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Ficha Técnica

Título original: Everyday Blessings


Título: Pais Conscientes, Filhos Felizes
Autor: Jon Kabat-Zinn
ISBN: 9789892340234

LUA DE PAPEL
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© 1997, 2014, Myla Kabat-Zinn e Jon Kabat-Zinn


Copyright da introdução © 2014, Myla Kabat-Zinn e Jon Kabat-Zinn
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Myla e Jon Kabat-Zinn
PAIS CONSCIENTES FILHOS FELIZES
COMO CRIAR OS FILHOS COM ATENÇÃO PLENA
Traduzido do inglês por
Raquel Dutra Lopes
ACERCA DE
PAIS CONSCIENTES,
FILHOS FELIZES
“As páginas deste livro convidam-nos a descobrir uma forma de criar
os filhos no momento presente. Essa postura ajuda-nos a vê-los como
são, e a nós mesmos, com maior consciência. Myla e Jon Kabat-Zinn
mostram-nos um caminho sábio que conduz a uma ligação profunda,
à empatia e ao amor, tanto pelos nossos filhos como por nós próprios.
O livro que escreveram é um tesouro, sobretudo nestes tempos velozes
e cada vez mais acelerados em que tantos de nós procuramos mais
equilíbrio e plenitude nas nossas vidas e relações.”
NANCY CARLSSON-PAIGE, AUTORA DE TAKING BACK
CHILDHOOD
“Até que enfim, um guia de inteligência emocional para pais! Myla e
Jon Kabat-Zinn oferecem um caminho profundamente poderoso e
sensato para cultivar uma consciência sustentadora na vida familiar.
DANIEL GOLEMAN, AUTOR DE INTELIGÊNCIA
EMOCIONAL
“Este é um livro necessário. Se tem filhos, irá lê-lo com fascinação,
relê-lo e consultá-lo vezes sem conta ao longo da sua vida. Se não
tem filhos, aplica-se o mesmo, pois não se trata apenas de um guia
prático precioso para pais, é também uma bela e sensata cartilha
para a vida. Ler este livro pode mudar a vida de uma pessoa.
Recomendo-o com todo o entusiasmo.”
MARION WRIGHT EDELMAN, PRESIDENTE DO
CHILDREN’S DEFENSE FUND
“O trabalho interior da parentalidade com atenção plena é uma
prática espiritual profunda... Pais Conscientes, Filhos Felizes é um
livro de grande mérito que inspirará e orientará todos os pais.”
THICH NHAT HANH, MESTRE ZEN, AUTOR DE THE
MIRACLE OF MINDFULNESS
para os nossos filhos e netos
e
para pais e filhos em todo o mundo
Agradecimentos
Quando criámos este livro em conjunto, cada um de nós escreveu
capítulos individualmente, após o que fomos dando feedback um ao outro
ao longo de muitas versões e alterações. Para esta edição revista e
atualizada, seguimos a mesma abordagem. Debruçámo-nos sobre os
capítulos que tínhamos escrito, efetuámos as modificações que nos
pareceram necessárias e depois, lado a lado, percorremos todo o texto,
revendo rascunhos e produzindo material novo. Cada capítulo passou a ser
assim o resultado do nosso escrutínio duplo, tanto em pensamento como
na própria escrita. O produto final é realmente um esforço de colaboração
dos nossos corações e mentes e, claro está, da vida que partilhamos.
Queremos, em primeiríssimo lugar, agradecer aos nossos filhos – pela
honestidade e pelo discernimento, bem como por tolerarem que
partilhemos algo das suas vidas com o mundo para lá da nossa família.
Afinal, as histórias das infâncias deles refletem momentos preciosos que
só a eles pertencem. Somos abençoados por existirem e pelo amor que nos
dedicam.
Também queremos agradecer aos nossos pais, Sally e Elvin Kabat, e
Roslyn e Howard Zinn, pelo amor, por tudo o que aprendemos com eles e
pelas formas impressionantes como expressaram o seu amor no mundo.
Em várias etapas da escrita da primeira edição, fomos pedindo
comentários a amigos nossos. Desejamos declarar-lhes a nossa gratidão.
Larry Rosenberg, Sarah Doering, Robbie Pfeufer Kahn, Becky Sarah,
Norman Fisher, Jack Kornfield e Trudy Goodman leram o manuscrito e
deram-nos perspetivas e sugestões preciosas. Também agradecemos as
sugestões de Hale Baycu-Schatz, Kathryn Robb, Jenny Fleming-Ives,
Mary Crowe, Nancy Wainer Cohen, Sala Steinbach, Sally Brucker,
Barbara Trafton Beall e Nancy Bardacke.
Várias pessoas contribuíram com a sua própria escrita e, dessa forma,
com parte dos seus próprios corações e almas para o nosso esforço.
Sentimos uma profunda dívida para com a generosidade e eloquência
dessas pessoas: Caitlin Miller, pelos seus poemas em “Cartas a Uma
Menina Interessada em Zen”; Lani Donlon, pela história em “Valores de
Família”; Cherry Hamrick, pela sua carta em “A Atenção Plena na Sala de
Aula”; e Rebecca Clement, aluna dela, pela sua; Ralph e Kathy Robinson,
pelo poema escrito pelo filho, Ryan Jon Robinson, e pelo relato de Ralph
acerca da vida de Ryan e da sua morte prematura, em “Impermanência”; e
Susan Block, pelo material que se encontra em “Nunca é Demasiado
Tarde”.
Rose Thorne, Becky Sarah, Hale Baycu-Schatz, Kathryn Robb, Robbie
Pfeufer Kahn e Levin Pfeufer também contribuíram com material para
este livro e, por isso, estamos-lhes gratos.
Eu (mkz) gostaria de agradecer a Robbie Pfeufer Kahn pelas muitas
conversas que tivemos ao longo dos anos acerca das necessidades das
crianças. A investigação de referência de Gayle Peterson acerca da ligação
mente/corpo no parto, e o seu livro Birthing Normally: A Personal Growth
Approach to Childbirth, publicado em 1984, influenciou a minha
perspetiva acerca do parto e do nascimento, bem como parte do conteúdo
das aulas de preparação para o parto, que ministrei na década de 1980.
Também queremos mostrar-nos reconhecidos a todos aqueles que
partilharam connosco histórias acerca das suas experiências enquanto pais.
Muitas destas histórias encontram-se aqui incluídas sob anonimato,
respeitando o que nos pediram. Algumas, por motivos de espaço e
conteúdo, não puderam ser incluídas no livro. Não obstante, estamos
gratos às pessoas que nos abordaram com as suas histórias pungentes.
Foi de Robert Bly que eu (mkz) ouvi pela primeira vez a história “Sir
Gawain e a Dama Abominável”, contada da sua maneira
maravilhosamente sentida e comovente. O Robert, por seu turno, diz que o
mérito é de Gioia Timpanelli. E esta, por sua vez, aponta para a tradição
oral medieval, para “O Conto da Mulher de Bath”, de Chaucer, e os
Mistérios da Deusa, do Reino Unido. Baseámos a nossa versão sobretudo
no livro The Sword and the Circle, de Rosemary Sutcliff, e recorremos
bastante à sua belíssima prosa para a recontar.
A nossa editora na Hyperion/Hachette, Martha Levin, recebeu com
cuidados de parteira esta segunda edição, numa altura de transição na
Hyperion. Apreciámos profundamente o esmero, a atenção e a
consideração que concedeu ao projeto. Agradecemos também à nossa
revisora de texto, Lauren Shute, por toda a ajuda e orientação até o livro
ficar pronto, e a Bob Miller, que foi quem apresentou o livro à Hyperion.
Queremos ainda mencionar o Museu Britânico, em Londres, que nos
permitiu que fotografássemos uma das suas estátuas, a partir da qual foi
criado o gráfico da flor de lótus.
Uma vez aceite que até mesmo entre os seres humanos mais próximos
continuam a existir distâncias infindas, uma maravilhosa vida lado a
lado pode prosperar, se conseguirem amar a distância entre eles, a
qual possibilita que se vejam um ao outro por completo com o céu em
pano de fundo.
RAINER MARIA RILKE, Cartas
Introdução à Edição Revista
Alguma vez arrancou ervas daninhas de um jardim? Quanto mais se
arranca, mais ervas daninhas se veem. Num minuto, pensamos que
apanhámos todas. No seguinte, já há mais. Por isso, é preciso ser muito
paciente e apreciar o processo em si mesmo, e não apenas o ponto final
desejado. Rever um livro sobre parentalidade, mais de dezoito anos depois
de o escrevermos pela primeira vez, não é muito diferente, e dá-nos
alguma humildade. Era inevitável que as nossas ideias se alterassem um
pouco com os anos adicionais de experiência enquanto pais e, agora, avós.
Por mais claramente que sentíssemos que víamos as coisas antigamente,
com a perspetiva de mais tempo e da continuada cultivação da atenção
plena, a nossa capacidade de ver e compreender evoluiu, aprofundou-se, e
aquilo de que tínhamos tanta certeza tornou-se mais matizado. Trata-se de
um processo inesgotável, o qual, esperamos, nos permite que continuemos
a aprender durante toda a vida. Através desta lente, revisitámos todo o
livro, preservando a essência da edição original. Aperfeiçoámos a escrita e
simplificámos o que dizíamos, sempre que algo nos pareceu pouco claro,
ou quando sentimos necessidade de esclarecer um ponto ou uma
perspetiva que não tivéssemos visto antes. Trabalhámos novamente o
texto, quer no tom quer no conteúdo, para refletir as formas como as
nossas visões se alteraram desde a altura em que o escrevemos e, em
parte, claro está, porque o mundo também mudou imenso, tanto para os
pais como para os filhos.
De facto, o mundo em que hoje em dia as crianças nascem é, em muitos
sentidos, tremendamente diferente da era em que nós criámos os nossos
filhos. Para começar, estes nasceram num mundo puramente analógico e,
por conseguinte, mais lento. Agora, com o advento da Internet e da
conetividade sem fios, há também que enfrentar o mundo digital e a sua
velocidade sempre a aumentar, uma realidade alternativa que, com todas
as suas maravilhas e utilizações, facilmente nos leva à autodistração e a
uma experiência alheada, justamente quando mais precisamos de estar
presentes e atentos para enfrentar os desafios emocionais da parentalidade
e da vida, bem como para usufruir por completo das alegrias também. O
mindfulness, ou atenção plena, é mais necessário do que nunca para nos
orientarmos por este novo território ao criarmos os nossos filhos e
continuarmos a cultivar e levar vidas próprias satisfatórias. Estas duas
trajetórias de vida, a de cuidarmos dos nossos filhos e a de nos
desenvolvermos a nós mesmos, encontram-se intimamente interligadas.
O mindfulness como forma de estar e como prática meditativa quer
informal, quer formal, alargou-se à sociedade em geral num nível que, em
1997, seria inconcebível. Existe agora uma ciência em rápido crescimento
e cada vez mais robusta que se debruça sobre a prática da atenção plena e
os seus efeitos na nossa biologia, psicologia e interações sociais. Esta
prática afeta o cérebro e os genes, a capacidade de atenção, a regulação
das emoções, o controlo dos impulsos, a perspetiva, o funcionamento
executivo em geral e muitos outros traços importantes que fazem de nós
quem somos, bem como a nossa capacidade de compreender a profunda
ligação que partilhamos uns com os outros através da nossa capacidade
inata de sintonia, empatia, compaixão e bondade.
Nunca houve indícios científicos mais convincentes de que cultivar uma
maior atenção plena pode surtir benefícios significativos para nós e para
aqueles com quem partilhamos a vida. E nunca foi tão importante que os
pais cultivassem esta capacidade de que todos dispomos para a
consciência franca do momento presente e, em última instância, para uma
maior sabedoria, de forma a levarem vidas com propósito e sentido, de
modos emocional e socialmente inteligentes.
Esperamos que esta edição revista de Pais Conscientes, Filhos Felizes o
toque de alguma forma e inspire a cultivar mais atenção e emoção plenas
na sua vida como progenitor e indivíduo.
MYLA E JON KABAT-ZINN
22 de fevereiro de 2014
Prólogo – jkz
O nosso primeiro filho, que saiu de casa para frequentar o primeiro ano de
faculdade, chega à uma e meia da madrugada depois do jantar do Dia de
Ação de Graças, trazido de carro por um amigo. Quando nos telefonou
mais cedo a dizer que, afinal, não poderia chegar a tempo de comer
connosco, todos ficámos desiludidos e, por uns momentos, senti mais do
que uma ligeira onda de irritação. Deixámos a porta destrancada, como
combinado, tendo-lhe dito que nos acordasse quando chegasse. Não foi
preciso. Ouvimo-lo entrar. A energia é jovem, vital, derramando-se mesmo
nas suas tentativas de ser silencioso. Sobe as escadas. Chamamo-lo, num
sussurro, para que não acorde as irmãs. Ele vem até ao nosso quarto.
Abraçamo-nos. O meu lado da cama está mais próximo dele do que o de
Myla. Ele deita-se sobre o meu peito, mais ou menos de costas, estica-se e
abarca-nos com os braços, mas ainda mais com o seu ser. Está contente
por estar em casa. Fica assim deitado, enviesado sobre o meu corpo, como
se fosse a coisa mais natural do mundo. Qualquer laivo de irritação pela
hora tardia, e de desapontamento por ele não ter chegado a tempo de
jantar, evapora-se de imediato.
Sinto a alegria que irradia do meu filho. Nada tem de demasiado
exuberante, ou maníaca. A sua energia é jovial, satisfeita, calma, divertida.
É como a sensação de velhos amigos reunidos e, para além disso, contém
uma celebração familiar. Ele agora está em casa, aqui no nosso quarto
escurecido. Pertence a este lugar. O laço que nos une aos três é palpável.
Um sentimento de felicidade enche-me o peito, a que se junta uma série de
imagens da minha vida com ele, capturada na plenitude deste momento.
Este miúdo enorme de dezanove anos, deitado em cima de mim, que eu
abracei tanto quanto possível até ele ser capaz de se escapulir e correr para
o mundo, como fez, agora com uma barba hirsuta e músculos poderosos, é
meu filho. Eu sou o seu pai. Myla é a sua mãe. Isto é algo que sabemos
tacitamente. Que bênção, desfrutarmos das nossas felicidades distintas que
se unem enquanto nos encontramos aqui deitados.
Passado algum tempo, ele deixa-nos para ir ver um filme. Tem
demasiada energia para poder dormir. Quanto a nós, tentamos voltar a
dormir, mas não conseguimos. Ficamos horas às voltas, numa névoa de
exaustão insone. Passa-me pela cabeça ir até ao quarto dele para passar
mais tempo na sua companhia, mas não o faço. Nada tenho que perseguir,
nem a ele, e não me sinto com sono. As profundezas do nosso
contentamento finalmente imperam e dormimos um pouco. Saio para
trabalhar na manhã seguinte, bem antes de ele acordar. Todo o meu dia se
imbui da noção de que o verei quando chegar a casa.
>>>
Momentos destes, quando não são subvertidos por nós, como eu poderia
facilmente ter feito com a minha irritação inicial, e quando não passam
completamente despercebidos, como acontece com tantos dos nossos
momentos, fazem parte da bênção e da felicidade de sermos pais. São
especiais? Será apenas no momento da chegada, na primeira vez que
voltam a casa da faculdade, ou no nascimento de um filho, ou na sua
primeira palavra ou primeiro passo, que provamos uma ligação tão
profunda e como é abençoada, ou será que tais momentos acontecem com
maior frequência do que imaginamos? Será possível que sejam
abundantes, por oposição a raros, disponíveis para nós praticamente a
qualquer momento, mesmo nos mais difíceis, se nos mantivermos em
sintonia tanto com os nossos filhos como com este momento?
Segundo a minha experiência, tais momentos são abundantes. Mas
constato que, com demasiada facilidade, passam despercebidos e são
negligenciados, a menos que me esforce por vê-los e capturá-los na minha
consciência. Constato que tenho continuamente de trabalhar nisso, porque
a minha mente facilmente fica velada por tantas outras coisas, o que a
impossibilita de registar a plenitude do momento.
Na minha opinião, todos nós, pais, independentemente das idades dos
filhos, seja em que altura for, encontramo-nos numa viagem árdua, numa
espécie de odisseia, quer o saibamos, quer não, e quer isso nos agrade,
quer não. A viagem, claro está, é nada menos do que a própria vida, com
todas as voltas que dá, com os seus altos e baixos. A forma como vemos e
mantemos a totalidade das nossas experiências na mente e no coração faz
uma diferença enorme na qualidade desta viagem que empreendemos e
naquilo que isso significa para nós. Pode influenciar onde vamos, o que
acontece, o que aprendemos e como nos sentimos ao longo do percurso.
Uma aventura plenamente vivida requer uma espécie particular de
empenho e presença, uma atenção que, a meu ver, é extraordinariamente
tenaz, mas também delicada, recetiva. Muitas vezes, a própria viagem
ensina-nos a prestar atenção, desperta-nos. Por vezes, esses ensinamentos
emergem de modos dolorosos ou aterradores, que nós nunca teríamos
escolhido. Para mim, o desafio de se ser pai é vivermos os nossos
momentos tão plenamente quanto possível, mapeando o nosso próprio
rumo da melhor forma que pudermos e, acima de tudo, educando os
nossos filhos e, nesse processo, desenvolvendo-nos a nós mesmos. Os
nossos filhos, e a viagem em si, proporcionam-nos oportunidades sem fim
para isso.
Trata-se claramente do trabalho de uma vida e é pela vida que o
empreendemos. Como todos sabemos e sentimos, em causa não está fazer
um trabalho perfeito ou “acertar” sempre. Parece mais uma missão do que
uma procura de qualquer coisa. “Perfeito” simplesmente não tem
relevância, independentemente do que pudesse significar no que diz
respeito à parentalidade. O importante é que sejamos autênticos, que
honremos os nossos filhos – e a nós mesmos – o melhor que pudermos, e
que a nossa intenção seja, no mínimo, a de não fazer mal algum.
A mim, parece-me que o trabalho se encontra todo na presença, na
qualidade da atenção que atribuo a cada momento e no meu empenho em
viver e ser pai com a maior consciência possível. Sabe-se que a
inconsciência de um ou dos dois pais, sobretudo quando se manifesta em
opiniões rígidas e inflexíveis, em egoísmo e na falta de uma presença e
uma atenção francas, dá invariavelmente azo a mágoa nos filhos. Estes
tristes hábitos de sermos e de nos relacionarmos são com muita frequência
sintomas de uma mágoa subjacente também nos pais, embora possam
nunca ser vistos como tal sem uma experiência que nos desperte para algo
maior e mais amplo nas nossas vidas e relações.
Talvez cada um de nós, à sua maneira, possa honrar a perceção de Rilke
de que há sempre distâncias infindáveis mesmo entre os seres humanos
mais próximos, incluindo os nossos próprios filhos. Se compreendermos e
aceitarmos verdadeiramente essa perspetiva, por aterradora que por vezes
pareça, talvez possamos optar por viver de maneira que consigamos
experienciar a “maravilhosa vida lado a lado”, capaz de prosperar quando
aceitamos e amamos a distância que nos deixa ver o outro por completo
com o céu em pano de fundo.
Vejo isto como o nosso trabalho enquanto pais. Para o assumirmos,
precisamos de continuar a criar, proteger e guiar os nossos filhos,
trazendo-os connosco até que estejam prontos para percorrerem os seus
próprios caminhos. Em paralelo, também precisamos de continuar a
crescer e a desenvolver-nos – cada um de nós à sua própria maneira, como
uma pessoa única, com uma vida própria – para que, quando olhem para
nós, também vejam a nossa plenitude com o céu em pano de fundo.
Isto nem sempre é fácil. Ser um pai consciente é obra. Implica
conhecermo-nos interiormente e trabalharmos na interseção em que as
nossas vidas se cruzam com as dos nossos filhos. É particularmente difícil
nesta era, em que a cultura se intromete cada vez mais nos nossos lares e
nas vidas dos nossos filhos, de tantas maneiras novas e diferentes, e em
que temos uma capacidade de atenção cada vez mais diminuta, com a
mente cada vez mais distraída.
Uma razão pela qual pratico meditação consiste em manter o meu
próprio equilíbrio e clareza mental perante desafios tão imensos e ser
capaz de me manter mais ou menos na rota através de todas as mudanças
atmosféricas com que, como pai, me deparo todos os dias desta viagem.
Disponibilizar tempo todos os dias, por norma de manhã bem cedo, para
um período de imobilidade silenciosa, nem que seja por uns minutos,
ajuda-me a ser mais calmo e equilibrado, a ver com mais clareza e
abrangência, a ser mais conscientemente ciente do que é de facto
importante e a, uma e outra vez, optar por viver de acordo com essa
noção.
Para mim, o mindfulness, cultivado em períodos de imobilidade e, ao
longo do dia, nas várias coisas que dou por mim a fazer, aguça a
sensibilidade do momento presente, ajudando-me a manter o coração pelo
menos um pouco mais aberto e a mente mais clara, de maneira a ter a
possibilidade de ver os meus filhos como são, reconhecer o que poderão
precisar de mim e estar mais presente nos momentos que partilhamos.
Mas o facto de praticar meditação não significa que seja sempre calmo,
bondoso ou delicado, ou que esteja sempre presente, já agora. Há muitas
vezes em que isso não acontece. Não significa que saiba sempre como
estar ou o que fazer, nem que nunca me sinta confuso ou perdido. Mas
estar nem que seja um pouco mais consciente ajuda-me a ver coisas que
de outra forma poderiam escapar-me e a dar passos pequenos mas
importantes, por vezes críticos, que de outra forma poderia não dar.
No seguimento de um workshop em que li a história acima referida,
acerca da chegada tardia a casa do meu filho no Dia de Ação de Graças,
recebi uma carta de um senhor na casa dos sessenta anos, que escreveu:
Quero agradecer-lhe o presente especial que me deu naquele dia,
quando nos leu o relato da chegada do seu filho a casa no Dia de Ação
de Graças. Comoveu-me muito, sobretudo quando descreveu como
vos envolveu com o próprio ser, ou algo assim, quando se deitou
sobre o seu peito na cama. Desde então, tenho vivido os primeiros
sentimentos genuinamente afetuosos pelo meu próprio filho desde há
muito, muito tempo. Não sei o que o aconteceu ao certo, mas é como
se, até agora, eu tivesse precisado de outro tipo de filho para amar, e
agora já não.
É possível que a sensação de precisar de outro tipo de filho para amar
nos visite a todos, de tempos a tempos, quando as coisas parecem
particularmente más ou desesperadas. Por vezes, essa sensação, se não for
examinada, pode transformar-se de um impulso fugaz numa corrente
constante de desapontamento e num anseio por algo que julgamos não ter.
Mas, se observarmos melhor, como este pai fez, talvez descubramos que,
afinal, podemos conhecer e amar bem os filhos que já são nossos para
amar.
Prólogo – mkz
O amor intensamente protetor que sinto pelos meus filhos impeliu-me a
efetuar o trabalho interno a que chamamos parentalidade mindful ou com
atenção plena. Este trabalho interior resultou em dádivas e prazeres
inesperados. Tem-me ajudado a estar mais presente na riqueza quotidiana
de ser mãe. Também me tem proporcionado uma forma de ver os meus
filhos com mais clareza, de ver por entre os véus dos meus próprios
medos, expetativas e necessidades, e de ver o que pode ser exigido em
cada momento. Trazer o mindfulness para a minha maneira de criar os
filhos ajuda-me também a ver-me a mim mesma e dá-me uma forma de
lidar com os momentos difíceis e as reações automáticas que nessas
alturas me saem com tanta facilidade, reações que podem ser limitadoras,
severas ou prejudiciais para o bem-estar dos meus filhos.
Embora nunca tenha tido uma prática formal de meditação, sempre
precisei de algum tempo e espaço para “não fazer”, para estar imóvel, em
silêncio. Isto tornou-se particularmente difícil quando os meus filhos eram
pequenos. Momentos de solidão e reflexão interior surgiam quando me
encontrava na cama de manhã, acordada mas sem querer mexer-me, ciente
das imagens dos meus sonhos, por vezes nítidas, por vezes esquivas,
recetiva a quaisquer pensamentos que me visitassem nesse lugar, algures
entre a consciência e o sono.
Era esta a minha meditação interior, que se autossustentava. Dava um
certo equilíbrio às minhas meditações exteriores – a consciência constante,
a cada momento, a afinação, resposta, apego e liberdade que os meus
filhos requeriam de mim.
Momentos meditativos têm-me surgido de muitas formas – sentada a
meio da noite a amamentar a minha filha recém-nascida, desfrutando da
paz e da tranquilidade, alimentando-a ao mesmo tempo que me alimento
da doçura do seu ser; ou caminhando com um bebé choroso, procurando
formas de o acalmar e reconfortar, entoando, cantando, embalando, ao
mesmo tempo que lido com o meu próprio cansaço; ou olhando para o
rosto de um adolescente infeliz e zangado, a tentar discernir a causa e
intuir o que talvez seja necessário.
O mindfulness tem que ver com prestar atenção; e prestar atenção requer
energia e concentração. Cada momento comporta algo diferente e pode
requerer algo diferente de mim. Por vezes, sou abençoada pela
compreensão. Noutras alturas, sinto-me perdida, confusa, desequilibrada,
sem saber realmente, mas tentando reagir instintiva e criativamente ao que
quer que me seja apresentado. Há momentos profundamente satisfatórios
de pura felicidade, quando um filho prospera e resplandece com uma
sensação de bem-estar. Há bastantes momentos difíceis, frustrantes e
dolorosos, quando nada do que faço está bem, e em que me sinto
completamente perdida. Tenho verificado que é particularmente difícil ver
claramente com filhos mais crescidos. Os problemas são muito mais
complexos e as respostas raramente são simples.
Mas a conclusão a que cheguei é que, de cada vez que sinto que perdi o
rumo como mãe, quando dou por mim num bosque sombrio, com o solo
agreste e irregular, em terreno desconhecido e com o ar gélido, muitas
vezes tenho algo no bolso quando por fim reencontro o caminho de volta.
Tenho de me lembrar de parar, respirar, levar a mão ao bolso e observar
atentamente o que é.
Cada momento difícil tem o potencial de me abrir os olhos e o coração.
De cada vez que consigo compreender algo acerca de um dos meus filhos,
também aprendo algo acerca de mim mesma e da criança que fui em
tempos, e esse conhecimento pode servir-me de guia. Quando sou capaz
de entender e sentir compaixão pela dor de um filho, quando aceito
melhor os comportamentos contrariadores, irritantes e exasperantes que os
meus filhos podem manifestar, tentar ou experimentar... o poder curativo
do amor incondicional cura-me ao mesmo tempo que os apoia. Tal como
eles crescem, eu cresço.
Em vez de uma desvantagem, a minha sensibilidade tornou-se uma
aliada. Ao longo dos anos, aprendi a usar a intuição, os sentidos, as
antenas emocionais para ver o cerne do que quer que seja com que me
depare. Uma parte essencial disto é tentar ver as coisas a partir do ponto
de vista dos meus filhos. Constatei que este trabalho interior é muito
poderoso. Quando posso escolher ser bondosa em vez de cruel,
compreender em vez de julgar, aceitar em vez de rejeitar, os meus filhos,
tenham a idade que tiverem, são apoiados e fortalecidos.
Este tipo de parentalidade fomenta confiança. Esforço-me muito por
manter essa confiança e os sentimentos subjacentes de ligação que têm
sido criados ao longo de muitos anos de trabalho árduo, tanto emocional
como físico. Momentos de descuido ou em que antigos padrões
destrutivos vêm inconscientemente à superfície, constituem traições à
confiança dos meus filhos, e eu tenho feito um esforço consciente para
reconstruir e fortalecer a nossa relação depois de momentos desses.
Ao longo dos anos, tenho tentado trazer alguma consciência às minhas
experiências de cada momento como mãe: observar, questionar, olhar para
o que mais prezo e para o que penso ser mais importante para os meus
filhos. Embora haja um grande número de aspetos da parentalidade que
este livro não toca, a minha esperança é a de que, ao descrever-lhe este
processo interno, possamos evocar a riqueza da experiência e o potencial
de crescimento e mudança que residem em criar os filhos com mindfulness
ou atenção plena.
PRIMEIRA PARTE

O Perigo e a Promessa
O Desafio de Sermos Pais
Ser-se pai é um dos empreendimentos mais desafiantes, exigentes e
stressantes do planeta. Também é um dos mais importantes, pois a forma
como é abordado influencia, em grande medida, o coração, a alma e a
consciência da geração seguinte, a sua experiência de sentido e ligação, o
seu repertório de competências e os seus sentimentos mais profundos
acerca de si mesmos e do seu possível lugar num mundo em rápida
mudança. Contudo, aqueles de nós que se tornam pais fazem-no
praticamente sem qualquer preparação ou treino, com pouca ou nenhuma
orientação ou apoio, e num mundo que valoriza muito mais a produção do
que o alimento em si, o fazer muito mais do que o ser.
Quando escrevemos a primeira versão deste livro, em meados da década
de 1990, havia poucos, se é que alguns, livros que se debruçassem sobre a
experiência interior da parentalidade. Na verdade, este livro cunhou o
termo parentalidade consciente, dando até azo a uma área de investigação
sobre o tema. Nessa era, os melhores manuais para pais serviam como
referências úteis e autoritárias, que nos proporcionavam novas formas de
ver as situações e nos garantiam, sobretudo nos primeiros anos da
educação de um filho ou quando enfrentávamos desafios específicos, que
havia várias formas de lidar com as coisas e que não estávamos sozinhos.
Também nos ofereciam uma noção de marcos do desenvolvimento
infantil, de acordo com a idade, ajudando-nos assim a ter expetativas mais
realistas em relação aos filhos.
Mas, na maioria, não referiam a experiência interior dos pais. O que
havemos de fazer, por exemplo, com a nossa própria mente? Como
evitamos ser engolidos e assoberbados pelas nossas próprias dúvidas,
pelas nossas inseguranças e pelos nossos medos? E quanto às alturas em
que nos sentimos alheados, em que nos desencontramos dos nossos filhos
e de nós mesmos? Também não mencionavam a importância crítica de
estarmos presentes com e pelos nossos filhos e como nós, enquanto pais,
poderíamos desenvolver um entendimento e uma apreciação maiores das
experiências interiores dos nossos filhos.
Ser pai de forma consciente requer que nos dediquemos a um trabalho
interior em nós mesmos, bem como ao trabalho externo de acolher e
cuidar dos nossos filhos. O conselho prático que podemos retirar de livros
que nos ajudam com esse trabalho externo precisa de ser complementado
por uma autoridade interior que só podemos cultivar em nós mesmos
mediante a nossa própria experiência. Tal autoridade interior apenas se
desenvolve quando nos apercebemos de que, apesar de todas as coisas que
nos acontecem e que fogem ao nosso controlo, através das nossas escolhas
de reação a tais acontecimentos e através daquilo que nós próprios
iniciamos, continuamos, em grande medida, a “ser autores” da nossa vida.
Nesse processo, encontramos as nossas próprias maneiras de estar neste
mundo, recorrendo ao que temos de melhor, mais profundo e mais
criativo. Ao darmo-nos conta disto, podemos vir a perceber a importância
– para os nossos filhos e para nós mesmos – de assumirmos a
responsabilidade pela forma como levamos as nossas vidas e pelas
consequências das escolhas que fazemos.
A autoridade e a autenticidade interiores desenvolvem-se mediante esse
trabalho em nós próprios. A nossa autenticidade e a nossa sabedoria
crescem quando trazemos propositadamente consciência à nossa própria
experiência enquanto esta tem lugar. Ao longo do tempo, podemos
aprender a ver mais profundamente quem são os nossos filhos, do que
poderão precisar e a tomar a iniciativa de encontrar formas apropriadas de
cuidar deles e de apoiar o seu crescimento e desenvolvimento. Também
podemos aprender a interpretar os seus variadíssimos sinais, por vezes tão
intrigantes, e a confiar na nossa capacidade de encontrar uma forma de
reagir adequadamente. A atenção, a curiosidade e a consideração são
essenciais para este processo.
A parentalidade é, acima de tudo, algo unicamente pessoal. Em última
instância, tem de vir do fundo de nós. A forma de outra pessoa fazer as
coisas poderá não ser nem apropriada, nem útil. Cada um de nós precisa
de encontrar uma forma que seja sua, decerto consultando outras
perspetivas à medida que avança, mas, sobretudo, aprendendo a confiar
nos seus próprios instintos, enquanto continua a examiná-los e questioná-
los.
Não obstante, quando somos pais, o que pensámos e fizemos ontem que
“resultou tão bem” não irá necessariamente ajudar-nos hoje. Temos de nos
manter, de facto, no momento presente, de modo a pressentirmos o que
poderá ser requerido. E, quando os nossos recursos interiores se esgotam,
é útil ter formas saudáveis de os reabastecer e de nos restaurarmos.
Tornarmo-nos pais pode acontecer de propósito ou por acidente, mas,
independentemente da origem, a parentalidade em si é uma vocação. Faz-
nos recriar o nosso mundo todos os dias, encará-lo como novo a cada
momento. Tal vocação, na verdade, não é menos do que uma rigorosa
disciplina espiritual, uma demanda por compreendermos a nossa natureza
mais verdadeira e profunda enquanto seres humanos. O próprio facto de
sermos pais impele-nos a procurar e expressar continuamente o que é mais
fomentador, sensato e afetivo em nós mesmos, a ser, tanto quanto nos é
possível, a melhor versão de nós mesmos.
Tal como qualquer disciplina espiritual, o apelo para sermos pais com
atenção plena encontra-se repleto de enorme promessa e potencial. Ao
mesmo tempo, também nos desafia a abordar a nossa parentalidade com
uma intencionalidade consistente, para que possamos estar completamente
dedicados a este empreendimento fundamentalmente humano, a esta
impressionante passagem de vida e aprendizagem que se desdobra ao
longo de décadas, de uma geração para a seguinte.
As pessoas que optam por se tornar pais assumem o mais árduo dos
trabalhos sem remuneração, muitas vezes inesperadamente, numa idade
relativamente jovem e inexperiente, ou sob condições de dificuldade e
insegurança económicas. Tipicamente, embarca-se nesta viagem sem uma
estratégia clara ou uma visão abrangente do terreno, da mesma forma
intuitiva e otimista como se aborda muitos outros aspetos da vida.
Aprendemos enquanto trabalhamos, enquanto avançamos. Não há, de
facto, outra forma.
Mas, para começar, podemos não ter qualquer noção de como a
parentalidade augura um conjunto totalmente novo de exigências e
mudanças nas nossas vidas, requerendo que abramos mão de tanto do que
nos é familiar, para agarrarmos tanto do que desconhecemos. Talvez isto
seja bom. Cada filho é único, cada situação é diferente. Temos de confiar
no nosso coração, nos nossos instintos humanos mais profundos e nas
memórias da nossa própria infância, quer positivas, quer negativas, para
encontrar o território desconhecido de ter e criar filhos.
E, tal como na própria vida – perante todo um leque de pressões
familiares, sociais e culturais para nos conformarmos com normas
frequentemente tácitas e inconscientes e com todos os stresses inerentes a
cuidar de crianças –, como pais damos por nós, frequentemente, apesar
das nossas melhores intenções e do profundo amor que temos pelos nossos
filhos, a funcionar mais ou menos em piloto automático e atormentados
pelos devaneios da nossa própria mente, que é, regra geral,
excessivamente reativa e se deixa enredar em pensamentos despercebidos
mas incessantes.
Dado que nos encontramos cronicamente preocupados e
invariavelmente com falta de tempo, é possível que estejamos
significativamente desligados da riqueza daquilo a que Thoreau chamava
o “florescer” do momento presente. Este momento – qualquer momento,
na verdade – pode parecer demasiado vulgar, rotineiro e fugaz para se
destacar e merecer atenção. Se estivermos, de facto, embrenhados em tais
hábitos mentais, o automatismo de tudo isso, sem qualquer reflexão, pode
transbordar para um automatismo similar no que concerne à nossa
parentalidade. Podemos partir do princípio de que o que quer que façamos
estará bem desde que o amor básico pelos nossos filhos e o desejo pelo
bem-estar deles exista. Podemos justificar perante nós próprios tal visão
convencendo-nos de que as crianças são criaturas resilientes e que as
pequenas coisas que lhes acontecem podem ser apenas isso, pequenas
coisas que talvez não as afetem de todo. As crianças podem aguentar
muito, dizemo-nos. E há alguma verdade nisso.
Mas, como eu (jkz) vejo, vezes sem conta, enquanto pessoas contam as
suas histórias na Clínica de Redução de Stresse e em workshops e retiros
de mindfulness que promovo por todo o país, para muita gente a infância
foi uma altura de traições, tanto francas como subtis, de um ou ambos os
pais até certo ponto descontrolados, muitas vezes submetendo os filhos a
combinações variadas e imprevisíveis de terror, violência, escárnio e
mesquinhez, em grande parte devido às próprias experiências de trauma e
negligência que viveram, e o que se segue, com frequência, são vícios e
profunda infelicidade. Por vezes, na mais profunda das ironias, a
acompanhar tais terríveis traições havia protestos de amor parental, o que
tornava a situação ainda mais louca e difícil de compreender para a
criança. Outros sentem a dor de terem sido filhos invisíveis,
desconhecidos, negligenciados e pouco apreciados. E há também a noção
de que, com o aumento do stresse, em praticamente todas as frentes da
sociedade e com uma noção acelerada de urgência e insuficiência de
tempo, as coisas nas famílias foram esticadas ao máximo, chegando
mesmo a ultrapassar o ponto de rotura, piorando apenas, em vez de
melhorarem, de geração em geração.
Uma mulher que participou num retiro de cinco dias de mindfulness
disse:
Nesta semana, enquanto fazia a meditação, reparei que me sinto como
se me faltassem peças, que há partes de mim que simplesmente não
consigo encontrar quando fico imóvel e procuro sob a superfície da
minha mente. Não sei ao certo o que isso significa, mas deixou-me
um bocadinho ansiosa. Quando começar a praticar meditação com
mais regularidade, talvez então descubra o que me impede de me
sentir completa. Mas sinto mesmo buracos no corpo, ou na alma, que
me fazem estar sempre a empurrar montanhas à minha frente, vá para
onde for. O meu marido pergunta-me: “Mas porque fizeste isto? Havia
aqui uma abertura grande.” E eu limito-me a dizer: “Não sei, mas se
há maneira de a bloquear, é o que eu faço.” Sinto-me um bocado
como um queijo suíço. Sinto-me assim desde pequena. Sofri algumas
perdas quando era pequena. Acho que partes de mim foram retiradas e
levadas [de mim por] mortes e [por] outras pessoas; a minha irmã
morreu quando eu era pequena e os meus pais entraram numa espécie
de depressão, penso que até morrerem. Parece que partes de mim me
foram tiradas para os alimentar. Sinto isso. Eu era uma miúda muito
animada e batalhadora, e senti partes de mim a serem-me
simplesmente tiradas, e agora parece que não consigo recuperar essas
partes. Porque não posso ser como era? O que me aconteceu? Partes
de mim perderam-se e, aqui sentada, hoje, a meditar, apercebi-me de
que estou à procura dessas partes e não sei para onde foram. Não sei
como poderei sentir-me completa até encontrar essas partes que
desapareceram. Agora toda a minha família morreu. Levaram todas as
partes e partiram, e eu continuo aqui, com o queijo suíço.
Uma imagem arrepiante, a de partes desta mulher terem sido usadas
para alimentar os pais. Mas isto acontece e as consequências para os filhos
refletem-se por toda a vida.
Mais, alguns pais causam sofrimento e danos profundos aos filhos,
como quando lhes batem para lhes ensinarem uma lição, dizendo coisas
como “Isto é para o teu próprio bem”, “Isto dói-me mais a mim do que a
ti” ou “Só faço isto porque gosto de ti”, com frequência as mesmíssimas
palavras que os pais lhes diziam quando lhes batiam, como foi
demonstrado pela psiquiatra suíça Alice Miller, na sua obra de referência.
Em nome do “amor”, raiva, desprezo, ódio, intolerância, negligência e
maus-tratos, frequentemente desenfreados, são infligidos aos filhos, por
pais que ignoram ou que já não se importam com o efeito total das suas
ações. Isto acontece em todas as classes sociais.
A nosso ver, uma abordagem da parentalidade que seja automática,
irrefletida, baseada no menor denominador comum, quer se manifeste em
violência patente, quer não, pode provocar danos profundos e muitas
vezes duradouros aos filhos e às suas trajetórias de desenvolvimento. A
parentalidade inconsciente pode igualmente deter o nosso próprio
potencial de crescimento. Demasiadas vezes, de tal inconsciência resultam
tristeza, oportunidades perdidas, mágoas, ressentimento, culpas, opiniões
restringidas e diminuídas do próprio e do mundo e, por fim, isolamento e
alienação em todas as direções.
Se pudermos manter-nos cientes dos desafios e da vocação de sermos
pais, isto não tem de acontecer. Pelo contrário, podemos usar todas as
ocasiões que surgem com os nossos filhos para destruir as barreiras na
nossa mente e no nosso coração, para nos vermos com mais clareza e para
estarmos presentes de forma mais efetiva para eles. Estas oportunidades
são essenciais para cultivar uma maior atenção plena na nossa
parentalidade.
>>>
Vivemos numa cultura que não valoriza uniformemente a criação dos
filhos como um trabalho válido e importante. É considerado perfeitamente
aceitável que alguém se dedique a cem por cento à carreira, ou à
“relação”, ou a uma paixão, mas não aos filhos.
A sociedade em geral, as suas instituições e os seus valores, que tanto
criam como refletem os microcosmos das nossas mentes e valores
individuais, contribuem grandemente para o minar da parentalidade.
Quem são os trabalhadores mais bem-pagos? Decerto não serão os
funcionários de creches, nem os professores, cujo trabalho tanto apoia o
dos pais. Onde estão os modelos, as redes de apoio, a licença de
paternidade ou maternidade paga para jovens pais,1 os empregos
partilhados e em tempo parcial para mães e pais que queiram ficar em casa
com os filhos durante mais do que umas semanas depois do nascimento
destes? Onde está o apoio para aulas de parentalidade? A prevalência
destes programas dir-nos-ia que a parentalidade saudável é da maior
importância e altamente valorizada na nossa sociedade. Mas tal
prevalência é deprimentemente baixa.
Decerto, há algumas luzes e motivos para esperança. Inúmeros pais vêm
a parentalidade como um fundo sagrado e conseguem encontrar formas
afetuosas e criativas de guiarem e cuidarem dos filhos, frequentemente
fazendo frente a grandes obstáculos e dificuldades. Há esforços
imaginativos de gente por todos os Estados Unidos envolvida em
programas que ensinam competências de parentalidade e de comunicação,
prevenção de violência e redução de stresse, e que oferecem serviços de
aconselhamento a pais e famílias. Também existem muitos grupos
dedicados à construção de comunidades e em defender politicamente os
direitos das crianças, como o Children’s Defense Fund. Há muitos anos
que as organizações La Leche League International e Attachment
Parenting International dão apoio precioso a pais, de forma a que estes
supram as necessidades dos filhos através da amamentação e de outras
práticas que promovem um apego seguro entre pais e filhos. The Baby
Book, de Martha e William Sears, providencia, há décadas, informação
prática e uma estrutura para honrar as necessidades de recém-nascidos e
bebés. Vários livros ligam a consciência com atenção plena e sintonia à
parentalidade (ver as Recomendações de Leitura no final deste livro).
Wise-Minded Parenting, de Laura Kastner, e Parenting Without Power
Struggles, de Susan Stiffelman, são recursos preciosos para pais. O livro
de Dan Hughes, Attachment-Focused Parenting: Effective Strategies to
Care for Children, e o de Dan Siegel e Mary Hartzell, Parenting from the
Inside Out, ligam neurociência interpessoal, pesquisa acerca de apego e
consciência. O livro de Nancy Bardacke, Mindful Birthing: Training the
Mind, Body, and Heart for Childbirth and Beyond é uma obra
revolucionária acerca do parto e da parentalidade com atenção plena.
Novas pesquisas e novos livros sobre estes temas estão sempre a surgir.
*
Qualquer que seja a era em que criamos os nossos filhos, estamos
sempre sujeitos a grandes forças sociais, culturais e económicas que
moldam as nossas vidas e as dos nossos filhos. Não obstante, temos
sempre pelo menos alguma latitude, enquanto indivíduos, para fazermos
escolhas conscientes e intencionais acerca de como vamos relacionar-nos
com as circunstâncias e a era em que nos encontramos. Até certo ponto,
por norma bem mais do que pensamos, temos o potencial de inquirir
profundamente acerca do caminho em que nos encontramos e da forma
como este reflete aquilo com que mais nos importamos e por que mais
ansiamos. Temos sempre a opção de prestar maior atenção e
intencionalidade às nossas vidas, sobretudo no que diz respeito aos filhos.
Projetar um caminho para nós pode ser significativamente mais fácil e
robusto se tivermos uma estrutura maior dentro da qual possamos
examinar o que estamos a fazer e desenvolver uma perspetiva do que mais
possa ser necessário – uma estrutura que nos ajude a manter a rota, apesar
de as coisas poderem estar constantemente em mudança e os nossos
próximos passos poderem ser pouco claros. O mindfulness pode
proporcionar tal estrutura.
Portas novas e importantes na nossa mente podem abrir-se
simplesmente ao aceitarmos a possibilidade de haver formas alternativas
de interpretar as situações e mais opções em qualquer momento do que
talvez nos apercebamos.
Trazer a atenção plena para os vários aspetos do nosso dia, à medida que
este se desenvolve, pode ser uma alternativa prática, bem como
profundamente positiva, ao modo de seguir em piloto automático em que
somos capazes de funcionar durante grande parte do tempo, sem sequer
nos darmos conta. Isto é particularmente importante para nós, pais,
enquanto tentamos equilibrar todas as responsabilidades e exigências em
conflito que acumulamos de dia para dia, ao mesmo tempo que cuidamos
dos nossos filhos e suprimos as suas necessidades únicas, tanto interiores
como exteriores, num mundo cada vez mais stressante e complexo.
1. Até à data, os EUA mantêm-se como o único país do mundo
desenvolvido a não ter licença de maternidade paga obrigatória por lei.
Em Portugal, o Código de Trabalho prevê que a mãe ou o pai possam
gozar 120 ou 150 dias consecutivos que podem ser partilhados e gozados
em simultâneo após o parto. (N. da T.)
O Que é Ser Pai Consciente?
A parentalidade com atenção plena requer que despertemos para as
possibilidades, os benefícios e os desafios de sermos pais com uma nova
consciência e intencionalidade, não apenas como se o que fizéssemos
importasse, mas também como se o nosso empenho consciente na
parentalidade fosse praticamente a coisa mais importante que pudéssemos
estar a fazer, tanto pelos nossos filhos como por nós mesmos.
Este livro é constituído por uma série de meditações sobre vários
aspetos da parentalidade. Debruça-se sobre reconhecer e ir ao encontro
das necessidades dos nossos filhos, com a maior sensatez possível,
cultivando uma familiaridade e uma intimidade maiores com uma
capacidade que já temos e que, por conseguinte, não precisamos de
adquirir, isto é, a própria consciência. Tudo o que é requerido é que
passemos esta capacidade para as nossas vidas, a cada momento.
Mindfulness quer dizer consciência. Também inclui diferentes formas de
cultivar sistematicamente um maior acesso à nossa própria consciência.2
Quando trazemos consciência para a forma de criarmos os filhos,
mediante o recurso à atenção plena enquanto prática, isso pode levar a um
conhecimento e entendimento mais profundos tanto dos nossos filhos
como de nós mesmos. A atenção plena tem o potencial de penetrar para
além das aparências e comportamentos superficiais e de nos permitir que
vejamos os filhos com mais nitidez, que olhemos tanto para dentro como
para fora e que ajamos com um certo grau de sabedoria e compaixão,
baseando-nos no que vemos.
Como verificaremos na Quarta Parte, a partir da perspetiva da atenção
plena, a parentalidade pode ser vista como uma espécie de retiro de
meditação prolongado e, por vezes, árduo, que abarca uma grande parte
das nossas vidas. E os nossos filhos, desde os primeiros tempos até serem
adultos e depois também, podem ser encarados como professores
residentes perpetuamente desafiantes, que nos proporcionam
oportunidades sem fim de realizarmos o trabalho de compreendermos
quem somos e quem são eles, de forma a podermos manter-nos o melhor
possível em contacto com o que é importante e dar-lhes aquilo de que
mais precisam para crescerem e se desenvolverem. Nesse processo,
poderemos descobrir que esta consciência constante, a cada momento, é
capaz de nos libertar de alguns dos hábitos mais restritivos da perceção e
das relações, das camisas de forças e prisões mentais que nos foram
transmitidas ou que, de alguma forma, construímos para nós mesmos.
Apenas por serem quem são, muitas vezes sem quaisquer palavras ou
discussão, os filhos podem inspirar-nos a fazer este trabalho interior.
Quanto mais conseguirmos manter em mente a totalidade e beleza
intrínseca dos nossos filhos, sobretudo nos momentos em que tais
qualidades podem custar-nos particularmente a ver, mais se aprofunda a
nossa capacidade de estarmos completamente presentes e compassivos.
Vendo com maior clareza, podemos reagir-lhes de forma mais efetiva,
com um coração mais generoso e uma certa medida de sabedoria.
Quando nos dedicamos a cuidar dos filhos, a criá-los e a tentar
compreender quem são, estes professores residentes que temos, sobretudo
nos primeiros dez a vinte anos da nossa “formação”, proporcionar-nos-ão
inúmeros momentos de admiração e felicidade, bem como oportunidades
para os sentimentos mais profundos de união e amor. Também irão, muito
provavelmente, fazer-nos subir às paredes, evocar todas as nossas
inseguranças, ensinar-nos coisas que nunca teríamos imaginado, testar
todos os nossos limites e tocar-nos em todas as áreas onde receamos
mexer e nos sentimos inadequados, ou pior. Nesse processo, se estivermos
dispostos a atentar cuidadosamente a todo o espectro do que
experienciamos, recordar-nos-ão, uma e outra vez, o que é mais
importante na vida, incluindo o seu mistério, enquanto partilhamos as suas
vidas e os protegemos, criamos e amamos, dando-lhes a orientação que
pudermos.
Ser pai é particularmente intenso e exigente, em parte porque os filhos
podem pedir-nos coisas que mais ninguém poderia ou pediria, de formas
que mais ninguém poderia ou pediria. Veem-nos de perto como mais
ninguém e estão constantemente a mostrar-nos espelhos onde nos vemos.
Deste modo, proporcionam-nos, vezes sem conta, a oportunidade de nos
vermos de novas maneiras e de trabalharmos conscientemente naquilo que
podemos aprender de toda e qualquer situação que surja com eles.
Podemos então fazer escolhas, a partir desta consciência que sustentará o
crescimento interior dos nossos filhos e também o nosso. A nossa
interligação e interdependência permitem que aprendamos e cresçamos
juntos.
>>>
Para trazer o mindfulness para a forma como criamos os filhos, é útil saber
algo acerca do que significa este conceito. O mindfulness é a consciência
que surge ao prestarmos atenção de propósito, no momento presente, sem
juízos de valor. Cultivamo-lo lembrando-nos, uma e outra vez, de
prestarmos atenção dessa maneira. Tão bem quanto formos capazes,
sustentamos intencionalmente essa atenção ao longo do tempo. Quando a
nossa atenção se desvia, o que invariavelmente acontece, trazemo-la de
volta para o momento presente, uma e outra vez. Nesse processo, ficamos
muito mais em contacto com as nossas vidas, à medida que estas se
desenrolam. Pode dizer-se que aprendemos a “habitar” a nossa própria
consciência.
Normalmente, vivemos grande parte das nossas vidas em piloto
automático, prestando atenção apenas seletiva e aleatoriamente, tomando
completamente por garantidas demasiadas coisas importantes ou nem
sequer reparando nelas, e julgando tudo o que experienciamos de facto,
formando opiniões rápidas e muitas vezes irrefletidas, baseando-nos
naquilo de que gostamos ou não, naquilo que queremos ou não. O
mindfulness imbui um método e uma estrutura poderosos à forma como
criamos os filhos, para prestarmos atenção ao que quer que vivenciemos
em cada momento e para vermos para lá do véu dos nossos pensamentos e
sentimentos automáticos, chegando assim a uma realidade mais profunda.
A propósito, o facto de cultivarmos a atenção plena não significa que não
façamos bastantes juízos. O que significa é que nos esforçaremos para os
reconhecer como tal, que estaremos dispostos a suspendê-los na medida
do possível, pelo menos momentaneamente, e a não julgar os nossos
próprios juízos críticos. Como verá, também distinguimos julgar, que
tende a ser algo reativo e muito maniqueísta, de discernir, que é algo
muito mais matizado, percebendo muitas gradações entre quaisquer dois
extremos.
O mindfulness, ou atenção plena, é a essência da meditação budista, que
se dedica a cultivar atenção, uma presença ou “vigília” de coração aberto e
compaixão. A prática do mindfulness foi mantida e desenvolvida em várias
tradições meditativas da Ásia durante mais de dois mil e seis anos. Nos
últimos trinta e cinco anos, tem entrado na sociedade em geral por
diferentes contextos, incluindo a medicina, a neurociência, a psicologia, os
cuidados de saúde, a educação, o direito, o desporto, os programas sociais
e até o governo. Nos últimos quinze anos, a investigação científica acerca
da atenção plena cresceu exponencialmente. Em consequência, há agora
um interesse disseminado em cultivar a atenção plena em muitos domínios
distintos das nossas vidas.
O mindfulness é uma disciplina meditativa. Há muitas disciplinas
meditativas. Podemos pensar em todas como várias portas para a mesma
sala. Cada entrada oferece uma vista única e diferente da sala. Depois de
entrarmos, contudo, a sala é a mesma, independentemente da porta por
onde tenhamos entrado. A meditação, independentemente do método ou
tradição, consiste em procurar a ordem e a calma integradas e ocultas em
toda a atividade, por mais caótica que esta possa parecer, usando a nossa
capacidade de atenção e de compreender o que vemos, ou saber quando
não compreendemos. E, em certas alturas, o que poderá ser mais caótico
do que ser pai?
Embora tenha recebido a sua articulação mais elaborada na tradição
budista, a atenção plena é uma parte importante de todas as culturas e é
verdadeiramente universal, já que trata simplesmente de cultivar as
capacidades de consciência, clareza e compaixão que todos os seres
humanos têm. Há muitas formas diferentes de nos dedicarmos a este
trabalho. Não há uma única forma correta, tal como não há uma única
forma correta de se ser pai.
A parentalidade consciente envolve manter presente o que é
verdadeiramente importante à medida que tratamos das atividades do
quotidiano com os nossos filhos. Durante grande parte do tempo,
poderemos constatar que precisamos de nos recordar do que isso é, ou até
admitir que, no momento, não fazemos ideia, pois o fio do sentido e da
direção nas nossas vidas facilmente se perde. Mas, mesmo nos momentos
mais desafiantes, e por vezes horríveis, da vida de pais, podemos dar
deliberadamente um passo atrás e recomeçar, perguntando-nos, como se
fosse a primeira vez e com um novo olhar: “O que é verdadeiramente
importante aqui?”
De facto, a parentalidade consciente significa ver se somos capazes de
nos lembrar de trazer esta espécie de atenção, abertura e sabedoria aos
momentos que passamos com os nossos filhos. É uma verdadeira prática,
em si mesma uma disciplina interior, uma forma de meditação. E acarreta
benefícios profundos quer para os filhos, quer para os pais, que se
descobrem na própria prática.
Aprendermos com os filhos requer que prestemos atenção e aprendamos
a ficar imóveis em nós mesmos. Na imobilidade, temos uma capacidade
maior de ver para lá do tumulto e do nevoeiro endémicos, da reatividade
da nossa própria mente, em que tão frequentemente nos embrenhamos, e,
assim, de cultivar maior clareza, calma e perspetiva, que podem ser
diretamente aplicadas na parentalidade.
À semelhança de toda a gente, os pais têm as suas próprias
necessidades, vontades e vidas, tal como os filhos. As nossas
necessidades, a dado momento, podem ser muito diferentes das do nosso
filho. Em vez de opormos aquilo de que precisamos àquilo de que
precisam os nossos filhos, a parentalidade com atenção plena implica
cultivar uma consciência, precisamente nesses momentos, de como as
nossas necessidades são interdependentes. As nossas vidas encontram-se
inegável e profundamente unidas. O bem-estar dos nossos filhos afeta o
nosso, e o nosso o deles. Se eles não estiverem bem, nós sofremos e, se
nós não estivermos bem, eles sofrem.
Isto significa que toda a gente beneficia quando estamos cientes das
necessidades dos nossos filhos, bem como das nossas, quer emocionais
quer físicas e quando, dependendo da idade que tenham, trabalhamos para
encontrar formas para que toda a gente obtenha algo do que mais precisa.
Basta aplicar esta espécie de sensibilidade à nossa parentalidade para
ampliarmos a noção de ligação aos nossos filhos. Através da qualidade da
nossa presença, a dedicação que lhes votamos é sentida, mesmo em alturas
difíceis. Poderemos constatar que as escolhas que fazemos em momentos
de necessidades opostas e concorrentes sairão mais desta ligação
profundamente sentida e, em resultado, conterão maior bondade e
sabedoria.
>>>
Vemos a parentalidade como uma responsabilidade sagrada. Os pais não
são nada menos do que protetores, cuidadores, confortadores, professores,
guias, companheiros, modelos e fontes de amor e aceitação
incondicionais. Se formos capazes de manter presente esta noção de
parentalidade como uma responsabilidade sagrada, e se trouxermos um
certo grau de mindfulness ao processo, à medida que este se desenrola, a
cada momento, as nossas escolhas enquanto pais sairão com muito maior
probabilidade de uma consciência do que nos pede agora este momento,
este filho – nesta etapa da sua vida – através do seu próprio ser e
comportamento. Ao aceitarmos este desafio, poderemos vir não só a fazer
o melhor para os nossos filhos, mas também a descobrir e conhecer, talvez
pela primeira vez, o que temos de mais profundo e de melhor.
A parentalidade com atenção plena incita-nos a reconhecer e nomear os
desafios que enfrentamos diariamente ao tentarmos ser pais conscientes,
pois a consciência tem de ser inclusiva. Tem de incluir reconhecermos as
nossas próprias frustrações, inseguranças e defeitos, os nossos limites e
limitações, até os nossos sentimentos mais sombrios e destrutivos, e as
formas como poderemos sentir-nos assoberbados ou destruídos. Desafia-
nos a “trabalhar com” estas mesmas energias, de forma consciente e
sistemática.
Assumir tal tarefa é exigir muito de nós mesmos. Pois, em muitos
sentidos, nós próprios somos o resultado e, por vezes, em certa medida,
prisioneiros dos acontecimentos e circunstâncias da nossa própria
infância. Dado que a infância molda significativamente a forma como nos
vemos, e ao mundo, a nossa história irá inevitavelmente moldar a visão
que temos de quem são os nossos filhos e “do que merecem”, e ainda de
como devem ser cuidados, ensinados e “socializados”. Como pais, todos
tendemos a conservar as nossas opiniões, quaisquer que sejam, de uma
forma muito forte e frequentemente inconsciente, como se estivéssemos
submetidos a poderosos feitiços. Só quando nos tornamos cientes deste
moldar é que podemos recorrer ao que foi útil, positivo e acolhedor no
modo como fomos criados e crescer para além dos aspetos que possam ter
sido destrutivos e limitadores.
Para aqueles que, entre nós, tiveram de calar, “não ver”, suprimir
sentimentos para sobreviver à infância, tornarmo-nos mais conscientes
pode ser especialmente doloroso e difícil. Nos momentos em que somos
regidos por velhos demónios, quando antigas crenças, padrões destrutivos
e pesadelos nos visitam e somos atormentados por sentimentos sombrios
ou pensamentos maniqueístas, é particularmente difícil parar e ver com
novos olhos.
De forma alguma estamos a sugerir que, para se ser pai com atenção
plena, exista um padrão ideal com o qual tenhamos de nos comparar ou ao
qual devamos tentar chegar. A parentalidade com atenção plena é um
processo contínuo de aprofundamento e refinamento da nossa consciência
e da nossa capacidade de estarmos presentes e agirmos sabiamente. Não é
uma tentativa de atingir um objetivo ou resultado fixo, por mais meritório
que seja. Uma parte importante do processo é vermo-nos com um certo
grau de amabilidade e compaixão. Isto inclui ver e aceitar as nossas
limitações, as nossas cegueiras, as nossas fixações, a nossa humanidade, a
nossa falibilidade, e trabalhá-las, conscientemente, da melhor maneira
possível. A única coisa que sabemos que podemos fazer sempre, mesmo
nos momentos de escuridão e desespero que nos mostram que nada
sabemos, é recomeçar, de novo, mesmo nesse momento. Cada momento é
um novo começo, mais uma oportunidade para nos sintonizarmos, para
nos abrirmos e, talvez nesse próprio momento, para nos vermos, sentirmos
e conhecermos e aos nossos filhos de uma forma nova e mais profunda.
Porque o amor pelos filhos expressa-se e experimenta-se na qualidade
das relações a cada momento que temos com eles. Aprofunda-se nos
momentos quotidianos quando os mantemos na consciência e os
habitamos. O amor expressa-se na forma como passamos o pão, ou como
dizemos bom dia, e não apenas naquela grande viagem à Disneylândia.
Encontra-se nas gentilezas diárias que demonstramos, na compreensão
que trazemos e na nossa abertura. O nosso amor também está nas
barreiras, nos limites e nas estruturas que estabelecemos e que mantemos
com clareza, firmeza e bondade. O amor expressa-se incorporando-o nas
nossas ações. Por isso, perante alturas boas ou más, em qualquer dia ou
momento, a qualidade da nossa presença é uma medida profunda do
carinho e do amor que sentimos pelos nossos filhos.
>>>
Este livro dirige-se a pessoas que se preocupam com a qualidade da vida
familiar e com o bem-estar dos filhos, nascidos e por nascer, pequenos ou
crescidos. Esperamos que apoie os pais nos seus esforços por
demonstrarem o amor através do seu ser e das suas ações no dia a dia. Não
é provável que se consiga fazer isto, a menos que se seja autêntico na vida
e se esteja em contato com todo o leque de sentimentos que se vivencia –
que se esteja, numa palavra, desperto.
A parentalidade é um espelho no qual vemos o melhor e o pior de nós,
os momentos mais proveitosos da vida e também os mais assustadores. É
um desafio imenso escrever sensatamente acerca disso. Durante os anos
de crescimento dos nossos filhos, houve bastantes alturas em que sentimos
que as coisas estavam basicamente estáveis na nossa família. Os miúdos
pareciam felizes, fortes e equilibrados. No entanto, logo no dia, ou
momento, a seguir, tudo podia ir ao ar. O nosso mundo enchia-se de
confusão, desespero, zanga, frustração. O que julgávamos compreender de
nada servia. Parecia que todas as regras tinham mudado da noite para o
dia, ou num instante. Não fazíamos ideia do que estava a acontecer, nem
porquê. Sentíamo-nos uns grandes falhados. Sentíamos que não sabíamos
ou compreendíamos o que quer que fosse.
Em momentos desses, tentávamos recordar-nos, na medida do possível,
de segurar o fio de alguma espécie de consciência do que estava a
acontecer, por mais desagradáveis ou dolorosas que fossem as coisas. Por
difícil que fosse, tentávamos reconhecer o que estava de facto a ter lugar e
o que poderia ser requerido da nossa parte. A alternativa seria
embrenharmo-nos na nossa própria reatividade e comportamentos
automáticos, e ceder qualquer compaixão e clareza que nos restasse ao
medo, à fúria ou à negação. E, mesmo quando isto acontecia, como por
vezes é inevitável, tentávamos reexaminá-lo mais tarde, com uma calma
maior, na esperança de aprendermos algo com o episódio.
Este livro surge da nossa própria experiência como pais. Foi escrito
originalmente quando os nossos filhos frequentavam a escola básica, a
secundária e a faculdade. Agora, aquando desta edição revista, os nossos
filhos são adultos e nós somos avós. A nossa experiência irá, sem dúvida,
diferir em muitos aspetos da sua, como pessoa e como mãe ou pai. Poderá
constatar que algumas das formas específicas como escolhemos criar os
nossos filhos são muito diferentes de como foi criado ou de como tem
criado os seus filhos. Poderá dar por si a reagir fortemente a algumas das
coisas que dizemos ou a algumas das escolhas que fizemos. Todo o tema
da parentalidade pode suscitar emoções profundas em todos nós, por estar
tão intimamente ligada à forma como pensamos acerca de nós e como
escolhemos levar as nossas vidas.
Não sugerimos que deva fazer tudo como nós o fizemos, nem que, caso
não o tenha feito, que se encontre de alguma maneira em falta. Como
todos sabemos, na parentalidade poucas são as respostas fáceis e as
soluções consistentemente simples. Também não dizemos que o
mindfulness seja a resposta para todos os problemas da vida, ou para todas
as questões relacionada com a educação dos filhos. Estamos simplesmente
a tentar apontar para um modo de ver e de estar que pode ser integrado, de
muitas maneiras diferentes, no seu estilo como pai e na sua vida. Em
última análise, todos temos de tomar decisões individuais acerca do que é
melhor para os filhos e para nós, recorrendo sobretudo à nossa criatividade
e à nossa capacidade de estarmos despertos e cientes nas nossas vidas.
Partilhamos consigo experiências e esta orientação, a que chamamos
parentalidade com atenção plena, na esperança de que algum do potencial
transformativo que contém encontre eco nos seus valores e intenções, e
que lhe seja de alguma utilidade enquanto traça o seu próprio caminho de
pai ou mãe.
Em última instância, sermos pais conscientes tem que ver com a
possibilidade de vermos os filhos com maior nitidez e de escutarmos e
confiarmos no nosso próprio coração. Dá forma e apoio aos desafios
diários da parentalidade. Também pode ajudar-nos a encontrar formas de
agir com maior sabedoria e a sermos fontes de amor incondicional para os
nossos filhos, um momento de cada vez, um dia de cada vez.
2. Por isso se utiliza o termo “atenção plena” como tradução de
“mindfulness”. (N. da T.)
Como Posso Fazer Isto?
Não há duas famílias que tenham exatamente as mesmas situações com
que lidar ou os mesmos recursos de que possam valer-se. Porém,
independentemente das circunstâncias das vidas das pessoas, acreditamos
que todas as famílias e todos os indivíduos, enquanto seres humanos, têm
recursos interiores profundos que podem ser usados e cultivados e ajudar
tremendamente nas opções de escolhas importantes enquanto nos
esforçamos por dar equilíbrio à nossa vida e à nossa família.
A todos os níveis de bem-estar económico e social, incluindo na sua
ausência, e independentemente das dificuldades enormes com que se
deparam, há pessoas que encontram formas de colocar os filhos em
primeiro lugar. Mas o que significa pôr os filhos em primeiro lugar? Vale a
pensa refletir sobre isto. É claro que o que quer que signifique para si irá
mudar consoante as idades dos seus filhos e poderá ser diferente para cada
filho. Decerto não significa ficar-se obcecado com os filhos e pairar
incessantemente à volta deles (que é aquilo a que se refere o termo pais
helicóptero). Também não significa sacrificar as próprias necessidades de
formas essencialmente pouco sensatas e potencialmente prejudiciais para
todos. O mindfulness não implica concentrarmo-nos de tal maneira num
filho que nos percamos a nós mesmos. Ajuda-nos a desenvolver e
sustentar uma autoconsciência incorporada, a experiência vivida de
estarmos enraizados no nosso corpo e na nossa própria vida.
Como uma corrida de estafetas com uma sobreposição longa na qual
passamos o testemunho – durando pelo menos dezoito anos e, com
frequência, ainda mais –, o nosso trabalho enquanto pais consiste em
posicionar os nossos filhos para que possam percorrer as suas distâncias a
solo de forma efetiva. Para o conseguirmos da melhor maneira possível,
precisamos de dar tudo por tudo durante a nossa corrida ao lado deles. Há
muitas formas de se fazer isto. Não há uma única forma que seja a correta
e não existe uma fórmula mágica. O que está em causa também não é
apenas o fazer. Na verdade, a longo prazo, poderá ser mais importante
“como somos” na nossa vida do que “o que fazemos”. Mas,
independentemente das nossas circunstâncias, desde que a vontade, a
motivação e o afeto estejam presentes, podemos aprender a valer-nos dos
recursos interiores de força e sabedoria, criatividade e afeto, que residem
em todos nós. Para mais, cada momento proporciona novas ocasiões para
que façamos isto, pelo que é importante aprendermos a ter calma e
compreendermos que precisamos de ser brandos com nós próprios, já que
estamos nisto a longo prazo. É isto o que a prática da parentalidade com
atenção plena nos oferece.
Sermos pais conscientes requer energia e empenho, tal como qualquer
prática espiritual ou disciplina de consciência profunda. Podemos dar por
nós a duvidar, de tempos a tempos, se seremos capazes de assumir tal
tarefa que, na verdade, é o trabalho de uma vida, perguntando-nos: “Como
posso fazer isto para além de tudo o resto que já faço?” Talvez seja
tranquilizador e inspirador descobrir que, em larga medida, elementos
importantes tanto da disciplina sistemática como dos métodos da
parentalidade com atenção plena já são familiares a todos os pais. A
parentalidade com atenção plena como prática e disciplina interior é
possível e pragmática, porque surge naturalmente das experiências e
desafios que já enfrentamos todos os dias enquanto pais.
Por exemplo, na qualidade de pais, já nos é requerido constantemente
que prestemos atenção, e já somos altamente disciplinados. Temos de
prestar atenção e ter a disciplina de acordar a horas todas as manhãs;
temos de despertar os filhos, alimentá-los e prepará-los para irem para a
escola; temos de nos preparar para trabalhar e de chegar ao emprego, se
trabalharmos fora de casa. Somos disciplinados e atentos ao tratarmos dos
nossos horários complexos e dos dos nossos filhos, bem como ao
planearmos e depois fazermos tudo o que é preciso fazer: todas as
compras, cozinhar, limpar, as inúmeras tarefas repetitivas do quotidiano de
uma família.
Também já somos altamente bem-sucedidos. Todos os dias lidamos com
crises constantes, gerimos exigências concorrentes do nosso tempo e
energia, e utilizamos o incrível sexto sentido que os pais desenvolvem
bem cedo, permitindo-nos estar continuamente cientes de onde se
encontram os nossos pequenos a cada momento e dos potenciais perigos.
Também somos peritos em conversar enquanto fazemos outras coisas e em
lidar com interrupções constantes, enquanto tentamos manter o fio do
raciocínio. Por vezes, as pessoas podem sentir-se magoadas ou
melindradas quando parece que não lhes damos toda a nossa atenção, mas,
como pais, desenvolvemos uma capacidade de devotar a nossa atenção a
muitas coisas em simultâneo; podemos falar com outras pessoas enquanto
vigiamos o nosso filho, ou abotoamos um casaco, ou agarramos a criança
antes que esta chegue a algo que possa magoá-la. Tais competências e
disciplinas fazem parte de se ser pai e mãe. Quanto mais as usarmos e
desenvolvermos, como ser pais exige que façamos, melhor as dominamos.
Tornam-se uma forma de ser.
Podemos dar um uso excecionalmente bom a estas competências e à
disciplina que nos é natural enquanto pais nos nossos esforços para
criarmos os nossos filhos com maior consciência. Uma coisa é uma
extensão natural da outra. A parentalidade com atenção plena requer que
desviemos alguma dessa energia, dessa disciplina e desse afeto para
dentro, para a nossa mente, o nosso corpo e as nossas experiências, e que
atendamos mais consistentemente tanto à vida interior como à exterior dos
nossos filhos, às suas necessidades emocionais e espirituais, tal como
atendemos às suas necessidades de roupa, comida e abrigo.
Podemos trazer atenção plena a qualquer momento, por mais breve ou
stressado que seja, por pior que possamos estar a sentir-nos. Mas fazê-lo
requer um forte empenho quanto a cultivar a atenção plena através de
alguma espécie de prática diária regular. Isto pode ser feito de várias
formas, mas as abordagens gerais, que são altamente complementares e se
apoiam mutuamente, são uma prática de meditação formal e uma prática
de meditação informal. Esta última, também conhecida como mindfulness
no quotidiano, é a principal prática que recomendamos aos pais. Se
também conseguir incluir uma prática de meditação formal no seu dia a
dia, nem que seja por períodos relativamente curtos, como cinco ou dez
minutos por dia, ou mais, obviamente isso pode ser extremamente útil
para fortalecer o músculo da atenção plena. Mas, em última instância, a
parentalidade com atenção plena implica instalarmo-nos no momento
presente uma e outra vez, e aprender com esta abertura intencional para a
consciência, que é em si mesma uma prática impressionantemente
poderosa (ver “Quatro Práticas de Atenção Plena para o Dia a Dia” no
Epílogo).
Na sua maioria, as dezenas de milhares de pessoas que completaram o
Programa de Redução de Stresse Através da Atenção Plena (MBSR,
iniciais de Mindfulness-Based Stress Reduction), no Centro de Atenção
Plena do Centro Médico da Universidade de Massachusetts, bem como
outros programas de MBSR nos Estados Unidos e por todo o mundo, são
pais. Todas têm níveis significativos de stresse nas suas vidas. Muitas
aparecem com problemas de saúde graves, por vezes possivelmente fatais,
e muitas acarretam também difíceis problemas sociais, económicos e
pessoais. Algumas têm histórias familiares pavorosas. Muitas já fazem
coisas extraordinárias, todos os dias, para lidarem com situações
extremamente difíceis, tanto do presente como do passado. No programa
de oito semanas de MBSR, esforçam-se por cultivar atenção plena nas
suas vidas numa base diária, através de práticas de mindfulness, tanto
formais como informais, construindo a base daquilo que já fazem para
manter o seu bem-estar e o das famílias. Nesse processo, é comum que as
suas vidas, atitudes e formas como veem e se relacionam com os outros,
incluindo os filhos, se alterem profunda e duradouramente. Apesar dos
desafios inerentes a cultivar e sustentar a disciplina da atenção plena em
situações do quotidiano, muitas pessoas afirmam que, ao prestarem
atenção de novas formas, sentem-se mais descontraídas, mais
esperançadas, lidam melhor com o stresse, tanto em casa como no
trabalho, e têm mais paz mental e confiança em si mesmas. São capazes
de ver novas aberturas nas suas vidas pelas quais possam seguir, usando a
prática da própria atenção plena. Algumas afirmam sentir maior liberdade,
maior sensação de controlo e segurança internos, do que antes julgavam
ser possível.
No MBSR, os instrutores apresentam as pessoas aos vários aspetos da
prática da meditação e fazem sugestões gerais acerca de como esta poderá
ser aplicada no quotidiano e em situações desafiantes e stressantes. Mas,
na maioria, são os próprios participantes, enquanto completam o
programa, que descobrem como aplicar o mindfulness de formas
significativas às circunstâncias únicas das suas vidas quotidianas. Este é
um processo criativo e intuitivo que emerge naturalmente da própria
prática.
Acontece o mesmo com a parentalidade com atenção plena. Não
estamos a dizer-lhe o que devia fazer, ou que escolhas precisa de tomar.
Só o leitor poderá determinar isso, pois é a única pessoa que vive a sua
vida e que pode, por isso, saber o que requer a sua situação específica em
qualquer momento. Não estamos sequer a orientá-lo na aplicação da
prática, exceto em termos muito gerais. As aplicações pormenorizadas do
mindfulness e as escolhas específicas que se verá levado a tomar, só
podem provir da sua própria motivação para praticar, do seu próprio
empenho em honrar cada momento presente dando-lhe toda a sua
consciência, e dos anseios do seu próprio coração. As escolhas conscientes
surgirão, pois, das próprias situações em que se vir com os seus filhos.
Surgirão da sua própria criatividade, da sua imaginação, do seu amor e do
seu génio, que no ser humano são profundos e praticamente ilimitados.
Para mais, havendo agora tantas pessoas a carregar todas as
responsabilidades da parentalidade sozinhas, como pais solteiros; a
partilha da educação dos filhos em famílias divorciadas; pessoas a terem
filhos mais tarde; pais homossexuais; avós que, por vezes, criam os filhos
dos filhos; casais que se dão bem, mas têm visões nem sempre
coincidentes sobre a parentalidade; casais que não se dão bem durante boa
parte do tempo ou que têm opiniões muito distintas em relação a como
criar os filhos; casais em que a divisão das tarefas e as responsabilidades
da educação dos filhos se encontram altamente desequilibradas; famílias
onde ambos os pais trabalham a tempo inteiro e ainda mais; famílias com
filhos que sofrem de doenças graves, desafios físicos, ou diferenças de
desenvolvimento; famílias com filhos com pouco intervalo de idades, com
filhos de idades tremendamente diferentes, ou com gémeos ou trigémeos;
ou famílias com números vastamente distintos de filhos, sejam todos
rapazes, todas raparigas, ou diferentes combinações... não há uma única
forma de se ser pai ou um conjunto de conhecimentos que pudesse ser
relevante e útil em todas as circunstâncias.
Mas o mindfulness, precisamente por não ser uma fórmula, e porque tem
que ver com a qualidade da nossa experiência como seres humanos e com
o grau a que podemos prestar atenção nas nossas vidas, tem um âmbito
verdadeiramente universal e, por conseguinte, relevante em praticamente
todas as circunstâncias. Toda a gente tem uma mente, toda a gente tem um
corpo, toda a gente pode prestar atenção intencionalmente e a vida de toda
a gente só acontece em momentos. O mindfulness não nos diz o que fazer,
mas oferece-nos, isso sim, uma forma de escutar, uma forma de
prestarmos muita atenção àquilo que cremos ser importante e de
expandirmos a visão do que isso pode ser em qualquer situação, sob
quaisquer circunstâncias.
Como pais e como pessoas, independentemente daquilo que
enfrentemos nas nossas vidas, todos somos capazes de um crescimento e
de uma transformação impressionantes, se conseguirmos aprender a
reconhecer e usar os nossos profundos recursos interiores e definir um
percurso que seja fiel aos nossos valores e ao nosso próprio coração. Isto
realmente requer esforço, mas não muito mais do que aquele que já
efetuamos. O que efetivamente implica é uma rotação da consciência, uma
nova forma de ver que provém da noção do momento presente e que tanto
convida como permite que o que existe de melhor em nós e nos nossos
filhos venha à tona.
>>>
Para entrarmos agora no mundo da parentalidade com atenção plena e
naquilo que exige de nós, bem como no que tem para nos oferecer,
começamos por contar uma história. Por instantes, sairemos do tempo,
entrando no domínio do mitológico, da psique, para regressarmos talvez
com uma noção melhor do que poderá querer dizer ver de uma forma mais
profunda e confiar no mistério dos nossos próprios corações. Talvez seja
útil ter presente que, neste reino, todas as personagens da história podem
ser vistas como aspetos diferentes do nosso próprio ser, e que masculino e
feminino, beleza e fealdade, bondade e insensibilidade, residem, em graus
variados, dentro de cada um de nós.
SEGUNDA PARTE

Sir Gawain
e a Dama Abominável:
A História Contém a Solução
Sir Gawain e a Dama Abominável
Há muito, muito tempo, nos tempos do Rei Artur, por motivos que não
precisamos de analisar agora, este deu por si a assumir uma causa justa no
dia de Natal, que o fez deparar-se com a sua própria impotência, apesar de
ele ser o Rei do País. A sua némesis assumia a forma do Cavaleiro de Tarn
Wathelan, “maior do que o tamanho de qualquer mortal e equipado da
crista aos dedos dos pés com uma armadura negra, montando um gigante
cavalo de guerra da cor da meia-noite e de olhos vermelhos.” Enquanto
Artur investia na direção dele para combater na planície diante do castelo
sombrio do cavaleiro, este lançou-lhe um feitiço que o desguarneceu, e ao
seu cavalo, de todo o poder. “Como uma sombra gélida, um grande medo
abateu-se sobre ele, mais terrível por não ser do cavaleiro ou de qualquer
coisa deste mundo; um terror negro da alma que se interpunha entre si e o
céu, e que lhe sugava as forças de tal maneira que o braço da espada e o
braço do escudo ficaram descaídos junto aos seus flancos e ele não
conseguia mexer-se.”
– O que... farás... de mim? – arquejou Artur.
Em vez de o matar ou de o atirar para as masmorras, “para apodreceres
entre outros cavaleiros valorosos que ali se encontram, e apropriar-me do
teu reino através da magia que possuo”, o Cavaleiro de Tarn Wathelan
oferece a Artur a vida e a liberdade se ele regressar dali a sete dias, no Dia
de Ano Novo, com a resposta à seguinte pergunta: “O que é que todas as
mulheres mais desejam?”
Cheio de vergonha e raiva, mas incapaz de fazer outra coisa que não
concordar, Artur aceitou a proposta e cavalgou para longe.
Durante toda essa semana, percorreu a terra, fazendo a pergunta a todas
as mulheres que encontrava, fosse uma jovem a pastorear gansos, uma
cervejeira ou uma grande dama, tendo o cuidado de anotar as respostas
que lhe davam, apesar de entender que nenhuma correspondia à verdade.
E assim, na manhã do Dia de Ano Novo, com um peso no coração, voltou
o cavalo na direção do castelo do cavaleiro; como lhe escapara a única
hipótese de manter a vida, sabia que lhe restava apenas submeter-se e
morrer às mãos do cavaleiro.
“As colinas pareciam mais sombrias do que da última vez que ele
cavalgara para aquelas bandas e o vento soprava com mais força. E o
caminho parecia muito mais longo e agreste do que antes, mas não
obstante passou tudo demasiado depressa.”
A pouca distância do castelo do cavaleiro, enquanto cavalgava por um
matagal denso, mantendo o queixo junto ao peito, Artur ouviu uma voz de
mulher, doce e suave, a chamá-lo.
– Deus está a saudá-lo, meu senhor, Rei Artur. Que Deus o guarde e
preserve.
Ele virou-se e viu uma mulher num vestido escarlate vivo, da cor de
bagas de azevinho, sentada num monte de terra ao lado da estrada, entre
um carvalho e um azevinho. Esperava que o seu rosto fosse tão doce como
a sua voz, pelo que ficou chocado ao deparar-se com “a criatura mais
hedionda que alguma vez tinha visto, com um lamentável rosto de
pesadelo para o qual mal suporta olhar, com um nariz comprido cheio de
verrugas e torcido para um lado e um queixo comprido e peludo torcido
para o outro. Só tinha um olho, bem afundado sob o sobrolho saliente. A
boca não passava de uma abertura informe. O cabelo pendia-lhe em
madeixas grisalhas e retorcidas e as mãos pareciam garras castanhas,
embora as joias que lhe brilhavam nos dedos fossem dignas da própria
Rainha.”
Artur fica atónito ao vê-la e ela precisa de o recordar do seu próprio
código, que indica como deve um cavaleiro comportar-se na presença de
uma dama. Esta, misteriosamente, está a par da missão em que ele se
encontra. Sabe que perguntou a muitas mulheres o que é que todas
desejam acima de tudo, e que todas lhe deram respostas, mas que
nenhuma é a certa. Informa então o rei estupefacto de que ela, e só ela,
sabe a resposta que ele procura e que, para que lha revele, ele terá de fazer
um juramento solene em como lhe dará o que quer que ela lhe peça em
troca. Ele concorda prontamente. Ela pede-lhe que aproxime a orelha dos
seus lábios e sussurra-lhe a resposta que ele procura, de forma a que “nem
as árvores possam ouvir.”
Assim que a escutou, Artur soube na sua própria alma que aquela era a
resposta verdadeira. Conteve a respiração, risonho, pois tratava-se de uma
resposta tão simples, afinal.
A resposta que lhe foi dada à pergunta “O que é que todas as mulheres
mais desejam?” foi: “Soberania”.
Artur perguntou à dama o que desejava em troca, mas esta recusou-se a
dizê-lo até que ele tivesse posto a resposta à prova com o Cavaleiro de
Tarn Wathelan. Assim, Artur partiu e, depois de se divertir bastante à custa
do enorme cavaleiro, finalmente apresentou a resposta verdadeira e, assim,
conquistou a sua liberdade. Depois regressou ao sítio onde a dama
abominável o aguardava.
Quando chegou, a recompensa que Lady Ragnell – pois era esse o nome
da dama – pediu ao Rei foi que este lhe trouxesse da corte um dos seus
cavaleiros da Távola Redonda, corajoso e cortês, e agradável à vista, para
que a tomasse como esposa adorada. Artur, chocado e repugnado pelo
pedido inconcebível, tem de ser recordado de que lhe deve a vida e que
fez uma promessa de cavaleiro e de rei em troca da ajuda da dama.
É claro que, se Artur atribuísse a tarefa a alguém, isso implicaria
desrespeitar a soberania de um dos seus próprios cavaleiros. A escolha
tinha de ser tomada livremente. Quando Artur regressou à corte e contou
toda a história da sua semana de aventuras a um conjunto pasmado de
cavaleiros, o sobrinho, Sir Gawain, por lealdade ao tio rei, e por ser bom,
ofereceu-se para casar com a dama. Artur, envergonhado e com um peso
no coração, não permitiu que Gawain se comprometesse sem a ver
primeiro.
Assim, os cavaleiros partiram na manhã seguinte para o bosque e, ao
fim de algum tempo, entreviram um vislumbre de escarlate entre as
árvores. Sir Kay e os outros cavaleiros ficaram enojados ao verem Lady
Ragnell e alguns chegaram até a insultá-la. Outros viraram costas,
apiedados, ou atarefaram-se a cuidar dos seus cavalos.
Mas Sir Gawain fitou a dama e algo no orgulho patético desta e na
forma como mantinha erguida a cabeça hedionda o levou a pensar num
veado que os cães acossassem; e houve algo na profundeza do olhar turvo
dela que o atingiu como um grito de socorro.
Olhou em redor, zangado com os outros cavaleiros.
– Ora então, porquê estes olhares de esguelha, estas expressões
perturbadas e estes maus modos? A questão nunca esteve em causa. Não
disse eu, ontem à noite, ao Rei que desposaria esta dama? E irei desposar,
se ela me quiser! – E, enquanto o dizia, saltou do cavalo e ajoelhou-se
diante dela, perguntando: – Minha Lady Ragnell, aceita-me como esposo?
A dama mirou-o por um momento com o seu único olho e depois disse
naquela voz tão surpreendentemente doce:
– O senhor também, não, Sir Gawain. Decerto zomba de mim, como os
outros.
– Nunca na vida estive tão longe de zombar – protestou ele.
Ela tentou dissuadi-lo.
– Pense, antes que seja demasiado tarde. Irá deveras desposar alguém
tão disforme e velha quanto eu? Que tipo de esposa poderia eu ser para o
sobrinho do próprio Rei? O que dirão a Rainha Guinevere e as suas aias
quando levar uma noiva assim para a corte? E o que sentirá secretamente?
Vai ficar envergonhado e tudo por minha causa – disse a Dama, que
chorou amargamente, com o rosto molhado, babado e ainda mais
hediondo.
– Minha senhora, se posso defendê-la, pode ter a certeza de que também
poderei defender-me a mim mesmo – disse Gawain, olhando em redor
para os outros cavaleiros, com a expressão que usava quando combatia. –
Agora, minha senhora, venha comigo para o castelo, pois ainda esta noite
o nosso casamento será celebrado.
Ao que Lady Ragnell respondeu, com lágrimas a caírem-lhe do olho:
– Realmente, Sir Gawain, embora talvez lhe custe acreditar, não se
arrependerá deste casamento.
Quando ela se levantou para avançar para o cavalo que lhe tinham
levado, todos viram que, para além de tudo o mais, ela tinha uma corcunda
entre os ombros e coxeava de uma perna.
Gawain ajudou-a então a subir para a sela, montou o seu próprio cavalo
ao lado do dela e todo o grupo refez o caminho de volta ao castelo do Rei.
Os rumores anteciparam-se e dos portões da cidade pessoas vinham em
barda para ver passar Sir Gawain e a noiva. Todos ficaram mais
horrorizados do que esperavam.
Nessa noite, o casamento teve lugar na capela, com a própria Rainha ao
lado da noiva e o Rei a servir de padrinho. Sir Lancelot foi o primeiro a
avançar e beijar o rosto enrugado da noiva, ao que se seguiram os outros
cavaleiros, mas as palavras destes ficavam-lhes nas gargantas quando
deviam desejar-lhe, e a Sir Gawain, um casamento feliz, pelo que mal
podiam falar. “E a pobre Lady Ragnell fitava cabeça inclinada após cabeça
inclinada das damas que avançavam para lhe tocarem nas pontas dos
dedos tão brevemente quanto possível, sem suportarem olhar para ela ou
beijar-lhe a face. Só Cabal, o cão, se aproximou e lhe lambeu a mão com
uma língua quente e molhada e lhe fitou o rosto com uns olhos cor de
âmbar que não registavam de forma alguma o aspeto hediondo dela, pois
os olhos de um cão veem de forma diferente dos olhos dos homens.”
A conversa ao jantar foi febril e forçada, um fingimento vão de alegria,
ao longo do qual Sir Gawain e a noiva ficaram rigidamente sentados entre
o Rei e a Rainha na mesa mais elevada. E, depois de as mesas serem
levantadas e chegado o momento de dançar, muitos julgaram que então Sir
Gawain poderia ficar livre para a deixar e conviver com os amigos.
– Mas – disse ele – noiva e noivo têm de dar início à primeira dança
juntos – e ofereceu a mão a Lady Ragnell.
Esta aceitou-a com um esgar hediondo que era o mais parecido com um
sorriso que conseguia fazer e coxeou para a frente para abrir o baile com
ele. E, ao longo das festividades, com o olhar do Rei sobre todos e o de Sir
Gawain também, ninguém no salão se atrevia a dar a entender que algo
estivesse mal.
Por fim, as festividades forçadas terminaram e chegou a hora de os
recém-casados irem para a câmara nupcial do castelo. Aí, “Gawain
deixou-se cair num cadeirão profundamente almofadado ao lado da
lareira, onde ficou a fitar as chamas, sem olhar para onde pudesse
encontrar-se a sua noiva. Uma corrente de ar súbita soprou as velas de
lado e as criaturas bordadas nas paredes mexeram-se como se estivessem
prestes a ganhar vida. E algures ao longe, como que do coração da floresta
encantada, pareceu-lhe ouvir o eco ténue de uma trombeta.
Houve um movimento leve aos pés da cama e o roçar de seda da saia de
uma mulher; e uma voz doce e baixa perguntou:
– Gawain, meu senhor e amor, não tem palavra alguma para mim? Não
suporta sequer olhar na minha direção?
Gawain obrigou-se a virar a cabeça e a olhar, levantou-se de um pulo,
admiradíssimo, pois entre os nichos das velas encontrava-se a mulher mais
bela que alguma vez tinha visto.
– Minha senhora – disse num sussurro, sem saber se estava acordado ou
a sonhar. – Quem é? Onde está a minha mulher, Lady Ragnell?
– Eu sou a sua mulher, Lady Ragnell – disse ela –, que conheceu entre o
carvalho e o azevinho e que desposou esta noite para pagar a dívida do seu
Rei... e, talvez um pouco, por bondade.
– Mas... mas não compreendo – gaguejou Gawain –, está tão mudada.
– Sim – disse a donzela. – Estou diferente, não estou? Estava sob um
feitiço e mesmo agora apenas me encontro parcialmente livre. Mas agora,
por algum tempo, poderei estar consigo com a minha verdadeira
aparência. O meu senhor está satisfeito com a sua noiva?
Ela aproximou-se um pouco de Gawain e este esticou-se para a envolver
nos braços.
– Satisfeito? Oh, meu caríssimo amor, sou o homem mais feliz do
mundo; pois julgava que salvava a honra do Rei, meu tio, e obtive o
desejo do meu coração. Mas, desde o primeiro momento que senti que
algo em si me chamava e que algo em mim respondia...
Pouco depois, a dama desceu as mãos para as pousar no peito dele e
afastá-lo com delicadeza.
– Ouça – disse ela –, pois agora terá de tomar uma escolha difícil.
Disse-lhe que, por ora, apenas estou parcialmente livre do feitiço que me
sujeita. Como me desposou, foi quebrado; mas não por completo.
Lady Ragnell explicou que doravante poderia aparecer na sua forma
natural durante apenas metade de cada dia e que Gawain tinha de escolher
se queria que ela fosse bela de dia e horrível de noite, ou bela de noite e
horrível de dia.
– Realmente, é uma escolha difícil – disse Gawain.
– Pense – disse Lady Ragnell.
E Sir Gawain disse de supetão:
– Oh, meu querido amor, seja hedionda de dia e bela apenas para mim!
– Pobre de mim! – exclamou Lady Ragnell. – E é essa a sua escolha?
Terei de ser hedionda e disforme entre todas as belas aias de companhia da
Rainha, suportar o desdém e a piedade delas, quando na verdade sou tão
bela quanto qualquer uma delas? Oh, Sir Gawain, assim é o seu amor?
Então Sir Gawain baixou a cabeça.
– Não, estava a pensar só em mim. Se isso a fará mais feliz, seja bela de
dia e ocupe o lugar que lhe é devido na corte. E à noite eu ouvirei a sua
voz suave na escuridão e essa será a minha satisfação.
– Essa foi de facto uma resposta de amor – disse Lady Ragnell. – Mas
quero ser bela para si, não apenas para a corte e para o mundo de dia, que
é menos importante para mim do que o meu senhor.
E Gawain respondeu:
– Qualquer que seja a escolha, será a senhora quem mais sofrerá; e,
sendo mulher, creio que terá mais sabedoria em relação a essas coisas do
que eu. Decida por si, meu amor, e, escolha o que escolher, eu ficarei
satisfeito.
Então Lady Ragnell encostou a cabeça à base do pescoço dele e riu e
chorou ao mesmo tempo.
– Oh, Gawain, meu querido senhor, agora, ao ter visto que me cabia a
mim decidir, ao oferecer-me o meu próprio caminho, ao entregar-me a
mesma soberania que foi a resposta ao enigma original, quebrou o feitiço
por completo e libertou-me para que possa ser quem realmente sou noite e
dia.”
Durante sete anos, Gawain e Ragnell foram muito felizes juntos e
durante todo esse tempo Gawain foi um homem mais gentil, bondoso e
constante do que alguma vez fora antes. Mas, ao fim de sete anos, ela
partiu. Ninguém sabia para onde. E algo de Gawain partiu com ela.
TERCEIRA PARTE

As Bases para Sermos Pais Conscientes


Soberania
Atentemos à joia misteriosa que se encontra no essencial da história de
Gawain. É o conceito de soberania, apresentado como resposta ao enigma
“O que é que todas as mulheres mais desejam?”
Como resposta ao enigma, o conhecimento da soberania salvou Artur de
uma morte certa. Mas um sentimento mais profundo de soberania, que
surgiu da empatia e compaixão de Gawain por Ragnell solucionou (na
verdade, dissolveu) um dilema que não havia quantidade de raciocínio que
pudesse resolver. Ao devolver-lhe a escolha, ele atribuiu-lhe (literalmente,
abriu o coração para) a sua soberania, e daí veio a transformação.
Este é o segredo da parentalidade com atenção plena. Ao honrarmos a
soberania dos nossos filhos, possibilitamos que se mostrem na sua
“verdadeira aparência” e encontrem o seu próprio caminho. Ambas as
coisas são necessárias para se chegar à verdadeira idade adulta.
Quantas vezes os nossos filhos não parecem apanhados por feitiços,
cativados por energias que os desviam, que os transformam subitamente
em demónios, bruxas, trolls, ogres e duendes? Será que podemos, nesses
momentos, enquanto pais, fazer como Gawain e ver para lá da aparência
superficial, perante a qual parte de nós talvez recue, e atentar ao
verdadeiro ser por trás do feitiço? Poderemos criar espaço em nós mesmos
para os amarmos tal como são, sem que tenham de mudar para nos
agradar? E quantas vezes nós, pais, não somos também apanhados por
feitiços, mostrando aos nossos filhos o nosso lado feroz, o ogre ou a bruxa
que há em nós? Não ansiamos, secretamente, por sermos aceites tal como
somos pelos outros e por encontrarmos o nosso próprio rumo nas nossas
vidas?
Em Reviving Ophelia, Mary Pipher salienta que a resposta à pergunta
condescendente de Sigmund Freud, “O que deseja uma mulher?” se revela
vezes sem conta nas suas sessões de psicoterapia com mulheres e que,
embora todas queiram “algo diferente e particular [...] cada mulher quer o
mesmo – ser quem verdadeiramente é, tornar-se quem pode tornar-se”, ser
“o tema da sua vida, não o objeto da vida de outros”.
Se a soberania implica sermos quem somos verdadeiramente e
tornarmo-nos quem podemos tornar-nos, não poderá então ser também a
resposta à pergunta mais abrangente, “O que deseja toda a gente, do fundo
do coração?” E até: “O que é que toda a gente merece mais?”
A nosso ver, a soberania, assim compreendida, não é uma busca externa
de poder, ainda que estar em contacto com ela seja supremamente
poderoso. Pode ser vista como estando profundamente ligada ao conceito
budista de natureza de Buda, que é outra forma de dizer o nosso
verdadeiro ser. A figura do Buda representa a manifestação de um estado
de mente e coração cuja melhor descrição é a de estarmos em contacto
connosco, conscientes, cientes, despertos. A visão budista é a de que a
nossa mente individual e a mente do Buda são fundamentalmente uma e a
mesma coisa e que o nosso trabalho mais profundo enquanto seres
humanos é compreender essa unidade essencial. A natureza de Buda está
subjacente a tudo. Tudo é perfeita e unicamente aquilo que é e, não
obstante, nada se encontra separado e isolado do total. Por isso, a
verdadeira natureza de todas as pessoas é a natureza de Buda e, assim,
todos somos iguais. A natureza de todas as pessoas é soberana. Só temos
de o reconhecer e de o honrar nas outras pessoas, em todos os seres, nos
nossos filhos e em nós mesmos.
É claro que ter “apenas de o reconhecer” não é assim tão fácil. É o
trabalho de uma vida. Podemos não saber ou ter perdido o contacto com o
que é o mais fundamental em nós, com a nossa própria natureza, com o
que nos apela mais profundamente. Quando não reconhecemos a nossa
verdadeira natureza e vivemos afastados dela, podemos criar muito
sofrimento, tanto para nós como para os outros.
Por vezes chama-se ao Buda “Aquele que tem Soberania sobre Si
Mesmo”. Há acontecimentos que nos desviam, e perdemo-nos. A
meditação em andamento ajuda-nos a recuperar a soberania, a
liberdade enquanto seres humanos. Caminhamos com elegância e
dignidade, como um imperador. Cada passo é vida.
THICH NHAT HANH, The Long Road Turns to Joy
Honrar o que há de mais profundo nas pessoas reflete-se
simbolicamente no costume de saudar os outros com uma vénia. Em
muitos países, em vez de se cumprimentarem com um aperto de mão, as
pessoas unem as palmas das mãos sobre o coração e inclinam-se
ligeiramente uma para a outra. Isto significa: “Faço uma vénia à divindade
que há dentro de ti.” Significa um reconhecimento partilhado da plenitude
intrínseca do outro, daquilo que é mais profundo e fundamental, a postos e
sempre presente. Fazemos uma vénia da nossa verdadeira natureza à do
outro, recordando que, no nível mais profundo, elas são uma só, mesmo
enquanto reconhecemos que, a outros níveis, todos somos diferentes,
expressões únicas desta unicidade. Por vezes, as pessoas fazem vénias a
cães e gatos, outras a árvores e flores, outras ainda ao vento e à chuva. E
por vezes os cães e os gatos, as árvores e as flores, e até o vento e a chuva,
fazem também as suas vénias. Pois tudo tem a sua natureza intrínseca que
o transforma naquilo que é e o ajuda a assumir o seu lugar no todo, e a
relação entre os dois é sempre recíproca. Como pais, por vezes damos por
nós a fazer vénias interiores aos nossos bebés e crianças.
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Em idades distintas, com filhos diferentes, e sob circunstâncias diversas,
as nossas escolhas enquanto pais acerca de como agir em relação à
soberania do nosso filho ou filhos serão muito diferentes. Mas o que não
se alterará, segundo se espera, é um profundo empenho em reconhecê-la e
honrá-la como um atributo fundamental e como um direito inato de cada
criança. Isto requer que nós, pais, tenhamos presente a soberania, a
divindade intrínseca e a beleza dos nossos filhos – e, em última instância,
confiemos nela –, mesmo quando estamos menos em contacto com ela ou
quando esta se encontra menos evidente.
Como todos os pais sabem, ou depressa descobrem, cada criança vem ao
mundo com os seus próprios atributos, temperamento e génio. Como pais,
é-nos requerido que reconheçamos quem é unicamente cada um dos
nossos filhos e que os honremos criando espaço para eles tal como são,
sem tentarmos mudá-los, por difícil que isso por vezes seja para nós.
Como já estão sempre a mudar como parte da sua própria natureza, é
possível que esta espécie de consciência da nossa parte seja precisamente
o necessário para lhes dar espaço para que cresçam e mudem da melhor
forma para eles e que não podemos impor pela nossa vontade.
As crianças nascem com soberania, no sentido em que nascem
perfeitamente quem e o que são. Embora a soberania seja fundamental
para a nossa própria natureza de seres humanos, a nossa capacidade de a
sentir e de recorrer a ela aprofunda-se ao longo da nossa experiência de
vida, começando pela forma como nos tratam quando somos jovens. Em
adultos, a nossa soberania intrínseca pode ser prejudicada por experiências
de vida traumáticas e pela nossa própria negligência deste domínio
essencial do ser.
Ainda assim, aquilo a que chamamos soberania é tão profundo, tão
tenaz, tão vital, tão integral à nossa natureza por ser a nossa verdadeira
natureza, que muitas pessoas conseguem retirar sustento e forças daí
mesmo em circunstâncias extremamente difíceis da infância. Por vezes,
outra pessoa que não um dos pais pode assumir um papel fundamental na
vida de uma criança, ao ver quem esta é realmente e oferecendo-lhe
bondade e encorajamento, apreço e aceitação. Muitas pessoas consideram
que uma pessoa especial que lhes proporcionou reconhecimento e as
encorajou a ser quem já eram e a tornarem-se o que ansiavam por se tornar
é a fonte do sucesso que obtiveram na vida.
A orientação de crianças e adolescentes por pessoas que estão cientes,
de alguma maneira, da sua própria plenitude, e que podem, por
conseguinte, reconhecer a beleza e a plenitude dos outros, é a
responsabilidade sagrada dos adultos em qualquer sociedade saudável.
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A experiência da soberania aprofunda-se à medida que uma criança
aprende a deparar-se com o mundo e a superar obstáculos, desenvolvendo
força interior e confiança, segura de si mesma, sabendo que é amada e
aceite tal como é.
À primeira vista, a própria noção da soberania intrínseca das crianças
pode facilmente ser mal interpretada, parecendo que defendemos que os
filhos sejam tratados como reis e rainhas, isto é, servidos e atendidos em
tudo o que exijam. Não defendemos tal coisa. Na verdade, nada poderia
estar mais afastado da noção de soberania tal como usamos o termo.
Atribuir soberania aos nossos filhos não significa deixá-los atropelar tudo
e todos, ou promover uma sensação de falsa “autoestima” desligada dos
seus comportamentos e experiências de vida. Não quer dizer que tenham
permissão para fazer o que quer que lhes apeteça, que o que quer que
façam está bem, nem que devam sempre obter o que querem por terem de
levar a sua avante e estar sempre contentes.
A soberania, no sentido da natureza verdadeira de cada um, é uma
qualidade universal do ser; e a vida, acima de tudo, é uma ocasião para
compreendermos o que é essa verdadeira natureza e como esta se expressa
para cada um de nós. As crianças são soberanas em si mesmas, tal como
todas as pessoas, incluindo os seus pais. Devemos refletir acerca de como
podemos honrar a soberania delas respeitando também a nossa. Como
podemos ajudá-las a crescer em todos os aspetos do seu ser? Como
podemos encorajá-las a ver e respeitar a soberania dos outros?
A soberania é muito diferente de prerrogativas sem limites. Não
significa que se deva dar às crianças tudo o que querem, nem que outros
devam fazer o trabalho delas. Cabe-nos proteger e apoiar a soberania dos
nossos filhos sem fomentar uma atitude de que o que quer que façam
estará bem, independentemente dos seus efeitos, como se só eles fossem
importantes, só as suas opiniões ou vontades contassem. A soberania de
cada pessoa é interdependente e está interligada com a de todas as outras.
Todos fazemos parte de um conjunto maior e tudo o que fazemos nos afeta
uns aos outros.
Outra forma de apresentar isto é dizer que, na verdade, os nossos filhos
têm prerrogativas. Têm imensas prerrogativas. Os adultos também, mas há
assimetrias importantes na relação. Os adultos são responsáveis pelos
filhos. As crianças têm a prerrogativa de serem amadas, cuidadas e
protegidas pelos pais e por outros adultos. Como adultos e pais, não
podemos esperar que as crianças supram as nossas necessidades
emocionais. Temos de procurar isso em nós mesmos e noutros adultos.
Mas podemos, isso sim, desfrutar das bênçãos ilimitadas que os nossos
filhos nos concedem espontaneamente, apenas por existirem.
Na verdade, como adultos e como pais, podemos perfeitamente precisar
de explorar, sustentar e aprofundar uma ligação mais duradoura com a
nossa própria soberania subjacente, já que esta é tão fundamental e, ao
mesmo tempo, tão elusiva. É este o grande trabalho da consciência, da
atenção plena, a oportunidade de despertar para e concretizar a nossa
própria natureza verdadeira como seres humanos. É claro que, na maior
parte do tempo, se pensarmos em tudo isso, poderemos dizer que estamos
demasiado ocupados para prestarmos atenção a tais noções, apesar de
todas as imposições como a de Sócrates, “conhece-te a ti mesmo”. Mas é
possível que não possamos dar-nos ao luxo de não prestarmos atenção à
nossa verdadeira natureza e de não aprendermos a viver de acordo com
ela. Pois, se não o fizermos, de uma forma muito real, podemos passar
grandes partes das nossas vidas como sonâmbulos e, no final, não
saberemos nem que somos, nem quem fomos e nem sequer quem são os
nossos filhos, por mais que pensássemos que sabíamos.
Como vimos, um veículo para essa viagem interna de crescimento e
descoberta é o mindfulness, cultivado de duas formas complementares:
como atenção prestada a todos os aspetos da vida quotidiana e na prática
diária de uma disciplina meditativa mais formal, na qual nos detemos por
um período e observamos, em imobilidade e silêncio, a atividade a cada
momento da nossa própria mente e corpo. Incluir o mindfulness nas nossas
vidas de uma ou ambas as formas e questionar quem realmente somos
pode ajudar-nos a perceber a nossa natureza soberana ao mesmo tempo
que atribuímos soberania aos nossos filhos.
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Como poderá ser, em termos práticos, para os pais, uma forma
fundamental de honrar o modo ser de uma criança? Afinal, o que significa
realmente levar a sua avante? O que é o verdadeiro Ser de uma pessoa?
Como se experiencia a soberania, seja enquanto adulto, seja enquanto
criança? Como se experiencia em diferentes idades e fases da vida, e em
crianças com temperamentos vastamente diferentes?
Para começar, honrar a soberania de uma criança significa reconhecer,
perante nós mesmos, a realidades dessas mesmas fases e temperamentos.
Poderá significar que as mensagens que um bebé envia são atendidas por
nós sermos a principal interface que este tem com o mundo. Se o bebé
chora, pegamos-lhe, seguramo-lo, intervimos com a nossa presença,
ouvimo-lo. Tentamos providenciar conforto e uma sensação de bem-estar.
Fazendo-o, honramos o seu poder de ter resposta do mundo; atribuímos-
lhe esse respeito e ensinamos-lhe que o mundo responde de facto e que há
um lugar para si, ao qual pertence. E fazemos isto como uma prática
intencional, quer nos apeteça fazê-lo a dado momento ou não.
Atribuir soberania pode significar tornar a casa segura para que o nosso
filho pequeno possa explorar o seu ambiente sem se magoar. No entanto,
mesmo num ambiente relativamente seguro, as crianças pequenas
precisam de ser vigiadas. Basta mantermo-nos atentos para atribuirmos
soberania a uma criança pequena. É uma forma de a honrar, uma
declaração de que a criança merece essa atenção com uma distância
mínima, a qual se torna, em pais de crianças pequenas, um sexto sentido,
como saber quando o copo está demasiado perto da borda da mesa e
afastá-lo mesmo antes de a criança tentar agarrá-lo, apesar de podermos
estar a meio de uma conversa com outra pessoa.
Por outro lado, constantes avisos asuustadores, como “Não faças isso
que te magoas” sempre que a criança está a explorar algo pode minar-lhe a
confiança e incutir-lhe os nossos medos. Uma alternativa poderá ser dar-
lhe a oportunidade de encontrar a sua própria forma de sair de uma
dificuldade, ao mesmo tempo que nos posicionamos discretamente de
forma a podermos ajudá-la caso isso se torne necessário. Desta forma,
permitimos-lhe que se aventure e resolva problemas sem injetarmos os
nossos próprios medos nas suas explorações ousadas.
Com adolescentes, atribuir soberania poderá significar estarmos
dispostos a ver para lá das formas como escolhem apresentar-se ou
afirmar-se, que, como expressões do seu poder interior, muitas vezes
chocam ou repugnam os mais velhos, e ligarmos antes à bondade
subjacente que mantêm. Atribuímos-lhes soberania escutando-os e
tentando compreender e apreciar as suas opiniões, perspetivas,
competências e forças. Também podemos fazer isso mantendo-nos
afastados das várias forças que podem influenciar os adolescentes durante
esse período. Poderá significar saber quando ficar calado e deixá-los em
paz e quando tentar uma aproximação, verbal e não verbal, de formas que
respeitem a sua autonomia crescente. E, por vezes, significa estabelecer
limites definidos e claros e mantê-los com bondade e firmeza.
Estes são apenas alguns exemplos fugazes de como poderemos atribuir
soberania aos filhos em diferentes idades. Tal como com Lady Ragnell, a
nossa verdadeira natureza nem sempre é muito aparente. A clareza que nos
permite ver para lá do véu das aparências e agir segundo o melhor
interesse dos nossos filhos surge da nossa consciência a cada momento. A
soberania não pode ser nem obtida por completo pelo próprio, nem
completamente atribuída a outra pessoa num único ato esperançoso, por
mais importante que tal ato ou momento possa ser. Emerge da prática de
aceitar o momento presente com um coração franco e astuto.
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Não se passará nem um dia em que não nos sintamos desafiados de
alguma maneira, pondo em causa a nossa própria soberania ou sentindo
que esta entra em conflito com a do nosso filho. Isto é outra forma de
dizer que ser pai, por vezes, é exaustivo e requer trabalho árduo, tal como
ser consciente. Como vimos, é uma disciplina, um apelo a que nos
lembremos de estar presentes, de ver e aceitar os nossos filhos tal como
são e, fazendo-o, sermos e partilharmos com eles o que temos de melhor.
Parte deste trabalho consiste em termos presente que não podemos
solucionar todos os nossos problemas, ou os dos nossos filhos, meramente
através do pensamento. Pois há outras inteligências igualmente
importantes nas nossas vidas e, como pais, precisamos de desenvolver
fluência nelas para contribuir para que despontem nos nossos filhos. Uma
é a inteligência da empatia. Gawain sentiu algo por Lady Ragnell. Ao
confiar nos seus sentimentos, naquilo a que poderíamos chamar a sua
intuição, o seu coração, foi além das aparências e ultrapassou o véu de
“ou-ou” do seu próprio pensamento. Só quando abriu mão do apego a um
resultado em particular e aceitou tanto o dilema como a soberania de
Ragnell é que – nesse preciso momento – uma abertura surgiu e, com ela,
uma libertação aparentemente impossível.
Se cada momento é verdadeiramente uma oportunidade para o
crescimento, uma ocasião para sermos verdadeiros connosco próprios,
uma potencial ramificação que se liga a um número infinito de momentos
possíveis de se seguirem, dependendo de como seja visto e retido, atribuir
soberania a um filho num determinado momento cria de imediato espaço
para que a sua verdadeira natureza venha ao de cima, seja vista e
silenciosamente celebrada. Desta forma, a autoaceitação, e autoconfiança
e o acreditar na própria natureza e no caminho que se fará enraízam-se,
desenvolvem-se e amadurecem na criança em crescimento.
O poder da empatia e da aceitação é imenso e profundamente
transformador, tanto da pessoa que o recebe como da que o atribui. Mais
do que qualquer outra coisa, uma preparação cuidadosa da soberania de
um filho e o ato de a honrar através de empatia e aceitação são a essência
da parentalidade com atenção plena.
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Eis um exemplo impressionante da dádiva de soberania de um pai ao
filho:
“O paizinho vai ficar muito zangado por causa disto”, disse a minha
mãe. Estávamos em agosto de 1938, numa pensão das Catskill
Mountains. Numa tarde quente de sexta-feira, três de nós – rapazinhos
citadinos de nove anos – começámos a sentir-nos entediados.
Tínhamos feito todas aquelas coisas de um verão no campo, apanhado
os sapos todos, colhido os mirtilos e tremido na água gelada do rio. O
que precisávamos, naquela tarde insuportavelmente tediosa, era de
ação.
Para ponderarmos as opções, eu, Artie e Eli refugiámo-nos no fresco
do “casino”, o pequeno edifício onde os convidados se dedicavam às
suas noitadas de bingo e assistiam a um ou outro espetáculo de magia.
Aos poucos, a inspiração atingiu-nos: o casino era demasiado novo, a
estrutura de madeira e as paredes de gesso laminado branco
demasiado perfeitas. Iríamos fazer alguns estragos discretos. Deixar a
nossa marca anónima no lugar, para todo o sempre. Sem, claro está,
dedicar qualquer pensamento às consequências.
Começámos por pegar num banco comprido de madeira, correndo
com ele como se fosse um aríete e investindo-o contra uma parede,
onde deixou um belo buraco. Mas era pequeno. Então, fizemos aquilo
outra vez. E outra...
Depois, nós os três, a ofegar e a suar o suor de heróis, inspecionámos
os nossos primeiros estragos realmente grandes. O processo tinha sido
tão satisfatório que nos deixámos entusiasmar. Praticamente não
restou nem um quadrado de gesso intacto.
De repente, antes sequer que um laivo de remorso se instalasse, o
proprietário, o Sr. Biolos, apareceu à entrada do edifício. Furioso. E a
clamar por justiça: Quando os nossos pais chegassem da cidade
naquela noite, ele-ia-dizer-lhes!
Entretanto, contou às nossas mães. A minha considerou que o que eu
tinha feito era tão monstruoso que deixaria o castigo para o meu pai.
“E”, avisou-me, “o paizinho vai ficar muito zangado por causa disto.”
Às seis da tarde, o Sr. Biolos estava plantado junto ao acesso da
pensão, com um ar soturno enquanto esperava que os pais
começassem a aparecer. Atrás dele, o alpendre da frente estava
apinhado, como uma bancada sem lugares livres, cheio de hóspedes
indignados. Tinham visto os estragos feitos ao seu palácio do bingo,
sabiam que teriam de o suportar naquelas condições durante o resto
do verão. Também ansiavam por justiça.
Quanto a mim, a Artie e a Eli, cada um de nós encontrou um lugar
discreto no alpendre, a uma distância cautelosa uns dos outros mas
sem nos afastarmos demasiado das nossas respetivas mães. E
esperámos.
O pai de Artie foi o primeiro a chegar. Quando o Sr. Biolos lhe contou
a novidade e lhe mostrou o casino arruinado, ele tirou cuidadosamente
o cinto e – com um estilo que vinha da prática – chicoteou cruelmente
o filho aos gritos. Com a aprovação, já agora, de uma multidão
horrível composta por pessoas até então gentis.
O pai de Eli chegou em seguida. Ao saber e ver o que acontecera,
perdeu as estribeiras e atirou o filho ao chão com uma bofetada na
cabeça. Estando Eli deitado a chorar na relva, o pai pontapeou-lhe as
pernas, as nádegas e as costas. Quando Eli tentou levantar-se, o pai
deu-lhe mais pontapés.
As pessoas murmuravam: Ouçam, deviam ter pensado nisto antes de
fazerem os estragos. Vão sobreviver, não se preocupem, e aposto que
nunca mais fazem uma destas.
E eu perguntava-me: O que fará o meu pai? Ele nunca me tinha
encostado um dedo que fosse. Eu sabia do que acontecia com outros
miúdos, tinha visto nódoas negras nalguns colegas e até ouvira gritos
nalgumas noites de certas casas na minha rua, mas tratava-se daqueles
miúdos, das famílias deles, e tanto o porquê como o como das nódoas
negras eram, para mim, abstrações sombrias. Até então.
Olhei para a minha mãe. Estava perturbada. Antes, tinha deixado claro
que eu cometera um tipo especial de crime. Significaria isso que os
espancamentos tinham passado subitamente a ser a nova ordem do
dia?
De repente, o meu pai apareceu no nosso Chevy, mesmo a tempo de
ver o pai de Eli a arrastá-lo pelos degraus do alpendre e para dentro do
edifício. Saiu do carro a acreditar, pensei eu com toda a certeza, que o
que quer que se passasse ali, Eli devia ter merecido. Fiquei tonto de
medo. O Sr. Biolos, todo lançado, começou a falar. O meu pai ouviu-
o, com a camisa ensopada em transpiração, um lenço húmido à volta
do pescoço; nunca se sentia bem com o tempo húmido. Observei-o a
seguir o Sr. Biolos para dentro do casino. O meu pai – forte e com
princípios, mas também com calor e incomodado... o que estaria a
pensar acerca de tudo aquilo?
Quando saíram, o meu pai olhou para a minha mãe. Murmurou-lhe
um pequeno “Olá”. Depois os seus olhos procuraram-me e fitaram-me
durante um longo momento, inexpressivos. Tentei interpretar o seu
olhar, mas este deixou-me e focou-se na multidão, indo de rosto
expetante em rosto expetante.
Depois, espantosamente, meteu-se no carro e foi-se embora!
Ninguém, nem sequer a minha mãe, conseguia imaginar onde iria.
Uma hora depois, voltou. Amarrada ao tejadilho do carro estava uma
pilha de enormes placas de gesso laminado. O meu pai saiu com um
saco de papel, de onde espreitava um martelo. Sem dizer palavra,
desatou o gesso e, uma por uma, levou as placas para o casino.
E não voltou a sair de lá naquela noite.
Enquanto jantava em silêncio com a minha mãe e durante o resto
daquela noite de sexta-feira, continuando bem depois de termos ido
para a cama, eu ia ouvindo – toda a gente ouvia – o pum pum pum
pum constante do martelo do meu pai. Imaginava-o a suar, sem ter
jantado, a sentir a falta da minha mãe, cada vez mais zangado comigo.
Seria o dia seguinte o último da minha vida? Chegaram as três da
manhã antes que eu conseguisse finalmente adormecer.
Na manhã seguinte, o meu pai não disse nem uma palavra acerca da
noite anterior. Nem demonstrou qualquer vestígio de zanga ou
reprovação de género algum. Passámos um dia normal, eu, ele e a
minha mãe, e, na verdade, o nosso habitual fim de semana agradável.
Estaria zangado comigo? Podem crer que estava. Mas, numa altura
em que muitos da sua geração viam os castigos corporais dos filhos
como um direito outorgado por Deus, para ele “bater” era “espancar”,
e espancar era um crime. E sabia que, quando os miúdos eram
espancados, lembravam-se sempre da dor, mas muitas vezes
esqueciam-se do motivo.
Também me apercebi, anos mais tarde, que para ele humilhar-me era
igualmente impensável. Ao contrário dos pais dos meus amigos, não
seria capaz de alinhar numa conspiração de vingança e espetáculo.
Mas o meu pai passara a mensagem. Nunca me esqueci de que o meu
vandalismo naquela tarde de agosto foi escandaloso.
E nunca me esquecerei que esse foi também o dia em que
compreendi, pela primeira vez, quão profundamente podia confiar
nele.
MELL LAZARUS, ROMANCISTA E CRIADOR DAS TIRAS
DE BANDA DESENHADA MOMMA E MISS PEACH
(excerto de: “Angry Fathers”, About Men, New York Times, 28 de
maio de 1995)
Empatia
A empatia teve um papel fundamental na capacidade de Sir Gawain
libertar Lady Ragnell do feitiço sob o qual se encontrava. Ele pressentiu a
dor dela e entreviu, nos olhos dela, uma beleza e uma profundidade de
alma para lá das aparências, oculta, mas não obstante presente: “Algo no
orgulho patético desta e na forma como mantinha erguida a cabeça
hedionda o levou a pensar num veado que os cães acossassem; e houve
algo na profundeza do olhar turvo dela que o atingiu como um grito de
socorro.”
O cão do castelo demonstra uma empatia que envergonha os seres
humanos. “Só Cabal, o cão, se aproximou e lhe lambeu a mão com uma
língua quente e molhada e lhe fitou o rosto com uns olhos cor de âmbar
que não registavam de forma alguma o aspeto hediondo dela.” Muitas
vezes, se prestarmos atenção, os cães e os gatos podem ensinar-nos muito
acerca de soberania, empatia e aceitação. Talvez seja por isso que vivemos
com eles, e eles connosco. Proporcionam-nos o curso básico. Criar filhos
é o treino avançado. Inscrevemo-nos, quer estejamos preparados para isso,
quer não. E quem é que alguma vez está preparado?
>>>
Ao refletirmos na empatia nas nossas próprias vidas, talvez seja útil
perguntarmo-nos: “O que é que eu mais queria dos meus pais quando era
criança?” Poderemos tomar um ou dois minutos para refletir e ver que
palavras ou imagens nos vêm à cabeça...
Para muitas pessoas, o mais profundamente desejado era terem sido
vistas e aceites na família tal como eram, um desejo de terem sido tratadas
com amabilidade, compaixão, compreensão e respeito; que lhes tivessem
sido dadas liberdade, segurança e privacidade, bem como uma noção de
pertença. Todas estas coisas dependem da capacidade de um pai de ser
empático. É fácil condoermo-nos de um filho quando este se magoa. É
muito mais difícil fazê-lo quando esperneia, atira coisas e grita. Também é
difícil fazê-lo quando os seus interesses ou opiniões colidem com os
nossos. A nossa capacidade de manter a empatia num leque mais
abrangente de situações requer que esta se cultive intencionalmente.
Quando cultivamos empatia, tentamos ver as coisas a partir da
perspetiva do nosso filho. Tentamos perceber o que está a sentir ou a
experienciar. Esforçamo-nos por transpor uma consciência compassiva
para o que está a acontecer em cada momento. Isto inclui uma noção dos
nossos próprios sentimentos, também.
Como será criar empatia com um recém-nascido, imaginar como se
sentirá ao chegar a este mundo depois de nove meses noutro, tão
diferente? Poderíamos começar por imaginar como era estar no útero, num
lugar quente, molhado e protegido, com sons constantes e rítmicos, uma
sensação de se estar protegido, amparado, embalado... uma experiência de
plenitude indiferenciada, onde nada faz falta, nada está em falta.
Uma carta escrita por um jovem de dezanove anos à sua mãe, no Dia da
Mãe, oferece-nos um profundo vislumbre deste mundo:
Muita paz e força do meu coração para o teu. Pelos nove meses da
mais doce das meditações. Durante os quais, em água eu respirava
como peixe. Onde o alimento era tão puro que nem a boca, nem a
garganta eram usadas... Bênçãos.
Ao nascermos, abandonamos esta harmonia e emergimos num mundo
novo e totalmente diferente. Pode haver luz forte e ar frio. Podemos ouvir
ruídos altos e imprevisíveis, sentir aspereza ou dureza contra a pele.
Sentimos fome pela primeira vez. Tudo isto ocorre como uma experiência
sensorial crua e pura, sem filtros ou saber algum. Imagine ser lançado para
um ambiente estranho, onde dependesse inteiramente da capacidade de os
habitantes compreenderem a sua linguagem e serem sensíveis e reativos a
todo o seu ser e ao que poderia precisar em determinada altura.
Porque será tão difícil, por vezes, vermos os nossos bebés como seres
que sentem e experimentam por completo? Porque acharemos bem
“deixá-los chorar” quando nunca ignoraríamos o pranto de um amigo, de
um amante ou sequer de um desconhecido? A que estaremos a resistir, ou
do que nos protegeremos, quando nos distanciamos do desconforto de um
bebé?
Uma coisa de que podemos estar a proteger-nos é, claro, mais trabalho.
É muito mais exaustivo, a curto prazo, criar um filho a cada momento de
uma forma atenta. Atender à linguagem corporal de um filho,
experimentar coisas diferentes, ter o cuidado de não reagir nem de menos,
nem de mais, pegar ao colo, reconfortar, cantar, tudo isso requer tempo e
energia. O mais frequente é que também nos tire o sono, tanto literal como
metaforicamente. É certamente mais fácil criar empatia com os filhos
quando isso também vai ao encontro das nossas próprias necessidades. O
verdadeiro teste surge-nos quando parece que as necessidades deles se
encontram em conflito com as nossas.
Uma falta de empatia em tais situações também poderá ser uma forma
de nos protegermos da dor que podemos ter vivido quando as nossas
próprias necessidades físicas ou emocionais não foram atendidas durante a
infância. Criar empatia com a vulnerabilidade de um filho pode lembrar-
nos dolorosamente da nossa.
Uma forma de evitar termos de reconhecer, enquanto adultos, o nosso
sofrimento em crianças é reverter para um mecanismo de sobrevivência a
que podemos ter recorrido quando nós mesmos éramos bebés. Perante um
ambiente sem capacidade de resposta, muitos bebés fecham-se
emocionalmente, retraem-se e alheiam-se. Se tiver sido assim que
aprendemos a lidar com dor e frustração quando éramos pequenos,
poderemos continuar a fazê-lo enquanto adultos, de formas que poderão
ser totalmente automáticas e encontrar-se abaixo do nosso nível de
consciência. Em vez de atendermos aos sentimentos de um bebé e aos
nossos em resposta, podemos ignorá-los ou minimizá-los com
justificações do género: “Os miúdos são fortes, há de habituar-se”,
“Chorar não vai fazer-lhe mal” ou “Não queremos que fique mimado”.
Depois, podemos tentar aliviar o nosso próprio desconforto através da
comida, do álcool, da TV, dos nossos aparelhos eletrónicos ou do jornal,
de forma a acalmarmo-nos e alhearmo-nos da dor.
Talvez nem nos demos conta de que temos poderosos recursos interiores
que vão bem mais além do que esses veículos de escape. Ligarmo-nos e
relacionarmo-nos com empatia, em momentos desses, é uma alternativa
mais saudável e bem mais satisfatória, tanto para o pai como para o filho.
Mesmo que não tenhamos aprendido isto na infância, os nossos bebés e
crianças podem apelar a esta capacidade primordial que se encontra nas
profundezas do nosso ser, desde que estejamos preparados para nos
entregarmos a apelos tão profundos.
Em estudos em que investigadores pediram a mães que reagissem de
mais ou de menos aos bebés, em vez de corresponderem aos seus
sentimentos de uma forma atenta e empática, os bebés reagiram com um
desespero e uma angústia imediatos. Ao comentar estes estudos, Daniel
Goleman, no seu livro de referência Inteligência Emocional, escreve:
A ausência prolongada de sintonização entre mãe e filho representa
para a criança um custo emocional tremendo. Quando a mãe deixa
consistentemente de mostrar qualquer espécie de empatia com uma
dada gama de emoções da criança – alegria, choro, necessidade de ser
acarinhada –, esta começa a evitar expressar, e possivelmente até
sentir, essas mesmas emoções. Deste modo, presumivelmente, gamas
inteiras de emoções podem começar a ser obliteradas do repertório
das relações íntimas, sobretudo se, ao longo da infância, esses
sentimentos continuarem a ser aberta ou veladamente desencorajados.
As implicações destes estudos são profundas. Segundo o investigador e
psiquiatra Daniel Stern, citado por Goleman, as trocas pequenas e
repetidas que têm lugar entre pai e filho formam a base das ligações mais
fundamentais da vida emocional. Se assim é, a importância de os pais se
dedicarem de todo o coração a esta dança e interligação com os filhos é
vital para o desenvolvimento contínuo destes como seres plenos,
emocionalmente competentes e soberanos.
Deste ponto de vista, o “bom” bebé que deixa de chorar ao fim de dez
minutos e adormece poderá ser um bebé que aprendeu a desistir. Mas será
desistir o que queremos ensinar-lhes? Será que adaptarem-se a que as suas
necessidades não sejam supridas é a forma como queremos que os nossos
filhos desenvolvam “independência”? Será que fecharem-se
emocionalmente e perderem alguma da sua vivacidade e abertura é o que
queremos para os nossos filhos? Ou quereremos ensinar-lhes que os seus
sentimentos contam, que lhes responderemos, que há pessoas em quem
podem confiar e saber que os tratarão com sensibilidade, e que é seguro
serem francos, expressivos, pedir aquilo de que precisam, serem
interdependentes?
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À medida que os bebés ganham mobilidade e começam a explorar o
mundo, adquirem também uma curiosidade natural e retiram prazer de
tudo o que os rodeia. Ao mesmo tempo, o mundo oferece-lhes muitas
experiências de frustração à medida que tentam fazer coisas que não
conseguem ainda, limitados por capacidades motoras e forças que ainda
precisam de desenvolver. Se bem que se aventurem constantemente,
continuam a precisar de uma pessoa carinhosa e emocionalmente
disponível a quem possam regressar. As crianças pequenas dependem da
sensibilidade dos pais e da compreensão destes para lhes criarem um
ambiente (ou, no caso de a criança ir para a creche, para escolher um
ambiente) que lhes alimente a curiosidade, lhes dê a liberdade de explorar
e descobrir em segurança e, em simultâneo, lhes proporcione limites
apropriados, bem como o afeto e a segurança de que precisam,
representado num colo acolhedor, ou quando são pegados ou
transportados.
À medida que os nossos filhos crescem, a empatia vai assumindo uma
forma menos física, embora haja alturas em que aquilo de que uma criança
precisa é de um abraço silencioso ou de que lhe demos a mão. Os sinais
que recebemos de filhos mais crescidos podem ser confusos e, por vezes,
difíceis de compreender. Num dia (ou minuto) podem mostrar-se
amistosos e comunicativos, estando no seguinte zangados e a rejeitar tudo.
A nossa capacidade de comunicar com eles, ou sequer a possibilidade de o
fazermos, dependerá em larga medida da noção de uma dedicação forte e
duradoura da nossa parte, mesmo quando possam questionar a relação que
têm connosco, ou rejeitar as nossas aproximações ou averiguações.
Mostrarmos empatia perante a rejeição requer que não deixemos que as
nossas próprias suscetibilidades se intrometam na forma de vermos aquilo
com que o nosso filho poderá estar a debater-se, ou as tensões que poderá
estar a vivenciar. De certa forma, os nossos filhos têm de sentir que nos
mantemos ligados a eles, por mais repugnantes (na nossa opinião) que
sejam as fases por que passam, independentemente dos disfarces sombrios
que experimentem. Podemos rejeitar o seu comportamento sem os
rejeitarmos. Esta persistência consciente da nossa parte provém não de um
desejo de os controlar, de os conter ou de nos agarrarmos a eles devido à
nossa própria carência, mas de um empenho em estarmos adequadamente
presentes para eles, em fazermos com que saibam que não estão sozinhos,
que não deixámos de saber quem são e o que significam para nós.
E não será verdade, para todos nós, que quando nos sentimos perdidos,
tristes, e como se fôssemos sapos, é uma enorme ajuda sentir que as
pessoas mais próximas de nós continuam a ser nossas aliadas, continuam a
ver e amar o nosso ser essencial? Assim, como pais, cabe-nos reconstruir e
restaurar continuamente as nossas relações com os nossos filhos. Isso
requer tempo, atenção e empenho. Se estivermos perpetuamente ausentes,
ou de corpo presente mas com a atenção e o coração ausentes, será menos
provável que o nosso filho sinta a confiança e a segurança necessárias para
nos dizer que problemas enfrenta.
As crianças têm uma capacidade maravilhosa para irem diretas ao cerne
da questão. Uma amiga contou-nos a seguinte história: Certa noite,
quando a filha tinha oito anos, a mãe sentou-se ao seu lado enquanto ela
tentava adormecer. A filha estava assoberbada por um medo terrível de
ladrões e sequestradores, problema que já havia anos que ia surgindo à
hora de dormir. A mãe, sentada na cama, escutava-a e ia-se debatendo
internamente com a sua vontade de tranquilizar a filha, de a convencer de
que não havia nada a recear, apesar de ciente da futilidade de usar a razão
perante o pavor profundo e persistente da filha.
Experimentando uma tática diferente, disse-lhe que, quando era da sua
idade, também tinha muito medo à noite. A menina olhou para a mãe com
um ar solene e perguntou: “Tinhas?” Ela respondeu acenando com a
cabeça. A filha ficou pensativa durante um momento e depois perguntou,
muito séria: “E podias contar à tua mãe?” A mãe demorou um pouco, a
recordar a sua infância, e respondeu: “Não, não podia.”
Com oito anos, a filha já sabia, por experiência própria, como é
importante contarmos a alguém próximo o que sentimos. Sabia o que era
sentir abertura e aceitação, uma presença empática de um progenitor. Os
seus medos não eram ignorados, transformados em motivo de troça ou
desprezados. Nas garras daquele terror muito real, sentia-se
inquestionavelmente segura para contar à mãe. Não precisava de se sentir
só no seu medo.
Como pais, podemos aprender bastante acerca de nós mesmos trazendo
atenção plena aos pensamentos e sentimentos que surgem quando um filho
partilha algo difícil connosco. Se pudermos observar o nosso próprio
desconforto – provocado por certos sentimentos – e qualquer impulso que
surja em nós para descurar, ignorar ou desprezar preocupações ou medos
em particular, existe a possibilidade de alterarmos o nosso próprio
comportamento automático e de nos tornarmos pais mais empáticos e
solidários.
Por vezes, em momentos em que nos é requerido que escutemos, que
compreendamos, que respondamos afetuosamente, podemos em vez disso
dar por nós a assoberbar um filho com os nossos próprios sentimentos e
reações fortes. A criança pode acabar a sentir que tem de cuidar de nós, em
vez de ser o contrário.
Se trouxermos atenção plena para esses momentos em que damos por
nós a descer por um caminho pelo qual não pretendíamos enveredar,
levados pelas nossas próprias emoções, podemos ser capazes de pressentir
o que acontece dentro de nós nesse momento particular, parar, e talvez
mudar a rota, optando por uma alternativa mais relacional e empática. Este
tipo de perceção a cada momento recorda-nos que podemos decidir, de
uma forma mais consciente, quando é útil partilharmos os nossos próprios
sentimentos e quando isso é desnecessário ou até destrutivo. Podemos
aprender através de uma escuta interior quando devemos estender a mão e
quando devemos deixar as coisas tal como estão, quando falar e quando
calar, e como estar presente em silêncio, de modo a que o outro sinta uma
presença empática e não uma rejeição ou um recuo. Ninguém pode
ensinar-nos estas coisas. Temos de aprender com a nossa própria
experiência, atendendo aos sinais e às pistas que nos são dadas, bem como
aos nossos próprios estados mentais à medida que vão e vêm.
É claro que isto não é fácil e, em momentos particularmente carregados
de transtorno e conflito, podemos dar por nós a ficar emocionalmente
reativos e a dizer coisas, ou agir de formas, que mais tarde lamentaremos.
Estas “ruturas”, momentos de alheamento e desligamento, são uma parte
inevitável de qualquer relação. As crianças também precisam de
experimentar isto, nomeadamente que os pais são humanos, que por vezes
somos capazes de ser insensíveis, desatentos, sem empatia – que podemos
ficar incomodados e zangados. Pode aprender-se muito com tais
momentos de stresse e desligamento, bem como do importante processo
de reparação e recuperação. Como o terapeuta familiar Daniel Hughes
realça no seu livro Attachment-Focused Family Therapy, a força da
relação entre pais e filhos, a que por vezes se chama apego seguro, baseia-
se tanto neste processo tumultuoso de rutura seguido pela reparação como
em sentimentos de proximidade e segurança. Desses momentos pode
surgir uma experiência sentida de que pais e filhos podem ver e
experienciar coisas de maneira muito diferente e, ainda assim, estarem
seguros numa relação afetuosa e de confiança. Não só a relação se
fortalece ao passar por este processo, como também a noção de autonomia
e ligação da criança, ambas essenciais para um desenvolvimento salutar.
O contínuo entrelaçar e restaurar de ligações empáticas com os nossos
filhos é um pilar da parentalidade com atenção plena. Tentar ver as coisas
a partir da perspetiva do nosso filho pode guiar-nos nas escolhas que
tomamos e ajudar-nos a orientarmo-nos por estas correntes complexas e
em constante mudança da interligação.
Aceitação
A soberania e a empatia são ampliadas pela aceitação, um terceiro
elemento fundamental da parentalidade com atenção plena. Estes três
elementos complementam-se uns aos outros e estão intimamente
interligados. Podemos pensar neles como formando os lados de um
triângulo equilátero. A aceitação consiste numa orientação interior que
reconhece e admite que as coisas são como são, independentemente do
facto de serem como queremos que sejam ou não, por mais terríveis que
possam ser ou parecer em determinados momentos. Isto não é fácil de
concretizar no dia a dia, mesmo que sintamos que faz sentido. A prática do
mindfulness consiste em desenvolver consciência da nossa relação com o
momento presente e em reparar quando nos debatemos contra a forma
como as coisas são. As histórias que acabamos de visitar ilustram as
aberturas que podem ter lugar quando conseguimos evitar que os nossos
próprios pensamentos e emoções fortemente adversos nos detenham.
Gawain aceitou Ragnell tal como ela era. O pai de Mell Lazarus aceitou
que aquilo que os rapazes tinham feito já estava feito. Com isso, entendeu
que o momento seguinte queria algo novo, algo que fomentasse a
recuperação, a execução e o respeito. A aceitação daquilo que está
subjacente à nossa capacidade de escolher como estar em relação ao que
quer que esteja de facto a acontecer. A aceitação não é resignação passiva,
nem derrotismo. Tal como a soberania não significa prerrogativas
desenfreadas, também a aceitação não significa que tudo aquilo que os
filhos façam nos pareça bem. Mesmo quando deixamos claro que certos
comportamentos não são aceitáveis, os nossos filhos podem continuar a
sentir que os aceitamos completamente, incluindo as fortes emoções que
sentem. A aceitação é uma porta que, se optarmos por abrir, nos leva a ver
de formas novas e a descobrir novas possibilidades de nos orientarmos em
momentos difíceis para que se tornem mais harmoniosos e risonhos.
O processo de tentar ver as coisas como realmente são é essencial para
cultivar nem que seja um mínimo de aceitação. Assim, trabalhar a própria
aceitação transforma-se numa forma de prática de mindfulness. Parte da
prática envolve prestar atenção a quanta resistência sentimos quando as
coisas não são “à nossa maneira”. Todo o género de emoções desponta sob
tais circunstâncias, incluindo frustração e zanga. Há uma abertura e uma
descontração paradoxais que podem surgir quando submetemos estas
emoções aflitivas à bondade e à clareza. Grande parte disto tem que ver
com não encarar como pessoais coisas que, fundamentalmente, não o são.
O que não é assim tão fácil no que diz respeito ao comportamento dos
nossos filhos, ou a qualquer outra coisa que nos pareça desconcertante ou
ameaçadora.
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Eu (mkz) estou numa sapataria com as minhas filhas. Uma tem quatro
anos, a outra é bebé. A de quatro anos precisa de sapatos novos e nenhuns
lhe serviam. Quando vamos a sair, ela desata a gritar e agarra num sapato
do expositor, recusando-se a largá-lo. Com a bebé num braço, seguro a
minha filha de quatro anos pela mão e vou até à porta da loja, onde peço a
um funcionário que lhe tire o sapato. Segue-se um jogo de forças, cada um
a puxar para seu lado. Sinto-me zangada, impotente e descontrolada. Por
fim, consigo sair com as duas. A mais velha continua a gritar e a chorar
com o rosto vermelhíssimo. Está desenfreada, furiosa por não poder ter
sapatos novos. É uma luta metê-la na cadeira do carro e, nesse processo, o
pé dela bate na porta semiaberta e parte o painel lateral de plástico.
Como reajo a todo este episódio é determinado por como vejo, ou não, a
minha filha naquele momento. Na altura, completamente avassalada pela
intensidade da sua reação, senti-me zangada e não lá muito compassiva.
Não estava a sentir-me particularmente empática, mas também não a tratei
mal. Toda a minha atenção e todos os meus esforços foram necessários
apenas para que conseguíssemos chegar a casa e para a impedir de magoar
alguém. Só mais tarde fui capaz de observar o que se tinha passado e de
sentir alguma empatia por ela, ao começar a reunir os sinais, numa
tentativa de compreender o que acontecera.
As causas possíveis eram tão díspares como ela estar demasiado
cansada, com fome, talvez a reagir ao cheiro dos produtos de couro da
loja, a que se juntou a frustração de não conseguir o que queria, tudo isso
agravado pela situação mais abrangente de ter de partilhar a mãe com a
irmã bebé. Muito provavelmente, teria sido uma combinação destes
fatores.
Revendo o que acontecera, percebi que ela não tinha esperneado,
gritado e destruído o carro por maldade, para dar comigo em louca ou para
me controlar. A sua zanga por não ter sapatos novos desencadeou uma
enorme reação que ela não foi capaz de controlar. Algo a subjugou, como
se tivesse sido enfeitiçada.
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Há tantas formas diferentes de ver aquilo a que costumamos chamar
comportamentos “difíceis” ou “negativos” nos nossos filhos. O que é
inaceitável para outra pessoa poderá ser comportamento normal para mim
e vice-versa. Com frequência, estamos bloqueados e só vemos as coisas de
uma maneira, condicionados por opiniões e emoções que muitas vezes não
são alvo de reflexão e que poderão pôr o decoro social – o que pensarão
outras pessoas, ou quão envergonhados nos sentimos – acima do bem-
estar emocional dos nossos filhos. Em momentos assim, é fácil sentirmo-
nos controlados e manipulados pelos nossos filhos, sentirmo-nos
completamente impotentes e depois, claro, sentirmo-nos tremendamente
zangados. Podemos dar por nós a descarregar estas emoções neles, numa
tentativa de afirmar a nossa autoridade e de recuperar o controlo da
situação.
Dado que tais ocasiões abundam quando somos pais, temos bastantes
oportunidades para lidar com estes padrões reativos e desenvolver, a partir
da nossa consciência e do nosso discernimento, um repertório mais
adequado e favorável de respostas emocionais. É aqui que a atenção plena
das nossas reações emocionais pode combinar-se até com um empenho
modesto numa prática formal de meditação, de forma a ajudar-nos a
aprofundar a nossa capacidade natural de estarmos mais conscientes e
vermos com maior clareza, como descrevemos na Quarta Parte. A
meditação formal pode funcionar como uma espécie de laboratório no
qual nos é possível desenvolver um alto grau de familiaridade com os
nossos estados mentais e emocionais e como estes nos afetam. Podemos
observar os nossos pensamentos e sentimentos à medida que vão surgindo,
a cada momento, e vê-los como acontecimentos impessoais na mente,
muito à semelhança de padrões climáticos, aos quais não temos de reagir
de certa maneira, ou de maneira alguma. Ter noção das nossas emoções
significa simplesmente reconhecer conscientemente que estão presentes.
Aceitamos, simplesmente ou não tão simplesmente, que aqueles são os
nossos sentimentos no momento, quer nos agradem, quer não, sem os
julgarmos (o que, por norma, significa sem julgarmos quanto de facto
estamos a julgá-los).
Ao aprendermos a observar e aceitar a nossa própria gama alargada de
sentimentos, incluindo alguns muito turbulentos, como parte do nosso
esforço por sermos mais conscientes, naturalmente tornamo-nos mais
cientes dos sentimentos de outras pessoas, sobretudo dos nossos filhos.
Começamos a conhecer parte da paisagem dos sentimentos e da sua
natureza mutável, sendo mais provável que sejamos compassivos e menos
provável, em simultâneo, que os levemos a peito. Temos uma maior
capacidade para aceitar as experiências e os sentimentos dos nossos filhos,
mesmo que não nos agrade a forma como se comportam. Ao fazê-lo,
somos capazes de sair do reino limitado em que, como pais, muitas vezes
nos encontramos, em que nos deixamos levar de tal maneira pelos nossos
próprios sentimentos e pelo apego que temos à nossa forma de ver as
coisas que nos isolamos dos nossos filhos e, de uma forma profunda, de
nós mesmos – e, por conseguinte, da nossa capacidade de lidar
criativamente com aquilo com que nos deparamos em tais momentos.
A forma como vemos o que sucede, seja com juízos de valor e
reprovação, seja com abertura para tentarmos ver para lá da superfície,
afeta a relação que temos com os nossos filhos. Ver os comportamentos
problemáticos dos nossos filhos (por exemplo, magoarem outras pessoas,
serem grosseiros ou desrespeitadores) de uma maneira menos severa e
crítica permite mantermo-nos como seus aliados e preservar uma ligação
sentida com eles, ainda que o seu comportamento não seja correto, o que
precisamos de lhes transmitir clara e firmemente, estabelecendo alguma
espécie de limite.
Os nossos filhos irão dar-nos oportunidades sem fim para praticarmos
ver e aceitar as coisas tal como são através dos véus da nossa própria
reatividade emocional, para depois agirmos da melhor maneira possível
tendo em conta o nosso entendimento do plano geral.
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Como vemos as coisas influencia sempre o que escolhemos fazer. Quando
um bebé chora, será que o vemos como uma tentativa intencional de nos
controlar, ou como uma expressão de desconforto e de que precisa de algo
de nós? Quando as crianças começam a gatinhar e a explorar o mundo à
volta delas, vemos essa curiosidade imparável como sinal de inteligência,
força e determinação, ou como uma ameaça ao nosso controlo, ou ainda –
quando crescem um pouco mais – como um ato de desobediência? Como
encaramos a situação quando um filho provoca as irmãs sem parar,
quando uma adolescente se mostra volúvel e distante, crítica e exigente,
ou quando um menino está tão zangado que ameaça fugir de casa?
Aceitar os nossos filhos tal como são. Parece tão simples. Mas com que
frequência damos por nós a querer que ajam, pareçam ou sejam diferentes
do que realmente são naquele momento? Quantas vezes queremos que
sejam, pareçam, ou se comportem como noutro momento, noutra altura,
sem aceitarmos – apesar de todos os indícios – que, aqui e agora, as coisas
não são como queremos que sejam, sendo antes inegavelmente como são?
Quando as coisas parecem descontroladas, o impulso poderá ser recorrer
a quaisquer métodos que se encontrem à nossa disposição para
“disciplinarmos” o ofensor e restaurar a ordem. Este ciclo de “mau
comportamento”, seguido por alguma espécie de disciplina imposta por
nós, muitas vezes não inclui qualquer tentativa de compreendermos o que
o filho vivencia. Em vez de haver um momento difícil que leve a uma
noção maior de entendimento e confiança entre pais e filhos, podem criar-
se distância e alheamento.
A alternativa é um processo muito menos definido. Não tem uma
fórmula fixa. Mas podemos dizer que começa com uma tentativa de
estarmos recetivos, de vermos o nosso filho com novos olhos naquele
mesmíssimo momento. Quando tentamos fazer isto, muitas vezes
constatamos que a nossa visão é influenciada pelos nossos próprios
medos, necessidades e expetativas, bem como pelos recursos de que
dispomos nesse momento. Estes fatores podem combinar-se tanto para
filtrar a nossa visão, deixando tudo com um determinado aspeto, como
para nos toldar a visão por completo. Seja como for, já não vemos o plano
geral. Apenas distinguimos certas cores e determinados pormenores. A
nossa própria visão parcial pode levar-nos a rotular negativamente e a
julgar o comportamento do nosso filho, bem como a uma zanga constante
e a um distanciamento emocional.
Se dermos atenção plena a esses mesmos momentos em que nos
sentimos a perder perspetiva ou clareza, talvez usando a respiração para
nos enraizarmos no corpo, e se tentarmos olhar cuidadosamente para o que
está realmente a acontecer com o nosso filho, muitas vezes verificamos
que se passa muito mais do que aquilo a que estamos a reagir
superficialmente. Se assumirmos que há alguma razão subjacente para o
comportamento “difícil” de uma criança, mesmo que não a vejamos de
imediato ou compreendamos o que se passa, poderemos ser um pouco
mais compassivos e recetivos. Quando somos capazes de pôr de parte as
nossas formas habituais, frequentemente críticas, de ver um
comportamento perturbador ou difícil, podemos começar a ver que esse
comportamento louco, barulhento ou até mesmo zangado, não é
necessariamente “negativo”. Por vezes, os filhos portam-se mal como
forma de recuperarem o equilíbrio. Podem ter-se sentido constrangidos
pela escola ou pelas exigências dos trabalhos de casa e precisarem de
escapes para a sua energia, para a sua vitalidade, para o seu vigor.
Ao longo dos anos, em momentos em que os nossos filhos se mostraram
particularmente desobedientes, tolos, brincalhões ou provocadores,
ajudou-me (mkz) ver tais comportamentos como uma forma de
descarregar ou libertar, uma maneira importante de exteriorizarem as
coisas, em vez de as conterem. Por vezes, as crianças pequenas estão a
rebentar de energia descontrolada. Noutras alturas, podem estar a
expressar uma emoção profunda, subterrânea. Mesmo quando se
descompõem, aos gritos, aos berros, a espernear e a bater em tudo, ver tal
comportamento como uma expressão passageira do estado interior deles
torna-me mais tolerante. Resistir simplesmente não ajuda em tais
situações. Por mais que eu queira controlar e mudar as coisas em
momentos destes, por norma não posso. Ver tal comportamento como um
escape normal ajuda-me a obter uma certa perspetiva e a não o levar tão a
peito. Posso escolher ser mais otimista. Isso também lhes dá a liberdade
para expressarem os seus sentimentos e experimentarem comportamentos
diferentes que com frequência surgem espontaneamente, em vez de
ficarem contidos, por uma autoridade parental rígida, numa estrutura
estritamente definida do que é aceitável no domínio do ser.
Há alturas em que poderá ser útil ver uma explosão emocional tal como
vemos condições atmosféricas subitamente inclementes. Por vezes, temos
simplesmente de esperar que tal erupção passe, da mesma maneira que
poderíamos esperar que uma tempestade passasse. Será que pensamos que
as tempestades são manipulativas – uma palavra que surge frequentemente
quando os filhos não se comportam como queremos? Por vezes, a única
forma que os nossos filhos têm de começar de novo é explodindo. Quando
o desequilíbrio se acumula, seja por que motivo for, descarregar poderá
ser a única forma de alcançar a paz que se segue, quando acorda, suspira e
desiste. Os filhos, por vezes, têm de nos afastar e encontrar um novo
espaço dentro de si mesmos, antes que possa haver a possibilidade de uma
reconciliação, de uma nova ligação e de um recomeço.
Sempre que resistimos, combatemos, tentámos controlar ou fizemos
comentários negativos acerca desta energia, só a piorámos. Em momentos
como estes, é útil encontrar formas de avançarmos com os nossos filhos
em vez de oferecermos apenas resistência; de trabalharmos com eles, em
vez de contra eles.
Por vezes, isto requer que utilizemos diretamente a energia deles. Se
uma criança pequena ou mesmo mais crescida estiver a ficar excitada e
um pouco descontrolada, poderá querer lutar connosco ou dedicar-se a
outra brincadeira muito física que lhe permita libertar a energia, mas de
uma forma mais concentrada e racional. Depois de termos conseguido
estabelecer uma ligação, será mais fácil ajudá-la a transitar para o que
quer que precise nesse momento.
Se formos observadores, com o passar do tempo poderemos começar a
identificar os primeiros sinais de aviso de uma tempestade iminente.
Podemos então colaborar com os nossos filhos em momentos pacíficos,
quando estão mais recetivos, e encorajá-los a prestarem atenção a como se
sentem nesses momentos que antecedem a tempestade. Eles próprios
podem começar a perguntar-se: “Estou cansado?” “Tenho fome?” “Ou
zangado, ou triste?” Lentamente, com o passar do tempo, à medida que
crescem, os nossos filhos podem aprender a pedir aquilo de que precisam,
seja algum tempo de tranquilidade sozinhos no seu quarto, ou um abraço,
um banho quente, uma merenda ou uma brincadeira mais brusca. Também
podemos rever o que aconteceu e falar disso com eles. Dependendo da
idade que tenham, podemos partilhar o que pressentimos e vimos quanto
ao que eles poderão ter sentido (“Parecias mesmo frustrado.” “Parecias
mesmo zangado comigo.” “Querias muito aquilo e eu não deixei.”) e
escutar o que têm a dizer em resposta. Passar por este tempo de processo
pode fortalecer as nossas relações após as inevitáveis tempestades
emocionais.
Também podemos explicar-lhes como o comportamento deles nos afeta,
bem como a outras pessoas (por exemplo, dificultando que os ouçam,
afastando-nos, etc.). Com filhos que já vão à escola, podemos perguntar-
lhes se têm alguma ideia quanto a como poderão expressar o que sentem e
precisam para serem ouvidos. Desta forma, eles aprendem que podem
refletir sobre a sua experiência e talvez ver que têm algumas escolhas
quanto a expressar os seus sentimentos fortes. Também podem começar a
reconhecer e a ganhar maior familiaridade com emoções fortes em geral:
“A zanga faz-me sentir isto”, “A tristeza faz-me sentir isto”, “O medo faz-
me sentir isto”.
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Aceitar não implica que tenhamos de ser ingénuos ou passivos em relação
aos nossos filhos. Haverá inevitavelmente muitas alturas em que
precisamos de intervir e agir de forma decisiva e sensata. É claro que o
que faremos dependerá muito da idade do filho e das circunstâncias em
particular. Por vezes, os nossos filhos poderão estar simplesmente a fazer
demasiado, a ir demasiado depressa, a voar demasiado alto. A
aprendizagem da autorregulação acontece lentamente ao longo da infância
e da adolescência. Os nossos filhos poderão precisar de que os refreemos,
de que lhes demos mais estrutura e limites, que lhes proporcionemos algo
com que embatam para abrandarem, para voltarem à terra.
Também há alturas em que um filho pode estar a acenar com uma
bandeira vermelha à nossa frente, a enviar-nos um sinal de perturbação
grave, dizendo: “Prestem atenção! Algo vai mal!” Estes avisos podem
assumir muitas formas diferentes, como um padrão de explosões de fúria,
medo, estar ensimesmado, sintomas físicos ou não querer ir à escola. Em
alturas destas, se atribuirmos automaticamente os piores motivos ao seu
comportamento e reagirmos com severidade punitiva, ou se os
ignorarmos, diminuímos tanto os nossos filhos como a nós mesmos. Não
podemos saber ao certo quais serão as suas motivações, tal como não
podemos adivinhar as de qualquer outra pessoa. Quando rotulamos o
comportamento dos filhos como “manipulador” e reagimos com
reprovação e disciplina, basicamente separamo-nos deles nesses
momentos, logo quando poderão precisar mais de nós. O nosso
julgamento cria uma barreira. Transforma-se num beco sem saída.
Perdemos uma oportunidade de construir confiança e uma noção de união.
Também perdemos uma oportunidade de lidar com o que poderão ser
problemas muito concretos e de compreender a dor subjacente que os
acompanha.
Em alturas como estas, temos de observar mais a fundo e ver o que se
passa. Pode ser difícil localizar a fonte destes sinais de alerta. Mas, em vez
de assumirmos uma perspetiva negativa, receosa e crítica, podemos tentar
cultivar uma perspetiva mais recetiva, curiosa e afetuosa: “O que
significam estes sinais?” “O que podemos usar aqui?” Se formos mais
sensíveis e atentos aos indícios e pistas que os nossos filhos nos dão, e se
os combinarmos com o que sabemos acerca deles, normalmente podemos
começar a ver quais são as questões subjacentes e o que talvez seja
necessário.
É claro que quando uma criança pequena esperneia e berra, ou uma
criança que já ande na escola grita e bate com as portas, não se trata da
melhor altura para nos perguntarmos o que se passará realmente. Em
primeiro lugar, temos de ultrapassar a crise imediata. Independentemente
da causa, quando as crianças estão irritadas, não se encontram num modo
racional. Ficam imersas em sentimentos fortes e não querem que tentemos
fazê-las ver a razão. Em momentos assim, são incapazes de nos ouvir,
quanto mais de nos compreender. Precisam que nos mantenhamos a seu
lado durante a tempestade e que não percamos o foco só porque elas
perderam o delas. Podemos imaginar-nos como um grande carvalho
acolhedor nessa tempestade, um amigo sólido e abrangente, que não
compreenderá ou terá respostas necessariamente, mas que oferece uma
presença compassiva.
Uma vez passada a tempestade, chega então a altura de nos
perguntarmos o que poderá estar a acontecer. Podemos tornar-nos
detetives e considerar a possível fonte da infelicidade ou do desequilíbrio
do nosso filho. Terá sido algo na escola, ou em casa? Será uma questão
física, emocional, ou ambas? Será algo relativamente simples, como
precisar de mais estrutura, ou de menos, estar demasiado cansado, com
fome, ou com excesso de estímulos? Haverá um padrão comportamental a
que seja preciso prestar atenção? Terá acontecido alguma coisa
perturbadora que o nosso filho não possa partilhar connosco? Quais são os
possíveis elementos causadores de stresse na vida do nosso filho? A que
recursos internos e externos pode recorrer, ou quais precisa de
desenvolver?
Aceitarmos quem são os nossos filhos e aquilo por que estão a passar
implica fazer este tipo de perguntas e, no grau que nos for possível, atentar
profundamente ao que encontremos.
>>>
A minha filha de dez anos, deitada na cama, já com as luzes apagadas, diz-
me:
“Mamã, sinto-me tão confusa.”
Eu respondo: “Estás confusa acerca do quê?”
E ela diz: “Não sei, sinto-me só confusa.”
Debato-me com a minha vontade de a fazer sentir-se melhor... “É
normal sentirmo-nos confusos.”
Ela pergunta: “É?”
E eu confirmo: “Sim, é.”
Ela fica calada e acaba por adormecer.
A minha filha não precisava de uma discussão, nem de uma solução
naquele momento. Sentindo-se amparada por mim, foi capaz de aceitar a
incerteza, a confusão. A minha aceitação guiou-a até uma aceitação em si
mesma.
>>>
Pode ser muito mais difícil mostrarmos a adolescentes o carinho e o afeto
que talvez nos fossem tão naturais quando eles eram mais pequenos.
Precisamos de encontrar formas de os recordar que estamos do lado deles,
que nos são tão preciosos como quando eram querubins adoráveis de
bochechas coradinhas. Mas isto não é assim tão fácil, sobretudo naquelas
ocasiões em que tudo o que dizem parece ser uma crítica direta que nos
fazem. Isto costuma acontecer no final de um dia longo, quando já toda a
gente se sente cansada e esgotada. A acompanhar o que por vezes parece
uma torrente constante de comentários negativos, muitas vezes há pedidos
para que lhes façamos coisas e queixas acerca de como estão cansados e
quanto têm de fazer. Quanto mais alienados deles nos sentirmos, mais
zangados, críticos e exigentes eles se tornam. Quanto a nós, poderemos
sentir-nos zangados, aceitando-os cada vez menos, chegando até a rejeitá-
los.
A minha filha adolescente entra na cozinha, a tremer, de t-shirt, e temos
o seguinte diálogo:
Ela: “Está frio aqui.”
Eu: “Veste mais qualquer coisa.”
Ela: (abespinhada) “Não preciso de vestir outra coisa... está frio
aqui.”
Eu: “Não está assim tanto frio. Porque é que não vestes algo mais
quente?”
Ela: (a ficar zangada) “Eu não devia ter de vestir mais nada. Está frio
aqui.”
Parece tão inconsequente, mas cada interação nos afasta mais. Eu estou
irritada pelo seu comportamento e não me sinto compassiva por causa de
todas as vezes que, nos últimos tempos, me senti incessantemente
criticada por ela. Mais tarde, as coisas descalabram numa cena
tremendamente perturbadora em que ela fica no seu quarto, recusando-se a
falar comigo. Isto funciona como um balde de água fria, que me acorda e
me faz, finalmente, ver para lá da minha própria zanga e vislumbrar o
momento difícil por que ela está a passar. Vejo que, quanto mais nos
distanciámos nas últimas semanas, mais zangada ela tem ficado e mais
torto me tem respondido, ao mesmo tempo que eu vou ficando mais
zangada e alienada. Um ciclo horrivelmente vicioso, culminando no
presente impasse. Como termina?
Claramente, tenho de ser eu a pôr-lhe fim. Percebo que ela não está a
conseguir o que precisa de mim. Quer alguma coisa, mas não o quer de
mim... quer e não quer. Eis o dilema.
Quando se queixou de que tinha frio e se recusou a vestir algo mais, eu
devia ter sido compassiva e simplesmente aumentado a temperatura da
sala, o que lhe teria dado calor de uma forma que ela poderia ter aceitado.
Por vezes, os adolescentes pedem-nos atenção e amor ao mesmo tempo
que precisam de mais distância de nós e nos afastam. Eu poderia ter
reagido de várias formas, mas deixei que a minha zanga dos dias
anteriores me tornasse intolerante. Fechei-me a ela e tornei-a o problema.
Durante esta altura, ela precisava de que eu não levasse tão a peito as
suas críticas das últimas semanas e de que as visse antes como sintoma
das suas próprias dificuldades internas e das pressões a que estava sujeita.
Eu não podia alterar as coisas no resto da vida dela, mas podia ter
demonstrado maior empatia e feito um esforço por escutar os sentimentos
contidos nas suas palavras e ações. Ao mesmo tempo, teria sido útil que eu
mencionasse o seu comportamento hostil quando ocorrera em todos
aqueles momentos anteriores, deixando-a saber o que me fazia sentir, de
forma que o meu próprio ressentimento não se tivesse acumulado e ela
tivesse maior noção do efeito do seu comportamento nas outras pessoas.
Os sentimentos dos nossos filhos são só deles, mas a forma como os
expressam afeta-nos e a outros. Quando o comportamento que têm é
desagradável, ofensivo, alienador, grosseiro ou desrespeitador, não é
benéfico, nem para eles nem para nós, ignorarmos os nossos próprios
sentimentos e o efeito que tal comportamento está a ter em nós e na
relação. Perceber quando e o que dizer – ou se deveremos dizer algo de
todo – é um processo criativo que requer que estejamos em contacto com
o momento presente. Não há uma fórmula, não há uma resposta acertada.
A criatividade surge perante as particularidades de cada situação, com
cada filho e connosco. Por este motivo, uma reação consciente só pode
provir da nossa disposição de nos mantermos na situação com abertura,
em vez de saltarmos para encontrar “soluções” devido ao nosso próprio
desconforto e ao nosso desejo de resolver, corrigir ou ensinar nesses
momentos.
>>>
Alguns dos comportamentos dos nossos filhos podem, ocasionalmente,
gerar sentimentos vulcânicos e comportamentos destrutivos em nós. Estes
padrões reativos podem ter feito parte da paisagem da nossa própria
infância, e nós podemos tê-los absorvido sem sequer nos darmos conta.
Tendem a vir à tona em situações particulares, quando condições similares
se reúnem. As nossas reações podem assumir a forma de uma postura
inconsciente, de tensão, de um sentido exacerbado da nossa própria
moralidade, de desdém, de intolerância, de crueldade e de pensamento
catastrófico.
Qualquer comportamento pode ser interpretado da pior maneira
possível, mas a maioria pode ser vista com uma abordagem mais
compreensiva e aceitadora. Quando fomos criados num ambiente de
desconfiança, quando fomos magoados por suspeitas e críticas, quando
fomos menosprezados ou ridicularizados, ficamos formatados para recair
nesses padrões familiares e repeti-los com os nossos filhos. Libertarmo-
nos deles requer uma consciência constante de cada momento. É útil
estarmos cientes do que dizemos, de como o dizemos e do efeito que
surtimos nos nossos filhos. Sempre que conseguimos ver com um pouco
mais de clareza os nossos próprios padrões reativos e de onde provêm,
temos a possibilidade de incorporar novas reações mais salutares.
Demasiadas pessoas, tanto crianças como adultos, vivem com a
sensação de não serem aceites como são, de que, de alguma forma,
“desapontam” os pais, ou não vão ao encontro das expetativas destes – de
que, nalgum sentido, não estão “à altura”. Quantos pais passam o tempo
concentrados naquilo em que o filho é “demasiado isto”, “demasiado
aquilo” ou “não o suficiente de aqueloutro?” Muita dor e mágoa
desnecessária surge deste comportamento de privação e crítica. Quando é
que a reprovação parental, sob a forma de envergonhar, humilhar ou privar
o filho de algo, se revelou uma influência positiva no comportamento
desse filho? Poderá resultar em obediência, mas a que custo para a criança
e para o adulto que a criança virá a ser?
Os pais não têm de gostar ou de concordar com tudo o que os filhos
fazem, nem com as formas como optam por viver quando são mais
crescidos. Haverá sempre diferenças. Mas quando um filho,
independentemente da idade, sente a nossa aceitação, quando sente o
nosso amor, não apenas pelo seu ser atraente, agradável e de fácil
convivência, mas também quando é difícil, desagradável e exasperante,
isso pode libertá-lo e permitir-lhe que seja mais equilibrado e íntegro. Os
filhos são capazes de enfrentar todo o género de dificuldades e desafios se
puderem regressar ao poço do nosso amor incondicional. Pois é no nosso
reconhecimento e na nossa aceitação deles tal como são que o
desenvolvimento e o restabelecimento internos ocorrem.
QUARTA PARTE

Mindfulness:
Uma Forma de Ver
Sermos Pais É a Catástrofe Total
Quando nos tornamos pais, seja intencionalmente ou por um acaso, toda a
nossa vida passa a ser diferente de imediato, embora possamos demorar
algum tempo a apercebermo-nos de quanto muda. Ser pai acumula vários
graus de magnitude de stresse. Torna-nos vulneráveis de formas que antes
não éramos. Requer que sejamos responsáveis de formas que antes não
éramos. Desafia-nos como nada antes e desvia-nos a atenção e o tempo de
outras coisas, incluindo de nós próprios, como nada antes. Cria caos e
desordem, sentimentos de insuficiência, ocasiões para discussões,
confrontos, irritação, barulho, obrigações e afazeres aparentemente
infinitos, e muitas oportunidades para ficarmos tolhidos, zangados,
ressentidos, magoados, bem como para nos sentirmos assoberbados,
velhos e pouco importantes. E isto pode continuar, não se limitando a
quando os filhos são pequenos, mas também quando já estão crescidos e
estão por sua conta. Quem tem filhos tem sarilhos.
Então, porque havemos de o fazer? Talvez tenha sido o cantor folk Pete
Seeger quem o definiu da melhor maneira: “Fazemo-lo pelos grandes
salários [...] beijos.” Os filhos dão-nos a oportunidade de partilhar a
vitalidade da própria vida de formas que poderíamos não alcançar se eles
não fizessem parte das nossas vidas. Sobretudo quando os filhos são
pequenos, cabe-nos, enquanto pais, estarmos presentes e, tanto quanto
possamos, cuidar deles e protegê-los para que tenham a liberdade de
vivenciar a inocência e a genialidade da infância, proporcionando-lhes
delicadamente a orientação que pudermos, a partir do nosso coração e da
nossa sabedoria, à medida que eles aprendem a encontrar e definir os seus
próprios caminhos.
As crianças personificam o que há de melhor na vida. Vivem no
momento presente. Fazem parte do seu extraordinário florescer. São pura
potencialidade, simbolizando vitalidade, emergência, renovação e
esperança. São puramente aquilo que são. E partilham essa natureza vital
connosco e ativam-na em nós também, se escutarmos atentamente o seu
chamamento.
Depois de termos filhos, ficamos em contacto com o resto do universo
de uma forma completamente diferente. A nossa consciência altera-se,
volta-se de uma forma de ver para outra. Podemos dar por nós a sentir-nos
ligados à esperança e à dor de outros de maneiras que antes não sentíamos.
A nossa esfera de compaixão tende a alargar-se. A preocupação com os
filhos e o bem-estar deles pode dar-nos uma perspetiva diferente acerca da
pobreza, do ambiente, da guerra e do futuro.
Quanto aos sarilhos, Zorba, a personagem do velho empedernido
representada por Anthony Quinn na versão cinematográfica clássica do
romance de Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego, que, quando lhe
perguntaram se alguma vez foi casado, respondeu: “Não sou um homem?
É claro que casei. Mulher, casa, filhos, a catástrofe total”, também disse:
“Sarilhos? A vida é um sarilho. Só a morte não traz sarilhos.”
Em última análise, tomamos as nossas próprias decisões,
conscientemente ou não, e vivemos com as consequências. Ainda assim,
nunca sabemos o que se seguirá. A incerteza inerente é uma grande parte
da catástrofe total. A questão que se põe é: seremos capazes de aprender a
usar todas as circunstâncias da vida, até as mais desafiantes e causadoras
de stresse, para desenvolvermos a força, a sabedoria e a franqueza, muito
à semelhança de um marinheiro a servir-se habilmente de todos os tipos de
ventos para impulsionar um barco à vela rumo a um destino específico? O
nosso desenvolvimento constante é uma necessidade absoluta se
pretendemos servir como pais efetivos, a longo prazo, para os nossos
filhos, para que estes possam estar protegidos e crescer bem, à sua
maneira e de acordo com o seu próprio ritmo.
Mestres Zen Residentes
Embora não sejamos budistas, eu (jzk) e Myla casámos numa cerimónia
zen, na qual os nossos votos matrimoniais foram ajudarmo-nos
mutuamente a “alcançar uma ‘mente grande’ pela salvação de todos os
seres”. A tradição zen sempre me atraiu profundamente, desde os meus
primeiros contactos com ela, há muitos anos. A formação zen é árdua e
exigente, intensa e imprevisível, indómita e louca, bem como muito
afetuosa e divertida. Também é muito simples e, em simultâneo, nada
simples. Tem que ver com atenção plena e ausência de apego, conhecer
quem somos no nível mais profundo e saber o que fazemos, o que,
paradoxalmente, inclui tanto não saber como não fazer.
Para mim, a cavalgada louca da formação zen, durante os anos em que
estive imerso nela, pareceu-me ter muito em comum com ser pai. Ambas
as situações pareciam ser um despertar para a própria vida, sem reservas.
Por isso, não foi um salto assim tão grande pensar que podia ver os nossos
bebés – que, como todos os bebés, pareciam mesmo pequenos Budas, com
as suas barrigas redondas, grandes cabeças e sorrisos misteriosos – como
mestres zen residentes. Os mestres zen não se explicam. Limitam-se a
incorporar presença. Não remoem pensamentos, nem se perdem em
contemplações teóricas acerca disto ou daquilo. Não se apegam a que as
coisas sejam de determinada maneira. Não são sempre consistentes. Um
dia não tem necessariamente de ser como o seguinte. A sua presença e
ensinamentos podem ajudar-nos a chegar a uma experiência direta da
nossa própria natureza e encorajar-nos a encontrar o nosso próprio rumo,
agora, neste momento. Não fazem isso dizendo-nos como, mas antes
proporcionando-nos desafios sem fim que não podem ser resolvidos
através do pensamento, espelhando-nos a vida na sua totalidade, apontado
para a plenitude. Mais do que qualquer outra coisa, os mestres zen
personificam o estado de vigília e desafiam-nos a assumi-lo.
Em vários sentidos, os filhos são parecidos, sobretudo quando são
bebés. Quanto mais crescem, mais difícil se torna percebê-lo. Mas a
verdadeira natureza de um filho encontra-se sempre presente e espelha
sempre a nossa, se estivermos dispostos a olhar e a ver.
As crianças têm aquilo a que pode chamar-se “mente original”, aberta,
pura, sem obstáculos. Estão inegável e totalmente presentes. Estão sempre
a aprender, desenvolver, mudar e a requerer respostas da nossa parte. À
medida que crescem, parecem desafiar cada ponto sobre o qual possamos
ter alguma expetativa, opinião fixa, crença arreigada, desejo de que as
coisas sejam de certa forma. Quando são bebés, preenchem-nos de tal
forma a vida e requerem tanta atenção às suas necessidades físicas e
emocionais que nos desafiam continuamente a estarmos presentes, a
sermos sensíveis, a sermos pacientes com a nossa impaciência ocasional, a
inquirirmos o que está de facto a acontecer, a estarmos dispostos a
experimentar coisas diferentes e a aprender com as suas reações às nossas
tentativas. Ensinam-nos a estarmos em sintonia com eles e a encontrarmos
alegria e harmonia na ligação que partilhamos com eles. Há pouco tempo
para teoria, a qual, seja como for, não parece ser de grande utilidade, a
menos que esteja ligada à prática.
É claro que os filhos não são mesmo mestres zen. Os filhos são filhos, e
os mestres zen são mestres zen. De nada vale idealizar quer uns, quer
outros. Porém, se formos capazes de olhar para os nossos filhos com
abertura e recetividade, e ver a pureza da vida a expressar-se através deles,
seja em que idade for, isso pode despertar-nos em qualquer momento para
a verdadeira natureza deles, e para a nossa.
Nada do que quem quer que seja nos diga vai preparar-nos para o que é
realmente ser pai. Aprendemos em ação, no fazer, mapeando os nossos
próprios caminhos, valendo-nos dos nossos próprios recursos internos,
incluindo os que não sabíamos que possuímos, seguindo as pistas que nos
dão os nossos filhos e cada nova situação que se apresenta. Temos de
viver dentro da parentalidade para saber o que esta é. Trata-se de um
trabalho interior profundo e duradouro, uma formação espiritual em si
mesma, se permitirmos que nos afete dessa maneira, literalmente a cada
momento.
Podemos ignorar por completo (ou resistir por ser inconveniente, pouco
importante, demasiado desnorteada ou difícil) a torrente contínua de
ensinamentos dos nossos filhos e das circunstâncias em que nos
encontramos, ou podemos atentar-lhes profundamente, deixando que nos
sirvam de indicadores de onde é necessário que prestemos atenção e
consigamos discernir o que está a acontecer e o que é preciso ser feito a
cada momento. A escolha é inteiramente nossa. Se resistirmos, poderemos
ocasionar bastantes conflitos e sofrimentos desnecessário, pois ignorar ou
contrariar a força vital dos filhos a explorar, aprender e crescer, não
reconhecer e honrar a soberania que lhes é devida, nega uma realidade
fundamental que, de uma forma ou de outra, se tornará conhecida e
sentida.
Por exemplo, esquecermo-nos por instantes de que um filho de dois
anos é uma criança e impormos-lhe rígida e insensivelmente as nossas
próprias expetativas acerca de como deve comportar-se equivale a
esquecer que ela está a fazer o que as crianças de dois anos fazem. Se
quisermos que seja diferente do que está a acontecer nesse momento, e se
resistirmos ou se nos contrairmos mentalmente, tentando impor o que
queremos nessa situação, criaremos vários problemas. Como pais, numa
ou noutra altura, já todos teremos sentido as consequências de tal situação.
Por outro lado, se num momento desses conseguirmos libertar-nos da
nossa ideia de como as coisas “deviam ser” e aceitarmos como são de
facto com esse filho – por outras palavras, se pudermos lembrar-nos de
que somos nós os adultos e que podemos olhar para dentro de nós mesmos
nesse momento e encontrar uma forma de agir com um certo grau de
compreensão e amabilidade – então o nosso estado emocional e as
escolhas quanto ao que faremos serão muito diferentes, tal como o
desenvolvimento e a conclusão desse momento, ao passar para o seguinte.
Se optarmos por este caminho, a criança ter-nos-á ensinado algo muito
importante. Ter-nos-á demonstrado quão apegados podemos ser a que as
coisas aconteçam de certa maneira, que a nossa mente vacila quando
somos desafiados e que temos várias opções à nossa disposição. Uma
destas opções seria permitirmo-nos que as nossas próprias reatividade e
ignorância nos dominassem, esquecendo que as crianças de dois anos
fazem coisas típicas de crianças de dois anos; outra poderia ser afirmar
que somos capazes de ver a nossa própria reatividade e escolher seguir por
outra rota, na qual lidamos tanto com a nossa reação como com o que está
de facto a acontecer com o nosso filho. Talvez “soubéssemos” tudo isto,
em termos teóricos, no momento anterior, ou noutra circunstância, mas
talvez não de uma forma que nos impedisse de reagir automaticamente.
Assim, a criança de dois anos mostrou-nos, pela sua mera existência, que
podemos facilmente perder-nos numa reação emocional, mas que não
temos de o fazer. Trata-se de uma lição importante, aplicável em muitas
áreas distintas da vida. Afinal, a nossa mente vai connosco para todo o
lado e costuma reagir de maneiras similares sempre que sente perder o
controlo ou que não gosta do que está a acontecer.
Se pudermos dar atenção e intencionalidade às nossas próprias margens
de crescimento, tanto na parentalidade como nas outras áreas da vida, por
doloroso e assustador que possa ser, essa vontade tenaz de estarmos
presentes e olhar para o que quer que seja pode proporcionar-nos uma
maior harmonia com a forma como as coisas realmente são. Mas, para que
isso aconteça, precisamos de aprender a escutar atentamente o que o
mundo nos oferece e observar com maior abertura a nossa experiência à
medida que esta vai ocorrendo.
O engraçado é que, se prestarmos atenção ao que se encontra diante de
nós a cada momento, sem insistirmos para que seja de certa maneira, a
disciplina de fazermos isso mesmo fomenta uma estabilidade mental e
uma abertura e clareza emocional que não são alcançáveis forçando uma
resolução ou um resultado específicos. Tal harmonia encontra-se
subjacente a tudo. Encontra-se aqui, agora, em nós e nos nossos filhos,
bastando que arranjemos espaço, uma e outra vez, para que surja.
>>>
Primeiro entrançamos ervas e jogamos a puxar a corda,
depois revezamo-nos a cantar e a manter uma bola no ar.
Eu chuto a bola e eles cantam, eles chutam e eu canto.
Esquece-se o tempo, as horas voam.
Pessoas que passam apontam e riem:
“Porque te comportas como um tolo?”
Eu aceno com a cabeça e não respondo.
Podia dizer alguma coisa, mas porquê?
Querem saber o que me vai no coração?
Desde o início do tempo: só isto! só isto!
RYOKAN, mestre zen, eremita, calígrafo e poeta japonês do
século xviii
Um Retiro Espiritual de Dezoito Anos
Tal como pensarmos nos nossos filhos como pequenos Budas ou mestres
zen poderá ajudar-nos a ser melhores pais para eles e a continuarmos a
desenvolver-nos, eu (jkz) tenho sentido com frequência que o próprio
facto de sermos pais pode ser visto como um retiro prolongado de
meditação. É uma oportunidade de concretizarmos uma espécie de
trabalho interno profundo e concentrado com benefícios potencialmente
profundos e contínuos na família, tanto para os pais como para os filhos.
Por norma, os retiros espirituais duram dias, semanas, ou meses; mas,
neste caso, o “retiro parental” duraria algo como pelo menos dezoito anos
por filho. É claro que as exigências da parentalidade no dia a dia são
muito diferentes das de um retiro espiritual isolado e intensivo, mas vê-los
como formas relacionadas de me dedicar a um trabalho interior
continuado, tem-me dado energia e alento, concedendo uma perspetiva
tenaz e abrangente à missão de ser pai e aos anos de atenção, cuidado e
sabedoria que esta requer.
O que é, então, um retiro espiritual? Qual é o seu propósito? E como é
que ver ser pai como uma espécie de retiro pode ajudar-nos a compreender
e aprofundar o que nos é pedido quando nos dedicamos à parentalidade
com atenção plena, mesmo que não meditemos com regularidade ou não
tenhamos qualquer experiência pessoal desses retiros? E como é que
encarar a parentalidade desta forma pode contribuir para o nosso próprio
crescimento e desenvolvimento?
Um retiro espiritual é uma oportunidade para fazermos uma
determinada espécie de trabalho interior que é extremamente difícil de
fazer fora do ambiente do retiro, devido a todas as obrigações, distrações e
atrações que competem umas com as outras no quotidiano. Num retiro,
porque nos encontramos num lugar especial durante um período
prolongado, longe das exigências da família e do trabalho, temos uma
oportunidade rara e preciosa de simplificar a vida e prestar grande cuidado
e atenção ao domínio do ser.
Os retiros espirituais costumam ser guiados por um ou mais instrutores
especializados que servem para encorajar, inspirar, guiar, instruir e ouvir
as experiências daqueles que participam no retiro. A prática básica
consiste sobretudo em períodos em que se está sentado e outros a
caminhar, sempre em silêncio, tipicamente desde manhã cedo até à noite.
Ficar simplesmente sentado. Caminhar, simplesmente. É costume haver
também um período de trabalho, igualmente silencioso, para que a mesma
mente que cultivamos sentados e a caminhar possa ser aplicada a limpar a
casa de banho, lavar panelas ou arrancar ervas daninhas de um jardim. A
tarefa não é assim tão importante... a mente com que a executamos é
extraordinariamente importante.
A atenção dirige-se primariamente para dentro, para uns quantos aspetos
básicos da experiência de vida que, por norma, são tomados
completamente por garantidos, tais como a inspiração e a expiração, e o
que pode ser percebido, a cada momento, no nosso próprio corpo e na
nossa própria mente. Para além disso, come-se, também em silêncio, e
dorme-se. Por norma não se lê, não se escreve, não se usa o computador,
não há Internet nem aparelhos de qualquer género, e até os telefonemas
são muito limitados ou inexistentes, pelo que se fica realmente por conta
própria, à exceção de conversas ocasionais com o instrutor. Tais retiros
podem ser extremamente árduos e desafiantes, bem como profundamente
regeneradores.
Ao início, a mente pode estar muito ativa ou agitada mas, com o passar
do tempo, torna-se-lhe possível assentar aos poucos e ficar profundamente
concentrada e definida. Por vezes, pode permanecer focada e
relativamente equilibrada e imóvel durante períodos prolongados.
Mediante a prática disciplinada da atenção, acompanhada pelo
reconhecimento e a aceitação do que observamos, podemos passar a
conhecer a paisagem da nossa própria mente e do nosso próprio coração
de formas radicalmente novas. Uma consciência altamente penetrante
pode desenvolver-se, proporcionando um olhar profundo para a própria
natureza do nosso ser, sob aparências superficiais, apegos e história
pessoal. A atenção intensiva e continuada deste tipo pode, por vezes,
catalisar revelações profundas – despertares que são verdadeiramente
esclarecedores – e que podem revelar-nos a nós mesmos e iluminar a vida
de formas que nunca teríamos conhecido ou pensado ser possíveis.
A prática intensiva da meditação é tanto um espelho como um profundo
processo de purificação. Podemos alcançar uma forma mais abrangente e
mais exata de ver, a qual pode dar origem a uma profunda aprendizagem
acerca de nós mesmos e a um desprendimento igualmente profundo,
talvez mais importante, um desprendimento daquilo com que descobrimos
que nos identificamos de formas absolutas e rígidas... os nossos apegos a
coisas, as nossas formas de ver, as nossas ideias fixas.
Ao prestarmos atenção continuada à nossa própria mente, podemos
descobrir que esta, na verdade, tem comportamentos bastante estruturados,
padrões que são reconhecíveis, ainda que, por vezes, dolorosamente
repetitivos e incessantes. Podemos chegar a ver, apenas por estarmos
sentados e a caminhar em silêncio, quão incessante é o fluxo do
pensamento, quão caótico é o seu processo (a ordem que contém por vezes
é difícil de discernir) e quão pouco fiáveis e inexatos são, na maioria, os
nossos pensamentos. Podemos conseguir ver como a mente é reativa e
como são poderosas as suas tempestades emocionais.
Poderemos ver que a mente despende imenso tempo no passado (com
reminiscências, ressentimentos ou culpas) e no futuro (com preocupações,
planos, esperanças e sonhos). Poderemos ver que a mente tem uma
tendência constante para se julgar e a tudo o mais, dependendo da questão
de uma experiência ser pressentida como agradável, desagradável ou
neutra em qualquer momento em particular. Poderemos ver como são
fortes os apegos da mente, a sua identificação incessante com coisas e
opiniões e em quanto tempo é levada por ilusões e pelo desejo de estar
noutro lugar, de ter coisas e de que as relações sejam diferentes de como
são na realidade.
Poderemos ver como é difícil que a mente se instale no momento
presente tal como este é, mas também, com o passar do tempo, a mente
pode, de facto, acalmar-se o suficiente para se aperceber de muita desta
atividade incessante a que se dedica e chegar a uma imobilidade interior, a
uma calma e a um equilíbrio menos facilmente perturbados pela sua
própria atividade.
Se tivermos a motivação suficiente para manter a prática nas alturas
difíceis, se suportarmos a dor no corpo que pode ser provocada por longos
períodos de imobilidade, se suportarmos a vontade mental de falar, ou de
entretenimento, distração e novidades, se suportarmos o tédio, a
resistência, a mágoa, o terror e a confusão que podem surgir e, de facto,
surgem ocasionalmente, e se, durante todo esse tempo, incessantemente e
com a maior amabilidade e delicadeza, sem expetativas, persistirmos em
simplesmente observar o que quer que surja no campo da consciência, a
cada momento, podemos vir a encontrar, em certos pontos da prática,
grandes profundezas oceânicas de silêncio, bem-estar e sabedoria na nossa
própria mente.
Em muitos sentidos, a mente assemelha-se, de facto, a uma massa de
água, a um verdadeiro oceano. Dependendo da estação, do tempo e dos
ventos, a superfície pode ir da calma e planura absolutas a uma tremenda
agitação e turbulência, com ondas de oito metros de altura ou mais. Mas,
mesmo na maior das tempestades, se mergulharmos suficientemente
fundo, a água está tranquila.
Persistindo na prática, poderemos ver num retiro destes que a nossa
mente é também assim, que a calma e a imobilidade profunda são
intrínsecas à sua natureza, que estão sempre presentes e que, mesmo
quando somos apanhados por enormes tempestades de agitação
emocional, seja por que razões for, a calma e a imobilidade, bem como a
capacidade de estarmos conscientes, ainda existem, sob a superfície,
incorporadas e como parte integral do nosso ser. Podemos recorrer a elas e
usá-las, não para extinguir a turbulência superficial da mente (tal como
não tentamos alisar as ondas do oceano), mas para a compreender e para
lhe proporcionar um recipiente maior, um contexto no qual a própria
turbulência possa ser contida, vista e até usada para aprofundar a nossa
compreensão.
Podemos chegar a ver que os nossos pensamentos e emoções não têm de
nos desviar ou cegar de maneira alguma, como é tão frequente suceder.
Nem temos de fazer esforço algum para os suprimir para nos libertarmos
de muito do sofrimento que contêm ou engendram.
Trabalhando desta forma com a atividade da nossa própria mente,
poderemos também perceber que é uma ficção que estejamos isolados,
separados e sós. Poderemos ver que “eu”, “me” e “meu” são em si
mesmos pensamentos – hábitos mentais poderosos, profundamente
arreigados e tenazes, mas que não deixam de ser pensamentos.
Conscientes de que estamos separados e passamos grande parte do tempo
com preocupações acerca do nosso ser individual e dos nossos próprios
ganhos e perdas, poderemos ver que fazemos parte de um movimento
fluido de plenitude que é maior do que nós e ao qual pertencemos.
Poderemos ver que existe um mistério profundo na nossa vida
individual, emergindo da união aos nossos pais e, antes, aos pais deles,
recuando assim sucessivamente no tempo; que somos um intermediário
entre os nossos pais e os nossos filhos, entre todos aqueles que existiram
antes, que nunca conhecemos, e todos aqueles que virão depois dos filhos
dos filhos dos nossos filhos, que também nunca conheceremos.
Poderemos chegar a ver que a natureza mais profunda do universo é a
de que é um todo ininterrupto e que tudo é um aspeto e tudo o resto.
Poderemos chegar a ver que tudo está incluído e refletido em tudo o mais,
parte de uma plenitude maior, e que a nossa interligação e
interdependência são as relações primordiais a partir das quais surgem o
sentido e os pormenores das nossas vidas passageiras e em constante
mudança.
E podemos chegar a ver com novos olhos e uma nova compreensão e
apreciação que, juntamente com as formas como a vida é impessoal, esta
continua a ser, ainda assim, muito pessoal. Podemos aperceber-nos
diretamente, à medida que os véus do pensamento e do apego forte
enfraquecem, que, aqui e agora, somos quem somos, que o ser que nos
compõe é único, com o nosso próprios rosto, personalidade e desejos, com
uma história particular que é o legado de ter os pais que tivemos e de
termos crescido como crescemos e com o nosso próprio caminho ou
vocação únicos e misteriosos que podem encher-nos a vida de visão e
paixão. Trabalhamos onde trabalhamos, vivemos onde vivemos, as nossas
responsabilidades são as nossas responsabilidades, os nossos filhos são os
nossos filhos, as nossas esperanças são as nossas esperanças, os nossos
medos são os nossos medos.
Poderemos chegar a ver que “separados” e “não separados” são apenas
pensamentos que tentam descrever uma realidade mais profunda, que
somos nós. Poderemos ver a possibilidade de viver com mais
graciosidade, sabendo que as coisas que nos acontecem estão a acontecer-
nos, mas sabendo também que não é inteiramente sensato levá-las a peito,
porque é também impessoal e difícil – os budistas diriam impossível –
apontar para um “nós” sólido e permanente que esteja lá para assumir tudo
pessoalmente. Não há dúvida de que somos quem somos, e de que somos
responsáveis por muitas coisas, mas decerto não somos quem pensamos
ser, porque o próprio pensamento é limitado e a nossa verdadeira natureza
não tem limites.
Num retiro espiritual, poderemos também vir a saber que não somos o
nosso corpo, não somos os nossos pensamentos, não somos as nossas
emoções, não somos as nossas ideias e opiniões, não somos os nossos
medos, inseguranças e mágoas, embora tudo isto seja uma parte íntima da
nossa experiência e possa influenciar-nos tremendamente a vida, tal como
o tempo pode influenciar a superfície do oceano. Esta influência é
particularmente forte se formarmos apegos fortes e inconscientes a estes
elementos, aos quais nos agarramos como se a nossa vida dependesse
deles, e através dos quais vemos tudo como através de óculos escuros,
claros, coloridos ou caleidoscópicos.
Não somos as nossas ideias e opiniões. Se pudéssemos viver sabendo
isto e tirar os óculos através dos quais filtramos a nossa experiência, que
diferença isso poderia fazer na forma como vemos, nas nossas escolhas e
na forma como nos comportamos no dia a dia. Só esta perceção pode
levar-nos a ver-nos de forma muito diferente, a vermos a nossa
parentalidade de forma muito diferente e, deveras, a vivermos de forma
diferente.
Também poderemos ver que, como todas as outras pessoas, só estamos
aqui por um breve instante, mas que esse instante a que chamamos vida é
também infinitamente longo se formos capazes de prestar atenção aos
nossos momentos, dado que há, numa primeira aproximação, momentos
infinitos em qualquer vida. Ao vivermos no presente, saímos do tempo do
relógio e entramos num presente intemporal. Tais experiências poderão
demonstrar-nos que não estamos inteiramente cingidos pelo tempo.
Poderemos, assim, começar também a saber algo acerca da
impermanência, já que nada em que concentremos a atenção se prolonga
durante muito tempo. A cada inspiração sucede-se uma expiração, as
sensações no corpo sucedem-se, os pensamentos sucedem-se, as emoções
sucedem-se, ideias, opiniões e desejos sucedem-se, os momentos
sucedem-se, os dias e as noites sucedem-se. Poderemos ver que, de forma
similar, as estações e os anos se sucedem, a juventude passa e também os
empregos e as pessoas. Até as montanhas, os rios e as espécies. Nada é
fixo. Nada é permanente, ainda que possa parecer-nos ser. Tudo está em
constante movimento, alterando-se, tornando-se, dissolvendo-se,
emergindo e evoluindo, numa dança complexa, a dança externa do mundo,
que não difere assim tanto da dança interna da nossa própria mente.
Poderemos ver que os nossos filhos também fazem parte desta dança...
que, como nós, também são meras visitas breves deste mundo belo e
estranho e que o tempo que temos com eles é ainda mais breve, de
duração desconhecida.
Será possível que esta perceção não nos atinja profundamente e ensine
algo de grande valor? Será possível que não sugira como é precioso o
tempo que, de facto, partilhamos com os nossos filhos, e como preservar
na consciência os nossos momentos essencialmente fugazes com eles?
Será possível que não influencie como os abraçamos e beijamos, como
lhes desejamos boa noite, os vemos dormir e os acordamos de manhã?
Será possível que tal compreensão não influencie como lhes respondemos
quando, em busca dos seus próprios rumos, embatem contra as nossas
ideias e opiniões, os limites da nossa paciência e os nossos investimentos
pessoais em relação a certezas e saberes, esquecendo nesses momentos o
que realmente sabemos ser muito maior e mais importante para a vida?
Talvez assumir ser pai como uma espécie de retiro espiritual e proceder
ao trabalho interno da parentalidade com atenção plena em cada dia e a
cada momento, com o mesmo espírito de esforço concentrado e
continuado de atenção e presença que aplicaríamos num retiro espiritual,
possa ajudar-nos a perceber o tremendo poder contido em ver e recordar o
contexto maior da plenitude, de maneira a não nos perdermos nas ondas
superficiais das nossas próprias mentes e das nossas vidas, por vezes
acanhadas e limitadas. Talvez possamos preservar os nossos momentos de
maneira diferente. Talvez não nos passem tão despercebidos.
Talvez cuidemos mais e cuidemos de forma diferente, e estejamos mais
atentos, e com uma atenção diferente, se mantivermos em mente e no
coração o que no fundo já sabemos, mas costumamos esquecer. Talvez
saibamos como estar na nossa própria vida, apoiados nos nossos próprios
pés, sentindo a terra por baixo de nós, o vento no rosto e à volta do corpo,
e reconheçamos o lugar como aqui, o tempo como agora, honrando a
sabedoria misteriosa que reside em todos os seres e também nos nossos
filhos.
Estes vislumbres fazem parte daquilo que poderá ser visto e
compreendido através da prática intensiva num retiro espiritual
prolongado de meditação com atenção plena. Os retiros têm um imenso
valor, que perdura quando conseguimos organizar as nossas vidas para, de
vez em quando, praticarmos desta maneira. Mas também há muitas alturas
em que talvez não seja possível, necessário ou sequer aconselhável
ausentarmo-nos durante um período prolongado, sobretudo quando
tentamos equilibrar as responsabilidades da parentalidade, da vida familiar
e do trabalho.
É aqui que a metáfora de vermos toda a experiência de pais como um
retiro prolongado de meditação poderá ser útil. Não se dá o caso de a
parentalidade ser um retiro do mundo, se bem que, até certo ponto, a vida
familiar possa amortecer o stresse do mundo exterior e criar sentimentos
de segurança e paz internas. Em vez disso, o que se passa é que usamos
tão bem quanto podemos as próprias circunstâncias do mundo e da
parentalidade, por norma em circunstâncias difíceis, para nos ajudarem a
cultivar a atenção plena, o olhar profundamente para as nossas vidas e
deixar que o que fazemos surja do nosso ser, não apenas de vez em
quando, mas estruturadamente, como forma de vida.
O horário diário da vida familiar, claro está, é muito mais complexo e
caótico do que o de um retiro espiritual. Muda à medida que os nossos
filhos mudam e crescem, por vezes de dia para dia, noutras vezes de um
momento para o outro. Mas a essência da prática da atenção plena é
sempre a mesma: na medida do possível, estarmos completamente
presentes, discernindo o que está realmente a acontecer no grau em que
for possível – nem sempre é assim tão fácil, como já vimos – e, caso seja
necessária uma ação, agirmos com intencionalidade, consciência e
amabilidade. O nosso trabalho interior pode ser ancorado por um período
diário de uma prática formal numa altura conveniente, mas o maior
compromisso será, por necessidade, o de procurar a atenção plena no
quotidiano, reagindo às exigências constantes da parentalidade a cada
momento e dia para dia, permitindo que cada dia e cada momento
proporcionem o cenário para o aprofundamento da atenção plena.
Neste sentido, acordar de manhã é a meditação-de-acordar. Lavar os
dentes é a meditação-de-lavar-os-dentes. Não poder lavar os dentes porque
o bebé está a chorar é a meditação-de-não-lavar-os-dentes-e-cuidar-do-
bebé-primeiro e por aí em diante. Vestir os filhos, pôr comida na mesa,
levá-los à escola, ir trabalhar, mudar fraldas, fazer compras, marcar
compromissos, limpar, cozinhar, tudo se torna parte da nossa prática de
mindfulness. Tudo.
A Importância da Prática
Influir na qualidade do dia – esta, sim, é a mais elevada das artes.
THOREAU, Walden ou a Vida nos Bosques
Não há dúvida de que simplesmente ouvir falar da importância de sermos
mais presentes, mais cientes, mais empáticos e mais aceitadores na vida e,
em particular, na parentalidade, pode ser suficientemente sugestivo para
levar algumas pessoas a mudar de registo, a despertar para a sua própria
capacidade de, como disse Thoreau, “influir na qualidade do dia”
intencionalmente, inspirando uma nova abertura e sensibilidade nas suas
vidas e na forma de criarem os filhos.
Mas também sabemos que a mente humana tem a sua forma particular
de operar, o que dificulta que a maioria de nós “simplesmente desperte” de
súbito. Pormo-nos em contacto com o momento presente costuma
requerer esforço e consistência. Ver com clareza não é algo que se consiga
facilmente. Por exemplo, podemos ter apenas vislumbres ou vagas
aproximações da nossa própria soberania e da nossa capacidade de a
incorporar no quotidiano. O discernimento e a transformação, por norma,
não são de fácil aquisição para os seres humanos.
Temos de praticar aprender a viver no presente. Temos de praticar ver
com os olhos da plenitude. Porquê? Porque, talvez devido à natureza da
mente humana, passamos grande parte das nossas vidas a praticar o oposto
da atenção plena. Praticamos não viver no momento presente. Praticamos
desligar-nos de nós, da nossa soberania, da nossa interligação, através dos
nossos pensamentos e sentimentos, gostos e desagrados. Praticamos a
ansiedade. Praticamos zangarmo-nos. Praticamos esforçarmo-nos pelo
que mais queremos. E, quanto mais praticamos, repetindo estes padrões
nas nossas vidas, mais chegamos até eles e mais difícil se torna
libertarmo-nos.
É por isso que a parentalidade consciente tem de ser compreendida
como uma prática, uma disciplina, e não apenas uma filosofia ou uma boa
ideia. Como prática, ajuda-nos a libertarmo-nos dos padrões profundos da
mente e da vida, que nos separam de nós mesmos e dos únicos momentos
que temos nos quais podemos viver, crescer e afirmar a nossa interligação.
Usamos a palavra prática num sentido algo diferente do habitual. Aqui,
praticar significa “incorporar a presença e a consciência neste momento”.
Não é como praticar tocar piano ou um passo de dança. Não é um
exercício, nem um ensaio. Não quer dizer passarmos a ser melhores a
fazer alguma coisa por a repetirmos vezes sem conta, embora tenha lugar
um aprofundamento quanto mais praticamos sermos conscientes.
De cada vez que pegamos no bebé, se o fizermos com consciência, isso
é prática. É uma questão de estarmos completamente lá. E o que significa
“estar completamente lá”? Significa “estar completamente aqui”. Significa
sabermos que estamos a pegar no bebé enquanto pegamos no bebé.
Significa estarmos em contacto com a sensação, o cheiro, o toque, o que
ouvimos, como seguramos, a respiração, o que quer que esteja a acontecer,
e acolher tudo isso em consciência enquanto fazemos o que quer que a
nossa intuição, o bebé e o momento nos digam que precisa de ser feito,
seja dar de comer, mudar a fralda, vestir, cantar, ou qualquer outra coisa.
Qualquer outra coisa pode incluir absolutamente nada. É possível que
nada, para além de estarmos tão presentes quanto possível nesse
momento, seja requerido.
Não temos de ser “bons” nisto e decerto julgarmo-nos não faz parte do
espírito da atenção plena. Basta estarmos presentes neste momento em
particular. Porquê? Porque já estamos. Porque não havemos de o estar por
completo? Assim poderemos saborear a plenitude neste mesmíssimo
momento, já que este está sempre aqui, agora, para ser visto, sentido e
aceite. Somos autónomos, mas, ao mesmo tempo, não somos autónomos.
Por isso, a prática significa apenas recordarmo-nos intencionalmente de
estarmos completamente presentes no que quer que surja, para não nos
encontrarmos em piloto automático ou a agir de forma mecânica. Quando
pegamos no bebé, estamos a pegar no bebé. Quando abraçamos um filho,
estamos ali, a abraçar o filho. Quando estabelecemos um limite ou
comunicamos uma expetativa, estamos completamente presentes a fazê-lo.
Não temos a mente noutro lugar qualquer ou, se temos, também temos
consciência disso, pelo que podemos fazê-la regressar. É simples, mas não
muito fácil, porque a mente está sempre pronta a distrair-se.
Há muitas, muitas formas de praticar. Não há um único aspeto da vida
ou da parentalidade que não possa tornar-se prática, bastando para isso
trazê-lo intencionalmente para a consciência e mantê-lo na consciência à
medida que ocorre. Quanto mais dispostos a prestar atenção estivermos,
mais firmemente enraizados ficamos na atenção plena e em sermos pais
conscientes. Todos nós temos todo o equipamento necessário para efetuar
este trabalho interno e externo. Cada filho, cada circunstância, cada
inspiração, cada momento, tudo está aqui, à espera de ser aceite neste
momento. Se abordarmos a vida assim, então, como Thoreau sugeria,
influir na qualidade do dia transforma-se mesmo numa forma de arte. É
um aperfeiçoar contínuo de como vivemos e estamos no mundo,
permitindo-nos aperfeiçoar-nos também pelo que cada dia nos
proporciona.
Respirar
Então, como damos início à parentalidade com atenção plena de uma
forma que nos pareça confortável e autêntica? Esperamos pelo “momento
certo” ou aceitamos os nossos momentos como chegam, tal como são?
Temos de começar na gravidez ou com o nascimento do primogénito para
que isto “funcione”, ou podemos começar em qualquer altura, onde quer
que nos encontremos nas nossas vidas?
Sendo os hábitos mentais aquilo que são, provavelmente estaremos a
desbravar um novo caminho salutar para nós mesmos se decidirmos não
esperar por uma “altura oportuna”, em grande parte fictícia, para começar,
e se aproveitarmos os momentos que temos, por mais desvairados,
espatifados e desnorteados que possam ser.
Resolvendo começar onde estamos, e já, com os recursos à nossa
disposição, põe-nos de imediato no espírito da prática da atenção plena.
Podemos explorar nós mesmos o valor de estarmos completamente
presentes, independentemente do que esteja a acontecer e precisamente
onde nos encontramos agora, independentemente de estarmos apenas a
começar a ser pais, de termos filhos crescidos ou de sermos avós.
Uma forma de dar início à prática da parentalidade com atenção plena é
cultivando uma certa intimidade com a nossa própria respiração, em
momentos tranquilos e ao longo do dia. A respiração flui constantemente.
Está sempre presente. Encontra-se profundamente ligada à nossa vida, ao
nosso corpo e aos nossos estados emocionais. Tornarmo-nos cientes da
respiração traz a mente e o corpo para o momento presente, com vigília e
claridade de perceção.
Poderá tentar pôr-se em contacto com a sua respiração neste preciso
momento e ver se consegue mantê-la na primeira linha da sua consciência
durante uns minutos. A ideia básica consiste em sentir a respiração à
medida que o ar entra e sai, sabendo que o ar entra enquanto entra e sai
enquanto sai. Poderá experimentar prestar atenção à respiração e “seguir
as ondas” da inspiração e da expiração com atenção total, sentindo o seu
subir e descer como sentiria o movimento da água se estivesse numa balsa
de borracha, a flutuar em ondas suaves. Mais tarde, noutros momentos,
poderá tentar incorporar a noção da sua respiração no que quer que dê por
si a fazer e enquanto lida com o que quer que tenha de enfrentar.
Talvez descubra rapidamente ao fazer isto que a sua mente, como todas,
tem vida própria. Poderá não querer recordar a respiração e manter-se em
contacto com ela. Não está habituada a manter a atenção. Poderá verificar
que, como todas as mentes, a sua está constantemente a ir de um lado para
outro, para o passado, para o futuro, e invariavelmente de um pensamento
para outro, de um sentimento para outro, de um desejo para outro. Ainda é
mais assim quando nos sentimos com falta de tempo, quando temos de
lidar com problemas ou vivenciamos alguma espécie de conflito. Qualquer
pessoa que se sente para seguir imovelmente a respiração pela primeira
vez, mesmo que apenas por uns minutos, dá de caras com esta situação.
Isto acontece mesmo quando as condições externas são pacíficas.
Através de prática continuada, é possível desenvolver uma intimidade
com a respiração que nos expande a consciência para o que mais esteja a
acontecer no nosso mundo nesse momento. Cultivar consciência desta
maneira permite que o potencial profundo de cada momento fique
disponível para nós.
O valor de cultivarmos uma consciência da nossa própria respiração
desenvolve-se à medida que nos dedicamos a isso. Alumia o momento
presente e ajuda-nos a preservá-lo com maior calma e clareza. Porém,
transpor uma consciência da respiração para qualquer atividade, em
qualquer momento, requer energia e empenho. É um olhar para fora e um
olhar para dentro, pelo que é tanto um olhar como uma visão, aquilo a que
poderíamos chamar discernimento ou atenção sensata. Podemos levar esta
consciência a qualquer aspeto da vida: a respiração e mudar a fralda; a
respiração e fazer compras; a respiração e o contacto visual; a respiração e
brincar com os filhos, ou ler-lhes, ou ser firme acerca de alguma coisa, ou
metê-los na cama, ou conversar com um filho mais crescido; a respiração
e preparar o jantar; a respiração e fazer dez coisas ao mesmo tempo e
sentir que estamos prestes a perder a cabeça; a respiração e ter perdido a
cabeça e agora ter de recuperar de alguma maneira e seguir em frente. Isto
não requer tempo extra. Basta que nos lembremos.
Mudar fraldas, limpar a bagunça, interromper discussões, correr para
aqui e para ali, preocuparmo-nos e sentirmo-nos ansiosos, trabalhar ou
brincar, tempo “ativo” ou “inativo” – todas estas são ocasiões apropriadas
para usarmos a nossa própria respiração, para estarmos mais presentes.
A Prática para Cultivar o Hábito
É possível cultivar mindfulness na vida e na família, tal como se cultiva
tomate ou milho numa horta, e o cultivo deste hábito é aquilo a que nos
referimos quando falamos de prática. O essencial quando se cultiva o que
quer que seja é cuidar do que foi plantado, quer estejamos a falar da nossa
intenção de sermos mais conscientes ou de atendermos ao crescimento dos
nossos filhos. Cuidar significa estar presente, vem de atenção. Todas estas
palavras comportam a qualidade de se estar presente, vigilante, debruçado,
a postos, consciente. O sentimento prolonga-se para a ternura, um
prolongamento do ser através do cuidado e do carinho.
Este cuidar ou atentar é essencial na prática da atenção plena. Tal como
plantas jovens requerem proteção e apoio como parte do seu cuidado, o
mesmo se passa com os filhos, e também, de igual forma, com uma
prática nascente de mindfulness. Se deseja abarcar a parentalidade com
atenção plena, a própria intenção bem como os seus esforços para praticar
precisam de ser protegidos, caso contrário facilmente serão pisados pelas
circunstâncias caóticas e pelas exigências constantes da vida, e
rapidamente abandonados. Criar uma estrutura que suporte as nossas
intenções e esforços para cultivar a atenção plena nas nossas vidas pode
ser extremamente útil.
Esta estrutura consiste em exercícios e disciplinas específicos, tanto
formais como informais, que, juntos, constituem a prática do mindfulness.
As práticas formais demoram algum tempo. Se deseja praticar desta forma
e durante quanto tempo será sempre uma decisão sua. Como vimos, as
práticas informais, como estar em contacto com a respiração ao longo do
dia, não requerem tempo algum. Requerem apenas atenção e que nos
lembremos.
Apesar de todos estarmos conscientes, de tempos a tempos, num sentido
convencional, para sustentar uma consciência meditativa, não crítica e não
reativa, é muito útil gerar e regenerar a intenção de se ser consciente.
Parte disso consiste em aprendermos a não nos desviarmos do nosso
caminho, a não sermos tão dominados pelos nossos pensamentos e
emoções. Regra geral, temos de aprender essa lição vezes sem conta. Isto
faz-se observando os nossos pensamentos e emoções e praticando não
deixar que nos influenciem.
Tal como ao cultivar milho ou tomate, também aqui é necessário ter
disciplina. Não uma disciplina imposta por fora, mas a autodisciplina
interna do cuidado contínuo. Como vimos, a atenção plena é um meio
para nos mantermos em contacto, ou contactarmos periodicamente com
aquilo a que T. S. Eliot chamava o “ponto imóvel do mundo em rotação”.
Dado que a prática do mindfulness e de criar filhos realmente exigem as
mesmas bases de atenção e autodisciplina, não será assim tão rebuscado
tentar cultivar estas atividades juntas. Fazendo-o, cada uma alimenta,
aprofunda e sustenta a outra.
Na tradição zen da meditação, as pessoas gostam de dizer que a prática
não é nada de especial. Não é nada de especial da mesma maneira que ser
mãe ou dar à luz não é nada de especial, que ser pai não é nada de
especial, que ser agricultor e fazer coisas brotar da terra não é nada de
especial, inclusivamente que estar vivo não é nada de especial. Tudo isto é
verdade em certa medida, mas tente lá dizer isso a uma mãe, a um pai ou a
um agricultor. “Nada de especial” também significa muito especial. O
absolutamente comum é absolutamente extraordinário. Tudo depende de
como vemos as coisas e de estarmos dispostos a observar a fundo e a viver
segundo aquilo que vemos, sentimos e sabemos.
Livres no Nosso Pensamento
Quando perguntamos a pessoas que completaram o programa MBSR
quais foram as coisas mais importantes que este lhes proporcionou,
invariavelmente referem duas. A primeira é: “A respiração.” E a segunda:
“Saber que não sou os meus pensamentos.”
É claro que já toda a gente respirava antes de iniciar o programa, pelo
que aquilo a que todos se referem quando dizem “a respiração” é uma
nova consciência de como respiram e a descoberta de quão poderosa pode
ser a consciência da respiração quando cultivada em períodos de quietude
e quando levada para as atividades do quotidiano.
A segunda afirmação aponta para o facto de a maioria de nós estar, no
melhor dos casos, apenas vagamente ciente de que passamos o tempo todo
a pensar. Podemos não o experienciar de uma forma contundente até
começarmos a prestar sistematicamente atenção à nossa respiração e
começarmos a observar, sem criticar, o que nos vai pela mente e como é
difícil estabilizar a atenção, manter a concentração no que quer que seja,
mesmo algo tão simples como a respiração.
Quando começamos a prestar atenção à respiração e ao que nos passa
pela mente e nos distrai da respiração, vemos quase de imediato que o
pensamento tem lugar a toda a hora e que a maioria dos nossos
pensamentos são opinativos e ou parcial ou totalmente inexatos. Vemos
que grande parte do nosso pensamento se detém com julgar e avaliar as
nossas perceções e com gerar ideias e opiniões acerca de coisas. Também
vemos que o nosso pensamento é complexo, caótico, imprevisível,
frequentemente inconsistente e contraditório.
Este fluxo de pensamento ocorre a toda a hora, praticamente sem
reflexão subsequente e sem que nos apercebamos dele. Os nossos
pensamentos parecem mesmo ter vida própria. São como nuvens que vão
e vêm, eventos no campo da nossa consciência. No entanto, a partir deles,
estamos constantemente a criar modelos de realidade na nossa mente, sob
a forma de ideias e opiniões acerca de nós, dos outros e do mundo, e
depois a acreditar que são verdadeiros, negando frequentemente quaisquer
indícios do contrário.
Não saber que os pensamentos são apenas pensamentos pode deixar-nos
em apuros em praticamente todos os aspetos da nossa vida. Sabê-lo pode
ajudar-nos a manter-nos longe das armadilhas que a nossa própria mente
cria. Isto aplica-se particularmente a criar os filhos.
Por exemplo, se pensar “o Tom é preguiçoso”, facilmente acreditará que
essa é a verdade acerca de Tom, em vez de reconhecer que se trata apenas
apenas da sua opinião. Assim, de cada vez que vir Tom, tenderá a vê-lo
como preguiçoso e a não ver todos os outros aspetos de quem ele é, que
ficam bloqueados ou filtrados pela sua opinião forte, para a qual poderá ou
não ter grandes provas. Consequentemente, poderá identificar-se com ele
apenas de uma forma limitada e a reação dele à forma como o tratará
poderá limitar-se a confirmar e reforçar a sua opinião. De facto, na sua
mente terá transformado Tom em preguiçoso. Deixa de ser capaz de ver
Tom como Tom, como ele é como um ser completo, em vez de apenas um
atributo em que se fixou, o qual talvez seja verdadeiro apenas até certo
ponto, se o for, ou mudar de acordo com as circunstâncias. Esta atitude da
sua parte poderá impossibilitar que crie uma ligação significativa com ele,
porque tudo o que disser ou fizer ficará “carregado” de uma forma com a
qual ele poderá sentir-se desconfortável e que você talvez nem sequer
reconheça como sendo emitida por si.
Por vezes, os professores fazem isto. Os pais também. Pois, na verdade,
todos o fazemos, não apenas com crianças e outras pessoas, mas connosco
também. Dizemo-nos que somos demasiado isto ou não o suficiente
aquilo. Pomo-nos rótulos. Julgamo-nos. Depois acreditamos nos
julgamentos que fazemos. Ao acreditarmos nisso, estreitamos a nossa
visão do que é real e do que é verdadeiro, e a nossa visão assume aspetos
de uma profecia autorrealizada. Limita-nos e confina-nos, bem como aos
nossos filhos. Pode ser uma fonte de grande sofrimento. E cega-nos para
as possibilidades de transformação própria e dos outros, pois acarretamos
uma visão rígida das coisas que tende a ser fixa e a não ver as coisas em
termos de dimensões múltiplas, complexidade, plenitude e mudança
constante.
Assim, quando praticamos a atenção plena, é importante vermos os
nossos pensamentos como pensamentos e não apenas como “a verdade”.
Estados emocionais também podem ser encarados desta forma, dado que
os sentimentos estão intimamente ligados aos pensamentos.
Quando encaramos assim os nossos pensamentos e sentimentos, por
vezes podemos experimentar um aligeirar dos pronomes pessoais. Em
momentos desses, poderá deixar de ser “o meu” pensamento, mas apenas
“um” pensamento; não “o meu” sentimento, mas apenas “um” sentimento.
Isto pode libertar-nos de um forte apego aos “nossos” pensamentos,
opiniões e estados emocionais, dando-nos mais perspetiva e latitude. Quer
seja um sentimento de aborrecimento ou embaraço, de impaciência ou
zanga, reconhecer a sua presença com consciência e saber o que é (“o
aborrecimento, o embaraço, a impaciência, a zanga sente-se assim”)
proporciona-nos novas escolhas para que não tenhamos necessariamente
de nos perder ou fixar nesses sentimentos ou reagir irrefletidamente. Isto
não significa que não levemos os nossos sentimentos ou pensamentos a
sério, nem que não ajamos de acordo com eles. Mas uma consciência de
pensamentos como pensamentos e sentimentos como sentimentos pode
ajudar-nos a agir de forma mais apropriada, bem como a estarmos mais
em contacto connosco e com aquilo de que a situação carece.
>>>
Livra-te de preocupação.
Pensa em quem criou o pensamento!
Porque hás de ficar na prisão
Quando a porta está escancarada?
Sai do emaranhado do pensamento assustado.
Vive em silêncio.
Desce em círculos de ser
cada vez mais amplos
RUMI (a partir da tradução inglesa de Colman Barks)
Discernimento por oposição a Julgamento
Falamos de mindfulness como a consciência que surge ao prestarmos
atenção de propósito, no momento presente, e sem críticas – ao serviço de
mais autoconhecimento, sabedoria e, em última instância, liberdade dos
nossos próprios hábitos mentais, normalmente irrefletidos, e da ignorância
e sofrimento que engendram. A parte da ausência de críticas é crucial. Se
passarmos algum tempo a reparar no que se passa na nossa mente,
depressa nos aperceberemos de que temos uma espécie de juiz ou crítico
interior praticamente sempre em ação, a julgar não só tudo à nossa volta,
mas a julgar-nos também e à nossa experiência. Sem darmos por isso,
podemos tornar-nos prisioneiros virtuais de todo este julgamento, que
despende uma grande dose de energia e nos impede frequentemente de
vermos com clareza e de aprendermos continuamente.
Como vimos no capítulo anterior, é frequente formarmos opiniões
rapidamente e apegarmo-nos a elas com tremenda convicção, como se
fossem a verdade, quando, na realidade, são apenas pensamentos, e o
conteúdo desses pensamentos em particular são as conclusões a que as
nossas mentes chegaram acerca de coisas, de pessoas ou de nós mesmos.
E, tal como com outros pensamentos na mente, podemos aferrar-nos a
estas conclusões, sejam elas positivas ou negativas, exatas ou inexatas, e
perder a capacidade e a liberdade de ver o que quer que seja para além
delas. Quanto mais nos apegamos às nossas ideias e opiniões, mais
diminuídos e constrangidos ficamos. As nossas possibilidades de
crescimento estreitam-se.
Se vivermos assim durante grande parte do tempo, anos depois podemos
olhar para trás e ver, com profundo arrependimento, que as nossas
opiniões em determinada altura das nossas vidas eram apenas isso:
opiniões. Poderemos ver que nos impediram de seguir ou até de ver outras
opções e possibilidades e que nos levaram por caminhos que não
correspondiam bem ao nosso ser mais intrínseco. As nossas opiniões
podem obscurecer-nos a soberania, tal como as nuvens obscurecem e
filtram a luz do sol. Também nos bloqueiam a capacidade de reconhecer a
soberania alheia, incluindo a dos nossos filhos.
O que é requerido para cultivar o mindfulness e a parentalidade com
atenção plena, em vez de julgamento, é discernimento, a capacidade de
observar algo em profundidade e detetar distinções relevantes com
interesse e clareza. O discernimento é a capacidade de ver isto e aquilo,
por oposição a isto ou aquilo, ver o cenário todo e os seus pormenores, ver
gradações. Ter discernimento é um sinal interno de respeito pela realidade,
porque reparamos nas subtilezas tal como nos contornos gerais das coisas,
cientes da complexidade e do mistério. Há uma equidade nisso, uma
retidão, porque é mais fiel à totalidade da realidade. Na história da Dama
Abominável, Sir Kay e os outros cavaleiros julgaram Lady Ragnell com
tacanhez, baseando-se na aparência dela e, assim, traíram o seu próprio
código de cavalheirismo e decência. Gawain discerniu algo mais profundo
e não a julgou.
Quando falamos de mindfulness como atenção sem crítica, não
sugerimos que não vejamos o que ocorre no momento ou que deixemos de
fazer distinções necessárias e importantes. De facto, só abrindo mão do
julgamento é que poderá ser possível ver e sentir o que está realmente a
acontecer, ultrapassando aparências superficiais e os filtros das nossas
próprias opiniões limitadas, os nossos gostos e desagrados, crenças,
medos, os preconceitos irrefletidos, e por vezes inconscientes, e o
profundo anseio por que as coisas sejam de certa forma.
Não julgar significa que estamos cientes dos aspetos da nossa mente que
passam todo o tempo a julgar e que suspendemos intencionalmente o
julgamento e trazemos a mente de volta à observação direta da realidade
das coisas, com todas as suas distinções, e que repousamos nessa
consciência franca, uma forma de saber não conceptual. Esta orientação
não é importante apenas para o trabalho interno da atenção plena e da
parentalidade. Também é essencial para outros objetivos, como trabalhos
científicos que busquem discernir uma ordem subjacente no limiar entre o
conhecido e o desconhecido. O método científico reconhece a importância
crucial de os cientistas estarem agudamente cientes dos seus próprios
preconceitos e predisposições, bem como da tendência de a mente saltar
prematuramente para conclusões ou ficar demasiado confortável com o
que julga saber. Isso pode ser um impedimento para perceções novas e
inovadoras, que ultrapassem o que se conhece e alcancem o que ainda não
se descobriu ou percebeu.
Uma consciência que discerne é capaz de atentar até mesmo ao nosso
julgamento e reconhecê-lo como aquilo que é. Podemos observar este
hábito enraizado com um certo grau de compaixão e não nos julgarmos
por sermos tão críticos. Ao reconhecermos a importância do que estamos a
perceber, o discernimento pode fomentar a sabedoria. Liberta-nos para que
possamos agir com maior sensatez com os nossos filhos, sem nos
enredarmos tanto naquilo de que gostamos ou não e nos medos que já não
vemos com clareza. Se observarmos em profundidade muitas das nossas
críticas e julgamentos como pais, com frequência encontraremos
pensamentos receosos. Estes podem ser tratados como quaisquer outros
pensamentos e simplesmente sustidos na consciência. Nesses momentos,
poderá ser útil e esclarecedor questionarmos quão relevantes ou
verdadeiros são.
Faz parte da natureza da mente julgar. Mas, sem discernimento, vendo
as gradações entre branco e preto, isto ou aquilo, tudo bom e tudo mau, os
nossos julgamentos terão uma probabilidade maior de nos levar a ações
insensatas. O discernimento permite-nos ver e orientarmo-nos
sensatamente por momentos emergentes nos quais novas aberturas são
possíveis, enquanto os nossos julgamentos imediatos podem fazer-nos
correr o risco de não ver tais aberturas. Sem discernimento, podemos
automática e involuntariamente limitar a nossa visão, precisamente
quando mais precisamos de nos manter recetivos a opções imaginativas
para reagir conscientemente em vez de reagirmos por reflexo.
Se uma mãe está constantemente a ver o perigo em todas as situações
com o seu filho de cinco anos e paira à volta dele sem cessar, nomeando
todas as coisas terríveis que teme que aconteçam se o filho fizer isto ou
aquilo, é porque está atida a uma forma muito tacanha de ver, que, muito
provavelmente, não inclui uma consciência do seu próprio pensamento e
comportamento ou do efeito que poderá ter no filho. Desta forma, apenas
aumentará os receios do filho ou colocará barreiras no caminho dele,
confrangendo-o desnecessariamente.
Se fosse capaz de se ver nesse momento e observar mais atentamente e
com maior discernimento o seu próprio comportamento e o estado mental
do qual emana, poderia refrear alguns dos impulsos baseados em medo e
ficar mais livre e menos constrangida em si mesma. Poderia perceber que
tem um leque mais abrangente de escolhas do que o que via no momento
anterior e, com esta consciência, talvez encontrar um equilíbrio melhor
entre o seu medo – que contém elementos importantes de preocupação
pela segurança do filho – e a sua necessidade de autonomia. Desta forma,
poderia dar rédea mais livre à curiosidade e ao desejo de explorar da
criança. Os pais, claro está, podem recair no mesmo comportamento
induzido pelo medo, o qual pode dirigir-se tanto a filhas como a filhos.
É útil imbuir de generosidade e autocompaixão o nosso hábito
profundamente enraizado de ver as coisas em termos de apenas isto ou
aquilo, bom ou mau, perigoso ou seguro, aceitável ou inaceitável. Por
exemplo, se o leitor tiver feito várias coisas de que se arrepende enquanto
pai, também é importante ser capaz de ver as coisas que fez bem e vice-
versa. Uma perspetiva rígida, a preto e branco, maniqueísta, é
invariavelmente inexata e apenas perpetua ilusões, enganos e conflitos
entre cônjuges e com os filhos.
Quando aplicamos atenção plena e discernimento à parentalidade,
podemos aperceber-nos do quanto tendemos a julgar os nossos filhos, bem
como a nós mesmos enquanto pais. Temos opiniões acerca deles, de quem
são e de como deviam ser, talvez por comparação com algum ideal que
criámos mentalmente. Quando julgamos os nossos filhos assim, afastamo-
nos deles e eles de nós. Ao suspendermos intencionalmente o julgamento
e cultivarmos um maior discernimento, criamos o potencial para
restabelecermos a ligação que temos com eles e connosco.
O discernimento inclui perceber que, mesmo ao tentarmos ver os nossos
filhos como são, não podemos saber inteiramente quem são ou onde os
levarão as suas vidas. Só podemos dar o nosso melhor por amá-los e
aceitá-los, honrando o mistério do seu ser.
Prática Formal
Mesmo que opte por não praticar formalmente ou que o faça apenas
ocasionalmente, é proveitoso familiarizar-se com as instruções para a
prática formal da meditação, pois estas proporcionam um mapa claro de
como cultivar atenção plena. Também servem de guia útil para trazer
maior atenção plena e abertura de espírito a todos os aspetos da vida
quotidiana, incluindo a parentalidade. Quando atentamos à nossa
experiência através da lente do mindfulness, como vimos, toda a vida se
torna a prática de meditação. Todos os momentos se tornam ocasiões
preciosas para cultivarmos consciência e despertarmos um pouco mais.
Para quem se sinta compelido a desenvolver uma prática formal de
meditação, seja primariamente para ser pai, para reduzir o stresse ou
simplesmente para se nutrir de uma forma profundamente curativa e
transformadora, quaisquer momentos tranquilos podem ser usados, mesmo
que sejam raros ou que tenham de ser conseguidos, por exemplo,
acordando mais cedo do que o habitual ou desligando todos os aparelhos e
ecrãs em determinadas alturas.
O isolamento, o tempo com e para nós, a sós, é uma forma importante
de sustento profundo para os seres humanos. Rapidamente se perde, à
medida que o ritmo da vida acelera. Para os pais, há alturas em que
encontrar tempo para uma prática formal em que não se esteja exausto
pode parecer virtualmente impossível. Cada um de nós pode fazer as suas
próprias escolhas acerca de se, como e quando pode encontrar algum
tempo na sua vida para a imobilidade.
Um período tranquilo em que nos detemos não tem de ser demorado...
pode ser um minuto ou dois, se esse é todo o tempo que temos. Pode ser
quando nos estiramos no sofá a meio do dia, ou na cama antes de
adormecermos, ou cinco minutos durante a hora de almoço, ou num carro
estacionado enquanto o bebé dorme. Se a motivação estiver presente, a
maioria de nós provavelmente arranja ou liberta uns minutinhos ou até
mesmo cerca de quinze minutos, nas vinte e quatro horas do dia. Mas tem
de haver uma intenção forte de o fazer, mesmo que no início seja difícil ou
entediante. Caso contrário, depressa preencheremos quaisquer momentos
“livres” que encontremos com emails, navegar na Internet, mensagens,
tweets, o jornal ou uma revista, a televisão ou o rádio, ou qualquer outra
atividade que “preencha” ou “faça passar” o tempo. Vivemos numa época
de distrações – e autodistrações – perpétuas.
Por vezes, é difícil recordar que momentos de tranquilidade desperta
alimentam o corpo e a alma. Pais de crianças pequenas poderão precisar
mais de os ter do que qualquer outra pessoa. O tempo para nós, tempo a
sós, é o que muitos pais menos têm e mais desejam. Contudo, muitas
vezes não sabemos o que fazer com esse tempo quando o temos de facto,
sobretudo se forem apenas uns minutos dispersos pelo dia, que não bastem
para fazer algo de especial ou se chegarem “na altura errada”.
Não há dúvida – a prática formal do mindfulness ocupa inevitavelmente
algum tempo. Mas é um tempo que vale a pena se é algo que nos atraia. A
prática não tem de ser demorada para ter um valor profundo. Isto, em
parte, deve-se ao facto de que, quando estamos no momento presente e
realmente nos libertamos do passado e do futuro, saindo da correnteza do
pensamento, a experiência torna-se atemporal. Mesmo uns escassos
minutos podem ser restauradores, porque momentos atemporais são
momentos libertadores. Não há onde ir, nada que fazer. Por momentos,
libertamo-nos da pressão do tempo e das obrigações e podemos entrar na
experiência de estarmos inteiros e completos neste momento, fazendo
parte de um todo maior e inter-relacionado.
Se deseja tentar integrar a prática formal de meditação na sua vida, eis
uma maneira de começar: encontre ou arranje alguns momentos de tempo
tranquilo em que esteja só. Depois deite-se ou sente-se numa postura
adequada. Concentre-se no ventre por uns momentos e sinta-o a mover-se
com a respiração; ou atente às narinas e sinta o fluxo do ar aí. Seja como
for, tente não forçar nem o ar nem o ventre, permitindo apenas que a
respiração flua e que o ventre se mexa à vontade.
Prestar atenção à respiração e ao corpo não significa interferir. Significa
simplesmente atentar aos sentimentos no corpo e às sensações associadas
à respiração, à medida que esta entra e sai do corpo. Estas sensações
podem ser as do abdómen a subir, a expandir-se a cada inspiração e a
descer, esvaziando-se a cada expiração, ou a sensação do ar a passar para
dentro e para fora pelas narinas. Depois de experimentar durante algum
tempo, será bom escolher uma destas sensações para se concentrar e
manter a atenção aí, na medida do possível.
Como referimos, depressa descobrirá que a mente é frequentemente
turbulenta, como a superfície do oceano ou uma bandeira a ser soprada
primeiro nesta direção, depois na outra. A mente tende a ficar preocupada.
Deixa-se levar por pensamentos e sentimentos. A sua atenção poderá
desviar-se da respiração ou ser afastada dela uma e outra vez,
frequentemente sem quaisquer momentos de paz ou continuidade
aparentes, mesmo durante o tempo de uma só respiração. Também poderá
parecer tudo menos relaxante tentar seguir as sensações da respiração.
Poderá experienciar sobretudo ansiedade ou distração incessante.
Não há nenhum problema em ser assim. Não se espera que seja
relaxante, embora muitas vezes possa sê-lo. Na verdade, não se espera que
se sinta de alguma maneira em particular. Em vez disso, o convite é
apenas para estar ciente de como as coisas se encontram na realidade, em
si, a cada momento. Por isso, caso se sinta tenso, repare que se sente
tenso; caso se sinta zangado, então repare que está zangado; se estiver
enfadado ou ensonado, então note que está enfadado ou ensonado. É só
isso. Precisa apenas de observar a sua própria mente e o seu próprio corpo.
Não é necessário qualquer julgamento. De facto, estamos a tentar cultivar
uma orientação sem esforço, sem reação, sem crítica da sua experiência de
qualquer momento, percebendo e sentindo apenas o que existe neste
momento para ser sentido ou percebido e, se possível, reconhecendo e
abrindo mão de qualquer tendência para associar pronomes pessoais – em
particular, eu, me e meu – aos estados emocionais.
A outra instrução crucial a ter presente quando se começa uma prática
formal de meditação é simplesmente a seguinte: sempre que reparar que a
sua atenção já não está concentrada na respiração ou no corpo, repare
onde se encontra. Por outras palavras, repare no que lhe vai pela mente.
Este reparar é muito importante, porque traz pensamentos, sentimentos e
imagens para a consciência e aprofunda a nossa familiaridade e intimidade
com os nossos próprios estados mentais. Depois de ter permitido que o
que quer que lhe vá pela mente neste momento seja reconhecido em
consciência, irá intencionalmente soltá-lo – o que significa deixá-lo estar
como está – e regressar à própria respiração, seja no ventre ou nas narinas,
e voltar a atentar às sensações e à experiência direta desta inspiração,
desta expiração. Se a mente se afastar da respiração um milhar de vezes,
basta reorientá-la desta forma um milhar de vezes, depois de trazer
consciência às particularidades do que lhe vai na mente,
independentemente do que seja. Nem investigará o conteúdo dos seus
pensamentos, nem tentará suprimir qualquer da atividade da sua mente.
Simplesmente observa-os, deixa-os estar, deixa-os ir e regressa à
respiração. Com tempo, poderá expandir a prática para incluir outros
objetos de atenção, dentro e para lá da respiração. As práticas formal e
informal andam de mãos dadas. Uma fortalece a outra. Em última análise,
a meditação não é diferente da própria vida. Em grande parte, não irá
cuidar dos filhos estando sentado e imóvel, pelo que é importante permitir
que todos os momentos contem. Só temos de permitir que os filhos, e tudo
o mais nas nossas vidas, se tornem nossos professores e manter a nossa
intenção de estarmos presentes tão forte e energicamente quanto possível.
Há muitas outras formas de praticar formalmente a meditação com
atenção plena, se conseguir tempo para o fazer. Nos programas de MBSR,
as pessoas cultivam o mindfulness diariamente usando várias práticas
guiadas, incluindo uma meditação que é feita estando deitado, chamada
rastreio corporal, várias meditações efetuadas estando sentado e o hatha
yoga consciente. Mais detalhes acerca do que são estas coisas e como
praticá-las encontram-se em Full Catastrophe Living; Aonde Quer Que Eu
Vá; Coming to Our Senses; Mindfulness for Beginners; e vários outros
livros. Se tiver vontade de experimentar, há um CD de prática guiada de
mindfulness, bem como sites de onde é possível descarregar meditações
ou aplicações para telemóveis com meditações de várias durações – no
final do livro, compilámos uma lista destes recursos que podem ser úteis
para o desenvolvimento e aprofundamento de uma prática formal de
meditação, se não diária, pelo menos regular.
Cartas a uma Jovem Interessada em Zen
Um dia, eu (jkz) recebi uma carta de Caitlin, a filha de um amigo. Ela
tinha escolhido fazer um trabalho para a escola acerca do zen-budismo e
queria ir mais além daquilo que podia aprender das poucas fontes que
tinha à sua disposição. O pai sugeriu-lhe que me escrevesse. A sua carta
foi composta com tanta beleza, o seu tom era tão seguro de si, as suas
perguntas continham um interesse tão genuíno, que me sentei de imediato
e tentei, na medida das minhas capacidades, transmitir-lhe uma noção da
beleza e da profundidade da perspetiva zen na prática meditativa.
Apercebi-me depois que a minha resposta tocou em elementos da prática
meditativa de formas que poderão ser úteis para adultos, pelo que a incluo
aqui.
Em geral, julgamos que temos de ser muito cuidadosos ao oferecer
meditação a crianças, e que os pais poderão não ser as melhores pessoas
para a ensinar aos filhos. É maravilhoso, claro, quando eles nos veem
meditar. Por vezes, quando os nossos filhos eram pequenos e eu (jkz) me
sentava a meditar, eles vinham sentar-se no meu colo. Envolvia-os na
minha manta e nos meus braços, continuando sentado em silêncio.
Quando queriam ir-se embora, eu abria a manta e eles emergiam. Se
dissessem: “Papá, tenho fome”, isso marcava o final da minha prática
formal dessa manhã. Ainda assim, no espírito de trazer atenção plena a
todos os aspetos da nossa parentalidade, é importante sermos sensíveis ao
que vem dos nossos filhos e ao que poderemos estar a forçar-lhes devido
ao nosso desejo de que prezem o mesmo que nós. Hoje em dia, há vários
recursos para pais que queiram meditar com os filhos pequenos, sob a
forma de livros como Sitting Still Like a Frog e Building Emotional
Intelligence, ambos com CD de meditações guiadas que têm uma
abordagem muito ligeira e divertida (ver Sugestões de Leitura).
No caso de Caitlin, o impulso de aprender acerca de meditação foi seu.
Pode dizer-se que a minha resposta foi uma tentativa de lhe proporcionar
algumas ferramentas para cultivar o seu próprio jardim. O que descobri foi
que ela já era uma jardineira de mão-cheia. Com a sua autorização,
partilho partes das cartas que lhe escrevi e alguns dos poemas que ela me
enviou.
>>>
11 de fevereiro, 1996
Querida Caitlin:
Obrigado pela tua maravilhosa carta de 31 de janeiro. Fiquei contente
por saber que estás entusiasmada com o zen e o budismo e acho que é
ótimo que aprofundes o teu interesse para lá das fontes habituais, a
partir das quais recolhemos informação quando temos um projeto
como o teu. Os livros podem ser muito úteis, e junto aqui alguns dos
meus favoritos, esperando que os vás lendo de vez em quando, já que
aquilo que nos dizem muda com o passar do tempo. Mas, sobretudo
em relação ao zen, tens de ir além do que os livros dizem, para
EXPERIMENTARES aquilo que indicam, para compreenderes
realmente de que falam.
O que está realmente na essência do zen e do budismo é SABERMOS
QUEM SOMOS. Talvez digas: “Ora, que disparate. É claro que eu sei
quem sou!” E depois poderás dizer: “Sou a Caitlin e tenho 11 anos.”
Mas “Caitlin” é apenas um som (ao qual chamamos nome e é muito
bonito) que os teus pais te deram quando nasceste. E 11 anos é apenas
o número de vezes que a Terra deu a volta ao Sol desde que nasceste.
Não eras “tu” antes de receberes o nome Caitlin? Para além disso,
serás a mesma “tu” que eras quando tinhas cinco anos ou dois? É
claro que sim; e também não, pois estás sempre a crescer e a mudar. O
que pensavas, querias ou sentias então poderá não ser o que pensas,
queres ou sentes agora. Mas esse algo profundo que és “tu” continua a
ser e será sempre o mesmo.
Mas será que vês que isto também é um pouco misterioso, a questão
de quem és? Por isso, o zen tem que ver com conheceres-te,
compreenderes-te e saberes o que isso quer dizer. Em parte, quer dizer
saber que alguns tipos de conhecimento e compreensão estão para
além das palavras, para além do pensamento e para além do que
alguém seria capaz de te explicar. Este saber é muito pessoal e
intuitivo. É por isso que grande parte do zen assume a forma de poesia
e enigmas impossíveis. Atalham pela mente pensante e apontam para
algo para lá dela, que é mais livre e fundamental. Isto não quer dizer
que pensar seja “mau”. Pensar é ótimo e muito importante e é
necessário aprender a pensar bem. Mas não é tudo o que há e, se não
tivermos cuidado, o pensamento pode dominar-nos a vida e fazer-nos
esquecer os aspetos mais profundos, mais sentidos, mais intuitivos e
mais artísticos da vida, do nosso verdadeiro ser (como os budistas
dizem... quem “realmente” somos... para lá do nome, da idade, das
opiniões, dos gostos e dos desagrados). Parece-te confuso? Isso é
apenas porque tenho de usar palavras para falar daquilo que está para
lá das palavras. Na verdade, é muito simples e essa é uma das
maravilhas do zen... a sua simplicidade absoluta. Mas isso também o
faz parecer misterioso à superfície, quando na realidade não o é. Basta
compreender para que aponta.
Por isso, aqui te deixo algumas instruções tradicionais do zen. Uma
amiga minha escreveu e ilustrou, em tempos, um pequeno livro cheio
delas.
Quando te sentares, senta-te apenas.
Quando comeres, come apenas.
Quando caminhares, caminha apenas.
Quando falares, fala apenas.
Quando escutares, escuta apenas.
Quando olhares, olha apenas.
Quando tocares, toca apenas.
Quando pensares, pensa apenas.
Quando brincares, brinca apenas,
E aprecia a sensação de cada momento e de cada dia.
NARAYAN LIEBENSON, When Singing Just Sing: Life as
Meditation
Perguntaste-me se havia alguns enigmas zen (tradicionalmente,
chamam-se koans, uma palavra japonesa) que tenham especial
significado para mim e que realmente me acompanhem ao longo do
dia. Sim, há, e ao longo dos anos têm-me parecido bastante
maravilhosos e úteis. O segredo, como sugerias, é estarmos recetivos
a deixar que nos visitem e revisitem ao longo do dia.
Eis uns quantos:
• Um cão tem uma natureza de Buda?
• Que rosto tinhas antes de os teus pais terem nascido?
• Quem és?
• Terminaste o pequeno-almoço? Então vai lavar a tigela!
Lembra-te de que não podes responder adequadamente a estas
perguntas ou compreendê-las pensando nelas e falando da forma
habitual. Um dos meus professores, um mestre zen coreano,
costumava dizer: “Abre a boca e vais enganar-te.” (Por vezes os
mestres zen falam assim.) Há um ditado que diz: “Não penses que o
dedo que aponta para a lua é a lua.” Por isso, pensa nos enigmas e nas
histórias zen como dedos que apontam para alguma coisa. O apontar
não é a coisa. (Não treparias a um sinal a dizer “Nova Iorque” com
uma seta julgando que tinhas chegado a Nova Iorque, pois não?”) No
caso dos koans zen, a “coisa” para que se aponta nem sequer é uma
“coisa”. Por isso, o melhor é manter apenas o enigma, a pergunta ou a
história em mente, preservá-la, embalá-la na mente e no coração, seja
o que for que isso signifique para ti, e tentar não lhe responder, nem
sequer compreendê-la com a forma habitual de pensar. É isto que é a
meditação. É manteres presente na mente o mistério e a beleza de
viver, de “teres” um corpo, de estares viva, de estares ligada à tua
família, aos teus amigos e à natureza, e ao planeta, de não teres todas
as respostas ou sequer saberes sempre onde vais. Tudo isso está bem.
O que é importante é estares DESPERTA, estares presente neste
momento, com a totalidade da tua experiência, com os teus
sentimentos, a tua intuição e imaginação, o teu corpo, e tudo o que
este sente e faz, e com o teu pensamento. Tudo isso faz parte de quem
és, mas tu és mais do que tudo isso, pois és completa e também estás
sempre a crescer, a ser e a tornar-te, a saber e a não saber. Não só isso
está bem como é absolutamente maravilhoso. Isto quer dizer que TU
já és absolutamente maravilhosa, pelo que não tens de te tornar
maravilhosa, nem melhor, só tens de te deixar ser tu mesma e
aprender a não interferir no teu próprio caminho (este é um problema
que tu talvez não tenhas, mas que muita gente tem, infelizmente, e é
por isso que a meditação pode ser tão útil). Esta foi a descoberta
original do Buda. É simultaneamente muito especial e não muito
especial, já que a mente de toda a gente é potencialmente idêntica à do
Buda. É apenas uma questão de estarmos despertos e prestarmos
atenção. É por isso que o livro da minha amiga Joko Beck, que aqui te
envio, se chama Nothing Special [Nada de Especial]. A propósito, ela
é uma avó norte-americana de 78 anos que é uma mestra zen, e, se a
conhecesses, julgarias que era apenas uma pessoa normal, porque é.
Tal como tu, eu, a tua mãe e o teu pai. Nada de especial, mas muito
especial.
Então, isto faz-nos chegar às técnicas, a tua terceira pergunta. Sim, há
técnicas que podem ajudar-te a cultivar esta compreensão de quem és
e uma apreciação completa de estares viva e a partilhar a vida com
todos os seres vivos. Mas é importante, antes de te falar de algumas,
que te diga que terás de te lembrar de que as técnicas também são
apenas dedos a apontar para a lua. Não são o objetivo, são meros
sinais a apontar para a nossa própria experiência, e auxiliares úteis,
como as rodinhas de trás de uma bicicleta, para usares formalmente
até teres a “sensação” do que é realmente estar presente a cada
momento (lembra-te: “quando caminhares, caminha apenas…”), pois
isso, em suma, é o que significa ter uma “mente zen”.
Afinal, “caminhar apenas” ou “sentarmo-nos apenas”, na verdade,
fazer apenas o que quer que seja, não é assim tão fácil. Atentemos a
caminhar, por exemplo. Se tentares “caminhar apenas”, poderás
verificar que, para além de caminhar, estarás também a pensar onde
vais ou a preocupar-te por estares atrasada ou o que acontecerá
quando lá chegares, de tal maneira que não estarás completamente
ciente do teu corpo, ou seja, dos teus pés, das tuas mãos, da tua coluna
ou da tua respiração. Por isso, caminhar apenas não é assim tão fácil.
Tens de o trabalhar, e a este trabalho chama-se “prática”, ou “prática
meditativa”. É isso mesmo. A meditação é simplesmente trabalhar a
questão de estarmos cientes de cada momento, independentemente do
que estivermos a fazer, e não nos deixarmos levar pelos pensamentos
ou sentimentos, quaisquer que sejam, quer sejam interessantes,
felizes, tristes ou insignificantes. O objetivo é apenas estares ciente
deste momento tal como o vivencias.
Se aprenderes a fazê-lo enquanto és jovem e isto se tornar uma forma
de vida para ti, o efeito que terá ao longo de anos e anos pode ser
incrível, pois vai desenvolver a tua capacidade intrínseca e profunda
de seres uma pessoa mais sábia, mais feliz, mais afetuosa e divertida.
Todos temos esta capacidade, sobretudo quando somos novos, mas a
idade e a vida, por vezes, pesam tanto nas pessoas que estas se
esquecem de que são seres milagrosos e de que têm tremendas
capacidades de sabedoria, compaixão e criatividade. A prática
meditativa é uma forma de te impedires de o esqueceres e uma forma
de desenvolveres QUEM ÉS, por completo, ao longo de toda a vida.
Depois, afinal, as coisas mudarão, por vezes de formas maravilhosas,
noutras alturas de formas difíceis, e tu conseguirás participar nessas
mudanças e contribuir para elas, dando direção à tua vida a partir da
tua própria sabedoria e atenção. Assim, as tuas escolhas de vida serão
mais saudáveis e tu terás uma maior capacidade de lidar com todo o
género de coisas, incluindo alturas muito difíceis e cheias de stresse.
Por isso, se quiseres praticar, há muitas técnicas. Prestar atenção à
respiração é provavelmente a melhor maneira de começares, já que
não podes sair de casa sem ela. Nem sempre estás a caminhar, ou a
falar, ou sentada, ou a comer, mas estás sempre a respirar. Por isso,
podes prestar atenção à tua respiração e tornar-te amiga dela, a
qualquer momento. Se o fizeres, isso vai acalmar-te quando estiveres
incomodada, mas, mais importante ainda, vai ajudar-te a manteres-te
em contacto com o momento presente. Este momento é este momento.
Nunca voltarás a tê-lo. Por isso, o zen diz: não o percas. “Não deixes
que uma oportunidade como esta passe” (foi Kabir, o grande poeta
sufi/indiano, quem o disse).
Mais uma coisa. Tal como as técnicas não são o que realmente
importa, mas apenas uma forma sistemática de ganhares maior
intimidade com a tua própria vida, também a prática da meditação não
se limita a estares sentada ou deitada e prestares atenção à respiração,
durante algum tempo, todos os dias. O que importa é estares presente,
desperta e ciente da tua vida, a cada momento, dia a dia, em tudo o
que fazes. E dado que a tua respiração vai contigo, onde quer que
estejas, podes sempre usá-la para regressares ao teu corpo e ao
momento presente, para que:
quando estiveres a caminhar, estejas apenas a caminhar,
quando estiveres a comer, estejas apenas a comer,
quando estiveres a ajudar o teu irmão mais novo, estejas apenas a
ajudar o teu irmão mais novo,
(quando estiveres a provocar o teu irmão mais novo, estarás apenas a
provocar o teu irmão mais novo),
quando estiveres a falar ao telefone, estejas apenas a falar ao telefone,
quando estiveres a estudar, estejas apenas a estudar...
Acho que percebes a ideia.
Mais uma coisa: a ideia é praticares prestar atenção à tua respiração
ou a qualquer outra coisa, a cada momento, sem criticar e sem muita
reação emocional. Não é que estas coisas não vão acontecer. É claro
que vão. Mas a ideia é que tenhas noção da tua mente constantemente
crítica e que tentes suspender o julgamento e deixar que as coisas
sejam apenas como são, pelo menos enquanto praticas. Se estiveres
sempre a julgar tudo e todos e tiveres opiniões acerca de tudo, a tua
mente e o teu coração já estarão cheios de pensamentos e críticas, de
gostos e desagrados, e as tuas opiniões irão turvar-te a capacidade de
veres claramente.
Eis uma das minhas histórias zen preferidas: um professor
universitário foi ver um mestre zen para lhe perguntar o que era,
afinal, o zen. Ele tinha lido muita coisa e agora estava a investigar
para perceber a verdadeira história.
O mestre zen convidou o professor a que se sentasse à mesa consigo,
à sua frente, e começou a servir-lhe chá. Deitou o chá na chávena do
convidado e, quando a chávena ficou cheia, ele continuou a servir e a
servir, ao que o chá transbordou da chávena e do pires, espalhando-se
pela mesa e pelo chão.
O professor, atónito, gritou: “O que está a fazer? Não vê que a
chávena já está cheia?”
“Sim, vejo”, respondeu o mestre zen. “Tal como a sua mente. Como
pode esperar que ponha lá o que quer que seja quando já está tão cheia
de ideias e opiniões?”
Por isso, lembra-te, tenta não julgar tudo a toda a hora e ter uma
opinião forte acerca de tudo. Eu sei que é difícil, porque a escola e
toda a sociedade estão constantemente a tentar que tenhamos
opiniões. Mas tu não és as tuas opiniões, e é bom saber isso. Na
verdade, não és nenhum dos teus pensamentos. Poderás dizer que és a
pessoa que pensa, que sente, que vê. Mas, voltando à primeira página
desta carta, quem é essa? Essa é a questão a ter em mente. Confia na
atenção e na vigília acima de tudo. Confia no teu verdadeiro ser, no
teu verdadeiro coração, na tua verdadeira intuição. Outra forma de
dizer isto é que está muito bem ter opiniões, mas, se não tiveres
consciência delas, vais apegar-te a elas e ficar com a mente tão
fechada que não serás capaz de aprender nada de novo.
Perguntaste-me por que razão escolhi começar a praticar estas
técnicas e ensinamentos. Foi porque sabia, no meu interior, que tinha
de haver mais na vida do que aquilo que eu experienciava quando
estava a fazer o meu doutoramento em biologia molecular e não
queria perder a minha própria vida à medida que ela ia passando. Por
isso, comecei a fazer ioga, meditação e artes marciais, porque
constatei que alimentavam algo profundo dentro de mim que nada
mais estava a alimentar. Em resultado, tornei-me muito menos
zangado, passei a ser uma pessoa mais feliz. A meditação ajuda-me a
estar mais calmo, mais definido, mais afetuoso e recetivo e a ter ações
mais efetivas na vida do que julgo que seria capaz de tomar se não
tivesse começado a praticá-la, já há uns bons trinta anos. E continuo a
fazê-lo todos os dias... não para chegar a algum lugar, nem sequer
para me sentir bem. Faço-o porque é uma boa forma de amar a vida e
de estar em contacto com o que é importante. Adoro escutar o
silêncio.
Perguntas como é que o budismo e o zen afetam o mundo? Eu acho
que apontam para algo universal na vida e nas pessoas, que é
importante para a nossa sobrevivência enquanto espécie e para a nossa
felicidade em sociedade e como indivíduos. À medida que o mundo se
torna cada vez mais complicado, mais acelerado e nos sentimos cada
vez mais pressionados de tempo, com um stresse cada vez maior,
precisaremos de aprender a cuidar melhor de nós e do nosso planeta.
A sabedoria budista pode ajudar-nos muito nisto. Há uma coisa
chamada “economia budista”. Talvez tenhas ouvido falar da expressão
“o pequeno é belo”. Faz parte disto. Não causar mal a criaturas vivas
é outra parte que o mundo podia aprender. Acho que precisamos de
mais atenção e mais abnegação na política, nos negócios e no mundo
em geral. Hoje em dia, milhões de Norte-Americanos praticam
meditação. É uma situação muito diferente da que se vivia há apenas
vinte anos. É uma mudança muito positiva.
Por último, perguntas-me por crenças ou práticas invulgares que me
pareçam interessantes e esclarecedoras. Acho que tudo o que referi
acima é algo invulgar. Suponho que devemos fechar o círculo aqui,
dizendo que observar a nossa própria mente é o que importa. As
crenças são válidas, mas é importante não nos apegarmos tanto a elas
que nos ceguem para outros aspetos da realidade. No final, é apenas
uma questão de seres tu mesma e de te sentires confortável na tua
própria pele. As práticas existem para nos ajudar a fazer isso e para
nos recordar que já somos bons e muito preciosos. E únicos.
Há um aforismo que diz assim: “Eu perguntei-lhe que horas eram e
ele explicou-me como funciona um relógio.” Talvez tenha acontecido
o mesmo aqui, não sei. Tudo o que sei é que adorei a tua carta e o
entusiasmo que a suscitou, pelo que dou por mim a ter-te escrito sete
páginas de resposta. Espero que não te sintas assoberbada por esta
carta. Talvez tenha dito demasiado ou complicado demasiado as
coisas. Se assim for, pega só nas partes que façam mais sentido para ti
e manda o resto fora.
Podes escrever-me, se quiseres. E boa sorte para o teu projeto.
Com afeto,
Jon
22 de fevereiro, 1996
Querida Caitlin:
Obrigado pela tua carta e pelos teus poemas. Que projeto maravilhoso
escolheste (ou será que foi ele que te escolheu a ti?). William Stafford,
um dos nossos maiores poetas contemporâneos, escreveu um poema
todas as manhãs, antes de fazer qualquer outra coisa, ao longo de
trinta anos. Uma bela prática meditativa!
E embora tenhas razão ao achares que a tua compreensão do zen e do
budismo vai desenvolver-se com o passar dos anos, percebo pelas tuas
cartas e pela tua poesia que já “absorveste muito”, como tu dizes.
Obrigado pelo prazer de me permitires conhecer-te desta maneira.
Boa sorte para o teu projeto. Escreve sempre que quiseres.
Com afeto,
Jon
UMA SELEÇÃO DE POEMAS DE CAITLIN
Ramos
Finos, entrelaçados
Uma silhueta que nenhum artista poderia talhar
Senão a natureza.
Mara assume as muitas configurações
Do ouro, das joias e de cortinados de cetim
De anéis de diamante e plásticos corações
De cartões da Hallmark que mentem palavras de amor sem fim
Persegue, tenta e vicia-nos então
Encurrala-nos com a sua falsa canção
Para procurar as Verdades do Buda consciente
É preciso escutar as riquezas de antigamente
As árvores, o ar e a canção da NATUREZA
Têm sido os verdadeiros prazeres de sempre com certeza.
(Mara tentou o Buda com delícias terrenas imediatamente antes da sua
epifania.)
>>>
Zen
Imóvel, distinto
Apreciando, sendo, observando
Uma única flor à luz das estrelas
Consciência
A Imobilidade Entre Duas Ondas
A atenção plena e a clareza que pode emanar dela são muito simples. Na
verdade, isso nada tem de especial, só que também é muito especial. T. S.
Eliot, nos seus Quatro Quartetos, referiu-se a este “nada de especial”
como
Uma condição de completa simplicidade
(Custando não menos que tudo)
Todos os filhos são únicos, cada um constitui um universo infinito de
possibilidades e sentimentos. Poderemos aprender a escutar com o
cuidado suficiente para ouvirmos a textura e a ressonância das suas vozes,
das suas canções, das suas vidas? Conseguiremos ouvir, como disse Eliot,
“o riso escondido de crianças nas folhas”? Pois só temos este momento
presente para nos dedicarmos a este trabalho.
Depressa, agora, aqui, agora sempre –
Uma condição de completa simplicidade
(Custando não menos que tudo)
Depressa, agora, apenas neste momento é o que quer que seja, dos
nossos filhos às flutuações da nossa própria mente, a ser visto, sentido ou
ouvido. Mas isso só pode acontecer se estivermos dispostos a prestar
atenção e a estar presentes e completamente disponíveis, a olhar, escutar e
permanecer abertos. Caso contrário, oportunidades muito especiais para
vermos e nos identificarmos com os nossos filhos podem manter-se
obscuras para nós.
Desconhecida, porque não procurada
Mas, se olharmos de facto, talvez apanhemos um vislumbre; se
escutarmos internamente, talvez ouçamos a nossa vida, o nosso ser mais
profundo a chamar-nos:
Mas ouvida, meio ouvida, na quietude
Entre duas ondas do mar.
Isto é, quando a nossa própria consciência pode preservar o espaço entre
pensamentos, na imobilidade podemos ouvir
A voz da queda-d’água escondida
E as crianças na macieira
Uma e outra vez, a observação profunda do poeta recorda-nos o
chamamento, a intenção, as possibilidades latentes no momento presente.
Eliot aponta e nomeia esse mesmo espaço, essa mesma imobilidade que
revela a nossa essência e as nossas possibilidades:
Não deixaremos de explorar
E no fim do nosso explorar
Será começar onde começámos
E conhecer o lugar pela primeira vez.
Através do desconhecido portão relembrado
Quando o último pedaço de terra descobrir
É aquele que foi o começo;
Na fonte do rio mais longo
A voz da queda-d’água escondida
E as crianças na macieira
Desconhecida, porque não cuidada
Mas ouvida, meio ouvida, na quietude
Entre duas ondas do mar.
Depressa, agora, aqui, agora sempre –
Uma condição de completa simplicidade
(Custando não menos que tudo)
E tudo estará certo e
Toda a espécie de coisas estarão certas
Quando as línguas da chama estão dobradas para dentro
Em direção aos nós coroados do fogo
E o fogo e as rosas são só um.
Esta exploração incessante é o grande trabalho da consciência. Podemos
levá-la a qualquer coisa. Mas que melhor lugar onde cultivar tal maneira
de ver, tal maneira de ser, do que na parentalidade?
QUINTA PARTE

Uma Forma de Ser


Gravidez
A gravidez é uma altura natural para começar ou aprofundar a prática do
mindfulness. As mudanças cada vez mais dramáticas que ocorrem no
nosso corpo e nas nossas próprias perceções, ideias e emoções, convidam
a novos graus de vigília, maravilhamento e apreciação. Para algumas de
nós, a gravidez poderá ser a primeira vez que experimentamos estar
completamente no nosso corpo.
As mudanças no corpo interessam não apenas a nós mesmas, mas com
frequência a pessoas à nossa volta. Somos constantemente recordadas do
nosso estado especial pelas reações que obtemos dos outros, que vão de
perguntas amáveis a conselhos não solicitados, passando por inesperadas
festinhas na barriga.
A miríade de alterações físicas e emocionais que vivenciamos dá-nos
oportunidades únicas, ao longo da gravidez, de trabalharmos intimamente
com muitos aspetos da prática do mindfulness – prestarmos atenção à
nossa experiência; estarmos totalmente presentes; estarmos cientes das
nossas expetativas; cultivarmos aceitação, bondade e compaixão,
sobretudo dirigidas a nós e ao nosso bebé; experienciarmos sentimentos
de profunda interligação.
As oportunidades para trazer atenção plena a esta altura especial são
vastas também para os pais e parceiros. A gravidez é uma altura de
mudanças marcantes, tanto físicas como emocionais e relacionais. Os
parceiros podem aplicar atenção plena a todo o leque dos seus próprios
sentimentos, alguns dos quais poderão ser novos e desconfortáveis,
incluindo o que sentem acerca dos nossos corpos em mudança e das
alterações que o nascimento inevitavelmente acarretará para as vidas
deles. Têm o seu próprio trabalho interno e externo a efetuar, participando
no planeamento e nas várias escolhas que precisam de ser tomadas, bem
como ficando mais em contacto com a sua capacidade de serem generosos
e afetuosos, talvez de novas maneiras.
A consciência e a aceitação francas são em si mesmas formas de
reconhecer e honrar este estado especial, o milagre e o mistério de todo o
processo mediante o qual dois se tornam três, três se tornam quatro... esta
consciência será ainda mais essencial quando o bebé nascer.
>>>
Antes de engravidarmos, podemos ter levado as nossas vidas num estado
de ação constante, como se estivéssemos numa autoestrada: indo depressa,
relativamente inconscientes, concentradas em fazer cada vez mais.
Depois, de repente, podemos dar por nós num “modo de ser” mais lento,
mais recetivo. A fadiga extrema, que por vezes sentimos, poderá forçar-
nos a abrandar, à medida que o nosso corpo se esforça muito para criar,
desenvolver e alimentar o nosso bebé através da placenta milagrosa e
recém-formada e da nossa circulação sanguínea muitíssimo aumentada. Se
ignorarmos estas mudanças, avançando pela vida como de costume,
poderemos perder uma oportunidade rica e fugaz de vivenciar o mundo de
uma forma diferente, mais lenta, mais consciente e sensível. Mesmo
enquanto o nascimento iminente nos puxa os pensamentos e a imaginação
para o futuro, o nosso estado sempre em mudança também nos atrai cada
vez mais para o milagre do que acontece agora.
O foco naturalmente interno da gravidez proporciona-nos uma
oportunidade de nos harmonizarmos connosco, usando a respiração para
nos enraizarmos e aprofundarmos a ligação ao momento presente.
Tornamo-nos mais cientes dos nossos pensamentos, dos nossos
sentimentos, do nosso corpo e do nosso bebé. Permitindo que a respiração
se torne lenta e profunda, reconhecendo onde sentimos tensão, podemos
começar a deixar que esta nos abandone o corpo a cada expiração. A
energia que podemos ter usado no passado para disfarçar ou ignorar a
zanga, o medo ou a ansiedade, será libertada à medida que começamos a
observar os nossos sentimentos com recetividade, vendo como se alteram
de um momento para outro.
A gravidez pode ser uma altura de emoções altamente carregadas e que
se alternam rapidamente. Por mais que tenhamos desejado engravidar,
juntamente com a felicidade, poderemos também experimentar momentos
de medo, ambivalência, arrependimento e incerteza. Como se alterará a
nossa vida? Estaremos preparadas para a maternidade? Durante a
gravidez, é frequente as mulheres sentirem-se mais emocionalmente
vulneráveis, mais recetivas em geral e mais sensíveis a imagens, sons e
cheiros.
Cada gravidez é diferente, cada mulher é diferente e cada dia é
diferente. O leque de experiência é vastíssimo, desde sentirmo-nos mais
saudáveis do que nunca, radiantes, com uma sensação de bem-estar total, a
sentirmo-nos incrivelmente maldispostas, miseráveis e imobilizadas.
Podemos desiludir-nos, zangar-nos ou frustrar-nos, porque o que vivemos
não coincide de todo com as expetativas que tínhamos acerca de como
seria a nossa gravidez e como nos sentiríamos.
Estar consciente durante a gravidez não significa que “devamos” sentir-
nos de determinada maneira ou que haja algum estado ideal que tenhamos
de alcançar e que seja melhor para o nosso bebé ou para nós. Significa
reconhecer e aceitar toda a gama de sentimentos e experiências, e lidar
com isso da melhor maneira que pudermos. Esta orientação baseada em
atenção e aceitação, muitas vezes pode conduzir, paradoxalmente, a uma
calma maior, a um relaxamento e a sentimentos de bem-estar.
Todas as pessoas comportam em si, em diferentes graus, experiências
dolorosas, relações familiares difíceis e velhas feridas que poderão ter
sarado ou não. Poderá ser importante, enquanto nos preparamos para
sermos mães, reconhecer os julgamentos, as críticas e o amor condicional
que talvez tenham feito parte da nossa própria infância. Poderemos
começar por prestar atenção a quaisquer momentos do dia em que demos
por nós a criticar-nos ou a menosprezar-nos. Poderemos arranjar espaço
para o que quer que surja e preservá-lo na consciência com alguma
amabilidade dirigida a nós, pelo menos por breves momentos?
Outra forma como podemos começar a sarar é arranjando algum tempo
no nosso dia para nos concentrarmos internamente e dirigirmos alguma
atenção afetuosa a nós mesmas. Para algumas pessoas, poderá parecer
natural e fácil dirigir bondade amorosa e aceitação ao seu ser mais
profundo e ao bebé. Para outras, gerir este tipo de energia e dirigi-la para
si mesmas, poderá ser muito difícil ou parecer simulado ou esquisito.
Talvez ajude pensar numa pessoa ou num animal por quem tenhamos
sentido amor e aceitação e em seguida, ao entrarmos em contacto com os
sentimentos que nutrimos por eles, permitir que tais sentimentos comecem
a fluir também em direção a nós.
Ao concentrarmo-nos internamente, cientes das muitas mudanças que
experienciamos, podemos dirigir também a nossa atenção a quaisquer
crenças arreigadas e emocionalmente carregadas que possamos ter acerca
da gravidez, do trabalho de parto, do nascimento e de criar um filho.
Todos temos crenças assim, tanto conscientes como inconscientes, que
provêm das nossas próprias experiências, do que vemos e ouvimos em
vários meios de comunicação e de várias histórias que tenhamos ouvido
de familiares, amigos e conhecidos. Estas crenças arreigadas, e muitas
vezes irrefletidas, podem influir nas esperanças e medos que temos em
relação ao nascimento iminente.
É importante termos em mente que as nossas crenças acerca do
nascimento, quaisquer que sejam, não são necessariamente “verdadeiras”.
São apenas crenças ou, como disse um dos nossos filhos quando tinha
quatro anos, “acreditamentos”. Tornarmo-nos mais intencionalmente
cientes delas, enquanto pensamentos, examinando-as de propósito,
tentando compreender as suas origens e o contexto que originalmente as
propiciou, é o começo para eliminarmos qualquer influência negativa que
possam exercer na nossa psique.
Sementes tóxicas, sob a forma de crenças ou atitudes negativas em
relação à gravidez, ao parto e à parentalidade, podem ser
involuntariamente plantadas por comentários casuais feitos por amigos e
familiares. Estes comentários podem afetar-nos mais quando provêm
daqueles que consideramos autoridades poderosas e sapientes, sejam os
nossos próprios pais, prestadores de cuidados de saúde ou amigos.
Uma forma de nos tornarmos mais cientes das nossas próprias crenças
acerca de dar à luz é falando com as nossas mães e avós acerca das suas
experiências de parto, bem como de outras experiências na família,
tentando recolher o máximo de pormenores. Também podemos procurar
profissionais, que terão estado presentes em muitos partos que ocorreram
sem intervenções médicas desnecessárias. Podemos pedir-lhes que
interpretem histórias assustadoras de partos que possamos ter ouvido, a
partir da base de conhecimento e experiência deles, bem como das suas
próprias crenças.
Embora haja situações em que uma cesariana é necessária, um estudo
recente (Health Affairs, março de 2013) revelou que a taxa de partos por
cesariana aumentou significativamente, mesmo para mulheres com
gravidezes de “baixo risco”. Para todas as mulheres, a variação foi de 7,1
para 69,5 por cento; e para o grupo de baixo risco, foi de 2,4 para 36,5 por
cento, dependendo do hospital e do prestador de cuidados. Com uma taxa
tão elevada de cesarianas, o estudo sugeria que as variações se basearam
mais nas diferenças dos padrões de cuidados nos vários hospitais do que
em verdadeiros fatores de risco de saúde.
Educando-nos acerca do parto normal, poderemos concluir e
compreender que, embora não possamos controlar tudo, há muito que
podemos fazer para criar um ambiente positivo para o parto. Uma parte
importante deste processo será escolher a equipa que queremos que nos
apoie durante o trabalho de parto e o nascimento em si. Conhecer
profissionais durante a preparação para o parto é uma altura para se tentar
ver com alguma clareza e estar ciente de quaisquer tendências que se
tenha para depositar uma fé cega em profissionais e figuras de autoridade.
Educadores de parto, doulas, parteiras e obstetras são formados tanto pela
instrução formal como pelas suas experiências únicas. Também eles têm
os seus próprios sistemas de crenças acerca do processo do parto. Os que
acreditam na capacidade de o corpo dar à luz sem intervenções
desnecessárias e que têm experiência a assistir a muitos desses partos,
terão provavelmente uma maior confiança no processo. Idealmente, isto
traduz-se em serem mais capazes de apoiar as mulheres de formas
respeitadoras e fortalecedoras.
Não basta que um profissional pareça ser boa pessoa. Se possível (o que
poderá não ser, por várias razões), entrevistar vários potenciais prestadores
de cuidados, fazer-lhes perguntas específicas como onde exercem, quem
os substitui, que critérios têm para induzir o parto e qual a sua taxa de
cesarianas, podem dar-nos indicações importantes acerca das suas atitudes
em relação ao parto e como exercem a profissão. Falar com outras
mulheres que recorreram aos serviços destes prestadores de cuidados e
saber os pormenores das suas experiências pode ser muito útil.
À medida que vamos recolhendo informação, podemos ir ficando cada
vez mais cientes daquilo com que nos sentimos à vontade e do que é
importante para nós. Escutando atentamente a linguagem usada pelos
profissionais e perguntando-lhes pelos parâmetros dentro dos quais se
sentem confortáveis a trabalhar, podemos começar a ver os seus diferentes
pontos de vista e escolher assim prestadores de cuidados cuja visão seja
mais compatível com a nossa.
Uma parte importante da nossa preparação consiste em decidir onde nos
sentiremos mais seguras e confortáveis a dar à luz. Algumas pessoas
começam por pensar que se sentiriam mais seguras num hospital, apenas
para mais adiante descobrirem que querem ter um parto em casa. Outras
poderão julgar, ao início, que querem dar à luz em casa, acabando depois
por perceber que se sentirão mais confortáveis dando à luz num hospital
ou numa maternidade.
Dependendo da rede de cuidados de saúde e do seguro de saúde que
tenhamos (ou não), poderemos sentir que nos deparamos com muito
poucas escolhas, se é que algumas. E isso é capaz de ser verdade. Mas
estarmos mais recetivas, encontrarmos formas de lidar criativamente com
as limitações que enfrentemos e trabalharmos, quer interna quer
externamente, com uma combinação de recolha de informação,
autoconsciência e intuição, pode ajudar-nos a tomar decisões informadas e
a delinear uma rota que vá mais ao encontro das nossas necessidades e das
do bebé.
Nascimento
A força e a intensidade do trabalho de parto puxam-nos mesmo para cada
momento. Cada parto é único. Como a própria vida, nunca se sabe como
as coisas se desenvolverão. Cada trabalho de parto tem os seus próprios
ritmos, a sua cadência. Por vezes, o trabalho de parto e o nascimento
transmitem uma sensação de tranquilidade sagrada. Cada pessoa
desempenha o seu papel e o trabalho de parto vai progredindo e
avançando até o bebé nascer. Mas o trabalho de parto e o nascimento
também podem parecer-se um pouco com uma comédia desenfreada,
quando progride rapidamente e a atmosfera é azafamada e intensa.
O nascimento é uma experiência tão abrangente que pode obrigar-nos a
pôr de parte as expetativas e os preconceitos, acolhendo o que quer que
surja a cada momento. Podemos ter tido imagens positivas de sermos
massajadas e acariciadas durante o trabalho de parto e acabarmos por
verificar que, quando estamos mesmo em trabalho de parto, não queremos
que nos toquem. Podemos ter feito planos para ter música bela a tocar e
muitos amigos no quarto, descobrindo então que queremos silêncio e
apenas umas quantas pessoas connosco. Podemos ter-nos imaginado como
uma madona serena a dar à luz tranquilamente e depois darmos por nós
zangadas ou frustradas, por vezes a praguejar ou a queixarmo-nos e a
emitir todo o género de sons escandalosos.
O trabalho de parto dá-nos uma oportunidade para nos livrarmos do
manto da “boa menina” sossegada, amável, cuidadosa, aprumada, que
cuida dos outros, tão adotado pelas mulheres na nossa sociedade, e para
nos permitirmos a liberdade de sermos quem quer e como quer que nos
sintamos, completamente livres para estarmos concentradas no nosso
interior e totalmente dedicadas à tarefa em mãos. Se os que nos rodeiam
puderem conceder-nos a nossa própria vontade, a nossa própria soberania
neste processo milagroso, em que desempenhamos um papel central e
crucial, o parto pode ser uma afirmação potente e uma cura poderosa da
nossa própria psique, uma iniciação a um novo domínio do ser.
Se tem usado a respiração para cultivar o mindfulness durante a
gravidez, quando o trabalho de parto começar terá alguma familiaridade
com ela e com a forma como poderá ajudá-la a estar mais presente,
relaxada e concentrada. À medida que o trabalho de parto se vai tornando
mais intenso, poderá concentrar-se na sensação da respiração a entrar e a
sair do corpo para se abrir para a dor e para os exigentes momentos que se
seguem. Independentemente de como se desenvolva, de facto, o seu
trabalho de parto e de quão intenso e doloroso possa por vezes ser, uma
consciência feroz de cada momento, conjurada enquanto enfrentamos este
processo imenso e desconhecido, pode ajudar a trazer a experiência para o
domínio da aceitação e propriedade totais. O resultado é não apenas um
novo bebé a receber e cuidar, mas também uma experiência poderosa que
guardaremos durante toda a vida.
Para cultivar a atenção plena durante o trabalho de parto, podemos
recordar-nos de manter a respiração lenta e profunda, ao sentirmos a
intensidade da contração a aumentar, usando a inspiração para nos
mantermos com as sensações intensas e usando cada expiração para
libertar qualquer tensão ou contenção que sintamos no corpo. O final de
cada contração traz sempre um descanso, por curto que seja, que nos dá
uma oportunidade para mudarmos de posição, bebermos um pouco,
recebermos um abraço, rirmos ou mantermo-nos apenas concentradas na
respiração. Estando cientes, estando presentes, somos mais capazes de ver
ou pressentir o que precisamos em cada momento.
Usar a consciência da respiração para estarmos completamente
presentes durante o trabalho de parto, respirar em qualquer dor ou
desconforto requer menos energia do que tentarmos distrair-nos ou
resistir-lhe. O corpo tem a sua própria sabedoria interna. Resistir e contrair
pode fazer com seja mais difícil para os nossos corpos fazerem o trabalho
de se abrirem e darem à luz. Respirar lenta e profundamente, lidar com o
que sentimos mudando de posição, ter uma pessoa que nos dê apoio a
aplicar pressão ou compressas quentes, expressar os nossos sentimentos,
as nossas frustrações, agarrarmo-nos ao parceiro ou a uma pessoa amiga,
tudo isso pode ajudar-nos a estar mais presentes durante o trabalho de
parto.
É frequente as mulheres constatarem que o medo que têm do parto é
pior do que a própria dor; que, se experienciarem intencionalmente cada
contração sem se preocuparem com o tempo que vai durar, nem pensarem
na seguinte, terão mais energia positiva para dedicar ao trabalho em mãos
neste momento. Estar completamente presente desta maneira de um
momento para o seguinte, durante o trabalho de parto e o nascimento,
requer coragem, concentração e o amor e apoio das pessoas à nossa volta.
Estamos habituados a associar a dor à patologia. A dor do trabalho de
parto e do nascimento é a dor saudável de um processo intensamente
físico, em que o útero se contrai para abrir primeiro o colo do útero e em
seguida fazer o bebé sair. As mulheres podem levar “acreditamentos”
positivos para o trabalho de parto, associando a força, a intensidade e até a
dor que sentem a imagens que evocam intencionalmente, como o colo do
útero a abrir-se como uma flor ou o bebé a descer cada vez mais, a cada
concentração. Emitir sons abertos de ooh e aah a cada contração, o que
permite que a garganta se abra, e associar mentalmente a abertura da
garganta com a abertura do colo do útero e da vagina, dá-nos outra forma
de trabalharmos intencionalmente dentro da própria intensidade do
trabalho de parto.
Dar à luz é um processo no qual, como ao criar um filho, cada situação
e, realmente, cada momento traz um desafio diferente. Por vezes,
correspondemos-lhe por inteiro. Noutras alturas, podemos recuar, fechar-
nos, entrar em piloto automático. Pode haver momentos em que perdemos
a cabeça por completo, ou darmos por nós a queixar-nos, a praguejar e a
rejeitar o que parece ser uma experiência miserável e avassaladora.
Quando dermos por nós a recuar e a fechar-nos, pode ser útil restituir
delicadamente a atenção à respiração. Isto devolve-nos a concentração a
cada momento e permite-nos aceitá-lo tal como é. Cada momento é
verdadeiramente um novo começo e novos começos são exatamente o que
se requer após cada contração, sobretudo quando nos sentimos exaustas,
ansiosas ou desencorajadas. A nossa vontade de aceitar novos começos
espelha o maior novo começo de todos. Depois de toda a preparação e
deste trabalho árduo, o filho nasce e, com ele, a mãe... e uma nova
constelação familiar.
>>>
Por vezes, num nascimento, como na vida, o que ocorre é inesperado. Não
podemos antecipar, nem controlar, tudo o que poderá acontecer. O parto é
uma altura em que é importante sermos gentis connosco. Quando as
expetativas que tínhamos – quer para nós quer para o nascimento – não se
concretizam, independentemente dos motivos, o nosso forte apego a
querermos que as coisas sejam de determinada maneira pode causar-nos
muito sofrimento. Podemos estar profundamente empenhadas em ter um
parto “natural”, mas dar por nós a pedir analgésicos ou numa situação que
requeira uma intervenção médica. Nestas alturas, as nossas expetativas de
um parto “perfeito” ou do bebé “perfeito” podem tornar-se um obstáculo
para a nossa capacidade de reagir ao que está de facto a acontecer-nos.
Nada há de passivo em ser-se consciente perante o inesperado. Mesmo em
circunstâncias difíceis, podemos confiar nas nossas sensações e na nossa
intuição e dar o nosso melhor para tomar as decisões necessárias e muitas
vezes improvisadas.
Lidar com o que quer que surja e abrir mão das nossas expetativas fortes
de que as coisas sejam de determinada maneira não é fácil. Envolve
darmo-nos permissão e tempo para vivenciarmos por completo todos os
nossos sentimentos – frustração, zanga, desapontamento, medo, mágoa.
Sentirmos compaixão por nós, pelas nossas dificuldades, pelos nossos
esforços, pelos nossos limites, pela nossa humanidade, é uma parte
essencial para nos curarmos e regenerarmos.
Durante a gravidez, gastamos a maior parte da energia a concentrar-nos
no nascimento do nosso bebé e só quando este nasce é que
compreendemos verdadeiramente que o nascimento é apenas o começo.
Mas o trabalho interno que fazemos durante a gravidez e o parto são um
bom treino para a parentalidade com atenção plena e, ao darmos à luz, a
força e o imediatismo com que somos puxadas para o momento presente e
obrigadas a abrir mão de ideias preconcebidas põe-nos em contacto com a
essência da prática do mindfulness. Ao darmos à luz os nossos bebés,
podemos aperceber-nos de que damos à luz novas possibilidades em nós.
Bem-Estar
Quando começamos a aplicar atenção plena à vida e à parentalidade, a
nossa nova consciência pode levar-nos a reexaminar e pôr em causa
muitos pressupostos básicos que costumamos dar por garantidos.
Por exemplo, pergunta-se frequentemente a novos pais: “O bebé já
dorme a noite toda?” Por trás desta pergunta encontra-se uma preocupação
natural pelo bem-estar dos pais. Muitas vezes, baseia-se na suposição de
que os bebés devem dormir a noite toda. O pressuposto subjacente poderá
ser que as necessidades dos pais devem ter prioridade.
Este pressuposto muitas vezes vem à tona sob a forma de conselhos não
requisitados que são dados aos novos pais, como: “Assegurem-se de que
têm tempo só para vocês os dois.” “Deêem atenção à vossa relação.”
“Deixem o bebé com uma babysitter e saiam.” Se atentarmos a estes
comentários, poderemos ver que, mais uma vez, o foco se encontra
predominantemente no bem-estar dos pais e não no da criança. Os bebés
são vistos como fortes e resilientes, enquanto os pais são encarados como
vulneráveis e a precisar de proteção. É claro que os novos pais precisam
de cuidar de si mesmos e um do outro, e precisam do cuidado afetuoso e
do apoio de amigos e familiares durante este período intenso de
ajustamento em que todo o género de novas exigências lhes são
apresentadas. Mas é importante que, nesse processo, as necessidades do
bebé não sejam minimizadas ou negligenciadas. Se conseguirmos agir
com um certo grau de consciência, podemos tentar encontrar formas de
cuidarmos de nós que não sejam a custo do bem-estar do nosso bebé.
Ao decidirmos como vamos criar os filhos e quais são as nossas
prioridades, precisamos de estar cientes da importância suprema de criar e
manter confiança e sentimentos de ligação com o nosso bebé, tanto para o
seu bem-estar a longo prazo como para o bem-estar a longo prazo de toda
a família. Como vimos no capítulo acerca de empatia, cientistas que
estudam bebés têm encontrado provas de que as lições mais básicas da
vida emocional se estabelecem nos contactos mínimos repetidos que
ocorrem nos primeiros tempos entre os pais e o bebé. De todos esses
momentos e contactos tão íntimos, os mais cruciais, segundo o
investigador especializado na teoria do apego, Daniel Stern, parecem ser
os que “permitem que a criança saiba que as suas emoções são recebidas
com empatia, aceites e recíprocas.” Isto faz parte do processo de sintonia.
Saber que a sintonia na mais tenra idade forma a base das competências
emocionais posteriores de uma criança pode motivar-nos a prestar muito
maior atenção, a cada momento, a como realmente interagimos com os
nossos filhos, sobretudo quando são pequenos, e às escolhas que fazemos
acerca de como cuidar deles.
Digamos que um bebé não dorme toda a noite. Os pais, cansados e
frustrados, decidem “deixar o bebé chorar” até que “perceba” e adormeça.
Mas consideremos por um momento o que poderá ser esta experiência
para o bebé. O bebé e os pais formam um todo interligado. Quando
perturbado, o bebé não é capaz de suprir as suas próprias necessidades e
depende dos pais para o acalmar, precisa de que se mantenham em
contacto consigo. Se estas necessidades não forem atendidas e o bebé for
deixado sem contacto humano nessas alturas, as sensações perturbadoras
poderão ser avassaladoras e fechar-se poderá ser a única opção do bebé.
Desligar-se e fechar-se perante a ausência de reação humana é decerto
algo que os adultos também conhecem. Porque julgaremos que é aceitável
para os bebés, que têm muito menos recursos?
A parentalidade com atenção plena concentra-se na inter-relação mútua
das necessidades dos pais e do bebé, em vez de ver o bem-estar deste a
competir de alguma forma com o nosso. Segundo William e Martha Sears,
“há uma vantagem biológica na generosidade mútua [...] Quando uma mãe
amamenta o bebé, providencia alimento e conforto. O sugar do bebé, por
sua vez, estimula a produção de hormonas que potenciam o
comportamento maternal [...] A razão pela qual é possível adormecer um
bebé a amamentá-lo é que o leite materno contém uma substância que
induz o sono [...] Entretanto, enquanto amamenta o seu bebé, produz mais
da hormona prolactina, que surte um efeito tranquilizante em si. É como
se a mamã pusesse o bebé a dormir e o bebé pusesse a mamã a dormir.”
Ter uma maior consciência das muitas formas como estamos tão altamente
interligados permite-nos olhar de forma muito diferente para muitos dos
aspetos da parentalidade – incluindo amamentar e ter o bebé na nossa
cama.
Criar os filhos com atenção plena não significa que, por vezes, não
tenhamos fortes sentimentos de frustração, ou desejemos que certa
situação não estivesse a acontecer quando nos parece que as nossas
necessidades entram em conflito direto com as do bebé. Por exemplo,
haverá inevitavelmente noites em que o bebé precisa de ser pegado ao
colo ou embalado às três da manhã. O nosso primeiro impulso poderá ser
resistir ao que a situação requer de nós. Trazendo intencionalmente
mindfulness e discernimento a tais momentos, podemos reconhecer os
nossos sentimentos de zanga, ressentimento e frustração e também os
nossos sentimentos de empatia e compreensão. Dentro do espírito de ver
tudo o que enfrentamos como parte da prática da parentalidade com
atenção plena, podemos escolher ver a nossa resistência em corresponder
à necessidade do nosso filho nesse momento, largar o nosso pensamento
de “ou-ou”, por mais racional e razoável que pareça, e reagir com a maior
sabedoria do nosso coração. Esta forma de preservar o momento presente
permite-nos encontrar soluções verdadeiramente criativas que não surgem
às custas do bem-estar do nosso filho. O nosso bem-estar também é
fomentado, à medida que expandimos o enquadramento daquilo que
entendemos como sendo os nossos próprios limites.
Os bebés não são bebés durante muito tempo. Esta fase formativa em
que são completamente dependentes de nós é relativamente breve e muito
preciosa. Durante este tempo, a sua sensação de bem-estar encontra-se
intimamente relacionada com quão sintonizados estamos ao que eles
sentem e precisam em cada momento e à qualidade e constância das
nossas reações. Assim, ao criarmos filhos com atenção plena, tentamos,
tanto quanto possível, cultivar o tipo de reação que honre o que os nossos
filhos mais precisam em nós.
Alimentação
Obter alimento é uma atividade fundamental dos seres humanos à qual,
regra geral, prestamos impressionantemente pouca atenção a cada
momento, embora nos ocupe tremendas quantidades de tempo, energia e
pensamento. Uma falta similar de consciência pode turvar-nos a
capacidade de ver e apreciar alguns dos aspetos mais importantes de
proporcionar alimento aos nossos bebés, embora isso seja algo a que os
pais se dedicam muitas vezes, ao longo do dia e da noite. Se embarcarmos
na parentalidade compreendendo que a ligação e o relacionamento
humanos são de importância absoluta, as escolhas aparentemente
corriqueiras mas formativas que tomamos quanto à alimentação e, mais
ainda, quanto à qualidade da atenção que lhe damos, enquanto nos
dedicamos a isso, estarão mais sintonizadas com o leque completo das
necessidades do nosso filho e, com maior probabilidade, alimentarão mais
aspetos do seu ser do que apenas a sua barriga.
>>>
Há uma espécie de imersão, um mergulho na felicidade que acontece
naqueles momentos após o bebé ter sido alimentado. Por vezes, surge um
olhar mútuo, uma sensação maravilhosamente pacífica e uma noção de
ligação e devoção palpável, capturada em muitas pinturas renascentistas
em que a Madona fita o seu filho.
A palavra ojibua3 para espelho, wabimujichagwan, significa “olhar
para a alma”, um conceito que captura algum do mistério da imagem
e da substância. Se é verdade que há espelhos para os nossos bebés e
que olhar forma os limites de um ser, então talvez estejamos também
a ajudar a formar uma alma espiritual, durante esses olhares de amor
concentrado durante os quais o tempo para, o ar se rarefaz, a terra
arrefece e uma noção de profunda perfeição se apodera do nosso ser.
LOUISE ERDRICH, The Blue Jay’s Dance
Independentemente de escolhermos amamentar ou usar biberões,
podemos alimentar os nossos filhos de uma forma que responda aos sinais
que eles nos dão: alimentando-os quando precisam de ser alimentados,
segurando-os com sensibilidade, junto ao calor e ao conforto do nosso
corpo, assegurando-nos de que há muitas alturas em que nos mantemos
longe do telemóvel e da Internet, que pousamos o livro ou o jornal, que
desligamos o televisor, que lhes damos toda a nossa atenção e cultivamos
a arte do olhar. Todas estas são meditações em si mesmas.
Quando um bebé é alimentado de acordo com um horário, em vez de em
resposta aos seus sinais, a comida vem a “horas de comer” determinadas
pelo adulto, esteja o bebé com fome ou não. Em vez de poder
experimentar fome e depois saciação, enquanto reagimos à miríade de
formas como, subtil ou não tão subtilmente, comunica connosco, a
experiência pode facilmente tornar-se desconetada de si mesmo e da
pessoa que o alimenta. É-lhe negada a capacidade de se autorregular e é-
lhe atribuído um papel mais passivo. Ser alimentado pode tornar-se mais
uma experiência dissociativa em vez de algo animador, na qual
sentimentos de confiança e ligação entre pais e filhos são fomentados e
fortalecidos.
Quer sejam amamentados, quer sejam alimentados a biberão, dar-lhes
de comer em reação aos seus sinais reforça e constrói uma noção da sua
própria autonomia. Experienciam assim a capacidade de obterem aquilo
de que precisam e de suscitarem uma resposta apropriada do mundo que
os rodeia. Esta qualidade intrínseca de confiança, construída através de
experiências repetidas de alcançar um efeito desejado, é conhecida por
autoeficácia. Muitos estudos demonstram que a autoeficácia é o fator mais
forte para prever saúde e cura, uma capacidade de lidar com o stresse e de
proceder a alterações saudáveis do estilo de vida. A base para uma
autoconfiança robusta e abrangente desperta na infância com este tipo de
interações íntimas e mutuamente responsivas.
Há situações em que, por um ou outro motivo, uma mãe poderá ser
incapaz de amamentar o bebé. Isto pode provocar várias emoções aflitivas,
incluindo frustração, insuficiência e culpa. Tal como se disse em relação
aos apegos fortes que temos a que as coisas aquando do parto sejam de
determinada maneira, também aqui temos uma ocasião para dedicar
alguma amabilidade e aceitação a nós mesmas e à situação. Como
seguramos, vemos e reagimos aos nossos bebés acaba por ser mais
importante do que a questão de amamentarmos ou não.
Se amamentar o seu bebé, é tremendamente útil ter o apoio de pessoas
ou grupos com experiência. O período inicial pode por vezes ser frustrante
e difícil, dependendo das necessidades particulares tanto do bebé como do
corpo da mãe. É fácil sentirmo-nos assoberbadas quando surgem
dificuldades, mas muitas vezes há soluções muito simples para problemas
que podem parecer impossíveis ou frustrantes. Com apoio informado e
vontade de enfrentar os problemas que surjam, é possível ultrapassar as
primeiras semanas e ganhar uma forte confiança em si mesma, no seu
corpo e no que este está belissimamente preparado para fazer. A dada
altura, a amamentação pode tornar-se algo sem esforço, a base de uma
forma de criar o filho centrada neste, alimentando bebé e mãe ao nível
mais profundo.
Já há uma consciência pública muito maior dos benefícios para a saúde
da amamentação e uma compreensão crescente das suas outras dimensões
importantes, como o conforto emocional, a ligação mãe-bebé, a sintonia
física e psicológica dos ritmos biológicos (como os corpos e as mentes da
mãe e do bebé interagem) e dos efeitos neurológicos e de
desenvolvimento a longo prazo.
Observando os nossos filhos quando eram bebés e crianças pequenas, eu
(mkz) via os estados profundos de relaxamento em que entravam
imediatamente quanto mamavam. Independentemente do que estivesse a
acontecer no momento, da perturbação que tivesse acabado de acontecer,
por norma eu podia contar com a amamentação para acalmar e
rejuvenescer os meus filhos. Isso proporcionava um refúgio temporário
dos estímulos do mundo, para um local calmo e pacífico de conforto,
sustento e renovação. Quando eram crianças pequenas, deixavam de
brincar e de explorar o mundo a uma certa distância e regressavam a mim
para que os amamentasse. Por essa altura, já comiam muitos alimentos
diferentes. Não era realmente por fome que mamavam. Faziam-no para
renovar outros aspetos do seu ser.
Outro aspeto importante e único da amamentação é o esforço
concentrado que é requerido para que o bebé sugue leite do peito. Com a
amamentação, o leite não verte diretamente para as suas bocas; têm de se
esforçar. A sucção inicial pode dar-lhes muito pouco leite, e depois, a dada
altura, se observarmos atentamente, vemos que passam para uma sucção
de movimentos longos e lentos que revelam que o leite desceu e está a
fluir. O bebé descontrai, num ritmo satisfatório – concentrado, ativo, mas
relaxado. Quando o seio se esvazia, muitas vezes continuam a mamar,
para suprir as suas necessidades de conforto, acalmia, relaxamento e
ligação.
Há uns anos, fui a uma conferência patrocinada pela La Leche League,
uma organização devotada a informar mulheres acerca da amamentação e
a proporcionar apoio. Foi num grande auditório cheio de mulheres com
bebés e crianças pequenas ao colo, algumas a mamar, outras aninhadas.
Era incrível sentir os bebés concentrados nas mães. A importância desta
relação incorporada é abordada no perspicaz livro do sociólogo Robbie
Pfeufer Kahn, Bearing Meaning: The Language of Birth.
Os bebés e as crianças pequenas que são amamentados vêm as mães
como a “fonte”. Aventurarem-se e explorarem é equilibrado por um
regresso à fonte da segurança e do sustento. Mantêm-se no interior de uma
esfera materna expandida, porque estão fortemente ligados. São capazes
de ir e vir, enraizados na relação com a mãe e o seu corpo.
Naquele auditório cheio de crianças pequenas, fiquei impressionada
pelo sossego continuado no espaço, pela sensação de contentamento por
serem seguradas ou amamentadas, abarcadas pela aura da mãe.
3. Povo e dialeto indígena da América do Norte. (N. da T.)
Alimento para a Alma
Quando os nossos filhos eram pequenos, era frequente as pessoas
comentarem como tinham as faces rosadinhas. Eu (mkz) sorria, satisfeita
comigo mesma por saber de onde vinha aquele rubor nas faces. Era de
serem amamentados.
Depois de ter ultrapassado as primeiras semanas da amamentação, que
por vezes eram dolorosas e frustrantes, enquanto o meu corpo tentava
encontrar o equilíbrio certo entre produzir pouco leite ou produzi-lo em
excesso, constatei que amamentar me descontraía e abrandava. Ao sentir o
leite a descer, uma névoa maravilhosa abatia-se sobre mim e tudo o resto
se tornava menos importante. Libertava-me das coisas que planeara fazer
e, em vez disso, deixava-me ser levada para o momento presente, para
estar totalmente com o meu bebé. Era uma altura profundamente
meditativa para nós os dois.
Amamentar foi uma tremenda pedra de toque da minha maternidade.
Dava-me grande confiança saber que tinha o que precisava para alimentar
e confortar os meus bebés, em qualquer altura, em qualquer lugar. Muitas
vezes faziam um ar encantado enquanto eu os posicionava ao peito.
Primeiro, mamavam para obter leite. Depois, à medida que o seio se
esvaziava, continuavam a sugar, obtendo conforto, e, a partir daí,
passavam para um estado completamente descontraído. Se estivessem
cansados, por norma adormeciam. Conseguir que dormissem sem grande
luta, quando precisavam de uma sesta, era tão simples como amamentá-los
quando se aninhavam em mim. Se acordassem à noite, ou já estavam a
dormir a meu lado, ou eu levantava-me e levava-os para a nossa cama,
onde os amamentava, sem que nem eu nem eles chegássemos a acordar
por completo, voltando a adormecer juntos.
À medida que foram crescendo e começaram a comer todo o género de
alimentos, amamentar continuou a ser uma fonte profunda de conforto. Se
tivessem tido um dia cansativo, emocionante ou com demasiados
estímulos, eu podia contar com a amamentação para os revigorar.
Independentemente de onde nos encontrássemos, um lugar tranquilo seria
criado bastando para isso que subissem para o meu colo e se aninhassem
nos meus braços. As tensões libertavam-se na concentração tranquila de
mamar, no calor do meu corpo, no ritmo da minha respiração. Esta ligação
contínua a mim, através da amamentação, dava-lhes uma profunda
sensação de segurança e autoconfiança. Eu sentia-a em todos os aspetos
do seu ser. A experiência que tinham do mundo estava enraizada no corpo
– na relação que tinham comigo e com o meu corpo e na experiência do
seu próprio corpo, sendo segurado. Conheciam a fonte da sua satisfação e
renovação. Era visível, tangível, de confiança. Esse enraizamento ajudou-
os a encararem o mundo com curiosidade e autocontrolo. Talvez porque a
amamentação lhes oferecia a oportunidade de serem acarinhados,
alimentados e tratados como um “bebé” durante breves períodos,
sentiram-se suficientemente seguros para deixarem de usar fraldas numa
idade relativamente precoce.
Quando começaram a falar, a amamentação suscitou-lhes uma faceta
endiabrada, brincalhona. Quando o meu filho tinha um ano e meio, disse a
sua primeira piada. Fitou-me com um olhar matreiro, soprou-me no seio
como que para o arrefecer e depois disse: “Quente!”, sorrindo com prazer.
Quando tinha dois anos e meio, certa manhã eu estava a amamentá-lo e
disse-lhe: “Vamos descer e tomar o pequeno-almoço.” Ele respondeu
dizendo: “Mamar!” Sempre que eu tentava tirá-lo do peito, ele dizia:
“Mamar!” Por fim, eu disse: “És uma pestinha!” Ele fitou-me e disse-me:
“Não, sou uma passinha!” Rimo-nos e abraçámo-nos, após o que
descemos para ir tomar o pequeno-almoço.
O meu corpo era uma parte essencial e completamente familiar da
paisagem deles. Tinham as suas próprias palavras com que se referiam a
mamar, ao peito e ao leite materno. “Nuk” e “Noonie” eram algumas das
preferidas. Quando eu tive uma infeção fúngica num seio e a pele
começou a gretar, o meu filho, num tom muito factual, referia-se a esse
como “o lado do dói-dói” e chamava ao outro “o lado que gosto”.
A minha filha mais nova adorava rimar e a sua criatividade era
particularmente prolífica no que dizia respeito a mamar. Certa manhã,
deu-me os bons dias com “Oh, noonie é o meu melhor suminho, Myla
Miminho!”
Arranjava várias formas de expressar como as “noonies” eram
importantes para si. Era capaz de ser muito dramática na sua escolha de
palavras e na entoação. Numa manhã, ao sair do duche, com uma toalha
enrolada à sua volta, disse: “Não vou deixar que o ouro me caia das
noonies.” Noutra altura, disse, numa voz trágica que poderia pertencer a
uma peça de Shakespeare: “A minha noonie foi roubada!”
Amamentar tinha um efeito tão poderoso nos meus filhos que, por
vezes, a sua magia resultava mesmo sem a presença do meu corpo.
Quando a minha filha mais velha tinha dois anos, eu passei o dia inteiro
fora, a assistir a um parto. Quando telefonei para casa, Jon disse que ela
queria muito falar comigo. Fiquei logo apavorada, sabendo que, assim que
ouvisse a minha voz, ela ia ficar avassalada pela tristeza e dizer-me que
me queria. Mal pegou no telefone, começou a chorar, dizendo-me que
fosse já para casa. A sua resposta foi um choroso “Dá-me de nukky!” Eu
disse-lhe: “Dou-te de mamar assim que chegar a casa.” A sua voz foi
insistente: “Não, dá-me de nukky agora!” Como queria confortá-la, disse-
lhe com muita delicadeza: “Ok, estou a dar-te de mamar agora. Como é?”
Ela ficou calada e Jon disse-me que estava ali sentada, de olhos fechados,
descontraída e meditativa, deixando que eu a “amamentasse” pelo
telefone.
Quer estivessem zangados, frustrados, assoberbados ou apenas exaustos,
a amamentação proporcionava-lhes paz e contentamento. Eram o mais
afetuosos possível quando recebiam afeto desta maneira. Certa noite,
enquanto amamentava a minha filha antes de ela adormecer, ela olhou
para mim e disse-me no tom mais afetuoso: “Mã, és tão doce.” Ambas
estávamos banhadas em doçura.
Mesmo depois de os meus filhos deixarem de ser amamentados, o meu
corpo continuou a ser uma fonte de conforto e bem-estar para eles. Havia
alturas em que estavam a adormecer e encostavam a mão ao meu peito,
ficando com uma expressão maravilhosa e pacífica. Era como se isso
bastasse para os devolver a um estado de felicidade que os alimentava
profundamente. Podemos dizer que se trata de alimento para a alma.
A Cama da Família
Na altura em que começámos a ter filhos, a opinião cultural dominante era
a de que bebés e crianças deveriam dormir sozinhos nos seus próprios
quartos. Esta disposição é muito diferente de como a maioria das famílias
do mundo dormem ou de como a maioria das famílias do mundo ocidental
dormia antigamente. No entanto, os nossos aposentos familiares,
separados nos primeiros tempos da infância, poderão ser uma das formas
como o “desenvolvimento avançado” de uma sociedade priva em vez de
alimentar. Tanto pais como filhos podem ficar a perder.
Quando o nosso primeiro filho nasceu, o pediatra disse-nos que ele
devia dormir no seu quarto, na sua cama, desde o início. Mas isso não nos
parecia bem. Tínhamos uma sensação intuitiva de que o nosso recém-
nascido devia ficar connosco durante a noite. Dormindo junto a nós podia
descontrair na suavidade e no calor dos nossos corpos. Ficava envolvido
na segurança e no conforto da nossa presença. Tudo estava bem no
mundo, tanto para ele como para nós, quando ele dormia entre nós,
normalmente aninhado num de nós ou nos dois.
Nada pode realmente descrever a satisfação profunda que sentíamos ao
termos o nosso bebé junto a nós, sem precisarmos de estar preocupados
por podermos não o ouvir. Em vez de ficarmos a pensar e a preocupar-nos,
“Será que está tapado, terá frio, será que o ouço se chorar, com o barulho
do vento e da chuva?”, não havia dúvidas acerca de como poderia estar,
pois encontrava-se ali mesmo, connosco.
Quando os bebés nascem, a sua capacidade de se autorregularem não
está completamente desenvolvida. A proximidade física de um ou dos dois
pais ajuda-os a estabilizar a fisiologia. A nossa respiração, por exemplo,
ajuda-os a regular a deles. O calor do nosso corpo mantém-nos quentes. É
como um microecossistema. O contacto físico é uma parte importante
desta dinâmica natural, tal como, claro, a amamentação.
Durante vários anos, dormimos juntos, respirámos juntos. Mesmo
quando ele dormia na sua própria cama, a nossa era muitas vezes onde
começava a noite ou acabava de manhã. Quando queríamos estar a sós,
levávamo-lo para o seu quarto depois de ele ter adormecido. Cada vez
mais, à medida que foi crescendo, passou a querer estar no seu quarto, na
sua cama. Quando as meninas nasceram, com um intervalo de idades
menor, houve uma altura em que ambas dormiam na nossa cama. A dada
altura, comprámos uma cama maior.
Não dormimos muitas horas seguidas durante esses primeiros anos. Os
nossos filhos acordavam várias vezes durante a noite, não só para mamar,
mas por vezes porque tinham dentes a romper, ou estavam doentes. As
crianças são muito diferentes. Algumas dormem longos períodos durante a
noite desde muito cedo. Muitas não o fazem.
Será que houve alturas em que julgámos que talvez estivéssemos
inadvertidamente a encorajá-los a acordarem por estarem tão próximos e
por permitirmos que mamassem quando queriam? Sim, claro. Mas os
nossos momentos de dúvida e questionamento não puseram fim à partilha
da cama com os nossos pequenos, porque continuávamos a sentir que
havia imensos benefícios. Lidávamos com as dificuldades da mesma
maneira que lidávamos com tudo o resto, tentando encontrar o equilíbrio
certo. Quando eram crianças pequenas, houve definitivamente alturas em
que nos acordavam demasiado e em que andávamos cansados e frustrados.
O que tentámos fazer nessas alturas foi tornar o acordar menos
convidativo. Jon levava-os a caminhar por vezes, em vez de deixarmos
que mamassem.
Uma intenção maior encontrava-se aqui em jogo, uma intenção que
prezávamos mais do que o sono ininterrupto. Intuitivamente, achávamos
que a segurança e a paz que a nossa presença física dava aos nossos filhos
lhes alimentava todo o ser. O efeito era tangível. Víamo-lo nos seus rostos
curiosos, animados, afetuosos. Sentíamos que a nossa presença à noite os
ajudava a enraizarem-se no corpo e no mundo, e esse enraizamento podia
ser visto na forma como observavam tranquilamente o mundo em redor.
Eram curiosos sem serem frenéticos, ativos sem se descontrolarem. O
bem-estar e a alegria que emanavam deles eram maravilhosamente
contagiosos. Estavam totalmente presentes, quer fosse num riso
encantado, num grito zangado ou num abraço afetuoso.
É claro que houve muitas alturas em que a vida, sob a forma de dentes,
constipações ou dores de barriga, nos interrompeu invariavelmente o sono.
Por vezes, era como se brincássemos à dança das camas. Um de nós
dormia na cama vazia de um dos filhos se precisássemos de mais sono.
Pelo caminho, tivemos de redefinir por nós mesmos o que nos parecia
normal em relação à quantidade de sono de que precisávamos.
Criámos os nossos filhos desta forma devido à convicção de que coisas
mais profundas do que as nossas necessidades de dormir ou até de
estarmos juntos a sós – para as quais arranjávamos soluções criativas
quando precisávamos –, estavam a ser fomentadas. Na altura,
acreditávamos que, quando os nossos filhos estivessem preparados para
dormir toda a noite, assim o fariam; e quando estivessem preparados para
dormir nas suas camas, optariam por fazê-lo; e, com uma dose de
encorajamento, assim foi.
Quando as crianças são pequenas, amamentá-las à noite na cama da
família pode por vezes perturbar o sono de toda a gente, levando-nos a
sentir que as desvantagens superam as vantagens. Isto varia de família
para família e de filho para filho. É por isso que, quanto mais pudermos
recuar e examinar conscientemente os efeitos das nossas escolhas de
amamentação e partilha de cama no bem-estar de cada membro, mais
poderemos ajustar o que estamos a fazer para o benefício de toda a
família.
Partilhamos a nossa própria experiência familiar em relação a como
dormíamos e as nossas ideias acerca disso quando os nossos filhos eram
pequenos, porque tínhamos opiniões fortes e continuamos a ter, sobre a
importância de alimentar os filhos desta maneira quando são pequenos.
Também o enfatizamos precisamente por ir tão contra as práticas
dominantes da sociedade atual, embora seja a norma em muitos países
asiáticos. Simplesmente queremos que os casais jovens saibam que é uma
opção, que é viável e que também pode ser incorporado numa visão da
parentalidade como uma prática por vezes desafiante, bem como
profundamente satisfatória. Como tudo o resto, ter crianças pequenas a
dormir na nossa cama tem os seus custos, mas pode também ter benefícios
muito tangíveis, uma sensação de confiança e ligação que pode ajudar a
atravessar alturas difíceis. Na verdade, a investigação recente demonstra
que há benefícios a longo prazo, relacionados com a autoconfiança e
independência, em crianças que dormiram com os pais [co-sleeping]. Toda
a questão do co-sleeping e formas seguras de o praticar é uma área ativa
de debate e investigação. James McKenna, investigador da Notre Dame
College, apresenta um conjunto útil de orientações para o co-sleeping
seguro; consulte-se http://cosleeping.nd.edu/safe-co-sleeping-guidelines/.
>>>
Sendo pais, também todos nós temos as nossas próprias histórias
particulares e experiências pessoais de infância. Estarmos cientes dos
nossos sentimentos e termos uma certa noção de onde provêm é um aspeto
importante para fazermos escolhas certas para nós e para a nossa família.
Por exemplo, se fomos criados sem a experiência de um toque carinhoso
que nos acalentasse ou se os nossos limites foram violados e a nossa
confiança destruída por um toque impróprio, é natural que haja uma
hesitação forte, até medo, em relação a partilhar uma cama de família.
Atentar em consciência a tais sentimentos e aos pensamentos que os
acompanham sem os julgar automaticamente – ou a nós mesmos –
permite-nos vê-los com mais clareza e experienciar talvez uma certa
liberdade, de maneira que não nos ditem de forma automática as escolhas
que fazemos enquanto pais. Ao mesmo tempo, também temos de respeitar
o nosso desconforto e as razões que o justificam.
Encontrar maneiras de corresponder às necessidades dos nossos bebés e
crianças que também sejam confortáveis para nós requer abertura,
flexibilidade e consideração, bem como uma vontade de nos expandirmos
e desenvolvermos para lá dos nossos pressupostos fixos e muitas vezes
irrefletidos. Mas não é assim tão fácil, pela mesma razão pela qual a
parentalidade com atenção plena não é fácil. Muitas vezes, faz-nos ir
contra aquilo que julgamos serem os nossos limites, encorajando-nos a
observá-los em consciência com delicadeza e a tentar encontrar novas
maneiras que tanto resultem como os respeitem. E, com certeza,
experimentar novas abordagens para criar os filhos pode ser
particularmente difícil se os pais não partilharem os mesmos pontos de
vista ou valores. A comunicação com atenção plena torna-se ainda mais
importante nesse tipo de situações.
Há muitas formas de criar conscientemente os filhos. De forma alguma,
o empenho em criar os filhos com atenção plena significa que se tenha de
dormir com os bebés ou determina que, caso contrário, não se será um pai
bom ou sensível. A parentalidade com atenção plena apenas nos pede que
prestemos atenção ao que estamos a fazer, incluindo as escolhas que
tomamos, e examinemos, de uma forma contínua, o efeito que as nossas
escolhas têm nos nossos filhos e em nós. Requer uma inquisição contínua
do que estamos a fazer e porque o fazemos.
Consideramos que as decisões relativas a calor e conforto, proximidade
e alimentação, bem como a que limites poderão fomentar mais saúde,
felicidade e bem-estar em cada família, em particular, têm uma
importância suprema. O mindfulness aplicado nessa mesma tomada de
decisões é crucial para tornar a parentalidade uma empreitada consciente e
sensível às necessidades em mudança tanto dos filhos como dos pais. Não
há uma “forma certa” de fazer isto. Há muitas maneiras de fomentar
crianças saudáveis e famílias afetuosas.
Para mais, as escolhas relativas ao sono podem funcionar durante algum
tempo numa família, até que subitamente algo muda e uma mudança se
torna necessária. Se não pudermos passar muito tempo com um bebé ou
uma criança pequena durante o dia, é possível que a cama compartilhada
seja uma forma maravilhosa de restabelecer a ligação e dar carinho. Isto
pode funcionar bem com um filho, mas talvez não tanto com outro que
tenha um sono irrequieto. Podemos sentir-nos demasiado maldispostos e
irritados para podermos lidar com o dia a dia, pelo que será necessário
experimentar outra coisa.
Há alturas em que os pais precisam que os filhos tenham noites mais
consistentes e em que isso se torna uma prioridade urgente. Pode tornar-se
claro que os pais precisam de sono ininterrupto e que os filhos também
poderão beneficiar disso. Com alguma consciência, podemos proceder a
alterações aos nossos rituais da hora de ir para a cama e encontrar formas
de promover uma sensação de confiança e segurança. Abrir mão da
proximidade física da cama compartilhada pode ser compensado nalgumas
alturas do dia em que os abraçamos intencionalmente e nos aninhamos
com eles. Tratando-se de um bebé, mesmo que durma noutra cama, mas
no quarto dos pais, a fisiologia do bebé reage ao som da respiração e à
presença destes. Não há uma única escolha na parentalidade que faça toda
a diferença. O que é importante é toda a tapeçaria que críamos através da
miríade de escolhas que tomamos. Por isso, é sempre uma questão de
equilibrar as diferentes necessidades da família com consciência, firmeza
e bondade, tão bem quanto possível. Obviamente, não há uma solução
única para estes dilemas noturnos.
Por sorte, há muitas opções. Se o sono partilhado na mesma cama não
resulta para si, para o seu cônjuge ou para o vosso filho, podem juntar
uma cama à vossa, ou instalar o vosso filho num quarto adjacente. Podem
criar rituais com que o vosso filho conte e espere, quer seja lerem-lhe,
contarem-lhe uma história, tocar alguma música tranquila, deitarem-se ou
sentarem-se com ele enquanto adormece. Podem transmitir-lhe uma noção
de confiança, para que saiba que pode ficar sozinho, que está seguro e que
pode adormecer por si mesmo. Bem mais importante do que a escolha de
como dormir é encontrarem a vossa própria forma de fomentar
sentimentos de confiança, segurança, ligação e resiliência interior.
É importante que ambos os pais se vão perguntando (a si mesmos e um
ao outro) o que é melhor para o filho e que colaborem para encontrar
soluções para os problemas que surjam à hora de ir para a cama. Partilhar
impressões, examinar reações emocionalmente carregadas e tentar ver as
coisas a partir da perspetiva do filho e da perspetiva um do outro são
ferramentas úteis quando olhamos com novos olhos para como passamos
quase metade das nossas vidas.
SEXTA PARTE

Ressonâncias, Sintonia
e Presença
Ressonâncias
Quando um diapasão vibra, leva a que outros diapasões próximos vibrem
também, sobretudo se estiverem relacionados – quer dizer, afinados pelo
mesmo comprimento de onda. A este processo, através do qual a atividade
de um corpo vibrante provoca a ressonância similar de outro corpo,
chama-se ajuste. As notas lá de um piano estarão ajustadas para vibrar
quando um lá for tocado num violino do outro lado da sala.
Pais e filhos também influenciam constantemente as ressonâncias uns
dos outros. As nossas vidas orbitam física, emocional e psicologicamente
nos campos de forças uns dos outros e estamos continuamente a interagir
e a influenciar-nos mutuamente de formas subtis e não tão subtis, por
vezes reconhecidas, por vezes completamente inconscientes.
Os cientistas descobriram que os nossos cérebros também ressoam uns
com os outros quando estamos na presença uns dos outros. Determinadas
células, chamadas neurónios-espelho, disparam ao observarem outra
pessoa a entregar-se a certos movimentos, sobretudo se houver emoções
envolvidas. Esta poderá ser a base neurológica da empatia, a nossa
capacidade de sentirmos com outra pessoa. Estamos literalmente a
experienciar as mesmas áreas do cérebro a disparar com padrões similares.
A própria respiração é um ritmo biológico básico que nos deixa a vibrar
com vida. Sintonizarmo-nos com este ritmo oferece uma ocasião
maravilhosa para ressoarmos literalmente com o nosso bebé. Eu (jkz)
costumava respirar com os nossos bebés como forma de aplicar maior
atenção plena ao momento presente. Sentia-nos a respirar juntos, a
baloiçar numa cama de rede, enquanto o bebé dormia nos meus braços, ou
quando eu andava para trás e para a frente com um filho nos braços, a
altas horas da noite. Balançando ou caminhando, respirando em uníssono,
por vezes a cantar e entoar baixinho também, ressoávamos um no outro.
Se nos tornarmos intencionalmente cientes das ressonâncias entre nós, a
nossa relação com um bebé pode ser uma troca contínua de energia de
todos os géneros, por vezes harmoniosa, por vezes não. Seja como for,
nunca será mais rica do que neste momento, mesmo que tenhamos
também de preparar o jantar ou tratar da roupa, ou sejamos interrompidos
de vez em quando por uma ou outra coisa. É uma boa razão para entrar na
dança da respiração em quaisquer momentos em que possamos fazê-lo.
>>>
Nas famílias, o ajuste acontece a muitos níveis diferentes. Por vezes, pode
levar-nos a lugares onde talvez não quiséssemos ir, sem que saibamos
como chegámos lá. Se não tivermos consciência da energia do momento,
esta facilmente pode apanhar-nos pela calada. Pode arrastar-nos
emocionalmente, como quando caímos numa depressão ou somos levados
pela zanga, pela ansiedade ou por tantos outros estados emocionais. Numa
família, não estamos todos constantemente embrenhados numa troca em
perpétua mudança de energia, emitindo vibrações de diferentes
frequências e interagindo com a energia uns dos outros sob a forma de
pensamentos, sentimentos e as suas expressões, verbais e não-verbais,
através dos nossos corpos, ações e reações emocionais a acontecimentos e
às ações dos outros, por menores que sejam? Se soubermos que ressoamos
uns nos outros de diferentes modos, poderemos aprender a mover-nos com
mais agilidade em relação a tais ritmos, sem perdermos o equilíbrio.
Os filhos podem entrar em estados energéticos muito fortes, os quais
são capazes de nos afetar de várias maneiras. Se estivermos cientes disto,
podemos manter-nos mais em contacto connosco e reagir de forma mais
consciente. Se atingirem demasiada frequência, não temos
automaticamente de ressoar na mesma frequência e enervar-nos de formas
que não serão úteis nem para eles, nem para nós.
Em simultâneo, há também muitos momentos de integração e
maravilhamento que as crianças experimentam, e que podemos
experienciar e ressoar com elas... momentos de puro prazer.
>>>
Uma esplanada de restaurante no verão. Um jovem casal com duas filhas:
uma com cerca de três anos, outra com uns quatro meses. A mãe
amamenta a bebé, aninhada no seu colo. Durante imenso tempo, o rosto da
bebé está escondido no peito e debaixo de partes da blusa da mãe. Mas a
sua mãozinha vai brincando com a da mãe durante todo esse tempo.
Depois, a sua cabeça emerge e ela fica deitada no colo da mãe, a fitá-la. A
mãe sussurra-lhe e inclina ligeiramente a cabeça. A bebé abre a boca,
formando um círculo perfeito, com os olhos azuis arregalados, também, a
absorver o rosto da mãe. Tem os olhos tão abertos, a boca tão aberta, todo
o rosto tão aberto, que é a encarnação, neste momento, da presença pura.
A mãe baixa a cabeça e leva-a à testa da bebé, antes de voltar a
endireitar-se. A bebé sorri. Há todo um campo magnético a ligá-las. Esta
bebé está na órbita da mãe, neste momento, e as duas falam de um milhar
de formas, num milhar de comprimentos de onda, através dos corpos em
contacto, através do ar entre si.
Depois, o pai segura a bebé de maneira a que ela possa espreitar por
cima do ombro dele. Está instalada no corpo dele. Tem os olhos bem
abertos, totalmente recetivos. Vê o meu rosto (jkz) e o seu olhar detém-se.
Sorrio-lhe. O seu rosto reconhece-o de uma forma que deteto de imediato,
mas que me é impossível descrever. Está alerta à novidade. Sorri. É como
uma bênção de um mundo mais puro. O rosto da irmã mais velha também
está aberto. Sentada à mesa, percebo que também ela se sente à vontade
no seu corpo e no campo magnético da sua família. Nem sequer se dá o
caso de interagirem muito. Não o fazem. Mas formam um todo
inseparável no qual ela está completamente à vontade. Isso revela-se
também na sua presença. Quando se vão embora, a mãe diz-nos que
tinham passado demasiadas horas dentro do carro e que as miúdas
precisavam de sair.
Foi apenas uma refeição comum, mas é evidente que estas crianças
experimentam o constante dar e receber com os pais, que forma os laços
do amor e transmite a benevolência e a recetividade do mundo em relação
aos mais novos.
Sintonia
SINTONIZAR(-SE): Criar uma situação de harmonia ou de entendimento.
Sintonizarmo-nos com os nossos filhos implica estarmos cientes das
mensagens que nos passam, não apenas por palavras, mas com cada
aspeto do seu ser.
Eu (mkz) entro no café local e vejo a minha vizinha sentada numa mesa
a amamentar a filha enquanto espera por uma amiga. Digo-lhe olá e a
bebé, curiosa, para de mamar, levanta a cabeça, olha para mim com um
grande sorriso e depois recomeça a mamar. Enquanto eu espero na fila, ela
entra num jogo comigo, através da distância que nos separa. Mama e
depois deixa cair a cabeça, ficando a ver-me de pernas para o ar. Sorri e
recomeça a mamar para depois tornar a deixar cair a cabeça e fitar-me. A
mãe vai-lhe seguindo as pistas e deixa-a mexer o corpo conforme lhe
apetece, rindo-se com prazer do prazer da filha. Nesta manhã chuvosa de
quarta-feira, num cafezinho de bairro, uma bebé está feliz.
>>>
Eu (mkz) recordo-me de quando os nossos filhos eram bebés, ao tomar
conta do filho da minha amiga, que tem dez meses. Embalando-o
enquanto caminho, vou experimentando coisas diferentes, ciente de como
ele reage, até encontrar a combinação certa de movimentos suaves para
cima e para baixo, enquanto entoo baixo e ritmicamente. Abrando a
respiração. Sinto-lhe o corpo a descontrair e relaxar no meu. Ele não tem
qualquer dificuldade em dizer-me, sem palavras, o que quer. Quando me
sento com ele, diz-me com todo o corpo: “Não, não te sentes, pega-me,
anda comigo.” Depois começa a emitir pequenos sons e eu imito-os,
fazendo-os com ele. Encosta a cabeça no meu ombro. Sinto-o a
descontrair e a ficar cada vez mais pesado, até que adormece. Devagar,
deito-me no sofá, sentindo o seu calor e suavidade, apreciando o cheiro
doce da sua pele. Esta sintonia é uma prenda maravilhosa para ambos.
Neste dia primaveril, ele está a descobrir de novo que pode confiar nas
pessoas à sua volta. Sente uma reação compassiva da minha parte, que lhe
diz que o que quer e precisa é importante e será respeitado. Quando obtém
o que precisa, sente-se satisfeito, seguro e em paz. Tudo isto num pequeno
encontro.
>>>
Quando uma mãe vê o seu filho pequeno a tornar-se cada vez mais ativo, a
ponto de ficar desenfreado e descontrolado, decide deitar-se no tapete e
deixar que ele suba para cima de si e brinque com o seu cabelo. Está
literalmente a deixá-lo voltar a ficar em contacto consigo. Gradualmente,
ele começa a sossegar, a abrandar, até que, ao fim de algum tempo, se
deita ao lado dela, a repousar e a instalar-se no ritmo tranquilizante da
respiração da mãe. Esta ajuda-o a sintonizar-se com a sua energia calma.
Ela compreende a necessidade de independência e separação do filho e, ao
mesmo tempo, a necessidade de estar próximo e ligado. Tudo isso se
desenrola nesta cena no chão da sala de estar.
>>>
À medida que os filhos crescem, a sintonia entre pais e filhos torna-se
mais complexa. A minha (mkz) filha de dez anos chega da escola e entra
com uma careta. “Tenho fome!”, diz num tom zangado. Percebo logo que
a escola a afetou. Está a sentir-se saturada. Passou o dia inteiro com gente.
Está à beira de perder as estribeiras. Aprendi que devo ter algo rápido
pronto para que ela coma quando chega. Também aprendi, a custo, que
não devo fazer-lhe perguntas, que devo dar-lhe espaço. Não é a melhor
altura para protestar por causa do seu tom de voz, nem para lhe ensinar
bons modos. Depois deste pequeno desabafo, ela costuma olhar para mim
com uma expressão bastante mais amigável e vir ter comigo para me
abraçar ou desaparecer para o seu quarto, onde fica a ouvir música.
Com filhos mais crescidos, estar sintonizado pode querer dizer ser
sensível à necessidade que têm de ser deixados a sós para se concentrarem
no que quer que estejam a fazer, sobretudo se estiverem no mesmo espaço
físico que nós. Poderá significar também pressentir quando devemos
aproximar-nos e apoiá-los de pequenas formas.
Estou sentada na cozinha da minha amiga e a sua filha de dezasseis anos
entra a queixar-se de uma dor no pescoço. A mãe pede-lhe que lhe indique
onde dói. Enquanto conversamos, ela massaja o pescoço da filha,
interrompendo periodicamente a conversa comigo para lhe dizer em voz
baixa quando sente os nós a desfazerem-se sob o seu toque. Continuamos
a falar enquanto ela a massaja e, uns quinze minutos depois, a filha vai-se
embora. A minha amiga diz que este tipo de momentos partilhados se
tornou uma ocorrência rara. Provavelmente, ajudou haver outra pessoa
adulta presente, a criar um pouco mais de distância. É maravilhoso sentir a
sensibilidade desta mãe, a sua disposição para estar recetiva quando a sua
filha se aproxima inesperadamente e a sua capacidade de apreciar a
preciosidade desse momento.
Estar em harmonia com os nossos filhos não significa que as coisas vão
sempre ser harmoniosas. Ser consciente em momentos de desarmonia e
conflito, muitas vezes, requer tudo o que temos, cada grama de energia e
perspicácia para que, mesmo no meio do conflito, tenhamos uma
oportunidade de manter presente quem são os nossos filhos e o que podem
precisar de nós nesse momento. Para fazermos isto, precisamos de estar
dispostos a reconhecer, perante nós mesmos, os nossos medos, reações e
preocupações e, ainda assim, esforçarmo-nos para manter o equilíbrio,
mantendo-nos em contacto com a nossa respiração, o nosso corpo e o
plano geral, tanto quanto consigamos. Isso abre caminho para
reconhecermos e irmos ao encontro dos seus estados emocionais de
formas mais adequadas e imaginativas. É claro que haverá sempre
momentos de conflito e alheamento – podem ser oportunidades para que
tanto pais como filhos aprendam que é possível recuperar e recomeçar de
novo.
O tato
A palavra touch [toque, tocar, tato, contacto, contactar] tem um dos
verbetes mais longos do Oxford English Dictionary, sem dúvida por ser
tão básica na experiência humana. Ashley Montagu observou há muito
que o tato é fundamental para a saúde e a ligação. Os macacos bebés não
sobrevivem a menos que tenham contacto, calor e suavidade constantes.
Porque haveremos de pensar que somos diferentes? O tato é fundamental
para a vida.
O tato requer que estejamos em contacto. Pode ser uma experiência
unificadora. Não podemos tocar sem que algo nos toque também. É uma
forma de sabermos que não estamos sós. Dependendo de como nos tocam,
podemos sentir qualquer coisa, desde amados, aceites e prezados, a
ignorados, desrespeitados e magoados.
O tato gera consciência e deixa-nos em contacto com o mundo.
Tocamos e somos tocados através de todos os sentidos – da visão, da
audição, do olfato, do paladar, bem como do tato através da pele – e
também de cinestesia e interoceção.
Sermos abraçados com sensibilidade enraíza-nos nos nossos corpos e
desperta uma sensação de ligação. Desperta-nos para nós e para o outro.
Todo o ser de um filho é honrado quando lhe tocamos com consciência,
sensibilidade e respeito. Aprender a estar “em contacto” com o que
sentimos desenvolve-se a partir desta experiência de nos sentirmos
seguros e cuidados. Através do colo, de abraços, de embalos, aconchegos,
balanços, murmúrios, cantos e olhares, pais e filhos experienciam-se a si
mesmos e uns aos outros – é a magia de se estar em contacto.
>>>
Enquanto (mkz) espero no Registo de Veículos Motorizados, vou
observando uma mulher grande e gentil que está a cuidar de um rapazinho
ruivo de três anos. Ela está sentada num banco, à espera da sua carta de
condução. Ele usa o corpo dela simultaneamente como cama, almofada e
ginásio de atividades. Está constantemente a empurrar-lhe o corpo com o
seu, com a cabeça, com os braços. Quando estende as mãos e brinca com
os dedos dela, ela toca-lhe na mão, deixando-o encantado, com as suas
longas unhas. Ela aceita-o por completo, sem nunca lhe ralhar para que
fique quieto, se sente ou pare de fazer o que está a fazer. Há uma certa
doçura e paz nesta cena. A mulher tem sotaque e eu pergunto-me onde terá
crescido, como terá sido a sua infância e o que a terá influenciado para
que seja tão paciente, tão aceitadora, tão à vontade com o toque.
Não vejo cenas como esta com frequência. Em vez disso, não é invulgar
ver pais a admoestarem os filhos para que se “comportem” e a zangarem-
se com eles quando se comportam como as crianças de dois, três, quatro
ou cinco anos que são. Tenho visto crianças pequenas a seguirem um dos
pais, a chorar, sem que o pai recorra à solução simples de pegar na
criança. Não é frequente ver adultos a responderem afetuosamente e com
tolerância à energia e exuberância dos filhos.
Parece que nos tornamos cada vez mais uma sociedade privada do tato e
do contacto físico. É raro ver pessoas a serem fisicamente afetuosas,
amigos a darem as mãos ou a passarem os braços à volta uns dos outros,
ou amantes a beijar-se. Ter alguma noção da importância deste tipo
essencial de alimentação e comunicação pode motivar-nos a encontrar
formas de estarmos mais ligados ao corpo e mais em contacto nos
momentos que passamos com os nossos filhos.
O tato acontece sempre num limite e é importante preservar essa mesma
fronteira na consciência. Caso contrário, podemos tocar nos nossos filhos
de uma forma inconsciente e, ao fazê-lo, arriscamo-nos a ser insensíveis
ou desrespeitosos. Os limites entre nós mudam de momento para
momento. Não podem ser presumidos ou dados por garantidos. Cada
momento é novo e diferente. A criança que grita “Não!” quando lhe
perguntamos se podemos dar-lhe um beijo de boas noites, noutra altura
quererá ser reconfortada com um abraço. Quando estamos mais
sintonizados com os nossos filhos, a par da sua energia, do seu estado
emocional, podemos pressentir melhor quando precisam de um toque
afetuoso ou de que lhes peguemos e quando precisam de ser deixados a
sós.
Por vezes, poderá ser útil perguntarmo-nos a quem serve o tato para
refrearmos os nossos próprios impulsos inconscientes ou invasivos. Eu
(mkz) tenho memórias vívidas de familiares a beliscarem-me as
bochechas e a beijarem-me. Não faziam ideia de como eu poderia sentir
aquilo. Com que frequência não se pedem abraços e beijos a crianças para
suprir a necessidade de carinho e afeto do adulto, sem ter em conta os
sentimentos ou os limites da criança?
>>>
Eu (mkz) sinto-me comovida e algo estupefacta e grata nos raros
momentos em que os meus filhos se aproximam de mim e me abraçam.
Surpreende-me não tanto que me abracem, mas a forma como o fazem.
Abraçam-me com um toque lento, descontraído, tranquilo e afetuoso.
Quando me abraçam, aprecio o cuidado que os meus filhos me
proporcionam tão naturalmente nesses momentos. É como um círculo de
amor que se completa.
Primeiros Passos
Cada idade e etapa, cada filho e cada momento proporcionam muitas
oportunidades para explorarmos ressonâncias empáticas enquanto temos
presente que as necessidades emocionais e de desenvolvimento de uma
criança estão sempre a mudar. Quando os nossos bebés começam a dar os
primeiros passos, o desafio consiste em permanecermos sintonizados da
melhor maneira que pudermos, dando-lhes alguma liberdade para
explorarem dentro de uma estrutura de limites e expetativas claras, que
proporcionem uma sensação de contenção e segurança. Temos esta
oportunidade repetidas vezes, porque eles são tremendamente ativos e os
seus estados de espírito podem mudar muito rapidamente. Num momento
poderão estar de uma maneira. No seguinte, o cenário poderá ser
completamente diferente. As crianças pequenas ainda não têm a
linguagem ou as capacidades motoras para fazerem todas as coisas que
querem fazer, pelo que podem frustrar-se com facilidade. Se pressentirmos
quando estas mudanças e transições estão a surgir, é mais provável que
consigamos arranjar estratégias para as ajudar a ultrapassar esses
momentos.
Isto requer estarmos cientes também dos nossos sentimentos, que são
capazes de mudar tão depressa quanto os do nosso filho. É demasiado
fácil ajustarmo-nos ao estado de espírito do nosso filho, como quando
reagimos com frustração à frustração que ele demonstra. Em vez de nos
contrairmos em tais momentos e endurecermos automaticamente em
resposta, talvez possamos colocar-nos o desafio de nos determos nesses
momentos e reagir com maior compreensão e uma presença mais amável e
mais recetiva.
Certo dia, eu (jkz) observei um jovem pai num restaurante, a tentar
jantar com a filha de três anos. A comida tinha demorado demasiado
tempo a chegar à mesa. Quando chegou, a criança já não conseguia ficar
quieta. Estava frustrada, cansada, exigente. O pai simplesmente não
conseguia comer. A menina não parava. Teria sido tão fácil que ele
adotasse uma postura rígida naquele momento. Que ficasse ressentido
com ela ou zangado por a comida ter demorado tanto, ou por não poder
comê-la apesar de estar com fome e, provavelmente, também cansado.
Mas manteve a compostura e percebeu o que tinha de acontecer. Depois
de uma ou duas tentativas de levar uma garfada à boca, pediu que lhe
guardassem a comida para levar, pagou a conta com a filha aos ombros e a
puxar-lhe o cabelo e foi-se embora. Sorri-lhe quando passou por nós e
trocámos breves impressões acerca das dificuldades de se ser pai,
enquanto eu continuava ali sentado com as minhas filhas, já
suficientemente crescidas para esperarem pacientemente que a comida
chegasse, recordando com nostalgia a era em que a minha própria mente
estava sintonizada na estação da “mente de criança pequena” e em que as
minhas escolhas, a cada momento, dependiam das suas necessidades tão
fortes e que se alteravam tão depressa. Muitas vezes, quando o vivemos,
esse período parece que nunca acabará. Talvez ajude recordarmo-nos que
terminará demasiado depressa e que rendermo-nos ao que é necessário
poderá apresentar dádivas inesperadas.
Cada idade e cada fase têm os seus próprios dramas particulares.
Pareceu-me animador observar este pai reagir tão hábil e generosamente
com a sua filha.
>>>
Eu (jkz) costumava sair cedo do trabalho sempre que podia e levar os
meus filhos pequenos em “saídas” individuais. Levava-os ao jardim
infantil, a andar de trenó, a passear junto à margem do rio ou ao centro da
cidade, só para observar gente, carros e a atividade do mundo. Ao fim de
semana, era engraçado levá-los a feiras, quintas e lagos com os amigos.
Qualquer ocasião com uma criança pequena, mesmo durante apenas uns
minutos seguidos de brincadeira, a lutar pelo chão, a fazer carrinhos ou
uma bola rolar para trás e para a frente, é uma oportunidade para criar
laços.
Quando as nossas crianças eram pequenas, adorávamos brincar ao
“contorcer”, uma brincadeira que eu e o meu filho um dia inventámos
espontaneamente. Deitávamo-nos no chão e eu passava os braços à volta
da cintura dele. Depois ele tentava escapar-se, contorcendo o corpo todo.
Ajustando a pressão dos braços, eu podia segurá-lo com mais ou menos
pressão, oferecendo-lhe apenas a resistência necessária para que ele
tivesse de se esforçar para superar obstáculos significativos e engendrar
várias estratégias quanto ao que precisaria de fazer para se libertar.
Parecia-me que ficarem restringidos dessa maneira divertida e terem de
usar toda a sua energia e astúcia para finalmente se libertarem era uma
excelente metáfora para outros desafios da vida que os meus filhos, mais
tarde ou mais cedo, teriam de enfrentar. Esta luta-livre, sobretudo não-
verbal, aproximava-nos de várias maneiras, enquanto respirávamos juntos,
contorcendo-nos e debatendo-nos uns contra os outros, jogando à beira da
fuga e da vitória e desatando a rir de tempos a tempos. Sintonizarmo-nos
fisicamente, através deste tipo de jogo, ajudava-nos depois a cair em
momentos tranquilos que nos pareciam plenos de ressonância e encanto.
Por vezes, eles acompanhavam-me nas manhãs de domingo a praticar
ioga no chão da sala de estar. Por vezes, faziam de conta que eram o
“professor de ioga” e instruíam-me a efetuar várias posturas, que
executávamos lado a lado. Também fazíamos “ioga para dois” em que eles
se baloiçavam comigo, enquanto eu transformava o corpo numa cadeira de
baloiço, ou trepavam para cima de mim, enquanto eu me apoiava nos
ombros, ou voavam no ar como um pássaro, equilibrados na horizontal
sobre os meus pés estando eu deitado de costas ou passando por baixo de
mim quando eu fazia a ponte. Era uma diversão sem fim.
À medida que foram crescendo, por vezes, tornava-se mais difícil
encontrar formas de partilharmos momentos de atividade concentrada e a
imobilidade que dela provém. Ainda assim, arranjávamos maneiras,
brincando à apanhada, correndo juntos ou até, por vezes, dançando. As
ressonâncias permanecem; as formas mudam.
Tempo
Os pais facilmente podem começar a sentir que nunca há tempo suficiente.
Vivemos sob a sua pressão e agimos levados pela falta dele. Certa manhã,
dei por mim (jkz) a dizer a uma das minhas filhas, que na altura tinha uns
quatro anos, enquanto ela escolhia qual de três vestidos havia de usar
naquele dia: “Despacha-te. Não tenho tempo.” Mas que mensagem.
Há coisas que podemos fazer para nos darmos mais tempo e para
aplicarmos da melhor maneira aquele que temos. Podemos acordar
suficientemente cedo, bem como aos nossos filhos, para termos tempo de
manhã sem correrias. Por vezes, pode ser útil que eles escolham a roupa
na noite anterior. Podemos contribuir para que a nossa própria urgência
não influa em tudo o que fazemos. Podemos fazer isto recordando-nos de
nos sintonizarmos com a nossa respiração e de vermos que os nossos
medos acerca do futuro são apenas pensamentos, enquanto o presente – o
que está a acontecer agora – é uma ocasião preciosa, que não deve ser
atropelada. A qualidade intemporal do momento presente é capturada nas
pequenas coisas, como recordarmo-nos de estabelecer contacto visual
quando nos despedimos ou despender um ou outro momento para um
abraço. É claro que o segredo é não fazer qualquer uma destas coisas de
forma automática por serem “boas” de fazer, permitindo antes que surjam
da nossa presença e abertura.
Também ajuda escutarmos o tom da nossa voz quando nos apercebemos
de que vamos atrasar-nos. Como experiência, podemos tentar baixar a voz
e descer mais profundamente para o agora, para o nosso corpo, para esta
respiração.
Outra coisa que poderemos fazer é tentar não preencher demasiado os
horários dos nossos filhos e estar cientes dos nossos impulsos para o fazer.
Tempo de descontração abranda o tempo e dá espaço a brincadeiras
imaginativas, tanto a sós como com amigos. Os nossos filhos precisam de
tempo para se entediarem e para descobrirem como entrar e passar pelo
tédio, por vezes com a nossa orientação, outras vezes sem ela.
Se não estivermos cientes dos efeitos das pressões do tempo na família,
corremos o risco de vivermos vidas com cada vez mais ação acelerada e
incessante e de passar esta forma de viver aos nossos filhos. A tendência
no mundo atual, com todos os aparelhos digitais que são tão
omnipresentes e que estão continuamente a tirar-nos do momento
presente, interrompendo-nos, distraindo-nos ou oferecendo-nos um
“momento melhor” é descrita por uma antiga investigadora da Microsoft,
Linda Stone, como um problema de “atenção parcial contínua”. Perante
esta doença social de autodistração perpétua, a imobilidade e a presença
precisam de ser cultivadas e trazidas para o lar, de forma a restaurar o
equilíbrio e acalentar os aspetos do ser em que se toca melhor através da
não ação.
Muitas pessoas que completaram o programa MBSR dizem que acordar
cedo e meditar em imobilidade lhes marca a tónica do dia inteiro e que
vale bem mais do que a mesma quantidade de tempo a dormir mais um
pouco. Conseguem estar mais calmas e abordar com maior
intencionalidade o que têm a fazer nesse dia e aquilo com que realmente
se preocupam. Também observam que outras pessoas da família sentem os
efeitos da sua meditação. Os níveis de stresse da família inteira podem ser
menores quando um dos seus membros pratica a atenção plena.
Por vezes, decisões de optar por mais tempo em conjunto; em vez de
obter mais dinheiro, podem ser extremamente salutares para uma família.
Nem sempre o podemos fazer, mas por vezes é mais provável do que a
nossa mente nos leva a pensar. Caso contrário, podemos acabar, irónica e
tragicamente, a perder aquilo que poderá ser o mais importante nas nossas
vidas, enquanto trabalhamos para “ganhar a vida”, sem examinar o que
“ganharemos” ao certo.
Ridículo o tempo triste e vão
Que se estende à frente e atrás
T.S. ELIOT, “Burnt Norton”, Quatro Quartetos
Presença
“Mãe, não estás a ouvir!”
Apesar da minha presença aparente, fui apanhada com a mente noutro
lugar. Regresso por um momento, para logo em seguida me perder de
novo em explorações mentais criativas ou pensamentos obsessivos, na
maioria irrelevantes, acerca do passado ou do futuro. Isto acontece-nos a
todos e acontece muito. O mindfulness é, fundamentalmente, cultivar uma
presença desperta perante a nossa mente que vagueia e os nossos impulsos
aparentemente intermináveis para nos distrairmos. É difícil comparecer
por completo, mesmo que seja por um momento apenas, mesmo que seja
por nós. Ao cultivarmos atenção plena na nossa parentalidade, recordamo-
nos intencionalmente de estarmos mais conscientes e sintonizados, em vez
de alheados.
É claro que temos imensas oportunidade de praticar este reparar no
outro, quando nos perdemos em pensamentos e nos distraímos de uma ou
de outra maneira. Isso faz parte do ser humano. Vai sempre haver coisas
em que queremos ou precisamos de pensar. A questão que se coloca é: será
este o momento ou a altura para isso? Poderemos ter consciência de que
estamos a ser desviados do momento presente, e daquilo que, em
particular, está a desviar-nos? Poderemos ver o que é possível que
percamos por estarmos tão embrenhados nos nossos pensamentos? A
atenção dá-nos uma escolha e uma oportunidade para regressarmos.
Por exemplo, quando um filho entra, podemos lembrar-nos de parar
intencionalmente por um momento para o ver realmente e reconhecer a
sua presença? Fazemos isso com conhecidos, mas muitas vezes não com
os que nos são mais próximos. Também não tem de ser sempre por
palavras. O silêncio pode ser uma manifestação profunda da presença
quando lhe damos corpo.
Ao mesmo tempo, é importante não interpretar o “estar presente” como
querendo dizer que os pais devam prestar atenção constante aos filhos.
Isto, claro está, não é nem possível, nem desejável. É essencial que os
nossos filhos tenham as suas próprias experiências. Precisam de sentir da
nossa parte que estamos confortáveis com a sua autonomia intrínseca. A
parentalidade com atenção plena e o cultivar da presença não significam
que devamos pairar sempre sobre os filhos, comentando continuamente o
que estão a fazer, encorajando-os, elogiando-os ou intervindo e
resgatando-os de desafios apropriados à sua idade. É problemático para
eles e para nós se nos perdermos, tornando-nos demasiado concentrados
nos filhos.
Não há dúvida de que a qualidade da nossa presença com os filhos tem
um efeito tremendo na qualidade da nossa relação com eles. Cultivar
presença requer um esforço intencional, regressando uma e outra vez a
este momento, atentando ao que é mais premente e importante, uma
vontade de sermos autênticos, vigilantes e sintonizados.
Ser autêntico significa que estamos a ser genuínos. Que não nos
escondemos ou fingimos. Que não discriminamos certos sentimentos que
surjam em nós ou nos nossos filhos. Em vez disso, com consciência,
podemos reconhecer quaisquer que sejam os sentimentos que temos,
mesmo que sejam desconfortáveis para nós, e estender-lhes
metaforicamente um tapete de boas-vindas. No entanto, se tivermos sido
educados para ocultarmos ou dissimularmos os sentimentos para nos
sentirmos seguros, ser autêntico pode ser extremamente assustador e
difícil. Pode tratar-se de território novo e desconhecido.
Comunicamos imenso através da nossa postura. Quando nos perdemos
em pensamentos, sobretudo quando estamos preocupados, ansiosos ou
stressados, tudo isso se reflete no nosso corpo. Os filhos pressentem
quando estamos tensos e contraídos. Ajuda se conseguirmos recordar-nos
de voltar ao momento presente e estar cientes do que pressentimos e
sentimos, por outra palavras, enraizarmos a experiência na consciência do
corpo. A nossa respiração pode ser uma aliada fiável para isto.
Concentrarmo-nos intencionalmente nas sensações da respiração relaxa o
corpo e permite-nos acalmar e ganhar um pouco mais de abertura perante
o que quer que esteja a acontecer. Quanto mais aprendermos a habitar a
própria consciência, mais conseguimos dar corpo à presença autêntica.
Desta forma, tornamo-nos mais disponíveis para nós e para aqueles que
amamos.
Até mesmo ser um pouco mais consciente pode surtir uma grande
diferença na forma como os nossos filhos nos vivenciam e na qualidade da
nossa própria experiência. A presença desenvolve-se a partir da prática de
regressarmos a nós mesmos, uma e outra vez.
João e o Pé de Feijão
As crianças querem atenção e dedicação total dos adultos em alturas-
chave; noutras alturas, querem e precisam de ser deixadas por si sós ou
com os amigos.
Para nós, adultos, pode ser difícil darmos toda a nossa atenção ao que
quer que seja. As mentes adultas, por norma, tendem a estar cheias de
impulsos e pensamentos discrepantes que competem constantemente pela
nossa atenção. Temos múltiplas responsabilidades. Andamos muito
ocupados. Um filho poderá querer que brinquemos ou lhe leiamos e nós
poderemos fazê-lo, mas talvez apenas com uma fração da nossa mente, o
que eles detetam facilmente. Muitas vezes, dei por mim (jkz) a ler a um
dos meus filhos, mas a pensar no telefonema que tinha de fazer assim que
ele adormecesse. Ou a ler um livro e aperceber-me de que estava a
avançar sem fazer ideia do que tratava a história. Estava a entreter
universos de pensamentos entre cada linha, se não entre cada palavra.
Uma vez, em que estava tão cansado que mal conseguia manter os olhos
abertos, pus-me a contar uma história acerca de um leão à minha filha,
improvisando à medida que avançava. Mas, cinco minutos depois, na
minha exaustão, o leão tinha-se transformado num coelho. Ela reparou.
Rimo-nos bem acerca disso.
Quando o nosso filho tinha uns quatro anos, “João e o Pé de Feijão” era
uma das suas histórias preferidas. Não me deixava ler-lha apenas uma ou
duas vezes e depois passar para outra história. Queria ouvi-la uma vez,
outra e outra de seguida. Eu também adorava a história, mas custava-me
lê-la pela sétima ou oitava vez. Depois apercebi-me de que, de cada vez,
ele a ouvia como se fosse a primeira. O tema profundo de o leite se acabar
e de terem de vender a vaca, a tensão de se esconder do gigante no castelo
deste e observar a sua ganância, o desafio de roubar o ouro, a galinha
mágica e a harpa que cantava, a emoção de ser perseguido pelo pé de
feijão abaixo e de ir buscar o machado à mãe, mesmo a tempo de o cortar
e destruir o gigante – tudo isto era real para ele de cada vez que o
escutava. O seu corpo retesava-se quando o gigante aparecia e ele sorria,
maravilhado, de cada vez que João lhe passava a perna.
Ver a história através dos olhos do meu filho ensinou-me que também
eu poderia estar completamente presente de cada vez que a lesse, embora
parte do meu cérebro de adulto resistisse com todas as forças. Ao libertar-
me disso, a história passou a ser como uma música, uma repetição da
essência. É a mesma de cada vez que é contada ou lida, mas também
nunca é a mesma. Aperceber-me disto expandiu-me o mundo. “João e o Pé
de Feijão” tornou-se parte da minha prática de meditação durante bastante
tempo. Ensinou-me a estar presente quando eu já não queria estar
presente. Mais uma vez, o filho torna-se o professor do pai. Fe Fi Fó
Fum... lá vamos nós.
Hora de Dormir
É útil criar espaço na casa para momentos tranquilos, momentos em que
“nada” acontece. Nessas alturas, com frequência, mesmo antes de as
crianças irem para a cama, ou quando já estão na cama à espera do sono,
surtos de crescimento, descobertas, criatividade, partilhas e ligações
podem emergir. O mundo detém-se. Em silêncio, a minha (mkz) filha leva
a mão ao bloco de desenhos, senta-se tranquilamente, concentrada e a
criar, completamente absorta no seu trabalho. Noutra noite, poderei ler-lhe
uma história simples que lhe cative a imaginação, fitando-lhe os olhos nos
momentos em que a história nos comova ou provoque um sorriso. Por
vezes, limito-me a fazer-lhe companhia e, passado algum tempo, ela pode
referir algo que tenha acontecido na escola ou algo que esteja a incomodá-
la. No silêncio da noite, as coisas têm uma oportunidade de vir à tona.
Quando os nossos filhos eram pequenos, cantávamos-lhes, contávamos-
lhes histórias ou líamos-lhes. Em adolescentes, alguns deles continuavam
a gostar de que lhes lêssemos ocasionalmente. Também ouviam música
antes de adormecerem. À hora de dormir, muitas correntes diferentes do
dia se unem.
Cada filho é diferente. Algumas crianças adormecem facilmente. Para
outras, a transição é muito difícil. Por vezes, quando os nossos filhos eram
pequenos, fazíamos todos os possíveis para que a hora de dormir fosse um
final pacífico do dia. Mas também acontecia que, sobretudo quando nós
mesmos estávamos cansados, independentemente do que fizéssemos, a
hora de dormir fosse tudo menos pacífica.
Por mais que ambos nos esforçássemos por proteger aquele momento,
muitas coisas se interpunham. Trabalho a fazer, telefonemas para marcar
coisas para o dia seguinte, mais do que um filho a precisar de nós ou
filhos de idades diferentes com necessidades diferentes, com frequência
puxando-nos em direções opostas. As necessidades dos filhos mais velhos
podem ser descuradas, ficando em segundo plano em relação às dos mais
novos. É um contínuo ato de malabarismo. Por vezes, uma hora de deitar
tranquila perde-se no meio de tudo isto. Contudo, nas noites em que
criávamos o espaço para estarmos completamente presentes e isso de
alguma forma resultava, partilhando a preocupação de um filho ou
ajudando-o a adormecer, éramos recordados de quão precioso pode ser
este tempo.
>>>
Agora, junto ao pequeno corpo do meu filho adormecido
o rio oculto no meu peito flui com o seu
e acerto o ritmo do meu discurso ao da sua respiração
unindo a minha noite à sua, cantando a sua canção noturna
como se estas águas subterrâneas
fossem rios secretos a passar pela alma
revelando a vida tácita
que é a corrente a que ele se juntará ao crescer
em horas silenciosas quando a sua certeza
de si mesmo recuar. Então encontrará
o repouso entre as notas sólidas
que faz a canção valer a pena.
DAVID WHITE, de “Looking Back at Night”, Where Many Rivers
Meet
Gathas e Bênçãos
Por vezes, pequenos poemas ou aforismos são usados em retiros
espirituais, como parte de uma prática diária de mindfulness, para nos
recordarmos do que já sabemos, mas tão facilmente esquecemos ou damos
por garantido. Estes poemas ou aforismos, na tradição budista, chamam-se
gathas. Há gathas para acordar de manhã, que se dizem à refeição, quando
se toma chá, para nos lembrarmos de apreciar esta inspiração e esta
expiração, para praticamente todas as ocasiões do quotidiano, tudo para
que possamos manter-nos em contacto com o que é real e não nos
perdermos em pensamento.
Se forem repetidos distraidamente, por rotina e hábito, estes versos não
têm praticamente valor algum. Porém, se os sustivermos, como pássaros
preciosos, os convidarmos a visitar-nos e os usarmos criteriosamente,
podem ter um poder enorme. São muito simples, meros lembretes, mas
têm uma energia direcional maravilhosa. Curam e apaziguam. Também
apontam para o que precisamos de nos lembrar. Os nossos filhos
aprenderam este pequeno gatha na escola:
O sol está no meu coração
Aquece-me com o seu poder
E desperta a vida e o amor
No pássaro
E no animal
E na flor.
Toda a turma o recitava em voz alta no início de cada dia no infantário e
nos primeiros anos da escola primária. As palavras eram acompanhadas
por uma série de movimentos com os braços que pintavam um quadro
fluido: faziam um círculo abrangente sobre a cabeça, para representar o
sol; depois as mãos descreviam linhas que iam desde o cimo da cabeça ao
coração, de palmas aberta para o céu; os braços estendiam-se com calor;
as mãos voltavam então ao peito, fechando-se uma na outra e, por fim,
abrindo-se com a vida de pássaro e animal, completando o movimento
quando os dedos e as palmas das mãos formavam a corola com pétalas de
uma flor.
Agradava-nos muito que os nossos filhos visitassem este pequeno gatha
do coração com regularidade. Parecia-nos que era um bom alimento para
as suas mentes e corpos e tão importante, se não mais, como qualquer
outra coisa que pudessem aprender. Parecia-nos que a repetição diária
destes versos protegia e gerava algo precioso neles e que os recordava
todos os dias do poder e da preciosidade da vida, bem como da energia
central fortificante do coração, a que chamamos amor. Uma pequena
meditação matinal para a turma, para despertar o coração e recordar as
crianças da interligação... sol, coração, vida, poder, pássaro, animal, flor,
crianças, amor, tudo um todo inseparável.
Aprendemos muitos gathas do género com os nossos filhos. Antes do
almoço, na escola, diziam um que se tornou a nossa forma de passarmos
da azáfama do dia para um momento de ligação tácita, enquanto nos
sentávamos para jantar em família, dando as mãos à volta da mesa:
Terra que nos dás de comer,
Sol que o fazes amadurecer,
Querida Terra, querido Sol
Por vocês vivemos,
E por isso com afeto
Vos agradecemos.
Depois guardávamos silêncio por um momento, fitávamo-nos uns aos
outros, olhávamos para a nossa comida, para toda a mesa posta para jantar,
e dizíamos: “Abençoada seja a nossa refeição e abençoada seja a nossa
família.” Se houvesse convidados presentes, poderíamos dizer:
“Abençoados sejam os nossos convidados.”
Nunca tínhamos dito bênçãos ou dado as graças nas nossas famílias
enquanto crescíamos e, por vezes, sentíamo-nos desconfortáveis ao
vermo-nos em situações em que dar as graças era a regra da casa. Mas, à
medida que fomos ficando mais velhos, ambos compreendemos cada vez
mais a importância de abençoar intencional e conscientemente o que é
salutar e bom na vida para que não passe despercebido e por celebrar.
Talvez seja por isso que achámos que estes gathas de atenção e gratidão
eram tão agradáveis quando os nossos filhos os trouxeram para casa e no-
los ensinaram. Eram bênçãos de mindfulness. Pareciam tão inclusivos, tão
apreciadores, tão abrangentes. Gostamos de pensar que, durante todos os
anos em que dissemos estes pequenos versos e dedicámos o tempo para
atendermos aos sentimentos que evocavam, que eram como sementes a
serem regadas nos nossos corações, que continuam a florir na nossa
família e nos nossos filhos, onde quer que vão. É bom saber que o sol está
no nosso coração.
E estes gathas talvez tenham também plantado sementes nos nossos
filhos para amarem aquilo que está por trás do véu da aparência, aquilo
que grandes poetas sabem e celebram de forma tão desconcertante com
palavras...
Uma doçura tão grande enche o peito
Que temos de rir e temos de cantar
Somos abençoados por tudo
E tudo o que vemos nos abençoa
WILLIAM BUTLER YEATS, do poema “Um Diálogo do Eu e da
Alma”
SÉTIMA PARTE

Escolhas
Momentos de Cura
A maior parte do que aprendi na minha vida (mkz), aprendi por ser mãe.
Os meus filhos estão continuamente a ensinar-me o que preciso de saber,
quando preciso de o saber. Ao longo dos anos, tenho tido de me recordar
de ver as coisas a partir da perspetiva de cada um deles e, ao fazê-lo,
muitas vezes os meus olhos abriram-se para velhos padrões de
relacionamento da minha própria infância, que eram limitativos ou
danosos. O que me tem custado mais ver são as formas como, por vezes,
compenso excessivamente coisas que me faltaram na infância, indo então
para o outro extremo. As decisões que tomamos ao criar os filhos, muitas
vezes, são influenciadas pelas nossas experiências ao crescermos no seio
da dinâmica particular da nossa família original. Pode ser útil recordarmo-
nos de que há diferenças significativas entre a dinâmica familiar que o
nosso filho experiencia e aquela com que crescemos. Com alguma
consciência de que o contexto no qual tudo sucede é diferente, as nossas
escolhas enquanto pais podem ser mais equilibradas e adequadas ao que
realmente se requer no presente.
De cada vez que somos capazes de ver e compreender algo acerca da
nossa própria experiência na infância, isso pode servir-nos de guia para a
forma como criamos os filhos e libertar-nos um pouco das garras do
passado. Quando pressentimos o ressurgimento de um padrão antigo e
destrutivo, quer seja no tom da nossa voz (por exemplo, menosprezando
ou minimizando os sentimentos de um filho), numa expressão facial
(desdém ou desprezo) ou nas nossas palavras (por exemplo, “Mas o que é
que tu tens?” ou chamar-lhes algum nome que os magoe), temos uma
oportunidade preciosa de fazer uma escolha. Podemos manter o nosso
comportamento automático e, por vezes, cruel, que em certa medida talvez
nos pareça familiar e confortável, por termos sido tratados assim enquanto
crescíamos, ou podemos parar nesse mesmo momento e tentar ver com
mais clareza, para lá das nossas próprias reações intensas. Podemos tentar,
apesar da força destes hábitos mentais emocionais altamente
condicionados, ver com novos olhos e perguntar: “O que estou a fazer
neste momento? Porque estou a reagir com tanta intensidade a esta
situação? Onde é que isto me levará se eu continuar a ir nesta direção? O
que é que o meu filho precisa realmente de mim neste instante? Que
escolhas tenho ao meu dispor?”
Obviamente, é pedir demasiado a nós mesmos que, em tais momentos,
consideremos a possibilidade de abrirmos o coração ali mesmo –
sobretudo se já estivermos a ser levados pela inércia interior de tudo
aquilo e pelos hábitos profundamente enraizados de uma vida. Será
possível determo-nos nesses momentos e preservarmos o momento
presente na consciência, tal como é, e observarmos os nossos impulsos
sem termos de os seguir automaticamente?
À medida que os nossos filhos atravessam diferentes fases de
desenvolvimento, os nossos próprios demónios de períodos similares nas
nossas vidas podem regressar para nos atormentar em situações
particulares. Podem mostrar-se com um sobressalto súbito de
reconhecimento, ou andar simplesmente a flutuar à nossa volta, como uma
nuvem no limiar da nossa consciência. Certas situações familiares podem
desencadear reações intensas da nossa parte, que têm mais que ver
connosco do que com os nossos filhos. A reação pode ser uma resposta
ríspida a algo que um filho faça ou desligar a nossa atenção em certo
momentos, ou sentimentos de medo, ansiedade ou desconforto.
Quando um desses sentimentos perturbantes é desencadeado, pode ser
útil fazer uma pausa voltada para dentro, mesmo que seja só por um
momento, e escutá-lo atentamente. Quanto mais incómodo for, mais difícil
poderá ser concentrarmo-nos nele. Uma pista em relação a quão
inquietante é realmente é a rapidez com que o sentimento é afastado. Ao
início, tais momentos poderão ser muito difíceis de capturar na
consciência, sobretudo se, em crianças, na nossa família não era dado
muito valor aos nossos sentimentos. Poderemos estar habituados a varrê-
los para debaixo do tapete, como se costuma dizer.
Se conseguirmos recuperar um sentimento desses para a consciência,
torna-se uma pista que aponta para algo mais profundo. Poderemos só nos
aperceber do seu significado mais tarde, talvez depois de experiências
repetidas que provoquem sentimentos similares. Se levarmos o tempo
necessário para parar, para respirar, localizar e sentir a emoção e a tensão
corporal que a acompanha, ganhamos ao mesmo tempo uma oportunidade
de reconhecermos que, de certa forma, estamos submetidos a um velho
feitiço e talvez de despertarmos dele com uma reação mais consciente e
imaginativa.
Nos momentos em que conseguimos deter-nos e mudar de rumo,
quando escolhemos agir de forma diferente, mais alinhada com aquilo que
o nosso filho possa precisar de nós, uma transformação e uma cura podem
ocorrer dentro de nós. Torna-se, pois, um momento de cura.
Quando optamos por honrar as necessidades dos nossos filhos desta
forma, há também um honrar potencial das necessidades por concretizar
da nossa própria infância. Quando optamos por ser amáveis em vez de
cruéis, podemos experienciar a amabilidade. Esta torna-se real para nós.
Se alguma vez nos bateram quando éramos crianças, poderá haver uma
sensação de profunda satisfação se formos capazes de escolher uma forma
melhor de resolver o conflito quando o impulso da agressão surge em nós.
Se estivemos desprotegidos quando éramos crianças, ao cuidarmos e
protegermos os nossos filhos poderemos dar por nós a sentir-nos também
mais seguros e a salvo.
Em qualquer momento, podemos optar por pôr de parte a armadura
emocional que talvez nos tenha sido útil no passado e dar aos nossos
filhos a dádiva de um pai ou mãe mais aberto, compassivo e
compreensivo. Nesse processo, temos uma ideia de como poderia ter sido
na nossa própria infância e, mais importante ainda, podemos partilhar a
liberdade e ligação intrínsecas deste momento não só com o nosso filho,
mas também connosco. Ao escolhermos romper com um ciclo negativo, a
magia de um amor que é incondicional também nos toca. De cada vez que
somos capazes de fazer isto, damos mais um passo rumo à completude e à
nossa própria libertação.
>>>
Uma jovem mãe relatou a seguinte história:
Lembro-me de um momento vívido de clareza e reconhecimento, após
o nascimento do meu segundo filho. Os meus pais vieram visitar-nos
e a minha filha de três anos estava a passar um mau bocado e a fazer
birra porque o bebé era o centro das atenções. Lembro-me da
reprovação dos meus pais, que a repreenderam e admoestaram a
portar-se melhor, e nesse momento percebi claramente que, desde que
os meus filhos – ou eu – estivéssemos a “comportarmo-nos”, éramos
maravilhosos a seus olhos; mas, assim que nos desviávamos daquilo
que consideravam atitudes “aceitáveis” e expressávamos quaisquer
emoções “negativas”, éramos julgados. Ao dar-me conta disto,
defendi-a na presença deles. Esse foi um momento de cura para mim e
para ela. Fui empática, mantive-me do lado dela. Não a traí. Manter
aparências e fazer o que parece bem não era tão importante como o
bem-estar da minha filha naquele momento.
Talvez recorde momentos da infância em que os seus sentimentos foram
desprezados, desatendidos, ridicularizados ou menosprezados. Cada
interação, por si só, poderá parecer trivial e insignificante (“Qual é o
problema?” “Porque és tão sensível?”). Mas não são insignificantes e,
quando se repetem uma e outra vez, podem ter um efeito nocivo na
confiança que uma criança deposita em si mesma e nos outros. Trazer
consciência para as nossas próprias tendências para agir ou reagir de
certas maneiras oferece-nos a possibilidade de romper com o padrão
prejudicial. Um momento desses ocorreu quando uma mãe estava a levar o
filho de nove anos e o amigo até casa depois da escola, para os meninos
poderem brincar juntos durante algum tempo. No carro, o amigo não
parava de falar com o seu filho. Este estava invulgarmente calado e, de
vez em quando, respondia num tom resmungão e taciturno. Ela ralhou-lhe
por estar a ser antipático e recordou-o de que tinha muita sorte por o
amigo ir brincar com ele para sua casa. Ao fim de cerca de uma hora a
brincarem juntos, o filho perdeu as estribeiras por completo, a gritar,
espernear e chorar, e ela sentiu-se exasperada e zangada com ele. Só mais
tarde, ao pensar no que tinha acontecido, é que teve noção de que ser bem-
educado e cordial eram questões de suprema importância na sua própria
família original. Ao reagir à má-disposição do filho dizendo-lhe que tinha
muita sorte, basicamente tinha-lhe dito que enterrasse os sentimentos e
fizesse o amigo sentir-se bem-vindo. Cuidara dos sentimentos do amigo e
dos seus, mas não dos dele.
Apercebeu-se também de que poderia ter feito várias coisas que teriam
tido em conta o estado emocional do filho. Poderia ter referido o que
estava a ver de uma forma factual, reconhecendo como ele parecia estar a
sentir-se naquele momento, sugerindo que ambos passassem algum tempo
em silêncio no carro e deixar que a sua consciência da situação ditasse as
escolhas que daria aos rapazes quando chegassem a casa. Em vez disso,
viu que tinha adotado um modo automático de comportamento que repetia
um padrão antigo e familiar de negar sentimentos quando estes não eram
“positivos”, cordiais e amistosos.
Noutra altura, a mesma mãe tinha levado o filho a visitar a sua própria
mãe, que não o tinha visto mais do que duas ou três vezes na vida. A avó
decidiu convidar uma das amigas na mesma altura e ignorar o neto,
entretida numa conversa animada com a amiga. Entretanto, apanhado num
ambiente que pouco lhe interessava, o menino ficou entediado e irrequieto
e começou a correr pela sala e a ir contra os móveis. Envergonhada pela
sua incapacidade de controlar o comportamento desregrado do filho, a
mãe, zangada, levou-o para casa. Estava furiosa e admoestou-o por se
portar mal e não lhe dar ouvidos quando ela o mandou parar. Ele fitou-a
com um olhar implorativo e exclamou: “Mas, mãe, a avó nem sequer
falou comigo!”
De repente, um véu caiu-lhe dos olhos e ela viu que tinha colocado o
filho na mesma situação em que sempre fora colocada em criança. Por
mais que a mãe ignorasse os seus sentimentos e necessidades, era sempre
esperado de si que fosse educada, amistosa e cuidadosa. Agora, sendo ela
própria mãe, era capaz de ver que a sua não fizera qualquer esforço para
se aproximar do neto, para o interessar de alguma maneira ou pensar no
que seria divertido para ele. Em vez de conseguir zangar-se ou irritar-se
com a mãe, ela zangara-se com o filho e repetira a cena familiar da sua
própria infância. O filho sabia que a avó estava a ignorá-lo, mas ela não o
vira até ele lho indicar: mais um exemplo de como aprendemos com os
nossos filhos.
Ao pensar em tudo isto mais tarde, a mãe disse que sentia que seria
irrealista esperar que a sua mãe mudasse, mas que, da próxima vez que a
visitassem, ela levaria algumas coisas com que o filho se entretivesse,
sugeriria um encontro num parque ou insistiria para que a mãe fosse a sua
casa. Também fez algo muito importante para reconstruir a confiança.
Pediu desculpa ao filho por se ter zangado com ele quando ele teve
dificuldades numa situação difícil. Ao ser capaz de comunicar a sua
compreensão e aceitação da experiência do filho, fortaleceu a confiança
que este depositava nela, para além de o apoiar quanto a confiar nos seus
próprios sentimentos.
Por mais que adoremos os nossos filhos e queiramos ser os melhores
pais que nos é possível ser, por vezes as nossas reações automáticas
podem propiciar momentos de discórdia e alheamento. Tais momentos são
inevitáveis, são uma parte natural da vida, já que é praticamente
impossível estarmos atentos a toda a hora, ou sequer na maioria do tempo,
o que nem sequer é desejável. O importante é que descubramos que somos
capazes de manobrar pelas dificuldades interpessoais com que nos
deparamos ou até que nós próprios geramos. Ao mesmo tempo, os filhos
têm a oportunidade de ver que estas ruturas temporárias e dolorosas
podem ser reconhecidas, trabalhadas e reparadas. O mindfulness não é um
estado ideal ou final. Ao invés, é sempre um processo, uma forma de
estarmos em relação ao que está de facto a acontecer, incluindo, ou
sobretudo, em momentos de falta de atenção. É costume seguirem-se o
autojulgamento e o remorso. Cada momento proporciona uma nova
oportunidade para lidarmos, com certo grau de amabilidade, com o nosso
próprio automatismo, com os nossos medos e expetativas e com os efeitos
muito reais que estes podem ter e para aprendermos com isso.
Por vezes, poderemos ter de pedir desculpa e reconhecer quão nocivo o
nosso comportamento foi, embora o impulso para pedir desculpa possa
também tornar-se demasiado irrefletido e automático. Talvez seja mais útil
reconhecer simplesmente o que aconteceu, em silêncio, perante nós
mesmos, e renovar interiormente o empenho em estarmos mais atentos e
abertos à complexidade do momento presente. Também podemos, se
dermos por nós numa situação dessas, deter-nos e trazer a consciência
para a nossa respiração, enraizando-nos de novo no corpo, dizendo
porventura ao nosso filho: “Vamos recomeçar.”
Tornarmo-nos cientes de padrões de comportamento limitativos ou
destrutivos na nossa família enquanto crescíamos, tornarmo-nos cientes
das nossas próprias experiências infantis de tristeza, zanga e alienação é
tanto um processo doloroso de aprendizagem como algo tremendamente
útil. Podemos usar esta consciência para nos ajudar a fazer escolhas mais
sensatas na educação dos nossos filhos.
Quem é o Pai, Quem é o Filho?
Há uma certa quantidade de sofrimento que faz simplesmente parte da
condição humana. E depois há o sofrimento que criamos para nós e para
os outros, sem querer, mas devido às nossas próprias inconsciência,
ignorância e necessidades emocionais não supridas, que muitas vezes
provêm da nossa família de origem e como fomos vistos e tratados na
infância. Não há dúvida de que há angústia suficiente nas famílias para
não devermos aumentá-la criando desnecessários fardos e prisões
emocionais para aqueles que amamos, por termos hábitos irrefletidos de
toda uma vida. Para darmos mais atenção a este domínio, poderemos
refletir sobre as regras tácitas da nossa família original e sobre como
poderão ter-nos influenciado.
Certa vez uma amiga contou que apenas era visível para o pai quando
falava com ele acerca do trabalho dele, que era na área científica. Só ao
chumbar nas disciplinas de preparação para a escola de medicina é que se
apercebeu de que tinha estado a seguir um caminho que na verdade não
era o seu, tendo começado então a dedicar-se a tempo inteiro ao seu
trabalho em arte, o que lhe valeu a forte reprovação do pai. A regra tácita
era: “Tenho todo o gosto em dar-te a minha aprovação desde que faças
algo que eu preze.”
Tais estruturas emocionais tácitas variam de família para família.
Nalgumas são as necessidades emocionais dos pais que dominam. Noutras
as necessidades emocionais são completamente ignoradas. Padrões
subentendidos de relacionamento são muitas vezes criados para beneficiar
as pessoas com mais poder, por norma um ou os dois pais. Apelos
baseados na culpa, na vergonha, na devoção, no dever e na
responsabilidade podem ser usados para manipular e coagir os filhos a
manterem tais padrões insidiosos, deixando pouco espaço para que a
criança tenha e expresse os seus próprios sentimentos e necessidades.
Alguns pais só sabem sentir-se próximos e unidos através das suas
feridas e da sua dor. Inconscientemente, querem que os filhos sintam a sua
dor e, por vezes, que a carreguem por eles. Um ajuste subtil pode ocorrer
entre pai e filho – totalmente sob a atenção e a intenção conscientes do pai
– em que o filho aprende a sintonizar-se pelas necessidades emocionais do
pai, muitas vezes sem que nada seja dito. Em vez de o pai ser empático e
compassivo, o filho assume esse papel e passa a ser esperado que se
identifique com os sentimentos, problemas e tensões do pai. O filho torna-
se predominantemente “orientado para o outro”, agindo como confidente
do pai, um ombro amigo. Os seus próprios sentimentos, necessidades e
desejos são soterrados. O filho pode tornar-se um “bom menino”, a filha
uma “boa menina”, à custa dos seus próprios sentimentos, de quem
realmente são. Podem sentir que, para preservarem quem são, têm de fazer
algo extremo, como dar início a comportamentos autodestrutivos, fugir ou
tornarem-se emocionalmente isolados e remotos.
Para que a capacidade inata de inteligência emocional se desenvolva nos
nossos filhos, é importante que, com o passar do tempo, ganhem alguma
consciência e aceitação dos seus sentimentos, sejam eles quais forem, e
daquilo que possam precisar. Quando são pequenos, podem aprender
connosco se nomearmos o que estamos a pressentir e ver – “Pareces
mesmo frustrado (ou cansado, zangado, impaciente...) agora”; “O Joey
parece muito triste. Porque achas que se sente assim?” – e se
comunicarmos uma noção dos nossos próprios sentimentos e
necessidades. Mediante este processo, eles vão aprendendo a comunicar
com maior eficácia o que sentem e a reconhecer por si mesmos aquilo de
que possam precisar. Também beneficiam muito de uma reação emocional
compassiva daqueles que os rodeiam. Quando isso acontece, com o passar
do tempo, as crianças aprendem naturalmente a estar mais atentas às
outras pessoas. Começam a experienciar o que significa participar num
diálogo e ter uma noção “do outro”. Eles falam, o outro ouve; o outro fala,
eles ouvem. Espera-se então que comecem a ter experiências diretas de
reciprocidade. Por os seus sentimentos e necessidades serem escutados e
atendidos, e por poderem depositar a sua confiança noutras pessoas,
tornam-se mais capazes de desenvolver as capacidades necessárias para
fomentarem, eles mesmos, relações plenas e recíprocas. Isto leva tempo.
Para a maioria das pessoas, trata-se de um trabalho para toda a vida.
Quando os filhos sentem que têm a latitude e a segurança para dizerem
como se sentem e como veem as coisas, é natural que, por vezes, desafiem
os pais. Pode demorar muito para que os filhos reconheçam o seu papel e
assumam responsabilidade pelas suas ações. Isso requer muita paciência
da nossa parte. De facto, podemos reparar que, por vezes, isto também não
nos parece assim tão fácil.
Um homem escreveu ao pai, dizendo-lhe algumas das coisas que o
magoavam e perturbavam na relação deles. O pai respondeu-lhe: “Perdoo-
te por aquela carta terrível.” Repudiou por completo que pudesse haver
alguma verdade no que o filho escrevera. Em vez de pedir ao filho que o
perdoasse, dispensava perdão como se o filho tivesse cometido um crime
ao revelar-lhe os sentimentos. Como teria sido muito menos nocivo, já
para não referir que teria sido sanador, se pudesse ter escutado a dor do
filho e sentido alguma compaixão por ele, mesmo que não conseguisse
entendê-lo. Nesse caso, poderia ter respondido: “Sinto profundamente e
lamento qualquer dor que possa ter-te causado. Estou disposto a encontrar-
me contigo, se quiseres, e a tentar compreender o que aconteceu e qual foi
o meu papel nisso.”
>>>
Uma mulher que virou costas a um “casamento perfeito” e se assumiu
como lésbica disse: “Não queria perder a minha mãe, mas a escolha que
tinha era perdê-la a ela ou perder-me a mim e não podia fazer isso.”
>>>
Uma de duas irmãs adultas, falando da mãe, disse: “Não pensamos nela
como a nossa mãe ‘a sério’, porque ela não se comporta como uma mãe. É
mais como se nós fôssemos mães dela. Está constantemente a dizer-nos
que não fazemos o suficiente, que não a amamos e apreciamos o
suficiente.”
>>>
O que esperavam os seus pais de si? Pelo que era emocionalmente
responsável na sua família? De que formas os seus pais estavam
orientados para os filhos? Que necessidades básicas foram supridas e de
que formas? Quanto espaço lhe era dado para que se comportasse de
várias maneiras? Na família, quem era responsável pela qualidade das
relações? Quem tinha de melhorar as coisas? Quem sustentava quem?
Por vezes, como adultos, damos por nós a carregar às costas um pesado
fardo emocional. Este fardo contém todo o género de coisas que até
podem não nos pertencer de facto, mas que, ao longo dos anos, nos
habituámos a carregar – a dor dos nossos pais, as suas expetativas, os seus
desapontamentos, os seus segredos, a sua zanga, as suas feridas. Por
vezes, basta pensar pousar esta carga para ficarmos de tal maneira cheios
de sentimentos de inadequação e culpa que paralisamos emocionalmente,
somos incapazes de nos mexer. Se pousarmos o fardo, seremos um “mau”
filho ou uma “má” filha. Como poderíamos fazer isso?
Quando, finalmente, tentamos pousá-lo, quando tentamos sair de um
papel que nos foi imposto, há muito tempo, e que temos desempenhado
sobretudo pela força do hábito, por culpa e por medo, quando nos
recusamos a seguir as regras emocionais antigas e tácitas da família, pode
ser um descalabro.
Libertarmo-nos dos antigos e confortáveis padrões familiares de
relacionamento e avançar para uma independência emocional maior pode
ser visto como uma grande traição. Podemos deparar-nos com uma
resistência e uma crítica ferozes. Criar novos padrões emocionais na nossa
vida requer imensa coragem e persistência.
Nunca é demasiado tarde para pousarmos o fardo que carregamos e
tentarmos criar novos padrões de relacionamento mais apropriados e
equilibrados. Este processo, por sua vez, pode ajudar-nos a ver mais
claramente os padrões e expetativas tácitos que temos em relação aos
nossos próprios filhos. Temos o potencial de nos libertar e aos nossos
filhos, de alguns desses fardos emocionais desnecessários. Toda a gente
pode ficar mais leve, mais espaçosa e mais autêntica.
Por isso, talvez seja boa ideia, de tempos a tempos, perguntarmo-nos se
os nossos filhos se encontram aqui para corresponder às nossas
necessidades ou se sucede o oposto. Quando eles são pequenos,
obviamente cabe-nos, enquanto pais, corresponder às suas necessidades,
que vão mudando com o passar do tempo. Para mais, à medida que
crescem, com alguma consciência da nossa parte, podemos apoiá-los no
processo contínuo de identificarem e aprenderem a suprir as suas próprias
necessidades. Esta capacidade é fundamental para que se desenvolvam e
tornem adultos saudáveis e emocionalmente integrados. A outra face disto
é que, como pais, também temos as nossas necessidades. Cultivar maior
consciência própria e aprender quando e como comunicar eficazmente as
nossas necessidades é um aspeto essencial para termos uma relação salutar
com os nossos filhos.
Mesmo com filhos crescidos, há alturas em que eles precisam que lhes
demos apoio, compreensão e, até onde nos for possível, assistência. Se
houver um desentendimento ou uma divergência entre nós, seremos
capazes de arranjar coragem, com toda a dor e o abismo do tempo e da
mágoa, para nos aproximarmos do nosso filho crescido, para
encontrarmos formas de sarar, de restabelecer a relação? Isto nem sempre
será possível. Só podemos tentar e talvez nunca desistir da nossa vontade
de nos reaproximarmos de formas mais saudáveis. Mas, por vezes, temos
de esperar que os nossos filhos voltem a querê-lo.
Se os nossos pais não corresponderam às nossas necessidades
emocionais, como muita pesquisa na área da psicologia tem demonstrado,
pode ser-nos particularmente difícil fazê-lo com os nossos filhos ou
connosco e o ciclo pode repetir-se vezes sem conta, de geração em
geração. Trabalhando com a consciência de que, de a cada momento,
temos uma oportunidade de pôr fim a este círculo vicioso.
À medida que os nossos filhos crescem, continuarão, em certa medida, a
precisar do nosso apoio. E, à medida que nós envelhecemos, haverá
alturas em que precisaremos do apoio deles. Um círculo de vida, um dar e
receber contínuo, sempre em mutação, pode cuidar de todos.
>>>
As minhas mãos descem, a tremer de raiva, estendem-se para o filho
carente, mas em vez de o agarrarem bruscamente pousam-se com a
delicadeza de um sussurro no seu corpo. Como se tivesse de alguma
maneira aumentado fisicamente, puxo-o para mim, respirando
profundamente. A tensão desfaz-se. Neste momento, investe-me não a
minha própria resistência ténue e gasta, mas a paciência da minha
mãe. Trata-se de uma dádiva que me deu de longe. As suas mãos
transmitiram-ma. As horas que passou a acalentar-me e a paz
profunda com que a vi embalar, amamentar e reconfortar os meus
irmãos e irmãs mais novos passaram invisivelmente para mim. Esta
dádiva esteve em mim durante toda a minha vida, como um pássaro
num ninho, à espera do momento em que as minhas mãos precisassem
da força suave das asas.
LOUISE ERDRICH, The Blue Jay’s Dance
Valores de Família
Aquilo que valorizamos na nossa família altera-se ao longo do tempo,
mas, em geral, inclui uma noção de ligação, de fazermos parte de um todo
maior e afetuoso que nos abriga, cuida de nós, permite que cada um seja
conhecido e aceite tal como é e no qual há um empenho fundamental em
ser-se honesto e respeitador, juntamente com uma vontade de ultrapassar
os momentos difíceis.
Isto não se limita a acontecer por artes mágicas. É necessário um
determinado tipo de trabalho interior e um trabalho exterior complementar
para criar e manter uma cultura familiar no lar que reflita aquilo a que
damos valor. A forma muda constantemente, à medida que a família muda
de tamanho, que os filhos crescem, que nós crescemos e mudamos
também como pais e pessoas e que alterações sociais têm um impacto
profundo em nós. E, a dada altura, os filhos deixam a cultura familiar para
criarem a sua.
Cada família desenvolve uma cultura única, quer esteja ciente disso,
quer não. O desafio da parentalidade com atenção plena implica, em parte,
trazer para a consciência as qualidades da nossa cultura familiar e tentar
fazer escolhas conscientes que reflitam e materializem os nossos valores
enquanto pais.
Muito tem sido dito acerca de toda a questão dos “valores de família”.
Muitas vezes, isto acontece num enquadramento altamente politizado ou
moralista, que tem uma visão estreita do que constitui uma “boa” família.
A palavra valor significa literalmente “a que é atribuída prioridade”.
Aquilo que tornarmos uma prioridade marcará a tónica da cultura familiar.
Assim, “valores de família” não é apenas um conceito teórico. Não
importa o que pensemos, acreditemos ou quais sejam os nossos princípios,
se nada disso for passado à prática.
Os nossos valores individuais e coletivos dizem imenso através da
forma como nos comportamos no desenrolar comum e quotidiano da
nossa vida. Incorporamos as nossas prioridades, quer o saibamos quer não.
Por isso, pode ser muito útil levar a atenção a todo o domínio do que já
incorporámos, num espírito de curiosidade e aceitação, em vez de
julgamento. Se não nos sentirmos confortáveis com determinados aspetos
do que vemos no nosso próprio comportamento ou nas nossas prioridades
no seio da família, então talvez, no espírito da prática do mindfulness e da
parentalidade com atenção plena, possamos examinar toda a questão do
que seria necessário para estabelecer gradualmente prioridades diferentes,
que reflitam mais profundamente aquilo com que nos preocupamos.
Podemos perguntar a nós mesmos: “O que é mais importante para nós? O
que valorizamos mais enquanto pais? Há princípios básicos que possamos
indicar como prioridades para a nossa família, que ponhamos realmente
em primeiro lugar nas nossas escolhas e ações?”
No caso da nossa família, valorizamos a soberania, a empatia, a
aceitação e a consciência como avenidas fundamentais para expressar
amor e afeto. Destes valores brotam outros, como respeito, amabilidade,
honestidade, responsabilidade, flexibilidade, autonomia e privacidade.
Tentamos viver de acordo com estes valores, na medida do que somos
capazes. É claro que há alturas em que damos por nós a agir de formas que
não estão de todo em consonância com estes valores. Quando ganhamos
consciência disto, a prática consiste em ver o que está a acontecer, por
doloroso que isso possa ser, e renovar o nosso empenho em agir de formas
mais alinhadas com os nossos valores fundamentais. É a isto que nos
referimos com a prática incorporada da atenção plena.
Também prezamos paz e harmonia, mas por vezes a vida familiar é tudo
menos pacífica e harmoniosa. A experiência diz-nos que a paz e a
harmonia, tal como quaisquer outros valores, não podem ser impostos aos
filhos. Só podem ser encorajados, cultivados e incentivados dando o
exemplo. Isto requer alguma paciência e confiança da nossa parte de que
estas qualidades se enraizarão e crescerão com o passar do tempo. Não
está aqui em causa sermos pessoas exemplares ou “pais perfeitos”. O que
é mais importante é o nosso empenho no processo de trabalharmos a nossa
própria consciência. Quando os nossos filhos veem que somos humanos,
que podemos cometer erros e reconhecê-los, na nossa opinião estão a
aprender lições importantes acerca de valores e acerca da vida.
>>>
A atmosfera emocional e física que os pais criam no seio da família
prepara o caminho no qual o desenvolvimento contínuo dos valores dessa
família terá lugar. Quanto mais possível for trazer atenção plena para esta
dimensão da vida familiar, mais provável será que os valores interiores e
profundos da família se reflitam nas decisões da parentalidade.
Um aspeto da atmosfera e cultura familiares que valorizamos é uma
noção da casa como um porto seguro, um refúgio do bombardeamento de
estímulos externos, um local onde os nossos próprios valores marcam a
tónica e podem contrabalançar e temperar os valores por vezes
superficiais, frenéticos e materialistas da cultura em geral.
Os rituais familiares podem ser uma parte importante da trama da
cultura de uma casa. Podem criar uma atmosfera reconfortante que enraíze
os membros familiares no espaço e no tempo e fortaleça os laços
sentimentais entre membros da família. É a qualidade da nossa
intencionalidade e a atenção que lhes prestamos a cada momento que dão
sentido aos rituais familiares.
Qualquer coisa pode ser transformada num ritual familiar, desde acordar
os filhos de manhã a apertar-lhe os atacadores, passando por escovar-lhes
ou entrançar-lhes o cabelo, tomar um banho, jantar juntos tão
frequentemente quanto possível, acender velas à mesa do jantar, dar
graças por algo ou cantar uma canção, ficar sentados à volta da lareira no
inverno ou contar histórias antes de se ir para a cama. Tudo pode servir
para enriquecer a vida familiar. Contudo, pode ser necessário o ritual
acrescido de desligar a Internet, em determinadas alturas, para podermos
experienciar este tipo de momentos profundamente analógicos e humanos.
Também podemos aplicar atenção plena à criação de rituais em torno de
manter o ambiente físico na casa. Se bem que uma casa limpa e ordenada
possa nem sempre parecer a mais alta das prioridades, quando a casa está
suja e num caos, a energia de todos pode ser afetada. Isto vai para além do
arrumar a casa meramente pelas aparências. O mindfulness pode ser
aplicado a partilhar os afazeres domésticos. As várias tarefas da vida
quotidiana podem tornar-se rituais que deem aos filhos uma noção de se
sentirem necessários e úteis. Até crianças pequenas podem ser incumbidas
de tarefas simples que lhes permitam trabalhar ao lado dos pais e dos
irmãos. Cozinhar, limpar ou dobrar a roupa em conjunto podem ser
ocasiões em que os filhos, dependendo das idades, podem participar.
Comunicando expetativas claras e consistentes, podemos fazer de
organizar e limpar a casa um ritual familiar para que o trabalho seja
partilhado por todos. A casa fica a postos para novos começos.
Como pais, verificamos que precisamos de cultivar uma consciência
abrangente da família como um todo. A família sustenta-se sendo
preservada na nossa consciência e tendo as suas necessidades em
consideração, da mesma maneira que ponderamos as necessidades de cada
filho. Há alturas em que a própria família precisa de atenção. Juntamos
toda a gente, por vezes para identificar e resolver problemas em particular,
por vezes só para ver como estamos, outras vezes ainda só por diversão.
Com o passar do tempo, uma noção coletiva de fazerem parte de um todo
maior desenvolve-se nos filhos.
Os filhos formam naturalmente os seus próprios valores sociais mais
abrangentes, a partir da atmosfera e da cultura da família e das suas
interfaces cada vez maiores com o mundo. Como dissemos, da mesma
maneira que não é possível impor valores de paz e harmonia na família,
também não podemos incutir qualidades como generosidade, compaixão,
inocuidade, igualdade e apreciação da diversidade através de moralismos
ou coerção. É observando estas qualidades em outras pessoas e
incorporando nós mesmos tais valores, que os nossos filhos têm uma
experiência direta deles.
>>>
Uma amiga partilhou connosco a seguinte história:
O meu filho tinha crescido nos subúrbios de Nova Iorque. Como eu e
o pai dele nos divorciámos quando era muito pequeno, eu sentia que
me cabia incutir-lhe os valores que acredito serem importantes na
vida. Entre eles contava-se o respeito por todas as pessoas,
independentemente do seu passado ou circunstância de vida.
Desde a infância do meu filho, muito se alterou em Nova Iorque.
Várias áreas, incluindo o bairro em que ele agora vivia, eram
habitadas por homens e mulheres sem-abrigo – que por vezes pediam
esmola com agressividade, outras vezes de forma mais passiva,
sentados ou a dormir em entradas de prédios.
Numa noite fria de inverno, eu estava desejosa por me encontrar com
o meu filho de vinte e três anos, no seu apartamento, para o levar a
jantar nesse bairro. As visitas que lhe fazia eram para mim momentos
preciosos – demasiado raras, no que me dizia respeito, mas com a
frequência que lhe convinha. Eu sabia que tinha de ser assim para que
ele estabelecesse a sua vida adulta de acordo com os seus próprios
termos.
Quando me aproximei do prédio dele, reparei numa mulher sentada
no passeio, a pedir, mesmo à direita da entrada. Senti a tensão a
acumular-se no meu corpo ao desviar o olhar dela, fingindo que não a
via ao entrar no edifício. Não queria qualquer noção de sofrimento
humano a interferir com a minha intenção de passar uma noite a
desfrutar da companhia do meu filho.
Pouco depois, eu e o meu filho pusemo-nos a caminho, descendo de
elevador e saindo para escolher entre a grande variedade de
restaurantes da zona. Conversaríamos um com o outro naquela noite
ao longo de uma refeição sem pressas.
Ao passarmos pela porta do seu prédio, ele aproximou-se da mulher
sentada no passeio – no mesmo sítio onde eu tinha feito um esforço
intencional para evitar vê-la pouco antes. Enquanto lhe dava os trocos
que tinha no bolso, surpreendeu-me ao dizer-lhe – como apresentação
– “Esta é a minha mãe.” Quando olhei na direção dela, deparei-me
com um sorriso franco e caloroso – e cumprimentámo-nos, dizendo
“Olá”.
Ele sabia que podia vê-la apenas como mais uma pessoa – numa
situação terrível – com quem podia ser amável.
Eu desejara que ele aprendesse a ver a humanidade comum a todas as
pessoas sem exceção – e ele aprendera. Senti-me profundamente
comovida ao aperceber-me de que, naquela noite, ele estava a ensinar-
me de novo um valor de que eu me esquecera. Era um valor que eu
mesma lhe transmitira, tantos anos antes.
Escolhas de Consumo
Na cultura atual, intensamente voltada para o consumidor, é fácil darmos
por nós, enquanto pais, a adquirir produtos que podem levar os nossos
bebés e crianças pequenas a experienciarem o mundo mais através do seu
contacto com objetos do que através de um contacto continuado com seres
vivos e humanos que respiram. Basta um pouco de atenção para obtermos
uma bússola muito necessária para nos orientarmos pela quantidade
impressionante de escolhas com que nos deparamos enquanto pais. A
tremenda variedade de produtos, alguns dos quais com o objetivo de
entreter e fomentar a aprendizagem numa idade precoce, e muitos dos
quais pretendem facilitar o trabalho de criar os filhos, depressa podem
tornar-se um substituto para as interações humanas essenciais de que uma
criança precisa para se desenvolver.
Por exemplo, um bebé pode ser pegado por instantes para depois ser
colocado num ovo de carro, levado no ovo para uma loja e voltar para
casa onde é deitado num berço ou recostado numa espreguiçadeira, indo
mais tarde passear num carrinho. A maior parte do dia do bebé pode ser
passada num estado de contenção passiva, a tocar em objetos inanimados.
Os sons ambientes que lhe dominam o mundo podem perfeitamente vir da
televisão, da rádio ou de brinquedos de corda. Sem alguma atenção por
parte dos pais, o ambiente de uma criança facilmente pode tornar-se
demasiado utilitário, caótico e alienado, orientado sobretudo para
responder às necessidades dos pais em vez das do filho.
Se nos valermos continuamente de objetos para os segurar ou entreter
enquanto fazemos coisas – como deixar o baloiço a embalá-los, pôr uma
história gravada a tocar, ligar o televisor ou colocá-los diante de outros
ecrãs – podemos estar inadvertidamente a encorajá-los a serem passivos,
em vez de participantes ativos no seu mundo. Estes “ocupadores de
crianças” podem surtir o efeito de deixar os nossos filhos num modo
fragilizado e alheado, que é definido e limitado inerentemente pelos
próprios objetos.
É claro que há alturas do dia em que temos de atender a outras coisas
enquanto também cuidamos dos nossos filhos. Isso é uma parte natural da
vida e é importante que os nossos filhos nos vejam a fazer o que é
necessário ser feito. Se aplicarmos atenção plena aos pormenores da nossa
situação – incluindo a idade e o temperamento do filho, bem como o
ambiente em casa e o que precisamos de fazer –, por norma é possível
arranjar formas criativas de os interessar e manter em segurança enquanto
trabalhamos, pelo menos durante algum tempo.
Com recém-nascidos e bebés, podemos transportá-los num marsúpio
enquanto tratamos das coisas. Com bebés maiores e crianças, talvez seja
necessário criar um espaço fechado sob a nossa supervisão, no qual
possam mover-se em segurança por si mesmos, gatinhando, levantando-se
ou rebolando, ficando assim livres para expressarem a sua vontade dando
início a atividades com mais possibilidades. Colocando colchões no chão
para amortecer quedas, tendo bolas e blocos de materiais macios
disponíveis e estruturas simples que eles possam trepar, um espaço
facilmente pode tornar-se uma espécie de zona de exploração segura e
caseira. Isto também oferece aos nossos bebés e crianças pequenas
oportunidades importantes para experimentarem alguma frustração e, ao
não nos precipitarmos para “resolver” as coisas, eles podem aprender a
superar desafios apropriados à sua etapa de desenvolvimento. Trata-se de
uma prática difícil, mas que vale a pena.
Como vimos, a qualidade da nossa presença é sentida pelos filhos, quer
estejamos a interagir diretamente com eles quer não. Embora os pais
possam tornar-se mestres a fazerem mais do que uma coisa de cada vez, o
essencial é desenvolver uma flexibilidade de atenção e um campo de
consciência maior que inclua não apenas os filhos, mas também o nosso
próprio estado de corpo e mente. Os filhos pressentem quando estamos
rígidos e ressentidos ou recetivos, flexíveis e amáveis. Em cada momento,
temos a capacidade de ter noção da qualidade do nosso ser e de a modular.
Quando estamos stressados, podemos sempre lembrar-nos de voltar à
respiração, às sensações no corpo e à riqueza inerente a todos os nossos
momentos.
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Quanto às escolhas de consumo que enfrentamos enquanto pais, por vezes
a pouco e pouco, com decisões aparentemente menores e inócuas,
corremos o risco de evitar interações preciosas com os nossos filhos e
eles, consequentemente, de perderem um certo tipo de atenção da nossa
parte. Ao fazermos estas escolhas, podemos aplicar um certo grau de
atenção a como os produtos que adquirimos para apoiar o nosso trabalho
de pais podem afetar a experiência que o nosso filho tem do mundo e a
sua relação connosco.
Por exemplo, podemos pôr um bebé num carrinho sem pensar muito
nisso. Mas, se tivermos em conta como será para o bebé, talvez
percebamos que, nalguns carrinhos, ele ficará de frente para o mundo, sem
qualquer proteção de todos os estímulos, corpos, ruídos e energia que vêm
diretamente ao seu encontro. Também poderemos ver que, enquanto todos
estes estímulos imprevisíveis chegam, sem filtro, a este novo ser, ele
encontra-se fisicamente separado daquilo que melhor conhece e que o
ajuda a enraizar-se no seu mundo – nomeadamente, os pais. Cada bebé é
diferente e, enquanto pais, somos capazes de pressentir quando o nosso
bebé está preparado para interagir mais com o mundo.
Também podemos transportar o bebé num sling ou num marsúpio de
pano, junto ao nosso corpo. Aqui o bebé pode estar no mundo e, ainda
assim, simultaneamente protegido dele. Dependendo do temperamento e
da idade do filho, por vezes até marsúpios de pano para transportar o bebé
voltado para a frente poderão propiciar demasiada estimulação visual e
assoberbar um sistema nervoso sensível. Não há uma escolha certa. A
parentalidade com atenção plena é um processo contínuo de observar e
ajustar o que fazemos, baseando-nos no que vemos, pressentimos e
sentimos.
Nalgumas famílias, quando a distância não é demasiado grande, as
crianças pequenas são encorajadas a caminhar, o que depressa se torna a
norma para elas. Uma criança também pode, por vezes, ser levada às
costas de um pai, num marsúpio. Assim, tem a oportunidade de sentir o
movimento e o calor do corpo do pai e pode estender as mãos para lhe
tocar no rosto e no cabelo. Nesta posição, as faces das outras pessoas
ficam mesmo ao nível dos seus olhos, o que lhe permite que comunique
com elas por cima do ombro do pai ou encostar-se ao corpo dele, caso se
sinta acanhada. Durante todo esse tempo, os seus pés vão apoiados na
base, empurrando-a, movendo-lhe todo o corpo para cima e para baixo,
alongando-se. Uma sensação de segurança e todo um mundo de
estimulação e reação sensorial provêm apenas de se ser transportado
assim.
Fazer estes géneros de escolhas poderá requerer bastante mais
ponderação e trabalho para nós, a curto prazo. Contudo, daqui resultam
maravilhosas dádivas e prazeres, tanto para pais como para filhos.
Podemos estar mais próximos, mais em contacto e mais sintonizados com
eles. Também é menos provável que nos escapem as comunicações subtis
de um filho, seja um som ou um sorriso, um leve toque de uma mão...
momentos de puro prazer e ligação.
>>>
Muitos produtos para cuidados infantis têm o objetivo de nos libertar para
podermos fazer outras coisas. Adquirimo-los com a expetativa de que nos
facilitem a vida. Mas, se não prestarmos atenção, podemos verificar que se
tornam substitutos da interação e presença humanas, que são essenciais.
Podem acabar por isolar e privar os nossos filhos, ou por lhes assoberbar o
sistema nervoso. Podemos acabar por pagar bem caro o tempo libertado,
quando nos deparamos com crianças que fazem birra porque estão
famintas de atenção, contacto físico e calor humano, ou que anseiam por
estimulação constante. Os filhos neste estado carente são tremendamente
exigentes, como seria de esperar. Reparar os danos provocados quer por
negligência, quer por excesso de estimulação é muito mais difícil e menos
satisfatório do que corresponder desde logo às necessidades de um filho.
Decerto há alturas em que objetos de conveniência são tão úteis para os
pais como divertidos para os filhos. Mas, como pais, temos de ir sempre
olhando para a totalidade da experiência diária do nosso filho. O segredo
consiste em encontrar o equilíbrio. Podemos usar um carrinho ou
cadeirinha de bebé quando precisamos, mas assegurar-nos de que há
outras alturas do dia em que pegamos ou transportamos o nosso bebé ou
criança pequena ao colo. Podemos pôr uma história a tocar no carro, às
vezes, e arranjar outras alturas em que lhes lemos ou contamos histórias.
Bonecos de pano e peluches, brinquedos para morder e mantinhas podem
ser reconfortantes e os bebés e as crianças pequenas podem usá-los para se
acalmarem a si mesmos. Mas talvez devamos perguntar-nos se queremos
que estes objetos se transformem na principal fonte de conforto na vida do
nosso filho.
Cada objeto que ocupa o lugar de uma interação humana tem o
potencial de nos privar, e aos nossos filhos, da riqueza dos momentos
partilhados. Dado que as relações se constroem com momentos
partilhados, trata-se de escolhas importantes a ter em mente.
Loucura Mediática
Vivemos numa época em que as coisas mudam mais depressa do que
nunca. Temos infinitamente mais informação ao nosso dispor, mas talvez
muita dela não seja aquilo de que mais precisamos. Passámos um limiar
invisível e irreversível, do mundo analógico de toda a história humana, da
própria natureza e da evolução, para uma admirável nova era digital em
que as nossas vidas participam num poder computacional cada vez maior,
numa rede interligada de comunicação virtual global. De uma altura em
que os pais se preocupavam com os efeitos de se assistir a televisão, agora
enfrentamos a presença ubíqua de dispositivos cada vez mais pequenos e
móveis, que ligam crianças à Internet, à World Wide Web, ao mundo das
mensagens de texto e de outras formas de relacionamento social, do
Facebook ao Twitter, passando pelo Instagram ou pelo Youtube, vídeos,
gráficos, música, jogos, para além de inúmeros canais de TV por cabo e
filmes... uma caixa de Pandora de acesso infinito a conteúdo ilimitado. O
que podemos fazer perante a exposição dos filhos a mundos de que
poderemos saber pouco ou nada, ou que nos pareçam pouco saudáveis e,
nalguns casos, até tóxicos? Como haveremos de proteger os nossos filhos
deste género de exposições sem qualquer filtro? E como poderemos
identificar e regular, dependendo da idade dos filhos, os aspetos da
tecnologia que nos pareçam positivos e fomentadores de
desenvolvimento?
Entre smartphones e tabletes, os pais agora têm acesso a tudo e mais
alguma coisa que seja digital; também temos ocasiões infindas para nos
distrairmos e ficarmos tão absortos no mundo digital que percamos o
contacto com o momento presente e o mundo natural. Não só precisamos
de considerar a exposição dos nossos filhos e o uso dos vários meios à sua
disposição, como também temos de estar cientes e regular o nosso próprio
uso – e possível vício – destes mecanismos, para estarmos presentes nas
nossas vidas e com os nossos filhos. Cada vez mais crianças têm de
competir com estes aparelhos para obterem a atenção dos pais. Pior, há
pais que os passam a crianças pequenas para as manterem entretidas. Há
cada vez mais aplicações para smartphone a serem desenvolvidas com
este propósito. Os nossos filhos podem correr o risco de desenvolver um
apego primário a dispositivos eletrónicos, em vez de o terem a seres
humanos. E nós também.
Não há dúvida de que o mundo em que vivemos está a transformar-se
diante dos nossos próprios olhos. Estas invenções tecnológicas e as que
ainda estão por vir, tanto em hardware como em software, estão a criar um
novo mundo. Quando forem adultos, os nossos filhos estarão imersos e
bem versados nele. Mais um motivo para que tenham um corpo, uma
mente, um coração e um espírito fortes e equilibrados e para que
desenvolvam uma ligação profunda ao mundo analógico, apreciando-o.
Não há dúvida de que a ubiquidade da Internet, bem como das redes
sociais, acrescenta novas dimensões à infância e à parentalidade, as quais
necessitam de ajustes e acompanhamento contínuos. Este mundo
relativamente novo e sempre em mudança requer que estejamos cientes
dele bem de perto e, caso necessário, que regulemos o seu uso e o tipo de
conteúdo a que os nossos filhos ficam potencialmente expostos.
Esperamos que, com noção da sua disponibilidade omnipresente e dos
seus chamamentos sedutores, possamos encontrar formas de promover o
equilíbrio com outras atividades – um território novo e inexplorado para
aqueles que tentam educar os filhos com um certo grau de atenção plena
na era digital. Se nós mesmos estivermos viciados nestes dispositivos,
podemos transmitir a ideia de que os nossos filhos não são tão importantes
quanto os nossos correios eletrónicos, mensagens de texto e tweets.
Seres humanos de carne e osso não podem ser criados através da
tecnologia, por mais astuta ou interessante que esta seja. Precisamos de
experiências personificadas e do sustento do coração humano por seres
humanos que sentem e se preocupam. Os dispositivos, demasiado usados
como amas eletrónicas quando os pais estão ocupados, ou como uma
conveniência quando as crianças estão entediadas, podem desviar com
demasiada facilidade importantes experiências da infância, bem como
interações e atividades presenciais.
Podendo, à superfície, parecer adições que nos auxiliarão a vida, estes
dispositivos podem ter ramificações que talvez não tenhamos previsto por
completo. Por exemplo, hoje em dia muitas crianças têm os seus próprios
telemóveis. Embora isto, por vezes, possa ser incrivelmente útil, o que
sem dúvida acontecerá em caso de emergência, a desvantagem imprevista
poderá ser que, sempre que algo difícil surge, passa a ser demasiado fácil
que uma criança procure a ajuda ou o conselho dos pais, em vez de confiar
na sua própria capacidade de solucionar problemas. Esta é apenas uma
entre cada vez mais questões que os pais enfrentam. Outra é a de se dar
aos filhos acesso ilimitado à Internet só porque esta existe. Até que ponto
estamos a examinar e ponderar os seus aspetos potencialmente positivos e
negativos? Haverá formas de fazer a balança pender para o lado positivo,
minimizando o negativo? Nesta área, é comum termos bem mais
perguntas do que respostas. Mas o próprio questionamento é muito
importante. É uma forma de trazer mais atenção plena aos efeitos que
estas tecnologias têm nos nossos filhos e na família.
Outra rota poderá ser repararmos nos efeitos dos variados dispositivos e
tecnologias nos nossos filhos enquanto estes se encontram a usá-los. Em
que estado se encontram os seus corpos? Vê alguns sinais de tensão? Que
tipo de movimentos fazem? Que imagens estão a assimilar? A quanta
violência estão expostos? Quais poderão ser os efeitos cognitivos,
emocionais e sociais em crianças que, cada vez mais, habitam este mundo
virtual? Que mensagens estarão a receber ao relacionarem-se desta forma?
Que valores estarão a assimilar? Quantas interações da vida real não terão
por estarem perpetuamente focados nos seus dispositivos, incluindo em
sites de redes sociais?
Quando os nossos filhos assistem a programas televisivos, parece-nos
importante que os pais ponderem questões similares. Há estudos que
demonstram que, em média, os jovens norte-americanos assistem a vinte e
cinco mil horas de televisão antes dos dezoito anos e observam mais de
duzentos mil atos violentos, incluindo dezasseis mil assassinatos. No
Physician’s Guide to Media Violence, de 1996, a Associação Médica
Norte-Americana indicava que a quantidade de tempo passado em frente a
um televisor ou ecrã representa “o maior período da vida acordada de uma
criança norte-americana”. Nos EUA, a família média tem o televisor
ligado durante sete horas por dia. Sessenta por cento das famílias têm o
televisor ligado às refeições. Esta percentagem não tem diminuído com o
passar do tempo. Uma sondagem efetuada, em 2009, pela Nielsen
Company demonstrou que as crianças entre os dois e os cinco anos
passam mais de trinta e duas horas por semana em frente a um ecrã de
televisão.
Mais uma vez, enquanto pais, precisamos de estar cientes dos efeitos de
tal exposição nos nossos filhos e observar a relação da nossa família com
esta força poderosa. Perguntas que poderemos fazer-nos incluem: O que
estamos a observar nos nossos filhos enquanto veem televisão e depois de
verem? Que mensagens estão a assimilar? Quão passivos são? Até que
ponto ficam fascinados, numa espécie de transe hipnótico? Quantas horas
fazem isto por dia, por semana? O que não fazem enquanto fazem isto? A
quanta crueldade assistem? Há discussões quando o televisor se apaga?
Como é que tudo isto afeta as suas atitudes e comportamentos em casa e
na escola e as suas opiniões de si mesmos e da sociedade? Simplesmente
observar cuidadosamente e fazermo-nos tais perguntas pode ajudar-nos a
fazer escolhas capazes de aumentar significativamente a qualidade da vida
familiar e melhorar a dos nossos filhos. Também podemos fomentar-lhes
maior autoconsciência sugerindo-lhes que prestem atenção a como se
sentem quando se dedicam a tais atividades e depois.
Em muitas casas, o televisor está quase sempre ligado. As imagens dos
noticiários bombardeiam até mesmo crianças muito pequenas com todas
as coisas horríveis que acontecem no mundo a cada dia que passa. Quer
estejam a assistir ativamente às notícias, quer não, os jovens crescem
imersos numa visão particular e altamente distorcida da realidade,
sintetizada a partir daquilo que os diretores dos canais decidem que vale a
pena ser noticiado. O processo tende a focar-se nas coisas mais violentas e
terríveis que acontecem localmente e pelo mundo fora. Pelo contrário,
enormes áreas de generosidade e criatividade humanas, que são tão ou
mais importantes e realmente novas, e portanto dignas de serem
noticiadas, são praticamente ignoradas.
Uma atenção similar precisa de ser aplicada a outras vias pelas quais os
nossos filhos são afetados pela indústria da comunicação social e do
entretenimento. Por vezes, crianças pequenas são expostas a imagens
grotescas e aterradoras que lhes ficam gravadas na mente e na memória
quando ainda não têm forma de as filtrar, de as colocar em perspetiva ou
de as compreender. Já é suficientemente difícil para os adultos lidar com
tais imagens paralisantes e assustadoras. A mera banda sonora pode ser
um ataque total ao sistema nervoso, sendo criada com o propósito de
solicitar reações intensas de perturbação fisiológica. Muitas das imagens
de filmes violentos são impensáveis e é impensável que crianças vejam
tais coisas. Pode ser impensável, mas a exposição a imagens violentas
tornou-se a norma e, como cultura, tornámo-nos indiferentes a isso.
Tanto o cinema como a televisão podem promover paranoia e
desconfiança, dando a impressão de que o mundo é um sítio terrivelmente
perigoso, cheio de gente louca e violenta. Há muita coisa boa a acontecer
todos os dias pelo mundo fora mas, como referimos, isso não chega às
notícias. Por isso, a visão que tanto filhos como pais têm do mundo fica
distorcida. Damos por nós a ter de recordar aos nossos filhos – e a nós –
que, apesar da violência na nossa sociedade, a percentagem de pessoas
que cometem crimes e causam danos continua a ser pequena. Eles
precisam de saber que, mesmo nos bairros mais perigosos, há muita gente
boa e afetuosa. Ajudar os filhos a sentirem-se seguros e a verem o mundo
de uma forma realista que permita que se sintam esperançosos é um
desafio difícil e constante. Quanto mais violência virem nos meios de
comunicação, mais difícil se torna.
Há zonas onde a violência é mais prevalecente na vida das crianças,
quer a experienciem em casa, quer a vivam nas ruas. Professores indicam
que crianças vão para a escola tendo testemunhado atos violentos e
conhecendo pessoas afetadas por eles. Alguns professores começaram a
aplicar práticas de mindfulness nas suas salas de aula, em bairros urbanos,
para ensinarem aos alunos a autoconsciência, técnicas para se acalmarem
e regularem as emoções, bem como bondade amorosa para consigo
mesmos e para com os outros. As práticas básicas do mindfulness, que se
prendem com estar ciente dos pensamentos e dos sentimentos, aceitar e
compreender a natureza em constante mudança das coisas e cultivar a
capacidade de ficar enraizado no próprio corpo e na própria respiração,
podem ser úteis para crianças em situações stressantes e emocionalmente
desafiantes.
Regressando ao exemplo da televisão, uma dieta constante de desenhos
animados e séries cómicas não beneficia o desenvolvimento de uma
criança, por mais interessantes ou estimulantes que tais programas possam
ser. A presença da televisão altera dramaticamente o ambiente da casa.
Paira como uma oferta constante e sedutora, que passa a ser a bitola pela
qual se medem todas as outras atividades a que a criança poderia dedicar-
se. Assim, subtil ou não tão subtilmente, interfere com a sua experiência
dos ritmos naturais do dia, que incluem períodos de tranquilidade e até de
tédio, os quais podem propiciar brincadeiras tanto fisicamente ativas como
de imaginação, imersão no mundo natural, tempo para reflexão e
introspeção, momentos de criatividade, tempo passado a brincar com
amigos, a conviver com a família e a estabelecer ligações com a
comunidade mais abrangente. As crianças desenvolvem maior
familiaridade com personagens de televisão do que com pessoas a sério e
podem apegar-se a elas. A experiência da vida real acaba por ser posta em
espera para que não percam um episódio com os seus amigos televisivos.
Os meios de comunicação social facilmente ocupam o lugar de todo o
género de experiências essenciais para o desenvolvimento, que são
relacionais, personificadas e práticas, e que fomentam a aprendizagem
social e emocional e a maturação de ligações no cérebro, críticas para o
funcionamento eficaz na adolescência e na idade adulta. Embora certas
tecnologias possam ter algum papel a desempenhar na aprendizagem da
infância, é importante que, enquanto pais, estejamos cientes do que pode
perder-se e da necessidade de equilíbrio e supervisão.
Quando o nosso filho tinha cinco anos, num verão, teve uma lagarta de
monarca que colocou num frasco com umas folhas. Alimentou-a e
observou-a dia após dia, à medida que a lagarta ia comendo as folhas, até
se encasular como crisálida e depois, ao fim de um longo período de
latência, emergir como borboleta, que ele então libertou. É a partir de
experiências integradas e participativas como esta que as crianças
conhecem o mundo. Também vivem metáforas que indicam um sentido,
uma ordem e uma interligação subjacente ao mundo e aos seres vivos. Tais
experiências estimulam a imaginação e encantam as crianças com a sua
magia e mistério.
Com frequência, notávamos que, depois de os nossos filhos se terem
dedicado a um processo criativo, como desenhar, pintar ou cantar, ou
ouvir-nos ler livros que os transportassem, elevassem e entusiasmassem –
criando e povoando mundos inteiros nas suas mentes com linguagem bela
e personagens e relações muito bem desenvolvidas (livros como Ronia,
the Robber’s Daughter, As Aventuras de Tom Sawyer, O Hobbit, o Senhor
dos Anéis, as lendas do Rei Artur, contos de fadas e mitos de diferentes
países e culturas) –, sentíamos que ficavam animados, com os olhos a
brilhar e os rostos cheios de prazer.
Não víamos essas expressões nos seus rostos depois de terem estado a
ver séries ou filmes. O processo é demasiado passivo. Não requer
qualquer imaginação. Todas as imagens são criadas para eles, uma
estranha combinação de entorpecimento e excesso de estímulo do sistema
nervoso, numa tentativa de os manter interessados. Não há tempo para
introspeção ou reflexão, para pausas em que possam ligar a história a
outras experiências significativas das suas vidas, ou para partilhar
momentos de pura sensação quando alguém lhes toca.
Descobrimos que não ter televisão quando os nossos filhos eram
pequenos, embora se tratasse de um passo radical, dada a ubiquidade
destes aparelhos na vida norte-americana, era uma opção viável – na
verdade, uma opção maravilhosa. Por vezes, é necessário livrarmo-nos de
coisas para vermos o efeito real que estão a ter na família. Só depois de
saírem da casa é que os seus efeitos mais invasivos e insidiosos na vida
familiar podem realmente ver-se, por contraste com a paz e os usos
criativos do tempo que se tornam possíveis e uma forma de estar apenas
na sua ausência. O que se perde em entretenimento tanto para filhos como
para pais é mais do que compensado por uma ressurgência de ânimo que
pode emergir na família.
O caminho mais difícil para estabelecer limites em torno das várias
tecnologias e dispositivos com ecrãs e meios de comunicação, que fazem
agora tão grande parte das nossas vidas e são uma presença cada vez mais
ubíqua nos nossos lares e bolsos, irá, por necessidade, assumir diferentes
formas em diferentes idades e fases das vidas dos filhos. O nosso
entendimento e clareza de pais é crucial para estabelecer limites. Quando
os filhos são pequenos, não compreendem, nem têm de compreender, as
decisões que tomamos. Quando estamos certos de que uma mudança
precisa de ocorrer, podemos reagir aos seus sentimentos de zanga,
irritação e frustração com simplicidade e factualidade, com alguma
compreensão e amabilidade, mas também transmitindo a mensagem
inabalável de que estamos a estabelecer um limite. É claro que, com o
tempo, as coisas mudam, e a nossa consciência do que é necessário
também. À medida que os filhos crescem, a necessidade de acordos e
limites familiares pode ser discutida, contribuindo todos para as decisões a
que se chega.
Um amigo disse-nos que o rendimento escolar da filha adolescente
estava a ressentir-se de todo o tempo que ela passava nas redes sociais ao
final do dia. Concordaram que, durante várias semanas, ela teria um
período experimental sem dispositivos eletrónicos durante algumas horas
ao final do dia. No final desse período experimental, conversaram acerca
dos aspetos positivos e negativos de ela ter tido um acesso limitado às
redes sociais. A filha confessou que, na verdade, tinha sido um grande
alívio ter um limite claro e que queria que este continuasse a vigorar.
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A prática da parentalidade com atenção plena implica, em grande medida,
que cada um de nós descubra as suas próprias formas de lidar com as
várias situações e condições que surgem no seio da família. É claro que
estas mudam continuamente com o tempo e com as circunstâncias. Como
encaramos e reagimos aos desafios específicos que enfrentamos nas
nossas vidas e às necessidades e exigências dos nossos filhos, é o
verdadeiro trabalho interior propriamente dito. Não há respostas
absolutamente ou permanentemente “certas”, nem soluções “perfeitas”. O
processo por que cada um de nós passa ao executar este trabalho interior,
muito do qual envolve incerteza e, por vezes, um certo grau de confusão,
tensão e dor, é uma parte inevitável de se ser pai e uma parte inevitável de
se trazer o mindfulness para a parentalidade.
É importante recordarmo-nos que o mindfulness não tem simplesmente
que ver com atenção ou aceitação. Também implica agir, de preferência
sensatamente, perante situações complexas. Qualquer prescrição que nós
pudéssemos dar para uma situação específica estaria obrigatoriamente
inadequada desde o início. Só o leitor se conhece a si, à sua família e aos
seus filhos. Mais, no que concerne a questões relacionadas com meios de
comunicação, as tecnologias vão mudando a um ritmo incrivelmente
rápido. O que recomendássemos hoje poderia nem sequer ser relevante
dentro de um ano ou dois. Mas a sua própria vontade de lidar com as
coisas tal como são e com, por vezes, não saber como proceder é a
essência da prática.
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Um sinal de grande esperança no que diz respeito aos novos meios
provém, ironicamente, do interior do mundo de Silicon Valley. Muitos dos
fundadores tremendamente bem-sucedidos das maiores start-ups da
Internet encontram-se agora na casa dos trinta, quarenta anos. É animador
e comovente ver como muitos destes empreendedores do mundo digital
começam a sentir-se atraídos por cultivar a atenção plena. Fazem-no tanto
para obterem satisfação com a própria vida como para moderar o stresse
acarretado pelo sucesso numa idade precoce e os desafios intermináveis de
terem de manter o impulso com inovação contínua nos seus negócios.
Muitos destes jovens inovadores parecem acalentar um anseio por sentido
e por uma experiência de vida mais enraizada, tanto a nível profissional
como pessoal. Afinal, alguns também são pais de crianças pequenas e
enfrentam os mesmos desafios que o mundo digital nos apresenta a todos.
Parecem ter uma consciência crescente da nossa interligação humana e da
importância de fazer um esforço para alterar o mundo para melhor – não
apenas através de novas tecnologias, mas também de como essas
tecnologias são usadas.
Equilíbrio
Procurar um certo equilíbrio na nossa parentalidade é um processo
contínuo. Afinal, é uma questão bastante pessoal. O que nos parece
equilibrado pode parecer-lhe completamente desequilibrado, e vice-versa,
e outra pessoa pode achar que aquilo que lhe parece equilibrado tem falta
de equilíbrio. Mais ainda, o que nos parece equilibrado agora poderá não o
parecer daqui a algum tempo. É um processo contínuo, porque o ponto de
equilíbrio vai mudando.
É necessária alguma reflexão para definir o que o equilíbrio significa
para nós e fazer escolhas que o promovam para nós mesmos, para os
nossos filhos e para a família como um todo. Trabalhar o equilíbrio é um
processo dinâmico, sempre em mudança, não um destino fixo; pois, na
verdade, equilibrarmo-nos é sempre uma questão de perdermos o
equilíbrio para depois o recuperarmos. Podemos aprender muito ao perder
o equilíbrio se preservarmos a experiência em consciência.
Quando os nossos filhos eram bebés, o esforço pelo equilíbrio tomou a
forma de recorrer continuamente a quaisquer recursos internos e externos
que tínhamos ao passarmos por um período de entrega intensa. Com tanta
energia a sair de nós, tanto física como emocionalmente, precisávamos de
infusões de energia e apoio da família, de amigos e um do outro.
O equilíbrio interno dos nossos filhos estava intimamente ligado à nossa
capacidade de resposta às suas necessidades. Quando eles refilavam,
choravam ou pareciam desconfortáveis, nós reagíamos e, mais cedo ou
mais tarde, o equilíbrio restaurava-se. Quando lidávamos com cólicas,
havia alturas em que nada do que fizéssemos resultava, mas nós
persistíamos, isto é, continuávamos a esforçar-nos por estarmos presentes,
mesmo nesta situação muito penosa.
Quando os nossos filhos começaram a andar, o equilíbrio assumiu a
forma de lhes proporcionar a liberdade para explorarem dentro de um
espaço seguro e mantendo-os sob um olhar atento. Quando tinham
dificuldades, tentávamos ajudá-los a restaurar algum equilíbrio, sendo
sensíveis às pistas que nos davam, como acerca de terem fome, estarem
cansados ou demasiado estimulados. Houve alturas em que o equilíbrio
podia ser restaurado dando-lhes uma oportunidade de libertar alguma
energia com brincadeiras ativas e barulhentas, outras em que eles
precisavam de ser abraçados, acalmados, embalados e reconfortados.
Estes géneros de interações acompanhadas de uma resposta podem ajudar
as crianças, com o passar do tempo, a desenvolver a sua própria
capacidade de se autorregular.
Quando pressentimos que um filho está de alguma maneira stressado e
desequilibrado, uma reavaliação da sua rotina diária pode ser reveladora.
Qual é a relação entre atividade e tempo tranquilo? Que alimentos anda a
comer? São estabilizadores (isto é, proteínas, gorduras saudáveis, hidratos
de carbono complexos, fruta e vegetais frescos) ou desestabilizadores (ou
seja, demasiado açúcar, junk food)? Anda a dormir o suficiente? As
crianças pequenas beneficiam de ritmos e rituais diários consistentes e
precisam de bastante tempo para fazer as coisas, bem como de tempo
adequado para proceder às transições de uma coisa para outra. Ao darmos
atenção a estes aspetos da vida quotidiana, podemos tentar tomar decisões
que reduzam fatores desnecessários de stresse e promovam maior
equilíbrio no dia da criança.
Por vezes, sobretudo com crianças mais pequenas, pode ser útil seguir o
princípio de “menos é mais”. Simplificar-lhes o dia, tanto quanto possível,
dar-lhes mais rotina e passar algum tempo calmo com eles poderá ser tudo
o que é necessário. Na azáfama das nossas vidas ocupadas, momentos
tranquilos podem ser suprimidos e perder-se sem que sequer nos demos
conta disso.
Momentos que sustentam e restauram podem assumir muitas formas.
Pode ser uma pausa calma e sonhadora na banheira, ou um jogo com um
filho enquanto nos lembramos de estar totalmente presentes. Ou contar
uma história, ou cantar uma canção, ou fazer algo juntos, como desenhar
ou preparar queques, ou saltar de pedra em pedra na água. A renovação
pode provir de algo tão simples como o reconforto tranquilo de serem
abraçados ou de estarem no nosso colo. Pondo de parte as obrigações e os
impulsos de autodistração, podemos trazer a nossa atenção para a
respiração, mantendo-a lenta e profunda, sentindo o nosso filho
descontrair, a sua respiração a abrandar naturalmente, em harmonia com a
nossa.
Podemos tornar a nossa mente tão semelhante a água parada que seres
se reúnam à nossa volta e vejam, talvez, as suas próprias imagens, e
assim vivam por um momento com uma vida mais clara, talvez ainda
mais forte, por causa da nossa quietude.
W. B. YEATS, As Tribos de Danu
Cada situação em que nos encontramos é diferente. Cada momento é
novo. O que era necessário ontem poderá não ajudar hoje. Descobrir de
que precisam os filhos requer que sejamos sensíveis, que detetemos as
suas pistas e que reajamos de formas intuitivas e criativas. A nossa própria
imobilidade e paciência desembacia o espelho em que tais reflexos podem
ser vistos.
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À medida que crescem e vão para a escola, as crianças experienciam a sua
autonomia e individualidade, em parte através das amizades, das
atividades e de como se vestem. Vivenciam o seu poder e capacidade de
agir ao descobrirem os seus interesses e talentos próprios. Precisam de
privacidade e de imenso espaço psicológico, mas continuam a precisar de
apoio e orientação enquanto o seu mundo começa a expandir-se. Com esta
idade, já são melhores a autorregular-se, mas por vezes poderemos
precisar ainda de os ajudar a restaurar o equilíbrio, intervindo e
estabelecendo limites, seja por eles ou com eles. Muitas vezes, encontrar
equilíbrio durante esta fase implica um esforço por manter ligações
significativas com os nossos filhos, enquanto eles se debatem por mais
liberdade e separação.
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Uns amigos contaram-nos a seguinte história: a filha de onze anos foi
convidada para uma festa de aniversário em que as crianças iam comer
bolo e gelado antes de irem ao cinema. Os nossos amigos ficaram a saber
que o filme que estava planeado verem tinha cenas com violência e
crueldade a que não queriam que a filha assistisse. Seguiu-se uma crise.
“Mas toda a gente vai, porque é que eu não posso?” Os pais sentiram
mesmo que a filha não devia ver o filme. Conversando com alguns dos
outros pais, encontraram outros para quem a hora de ir buscar a filha
depois do cinema era inconveniente. Juntos, definiram um plano para que
ambas as meninas fossem à festa, saíssem antes do filme e passassem a
noite juntas. Esta solução satisfez tanto as filhas como os pais. Um final
feliz, mas só depois de alguma negociação criativa e sensível.
“Todos os meus amigos veem a televisão que querem!” “Porque temos
de comer comida saudável?” “A Lauren pode ficar acordada até à hora que
quer a mandar mensagens aos amigos, porque é que eu não posso?”
“Todos os meus amigos têm televisão no quarto.” É necessária uma
grande dose de força interior para suportar o que pode parecer uma
pressão incessante. Pode ser tentador ceder, sobretudo quando nos
sentimos cansados ou assoberbados. Mas enviar mensagens contraditórias
aos nossos filhos acerca de questões que nos parecem importantes apenas
os encoraja a insistir mais para obterem o que querem e isso não os
beneficia, nem a nós.
Na nossa sociedade, os objetos estão imbuídos de poder. Uma criança
que se sinta perdida ou impotente pode fixar-se em bens materiais,
pensando que a levarão a sentir-se melhor ou que lhe melhorarão o status
entre os colegas. O desenvolvimento da vida interior de uma criança, a sua
noção de si mesma e do ser único que é, requer algo mais complexo do
que os ténis da última moda. Ajudar os nossos filhos a encontrar
atividades que os animem, sejam artes marciais, dança, desporto, tocar um
instrumento musical, representar, fazer caminhadas de mochila às costas,
desenhar, reparar ou construir coisas, escrever num diário, cantar ou o que
quer que os cative, pode proporcionar alternativas satisfatórias às soluções
rápidas da nossa cultura orientada para o consumo.
Fazendo isto, somos desafiados a encontrar o equilíbrio certo entre, por
um lado, marcar demasiadas coisas no calendário dos nossos filhos, dar-
lhes demasiadas escolhas e demasiadas atividades e, por outro, ignorar as
suas necessidades e não investir o tempo e a energia para encontrar
aplicações para a sua criatividade e talentos únicos. Um calendário
demasiado preenchido pode ser uma forma de negligência, caso marcar-
lhes atividades sem fim ocupe o lugar de passarem tempo connosco ou
contribua de alguma forma para lhes causar desequilíbrios graves ou
stresse.
Há crianças que encontram facilmente o próprio equilíbrio, procurando
de forma natural atividades que lhes interessam, para além de saberem
como ocupar o tempo a sós, em silêncio e introspeção. Outras crianças
precisam de um empurrão, por vezes forte, para que façam coisas,
experimentem coisas novas ou sejam ativas. Algumas precisam de ajuda
para abrandar, para redirecionar a energia para atividades mais calmas.
Apoiar os filhos para que criem algum equilíbrio nas suas vidas pode
requerer esforço, encorajamento e ação continuados da nossa parte.
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A minha filha mais nova, com onze anos, volta de uma aula de arte com
um esboço do rosto de uma modelo. Parece uma pessoa na casa dos trinta
e transmite uma noção da sua singularidade como indivíduo, usando cores
que nunca me teriam ocorrido usar para dar forma a um rosto – amarelo,
azul e verde-seco. Ela sempre foi muito terra a terra acerca da sua
capacidade para desenhar, mas percebo que se sente orgulhosa deste
esboço em particular e até me diz que está orgulhosa de si mesma. Depois,
vejo-a a olhar para o esboço quando passa por ele. Passou do modo não-
pensante de apenas olhar e desenhar para ver o resultado com um
distanciamento maior. A dada altura, fica preocupada por os olhos
parecerem tão diferentes um do outro e pergunta-me o que acho deles.
Digo-lhe que é isso que dá um ar tão real, tão interessante ao rosto. É raro
as pessoas terem rostos perfeitamente simétricos. Ela parece satisfeita.
Todas as tempestades e perturbações, conflitos e dificuldades dos últimos
dias e semanas são postos de parte. Há uma sensação natural de equilíbrio
e bem-estar nela e entre nós neste momento.
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Quando os nossos filhos passam pela adolescência, pode parecer que os
fios da nossa ligação com eles se esticam, se retesam e por vezes se
desfiam, comparados com quando eram mais pequenos. Manter esses fios,
garantir que perduram, fazer o que pudermos para os fortalecer, pode
constituir um esforço monumental. Por vezes, essas ligações fortalecem-se
quando somos capazes de atribuir mais liberdade aos nossos filhos para
que se descubram a si mesmos, apesar das nossas ansiedades, reservas,
dúvidas, desagrados e até um sentimento de perda por uma altura talvez
mais idílica que agora pareça desaparecida.
Ao mesmo tempo, muitas vezes precisamos de equilibrar a sua liberdade
crescente demarcando limites apropriados que tenham em conta as
realidades do momento. Os pais debatem-se continuamente com as
questões de quanta liberdade devem dar aos filhos, do que é prejudicial e
do que é inócuo, enquanto se esforçam por atingir o equilíbrio certo entre
liberdade e limites.
Quando pressentimos que um adolescente está a sofrer por falta de
equilíbrio, talvez queiramos começar por encorajá-lo a examinar por si
mesmo o que está a funcionar na sua vida e o que não está e a tentar
encontrar as suas próprias soluções criativas. Se parecer que precisa do
nosso apoio nesse processo, poderemos ajudá-lo a identificar estratégias
possíveis para proceder a pequenas ou grandes alterações. Estas podem
assumir a forma de modificar o seu currículo escolar, encontrar saídas
saudáveis para a sua energia e criatividade fora da escola e encontrar
formas significativas de se relacionar com a comunidade para que possa
ter um maior sentido de pertença e sentido. Fazer isto de formas que não
diminuam a confiança do nosso adolescente na sua própria força e nos
seus recursos internos requer alguma habilidade e sensibilidade. É
importante que estejamos cientes dos nossos próprios impulsos de assumir
o controlo ou sermos invasivos, dominadores, sabichões ou castradores.
Nalgumas circunstâncias, é possível que nada possa ser feito, tanto pelo
nosso filho como por nós. Então, enquanto pais, cabe-nos ver a longo
prazo, ao mesmo tempo que somos compassivos com os sentimentos do
nosso filho, sejam eles quais forem. Sermos pacientes em tais momentos,
com a noção de que há coisas que não podemos mudar para proteger o
nosso filho, bem como outras que não devemos tentar mudar, por mais
que queiramos fazê-lo, pode ser uma fonte de força para nós e, em última
instância, também para o nosso filho. Compreendermos que os filhos
podem aprender e crescer ao depararem-se com os limites inevitáveis que
a própria vida apresenta pode ser aquilo que mais ajuda. Mantermos esta
atitude passa a mensagem de que temos confiança na sua capacidade de se
adaptarem, suportarem e, em último caso, aceitarem a adversidade.
Aprofundaremos mais este tema no capítulo acerca de limites e aberturas.
Durante estes anos, por vezes, poderá ser-nos difícil manter o nosso
próprio equilíbrio emocional e a clareza. Quando os nossos filhos são
adolescentes, obviamente temos muito menos controlo e, não raro, muito
mais com que nos preocupar. A comunicação pode frequentemente perder-
se, apesar dos nossos esforços e das melhores intenções. Podemos acabar
a sentir-nos confusos, assustados e desesperados. O desafio de criar
adolescentes requer, por vezes, que nos mantenhamos dentro de tais
sentimentos, por mais difíceis que sejam, e que os aceitemos sem nos
criticarmos por os termos, nem tentarmos fazer algo mais acerca deles do
que reconhecê-los. Preservar as nossas emoções aflitivas em consciência e
com aceitação é uma forma de restaurar um certo equilíbrio e perspetiva
em nós mesmos. Tal mudança de perspetiva pode apoiar-nos em
momentos sombrios e, por vezes, dar azo a aberturas ou perceções
inesperadas.
>>>
Já é de noite quando vou buscar a minha filha à escola. Com quase quinze
anos, teve um dia inteiro de aulas, remou muito pela sua equipa e acabou
de ir a Boston com a sua turma de inglês para assistir a uma peça que
leram na aula. Acorda cedo e, por volta das dez da noite, costuma estar
cansada e maldisposta. Hoje, porém, está cheia de energia e de bom
humor. Os dias sombrios de vazio e tédio parecem distantes. Agora está
completamente interessada – tem bolhas nas mãos, de remar, aprecia a
qualidade da representação a que acaba de assistir, está a planear a
estratégia para fazer o que é preciso no dia seguinte, pede-me a opinião
acerca da sua seleção de disciplinas para o ano seguinte. Enquanto
falamos do que quer fazer no próximo ano, regozijo-me com esta sensação
de equilíbrio na sua vida... com este momento de primavera, quase à meia-
noite, nesta calma de dar e receber.
>>>
Por vezes, os pais sentem a necessidade de tentar contrariar e atenuar,
tanto quanto possível, as influências negativas que a cultura mais
abrangente tem sobre a família. Para isso, por vezes, temos de tomar
decisões que entram em conflito com o que os nossos filhos querem e com
é permitido aos seus pares fazerem. Crianças em idade escolar beneficiam
de limites consistentes mas razoáveis à sua exposição aos aspetos
potencialmente opressivos, destrutivos e viciantes da cultura – de centros
comerciais a filmes, passando pela Internet. A nossa posição pode
enfurecê-los, mas simultaneamente também pode haver uma sensação de
segurança por saberem que os pais se preocupam o suficiente para se
aterem ao que sentem ser importante, mesmo que sejam temporariamente
“odiados” por isso.
Chegar a tais decisões e tentar ajudar os nossos filhos a identificar
atividades e saídas alternativas para as suas energias, em tais momentos,
requer tempo e energia da nossa parte. Pode ser difícil arranjar soluções
com as quais possamos viver e que não sejam totalmente restritivas ou
punitivas. Estamos sempre a trabalhar no campo magnético da
conformidade dos pares, que muitas vezes exerce uma atração fortíssima
sobre os nossos filhos. Tentando usá-la sempre que possível, em vez de a
contrariar, podemos compreender e respeitar a necessidade que têm de se
integrar e ser aceites, de serem “como todos os outros”, ao mesmo tempo
que os encorajamos a encontrar as suas próprias formas tanto de pertencer
como de expressar a sua individualidade. Enquanto se esforçam por se
definir, podemos proporcionar-lhes uma estrutura tranquilizadora na qual
podem embater. Encontrar o equilíbrio certo requer que lhes
proporcionemos limites saudáveis, não sendo tão rígidos e restritivos que
criemos frutos proibidos e, ao mesmo tempo, os afastemos.
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A infância é uma época de inocência e ingenuidade, e essa inocência
precisa de ser protegida. À medida que as crianças crescem e interagem
mais com o mundo, precisamos de as ajudar a equilibrar a sua franqueza e
confiança naturais com uma noção dos potenciais perigos desse mundo.
Em idades apropriadas, e de maneiras apropriadas, podemos encorajá-las a
estarem cientes de como as outras pessoas se comportam em relação a elas
e a confiarem nos seus próprios sentimentos e intuição. Podemos
incorporar isto no nosso próprio comportamento, dizendo-lhes quando
vemos alguém a agir de formas que pareçam desrespeitadoras, enganosas
ou estranhas. Podemos perguntar-lhes como se sentiram em certas
situações e apoiar-lhes os sentimentos. Nomear comportamentos
perturbadores à medida que os vemos é uma importante lição de vida e
desenvolver uma visão capaz de discernir como os outros agem em
relação a nós é uma habilidade aprendida. Estando mais atentos desta
forma, os nossos filhos poderão ser apropriadamente cautelosos e
cuidadosos, até mesmo desconfiados, em certas situações. Isto é mais do
que equilibrado pelas relações afetuosas que têm na família e com amigos,
laços construídos ao longo do tempo sobre uma base de confiança,
respeito, honestidade e aceitação.
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Pode ser particularmente difícil para as mães encontrarem um equilíbrio
entre acalentar quando isso é importante e necessário e saber quando é
importante não darmos e acalentarmos tanto. Tal equilíbrio envolve
aplicar a atenção plena às nossas próprias necessidades e não permitir que
se percam no campo magnético das necessidades de todos os outros
membros da família. Isto é particularmente difícil quando sentimos que
estamos à beira da rutura, exaustas e saturadas. Por ironia, é
frequentemente ser em momentos desses que os nossos filhos exigem
mais de nós.
Podemos começar por reconhecer o que um filho pode estar a precisar
de nós – “Parece que tu…” ou “Percebo que tu…” – respondido de uma
forma factual, mas ao mesmo tempo dizendo-lhe o que precisamos nesse
momento: “Posso ajudar-te com isto depois, mas agora tenho de acabar o
que estou a fazer.” Ou: “Preciso que trates tu disto.” Ou: “Tenho de me
deitar uns quinze minutos; depois já estarei em condições de falar disto
contigo.” Ajuda ter atenção ao tom de voz. Ser calmamente firme é
essencial. Tudo isto requer prática.
Noutra frente, os pais podem dar por si em conflito enquanto tentam
equilibrar a sua necessidade de interagir com o mundo de formas
significativas e sustentar financeiramente a família, com as necessidades e
desejos dos filhos que os querem em casa e disponíveis. Trata-se de um
processo contínuo de procurar equilíbrio interior e exterior. Por vezes,
temos de parar intencionalmente, dar um passo atrás e verificar o que está
a acontecer na família. Ao fazê-lo, poderemos ser capazes de ver soluções
criativas que antes não nos eram visíveis para nós.
Ao estarmos mais equilibrados, podemos ficar cientes dos nossos filhos
sem estarmos obcecados com eles. Há uma grande diferença entre ter um
apreço contínuo pelas qualidades únicas de um filho e estar demasiado
envolvido e investido. Quando nos sentimos equilibrados, temos uma
capacidade maior de apreciar o que é positivo sem precisarmos de que
esteja sempre em evidência. Somos capazes de nos relacionar com os
nossos filhos a partir do nosso próprio centro forte, em contacto com a
nossa própria plenitude, ligados ao mundo à nossa própria maneira,
vivenciando os nossos próprios prazeres e ligações significativas.
Ficamos sempre comovidos e encorajados quando vemos pais que
foram capazes de transcender os limites das suas próprias infâncias e a
época e os costumes em que foram educados, criando, por vezes a partir
do nada, uma forma diferente de serem pais. De alguma maneira,
conseguiram aplicar um equilíbrio maior à sua própria parentalidade.
Encontraram formas de proporcionar cuidado e suavidade onde, para eles,
só havia rigidez, ou de proporcionar proteção e limites quando eles não os
tiveram, ou de dar apoio e encorajamento quando eles próprios foram
negligenciados e ignorados. Assistirmos a isto dá-nos esperança de que, se
pudermos começar a prestar atenção e ver as escolhas que temos em cada
momento, uma nova forma de criar os filhos é possível, uma forma mais
consciente e equilibrada.
Como pais, estamos continuamente sobre a corda bamba entre a
liberdade e os limites, a confiança e a desconfiança, a atividade e a
imobilidade, a vacuidade e a substância, a ligação e a separação. É um ato
de equilibrismo que vale a pena, uma prática semelhante a qualquer pose
de equilíbrio do ioga, mas muito mais desafiante.
OITAVA PARTE

Realidades
Rapazes4
A exuberância elementar dos rapazes, o fascínio e encanto intermináveis
com que encaram o mundo e os milhares de formas como a sua energia se
expressa em exploração, brincadeira, momentos de pausa, imobilidade,
zanga e desalento oferecem desafios e oportunidades sem fim para que
nós, pais, reencontremos essas energias em nós mesmos, enquanto
acalentamos os nossos filhos emocionalmente e de outras formas e,
esperamos, lhes proporcionamos exemplos de uma presença masculina ao
longo do seu crescimento até serem homens adultos. Seria bom que,
enquanto pais, nos mantivéssemos abertos à possibilidade de conhecermos
os nossos filhos como eles são, seres únicos que poderão ou não partilhar
as nossas qualidades temperamentais, as nossas capacidades e os nossos
interesses. Mais importante é sermos uma presença nas suas vidas e
vermo-los e aceitarmo-los como são na verdade, encontrando formas
imaginativas de ir ao seu encontro ao longo da infância, da adolescência e
depois. Isto não é fácil. Requer uma preocupação, um empenho e um
discernimento constantes, bem como uma disposição a, por vezes, sairmos
das nossas próprias zonas de conforto, à medida que eles crescem, mudam
e passam a habitar mais completamente as suas vidas. Também requer a
nossa presença física e, ainda mais importante, disponibilidade emocional
e vontade de aprender e crescer.
Como pai, uma alegria especial proveio dos momentos que passei com o
meu filho em idades diferentes, encontrando o mundo com ele e
observando-o a expressar as qualidades únicas do seu crescimento dia a
dia. A sua exuberância natural fazia de tudo uma aventura. Vezes sem
conta, partilhar o mundo através dos seus olhos abria os meus.
Quando ele ficou fascinado por dinossauros, íamos ao museu da ciência
e fitávamos os enormes tiranossauros, de aspeto tão feroz, primeiro ao
nível dos olhos, depois a partir de baixo, olhando para cima. Em seguida
explorávamos o resto do museu. Quando eu ia correr e ele era pequeno,
por vezes levava-o comigo, segurando-lhe o guiador da sua pequena moto
de plástico enquanto ele seguia à beira do grande lago onde toda a gente ia
correr ou passear os cães. Mais tarde, de vez em quando, corríamos juntos.
Eu adorava ler-lhe à noite, ou quando íamos acampar, e contar-lhe
histórias que o incluíssem, que eu ia improvisando.
Lutávamos muito, rebolando pela sala de estar agarrando-nos como
leões até estarmos exaustos. Fizemos isso durante anos, até ele ter
começado a praticar luta livre na escola secundária e o risco de me
lesionar passou a ser significativamente maior.
Quando ele era muito pequeno, eu praticava regularmente esgrima
coreana (Shim GumDo – o “Caminho Mente-Espada”) e, por vezes,
levava-o ao dojo para ele nos observar a treinar. Ele adorava e eu também.
Parei o treino formal quando ele tinha uns três anos mas, durante anos
depois disso, de vez em quando colocávamo-nos em formas estilizadas de
combate, com espadas de madeira, fazendo uma vénia de apreço mútuo,
antes e depois de cada ronda. Ele tinha uma espada curta que conseguia
brandir facilmente. Era entusiasmante bloquearmos os golpes um do outro
com as espadas, vermos que éramos capazes de nos proteger de golpes
assustadores vindos de várias direções e permanecermos calmos e
estáveis, enraizados no movimento, no ritmo e no som dos paus a bater
um no outro. Ele começou a treinar várias artes marciais quando tinha sete
anos. Nunca parou.
Em ocasiões raras, confrontávamo-nos zangados, não com espadas, mas
quando as nossas vontades fortes chocavam ou puxavam em direções
contrárias. Gradualmente, aprendi a reconhecer e suavizar o meu
temperamento inflamado e a dar-lhe mais espaço, lições que aprendi a
custo, debatendo-me por crescer para lá dos vestígios da minha própria
infância. Era importante para mim estar tão presente quanto possível
quando estava com ele.
Isso tornou-se mais fácil pelo facto de termos tantos gostos similares.
Ainda assim, por vezes, era necessário um esforço consciente, sobretudo
quando eu tinha muito em que pensar, um osso do ofício de se ser pai,
com o chamamento interminável de todas as outras coisas nas nossas
vidas que tão facilmente podem subverter a presença. Os filhos reparam
sempre. Passar demasiado tempo distraído passa a ideia de que tudo o
resto é sempre mais importante.
Dependendo dos seus temperamentos e interesses, rapazes diferentes
terão, como é evidente, necessidades diferentes à medida que crescem.
Mas uma coisa que todos precisam é de uma boa dose de espaço
psicológico para crescerem por si mesmos, para descobrirem coisas longe
dos pais. Quando eu era um rapazinho a crescer em Nova Iorque, aprendi
lições incomparáveis que nunca poderia ter aprendido com os meus pais,
passando horas infinitas na rua a jogar à bola ou só a passar o tempo, que
se transformaram na arte refinada de observar o ponto nevrálgico da vida
citadina. Eu tinha a sorte de a minha vida familiar ser estável e de poder ir
jantar a casa todas as noites, sair da rua e aprender outras coisas com os
meus pais e irmãos.
Para além de todas as suas atividades e interesses, solitários e com
amigos, os rapazes têm uma necessidade persistente de que os seus pais,
avôs e outros homens estejam presentes, os ponham em primeiro lugar, se
preocupem com eles, demonstrem interesse e partilhem tempo com eles,
que lhes contem histórias e ouçam as deles. Isto é verdade quer vivam
com os pais, quer não.
Os rapazes podem beneficiar muito de orientação masculina ao
explorarem os seus interesses e talentos, a sua força e os seus limites, bem
como encorajados e ensinados a usá-la de formas positivas, tanto para si
mesmos como para o bem de outras pessoas. Podemos apoiá-los nos seus
esforços de explorar e conhecer a sua própria força sem a exagerar ou
ostentar. De uma forma similar, como pais, podemos encorajar-lhes as
brincadeiras, a criatividade, a sensação de pertença, uma noção de
responsabilidade e de serem necessários.
Descobertas deste género podem obter-se quando pais e filhos fazem
coisas juntos ou passam tempo juntos em inatividade, o que por vezes
pode consistir em ir à pesca, brincar à apanhada ou estarem num campo a
observar as nuvens, passearem, andarem de metro, ou irem ao estádio de
beisebol ou a um museu.
É possível que nós, pais, nos empenhemos, por mais inadequados que
por vezes nos sintamos perante tal desafio – por mais condicionados que
possamos estar pelos nossos empregos, pelas nossas obrigações
profissionais, pelas nossas rotinas, distrações, ambições e até mesmo
vícios – em passar esse tempo com os nossos filhos? Esse não fazer – a
que em O Monte dos Vendavais se chama “brincar em barcos”, é bem mais
do que isso – pode ser um apoio para os nossos filhos arranjarem
expressões significativas para as suas ações e interesses e ajudá-los a
desenvolverem as suas forças e uma sensação de mestria. Igualmente
importante, poderemos fomentar uma paisagem emocional na qual sentir
coisas profundamente é não apenas aceitável mas também visto como
essencial a ser-se completamente humano? Tal orientação não é
fundamentalmente diferente daquela que as raparigas também precisam
dos seus pais. As energias podem, por vezes, parecer diferentes de acordo
com o temperamento, mas a necessidade de presença e de se ser visto e
tratado com amabilidade e reconhecimento são as mesmas.
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A nossa cultura pode ser bastante polarizante em torno da questão do que
significa hoje em dia ser-se homem. As normas mudam rapidamente e
tornam-se mais inclusivas e diversas nesta época. No entanto, ainda
abundam estereótipos nos meios de comunicação que equiparam a
diversão e ser-se fixe com ser-se macho e mulherengo, beber e correr
riscos – basta ver os anúncios televisivos ou os placards nos camiões a
publicitar cerveja, ou seguir na comunicação social as provas de
determinados atletas de liceu e faculdade, bem como de militares, e os
horríveis comportamentos aviltantes e violentos que são descritos em
termos gráficos com tanta frequência. “Assim são os rapazes” já não tem a
inafabilidade de outrora para desculpar e exonerar comportamentos
nocivos, mas ainda há muitas lições a aprender acerca de honrar a
soberania dos outros, em termos de género e orientação sexual, em muitos
domínios da sociedade. Os pais podem ajudar os filhos a tornarem-se
atentos e a interpretarem as várias mensagens e imagens subtis e não tão
subtis que a cultura emite, muitas das quais são humilhantes para
mulheres e raparigas – e, na verdade, também para homens, se pararmos
para pensar nisso. Talvez, assim, seja menos provável que os nossos filhos
sejam cativados por imagens e formas de pensar tão estereotipadas e pelos
comportamentos frequentemente ofensivos que derivam delas. Parte da
sua educação, como membros do sexo masculino nesta sociedade consiste
em compreender, da forma mais profunda possível, que mulheres e
raparigas são seres humanos e não objetos. Trata-se de uma tremenda
questão endémica da sociedade, e é muitíssimo importante que nós,
enquanto pais e mães tanto de rapazes como de raparigas, estejamos
cientes dela e a enfrentemos com consciência quando surge nas suas
experiências na escola, nas suas redes sociais e nas suas interações com a
sociedade. Pode requerer que nós, pais, atentemos e reconheçamos, por
desafiante que isso possa ser, a como nós mesmos talvez guardemos e
manifestemos hábitos profundamente enraizados, e muitas vezes
inconscientes, no que diz respeito a isto.
Muitas das imagens sociais dominantes de homens e mulheres nos
Estados Unidos resultam daquilo a que Robert Bly chamou,
acertadamente, há décadas, a “sociedade dos irmãos”, um mundo em que
o pai, e cada vez mais a mãe também, se encontram física e/ou
emocionalmente ausentes e onde os modelos prevalecentes tanto para
rapazes como para raparigas são, por predefinição, proporcionados pelos
meios de comunicação, pela indústria do entretenimento e pelos pares.
Este fenómeno é cada vez mais liderado pela Internet e pelos
relacionamentos nas redes sociais. No mundo de hoje, é difícil para os
rapazes encontrarem mentores na vida real e alguma espécie de iniciação
cerimoniosa na idade adulta e no reconhecimento, conhecimento e
sabedoria coletiva dos que o antecederam. Trata-se de um mundo no qual
o passado, muitas vezes, é rejeitado sem sequer ser conhecido. Uma
alienação profunda e mútua entre as gerações pode levar os rapazes
adolescentes a tentarem criar-se e socializar-se por si mesmos e, nesse
processo, ficar cada vez mais em risco e vulneráveis. Muitos aspetos da
cultura dominante são exploradores e predadores, apesar de alguns
esforços da parte da sociedade para promover e proteger os direitos quer
das crianças, quer das mulheres.
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Poderemos perguntar-nos do que precisará hoje em dia um rapaz para
viver sensatamente num mundo que muda tão depressa, que nós, os pais,
não temos forma de saber que desafios enfrentará dentro de dez ou vinte
anos – ou cinco, sequer. Na ausência de uma cultura que honre, valorize e
dê prioridade às necessidades de todas as suas crianças e assuma alguma
responsabilidade social pelo seu desenvolvimento e entrada no mundo dos
adultos, os pais terão de fazer o trabalho inestimável de servir como guias
dos filhos. Sabemos, a partir de pesquisa alargada, que a inteligência e o
equilíbrio emocionais – uma capacidade de nos relacionarmos com outros
num vasto leque de circunstâncias – serão decerto necessários para uma
vida feliz e produtiva no futuro. O mindfulness é outra ferramenta para a
vida que se revelará essencial. Como pais, podemos valorizar o cultivo das
nossas próprias forças interiores pelos nossos rapazes, qualidades como
bondade amorosa, compaixão, constância, fiabilidade emocional,
flexibilidade, clareza de visão e até sabedoria. Tudo isto provém da
atenção plena dada aos relacionamentos a cada momento, tanto interior
como exterior. Podemos valorizar e recorrer à nossa soberania, à nossa
verdadeira natureza e ao melhor da nossa própria linhagem (ou linhagens),
seja indígena, africana, asiática, europeia, cristã, judaica, muçulmana,
budista, hindu, “nenhuma das referidas” ou “outra”. A alternativa é uma
espécie de desenraizamento, de não sabermos quem somos e talvez não
nos importarmos de não termos “povo”, uma comunidade a que
pertençamos e dentro da qual sejamos conhecidos e aceites como somos e
perante a qual nos sintamos responsáveis e ligados.
Isto não pretende sugerir algum ideal romântico da paternidade. Pelo
contrário, estamos a falar de um processo em que podemos e devemos
empenhar-nos em prol do nosso amor e do nosso cuidado, e devido ao
nosso desejo de sermos o melhor que podemos ser pelos nossos filhos.
Parte deste processo inclui o nosso próprio crescimento contínuo.
Poderemos prestar suficiente atenção à nossa experiência a cada momento,
tanto interna como externamente, para aprendermos a estar mais
confortáveis na nossa própria pele, a estar mais confortáveis com por
vezes não sabermos, para lidarmos com o nosso medo quando este surja e
com os nossos impulsos de nos fecharmos ou entorpecermos
emocionalmente? Poderemos praticar trazer uma certa consciência a como
realmente nos sentimos em determinados momentos ao longo do dia?
Poderemos praticar a empatia, a aceitação e a diversão? Poderemos ter
atenção a quão completamente absortos andamos com o nosso trabalho e
depois esforçar-nos por encontrar um equilíbrio maior? Na sua essência,
estas abordagens são simplesmente aplicações criativas de mindfulness
nas nossas vidas e na nossa parentalidade.
A presença de um homem forte e compassivo no papel de pai, avô ou
mentor é sempre importante para os rapazes, mas torna-se cada vez mais
importante à medida que os rapazes avançam pela adolescência. Os
adolescentes precisam desesperadamente de serem vistos, ouvidos e
escutados, reconhecidos e aceites, bem como encorajados a assumir
responsabilidade pelas suas próprias ações. Para muitos rapazes, trata-se
de uma das transições maiores e mais confusas, incertas e estranhas que
alguma vez farão na vida. A transição de rapaz para homem requer uma
visão, uma nova forma de ver e uma nova forma de ser. É possível
encorajar os rapazes adolescentes a reconhecer e apreciar o mistério e o
desconhecido, incluindo outras pessoas e costumes. Podemos encorajá-los
a conhecer os perigos de se deixarem levar por uma mentalidade tribal que
faça distinções absolutas entre “nós” e “eles” e depois, por medo e
preconceito, os lance na guerra e na violência para conquistar “o outro”,
sem se dar conta de que “eles somos nós”. Este é o desenvolvimento lento
da maturidade, dos rapazes adolescentes a aprenderem a assumir os seus
lugares, segundo a expressão do professor zen Norman Fischer, a entrar
com cada vez mais consciência, numa relação sempre em
desenvolvimento e cada vez mais profunda consigo mesmos e com os
outros.
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É claro que os rapazes também recebem um cuidado essencial de uma
relação afetuosa e acalentadora com as mães. Encontrarem-se na aura do
amor maternal, sem serem controlados ou terem de cuidar das
necessidades emocionais da mãe, cria uma base de segurança interior e
enraizamento emocional necessária para as partidas e aventuras no mundo
que têm de ocorrer à medida que um rapaz cresce. Mas os rapazes
precisam igualmente dos pais desde os primeiros momentos, tal como as
raparigas. E os pais precisam dos seus filhos. Se não estivermos presentes
em momentos-chave da vida dos nossos filhos, poderemos não os
conhecer. Se os virmos nascer, se lhes pegarmos quando são pequenos, se
sonharmos com eles enquanto dormem encostados ao nosso ombro, se
andarmos com eles pelo mundo e falarmos com eles acerca do que veem,
se lhes oferecermos ferramentas com que trabalhar e projetos a que
dediquem braços e mentes, se nos pusermos no chão com eles para brincar
e inventar jogos, se lhes contarmos histórias, virmos o sol a pôr-se e a
chuva a cair, se escavarmos na lama e construirmos castelos de areia na
praia, se atirarmos pedras para a água e talharmos paus, se escalarmos
montanhas e nos sentarmos junto a cataratas, se nos divertirmos com eles
em barcos a remos e canoas, se cantarmos, se os virmos dormir e os
acordarmos delicadamente... iremos conhecê-los e eles irão conhecer-nos
de formas que lhes ampliarão o desenvolvimento e o nosso também.
Pais e filhos podem ajudar-se mutuamente a crescer e a encontrar beleza
e significado nos momentos fáceis e, como temos dado a entender,
também nos momentos mais sombrios e penosos. Os nossos rapazes
precisam de que sejamos honestos e inabaláveis no amor e no empenho
que lhes dedicamos. Também precisamos de lhes dar o espaço para que
encontrem os seus próprios caminhos pela dor e pelo sofrimento, ao
mesmo tempo que os apoiamos tanto quanto pudermos. Haverá alturas em
que precisarão de que estabeleçamos certos limites, numa tentativa de os
mantermos a salvo. Noutras alturas, teremos de os estabelecer apenas pela
nossa própria paz mental e pelo nosso bem-estar enquanto pais. Não há
um guião para isto, mas trata-se da essência do amor; muda-nos e ensina-
nos lições difíceis, tal como os nossos rapazes aprendem as suas próprias
lições.
Para nós, pais, também é aqui que a atenção plena se torna preciosa.
Pois a evolução das coisas depende, de certa maneira, da nossa própria
vontade de nos tornarmos mais familiarizados com o indesejado e de
aprendermos que, quer isso nos agrade quer não, por vezes é tudo aquilo
com que temos de lidar. Podemos estar recetivos à possibilidade de o
indesejado ser em si mesmo exequível, se estivermos dispostos a proceder
a um certo tipo de trabalho interior em nós próprios. Por exemplo, a
atenção plena pode permitir-nos ver, nalguns momentos, quão obstinados
podemos ser em relação à nossa própria visão das coisas; quão apegados
podemos ser a julgar que temos razão, quando, na verdade, talvez não
tenhamos; e permitir-nos ver coisas que talvez não víssemos antes. Pode
revelar com que facilidade, por vezes, abandonamos o coração e o bom
senso ao reagirmos por medo ou zanga nos momentos em nos sentimos
frustrados ou contrariados pelo que quer que surja e não nos agrade ou não
nos pareça “tolerável”. Quando dermos por nós a contrair-nos assim, isso
é uma oportunidade para nos determos e reconhecermos o apego que
temos à história mental acerca do que está a acontecer. Podemos então
recordar-nos que isso não é a verdade – que não pode ser toda a verdade,
apesar de podermos estar convencidos de que sim. Podemos recordar a
nós mesmos que, se nos libertarmos dessa visão demasiado tacanha das
coisas e dos nossos próprios pressupostos tácitos, que permanecem por
examinar mas não têm de continuar assim, podermos estar presentes,
relacionar-nos e agir de formas bem mais sensatas. A maior parte da nossa
reatividade provém da mente pensante, que costuma ser influenciada por
algo que resta do nosso próprio passado, ou por medo do futuro. Reagir
irrefletidamente faz-nos perder a noção do que poderá ser necessário no
momento presente, sobretudo nos momentos mais difíceis e exigentes,
justamente quando mais precisávamos de estar presentes e de responder
em vez de reagir.
À medida que os nossos filhos crescem e se tornam eles mesmos, é
claro que encontrarão outros rapazes que partilhem as suas paixões e com
quem poderão formar amizades, algumas das quais poderão ser
duradouras e profundamente proveitosas. Música e dança, a natureza, os
bosques e os campos, a vida citadina, o desporto, a literatura e as artes,
tudo isso tem o seu chamamento em períodos quer de luz, quer de
escuridão, oferecendo mundos de sentido e valor, servindo como espelhos
nos quais os rapazes podem ver-se e continuar a descobrir quem são e do
que gostam, viver os seus momentos por completo, confiando no seu
próprio poder enraizado no seu corpo e tornando-se adultos planetários de
pleno direito, à medida que participam nos mistérios da criação e da sua
nova geração, e assumindo os seus próprios lugares no mundo.
Crescer neste mundo em rápida mudança, explorar qual poderá ser o seu
lugar autêntico nele... é um processo não-linear capaz de ser confuso e
assustador, até mesmo perigoso, por vezes. Em última análise, chegar à
idade adulta é uma odisseia do desenvolvimento. Quando os rapazes se
deparam regularmente com aceitação e amabilidade por parte dos pais e
de outros homens, identificar-se-ão com isso a certo nível, mesmo que na
altura não nos pareça que assim é. Serão cuidados de formas que cada vez
mais lhes permitirão encontrar ou criar o seu próprio lugar neste mundo.
Isso pode demorar pouco tempo, ou muito, em termos relativos, mas não
importa. Quanto mais à vontade e confiantes os rapazes estiverem com o
funcionamento da sua mente e do seu corpo, com os seus pensamentos e
emoções, com os seus desejos e anseios, quanto mais conseguirem confiar
nessa capacidade interior de prestar atenção, mais capazes serão de viver
com uma compreensão cada vez maior de quem são e de estar recetivos ao
vasto leque de possibilidades e realidades com que se deparam.
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Quando eles [os filhos, Kai e Gen] tinham quatro e cinco anos, íamos
a pé até Bald Mountain e olhávamos para trás para vermos a nossa
casa. Quando tinham sete e oito anos, subíamos a pé até Grouse Ridge
e olhávamos para baixo e víamos Bald Mountain, de onde se via a
nossa casa. Uns anos depois, fomos até à High Sierra e chegámos aos
2500 metros de altura da English Mountain, de onde se vê Grouse
Ridge. E depois fomos até Castle Peak, que é o cume mais alto dessa
cordilheira, com 3000 de altura, escalámo-lo, e daí vê-se a English
Mountain. Em seguida, continuámos para norte e escalámos Sierra
Buttes e Mount Lassen – Mount Lassen foi o mais longe a que
chegámos até agora. Então, de Mount Lassen vê-se Castle Peak,
English Peak, Grouse Ridge, Bald Mountain e a nossa casa. Era assim
que se devia aprender o mundo. É uma geografia intensa que nunca
está muito longe do nosso corpo.
GARY SNYDER
4 Este capítulo foi escrito a partir das minhas (jkz) perspetiva e
experiência pessoais enquanto pai. Não pretende sugerir, de forma
alguma, que as mães não possam envolver-se na vida dos seus filhos do
sexo masculino de formas similares, o que acontece com muitas, solteiras
ou não.
Hóquei no Lago
Quando a temperatura sobe por um dia ou dois e depois torna a gelar com
um nevão, os lagos no inverno de Nova Inglaterra clamam por um bom
jogo de hóquei no gelo. Quando isto acontecia no fim de semana ou nas
férias, eu (jkz) e o meu filho vestíamos várias camadas de roupas quentes,
agarrávamos nos nossos stiques, discos e patins e seguíamos para o lago
ao fundo da colina. Aí calçávamos os patins, debatendo-nos com os
atacadores compridos e os dedos gelados até conseguirmos apertá-los o
suficiente, percorríamos a cambalear os metros de neve que nos
separavam do lago e alcançávamos uma nova liberdade à beira do gelo.
Patinávamos durante algum tempo, inspecionando o gelo de todo o lago
e habituando-nos à sensação de voltarmos a estar de patins. Depois
selecionávamos cuidadosamente um lugar e criávamos uma baliza com
um par de botas colocadas a uns metros de distância uma da outra.
Jogávamos um contra o outro... um de nós a defender a baliza, enquanto
o outro tentava marcar com o disco. O defesa podia sair da baliza e tentar
tirar o disco ao oponente, por isso havia muita patinagem veloz pelo lago,
stiques a baterem, corridas para chegar primeiro ao disco. Havia falsas
batidas e muitos lançamentos, perseguições e encontrões enquanto
manobrávamos um à volta do outro, com agilidade emocionante e risos. E,
claro, havia muitos golos e a pura alegria de sentir o disco passar o
guarda-redes e pelas botas, por vezes, em trajetórias altamente
improváveis que nos faziam rir.
Enquanto jogávamos, gerávamos calor. Por mais frio que estivesse o
dia, por mais cortante que fosse o vento, ao fim de algum tempo
sacávamos os gorros, as luvas, depois os casacos e as camisolas. Às vezes
ficávamos só com uma camisa no tronco. Enquanto continuássemos a
patinar, mantínhamo-nos quentes.
Jogávamos durante horas. Nunca houve uma vez que não fosse a melhor
de sempre. Cada vez era simplesmente agora, para lá do pensamento,
embrenhados na alegria de partilharmos o que sempre pareceu uma
energia particularmente masculina, embatendo um no outro vezes sem
conta, avançando com o disco, perseguindo-nos, bloqueando lances,
protegendo a baliza.
Às vezes, jogávamos à noite, sob o brilho laranja de um holofote alto
que a câmara tinha instalado, e mal conseguíamos ver o disco nas
sombras. Mas, na maior parte do tempo, jogávamos à tarde, continuando
enquanto o sol de inverno ia avançando cedo para se pôr. Por vezes,
tínhamos de parar e recuperar o fôlego. Deitados nos nossos casacos
abertos na neve à beira do lago, a ver as nuvens contra o azul carregado do
céu ou os fiapos de cor-de-rosa e dourado que começavam a surgir a oeste,
com a nossa respiração visível no ar acima de nós, desfrutávamos do
silêncio e da perfeição.
Gostaria de dizer que fizemos isto todos os fins de semana, ao longo de
anos e anos, mas não, e esses tempos parecem ter acontecido há muito. E
gostaria de dizer que eu e as minhas filhas tivemos sentimentos similares
ao jogarmos hóquei no lago, coisa que fizemos em raras ocasiões. Elas
gostavam mais de outras coisas. Adoravam patinar e faziam-no melhor do
que nós, mas faltava-lhes interesse pelo jogo do stique, do disco, do golo e
da perseguição.
Na maior parte do tempo, o lago estava coberto de neve ou gelo
irregular, tornando-se impossível patinar lá. Nalguns invernos, não gelava
o suficiente quando queríamos. E nós também tínhamos outras coisas a
chamarem por nós e outras oportunidades para estarmos juntos. Mas
nenhuma, alguma vez, foi melhor do que jogar hóquei no lago, no
inverno.
Campismo Selvagem
De vez em quando, quando os nossos filhos eram pequenos, tentávamos
passar tempo individualmente com eles, um de nós sozinho com um deles,
em vez de fazemos sempre coisas juntos, em família. As crianças precisam
de uma dose de atenção total de um pai, de tempos a tempos, e de fazer
coisas especiais sem ter de competir com irmãos ou o outro progenitor.
Essas saídas podem ser aventuras preciosas, quer durem umas horas ou
uns dias, quer tenham lugar na natureza ou na cidade, quer estejamos
sozinhos ou nalgum evento com montes de outras pessoas. Proporcionam
novas oportunidades para proximidade e para nos vermos a uma nova luz.
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Uma das coisas de que eu (jkz) mais gostava de fazer com os meus filhos
era levá-los a acampar na natureza, um de cada vez. Num ou dois dias,
criávamos experiências que davam uma nova forma à nossa relação e
memórias que podiam durar toda uma vida. Não há nada como passar uns
dias na natureza para nos recordarmos do que é importante e para nos
concentrarmos nas questões essenciais da vida.
Quando uma das minhas filhas tinha nove anos, levei-a até ao Wild
River, nas White Mountains. Deixámos o carro à entrada de um trilho e
caminhámos pela beira do rio durante uns oito quilómetros. Desde o início
que ela estava a sentir a falta da mãe. O calor brutal não nos facilitava o
avanço. A dada altura, em resposta à sua infelicidade, sugeri-lhe que
puséssemos os fatos de banho e entrássemos no rio para arrefecer. Ela
adorou estar no rio fresco com aquele calor, mas mesmo assim chorou um
bom bocado quando continuámos. Eu levava a mochila dela, para além da
minha. A minha filha ia alternando entre querer estar em casa, querer
chegar aonde íamos e não saber o que queria... sentindo-se apenas
tristíssima.
Num ponto mágico, deparámo-nos com um rebanho de lamas que iam
no sentido contrário. Contribuíram com um toque de exotismo para a
nossa aventura, ainda que apenas por breves instantes.
Era a história do costume. Tínhamos de continuar para chegarmos ao
sítio onde eu tinha planeado montar a tenda, antes de o sol desaparecer
atrás das montanhas. É claro que ela não compreendia isso e não percebia
por que razão um sítio não era tão bom como qualquer outro. Mas eu tinha
um lugar especial em mente, um espaço grande e plano que seria perfeito
para montar a tenda e próximo de uma pequena queda-d´água, que eu
sabia que a encantaria.
Com saudades de casa e infeliz, ela ia caminhando enquanto eu tentava
manter a compostura, debatendo-me com sensações de inadequação,
preocupado por aquilo poder transformar-se num desastre, sentindo que
estava a falhar por não ser capaz de lhe aplacar os medos ou de a “fazer”
feliz.
Por fim, chegámos ao sítio que eu tinha em mente, um sítio por onde
passara com o irmão dela vários anos antes, numa das nossas aventuras,
que nos levara por South Baldface e por este vale. As sombras já se
alongavam. Assim que chegámos, a disposição dela alterou-se. Gostou de
preparar o acampamento, de montar a tenda, de arrumar a roupa de
dormir, de atear a fogueira e de cozinhar o jantar. A pequena queda-d’água
era a nossa companheira, ia-nos cantando enquanto trabalhávamos,
enquanto cozinhávamos e enquanto comíamos sentados em troncos junto
à fogueira. O céu estava cheio de estrelas, que nunca conseguíamos ver na
cidade ou perto desta e o seu brilho tremeluzente passava pelos espaços
escuros entre as copas das árvores que rodeavam a nossa clareira
aconchegante.
Metemo-nos cedo nos sacos-cama e adormecemos com o som do rio a
correr. Ela adormeceu primeiro. Eu fiquei de barriga para cima, a olhar
para o céu, a respirar com todo o corpo, tão feliz por estar com a minha
filha, a ouvi-la respirar, a sentir a alegria de partilharmos uma aventura.
Acordámos com uma luz matinal azul e nítida, com os cumes das
montanhas a ficarem dourados. Aquecemos, tomámos o pequeno-almoço
e sentámo-nos perto da fogueira, a tratar dos planos para o dia. A minha
ideia era fazermos uma caminhada até ao cume da cordilheira. Mas essa
não era de todo a ideia da minha filha. Ela queria ficar onde estava. Não
tinha qualquer interesse em ir para o cume do que quer que fosse,
houvesse vista ou não. Não queria andar, caminhar ou escalar, sobretudo
com uma mochila às costas. Agora já estava em casa. Por isso, ali ficámos
e eu guardei as minhas fortes expetativas e desejos, apercebendo-me de
que, dadas as circunstâncias, era importante que a escolha fosse sua.
Por isso, explorámos a beira-rio e, quando o tempo aqueceu e o sol
incidiu no vale, explorámos dentro do rio. Ao meio-dia estávamos
sentados numa rocha alta, com o rio a correr à nossa volta por todos os
lados, fervilhante e ruidoso. Ali, li-lhe Ronia, the Robber’s Daughter, o
belo conto de Astrid Lindgren acerca de uma rapariga forte que vivia na
floresta com o jovem amigo Birk, com quem tentava solucionar a loucura
das vidas das famílias desavindas. Era bom estarmos juntos no bosque,
sozinhos, longe da civilização. Contentávamo-nos com pouco. Tínhamo-
nos um ao outro, sol, água, floresta, a intemporalidade do momento.
O Softebol Ilumina a Escuridão
No domingo de um fim de semana prolongado – início de uma semana de
férias da escola –, eu (jkz) tenho passado tanto tempo longe de casa que,
ao chegar, acabo por me sentir como um desconhecido. Myla e as meninas
desenvolvem os seus próprios ritmos na minha ausência. Para restabelecer
a ligação, por vezes faço perguntas parvas, do género “De que é que vocês
estão a falar?”, enquanto elas conversam umas com as outras.
Isso não lhes agrada. Parece-lhes intrusivo. Mantenho-me à porta do
quarto da minha filha, enquanto Myla está a ter uma conversa com ela. Eu
procuro proximidade, mas causo-lhes estranheza, como se quisesse que
algo acontecesse, como se estivesse cheio de expetativas silenciosas. Em
momentos como esse, sinto-me como um estranho na minha própria casa.
A minha prática, em tais momentos, consiste em estar presente sem me
impor ou às minhas necessidades. Não é fácil. Na verdade, é um grande
esforço. Estar simplesmente presente, fazendo o que preciso fazer, mas
sem sucumbir ao ressentimento, nem me isolar mais, seja deixando a mesa
do pequeno-almoço mais cedo, trabalhando ou pondo-me ao telefone...
esses são os meus desafios. Se eu fizer essas coisas, parece-me que
continuo fundamentalmente afastado, embora o meu corpo esteja presente.
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A manhã é tristonha, com nuvens baixas, um frio de meados de abril,
comunicações com familiares distantes e a necessidade de adiantar
trabalho. Mas, em vez de me isolar no gabinete, entro e saio da cozinha,
assegurando-me de que estou por perto e sem ceder ao impulso de pegar
no jornal de domingo.
Tentar que a minha filha saia de casa para fazer alguma coisa comigo
não é fácil, mas hoje volto a tentar, ao final da tarde. Com esta idade,
costuma rejeitar qualquer coisa que lhe proponha que façamos juntos. Mas
o seu treinador de softebol ligou-lhe, há uns dias, e disse-lhe que devia
treinar apanhar a bola para se preparar para o primeiro treino da equipa.
Depois do jantar, aceita jogar comigo. Saímos. O sol a pôr-se brilha agora
por entre as nuvens, que tinham mantido o dia cinzento e tristonho, a
corresponder à minha disposição. Agora a luz baixa da tardinha, vinda de
oeste, inunda o pátio lateral, deixando tudo a brilhar.
Começamos a atirar a bola para trás e para a frente. Ao início não
conseguimos encontrar uma luva para a sua mão esquerda, pelo que ela
vai fazendo lançamentos com a direita, dizendo que é ambidextra. E é.
Atira com pontaria com o braço direito e apanha maravilhosamente com a
mão esquerda. Jogamos com intensidade, a bola vai disparando para trás e
para a frente. Direciono os meus lances primeiro para um dos lados dela,
depois para o outro, para que tenha de virar a mão para apanhar bastantes
bolas. Depois começamos a incluir também bolas altas e lançamentos
baixos, misturando tudo.
Ela apanha cerca de noventa por cento de tudo o que eu lanço e isto
depois de um ano sem jogar. Estamos em sintonia. Sinto a sua satisfação
enquanto reconhece a sua própria elegância e mestria. É boa, tem um
talento inato. Mas sei que devia calçar a luva esquerda que temos algures.
Fazemos uma pausa e eu procuro-a no sítio onde ainda não tinha
procurado e encontro-a.
Agora, a forma como apanha a bola é mais insegura, durante algum
tempo, enquanto se ajusta à nova luva e à posição contrária. Mas a forma
como atira, competente com o braço direito, é três vezes mais potente e
certeira com o esquerdo. Para trás e para a frente, para trás e para a frente,
alto, baixo, apanhando com a mão virada, apanhando do lado aberto. Há
séculos que eu não fazia isto. Depressa revisito ritmos antigos da minha
própria infância. O padrão não desapareceu por completo em quarenta
anos. Espanta-me que a luva saiba onde está a bola durante uma parte tão
grande do tempo.
Ela está a aquecer. As suas faces ficam vermelhas. Pode estar ao ar frio
sem casaco. O seu calor também me é dirigido. Sinto-o. Finalmente,
finalmente, estamos a fazer algo juntos fora de casa, algo que ambos
podemos apreciar e sobre o qual podemos falar com facilidade.
Há meses que esperava por um momento destes. Convidei-a a ir dar
uma volta de bicicleta comigo. “Não.” De patins em linha. “Não.” A
passear a pé. “Não.” A ir até algum sítio bonito de carro, até à beira de um
lago. “Nem pensar.” Mas, neste momento, está a acontecer e eu sinto que
os efeitos da minha ausência vão sendo apagados. Neste momento
estamos juntos, a fazer algo que é raro para nós e a que poderemos voltar
toda a primavera, se ela quiser. Agora que estamos no horário de verão,
podemos vir jogar depois de eu chegar do trabalho.
Também estamos a redescobrir que ainda é possível divertirmo-nos
juntos. Sinto a sua força à medida que a bola vai e vem e vejo-a
experienciar a sua própria força da forma mais natural. Estou a gostar
imenso de ir apanhando a bola e sinto o mesmo a emanar dela. Passamos
tanto tempo afastados e em mundos tão diferentes que podemos isolar-nos
um do outro. Mas eis pelo menos uma forma, pelo menos neste momento,
em que nos é demonstrado que continuamos profundamente ligados e
podemos desfrutar de fazer algo em conjunto. Enquanto atiramos a bola
para a frente e para trás e a ouvimos a bater nas luvas e o estrondo quando
passa por cima da minha cabeça e acerta na vedação de madeira atrás de
mim, é como se fizéssemos isto desde sempre. O tempo desaparece.
Tenho o cuidado de não arranjar formas de parar ou interromper estes
momentos, seja pelo que for. Sei que não durarão. A luz está a desvanecer-
se. Ela está à espera de um telefonema de uma amiga para saber quando
virá buscá-la com a mãe para dormir em casa dela. O telefonema chega.
Ela precisa de se preparar. Mas reencontrámo-nos de novo, eu e ela, e isso
significa muito para ambos.
Depois, ficamos à espera que a campainha toque. Estamos sozinhos em
casa. Do nada, ela oferece-se (isto nunca acontece e eu mal acredito que
esteja a acontecer agora) para me contar como fez o seu belíssimo
autorretrato na aula de arte. Explica-me que o exercício consistia em fazer
tudo aquilo sem levantar o lápis do papel, olhando para o espelho e apenas
raramente para o desenho. Eu podia ter-lhe feito uma centena de perguntas
curiosas sem conseguir que ela falasse de uma coisa destas. Não gosta de
perguntas curiosas. Mas, por vezes, reage à presença. Percebo que me
cabe saber isto e manter-me acessível, mesmo quando parece haver anos-
luz entre nós.
Raparigas
Quando as nossas filhas eram pequenas, eu (mkz) obtinha grande prazer
com a variedade de qualidades que se destacavam nelas em alturas
diferentes. Demonstravam entusiasmo e encanto com as atividades mais
simples: apanhar morangos e provar cuidadosamente cada fruto maduro
antes de os porem nas cestas; vestir-se com antigas roupas minhas e restos
de tecido para se transformarem em rainhas e princesas; fingir que eram
golfinhos bebés enquanto nadavam à minha volta na baía. Quando viam
atentamente as coisas e partilhavam uma perceção súbita comigo, ou
revelavam amabilidade ou compaixão de alguma maneira. Eu deliciava-
me com esses aspetos maravilhosos e calorosos dos seus seres. Também
havia alturas em que eram duras, zangadas e completamente inflexíveis.
Ainda que me sentisse frustrada com as suas vontades indómitas, dava por
mim a prezar a força, o poder, a determinação que tinham.
Nesses anos, tanto a casa como a escola eram, na maior parte, refúgios
da cultura mais abrangente. O mundo delas era simples, com poucas
pressões, expetativas ou distrações externas. À medida que foram
crescendo, claro está, as coisas mudaram. Aos poucos, fui ficando cada
vez mais ciente das várias mensagens que recebiam da cultura
prevalecente, mensagens ubíquas e limitativas, que lhes depositavam todo
o género de expetativas e pressões apenas por serem raparigas.
>>>
Para onde quer que as raparigas se voltem, em qualquer fila numa caixa
para pagar, em jornais e revistas, na televisão e no cinema, são expostas a
imagens de mulheres que podem afetar profundamente como se veem a si
mesmas. Estas imagens, com ou sem subtileza, sugerem que o maior
poder que têm se relaciona com serem consumidoras e objetos
sexualizados. Estas mensagens são tremendamente restritivas e
potencialmente prejudiciais para as raparigas, sobretudo à medida que se
aproximam da adolescência.
Tais imagens são usadas para vender todo o tipo de produtos. O foco
não só se encontra constantemente em comprar e consumir, como também
há indústrias inteiras devotadas a convencer mulheres e raparigas de que
precisam de tornar os seus corpos mais belos e mais “perfeitos”. No
entanto, a maioria das imagens apresenta corpos que poucas mulheres têm
naturalmente ou apenas têm durante um tempo breve. Esta aparência
“ideal”, sintetizada pelos mundos da publicidade, da moda e das
celebridades, pode fomentar nas raparigas uma insatisfação forte com os
seus próprios corpos, o seu cabelo, as suas roupas, a sua pele,
praticamente com todos os aspetos do seu ser físico.
É atribuída uma importância suprema à aparência. Em resultado disso,
muitas raparigas gastam demasiado tempo e energia a preocupar-se com o
seu aspeto. Isto pode acontecer em detrimento do desenvolvimento das
suas capacidades e forças físicas, criatividade e do seu interior. Os pais
enfrentam o desafio constante de proporcionar uma perspetiva autêntica,
motivadora e equilibrada a ser-se uma menina ou uma jovem perante esta
torrente chamativa e omnipresente dos meios de comunicação. Por difícil
que isto seja, há algumas coisas que podemos fazer.
Podemos começar por ganhar consciência da influência invasiva desta
indústria, para que não nos escape por completo, nem seja encarada como
parte inevitável da paisagem cultural. A consciência é um primeiro passo.
Depois de começarmos a prestar atenção a influências potencialmente
negativas sobre as nossas filhas, podemos começar a ver os efeitos que
poderão estar a ter na sua autoimagem, na sua autoestima, na sua
autoconfiança, nos seus interesses e nos seus objetivos. Em vez de
tentarmos somente reparar os danos causados, podemos ser proativos e,
quando elas são pequenas, tentar limitar a sua exposição e consumo da
forma que pudermos. À medida que crescem, cada vez mais vamos
podendo falar com elas acerca do que vemos, de preferência de uma forma
que não seja repressiva, para que elas possam ver o que se encontra por
trás dessas imagens de mulheres. Elas podem começar a reconhecer, por si
mesmas, tais mensagens implícitas e como o desejo de comprar é incitado
nas mentes dos espetadores, leitores e consumidores em geral.
Uma rapariga que cresça imersa em vários meios de comunicação ficará
saturada com muitas mais imagens redutoras e aviltantes de mulheres do
que uma rapariga cuja exposição mediática seja mais limitada. Restringir a
exposição traz o benefício acrescido de libertar tempo e espaço para
experiências da vida real que, espera-se, irão alargar a sua ideia de si
mesma como pessoa completa, com muitas forças, capacidades e
qualidades únicas e preciosas. Com frequência, as raparigas têm estas
experiências a praticar desporto ou dedicando-se a atividades ou projetos,
sejam artísticos, intelectuais ou voltados para a comunidade, que lhes
desafiem e desenvolvam as capacidades criativas.
Ao mesmo tempo que tentamos criar uma espécie de santuário que as
proteja das influências culturais potencialmente negativas e lhes encoraje
uma noção do poder dos meios de comunicação, precisamos
necessariamente de moderar as nossas restrições e até a expressão das
nossas opiniões; caso contrário, poderemos acabar por criar um fosso
entre nós. Afinal, as raparigas são atraídas não apenas pelo apelo
superficial deste mundo da publicidade, da televisão, do cinema e dos
videoclipes, mas também pela sua criatividade artística e empreendedora.
Este é um dos motivos pelos quais criar filhos com maior consciência
pode ser tão difícil. Enquanto pais, temos de lidar continuamente com os
nossos medos, com as nossas próprias limitações e, por vezes, com os
nossos sentimentos de impotência, enquanto tentamos compreender e
identificar-nos com estas forças culturais. O equilíbrio que tentámos
estabelecer na nossa família consistia em educar e limitar, ao mesmo
tempo que tentávamos manter-nos recetivos e flexíveis. À medida que as
nossas filhas foram crescendo, isto foi requerendo cada vez mais
negociação e cedências e, por último, que as encorajássemos a tomarem as
suas próprias decisões ponderadas.
As crianças querem imenso sentir-se normais em relação ao que podem
fazer e ver e comparam-se, naturalmente, com o que os amigos podem
fazer e ver, e como se comportam. O que é considerado normal na nossa
sociedade muitas vezes é violento, cruel e humilhante de várias maneiras
para as mulheres. É tão omnipresente que podemos tornar-nos indiferentes
e mal darmos por isso. Perante esta enxurrada de imagens – tantas das
quais associam o sexo à violência, objetificam as raparigas e ignoram ou
ridicularizam mulheres que não caibam no ideal clássico de pele clara,
vulnerabilidade e magreza –, a zanga seria uma reação adequada. Mas é
claro que as mulheres não devem zangar-se. Quando nos zangamos,
muitas vezes rotulam-nos com todo o género de coisas desagradáveis e
degradantes. Ouvimos coisas como: “Mas o que se passa contigo?”
“Porque levas as coisas tão a peito?” “Onde está o teu sentido de humor?”
“Estás naquela altura do mês?”
Ao criarmos filhas, precisamos de dar o nosso melhor por contrariar esta
visão restrita das mulheres. Se aceitarmos tacitamente a visão dominante,
basicamente compactuamos com a desvalorização social das mulheres.
Como mães, precisamos de incorporar uma alternativa para elas, uma
forma diferente de ser e uma forma diferente de ver a cultura em que se
inserem. As nossas filhas precisam de nós como aliadas numa cultura
onde os seus interesses particulares e as suas formas de ver as coisas
poderão não ser reconhecidos ou valorizados, chegando mesmo a ser
ridicularizados.
As raparigas também precisam que os pais sejam seus aliados. As filhas
precisam que os pais incorporem uma visão mais respeitadora das
mulheres e sentirem-se valorizadas por eles, por quem são e não pela sua
aparência. À medida que as nossas filhas passam por todas as alterações
físicas e emocionais diferentes e, por vezes, difíceis da puberdade e da
adolescência, os pais têm de estar particularmente atentos a formas
inconscientes ou habituais que possam ter de se relacionar com mulheres.
Estes padrões também podem revelar-se na sua relação com as filhas,
assumindo formas diferentes como ser desrespeitador, controlador ou
superficial, ou dar prioridade às suas próprias necessidades. A necessidade
que um pai tenha de ser amado e adorado pela filha pode impedi-lo de ver
o que ela realmente precisa da sua parte. Inevitavelmente, surgirão
padrões estereotipados e, quando isso acontecer, dar-lhes atenção oferece
aos pais uma possibilidade de agir de formas que sejam menos
automáticas, desconsideradas e nocivas. Trata-se de um processo de
reparar em tais impulsos habituais quando estes surgem e, em resposta,
modular o comportamento.
Pode ser útil para pais e mães examinarem como as expetativas que
temos acerca das nossas filhas poderão involuntariamente limitar-lhes a
expressão e a autonomia. Podemos perguntar-nos se não estaremos
apegados à sua forma de agirem sempre de determinada maneira, por
exemplo, amistosa, cuidadosa, sensível, amável e sossegada. Será que
esperamos que sorriam muito? Teremos em conta os seus temperamentos,
ao mesmo tempo que nos mantemos recetivos a que mudem? Será que
uma filha otimista e tímida se tornou uma adolescente indómita, enérgica,
extrovertida e comunicativa? Poderemos permitir que, por vezes, as
nossas filhas se zanguem, façam barulho e alarde, de formas a que não
levantaríamos entraves caso fossem rapazes? Estaremos a apoiá-las para
que encontrem formas de expressar as suas capacidades únicas, a sua
criatividade, as suas forças? As nossas respostas a estas perguntas e a
outras do género poderão mudar de dia para dia, ou até de um momento
para o outro. Mas colocá-las é uma parte essencial do nosso trabalho de
pais.
Uma grande parte deste processo consiste em lidar com as expetativas
que as outras pessoas tenham em relação às nossas filhas. Quando (nós ou
as nossas filhas) nos apercebemos de mensagens que parecem impróprias,
restritivas ou depreciadoras por parte de uma figura de autoridade ou dos
pares delas, incluindo assédio sexual ou estereotipagem sexual, seremos
capazes de as ajudar a identificar e dar nome à atitude ou comportamento
perturbador e apoiá-las no que sentem? Ao fazê-lo, em vez de
minimizarmos o problema ou negarmos a validade dos seus sentimentos,
mostramos-lhes que somos seus aliados e que, quando são tratadas com
injustiça ou subtilmente desprezadas, sentirem-se zangadas ou magoadas
não só é aceitável como é também uma reação saudável.
Uma tendência perturbadora entre rapazes adolescentes, como referimos
no capítulo Rapazes, é que parecem ter cada vez mais expetativas
objetificantes e aviltantes das raparigas. Esta tendência é incitada pela
ubiquidade de imagens e vídeos sexualizados e violentos na Internet,
ampliada pelas redes sociais e pela cultura dos seus pares. Por sua vez,
muitas adolescentes parecem sentir que têm de corresponder a tais
expetativas – mesmo que sejam prejudiciais ou traumáticas –, em parte
porque estas dinâmicas doentias de poder se normalizaram. Infelizmente,
as raparigas recebem a mensagem de que, caso se oponham, são elas
quem tem um problema e algo se passará para sentirem o que sentem. O
nosso desafio, enquanto pais, consiste em darmos o nosso melhor por
estarmos cientes destas dinâmicas e do que possa estar a acontecer na
esfera social dos nossos filhos e filhas, apoiando-os para que reconheçam
comportamentos inadmissíveis da parte de outros, para que se defendam e
para que estabeleçam limites saudáveis.
>>>
Manter a boca fechada. Virar a cara. Voltar para trás no corredor. Dar
uma bofetada ao bispo que me esbofeteou no Crisma. Manter a
palavra não na boca como uma moeda de ouro, algo prezado, algo
possível. Ensinar o não às nossas filhas. Valorizar mais o não que
dizem do que o sim obediente. Celebrar o não. Agarrar a palavra não,
cerrar o punho e recusar cedê-la. Apoiar o rapaz que diz não à
violência, a rapariga que não será violada, a mulher que diz não, não,
não farei isso. Amar o não, prezar o não, que, tantas vezes, é a nossa
primeira palavra. Não – o instrumento para a transformação.
LOUISE ERDRICH, The Blue Jay’s Dance
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Quando uma das minhas filhas tinha onze anos, ao longo de meses
foi-me falando de incidentes em que sentia que a professora a
desrespeitava ou aos colegas. Eu sentia-me satisfeita por ela sentir que
podia contar-me o que se passava na escola e tentava apoiá-la da
melhor maneira possível. Um dia, ela contou-me a seguinte história:
num evento escolar à tarde, ela estava a falar e a rir-se com
exuberância com as amigas quando a professora se acercou dela, a
chamou e lhe disse num tom ríspido: “Comporta-te como uma
senhora!” Ela disse-me que fitou diretamente a professora e
respondeu: “Eu comporto-me como uma senhora, como uma senhora
forte!”
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Mediante a experiência de terem os seus sentimentos validados,
lentamente, ao longo do tempo, as raparigas tornam-se mais capazes
de ver e identificar atitudes e comportamentos que as perturbem e
conseguem entrar mais imediatamente em contacto com o que sentem,
confiar nesses sentimentos e expressá-los com efetividade. Desta
forma, podem começar a aprender a fortalecer-se e a construir um
repertório de competências emocionais que será decisivo para o seu
desenvolvimento futuro. Tais forças serão particularmente importantes
quando viverem por sua conta numa sociedade que é tão capaz de
minar e explorar as mulheres.
>>>
Eu e a minha filha, na altura com onze anos, estávamos numa pequena
loja que vende tapetes orientais. O vendedor era de outro país e
olhava para nós com o que parecia ser um sorriso exagerado. Isso
incomodou-me, mas despachei o que me tinha levado ali, que era ver
uns quantos tapetes. Quando saímos, a minha filha disse-me que se
tinha sentido mesmo desconfortável porque, sempre que eu desviava o
olhar, ela reparava que ele a observava de uma maneira “esquisita”.
Eu respondi com um comentário qualquer acerca de diferenças
culturais. Mais tarde, apercebi-me de como tinha sido inadequada a
minha resposta e que me concentrara em justificar e desculpar o
comportamento do homem, em vez de validar os sentimentos de
desconforto da minha filha.
Nessa noite, antes de lhe desejar bons sonhos, disse-lhe que tinha
estado a pensar no que tinha acontecido na loja e que não queria que
uma coisa daquelas voltasse a acontecer sem que tivéssemos um sinal
que pudéssemos usar para ela me indicar quando algo a deixasse
desconfortável. Sugeri-lhe que, se tornasse a acontecer, ela me desse a
mão e a apertasse e eu assim saberia que algo não estava bem e que
devíamos ir logo embora. Os seus olhos iluminaram-se e ela sorriu ao
pensar nesta possibilidade.
>>>
Por difícil que seja, e por inadequados que por vezes nos sintamos, as
nossas filhas precisam do nosso apoio e do nosso encorajamento para
se manterem em contacto com o que é mais forte e vital em si
mesmas, dado que, entre os nove e os catorze anos, é costume as
raparigas serem socializadas de maneira a cederem a voz e a
soberania. No capítulo que se segue, partilhamos um conto tradicional
norueguês acerca de uma menina que se mantém fiel à sua própria
natureza.
Farroupilha – “Irei Tal Como Sou”
Era uma vez um rei e uma rainha que não tinham filhos, o que entristecia
muito a rainha. Ela estava sempre a lamentar que não tivessem uma
família e a dizer que o palácio era um lugar muito solitário sem crianças.
O rei comentou que, se o que ela queria eram crianças a correr por ali,
podiam convidar os filhos da prima. A rainha achou que era boa ideia e
não tardou muito a que tivesse duas sobrinhas pequenas a divertir-se pelas
divisões do palácio e a brincar no pátio.
Um dia, enquanto a rainha as observava com ternura de uma janela, viu
as duas pequenas a jogar à bola com uma desconhecida, uma menina de
roupas esfarrapadas. A rainha apressou-se escada abaixo.
– Minha menina – disse-lhe num tom ríspido – isto é o pátio do palácio.
Não podes brincar aqui!
– Fomos nós que a convidámos a brincar connosco – choraram as
sobrinhas da rainha, acorrendo à menina esfarrapada e dando-lhe a mão.
– Não me enxotaria se soubesse os poderes que a minha mãe tem – disse
a estranha menina.
– Quem é a tua mãe? – perguntou a rainha. – E que poderes tem?
A criança apontou para uma mulher a vender ovos no mercado em
frente aos portões do palácio.
– Quando quer, a minha mãe é capaz de dizer às pessoas como podem
ter filhos quando tudo o mais falha.
Ora isto chamou de imediato o interesse da rainha, que disse:
– Diz à tua mãe que desejo falar com ela no palácio.
A menina correu até ao mercado e não tardou muito a que uma mulher
alta e forte entrasse na sala da rainha.
– A sua filha diz que você tem poderes e é capaz de me dizer como
posso ter filhos, disse a rainha.
– A rainha não devia fazer caso dos devaneios de uma criança –
respondeu a mulher.
– Sente-se – disse a rainha e mandou servir bela comida e bebida.
Depois disse à vendedora de ovos que o que mais queria no mundo era ter
filhos. A mulher terminou a sua cerveja e depois disse cautelosamente que
talvez conhecesse um feitiço que não faria mal experimentar.
– Esta noite, quero que ponha a sua cama lá fora, na relva. Depois de
escurecer, mande que lhe levem dois baldes de água. Deve lavar-se em
cada um e, depois, despeje a água debaixo da cama. Quando acordar de
manhã, duas flores terão brotado, uma bela, a outra rara. A bela é para
comer, mas terá de deixar ficar a rara. Cuidado, não se esqueça disso.
A rainha seguiu o conselho e, na manhã seguinte, debaixo da cama, lá
estavam duas flores. Uma era verde e com um formato estranho; a outra
era cor-de-rosa e fragrante. Comeu logo a flor cor-de-rosa. Tinha um sabor
tão doce que a rainha comeu também a outra, dizendo a si mesma: “Acho
que não poderá fazer diferença nenhuma!”
Passado pouco tempo, a rainha apercebeu-se de que estava de
esperanças e algum tempo depois deu à luz. Primeiro nasceu uma menina
com uma colher de pau na mão e montada numa cabra. Era uma
criaturinha de aspeto raro e, assim que entrou no mundo, baliu:
– Mamã!
– Se sou a tua mamã – disse a rainha – que Deus me dê a oportunidade
de me corrigir!
– Oh, não fiques triste – disse a menina, montando a sua cabra – a
próxima a nascer será muito mais bonita.
E assim foi. A segunda gémea nasceu loura e linda, o que agradou muito
à rainha.
As gémeas eram tão diferentes quanto poderiam ser, mas cresceram
muito unidas. Onde uma estava, a outra tinha de estar. Mas a gémea mais
velha tinha a alcunha Farroupilha, pois era forte, estrepitosa e imprudente,
andava sempre a correr montada na sua cabra, de roupas sempre rasgadas
e enlameadas, o capuz esfarrapado. Nunca conseguiam mantê-la em
vestidos limpos e bonitos. Insistia em usar roupas velhas e a rainha acabou
por desistir e deixá-la vestir-se como queria.
Numa véspera de Natal, quando as gémeas eram quase crescidas, ouviu-
se um barulho e um estrondo terrível na galeria em frente aos aposentos da
rainha. Farroupilha perguntou o que andava a correr e a bater contra tudo
na passagem. A rainha disse-lhe que era uma matilha de trolls, que tinha
invadido o palácio.
A rainha explicou que aquilo acontecia no palácio a cada sete anos.
Nada podia ser feito a respeito das criaturas maléficas. Todo o palácio
tinha de ignorar os trolls e suportar as suas maldades.
Farroupilha disse:
– Disparate! Eu vou lá enxotá-los!
Toda a gente protestou – ela devia deixar os trolls em paz; eram
demasiado perigosos. Mas Farroupilha insistia que não tinha medo deles.
Podia e haveria de os mandar embora. Avisou a rainha para que
mantivesse todas as portas bem cerradas. Depois saiu para a galeria para
os perseguir. Lá foi com a sua colher de pau, batendo na cabeça ou nos
ombros dos trolls, reunindo-os para os expulsar. Todo o palácio abanava
com os baques e os guinchos, até já parecer que o lugar viria abaixo.
Nesse momento, a gémea, preocupada com Farroupilha, abriu uma porta
e meteu a cabeça de fora para ver como iam as coisas. Pimba! Lá veio um
troll, cortou-lhe a cabeça e, no seu lugar, pespegou-lhe a de um bezerro. A
pobre princesa correu de novo para dentro dos aposentos, de gatas, e
começou a mugir como um bezerro.
Quando Farroupilha voltou e viu a irmã, ficou muito zangada por as aias
da rainha não terem sido mais vigilantes. Ralhou muito com elas e
perguntou o que julgavam daquele descuido, agora que a sua irmã tinha
uma cabeça de bezerro.
– Vou ver se consigo libertá-la do feitiço do troll – disse. – Mas vou
precisar de um bom navio em perfeitas condições e bem apetrechado.
Ora o rei tinha noção de que a filha era bastante extraordinária, apesar
dos seus modos tresloucados, pelo que acedeu, dizendo, no entanto, que
era preciso haver também um capitão e tripulação. Farroupilha mostrou-se
firme – não teria nem capitão, nem tripulação. Ela levaria o navio sozinha.
Por fim, acabaram por ceder e Farroupilha partiu com a irmã.
Com um bom vento a empurrá-las, navegou diretamente até à terra dos
trolls, amarrando o navio no ancoradouro. Disse à irmã que ficasse quieta
a bordo, enquanto ela montava a sua cabra até à casa do troll. Por uma
janela aberta, viu a cabeça da irmã pendurada na parede. Num ápice, fez
saltar a cabra pela janela para dentro de casa, agarrou na cabeça e tornou a
saltar para a rua. Partiu com a cabeça debaixo do braço e os trolls
começaram a persegui-la. Guinchavam e enxameavam-se à volta dela
como abelhas zangadas. Mas a cabra resfolegava e marrava com os chifres
e Farroupilha deu-lhes com a colher de pau mágica até que desistiram e a
deixaram escapar.
Quando Farroupilha chegou em segurança ao navio, tirou a cabeça de
bezerro e voltou a pôr a cabeça ossuda da irmã no seu lugar. Assim a irmã
voltou a ser humana.
– Vamos navegar e ver qualquer coisa do mundo – disse Farroupilha. A
irmã concordou, pelo que navegaram ao longo da costa, parando de vez
em quando, até que alcançaram um reino distante.
Farroupilha prendeu o navio no ancoradouro. Quando as pessoas do
castelo viram a vela estranha, enviaram mensageiros para descobrir quem
vinha a bordo e de onde seria. Os mensageiros ficaram espantados ao só
encontrarem Farroupilha a bordo, montada na sua cabra no convés.
Quando lhe perguntaram se não havia mais ninguém a bordo,
Farroupilha respondeu que sim, que tinha a sua irmã consigo. Os
mensageiros pediram para a ver, mas ela recusou. Depois perguntaram se
elas iriam até ao castelo para uma audiência com o rei e os seus dois
filhos.
– Não – respondeu Farroupilha. – Eles que venham até ao navio se
desejam ver-nos.
E desatou a galopar na sua cabra até o convés ribombar.
O príncipe mais velho ficou curioso em relação às desconhecidas e
apressou-se a descer até à costa logo no dia seguinte. Assim que viu a
gémea mais nova e bonita, apaixonou-se e quis casar com ela.
– Não, de todo – declarou ela. – Não deixarei a minha irmã Farroupilha.
Não casarei até ela se casar.
O príncipe regressou tristonho ao castelo, pois, na sua opinião, ninguém
quereria desposar a estranha criatura que montava uma cabra e parecia
uma pedinte esfarrapada. Não obstante, havia que ser hospitaleiro para
com as forasteiras, pelo que as irmãs foram convidadas para um banquete
no castelo e o príncipe implorou ao irmão mais novo que escoltasse
Farroupilha.
A gémea mais nova escovou o cabelo e usou o seu melhor vestido para a
ocasião, mas Farroupilha recusava-se a mudar.
– Podias usar um dos meus vestidos – disse-lhe a irmã – em vez desse
manto rasgado e dessas botas velhas.
Farroupilha só se ria.
– Podias tirar esse capuz esfarrapado e limpar as manchas de fuligem da
cara – disse-lhe a irmã num tom zangado, pois queria que a sua adorada
Farroupilha se apresentasse no seu melhor.
– Não – respondeu Farroupilha – irei tal como sou.
Todas as pessoas da cidade foram ver as desconhecidas a caminho do
castelo, e que bela procissão era! À cabeça ia o príncipe e a irmã de
Farroupilha, em belos cavalos brancos com mantos de ouro. Em seguida ia
o irmão do príncipe, num esplêndido cavalo com arreios de prata. A seu
lado ia Farroupilha na sua cabra.
– Não és lá muito conversador – comentou Farroupilha. – Não tens nada
a dizer?
– Mas o que há para se falar? – retorquiu ele. Seguiram em silêncio até
ele finalmente disparar: – Porque vais nessa cabra em vez de num cavalo?
– Já que perguntas – disse Farroupilha – posso ir a cavalo, se assim o
entender.
E logo a cabra se transformou num belo corcel.
Bom! Os olhos do jovem esbugalharam-se e ele virou-se para a observar
com grande interesse.
– Porque escondes a cabeça debaixo desse capuz esfarrapado? –
perguntou-lhe.
– É um capuz esfarrapado? Posso mudá-lo, se assim o entender – disse
ela. E logo, sobre cabelo escuro e comprido, surgiu uma tiara de ouro e
pequenas pérolas.
– És uma jovem muito invulgar! – exclamou ele. – Mas e essa colher de
pau... porque decidiste andar com isso?
– É uma colher?
E, na sua mão, a colher de pau transformou-se numa varinha de condão
feita de madeira de tramazeira e com a ponta dourada.
– Estou a ver! – disse o príncipe, sorrindo e entoando uma musiquinha
enquanto prosseguiam caminho.
Por fim, Farrapilho perguntou:
– Não vais perguntar-me porque uso estas roupas esfarrapadas?
– Não – disse o príncipe. – É evidente que as usas porque assim o
queres e que, quando desejares mudá-las, o farás. – Perante esse
comentário, o manto esfarrapado de Farroupilha desapareceu e foi
substituído por um vestido e um manto de veludo verde. Mas o príncipe
limitou-se a sorrir e a dizer: – Essa cor fica-te muito bem.
Quando o castelo se tornou visível mais adiante, Farroupilha disse-lhe:
– E não vais pedir para me veres o rosto por baixo das manchas de
fuligem?
– Também isso será conforme o desejares.
Quando passaram pelos portões do castelo, Farroupilha levou a varinha
de tramazeira ao rosto e as manchas de fuligem desapareceram. E se o seu
rosto passou a ser encantador ou feio nunca saberemos, pois isso não
importava nem um pouco quer ao príncipe, quer a Farroupilha.
Mas isto posso dizer-vos: o banquete no castelo foi feliz e durou muitos
dias, com jogos, cantoria e dança.
>>>
A soberania e a autenticidade são o segredo de toda a energia vital de
Farroupilha e de tudo – à superfície tão estranho, até repugnante – que ela
dizia ou fazia. Farroupilha não tem medo de ser ela mesma. Nasceu
estridente e invulgar – poder-se-ia mesmo dizer “feia”, de um ponto de
vista convencional. É barulhenta, suja, destemida e forte. Conhece o seu
próprio caminho e segue-o independentemente do que os outros pensem.
Não tem uma molécula de passividade no corpo. Dirigiu o seu navio como
capitã e tripulação, recuperou a cabeça da irmã e ainda viu algo do mundo.
É uma mulher indómita que também é capaz de dedicar amor e devoção à
irmã “perfeita”, uma irmã que tem todos os convencionais atributos
exteriores que a sociedade adora nas mulheres. Farroupilha é tão sombria
quanto a irmã é luminosa. A sua aparência, talvez não tão agradável, até
requer aceitação nos seus próprios termos, um respeito pela essência
subjacente ao seu ser, profundo e sempre belo, embora oculto a olho nu.
Por afeto, a irmã de Farroupilha tenta levá-la a deixar as roupas
esfarrapadas e a lavar o rosto sujo. Quer que ela se mostre no seu melhor.
Quantos de nós, enquanto pais, nos debatemos com a vontade de proteger
os nossos filhos de críticas alheias, querendo que os achem lindos, como
nós os vemos? Mas Farroupilha mantém-se firme: “Não, irei tal como
sou.”
*
Quando o príncipe cavalga ao lado de Farroupilha, vai calado. Quando
finalmente fala, por insistência dela, não se perde em conversa de
circunstância. Fala honestamente e faz uma pergunta direta: “Porque vais
nessa cabra em vez de num cavalo?” Quando a cabra se transforma num
cavalo, o príncipe nota. Torna-se mais atento. Continua a fazer-lhe
perguntas, mas detém-se, sem chegar a perguntar-lhe pelas roupas. Com o
seu silêncio, dá-nos a entender que a aceita. Ela tem de lhe perguntar:
“Não vais perguntar-me por que uso estas roupas esfarrapadas?” Ele
recusa, dizendo que é evidente que ela escolheu vestir-se tal como está e
que, quando quiser mudar, assim fará. É nesse próprio momento – quando
o jovem príncipe lhe reconhece a soberania, dizendo “Também isso será
conforme o desejares” – que ela se transforma e, nesse processo, ensina-
lhe o mais importante acerca do amor.
Argumentação, Assertividade, Responsabilidade
A dada altura, eu (mkz) e uma amiga tivemos experiências similares de
sermos chamadas à escola para falarmos de incidentes que tinham
acontecido com as nossas filhas. O assunto era o mesmo: jovens de
personalidades fortes dizem o que sentem em relação a alguma coisa e são
vistas como “desrespeitadoras”.
Certa tarde, chamaram-me ao gabinete da diretora da escola. A diretora
contou-me que uma auxiliar educativa tinha dito à minha filha e a um
grupo de meninas do quinto ano que não deviam jogar à bola com os
rapazes e que tinham de parar. A minha filha disse à auxiliar que estava a
ser sexista, que as meninas tinham tanto direito a jogar à bola como os
meninos. A diretora imitou a linguagem corporal zangada e desafiante da
minha filha, cruzando os braços e inclinando a cabeça para o lado, de uma
forma que sugeria que partia do princípio de que eu concordaria que o
comportamento dela não era aceitável. Prosseguiu, dizendo-me que a
minha filha tinha sido chamada para uma reunião com ela e com as
auxiliares educativas, na qual lhe tinham dito que não podia comportar-se
de uma forma desrespeitadora, que as auxiliares tinham de garantir a
segurança dos alunos e que estes tinham de lhes dar ouvidos. Assegurou-
me que pedira à minha filha a sua versão da história e que lhe dissera que
tinha de escrever um pedido de desculpas a cada uma das auxiliares.
Admiti que a minha filha precisava de aprender a dizer o que sentia de
uma maneira mais respeitadora. Mas comentei que me parecia que a
minha filha se sentira zangada com o que lhe parecera ser uma situação
injusta e que tinha tentado comunicar a sua opinião às auxiliares. Também
me parecia que as suas preocupações e perspetivas não tinham sido
levadas a sério e que a implicação era que ela se tinha portado “mal” ao
expressá-las. Perguntei ainda à diretora se achava que, caso um rapaz
tivesse cruzado os braços e defendido a sua posição de uma maneira
similar, isso teria sido visto a uma luz tão negativa.
Mais tarde, disse à minha filha que tinha de aprender a defender-se sem
ser desrespeitadora, que dizer que alguém estava a ser sexista podia
parecer um insulto, se as outras pessoas não percebessem o que ela estava
a tentar dizer. E também que tinha de ter noção de como falava, da sua
linguagem corporal e do seu tom de voz, e que não apenas o que dizia mas
também a forma como o dizia era importante. Queria que ela percebesse
que as suas ações afetavam os outros e tinham consequências, uma das
quais era influenciar a capacidade de escutarem o que ela dizia.
Aprender a dizer como nos sentimos e como vemos as coisas de uma
maneira respeitadora não é fácil. Requer muita prática. Temos de dar
espaço aos nossos filhos para que façam isto, para que aprendam tentando,
cometendo erros e tornando a tentar.
A coragem que foi necessária para que ela protestasse não foi
reconhecida. A mensagem implícita que lhe transmitiram foi que deveria
manter-se calada e obediente. Se a minha filha continuasse a receber esta
mensagem ao tentar defender os seus direitos e os dos outros, e se não
tivesse pais que aceitassem a sua zanga e tentassem ver o seu ponto de
vista, poderia ter deixado de falar e perdido alguma da confiança em si
mesma, como acontece a tantas raparigas. Aos nove anos, é costume
serem enérgicas e confiantes mas, por volta dos catorze, de alguma forma
essa força pode ter-se tornado oculta, hesitante, invisível, até perdida.
>>>
A filha da minha amiga é uma estudante extremamente dotada,
perfecionista e muito exigente consigo mesma. Também tem ideias claras
acerca das coisas. A professora do quinto ano tinha-lhe dito que deixasse
material de um projeto (marionetas que ela fizera e livros da biblioteca
municipal) na escola durante o fim de semana. Ela levara-os para a aula
como parte de um relatório que ia apresentar. Não lhe parecia que fosse
seguro deixá-los todo o fim de semana na escola mas, em vez de partilhar
essa preocupação com a professora, disse apenas: “Não, quero levá-los
para casa.” A professora achou que ela estava a ser desrespeitosa e
telefonou aos pais. Embora esta menina nunca “fizesse birras” ou se
“portasse mal” na escola, a professora optou por ver o seu comportamento
a uma luz negativa, em vez de como um sinal de que sentia a segurança
necessária para dizer o que era importante para si.
É verdade que ela poderia ter comunicado de forma mais efetiva e
talvez sido vista como mais respeitadora, caso tivesse explicado os seus
receios à professora. Mas, mais uma vez, a arte da comunicação requer
prática e experiência. Ainda assim, sendo a adulta, a professora poderia tê-
la respeitado mais, perguntando-lhe que razões tinha para querer levar os
materiais do projeto para casa.
Como pais, precisamos de ajudar os nossos filhos a identificar as suas
preocupações, de os encorajar a expressá-las de uma maneira assertiva e
respeitosa, e a defenderem o que julgam ser o correto, mesmo quando não
são compreendidos ou quando os seus sentimentos não são tidos em conta.
Para fazer isto, é possível que, por vezes, tenhamos de argumentar pelos
nossos filhos e de os ajudar a dar sentido às situações complicadas em que
ocasionalmente se veem.
Se as crianças sentirem que os seus sentimentos contam, que há uma
tentativa de compreender o seu ponto de vista, que os adultos são
compassivos e curiosos em vez de intolerantes e críticos, muitas mais
capacidades essenciais para a vida podem ser aprendidas na escola.
Atenção Plena na Sala de Aula – O Autoconhecimento na Escola
Durante seis anos, em meados da década de 1990, na Escola Primária de
Welby, em South Jordan, no Utah, uma professora do quinto ano
incorporou o mindfulness na sua pedagogia para apoiar os alunos não só a
serem eles mesmos como também a conhecerem-se melhor, ao mesmo
tempo que se dedicavam à aprendizagem. Todos os dias, arranjava tempo
para que as crianças se focassem interiormente. Falava disso, à sua
maneira, como um momento para se tornarem “íntimos consigo mesmos”.
Hoje em dia, há muitos professores que incorporam práticas de atenção
plena de várias formas na sua pedagogia. Cherry foi a primeira, uma
verdadeira pioneira. O que se segue poderá dar-nos um vislumbre do seu
génio criativo ao levar a atenção plena para a sala de aula.
>>>
Cada dia há um aluno diferente encarregado de tocar uma campainha para
indicar o início e o fim deste período de tempo tranquilo. A regra é que a
criança decide quanto tempo a turma deve ficar em silêncio, atenta à
respiração, com um limite máximo de dez minutos. Os alunos escolhem
durante quanto tempo meditam e de que formas. Para além de meditarem
sentados, por vezes praticam uma meditação de rastreio corporal, deitados
no chão da sala, bem como alongamentos conscientes, meditações em
movimento no pátio da escola e meditação de pé, em fila antes de
entrarem na sala. Os exercícios de redução de stresse passaram de lhes
parecer “esquisitos” e “estranhos”, ao início, para se tornarem uma parte
importante do dia e algo que muitos deles adoram, gostando de o partilhar
com os pais e os irmãos.
No processo de se concentrarem na respiração e observarem os
pensamentos a ir e vir, aprendem que não têm de reagir a cada pensamento
que lhes chegue à mente, que lá porque a mente por vezes fica aos pulos e
agitada, isso não significa que eles também tenham de saltar. Com prática,
vão ficando mais à vontade com o silêncio e a imobilidade. Um rapaz com
SDAH (Síndrome de Défice de Atenção e Hiperatividade), depois de anos
de problemas no início da escolaridade, tornou-se capaz, ao longo de um
ano, de aprender a ficar sentado e relativamente confortável,
concentrando-se no fluxo da sua respiração até dez minutos de cada vez. A
sua capacidade de se concentrar na sala de aula modificou-se
drasticamente e, pela primeira vez, foi aceite pelos colegas e pelos
professores. A sua mãe contou-me (jkz) isto uma vez, quando visitei a
turma. O rapaz estava a guiar a turma e alguns pais visitantes numa
meditação sentada de dez minutos, dando ele mesmo as instruções
enquanto nós ficávamos sentados em silêncio.
Aprender a descontrair no silêncio e na imobilidade em nós mesmos,
numa idade precoce, pode ser extremamente valioso para equilibrar e lidar
com a estimulação e a orientação para o exterior do dia escolar. Entre
outras coisas, as crianças podem descobrir como recorrer à sua capacidade
inata de se instalarem numa atenção concentrada e habitarem uma
consciência mais abrangente – ficando assim mais presentes e mais
capazes de aprender e participar na aula. Uma aluna de Ms. Hamrick, uma
menina de onze anos, escreveu-me, dizendo:
Meditar tornou-se um hábito em casa para mim e é algo que farei para
o resto da vida. No início, quando comecei a meditar e tinha uma
comichão, dizia para mim mesma: “sensação, sensação”; mas, um
minuto depois, dava por mim a coçar. Mas agora já não a coço porque
consigo acompanhá-la o tempo suficiente para que se vá embora por
si só. A meditar, também reparei que a minha respiração se tornou
mais profunda e que estou mais concentrada nela. No ioga, reparei
que fico com mais energia do que antes, e acho que é porque presto
mais atenção ao que faço. Por causa da meditação e do ioga, não
apresso tudo, como costumava fazer.
Ms. Hamrick não se limitou a aplicar redução de stresse baseada em
atenção plena à sala de aula. Integrou o mindfulness de formas
imaginativas em praticamente todos os aspetos do currículo escolar,
incluindo matemática, inglês, ciência e geografia. Encorajou os alunos a
usarem todo o seu ser na aprendizagem. Estes abordavam qualquer
assunto que estivessem a estudar de maneira a desenvolverem não apenas
as suas capacidades cognitivas e de processamento de informação, mas
também a sua intuição, os seus sentimentos e a sua consciência corporal.
Desta maneira, dedicavam-se à aprendizagem das bases daquilo a que hoje
em dia se chama inteligência emocional, bem como ao desenvolvimento
de um maior entusiasmo em relação à própria aprendizagem.
Um professor da escola escreveu a seguinte descrição da sua
experiência de partilhar uma aula aberta com Ms. Hamrick:
A atitude e o clima na sua sala de aula eram impressionantes,
sobretudo porque até então eu nunca experienciara algo do género.
Tornei-me muito atento a certo vocabulário que ela usava para
descrever coisas [...] Referia-se ao que estava a tentar alcançar como
uma “sala de aula funcional”.
Reparei numa atmosfera pacífica na sua sala de aula, com os
estudantes a cooperar e discutir o trabalho em conjunto. Conversar era
encorajado; mas só eram permitidas conversas acerca do trabalho e do
“sentir”. Havia um interesse e uma preocupação genuínos entre os
estudantes e a professora. Praticavam diariamente conversar acerca de
sentimentos e processá-los. Reparei que a autoconfiança dos alunos
crescia, bem como a sua consideração pela vida humana e por toda a
vida em geral.
Os estudantes pareciam genuinamente mais felizes e satisfeitos no
ambiente da sala de aula do que eu alguma vez observara ou eu
próprio experienciara. Expressavam o seu afeto com contactos
apropriados (abraços) e sabiam resolver conflitos e problemas de uma
forma afetuosa e cuidadosa, por oposição a formas hostis ou
agressivas.
Ms. Hamrick também ensinou os alunos a concentrarem-se e entrarem
em contacto com a própria respiração, e a controlarem as suas
próprias vidas com essa técnica. Pareciam ser capazes de trabalhar
melhor durante o dia depois de uns quantos momentos de preparação
meditativa de manhã. Demos a aula num ambiente de sala aberta e a
capacidade que eles tinham de se concentrar e de não se distrair com
todo o barulho nesse tipo de ambiente é uma mostra de como Ms.
Hamrick aplicou a sua formação e motivação.
Ms. Hamrick descreveu-me (jkz) numa carta uma altura difícil em que a
sua turma teve de se mudar temporariamente para um novo espaço,
enquanto eram feitas remodelações durante o ano letivo:
Todo os professores do quinto ano têm comentado a perturbação
causada por esta mudança e as alterações radicais de comportamento
nos alunos. Na verdade, os comentários acerca de mau
comportamento ouvem-se por toda a escola. O primeiro dia foi
caótico para a maioria dos professores. Pareceu-me que a nossa
prática diária [de mindfulness] preparou o caminho para uns dias
simplesmente lindos [no novo ambiente] [...]
O primeiro dia da mudança foi pacífico, com as atitudes concentradas
em trabalharmos em conjunto, como turma [...] Embora a escola
estivesse uma balbúrdia, com professores e estudantes a esforçarem-
se por visitarem todo o espaço para saberem onde ficava tudo, os
Rainbow Riders só queriam estrear a sala de aula com aquilo a que
chamavam a “sua sensação”. Queriam sentar-se juntos na “sensação”
que experienciam quando meditam juntos. Adoram a serenidade
saturada que experimentam juntos. São muito engraçados quando
dizem que é uma coisa difícil de explicar. Insistem que não são
“palavras”, o que é frustrante para a maioria dos adultos que querem
uma explicação. Os alunos dizem que é uma coisa que tem de ser
sentida e que não lhes aparecia durante algum tempo e acontece
melhor quando estão juntos”.
No primeiro dia da mudança, limitei-me a ficar para trás e a deixar
que fossem eles a indicar o caminho. Faço muito isso, porque dá-me
uma noção do ponto em que se encontra a compreensão e o processo
deles. Não estavam interessados em saber onde tudo se encontrava,
apenas as coisas essenciais, como as casas de banho e o chafariz. Só
queriam estar em contacto uns com os outros e envolver-se na nossa
própria sala de aula. Esperei até às 11 da manhã e depois pedi-lhes
que me dissessem quando quisessem fazer uma visita guiada à escola.
Eles limitaram-se a sorrir e disseram que estavam bem. Disseram-me
que “podia mostrar-lhes o refeitório ao almoço, mas ainda não era
hora disso.” Os alunos continuaram a explicar-me que eu estava a
“usar o meu talento prospetivo” e que, por ora, seria melhor manter-
me assim. Eu respondi “Oh, está bem”, perguntando-me o que
estariam a pensar de mim. Um rapaz [o que tinha sido diagnosticado
com SDAH (síndrome de défice de atenção e hiperactividade] ficou
incomodado com a explicação e disse: “Não lhe resgatem o
pensamento. Ela vai perceber.”
Já estamos há duas semanas [no novo espaço] e eles ainda só
quiseram ver o básico e as salas de que precisam em dada altura.
Estou a adorar os resultados da nossa prática. Tenho continuado a
pedir que me digam quando quiserem fazer uma visita guiada e eles
disseram que seria agradável fazê-la quando nos formos embora.
Comentaram o que entendem como “as outras turmas estão distraídas
com muitas coisas de que realmente não precisam e não se
concentram em trabalhar em si mesmos ou uns com os outros.” P.
disse: “Fartam-se de correr, sempre a tentar apanhar qualquer coisa
que nunca para.”
Estas crianças, sob a orientação de uma professora altamente capaz e
profundamente motivada, imaginativa e ousada, aprenderam a concentrar-
se interiormente. Consequentemente, aprenderam a conhecer-se melhor e
experimentaram trabalhar em conjunto de formas significativas para elas e
profundamente autênticas.
>>>
Cherry Hamrick estava à frente do seu tempo. Agora, quase vinte anos
depois, há professores tanto nos Estados Unidos como noutros países a
incluir práticas de atenção plena em muitos aspetos do dia escolar. Muitos
programas e currículos diferentes foram desenvolvidos e encontram-se
atualmente a ser implementados e investigados. Pretendem promover
maior autoconsciência, atenção, concentração, comportamentos pró-
sociais, incluindo maior empatia e compreensão dos outros. Quando tais
práticas se tornam uma parte íntima e contínua da experiência da sala de
aula, as crianças têm oportunidades práticas para conhecer e explorar o
terreno do seu próprio ser. Isto constitui uma mudança promissora e
potencialmente revolucionária na educação primária e secundária.
>>>
Quando provamos alguns dos benefícios de uma maior atenção plena nas
nossas vidas enquanto pais, podemos dar por nós a querer ensinar várias
práticas de atenção plena aos nossos filhos, incluindo como meditar. Se
assim for, é importante que estejamos cientes de quão apegados
poderemos estar aos resultados benéficos que imaginamos que a prática
terá para eles. Os nossos filhos são muito bons a pressentir quando temos
objetivos não declarados. Examinar as nossas motivações e intenções é
essencial se esperamos introduzir mindfulness em formas apropriadas às
suas idades e que possam ser úteis para eles.
Há alturas em que aplicações potencialmente benéficas do mindfulness
podem, de facto, surgir naturalmente com os filhos. Nesses momentos,
recorrendo à nossa própria experiência e prática, poderemos, por exemplo,
sugerir aos nossos filhos pequenos que se concentrem e observem com
muita atenção de que “cor” é a sua dor e como muda de um momento para
o outro quando se magoaram, ou mostrar-lhes como “flutuar” nas ondas
da respiração, como se estivessem num pequeno barco quando estiverem a
ter dificuldade em descontrair ou adormecer, ou ver se se lembram de
outras alturas em que as suas mentes tenham “oscilado” por causa do que
outras pessoas disseram ou fizeram e que lhes tenha causado mágoa.
Parece sensato seguirmos os sinais dos nossos filhos e as suas
expressões de interesse em diferentes idades. Em última análise, o melhor
ensinamento que podemos dar é através do exemplo, do nosso empenho
em estarmos presentes e da nossa sensibilidade em relação a eles. Quando
praticamos formalmente, sentados ou deitados, representamos silêncio e
imobilidade. Os nossos filhos veem-nos profundamente concentrados e
ganham familiaridade com esta forma de ser. Muitas das perceções e
atitudes que se desenvolvem a partir da nossa prática de atenção plena
passarão naturalmente para a cultura da família e afetarão os nossos filhos
de maneiras que, com o tempo, eles poderão considerar úteis nas suas
próprias vidas.
NONA PARTE

Limites e Aberturas
Expetativas
As expetativas irrefletidas que temos acerca dos nossos filhos podem
afetar como vemos as coisas e influenciar as nossas escolhas parentais,
bem como as ações que empreendemos. Embora algumas dessas
expetativas possam ser úteis e positivas para o crescimento e o
desenvolvimento de uma criança, para além de promoverem
autoconfiança, iniciativa e uma noção de responsabilidade, outras poderão
ser restritivas e limitadoras, causando sofrimentos desnecessário tanto aos
nossos filhos como a nós mesmos.
Todos temos expetativas – de nós e dos outros e é particularmente
provável que as tenhamos quanto aos nossos filhos: ideias acerca de como
devem comportar-se, que aspeto devem ter ou que roupas devem vestir,
que bons resultados devem obter na escola, que tipos de relações devem
ter, o que devem fazer com esta idade ou fase do desenvolvimento e por aí
afora. Como provavelmente terá visto em muitos aspetos da sua vida, bem
perto da expetativa costumam vir julgamentos críticos de alguma espécie.
Quando aplicamos atenção plena aos nossos pensamentos e sentimentos,
percebemos que as expetativas e os pressupostos e julgamentos que lhes
estão associados, ainda que muitas vezes sejam tácitos, são uma
característica omnipresente da nossa paisagem interior. São mais
problemáticos quando nos apegamos rigidamente a eles e esquecemos que
são meros pensamentos, frequentemente carregados de emoção intensa e
não necessariamente verdadeiros. A atenção plena aplicada às nossas
expetativas pode, por conseguinte, ser extremamente esclarecedora e
libertadora.
Se começarmos por examinar as expetativas que temos de nós mesmos,
poderemos verificar que albergamos um leque bastante variado e que,
muitas vezes, nos julgamos arduamente quando não nos “mostramos à
altura”. Algumas expetativas comuns que poderemos ter são que devemos
sempre fazer as coisas bem ou “corretamente”, ser bem-sucedidos no
nosso trabalho, ser pais maravilhosos e filhos devotados e conscienciosos,
e ser apreciados e respeitados por outras pessoas.
Julgar-nos duramente quando sentimos que não estivemos à altura das
nossas próprias expetativas pode suscitar várias emoções, dependendo,
claro está, das circunstâncias específicas e do nosso próprio historial.
Estas emoções podem incluir vergonha, desapontamento, embaraço,
zanga, humilhação, depressão e sentimentos de inadequação. Os nossos
filhos podem experienciar sentimentos similares ao considerarem-se
julgados. Por este motivo, é importante estarmos mais cientes das nossas
expetativas e de como as expressamos, dos propósitos que servem e das
formas como poderão afetar os nossos filhos, tanto positiva como
negativamente.
As nossas expetativas serão diferentes consoante o filho e variarão com
as idades. Também poderão ser algo diferentes tratando-se de rapazes ou
raparigas. Algumas terão que ver com o funcionamento quotidiano da vida
familiar, como quem é responsável por fazer o quê, e algumas prender-se-
ão mais com a forma como nos identificamos uns com os outros. Também
podemos acarretar expetativas mais pesadas e potencialmente
problemáticas, muitas vezes inconscientes e tácitas, como, por exemplo,
que um filho será sempre obediente, ou desafiante, ou tímido, ou
extrovertido. É possível que não tenhamos qualquer má intenção, mas
poderemos acabar, inadvertidamente, por colocar os nossos filhos em
caixas conceptuais que têm o efeito tanto de restringir como de
menosprezar. Mais uma vez, o verdadeiro problema deriva de uma falta de
consciência da facilidade com que podemos ficar embrenhados nas nossas
próprias ideias e opiniões, deixando de ver os nossos filhos na sua
plenitude e complexidade.
Como parte do contínuo cultivo da atenção plena, podemos recordar-
nos, de tempos a tempos, de levar a consciência aos nossos pensamentos
e, fazendo-o, observar as expetativas que temos e as emoções que lhes
estão associadas. Também ajuda fazermo-nos perguntas específicas, tais
como: Quais são, de facto, as expetativas que temos para os nossos filhos?
São realistas e apropriadas para a idade? Contribuem para o crescimento e
a iniciativa de um filho? Esperaremos demasiado ou menos do que
deveríamos? Estaremos a contribuir para que o nosso filho experiencie
stresse e fracassos desnecessários? As nossas expetativas e a forma como
as expressamos fortalecem a noção que o nosso filho tem de si mesmo, ou
constringem-no, limitam-no, desconsideram-no? Contribuem para o seu
bem-estar, para que se sinta amado, cuidado e aceite? São congruentes
com este filho em particular? Como se identificam com o temperamento, o
estilo de aprendizagem e os interesses próprios desse filho? O simples ato
de nos dedicarmos a este tipo de questionamento pode conter imensa
criatividade, tanto através deste género de perguntas como ao aplicarmos
atenção plena aos pensamentos enquanto pensamentos, às emoções
enquanto emoções e aos julgamentos críticos enquanto julgamentos
críticos.
Poderá ser útil examinar se as nossas expetativas levam em linha de
conta as várias facetas do caráter de cada filho e se lhes dão espaço para
que experimentem diferentes comportamentos. Por exemplo, seremos
capazes de permitir que os nossos filhos expressem os seus sentimentos de
zanga, desde que não magoem outros? Conseguiremos ver que esperar que
um filho seja sempre compassivo e afetuoso e que expressar
desapontamento quando ele demonstra zanga ou interesse próprio, pode
não ser nem compassivo, nem afetuoso?
Se queres que os teus filhos sejam generosos,
primeiro tens de lhes permitir que sejam egoístas.
Se queres que sejam disciplinados,
primeiro tens de lhes permitir que sejam espontâneos.
Se queres que sejam trabalhadores,
primeiro tens de lhes permitir que sejam preguiçosos.
Esta é uma distinção subtil
e difícil de explicar àqueles que te criticam.
Uma qualidade não pode ser totalmente aprendida
sem se compreender o seu oposto.
NO. 36: “OPPOSITES ARE NECESSARY” The Parent’s Tao Te
Ching
Podemos praticar tornar-nos mais hábeis a expressar o que esperamos
dos nossos filhos de formas factuais e claras. Com o passar do tempo,
podemos apoiá-los para que estejam cientes e desenvolvam as suas
próprias expetativas de si mesmos e dos outros, para que sejam tanto
realistas como saudáveis.
>>>
Eu (mkz) lembro-me com muita nitidez de que as minhas expetativas em
relação ao nosso primeiro filho mudaram quando tivemos outro bebé.
Esperava que ele fosse mais responsável e independente de formas que
não esperara antes da chegada da irmã mais nova. O filho que fora o nosso
“bebé” passou subitamente a ser visto a uma nova luz, por comparação
com a recém-nascida, e as expetativas que tínhamos em relação a ele
começaram a multiplicar-se. Talvez este fenómeno comum aconteça, em
parte, porque nos facilita a vida com um novo bebé, ou talvez seja um
subproduto de alguma espécie de proteção biológica da espécie, em que
nos apaixonamos pelo recém-nascido e o irmão mais velho perde a sua
aura mágica, porque não precisa de nós para sobreviver da mesma maneira
que um bebé.
Quando vejo outros pais com expetativas similares em relação aos seus
filhos mais velhos, desejo poder lembrar-lhes que, aos dois anos, em
muitos sentidos ainda se é bebé; que o filho de quatro anos é apenas isso –
uma criança de quatro anos; que o filho de seis, por vezes, ainda precisa
de que lhe deem colo, de sentir a adoração e a energia afetuosa dos pais; e
que, embora o filho de oito anos possa assumir mais responsabilidade e
talvez beneficie disso, continua a precisar de abraços e de tempo sozinho
com os pais, para ter a liberdade de ainda ser criança.
Os nossos filhos também têm expetativas em relação a nós. Podem
esperar que cheguemos a horas, ou que cheguemos sempre atrasados; que
sejamos fiáveis ou inconstantes; que estejamos disponíveis para eles, ou
não; que nos zanguemos de imediato, ou que sejamos compreensivos. As
expetativas que têm de nós baseiam-se na sua experiência de como agimos
em situações anteriores. Podem revelar-nos o nosso próprio
comportamento, que nós talvez não vejamos. Isso oferece-nos uma
oportunidade de mudarmos de formas que poderão ser mais saudáveis
tanto para eles como para nós.
Quando, de repente, ficamos maldispostos ou irritados e falamos num
tom ríspido, isso pode ser confuso ou perturbador para um filho. Se
pudermos reconhecer que, nesse momento, estamos cansados e a passar
um mau bocado, damos-lhe um enquadramento para que entenda o nosso
comportamento. Quando agimos de uma maneira inesperada e somos
capazes de a identificar tal como é, tornamos um universo imprevisível e
confuso mais ordenado e compreensível. Assim, não é tão provável que os
filhos se culpem ou sintam tensos e ansiosos quando a disposição de um
pai se altera abruptamente. Também lhes ensina algo útil acerca das
pessoas em geral e pode até contribuir para que vejam aspetos do seu
próprio comportamento com mais clareza à medida que crescem.
Se uma criança parte algo sem querer, poderá esperar que os pais se
zanguem consigo e ficar espantada quando isso não sucede. Poderá ter
acontecido que, no passado, os pais se tenham zangado em situações
similares. Mas, nesta ocasião, os pais reagem com maior compreensão e
aceitação, por estarem a fazer um esforço por ser mais conscientes do seu
próprio comportamento e dos efeitos que este tem na filha, tentando
manter em mente o que é mais importante. Ao fazê-lo, incorporam maior
amabilidade e compreensão, saindo do reino das expetativas limitadas que
tinham para a filha e, nesse processo, alterando as expetativas que ela tem
em relação a eles.
As expetativas que temos dos nossos filhos variam, em certo grau, de
acordo com as pressões a que estamos submetidos e a profundidade dos
recursos que sentimos poder socorrer-nos nesse momento. Quando
estamos stressados e a sentir-nos saturados, podemos dar por nós a querer
afeto e compaixão dos nossos filhos. Embora seja muito humano ter esse
tipo de sentimentos e necessidades, precisamos de nos recordar que não
compete aos filhos cuidar de nós dessa maneira. Isso não significa que
eles, por vezes, não sejam compassivos ou compreensivos. Por vezes, os
filhos reagem com tremenda amabilidade e empatia, mas é frequente
quererem apenas aquilo que querem e não estarem interessados nos nossos
problemas, nem devem estar. Crianças pequenas também não estão
interessadas em explicações longas, com muitas palavras. Mas, de facto,
ajuda-os saberem que o nosso comportamento está associado à forma
como nos sentimos, tal como o deles se associa a como se sentem.
Quando os filhos são pequenos, há algumas expetativas e regras básicas
estabelecidas por nós, como: “Não podes atravessar a estrada sem um
adulto”; “Por mais zangado que estejas, não podes bater nas pessoas”;
“Tens de falar com respeito.” Também podemos esperar que tenham bons
modos à refeição, a cumprimentar pessoas e por aí em diante. Cada um de
nós tem de decidir o que é importante para si e o que se adequa melhor aos
filhos e à família em geral. Sermos claros acerca do que sentimos ser um
comportamento inaceitável e quais as nossas expetativas é outra forma de
cuidarmos dos nossos filhos. Crianças pequenas, em particular, sentem-se
seguras e a salvo, aliviadas, quando temos expetativas consistentes e
claras, apoiadas pelos limites que estabelecemos quando necessário.
À medida que crescem, os filhos começam a assumir mais
responsabilidade pelas coisas que precisam de fazer e as formas como se
comportam. Ajuda-os que os responsabilizemos pelas suas ações e os
deixemos experienciar as consequências naturais do que fizeram.
Por vezes, podemos verificar que as nossas expetativas se encontram em
conflito direto com as dos nossos filhos. Quando uma das nossas filhas
não quis que assistíssemos a um evento na sua escola, ficámos
surpreendidos e desapontados. Queríamos imenso ir e a nossa filha queria
experienciá-lo sozinha. Queria que fosse uma experiência sua.
Quando o nosso filho se preparava para ir para a faculdade, pela
primeira vez, eu (mkz) queria e estava a contar levá-lo de carro até lá.
Como sua mãe, queria ver onde iria viver e fazer parte daquela transição
importante. Já ele queria algo diferente: ir de carro com o amigo com
quem viajara pelo país naquele verão. Queria chegar à faculdade como
uma pessoa independente, não como um filho a ser levado à escola pelos
pais. Depois de ele nos ter dito isto, durante alguns momentos senti-me
dividida entre sentimentos fortes de desapontamento e o meu esforço por
ver a situação a partir da sua perspetiva. Por fim, compreender porque era
tão importante para ele ir à sua maneira ajudou-me a abrir mão da
expetativa, que acalentava havia muito, e a ser capaz de dizer com
sinceridade e aceitação: “Compreendo porque queres ir com o teu amigo e
por mim está bem.”
Em situações como esta, os filhos esperam que os pais vejam as coisas a
partir da sua perspetiva. Querem a nossa compreensão e aceitação. Por
vezes, os pais operam apenas a partir do enquadramento das suas próprias
necessidades e dos seus desejos, não dos dos filhos. Ajuda sermos capazes
de sustentar as duas visões na nossa consciência, ver o que é melhor para
os nossos filhos dentro do contexto daquilo que é possível para nós e,
quando necessário, abrir mão dos nossos apegos fortes a como esperamos
que as coisas sejam.
Oferecemos aos filhos uma dádiva grande, ainda que invisível, quando
nos debatemos com as nossas próprias expetativas e somos capazes de,
conscientemente, deixar as que não se adequam aos nossos filhos ou não
fomentam o seu crescimento e bem-estar. Trata-se de uma parte
importante da prática da parentalidade com atenção plena. Quando somos
capazes de fazer isto, a atmosfera familiar aligeira-se, há uma sensação
maior de amplitude e equilíbrio e mais espaço para todos crescerem.
Rendição
Logo quando tenho (mkz) andado a passar por umas semanas
particularmente agitadas e cheias de pressão, a minha filha de sete anos
adoece. Tem as faces coradas; dói-lhe a cabeça. Eu a querer libertar-me e
de repente dou por mim com uma rédea ainda mais curta.
Sinto-me zangada e frustrada, levada até ao limite. Não quero que isto
esteja a acontecer. Quero recolher-me, enfiar-me na cama e fechar a porta,
mas vejo que ela se sente muito mal. Quer-me. Precisa de mim. O meu
coração condói-se dela. Ela não está a fazer isto para me torturar. Não
pode evitá-lo – está doente. Dou por mim a respirar fundo. Sinto-me a
começar a render-me ao que é necessário e a pôr de parte as expetativas e
as listas de coisas que planeava fazer.
A febre intensifica-lhe a experiência de tudo. A luz incomoda-lhe os
olhos, pelo que fechamos as cortinas, deixando o quarto escuro e calmo.
De vez em quando, ela dorme. Quando está acordada, não quer estar
sozinha. Fico com ela. Encosto-lhe uma compressa fria na testa. Levo-lhe
chá e torradas. Leio-lhe. E, enquanto faço estas coisas, há um certo
conforto em fazer o que posso para a ajudar a sentir-se melhor. Os
momentos em que lhe leio ou em que estou simplesmente sentada a seu
lado, a dar-lhe a mão, são de uma riqueza tranquila. Ela olha para mim
com agrado, enquanto lhe leio, ou diz: “Estou contente por estarmos
juntas.” Os seus olhos estão particularmente brilhantes, o rosto quase
translúcido. Penso em como seria diferente o seu dia se ela estivesse na
escola e espanto-me por este tempo “doente” poder ser tão reparador.
Notei, frequentemente, que os meus filhos emergem da doença com um ar
diferente, como se tivessem crescido, mudado neste cadinho de calor
intenso a que chamamos febre e ao recolherem-se em quietude enquanto
cuidamos deles.
É claro que há momentos em que ela fica irritável, zangada, exigente.
Esses momentos constituem o meu laboratório. Põem-me à prova. Irei
levar a situação a peito e zangar-me com ela, ou recordarei como é estar
doente e serei compassiva e recetiva? Serei capaz de a deixar extravasar
frustração e tristeza sem a julgar ou criticar? Poderei abrir mão das
expetativas que tinha em relação a este dia e render-me à necessidade e à
beleza do que surgiu?
Limites e Aberturas
Há estudos que sugerem que, quando os pais são ou muito permissivos,
apresentando poucos ou nenhuns limites, ou autoritários, rígidos e
dominadores, os filhos invariavelmente sofrem e é menos provável que
desenvolvam uma capacidade salutar de iniciativa. Quando tratamos os
filhos com respeito, num enquadramento claro de limites apropriados,
estes tendem a crescer com maior confiança e segurança em si mesmos.
No contexto de uma relação afetuosa, unida e empenhada, experienciar
limites pode ser a fonte de aberturas significativas para os nossos filhos,
em vez de barreiras arbitrárias que lhes atiramos para o caminho.
Nem sempre é claro que limites e estrutura poderão ser mais benéficos
para determinado filho em determinado momento. Em geral, o
estabelecimento de limites na nossa família acontecia em torno de coisas
que víamos como podendo ter um impacto negativo no bem-estar dos
nossos filhos, como a televisão, junk food, filmes, jogos de vídeo, bem
como comportamentos que afetassem o bem-estar de outras pessoas, como
faltas de respeito, agressões ou insultos. Quando estabelecíamos limites,
tentávamos fazê-lo de formas que nos parecessem certas, para além de
justas para os nossos filhos.
Mas, claro está, as decisões e os limites impostos pelos pais, muitas
vezes, não parecem justas aos olhos dos filhos. Reconhecendo isto,
podemos ser uma presença enraizada e firme, ainda que empática,
enquanto eles se debatem com fortes sentimentos de frustração e zanga ao
depararem-se com um limite que estabelecemos. É certo que, como
referimos anteriormente, a própria vida apresenta com frequência
obstáculos que impedem as crianças de obterem o que desejam e muitas
ocasiões para sentirem desapontamento e mágoa. Os especialistas em
desenvolvimento infantil Gordon Neufeld e Gabor Maté referem-se a tais
experiências como embater no “muro da futilidade”. Afirmam que este
processo de ir contra um objeto ou uma situação imutável é essencial para
que uma criança aprenda que há limites para a sua capacidade de alterar
determinadas situações e para experiencimentar os sentimentos
consequentes de tristeza e mágoa, os quais lhe permitirão adaptar-se à
realidade das coisas. Aceitar as coisas tal como são é a essência da cura.
Mas, para chegarem a sentimentos de tristeza até à aceitação, como
observado por Susan Stiffelman no seu livro Parenting Without Power
Struggles, os nossos filhos têm de passar primeiro por uma progressão
natural semelhante aos cinco estágios da morte, da descrença quanto a não
lhes ser feita a vontade (negação), à zanga, a tentarem regatear ou
negociar, até, finalmente, experienciarem a sua tristeza. Quando
permitimos que regateiem connosco, fazemos descarrilar este processo
importante. Se forem capazes de expressar a sua zanga e também
chegarem a sentir a sua tristeza, é então que surge a possibilidade de
alcançarem alguma aceitação. Com o passar do tempo, o nosso filho
aprende a lidar com isso e adapta-se a nem sempre conseguir o que quer.
Um elemento essencial de encontrar o muro da futilidade é que o nosso
filho nos experiencie como uma presença fiável e compassiva. Ter uma
ligação saudável e de confiança com um pai permite que uma criança se
sinta suficientemente segura para estar vulnerável e sentir a profundeza da
sua tristeza. Se compreendermos como é importante que os nossos filhos
aprendam a aceitar a perda e os limites inamovíveis, sejam impostos por
nós ou como parte natural da vida, isso ajuda-nos a não nos prendermos
em regateios com eles, o que, inadvertidamente, pode minar-lhes a
capacidade e a necessidade de experienciarem os seus sentimentos de
tristeza e, finalmente, aceitarem o que não podem mudar.
Tudo aquilo de que falámos em relação à parentalidade com atenção
plena está orientado para o desenvolvimento da iniciativa, autoconsciência
e resiliência dos nossos filhos perante obstáculos. É óbvio que é
importante que eles desenvolvam uma confiança na sua capacidade de
alterar o que realmente tem de mudar no mundo que os rodeia, sem que
limites e obstáculos aparentes os detenham. Mas compreender a
importância e o valor de os nossos filhos embaterem no muro da futilidade
torna mais fácil que nos mantenhamos firmes e resolutos no que se refere
a estabelecer limites salutares e necessários na família.
Ver que limites se adequam aos nossos filhos e quais não o fazem requer
discernimento da nossa parte. Com algumas questões, se formos
demasiado rígidos, podemos inadvertidamente encorajar a preocupação
dos nossos filhos com o que quer que não estejam a obter. À medida que
eles crescem, o que está em jogo aumenta. Se formos demasiado rígidos,
eles podem deixar de confiar em nós, mentir-nos ou isolar-se por
completo. Por outro lado, se formos demasiado lassos com eles, deixando-
os fazer e ter o que quer que desejem, antes de serem capazes de se
autorregular, depressa começaremos a ver os efeitos negativos que isso
terá neles, os quais podem assumir a forma de exaustão, tensão,
irritabilidade, medo, ansiedade, agressão, falta de discernimento,
comportamentos descontrolados e um desequilíbrio geral.
Quando os nossos filhos eram pequenos, tentávamos dar-lhes liberdade
para explorarem, para seguirem as coisas que lhes interessavam, para
experimentarem comportamentos diferentes. Quando faziam coisas que
eram nocivas ou potencialmente perigosas, tentávamos que as nossas
reações se limitassem a esses comportamentos em particular. Tentávamos
passar-lhes a mensagem, de uma forma factual, de que o que estavam a
fazer não estava bem. Ao mesmo tempo, eles sentiam da nossa parte que
eles estavam bem, que o amor e a aceitação que lhes dedicávamos eram
constantes.
Por vezes, criávamos limites por zanga, pela sensação de “Foi a última
gota!” Mas, com mais frequência, os limites provinham do que estávamos
a ver, a pressentir, e por simples sentido comum: preocupação com quanto
andavam a dormir, ou com o que comiam, ou com a sua segurança. Outra
forma de estabelecer limites de algum género é vê-los como a criação de
uma estrutura, ou uma conjuntura, sejam expetativas que tenhamos em
relação à hora de dormir ou das refeições, sejam bons modos elementares
ou tarefas que precisem de ser partilhadas. Com o passar do tempo, eles
foram aprendendo a cuidar de si mesmos e, por fim, a fazer as suas
próprias escolhas saudáveis.
Com filhos mais crescidos, poderemos ter de intervir e impor alguma
espécie de limite às suas atividades, perante fortes pressões de amigos e da
sociedade. Isto requer perseverança e habilidade consideráveis, bem como
uma boa dose de sensatez. Educar adolescentes pode ser emocionalmente
esgotante. Os nossos esforços, dedicação e paciência são tão necessários,
nesses anos, como quando nos levantávamos a meio da noite quando eles
eram bebés.
Poderá haver alturas, com os nossos filhos na escola, em que damos por
nós com vontade de dizer algo como “Não tolerarei isto!” em certas
situações, nas quais as nossas expetativas e os seus comportamentos
divergem por completo. Os nossos protestos podem sair-nos com um forte
tom moralista, o que só agrava os problemas. Ao mesmo tempo, sob essa
capa, podemos sentir-nos completamente impotentes quanto à forma de
influenciarmos a situação. Só que, após pronunciarmos que não
toleraremos determinado comportamento, o que se segue? Todas as
estratégias relativamente simples que talvez tenham funcionado quando os
filhos eram pequenos, como a distração e o redirecionamento, ou retirá-los
fisicamente da situação problemática, não são apropriadas nem possíveis
com filhos mais crescidos.
Independentemente do que decidamos fazer ou dizer, é sempre útil
quando conseguirmos manter-nos enraizados e em contacto com o nosso
próprio estado energético e as nossas emoções, atentando a qualquer
tensão no corpo e à respiração, abrandando-a intencionalmente e
permitindo que se torne mais profunda. Ao fazê-lo, podemos acalmar o
nosso próprio sistema nervoso, o que, inevitavelmente, terá um efeito no
nosso filho. Quando estamos presentes e em contacto connosco, os filhos
podem encontrar-nos. A nossa presença não só apoia como também
representa a capacidade de nos relacionarmos num momento desses. A
comunicação efetiva não pode acontecer sem isso. Poderemos, por
exemplo, atentar ao nosso tom de voz. Podemos tentar pôr de parte a voz
severa, muitas vezes elevada e ríspida, que parece surgir-nos com tanta
naturalidade em tais momentos, dizendo o mesmo de uma forma mais
calma e factual. Nesses momentos difíceis, poderá ser uma prática útil
voltarmos a ligar-nos ao que temos de mais profundo e melhor em nós
mesmos e recordarmo-nos do que é mais importante.
Em última instância, a reação dos filhos a quaisquer limites ao seu
comportamento depende, em parte, de quão ligados se sentem a nós ou à
família enquanto um todo, e de sentirem que os limites são impostos por
preocupação e afeto – mesmo que, na altura, os deixem furiosos.
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Como muitos pais de alunos do secundário, houve uma altura em que
sofremos os efeitos negativos de uma das nossas filhas passar todo o
tempo livre ao telefone. O que tinha começado de forma bastante inócua
transformou-se numa situação em que, desde o segundo em que entrava
em casa vinda da escola até ao momento em que ia para a cama, ou estava
ao telefone, ou estava à espera de um telefonema. Tudo o que fazia podia
ser interrompido a qualquer momento, incluindo os trabalhos de casa. Por
fim, apesar de ter garantido que os trabalhos de casa não estavam a ser
negligenciados, deixou de ter simplesmente a tranquilidade necessária
para se concentrar de facto no trabalho escolar exigente, que acabou por se
ressentir. Este uso ilimitado do telefone também teve um efeito negativo
na sua relação com a família, de tal maneira que começou a lidar connosco
como se fossemos desconhecidos e com modos zangados e distantes.
Apercebemo-nos de que dizer-lhe simplesmente que o seu tempo ao
telefone seria limitado teria sido autocrático e criaria ainda mais distância
entre nós. Em vez disso, decidimos convocar uma reunião familiar na qual
todos poderíamos falar sem interrupções e dizer o que sentíamos acerca da
questão do telefone. Escutando-nos uns aos outros, todos fomos mais
capazes de compreender os pontos de vista de cada um. Todos dissemos
aquilo com que podíamos ou não viver e acabámos por chegar a acordo
em relação a um horário de telefonemas que satisfez toda a gente.
Ao fim de uns dias, com tempo ininterrupto ao jantar e durante uma
hora depois para fazer os trabalhos de casa, ela admitiu que “até gostava”
do novo horário dos telefonemas. Percebemos que sentia um certo alívio
por ter algum tempo tranquilo e ininterrupto só para si. Era algo que ela
não teria proposto. Isso cabia-nos a nós.
Após uma ou duas semanas, a nossa filha começou inevitavelmente a
tentar alterar o acordo a que tínhamos chegado. Disse-nos que queria
começar a falar ao telefone meia hora mais cedo, coisa a que acederíamos,
desde que acabasse meia hora mais cedo também. Como não estava
disposta a isso, regressou ao acordo original. Estarmos cientes dos efeitos
positivos dos novos limites em relação ao telefone, tanto para a nossa filha
como para toda a família, tornou muito mais fácil defendermos a nossa
posição.
Quer a questão seja o tempo passado ao telefone, a mandar mensagens,
em redes sociais, quer seja qualquer outra coisa, haverá sempre situações
especiais e alturas em que precisamos de ser flexíveis, sendo importante
estarmos cientes delas. Em certa medida, isto dificulta a tarefa dos pais,
pois os filhos sabem que existe uma possibilidade de negociação em
relação a certas coisas e é provável que procurem uma janela de
oportunidade para contornarem as regras. Conseguem ser mestres da
argumentação, por vezes como verdadeiros advogados, e é difícil não ver
isso como uma característica admirável, ainda que ameace frustrar-nos a
autoridade. Mas, em geral, e sobretudo com crianças pequenas, aprender
que “não é não” e que não há espaço para negociação ou para que
mudemos de ideias cria expetativas claras e um ambiente familiar de
confiança e segurança.
Algumas crianças precisam de mais limites do que outras em relação a
determinadas questões. A hora de deitar para um filho madrugador será
diferente da de um que seja naturalmente notívago. Um filho que seja bom
leitor terá mais recursos de que possa valer-se à noite do que outro para
quem a leitura seja difícil. As crianças que têm mais facilidade em
autorregular-se, e são menos impulsivas, precisarão naturalmente de
menos imposição de limites por parte dos pais.
Ao mesmo tempo que detetamos mudanças ou desvios nas nossas
próprias tolerâncias e imposições de limites com diferentes filhos em
idades ou circunstâncias diferentes, parte da parentalidade com atenção
plena consiste em reexaminar se o que fazemos e pensamos vai ao
encontro dos interesses do nosso filho e perguntarmo-nos se poderá haver
uma forma melhor que esteja a escapar-nos.
Quando os filhos chegam à adolescência, a estrada dos pais torna-se
estreita e sinuosa, a visibilidade diminui e as coisas nem sempre são o que
parecem. Eles precisam de privacidade, mas essa privacidade significa que
nem sempre sabemos o que se passa, o que estão realmente a fazer, em
que estão a meter-se. O seu foco facilmente passa para “Como será que
consigo safar-me?” em vez de “O que será melhor para mim?” Sinais
problemáticos em filhos mais crescidos podem ser muito mais facilmente
ignorados e negados do que o choro de um bebé. Podemos sentir-nos
tentados a dizer que sim a coisas a que queremos dizer que não, tanto para
evitar uma discussão como por recearmos que dizer não sirva apenas para
os afastar mais.
Os adolescentes podem beneficiar de lhes comunicarmos o que vemos,
o que sentimos e quais são as nossas preocupações – o que entendemos
como perigos possíveis para o seu bem-estar. Nas ocasiões em que
sentimos que temos de lhes negar coisas que eles querem de nós, se não
formos conscientes, o não que lhes dizemos pode acarretar muitas outras
mensagens tácitas, como “Não confiamos em ti”, “És mau” ou “Não tens
discernimento.” Precisamos de estar cientes destes sentimentos em nós
mesmos caso existam e das reações automáticas que provocam, para não
criarmos distância e alienação desnecessárias em momentos que já são
suficientemente difíceis.
Se dissermos a uma filha adolescente: “Não, não podes ficar sozinha
com esse rapaz na casa dele”, a resposta dela poderá ser: “Não confiam
em mim?” Com alguma ponderação, poderemos responder dizendo: “Não
confiamos na situação. É demasiado fácil sentirmo-nos pressionados a
fazer coisas que são potencialmente perigosas ou acerca das quais depois
podemos sentir-nos mal.” Esta resposta tem pelo menos o potencial de ser
vista não como um exercício arbitrário de poder, mas antes como uma
avaliação refletida de uma situação, sem impugnar a integridade da filha.
Ela poderá não entender o nosso ponto de vista, rejeitá-lo por completo e
ficar ressentida e zangada. Não obstante, naquele momento, indicamos
algo real, compreendendo que esta interação única, independentemente do
desfecho que tiver, está fadada a ser um de muitos encontros do género.
Escolher, com certo grau de sensatez, em que situações nos colocamos é
uma dessas lições de vida que requerem tempo e experiência para serem
aprendidas.
>>>
Uma amiga nossa recebeu um telefonema da filha, a dizer: “Mãe, estou
em Nova Iorque.” Isto foi depois de muitas discussões, em que explicara à
filha porque não queria que, aos dezasseis anos, fosse sozinha de Boston a
Nova Iorque para visitar uma escola em que estava interessada. A filha
contou-lhe que não tinha conseguido entrar em contacto com a pessoa
com quem julgava que ficaria, pelo que tinha ligado a outra jovem que
conhecera recentemente numa reunião local e estava em casa dela. Como
poderia esta mãe reagir a tal fait accompli? Como lidar com o que lhe foi
apresentado?
Sensatamente, fez uma pausa para avaliar a situação. Apercebeu-se de
que a filha estava a tentar cuidar de si mesma e que tivera a atenção de lhe
telefonar para que ela não se preocupasse. A filha já estava em Nova
Iorque. Não havia zanga que pudesse mudar isso. Disse-lhe: “Agora não
estou zangada, mas reservo-me o direito de ficar furiosa mais tarde.”
Desta forma, deixou as opções em aberto para lidar com a sua perturbação
emocional numa altura melhor. Então começou a fazer perguntas à filha
acerca da sua segurança e para saber se tinha as coisas de que precisava
para completar a viagem e voltar para casa. Apercebeu-se de que a filha
estava a tentar fazer algo muito importante para si. Embora discordasse do
que tinha feito, ao mesmo tempo era capaz de apreciar a coragem e
desembaraço da filha. Mantendo-se clara quanto aos seus próprios
sentimentos, mas pensando também profundamente acerca das
necessidades da filha, esta mãe foi capaz de ser compreensiva e não
permitir que as posições antagónicas em que se encontravam se
colocassem entre elas.
>>>
O desafio inevitável da criar filhos é que, quanto mais crescidos eles são,
mais assustadoras podem as coisas tornar-se para nós, à medida que eles
saem para o mundo e se deparam com situações potencialmente perigosas
sobre as quais temos pouco ou nenhum do controlo que detínhamos
quando eles eram pequenos. Um aspeto importante, mas muito difícil, do
nosso trabalho interior enquanto pais, durante este período, é estarmos
atentos aos nossos próprios medos e ansiedades. Isso ao menos dá-nos
uma oportunidade de não nos embrenharmos de tal maneira nesses
sentimentos que nos turvem a visão e as sensibilidades e tornem
impossível ver o que se passa com os nossos filhos, ou comunicar
eficazmente com eles.
Trata-se de uma altura em que podemos cimentar o trabalho que
fizemos no passado para criar confiança e, mais importante do que isso,
uma sensação partilhada de união na família. Tendo isto como base, torna-
se possível, se bem que nem sempre fácil, conversar com os nossos filhos
acerca de coisas como os custos e os riscos do álcool, das drogas e do
sexo sem proteção (tanto em termos emocionais como físicos).
Tendo cada vez mais liberdade e perante todo o género de escolhas,
algumas das quais destrutivas e perigosas, e por vezes com forte pressão
dos pares, torna-se essencial que os filhos mais crescidos desenvolvam a
sua própria capacidade de autoconsciência e autoproteção. Isto inclui a
capacidade de estarem em contacto com o que sentem em situações
difíceis e potencialmente danosas, que possam instilar sentimentos
altamente contraditórios, e aprenderem a perguntar a si mesmos de que
precisam realmente. Com alguma autoconsciência, é mais provável que
tomem escolhas mais salutares e sejam mais capazes de demarcar os seus
próprios limites. Desenvolver atenção plena deste domínio é um processo
que ocorre ao longo do tempo. Cada vez há mais escolas a oferecer
formações de mindfulness como parte do currículo académico, desde o
jardim de infância até à escola secundária, para desenvolver, entre outras
capacidades, precisamente este tipo de autoconsciência e inteligência
emocional.
Muitas atividades desenvolvem naturalmente a autoconsciência, a
autodisciplina e a autoconfiança. Entre estas contam-se as artes marciais,
vários desportos, ioga, dança, teatro, pintura, escalada, campismo
selvagem, manter um diário. Uma experiência interior de autoeficácia e
mestria numa área irá inevitavelmente contaminar outras áreas das suas
vidas. Por fim, os filhos chegam a uma idade em que têm de recorrer à sua
própria consciência, ao seu bom senso e às experiências passadas, à
medida que avançam por si sós e se deparam com o desafio de
continuarem a crescer enquanto as suas vidas se desenrolam.
Metermo-nos na Nossa Vida
Não pegues no arco de outro,
Não montes o cavalo de outro,
Não discutas os defeitos de outro,
Não explores os assuntos de outro.
WU-MEN, Mestre zen chinês do século XIII
“Onde foste?”
“À rua”
“O que fizeste?”
“Nada.”
DIÁLOGO FAMILIAR
É fácil que, enquanto pais, caiamos no erro de pensar que precisamos de
saber tudo o que se passa com os nossos filhos, incluindo nas suas vidas
interiores. É apenas natural que nos sintamos assim, já que somos tão
próximos deles quando são pequenos. Estamos com eles enquanto
descobrem e aprender acerca de si mesmos e do mundo, quando
experienciam alegria e tristeza. Mas, à medida que crescem, torna-se
essencial que lhes demos espaço psicológico para privacidade e para que
partilhem connosco o que decidam partilhar, quando optarem por fazê-lo.
Isto, em si mesmo, é um ato de bondade amorosa. Então, quando
precisarem ou quiserem de facto partilhar algo connosco, talvez sintam
que podem confiar em nós e que nós seremos capazes de compreender as
suas preocupações.
Isto requer presença e disponibilidade da nossa parte e uma resolução
saudável de nos metermos na nossa própria vida. Trata-se de um equilíbrio
delicado, que requer um alto nível de sensibilidade e discernimento, para
além de paciência.
É claro que, como cada filho é diferente, cada pai é diferente e não há
duas circunstâncias iguais, precisamos de estar atentos à situação atual na
família e nas nossas mentes. Para nos metermos na nossa própria vida,
teremos de saber o que faz realmente parte da nossa vida de pais – e o que
não faz.
Também não é apenas uma questão de saber. Termos paciência e
presença sem espiarmos, sondarmos ou sermos autoritários pode
contribuir mais para que tenhamos uma relação mais positiva do que se os
filhos sentirem que estamos sempre a meter-nos na sua vida, a querer
saber mais do que eles gostam de partilhar e a alardear ressentimentos
quando nos sentimos postos de parte ou isolados.
Talvez seja esclarecedor recordarmos a nossa própria adolescência. A
dada altura, não houve coisas que precisávamos de guardar apenas para
nós, coisas que não diziam simplesmente respeito aos nossos pais, nunca
diriam ou poderiam dizer, porque eram experiências que emergiam no
nosso próprio mundo interior privado?
O nosso filho poderá dizer-nos, em determinada altura, que está
apaixonado ou que vai casar. Nós poderemos saber algo do exterior e ter
uma noção do interior, mas nunca poderemos conhecer o interior por
completo, e está bem que assim seja, pois não é nosso, não nos cabe
conhecê-lo. O que nos compete é cuidar da nossa própria vida interior, da
vida da nossa própria mente, do nosso próprio corpo, das nossas próprias
relações e da nossa própria vida, atribuindo a mesma liberdade e respeito
aos nossos filhos, enquanto fazem a transição da dependência absoluta de
crianças pequenas para adultos independentes e interdependentes.
A qualidade e o afeto das nossas ligações aos filhos serão proporcionais
a quanto continuemos a efetuar o nosso próprio trabalho interior e a
manter uma noção de limites apropriados, bem como à nossa disposição
para deixarmos que os filhos mais crescidos percebam as coisas por si
mesmos e mantenham a sua própria privacidade. Presença e abertura,
amor e interesse, bem como uma vontade de responder em vez de reagir
criam um ambiente mais espaçoso de respeito e confiança entre pais e
filhos. Esta é parte da vida que nos diz respeito, sim.
É Sempre a Sua Vez
Depois de assistir a um filme com as nossas duas filhas, a mais velha
adormece, mas a mais nova precisa de algo mais antes de dormir. Veste o
pijama e pede uma história, depois muda de ideias e pergunta se podemos
antes jogar xadrez na sua cama. Uma partida, concordamos, e depois
apaga-se a luz e toca a dormir.
Teremos de ter muito cuidado para não deixar cair as peças neste
tabuleiro flexível em cima do colchão. Mas primeiro, ela pergunta-me,
num tom digno de uma princesa, se lhe arranjo uma tangerina “e também,
papá, um saco de água quente” para lhe aquecer a cama nesta noite fria de
novembro. Tenho todo o gosto em ir tratar disso, assim que encontro a
rolha do saco de água quente. Depois vou buscar o xadrez.
Já andamos a jogar xadrez de novo há umas semanas. Por vezes ela
convida-me, outras vezes sou eu a convidar. Durante imenso tempo, não
conseguia convencê-la a jogar, mas Myla lembrou-se de arranjar um
tabuleiro grande e um conjunto de peças maiores do que aquelas com que
tínhamos começado, e ainda um daqueles cronómetros duplos de xadrez
em que se carrega de cada vez que se faz um movimento. Não há dúvida
de que o cronómetro acrescenta algo ao jogo. É como se marcássemos o
final de cada jogada, afirmando que é mesmo aquele movimento que
pretendemos fazer. Ela adora jogar com o cronómetro, e eu também,
embora nunca olhemos para o tempo que passa. O que nos atrai é
definitivamente tocarmos-lhe depois de cada jogada.
Instalamo-nos no nosso jogo noturno. Ela joga com as pretas. Escolhe
sempre as pretas. Faço xeque-mate cedo. Ambos nos surpreendemos. Ao
início, nem sequer me tinha apercebi de que era xeque-mate. Ela tinha
feito roque e eu levei a minha rainha até ao rei dela, com o meu bispo a
apoiá-lo e, por algum motivo, nenhuma das peças dela podia comer a
minha ou interferir. Aconteceu tão depressa que decidimos jogar “só mais
uma”.
Tento preparar uma abertura similar para esta partida. Ela depressa
percebe o que estou a fazer. Dou por isso, pois vejo-a mover o peão certo
para o sítio certo, tornando a minha tentativa fútil. Com apenas uma
ajudinha nalguns momentos cruciais, ela faz-me xeque-mate quando eu
estou a uma jogada de o fazer a ela. É tão divertido que decidimos jogar só
mais uma partida.
Por esta altura, já estou cansado e sinto uma grande corrente de
relutância quanto a jogar mais – pelo menos até começarmos. Depois isso
desvanece-se com a energia do momento.
Desta feita, o fim do jogo é elaborado, no centro do tabuleiro,
envolvendo as rainhas em posições adjacentes com os reis atrás delas,
algumas torres e bispos muito perto e os reis a fugirem pelas abertas que
vão surgindo à medida que nos perseguimos um ao outro, fazendo xeque e
perdendo essa vantagem várias vezes. É maravilhoso e não se parece com
nada que qualquer um de nós tenha visto antes. Ela já está a jogar deitada,
com a cabeça apoiada no saco de água quente ao nível do tabuleiro.
Por vezes trocamos um olhar divertido ou desconfiado enquanto
jogamos, apanhando silenciosamente o que o outro está a tentar fazer ou
experienciando a pura alegria de nos entretermos com este mundo
engraçado de arquétipos elegantes de plástico em sessenta e quatro
quadrados. Ela nunca quer que eu lhe aponte nada, mas por vezes eu gosto
de a deixar anular uma jogada que implique perder algo importante, como
a rainha, ou se eu perceber que não viu uma grande oportunidade. E ela
deixa-me fazer isso... mas depois não quer ouvir falar mais do assunto.
Quer perceber as coisas por si mesma e, em cada jogo, vejo-a a ver mais
e a fazer jogadas melhores. Aprende muitíssimo depressa com a sua
experiência, muito mais depressa do que eu. Dá por erros distraídos da
minha parte e, por vezes, é graciosa, outras vezes mostra-se menos
inclinada a perdoar-me. Está a aprender a ver as minhas jogadas e que
objetivo poderão ter, e como poderá interferir com isso, bem como a
formar as suas próprias estratégias para me pressionar a posição e fazer o
jogo avançar. Há aqui uma sabedoria espacial em crescimento. Vejo-o
nela. A perceção é desafiada a expandir-se. É preciso ver e avaliar riscos.
É preciso formular planos, mas também mudá-los continuamente, em
reação a situações que se alteram no tabuleiro. A estratégia e as táticas
desenvolvem-se por necessidade.
Cada jogo é um número infinito de possibilidades que se vai estreitando
até um final inevitável, o que obtemos. Mas podemos repetir o jogo com
diferentes fins possíveis e, por vezes, fazemo-lo. É como representar
papéis em cenários alternativos num dilema pessoal. Vemos os elementos
envolvidos, a forma como se combinam e a nossa própria capacidade de
tomar decisões e dirigir o fluxo das coisas. Visualizamos e exploramos
abordagens diferentes, vendo as consequências que advêm de cada uma.
Todo o género de psicoterapias recorre à representação para resolver
dilemas emocionais e encontrar formas diferentes de ultrapassar
dificuldades. Imagine-se começar a aprender isto enquanto se joga e
desenvolver um repertório interior de ver aberturas e jogadas alternativas,
que ampliarão o desenrolar das nossas vidas de formas que incluam um
elemento de sabedoria.
Depois do final do jogo, o fluxo das coisas dirige-se definitivamente
para o sono. Ela pergunta-me se posso ficar com ela. Desligo a luz e
sento-me na sua cama. Adormece numa questão de momentos. Percebo-o
pela sua respiração, que de súbito se aprofunda e acalma.
Na maior parte do tempo, com esta idade, se lhe perguntar “Queres
companhia para adormecer?”, ela diz: “ NÃO!” Por isso, o seu convite é
muito especial, e sinto que também é especial para ela, uma oportunidade
de revisitar algo que costumava fazer muito.
Respiro com ela durante mais uns minutos e depois saio sem fazer
barulho, fechando a sua porta.
>>>
Por vezes, não nos importaremos de procurar a rolha do saco de água
quente ou um equivalente nas nossas vidas quando é a nossa vez de fazer
uma jogada. Noutras vezes, por regra muitas outras vezes, vamos
importar-nos por termos de procurar a rolha do saco de água quente, não
quereremos ir buscar uma tangerina, nem esforçar-nos de qualquer forma.
É demasiado tarde, estamos demasiado cansados, só queremos que o
nosso filho vá para a cama e não queremos jogar xadrez, nem qualquer
outra coisa.
Mas, nas alturas em que escolhemos, só como experiência, ceder aos
nossos filhos precisamente quando nos sentimos mais inclinados a não o
fazer e, em vez de nos fecharmos, tornarmo-nos disponíveis e
interagirmos de bom grado com eles, poderemos descobrir que todo um
mundo se abre para eles e para nós – um mundo partilhado que, em
retrospetiva, não quereríamos ter perdido, não poderíamos ter previsto, e
talvez seja mais importante para nós do que qualquer outra coisa que
pudéssemos ter feito, apesar da nossa fadiga ou de quão atarefados ou sem
tempo julgássemos estar.
Ao fazermos a escolha de atender incondicionalmente a um filho num
momento desses, não estamos a agir como um seu criado (embora por
vezes possamos sentir isso), mas mais como um verdadeiro rei ou uma
verdadeira rainha, um soberano, rico de tempo e generoso de coração.
Mas sejamos sinceros. Embora sejamos soberanos no nosso papel de
pais, numas fases mais do que noutras também somos criados, tal como
um rei, uma rainha ou qualquer líder sábio será um verdadeiro servidor do
reino. E vale a pena sê-lo, nesse sentido.
É uma questão complicada. Não se trata de dar ilimitadamente, nem de
passar tempo infindo com eles. Entregarmo-nos por completo aos nossos
filhos – por outras palavras, estarmos ilimitadamente presentes para eles
em termos do nosso ser, que, na sua natureza mais profunda, como vimos,
não tem limites – vai tanto ao arrepio da nossa sociedade que é quase tabu
falar sequer disso. E, no entanto, é importante que falemos, examinemos e
façamos experiências com isso, como parte da nossa própria prática de
atenção plena. Equivale a fazer novas jogadas no nosso tabuleiro de
xadrez, por vezes jogadas ousadas que nunca antes teríamos concebido, e
aprender com aquilo que advém delas, enquanto o mundo – como
acontece tão frequentemente quando tomamos a iniciativa – se abre para
arranjar espaço para as nossas ofertas.
Vocês são as notas, nós somos a flauta
Nós somos as montanhas, vocês são os sons que descem.
Nós somos os peões, os reis e as torres
que vocês dispõem num tabuleiro: ganhamos ou perdemos.
Somos leões que se agitam em bandeiras.
O vosso vento invisível leva-nos pelo mundo.
RUMI (a partir da tradução inglesa de Robert Bly)
Pontos de Ramificação
Alguma vez se detém para pensar em como as coisas poderiam ter sido
diferentes na sua vida, não fosse a confluência admirável de
acontecimentos insondáveis, minúsculos e aparentemente aleatórios que a
influenciam de tal maneira e apresentam potenciais aberturas cruciais,
bem como limitações? Caso eu (jkz) tivesse decidido ir almoçar cinco
minutos mais cedo ou mais tarde do que fui num certo dia de dezembro,
ou se Myla não se tivesse cruzado com uma amiga e ficado à conversa
num sítio em particular ali perto, o mais provável seria que nunca nos
tivéssemos conhecido. Não teríamos tido os filhos que tivemos, nem
acabado a ter as vidas que temos agora. Isto aponta para algo precioso e
misterioso acerca da própria vida, sobre o qual poderá valer a pena refletir.
Se as coisas não tivessem sucedido como sucederam, outras sem dúvida
teriam acontecido, e nós agora levaríamos outras vidas, muito diferentes.
Também haveria um “eu” muito diferente, pois o eu que sou agora deve-se
em larga medida à textura da nossa relação de mais de quarenta e cinco
anos, dos filhos que criámos, dos nossos netos e do amor que sentimos um
pelo outro.
A vida pode ser genérica, mas o amor e a beleza são específicos. O
mundo apela-nos constantemente a que celebremos essas especificidades,
nos lugares a que pertencemos deveras e onde mais profundamente nos
sentimos em casa. Apela a que celebremos os filhos que temos, a vida que
é nossa para a vivermos se formos capazes de estar presentes para a viver
e atentos à sua textura, às suas imagens e aos seus sons, para que estes
aspetos íntimos e omnipresentes das nossas vidas não se confinem
meramente a memórias guardadas com os álbuns de fotografias. As nossas
realidades presentes são verdadeiras bênçãos e a sua emergência diária nas
suas particularidades únicas não é menos que milagrosa.
Esta observação lembra-me continuamente de preservar a “gravidez” de
cada momento com grande reverência e respeito. Lembra-me que o seu
potencial é sempre portentoso, mesmo que não possamos saber ou prever
o momento seguinte até este chegar e mesmo que, na maioria, à primeira
vista, tantos dos nossos momentos pareçam apenas rotina e insipidez, com
cada dia mais ou menos igual ao anterior. É fácil deixar escapar as formas
como cada momento contém a enormidade de todo o universo e pode estar
cheio de surpresas e possibilidades impensadas. É fácil esquecermos que
podemos vê-los passar e que somos chamados a participar nessa
passagem. As crianças pequenas são nativas deste mundo mágico em que
tudo é fresco, novo e possível.
Ver cada momento como um potencial ponto de ramificação pode ser
uma forma tremendamente útil de olharmos para as nossas vidas à medida
que se vão desenrolando. Se, nas nossas próprias vidas, desejarmos que o
futuro seja diferente de alguma maneira, como é frequente desejarmos
com grande paixão, seja termos uma relação melhor com um filho, seja
fazer com que algo novo suceda, a única altura que alguma vez teremos
para agir de forma a que isso aconteça é o presente. Pois o presente não é,
na verdade, o futuro? Hoje não é o futuro de ontem? Já aqui está. Temo-lo
agora, aqui mesmo.
Vendo o presente desta forma, poderemos perguntar-nos: Como é?
Estamos em casa, aqui, nesta realidade? Neste, ou em qualquer momento
das nossas vidas, sabemos, sentimos, pressentimos realmente onde
estamos e como chegámos a este lugar, a este momento?
A única forma de sabermos é mantendo os olhos abertos e o mesmo em
relação a todos os nossos sentidos. Mesmo assim, saber poderá não querer
dizer saber, mas antes saber que não sabemos e ainda assim persistir em
manter a pergunta viva, porque é interessante e nós estamos curiosos e,
independentemente de como sejam as nossas vidas agora, estão a ter lugar
agora, neste momento. É mesmo isto.
Sabemos que cada momento provém do anterior, o que o influencia de
alguma maneira. O momento presente tem uma inércia própria. As nossas
ações têm sempre consequências. Se esperamos aprender algo, ou crescer,
ou expressar os nossos sentimentos, ou melhorar a qualidade da vida no
futuro, este é mesmo o único tempo que alguma vez teremos para afetar o
curso que a torrente de ações e consequências a que chamamos vida
segue. Se assumirmos responsabilidade por atentar à qualidade e às
possibilidades deste momento, seja com um filho, seja sozinhos, o
momento seguinte será afetado por essa atenção e, por conseguinte, será
diferente.
O mindfulness proporciona assim aberturas que poderiam não estar
acessíveis nem sequer no momento anterior, pois a mente passa a ver de
maneira diferente. Essas aberturas podem ter existido sempre em potência,
mas a sua concretização, muitas vezes, requer a nossa participação
incondicional. Assim, quando chega a hora de lavar a loiça, lavamo-la
dessa maneira, com a mente totalmente presente. E isso abre a
possibilidade seguinte. É o mesmo com tudo.
O desafio consiste em ver se conseguimos realmente incorporar, por
completo, a vida que nos cabe viver, com os filhos que nos cabem cuidar,
aqui, agora... e agora, e agora, e agora, em cada momento, em cada dia, e
cada noite um novo começo, à medida que nos encontramos e movemos
pela luz e pela escuridão.
DÉCIMA PARTE

Luz e Escuridão
Impermanência
A remar numa canoa pelo lago, bem cedo numa manhã de julho no norte
do Maine, à procura de alces, enquanto a minha família dorme numa
cabana à beira do lago, (jkz) observo os remoinhos que o remo provoca na
água serena, um a partir do rebordo exterior da pá, o outro do interior.
Giram em direções opostas durante algum tempo, deslizando para trás de
mim à medida que a canoa vai avançando. São apenas água em
movimento, separada durante algum tempo, e a forma distinta deve-se ao
rodopiar da água. Enquanto olho para trás para me manter em contacto
com eles, vejo que não tardam a desaparecer. A sua energia de movimento
volta para o lago. Outros vão aparecendo a cada remada, cada um
diferente, único. São deslumbrantes. Formas que surgem por um breve
momento, vindas do vazio, devido a certas condições que o lago e o meu
remo têm a delicadeza de proporcionar.
Para mim, estes remoinhos são tão fascinantes quanto os alces que
procuro nesta manhã, sem encontrar, e, de certas formas, não são assim
tão diferentes. Também os seres vivos surgem por breves momentos em
entidades aparentemente separadas a que chamamos corpos, dançam à luz
do dia durante algum tempo e depressa desaparecem. Sabemos que a vida
aparece nas suas formas distintas devido a certas condições. Sabemos que
depressa desaparece dessas formas distintas e que aparecerá de novo
noutro lugar. Estamos cientes da morte. Mas vemos este alce – ou pessoa
– em particular como algo mais ou menos permanente e a sua partida
surpreende-nos e enche-nos de medo ou mágoa ou, por vezes, até horror.
Mas sabemos que a sua partida faz tanto parte da forma de ser das coisas
como a sua chegada. Sabemos que todas as coisas são impermanentes e
passageiras, mas tendemos a ignorar este aspeto das coisas até darmos de
caras com ele.
Várias semanas depois, sou recordado disto ao ver o corpo pálido e
emaciado de um amigo a morrer de linfoma aos cinquenta anos, rodeado
por familiares e amigos, um quase esqueleto impressionante com
músculos e tendões expostos de formas que não vemos senão na morte,
ainda capaz de encontrar algures, apesar da dor, da diarreia, do corpo
varado de medo e medicação, a energia para ir a uma festa, deitar-se no
sofá e tocar guitarra com um virtuosismo de cortar a respiração,
transmitindo correntes de beleza das cordas para os nossos corações. A
mulher e a filha, de onze anos, cheias de vida, estão perto dele.
Sinto-me pasmado com a pungência de tudo isto. Os meus filhos estão a
ver algo que nunca antes viram. Não é bonito, mas é admirável e
transcendente. Nós, incluindo o seu médico amigo em cuja casa esta
reunião está a ter lugar, pouco podemos fazer por ele, exceto deixá-lo
confortável e honrar a vida que ainda existe nele.
Não podemos parar o processo. Na verdade, mal podemos sequer
nomeá-lo, de tal maneira forte é o impulso de o negar ou virar costas. À
medida que os seus dedos magros dedilham as cordas, enquanto a outra
mão define as notas, o seu rosto contorce-se devido ao esforço. Parece ser
transportado nesses momentos breves, para lá do tempo, e até me parece
que nos mostra, que partilha connosco, sobretudo com a filha, talvez, o
poder que ainda tem e a beleza que conheceu na sua vida.
Conheci recentemente uma mulher cujo filho, no último ano da
faculdade, morreu num acidente quando o carro que ia a conduzir à noite
no deserto se desviou da estrada. Talvez ele tivesse adormecido. Ela nunca
o saberá. Que explicação bastaria? Uma vida extinta no seu auge, um
buraco rasgado no tecido da vida desta mulher, a vida que ela dera à luz e
da qual cuidara, com todos os seus fios de ligação, de súbito deixou de
existir. Como é possível suportar isto? Como aceitar o inaceitável?
Contudo, também isto tem feito parte de se ser pai desde o início dos
tempos.
Talvez o melhor que possamos fazer seja sentir a brevidade da vida e
dos nossos momentos presentes e viver dentro deles tão plenamente
quanto possível, abraçando os nossos filhos e encantando-nos com a sua
vida, sentindo ao mesmo tempo a certeza da morte, da vida que surge e
parte. A respiração pode recordar-nos disto ao ir e vir, tal como os nossos
momentos, os nossos amigos, o tempo e os nossos pensamentos. Seremos
capazes de avançar conscientemente nestas correntes e deixar que a vida
flua por nós? Poderemos honrar estes mistérios para lá do nosso
conhecimento, que dão forma à nossa frágil humanidade, ao mesmo tempo
que lhe dão uma força e uma sabedoria surpreendentes?
>>>
LIMITES DO AMOR
Para além e antes
das injustiças da paixão,
as quatro metades
são secretamente entrançadas.
Disposições na nossa verdade;
Possibilidades que nascem,
com o tempo são enterradas.
Galáxias ocultas e
perdas fúteis,
os nossos corações impacientes proíbem isto.
Lugares onde as coisas desconhecidas
são extraordinárias e elusivas.
RYAN JON ROBINSON, 16 anos, outubro de 1995
Este poema foi escrito várias semanas antes de Ryan Robinson ter
falecido, vítima de um disparo acidental que lhe atingiu a cabeça numa
festa de adolescentes sem supervisão, na casa de um amigo, com álcool à
mistura. Os rapazes tinham encontrado uma arma, que julgavam não ter
balas, no quarto dos pais. Por acaso, tratava-se de uma arma russa. Ao
contrário dos modelos norte-americanos, o dispositivo de segurança desta
arma permitia que o gatilho fosse puxado para trás e clicasse. Os rapazes
tinham tirado a espoleta e disparado vários “tiros secos” contra a lareira. O
dispositivo de segurança deve ter-se desativado acidentalmente, mesmo
antes de a arma ser apontada a Ryan. Nenhum deles fazia a mínima ideia
de que pudesse haver uma bala na câmara. O pai, que tinha participado
num retiro de mindfulness que eu dirigira no verão anterior, escreveu-me o
seguinte:
*
O Ryan tinha acabado de ser transferido para uma escola secundária
nova e muito maior. No primeiro dia, fez questão de usar uma t-shirt que
os amigos da antiga escola lhe tinham feito. À frente dizia: “Olá, chamo-
me Ryan”; e, atrás: “Sou novo aqui, tratem-me bem.” Eu estava na
cozinha quando ele saiu porta fora a correr, atrasado como de costume.
Agitado, voltou a entrar. “Onde está a minha capa? Esqueci-me da capa.”
Eu disse-lhe: “Não, não vais querer usar a tua capa logo no primeiro dia.
Porque não vês o sítio primeiro, fazes uma espécie de reconhecimento do
terreno?” Com cautela, ele respondeu: “Isso é o que achas que eu devia
fazer ou era o que tu farias?” Bem, a resposta a isso era óbvia. Ele tinha a
capacidade de ver o que ia na alma das pessoas, embora elas talvez não o
dissessem, e perceber a verdade. Por vezes, essa capacidade podia dar a
ideia de confronto. Mas era sempre verdadeira.
A morte do Ryan, pouco depois do seu décimo sexto aniversário, rasgou
para sempre a trama da nossa pequena família. A separação que daí
resultou dividiu uma vida, que eu até então tomara por garantida, da dor
extraordinária de cada dia subsequente. A mágoa que senti nesses
primeiros dois meses foi maior do que qualquer apreço por estar vivo com
que pudesse identificar-me. Estar vivo era simplesmente demasiado
doloroso.
Uma parte enorme de mim morreu com o Ryan, nessa noite fria de
outubro. Durante os últimos quatro meses, a vida tem-me parecido uma
pena de prisão; algo que tem de ser suportado, que já não é desfrutado. Ao
longo de muitas semanas depois do acidente, os pensamentos e as imagens
que me percorriam a mente eram incontroláveis. Consumiam-me o sono e
as horas em que estava acordado. Eu tentava observá-los, reparar neles,
respirar com eles, mas de nada servia. Para onde quer que me virasse,
lembrava-me dele. Sentia-me como um milhar de cavalos selvagens a
galope, descontrolados...
Sinto-me grato pela minha prática de atenção plena. Tornou-se um mapa
que me guia por um território muito agreste, muito doloroso e ainda por
descobrir. É interessante: eu costumava acreditar que os meus
pensamentos eram quem eu era. Agora, os meus pensamentos são o que
tenho, não o que sou. A minha vida parece ter-se tornado o contexto no
qual todos os meus pensamentos ocorrem, dentro do qual as minhas
emoções operam. Ao longo do dia, os pensamentos e as emoções chegam
como sempre. Alguns, os cavalos mais selvagens, continuam a correr
desenfreados, descontrolados, deixando-me à sua mercê. A maioria,
porém, já sou capaz de observar, vivenciar e soltar, enquanto regresso à
respiração. Com a maior parte deles, já consigo agarrar a sela e endireitar-
me antes de ser arrastado atrás por uma corda, embatendo nas minhas
próprias rochas, chamadas “vítima” e “autocompaixão”. Sinto-me muito
grato por isso.
Durante o dia, observo vários pensamentos. “Já não consigo fazer isto...
Não vale a pena viver a minha vida; falhei como pai.” Durante a
meditação que faço sentado, observo estas e outras considerações... Tudo
isso enquanto tento pacientemente regressar à minha respiração. Esqueço-
me e regresso. Parto com os meus pensamentos e regresso. Reparo na
minha impaciência e regresso. Agora vejo que, sob os pensamentos e as
emoções, sob a mágoa, o vazio e toda a mágoa, há algo mais. É o amor
incondicional e absoluto que sinto por um jovem lindo de quem sinto
simplesmente a falta.
Talvez a maior lição que eu tenha aprendido com esta tragédia se prenda
com a arrogância que eu mantinha na minha relação com o tempo antes do
acidente. Aprendi como é importante dizermos às pessoas que as amamos,
porque o amanhã não passa de um conceito das nossas mentes.
O Rio da Mágoa Soterrada
Eu (jkz) estive numa sala com setecentos homens de todas as idades, cada
um deles em lágrimas pela relação perdida com o pai. Antes de entrarem
na sala e de passarem tempo a falar e escutar em conjunto, a maioria nem
estava ciente de acartar tamanha mágoa e praticamente nenhum a teria
partilhado com outros homens.
Tenho estado em grupos de centenas de profissionais de saúde onde,
durante formações intensivas de mindfulness, uma imensa tristeza pessoal
vinda da infância jorrou de pessoa após pessoa, tanto homens como
mulheres. Nestes retiros, deixamos que tais expressões emocionais de
mágoa e as histórias que as contêm ocorram e durem algum tempo, sem
qualquer reação ou comentário para além da nossa atenção total e
silenciosa. As pessoas têm dificuldade em perceber que criar espaço para
emoções profundas e desagradáveis é uma parte tão essencial do
mindfulness como seguir a respiração.
Um autêntico rio de mágoa parece fluir por nós. O seu curso subterrâneo
nem sempre é evidente, pelo que podemos não fazer ideia de que existe.
Mas o rio de mágoa nunca está tão longe de nós nem nos é tão alheio
como poderíamos pensar ao vê-lo fluir pelo coração de outra pessoa. Visto
ou por ver, pode influenciar toda a viagem de uma vida, incluindo o nosso
caráter, a nossa escolha de profissão e como criamos os filhos.
Julgo que este rio corre por todos nós, levando sentimentos profundos,
porventura arquetípicos, com que raramente entramos em contacto ou
sequer sabemos que existem. Quando ficamos desligados da nossa própria
mágoa, pode parecer-nos bastante confrangedor e estranho que outra
pessoa entre em contacto com a sua. É fácil sentirmo-nos embaraçados
pelos outros ou alheados e um pouco críticos, com pensamentos como:
“Porque estarão a fazer um filme tão grande acerca de uma coisa
daquelas?” “Já aconteceu há tanto tempo.” “Não tinham já resolvido
aquilo nas sessões de psicoterapia?” “Eu já ultrapassei aquilo, sem
dúvida.”
Em certa medida, todos nos defendemos dos sentimentos mais
profundos que transportamos. Se não nos defendêssemos, já não
poderíamos transportá-los da mesma maneira. O verdadeiro trabalho da
atenção plena consiste em criar espaço para o que quer que esteja a
acontecer enquanto acontece, com abertura, equanimidade, empatia e
compaixão. Isso implica sermos pacientes connosco e com os outros, e
não nos precipitarmos a avançar prematuramente para outra coisa devido
ao nosso desconforto.
Nesses raros momentos em que, de facto, nos ligamos à nossa própria
mágoa, quando são os nossos sentimentos que vêm à tona neste momento,
seja qual for a razão, a situação, de súbito, torna-se muito diferente. Então
todo o mundo sofre, todo o nosso universo é visto através de uma tristeza
que sentimos, que se expande bem para além do pessoal.
Talvez não acartássemos tanta mágoa enterrada, enquanto adultos, caso
tivéssemos sido criados com maior amabilidade e consideração quando
éramos crianças. Não poderemos afirmá-lo com certeza. É diferente para
cada um de nós. Com a sua constelação única de experiências de dor
passada e das nossas reações, algumas soterradas, outras desenterradas.
São necessários anos de trabalho interior e exterior em nós mesmos para
recuperarmos de perdas de algum tipo e da falta de reconhecimento, de
respeito e de cuidado na infância. Muitas vezes, são precisos anos para
que fiquemos apenas cientes dos sentimentos mais profundos que temos
acerca das nossas experiências e de como fomos tratados. Não se dá
sempre o caso de os pais terem sido violentos, alcoólicos ou
grosseiramente negligentes. Para muitos de nós, muita da mágoa surgiu
quando os nossos pais tentavam fazer o melhor que podiam com o que
tinham e no contexto da estrutura do seu mundo e da sua perspetiva. Eles
foram formados pelas suas próprias experiências, tanto positivas como
negativas, e pelo que os seus pais lhes transmitiram, tal como nós. Cada
família tem as suas combinações únicas de amor, vergonha, culpa,
censura, reservas e carências. Estas emoções são mais nocivas quando
associadas à inconsciência.
Uma mulher contou-me que, quando a mãe morreu – numa altura em
que ela ainda era uma jovem com vários irmãos mais novos –, o pai
proibiu a família de voltar a fazer-lhe qualquer menção. Foi como se, uma
vez enterrada, a mãe nunca tivesse existido. Todos os filhos foram
obrigados a viver nesse armário emocional. O pai julgou que seria melhor,
menos traumático, avançarem simplesmente e não se alongarem no
passado. Pelo contrário, isso fez imenso mal à família.
Vemos, pois, que é a ignorância (no sentido budista de se ignorar como
são as coisas na realidade) que tantas vezes se encontra na base do nosso
sofrimento. Este tipo de ignorância pode levar a que os pais não conheçam
os próprios filhos. Esta ignorância pode coexistir numa família em que
haja muitos triunfos e uma aparência superficial de harmonia e amor. Uma
coisa não exclui a outra.
A sombra da mágoa inconsciente alastra-se e aprofunda-se na nossa
psique. Instala-se nos recantos mais escuros e inacessíveis da nossa
memória. Tem uma vida subterrânea própria, mesmo quando a superfície
parece luminosa. Na verdade, por vezes, quanto mais luminosa a
superfície, mais longas e escuras são as sombras emocionais.
Robert Bly, em The Little Book on the Human Shadow, descreve a
dinâmica das nossas emoções soterradas usando a imagem de uma mala
invisível que adquirimos bem cedo na nossa vida. À medida que vamos
crescendo, nas nossas tentativas de sermos vistos e aceites por quem
amamos, vamos progressivamente enfiando nessa mala todas essas partes
de nós que nos fazem sentir não serem possíveis de amar. Isto pode durar
toda uma vida, vivendo uma espécie de mentira para mantermos as
aparências ou para nos integrarmos.
Pode ter começado em casa, com os nossos pais, quando éramos bebés e
crianças pequenas e recebíamos mensagens acerca do que lhes agradava
ou não, do que era “aceitável” em termos de pensamentos, sentimentos e
comportamentos, e do que não era. Mas continua na escola, entre colegas
e professores, e no mundo. Com o passar do tempo, a mala vai ficando
cada vez mais comprida, cada vez mais pesada, à medida que vamos
enfiando mais e mais de nós lá dentro: a nossa zanga, a nossa
impulsividade, a nossa espontaneidade, a nossa suavidade, a nossa força,
até a nossa inteligência, em esforços por vezes desesperados para que
gostem de nós, nos aceitem ou pensem bem de nós, ou para encaixarmos
em determinada estrutura que julgamos caber-nos refletir – o estoico, o
mártir, o sábio. O interior da mala está realmente escuro, porque nos
recusamos a deixar entrar luz alguma e ver o que se passa numa grande
parte da nossa própria psique.
Se fingirmos que não trazemos esta mala ao ombro e,
consequentemente, recusarmos abri-la, de tempos a tempos, durante trinta
ou quarenta anos, exceto para lhe enfiar mais coisas dentro, essas sombras
que lá metemos – que são partes válidas e importantes de nós, ainda que
não aceites – apodrecem e tornam-se tóxicas, por falta de reconhecimento
e expressão. Podem permanecer aí e influenciar-nos a trajetória de formas
portentosas que não percebemos, mas apenas vemos ocasionalmente em
sonhos, ou quando a trama da nossa vida parece esfiapar-se ou
desintegrar-se de repente. Aquilo para que não queremos olhar no mundo
interior muitas vezes é visível no nosso rosto para o mundo exterior. O
interior reflete o exterior e vice-versa. Para alcançar harmonia é necessário
acasalar o interior e o exterior, uni-los de novo, à luz da consciência e da
aceitação.
Talvez esteja na altura de nos educarmos de vez em relação a este fardo
que carregamos e de fazermos conscientemente esforços contínuos, a cada
momento, para aceitarmos todos os aspetos do nosso ser, para escutarmos
e falarmos com a nossa sombra e o nosso rio subterrâneo de mágoa
soterrada, e para os preservarmos, na medida do possível, com aceitação e
amabilidade incondicionais. Isto equivale a educarmo-nos no caminho
daquilo a que poderemos chamar verdadeira idade adulta.
Se conseguirmos “criar-nos” desta forma, talvez – talvez apenas –
tenhamos uma visão mais nítida dos nossos filhos e sejamos capazes de os
ver e aceitar de maneiras que proporcionem menos escavação de partes de
si mesmos, nas suas tentativas comoventes de serem aceites por nós e pelo
mundo em geral.
>>>
Toca os sinos que ainda tocam.
Esquece a tua perfeita oferenda.
Há uma fenda em tudo.
É assim que a luz entra.
LEONARD COHEN, “Anthem”
Seguros por um Fio
Quando os nossos filhos sofrem, nós sofremos. Mesmo quando os nossos
filhos não têm dores, ser pai já pode ser bastante difícil. Por vezes, parece
que estamos seguros por um fio.
>>>
Miúdos a lutar uns com os outros, birras, “estou aborrecido!”, dentes,
inquietude, doença, noites sem dormir, longos dias invernais, dias escuros
e chuvosos, dias em que nos sentimos em baixo, cansados, tentar
corresponder a diferentes necessidades, equilibrar e fazer malabarismos
com o trabalho, a família e cem outras coisas, repor a paz, ter ainda mais
uma ideia criativa, ou pouco criativa, ou nem que seja o que fazer para
jantar... ao final do dia, (mkz) sinto-me exausta, exasperada,
tremendamente limitada e confinada. O meu mundo tornou-se demasiado
pequeno. Sinto uma vontade avassaladora de fugir para a rua, de apanhar
ar, obter alguma distância, algum espaço.
É quando o tempo não permite atividades no exterior e ficamos
engaiolados dentro de casa, durante períodos longos, que me torno
profundamente ciente dos meus próprios limites pessoais e de todas as
capacidades que nunca adquiri e que, por conseguinte, não posso ensinar
aos meus filhos.
Também me sinto muito ciente dos limites da nossa cultura. Parece que
tudo o que há a fazer é consumir de alguma maneira. Seja indo às
compras, comer fora ou ver um filme no cinema, com tanta frequência
tudo parece tão vazio e sem vida. Onde estão os centros nas nossas
cidades para dançar e escutar música, onde se contem histórias e haja
conversas para todas as idades?
Dizem que é preciso toda uma aldeia para criar uma criança. Mas onde
estão as aldeias na nossa sociedade? Ainda se veem vestígios importantes
da aldeia de outrora na família alargada, em centros comunitários, grupos
de apoio, amizades transgeracionais e comunidades religiosas. Não
obstante, com demasiada frequência, os pais dão por si isolados e
sozinhos. Isto pode ser sobretudo o caso de pais solteiros, que não terão a
possibilidade de partilhar os seus problemas do quotidiano, obter uma
perspetiva diferente ou encontrar alguém que se solidarize com eles –
embora, vendo as coisas por outro prisma, valha a pena dizer-se que, por
vezes, os companheiros podem não proporcionar apoio e dar ainda mais
trabalho. Mesmo com amigos ou companheiros que nos apoiem, as alturas
mais difíceis costumam acontecer quando estamos por nossa conta. Criar
os filhos pode ser um trabalho solitário.
Precisamos de uma comunidade para completar os nossos recursos
individuais e capacidades necessariamente limitadas, para nos
proporcionar uma massa crítica de ideias, entusiasmo e experiência de
vida na forma de pessoas de vários quadrantes e talentos que nos apoiem
quando o nosso próprio repertório parece esgotado – como pais, temos de
proporcionar a base da família, mas não podemos ser nós a proporcionar
tudo.
>>>
À medida que os filhos entram nos anos da adolescência, com toda a sua
complexidade e problemas, ter bebés e crianças mais pequenas pode
parecer comparativamente simples e podemos dar por nós a sentir-nos
confusos, desencorajados e até a desesperar. Como vimos, podemos ter a
impressão de estarmos a perder os filhos adolescentes, à medida que eles
se afastam de nós, cada vez mais influenciados pelos pares e por vezes
atraídos por comportamentos potencialmente autodestrutivos. Também
compreendemos que, de certa maneira, estamos mesmo a perdê-los, pois
eles avançam para o mundo. Sentimo-nos angustiados pela
vulnerabilidade deles e pela nossa incapacidade de os proteger, e por
vezes zangados pela forma como se expressam – ou como não o fazem.
A forma intuitiva, elementar e muito física como criámos os filhos
quando eram pequenos já não se aplica. Podemos verificar que a exaustão
física dá lugar a uma exaustão mental e emocional, em parte porque
estamos continuamente a ajustar os nossos papéis de pais, à medida que os
nossos adolescentes se debatem com as suas necessidades de autonomia,
ligação, amor e sentido.
Eles crescem e passam por metamorfoses de várias formas
impressionantes, inesperadas e por vezes custosas, e também nos é
exigido que cresçamos e mudemos. Enquanto eles se tornam
independentes e precisam menos de nós, podemos entrar numa rotina
como se nada fosse, o que pode parecer, tanto a nós como a eles,
superficial, insatisfatório e alheado. Eles precisam de mais tempo para si,
que lhes demos mais espaço e ofereçamos uma espécie diferente de
sensibilidade. De certas maneiras, somos irrelevantes para eles, mas
também não o somos.
Pode ser complicado perceber que ainda precisam de nós quando se
mostram zangados, críticos e fechados, e ainda mais complicado através
do véu da nossa própria zanga e preocupação. Recusarmo-nos a
desaparecer e alhearmo-nos deles por completo, quando nos sentimos
marginalizados, confusos, frustrados e desesperados, requer uma
intencionalidade tremenda da nossa parte.
Inevitavelmente, há alturas em que os adolescentes acham a vida
insatisfatória, em que as suas necessidades mais íntimas não são supridas,
em que se sentem infelizes e põem em causa: “Mas para que serve a vida?
Onde é que está o sentido? A vida não pode ser só isto. Onde é que eu
encaixo?” Podem tornar-se temperamentais e isolados e parecerem mais
distantes de nós do que alguma vez poderíamos ter imaginado quando
eram pequenos. Podem afastar-nos ativamente com um comportamento
hostil e zangado. Vemos que sofrem, mas é difícil alcançá-los.
Quando eles se sentem isolados e sós, precisam de sentir que
continuamos com eles. Poderemos vê-los a olhar para nós como se
houvesse um grande abismo de permeio. Alcançá-los poderá ser difícil. O
fosso talvez pareça assustador, tanto para eles como para nós. É possível
que nos sintamos impotentes de uma forma que nunca sentimos quando
eram pequenos. Inadvertidamente, oferecem-nos indícios da nossa própria
fragilidade, das nossas próprias dúvidas e receios, dos nossos próprios
sentimentos de vulnerabilidade, que com frequência se mantêm enterrados
bem fundo dentro de nós, escudados de escrutínio diário.
Quando os nossos adolescentes questionam a autenticidade de
sentimentos, de pessoas e até de si mesmos, faríamos bem se
localizássemos um lugar dentro de nós que seja autêntico, enraizado,
simples e real. Nessas alturas, poderíamos ocupar alguns momentos
concentrados no nosso interior, trazendo a atenção para a respiração, para
o corpo e para os nossos sentimentos. É possível que não nos sintamos
muito ligados ou próximos do nosso filho em tais momentos, mas
podemos ser uma presença compassiva e tentar segurar quaisquer fios que
eles nos estendam, por mais finos que sejam.
Também podemos estender fios nossos, por mais hesitantes e delicados
que sejam, se tal for apropriado. Poderá implicar escutar apenas e
reconhecer a realidade das dificuldades que eles estão a experimentar, ou a
dor e incerteza que sentem. Ou poderá requerer algo mais dramático,
como levá-los a passar um dia, um fim de semana ou uma semana só
connosco. Isto poderá não ser ou não parecer possível, mas momentos
verdadeiramente difíceis requerem soluções verdadeiramente criativas.
Escolhermos algo que eles possam gostar de fazer e arranjarmos algum
tempo para estarmos juntos como pudermos é capaz de os recordar do
sentido mais profundo que reside sob a superfície das suas rotinas
quotidianas atarefadas e por vezes monótonas. E sairmos do nosso
quotidiano, mesmo que precipitado por uma crise, pode servir a mesma
função para nós e ajudar-nos a renovar a ligação que temos com os nossos
filhos.
Há alturas – quando os filhos se sentem presos, limitados, infelizes com
as suas vidas – em que agir pode ser apropriado e necessário. Isto é
particularmente verdade quando pressentimos que se inclinam para
fazerem coisas perigosas ou autodestrutivas. Eles precisam de saber que
estamos preocupados com eles e quais são os nossos receios. Precisam
que nos dediquemos à resolução de problemas com eles, ou até que os
defendamos, ajudando-os a encontrar formas de tornarem as suas vidas
mais satisfatórias e significativas.
Muitas vezes, os adolescentes têm as suas próprias epifanias que vão
diretas ao cerne da questão. Mas também há alturas em que sabem que
algo não está bem sem saberem o que será e, nessas alturas, poderão
precisar de que contribuamos para o assunto em mãos com qualquer
sabedoria que a nossa própria experiência de vida nos tenha
proporcionado. Todas as pessoas, não só as crianças, precisam de muito
tempo para compreender como funciona o mundo (e será que alguma vez
o “compreendemos” por completo?) e como fazer com que as coisas
funcionem para si.
Ajudá-los, seja como for, pode ser especialmente difícil se formos vistos
como parte do problema. Embora possamos estar recetivos a proceder a
alterações no nosso próprio comportamento, poderemos conseguir ou não
ajudá-los a proceder a mudanças nas suas vidas. Poderemos concordar ou
não com o que é preciso ou até mesmo com qual é o problema. Mas, por
vezes, o simples reconhecimento do momento difícil por que estão a
passar pode marcar a diferença entre sentirem-se isolados e ligados, entre
sentirem-se criticados e cuidados. Quando sentem preocupação e
aceitação afetuosa de um progenitor, isso pode oferecer-lhes um contexto
mais significativo dentro do qual veem as suas dificuldades.
>>>
Há alturas em que os nossos filhos, independentemente da idade que
tenham, parecem “regredir” a uma idade mais jovem. O filho de dezasseis
anos de um amigo andava emocionalmente isolado da família e, por volta
da mesma altura, adoeceu gravemente com uma infeção. Os seus pais
podiam ter optado por encarar a doença súbita como sendo puramente
física, sem nada que ver com o estado emocional ou as dificuldades que
ele e a família tinham vindo a experienciar. Em vez disso, conseguiram
ver a doença num contexto mais abrangente e começaram a examinar as
tensões, tanto físicas como emocionais, na vida do filho e no seio da
família. Aproveitaram o tempo em que ele se encontrou doente e em
convalescença para promoverem uma cura mais lata. Aceitaram a
necessidade que ele tinha de regredir ficando em casa – abrandando,
voltando-se para dentro durante algum tempo, comendo alimentos
especialmente curativos e restabelecendo a união com a família – e
reconheceram os benefícios restauradores e transformadores disso para ele
e para a relação que tinham com ele.
Regressão é uma palavra com fortes conotações negativas. Costuma
conotar desajustamento, incapacidade de agir de acordo com a idade que
se tem, voltar a uma fase mais infantil. Mas há alturas em que os filhos, e
não apenas quando são pequenos, precisam de um período em que
cuidamos deles, lendo-lhes, cantando-lhes, um período em que possam
voltar-se para dentro de forma a conseguirem tornar a sair. Reagir com
amabilidade e aceitação e sem julgarmos os filhos, quando precisam de
um destes períodos, sustenta essa parte deles que está com dificuldades
em crescer. Em última instância, ajuda-os a avançar, a largar uma pele
velha. Pode ser uma verdadeira dádiva para eles.
Ser capaz de oferecer este tipo de tempo nem sempre é fácil, ou sequer
possível. O trabalho e outras exigências podem torná-lo difícil ou
impossível. Mas ajuda se conseguirmos ter presente que o que o nosso
filho demonstra exteriormente não é tudo o que existe. Talvez, refletindo,
sejamos capazes de encontrar uma forma de confiar que alguma espécie
de transformação interior poderá estar a ter lugar e de arranjar espaço para
isso com amabilidade, da melhor forma que pudermos. Com o passar do
tempo, talvez compreendamos as dificuldades que enfrenta o nosso filho.
Quando um filho está infeliz, desequilibrado e talvez a regredir, a
convivência pode ser bastante custosa. Mas quando assumimos o
comportamento difícil como pessoal e nos isolamos, pomos uma
armadura, nos cingimos aos nossos próprios medos e ressentimentos, os
muros entre nós apenas engrossam. Há alturas em que é útil ver com olhos
de plenitude. Isto significa ver o que está a acontecer no maior contexto
possível, com uma intenção de examinar, de estar completamente presente
e de o ver dentro da estrutura aparentemente paradoxal da distância e da
compaixão. Depois da crise passar, se conseguirmos libertar-nos de
qualquer mágoa, ressentimento ou zanga que possamos estar a sentir,
temos a possibilidade de avançar para um momento verdadeiramente novo
com os nossos filhos.
No final de um dia que me (mkz) pareceu cheio de críticas e
negatividade infinitas dirigidas a mim, uma das minhas filhas, com dez
anos, aninhou-se em mim e disse-me, com toda a sinceridade, que me
adorava. Esta capacidade maravilhosa de serem fluidas, de se libertarem
da zanga, vai-se alterando à medida que as crianças crescem. Precisam
que as recordemos, através do nosso próprio comportamento, que é
possível estar ciente de problemas existentes, ao mesmo tempo que se
encara cada momento com uma disposição para começar de novo.
Em última instância, não serão as nossas ideias que contarão mais. Em
vez disso, será a autenticidade do nosso ser e a forma como representamos
o afeto que incluímos nos momentos aflitivos em que todos os pais
acabam por se ver e que nos fazem questionar tudo.
Não tens de ser bom.
Não tens de percorrer de joelhos
cem milhas do deserto, arrependido.
Só tens de deixar que o animal meigo do teu corpo ame o que ama.
Fala-me do desespero, do teu, e eu falo-te do meu.
Entretanto, o mundo continua.
Entretanto, o sol e os seixos límpidos da chuva
movem-se pelas paisagens,
pelas pradarias e pelas árvores profundas,
pelas montanhas e pelos rios.
Entretanto, os gansos selvagens, bem alto no céu tão azul,
regressam novamente a casa.
Sejas quem fores, por mais só que estejas,
o mundo oferece-se à tua imaginação,
chama-te como aos gansos selvagens, agreste e excitante –
anunciando, uma e outra vez, o teu lugar
na família das coisas.
MARY OLIVER, “WILD GEESE”, Dream Work
Perder o Controlo
Todos os pais perdem o controlo, por vezes. Perdemos as estribeiras.
Perdemos a cabeça. Podemos perder o equilíbrio, o rumo, a dignidade, o
respeito por nós mesmos. Quando isso acontece, é muito doloroso,
independentemente do que o tenha provocado.
Por norma, acontece quando estamos exaustos e fomos pressionados
para além dos limites. Sentimentos intensos de frustração surgem e é
possível que não os reconheçamos a tempo, ou simplesmente não
saibamos como mudar de atitude, nesse momento, e podemos estar
demasiado cansados para nos importarmos. Por vezes, perder o controlo
assume a forma de gritos e berros, ou de palavras mesquinhas. Por vezes
perdemos o controlo com uma palmada ou bofetada. Assim que isso
acontece, sentimo-nos terrivelmente mal – zangados connosco, tristes
pelos nossos filhos. De repente, estamos no meio de um pesadelo. Vou
(mkz) dar um exemplo.
Estou a deitar uma das minhas filhas. Sempre lhe foi difícil adormecer
e, com oito anos, continua a ser uma notívaga, capaz de ficar acordada até
às tantas. Depois das dez da noite, é quando eu estou pior. Não funciono
bem. Não sou paciente. Com frequência, ela torna-se sensível a todo o
género de coisas à hora de dormir – quer algo para beber ou não quer ficar
sozinha, quer a luz acesa e a luz de presença não chega.
Quando chega a hora de se deitar, sento-me com ela durante algum
tempo. Quando percebo, como nesta noite em particular, que vai ser uma
dessas noitadas e eu estou demasiado cansada para me manter acordada,
digo-lhe: “Dorme na minha cama.” Então ela vai. Mas eu digo: “Tens de
usar uma camisa de dormir na minha cama, é a regra, porque não quero
passar a noite a manter-te tapada para não ficares com frio!” Ela já sabe
isto, mesmo assim protesta, mas lá se veste. Depois começa logo a
queixar-se, a espernear e a dar murros na cama. Arranjo-lhe outra camisa
de dormir, mais macia, mais confortável. Por esta altura, está ainda mais
zangada e a refilar comigo. Quer a luz acesa. Eu quero-a apagada. Isto está
a transformar-se num braço de ferro. Tenho medo que acorde a irmã.
Sinto-me presa. Sinto-me controlada. Sinto-me impotente. As coisas estão
a avançar numa direção e não me parece que consiga alterá-la.
Depois ouço a irmã dela a gritar-nos para que não façamos barulho.
Acordou. Fico ainda mais zangada. Grito-lhe para que se cale. Ela
continua a fazer barulho, a bater na cama e a refilar e eu, finalmente,
sinto-me tão frustrada, zangada e impotente que lhe dou um estalo. Ela
começa a chorar e depois grita ainda mais. A irmã torna a gritar para ela se
calar. Estou nauseada por lhe ter batido. Ela brada que sou uma agressora
e que vai ligar à polícia. Sinto-me paralisada pela vergonha e pelos
remorsos. Estou no meio de um pesadelo gigantesco. Depois de uns vinte
minutos de gritos e choros que, tenho a certeza, toda a vizinhança ouve,
ela chama pelo pai. O pai não está. Por fim, desata a soluçar: “Mamã.”
Vou buscar-lhe gelo e uma toalha e sento-me com ela, explicando-lhe
que errei e dizendo-lhe que lamento mesmo muito tê-la magoado.
Finalmente, uma hora depois, ela está a dormir na minha cama, aninhada
em mim. Fico deitada, completamente desperta, sentindo-me terrivelmente
mal.
>>>
Os filhos são todos tão diferentes. Alguns resistem à transição para o sono
todas as noites e a transição para despertarem de manhã pode ser
igualmente difícil. Para outros, pode ser tão simples com uma história ou
uma canção tranquila à hora de deitar. Por vezes, independentemente do
que façamos, parece que estamos encarreirados para o desastre. Nessa
noite, adormecer a minha filha começou com ler histórias junto à lareira e
em seguida, fazer desenhos sentadas na sua cama – um início encantador,
que terminou em consternação coletiva.
Mais tarde, pergunto-me: o que poderia ter feito de forma diferente? Há
alturas em que a resposta a esta pergunta é muito clara. Nesta situação,
não era de todo claro. É possível que, se eu não tivesse feito questão de
que ela usasse uma camisa de dormir, tivéssemos evitado este conflito, ou
talvez ela tivesse protestado por qualquer outra coisa. Por vezes, estas
tempestades noturnas parecem inevitáveis, como se simplesmente
tivessem de ocorrer. Mas teria isto de acontecer como aconteceu? Haveria
alguma coisa que pudesse ter tornado a transição para o sono menos difícil
para ela? Como posso lidar com a minha zanga e frustração, de forma a
não piorar as coisas? Quando é que devo ceder? Quando é que estou a
ceder mais do que devo? Poderia ter feito alguma coisa para alterar a
direção em que estávamos a ir? Por vezes, é preciso observar o que
acontece a partir de uma perspetiva mais abrangente. Em retrospetiva,
parece-me que toda a estrutura do nosso ritual de ir para a cama precisava
de ser mais simples e muito mais consistente do que era, começando numa
idade mais precoce.
No meio da tempestade, talvez tivesse sido útil eu parar por um
momento, levar a consciência à minha respiração e perceber que não tinha
de resolver o que quer que fosse naquele momento. Fazendo-o, talvez
tivesse evitado reagir com uma zanga descontrolada, que só piorou a
situação.
Demonstrar arrependimento pelas minhas ações e preocupação pelos
seus sentimentos, em vez de deixar o que acontecera por reconhecer e
examinar, foi importante para que houvesse alguma recuperação e alguma
espécie de aprendizagem. Para mim, isto significou reconhecer o horror do
que tinha acontecido e não tentar minimizá-lo, nem culpá-la por isso. No
dia seguinte, quando as coisas estavam mais calmas e a tempestade tinha
passado, conseguimos falar acerca do que aconteceu e de como nos
sentíamos. Esperemos que, de cada vez que um incidente assim ocorra, eu
aprenda algo que torne menos provável que volte a acontecer.
Perder as estribeiras e magoar alguém com isso é horrível. A última
coisa que queremos fazer é causar mal. Quando damos por nós a ficar
reativos, temos sempre a opção – se formos capazes de fazer uma pausa
no momento de exaltação – de nos enraizarmos, tanto quanto possível, no
corpo e na respiração, e trazer a atenção para o que quer que estejamos a
sentir – seja frustração, medo, zanga ou outra coisa – com alguma
amabilidade e aceitação. A nossa disposição para nos suavizarmos e
abrirmos desta maneira, em tais momentos, contém a possibilidade de que
uma forma mais sensata de responder surja.
Não há Garantias
Como pais, sabemos demasiado bem que há muitas coisas que não
podemos controlar e que, independentemente do que façamos, não há
garantias. Parte da parentalidade com atenção plena consiste em
enfrentarmos as nossas próprias expetativas e limitações e lidarmos com
cada situação da melhor maneira possível, sem tentarmos forçar
determinado resultado.
Desde o momento em que engravidamos até ao nascimento do nosso
filho, e nos anos que se seguem, há muitos fatores que afetam a trajetória
de vida e o desenvolvimento de cada filho. Estamos a par de alguns,
poderemos não estar a par de outros. Alguns são simples, outros
profundamente misteriosos. Podemos fazer todas as coisas “certas” e vir
depois a descobrir que não eram assim tão certas e que havia fatores que
desconhecíamos, talvez por completo. No fundo, só podemos recorrer a
uma combinação de intuição, senso comum, atenção, informação e o mais
importante, que é o nosso amor. Por mais que nos esforcemos para suprir
as necessidades dos nossos filhos, é crucial reconhecer que muitas coisas
que não poderemos necessariamente controlar, prevenir ou sequer
conhecer irão ter um impacto neles, apesar de todos os nossos esforços e
intenções.
Os exemplos mais óbvios encontram-se em acidentes trágicos e
experiências traumáticas que podem mudar um filho para sempre e obrigar
a família a um esforço por ajustar a vida de todos às novas necessidades
do filho; ou a morte de um filho, que deixa um buraco gigantesco nas
vidas dos que sobrevivem. Outros exemplos incluem serem afetados pela
exposição a várias toxinas ambientais. Nova informação acerca de tais
perigos está sempre a surgir. Sabe-se agora que muitos químicos presentes
no ambiente causam cancro e defeitos congénitos. Alguns são
neurotoxinas. O álcool, o fumo do tabaco, drogas, amianto, chumbo,
rádon e pesticidas, entre outros, têm um efeito nocivo na saúde humana e
exercem os seus efeitos mais fortes nas crianças. Mas muitos mais
carecem de estudos acerca dos seus efeitos, a longo prazo, na saúde.
Como pais, temos de encontrar alguma espécie de equilíbrio entre
reconhecer e aceitar os limites do nosso conhecimento e do que podemos
fazer para proteger os nossos filhos, por um lado, e, por outro, estarmos
razoavelmente bem informados e darmos o nosso melhor para protegê-los.
Toda esta questão pode provocar ansiedade e intimidar-nos, pois é
frequente sentirmo-nos impotentes e há muito em jogo. Pode ser mais
simples optar apenas por ignorar toda a área do risco ambiental.
Por vezes, os perigos ambientais encontram-se mesmo à frente dos
nossos olhos, como amianto a desintegrar-se em tubagens de aquecimento
ou tinta de chumbo a descascar. Por vezes, são os nossos narizes que nos
alertam para perigos como formaldeído ou outros compostos orgânicos
voláteis, incluindo os emanados por alcatifas e móveis recém-instalados.
Alguns são indetetáveis pelos nossos sentidos, como o chumbo e vários
químicos presentes na nossa água. Perigos ambientais, como a poluição
química de poços, pesticidas em alimentos e fraca qualidade do ar em
escolas poderão requerer que nos organizemos em grupos para fazer
pressão e chamar a atenção para a preservação ou restauração da
segurança ambiental para os nossos filhos.
Embora seja de importância fundamental que os nossos filhos se sintam
emocionalmente seguros, também faz parte da nossa responsabilidade
enquanto pais fazermos o que pudermos para tornar o seu ambiente físico
igualmente seguro.
>>>
Há muitos outros fatores que, como pais, não controlamos, como as
características físicas e emocionais únicas com que os filhos nascem. Por
exemplo, todos os pais sabem que cada filho nasce com qualidades únicas,
que se desenvolvem e mudam com o passar do tempo. Uma dessas é o seu
temperamento. Rudolf Steiner, o filósofo e educador alemão, identificou
quatro categorias principais de temperamento: o colérico (fogoso,
energético, muitas vezes atlético, intenso, obstinado), o melancólico
(introspetivo, solitário, pessimista, sensível, adora dias chuvosos e
histórias tristes), o otimista (descontraído, esquecido, adaptável, sociável,
sonhador) e o fleumático (adora comer e estar confortável, concentra-se no
interior, é cauteloso, observador e deliberado).
Todos temos uma mescla de temperamentos diferentes e, em diferentes
fases, diferentes aspetos são predominantes. Um bebé muito colérico –
exigente, intenso – pode, ao crescer, tornar-se uma criança que demonstra
mais qualidades otimistas e ter também um laivo melancólico. Um bebé
otimista pode tornar-se um adolescente de vontade forte e temperamento
fogoso.
As características temperamentais que tornam cada filho único podem
constituir, por vezes, verdadeiros desafios para os pais. Podem tornar-se
ainda mais difíceis devido às nossas expetativas inconscientes ou aos
nossos próprios temperamentos. Diferentes temperamentos nas famílias
podem criar situações nas quais uma fricção tremenda, expetativas
goradas e zanga entram em ação. Um pai atlético e competitivo pode ter
dificuldades em identificar-se com um filho mais fleumático, que prefere
enroscar-se com um petisco e um livro. Um pai eloquente e orientado para
a oralidade pode sentir-se perdido perante um filho profundamente
sensível, não-verbal e artístico. Estarmos cientes de tais características nos
nossos filhos e em nós mesmos pode ajudar-nos a ser mais compreensivos
e aceitadores, bem como a lidar com as situações de maneira mais
percetiva.
Podemos ter tido um bebé que mamava bem e era muito sociável, o que
nos cria certas expetativas, e depois ter outro que não está interessado em
mamar, com quem é mais difícil interagir e estabelecer uma ligação, ou
que tenha cólicas ou alergias. A um filho descontraído e flexível pode
seguir-se outro para quem cada transição seja difícil e que esteja sempre a
pisar os limites, sejam eles quais forem. A um estudante organizado, que
seja um leitor ávido, pode seguir-se um filho para quem organizar-se é
complicado e que considera a leitura difícil.
Alguns filhos têm mais dificuldades do que outros de variadíssimas
formas. Podem nascer com síndromas de desenvolvimento, como
asperger, autismo ou SDAH, ou com esquizofrenia ou doença bipolar.
Outros podem sofrer algum trauma e os seus efeitos muitas vezes
duradouros e dolorosos. Alguns podem sentir-se atraídos por caminhos
preocupantes, talvez até perigosos ou autodestrutivos. Em situações como
estas, os pais lidam com realidades extremamente difíceis, complexas,
imprevisíveis, exigentes e esgotantes na sua família. Ter maior atenção
plena não irá tornar as coisas melhores por artes mágicas, nem impedir
que os filhos sofram, ou nós. Mas o que nos oferece é uma prática que
fomenta maior aceitação e compaixão pelos filhos e por nós mesmos, uma
fonte de algum conforto e força.
Criar os filhos com atenção plena requer muito de nós. Há um profundo
trabalho interior, bem como um profundo trabalho exterior, a fazer. A
nossa consciência tem de abarcar o total. Fazemo-lo pelos nossos filhos,
compreendendo que não há garantias.
Perdidos
Nos primeiros versos de A Divina Comédia, Dante refere-se a algo
profundo dentro de nós, seres humanos: “No meio do caminho em nossa
vida,/ encontrei-me por numa selva escura/ sem uma direção clara.” – por
outras palavras, estarmos nós mesmos perdidos. Para sabermos onde
estamos, diz-nos o seu poema, pelo menos alegoricamente, é preciso
descer primeiro, ir ao submundo, à escuridão do inferno. Só então se torna
possível a ascensão aos céus.
Quando sentimos que perdemos o rumo, talvez durante uma altura de
escuridão, de desespero ou de confusão, poderemos perguntar-nos: “Como
cheguei aqui?” “Onde estou?” “Que sítio é este onde me encontro agora?”
Assim que começamos a prestar atenção, já não estamos perdidos.
Estamos simplesmente onde estamos. Onde nos encontramos é sempre um
bom sítio para começar, tanto fisicamente, quando perdemos o rumo,
como metaforicamente, quando nos parece que já não sabemos o que
estamos a fazer enquanto pais, ou no nosso trabalho, ou na vida em geral.
Talvez, de certa maneira, andemos sempre perdidos, tendo em conta que
não estamos completamente despertos. Talvez o mais importante seja a
nossa vontade de sermos quem realmente somos e habitar aqui por
completo, na escuridão e na luz, sem termos de ir a outro lugar. Só então
poderemos saber onde pisar, quando for altura de avançar.
O poema “Lost”, de David Wagoner, baseado na tradição dos índios
norte-americanos do Noroeste, capta este espírito. É o que o ancião
poderia dizer em resposta a um rapazinho ou a uma rapariguinha que o
abordasse com a pergunta: “O que faço quando me perder na floresta?”
Fica imóvel. As árvores adiante e os arbustos a teu lado
Não estão perdidos. Onde quer que estejas chama-se Aqui,
E tens de o tratar como a um desconhecido poderoso,
Tens de lhe pedir permissão para o conhecer e para te apresentares.
A floresta respira. Escuta. Responde,
Fiz este lugar à tua volta,
Se o deixares poderás voltar, dizendo Aqui.
Não há duas árvores iguais para o Corvo.
Não há dois ramos iguais para a carriça.
Se o que uma árvore ou um arbusto faz te escapa,
Decerto estarás perdido. Mantém-te imóvel. A floresta sabe
Onde estás. Tens de deixar que te encontre.
O poeta recorda-nos que as nossas vidas dependem da nossa
sensibilidade para os pormenores, que, se o que a floresta ou uma árvore
fazem, ou a expressão de um filho, nos escapam, então decerto estamos de
alguma forma profunda perdidos. O repto é para que prestemos atenção,
para que despertemos para onde estamos, para o que se encontra diante de
nós e à nossa volta, aqui, agora. Poderemos aprender a manter-nos
imóveis? Poderemos ouvir a floresta da vida e do mundo a respirar, a
pedir-nos que fiquemos imóveis por um momento, que acordemos, que
sintamos a interligação de todas as coisas, que percebamos que não há
dois momentos iguais? Poderemos escutar os nossos filhos desta maneira?
É este o desafio de trazer a atenção plena para a nossa parentalidade,
sobretudo nos momentos que parecem mais sombrios e quando nos
sentimos mais à deriva, sem rumo, perdidos. Seremos capazes de nos
manter imóveis aí mesmo, nesse instante, que é, na verdade, sempre aqui
e agora, e ficarmos em contacto com o mais básico, deixando que nos
guie, através da nossa própria atenção?
Nunca é Demasiado Tarde
Todos somos, em certa medida, um produto da nossa época. As escolhas
que fazemos, enquanto pais, são influenciadas pela era em que somos pais
e pelos seus valores, bem como pelas pessoas à nossa volta, pelos nossos
próprios pais, pelos nossos amigos e, claro, pelos “peritos”. Temos a
tendência para aceitar declarações autoritárias sem as questionar e sem ver
para lá dos seus contextos sociais, seja a forma como os nossos pais nos
criaram ou os conselhos bem-intencionados de um pediatra. É muito
difícil amamentar um bebé numa altura em que toda a gente dá biberão,
num ambiente onde falte apoio, orientação ou modelos. Ou podemos ter
crescido numa família que não se abraçava, onde os sentimentos não eram
reconhecidos ou onde o amor estava sempre associado a condições e
expetativas. Podemos ter transportado essa forma de ser para a forma
como nós próprios somos pais, valendo-nos do que era familiar e
confortável, sem pensar muito, ou incapazes de convocar a força de
vontade ou a coragem para remar contra a maré prevalecente.
Por vezes, podemos não nos ter sentido confortáveis com o que
fazíamos enquanto pais e a nossa intuição pode ter dado voz a desconforto
ou ansiado por outra coisa, mas talvez sentíssemos que não tínhamos
opções, que não havia outra maneira. Os nossos sentimentos, os nossos
instintos e as nossas intuições podem ter sido enterrados e agora, numa
altura mais tardia, podemos viver com arrependimento, tristeza, perda ou
dor.
Fazemos o melhor que podemos e, sendo humanos, a nossa visão das
coisas é sempre parcial e, inevitavelmente, altera-se. Todos temos
arrependimentos e vemos coisas que antes não víamos e que desejamos ter
feito de maneira diferente.
>>>
Uma mãe de filhos adultos enviou-nos as seguintes reflexões, que
escrevera vários anos antes de a conhecermos:
Eu própria não passo de um bebé quando tenho o meu primeiro filho.
Vinte e três anos é idade para se querer estar a passear algures na
Europa ou fazer uma pós-graduação, ou sair com mais do que um
rapaz na mesma semana. Vinte e três anos não é idade para se querer
mudar fraldas, esterilizar biberões e ter pensos de algodão nas coxas.
Mas estamos no início da década de 60 e o que há de fazer uma boa
rapariga judia, aos vinte anos, para além de casar com um bom rapaz
judeu e dar um neto aos pais?
Estamos no início da década de 60 e o meu marido limita-se a deixar-
me no hospital quando entro em trabalho de parto. O médico diz que
lhe telefona para casa... que não se preocupe e durma um pouco.
“Adeus, querida”, diz ele. A enfermeira leva-me na cadeira de rodas e
observa-me o corpo esguio. “Porque está aqui?” “Vou ter um bebé”,
respondo. “E onde é que ele está?”, pergunta-me, a olhar para a minha
barriga. Estamos no início da década de 60 e quanto menos peso se
ganhar, melhor. Tenho mais 7 quilos do que o meu peso habitual.
Estamos no início da década de 60 e esconder uma redondez está na
moda... mostrá-la, como que a desabrochar, é coisa que
definitivamente não se faz.
Sou levada para a sala de partos. Estamos no início da década de 60 e
a consciência também está fora de moda... estar inconsciente, isso
sim, pelo que me é dada uma injeção que me deixa num sono
crepuscular. Na sala de partos não sinto nada, não vejo nada. A única
recordação que tenho é a de alguém a abanar-me o braço e de ouvir
vagamente: “Teve um menino.” Estamos no início da década de 60 e
só ao fim de várias horas depois do parto é que vejo o meu filho.
Estamos no início da década de 60 e não é permitido que mãe e bebé
durmam juntos nos hospitais. Os pais só podem visitar durante os
horários de visita. A amamentação está fora de moda... o leite artificial
está em voga... ter uma enfermeira durante quatro semanas está em
voga... estabelecer laços de afeto com o bebé... bem, ninguém fala
sequer acerca do processo de estabelecer laços de afeto.
Eu e o meu marido podemos ser pais, mas ainda somos miúdos.
Nenhum de nós se debruçou sobre as questões mais profundas e,
quando a enfermeira se vai embora ao fim de quatro semanas, começo
a chorar. O impacto atinge-me com força. Aos vinte e três anos, estou
amarrada. Tenho de cumprir um horário de alimentação, muda de
fraldas, banho e sono. Estou mesmo a jeito para os conselhos que
ouço... “Não o estragues com mimos... não lhe pegues... deixa-o
chorar. Foi o que fizemos contigo. Dá-nos ouvidos... somos os teus
pais e, depois de criarmos dois filhos, sabemos o que está certo. O
pior que podes fazer é ceder quando ele chora... Oh, podes ver se
precisa que lhe mudes a fralda ou de comer mas, se não for isso, então
deixa-o chorar, que ele há de acabar por adormecer.”
Acredito nos seus conselhos... quero ser uma boa mãe e ter um filho
que não seja mimado, pelo que o alimento, mudo-lhe a fralda, dou-lhe
banho e, quando ouço o seu choro, deixo-o chorar.
A palavra mimado atinge-me com força... traz-me memórias
desagradáveis de quando os meus pais me chamavam mimada.
“Devias sentir-te agradecida pelo que tens... pelo que fazemos por ti...
outras crianças não têm tanta sorte como tu... estragámos-te com
mimos…”
Olho para o meu filho bebé... Não, não vou ceder ao seu choro.
Estamos no início da década de 60 e as governantas estão em voga;
inscrevermo-nos num country club está em voga; jogar ténis em
campos cobertos e fazer parte de uma liga está em voga. Eu não faço
qualquer uma dessas coisas, mas também não correspondo à
necessidade primária do meu filho de proximidade e contato. Nem
sequer me inteiro acerca do estabelecimento de laços de afeto até
quase vinte e cinco anos mais tarde.
Nalguma altura no início dos anos 80, começo a reparar em mulheres
a amamentar os filhos em locais públicos e na tranquilidade dos seus
lares. No programa da Oprah aprendo que ter quereres e necessidades
é aceitável. Ouço palavras como contato, calor e o processo de
estabelecimento de afeto. Algo em mim se entristece dolorosamente.
Algo em mim deseja chorar. Anseio por regressar ao meu filho bebé,
pegar-lhe ao colo e beijar-lhe as lágrimas de bebé; desejo aninhá-lo
em mim e sussurrar-lhe até que durma, mas ter essa segunda
oportunidade está fora de questão.
Estamos na década de 90... o meu filho é um homem adulto e, para
mim, sentir a dor e os sentimentos está em voga.
>>>
A mágoa das oportunidades perdidas, acerca de como fomos ou não fomos
noutra altura, encontra-se bem fundo na psique humana. Pode fazer-nos
ansiar por uma forma de sarar a dor dos nossos filhos e a nossa, e tornar-
nos mais próximos. Somos obrigados a reconhecer que o passado não
pode ser desfeito, apenas conhecido e conhecido profundamente, sentido e
sentido profundamente, e, consequentemente, num vislumbre de novas
possibilidades e esperança, talvez transformado pelo nosso próprio
reconhecimento, pela nossa aceitação. Só no presente existem novas
possibilidades. Reconhecer a nossa angústia e mágoa, bem como a dor que
possamos ter causado, faz parte da formulação dessas possibilidades, de
darmos à luz algo novo em nós mesmos, o que pode requerer que nos
libertemos de algo antigo, por mais tenazmente que se agarre a nós e nós a
ele.
Na nossa opinião, nunca é demasiado tarde para tentarmos sanar
relações com filhos adultos que possamos ter magoado com a nossa
ignorância passada, por mais inocente ou compreensível que fosse, por
falta de atenção, por estarmos ocupados ou por negligência, privação,
crítica ou agressividade. Nunca é demasiado tarde para trabalharmos no
sentido de criarmos novas ligações salutares, mesmo que eles desconfiem
de nós ou estejam zangados por causa de atitudes ou ações, omissões ou
incumbências passadas da nossa parte que eles sintam que os
prejudicaram.
Uma forma de começarmos a sarar essas feridas é partilhando os nossos
arrependimentos e a nossa noção das coisas que fizemos, que foram
nocivas ou negligentes, seja por carta ou pessoalmente com os nossos
filhos adultos. Fazê-lo por carta poderá ser uma forma mais sensível de
comunicar ao início, sobretudo se um filho sentir que fomos intrusivos ou
que ignorámos os seus limites. Para que tenha algum valor real, tentarmos
alcançá-los desta forma terá de ser uma abertura genuína, tendo em
primeira linha de conta o bem-estar do nosso filho e, por mais que isso nos
custe, aceitando a possibilidade de que danos irreparáveis tenham sido
feitos e de que a reconciliação talvez não seja possível. Precisamos de nos
colocar num ponto para lá de procurar compaixão, compreensão,
tranquilização ou afeto, para lá de qualquer desejo de sermos absolvidos
de culpa. Podemos reconhecer estes sentimentos quando surjam em nós e,
ainda assim, devolver a atenção à pergunta “O que serve melhor o
interesse do meu filho?”, mesmo quando este já é adulto.
>>>
Ao aplicarmos o mindfulness às nossas relações com os filhos adultos, é
importante estarmos cientes das formas como os nossos pressupostos,
expetativas e julgamentos podem ser limitativos ou desrespeitadores. É
igualmente importante que tentemos ser um pouco mais empáticos e
cientes das exigências e das tensões com que possam ter de lidar nas suas
vidas.
Isto não significa que, nas nossas interações com os nossos filhos
adultos, não devamos dar voz aos nossos sentimentos ou expressar as
nossas necessidades. Quando acontece algo que nos incomoda, podemos
estar cientes dos vários sentimentos que temos e abordá-los numa altura
que nos pareça relativamente adequada, em vez de deixarmos as coisas
acumularem-se. Por vezes, podemos decidir não trazer à baila
determinados assuntos, seja por não serem assim tão importantes, seja por
serem demasiado pesados. Poderá ser útil manter em mente uma visão
mais abrangente da relação e reparar em quão apegados podemos ser a
expressar aquilo que, bem vistas as coisas, talvez seja apenas uma opinião.
Quando precisamos de algo deles, é útil ter presente que são adultos e
podem recusar e expressar também os seus sentimentos.
Seremos capazes de olhar para os nossos filhos adultos como se os
víssemos pela primeira vez, vendo cada um não como um recém-nascido,
mas como um novo ser? Qualquer momento partilhado, mesmo ao
telefone, é uma nova oportunidade de estarmos presentes, de criar
confiança, de nos ajustarmos a eles, de sermos sensíveis e empáticos, de
os aceitarmos tal como são e de honrarmos a sua sabedoria.
Se, ocasionalmente, recairmos num velho padrão familiar, se dermos
por nós a sermos críticos, ou desagradáveis, ou censuradores, ou
exigentes, ou reservados, ou qualquer das muitas de formas que a
negatividade é capaz de assumir, podemos parar por um momento e
observar o que aconteceu. Podemos reconhecer o que fizemos, aprender
com isso e pedir desculpa pelo nosso comportamento. E depois...
recomeçar.
>>>
A medicina ocidental baseia-se no princípio cardeal, que remonta a
Hipócrates, de, em primeiro lugar, não fazer mal. Talvez precisemos de
afirmar coletivamente um juramento hipocrático para a parentalidade: o de
que não faremos, acima de tudo, em primeiro lugar, mal algum. Isto seria
uma prática em si mesma. Sem a atenção plena, como saberíamos sequer
que estávamos a fazer algum mal, num momento em particular, ou ao
refletirmos depois?
A atenção plena consiste em vivermos as vidas que nos cabem viver.
Isto só pode acontecer se criarmos espaço para que a nossa verdadeira
natureza – o que existe de mais profundo e melhor em nós mesmos –
emerja. Embora possamos nascer como seres milagrosos, sem o sustento
adequado o nosso génio inato pode sufocar, morrer por falta de oxigénio.
O oxigénio que alimenta a nossa verdadeira natureza encontra-se na
imobilidade, na atenção, no amor, na soberania e na comunidade. O
desafio da parentalidade com atenção plena consiste em encontrarmos
formas de cuidarmos dos nossos filhos e de nós mesmos, à medida que
avançamos pelo percurso normal e extraordinário que é a vida humana
vivida com consciência, crescendo assim para o que todos somos e
podemos tornar-nos uns para os outros, para nós mesmos e para o mundo.
EPÍLOGO

Quatro Práticas,
Sete Intenções
e Doze Exercícios
para a Parentalidade
com Atenção Plena
Quatro Práticas de Atenção Plena para o Dia a Dia
1. VISITAR O MOMENTO PRESENTE
Esta é a prática essencial para cultivar atenção plena no quotidiano.
Quando quiser, independentemente do que esteja a acontecer, pode sempre
experimentar concentrar-se em si mesmo, no momento presente.
Conseguirá ficar imóvel, nem que seja por um momento, e aceitar
simplesmente o que sucede interior e exteriormente?
Poderá começar por ganhar consciência da sensação da respiração a
entrar e sair do seu corpo. Por vezes, entrar em contacto desta forma, nem
que seja por uma inspiração e uma expiração, poderá ajudá-lo a estar mais
presente. Se quiser, poderá sempre continuar por mais umas quantas
respirações ou até mais tempo... é uma forma de “travar amizade” com o
momento presente e preservá-lo delicadamente na consciência.
Poderá então expandir a consciência para que inclua uma noção do seu
corpo como um todo, incluindo que está a respirar... reparando em
quaisquer sensações que se destaquem... qualquer tensão ou contração...
Experimente expandir o campo da consciência para incluir quaisquer
pensamentos que possam surgir... reconhecendo-os e vendo-os como
pensamentos, como acontecimentos no campo da consciência, como
nuvens a passarem pelo céu...
Repare também nos estados de espírito ou emoções que possam estar
presentes e se são agradáveis, desagradáveis ou neutros... estendendo-lhes
o tapete de boas-vindas, na medida das suas possibilidades, sem os julgar.
Se der por si a julgá-los, repare apenas nisso, também...
Onde sente estas emoções no seu corpo, se é que as sente de todo?...
*
Neste ponto, repousando simplesmente em consciência, da melhor
maneira que lhe for possível, a cada momento... experienciando a vida que
se desenrola aqui e agora...
Quando vir que a sua mente se deixa levar por pensamentos ou qualquer
outra coisa, o que obviamente acontecerá com frequência, repare apenas
no que lhe vai na mente, o que quer que seja, fique ciente do que é e
depois redirecione delicadamente a sua atenção de volta para a experiência
da respiração e do corpo neste momento... repousando de novo na
consciência...
2. CONSCIÊNCIA E PRESENÇA COM UM FILHO OU FILHOS
Escolha uma altura do dia para experimentar dedicar toda a presença e
atenção ao que quer que esteja a ocorrer. Poderá ser acordar os seus filhos
de manhã, ajudá-los a prepararem-se para a escola ou a transição quando
eles chegam da escola, à hora de ir dormir ou quando lhes muda a fralda
ou amamenta, ou qualquer outra altura.
A coisa mais importante é experienciar simplesmente o que está a
acontecer neste momento e estar completamente presente, sem precisar de
algo que vá acontecer em seguida... apenas este momento intemporal tal
como é...
Caso se perca em pensamentos, como nos sucede a todos de vez em
quando, pode sempre regressar às sensações da respiração e do corpo
como um todo para se enraizar no momento presente, para em seguida
devolver a atenção ao seu filho ou filhos. De cada vez que reparar que a
mente se desviou para uma ou outra coisa, ou que se distraiu ou
preocupou com algo, repare onde foi e, delicadamente, devolva-a ao
momento presente. Trabalhe esta prática com a frequência que desejar.
3. PRATICAR A ACEITAÇÃO
Talvez considere útil prestar atenção em particular à paisagem interior da
“mente crítica” sempre que esta surja – a mente que está apegada a ideias
e opiniões, a um pensamento maniqueísta, ao impulso de se agarrar àquilo
de que gosta e afastar aquilo de que não gosta. Sempre que reparar na
mente a dedicar-se a críticas, repare apenas no conteúdo do pensamento e
depois devolva delicadamente a atenção à respiração, ao momento
presente em toda a sua plenitude e ao que quer que esteja a acontecer
nesse momento com o seu filho, com o seu companheiro, no trabalho, o
que for.
Recorde que o mindfulness pode ser descrito simplesmente como a
consciência que surge quando prestamos atenção de propósito, no
momento presente, e sem preconceitos. Isso não quer dizer que não vá ter
pensamentos críticos. É claro que vai – bastantes! Todos temos. Mas, para
variar, não os julgaremos e, ao invés, vê-los-emos simplesmente como
pensamentos, frequentemente associados a emoções fortes de algum
género, mais uma vez como nuvens a passar pelo céu, a ir e vir ou por
vezes a demorar-se, mas nada a que precisemos de nos opor ou com que
tenhamos de nos debater, ou julgar neste momento.
Poderá escolher uma altura de cada dia em que se dedica
intencionalmente a aceitar as coisas tal como são (os filhos, você mesmo,
o que quer que esteja a acontecer nesse momento) e pratica libertar-se de
precisar que as coisas sejam diferentes ou mudem de alguma maneira.
Experimente trazer uma presença franca e atenta a esta altura de
“aceitação”.
4. RESPONDER VS. REAGIR AOS NOSSOS FILHOS
Pode ser muito útil distinguir entre as alturas em que reage automática e
inconscientemente a algo que um filho diz ou faz e aquelas em que
responde com maior atenção plena e intencionalidade. Poderá prestar
atenção ao que está a acontecer nesses momentos em que dá por si a reagir
irrefletidamente? Tais reações podem incluir um vasto leque de
pensamentos e sentimentos, desde uma ligeira irritação e incómodo a
sermos emocionalmente tomados de assalto pela zanga, pela frustração,
pelo medo e por sentimentos do género.
Em alturas como estas, poderá encontrar um momento para se acalmar,
tornando-se ciente do corpo e da respiração. Isto pode incluir dedicar uma
atenção curiosa, franca, “afetuosa” a quaisquer pensamentos e sentimentos
que possam estar a influenciar esse momento. Poderá reparar no que quer
que esteja a surgir e experimentar respirar com os pensamentos e emoções
presentes – sem se apegar a eles nem afastá-los de si e também sem pensar
mais neles – mas, simplesmente, na medida das suas possibilidades,
aceitando-os na consciência e com um certo grau de amabilidade? Embora
isto possa ser bastante desafiante em momentos de grande carga
emocional, com o passar do tempo tal prática pode levar a novas
perceções e aberturas.
Aceitando a intensidade deste momento, conseguirá ver alguma forma
de responder que seja menos automática e mais apropriada? Poderá ser
particularmente útil e até esclarecedor não se precipitar para resolver ou
mudar a situação, mesmo que sinta um impulso forte para o fazer. Poderá
tentar ver as coisas, nesse preciso momento, a partir da perspetiva do seu
filho. O que precisará de si neste momento? Será que consegue arranjar
uma forma de manter a ligação, escutando os sentimentos por trás das
palavras do seu filho, quiçá reconhecendo o que vê e pressente nele e, na
medida das suas capacidades, residindo no seu próprio enraizamento, uma
ilha com alguma estabilidade no meio destes mares momentaneamente
agitados? Talvez se torne mais claro o que realmente é necessário neste
momento, se alguma coisa o for.
Se der por si perplexo ou confuso quanto ao que fazer ou a como reagir
num momento desafiante, considere não fazer o que quer que seja – pelo
menos por ora.
Caso se torne reativo e dê por si a ser levado pelas emoções, incapaz de
mudar de rumo, poderá tentar dedicar alguns momentos mais tarde para
refletir sobre o que se passou. Como pai, terá muitas oportunidades para
praticar romper com os padrões habituais.
Sete Intenções para a Parentalidade com Atenção Plena
INTENÇÃO: Um objetivo que guia a ação.
As intenções que determinamos para nós mesmos recordam-nos o que é
importante. É como ter uma bússola interior. Quando formamos a intenção
de sermos mais conscientes, essa intenção concentra e dá forma às nossas
escolhas e ações, inclusivamente nos momentos em que facilmente
poderíamos deixar-nos levar e cair na falta de atenção. Aumenta a
probabilidade de estarmos mais presentes e sermos capazes de nos manter
em contacto com aquilo que é mais importante para nós. Nunca é
demasiado tarde para introduzir o mindfulness nas nossas vidas. O
momento em que nos empenhamos conscientemente a fazê-lo torna-se o
momento perfeito para começar. Eis algumas intenções que talvez lhe
pareçam úteis. Claro está que o mais importante é que crie as suas.
1. Ver a parentalidade como uma prática intencional, uma forma de
ser numa relação com a experiência que me proporciona
oportunidades incontáveis de cultivar autoconsciência, sabedoria e
franqueza.
2. Ver a parentalidade como uma oportunidade para concretizar o que
há de mais profundo e melhor em mim e para o expressar com os
meus filhos e no mundo.
3. Imbuir o meu quotidiano, especialmente com os meus filhos, de
maior atenção plena e discernimento, servindo-me da consciência do
corpo e da respiração para me enraizar no momento presente.
4. Lembrar-me de ver e aceitar os meus filhos tal como são e não
apenas através da lente das minhas expetativas e medos.
5. Tentar ver as coisas a partir da perspetiva de cada filho e
compreender quais são as necessidades dos meus filhos,
correspondendo-lhes da melhor maneira que possa. Isto inclui ter
presente que precisam de aprender fazendo coisas sozinhos e que, por
vezes, precisam de se deparar com limites inultrapassáveis.
6. Ver o que quer que surja na minha vida e nas dos meus filhos,
incluindo os momentos sombrios, difíceis e stressantes, como “o que
não mata engorda”, permitindo que aprofunde a minha capacidade de
empatia e compaixão, incluindo dirigidas a mim.
7. Guardar estas intenções no meu coração e comprometer-me a
colocá-las em prática tão bem quanto possível, de formas que honrem
a minha própria soberania e a dos meus filhos.
Doze Exercícios para Criar os Filhos com Atenção Plena
1. Tente imaginar o mundo a partir da perspetiva do seu filho. Fazer
isso, nem que seja durante uns momentos por dia, pode recordá-lo
quem é essa criança e o que talvez experiencie no mundo.
2. Imagine como parecerá aos olhos e aos ouvidos do seu filho. Por
outras palavras, como será tê-lo a si como pai neste momento? Como
poderá esta consciência influenciar como se comporta no seu corpo e
no espaço, como fala, o que diz? Como quer estar em relação com o
seu filho neste momento?
3. Pratique pensar que os seus filhos são perfeitos tal como são. Veja
se consegue manter-se ciente da soberania deles, de momento para
momento, e dedicar-se a aceitá-los com amabilidade, sobretudo
quando for mais difícil para si fazer isso. Mantenha presente que isto
não tem nada que ver com ter de apreciar ou aprovar o
comportamento deles.
4. Atente às expetativas que tem em relação aos seus filhos e
considere se são adequadas para a idade deles e se servem
verdadeiramente os interesses particulares de cada filho. Trata-se de
um processo contínuo que implica questionar os seus pressupostos e
tentar ver o que poderá estar a escapar-lhe. Poderá tentar escutar
atentamente a forma como comunica expetativas e/ou limites, tanto
verbal como não verbalmente. Esteja atento a terminar declarações
que faça acerca de como as coisas são (por exemplo, “Agora está na
hora de ir para a cama”) de forma que se preste a equívocos, como
dizendo em seguida: “Está bem?”
5. Pode ser útil cultivar propositadamente altruísmo, definido como
interesse abnegado pelo bem-estar dos outros. Quando os filhos são
pequenos, isto significa necessariamente colocar as necessidades deles
acima das suas. À medida que crescem, o altruísmo pode significar
atribuir-lhes mais responsabilidade e iniciativa para suprirem as
próprias necessidades. Ao mesmo tempo, estar ciente de quais são as
suas necessidades e comunicá-las de formas apropriadas aos seus
filhos também é importante. Poderá surpreender-se com quanto as
necessidades dos seus filhos e as suas poderão ter em comum,
sobretudo se for imaginativo e paciente.
6. Quando se sentir perdido, ou sem saber o que fazer, lembre-se de
ficar imóvel, como no poema de David Wagoner: “A floresta respira.”
Escute o que diz: “A floresta sabe onde estás. Tens de deixar que te
encontre.” Medite acerca do total dedicando toda a sua atenção à
situação, ao seu filho, a si mesmo, à família. Fazendo-o, poderá ir
além do pensar, mesmo para lá dos bons pensamentos, e perceber
intuitivamente, com todo o seu ser (corpo, mente e coração) o que
mais precisa de ser feito. Se isso não for claro em dado momento,
talvez o melhor seja não fazer coisa alguma até que se torne mais
claro.
7. Tente incorporar uma presença silenciosa. Isso surgirá com a
prática formal e informal da atenção plena, com o passar do tempo, à
medida que desenvolve maior autoconsciência e fica mais em
contacto com uma noção de conforto e à-vontade em si mesmo.
8. Experimente dar espaço à tensão sem perder o seu próprio
equilíbrio. Faça-o praticando passar para qualquer momento, por mais
difícil que seja, sem tentar mudar o que quer que seja e sem precisar
de que um resultado particular ocorra. Leve simplesmente consciência
e presença a este momento. Pratique vendo que o que quer que surja é
prestável desde que esteja disposto a voltar-se para o que aparece,
confiando na sua intuição e nos seus instintos da melhor maneira que
possa. O seu filho, sobretudo quando é pequeno, precisa que você seja
um centro de equilíbrio e confiança, um marco fiável pelo qual poderá
orientar-se na sua paisagem.
9. Considere pedir desculpa quando tiver agido de alguma forma que
seja desrespeitadora ou ofensiva. Os pedidos de desculpa podem ter
um efeito curativo. Pedir desculpa demonstra que pensou numa
situação e passou a vê-la com maior clareza e talvez também mais a
partir do ponto de vista do seu filho. Não obstante, há que ter o
cuidado de não dizer “desculpa” com demasiada frequência. Perde o
sentido quando passamos a vida a dizê-lo, ou transforma o
arrependimento num hábito. Depois pode transformar-se numa forma
de não assumirmos responsabilidade pelas nossas ações. É bom
estarmos cientes disto. Deixar ocasionalmente o remorso apurar é uma
prática meditativa válida.
10. Há muitas alturas em que precisamos de ser claros, fortes e
inequívocos com os nossos filhos. Que isto provenha tanto quanto
possível da consciência, da franqueza e do discernimento, em vez de
do medo, do moralismo ou do desejo de controlar.
11. Poderá fazer experiências com o uso regular da prática da bondade
amorosa, preservando cada filho no coração por um momento e
desejando-lhe bem, expressando interiormente: “Que possa estar a
salvo e livre de qualquer mal”; “que possa ser feliz”; “que possa ser
saudável”; “que possa viver com conforto”.
12. A maior dádiva que pode dar ao seu filho é dar-se a si mesmo. Isto
significa que parte do seu trabalho como pai ou mãe consiste em
continuar a desenvolver-se em autoconhecimento e consciência.
Conseguiremos enraizar-nos no momento presente e partilhar o que
temos de mais profundo e de melhor? Trata-se de uma prática para
toda a vida. Pode ser apoiada fazendo tempo todos os dias para
repousar na consciência, em imobilidade e silêncio, de quaisquer
formas que sejam confortáveis para nós. Tudo o que temos é este
momento. Que o usemos em pleno, para bem dos nossos filhos e de
nós próprios.
Sugestões de Leitura
Mindful Birthing, Nancy Bardacke (HarperOne, São Francisco,
Califórnia, 2012).
Attachment-Focused Parenting, Daniel A. Hughes (W. W. Norton,
Nova Iorque, 2009).
The Mindful Child, Susan Kaiser Greenland (Free Press/Simon and
Schuster, Nova Iorque, 2010).
Wise-Minded Parenting, Laura S. Kastner (ParentMap, Seattle,
Washington, 2013).
Building Emotional Intelligence, Linda Lantieri (Sounds True, Boulder,
Colorado, 2008).
Hold On to Your Kids, Gordon Neufeld e Gabor Maté (Ballantine
Books, Nova Iorque, 2006). Edição portuguesa: Pais Ocupados,
Filhos Distantes (Alêtheia Editores, Lisboa, 2013)
Mindful Discipline: A Loving Approach to Setting Limits and Raising
an Emotionally Intelligent Child, Shauna Shapiro e Chris White
(New Harbinger, Oakland, Califórnia, 2014).
Brainstorm: The Power and Purpose of the Teenage Brain, Daniel J.
Siegel (Jeremy P. Tarcher/Penguin, Nova Iorque, 2013).
The Whole-Brain Child, Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson (Bantam,
Nova Iorque, 2012).
Parenting from the Inside Out, Daniel J. Siegel e Mary Hartzell
(Jeremy P. Tarcher/Penguin, Nova Iorque, 2004).
Sitting Still Like a Frog, Eline Snel (Shambhala, Boston, 2013). CD
com meditações lidas por Myla Kabat-Zinn.
Parenting Without Power Struggles, Susan Stiffelman (Atria/Simon and
Schuster, Nova Iorque, 2010).
Práticas Guiadas de Meditação com Atenção Plena
com Jon Kabat-Zinn
Práticas Guiadas de Meditação com Atenção Plena de diversas durações
e em várias plataformas encontram-se disponíveis nos seguintes websites:
www.mindfulnesscds.com
www.jonkabat-zinn.com
www.mindfulnessapps.com
(Chamamos a atenção para o facto de NÃO serem práticas de atenção
plena dirigidas a pais. O seu objetivo é cultivar o mindfulness através de
períodos de prática guiada de meditação formal.)
Créditos
Os autores reconhecem gratamente a permissão destas fontes para
reproduzir os seguintes textos:
Excerto de Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke,
traduzido por Stephen Mitchell, © 1984 Stephen Mitchell.
Reproduzido com autorização de Random House, Inc. A edição
portuguesa usada tem tradução, prefácio e notas de Vasco Graça
Moura e foi publicada pela ASA em 2002.
“Angry Fathers”, de Mel Lazarus, © 1995 New York Times Company.
Reproduzido com autorização.
Excertos de Emotional Intelligence, de Daniel Goleman, © 1995
Daniel Goleman. Usados com permissão da Bantam Books. A
edição portuguesa, Inteligência Emocional, foi traduzida por Mário
Dias Correia e publicada pela Temas & Debates.
Excertos de When Singing Just Sing—Life as Meditation, de Narayan
Liebenson. Reproduzidas com autorização da autora.
Excertos de The Baby Book, de William e Martha Sears, © 1992
William Sears e Martha Sears. Reproduzidos com autorização da
Little, Brown and Company.
Excertos de The Blue Jay’s Dance, de Louis Erdrich, © 1995 Louise
Erdrich. Reproduzidos com autorização da HarperCollins
Publishers, Inc.
Excertos de Four Quartets, de T. S. Elliot, © 1943 T. S. Eliot e
renovado em 1971 por Esme Valerie Eliot. Reproduzidos com
autorização da Harcourt Brace & Company. Para a edição
portuguesa recorreu-se à Antologia Poética do autor publicada pela
D. Quixote, com estudo prévio, seleção e tradução de José Palla e
Carmo.
“Loaves and Fishes”, de The House of Belongings, e um excerto de
“Looking Back at Night”, de Where Many Rivers Meet, de David
Whyte. Reproduzidos com autorização de David Whyte e da Many
Rivers Press.
“Wu-Men’s Verse”, de “CASE 45: Who Is That Other”, de The
Gateless Barrier: The Wu-Men Kuan (Mumonkan), traduzido por
Robert Aiken, © 1991 Diamond Sangha. Reproduzido com
autorização da North Point Press, uma chancela da Farrar, Straus, &
Giroux, Inc.
Excerto de “You are the notes…”, de Rumi, retirado de When Grapes
Turn to Wine, Yellow Moon Press, Cambridge, Massachusetts,
1986, © 1986 Robert Bly. Reproduzido com autorização do autor.
Excertos de “A Dialogue of Self and Soul”, de W. B. Yeats,
reproduzidos com autorização da Simon & Schuster, a partir de The
Collected Works of W. B. Yeats, Volume 1: The Poems, revistos e
editados por Richard J. Finneran, © 1933 Macmillan Publishing
Company; © renovado em 1961 por Bertha Georgie Yeats.
Consultado na tradução portuguesa de João de Ferro, de Robert
Bly, traduzido por Waltensir Dutra.
Excertos de The Long Road Turns to Joy: A Guide to Walking
Meditation, de Thich Nhat Hanh (1996). Reproduzidos com
autorização da Parallax Press, Berkeley, Califórnia.
O conto “Farroupilha” foi reproduzido com autorização de Ethel
Johnston Phelps. “Tatterhood”, in Tatterhood and Other Tales,
editado por Ethel Johnston Phelps, ilustrado por Pamela Baldwin
Ford (Nova Iorque: The Feminist Press at the City University of
New York, 1978), pp. 1–6, © 1978 Ethel Johnston Phelps.
“Anthem”, escrita por Leonard Cohen, © 1993 Leonard Cohen
Stranger Music, Inc. Usada com autorização. Todos os direitos
reservados.
“Wild Geese”, de Dream Work, por Mary Oliver, © 1986 Mary
Oliver. Usado com autorização da Grove / Atlantic, Inc.
“Lost”, de David Wagoner, © 1976 David Wagoner. Reproduzido com
autorização do autor.
Citação de Women Who Run With the Wolves, de Clarissa Pinkola
Estes, PhD, © 1992, 1995. Reproduzida com a gentil autorização da
autora, a Dra. Estes, e da Ballantine Books, uma chancela da
Random House, Inc.
Citação de Warming the Stone Child and Theater of the Imagination,
Vol. 1, de Clarissa Pinkola Estes, PhD, © 199o. Reproduzida com a
gentil autorização da autora, a Dra. Estes, e da Sounds True Audio.
“Sir Gawain e a Dama Abominável” (adaptado), de The Sword and
the Circle, de Rosemary Sutcliff, © 1981 Rosemary Sutcliff. Usado
com autorização da Dutton Children’s Books, uma chancela da
Penguin Books USA, Inc.
Excerto de Selected Poems of Rainer Maria Rilke, editados e
traduzidos por Robert Bly, © 1981 Robert Bly. Reproduzido com
autorização da HarperCollins Publishers, Inc.
Excerto de The Parent’s Tao Te Ching: Ancient Advice for Modern
Parents, de William Martin, © 1999 Da Capo Press, reproduzido
com autorização de Perseus Books Group.
Excerto de Bearing Meaning: The Language of Birth, de Robbie
Pfeufer Kahn, © 1995 Robbie Pfeufer Kahn, University of Illinois
Press.

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