-sensoriais das audibilidades, os estudos de som
propõem também uma desnaturalização das próprias relações de
escuta em diversos contextos historicamente situados. Com uma
forte inclinação aos estudos dos processos sonoros da chamada
modernidade, metrópoles como a cidade de Curitiba passam a ser
entendidas como laboratórios de novos sons mediados tecnologi-
camente, consumidos como commodities e que se propagam em
espaços públicos e privados. Ou seja, a urbanização é fundamental
para entender as “condições de consolidação de regime de escuta
da modernidade” (SÁ, 2010, p. 92).
220
Mantém uma devida atenção “aos sons em si” e aos suportes e
instrumentos que permitem soar, sem ignorar os consensos e dispu-
tas sobre sons adequados e inadequados e modos de reagir a tais
sons. Portanto, mesmo sendo um regime, não é onipotente e mono-
lítico, mas sim aberto à idiossincrasias, transgressões, usos desvia-
dos, improvisos e imprevistos.
Portanto, regimes de escuta, apesar do nome e de serem, em
alguma medida, uma “aisthesis compartilhada” (DAUGHTRY, 2015,
p. 156), comportam posições diversas e até antagônicas: separam as
experiências. São regimes dinâmicos laboriosamente construídos
e da mesma forma destruídos e reconstruídos com a passagem do
tempo ou surgimento de novos atores e processos. Dessa forma,
se um regime pressupõe poder, Daughtry sugere equivalermos o
poder à cultura. Ou, no esquema de equação proposto pelo próprio
autor: “Som + corpo receptivo + poder (principalmente na forma
de “cultura”) = audição (ato de escutar)” (p. 123).
Podemos buscar definição de poder mais próxima ao que dese-
jamos para discutir as forças implícitas e explícitas que modelam
processos de escuta, nos apoiando na leitura de Byung Chul-Han
(2019) sobre poder, não o restringindo como sinônimo de opres-
são e coerção, mas também liberdade, construção e comunica-
ção. E a forma como tal poder-cultura operaria na escuta pode
ser tanto interna quanto externa, implícita quanto explícita, origi-
nária de uma ou mais fontes visíveis ou invisíveis. Portanto, para
pensarmos o poder em objetos como a escuta musical, é impor-
tante mencionar a possibilidade não-repressiva do poder. É poder
como consenso, possibilidade ou aumento de probabilidade em
uma determinada direção.
Em uma dimensão mais interacional, o poder estabelece siste-
mas de relações, teias de comunicações (HAN, 2019). E não são
apenas as placas e avisos que proíbem certos sons ou certas intensi-
dades de som em determinados horários e/ou locais. Mas também
todos os “não-ditos” que modelam o que e quando se deve soar, o
que produz as canções, as formas de produzir e de se portar diante
dessas canções. Poderes discretos, sutis e silenciosos que mode-
lam os sons e as escutas desses sons. Quando pensado operando
221
nos corpos, esse poder silencioso soa mais como reflexos do que
reflexões e assim “forma e estrutura o corpo, cria novos movimen-
tos, gestos e condutas orientados a um determinado fim” (HAN,
2019, p. 75).
Portanto, tal poder modela as técnicas de escuta (audile tech-
niques), em que a escuta seria uma técnica do corpo, composta de
adaptações físicas, mecânicas e químicas que são educadas, domes-
ticadas em prol de uma atividade. Sterne defende que “o corpo é
a primeira tecnologia de comunicação, e todas as tecnologias de
escuta (...) emergem de técnicas de escuta.”(2003, p. 92). Técnicas
do corpo e tecnologias são imbricadas e a primeira “conota prática,
virtuosismo e a possibilidade de falha e acidente, como na técnica
do músico com um instrumento musical” (Ibid., p. 92). O autor
chama de ouvintes virtuosos (virtuoso listeners) homens e mulhe-
res que pautam suas atividades – e aqui no nosso caso interessam
músicos e musicistas, produtores e produtoras, consumidores e
consumidoras – no ato de ouvir esses detalhes sonoros.
Pois devemos lembrar que “compor, arranjar, executar música
é escutar” e, combinando “modos comunicacionais e musicais, a
escuta torna-se material”, tornando-se “médium de um processo
complexo, repleto de referências e sentidos contextuais: políticos,
sociais, culturais e econômicos” (MARTINI, 2018, p. 38). Os músi-
cos são “sobretudo escutadores” já “que seu processo de ler o mundo
e fabricar musicalidades começa por um apuro de ouvido, um aper-
feiçoamento e seleção do ouvir, na direção de uma escuta.” (Ibid., p.
124-125). Porém, o virtuosismo aqui evade inclusive noções conso-
lidadas de musicalidade fundadas no domínio corpóreo e físico
de humanos sobre os instrumentos musicais (LYSLOFF, 2003).
Fundamentado em discursos do faça-você-mesmo, trata-se de um
virtuosismo tolerante com ruídos, desajustes, equívocos, desafina-
ções e interferências.
A ideia da existência de um virtuosismo da escuta ou, mais
especificamente, de escutadores virtuosos (virtuoso listeners), é
acionada por Sterne (2003) quando procura discutir as técnicas
de escuta ou a escuta como uma técnica ou conjunto de práticas,
adaptações e orientações de corpos em relação com as tecnologias
222
de som. Tais técnicas, no decorrer do último século, consolida-
ram-se em um processo que frequentemente demanda distância
dos próprios sons mediados e dos corpos que os emitem. Portanto,
tornou a escuta alvo de dinâmicas de privacidade, privatização,
separação, isolamento, atenção e deriva em relação aos detalhes
sônicos. Tais práticas, treinadas em virtuosismos conscientes ou
inconscientes, se colocam ao custo da construção de espaços acús-
ticos privados, mesmo em contextos coletivos de escuta.
Nos últimos shows que a gente fez, tem rolado, tipo, silêncio, nos
momentos de silêncio da música. Isso é um bom sinal. A galera tá
ouvindo. É da galera prestar atenção. É especial isso. De ter conquis-
tado um espaço que a galera vai e sentindo tá a música. Não tá ali no
rolê e ‘blá blá blá blá’ (CÉU DE VÊNUS, 2018).
223
atenta aos detalhes sonoros da escuta mediada por artefatos de
reprodução sonora. Para compreender essa experiência de deriva
silenciosa, de contemplação diante das intensidades sonoras de
um show de rock é preciso entender os nexos estéticos – jamais
equivalências sensoriais – que possam existir entre os planos de
escuta mediatizada (em tocadores portáteis, móveis e ubíquos de
mídias analógicas e digitais) e de escuta co-presente (em casas de
shows, bares, pequenos teatros, diante de artefatos de amplificação
e modulação de som). Portanto, poderíamos dizer que os regimes
de escuta aqui operam entre dois planos de mediação sociocomu-
nicacional, a saber: aquele mediado por artefatos midiáticos e o da
co-presença das performances ao vivo. E esses planos são permea-
dos pela cultura material que encoraja, inibe, frustra, facilita, possi-
bilita e impossibilita formas de experimentar o mundo via escuta.
No contexto de consumo mediatizado, a escuta via platafor-
mas de streaming, uma vez aparelhada com fones, ajuda a cance-
lar os ambientes que cercam os ouvintes, produzindo um espaço
acústico privado, em “bolhas” (BULL, 2000) ou “pequenas ilhas
de sanidade (sônica) em meio a um mar de violência (corpórea,
sônica e simbólica)” (DAUGHTRY, 2014, p. 237). Também permi-
tem contato e manipulação íntima com os sons, sustentando uma
estética do detalhe sonoro, atenta às pequenas variações de ritmo,
timbre e harmonia (STERNE, 2003). Por um lado, independente-
mente do repertório, a criação de mundos auditivos individuali-
zados é fundada “em desejos de sujeitos ouvintes de remover a si
próprios da cacofonia dos espaços urbanos e entrar em ‘não-luga-
res’ midiatizados” (DAUGHTRY, 2014, p. 237). Por outro, a criação
de zonas de exclusão parece se reforçar com a escuta de um reper-
tório em alguma medida derivado da ambient music, e do dream-
pop, isto é, subgêneros do indie já conhecidos pela sensação de
sonho, de “não-estar-ali”, de tentativa de transcendência do espaço
físico do ouvinte (FERNANDEZ-PORTA, 2010; FONSECA, 2013).
Utilizar os fones de ouvido para produzir bolhas sônicas, em
contato íntimo com sons possivelmente intensos e comprimidos que
encobrem os ruídos do ambiente físico que cerca o ouvinte, produ-
ziria o desejo de presença da performance ao vivo. Emily Thompson
224
(apud KRUKOWSKI, 2019, p. 42-47) por exemplo, entende que os
fones de ouvido seriam uma espécie de “auditório sem paredes” em
que nossos crânios atuam como paredes desse auditório interno,
com sons ressoando em nossas cabeças. Ao carregarmos tais fones
tocando sons em volume intensos, “é como se todos estivessem
no palco o dia todo” (KRUKOWSKI, 2019, p. 113). Por outro lado,
pensando a partir do indie rock curitibano, a escuta em ambiente de
show apontaria para uma familiaridade com a escuta contemplativa,
quase camerística, que a acomoda sem maiores estranhamentos tais
artistas em pequenos teatros, cafés e pequenos restaurantes.
No entanto, é importante destacar que os regimes de escuta não
resultam nesse caso em uma mera sustentação da escuta estrutural
do expert defendida por Adorno (2011). Afinal, parte da introspeção
da experiência musical “privada”, voltada para “dentro” dos ouvin-
tes, opera em conjunto com uma escuta amplificada “pública” que
não se resume a uma concentração voltada para a reconstrução dos
parâmetros musicais legitimados pela música de concerto ociden-
tal. É uma escuta que não é voltada para a “leitura” (mesmo que
mental) da partitura mas para a vibração dos corpos – mesmo que
sentados no chão das pequenas casas de shows ou quase imóveis
em poltronas de teatro – via a presença das materialidades invisí-
veis dos sons que saem dos falantes e são moduladas por aparelhos
como amplificadores, PA’s, instrumentos e pedais, cuidadosamente
preparados pelos ouvintes-músicos.
Para Sterne (2007), mídias e instrumentos devem ser pensados
de forma que suas fronteiras sejam mais fluidas. O apuro de ouvido
que leva em consideração tal fluidez levaria a um tipo de musicali-
dade fundada num virtuosismo da escuta que não se confunde com o
virtuosismo convencional de instrumentistas capazes de tocar muitas
notas em andamento rápido. Por exemplo, Brian Eno, expoente da
ambient music, seria um ouvinte virtuoso que “toca” o estúdio como
um instrumento a despeito de sua perícia como instrumentista.
Entretanto, no rock independente de Curitiba, teríamos sujeitos e
sujeitas que, como é comum em contextos underground, revezam-se
como músicos, ouvintes, produtores, técnicos de som, etc. Realizam
tais processos em espaços multifuncionais de ambientes domésticos,
225
pequenos estúdios, cafés, pequenos teatros e casas de shows procu-
rando sempre manter uma concepção de “espaço criativo semiprivado
dentro da esfera pública” (BARNA, 2017, p. 48). Seja escutando música
através dos smartphones pela cidade em casa, ou nos pequenos espa-
ços para a música independente, há uma concepção de (re)produzir
uma escuta introspectiva e intimista.
De toda forma, a experiência da música ocorre de maneira a
muda os estados afetivos dos ouvintes. Tais estados são produzidos
em relação complexa e dialética entre o logos (letras das canções,
quando existentes) e elementos materiais e performativos. Portanto,
sequer haveria uma relação dada, a priori, entre os significados das
letras e disposições de sentimento. Não seriam (somente) as letras –
que quando existentes abordam temáticas reflexivas, melancólicas
e existencialistas – que produziriam “introspecção”, mas também
o agenciamento de tecnologias sonoras que favorecem uma escuta
privada e o som como tecnologia do self (DENORA, 2004 ) que
com um repertório que favorece longas passagens instrumentais,
texturas e timbres, samples, drones8 e feedbacks, estimularia uma
escuta introvertida e quase meditativa.
Apontamentos finais
É preciso reconhecer o nível exploratório de boa parte da
pesquisa de campo realizada até aqui, o que acaba dando ao texto
um caráter um tanto desequilibrado entre dados coletados do
campo e discussão teórico-metodológica. O decorrer do traba-
lho empírico (prosseguimento das entrevistas, diários de campo
etc.) deverá modelar alguns dos apontamentos e apresentar
novas questões.
No entanto, podemos inferir que a escuta é composta por uma
série de processos que atravessam e retroalimentam o que comu-
mente chamamos de produção, distribuição e consumo de música
pop. Ou seja: a escuta é produtiva, sendo uma forma de perceber
8. Não confundir aqui drone com os veículos aéreos não tripulados, equi-
pados com sensores e câmeras, pilotáveis a quilômetros de distância. Neste caso,
falo de sons sustentados ou repetidos, modulados por instrumentos e apara-
tos tecnomidiáticos.
226
e sentir o mundo ativa e criativamente, que perpassa pelos músi-
cos e ouvintes. Músicos ouvem o tempo todo e os consumido-
res, evidentemente, ouvem as peças musicais e sons produzidos
por esses músicos. Isso nos leva à necessidade de compreender a
escuta, ou as escutas, dentro de uma espécie de agenciamento que
procure considerar aspectos estéticos, materiais, culturais, espa-
ciais, situando os ouvintes sem no entanto desconsiderar o papel
das materialidades que produzem e suportam o som, bem como
os próprios “sons em si”.
Também devemos ter em mente que, se por um lado as mídias
tornaram a escuta mais privada, móvel, passível de ser ouvida em
oscilação entre controle e deriva, atenção e desatenção, por outro
lado os próprios sons, em repertórios específicos, seriam enten-
didos por seus ouvintes mais habituados como produtores desses
mesmos processos complementares de virtuosismo da escuta e
produção da introspecção. Portanto, são tecnologias, mídias, espa-
ços, mas também músicas como tecnologias do self (DENORA,
2004), independente da forma como são ouvidas, que produzem
a introspecção do indie rock, isto é, esta forma de ouvir silenciosa,
contemplativa, que oscila entre a atenção aos detalhes sonoros e a
deriva e sensação de “não-estar-ali”.
Por fim, são os regimes de escuta, com seus conjuntos de técni-
cas aurais modeladas sociocultural, histórica, tecnomidiática e
espacialmente a ponto de se tornarem virtuosismos da escuta, que
produzem a sensação de introspecção. Ou seja: a escuta aparente-
mente imóvel, silenciosa, inerte, que reage de maneira discreta aos
sons frequentemente instrumentais, é fruto de todo um trabalho
que atravessa indivíduos que escutam – tocando ou apenas consu-
mindo – e que perpassa por contextos midiatizados e copresenciais
em torno da música pop.
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Este livro foi publicado
pela Insular Livros em 2020