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Força numa mão e firmeza na outra

Giovanni Colares, em março de 2023 (*)


Seu olho, mesmo acostumado com o
serviço, se fixou naquelas raspas da madeira
em forma de finas cascas que iam saindo à
medida em que, com o instrumento
adequado, ele ia acertando a madeira.
Retirar o excesso, abrir a beleza da madeira,
como aquilo lhe fazia bem! Então, em um
rápido passar da página dos minutos do
tempo, ele sentiu, mais uma vez, como há
muito não ocorria, que o seu coração ainda
guardava algum excesso indevido, coisa de
memória, reflexo de seu passado que o
alcançou.
Olhou para o menino ali próximo
executando a sua própria tarefa. Tão belo,
tão meticuloso naquilo que aprendia e que
fazia em sua oficina. Meu menino, pensou e
suspirou. Mas era um “meu” sem muita
força de convicção, com um sabor de “não
tão meu”. Lutava contra esses
pensamentos, mas era inevitável que fosse,
aqui e acolá, assaltado por eles. Sobreveio a
sombra que lhe tomou os olhos de forma
semelhante quando ouviu o relato da jovem
Maria que o deixou totalmente perplexo.
Maria estava grávida! O que iriam pensar
dele, um reconhecido justo? Mas não era
dele, e a Lei era precisa: seria necessário - e
de pronto – que ele fosse denunciar a
jovem. Aquele relato sobre o anjo que ele
não conseguiu ouvir bem, diante da
perplexidade que o tomou por inteiro, o
deixou, na época, mais confuso ainda.
Já ia além de uma década, mas ainda lhe
viera, ali, o sentimento. Então pensou:
porque Deus não usa de seu formão e tira
logo toda essa casca grossa que se
acumulou em meu coração, pois mesmo
tendo tudo sido resolvido, ainda há o que
ser tirado. Sou humano, e conosco – frágeis
criaturas - é sempre assim, as mágoas
podem permanecer para além de nossa
própria vontade. Olhou para cima e gritou o
conhecido trecho do salmo: “Porque me
abandonastes?”.
- O que o senhor falou, Paizinho?
Perguntou o menino. Que doçura era
aquela palavra carinhosa na boca da
criança!
- Nada, filho, é só um salmo.
Depois balançou a cabeça, certamente
ele, José, o carpinteiro, não foi abandonado.
Mas, pensou: por que Deus não empunhava
a sua própria ferramenta para fazer como
ele aprendeu: força numa mão, firmeza na
outra, e assim tiraria as cascas grossas que
restaram em seu coração?
- Força numa mão, firmeza na outra.
Gritou lembrando o próprio pai lhe
ensinando há muito tempo atrás.
- Sim, paizinho, já aprendi, posso fazer?
- Não filho, eu mesmo irei terminar este
trabalho.
José voltou para dentro de si, avistou as
cascas grossas que ainda restavam em seu
interior, súbito lhe ocorreu algo. Força...
Sim, tantas forças que ocorreram. A força
dos sonhos com os anjos, a força bruta da
viagem ao Egito e da notícia triste da morte
de tantos inocentes. E, acima de tudo, a
força que veio de Deus para sustentar tudo
aquilo. Deus já mandou a Sua força, pensou.
- Ora, ora, ora. Ao passo em que batia
cada vez com mais intensidade a voz
aumentava.
A força já veio e se faz presente a cada
dia, é o braço do Senhor dos Exércitos, resta
então, para mim, ser eu mesmo a mão que
deve dar a firmeza, fazer a minha própria
parte nisso tudo!
- Força numa mão, firmeza na outra!
- Força numa mão, firmeza na outra!
Ouviu o menino o imitar engrossando a voz.
Começou a rir descontroladamente como
quem está sentindo um forte alívio interior.
Daí chegou Maria, com toda a sua
ternura que o deixava paralisado a cada vez
que a via, era como se sempre fosse a
primeira vez que aquela beleza se
apresentava diante do olhar dele. Olhou-a e
discerniu: é ela a minha firmeza, foi por
meio dela, em seu sim e coragem, que nos
fez presente a força de Deus diante de
nossos olhos.
Todas as cascas de seu coração, as que
restavam, foram retiradas naquele
momento e sobreveio uma beleza interior
semelhante àquela que a madeira
apresentava brotando quando se faz
renovada, mostrando o vigor de seu
interior.
Ele sorriu, incontrolavelmente, e o
pequeno Jesus se aproximou e o abraçou
sem nenhuma explicação.
Anos depois, na cruz, Jesus repetiu
aquelas mesmas palavras com angústia
(“Por que me abandonastes?”), mas na
lembrança do abraço de José, sentiu outro
abraço mais forte, o de Deus-Pai cuja
consolação superou toda a dor daquele
momento. Na força do sacrifício da cruz e na
firmeza de nossos passos, nós podemos
tirar as cascas que nos restam, também.

(*) Alegoria de produção pessoal, mas fortemente


sentida em momento súbito de oração surgida em
meio ao cotidiano e que me fez lembrar este grande
homem que foi São José.

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