Seu olho, mesmo acostumado com o serviço, se fixou naquelas raspas da madeira em forma de finas cascas que iam saindo à medida em que, com o instrumento adequado, ele ia acertando a madeira. Retirar o excesso, abrir a beleza da madeira, como aquilo lhe fazia bem! Então, em um rápido passar da página dos minutos do tempo, ele sentiu, mais uma vez, como há muito não ocorria, que o seu coração ainda guardava algum excesso indevido, coisa de memória, reflexo de seu passado que o alcançou. Olhou para o menino ali próximo executando a sua própria tarefa. Tão belo, tão meticuloso naquilo que aprendia e que fazia em sua oficina. Meu menino, pensou e suspirou. Mas era um “meu” sem muita força de convicção, com um sabor de “não tão meu”. Lutava contra esses pensamentos, mas era inevitável que fosse, aqui e acolá, assaltado por eles. Sobreveio a sombra que lhe tomou os olhos de forma semelhante quando ouviu o relato da jovem Maria que o deixou totalmente perplexo. Maria estava grávida! O que iriam pensar dele, um reconhecido justo? Mas não era dele, e a Lei era precisa: seria necessário - e de pronto – que ele fosse denunciar a jovem. Aquele relato sobre o anjo que ele não conseguiu ouvir bem, diante da perplexidade que o tomou por inteiro, o deixou, na época, mais confuso ainda. Já ia além de uma década, mas ainda lhe viera, ali, o sentimento. Então pensou: porque Deus não usa de seu formão e tira logo toda essa casca grossa que se acumulou em meu coração, pois mesmo tendo tudo sido resolvido, ainda há o que ser tirado. Sou humano, e conosco – frágeis criaturas - é sempre assim, as mágoas podem permanecer para além de nossa própria vontade. Olhou para cima e gritou o conhecido trecho do salmo: “Porque me abandonastes?”. - O que o senhor falou, Paizinho? Perguntou o menino. Que doçura era aquela palavra carinhosa na boca da criança! - Nada, filho, é só um salmo. Depois balançou a cabeça, certamente ele, José, o carpinteiro, não foi abandonado. Mas, pensou: por que Deus não empunhava a sua própria ferramenta para fazer como ele aprendeu: força numa mão, firmeza na outra, e assim tiraria as cascas grossas que restaram em seu coração? - Força numa mão, firmeza na outra. Gritou lembrando o próprio pai lhe ensinando há muito tempo atrás. - Sim, paizinho, já aprendi, posso fazer? - Não filho, eu mesmo irei terminar este trabalho. José voltou para dentro de si, avistou as cascas grossas que ainda restavam em seu interior, súbito lhe ocorreu algo. Força... Sim, tantas forças que ocorreram. A força dos sonhos com os anjos, a força bruta da viagem ao Egito e da notícia triste da morte de tantos inocentes. E, acima de tudo, a força que veio de Deus para sustentar tudo aquilo. Deus já mandou a Sua força, pensou. - Ora, ora, ora. Ao passo em que batia cada vez com mais intensidade a voz aumentava. A força já veio e se faz presente a cada dia, é o braço do Senhor dos Exércitos, resta então, para mim, ser eu mesmo a mão que deve dar a firmeza, fazer a minha própria parte nisso tudo! - Força numa mão, firmeza na outra! - Força numa mão, firmeza na outra! Ouviu o menino o imitar engrossando a voz. Começou a rir descontroladamente como quem está sentindo um forte alívio interior. Daí chegou Maria, com toda a sua ternura que o deixava paralisado a cada vez que a via, era como se sempre fosse a primeira vez que aquela beleza se apresentava diante do olhar dele. Olhou-a e discerniu: é ela a minha firmeza, foi por meio dela, em seu sim e coragem, que nos fez presente a força de Deus diante de nossos olhos. Todas as cascas de seu coração, as que restavam, foram retiradas naquele momento e sobreveio uma beleza interior semelhante àquela que a madeira apresentava brotando quando se faz renovada, mostrando o vigor de seu interior. Ele sorriu, incontrolavelmente, e o pequeno Jesus se aproximou e o abraçou sem nenhuma explicação. Anos depois, na cruz, Jesus repetiu aquelas mesmas palavras com angústia (“Por que me abandonastes?”), mas na lembrança do abraço de José, sentiu outro abraço mais forte, o de Deus-Pai cuja consolação superou toda a dor daquele momento. Na força do sacrifício da cruz e na firmeza de nossos passos, nós podemos tirar as cascas que nos restam, também.
(*) Alegoria de produção pessoal, mas fortemente
sentida em momento súbito de oração surgida em meio ao cotidiano e que me fez lembrar este grande homem que foi São José.