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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Bruna Tibolla Mohr

Pandemia de COVID-19 e as narrativas de cuidado num dispositivo da rede de saúde


mental de Niterói-RJ: reflexões e afetações

Rio de Janeiro – RJ
2023
BRUNA TIBOLLA MOHR

Pandemia de COVID-19 e as narrativas de cuidado num dispositivo da rede de saúde


mental de Niterói-RJ: reflexões e afetações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia Social do Instituto
de Psicologia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – UERJ, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em
Psicologia Social, na área de concentração
História, Imaginário Social, Cultura.
Orientador: Dr. Ronald João Jacques
Arendt.

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________________________
Professor Dr. Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

___________________________________________________________
Professora Drª. Laura Cristina de Toledo Quadros
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

___________________________________________________________
Drª. Eliane Caldas do Nascimento Oliveira
Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ – RJ

___________________________________________________________
Drª. Irme Salete Bonamigo
Conselho Regional de Psicologia-12ª Região – CRP-SC
AGRADECIMENTOS

Ao meu companheiro de todas as horas, meu amor, Lucas. A tua parceria fez com que essa
travessia fosse possível. Compartilhar a vida com você é uma alegria! Muito obrigada!

À minha mãe, Maria Iza, e ao meu pai, Dari Jaime, pelo suporte não só nesse período, mas em
toda minha vida. Muito obrigada pelo incentivo que, mesmo na dificuldade, tornou possível o
mestrado no Rio de Janeiro.

À minha irmã, Flávia, por se fazer presente mesmo na distância física; e minha sobrinha
Isabela, linda, com quem aprendi a brincar por vídeo chamada. É possível reinventar.

Aos meus sogros, Clariane e Hedo, pelo cuidado e carinho de sempre. Vocês são
maravilhosos!

Ao professor Ronald pelo acolhimento e à professora Laura, que em meio à turbulência me


ajudou a encontrar um lugar possível.

À professora Irme, pessoa incrível com quem tenho a alegria de compartilhar minha trajetória
acadêmica e profissional.

À Eliane Caldas, pelo aceite em fazer parte deste momento, pela parceria, leitura e
apontamentos.

Às psicólogas e psicólogos entrevistados desta pesquisa, colegas da saúde mental, pessoas


com quem pude trocar, aprender e me emocionar. Compartilhar esta pesquisa com vocês é
uma honra.

À todos aqueles que passaram e que, de alguma forma, marcaram este processo.

Muito obrigada!
RESUMO

Devido à chegada do vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, no Brasil no ano de 2020,


e do decreto de isolamento social em decorrência do aumento do número de casos da doença,
estratégias para a redução do contágio pelo vírus precisaram ser implementadas, e o cuidado
em saúde mental na Rede de Atenção Psicossocial precisou ser reconfigurado. Tendo em vista
o cenário pandêmico, o objetivo deste trabalho é compartilhar percepções de um período em
que a pesquisadora atuou num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município de
Niterói-RJ, bem como de seu encontro, através de entrevistas, com cinco profissionais da
psicologia que também atuaram em CAPS do mesmo município. A pesquisa foi construída a
partir de fragmentos, isto é, resgates históricos, memórias e narrativas de experiência que
integram o corpo do texto. Nesse sentido, a partir da experiência da pesquisadora, das
entrevistadas, e de uma aposta política e metodológica na escrita, em que o texto apresenta
estilos de grafia diferentes para apontar as suas diversas modulações e composições,
compartilharemos os efeitos das experiências de trabalho e as modulações do cuidado
oferecidos aos usuários dos serviços nesse período e que está disposto em três tempos:
memórias do trabalho no CAPS antes da pandemia, a chegada da pandemia, e a fase de
abertura, ou seja, a partir da vacinação.

Palavras-chave: pandemia; narrativas; experiência; saúde mental; CAPS.


ABSTRACT

Due to the arrival of the SARS-CoV-2 virus, which causes COVID-19, in Brazil in 2020, and
the decree of social isolation due to the increase in the number of cases of the disease,
strategies to reduce contagion by the virus needed be implemented, and mental health care in
the Psychosocial Care Network needed to be reconfigured. In view of the pandemic scenario,
the objective of this work is to share perceptions of a period in which the researcher worked at
a Psychosocial Care Center (CAPS) in Niterói-RJ city, as well as of her meeting, through
interviews, with five professionals of psychology who also worked in CAPS in the same city.
The research was built from fragments, that is, historical rescues, memories and experience
narratives that integrate the body of the text. In this sense, based on the experience of the
researcher, the interviewees, and a political and methodological commitment to writing, in
which the text has different spelling styles to point out its various modulations and
compositions, we will share the effects of work experiences and the modulations of care
offered to service users in this period and which is arranged in three stages: memories of work
at CAPS before the pandemic, the arrival of the pandemic, and the opening phase, that is, with
vaccination.

Key-words: pandemic; narrative; experience; mental health; CAPS.


“O que se pensaria de um arquiteto que, em suas
plantas, reservasse certos ângulos, daquilo que
virá a ser a armação, para que as aranhas
pudessem ali fazer sua teia? [...]. Que pense no
calor, na luz, no isolamento sonoro, no custo, mas
não nas aranhas. Em todo o caso, bem se vê onde
se situa o estrago: o projeto pensado absorve
tudo, e o que ele não pode absorver, ele destrói
como inoportuno” (Fernand Deligny)

“A narrativa [...] é ela própria, num certo


sentido, uma forma artesanal de comunicação.
Ela não está interessada em transmitir o “puro
em-si” da coisa narrada como uma informação
ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele” (Walter
Benjamin)
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 7
2 METODOLOGIA .............................................................................................11
2.1 MEMÓRIA ORAL ............................................................................................ 14
2.2 TRAUMA E TRANSMISSÃO DA EXPERIÊNCIA .......................................... 16
2.3 CARTA A UMA QUERIDA PROFESSORA ..................................................... 18
2.4 O CAMPO ......................................................................................................... 22
2.5 AS ENTREVISTADAS ..................................................................................... 23
3 RESGATAR MEMÓRIAS, NARRAR HISTÓRIAS ..................................... 28
4 PRIMEIRO TEMPO: MEMÓRIAS DO TRABALHO NO CAPS ANTES DA
PANDEMIA ....................................................................................................................... 42
5 SEGUNDO TEMPO: FASCISMOVÍRUS E CORONAVÍRUS - UMA
CONTEXTUALIZAÇÃO PANDÊMICA ......................................................................... 48
5.1 A CHEGADA DA PANDEMIA: MEMÓRIAS E MODULAÇÕES NO
COTIDIANO DO SERVIÇO ............................................................................................... 55
6 TERCEIRO TEMPO: A VACINAÇÃO .......................................................... 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 77
ANEXOS .......................................................................................................... 80
7

1 INTRODUÇÃO

Acordar cedo para partir rumo à UERJ requer disposição, pois o percurso é bastante
agitado. Caminhar um trecho a pé, pegar a barca na estação Araribóia, saltar na Praça XV e
percorrer mais um trecho no centro da cidade rumo à estação da Carioca, de lá, só
desembarcar no Maracanã. O percurso inclui fluxos intensos. Pessoas correndo, se
esbarrando, desviando da margem invisibilizada que compõe as calçadas. Pessoas indo,
pessoas voltando. Fluxos de carros, ônibus e motos seguindo o ritmo estabelecido pelos
semáforos enquanto emitem os sons agudos e incessantes de suas buzinas. Entre um veículo e
outro, as pessoas correm, aproveitando brechas para atravessar a rua. Vendedores ambulantes
por todos os lados. Fluxos de cores, de temperaturas, de cheiros, de sensações. Fluxos de
palavras cortando e sendo cortadas pelo barulho dos motores, dos freios dos veículos e
também das sirenes da polícia. As bicicletas invadindo as calçadas. Fico atenta às buzinas.
Cuido para não ser atropelada. Uma infinidade de ritmos no traçado de infinitos trajetos, a
paisagem do percurso de casa até a Universidade carrega a intensidade da cidade do Rio de
Janeiro: tudo acontece a mais de mil quilômetros por hora.

***

Recém-chegada, migrei de uma cidade do oeste catarinense com pouco mais de


duzentos mil habitantes. A mudança, no segundo semestre do ano de dois mil e dezenove, de
mais de mil trezentos e trinta e três quilômetros de distância até o Estado do Rio de Janeiro, é
mobilizada pelo mestrado em Psicologia Social. Durante o meu primeiro ano aqui, nada
passava despercebido: a correria nas ruas, os sons, os cheiros da cidade ao meio-dia, o vento,
o clima, a quantidade de ônibus, o metrô. A estranheza provocada pela desterritorialização;
estranheza que essas novas intensidades me provocavam. Uma estranha fora do ninho. O
trabalho era, então, de construir para mim um novo ninho que passava por estabelecer redes e
vínculos.

O ano vira e chegam notícias por todos os lados sobre uma tal “pneumonia
desconhecida”. A ameaça de uma epidemia mundial aumenta a cada dia ganha cada vez mais
força nos noticiários. Fala-se em repatriação de brasileiros no exterior, de casos suspeitos no
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Brasil – todos descartados até a confirmação, em vinte e seis de fevereiro de dois mil e vinte,
do então denominado “coronavírus”. A partir de então, as confirmações de novos casos vão
sendo cada vez mais frequentes. Além dos casos confirmados, há um crescente número
aguardando por testagens. Máscaras de proteção individual, álcool gel e luvas já eram itens
difíceis de encontrar. Mais casos suspeitos. Mais casos confirmados. Aulas canceladas por
quinze dias. E depois mais quinze. E depois não eram só as Universidades e as escolas. Eram
mais. E mais. O prédio em que eu morava, já não sentia nem o barulho estridente dos motores
e nem o chacoalhar que o peso dos carros e ônibus provocavam sempre no clarear do dia. O
silêncio da cidade era gigante.

Estar nos espaços físicos ou em coletivos, tornou-se ameaçador. No mesmo ano,


Judith Butler (2020, s/p) escreveu sobre os rastros humanos nas superfícies do mundo,
afirmando, naquele momento, que passávamos a saber de fato que compartilhávamos o
mesmo mundo: “a superfície que uma pessoa toca carrega o rastro dessa pessoa, acolhe e
transmite aquele rastro, e afeta a próxima pessoa cujo toque aí pousa”. Para não tocarmos nas
superfícies, para não encontrarmos uns aos outros, os modos de vida precisaram ser
reconfigurados; quem podia, adaptou-se aos encontros mediados pela tecnologia dos
computadores e dos celulares que ofereciam recursos de chamada em tempo real. Trabalho,
compras, diversão, estudo, comunicação, tudo submetido às telas.

Esse lugar, na web, online, configurou-se de tal maneira que passou a ser possível, sob
as condições pandêmicas, estabelecer novas redes. Esse lugar foi, nesse sentido, uma
configuração específica da rede, composta por um conjunto de componentes que se
relacionavam e produziam determinados efeitos de rede. Rede de internet com seus cabos e
fios percorrendo as estruturas, dos prédios, das casas, até chegar no roteador que distribui
sinal e conexão para o celular e computador; o microfone, a câmera, o fone de ouvido; as
redes sociais e as inúmeras postagens e compartilhamentos, os textos científicos, os vídeos; o
distanciamento social, as reuniões, as aulas e encontros (e a expressão corriqueira: síncrono
ou assíncrono) mediados por esse aparato tecnológico, os noticiários, o cenário político...

O “kit-pandemia”, recheado de incertezas e desestabilizações, abalou tudo que podia,


tirou as certezas e a rotina de seus lugares. Embaralhou e redistribuiu os modos de vida. O
projeto pensado (Deligny, 2018), que vim construindo e querendo desde que aqui me
estabeleci, em que pretendia trabalhar com dispositivos de arte e narração num Centro de
Atenção Psicossocial, não se tornou mais possível. O ruir do projeto pensado fez desmoronar,
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além da possibilidade de pesquisar, a mim mesma. A maior indagação, no decorrer desse


processo de incertezas, era: agora que o toque-vínculo é tão ameaçador e que implica na
contaminação pelo vírus, como estar na rede de atenção à saúde mental, campo de pesquisa do
projeto, quando meu corpo-close está confinado num lugar que, impossibilitada de traçar
novas redes, produziu em mim, como efeito, uma dificuldade de reconhecer esse lugar
inteiramente como “casa”? Como abrir portas na rede quando só há janelas virtuais?

Estávamos em funcionamento remoto desde meados de março de 2020. Naquele


momento, as relações e interações estavam condicionadas ao espaço virtual da web, e a
internet passou a ocupar outros espaços nesse cenário. Aulas da pós-graduação, encontros de
grupos de estudo, encontros de grupos de amigos, comemorações virtuais, orientação de
pesquisa, eventos, lives e mais lives. Tudo online. Todos encaixados nos pequenos quadrados
da tela, sob o efeito do close: a câmera e o microfone que cortam e recortam a paisagem à
nossa volta, a nossa voz, nossos corpos, nossos olhares, nossos gestos. Aquilo que
costumávamos ver e ouvir como corpo e voz presentes, sem mediação de uma tela, tornou-se,
às vezes, só voz, ou só rosto, ou só recortes de partes de rosto. Nesse close, signos são
emitidos, os quais ainda não havíamos aprendido a interpretar muito bem. Por que a câmera
foi desligada? Por que saiu da chamada? Por que ainda não entrou? Por que não fala? Por que
só escreve? Uma série de questionamentos para uma série de novos acontecimentos.

Quando as mortes começam a barulhar cada vez mais nos noticiários, os espaços
coletivos da web, que nos possibilitavam encontrar um pouco de amparo, foram ficando cada
vez menores para trocas. Foi ficando difícil falar sobre o que estávamos vivendo e o assunto
foi perdendo espaço, perdendo força; o medo nos fez ficar cada vez mais em silêncio, mas não
porque não queríamos falar, evitávamos porque entendíamos que a pandemia era inegável e
incontornável.

A tecedura dessa nova rede de pesquisa, que foi se montando a partir da configuração
da realidade pandêmica, passa a interpelar, redirecionar e redimensionar a construção do
problema de pesquisa da seguinte maneira: quais foram as modulações das formas de
cuidado produzidas pelo trabalho dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) com a
chegada do coronavírus? E, a partir do testemunho dos profissionais que trabalharam
no equipamento de saúde mental nesse período, que experiências são possíveis de serem
narradas no presente?
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Buscando apresentar as reconfigurações do cuidado na rede, realizamos entrevistas


com cinco profissionais da psicologia que atuaram em CAPS localizados no município de
Niterói/RJ. As profissionais entrevistadas atuavam no serviço antes da pandemia e puderam
acompanharam a chegada da pandemia no cargo de trabalho. Ainda, é importante salientar
que nenhum dos profissionais, quando da realização das entrevistas, mantinha vínculo com as
instituições, tendo encerrado o contrato de trabalho junto a nova gestão de saúde mental do
município.

O trabalho que segue tem sua narrativa desdobrada em três tempos. O primeiro tempo,
que compreende a percepção das psicólogas e dos psicólogos entrevistados acerca de como
era o trabalho realizado no dispositivo antes da chegada da pandemia do coronavírus. O
segundo tempo, que se refere à chegada da pandemia, em seu campo biológico com a
COVID-19, bem como, no Brasil, no campo político, com a operação daquilo que vamos
chamar de vírus do fascismo. Este tempo abrange as percepções que as psicólogas e os
psicólogos entrevistados tiveram do trabalho no CAPS durante este período de nossa história
presente e quais modulações de cuidado foram possíveis oferecer aos usuários do serviço de
saúde mental em questão. O terceiro e último tempo está situado no período em que a vacina
foi disponibilizada, isto é, período em que se começa a pensar numa flexibilização das
medidas de isolamento. Com a flexibilização, novas configurações do trabalho foram
surgindo. Esse tempo também compreende o momento que, muito específico na rede de saúde
mental do município de Niterói, ocorre a transição da gestão da rede de saúde mental para
uma fundação pública dotada de personalidade jurídica do direito privado.

É a partir das narrativas da pesquisadora, das três psicólogas e dos dois psicólogos
trabalhadores da rede de saúde mental entrevistados que, nesses três tempos apresentados,
forjamos a memória e o testemunho do período pandêmico experienciado, compreendendo
assim seus efeitos quanto à construção do cuidado.
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2 METODOLOGIA

Toda produção de conhecimento,


precisamos dizer de saída, se dá a partir de
uma tomada de posição que nos implica
politicamente […].
Nesse sentido, podemos pensar a política
da narratividade como uma posição que
tomamos quando, em relação ao mundo e a
si mesmo, definimos uma forma de
expressão do que se passa, do que
acontece. Sendo assim, o conhecimento que
exprimimos acerca de nós mesmos e do
mundo não é apenas um problema teórico,
mas um problema político.
Eduardo Passos e Regina Benevides de
Barros. Por uma política da narratividade.
p. 150-151.

Nesta pesquisa, as entrevistas realizadas nos possibilitaram não só ouvir relatos de


experiências de vida, obter dados e informações de como alguns serviços que atuam no campo
da saúde mental tiveram seu trabalho modulado e reestruturado devido à pandemia do
coronavírus. Mais do que isso, as entrevistas realizadas se colocaram como meio de
construção e acesso ao plano compartilhado da experiência, pois além de acompanhar
processos, tendo aqui a cartografia como nossa aliada, também intervimos nos processos que
acompanhamos. A pista do trabalho com entrevistas deixada por Tedesco, Sade e Caliman
(2016), nos mostra que o acesso à experiência vivida não é a única direção, esse plano precisa
estar em sintonia com o plano da processualidade, o plano comum, coletivo de forças, e que
estamos sempre sob o risco de apenas representar estados de coisas, dados informativos. Essa
pista nos é importante porque operam, no Brasil presente, um jogo de forças que se desdobra
não só em relação à pandemia que chega e as transformações que ela força, mas também a um
governo fascista de Bolsonaro, uma política do ódio e toda a destruição que ele foi
provocando antes e também durante o período em que vivíamos uma pandemia global.

A pista cartográfica da entrevista nos é importante pois, muito mais do que extrair
representações vividas, emoções narradas, essa pesquisa se coloca como um campo de
intervenção onde se apresentam jogos de forças, isto é, tensões entre o passado, o presente e o
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futuro; para tanto, a compomos a partir de uma política da narratividade, visto que não basta
apenas escrever: a política da narratividade que aqui pretendemos trabalhar pressupõe a
intervenção através da pesquisa, portanto do texto, e as tensões que ele nos possibilita
provocar. Alguma coisa do vivido das entrevistadas e entrevistados ainda ressoa, mas sendo
modulado, sendo ampliado politicamente, através da tecedura do texto. Nesse sentido, Moraes
e Quadros (2020, p. 5) nos mostram que a narrativa “envolve tanto resgatar memórias quanto
produzir realidades delas derivadas”. A pesquisa é também escrita; a escrita, por sua vez, é
política porque é intervenção. Logo, a memória oral se faz escrita num plano de forças onde
interessa muito menos aquele que escreve ou aquele que narra, mas justamente o que está
sendo escrito, o conteúdo em termos de disputa, aqui, no campo da saúde mental.

A construção desse texto tem como inspiração, entre tantas outras, o trabalho feito por
Luciana Franco em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense
(pesquisa que posteriormente foi publicada como livro, em 2016). Luciana, sob orientação de
Marcia Moraes, trabalha com a noção de fragmento e de referência para construir uma política
de escrita capaz de considerar as narrativas/relatos como estratégia metodológica. A autora
utiliza de uma grafia diferente no texto para organizar o que é “fragmento”, sendo esses
trechos de relatos, fragmentos de seu diário de experiência em campo. Essa grafia difere, por
outro lado, do que são “referências”, isto é, espaço onde se discute os fragmentos a partir de
outros autores e onde tece suas observações: “são fragmentos e referências porque esse texto
foi sendo construído com ideias que despertavam essas pontes do conversar” (p. 18), uma
aposta ética e política que não tem como finalidade esgotar o pensamento, mas que carrega
como objetivo a própria produção do pensamento naquilo que ele é capaz de engendrar a
partir da mistura desses corpos porosos.

Nessa perspectiva, adotamos como inspiração a estética da grafia proposta por


Luciana, alguns fragmentos que aparecerão ao longo desta pesquisa são pedaços de
experiências da pesquisadora, pedaços de diálogos com as entrevistadas e entrevistados que,
neste fazer artesão, nessa tecedura, mais do que tirar categorias das falas das pessoas, a
proposta é de integra-las ao texto, assim, vão se montando, quase como na figura de um
caleidoscópio, os elementos naquilo que eles mesmos vão produzindo. Porém, vamos operar
uma ampliação, um desvio na aposta metodológica que Luciana apresenta: nessa pesquisa, o
gesto de narração é também o gesto de escrita, não sendo o gesto de escrita somente uma
análise sobre aquilo que foi narrado. O leitor encontrará, ao longo do texto, um intercâmbio
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de falas das entrevistadas que se tornaram escrita e a própria escrita da entrevistadora.


Tornando, assim, evidente a polifonia de vozes que povoam a superfície textual coletiva.

Além do trabalho de Luciana Franco, damos passagem aqui à jornalista e escritora


ucraniâna Svetlana Aleksiévitch, que tem se debruçado há alguns anos sobre as memórias
soviéticas e pós-soviéticas. No seu fazer, diz que olha para o mundo com olhos de uma pessoa
de humanas, não propriamente como historiadora, visto que a história se interessou ao longo
do tempo, segundo afirma, mais pelos fatos do que pelas emoções. Svetlana diz se
surpreender com a vida humana comum, “não faço perguntas sobre o socialismo, mas sobre o
amor, o ciúme, a infância, a velhice. Sobre música, danças, penteados. Sobre os milhares de
detalhes de uma vida que vai desaparecendo” (2016, p. 24).

Ao apresentar as memórias em seus livros, a autora faz proliferar um conjunto de


personagens. Quando a autora apresenta as narrativas do passado, comparece uma estética
singular, povoada por múltiplas personagens. Ela poderia muito bem ter apenas colhido as
memórias orais e as transformado num romance, ou mesmo num texto histórico-científico que
ocultasse as vozes das personagens, deixando apenas sobressair a sua (narrativa em primeira
pessoa), num gesto quase que de soberania do saber e, portanto, de soberania da memória.
Mas o que acontece é justo o contrário: ela insere, como recurso estético-metodológico de
escrita, um conjunto de personagens, dando passagem a essas múltiplas vozes. Tal recurso
interpela o leitor de diversas formas, e isso é já o propósito de sua escrita: essas personagens
são pessoas que Svetlana conversou ou foram criadas por ela? O que é memória de cada
personagem que comparece no texto e o que é da autora, propriamente?

Svetlana Aleksiévitch faz uma produção textual em que, sobretudo, a coletividade está
presente e as histórias narradas remetem sempre a uma construção da memória (e, portanto,
da história) que se faz coletivamente. É por isso que Svetlana mantêm, ao longo da construção
de seus textos, a transmissão da experiência que se faz de modo coletivo, comparecendo
muitas personagens. Assim, através da maestria polifônica em que se torna impossível, ao
longo da leitura, separar as vozes daqueles que narram com as vozes da autora, Aleksiévitch
nos mostra que o sujeito autoral é coletivo. A memória é uma coletividade, as personagens e
as memórias que comparecem na história de cada personagem, são também coletividades. O
que Svetlana faz, não o faz por ser mais simples; longe disso, ela o faz numa aposta política
do testemunho, na construção coletiva da memória oral, performando a escrita e o texto. Uma
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estética narrativa singular que é, ao mesmo tempo, uma aposta política. Sendo assim, o modo
de fazer (estética) é um modo de disputar (política).

Moraes e Quadros também nos conduzem por uma política de escrita que considera os
pesquisados-entrevistados-participantes não como passivos que apenas respondem a
determinadas questões, mas como aqueles que “[…] aceitam, de um modo ou de outro,
engajar-se conosco num dispositivo de conhecimento […]” (2020, p. 4). Assim, nessa
composição, reforçamos essa aposta num movimento que já não é mais individual, mas sim
uma composição coletiva, carregada de tensões atuante num determinado período histórico
em que o problema de pesquisa está sendo situado. Apostamos no ato de narrar como um
gesto possível para criação de novos sentidos (MORAES; QUADROS, 2020) e, assim, nos
preocupamos também com a singularidade do texto, uma vez que ele é a própria
materialização, a expressão da memória.

2.1 MEMÓRIA ORAL

Se os ucranianos podem se orgulhar de terem uma grande historiadora da memória


oral, nós, brasileiros, também podemos. A pensadora e pesquisadora brasileira, Heliana de
Barros Conde Rodrigues (2019, p. 220), nos diz que “a história oral é conhecida por sublinhar
a presença do sujeito na história”. Numa relação mais próxima com a Análise Institucional,
ela problematiza essa centralidade da memória no sujeito, e parte de uma perspectiva outra,
qual seja, “um conjunto de saberes e dispositivos em que o sujeito é radicalmente
desnaturalizado, desidealizado, desessencializado; ou seja, apreendido como instituição, efeito
ou resultante provisória de discursos e práticas” (RODRIGUES, 2019, p. 220). É no lastro
dessa pista que utilizamos a história oral como recurso.

Aqui, as psicólogas e psicólogos entrevistados que fizeram parte da pesquisa,


comparecem com a pretensão de narrar as tensões presentes num dispositivo da rede de Saúde
Mental de um município num período histórico em que elas são, também (nessa posição que é
a de trabalhadoras e trabalhadores), produzidas por essa história que narram. Nesse sentido,
pensar o sujeito como aquele capaz de vetorizar, narrar a história, descentralizando a história
das significações unicamente pessoais, dos sujeitos.
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A leitura do conteúdo narrado pelas entrevistadas e entrevistados não parte de uma


perspectiva da Análise Institucional, embora nos servimos do modo como Heliana Conde
coloca o problema, pois acreditamos que suas considerações sobre a centralidade da memória
contribuem para pensarmos um processo de escrita e transmissão descentralizada do “eu”,
lançando o conteúdo narrado para as tensões que fazem parte da história; tensões em jogo
num determinado momento. Precisamos salientar que Heliana Conde não vai desconsiderar a
condição do sujeito, mesmo que ela fale em descentralização. Se de um lado a história oral é o
modo de pesquisa que vai tratar da transmissão da memória, e que o privilegio é muito mais
desse jogo de forças operante do que do sujeito, é preciso continuar insistindo na seguinte
indagação: “qual é o lugar do sujeito nessa trama?” (RODRIGUES, 2019, p. 220). Se
entendemos que a preocupação não é propriamente com o sujeito que narra, mas sim com as
tensões operantes, ainda assim não é possível abandonar o sujeito que narra. Logo, voltamos à
pergunta: qual o seu lugar na trama?

Levando esse problema adiante, a autora nos introduz a história de “Lembrete”.


Lembrete foi um funcionário que existiu no passado, e que tinha como atividade lembrar...
Lembrar as pessoas daquilo que elas queriam esquecer. Lembrete é o passado que não para de
cobrar, e Heliana nos diz que ser “lembrete” é função do historiador, mas não só dele, uma
vez que lembretes para a história saem de todos os cantos, da “filosofia, literatura, cinema,
antropologia, música etc” (RODRIGUES, 2019, p. 220). Lembrete não para de lembrar a
psicóloga-historiadora, só que, para estar nesse jogo, Lembrete, antes de lembrar Heliana,
precisa também ser lembrado; algo precisa ser anterior a ele e que o cobre de lembrar de
cobrar de lembrar.

Heliana Conde nos diz que, se ela é lembrete da história, algo também precisa lhe ser
lembrete. Algo se desloca, inclusive da historiadora. Lembrete é, e não é, um sujeito.
Lembrete está imerso nessa rede e não para de lembrar, não para de fazer pressão sob o
presente e sob aquele que se coloca como historiador da memória oral. Logo, Heliana Conde
não para de me lembrar que alguma coisa não para de lembrá-la. Desse modo, alguma coisa
nessa dissertação tem por pretensão, através das indicações de Lembrete, continuar
lembrando. Processo hiperbólico do lembrar: lembrar para lembrar, para lembrar, para
lembrar, para lembrar... “Lembrete me faz encher de letrinhas uma porção de novos papéis... e
me deixa sem paz” (RODRIGUES, 2019, p. 220).
16

Ao escrever, se consegue transmitir o problema do lembrar: que o lembrete não para


de lembrar que ela precisa lembrar; a transmissão, a partir desse conjunto de letras, é de que o
lembrete não para de me lembrar que eu também preciso lembrar; ao entrevistar, também
lembrei os entrevistados e entrevistadas que elas precisavam lembrar; ao escrever esse
conjunto de letras, também não paramos de transmitir que é preciso lembrar; aquele que lê
também não para de ser tensionado de que é preciso lembrar, e por aí vai: função política do
lembrar.

2.2 TRAUMA E TRANSMISSÃO DA EXPERIÊNCIA

Benjamin (1994) começa o texto “Experiência e pobreza” narrando uma antiga


parábola de um velho moribundo que, em seu leito de morte, revela a seus filhos a existência
de um tesouro em meio à plantação de uvas da família. Os filhos passam a cavar
incessantemente à procura do tesouro, mas nada encontram. Na colheita seguinte, seu vinhedo
será o mais próspero da região e então os filhos do velho compreendem que o que o pai lhes
deixou não foi propriamente um tesouro a ser encontrado, mas uma experiência transmitida ao
longo da história. Benjamin narra a antiga história para nos dizer que a experiência sempre foi
transmitida aos jovens, mesmo quando eles ainda não tinham maturidade para compreendê-
las, o que fez com que os filhos do velho confundissem, num primeiro momento, a riqueza do
gesto da transmissão da experiência com a riqueza de um bem material. Benjamin afirma o
significado da experiência: “ela sempre fora comunicada aos jovens” (1994, p.114) e é nessa
comunicação, nessa transmissão, que está situada a riqueza.

Benjamin vai apresentar o problema da guerra, uma das experiências mais pavorosas e
traumáticas, que fez com que os combatentes voltassem silenciosos “mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos” (1994, p. 115). A experiência traumática da
guerra faz com que os sujeitos não mais narrem suas experiências, suas memórias, fazendo
surgir uma nova forma de barbárie: “[…] essa pobreza de experiência não é mais privada, mas
de toda a humanidade” (1994, p. 115), visto que não há transmissão. O autor diz que essa
pobreza impele os sujeitos a “partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com
17

pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (p.116),
aspirando libertar-se das experiências para viver na pobreza.

Em “História e narração em Walter Benjamin”, a filósofa e professora Jeanne Marie


Gagnebin, debruçada ao estudo da experiência, retoma o uso por Benjamin da palavra alemã
Erfahrung, presente no texto “O Narrador”. A palavra é usada para designar a experiência,
porém, a experiência enquanto transmissão geracional da história pela narração, como o que
acontece na antiga parábola citada por Benjamin, diferindo-se da experiência no sentido de
uma vivência particular do sujeito, privada, solitária (Erlebnis). O uso do termo Erfahrung vai
supor, em Benjamin, um sentido de compartilhamento, uma transmissão que se dá na
continuidade, em que “as histórias [...] não são simplesmente ouvidas ou lidas, porém
escutadas e seguidas; elas acarretam uma verdadeira formação [...], válida para todos os
indivíduos de uma mesma coletividade” (GAGNEBIN, 2013, p. 57-58). Por outro lado, o
outro sentido de experiência (Erlebnis), e que Benjamin problematizará, refere-se ao
indivíduo que se encontra “despossuído do sentido da sua vida”, e que “tenta,
desesperadamente, deixar a marca de sua possessão nos objetos pessoais: iniciais bordadas
num lenço, estojos, bolsinhos, caixinhas, tantas tentativas de repetir no mundo dos objetos o
ideal da moradia” (GAGNEBIN, 2013, p. 60). Esse sentido de experiência (vivência) que
exclui o processo de travessia geracional, é já o efeito, segundo Benjamin, da consolidação do
capitalismo e suas forças produtivas que, todos os dias, oferece uma enxurrada de notícias,
dados, fatos, informações, tudo já carregado de explicação, nada a ser construído.

As contribuições de Walter Benjamin e Gagnebin sobre a experiência e a transmissão


da memória comparecem aqui justamente pela proposta da pesquisa de narrar experiências
de alguns CAPS de Niterói – RJ, durante um período delicado de nossa história, uma vez que,
sob o efeito pandêmico, conforme os meses passavam, medos, insegurança, esgotamento,
incertezas nos faziam silenciar e reduzir nossas experiências às interioridades de nossas
residências. Sob esse efeito, fomos deixando de compartilhar, e parecia não haver mais nada
que poderíamos fazer diante daquilo que parecia ser incontornável.

Tendo isso em vista, uma de nossas pistas é tomar a experiência no sentido


benjaminiano, isto é, o resgate da memória oral do período pandêmico a partir da narração das
entrevistadas e entrevistados num sentido de transmissão, de construção de uma coletividade,
isto é, a transmissão da experiência (conteúdo) que se faz a partir de uma política da
narratividade (forma); conteúdo e forma que são coletivos.
18

2.3 CARTA A UMA QUERIDA PROFESSORA

De Bruna
Para professora Irme

Niterói, 12 de maio de 2021

Prof.ª, como você está? Como tem passado esse período


intenso? Enquanto escrevo essa carta, os jornais noticiam que,
até o dia de hoje, mais de 428 mil vidas brasileiras foram
vitimadas pelo vírus. Por aqui seguimos persistindo no
isolamento. É o mínimo que podemos fazer já que temos o
privilégio de estar em casa. “Privilégio”. É revoltante pensar
que estar em segurança é privilégio de alguns quando deveria
ser um direito assegurado para todos. Tem me incomodado muito
ver as pessoas se aglomerando em festividades; pessoas que,
inclusive, combateram nas redes sociais os discursos e
práticas negacionistas do presidente genocida e que, agora,
estão validando esses mesmos discursos e práticas. Eu sei que
todos estamos exaustos, sei que estamos precisando da alegria
e potência dos encontros, mas essa potência não estaria em
justamente poder, hoje, manter uma distância?

As redes sociais estão povoadas da frase “fora Bolsonaro”,


em protesto aos comportamentos desprezíveis do presidente. Mas
o que chama mesmo atenção é que essas frases vêm seguidas de
fotos em bares e festas, e, inclusive, usando a saúde mental
como álibi: “eu preciso! É pela minha saúde mental”; “saúde
mental, né gente?!”; “ou isso – em referência à ida ao bar e
ao drink na foto – ou uma consulta com o psiquiatra”; “vou
encontrar meus amigos, mas estou cumprindo todos os protocolos
de segurança da OMS”. A saída inofensiva. O aglomero com risco
calculado. A banalização da Saúde Mental num momento em que as
19

políticas públicas e os serviços estão cada vez mais


ameaçados. Uma pauta tão delicada, cara e importante servindo
como justificativa para tais atitudes. Desculpa o desabafo.

Me peguei lembrando daquele dia em que começamos a


trabalhar na construção do meu projeto de pesquisa da
monografia… Lembra que cheguei entusiasmada te contando sobre
o estágio em Psicologia Social Comunitária naquela Associação
de Usuários de CAPS, em que estávamos trabalhando com as
pinturas em telas e com a construção de narrativas em máquinas
de escrever, e que meu interesse seria o de poder, na
monografia, me debruçar sobre essa prática? No percurso
algumas burocracias impediram a viabilização do projeto,
fazendo com que eu o guardasse num lugar especial, para a
posteridade… A posteridade chegaria e no tão sonhado mestrado
eu faria a retomada. A posteridade chegou, me mudei para o
Estado do Rio de Janeiro, era para finalmente estar
acontecendo, mas fomos surpreendidos pela pandemia.

Prof.ª, na nossa última conversa, há quase 1 ano atrás,


você perguntou como estava o mestrado, te falei que eu estava
bastante preocupada, tendo em vista as impossibilidades de
estar no campo de pesquisa, efeito do contexto da pandemia. Na
ocasião daquela nossa conversa eu achava que as oficinas se
concretizariam. Estava tão presa na suspensão desse tempo
pandêmico que nada podia me convencer do contrário. Estava
certa que era só questão de esperar, pois logo tudo voltaria a
funcionar normalmente. Só que não foi bem assim que as coisas
se encaminharam. É por isso que eu resolvi te escrever, para
te atualizar dessa história, te contar os desdobramentos que o
meu projeto teve e que caminhos estou descobrindo.

A insistência no projeto das oficinas me levou a mapear na


web tudo que fosse possível sobre os Centros de Atenção
Psicossocial. Eu vasculhava todos os lugares, todos os
cantinhos. Nesse exercício, tentava me inteirar de como os
20

CAPS estavam trabalhando com os usuários, se em algum lugar


estava acontecendo algum tipo de encontro virtual para que eu
pudesse me inserir e, mesmo que numa experiência online, fazer
a retomada do projeto. Nesse tempo, considerando o cenário da
pandemia e os efeitos das medidas de isolamento social, muitas
perguntas me chegavam: como a rede de Saúde Mental estaria
atuando para dar conta das demandas dos usuários dos serviços?
De que modo os serviços estariam se organizando e pensando,
enquanto potência do coletivo, a atualidade imposta pela
presença do vírus? Quais as implicações com a chegada do
vírus, já que as políticas públicas têm enfrentado uma série
de impedimentos no cenário político? Quais as modulações
produzidas na rede dos sujeitos envolvidos nos serviços de
saúde mental? Pensar de que forma o trabalho estaria sendo
modulado na Rede de Atenção Psicossocial e como estaria
impactando a vida das pessoas passou a mobilizar um grande
desejo de pesquisa. Aqui, como na monografia, eu teria que
deixar algumas coisas para poder seguir com outras.

Nesses mapeamentos, percebi que estavam surgindo diversas


páginas de CAPS no Instagram, e que muitas delas foram criadas
quando foi estabelecido o distanciamento social, período em
que os serviços passaram a atuar de modo limitado
presencialmente. Os conteúdos publicados nessas páginas vão
desde apresentações ao vivo sobre temáticas envolvendo a Saúde
Mental e seus atravessamentos, seja com profissionais da área
que atuam no serviço ou pessoas de fora, lives musicais com
usuários, sobre arte, postagens informativas, podcasts,
playlists, programas de rádio online, etc. Num certo momento,
me deparei com um grupo de Luta Antimanicomial chamado “Frente
Estamira de CAPS”. Encontrá-los foi tão empolgante quanto
aquela vez que cheguei na orientação te contando sobre o
estágio.
21

A “Frente Estamira de CAPS” foi organizada a partir do I


Congresso de CAPS do Estado do Rio de Janeiro, em dezembro de
2019, oferecendo apoio técnico aos CAPS do Estado e pensando,
coletivamente, em estratégias de luta e resistência no campo
da Saúde Mental frente ao sucateamento que essa política vem
enfrentando. O grupo faz reuniões mensais online, transmitidas
via YouTube, chamadas de “Roda de Conversa da Frente
Estamira”. Nas conversas, muito tem se pensado sobre o atual
cenário político envolvendo a pandemia da COVID-19 e o atual
governo. Participando de alguns encontros da roda, pensei na
possibilidade de fazer entrevistas com pessoas que estão, de
alguma forma, envolvidas na saúde mental, pensando na
importância desses relatos para a construção de uma memória
oral desse período. Dadas as condições desse contexto
histórico, um novo campo de investigação foi se abrindo.

Bem, os problemas que foram me atravessando ao longo


desse processo e que te escrevi no pretérito, agora se
conjugam no futuro do presente. Pensarei: quais os impactos
desse momento histórico no campo da Saúde Mental e na vida dos
usuários, familiares e/ou profissionais dos serviços? Aqui,
deixo as oficinas para poder seguir com esses novos contornos
que o campo foi delineando. Não sei se esse problema
permanecerá comigo durante toda a caminhada ou se outros
pedirão passagem, pois como bem diz o poeta Antonio Machado
“caminante, no hay camino, se hace caminho al andar”. Com
carinho.

***

Ao passo em que a pandemia avançava, começamos a ficar cada vez mais em silêncio.
Meu projeto de pesquisa também. Ao passo em que as relações começaram a ficar
impossibilitadas, este projeto também começou a ficar impossibilitado. Então, como pensar a
pesquisa sob o ruir do projeto pensado, sob o redimensionamento do espaço, do tempo, dos
corpos, dos afetos, das relações/vínculos? Nessa conjunção de acontecimentos e novas
22

configurações da vida pandêmica, foi preciso traçar um novo plano, reconfigurando os


investimentos de desejo. Foi essa conjunção de fatores que produziu um desvio na própria
pesquisa e passei a ser interpelada por essa nova realidade.

Ao falar de rede, Fernand Deligny (2018) assinala que o sujeito tem o privilégio do
projeto pensado, enquanto que os animais funcionam num processo maquinal. O humano
pensa na utilidade e ergue fábricas pensando projetos: de produção, de consumo, de
acumulação. A aranha, quando da feitura de sua teia, não pensa onde captará mais insetos. Ela
se desloca, traça um primeiro fio que pode ou não ter condições de sustentar sua teia. Ela não
pensa previamente no lugar perfeito para a mais eficiente captura de alimentos. Insetos
baterem na sua rede e serem presos por seus fios grudentos é pura consequência. Seu processo
maquinal é a própria trama, é o puro agir que importa – seu encontro com os galhos de uma
determinada árvore, com o canto das paredes de uma casa. Nesse sentido, e levando em
consideração as contribuições de Deligny, um novo caminho de pesquisa começa a ganhar
contornos sem que a preocupação primeira com o projeto pensado se sobreponha
angustiantemente.

2.4 O CAMPO

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município de Niterói, cidade localizada na


região metropolitana do Rio de Janeiro/RJ, comporta os seguintes serviços: Hospital
Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ), como referência para todo o município; CAPS Casa do Largo
(tipo II), CAPS Herbert de Souza (tipo II), CAPS AD Alameda (tipo AD II), CAPSI Monteiro
Lobato; Ambulatórios de Saúde Mental: Policlínica Regional Dr. Sergio Arouca; Engenhoca;
Policlínica Regional Carlos Antônio da Silva, Jurujuba, Pendotiba, Itaipu, Policlínica
Regional Barreto; Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil (UAI); Centro de Convivência e
Cultura de Niterói (CCCN); Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).

Em sete de agosto do ano de dois mil e vinte e um, publica-se, no Diário Oficial do
Município, um decreto do então prefeito que passa a administração e gerência de alguns
serviços da RAPS para a FeSaúde (Fundação Estatal de Saúde de Niterói), com personalidade
jurídica de direito privado. Os equipamentos da RAPS, que ficaram sob gestão da fundação,
foram: os quatro CAPS do município; a UAI; o CCCN; e os nove SRTs. A entrada da
23

fundação prometia organizar a rede e contratar funcionários públicos por meio da realização
de concurso público, acabando com os vínculos institucionais existentes nos equipamentos da
rede, que se tratavam de contratos temporários oriundos da realização de processos seletivos
simplificados, ou seja, vínculos precarizados e sem garantia de direitos.

Com esse movimento acontecendo na rede, após realização do concurso público que
foi, por diversas vezes, remarcado, os novos profissionais deveriam assumir o trabalho, visto
que os contratos com os profissionais antigos, não concursados, terminariam no dia trinta e
um de março de 2022. Porém, ao mesmo tempo, não se tinham informações de como se daria
tal passagem. Muitas perguntas pairavam o cotidiano dos serviços: “haveria possibilidade de
os contratos serem renovados?”, “Concursados chegariam?”, “Pensando no vínculo com os
usuários e na transmissão do trabalho construído ao longo de muitos anos, como se daria a
transição de equipe?”, “Seriam todos simplesmente dispensados no dia trinta e um, que já
estava tão próximo?”. Tendo em vista tanta instabilidade, muitos profissionais se
encaminharam para outras atividades e, com isso, vagas de trabalho em regime temporário
foram se abrindo através de processos seletivos simplificados. É aí que faço minha entrada no
serviço. Estive psicóloga trinta horas num Centro de Atenção Psicossocial do município de
Niterói, durante quatro meses. Nesse período acompanhei, de dentro do serviço, ainda em
decreto de pandemia, mas já com três doses de vacina no braço, os efeitos e as implicações
políticas que aconteciam na rede de saúde mental do município. Durante esse período pude
compartilhar momentos de caos e de alegria. A potência do trabalho coletivo de uma equipe
multiprofissional, fortalecida, faz operar, através do vínculo construído com os usuários no
cotidiano do serviço, amarrações de uma rede de cuidados e suporte caso a caso. Foram
quatro meses que não cabem na cronologia, isso porque a intensidade não cabe na cronologia.

2.5 AS ENTREVISTADAS

Antes de seguirmos narrando as histórias, precisamos apresentar ao leitor alguns


cuidados éticos desse processo. Essa pesquisa teve seu projeto submetido na Plataforma
Brasil no dia 01/02/2021, sob o número CAAE 42666821.1.0000.5282, e teve seu parecer de
aprovação, recebido pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do
24

Rio de Janeiro (UERJ), em 25/03/2021 através do número 4.613.407. As entrevistadas


assentiram com os termos da pesquisa a partir da assinatura do Termo de Comprometimento
Livre e Esclarecido (TCLE)1, documento que tem por finalidade apresentar o estudo,
esclarecer ao participante voluntário qual será sua colaboração/contribuição, bem como
garantir o cuidado no tratamento das informações obtidas e o sigilo da participação.

A seleção das psicólogas e psicólogos entrevistados se deu a partir de colegas de


profissão que conheciam outras colegas que atendiam os requisitos de participação da
pesquisa. Na medida que essas eram entrevistadas, também indicavam alguém interessado e
que atendia aos requisitos: ser profissional da psicologia; ter tido experiência no serviço de
saúde mental, especificamente em CAPS do município de Niterói/RJ, no período que
compreende a chegada da COVID-19, bem como no seu decorrer.

Nesta pesquisa, as pessoas entrevistadas serão chamadas de Luiz (entrevistado 1),


Irma (entrevistada 2), Josiel (entrevistado 3), Margarete (entrevistada 4) e Érica (entrevistada
5)2. A escolha dos nomes para representar as entrevistadas e entrevistados vem de uma
experiência afetiva que tive durante a graduação em psicologia. São nomes de pessoas com
quem convivi no contexto da Saúde Mental e que aparecem aqui em forma de homenagem.
Das entrevistadas, duas contam de sua experiência num CAPS AD, outra num CAPS tipo II,
assim como os outros dois entrevistados. O próprio problema de pesquisa foi capaz de
direcionar quem seriam as entrevistadas. Todas as entrevistas foram online, por meio da
plataforma Google Meet, a duração variou na faixa de cinquenta minutos até uma hora. As
entrevistas seguiram num formato aberto, em que foram colocadas algumas questões
norteadoras, apenas com a intenção de disparar o diálogo, numa conversa livre e fluida. As
questões norteadoras foram: 1) Como você vê o trabalho do CAPS e sua importância? 2)
Como você percebia o trabalho do CAPS antes da pandemia? Ou seja, como você percebe
hoje, tendo passado pela experiência de isolamento social que impactou em maior ou menor
grau o atendimento/trabalho em saúde mental, o trabalho que vinha sendo feito antes da
pandemia? 3) Com a chegada do coronavírus e das medidas de distanciamento social visando
a redução do contagio pelo vírus, como funcionou o trabalho do CAPS no momento mais
agudo da pandemia? 4) Quanto ao contato direto com a própria equipe de trabalho, com os
usuários e familiares, quais foram as estratégias buscadas para que o cuidado fosse efetivado?

1 Anexo I.
2 Os nomes aqui apresentados não correspondem aos nomes verídicos, apenas preservam o gênero das
entrevistadas e dos entrevistados.
25

Dentro disso, como você percebe os impactos diretos aos usuários e familiares? 5) Pensando
no suporte aos trabalhadores, bem como aos usuários e familiares, houve orientações que
direcionassem a forma de trabalho, seja da coordenação de saúde, prefeitura, coordenação
direta do CAPS, etc.? 6) Como você percebe os impactos desse momento histórico para a
saúde mental enquanto política pública?

***

Enquanto eu estava escrevendo, percebo que cometi um pequeno ato falho. Eu havia
decidido apagar o erro, mas voltei atrás e o mantive. Ao falar sobre o uso necessário do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, percebo que escrevi “Termo de Comprometimento”. É
então que reflito: a palavra intrusa que resolveu aparecer no texto me fez lembrar de uma
carta do professor Arthur Arruda Leal Ferreira ao Comitê de Ética em Pesquisa, que integra o
livro “Cartas para pensar políticas de pesquisa em Psicologia”. No texto, Ferreira (2014)
levanta uma série de inquietações quanto ao Termo de Consentimento e nos propõe uma
reflexão ao questionar o termo “sujeitos”, muito usado na psicologia para se referir aos
participantes de uma pesquisa. Por mais que o termo carregue um gesto de nobreza, ele
também está impregnado de possibilidades de sujeição, em que o pesquisador se apresenta na
posição de autoridade.

No desacerto das palavras, ao me referir ao Termo de Comprometimento, é impossível


não afirmar o que Ferreira nos faz refletir: se torna desnecessário informar que a participação
é voluntária e que pode ser retirada a qualquer momento se, nesse processo do pesquisar,
incluirmos tais pessoas como aqueles que colaboram com a pesquisa, como aqueles que
fazem a pesquisa ser possível na medida que são especialistas no assunto que se pesquisa, e
que são eles os conhecedores daquilo que me interessa e são eles que podem colocar questões
ainda mais interessantes ao estudo, nos guiando, nos conduzindo pelas tramas do campo de
pesquisa. Recusando a posição de autoridade do pesquisador e trazendo os participantes da
pesquisa enquanto colaboradores, podendo, inclusive, assinarem o trabalho em coautoria, a
necessidade de constar no TCLE tantos esclarecimentos e garantias acerca do que se propõe o
trabalho, do que serão feitas com as informações coletados, bem como a promessa do
anonimato e confidencialidade, perderiam qualquer relevância. Sendo assim, “esse cuidado
26

seria desnecessário numa política de pesquisa mais cooperativa e simétrica em que você
[entrevistado] seja declaradamente o nosso parceiro” (FERREIRA, 2014, p. 121).

Mesmo com as burocracias dos Comitês de Ética, onde também se percebe sua
importância, e não estamos excluindo isso, ainda assim a aposta da pesquisa é justamente a de
poder investir numa outra ética que passa por um outro modo de relação em que os “sujeitos”
não são mais apenas objetos de pesquisa. Nesse sentido, brinca Ferreira (2014, p. 121-122),
poderíamos pensar num outro Termo:
O senhor/a senhora (ou o gênero de sua escolha) receberá uma cópia deste termo
onde consta o e-mail de contato do pesquisador responsável (?) e do comitê de ética
em pesquisa, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou
em qualquer momento. Mas preferiria que você me ligasse para me convidar para
um chopp ou para trocarmos uma ideia sobre esta pesquisa. Acolho de bom grado
me articular com o campo desta pesquisa na sua arriscada produção de mundo,
julgando me coautor e personagem-chave nesta produção de conhecimento.

As exigências não param... Também são postas no que se refere ao modo de escrita: há
uma série de informações que precisam entrar, não somente para justificar a metodologia, mas
num movimento de prestação de contas aos Comitês, e para fazer cumprir as exigências da
academia. Aqui, o professor e pesquisador Danichi Mizoguchi (2016, p. 33) nos adverte sobre
as delimitações e explicações objetivas e precisas que a academia exige de nosso trajeto de
investigação: “como será feito, como está sendo feito e como foi feito são perguntas entoadas
nas sucessivas avaliações dos trabalhos de pesquisa em suas diferentes etapas – processo
seletivo, orientações, seminários de pesquisa, qualificação e defesa”.

Buscando nos orientar nesse caminho de pesquisa, Mizoguchi nos conta que Foucault,
ao começar um trabalho, nunca tinha definido a priori qual seria seu modo de fazer e por onde
caminharia, sendo “necessário sempre, a cada empreitada, forjar um método de análise o qual
não é prescritivo ou generalizável, já que singular e engendrado sob medida para uma questão
e um pesquisador específicos” (2016, p. 34). Seria então de dentro desse campo de tensões e
de disputas que teríamos que forjar estratégias singulares, manejando as exigências
acadêmicas que nos fazem preencher um amontoado de papéis repletos de explicações, colher
assinaturas, submeter a uma plataforma, esperar, esperar (isso se não voltar, precisando ainda
de mais explicações). E que fique registrado que, mesmo com todas as tensões, reconhecemos
a importância de todas essas exigências. Por mais que estejamos colocando algumas
problematizações, não partimos de uma leitura negativista e portanto destrutiva da burocracia.
Pretendemos apenas apontar que há algo para além dela.
27

Seguindo essa problematização, Mizoguchi apresenta a viagem como pista


metodológica, a partir do que ele vai chamar de “epistemologia da estrangeiridade”. Essa
“viagem”, como apresentado, não é a viagem do turista, condenado a uma passagem quieta e
lisa, mas sim do movimento de poder estranhar a si mesmo e ao mundo, sendo, portanto,
tarefa do pesquisador-viajante “[...] a tentativa de uma produção ininterrupta de
estrangeiridade: o incomodo de quem, quase de dentro e quase fora das linhas de força e dos
códigos do território a ser investigado, pode estranhar o que ali e então é engendrado” (2016,
p. 43). Estrangeiridade num movimento duplo: estrangeiro não só porque designaria uma
posição do pesquisador, mas também porque a posição da estrangeiridade enquanto
epistemologia política pressupõe a colocação da pesquisa como um todo, o campo e o seu
problema, num movimento que o autor chama de “estranhamento de si e do mundo”. Em
linhas gerais, o pesquisador, ao colocar-se como estrangeiro, cria condições para, também,
produzir/provocar um estranhamento do território e da pesquisa.

Assim, pesquisar saúde mental nesse recorte específico, situado num território
específico e num momento histórico também específico, vai forçando uma posição de
estranhamento não somente da pesquisadora consigo mesma e com o lugar, mas também do
lugar consigo mesmo, tensionando as relações estabelecidas e os olhares que ali percorrem. A
grande questão da epistemologia da estrangeiridade é apostar politicamente no estranhar:
provocar uma tensão naquilo que está na ordem da naturalização. É, portanto, dessa posição
de estrangeira que narro brevemente, no item acima, a minha passagem; mesmo não sendo
mais tão estrangeira à cidade, a estrangeiridade enquanto política, ou melhor, a epistemologia
da estrangeiridade, deve permanecer.
28

3 RESGATAR MEMÓRIAS, NARRAR HISTÓRIAS

Concomitante ao movimento da Reforma Sanitária Brasileira, em 1970, onde um


grupo de intelectuais e técnicos criticavam a ausência/desassistência do Estado na saúde da
população e lutavam a favor da democratização da saúde pública, universal e gratuita como
um direito a todos, iniciava-se o movimento da Reforma Psiquiátrica. Tal movimento criticava
o modelo asilar, buscando garantir o direito à inclusão de pessoas que, a partir de internações
em hospitais psiquiátricos, eram marginalizadas e excluídas do convívio social,
posteriormente garantido através da Lei 10.216/01.

No ano de 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde, discutia-se a implementação


de um novo modelo de saúde. Considerado utópico e amplamente criticado, o Conceito
Ampliado de Saúde (DA ROS, 2006), criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não
considerava mais a saúde como sendo apenas um estado de “ausência de doenças ou
enfermidades”, mas ampliava tal conceito a partir da inclusão de outros elementos da vida das
pessoas, como trabalho, lazer, moradia, alimentação, entre outros. A saúde como o mais
completo estado físico, mental e social. É a partir da consolidação da Constituição Federal,
em 1988, que se afirma que a saúde é um direito de todos e, portanto, um dever do Estado.

Diante da conquista no campo da saúde, tivemos a implementação de políticas


públicas capazes de proporcionar às pessoas o acesso ao atendimento digno e humanizado em
saúde. Cria-se então o Sistema Único de Saúde (SUS), através da Lei nº 8.080/90, para
assegurar o acesso ao direito garantido pela constituição, atuando a partir da integralidade,
universalidade e equidade, e tendo como princípios organizativos a regionalização e
hierarquização, descentralização e comando único, e participação popular.

Após a consolidação do SUS, novas redes começam a ser integradas às Políticas


Públicas de Saúde, como a Rede de Atenção em Saúde (RAS), e a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), indo ao encontro das proposições da Constituição e da luta
antimanicomial. Fazem parte da RAPS os Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS
e NAPS), dispositivos que atuam de modo a considerar que o sujeito não deve mais ser
encarcerado em instituições de modelo asilar, mas sim atendidos dentro de seu território, junto
à família e à comunidade, reduzindo riscos e danos, e oferecendo atenção humanizada
(COSTA-ROSA, 2013). Nesse sentido, os CAPS vêm para romper com a ideia hospitalar, que
29

concentrava nas instituições médicas-psiquiátricas a exclusividade do cuidado e manejo em


saúde mental. Possibilita-se, a partir de então, que o cuidado seja multiprofissional e
multidisciplinar, envolvendo uma rede de cuidados que não é determinada pela figura
exclusiva do médico, mas por uma equipe profissional que conta, além do médico, com
psicólogas, enfermeiras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, bem como oficineiros,
musicoterapeutas. Essa rede de cuidados é constituída de modo a conceber o sujeito não em
um contexto biologicista de saúde-doença, mas social, cultural, histórico, incluindo, portanto,
a família, a sociedade, o território, a cidade.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são um dos equipamentos que compõe a


rede de saúde mental, que surge para oferecer atendimento psicossocial às pessoas com
transtorno mental e sofrimento psíquico, bem como familiares. O atendimento nos CAPS é
voltado à crise, casos graves e persistentes, bem como de pessoas que fazem uso de álcool e
outras drogas. De acordo com o Governo Federal3, o objetivo desse serviço, que se constitui
em diversas modalidades4, é o de preservar a cidadania do usuário, o tratamento no seu
território e os vínculos sociais.

***

Dada a nossa breve retomada histórica da reforma psiquiátrica – e pontuamos como


breve pois tem a função de apresentar um panorama, isto é, ocupa no texto um lugar de fundo,
e não figura, portanto, uma contextualização não densa –, passamos para um dos pontos que
nos é central, as especificidades da rede e, nesse caso, a do município de Niterói – RJ.

A rede de saúde mental de Niterói coexiste com um hospital psiquiátrico que é


referência para todas as regiões do município. Não há, até o presente momento, um CAPS do

3 Ver mais em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/caps.


4 As modalidades dos CAPS seguem de acordo com a complexidade, podendo ser do tipo I, II ou III, a
depender do número de habitantes da região que atende. O CAPS III, diferente das outras modalidades que
oferecem atendimento diurno, vai atuar durante 24h por dia, oferecendo acolhimento e leitos para
observação/acompanhamento também no período noturno, em todos os dias do ano, inclusive finais de
semana e feriados. Além dessa distinção, existem ainda os CAPS AD, que são voltados ao atendimento de
pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, bem como os CAPSI, com atendimento a crianças
e adolescentes que apresentam transtornos mentais ou pelo uso de substâncias psicoativas.
30

tipo III. Essa é uma luta que vem sendo travada há algum tempo, com muitas promessas,
esperanças e decepções.

Podemos localizar algumas dessas discussões que se intensificaram a partir de 2018,


portanto, um ano antes da eclosão do vírus da COVID-19 e dois anos antes de serem
decretadas, aqui no Brasil, as medidas sanitárias.5 Em 16 de abril do ano de 2018, o jornal
Enfoco publica uma matéria6 em seu site onde afirma que, em janeiro do mesmo ano, a
Câmara de Vereadores do município de Niterói havia aprovado um orçamento no valor de
R$500 mil para implantação de um CAPS III, porém, de janeiro até a data da publicação da
matéria, em abril, a prefeitura não havia dado nenhum andamento à situação. O psicólogo e
membro do coletivo “Niterói Sem Manicômio”, Manoel Ferreira, em entrevista ao jornal,
afirma que, considerando a realidade do município, se deveria ter, pelo menos, dois
equipamentos CAPS AD e também dois CAPS III, uma vez que o único CAPS AD que atende
toda a cidade tem funcionamento de segunda a sexta-feira, de 8h até 17h, e continua: “muitos
pacientes que estão internados hoje no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba não precisariam estar
lá se tivéssemos uma rede de atendimento psicossocial que funcionasse”. A psicóloga Ana
Raquel Barcellos também diz ao jornal que a rede precisa contar com a implantação do CAPS
tipo III, mais unidades de Residências Terapêuticas, além de serviços emergenciais em
hospitais normais, pois “apesar de ser [o Hospital Psiquiátrico] referência, isola os pacientes”.

Érica, uma de nossas entrevistadas, narra a potência do trabalho no CAPS AD, mas
também aponta para as restrições, visto que a maioria das pessoas, principalmente as que
vivem em situação de rua e que fazem uso abusivo de drogas, precisam de suporte noturno:
“a gente encerrava e era muito triste encerrar o serviço às
17h. Essa é uma questão, os serviços de saúde mental
funcionarem nesse horário, que é um horário comercial, que não
abarca às vezes os trabalhadores”. Mesmo com tais adversidades narradas por
Érica, ela não deixa de pontuar que existia um trabalho potente sendo feito, de fortalecimento
do território e do cuidado, de um dispositivo que criaram chamado “CAPS na rua”, em que
uma equipe multiprofissional ia, no horário noturno, para a rua tentar dar suporte para as

5 Uma ressalva quanto às medidas restritivas precisa ser feita: o poder executivo, tendo como seu
representante máximo Jair Messias Bolsonaro, adotou práticas e discursos que foram na contramão das
diretrizes e orientações da Organização Mundial da Saúde. Foram os governos estaduais e municipais que
atuaram no sentido de seguir ao máximo os protocolos de distanciamento e isolamento social, uso de
máscara e álcool gel.
6 Link para acesso à matéria publicada pelo jornal Enfoco: https://enfoco.com.br/noticias/cidades/psicologos-
consideram-saude-mental-em-niteroi-ineficaz-8196.
31

pessoas em situação de rua e também fazer busca ativa, ou seja, procurar por usuários que
estavam sumidos do serviço. Ela marca a importância do estreitamento de vínculos, da
parceria com os hospitais gerais e com a equipe Consultório na Rua, visto que os usuários da
clínica AD apresentam um corpo mais debilitado no que tange à questões de saúde causadas
pelo uso abusivo de drogas: “os nossos usuários não tinham um tratamento
cuidadoso, pelo contrário, eram rechaçados e a gente contava
com o suporte do Jurujuba que, apesar de ser uma instituição
manicomial, era o que a gente tinha de dispositivo […] que é
muito controverso, existe uma discussão de que aquele hospital
precisaria sim se encerrar, pra poder fortalecer os CAPS III e
leitos nos hospitais gerais, mas, ao mesmo tempo, o Jurujuba
era o que mais nos dava suporte para os casos mais graves”. O
Hospital Psiquiátrico cumpre a função de reter a demanda que seria para CAPS III no
município, somado a precarização das condições de trabalho e falta de profissionais na rede,
Niterói ainda não conseguiu renunciar ao manicômio.

***

Longe da circulação da cidade, uniformes azuis preenchem um espaço murado e


cinzento desde 1953. O Hospital de Jurujuba, que até o ano de 1999 era chamado de Hospital
Estadual Psiquiátrico, vai ser o recurso primordial da cidade de Niterói para lidar com a
parcela de sua população que deveria ser retirada do convívio social e esquecida: os anormais,
delinquentes, doentes, os loucos.

Em 1996, Gláucia Mouzinho e Rosane Carreteiro, à época mestrandas do Programa de


Pós-graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense
(UFF), publicam um texto no XX Encontro Anual da ANPOCS, onde contam que, dentro do
gélido pavilhão do manicômio de Jurujuba, os espaços eram divididos em seção masculina,
feminina; cubículos e quarto-forte7. A instituição também tinha seus espaços classificados

7 “Local usado como castigo dos pacientes internados que agiam de forma contrária às regras estabelecidas
para o funcionamento do hospital, assim como para receber os recém-internados, que eram ali trancados no
ato da internação e despidos, segundo uma auxiliar de enfermagem para ‘evitar o suicídio por enforcamento
com as próprias vestes” (MOUZINHO; CARRETEIRO, 1996, p. 8).
32

pelos médicos e demais funcionários em “pátio dos agitados, pavilhão das crianças ou
enfermaria infantil, isolamento, centro cirúrgico, enfermaria de neurologia, enfermaria dos
calmos e, ainda, enfermaria dos sórdidos” (1996, p. 8).

Sete anos depois de sua criação, o manicômio ouviu, nas eleições de 1960, o jingle
“varre, varre, vassourinha”, do então eleito Jânio Quadros, que prometia varrer a corrupção do
país, e também assistiu sua renúncia; a posse de Jango e de Tancredo Neves como primeiro-
ministro, em 1961. Testemunhou os preparativos do golpe de 1964, sua efetivação, e o dia que
durou vinte e um anos - de torturas, perseguições, assassinatos. Acompanhou o período de
redemocratização, que se iniciou com a anistia “irrestrita” de 1979, que anistiou não só seus
sobreviventes, mas também os torturadores e assassinos; as Diretas Já; a constituinte de 1986
a 1988. Jurujuba permaneceu intocado quando do encontro, em 1987, dos trabalhadores da
Saúde Mental em Bauru/SP, que resultou na carta-manifesto de Bauru, escrita na então
constituição desse novo período que se iniciava no país. Jurujuba viu a eleição de Collor em
1989 e seu impeachment; a implementação do Sistema Único de Saúde com a lei 8080/1990,
materialização de direitos assegurados na constituição que, por sua vez, foi fruto de uma
conquista da sociedade brasileira, isto é, a saúde, o acesso ao SUS garantido pela constituição,
portanto, nunca é demais lembrar, dever do estado.

O Hospital Psiquiátrico acompanhou a eleição e reeleição de Fernando Henrique


Cardoso; a posse, em 2003, do metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da
república; a ascensão e queda do Partido dos Trabalhadores; o golpe contra Dilma Rousseff
em 2016; o Fora Temer; até a mais recente ascensão do bolsonarismo e do fascismo brasileiro.
De todos os abalos pelo qual passou a república, o manicômio Jurujuba esteve firme e forte.
Ao longo desses 70 anos de existência, é como se toda essa história não passasse de um
pequeno instante, porque, apesar de tudo, apesar de todas as reviravoltas, ele permanece ali,
em pé, há sete décadas. Um eterno instante: “Como podia o tempo ser tão demorado ali
dentro? Entre palavras, gritos, toques, demandas, onde estaria o sol borrifado que eu havia
encontrado no corredor?” (SILVA, 2022, p. 11).

Sabe-se de um evento que estremeceu sua estrutura: a construção do túnel Charitas-


Cafubá. O túnel foi construído no Morro do Preventório para conectar a zona sul do
município à região oceânica através dos bairros Charitas e Cafubá, solução de mobilidade
aguardada por quarenta anos pelos moradores da região e que teve sua inauguração em 2017.
33

Logo depois do impacto da implosão do túnel, ouvimos algumas vozes: vigas!


Vigas! Ainda estão de pé? Respondemos o quanto antes que sim, ainda que nossa
estrutura tivesse abalada, alguns de nossos tijolos esfarelassem depois de um
impacto de tal porte, nos mantivemos calmas para conservar aquilo que sobrava
(SILVA, 2022, p. 66).

Era uma manhã de quinta-feira de novembro de 2015 quando, às 11 horas, cinquenta


quilos de explosivos fazem a primeira detonação da obra. Trabalhadora da rede de saúde
mental de Niterói, Paula Cruz Azevedo da Silva, em sua dissertação de mestrado em
Psicologia na Universidade Federal Fluminense (2022), vai narrar a memória da construção
do túnel que, ao cortar a via, corta também parte do manicômio. Devido aos riscos que seriam
causados pelas vibrações da escavação, dezenas de casas no Morro do Preventório, localizado
ao lado do hospital de Jurujuba, foram desapropriadas, além de um Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) e de uma creche. Do lado de dentro dos muros do manicômio, a
equipe de trabalhadores busca por respostas para um único questionamento: por que
exatamente nesse ponto geográfico teve de se construir um túnel?

[...] uns dizendo que os fatores geológicos e hidrológicos teriam sido determinantes
dessas decisões, outros já caminhavam com as discussões sobre os interesses de
tráfego e transporte; outros diziam que se tratava de uma oportunidade de instaurar
um CAPS III e promover todo um registro de mudança em Niterói; e outros diziam
se tratar de ser mais fácil intervir onde a loucura está: “É mais fácil passar o trator e
o rolo compressor”, disseram (SILVA, 2022, p. 66).

De acordo com uma nota de esclarecimento8 publicada pela Prefeitura de Niterói em


dezembro de 2016, apenas parte administrativa e de auditório foram demolidas, não
abrangendo locais onde ficam os pacientes. A nota afirma um compromisso de que nenhum
serviço de assistência aos pacientes teria seu funcionamento afetado, e que as áreas do
hospital estariam sendo otimizadas e reformadas.

No dia seis de maio de dois mil e dezessete, os primeiros veículos cruzam o túnel. O
hospital psiquiátrico até podia estar com sua estrutura 58% menor, mas ele ainda estava lá,
100% operante. Diante de tudo isso, eu me pergunto: será que o túnel não deveria ter sido
mais alargado? E se ele tivesse comprometido toda a estrutura do manicômio? Será que, se
assim tivesse acontecido, estaríamos mais perto de demolir-romper-ruir com essa estrutura

8 Link para acesso à nota de esclarecimento:


http://www.saude.niteroi.rj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=696:nota-hpj.
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que, muito mais do que física, é subjetiva na cidade-sorriso9? Demolir o hospital não é
demolir apenas o hospital, mas tensionar as forças de um certo modo de subjetivação
manicomial que ainda persiste.

***

Um homem velho, jamais visto, carregando um saco nas costas é uma figura de terror
que povoa o imaginário de muitas crianças. A figura sempre vem acompanhada de frases do
tipo “se comporte, senão o homem-do-saco vem te pegar”, “vou chamar o homem-do-saco”.
Lá no oeste catarinense, eu temia esse velho. Como poderia alguém colocar as crianças num
saco pendurado nas costas? De que tamanho era esse saco? Devia ser enorme para caber
tantas crianças! Ele devia ser um velho forte, bem forte, pra carregar tanto peso. Para onde ele
as levava? E depois, o que acontecia? O medo era tanto que rapidamente os indisciplinados
andavam na linha. Cresci ouvindo os chamados pelo homem-do-saco; cresci temendo ser
levada, sabe-se lá para onde, por esse velho. Mas o leitor deve estar achando estranho e se
perguntando o que o homem-do-saco tem a ver com Niterói.

Explico. Esse modo de subjetivação manicomial é também estranho, embora


facilmente percebido. Na posição de estrangeira, ao chegar nessa cidade, estranho quando me
contam que, na infância, ao invés do homem-do-saco, as crianças travessas temiam outro
monstro: “vou te levar pro jurujuba”. É igualmente estranho quando os usuários do CAPS
falam, uns aos outros, “olha que você vai pro jurujuba”, “eu sabia que no dia que eu falasse
isso pra ela [se referindo à diretora do CAPS] eu pararia aqui [se referindo ao Jurujuba]”, diz
a usuária, rindo. O que parece ter em comum, o homem-do-saco e Jurujuba, além da
monstruosidade e a naturalidade com que ambos são tratados, é que ambos são figuras
míticas. O homem-do-saco funda um imaginário de medo e terror, o manicômio também
funda um imaginário de medo e terror. Embora o homem-do-saco não seja real, o mito do
homem-do-saco é. Embora a loucura não seja real, o mito da loucura é. Mas é estranho pensar
que a loucura não é real. Do que estamos falando, então, quando falamos do mito da loucura?

9 “Cidade-sorriso”, como Niterói é conhecida; seu apelido.


35

O psiquiatra húngaro Thomas S. Szasz, em sua obra “O mito da doença mental” conta
que, até metade do século XIX, o termo “doença” referia-se a uma desordem corporal que se
manifestava na forma de uma alteração na estrutura física, “uma visível deformidade,
enfermidade, ou lesão, como uma extremidade disforme, uma pele ulcerada, uma fratura ou
ferimento” (s/d., p. 26) e eram por essas mudanças na estrutura do corpo que os médicos
podiam distinguir doenças de não-doenças. Posteriormente, a partir do início das dissecações
em cadáveres, passou a ser possível identificar diversas alterações antes não visíveis. Szasz
escreve que, então, além da detectável alteração na estrutura, acrescentou-se a função
corpórea. Um detectado pela observação do corpo; o outro detectado pela observação do
comportamento. Algumas doenças passaram a ser “[...] convenientemente chamadas
“mentais” para distingui-las das que são “orgânicas”, e também convenientemente chamadas
“funcionais” para contrastar com as chamadas “estruturais” (SZASZ, s/d., p. 27). Szasz diz
que foi assim que a histeria, por exemplo, foi inventada. Aparentemente de estrutura física
corpórea perfeita, mas com manifestações e queixas de dores e quadros de paralisias, eram
classificadas como doentes funcionais. Paralelo entre o físico e o mental. O psiquiatra aponta
para o modo como determinadas formas de ação, de comportamento, passam a ser definidos
como patologias. Haveria toda uma

confusão entre o descobrimento e a invenção de doenças: a iniciativa restringida por


critérios fixos de descobrir doenças corpóreas e a exigência de evidência empírica
não podem resultar na conclusão de que todo fenômeno observado [...] seja uma
doença; mas a iniciativa de inventar doenças mentais, sem a restrição de critérios
fixos ou a exigência de evidência empírica, resulta na conclusão de que qualquer
fenômeno estudado pelo observador possa ser definido como uma doença” (SZASZ,
s/d., p. 28).

Logo nas primeiras páginas de sua obra, o psiquiatra aponta que, embora muito aceita,
a definição de que a psiquiatria é a especialidade capaz de diagnosticar e tratar doenças
mentais a coloca ao lado da alquimia e da astrologia, com suas "substâncias misteriosas”, e a
ocultação de “seus métodos do escrutínio público”, ocupando a categoria de pseudociência.
Defende tal posicionamento ao considerar que a “doença mental”, objeto de estudo da
psiquiatria, não existe enquanto doença, mas como mito. Szasz convoca os psiquiatras a, ou
continuar fazendo sua prática sob entidades inexistentes, ou direcioná-la a intervenções e
processos reais, já que a psiquiatria insiste “[...] em falar de misteriosas doenças mentais e
continuam a abster-se de revelar total e francamente o que fazem”; e continua: “um médico é
36

geralmente aceito como psiquiatra desde que faça questão de se preocupar com o problema da
sanidade ou insanidade mentais” (SZASZ, s/d., p. 17).

Thomas Szasz apresentou ao editor o primeiro manuscrito de O mito da doença


mental em 1957-1958, pouco antes da publicação da História da Loucura de Foucault. A obra
foi rejeitada e só posteriormente aceita por outra editora, sendo publicado em 1961. Ele
aponta que a incidência do saber psiquiátrico atua de modo a produzir uma verdade sobre o
outro e nos convoca a olhar para a doença mental como mito, passando, assim, a compreender
os seres humanos, em vez de compreender as doenças mentais. A questão que aqui estamos
querendo apontar, ao trazer as contribuições de Szasz sobre o mito da doença mental, não é a
negação da manifestação de um fenômeno que produz nas pessoas seus efeitos de
adoecimento e de sofrimento. O autor deixa claro que, apesar de considerar o termo “doença
mental” inútil, tal como a ideia de influência das posições planetárias sobre a conduta pessoal,
não tenta “desmascarar a psiquiatria”, pelo contrário, acredita que ela possa ser uma ciência,
assim como a psicoterapia é um método que funciona para as pessoas “não para recuperá-las
de uma “doença”, mas para ensiná-las a se conhecerem a si próprias, aos outros, e à vida"
(SZASZ, s/d., p. 13); isto é, pensar a relação com o outro em termos de um processos de
intensificação da vida.

A questão que colocamos em jogo, ao lado de Szasz, é justamente a de problematizar


que a doença mental cumpre uma função social de controle, na medida em que doentes são
aqueles que serão confinados em hospitais psiquiátricos, ou os que frequentam o consultório
particular e, sobretudo, os inaptos ao trabalho. Com a justificativa de serem anormais,
delinquentes, criminosos, degenerados, doentes, etc., o manicômio está cheio. Essa lógica
produz a necessidade da contenção não só da camisa de força, mas também dos muros, os
quais inundam nosso imaginário com a ideia de que eles não podem ser derrubados, pelo bem
de todos, normais e anormais.

Mas acabar com os muros não quer dizer, por outro lado, que acabamos com os
manicômios, logo, que não há mais necessidade do cuidado em saúde mental, e essa
afirmação pode ser usada, inclusive, para um maior sucateamento das políticas públicas de
cuidado em saúde mental. Ora, se a doença mental é um mito e o manicômio produz a
loucura, logo, qual a necessidade de uma rede de cuidado em saúde mental?
37

A defesa que aqui fazemos é a de que esses modos de vida sejam cuidados fora da
clausura, entendendo e defendendo a necessidade de um conjunto de equipamentos dispostos
na rede, construída com um único objetivo, qual seja, o de redirecionar o modelo de
assistência em saúde mental, assegurar os direitos e a proteção das pessoas; esse
redirecionamento da rede tem, sobretudo, um redirecionamento da concepção da
subjetividade. Os muros não foram derrubados. Na história do hospital psiquiátrico de
Jurujuba, assim como na história de tantos outros manicômios, ainda há leitos, internações
compulsórias, uso de uniformes, alas separadas para cada perfil, etc. Essa não é apenas uma
história que ficou no passado, mas a lógica que ainda persiste na atualidade, nesse exato
momento.

Entendemos que muitas práticas e intervenções que são feitas hoje têm o viés de
problematizar esses espaços, principalmente pelos trabalhadores que lá atuam. Mas, ainda
assim, o manicômio carrega uma história de violência, de exclusão, assassinatos, segregação,
subalternização, de horror. Não é possível anistiar o manicômio. Não devemos anistiar o
manicômio. Há certos tipos de concessão que não podemos fazer, mesmo sob a pretensa
alegação de estar fazendo o melhor para o outro.

Queremos ressaltar, também, que há forças manicomiais que insistem para além dos
muros do manicômio. No texto “Manicômio mental - a outra face da clausura”, primeiramente
apresentado numa comemoração ao Dia da Luta Antimanicomial, organizado pelo Plenário de
Trabalhadores em Saúde Mental em São Paulo e também publicado na coleção SaúdeLoucura
número 2, o autor Peter Pál Pelbart aponta justamente para o ponto de que não basta somente
destruir os manicômios se preservarmos o manicômio mental. Pelbart retoma Foucault para
pontuar que quando se decidiu, na história do ocidente europeu, enclausurar os “desajuizados”
pela primeira vez, no mesmo século XVII Descartes afirmava haver uma dissociação total
entre a loucura e o pensamento; “enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, o
pensamento racional trancafiava a desrazão” (PELBART, 1991, p. 135). É pra esse modo de
libertação que o autor chama a nossa atenção; libertar o pensamento do cárcere, essa
racionalidade carcerária, como sendo tão urgente quanto libertar a sociedade dos manicômios.

O direito à desrazão significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do
Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras
da verdade, chame-se ela de identidade ou estrutura, significa devolver um direito de
cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao
impensável. Libertar-se do manicômio mental é isso tudo e muito mais (PELBART,
1991, p. 137).
38

Posta a manicomialização para além da instituição mas também como modo de vida,
poderíamos nos perguntar: se o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba fosse destruído, se do dia
para a noite ele se tornasse obsoleto e o CAPS III fosse implementado, não correríamos o
risco de reproduzirmos, nesse novo equipamento, a mesma lógica manicomial? A única
resposta que temos, e ela precisa ser incisiva é: bem, vejamos, tudo isso é verdade, porém,
precisamos nos atentar para o fato de que o CAPS, que faz parte de todo um conjunto de
estratégias de cuidado em rede e, portanto, de desinstitucionalização, abre-se para as forças
instituintes muito mais do que um manicômio, ou seja, o modo como o dispositivo é montado,
permite uma posição constante de desinstitucionalização do próprio manicômio mental;
permite que o próprio manicômio mental, caso esteja operando na rede, possa ele também ser
problematizado.
Ana Marta Lobosque, em seu livro Intervenções em saúde mental - um percurso pela
reforma psiquiátrica brasileira (2020), que integra a coleção SaúdeLoucura, chama a atenção
para o funcionamento das redes de cuidado em saúde mental e o quanto, nessas redes, não há
regras preestabelecidas em que apertamos botões para resolver situações, como se todo o
funcionamento da rede já estivesse dado de antemão. Destaca a importância da mobilidade,
versatilidade da rede, que pode então ter um certo tipo de flexibilidade para encontrar um
lugar para situações que não encontram um lugar. Ainda nesse sentido, a autora aponta para o
fato de que, mesmo precisando dessa mobilidade na rede, dessa articulação visando cada
especificidade, não quer dizer que não existam dispositivos necessários para cada uma das
redes:
Como pode um município de grande porte atender bem as situações de crise, se não
dispõe de CAPS III? Como fechar o hospital psiquiátrico de longa permanência de
uma cidade se ela não oferece aos usuários uma moradia? [...] uma rede deve
reconhecer necessidades, determinar prioridades, planejar e ordenar seus diferentes
pontos de atenção (LOBOSQUE, 2020, p. 80).

Lobosque vai dar ênfase, em sua discussão, ao que chama de três aspectos, ou pontos,
essenciais para uma lógica de fato antimanicomial. O primeiro é de que uma rede precisa, nas
situações de crise, ser capaz de atender as demandas prescindindo do hospital psiquiátrico.
Mesmo em situações que se tenta justificar como um último recurso,

não se pode falar em reforma psiquiátrica verdadeira quando se trabalha, ainda que
implicitamente, com a hipótese de que, ‘em último caso’, ‘se a situação apertar ’, ‘se
o paciente piorar’, ‘se não tem para onde ir’, pode-se encaminhá-lo para o hospital
psiquiátrico, como se tal encaminhamento representasse uma saída legítima e
adequada para a sua vida (LOBOSQUE, 2020, p. 80).
39

Trazendo-nos o exemplo de Belo Horizonte, onde os CAPS são chamados de


CERSAMs (Centro de Referência em Saúde Mental) e tem seu funcionamento 24 horas,
atendendo pessoas em crise, a autora conta que a gestão local de saúde mental, junto com os
movimentos sociais da luta antimanicomial, orienta que seus pacientes não devem ser
encaminhados para hospitais psiquiátricos, uma vez que a rede é integralmente substitutiva
aos hospitais. A portaria nº 3.088 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde, em seu artigo
11, o qual trata dos pontos de atenção na RAPS quanto às Estratégias de
Desinstitucionalização, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), em seu § 2º, vai dizer
que:

O hospital psiquiátrico pode ser acionado para o cuidado das pessoas com transtorno
mental nas regiões de saúde enquanto o processo de implantação e expansão da
Rede de Atenção Psicossocial ainda não se apresenta suficiente, devendo estas
regiões de saúde priorizar a expansão e qualificação dos pontos de atenção da Rede
de Atenção Psicossocial para dar continuidade ao processo de substituição dos leitos
em hospitais psiquiátricos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011, s/p).

Entendemos que se deve ter a priorização da expansão da RAPS nessas localidades


em que a mesma não está ainda bem constituída, justamente porque a rede se coloca como um
contraponto a toda lógica manicomial por entender, através de todo o processo de luta
antimanicomial e de reforma psiquiátrica, que o manicômio é esse lugar de reiteradas práticas
de violência. Mas, ao mesmo tempo, o que se apresenta, na realidade, são as brechas que
permitem à rede de cuidado em saúde mental se constituir tendo como braço o manicômio.
Tal ponto da portaria, que visa “estratégias de desinstitucionalização”, não deixa de abrir um
precedente, justamente por sustentar, legalmente, a própria existência do manicômio.

É paradoxal acionar o manicômio no caso da insuficiência da rede quando a rede


surge, justamente, para acabar com o manicômio. Acaba-se por fazer concessão ao
manicômio, integrando-o à própria rede, justificando sua existência, fundamentando-o
legalmente e destinando pesados recursos para a sua manutenção, como em Niterói, por
exemplo, através dos reajustes, em 2017, de mais de 60% no valor recebido pelos Hospitais
Psiquiátricos referente a diárias10, bem como, em 2018, referente as internações de longa

10 Portaria do Ministério da Saúde Nº. 3588/2017. Link para acesso:


https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.html.
40

duração, ou seja, de mais de noventa dias11. E, ainda, em 2020, em decorrência da COVID-19,


publica-se, pelo Ministério da Saúde, a Portaria nº 139312, que dispõe de auxílio financeiro a
Santas Casas e a hospitais filantrópicos, visando o controle do avanço da pandemia. Na lista
de entidades beneficiadas, doze são hospitais psiquiátricos. Uma série de desmontes que
fortalecem a existência e manutenção dos hospitais psiquiátricos está em curso13.

O segundo aspecto defendido por Lobosque para uma lógica não manicomial refere-se
ao funcionamento em rede dos equipamentos de saúde. A autora aponta para a necessidade de
uma atenção básica fortalecida, em que não se pode tomar o CAPS como o principal
dispositivo de cuidado, nesse sentido, o ordenador do trabalho, mas “[…] devemos fazer da
atenção básica a principal porta de entrada da rede, levando a sério os princípios de
acolhimento, vínculo e responsabilização de cuidados” (2020, p. 81). A autora marca a
potência criativa da atenção básica quanto à formulação de estratégicas de cuidado justamente
por se ter em vista a noção de território, “a visita domiciliar a um paciente grave que não quer
sair de casa, o laço estabelecido pelo agente comunitário com um usuário de drogas, as
atividades culturais com mulheres apressadamente diagnosticadas como ‘deprimidas’, e tantas
outras possibilidades a explorar” (2020, p. 82).

No terceiro e último ponto, a autora vai ressaltar a importância do trabalho alinhado


com os demais equipamentos, uma vez que, para além da saúde, há um sujeito a ser
considerado, que deve criar e fortalecer laços sociais fora dos CAPS, pois, apenas com a
atuação deste serviço, mesmo que consideremos um maior número e um pleno
funcionamento, “não conseguiria implementar os princípios de uma reforma psiquiátrica
verdadeiramente antimanicomial” (LOBOSQUE, 2020, p. 82). É no arranjo entre os diversos
serviços da rede: “os centros de convivência, os grupos de produção solidária, as moradias, as
associações de usuários e familiares, e outros dispositivos e lugares ainda a inventar, que

11 Portaria do Ministério da Saúde No. 2434/2018, Link para acesso:


https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt2434_20_08_2018.html#:~:text=Altera%20a%20Port
aria%20de%20Consolida%C3%A7%C3%A3o,para%20Interna%C3%A7%C3%A3o%20nos%20Hospitais
%20Psiqui%C3%A1tricos.
12 Link para acesso: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt1393_22_05_2020.html.
13 São, alguns deles: Portaria do Ministério da Saúde Nº. 544/2018, que financia equipes terapêuticas de
caráter ambulatorial, podendo, estas, se localizarem em hospitais psiquiátricos; Decreto presidencial Nº.
9761/2019, que revoga a Política Nacional Antidrogas (Decreto Nº 4345/2002) e, sobretudo, institui a
promoção e manutenção da abstinência como única estratégia de tratamento, excluindo do tratamento as
alternativas não repressivas garantidas no decreto anterior através da Redução de Danos, bem como apoia e
estimula financeiramente comunidades terapêuticas de cunho privado e religioso; Lei Nº. 13992/2020 e Lei
Nº. 14061/2020, que suspende e prorroga a suspensão, respectivamente, da obrigatoriedade de manutenção
das metas contratualizadas pelos prestadores de serviços de saúde filantrópicos no âmbito do SUS,
garantindo, na integralidade, repasses dos valores contratados; entre os beneficiários, estão os hospitais
psiquiátricos filantrópicos.
41

possibilitam efetivamente a autonomia, o trânsito social e a participação política do cidadão


em sofrimento mental” (LOBOSQUE, 2020, p. 82). É na porosidade da cidade que se habita a
potência, “portas flexíveis de uma cidade que já não aposta em chaves e grades, não querendo
extirpar de si as estranhas vivências sem as quais não poderia ser alegremente o que é: nada
mais, nada menos, senão construção humana” (LOBOSQUE, 2020, p. 84).

Voltando a Niterói, nos perguntamos; que forças são essas que impedem a
implementação definitiva de um CAPS III para fortalecer a rede de saúde mental do
município, bem como a retirada do manicômio como referência da rede? O que faz a
prefeitura investir R$1.970.946,46 na reestruturação e revitalização do manicômio14? Apesar
da notícia de janeiro de 2023 afirmar verba de mais de R$260 milhões para reformas de
setenta unidades de saúde ao longo do ano, inclusive dos Centros de Atenção Psicossocial, ela
parece começar, prioritariamente, pelo hospital e, apesar dos burburinhos e da expectativa,
ainda não há notícias oficiais de implementação de CAPS III no município.

14 Comunicado oficial através do site da prefeitura. Link para acesso:


http://www.niteroi.rj.gov.br/2023/01/17/prefeitura-de-niteroi-assina-ordem-de-inicio-das-obras-do-hospital-
psiquiatrico-de-jurujuba/.
42

4 PRIMEIRO TEMPO: MEMÓRIAS DO TRABALHO NO CAPS ANTES DA


PANDEMIA

Dentro das limitações da rede, em meio ao sucateamento das políticas públicas, dos
equipamentos de saúde, das condições e dos contratos de trabalho, das forças manicomiais
intra e extra-muros, os profissionais, no dia a dia, são aqueles que buscam produzir estratégias
possíveis de cuidado. Irma, uma das entrevistadas dessa pesquisa, ao ser interpelada sobre o
que entende pelo trabalho do CAPS, conta de uma experiência com um dos usuários de um
CAPS II do município de Niterói, serviço em que atuou por cerca de um ano como psicóloga
e também, anteriormente, enquanto psicóloga-residente em Saúde Mental.

O trabalho no CAPS eu costumo dizer que a gente empresta uma


presença [...] tem uma coisa ali do trabalho coletivo, da
equipe, e também entre os usuários, de poder emprestar essa
presença, de acompanhar um pouco ali, muito junto, [...] mas
também recuado. Uso um termo “recuo ativo” a partir de um
usuário que era completamente institucionalizado, tinha ficado
anos num hospital-colônia, depois ficou anos no Hospital
Psiquiátrico em Niterói, no albergue15. E aí eu comecei a fazer
um trabalho com ele assim, ele não sabia nem atravessar a rua,
aquela coisa de olhar os carros, aí a gente ia no mercado toda
a semana, ele ia pro CAPS e a gente ia e uma coisa assim, dele
poder escolher o biscoito que ele queria, ele via que eu tava
ali perto, mas era pra que ele pudesse aparecer ali, enquanto
sujeito; então eu acho que tem um pouco esse trabalho, pra mim
essa é muito a importância, poder dar um lugar pra esses
sujeitos que não tem muito um lugar na sociedade. Tem um
estigma muito grande [...] acho que tem uma promoção de
autonomia e de uma escuta de um sofrimento. [...]. E pra mim
tem muito essa importância de poder ser um trabalho em equipe
multiprofissional, cada um vai podendo pensar a partir de uma

15 Enfermaria de longa permanência do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba.


43

formação diferente. [...]. É um trabalho de acompanhamento, eu


diria.

Ela lembra desse acompanhamento e de algo que chama de “emprestar uma


presença”, fazendo um “recuo ativo”; um interessante paradoxo em que opera a potência de
uma “passividade ativa”, para que se dê lugar ao sujeito e suas conexões. Tal memória
rapidamente nos convoca a pensar o acompanhamento terapêutico16 como um modo de
intervenção clínica. Diferente de pensá-lo como uma abordagem clínica ou mesmo como uma
função/cargo de trabalho na rede de saúde mental, mas numa dimensão do próprio fazer da
clínica, uma possibilidade de intervenção clínica.

Era uma quarta-feira por volta de duas horas da tarde, reunião


de equipe iniciada quando há uma interrupção: “pessoal, o
usuário Leandro está aqui para que alguém acompanhe ele até o
caixa eletrônico para sacar dinheiro”. Há um burburinho na
equipe: “mas é reunião, eles sabem que não tem atendimento”,
“diz pra ele voltar sexta-feira”, “mas se alguém não ir com
ele, ele vai ficar sem dinheiro e amanhã é feriado”, “CAPS
está sem AD (Acompanhante Domiciliar), não tem o que fazer, se
tivesse, era tranquilo ir”, “mas tem que ver se alguém se
dispõe a perder a discussão de casos importantes pra ir lá com
ele”, “mas gente, é perto, em trinta minutos está de volta”...
O ruído cessa quando a psiquiatra diz: “eu vou com ele lá,
tranquilo”, seguido de um “tem certeza?”, e, após mais uma
assentida de que sim, estava tudo bem, certo espanto
generalizado em forma de silêncio toma conta do ambiente.

O que apontamos aqui, nessa dimensão clínica do cuidado que se faz pelo
acompanhamento terapêutico, é de que essa dimensão não se restringe a uma determinada
função, de um determinado trabalhador que, na divisão social do trabalho, ocuparia um cargo
de nível não superior – geralmente conhecido como Acompanhante Domiciliar ou mesmo
Acompanhante Terapêutico. No fragmento citado acima, relato de experiência da

16 Usaremos a sigla AT quando nos referirmos a acompanhamento terapêutico.


44

pesquisadora, o acompanhamento terapêutico em sua dimensão clínica foi, nesse sentido,


exercido pela médica psiquiatra.

Certo dia, durante uma de nossas reuniões de final de turno,


diante de um dia de trabalho intenso, ao avaliar o dia, o
psiquiatra diz que a gente pode perceber se o trabalho do CAPS
vai bem quando o psiquiatra não fica só no consultório, o dia
todo, assinando receitas médicas; mas pelo contrário,
participa da convivência, das oficinas, dos aniversários, das
atividades na rua.

Se já entendemos que as instituições totais são totais justamente porque não tem
abertura para o fora e, portanto, são instituições de enclausuramento; se já entendemos que o
cuidado proposto pela rede de saúde mental deve se dar extramuros, isto é, fora das
instituições totais, e que os CAPS são um dos dispositivos da rede de saúde mental que
propõe o cuidado em liberdade, cabe um outro questionamento, diante do fragmento acima
narrado por outra psiquiatra no final de um dia de trabalho: poderíamos compreender o
acompanhamento terapêutico como um índice de saúde e de cuidado do próprio dispositivo e
da equipe?

Seguindo o lastro do movimento e da abertura para a relação com o fora, buscamos


em Deleuze e Guattari o passeio do esquizofrênico, situado em dois tempos no primeiro tomo
de Capitalismo e Esquizofrenia, o Anti-Édipo. O primeiro, em que retomam o passeio de
Lenz, reconstituído por Georg Büchner: “O passeio do esquizofrênico: eis um modelo melhor
do que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o fora. […] No
seu passeio, […], ele está nas montanhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus algum,
sem família, sem pai nem mãe, com a natureza (2010, p. 12), e no segundo, em que retomam
a obra de Samuel Beckett: “No fim de Malone Morre, a senhora Pédale leva os
esquizofrênicos a dar um passeio, a andar de charabã, de barco, a fazer um piquenique na
natureza: uma máquina infernal se prepara (2010, p. 13). O passeio esquizo pressupõe um
movimento sempre e ininterrupto de abertura para o acontecimento, este, sempre incerto, com
a finalidade única de intensificação da vida. Eis sua beleza.
45

Fazemos aqui uma retomada quanto ao manicômio, instituição total que impossibilita
qualquer experiência com o fora. Nesse sentido, os CAPS vão surgir como o fora dessas
instituições totais, isto é, como um dispositivo estratégico contra o enclausuramento dos
sujeitos, um dispositivo itinerante. Itinerante não pelo caráter de uma estrutura física móvel,
mas pelo seu fazer que tem por direção o fora: a rua, o território, a comunidade. Porém, ainda
assim, ainda que com essa direção, não há garantias de que não será reproduzido, no
dispositivo CAPS, a própria lógica manicomial e, assim, ele precisará permanentemente
atingir essa dimensão fora dele mesmo. Se o manicômio é a instituição total e o CAPS são o
fora, apostamos num movimento permanente de encontrar o fora do fora, tal como no passeio
esquizo narrado por Deleuze e Guattari (2010). Esse movimento é possível a partir do
entendimento do acompanhamento terapêutico como um gesto clínico. O fazer do AT como
um movimento clínico constante de atingir a potência de abertura dele mesmo (o fora). Um
movimento clínico que não se faz sem ser, ao mesmo tempo, político, uma vez que
desestabiliza não só a própria constituição do equipamento de saúde mental, mas o lugar da
rua, do fazer, da comunidade. O AT como sendo o fora é também um índice de saúde desse
outro fora (o CAPS), já que ele nos força ininterruptamente a uma problematização do fazer,
assim como busca alcançar uma dimensão de saúde do fazer, sempre, e sobretudo, no fora do
fora.

Lobosque (2020, p. 62) retoma a frase de uma paciente de um psiquiatra francês,


chamado Clérambault: “sofro de um pensamento que me é exterior”, para nos mostrar a
relação com o dentro e o fora na experiência psicótica, e defender a posição que os CAPS, que
atuam justamente nessas condições, devem adotar: “se estruturar como espaço voltado para
fora de si” (LOBOSQUE, 2010, p. 62), pois só se abrindo para o fora é que se pode
reconstruir essa privacidade psíquica perdida na psicose, em que seus pensamentos são
públicos e até impostos a si. “Um espaço que convide o psicótico a povoar conosco o mundo
humano, o que se faz não pela tradução de seus delírios nos significados da língua, e sim pela
permissão de inscrever, nessa língua, outros significados” (LOBOSQUE, 2010, p.62).

Um outro ponto fortemente levantado pelas entrevistadas, foi quanto às oficinas, que
consideram a força motriz do CAPS, pois elas são capazes de promover espaço
pra algum tipo de vínculo entre os pacientes. Lobosque vai evidenciar o
papel fundamental dos CAPS justamente quanto à promoção de laços sociais, destacando que
a qualidade desse laço não é o da obediência de se seguir a normatividade e seus padrões, bem
como não é aquele que se refere a uma relação social fria e superficial, mas aqueles laços, ao
46

mesmo tempo que leve e rigoroso, capaz de criar o tecido “que ofereça à cultura um corpo
propício ao movimento do desejo” (2020, p. 60).

Érica aponta que as oficinas eram realizadas por vários profissionais que compunham
a equipe, uma oficina que abordava questões de saúde era realizada
pela técnica de enfermagem e por um residente em saúde mental.
Era trazido, de forma didática, algumas doenças por exemplo
DSTs, tuberculose, quais os sintomas da doença, como se
descobre a doença, era um grupo bastante procurado, sempre
enchia de participantes, tínhamos uma de notícias, em que cada
um dava suas notícias pessoais, ou que estava acontecendo no
mundo; o de notas musicais, que era pelo celular, a pessoa
pedia uma música, a gente tocava no celular e aí cada um pedia
uma música e a gente escutava; o grupo da Redução de Danos, em
que conta que alguns usuários ficavam com um certo tipo de receio, entendendo que iriam ter
que substituir uma droga pela outra ou reduzir a quantidade de uso; não era grupo,
mas a gente promovia passeios, numa pegada de circular pela
cidade. Niterói tem Centro de Convivência, então a gente fazia
parceria com eles.

O prédio que abriga o CAPS data de 1908, na sua entrada, logo após o portão aberto,
há uma figueira centenária e diversas outras árvores que, ao se juntarem no alto de suas copas,
formam um enorme sombreiro. Em seus pés, diversos bancos abrigavam usuários e equipe
num espaço de convivência que, narrado por Érica, os usuários diziam que se sentiam muito
em paz. Margarete, que atuou como psicóloga no mesmo CAPS, conta que o portão sempre
foi escancarado, sempre funcionou de portas abertas, mas ressalta que
sempre entravam num acordo com os usuários que queriam sair da unidade pra fazer alguma
coisa na rua e retornar, muitas vezes o usuário chegava pro cuidado
dele, ia lá fora, bebia uma “bojudinha”, quando voltava já
saia jogando cadeiras, arrumando confusão, então era combinado
que se falasse com alguém da equipe, precisava sempre passar
pela palavra a coisa do “ir e voltar”.

Lobosque, nossa grande aliada nesse fazer, nos mostra que, por se tratar de um serviço
“portas abertas”, de fato surgirão consequências dessa abertura e que é preciso sustentar, uma
47

vez que “abrir a porta não é apenas liberar a entrada e autorizar a permanência daqueles que
chegam; trata-se de criar para cada um deles um lugar pelo qual se responde”, visto que “há
de se delinear a direção de um tratamento, nunca a priori, e sim a partir daquilo que cada qual
traz consigo. Afinal, a mais fértil possibilidade de solução só se descobre quando encontramos
a maneira mais justa de formular o problema” (2020, p. 63). As portas abertas devem nos ligar
à cidade “como legítimos habitantes de um espaço geográfico, social e político que é também
nosso, conquistando a cidadania dos verdadeiros laços sociais” (2020, p. 64).
48

5 SEGUNDO TEMPO: FASCISMOVÍRUS E CORONAVÍRUS - UMA


CONTEXTUALIZAÇÃO PANDÊMICA

Niterói, 10 de janeiro de 2021

Para Lúcia

Lúcia, você lembra de mim? Nos conhecemos no dia 11 de

outubro de 2019 no Instituto Nise da Silveira, lembra? Você

chegou no prédio do Espaço Travessia e foi se deitar em um dos

sofás que ficava no Atelier Aberto, bem pertinho da janela,

para descansar após o longo trajeto até o instituto.

Você me contou que agora aquele lugar te fazia se sentir

tão bem que o tempo de caminhada da sua casa até o instituto,

eram percorridos com muita disposição. Disposição que te fazia

ir e vir quatro vezes por dia. Chegava no instituto de manhã,

voltava para casa ao meio dia, porque gostava de almoçar com

sua irmã, retornava para o instituto no início da tarde e

regressava para casa no final do dia. Que caminhada, Lúcia!

Lembro que você me contou de quando foi interna do Centro

Psiquiátrico, naquele mesmo lugar;

de quando o pátio era cinza, sem vida;

de quando não suportou mais tantas humilhações e agressões

físicas e psicológicas e decidiu fugir;

de quando pulou aquele muro alto e machucou seu braço;


49

de quando, já do lado de fora e machucada, corria sem

rumo;

de quando, mesmo correndo, o guarda conseguiu te alcançar,

te agarrou com força e te carregou de volta;

de quando, ao chegar, te trancaram numa cela fria, escura

e úmida, como punição;

te buscaram;

te amarraram numa maca;

um pedaço de pano foi enfiado com violência na tua boca;

molharam a tua testa;

teus olhos,

vidrados, arregalados, apavorados

denunciavam o desespero e suplicavam por clemência;

1...2...3!

Os eletrodos grudaram nas suas têmporas.

...

Você me disse que só lembra de ter acordado. E mais nada.

Acordado debilitada, confusa, sem entender o que tinha

acontecido. Nenhuma memória. Sem saber se haviam se passado

minutos, horas ou dias.

Você me contou que dias depois, ao sentir falta de dois

colegas, soube que naquela mesma noite eles também foram

submetidos ao choque. O coração deles não suportou as

descargas elétricas. E era por isso que você não os tinha mais
50

visto no pátio, assim como tantos outros, que simplesmente iam

sumindo.

Lembro que quando conversamos, você me contou que viveu o

centro psiquiátrico em diversas fases, mas que sem dúvida,

hoje, era a parte bonita dessa longa história de vida; que até

as árvores eram mais verdes e vivas. Você me disse que fazia o

trajeto de ida e volta da sua casa até o instituto a pé porque

tinha perdido o cartão do ônibus, mas isso não importava, pois

mesmo sendo uma longa caminhada, você a fazia diariamente.

Mesmo chegando no instituto exausta. Mesmo precisando chegar e

se deitar para descansar. Você insistia em fazer o trajeto.

Não te perguntei na ocasião do nosso encontro, mas estou

pensando agora, enquanto te escrevo: Qual a sensação da chave

de casa balançando no bolso? De pegar na mão, colocar na

fechadura, girar e, com a certeza de que vai destrancar, pegar

na maçaneta e poder escutar o ranger da porta se abrindo? Os

pequenos gestos que no meu cotidiano passam tão

despercebidos... Fico pensando como é tudo isso. O cheiro da

comida que a sua irmã prepara no almoço escapa pelas janelas

da casa e te recepciona ainda do lado de fora? O silêncio do

almoço e o barulho dos talheres batendo no prato enquanto o

suor da água gelada escorre pelo copo e vai molhando a mesa.

Acender e apagar as luzes. Um universo de sensações e

sentidos.
51

Lúcia, talvez eu tenha entendido a sua insistência em

tantas idas e vindas, mesmo com o peso da medicação, com a dor

no teu braço e mais todas as cicatrizes dessa história que

você carrega. É possível ir e vir. Entrar e sair. Escolher não

ir, se for o caso, mas sempre poder voltar. Há possibilidade

de experimentar o mundo e as suas sensações.

Deixa eu te contar, Lúcia, que quando entrei no prédio do

núcleo cultural, naquele dia que nos encontramos, fui

contagiada por muita alegria. Bem que você me disse que lá as

paredes deixaram de ser brancas para virar uma imensa tela,

onde cada um pode aportar-se de um pincel, tintas e deixar

suas impressões.

Lembra que, ao falar do que mais gostava de fazer, você

citou as oficinas de arte, teatro e, principalmente de dança?

Logo você me perguntou de onde eu vinha e o que eu fazia lá.

Disse que Bruna era nome de homem, mas que você achava bonito

mesmo assim. Rimos bastante. Me pego rindo até hoje desse

fragmento de memória. Naquela época, o processo seletivo do

mestrado ainda não tinha acabado, mas eu senti ainda mais

forte o desejo de estar nas oficinas de arte e de escrita,

minha aposta de pesquisa. Oficinas onde inscreveríamos nossas

tintas e nossos cadernos, por onde passariam intensidades de

cores e de palavras, fluxos da história e da vida.


52

Lúcia, fui aprovada no tal processo seletivo que te

contei. Tudo caminhava bem e finalmente o projeto ia

acontecer! De repente fomos interrompidos e os planos

precisaram ficar para depois. A universidade decretou a

suspensão das atividades por conta da confirmação de

transmissão comunitária do coronavírus. Aí você sabe, chegou

esse longo e interminável período de pandemia. Cheguei a

pensar que logo tudo ficaria bem e que poderia retomar, em

breve, quinze dias, o planejamento das oficinas. Um grande

engano para todos.

Não tem sido um período fácil... Essa pandemia-que-nunca-

acaba faz eu me sentir confusa, sufocada, esgotada. Tenho tido

muitas dores de cabeça, cansaço, insônia demais e sono demais.

A suspensão do tempo. Tem dias que eu gostaria de acordar e

continuar deitada na minha cama, só esperando o dia acabar, a

pandemia acabar. Essa suspensão do tempo tem me deixado muito

frustrada por não conseguir concretizar o planejado. Só no

final do ano passado que a ficha caiu e eu realmente percebi

que não vou poder estar aí fazendo a pesquisa.

Mas decidi te escrever essa carta porque em meio a esse

cenário que estamos vivendo – a pandemia do coronavírus e a

pandemia desse vírus do fascismo que ameaça constantemente o

desmonte das Políticas Públicas de Saúde Mental e que vem

impedindo direitos já conquistados a duras penas -, me pego

pensando em como você e os outros usuários do CAPS estão, se


53

têm conseguido se proteger, como tem sido o acompanhamento no

tratamento... Como resistir a tantas tentativas de

aniquilamento? Como viver essa realidade? Espero que a

vacinação esteja perto... que a sua vida não tenha sido uma

das mais de 200 mil vitimadas pelo coronavírus e pelo atual

governo fascista, negacionista, genocida.

***

No ano de 2019, a Coordenação-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do


Ministério da Saúde, publica, através da Nota Técnica 11/2019, “novas” discussões em torno
das Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil e das Diretrizes da Política Nacional sobre
Drogas. Tal nota apresenta-se como um agrupamento de portarias e resoluções que vinham
sendo publicadas entre os anos de 2017-2018 e que disputam o campo da saúde mental na
contramão dos movimentos históricos de resistência ao modelos manicomial, higienista e
excludente.

A Nota apresenta, dentre outras medidas, a valorização de leitos psiquiátricos e


comunidades terapêuticas através da ampliação e implementação dos mesmos como
equipamentos a serem inclusos na Rede de Atenção Psicossocial. Há de se notar, ainda, que a
Nota Técnica, em suas diretrizes, afirma o tratamento terapêutico através da
eletroconvulsoterapia e que, para tanto, oferecerá, no Sistema Único de Saúde, o “melhor
aparato terapêutico para a população” (BRASIL, 2019, p. 06). O documento aponta para uma
“posição contrária à legalização das drogas”, atuação baseada em evidências científicas, bem
como “estratégias de tratamento que terão como objetivo que o paciente fique e permaneça
Abstinente, livre das drogas”, e, para tanto, as estratégias de ação incluem “promoção de
Abstinência” (BRASIL, 2019, p. 06). É notório que a investida por parte dos ex-governos em
tais medidas, especialmente Michel Temer e Jair Bolsonaro, tende ao desmonte das Políticas
Públicas de Saúde Mental, uma vez que reitera práticas de violências, de violação dos Direitos
Humanos, incidindo, portanto, sobre os usuários dos serviços de saúde mental, que
historicamente têm sofrido as mais variadas formas de violências; sujeitos que recebem o
54

diagnóstico – o signo condenatório –, e passam a ser marcados pelo saber-poder médico-


psiquiátrico como “portadores” de transtornos mentais.

Se a política bolsonarista já nos dava a certeza de termos que enfrentar os horrores de


seu governo, através dos constantes ataques às Políticas Públicas, não imaginávamos que,
somado a isso, seríamos surpreendidos pela chegada do vírus SARS-CoV-2, causador da
COVID-19. Primeiro em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, mas com aumento
exponencial no número de casos da doença no mundo. Em março de 2020, a Organização
Mundial da Saúde (OMS), declara “pandemia” e divulga orientações quanto ao uso de
equipamentos de proteção individual, bem como protocolos de biossegurança. No campo da
Saúde Mental, a OMS divulgou diretrizes, protocolos, e estratégias de cuidado. Devido ao
aumento de casos de infecção pelo coronavírus, os processos de trabalho na rede de saúde
mental precisaram ser reorganizados, seguindo as medidas de isolamento social.

Não sendo bastante, no final do ano de 2020, já passados nove meses da pandemia de
COVID-19 no Brasil, o governo Bolsonaro continuou levando em frente seu projeto de
destruição. O alvo da vez foram as dezenas de portarias que organizavam e estruturavam o
trabalho da atenção em saúde mental no modelo psicossocial. Tal proposta, chamada de
“revogaço”, faz parte de um movimento de contrarreforma psiquiátrica que teve por objetivo
ampliar modelos hospitalocêntricos que foram, há duras penas, gradativamente sendo
modificados desde a reforma psiquiátrica.

O ano de 2019, e também os anos seguintes, carregam rijas marcas não só em relação
à pandemia da COVID-19, mas também de uma outra pandemia. Danichi Mizoguchi e
Eduardo Passos (2020) fazem um diagnóstico do presente naquilo que chamam de
“Epidemiologia Política”. No texto, os autores vão nos mostrar que epidemia, em sua
etimologia, se origina do grego epi, que quer dizer “sobre”, “acima de”; e demos, que quer
dizer “povo”. Esse sentido, portanto, na sua radicalidade, indica algo que se coloca acima ou
sobre o povo. Muito conhecido pelos brasileiros, o lema de Bolsonaro em sua campanha
eleitoral17 indicava para a disseminação dessa espécie de vírus, para “uma epidemiologia
política que não pode ter outro nome senão fascismo” (MIZOGUCHI; PASSOS, 2020, p.83).
Os autores relembram as considerações de Paul Virilio, Deleuze e Guattari e Vladimir Safatle,
ao apontar que os riscos de tal epidemia política não são só a da efetivação de um estado
totalitário, mas mais do que isso, a emergência de um estado suicidário:

17 “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.


55

A máquina de Estado operando exclusivamente através da composição de forças


postas a serviço da destruição e da abolição do que quer que seja. É aqui que o
sentido infectológico e o sentido político da epidemia se fazem absolutamente
sintônicos: o contato biológico da doença e da morte espalhando-se em um governo
não menos mortífero - um governo que, mais do que isso, ecoando todos os lemas
fascistas, é apaixonado pela morte (MIZOGUCHI, PASSOS, 2020, p. 84).

Nesse cenário de horror brasileiro, estão em jogo forças pandêmicas destrutivas não só
de uma crise sanitária mundial, mas também política. As figuras políticas que tanto
criticávamos antes da chegada do governo Bolsonaro, pareciam ter se tornado as que tinham
mais bom senso, já que o presidente da república pronunciava seus horrores, desrespeitando o
povo brasileiro e, principalmente, as minorias, imitava as vítimas com falta de ar nos
hospitais, reduzia a gravidade da crise sanitária ao que chamava de “gripezinha”. Foram
inúmeras falas, inúmeras ações, como negar vacina ao povo, além de incentivar a não
vacinação, o não uso de máscaras, como fez quando de uma de suas aglomeradas passeatas,
no ápice da pandemia, em que tirou a máscara do rosto de uma criança18; cortes de salários,
aumento da fome e do desemprego no país, entre outros tantos gestos de destruição. Um
governo que demonstrou, do primeiro ao último dia de mandato e desde a campanha eleitoral,
ser apaixonado pela morte.

5.1 A CHEGADA DA PANDEMIA: MEMÓRIAS E MODULAÇÕES NO COTIDIANO DO


SERVIÇO

Se em nossa construção anterior afirmamos com muita ênfase na importância do


caráter “portas abertas” dos serviços, aqui, um problema se coloca:: se a rua tornou-se
sinônimo de perigo durante a pandemia de COVID-19, quais foram as portas de entrada
possíveis para os usuários de saúde mental nos CAPS? Como foi produzir laços?

Segundo Josiel, que trabalhou durante um ano no serviço em questão e atuou na rede
de saúde mental de outro município anteriormente, a chegada da pandemia foi um caos,

18 Link para acesso à notícia: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2021/06/24/bolsonaro-tira-


mascara-de-crianca-para-posar-para-fotos-em-visita-ao-rn.ghtml.
56

foi uma mudança muito radical no serviço, porque acho que


rolou uma tensão muito grande. No começo, a gente tinha a
sombra da gripe espanhola, aquela coisa “o que será?”. Não
temos vacina. As pessoas morrendo. Itália. Os médicos
morrendo. E a gente muito preocupados, com a equipe, com os
pacientes, com a família também, uma sensação geral de
preocupação […]. E aí o serviço entrou em um outro regime,
mais ambulatorial e isso foi ruim em várias medidas. […]. O
serviço perdeu o caráter de CAPS, a gente viu a reincidência
dos pacientes no manicômio. A internação no Jurujuba, a
política hospitalocêntrica, com esse outro funcionamento
ambulatorial do CAPS, ela se fortaleceu muito, Niterói que já
é bem centrada no hospital psiquiátrico […]. Acompanhar os
pacientes sofrendo muito, sendo internados, pessoas que não
internavam a anos e a gente muito limitados..

Fica visível, nas narrativas de todas as profissionais entrevistadas, o caráter do


atendimento ambulatorial nesse período, onde consultas/atendimentos passaram a ser
pontuais, bem como houve a suspensão do espaço da convivência, oficinas e grupos
terapêuticos: o que dava pra fazer era o usuário ir lá, dar uma
palavra, pegar o envelope de medicação e sair, muitas vezes eram os
familiares que retiravam a medicação, justamente para tentar evitar uma contaminação. A
falta da convivência era muito difícil para os pacientes. No
começo era como se nada estivesse acontecendo, eles chegavam
na porta e a gente tinha todo esse trabalho de explicar que
não tava tendo, falava da máscara, “volta tal dia que você tem
sua consulta com o Psiquiatra, com a Psicóloga, com Terapeuta
Ocupacional”.

O dia-a-dia nos serviços contava com uma série de medidas: havia processos de
checagem da temperatura na entrada, higienização das mãos, uso obrigatório de máscaras, as
quais eram consideradas pelos usuários como “calcinha de boca”, devido à qualidade
do material. Alguma coisa aquilo tinha, mesmo que um efeito
simbólico de “olha, precisa usar máscara", mas alguns
pacientes não conseguiam. A equipe usava face-shield, máscara
57

N95, chegamos a ter aqueles aventais, num primeiro momento;


quem manuseava paciente sempre de luva, sempre todo cuidado,
que é uma coisa ruim pro paciente, nessa relação a gente
coloca coisas no meio. Ali é a principal rede dele, tanto com
os profissionais quanto outros pacientes, então o cara começa
a vagar no território, tentar criar outra relação, e aí passa
por um período difícil.

O psicanalista Joel Birman, em seu livro que trata especificamente dos fatos da
pandemia no Brasil, vai dizer que, nas ausências, inexistências de protocolos terapêuticos
consistentes para confrontar a doença de modo clínico, bem como da vacina para proteger as
pessoas da disseminação da COVID-19, ou seja, no desconhecimento da doença, tanto a
comunidade científica quanto a médica, bem como os Estados, ficaram impotentes para
confrontar a COVID-19 num primeiro momento, fazendo com que fosse reativado o
dispositivo sanitário que, desde o início do século XIX com a peste, está presente no ocidente:
“os discursos da epidemiologia e da vigilância sanitária, com a promoção de uma quarentena
ampla, geral e irrestrita” (BIRMAN, 2021, p.70).

Nesse período em que só tínhamos incertezas, também surge um falatório de que o


vírus é “democrático”, que não considera dimensões sociais, econômicas, raciais, de gênero,
que infecta a todos. Porém, como é sabido, a situação foi justamente contrária, devido à
desigualdade, precariedade, racismo, homofobia e transfobia. Birman aponta para aquilo que
nunca devemos esquecer e, sobretudo, nunca deixarmos de contar: a maior parte dos
infectados e mortos, no Brasil, pertence a classes sociais precarizadas, já que as classes média
e a elite estavam mais protegidas dos ataques virais. Sendo assim, consideramos aqui, como
proposto por Mizoguchi e Passos (2020), que trata-se de uma situação pandêmica de um
duplo vírus: o da COVID-19 e também o do fascismo bolsonarista, que assassinou quase
setecentos mil brasileiros durante a pandemia, seja pela falta de dispositivos sanitários, bem
como incitação ao ódio, à violência, o descaso, a propagação de informações falsas, contra a
ciência, o aumento dos discursos evangélicos e morais, falta de políticas públicas capazes de
garantir acesso a moradia, água tratada, esgoto, renda, transporte de qualidade, a precarização
dos equipamentos de saúde, violências de gênero, ataque às comunidades indígenas através
das atividades ilegais dos garimpos e madeireiros, bem como as queimadas na Amazônia.
Política suicidária, política de morte.
58

***

Ainda nesse momento de chegada da pandemia, um dos CAPS de Niterói foi


realocado para que sua estrutura passasse por uma reforma. Luiz, que atuou ao longo de seis
anos no CAPS em questão, conta que foi uma situação peculiar, muito específica daquela
unidade. É muito velho [a estrutura] e aí uma parte do teto de uma
sala desabou, e aí uma promessa de uma reforma estrutural, no
teto, colocação de telhado na parte lateral que chovia ou
fazia sol, os usuários ficavam a mercê do tempo. Para a realização da
obra, o CAPS se mudou e passou a funcionar junto a uma policlínica, que já abrigava um
ambulatório de Saúde Mental, e aí junta isso tudo, isolamento,
fechamento da convivência, atendimentos coletivos e atividades
grupais, e o nosso deslocamento pra essa policlínica, que não
nos queria, que não houve um cuidado da prefeitura, da
coordenação de saúde mental, para nos alocar ali, então a
gente não era querido ali, a gente era muito malvistos e não
incluídos.

As condições do espaço disponibilizado eram precárias, já que havia uma sala só


para toda a equipe do CAPS. Uma sala que não tinha luz, uma
sala que tinha os arquivos/prontuários e que toda a equipe
precisava ficar, então se tivesse que fazer um atendimento
individual, mais privado, aí a gente ia pra fora, nos bancos
da policlínica ou pedir favor pra usar alguma sala de alguma
outra especialidade. Então foi um trabalho mais “capenga” do
que já era, a gente já sofria com o sucateamento.
Investimentos em infraestrutura, investimentos da prefeitura,
mesmo na saúde mental, ficou muito pior; a gente ficou
exposto, por conta da própria questão sanitária mesmo, num
lugar que a gente não era bem acolhidos, sem contar na
infraestrutura: não tinha luz na sala, a gente não tinha
bebedouro, não tinha banheiro, tinha que pedir licença, pedir
59

licença pro ambulatório de saúde mental pra usar o banheiro


deles e obviamente que quando chega o usuário em crise, ali, a
gente não tinha como cuidar; teve uma situação de um usuário
muito agitado, muito exaltado, os funcionários da limpeza da
policlínica iam lá mandar se acalmar, calar a boca, baixar a
bola; ele tava muito exaltado com a pandemia e o funcionário
entrou num embate de “igual pra igual” com ele; foi horrível,
o cara [paciente] desmaiou. Era uma situação de muito estresse e
mais os nossos próprios medos e ansiedades.

E como era possível dar conta dos atendimentos frente a uma pandemia e ao
sucateamento do dispositivo? Essa era uma enorme questão a ser enfrentada A gente não
dava… A gente tentava… A policlínica tem uma área externa boa
assim, tem umas árvores, uns bancos e mesas de cimento, então
era ali que a gente atendia, que a gente ficava esperando as
pessoas chegarem e, assim, dar conta a gente não dava, a gente
ficava apagando incêndio. Niterói tem hospital psiquiátrico,
Niterói não tem CAPS III, e como as internações no Jurujuba
aumentaram muito, o hospital convocava muito a nossa presença
lá; então a atenção básica também; e a gente ficava com muito
receio de entrar no Jurujuba, que é um hospital com péssimas
condições sanitárias de ventilação, uma aglomeração enorme de
gente ali; enfermaria de COVID dentro do Jurujuba porque as
pessoas estavam doentes ali de COVID… Criou mais tensão ainda,
dentro de uma rede que já é segmentada, onde há uma série de
atritos assim, sabe, entre o hospital. A falta de recursos financeiros
também dificultava o acompanhamento dos usuários internados, e o que patrocinava
o nosso deslocamento era uma cantina que a gente inventou ali
dentro do CAPS, onde os usuários trabalhavam com uma bolsa que
a prefeitura fornecia, e aquele dinheiro da venda de paçoca,
guaravita, era o dinheiro que a gente guardava pra nossa
passagem, deslocamento, pra ir no Jurujuba, pra fazer VDs [visitas
domiciliares], porque não tinha orçamento pro território e aí com a
pandemia, com o nosso deslocamento pra policlínica, não tinha
60

cantina então não tinha dinheiro; e o nosso salário muito


baixo, obviamente que não era da nossa competência usar o
nosso dinheiro do trabalho [salário] pra fazer o trabalho. A gente
era cobrado de estar no Jurujuba, de estar no território, mas
sem dinheiro…

A estratégia encontrada foi: se tinha que ir pro Jurujuba, eu


usaria o meu dinheiro que eu usaria pra me deslocar [de casa] pra
policlínica para ir pro Jurujuba; o dinheiro que eu usaria pra
chegar no local [de trabalho] do CAPS, que era a policlínica, eu ia
pro Jurujuba. Então a gente combinava assim entre a gente, mas
também não resolvia o problema, porque eu, por exemplo, o CAPS
era pertinho da minha casa, eu ia a pé, outras pessoas que
vinham do Rio, iam andando das barcas até a policlínica, aí
tinham que pegar outra condução pra chegar no Jurujuba, bem
mais distante. Era um toma-lá-dá-cá. Em contrapartida, e apesar dos
tensionamentos existentes entre as equipes do CAPS e do hospital psiquiátrico, Margarete nos
conta sobre algo que define como curioso, é no período da pandemia que se inicia um contato
mais direto entre os profissionais, via telefone e WhatsApp, para discussão dos casos: tem
alguma coisa que avança, isto é, passa a ser possível nessa nova configuração.

Durante a conversa, uma das psicólogas entrevistada diz: Eu tô aqui


escutando o que eu tô falando “medicação, medicação,
medicação”, porque o tratamento foi muito esse, pela via da
medicação; a palavra, a arte, ficou muito em suspenso. É isso
que eu lembro. Nesse momento que começa essa coisa do isolamento
social, o portão começa a ficar fechado, vendo/avaliando caso
a caso; teve um momento mais agudo, que foi uma época em que
parte da equipe estava contaminada e a gente se via em dias
com equipe muito reduzida, com três, quatro, técnicos. O
primeiro ano foi muito difícil. Percebe-se, então, que uma maneira de
continuar com o serviço aberto, frente ao adoecimento da equipe, seria montando escalas de
trabalho, em que pequenos grupos de profissionais revezavam os dias de trabalho da semana.
Eram muitos profissionais no dia, então precisou fazer uma
61

redução. Frente a isso, a gente muitas vezes via poucas pessoas


[colegas de trabalho], acabava trabalhando com as mesmas pessoas então
tinha alguma coisa ali que se perdeu.

Diferentes estratégias de cuidado surgiram dentro das condições e possibilidades que


se apresentavam. Havia orientação com relação ao distanciamento, a
permanência do uso de máscara porque a maioria dos usuários
tinham uma dificuldade enorme de se manter de máscara. A
dificuldade do uso de máscaras pelos usuários foi unânime nos relatos: a gente
precisou emprestar um pouco da gravidade, dizer da gravidade
que era o COVID; inclusive essas barreiras do CAPS, “olha, não
vai poder vir todos os dias”, “não vai poder vir pra
convivência”, isso também dava um lugar, emprestava um pouco
dessa lei, vamos dizer assim, essas regras, porque os
pacientes em si, não se deram muito conta disso. Os pacientes
neuróticos se deram um pouco mais de conta e aí tinha
sofrimento, perda de familiares. Mas eu acho que com os
pacientes psicóticos, era um trabalho muito grande nosso, de
poder dizer da gravidade, de poder dizer da pandemia, de poder
dizer o que era o COVID. Pela manhã, quando os usuários chegavam, era feito uma
conversa sobre a pandemia, esclarecendo dúvidas, orientando que se fizesse uma permanência
breve no serviço: era uma palavra breve ali na convivência, se tinha
que pegar medicação pegava, e aí ia embora. Era muito triste,
mas foi isso que a gente conseguiu organizar.

Quanto à alimentação oferecida nos CAPS, café da manhã,


almoço e lanche da tarde, o número de refeições que chegava
era reduzido. Faltavam quentinhas e os usuários brigavam muito
com a gente, tentávamos explicar que tinha a ver com a
pandemia que tinha reduzido e que a gente estava priorizando
as pessoas que entendíamos que tinham prioridade ali no
suporte da alimentação, e a gente indicava os lugares que
tinham por perto, como o CENTROPOP [Centro de Referência Especializado para
População em Situação de Rua]. O CAPS tinha um segundo andar e ele foi
62

completamente bloqueado, e como a entrada na unidade foi


restringida, tudo acontecia no espaço externo, a medicação
também, tudo era dispensado na área externa. Tinha que ser
feita uma logística pra manter os usuários na área externa. Só
entrava pra fazer uso de banheiro, lavagens das mãos; mas o
porteiro ficava com álcool gel, máscara e termômetro no
portão.

As pesquisadoras Laura Quadros, Claudia Cunha e Anna Uziel, em seu artigo


publicado no ano de 2020 sobre “acolhimento psicológico e afeto em tempos de pandemia”,
destacam que as políticas públicas adotadas na pandemia ficaram distanciadas de uma noção
de cuidado que consideraria seus impactos na subjetividade, nas relações, nas práticas da
psicologia, entre outros. Elas acabaram ficando, prioritariamente, centrada na não propagação
do vírus, isto é, no seu sentido epidemiológico. A leitura que as autoras fazem sobre a
centralidade do cuidado na não propagação do vírus é corroborada nesta pesquisa,
especialmente pelo fato das entrevistadas e entrevistados terem narrado uma série de
protocolos, que se tornaram rotina de trabalho, passados pela prefeitura e demais
departamentos de saúde no sentido da não proliferação do vírus, do modo correto de
higienização das mãos, higienização das salas, aferição de temperatura, noção e atenção aos
sintomas, instruções quanto ao uso de avental para visitas domiciliares etc.

Outro relato uníssono das psicólogas e dos psicólogos entrevistados foi de que o
houve aumento significativo na procura por atendimento de primeira vez no CAPS, e que essa
procura passou a não ser tanto de pessoas psicóticas, mas de
muitas pessoas que estavam com ideação suicida e casos de
tentativas de suicídio. Chegava um caso, chegava outro, mas,
de repente, numa semana eram seis casos de ideação e tentativa
de suicídio. Chegavam já medicados, muitas vezes encaminhados
do Jurujuba, porque a emergência é lá. E aí a gente conseguia
acolher, fazer o primeiro acolhimento e marcar [retorno] durante a
semana. As autoras Quadros, Cunha e Uziel nos convocam para uma reflexão frente ao
aumento de casos, nesse período, de transtorno de ansiedade, depressão, pânico e transtorno
de estresse pós-traumático:

Mas o que esperar desse momento? O que pensar de uma situação onde, de um dia
para outro, somos ameaçadas por um vírus invisível, altamente propagável, sem
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evidências de tratamento eficaz, que nos jogando na, sempre existente, condição de
afetáveis uns pelos outros na dimensão inexorável da contagiosidade da vida, altera
drasticamente a rotina de milhões de pessoas, tendo o isolamento físico como a
maior recomendação da ciência e garantia de cuidado com o outro e com o coletivo?
(2020, p. 7).

Quando a gente tem decretado lá o início da pandemia, a


gente começa a se perguntar: como a gente vai cuidar? Como a
gente vai atender?

Um aspecto muito marcante para as trabalhadoras e trabalhadores entrevistados foi em


relação à interrupção dos grupos e oficinas, centrando a atenção numa escuta individualizada
que passava a gerar, ao longo do seu fazer, uma demanda de trabalho ainda maior. Começou
a ficar muito pesado pra gente, porque aumentou o número de
atendimentos individuais, o consumo de medicamentos também
aumentou; com a interrupção dos grupos a gente ficou sem essa
estratégia que é o melhor mandato do CAPS, que é o
fortalecimento da grupalidade, da comunidade, do território. O
cuidado, aos olhos de Érica, foi prejudicado quando se percebe que houve maior procura por
medicação. Nesse momento, a equipe sente a necessidade de pensar e acionar o dispositivo de
Gestão Autônoma da Medicação (GAM), e buscam um apoiador para promover conversas
sobre a temática que, para ela, tornou-se central durante a pandemia.

Nossas aliadas (QUADROS; CUNHA; UZIEL, 2020, p. 7) vão apontar para


importância de que nós, como psicólogas, possamos inventar formas de intervenção que não
excluam os acontecimentos, “sem roteiros prévios, sem instruções engessadoras, convocando
a clínica à vida”. E é movimento inventivo de criar estratégias de cuidado que podemos
encontrar movimentos importantes no serviço. Com algumas pessoas, que tinham
o recurso do celular, a gente passa a fazer alguns
atendimentos pelo celular; mas como eu falei, muitos não têm
uma havaianas pra calçar, quem dirá um celular. Mas aí a
questão é: “e aí, a gente vai fazer do nosso telefone
pessoal?”. Algumas mães, algumas companheiras/os, passam a ter
os nossos telefones e isso passa a ter muita encrenca.
64

Outra psicóloga conta que, quem a gente conseguia falar por


telefone, a gente fazia esse movimento, não de videochamada,
mas a gente ligava, perguntava como estava, “você não vem [no
CAPS] faz um tempo, passa aqui”. A gente fazia uma busca ativa,
vamos falar assim, fazia esse movimento de tentar se aproximar
do paciente, mas tem gente que não tem esse recurso do
telefone, ou tava na rua ou não tinha organização suficiente
pra acessar um telefone, e aí às vezes estava ali por perto no
território, acionávamos família, assistência social, ou então
algum profissional do território, que já conhecia, falava “vi
fulano e não tava bem, passou por mim, tentei falar com ele
mas não quis falar comigo, não tava bem”. A gente fazia o
movimento de ir ao local em que foi avistado, tentar achar o
paciente.

Margarete diz de um movimento que, segundo ela, quem trabalhou na atenção


psicossocial vai entender, e conta que no momento em que chega o Auxílio Emergencial, para
dar entrada no benefício, ou seja, realizar o cadastro, você tinha que receber a
senha por algum telefone, e aí era uma coisa da gente
emprestar o nosso telefone pro usuário, acompanhado por outro
colega, pra pegar a senha. Depois eles perdiam o cartão [de
saque], e aí olha que maluquice: eles iam na Caixa Econômica,
gerava uma senha [no celular do técnico], eles tinham dez minutos, que
era o tempo de validade da senha, corriam no CAPS, pergunta a senha,
volta pra Caixa Econômica… Isso durou até que a gente para e
faz uma assembleia, e a gente nunca foi um CAPS de fazer
assembleia, mas neste momento a gente pensa “cara, o que é
isso?”, oferecer o nosso corpo desse jeito, estava demais.

Há uma “necessidade de ação imediata, a exigência de uma velocidade na organização


de estruturas institucionais e de recursos humanos, nunca antes pensados para o atendimento
às demandas do sofrimento psíquico” (QUADROS, CUNHA, UZIEL, 2020, p. 9) e, assim, as
reuniões semanais de equipe, onde havia supervisão e discussão dos casos, também precisou
ser alterada. Passaram a ocorrer na modalidade online, mas, ainda assim, havia uma equipe
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mínima que ficava no CAPS, que tinha que ficar, e aí assistia


a reunião online de lá. Gerava muitos transtornos, porque a
internet era fraca e aí essas pessoas tinham muita dificuldade
pra se manter na reunião. Os outros profissionais assistiam
das suas casas, ficou assim um bom tempo. Do mesmo modo, as
entrevistadas narram uma perda na qualidade da presença nas supervisões em formato online,
justamente por ser um espaço coletivo em que a equipe podia fazer trocas e
compartilhamentos, inclusive sobre suas angústias e sofrimentos. A impossibilidade de
estarmos em coletivo foi uma perda, e isso não pode ser negado. Porém é importante
situarmos que, mesmo em meio a esse modo possível que se apresentava e que, nesse sentido,
foi mediado pelo espaço virtual da internet, o cuidado ainda assim encontrava brechas no
meio do caos, e a gente construiu um grupo com a gente mesmo pra
falar disso, dos nossos medos, nossas angústias da pandemia.
Então no final do turno, com as miniequipes do dia, a gente
fazia o grupo terapêutico para falar da dureza desse período,
pra falar um pouco como tava sendo pra cada um esse período.
Alguns profissionais ficaram muito preocupados, moravam com
pessoas idosas, tinham filhos, ou tinham muito medo de pegar a
doença e morrer. A gente instituiu um grupo de saúde do
trabalhador no CAPS. Foi bem potente e cuidadoso entre nós.

Quanto aos processos de formação de aconteciam no período, como estágios de


graduação e residência, os residentes tinham muita mudança com relação
a permanência no CAPS, mas os estágios de graduação não podiam
ficar no CAPS, então eles ficavam só online. Érica, que era preceptora
dos estágios em psicologia, buscou criar estratégias para estar com os estagiários de modo que
eles ainda assim, na distância, pudessem participar do CAPS, e foi um desafio
construir um estágio remoto num CAPS, perder a vivência do
CAPS, que é o mais interessante, pra ficar só nas reuniões.
Então a gente passou a fazer muitas reuniões intersetoriais
online, todos os tipos de reunião eram online. Em situações em
que havia demanda e que o usuário tinha telefone, os
estagiários faziam contato pra saber como que tava, pra fazer
um monitoramento, mas eram usuários bem específicos.
66

Nesse período, houve a migração do grupo de família, que era um grupo presencial de
acolhimento aos familiares dos usuários, para o formato online. Era um grupo difícil de
acontecer por estar sempre esvaziado e que, no novo formato, teve grande adesão, teve
uma dinâmica que fortaleceu muito esse grupo, tanto que ele
permaneceu online até depois que a gente pode voltar com
alguns grupos, mas ainda com número reduzido. Pensamos que o
grupo poderia continuar online porque teve uma adesão absurda,
foi uma surpresa pra gente.

Esse momento narrado pelas psicólogas e psicólogos entrevistados compreende o


período de março de 2020, momento em que há um crescimento no número dos casos de
COVID-19 que começam a chegar no Brasil, fazendo-se necessária a implementação de
medidas de distanciamento e isolamento social, até 2021, ano em que se inicia a vacinação e
que programas de flexibilização começam a ser implementados. É a partir desse período da
flexibilização que apresentaremos o terceiro tempo.
67

6 TERCEIRO TEMPO: A VACINAÇÃO

Assim como o vírus da COVID-19, ninguém é imune ao vírus do fascismo, e, nesse


sentido, a vacinação pressupõe, em um outro sentido, um remanejamento da relação que
nosso corpo estabelece com o vírus. Ela possibilita muito mais do que uma imunização em
que o vírus não mais entrará em contato com nossos corpos, em que estaremos todos
protegidos e afastados de sua nocividade, separados por uma pseudo barreira de proteção, mas
a vacina enquanto aquela que possibilita uma dobra dessa força de contágio, apostando que,
mesmo que “[...] não há dúvida de que, por mais que o Estado suicidário não cesse de querer
nos puxar com ele para o fundo do abismo, amanhã vai ser outro dia” (MIZOGUCHI;
PASSOS, 2020, p. 90).

* * *

Finalmente chega a vacina! Era março de 2021 quando os profissionais estavam sendo
vacinados. A gente se sentiu muito privilegiado, fomos vacinados
no primeiro grupo. Eu lembro de pessoas da minha família
dizerem “caramba, você já está vacinada”. As pessoas [população
geral] se vacinaram lá pra final do ano. Eu lembro que foi um
privilégio, e a gente até teve essa discussão lá no CAPS. Um
médico disse que isso não era privilégio, que era direito
nosso e eu falei que sim, mas que em comparação à população,
comparado a outros grupos, a gente foi vacinado com muita
antecedência.

Com o avanço do cronograma de vacinação para a população geral, de acordo com a


faixa etária, as medidas de isolamento puderam, muito aos poucos, ser flexibilizadas. Quando
chega a primeira dose da vacina, começa-se a pensar no retorno de algumas atividades do
CAPS que estavam suspensas, como grupos, oficinas, visitas domiciliares, entre outros,
porém, sem abrir mão dos cuidados referentes ao uso de máscaras, aferição da temperatura
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corporal, e higienização de mãos com o uso frequente de álcool. Tiveram alguns


pacientes que a gente precisou acompanhar tanto para testagens
quanto a vacinação, muitos não iam se vacinar quando abriu,
então a gente acompanhava. Tinham outros que a gente podia
dizer “vai ali na policlínica”, e eles iam. Começa a voltar
com as atividades um pouco, voltamos a fazer alguns movimentos
no território, atendimentos nas salas no CAPS. As oficinas
foram voltando com o tempo, a gente precisou reformular. Uma
oficina de música, por exemplo, que eu coordenava, a gente
passava álcool quando trocava os instrumentos entre os
usuários.

O que há de marcante no meio disso tudo é que havia um edital de concurso, que foi
suspenso devido a pandemia, e só se concretizou no final do ano de 2021. O concurso era da
Fundação Estatal de Saúde de Niterói (FeSaúde), que passa a gerir e administrar os
equipamentos da RAPS no município. Sempre foi falado pra gente que isso
aconteceria em algum momento, mas nunca foi deixado às claras
como seria esse concurso. Falavam pra gente que precisávamos
ser classificados, “passem, vocês precisam ser classificados,
depois a gente vê o que faz”. Vinham umas falas da coordenação
de que não era para nos desesperarmos porque ele [coordenador]
tinha esperança de que todo mundo ia ficar. Quando sai o
resultado geral foi um impacto, pois de toda a equipe do nosso
CAPS, só dois profissionais passaram. Eu passei, mas muito
longe. A partir da listagem do resultado geral, no final de
2021, as pessoas começam a pensar seus períodos de permanência
no serviço. Isso começou a gerar muitos conflitos entre nós,
começamos a brigar, o ambiente foi ficando tenso, isso tudo
com a demanda de trabalho aumentando, porque na pandemia houve
a diminuição da frequência, mas depois, com a vacinação, tudo
começou a voltar e veio uma avalanche de procura por
atendimento. Uso de drogas, ansiedade, quadros de depressão.
Começamos a trabalhar muito, a equipe começou a reduzir.
69

Um dos CAPS do município foi o piloto na implementação da nova gestão. Nessa


época, a nossa reunião de equipe nas quartas-feiras voltou a
ser presencial, e a nova gestão ia nas reuniões passar novos
protocolos, a ficha de anamnese dos acolhimentos estava com
outra proposta, bem como a ficha do PTS [Projeto Terapêutico Singular].
Começamos a trabalhar para a FeSaúde, e pensando no registro
de prontuário, formou-se um grupo de trabalho para pensar a
elaboração da ficha. A “transição” foi isso: adaptação de
fichas, novos protocolos de funcionamento; nesse tempo, também
mudaram radicalmente os ambientes do CAPS, das salas,
desmontaram o que estava montado. Nas outras unidades, embora não houvesse
uma figura representante tão direta como no CAPS piloto, os novos documentos e protocolos
chegavam através da coordenação; esta já contratada e subordinada à nova gerência. Eu fui
a primeira a dizer “vou sair”. Depois do resultado do
concurso, decidi não aguardar a finalização do contrato com a
Fundação Municipal de Saúde. Era sempre dito do plano de
transição, mas na prática não víamos isso acontecer. Faltou a
gestão dar uma resposta aos trabalhadores. Eu não entendi por
que ficava nessa suspensão, fico com a hipótese de que tinham
medo da gente evadir total, então ficavam cozinhando a gente.
Poderiam ter criado alguma dinâmica, um processo de
desligamento.

Numa das reuniões de abertura, de início de turno, os trabalhadores decidem que


começariam a conversar com os usuários sobre a saída, visto que os usuários percebiam e
sentiam a insegurança dos profissionais. Falávamos para os usuários que isso tudo estava
acontecendo para que se pudesse haver uma melhoria na rede, que estava sendo dito da
possibilidade de mudança do CAPS para CAPS III. A gente falava que a nova
equipe do CAPS ia ser contratada, que iam ter profissionais
que nunca tiveram aqui, a gente vendeu uma melhora. E aí eu
lembro de usuários dizendo “Dra., fica tranquila, você vai
arrumar outro emprego”, preocupados também com a situação de
trabalho.
70

* * *

O dia de trabalho nas quartas-feiras era diferente dos outros dias da semana. Nas
quartas-feiras, tínhamos a reunião de equipe e supervisão clínica de alguns casos mais
complexos, onde pensávamos, conjuntamente, direções de intervenção. Num desses encontros
em que se aproximava cada vez mais o dia trinta e um de março - dia em que a equipe iria se
desligar do serviço -, as ansiedades, angústias, incertezas que povoavam o cotidiano estavam
mais afloradas, tanto para os técnicos, estagiárias e coordenação, quanto para usuários e
familiares que nos questionavam, diariamente, se sairíamos mesmo do serviço, tendo
dificuldade para entender como seria possível um estranho exercer o cuidado e não mais o
profissional de referência.

O trabalho era de acolher e confortar nesse processo de mudanças que estava


acontecendo. Acolher e confortar os usuários. Acolher a nós mesmos, num movimento de
compreender que novos vínculos seriam construídos, que o trabalho continuaria sendo feito.
Era o que paradoxalmente pensávamos e que, de um modo ou de outro, dizíamos: o trabalho
continuará, mas o trabalho não continuará. Confortar a nós mesmos frente a instabilidade,
inclusive, financeira, que começava a se apresentar. “Trabalho nesse CAPS a nove anos. Moro
de aluguel com meu filho. E tenho que conviver com a possibilidade de, no próximo mês,
estar na rua, sair de mãos abanando, sem nenhum direito. Estou desesperada”, disse uma
profissional da equipe numa das tantas reuniões em que o assunto da incerteza quanto ao
futuro do trabalho vinha à tona, na tentativa de forçar a coordenação a dar uma resposta ou, se
não tivesse, de buscar uma resposta junto a nova gestão de saúde.

Resposta. Era uma única resposta que se queria. Vamos ficar ou vamos embora? Frente
a palavras e ações que despertavam a esperança de que alguns poderiam permanecer, frente a
palavras e ações que, noutro momento, desesperançavam. O que afetivamente parecia operar
ali era um jogo. Um jogo em que, na medida que a gestão de saúde dava esperanças, a equipe
ficava empolgada. Era a possibilidade de permanecer. Mas, na mesma proporção, ela também
desesperançava. Alguns não suportaram tamanho descaso, silenciamento, falta de respostas e
foram buscando outros trabalhos. Era melhor se garantir em alguma coisa do que, mais dia
menos dia, em coisa nenhuma. E essa operatória parecia funcionar bem, já que alguns ficavam
e sustentavam o trabalho.
71

Penso que também havia, do lado de lá, uma angústia quanto ao modo de operar essa
passagem e até uma fantasia de que se os trabalhadores soubessem que a saída de todos se
concretizaria, poderiam abandonar o trabalho e o equipamento ter que fechar as portas.
Mesmo no caos de trabalhar numa equipe defasada em que muitos profissionais já haviam
saído e que outros estavam saindo, na maioria das vezes, mesmo nessa escassez de matéria
humana, mesmo com o cansaço pesando sob os ombros, todos os pacientes eram atendidos,
todas as demandas eram acolhidas. Volta e meia precisava-se pedir para que um acolhimento
retornasse no outro dia, simplesmente porque não deu tempo, faltavam horas no dia para
tantas demandas. Havia um desdobramento gigantesco para que o trabalho fosse feito. Havia
algo ali, de cada um, que queria garantir alguma coisa.

Pude vivenciar esse momento porque contratada em regime temporário, após a saída
uma psicóloga. Disseram-me, antes mesmo de eu começar, exatamente a data de minha
dispensa. Eu também tive esperanças que o contrato pudesse ser renovado. Acompanhando de
perto todo esse processo, me parecia que o que se buscava garantir era uma continuidade do
trabalho. Depois, já no último mês, já tendo entendido que não, não havia possibilidade
alguma da continuidade do contrato, os profissionais passam a interrogar a coordenação sobre
a chegada da nova equipe, pois havia uma preocupação em fazer a passagem: de equipe, dos
casos, do cuidado, das minucias dos casos mais complexos. Uma passagem também da
identidade de um CAPS muito conhecido pela luta antimanicomial, por ocupar um lugar de
resistência, de questionamentos, enfrentamentos, que carregava a potência de um olhar
político que se juntava para escrever cartas-manifesto frente a acontecimentos na saúde
mental do município.

Não esqueço que, quando da minha entrada no serviço, os colegas logo trataram de me
alertar: não faça nada daquilo que te mandem se você não acreditar no que está fazendo,
profissionalmente, politicamente e eticamente. E vou ser honesta com você, leitora/o, e
comigo mesma: escrevi, até aqui, com um nó na garganta, até que, finalmente, abriu-se
passagem para as lágrimas. Me emociono por lembrar de cada pormenor vivido e
compartilhado durante os quatro meses que fui psicóloga nesse CAPS. Por lembrar de uma
equipe ativa, engajada e que, por nenhum minuto se quer, deixou de pensar no cuidado e de
sustentar o cuidado. Cuidado com os usuários, cuidado uns com os outros.

Foi só na última semana que a nova equipe chegou e, parando para lembrar, foi uma
semana em que tentávamos, em qualquer brecha do dia, transmitir alguma coisa. Em meio a
rotina caótica da última semana em que se apresentava um lugar lotado de profissionais,
72

cenário muito diferente do que estávamos vendo e vivendo nos últimos meses, em qualquer
esbarrada eram feitas tentativas de passagem, de transmissão. Semeadura da memória.
Esbarrou no corredor? Joga algumas sementes, no almoço outra, na convivência outra, na
reunião de equipe outras... Sempre que era possível, algo em nós era mobilizado para
transmitir, para que as sementes do testemunho, mesmo que na pressa do plantio e sem muita
rega no cultivo, pudessem, pelo menos algumas delas, germinar.

Voltando um pouco, na ocasião de uma reunião de equipe, já no último mês de


trabalho e já com a certeza da saída, mas quando os novos profissionais ainda não haviam
chego, falávamos sobre a criação de oficinas, já que as existentes, frente a esse momento
vivido de uma pandemia e de toda essa instabilidade na equipe, estavam enfraquecidas. O
espaço para criar-inventar estava aberto. Uma estagiária de psicologia, silenciosa nas reuniões
mas observadora, atenta e ativa em suas colocações, sugere: “os usuários estão apresentando
dificuldades para entender que suas referências estão saindo do serviço, os familiares estão
demonstrando preocupação e até falando de ir na prefeitura, por outro lado, parece que o que
foi dito [por parte da coordenação e da gestão] é de que está sendo trabalhado para fazer uma
transição das equipes, mas ainda não chamaram a nova equipe. Então, pensei numa oficina em
que trabalhássemos com as fotografias para registrar a memória e contar a história do CAPS
como modo de fortalecer o que foi feito até aqui, de lembrar”. A estagiária, muito conectada
com aquilo que acontecia, captou que o problema que se apresentava, sobretudo, era um
problema de transmissão da memória. Não poder contar a história, não poder transmitir aquilo
que se experienciou. É esse o trauma de que fala Walter Benjamin.

Diferente de estar situado na vivência particular, individual de um sujeito, como já


situamos anteriormente na construção metodológica do texto, entendemos o trauma, a partir
das considerações de Benjamin e Gagnebin, como sendo aquilo que se encontra na dimensão
social, histórica, política e econômica e, nesse sentido, para além de considerar a pandemia
em si como um fator desencadeante de um trauma, concebemos o modo como os dispositivos
de saúde mental se configuraram antes, durante e depois da pandemia, em que a experiência,
as memórias de todos esses acontecimentos e as reconfigurações que foram se dando no
cuidado, foram politicamente impedidos de ser transmitidos. Isso acontece em decorrência de
que os trabalhadores que atuavam no serviço, e que experienciaram o período, perderam seus
empregos e, quando da chegada de novos trabalhadores, a experiência não pode ser
transmitida, devido ao modo como a transição foi politicamente planejada.
73

As dificuldades, a reorganização, os medos e alívios, as boas e também as más notícias


e, mais do que elas, as estratégias de intervenção e invenção não puderam ser transmitidas.
Aqui se apresenta o trauma como a impossibilidade de contar essas histórias, de narrar essas
memórias. Quem chega não carrega consigo uma bagagem da construção histórica da relação
das antigas profissionais com o CAPS. Quem chega fica mais pobre de experiência. Assim,
apontamos para um movimento que é político; há uma função que é política no ato de
impossibilitar a transmissão da memória e do testemunho. É evidente que isso se dá em
decorrência do acontecimento da pandemia, porém, não por causa dela, e, incontestavelmente,
em decorrência do período político de nossa história recente, marcado pelo neoliberalismo e
também pelo fascismo.

Nesse momento de nossa história em que essa pesquisa se debruça, é notório que há
um investimento de desejo, e por isso mesmo, uma política de desejo de destruição total,
inclusive da memória. A memória me foi em partes transmitida no contato com as
profissionais antigas, mas eu não as pude transmitir. Elas não puderam transmitir. Fizemos
parte da equipe de transição e não da transmissão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A chegada da pandemia no Brasil no ano de 2020 força uma série de alterações nos
modos de vida. A implementação de medidas de isolamento social reconfigura o modo como
nos relacionamos com o mundo, já que estar em coletivo se tornou uma ameaça contra a vida.
Reconfigurou também essa pesquisa, que emergiu sob o ruir de um projeto pensado
(DELIGNY, 2018) que pretendia, num CAPS, trabalhar com oficinas de arte, através de
pintura em telas, e de narrativas, com máquinas de escrever. Visto que os serviços estavam em
funcionamento reduzido, isto é, atendendo em caráter ambulatorial, os espaços de
convivência, grupos e oficinas foi suspenso, o que fez com que houvesse a impossibilidade de
abertura desse campo pensado, planejado a priori. Um processo de reinvenção do campo e da
pesquisa foi se montando.

Nesse processo, pensamos metodologicamente a construção do texto que aqui se


apresentou, e foi a partir do encontro com algumas autoras/pesquisadoras que consideramos
aliadas dessa pesquisa, entre elas Luciana Franco e Svetlana Aleksiévitch, que se pode pensar
uma política de escrita e, portanto, de narratividade, que desse conta de fazer, textualmente,
com que as vozes do testemunho figurassem como coescritoras. O texto, que se montou a
partir de três tempos, teve o objetivo de acompanhar os processos e narrar as memórias. O
primeiro tempo, o período que compreende as memórias do CAPS antes da pandemia; o
segundo, o período em que surge o coronavírus, mas, também, aquele em que ficou cada vez
mais evidente a circulação de um outro tipo de vírus, o do fascismo; o terceiro e último
tempo, que teve por pretensão acompanhar o período em que é iniciada a vacinação contra a
COVID-19.

O acompanhamento terapêutico aparece no texto quando, no primeiro tempo, uma das


entrevistadas narra sua experiência no território com um usuário do CAPS. Nas saídas, a
psicóloga contou que ela “emprestava sua presença”, porém num movimento de “recuo
ativo”, nos mostrando o paradoxal movimento de uma passividade ativa, que vai possibilitar
que o sujeito possa emergir e a diferença acontecer. Embora a passagem pelo
acompanhamento terapêutico tenha ficado menor em nossa discussão, uma vez que demos
centralidade à memória e à transmissão da experiência, para nós ele ocupa um importante
lugar no que se refere a uma aposta política e um gesto clínico no cuidado em saúde mental.
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Assim, por mais que houve a abertura das medidas de distanciamento e isolamento social, por
mais que uma outra abertura também tenha acontecido com a derrota de Bolsonaro nas urnas,
e por mais que os CAPS tenham retomado suas atividades, há uma aposta no
acompanhamento terapêutico precisamente pelo seu movimento ininterrupto de abertura para
o fora, para o acontecimento. Movimento potente de tensionamento sempre para o fora do
fora, isto é, de tensão dos próprios movimentos que podem tomar um caminho de
enrijecimento no fazer cotidiano em saúde mental.

O leitor deve ter reparado, ao longo da leitura, que os capítulos que compreenderam o
primeiro e o terceiro tempos apresentam uma memória reduzida em comparação com o
segundo tempo, e talvez tenha pensado que faltou alguma discussão, que faltou preencher
alguma lacuna. Esclarecemos que este foi o próprio sentimento que acompanhou a construção
desses tempos. No primeiro, onde as psicólogas e psicólogos eram chamados a olhar para o
trabalho que vinha sendo feito pelo CAPS antes da pandemia, apresentou-se uma certa
dificuldade: elas iniciavam narrando uma breve memória e, rapidamente, saltavam, quase que
como num movimento de serem arrastadas para falar sobre o período mais agudo da
pandemia. É como se o primeiro tempo fosse um precipício em que as próprias entrevistadas
se lançavam no abismo da pandemia.

Parece que o efeito pandêmico provocou a concentração das energias no próprio


acontecimento, de modo que tudo que foi experienciado antes do evento, precisou ficar quase
que em suspenso, dando passagem para que se falasse muito mais do período da pandemia,
sobre a pandemia e sobre como se passou pela pandemia. Tal “lacuna” também aconteceu no
terceiro tempo. Nele, a discussão fica concentrada em como foi o processo de encerramento
dos contratos seletivos simplificados, modelo vigente na rede do município de Niterói desde o
ano de 2014, do que nas possibilidades de retomada do trabalho a partir do evento da tão
esperada vacinação. Isso porque, quando da flexibilização das medidas de distanciamento
social, as trabalhadoras e trabalhadores entrevistados que experienciaram o período
pandêmico, perderam seus empregos e foram impossibilitadas de transmitir a memória, seu
testemunho da história, para a equipe que chegava.

Retomando Walter Benjamin, afirmamos que não existe uma verdade daquilo que
aconteceu nos CAPS durante a pandemia de COVID-19. Esse trabalho não teve como
objetivo se debruçar numa busca pela verdade pura e totalizante. O campo é, sobretudo, feito
de entrelaçamentos e o que está em jogo são os movimentos e as paralisias que surgiram e que
o compõe; esses sim, nos interessamos em transmitir. Assim, a dimensão que esse texto
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alcança é o de dar passagem para que essas narrativas ganhem espaço e semeiem o mundo.
Entendemos que o esforço dessa pesquisa consegue permitir, mesmo que como um relampejo,
que as experiências possam ter um lugar, lugar de transmissão do testemunho.

Agradeço por poder relembrar dos momentos cheios de


intensidades, muito legal, muito obrigada por poder conversar.

Fui falando e lembrando sobre esse período.

Eu quero agradecer pela oportunidade e dizer que isso me


ajudou a pensar, com as perguntas, com a conversa fluindo.

Estou super feliz porque fiz várias elaborações aqui


conversando com você, desse processo, rememorar e elaborar ao
mesmo tempo. Nossa, muito importante! Muita luta e eu
amadureci nesse processo profissional de invenção.
77

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ANEXOS

ANEXO I

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


(TCLE)

Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário(a), da pesquisa intitulada


Mapeando as redes de Saúde Mental na pandemia de COVID-19, conduzida pela
pesquisadora responsável Bruna Tibolla Mohr. Este estudo tem por objetivo analisar as
transformações ocorridas no campo da saúde mental, especialmente no Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), no contexto da pandemia de COVID-19 a partir de relatos de
profissionais psicólogos que atuam e/ou que atuaram em CAPS antes e durante a pandemia de
COVID-19, ou seja, que estiveram, de alguma forma, inseridos na rede de saúde mental. A
pesquisa se inscreve a partir de entrevistas abertas, online via aplicativo de
reunião/conferência, com a participação e coordenação da mestranda em Psicologia Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Bruna Tibolla Mohr.

Você está sendo convidado para participar desta pesquisa, que tem sua temática
voltada a Saúde Mental e o atual contexto da pandemia de COVID-19. Sua participação não é
obrigatória. A qualquer momento, você poderá desistir de participar e retirar seu
consentimento. Sua recusa, desistência ou retirada de consentimento não acarretará prejuízo.

Não há previsibilidade de riscos físicos ao participar da pesquisa, contudo pode haver


certo desconforto, cansaço ou constrangimento quando da abordagem de alguma temática que
possa acionar uma memória desagradável, ou quando da exposição de informações, ideias e
opiniões. Nesse caso, o participante tem assegurado o direito de resguardar as informações
que não desejar compartilhar com a pesquisadora. Todas as informações serão tratadas em
absoluto sigilo. Além disso, os resultados que forem apresentados em congressos ou em
artigos científicos serão tratados com sigilo quanto ao nome do participante. Faz-se necessário
destacar que o ambiente virtual/eletrônico possui limitações tecnológicas e que, portanto, não
é possível assegurar total confidencialidade, uma vez que há potencial risco de violação.

É importante salientar que os(as) participantes que apresentarem possíveis transtornos


decorrentes da participação na pesquisa poderão ser encaminhados a atendimento gratuito no
81

Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A


participação no projeto de pesquisa é isenta de despesas e não haverá pagamento ou qualquer
tipo de compensação financeira pela participação.

Assim, o benefício da participação diz respeito a própria interlocução sobre a


experiência no campo da saúde mental diante do cenário da pandemia da COVID-19,
podendo, assim, dialogar e pensar aspectos da vivência com o serviço, com o território, com
as políticas públicas e contribuir para a potencialização das práticas de atuação nas Políticas
Públicas de Saúde Mental.

Sua participação nesta pesquisa consistirá em dialogar com a pesquisadora sobre a sua
experiência/vivência no campo da saúde mental frente ao cenário da pandemia da COVID-19
a partir de entrevista aberta, online via aplicativo de reunião/conferência, com duração de, no
máximo, 1h30m (uma hora e trinta minutos). Os dados obtidos por meio desta pesquisa serão
confidenciais e não serão divulgados em nível individual, visando assegurar o sigilo de sua
participação.

A entrevista será gravada em áudio/voz para posterior transcrição. Você precisa


concordar com esse procedimento. Para minimizar os efeitos de insegurança quanto a
violação da confidencialidade que o ambiente virtual nos expõe, garante-se que, após a
entrevista, a gravação e todos os dados obtidos serão armazenados em um dispositivo
eletrônico local (HD Externo ou pendrive) de propriedade, uso e posse exclusivo da
pesquisadora responsável. Não deixando, portanto, informações do participante, bem como
seus dados, salvos em qualquer plataforma virtual, ambiente compartilhado ou “nuvem”. O
pesquisador responsável se compromete a tornar público nos meios acadêmicos e científicos
os resultados obtidos de forma consolidada sem qualquer identificação de indivíduos
participantes.

Declaramos, ainda, que esta pesquisa está de acordo com a Resolução Nº 466, de 12
de dezembro de 2012, a qual contém as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas
envolvendo Seres Humanos, em substituição da Resolução 196/96, bem como com a
Resolução 510/16, a qual refere-se às Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e
Sociais envolvendo seres humanos.

Caso você concorde em participar desta pesquisa, assine ao final deste documento, que
possui duas vias, sendo uma delas sua, e a outra, do pesquisador responsável/coordenador da
82

pesquisa. Não sendo possível a coleta física da assinatura do participante, o pesquisador


compromete-se em enviar o TCLE via e-mail para leitura prévia do participante e, assim, se
concordado, na data da entrevista, antes de qualquer compartilhamento de informações,
solicitará permissão para gravação e, concordado, a pesquisadora fará a leitura minuciosa do
TCLE junto ao participante, respondendo claramente e objetivamente as dúvidas que possam
surgir e, então, coletará o assentimento de participação na pesquisa a partir da gravação em
áudio/voz.
Seguem os telefones e o endereço institucional do pesquisador responsável e do
Comitê de Ética em Pesquisa – CEP, onde você poderá tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua
participação nele, agora ou a qualquer momento.

Contatos do pesquisador responsável: Bruna Tibolla Mohr, mestranda do Programa de


Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Email: bruna.tmohr@gmail.com. Telefone: (49) 98890-8778.

Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com o pesquisador responsável,


comunique o fato à Comissão de Ética em Pesquisa da UERJ: Rua São Francisco Xavier, 524,
sala 3018, bloco E, 3º andar, - Maracanã - Rio de Janeiro, RJ, e-mail: etica@uerj.br -
Telefone: (021) 2334-2180. O CEP/COEP é responsável por garantir a proteção dos
participantes de pesquisa e funciona às segundas, quartas e sextas-feiras, de 10h às 12h e 14h
às 16h.

Desde já agradecemos a sua colaboração!

Acredito estar suficientemente esclarecida/o do estudo acima descrito, cujas informações


foram lidas para mim. Recebi uma cópia deste termo de consentimento livre e esclarecido e
me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as minhas dúvidas. Estão explícitos os
propósitos da pesquisa, os procedimentos a serem realizados, assim como as garantias de
sigilo e esclarecimento permanentes. Estou ciente de que, em qualquer momento poderei
solicitar novas informações e/ou retirar o meu consentimento.

Eu, ____________________________________________________, fui esclarecida/o


sobre a Pesquisa Mapeando as redes de Saúde Mental na pandemia de COVID-19, aceito
participar da mesma, bem como estou ciente da gravação da entrevista em áudio/voz, desde
que respeitadas as condições acima referidas. Declaro meu consentimento através da minha
83

assinatura, se estiver dentro de minhas possibilidades visuais, ou por expressão oral através de
gravação, conforme o art. 5o da Resolução 510 de 2016.

Nome legível:___________________________________________________________

Data de Nascimento:__/__/____ | RG:________________ | Telefone: (___)


__________________.

Endereço:___________________________________________________________________
_________________________________________________________________.

___________________________, _____ de __________________ de __________.


local data

________________________________________

Assinatura do(a) participante

________________________________________

Assinatura do(a) pesquisador(a)

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