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O que os Olhos não Vêem

Sylvio Roque de G. Horta


(doutorando da FEUSP)

Não se trata, a princípio, de se posicionar contra ou a favor do aborto,


mas de se pensar um pouco sobre o que é.

Para nos aproximarmos da resposta, temos que formular a questão


mais complexa que há: o que é a vida de cada um?

Há algo mais evidente? Sim e não. Se a realidade da vida fosse


somente evidências, não haveria problema, pois todos nós saberíamos
se ao praticarmos o aborto estaríamos ou não dando fim à vida de
alguém.

Quem vê o feto como alguém vivo e inocente é contra o aborto. Quem


defende o aborto, vê o feto como alguma coisa que pode ser destruída
e não como alguém com direito à vida. Caso contrário, estaria
defendendo a possibilidade de se matar alguém inocente por
conveniência.

Não vejo muito bem como se pode negar que o feto seja vida. Na
verdade, empregar a palavra "feto" já é tirar um pouco da vida da
criança que está lá na barriga da mãe. Toda essa terminologia
científica, que foi feita para coisas, acaba nos encobrindo a realidade
pessoal. Não bastasse isso, fala-se em "interrupção" da gravidez... um
pause no controle do vídeo, mas que - no caso - não tem como ser
revertido.

Mesmo que a nossa vida se reduzisse à biologia, não teríamos como


negar que o organismo abortado já era vida humana em toda sua
complexidade. Mas se não se tratar apenas de um organismo, mas de
uma pessoa, isto é, de alguém corporal?

Nós somos pessoas corpóreas, não corpos. Quando a mãe está grávida
diz: "estou grávida". Não dizemos (ainda): "Olha! Aquele corpo
engravidou". Dizemos que a Renata, a Fabiana, a Malu etc., está
grávida. Que vai ser mãe. Que Fulano vai ser pai. Trata-se de vida
pessoal, de projetos, de trajetórias pessoais.

"Eu vi a mulher preparando outra pessoa,


O tempo parou para eu olhar para aquela barriga..."

O que justificaria, então, o aborto?

Não entendo quando se fala da liberdade da mulher para se decidir


sobre o seu corpo. Desde quando o corpo do filho é propriedade da
mãe?! Isso é absurdo.
A única argumentação que me parece razoável é a que apela para as
dificuldades que, principalmente, a mulher terá ao criar um filho não
desejado (embora, é bom não esquecermos que essas dificuldades,
também, existirão mesmo no filho desejado). Todo mundo sabe como
pode ser complicado, como pode ser sofrido, como pode atrapalhar os
planos...

Mas, então, por que não se matar crianças mais velhas que estão
dando trabalho? Talvez as crianças de rua, os menores abandonados?
Qual a diferença?

A diferença só pode ser que nesse caso estamos vendo que se trata de
alguém. No caso do aborto, não é tão fácil de se ver. O que os olhos
não vêem, o coração não sente.

Temos que nos esforçar para ver vida pessoal em alguém que ainda
não nasceu. Ainda mais, se esse alguém for mongolóide, cego, surdo,
enfim, tiver algum defeito físico. Temos que imaginar um cego
crescido, um Stevie Wonder, um mongolóide que conhecemos e, que
nunca pensaríamos em matar etc. Só, desse modo, veríamos que se
trata de uma loucura, de um crime.

Voltemos àquele filme do óvulo sendo fecundado e a criança se


formando. Se nos projetamos em relação àquele óvulo fecundado
como se fosse uma criança que vai nascer, como um bebê, como uma
pessoazinha, menina ou menino, não é possível que queiramos matá-
la. Sugá-la com um aspirador e jogá-la no lixo!

Agora, um feto, com desenvolvimento parcial das funções cognitivas,


ou mesmo com má-formação congênita, já vai dando vontade de
tratar como coisa.

Essa interpretação científica do homem, quando aplicada para além


dos limites da ciência está nos encobrindo a realidade pessoal. Trata-
se de um verdadeiro terrorismo de laboratório, de um totalitarismo
das coisas. Que espécie de projetos estamos fazendo? Em que sentido
nos projetamos? Quais são as coisas que importam? O quem das
coisas não importa?

Há uma série de fatores que vêm nos anestesiando para o sentido da


vida. Perdemos a capacidade de suportar a dor, de ter algo que seja
sagrado. Que tipo de mundo estamos criando?

"Well, I think it's fine building Jumbo planes,


or taking a ride on a cosmic train, switch on
summer from a slot machine, yes get what you
want to, if you want, 'cause you can get anything.
I know we've come a long way,
we're changing day to day,
but tell me, where do the children play?" (Cat Stevens)

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