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ANÁLISE CRÍTICA DO LIVRO “O SÉCULO DOS CIRURGIÕES” –

JÜRGEN THORWALD

O livro “O Século dos Cirurgiões”, publicado na Alemanha, em 1956, é


de leitura indispensável para a compreensão das origens e da evolução da
cirurgia e da medicina. O autor do livro, Jürgen Thorwald (1915-2006), baseou-
se em anotações de seu avô materno, Henry Steve Hartmann, um médico que
teria testemunhado importantes avanços da medicina durante o século XIX.
Que foram extremamente importantes para o desenvolvimento de técnicas
cirúrgicas mais humanas e seguras.

À leitura permite uma viajem não só pelo caráter científico das


descobertas feitas na época, como também nos faz refletir sobre a
humanização da medicina e da relação médico-paciente. O caráter realístico
nos faz mergulhar nos relatos apresentados com um sentimento de empatia em
relação às dificuldades enfrentadas pelos pioneiros da cirurgia, e ao sofrimento
dos pacientes, que devido as limitações da época, como a ausência da
anestesia e assepsia, eram submetidos a procedimentos extremamente
dolorosos e com pouca expectativa de êxito. Apesar disso, no decorrer das
cinco partes em que o livro é dividido, percebe-se o enorme salto dado pela
medicina no XIX, especialmente desde 1846, com a descoberta da anestesia e
a possibilidade da operação indolor. E, depois, com a descoberta da
importância da assepsia.

A primeira parte do livro “A longa noite” traz três narrativas de um


período anterior a descoberta da anestesia, apresentando técnicas que
parecem assombrosas, à luz dos conhecimentos atuais:

Em “Kentucky”, a narrativa acontece ano de 1809, em que a paciente


Jane Crawford após nove meses acreditando estar gravida, com dor e sem
concepção foi levada pelo marido até o médico Efraim McDowell, que
diagnosticou tumor de ovário, o que na época era visto um limite imposto por
Deus e equivalia a uma sentença de morte próxima e inevitável. Desesperada,
Crawford implorou ao cirurgião realizar a cirurgia mesmo sabendo dos riscos,
na esperança de ter alguma chance de sobrevida. McDowell, de início foi
contrário ao pedido da enferma, no entanto, comovido com o caso, levou a
paciente para tentar um procedimento cirúrgico na casa dele, sob protestos da
população da cidade, que considerava aquilo um assassinato. Feita a cirurgia
Crawford não só sobreviveu como continuou viva por mais de três décadas. No
entanto, mesmo com o sucesso dessa cirurgia, McDowell só foi convencido e
aceitou compartilhar um relatório sobre o feito apenas depois da terceira
operação da mesma classe ser bem sucedida.

Na segunda história, “Warren”, são descritas algumas cirurgias feitas


pelo famoso médico e professor de anatomia e cirurgia John Collins Warren, no
centro cirúrgico da universidade de Harvard. A narrativa impacta pelo
sofrimento gerado nos pacientes, já que a anestesia até então não existia, e os
pacientes eram submetidos a processos cirúrgicos de maneira arcaicas,
insuficientes e falhos de sedação (ópio e nicotina). E, além disso, eram tratados
de forma fria e com um aparente desprezo por parte do cirurgião. No entanto,
apesar de tal brutalidade, Warren era conhecido e admirado por sua agilidade
nas cirurgias, em tempos cronometrados, tendo em vista que cirurgias mais
demoradas prolongavam ainda mais a dor do paciente.
Um dos processos cirúrgicos feitos por Warren narrados no livro foi a de
um paciente possuía uma vegetação na língua e o médico a cortou com um
único golpe. Nessa cirurgia foi usada aguardente para sedação e ferro em
brasa para estancar o sangue. E como paciente, não aguentando de dor, se
movimentou, também teve seu lábio queimado. Warren no entanto, não
mostrou compaixão alguma e o advertiu por ter se movido.

Na terceira história, “Cálculos”, o médico Hartmann assistiu uma cirurgia


de litotomia em um menino, realizada no ano de 1854, por um médico chamado
Mukerji, na qual o cirurgião tirou os cálculos vesicais pelo períneo, pois,
naquela época a peritonite era muito temida, por isso médicos evitavam chegar
a bexiga pela parede abdominal e optavam por retirar os cálculos pelo períneo,
mesmo tendo o risco de lesar varias estruturas como artérias, veias e nervos, o
que parece inacreditável em dias atuais.

Ainda espantado com o que observou, Hartmann descobre que também


tem cálculos na bexiga. Então empreendeu uma incansável pesquisa para
encontrar um cirurgião que pudesse operá-lo com sucesso. Na época, as
técnicas eram precárias e não se tinha conhecimento sobre a antissepsia e
assepsia. Assim, segundo recomendações, acabou indo a França para ser
operado pelo Dr. Civiale, que utilizava um método de cirurgia que consistia na
introdução de um cateter, através de uma sonda, até a bexiga, para fragmentar
os cálculos de modo que eles fossem eliminados pela via natural. A respeito do
caso, chama atenção o contraste com a época atual, visto que um
procedimento de litotomia, hoje, é bastante simples e representa baixo risco
para a vida do paciente.

Na segunda parte do livro “Luz ou o despertar do século” o autor


começa descrevendo as várias tentativas falhas que foram realizadas até que
conseguisse chegar a revolucionária descoberta da anestesia, feita na época,
medicante inalação de gases químicos, que além de proporcionar cirurgias sem
dor, foi peça fundamental para o todo o desenvolvimento e aperfeiçoamento
das técnicas cirúrgicas, já que possibilitava cirurgias mais demoradas.

Nos Estado Unidos o dentista Wells demonstrou a sedação causada


pelo “gás hilariante” (óxido nitroso), porém em dosagem insuficiente e o
paciente acabou sentindo dor, o que fez com que muitos desacreditassem na
técnica. Na Europa, Hartmann, em uma viagem a Londres e Edimburgo,
conheceu Simpson, um médico que, anos depois do experimento de Wells,
demonstrou o efeito anestésico superior do clorofórmio na obstetrícia, por
causar menos irritação respiratória e menos tosse. Método esse que foi
condenado pela Igreja, até que a Rainha Vitória concebeu um filho sob uso de
clorofórmio como anestésico.

No entanto, a disseminação das técnicas de anestesia ainda encontrava


grande resistência por médicos e cientistas mais conservadores. O próprio Dr.
Warren, citado anteriormente, considerava “a dor e o bisturi eternamente
unidos”. Ele só foi convencido da importância da anestesia após acompanhar
uma cirurgia com uso de éter por Dr. Morton. Após a maior aceitação da
anestesia, entrou-se em um período no qual pesquisas e testes passaram a ser
frequentes, havendo uma disputa entre médicos pela descoberta de novas
técnicas. O que culminou em técnicas mais seguras e menos dolorosas para os
pacientes.

A terceira parte do livro “A febre” narra o início da busca pela assepsia.


Noções acerca das infecções, da limpeza, da assepsia e antissepsia passaram
a finalmente serem vistas como de grande importância. Com o uso das
técnicas de anestesia, os processos cirúrgicos passaram a ter uma maior taxa
de sucesso. No entanto, o problema passou a ser o pós-operatório, período no
qual vários pacientes vinham a falecer devido a infecções. Assim, evitar essas
mortes passou a ser um grande desafio.

Vale ressaltar, que, naquele contexto, a higiene não era uma


preocupação dos médicos, os quais reutilizavam panos sujos para esfregar as
mãos e os instrumentos cirúrgicos. Um exemplo disso eram os feridos de
guerra que apesar de já terem acesso a anestesia, eram operados em
condições precárias como descrito acima. Assim comumente, sobreviviam a
cirurgia, mas vinham a morrer de febre ou gangrena. Técnicas, hoje, tão
simples e cotidianas de higiene, na época eram desconhecidas ou
desprezadas.

Nessa parte do livro, são descritas, também, novas técnicas e


procedimentos. O autor dedica um capítulo à descoberta da cesariana. Cirurgia
de concepção muito comum na atualidade, mas que na época ainda era muito
precária o que resultava em acertos e erros.

A quarta parte do livro “A Redenção”, é marcada pelo revolucionário


desenvolvimento da assepsia. As noções de assepsia começaram com
Semmelweis, que, usando um método epidemiológico simples na Clínica
Obstétrica do Hospital Geral de Viena, chegou à conclusão que nas
enfermarias onde havia somente parteiras que não tinham contato com
cadáveres, morriam menos pacientes, enquanto que, nas alas do hospital onde
havia médicos e estudantes de medicina, os quais entravam frequentemente
em contato com cadáveres, era maior a mortalidade. Nesse contexto, mesmo
ainda não tendo conhecimentos sobre a microbiologia, Semmelweis postulou
que a lavagem de mãos poderia evitar infecções e diminuir a mortalidade. Sob
um olhar atual, o simples fato de lavar as mãos, hoje tão corriqueiro, na época
foi capaz de diminuir drasticamente a mortalidade.

Lister, a partir do conhecimento da teoria de Pasteur, contribuiu


fortemente para à prevenção de contaminação de feridas e instrumentos.
Postulou que a através da utilização do fenol, era possível a cicatrização de
ferimentos sem secreções de pus. Além disso, defendeu que o ambiente
hospitalar deveria ser claro e ventilado, estipulando também a necessidade de
que se mantenha uma distância mínima ente os pacientes, para que
contaminações possam ser evitadas. Porém, devido à resistência da classe
médica, tais avanços só foram reconhecidos anos depois.

Nesse contexto, impressiona o conservadorismo de alguns médicos, que


mesmo diante das experiências de Pasteur e Koch, que comprovaram a
existência de microrganismos como potenciais causadores de infecções,
ignoravam tais descobertas. Isso estabelece uma relação chocante com a
atualidade, pois ainda existe uma parcela da classe médica, que reluta contra
atualizações, mesmo elas tendo relevância científica.

De modo geral, pode-se dizer que o livro “O Século dos Cirurgiões” nos
possibilita uma viagem por todo o desenvolvimento das técnicas cirúrgicas,
desde as experimentações mais arcaicas até as que servirãm como base para
as que conhecemos atualmente. Também nos permite observar a relação
médico paciente ao longo do século XIX, bem como a criação de estereótipos
que se mantem na atualidade. Sendo assim, fica claro, que tal obra é de
inestimável importância para conhecermos um pouco do meio a que a que
estamos inseridos hoje, e nos possibilita aprender com erros do passado para
que possamos evitar que eles aconteçam futuramente.

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