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Rio de Janeiro – RJ
2023
BRUNA TIBOLLA MOHR
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________
Professor Dr. Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
___________________________________________________________
Professora Drª. Laura Cristina de Toledo Quadros
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
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Drª. Eliane Caldas do Nascimento Oliveira
Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ – RJ
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Drª. Irme Salete Bonamigo
Conselho Regional de Psicologia-12ª Região – CRP-SC
AGRADECIMENTOS
Ao meu companheiro de todas as horas, meu amor, Lucas. A tua parceria fez com que essa
travessia fosse possível. Compartilhar a vida com você é uma alegria! Muito obrigada!
À minha mãe, Maria Iza, e ao meu pai, Dari Jaime, pelo suporte não só nesse período, mas em
toda minha vida. Muito obrigada pelo incentivo que, mesmo na dificuldade, tornou possível o
mestrado no Rio de Janeiro.
À minha irmã, Flávia, por se fazer presente mesmo na distância física; e minha sobrinha
Isabela, linda, com quem aprendi a brincar por vídeo chamada. É possível reinventar.
Aos meus sogros, Clariane e Hedo, pelo cuidado e carinho de sempre. Vocês são
maravilhosos!
À professora Irme, pessoa incrível com quem tenho a alegria de compartilhar minha trajetória
acadêmica e profissional.
À Eliane Caldas, pelo aceite em fazer parte deste momento, pela parceria, leitura e
apontamentos.
À todos aqueles que passaram e que, de alguma forma, marcaram este processo.
Muito obrigada!
RESUMO
Due to the arrival of the SARS-CoV-2 virus, which causes COVID-19, in Brazil in 2020, and
the decree of social isolation due to the increase in the number of cases of the disease,
strategies to reduce contagion by the virus needed be implemented, and mental health care in
the Psychosocial Care Network needed to be reconfigured. In view of the pandemic scenario,
the objective of this work is to share perceptions of a period in which the researcher worked at
a Psychosocial Care Center (CAPS) in Niterói-RJ city, as well as of her meeting, through
interviews, with five professionals of psychology who also worked in CAPS in the same city.
The research was built from fragments, that is, historical rescues, memories and experience
narratives that integrate the body of the text. In this sense, based on the experience of the
researcher, the interviewees, and a political and methodological commitment to writing, in
which the text has different spelling styles to point out its various modulations and
compositions, we will share the effects of work experiences and the modulations of care
offered to service users in this period and which is arranged in three stages: memories of work
at CAPS before the pandemic, the arrival of the pandemic, and the opening phase, that is, with
vaccination.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 7
2 METODOLOGIA .............................................................................................11
2.1 MEMÓRIA ORAL ............................................................................................ 14
2.2 TRAUMA E TRANSMISSÃO DA EXPERIÊNCIA .......................................... 16
2.3 CARTA A UMA QUERIDA PROFESSORA ..................................................... 18
2.4 O CAMPO ......................................................................................................... 22
2.5 AS ENTREVISTADAS ..................................................................................... 23
3 RESGATAR MEMÓRIAS, NARRAR HISTÓRIAS ..................................... 28
4 PRIMEIRO TEMPO: MEMÓRIAS DO TRABALHO NO CAPS ANTES DA
PANDEMIA ....................................................................................................................... 42
5 SEGUNDO TEMPO: FASCISMOVÍRUS E CORONAVÍRUS - UMA
CONTEXTUALIZAÇÃO PANDÊMICA ......................................................................... 48
5.1 A CHEGADA DA PANDEMIA: MEMÓRIAS E MODULAÇÕES NO
COTIDIANO DO SERVIÇO ............................................................................................... 55
6 TERCEIRO TEMPO: A VACINAÇÃO .......................................................... 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 77
ANEXOS .......................................................................................................... 80
7
1 INTRODUÇÃO
Acordar cedo para partir rumo à UERJ requer disposição, pois o percurso é bastante
agitado. Caminhar um trecho a pé, pegar a barca na estação Araribóia, saltar na Praça XV e
percorrer mais um trecho no centro da cidade rumo à estação da Carioca, de lá, só
desembarcar no Maracanã. O percurso inclui fluxos intensos. Pessoas correndo, se
esbarrando, desviando da margem invisibilizada que compõe as calçadas. Pessoas indo,
pessoas voltando. Fluxos de carros, ônibus e motos seguindo o ritmo estabelecido pelos
semáforos enquanto emitem os sons agudos e incessantes de suas buzinas. Entre um veículo e
outro, as pessoas correm, aproveitando brechas para atravessar a rua. Vendedores ambulantes
por todos os lados. Fluxos de cores, de temperaturas, de cheiros, de sensações. Fluxos de
palavras cortando e sendo cortadas pelo barulho dos motores, dos freios dos veículos e
também das sirenes da polícia. As bicicletas invadindo as calçadas. Fico atenta às buzinas.
Cuido para não ser atropelada. Uma infinidade de ritmos no traçado de infinitos trajetos, a
paisagem do percurso de casa até a Universidade carrega a intensidade da cidade do Rio de
Janeiro: tudo acontece a mais de mil quilômetros por hora.
***
O ano vira e chegam notícias por todos os lados sobre uma tal “pneumonia
desconhecida”. A ameaça de uma epidemia mundial aumenta a cada dia ganha cada vez mais
força nos noticiários. Fala-se em repatriação de brasileiros no exterior, de casos suspeitos no
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Brasil – todos descartados até a confirmação, em vinte e seis de fevereiro de dois mil e vinte,
do então denominado “coronavírus”. A partir de então, as confirmações de novos casos vão
sendo cada vez mais frequentes. Além dos casos confirmados, há um crescente número
aguardando por testagens. Máscaras de proteção individual, álcool gel e luvas já eram itens
difíceis de encontrar. Mais casos suspeitos. Mais casos confirmados. Aulas canceladas por
quinze dias. E depois mais quinze. E depois não eram só as Universidades e as escolas. Eram
mais. E mais. O prédio em que eu morava, já não sentia nem o barulho estridente dos motores
e nem o chacoalhar que o peso dos carros e ônibus provocavam sempre no clarear do dia. O
silêncio da cidade era gigante.
Esse lugar, na web, online, configurou-se de tal maneira que passou a ser possível, sob
as condições pandêmicas, estabelecer novas redes. Esse lugar foi, nesse sentido, uma
configuração específica da rede, composta por um conjunto de componentes que se
relacionavam e produziam determinados efeitos de rede. Rede de internet com seus cabos e
fios percorrendo as estruturas, dos prédios, das casas, até chegar no roteador que distribui
sinal e conexão para o celular e computador; o microfone, a câmera, o fone de ouvido; as
redes sociais e as inúmeras postagens e compartilhamentos, os textos científicos, os vídeos; o
distanciamento social, as reuniões, as aulas e encontros (e a expressão corriqueira: síncrono
ou assíncrono) mediados por esse aparato tecnológico, os noticiários, o cenário político...
Quando as mortes começam a barulhar cada vez mais nos noticiários, os espaços
coletivos da web, que nos possibilitavam encontrar um pouco de amparo, foram ficando cada
vez menores para trocas. Foi ficando difícil falar sobre o que estávamos vivendo e o assunto
foi perdendo espaço, perdendo força; o medo nos fez ficar cada vez mais em silêncio, mas não
porque não queríamos falar, evitávamos porque entendíamos que a pandemia era inegável e
incontornável.
A tecedura dessa nova rede de pesquisa, que foi se montando a partir da configuração
da realidade pandêmica, passa a interpelar, redirecionar e redimensionar a construção do
problema de pesquisa da seguinte maneira: quais foram as modulações das formas de
cuidado produzidas pelo trabalho dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) com a
chegada do coronavírus? E, a partir do testemunho dos profissionais que trabalharam
no equipamento de saúde mental nesse período, que experiências são possíveis de serem
narradas no presente?
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O trabalho que segue tem sua narrativa desdobrada em três tempos. O primeiro tempo,
que compreende a percepção das psicólogas e dos psicólogos entrevistados acerca de como
era o trabalho realizado no dispositivo antes da chegada da pandemia do coronavírus. O
segundo tempo, que se refere à chegada da pandemia, em seu campo biológico com a
COVID-19, bem como, no Brasil, no campo político, com a operação daquilo que vamos
chamar de vírus do fascismo. Este tempo abrange as percepções que as psicólogas e os
psicólogos entrevistados tiveram do trabalho no CAPS durante este período de nossa história
presente e quais modulações de cuidado foram possíveis oferecer aos usuários do serviço de
saúde mental em questão. O terceiro e último tempo está situado no período em que a vacina
foi disponibilizada, isto é, período em que se começa a pensar numa flexibilização das
medidas de isolamento. Com a flexibilização, novas configurações do trabalho foram
surgindo. Esse tempo também compreende o momento que, muito específico na rede de saúde
mental do município de Niterói, ocorre a transição da gestão da rede de saúde mental para
uma fundação pública dotada de personalidade jurídica do direito privado.
É a partir das narrativas da pesquisadora, das três psicólogas e dos dois psicólogos
trabalhadores da rede de saúde mental entrevistados que, nesses três tempos apresentados,
forjamos a memória e o testemunho do período pandêmico experienciado, compreendendo
assim seus efeitos quanto à construção do cuidado.
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2 METODOLOGIA
A pista cartográfica da entrevista nos é importante pois, muito mais do que extrair
representações vividas, emoções narradas, essa pesquisa se coloca como um campo de
intervenção onde se apresentam jogos de forças, isto é, tensões entre o passado, o presente e o
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futuro; para tanto, a compomos a partir de uma política da narratividade, visto que não basta
apenas escrever: a política da narratividade que aqui pretendemos trabalhar pressupõe a
intervenção através da pesquisa, portanto do texto, e as tensões que ele nos possibilita
provocar. Alguma coisa do vivido das entrevistadas e entrevistados ainda ressoa, mas sendo
modulado, sendo ampliado politicamente, através da tecedura do texto. Nesse sentido, Moraes
e Quadros (2020, p. 5) nos mostram que a narrativa “envolve tanto resgatar memórias quanto
produzir realidades delas derivadas”. A pesquisa é também escrita; a escrita, por sua vez, é
política porque é intervenção. Logo, a memória oral se faz escrita num plano de forças onde
interessa muito menos aquele que escreve ou aquele que narra, mas justamente o que está
sendo escrito, o conteúdo em termos de disputa, aqui, no campo da saúde mental.
A construção desse texto tem como inspiração, entre tantas outras, o trabalho feito por
Luciana Franco em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense
(pesquisa que posteriormente foi publicada como livro, em 2016). Luciana, sob orientação de
Marcia Moraes, trabalha com a noção de fragmento e de referência para construir uma política
de escrita capaz de considerar as narrativas/relatos como estratégia metodológica. A autora
utiliza de uma grafia diferente no texto para organizar o que é “fragmento”, sendo esses
trechos de relatos, fragmentos de seu diário de experiência em campo. Essa grafia difere, por
outro lado, do que são “referências”, isto é, espaço onde se discute os fragmentos a partir de
outros autores e onde tece suas observações: “são fragmentos e referências porque esse texto
foi sendo construído com ideias que despertavam essas pontes do conversar” (p. 18), uma
aposta ética e política que não tem como finalidade esgotar o pensamento, mas que carrega
como objetivo a própria produção do pensamento naquilo que ele é capaz de engendrar a
partir da mistura desses corpos porosos.
Svetlana Aleksiévitch faz uma produção textual em que, sobretudo, a coletividade está
presente e as histórias narradas remetem sempre a uma construção da memória (e, portanto,
da história) que se faz coletivamente. É por isso que Svetlana mantêm, ao longo da construção
de seus textos, a transmissão da experiência que se faz de modo coletivo, comparecendo
muitas personagens. Assim, através da maestria polifônica em que se torna impossível, ao
longo da leitura, separar as vozes daqueles que narram com as vozes da autora, Aleksiévitch
nos mostra que o sujeito autoral é coletivo. A memória é uma coletividade, as personagens e
as memórias que comparecem na história de cada personagem, são também coletividades. O
que Svetlana faz, não o faz por ser mais simples; longe disso, ela o faz numa aposta política
do testemunho, na construção coletiva da memória oral, performando a escrita e o texto. Uma
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estética narrativa singular que é, ao mesmo tempo, uma aposta política. Sendo assim, o modo
de fazer (estética) é um modo de disputar (política).
Moraes e Quadros também nos conduzem por uma política de escrita que considera os
pesquisados-entrevistados-participantes não como passivos que apenas respondem a
determinadas questões, mas como aqueles que “[…] aceitam, de um modo ou de outro,
engajar-se conosco num dispositivo de conhecimento […]” (2020, p. 4). Assim, nessa
composição, reforçamos essa aposta num movimento que já não é mais individual, mas sim
uma composição coletiva, carregada de tensões atuante num determinado período histórico
em que o problema de pesquisa está sendo situado. Apostamos no ato de narrar como um
gesto possível para criação de novos sentidos (MORAES; QUADROS, 2020) e, assim, nos
preocupamos também com a singularidade do texto, uma vez que ele é a própria
materialização, a expressão da memória.
Heliana Conde nos diz que, se ela é lembrete da história, algo também precisa lhe ser
lembrete. Algo se desloca, inclusive da historiadora. Lembrete é, e não é, um sujeito.
Lembrete está imerso nessa rede e não para de lembrar, não para de fazer pressão sob o
presente e sob aquele que se coloca como historiador da memória oral. Logo, Heliana Conde
não para de me lembrar que alguma coisa não para de lembrá-la. Desse modo, alguma coisa
nessa dissertação tem por pretensão, através das indicações de Lembrete, continuar
lembrando. Processo hiperbólico do lembrar: lembrar para lembrar, para lembrar, para
lembrar, para lembrar... “Lembrete me faz encher de letrinhas uma porção de novos papéis... e
me deixa sem paz” (RODRIGUES, 2019, p. 220).
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Benjamin vai apresentar o problema da guerra, uma das experiências mais pavorosas e
traumáticas, que fez com que os combatentes voltassem silenciosos “mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos” (1994, p. 115). A experiência traumática da
guerra faz com que os sujeitos não mais narrem suas experiências, suas memórias, fazendo
surgir uma nova forma de barbárie: “[…] essa pobreza de experiência não é mais privada, mas
de toda a humanidade” (1994, p. 115), visto que não há transmissão. O autor diz que essa
pobreza impele os sujeitos a “partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com
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pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (p.116),
aspirando libertar-se das experiências para viver na pobreza.
De Bruna
Para professora Irme
***
Ao passo em que a pandemia avançava, começamos a ficar cada vez mais em silêncio.
Meu projeto de pesquisa também. Ao passo em que as relações começaram a ficar
impossibilitadas, este projeto também começou a ficar impossibilitado. Então, como pensar a
pesquisa sob o ruir do projeto pensado, sob o redimensionamento do espaço, do tempo, dos
corpos, dos afetos, das relações/vínculos? Nessa conjunção de acontecimentos e novas
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Ao falar de rede, Fernand Deligny (2018) assinala que o sujeito tem o privilégio do
projeto pensado, enquanto que os animais funcionam num processo maquinal. O humano
pensa na utilidade e ergue fábricas pensando projetos: de produção, de consumo, de
acumulação. A aranha, quando da feitura de sua teia, não pensa onde captará mais insetos. Ela
se desloca, traça um primeiro fio que pode ou não ter condições de sustentar sua teia. Ela não
pensa previamente no lugar perfeito para a mais eficiente captura de alimentos. Insetos
baterem na sua rede e serem presos por seus fios grudentos é pura consequência. Seu processo
maquinal é a própria trama, é o puro agir que importa – seu encontro com os galhos de uma
determinada árvore, com o canto das paredes de uma casa. Nesse sentido, e levando em
consideração as contribuições de Deligny, um novo caminho de pesquisa começa a ganhar
contornos sem que a preocupação primeira com o projeto pensado se sobreponha
angustiantemente.
2.4 O CAMPO
Em sete de agosto do ano de dois mil e vinte e um, publica-se, no Diário Oficial do
Município, um decreto do então prefeito que passa a administração e gerência de alguns
serviços da RAPS para a FeSaúde (Fundação Estatal de Saúde de Niterói), com personalidade
jurídica de direito privado. Os equipamentos da RAPS, que ficaram sob gestão da fundação,
foram: os quatro CAPS do município; a UAI; o CCCN; e os nove SRTs. A entrada da
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fundação prometia organizar a rede e contratar funcionários públicos por meio da realização
de concurso público, acabando com os vínculos institucionais existentes nos equipamentos da
rede, que se tratavam de contratos temporários oriundos da realização de processos seletivos
simplificados, ou seja, vínculos precarizados e sem garantia de direitos.
Com esse movimento acontecendo na rede, após realização do concurso público que
foi, por diversas vezes, remarcado, os novos profissionais deveriam assumir o trabalho, visto
que os contratos com os profissionais antigos, não concursados, terminariam no dia trinta e
um de março de 2022. Porém, ao mesmo tempo, não se tinham informações de como se daria
tal passagem. Muitas perguntas pairavam o cotidiano dos serviços: “haveria possibilidade de
os contratos serem renovados?”, “Concursados chegariam?”, “Pensando no vínculo com os
usuários e na transmissão do trabalho construído ao longo de muitos anos, como se daria a
transição de equipe?”, “Seriam todos simplesmente dispensados no dia trinta e um, que já
estava tão próximo?”. Tendo em vista tanta instabilidade, muitos profissionais se
encaminharam para outras atividades e, com isso, vagas de trabalho em regime temporário
foram se abrindo através de processos seletivos simplificados. É aí que faço minha entrada no
serviço. Estive psicóloga trinta horas num Centro de Atenção Psicossocial do município de
Niterói, durante quatro meses. Nesse período acompanhei, de dentro do serviço, ainda em
decreto de pandemia, mas já com três doses de vacina no braço, os efeitos e as implicações
políticas que aconteciam na rede de saúde mental do município. Durante esse período pude
compartilhar momentos de caos e de alegria. A potência do trabalho coletivo de uma equipe
multiprofissional, fortalecida, faz operar, através do vínculo construído com os usuários no
cotidiano do serviço, amarrações de uma rede de cuidados e suporte caso a caso. Foram
quatro meses que não cabem na cronologia, isso porque a intensidade não cabe na cronologia.
2.5 AS ENTREVISTADAS
1 Anexo I.
2 Os nomes aqui apresentados não correspondem aos nomes verídicos, apenas preservam o gênero das
entrevistadas e dos entrevistados.
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Dentro disso, como você percebe os impactos diretos aos usuários e familiares? 5) Pensando
no suporte aos trabalhadores, bem como aos usuários e familiares, houve orientações que
direcionassem a forma de trabalho, seja da coordenação de saúde, prefeitura, coordenação
direta do CAPS, etc.? 6) Como você percebe os impactos desse momento histórico para a
saúde mental enquanto política pública?
***
Enquanto eu estava escrevendo, percebo que cometi um pequeno ato falho. Eu havia
decidido apagar o erro, mas voltei atrás e o mantive. Ao falar sobre o uso necessário do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, percebo que escrevi “Termo de Comprometimento”. É
então que reflito: a palavra intrusa que resolveu aparecer no texto me fez lembrar de uma
carta do professor Arthur Arruda Leal Ferreira ao Comitê de Ética em Pesquisa, que integra o
livro “Cartas para pensar políticas de pesquisa em Psicologia”. No texto, Ferreira (2014)
levanta uma série de inquietações quanto ao Termo de Consentimento e nos propõe uma
reflexão ao questionar o termo “sujeitos”, muito usado na psicologia para se referir aos
participantes de uma pesquisa. Por mais que o termo carregue um gesto de nobreza, ele
também está impregnado de possibilidades de sujeição, em que o pesquisador se apresenta na
posição de autoridade.
seria desnecessário numa política de pesquisa mais cooperativa e simétrica em que você
[entrevistado] seja declaradamente o nosso parceiro” (FERREIRA, 2014, p. 121).
Mesmo com as burocracias dos Comitês de Ética, onde também se percebe sua
importância, e não estamos excluindo isso, ainda assim a aposta da pesquisa é justamente a de
poder investir numa outra ética que passa por um outro modo de relação em que os “sujeitos”
não são mais apenas objetos de pesquisa. Nesse sentido, brinca Ferreira (2014, p. 121-122),
poderíamos pensar num outro Termo:
O senhor/a senhora (ou o gênero de sua escolha) receberá uma cópia deste termo
onde consta o e-mail de contato do pesquisador responsável (?) e do comitê de ética
em pesquisa, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou
em qualquer momento. Mas preferiria que você me ligasse para me convidar para
um chopp ou para trocarmos uma ideia sobre esta pesquisa. Acolho de bom grado
me articular com o campo desta pesquisa na sua arriscada produção de mundo,
julgando me coautor e personagem-chave nesta produção de conhecimento.
As exigências não param... Também são postas no que se refere ao modo de escrita: há
uma série de informações que precisam entrar, não somente para justificar a metodologia, mas
num movimento de prestação de contas aos Comitês, e para fazer cumprir as exigências da
academia. Aqui, o professor e pesquisador Danichi Mizoguchi (2016, p. 33) nos adverte sobre
as delimitações e explicações objetivas e precisas que a academia exige de nosso trajeto de
investigação: “como será feito, como está sendo feito e como foi feito são perguntas entoadas
nas sucessivas avaliações dos trabalhos de pesquisa em suas diferentes etapas – processo
seletivo, orientações, seminários de pesquisa, qualificação e defesa”.
Buscando nos orientar nesse caminho de pesquisa, Mizoguchi nos conta que Foucault,
ao começar um trabalho, nunca tinha definido a priori qual seria seu modo de fazer e por onde
caminharia, sendo “necessário sempre, a cada empreitada, forjar um método de análise o qual
não é prescritivo ou generalizável, já que singular e engendrado sob medida para uma questão
e um pesquisador específicos” (2016, p. 34). Seria então de dentro desse campo de tensões e
de disputas que teríamos que forjar estratégias singulares, manejando as exigências
acadêmicas que nos fazem preencher um amontoado de papéis repletos de explicações, colher
assinaturas, submeter a uma plataforma, esperar, esperar (isso se não voltar, precisando ainda
de mais explicações). E que fique registrado que, mesmo com todas as tensões, reconhecemos
a importância de todas essas exigências. Por mais que estejamos colocando algumas
problematizações, não partimos de uma leitura negativista e portanto destrutiva da burocracia.
Pretendemos apenas apontar que há algo para além dela.
27
Assim, pesquisar saúde mental nesse recorte específico, situado num território
específico e num momento histórico também específico, vai forçando uma posição de
estranhamento não somente da pesquisadora consigo mesma e com o lugar, mas também do
lugar consigo mesmo, tensionando as relações estabelecidas e os olhares que ali percorrem. A
grande questão da epistemologia da estrangeiridade é apostar politicamente no estranhar:
provocar uma tensão naquilo que está na ordem da naturalização. É, portanto, dessa posição
de estrangeira que narro brevemente, no item acima, a minha passagem; mesmo não sendo
mais tão estrangeira à cidade, a estrangeiridade enquanto política, ou melhor, a epistemologia
da estrangeiridade, deve permanecer.
28
***
tipo III. Essa é uma luta que vem sendo travada há algum tempo, com muitas promessas,
esperanças e decepções.
Érica, uma de nossas entrevistadas, narra a potência do trabalho no CAPS AD, mas
também aponta para as restrições, visto que a maioria das pessoas, principalmente as que
vivem em situação de rua e que fazem uso abusivo de drogas, precisam de suporte noturno:
“a gente encerrava e era muito triste encerrar o serviço às
17h. Essa é uma questão, os serviços de saúde mental
funcionarem nesse horário, que é um horário comercial, que não
abarca às vezes os trabalhadores”. Mesmo com tais adversidades narradas por
Érica, ela não deixa de pontuar que existia um trabalho potente sendo feito, de fortalecimento
do território e do cuidado, de um dispositivo que criaram chamado “CAPS na rua”, em que
uma equipe multiprofissional ia, no horário noturno, para a rua tentar dar suporte para as
5 Uma ressalva quanto às medidas restritivas precisa ser feita: o poder executivo, tendo como seu
representante máximo Jair Messias Bolsonaro, adotou práticas e discursos que foram na contramão das
diretrizes e orientações da Organização Mundial da Saúde. Foram os governos estaduais e municipais que
atuaram no sentido de seguir ao máximo os protocolos de distanciamento e isolamento social, uso de
máscara e álcool gel.
6 Link para acesso à matéria publicada pelo jornal Enfoco: https://enfoco.com.br/noticias/cidades/psicologos-
consideram-saude-mental-em-niteroi-ineficaz-8196.
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pessoas em situação de rua e também fazer busca ativa, ou seja, procurar por usuários que
estavam sumidos do serviço. Ela marca a importância do estreitamento de vínculos, da
parceria com os hospitais gerais e com a equipe Consultório na Rua, visto que os usuários da
clínica AD apresentam um corpo mais debilitado no que tange à questões de saúde causadas
pelo uso abusivo de drogas: “os nossos usuários não tinham um tratamento
cuidadoso, pelo contrário, eram rechaçados e a gente contava
com o suporte do Jurujuba que, apesar de ser uma instituição
manicomial, era o que a gente tinha de dispositivo […] que é
muito controverso, existe uma discussão de que aquele hospital
precisaria sim se encerrar, pra poder fortalecer os CAPS III e
leitos nos hospitais gerais, mas, ao mesmo tempo, o Jurujuba
era o que mais nos dava suporte para os casos mais graves”. O
Hospital Psiquiátrico cumpre a função de reter a demanda que seria para CAPS III no
município, somado a precarização das condições de trabalho e falta de profissionais na rede,
Niterói ainda não conseguiu renunciar ao manicômio.
***
7 “Local usado como castigo dos pacientes internados que agiam de forma contrária às regras estabelecidas
para o funcionamento do hospital, assim como para receber os recém-internados, que eram ali trancados no
ato da internação e despidos, segundo uma auxiliar de enfermagem para ‘evitar o suicídio por enforcamento
com as próprias vestes” (MOUZINHO; CARRETEIRO, 1996, p. 8).
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pelos médicos e demais funcionários em “pátio dos agitados, pavilhão das crianças ou
enfermaria infantil, isolamento, centro cirúrgico, enfermaria de neurologia, enfermaria dos
calmos e, ainda, enfermaria dos sórdidos” (1996, p. 8).
Sete anos depois de sua criação, o manicômio ouviu, nas eleições de 1960, o jingle
“varre, varre, vassourinha”, do então eleito Jânio Quadros, que prometia varrer a corrupção do
país, e também assistiu sua renúncia; a posse de Jango e de Tancredo Neves como primeiro-
ministro, em 1961. Testemunhou os preparativos do golpe de 1964, sua efetivação, e o dia que
durou vinte e um anos - de torturas, perseguições, assassinatos. Acompanhou o período de
redemocratização, que se iniciou com a anistia “irrestrita” de 1979, que anistiou não só seus
sobreviventes, mas também os torturadores e assassinos; as Diretas Já; a constituinte de 1986
a 1988. Jurujuba permaneceu intocado quando do encontro, em 1987, dos trabalhadores da
Saúde Mental em Bauru/SP, que resultou na carta-manifesto de Bauru, escrita na então
constituição desse novo período que se iniciava no país. Jurujuba viu a eleição de Collor em
1989 e seu impeachment; a implementação do Sistema Único de Saúde com a lei 8080/1990,
materialização de direitos assegurados na constituição que, por sua vez, foi fruto de uma
conquista da sociedade brasileira, isto é, a saúde, o acesso ao SUS garantido pela constituição,
portanto, nunca é demais lembrar, dever do estado.
[...] uns dizendo que os fatores geológicos e hidrológicos teriam sido determinantes
dessas decisões, outros já caminhavam com as discussões sobre os interesses de
tráfego e transporte; outros diziam que se tratava de uma oportunidade de instaurar
um CAPS III e promover todo um registro de mudança em Niterói; e outros diziam
se tratar de ser mais fácil intervir onde a loucura está: “É mais fácil passar o trator e
o rolo compressor”, disseram (SILVA, 2022, p. 66).
No dia seis de maio de dois mil e dezessete, os primeiros veículos cruzam o túnel. O
hospital psiquiátrico até podia estar com sua estrutura 58% menor, mas ele ainda estava lá,
100% operante. Diante de tudo isso, eu me pergunto: será que o túnel não deveria ter sido
mais alargado? E se ele tivesse comprometido toda a estrutura do manicômio? Será que, se
assim tivesse acontecido, estaríamos mais perto de demolir-romper-ruir com essa estrutura
que, muito mais do que física, é subjetiva na cidade-sorriso9? Demolir o hospital não é
demolir apenas o hospital, mas tensionar as forças de um certo modo de subjetivação
manicomial que ainda persiste.
***
Um homem velho, jamais visto, carregando um saco nas costas é uma figura de terror
que povoa o imaginário de muitas crianças. A figura sempre vem acompanhada de frases do
tipo “se comporte, senão o homem-do-saco vem te pegar”, “vou chamar o homem-do-saco”.
Lá no oeste catarinense, eu temia esse velho. Como poderia alguém colocar as crianças num
saco pendurado nas costas? De que tamanho era esse saco? Devia ser enorme para caber
tantas crianças! Ele devia ser um velho forte, bem forte, pra carregar tanto peso. Para onde ele
as levava? E depois, o que acontecia? O medo era tanto que rapidamente os indisciplinados
andavam na linha. Cresci ouvindo os chamados pelo homem-do-saco; cresci temendo ser
levada, sabe-se lá para onde, por esse velho. Mas o leitor deve estar achando estranho e se
perguntando o que o homem-do-saco tem a ver com Niterói.
O psiquiatra húngaro Thomas S. Szasz, em sua obra “O mito da doença mental” conta
que, até metade do século XIX, o termo “doença” referia-se a uma desordem corporal que se
manifestava na forma de uma alteração na estrutura física, “uma visível deformidade,
enfermidade, ou lesão, como uma extremidade disforme, uma pele ulcerada, uma fratura ou
ferimento” (s/d., p. 26) e eram por essas mudanças na estrutura do corpo que os médicos
podiam distinguir doenças de não-doenças. Posteriormente, a partir do início das dissecações
em cadáveres, passou a ser possível identificar diversas alterações antes não visíveis. Szasz
escreve que, então, além da detectável alteração na estrutura, acrescentou-se a função
corpórea. Um detectado pela observação do corpo; o outro detectado pela observação do
comportamento. Algumas doenças passaram a ser “[...] convenientemente chamadas
“mentais” para distingui-las das que são “orgânicas”, e também convenientemente chamadas
“funcionais” para contrastar com as chamadas “estruturais” (SZASZ, s/d., p. 27). Szasz diz
que foi assim que a histeria, por exemplo, foi inventada. Aparentemente de estrutura física
corpórea perfeita, mas com manifestações e queixas de dores e quadros de paralisias, eram
classificadas como doentes funcionais. Paralelo entre o físico e o mental. O psiquiatra aponta
para o modo como determinadas formas de ação, de comportamento, passam a ser definidos
como patologias. Haveria toda uma
Logo nas primeiras páginas de sua obra, o psiquiatra aponta que, embora muito aceita,
a definição de que a psiquiatria é a especialidade capaz de diagnosticar e tratar doenças
mentais a coloca ao lado da alquimia e da astrologia, com suas "substâncias misteriosas”, e a
ocultação de “seus métodos do escrutínio público”, ocupando a categoria de pseudociência.
Defende tal posicionamento ao considerar que a “doença mental”, objeto de estudo da
psiquiatria, não existe enquanto doença, mas como mito. Szasz convoca os psiquiatras a, ou
continuar fazendo sua prática sob entidades inexistentes, ou direcioná-la a intervenções e
processos reais, já que a psiquiatria insiste “[...] em falar de misteriosas doenças mentais e
continuam a abster-se de revelar total e francamente o que fazem”; e continua: “um médico é
36
geralmente aceito como psiquiatra desde que faça questão de se preocupar com o problema da
sanidade ou insanidade mentais” (SZASZ, s/d., p. 17).
Mas acabar com os muros não quer dizer, por outro lado, que acabamos com os
manicômios, logo, que não há mais necessidade do cuidado em saúde mental, e essa
afirmação pode ser usada, inclusive, para um maior sucateamento das políticas públicas de
cuidado em saúde mental. Ora, se a doença mental é um mito e o manicômio produz a
loucura, logo, qual a necessidade de uma rede de cuidado em saúde mental?
37
A defesa que aqui fazemos é a de que esses modos de vida sejam cuidados fora da
clausura, entendendo e defendendo a necessidade de um conjunto de equipamentos dispostos
na rede, construída com um único objetivo, qual seja, o de redirecionar o modelo de
assistência em saúde mental, assegurar os direitos e a proteção das pessoas; esse
redirecionamento da rede tem, sobretudo, um redirecionamento da concepção da
subjetividade. Os muros não foram derrubados. Na história do hospital psiquiátrico de
Jurujuba, assim como na história de tantos outros manicômios, ainda há leitos, internações
compulsórias, uso de uniformes, alas separadas para cada perfil, etc. Essa não é apenas uma
história que ficou no passado, mas a lógica que ainda persiste na atualidade, nesse exato
momento.
Entendemos que muitas práticas e intervenções que são feitas hoje têm o viés de
problematizar esses espaços, principalmente pelos trabalhadores que lá atuam. Mas, ainda
assim, o manicômio carrega uma história de violência, de exclusão, assassinatos, segregação,
subalternização, de horror. Não é possível anistiar o manicômio. Não devemos anistiar o
manicômio. Há certos tipos de concessão que não podemos fazer, mesmo sob a pretensa
alegação de estar fazendo o melhor para o outro.
Queremos ressaltar, também, que há forças manicomiais que insistem para além dos
muros do manicômio. No texto “Manicômio mental - a outra face da clausura”, primeiramente
apresentado numa comemoração ao Dia da Luta Antimanicomial, organizado pelo Plenário de
Trabalhadores em Saúde Mental em São Paulo e também publicado na coleção SaúdeLoucura
número 2, o autor Peter Pál Pelbart aponta justamente para o ponto de que não basta somente
destruir os manicômios se preservarmos o manicômio mental. Pelbart retoma Foucault para
pontuar que quando se decidiu, na história do ocidente europeu, enclausurar os “desajuizados”
pela primeira vez, no mesmo século XVII Descartes afirmava haver uma dissociação total
entre a loucura e o pensamento; “enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, o
pensamento racional trancafiava a desrazão” (PELBART, 1991, p. 135). É pra esse modo de
libertação que o autor chama a nossa atenção; libertar o pensamento do cárcere, essa
racionalidade carcerária, como sendo tão urgente quanto libertar a sociedade dos manicômios.
O direito à desrazão significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do
Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras
da verdade, chame-se ela de identidade ou estrutura, significa devolver um direito de
cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao
impensável. Libertar-se do manicômio mental é isso tudo e muito mais (PELBART,
1991, p. 137).
38
Posta a manicomialização para além da instituição mas também como modo de vida,
poderíamos nos perguntar: se o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba fosse destruído, se do dia
para a noite ele se tornasse obsoleto e o CAPS III fosse implementado, não correríamos o
risco de reproduzirmos, nesse novo equipamento, a mesma lógica manicomial? A única
resposta que temos, e ela precisa ser incisiva é: bem, vejamos, tudo isso é verdade, porém,
precisamos nos atentar para o fato de que o CAPS, que faz parte de todo um conjunto de
estratégias de cuidado em rede e, portanto, de desinstitucionalização, abre-se para as forças
instituintes muito mais do que um manicômio, ou seja, o modo como o dispositivo é montado,
permite uma posição constante de desinstitucionalização do próprio manicômio mental;
permite que o próprio manicômio mental, caso esteja operando na rede, possa ele também ser
problematizado.
Ana Marta Lobosque, em seu livro Intervenções em saúde mental - um percurso pela
reforma psiquiátrica brasileira (2020), que integra a coleção SaúdeLoucura, chama a atenção
para o funcionamento das redes de cuidado em saúde mental e o quanto, nessas redes, não há
regras preestabelecidas em que apertamos botões para resolver situações, como se todo o
funcionamento da rede já estivesse dado de antemão. Destaca a importância da mobilidade,
versatilidade da rede, que pode então ter um certo tipo de flexibilidade para encontrar um
lugar para situações que não encontram um lugar. Ainda nesse sentido, a autora aponta para o
fato de que, mesmo precisando dessa mobilidade na rede, dessa articulação visando cada
especificidade, não quer dizer que não existam dispositivos necessários para cada uma das
redes:
Como pode um município de grande porte atender bem as situações de crise, se não
dispõe de CAPS III? Como fechar o hospital psiquiátrico de longa permanência de
uma cidade se ela não oferece aos usuários uma moradia? [...] uma rede deve
reconhecer necessidades, determinar prioridades, planejar e ordenar seus diferentes
pontos de atenção (LOBOSQUE, 2020, p. 80).
Lobosque vai dar ênfase, em sua discussão, ao que chama de três aspectos, ou pontos,
essenciais para uma lógica de fato antimanicomial. O primeiro é de que uma rede precisa, nas
situações de crise, ser capaz de atender as demandas prescindindo do hospital psiquiátrico.
Mesmo em situações que se tenta justificar como um último recurso,
não se pode falar em reforma psiquiátrica verdadeira quando se trabalha, ainda que
implicitamente, com a hipótese de que, ‘em último caso’, ‘se a situação apertar ’, ‘se
o paciente piorar’, ‘se não tem para onde ir’, pode-se encaminhá-lo para o hospital
psiquiátrico, como se tal encaminhamento representasse uma saída legítima e
adequada para a sua vida (LOBOSQUE, 2020, p. 80).
39
O hospital psiquiátrico pode ser acionado para o cuidado das pessoas com transtorno
mental nas regiões de saúde enquanto o processo de implantação e expansão da
Rede de Atenção Psicossocial ainda não se apresenta suficiente, devendo estas
regiões de saúde priorizar a expansão e qualificação dos pontos de atenção da Rede
de Atenção Psicossocial para dar continuidade ao processo de substituição dos leitos
em hospitais psiquiátricos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011, s/p).
O segundo aspecto defendido por Lobosque para uma lógica não manicomial refere-se
ao funcionamento em rede dos equipamentos de saúde. A autora aponta para a necessidade de
uma atenção básica fortalecida, em que não se pode tomar o CAPS como o principal
dispositivo de cuidado, nesse sentido, o ordenador do trabalho, mas “[…] devemos fazer da
atenção básica a principal porta de entrada da rede, levando a sério os princípios de
acolhimento, vínculo e responsabilização de cuidados” (2020, p. 81). A autora marca a
potência criativa da atenção básica quanto à formulação de estratégicas de cuidado justamente
por se ter em vista a noção de território, “a visita domiciliar a um paciente grave que não quer
sair de casa, o laço estabelecido pelo agente comunitário com um usuário de drogas, as
atividades culturais com mulheres apressadamente diagnosticadas como ‘deprimidas’, e tantas
outras possibilidades a explorar” (2020, p. 82).
Voltando a Niterói, nos perguntamos; que forças são essas que impedem a
implementação definitiva de um CAPS III para fortalecer a rede de saúde mental do
município, bem como a retirada do manicômio como referência da rede? O que faz a
prefeitura investir R$1.970.946,46 na reestruturação e revitalização do manicômio14? Apesar
da notícia de janeiro de 2023 afirmar verba de mais de R$260 milhões para reformas de
setenta unidades de saúde ao longo do ano, inclusive dos Centros de Atenção Psicossocial, ela
parece começar, prioritariamente, pelo hospital e, apesar dos burburinhos e da expectativa,
ainda não há notícias oficiais de implementação de CAPS III no município.
Dentro das limitações da rede, em meio ao sucateamento das políticas públicas, dos
equipamentos de saúde, das condições e dos contratos de trabalho, das forças manicomiais
intra e extra-muros, os profissionais, no dia a dia, são aqueles que buscam produzir estratégias
possíveis de cuidado. Irma, uma das entrevistadas dessa pesquisa, ao ser interpelada sobre o
que entende pelo trabalho do CAPS, conta de uma experiência com um dos usuários de um
CAPS II do município de Niterói, serviço em que atuou por cerca de um ano como psicóloga
e também, anteriormente, enquanto psicóloga-residente em Saúde Mental.
O que apontamos aqui, nessa dimensão clínica do cuidado que se faz pelo
acompanhamento terapêutico, é de que essa dimensão não se restringe a uma determinada
função, de um determinado trabalhador que, na divisão social do trabalho, ocuparia um cargo
de nível não superior – geralmente conhecido como Acompanhante Domiciliar ou mesmo
Acompanhante Terapêutico. No fragmento citado acima, relato de experiência da
Se já entendemos que as instituições totais são totais justamente porque não tem
abertura para o fora e, portanto, são instituições de enclausuramento; se já entendemos que o
cuidado proposto pela rede de saúde mental deve se dar extramuros, isto é, fora das
instituições totais, e que os CAPS são um dos dispositivos da rede de saúde mental que
propõe o cuidado em liberdade, cabe um outro questionamento, diante do fragmento acima
narrado por outra psiquiatra no final de um dia de trabalho: poderíamos compreender o
acompanhamento terapêutico como um índice de saúde e de cuidado do próprio dispositivo e
da equipe?
Fazemos aqui uma retomada quanto ao manicômio, instituição total que impossibilita
qualquer experiência com o fora. Nesse sentido, os CAPS vão surgir como o fora dessas
instituições totais, isto é, como um dispositivo estratégico contra o enclausuramento dos
sujeitos, um dispositivo itinerante. Itinerante não pelo caráter de uma estrutura física móvel,
mas pelo seu fazer que tem por direção o fora: a rua, o território, a comunidade. Porém, ainda
assim, ainda que com essa direção, não há garantias de que não será reproduzido, no
dispositivo CAPS, a própria lógica manicomial e, assim, ele precisará permanentemente
atingir essa dimensão fora dele mesmo. Se o manicômio é a instituição total e o CAPS são o
fora, apostamos num movimento permanente de encontrar o fora do fora, tal como no passeio
esquizo narrado por Deleuze e Guattari (2010). Esse movimento é possível a partir do
entendimento do acompanhamento terapêutico como um gesto clínico. O fazer do AT como
um movimento clínico constante de atingir a potência de abertura dele mesmo (o fora). Um
movimento clínico que não se faz sem ser, ao mesmo tempo, político, uma vez que
desestabiliza não só a própria constituição do equipamento de saúde mental, mas o lugar da
rua, do fazer, da comunidade. O AT como sendo o fora é também um índice de saúde desse
outro fora (o CAPS), já que ele nos força ininterruptamente a uma problematização do fazer,
assim como busca alcançar uma dimensão de saúde do fazer, sempre, e sobretudo, no fora do
fora.
Um outro ponto fortemente levantado pelas entrevistadas, foi quanto às oficinas, que
consideram a força motriz do CAPS, pois elas são capazes de promover espaço
pra algum tipo de vínculo entre os pacientes. Lobosque vai evidenciar o
papel fundamental dos CAPS justamente quanto à promoção de laços sociais, destacando que
a qualidade desse laço não é o da obediência de se seguir a normatividade e seus padrões, bem
como não é aquele que se refere a uma relação social fria e superficial, mas aqueles laços, ao
46
mesmo tempo que leve e rigoroso, capaz de criar o tecido “que ofereça à cultura um corpo
propício ao movimento do desejo” (2020, p. 60).
Érica aponta que as oficinas eram realizadas por vários profissionais que compunham
a equipe, uma oficina que abordava questões de saúde era realizada
pela técnica de enfermagem e por um residente em saúde mental.
Era trazido, de forma didática, algumas doenças por exemplo
DSTs, tuberculose, quais os sintomas da doença, como se
descobre a doença, era um grupo bastante procurado, sempre
enchia de participantes, tínhamos uma de notícias, em que cada
um dava suas notícias pessoais, ou que estava acontecendo no
mundo; o de notas musicais, que era pelo celular, a pessoa
pedia uma música, a gente tocava no celular e aí cada um pedia
uma música e a gente escutava; o grupo da Redução de Danos, em
que conta que alguns usuários ficavam com um certo tipo de receio, entendendo que iriam ter
que substituir uma droga pela outra ou reduzir a quantidade de uso; não era grupo,
mas a gente promovia passeios, numa pegada de circular pela
cidade. Niterói tem Centro de Convivência, então a gente fazia
parceria com eles.
O prédio que abriga o CAPS data de 1908, na sua entrada, logo após o portão aberto,
há uma figueira centenária e diversas outras árvores que, ao se juntarem no alto de suas copas,
formam um enorme sombreiro. Em seus pés, diversos bancos abrigavam usuários e equipe
num espaço de convivência que, narrado por Érica, os usuários diziam que se sentiam muito
em paz. Margarete, que atuou como psicóloga no mesmo CAPS, conta que o portão sempre
foi escancarado, sempre funcionou de portas abertas, mas ressalta que
sempre entravam num acordo com os usuários que queriam sair da unidade pra fazer alguma
coisa na rua e retornar, muitas vezes o usuário chegava pro cuidado
dele, ia lá fora, bebia uma “bojudinha”, quando voltava já
saia jogando cadeiras, arrumando confusão, então era combinado
que se falasse com alguém da equipe, precisava sempre passar
pela palavra a coisa do “ir e voltar”.
Lobosque, nossa grande aliada nesse fazer, nos mostra que, por se tratar de um serviço
“portas abertas”, de fato surgirão consequências dessa abertura e que é preciso sustentar, uma
47
vez que “abrir a porta não é apenas liberar a entrada e autorizar a permanência daqueles que
chegam; trata-se de criar para cada um deles um lugar pelo qual se responde”, visto que “há
de se delinear a direção de um tratamento, nunca a priori, e sim a partir daquilo que cada qual
traz consigo. Afinal, a mais fértil possibilidade de solução só se descobre quando encontramos
a maneira mais justa de formular o problema” (2020, p. 63). As portas abertas devem nos ligar
à cidade “como legítimos habitantes de um espaço geográfico, social e político que é também
nosso, conquistando a cidadania dos verdadeiros laços sociais” (2020, p. 64).
48
Para Lúcia
rumo;
te buscaram;
teus olhos,
1...2...3!
...
descargas elétricas. E era por isso que você não os tinha mais
50
sumindo.
hoje, era a parte bonita dessa longa história de vida; que até
sentidos.
51
suas impressões.
Disse que Bruna era nome de homem, mas que você achava bonito
vacinação esteja perto... que a sua vida não tenha sido uma
***
Não sendo bastante, no final do ano de 2020, já passados nove meses da pandemia de
COVID-19 no Brasil, o governo Bolsonaro continuou levando em frente seu projeto de
destruição. O alvo da vez foram as dezenas de portarias que organizavam e estruturavam o
trabalho da atenção em saúde mental no modelo psicossocial. Tal proposta, chamada de
“revogaço”, faz parte de um movimento de contrarreforma psiquiátrica que teve por objetivo
ampliar modelos hospitalocêntricos que foram, há duras penas, gradativamente sendo
modificados desde a reforma psiquiátrica.
O ano de 2019, e também os anos seguintes, carregam rijas marcas não só em relação
à pandemia da COVID-19, mas também de uma outra pandemia. Danichi Mizoguchi e
Eduardo Passos (2020) fazem um diagnóstico do presente naquilo que chamam de
“Epidemiologia Política”. No texto, os autores vão nos mostrar que epidemia, em sua
etimologia, se origina do grego epi, que quer dizer “sobre”, “acima de”; e demos, que quer
dizer “povo”. Esse sentido, portanto, na sua radicalidade, indica algo que se coloca acima ou
sobre o povo. Muito conhecido pelos brasileiros, o lema de Bolsonaro em sua campanha
eleitoral17 indicava para a disseminação dessa espécie de vírus, para “uma epidemiologia
política que não pode ter outro nome senão fascismo” (MIZOGUCHI; PASSOS, 2020, p.83).
Os autores relembram as considerações de Paul Virilio, Deleuze e Guattari e Vladimir Safatle,
ao apontar que os riscos de tal epidemia política não são só a da efetivação de um estado
totalitário, mas mais do que isso, a emergência de um estado suicidário:
Nesse cenário de horror brasileiro, estão em jogo forças pandêmicas destrutivas não só
de uma crise sanitária mundial, mas também política. As figuras políticas que tanto
criticávamos antes da chegada do governo Bolsonaro, pareciam ter se tornado as que tinham
mais bom senso, já que o presidente da república pronunciava seus horrores, desrespeitando o
povo brasileiro e, principalmente, as minorias, imitava as vítimas com falta de ar nos
hospitais, reduzia a gravidade da crise sanitária ao que chamava de “gripezinha”. Foram
inúmeras falas, inúmeras ações, como negar vacina ao povo, além de incentivar a não
vacinação, o não uso de máscaras, como fez quando de uma de suas aglomeradas passeatas,
no ápice da pandemia, em que tirou a máscara do rosto de uma criança18; cortes de salários,
aumento da fome e do desemprego no país, entre outros tantos gestos de destruição. Um
governo que demonstrou, do primeiro ao último dia de mandato e desde a campanha eleitoral,
ser apaixonado pela morte.
Segundo Josiel, que trabalhou durante um ano no serviço em questão e atuou na rede
de saúde mental de outro município anteriormente, a chegada da pandemia foi um caos,
O dia-a-dia nos serviços contava com uma série de medidas: havia processos de
checagem da temperatura na entrada, higienização das mãos, uso obrigatório de máscaras, as
quais eram consideradas pelos usuários como “calcinha de boca”, devido à qualidade
do material. Alguma coisa aquilo tinha, mesmo que um efeito
simbólico de “olha, precisa usar máscara", mas alguns
pacientes não conseguiam. A equipe usava face-shield, máscara
57
O psicanalista Joel Birman, em seu livro que trata especificamente dos fatos da
pandemia no Brasil, vai dizer que, nas ausências, inexistências de protocolos terapêuticos
consistentes para confrontar a doença de modo clínico, bem como da vacina para proteger as
pessoas da disseminação da COVID-19, ou seja, no desconhecimento da doença, tanto a
comunidade científica quanto a médica, bem como os Estados, ficaram impotentes para
confrontar a COVID-19 num primeiro momento, fazendo com que fosse reativado o
dispositivo sanitário que, desde o início do século XIX com a peste, está presente no ocidente:
“os discursos da epidemiologia e da vigilância sanitária, com a promoção de uma quarentena
ampla, geral e irrestrita” (BIRMAN, 2021, p.70).
***
E como era possível dar conta dos atendimentos frente a uma pandemia e ao
sucateamento do dispositivo? Essa era uma enorme questão a ser enfrentada A gente não
dava… A gente tentava… A policlínica tem uma área externa boa
assim, tem umas árvores, uns bancos e mesas de cimento, então
era ali que a gente atendia, que a gente ficava esperando as
pessoas chegarem e, assim, dar conta a gente não dava, a gente
ficava apagando incêndio. Niterói tem hospital psiquiátrico,
Niterói não tem CAPS III, e como as internações no Jurujuba
aumentaram muito, o hospital convocava muito a nossa presença
lá; então a atenção básica também; e a gente ficava com muito
receio de entrar no Jurujuba, que é um hospital com péssimas
condições sanitárias de ventilação, uma aglomeração enorme de
gente ali; enfermaria de COVID dentro do Jurujuba porque as
pessoas estavam doentes ali de COVID… Criou mais tensão ainda,
dentro de uma rede que já é segmentada, onde há uma série de
atritos assim, sabe, entre o hospital. A falta de recursos financeiros
também dificultava o acompanhamento dos usuários internados, e o que patrocinava
o nosso deslocamento era uma cantina que a gente inventou ali
dentro do CAPS, onde os usuários trabalhavam com uma bolsa que
a prefeitura fornecia, e aquele dinheiro da venda de paçoca,
guaravita, era o dinheiro que a gente guardava pra nossa
passagem, deslocamento, pra ir no Jurujuba, pra fazer VDs [visitas
domiciliares], porque não tinha orçamento pro território e aí com a
pandemia, com o nosso deslocamento pra policlínica, não tinha
60
Outro relato uníssono das psicólogas e dos psicólogos entrevistados foi de que o
houve aumento significativo na procura por atendimento de primeira vez no CAPS, e que essa
procura passou a não ser tanto de pessoas psicóticas, mas de
muitas pessoas que estavam com ideação suicida e casos de
tentativas de suicídio. Chegava um caso, chegava outro, mas,
de repente, numa semana eram seis casos de ideação e tentativa
de suicídio. Chegavam já medicados, muitas vezes encaminhados
do Jurujuba, porque a emergência é lá. E aí a gente conseguia
acolher, fazer o primeiro acolhimento e marcar [retorno] durante a
semana. As autoras Quadros, Cunha e Uziel nos convocam para uma reflexão frente ao
aumento de casos, nesse período, de transtorno de ansiedade, depressão, pânico e transtorno
de estresse pós-traumático:
Mas o que esperar desse momento? O que pensar de uma situação onde, de um dia
para outro, somos ameaçadas por um vírus invisível, altamente propagável, sem
63
evidências de tratamento eficaz, que nos jogando na, sempre existente, condição de
afetáveis uns pelos outros na dimensão inexorável da contagiosidade da vida, altera
drasticamente a rotina de milhões de pessoas, tendo o isolamento físico como a
maior recomendação da ciência e garantia de cuidado com o outro e com o coletivo?
(2020, p. 7).
Nesse período, houve a migração do grupo de família, que era um grupo presencial de
acolhimento aos familiares dos usuários, para o formato online. Era um grupo difícil de
acontecer por estar sempre esvaziado e que, no novo formato, teve grande adesão, teve
uma dinâmica que fortaleceu muito esse grupo, tanto que ele
permaneceu online até depois que a gente pode voltar com
alguns grupos, mas ainda com número reduzido. Pensamos que o
grupo poderia continuar online porque teve uma adesão absurda,
foi uma surpresa pra gente.
* * *
Finalmente chega a vacina! Era março de 2021 quando os profissionais estavam sendo
vacinados. A gente se sentiu muito privilegiado, fomos vacinados
no primeiro grupo. Eu lembro de pessoas da minha família
dizerem “caramba, você já está vacinada”. As pessoas [população
geral] se vacinaram lá pra final do ano. Eu lembro que foi um
privilégio, e a gente até teve essa discussão lá no CAPS. Um
médico disse que isso não era privilégio, que era direito
nosso e eu falei que sim, mas que em comparação à população,
comparado a outros grupos, a gente foi vacinado com muita
antecedência.
O que há de marcante no meio disso tudo é que havia um edital de concurso, que foi
suspenso devido a pandemia, e só se concretizou no final do ano de 2021. O concurso era da
Fundação Estatal de Saúde de Niterói (FeSaúde), que passa a gerir e administrar os
equipamentos da RAPS no município. Sempre foi falado pra gente que isso
aconteceria em algum momento, mas nunca foi deixado às claras
como seria esse concurso. Falavam pra gente que precisávamos
ser classificados, “passem, vocês precisam ser classificados,
depois a gente vê o que faz”. Vinham umas falas da coordenação
de que não era para nos desesperarmos porque ele [coordenador]
tinha esperança de que todo mundo ia ficar. Quando sai o
resultado geral foi um impacto, pois de toda a equipe do nosso
CAPS, só dois profissionais passaram. Eu passei, mas muito
longe. A partir da listagem do resultado geral, no final de
2021, as pessoas começam a pensar seus períodos de permanência
no serviço. Isso começou a gerar muitos conflitos entre nós,
começamos a brigar, o ambiente foi ficando tenso, isso tudo
com a demanda de trabalho aumentando, porque na pandemia houve
a diminuição da frequência, mas depois, com a vacinação, tudo
começou a voltar e veio uma avalanche de procura por
atendimento. Uso de drogas, ansiedade, quadros de depressão.
Começamos a trabalhar muito, a equipe começou a reduzir.
69
* * *
O dia de trabalho nas quartas-feiras era diferente dos outros dias da semana. Nas
quartas-feiras, tínhamos a reunião de equipe e supervisão clínica de alguns casos mais
complexos, onde pensávamos, conjuntamente, direções de intervenção. Num desses encontros
em que se aproximava cada vez mais o dia trinta e um de março - dia em que a equipe iria se
desligar do serviço -, as ansiedades, angústias, incertezas que povoavam o cotidiano estavam
mais afloradas, tanto para os técnicos, estagiárias e coordenação, quanto para usuários e
familiares que nos questionavam, diariamente, se sairíamos mesmo do serviço, tendo
dificuldade para entender como seria possível um estranho exercer o cuidado e não mais o
profissional de referência.
Resposta. Era uma única resposta que se queria. Vamos ficar ou vamos embora? Frente
a palavras e ações que despertavam a esperança de que alguns poderiam permanecer, frente a
palavras e ações que, noutro momento, desesperançavam. O que afetivamente parecia operar
ali era um jogo. Um jogo em que, na medida que a gestão de saúde dava esperanças, a equipe
ficava empolgada. Era a possibilidade de permanecer. Mas, na mesma proporção, ela também
desesperançava. Alguns não suportaram tamanho descaso, silenciamento, falta de respostas e
foram buscando outros trabalhos. Era melhor se garantir em alguma coisa do que, mais dia
menos dia, em coisa nenhuma. E essa operatória parecia funcionar bem, já que alguns ficavam
e sustentavam o trabalho.
71
Penso que também havia, do lado de lá, uma angústia quanto ao modo de operar essa
passagem e até uma fantasia de que se os trabalhadores soubessem que a saída de todos se
concretizaria, poderiam abandonar o trabalho e o equipamento ter que fechar as portas.
Mesmo no caos de trabalhar numa equipe defasada em que muitos profissionais já haviam
saído e que outros estavam saindo, na maioria das vezes, mesmo nessa escassez de matéria
humana, mesmo com o cansaço pesando sob os ombros, todos os pacientes eram atendidos,
todas as demandas eram acolhidas. Volta e meia precisava-se pedir para que um acolhimento
retornasse no outro dia, simplesmente porque não deu tempo, faltavam horas no dia para
tantas demandas. Havia um desdobramento gigantesco para que o trabalho fosse feito. Havia
algo ali, de cada um, que queria garantir alguma coisa.
Pude vivenciar esse momento porque contratada em regime temporário, após a saída
uma psicóloga. Disseram-me, antes mesmo de eu começar, exatamente a data de minha
dispensa. Eu também tive esperanças que o contrato pudesse ser renovado. Acompanhando de
perto todo esse processo, me parecia que o que se buscava garantir era uma continuidade do
trabalho. Depois, já no último mês, já tendo entendido que não, não havia possibilidade
alguma da continuidade do contrato, os profissionais passam a interrogar a coordenação sobre
a chegada da nova equipe, pois havia uma preocupação em fazer a passagem: de equipe, dos
casos, do cuidado, das minucias dos casos mais complexos. Uma passagem também da
identidade de um CAPS muito conhecido pela luta antimanicomial, por ocupar um lugar de
resistência, de questionamentos, enfrentamentos, que carregava a potência de um olhar
político que se juntava para escrever cartas-manifesto frente a acontecimentos na saúde
mental do município.
Não esqueço que, quando da minha entrada no serviço, os colegas logo trataram de me
alertar: não faça nada daquilo que te mandem se você não acreditar no que está fazendo,
profissionalmente, politicamente e eticamente. E vou ser honesta com você, leitora/o, e
comigo mesma: escrevi, até aqui, com um nó na garganta, até que, finalmente, abriu-se
passagem para as lágrimas. Me emociono por lembrar de cada pormenor vivido e
compartilhado durante os quatro meses que fui psicóloga nesse CAPS. Por lembrar de uma
equipe ativa, engajada e que, por nenhum minuto se quer, deixou de pensar no cuidado e de
sustentar o cuidado. Cuidado com os usuários, cuidado uns com os outros.
Foi só na última semana que a nova equipe chegou e, parando para lembrar, foi uma
semana em que tentávamos, em qualquer brecha do dia, transmitir alguma coisa. Em meio a
rotina caótica da última semana em que se apresentava um lugar lotado de profissionais,
72
cenário muito diferente do que estávamos vendo e vivendo nos últimos meses, em qualquer
esbarrada eram feitas tentativas de passagem, de transmissão. Semeadura da memória.
Esbarrou no corredor? Joga algumas sementes, no almoço outra, na convivência outra, na
reunião de equipe outras... Sempre que era possível, algo em nós era mobilizado para
transmitir, para que as sementes do testemunho, mesmo que na pressa do plantio e sem muita
rega no cultivo, pudessem, pelo menos algumas delas, germinar.
Nesse momento de nossa história em que essa pesquisa se debruça, é notório que há
um investimento de desejo, e por isso mesmo, uma política de desejo de destruição total,
inclusive da memória. A memória me foi em partes transmitida no contato com as
profissionais antigas, mas eu não as pude transmitir. Elas não puderam transmitir. Fizemos
parte da equipe de transição e não da transmissão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A chegada da pandemia no Brasil no ano de 2020 força uma série de alterações nos
modos de vida. A implementação de medidas de isolamento social reconfigura o modo como
nos relacionamos com o mundo, já que estar em coletivo se tornou uma ameaça contra a vida.
Reconfigurou também essa pesquisa, que emergiu sob o ruir de um projeto pensado
(DELIGNY, 2018) que pretendia, num CAPS, trabalhar com oficinas de arte, através de
pintura em telas, e de narrativas, com máquinas de escrever. Visto que os serviços estavam em
funcionamento reduzido, isto é, atendendo em caráter ambulatorial, os espaços de
convivência, grupos e oficinas foi suspenso, o que fez com que houvesse a impossibilidade de
abertura desse campo pensado, planejado a priori. Um processo de reinvenção do campo e da
pesquisa foi se montando.
Assim, por mais que houve a abertura das medidas de distanciamento e isolamento social, por
mais que uma outra abertura também tenha acontecido com a derrota de Bolsonaro nas urnas,
e por mais que os CAPS tenham retomado suas atividades, há uma aposta no
acompanhamento terapêutico precisamente pelo seu movimento ininterrupto de abertura para
o fora, para o acontecimento. Movimento potente de tensionamento sempre para o fora do
fora, isto é, de tensão dos próprios movimentos que podem tomar um caminho de
enrijecimento no fazer cotidiano em saúde mental.
O leitor deve ter reparado, ao longo da leitura, que os capítulos que compreenderam o
primeiro e o terceiro tempos apresentam uma memória reduzida em comparação com o
segundo tempo, e talvez tenha pensado que faltou alguma discussão, que faltou preencher
alguma lacuna. Esclarecemos que este foi o próprio sentimento que acompanhou a construção
desses tempos. No primeiro, onde as psicólogas e psicólogos eram chamados a olhar para o
trabalho que vinha sendo feito pelo CAPS antes da pandemia, apresentou-se uma certa
dificuldade: elas iniciavam narrando uma breve memória e, rapidamente, saltavam, quase que
como num movimento de serem arrastadas para falar sobre o período mais agudo da
pandemia. É como se o primeiro tempo fosse um precipício em que as próprias entrevistadas
se lançavam no abismo da pandemia.
Retomando Walter Benjamin, afirmamos que não existe uma verdade daquilo que
aconteceu nos CAPS durante a pandemia de COVID-19. Esse trabalho não teve como
objetivo se debruçar numa busca pela verdade pura e totalizante. O campo é, sobretudo, feito
de entrelaçamentos e o que está em jogo são os movimentos e as paralisias que surgiram e que
o compõe; esses sim, nos interessamos em transmitir. Assim, a dimensão que esse texto
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alcança é o de dar passagem para que essas narrativas ganhem espaço e semeiem o mundo.
Entendemos que o esforço dessa pesquisa consegue permitir, mesmo que como um relampejo,
que as experiências possam ter um lugar, lugar de transmissão do testemunho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2016.
BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119.
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das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental. Diário Oficial da União, 9 abr. 2001. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 23 nov. 2022.
BUTLER, J. Traços humanos nas superfícies do mundo. 2020. Disponível em: <
https://www.n-1edicoes.org/textos/75>. Acesso em: 30 jun. 2021.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. 1ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2010.
Esclarecido. In: BERNARDES, A. G.; TAVARES, G. M.; Moraes, M. (Orgs). Cartas para
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PASSOS, E.; BENEVIDES DE BARROS, R. Por uma política da narratividade. In: PASSOS,
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intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 151-172.
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loucura: vol. 2. São Paulo: Hucitec, 1991. p. 131-138.
SZASZ, T. S. O mito da doença mental. 2ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
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VIVAS, P. Psicólogos consideram saúde mental em Niterói ineficaz. Enfoco, Niterói – RJ, 16
de abril de 2019. Disponível em: <https://enfoco.com.br/noticias/cidades/psicologos-
consideram-saude-mental-em-niteroi-ineficaz-8196>. Acesso em: 16 ago. 2022.
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ANEXOS
ANEXO I
Você está sendo convidado para participar desta pesquisa, que tem sua temática
voltada a Saúde Mental e o atual contexto da pandemia de COVID-19. Sua participação não é
obrigatória. A qualquer momento, você poderá desistir de participar e retirar seu
consentimento. Sua recusa, desistência ou retirada de consentimento não acarretará prejuízo.
Sua participação nesta pesquisa consistirá em dialogar com a pesquisadora sobre a sua
experiência/vivência no campo da saúde mental frente ao cenário da pandemia da COVID-19
a partir de entrevista aberta, online via aplicativo de reunião/conferência, com duração de, no
máximo, 1h30m (uma hora e trinta minutos). Os dados obtidos por meio desta pesquisa serão
confidenciais e não serão divulgados em nível individual, visando assegurar o sigilo de sua
participação.
Declaramos, ainda, que esta pesquisa está de acordo com a Resolução Nº 466, de 12
de dezembro de 2012, a qual contém as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas
envolvendo Seres Humanos, em substituição da Resolução 196/96, bem como com a
Resolução 510/16, a qual refere-se às Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e
Sociais envolvendo seres humanos.
Caso você concorde em participar desta pesquisa, assine ao final deste documento, que
possui duas vias, sendo uma delas sua, e a outra, do pesquisador responsável/coordenador da
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assinatura, se estiver dentro de minhas possibilidades visuais, ou por expressão oral através de
gravação, conforme o art. 5o da Resolução 510 de 2016.
Nome legível:___________________________________________________________
Endereço:___________________________________________________________________
_________________________________________________________________.
________________________________________
________________________________________