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Aline Vessoni
Graças à persistência e à dedicação de um grupo de seus cidadãos, a cidade de Araraquara começou a escrever uma importante página no
resgate da memória da escravidão no Brasil. Em 24 de março, passado, após anos de trabalhos e esforços, finalmente veio à luz uma das
mais importantes coleções de escrituras de compra e venda de escravizados, lavradas ao longo do século 19, que foram digitalizadas e
finalmente divulgadas em livro. Intitulada “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”, a obra possui mais
de 500 páginas, e a sua publicação é o resultado de um processo de investigação que mobilizou docentes da Unesp, ativistas do movimento
negro, membros da regional de Araraquara da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), vereadores e professores da Universidade de
Araraquara.
Dentre esses docentes está o antropólogo Dagoberto Fonseca, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de
Araraquara. Ele explica que o vasto material, que estava armazenado no Cartório do Primeiro Tabelião de Notas e de Protesto de Araraquara,
constitui o maior acervo de documentação sobre a escravidão já identificado em toda a América Latina. “É de suma importância tornar
pública essa documentação. Até para que possamos ter a capacidade de enxergar outras dimensões do problema, e só a partir daí buscar
reescrever a história do Brasil”, diz. “É chocante olhar pelo retrovisor dois séculos atrás e constatar que uma pessoa vendia a outra, como se
vende um objeto. Descrevia as características dessa outra, dava um preço e colocava à venda”, diz ele, que fundou o Núcleo Negro da Unesp
para Pesquisa e Extensão Universitária (Nupe), que continua a integrar.
Para agilizar o processo e abranger a imensidão geográfica do país, os trabalhos passaram a ser executados pelas regionais da OAB, que
coordenam comissões junto a universidades, movimentos sociais, membros de governos, juízes, etc. Após aceitar o convite para se tornar
assessor do grupo, Fonseca passou a buscar possíveis colaboradores em diversas cidades da região, como São Carlos, Campinas, São Paulo e
Araraquara, articulando uma grande rede estadual de troca de informações. “Formamos um grupo com integrantes da OAB, alunos e
docentes da Unesp e da Uniara. Ao contatarmos alguns vereadores, eles se mobilizaram para formar uma frente parlamentar antirracista na
Câmara Municipal de Araraquara”, relata.
Um dos desafios mais penosos, e ao mesmo tempo mais essenciais, para o trabalho da comissão envolvia a localização de documentação
legal que pudesse proporcionar base jurídica para a investigação. Ocorre que, se dependesse do Estado brasileiro, esta documentação já
teria deixado de existir há muito tempo. Em dezembro de 1890, menos de dois anos após a abolição da escravatura, o então ministro da
Fazenda da República, Ruy Barbosa, assinou um despacho oficial ordenando que toda documentação relativa à escravidão fosse enviada ao
então Distrito Federal para ser destruída. A iniciativa à época despertou toda sorte de críticas. No texto, Ruy Barbosa dizia que ordenava a
destruição porque a “República era obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e
solidariedade para com a grande massa de cidadãos que com a abolição do elemento civil entraram na comunidade brasileira”. Na visão de
diversos historiadores, porém, Ruy Barbosa agia para impedir que os proprietários de escravos dispusessem de qualquer documentação que
pudesse depois ser usada para fundamentar um pedido de indenização por conta da emancipação dos escravizados.
“Desde a década de 1980, me deparava com essa informação de que Ruy Barbosa tinha mandado queimar esses documentos. Até é
compreensível que se queira queimar esses documentos, afinal, a história do Brasil é feita de apagamentos”, diz Fonseca. “Mas, no
mestrado, estudei piadas referentes a negros e à escravidão. Uma delas dizia que ‘a Lei Áurea havia sido escrita a lápis’. Ou seja, certamente
havia muitos grupos contrários à libertação dos escravos, que eram poderosos e acreditavam que essa lei não iria ‘pegar’. E se uma lei não
pegasse, onde poderiam estar preservados os documentos que comprovavam posses de escravos? Nos cartórios, obviamente”, diz.
Através da rede de contatos que havia estabelecido em nome da comissão, Fonseca tomou conhecimento de que uma ex-aluna da Unesp,
Juliana Geraldi, então à frente da fundação Pró-Memória de São Carlos, encontrara um depósito de documentos referentes à compra e
venda de escravos. O achado só reforçou a crença de Fonseca de que Araraquara também poderia abrigar documentação semelhante.
Graças à iniciativa da frente parlamentar antirracista da Câmara de Vereadores, foi possível identificar a presença de tal documentação no
Cartório do Primeiro Tabelião de Notas e de Protesto de Araraquara. Este é o mais antigo estabelecimento do gênero na cidade, remontando
à década de 1830. “O cartório foi fundado por conta do crescimento do tráfico interno de escravos. Eles vinham da Bahia, onde os ciclos
econômicos estavam perdendo força, para o interior de São Paulo, com o desenvolvimento da cultura cafeeira”, explica Fonseca.
O proprietário do cartório, no entanto, se negava a conceder acesso ao material, alegando que se tratava de um acervo particular. Mas teve
que voltar atrás quando a OAB local entrou na justiça com uma ação solicitando o acesso, vencendo a causa. Foi só então que os integrantes
da comissão e os pesquisadores convidados tiveram a oportunidade de efetivamente examinar o material.
Direito à memória
As docentes da Unesp Claudete de Sousa Nogueira e Eva Aparecida da Silva, ambas da FCLar, foram convidadas pelos integrantes da
regional da Comissão da Verdade a examinar os documentos. Nogueira há muitos anos pesquisa aspectos que permeiam a escravidão e foi
a pesquisadora responsável pela análise da qualidade do material.
Na época em que os arquivos foram encontrados, Nogueira, que já havia trabalhado em pesquisas anteriores com processos-crimes,
organizou um encontro para mostrar “como se dá o trabalho com fontes documentais”. Segundo a docente, embora a temática dos arquivos
criminais e a dos arquivos de compra e venda sejam de natureza diferente, ambos contam histórias. “Não se trata apenas do nome do
vendedor, do comprador, mas se pode identificar quem eram esses escravizados, a idade; muitos descrevem características do escravizados,
se eram casais, se tinham filhos. Ou seja, sempre dizemos que se trata apenas de documentos, os pesquisadores é que os transformam em
fontes históricas”. Ela diz que, uma vez que o material está integralmente digitalizado, o primeiro passo a seguir é “a leitura e a transcrição”,
porque o material está escrito em um português antigo, de difícil compreensão.
Ao desembarcarem no Brasil os escravizados perdiam nome e sobrenome, adquirindo o sobrenome dos senhores a quem pertenciam.
Então existe uma lacuna quanto a suas origens “que dificilmente conseguiremos recuperar, preencher”, diz a historiadora. No entanto, talvez
essa possibilidade esteja mais próxima para os araraquarenses, graças aos arquivos. “O que tem sido feito é encontrar a localização e origem
de grupos. Por meio do cruzamento de dados de outros documentos, como esses de compra e venda, que apresentam número de
matrícula, é possível saber onde essa pessoa foi registrada no Brasil, se é da primeira ou segunda geração e, assim, obter indícios de que
porto africano ela veio”, diz.
Talvez seja, inclusive, essa a razão pela qual a família que fundou o cartório, em 1831, e que ainda está à frente dos negócios, havia negado o
acesso às escrituras. “[Nos documentos] Já foram contabilizadas, pelo menos, quatro negociações de vendas que envolviam proprietários do
cartório, que eram pessoas ligadas às forças militares e políticas do período”, diz Fonseca.
Por outro lado, o ineditismo do material já despertou interesse até fora do Brasil. O docente relata que um historiador e cineasta brasileiro,
oriundo do interior de São Paulo, mas que hoje reside em Paris, atravessou o Atlântico para conhecer o trabalho desenvolvido em
Araraquara. Ele busca dados sobre os tataravôs escravizados. A princípio, pensa em contar, de forma áudiovisual, a história da sua família.
Uma possibilidade de construção de identidade, que sempre foi negada aos africanos e afro-brasileiros. “Agora poderemos olhar para as
heranças que esse processo de escravidão trouxe para os descendentes desses escravizados. E a partir daí pensar em políticas públicas
enquanto reparações históricas”, diz Nogueira.
Através do Nupe, Eva, Claudete e Dagoberto já elaboram uma proposta para a construção de um memorial dedicado à história e cultura do
negro no interior paulista. “A ideia é dar visibilidade aos próprios sujeitos que viveram essas histórias, porque eles têm nome, idade, gênero e
também carregam suas dores”, diz Silva. Para Nogueira, o memorial deve ir além da escravidão. “A cultura e a economia de Araraquara estão
interligadas à história do povo negro e isso se desdobra no cenário pós-abolição”, diz.
Imagem acima: reprodução de documento apresentado em “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”. Crédito: Editora Rima.
14/04/2023, 16h40
Atualizado em:
18/04/2023, 12h07
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