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DANIEL BARROS FONSECA

A Fábrica de Cretinos – A ascensão e


a insurreição de Bolsonaro

Brasil

2023
FONSECA, Daniel Barros. 1994-
A Fábrica de Cretinos: A Ascensão e
a Insurreição de Bolsonaro. 1 Ed.
Seattle – WA, EUA. Amazon Direct
Publishing, 2023. 470p.
ISBN 9798396345096
1. Filosofia. I. Título
CDD-100
Traidor da Constituição é traidor da
Pátria. Conhecemos o caminho maldito.
Rasgar a Constituição, trancar as
portas do Parlamento, garrotear a
liberdade, mandar os patriotas para a
cadeia, o exílio e o cemitério.

Quando após tantos anos de lutas e


sacrifícios promulgamos o Estatuto do
Homem da Liberdade e da Democracia
bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.


(Aplausos)

Amaldiçoamos a tirania aonde quer que


ela desgrace homens e nações.

Ulysses Guimarães
Agradecimento

À grande, e amada, amiga Helena


Bravo, por ser a primeira leitora, e
crítica, do livro; que sugeriu o
próprio título da obra – que resumiu
perfeitamente a tese do autor de que
a crise econômica levou à uma Fábrica
de Cretinos na forma de um movimento
de massas - contrário à educação,
ciência, educação e cultura – de
insurreição contra a própria
Democracia Brasileira
Apresentação

A Fábrica de Cretinos é o
resultado de cinco anos de ativismo
pelos Direitos Humanos contra a
ascensão de um movimento totalitário
de extrema direita no Brasil encarnado
na figura de Jair Messias Bolsonaro.

Como se mostrará, o autor se


empenhou em lutar contra o
Bolsonarismo porque acredita, desde os
primórdios da eleição de 2018, de que
se tratava de um movimento de abolição
da Democracia Brasileira. Tese que foi
comprovada com a força da militância
Bolsonarista – que já nos primeiros
meses de governo – passou a pedir
intervenção militar, em que os
cretinos chamaram de “intervenção
federal do artigo 142 da
Constituição”.

Através de um trabalho
investigativo, como veremos, o autor
se deparou com formas de financiamento
ilícito de ativistas bolsonaristas
desde o início deste movimento de
massas.

O autor apresentará, neste livro,


o resultado de uma visão privilegiada
do Bolsonarismo. Privilegiada por dois
motivos: quer seja por ter se
aprofundado ativamente nos bastidores
da vida política do Bolsonarismo; quer
seja por se tratar de um trabalho de
pesquisa científica e filosófica sobre
a ascensão e a insurreição de Bolsonaro
através de um método caro às ciências
históricas.

Vale, por fim, notar que o


ativismo político do autor foi tão
sério e engajado que lhe rendeu
perseguição do governo Bolsonaro e o
autor teve que responder a um inquérito
na Polícia Federal e à uma denunciação
caluniosa do Ministério Público
Federal na figura da própria
Procuradoria Geral da República.

Este livro é uma reflexão


detalhada do percalço do autor nos
últimos anos.

Vale notar que o autor propôs


inúmeras denúncias de corrupção do
governo Bolsonaro. Soma-se mais de
setecentas denúncias apresentadas em
todas as esferas da república
brasileira – como Ministérios Públicos
Estaduais e Federal, Polícia Federal,
Justiça Federal, Tribunal de Contas da
União e Superior Tribunal Eleitoral.

O que se propõe neste livro é uma


reflexão científico filosófica de
forma aprofundada sobre a própria
ascensão do Bolsonarismo e o que levou
à insurreição de oito de janeiro.

Para isso, se propõe uma


ponderação aprofundada o germe do
Bolsonarismo. A tese do autor é a de
que a ascensão de Bolsonaro é reflexo
da crise econômica que o Brasil
enfrenta desde o início da década de
2010; aliado ao movimento contra a
política que deram lugar à contestação
da própria Democracia e do Estado de
Direito Brasileiro.
Sumário

Querela Primeva
I Nota ao Leitor ou da 1
Questão do Método ..

II Corolário ……………….. 28

III Prefácio …………………… 35

IV Introdução ………………. 120

V Capítulo I - 167
Princípios
Estabelecidos no
Preâmbulo da
Constituição .....

VI Capítulo II - A 222
Necessidade da Lei
Universal ........

VII Capítulo III – A Lei 246


Universal como Lex
Praevia ............

Do Contexto
Histórico

VIII Capítulo IV – O 258


Contexto dos
Conceitos ..........
IX Capítulo V – 269
Declaração Universal
dos Direitos Humanos

X Capítulo VI - Do 304
Estado Despótico da
Ditadura Militar ...

XI Capítulo VII - 307


Ascensão de Bolsonaro
..........

Da Insurreição

XII Capítulo VIII - A 406


Negação da Pandemia

XIII Capítulo IX - Os Atos 431


Antidemocráticos ...

XIV Capítulo X – Nota 452


sobre o título do
livro ..............

XV Capítulo Xi - A 456
Condescendência da
Procuradoria Geral da
República .......

XVI Capítulo X - A 459


Invasão dos Três
Poderes e a Minuta do
Golpe ..............
Considerações Finais

XX Filosofia, 461
jornalismo e ativismo

XX Conclusão …………………. 488

XXI Bibliografia …………. 492


Seção I – Problemas Fundamentais

Nota ao leitor ou Da Questão do


Método

Este livro não se trata de uma


obra voltada, apenas, à Academia. Mas,
antes de tudo, é uma apresentação do
trabalho que é feito na academia ao
leitor leigo em filosofia. É claro que
contém conceitos de difícil
compreensão até mesmo para os
iniciados na vida acadêmica e
raciocínios complexos. Mas, este
desafio é fundamental para que
possamos refletir, caro leitor, juntos
sobre problemas complexos do Brasil
sem que caíamos em argumentos rasos e,
portanto, errados. A complexidade do
tema da Ascenção e da Insurreição do
Bolsonarismo exigirá do leitor grande
esforço, assim como exigiu deste
escritor. Mas, não subestimo a
inteligência do leitor nem a sua
capacidade para acompanhar argumentos
e conceitos caros às Universidades.

Ao leitor deste livro peço que


faça, até o término deste livro, uma
1
suspensão de seus juízos, conceitos e
preconceitos estabelecidos, para que
possamos, juntos, refletir sobre o
Brasil contemporâneo de forma crítica
e proveitosa.

O leitor, não deve, portanto,


assim espero, tomar possíveis
dificuldades inerentes aos conceitos
de filosofia como um desestímulo para
a leitura, mas, como um convite ao
exercício da filosofia e do pensamento
críticos sobre o mundo. Em
contrapartida, detalharei os
argumentos caros à História das Ideias
em todos os seus aspectos para que o
leitor leigo consiga acompanhar
argumentos complexos da História da
Filosofia sem que reduzamos a
filosofia à meros jargões.

Por óbvio, a conjuntura que


pretendemos analisar é a mais complexa
desde a promulgação da Constituição em
1988, estaríamos em falta com o leitor
se a explicação do contexto histórico,
numa reflexão que se pretende
filosófica e científica, fosse um mero
amalgama de bordões de termos técnicos
utilizados nas Universidades.

Pretendo, deste modo, mostrar ao


leitor o quanto a filosofia nos é útil
para a compreensão de fatos históricos
tão complicados como uma insurreição

2
contra a ordem democrática e que, mesmo
que isso necessite de grande esforço,
a filosofia se mostrará proveitosa
para apresentar ao leitor leigo como
ela é profícua para a compreensão da
sociedade para além de clichês e
falácias lógicas.

Se formos bem sucedidos neste


caminho, caro leitor, ao término deste
livro você verá a filosofia não como
uma ferramenta fundamental para a
compreensão não só de conceitos
abstratos e inúteis ao leitor comum,
mas, também, como fundação para uma
compreensão crítica da própria vida
cotidiana e dos acontecimentos
noticiados nos jornais todos os dias.

Neste contexto, a proposta deste


livro é bastante ambiciosa, na medida
em que pretendemos um trabalho
filosófico que abrange os três
aspectos, como veremos abaixo,
fundamentais da reflexão filosófica e
científica, se formos bem sucedidos
neste percalço argumentativo, teremos
inaugurado um novo tipo de reflexão
sobre a história recente do Brasil,
isto é, uma fundamentada na filosofia
da história – com auxílio das demais
ciências históricas complementares.
Não existe, ou ao menos não tenho
conhecimento, de nenhuma pesquisa que
tenha tentado interpretar os
3
acontecimentos contemporâneos
brasileiros a partir de uma profunda
conceituação acadêmica e filosófica.
As únicas obras que conheço que
tentaram uma reflexão academicamente
fundamentada sobre a História
Contemporânea do Brasil remontam a
década de 1930 e 1940, na análise
sociológica, por exemplo, de Casa
Grande e Senzala de Gilberto Freire ou
na Formação do Brasil Contemporâneo de
Caio Bento Prado. Não há nada de
abrangência, profundidade e
complexidade parecidas na História da
Filosofia Brasileira.

O que não quer dizer que não


existam ótimas interpretações
filosóficas sobre o Brasil. É fato que
diversos autores e autoras tenham se
utilizado de conceitos esparsos da
história da filosofia para pensar o
Brasil contemporâneo, mas, o que não
há, na verdade, é uma proposta de se
pensar toda uma conjuntura brasileira
em seus aspectos históricos, sociais,
econômicos e culturais tendo como
premissas básicas de análise um
projeto filosófico, bem fundamentado,
a partir de uma teoria do conhecimento
(epistemologia) consagrada na própria
História da Filosofia. A questão que
se coloca como condição para a nossa
proposta é de que o projeto de

4
filosofia crítica, tal qual proposto
por Kant, se mostre profícuo para a
análise de uma conjuntura histórica
real e que não seja limitada a mera
discussão de conceitos puros em si
mesmos a partir de meras abstrações
acadêmicas. O que se pretende,
portanto, é interpretar a conjuntura
histórica brasileira a partir dos
preceitos estabelecidos pelo próprio
projeto de uma filosofia crítica
conforme preconizada por Kant, isto é,
pretende-se que os conceitos de
interpretação do contexto sejam
predicáveis do próprio contexto, sob
pena de, caso não sejamos bem
sucedidos, que fiquemos reféns de
abstrações da metafísica tradicional.
Ou seja, em outras palavras, o que
queremos fazer neste livro é
demonstrar que o princípio de
demarcação da razão humana
estabelecido por Kant, limitando a
análise do mundo a partir de conceitos
que possam ser predicados do mundo
real, isto é, do que é empírico, não
só é possível, como é necessário para
uma análise que se pretenda filosófica
da real politique.

Creio, caro leitor, que a relação


entre escritor e leitor deve ser de
confiança mútua. Isto é, se o leitor
confia que o escritor lhe apresente

5
boas interpretações do mundo; o
escritor, por sua vez, confia que o
leitor é capaz de trespassar os
movimentos mais complexos e
intrincados do texto. Apesar deste
escritor ser estudante da filosofia de
Immanuel Kant há uma década, a proposta
deste livro encontrou grande
dificuldade em ser realizada devido ao
seu, como disse, caráter inédito.
Apesar de uma das áreas mais influentes
da filosofia brasileira ser de estudos
kantianos; são poucos os pesquisadores
que pensam a conjuntura histórica
brasileira, de forma pormenorizada, a
partir do arcabouço teórico do projeto
da Filosofia Crítica proposta por
Kant. Uma razão é óbvia. Que é o fato
de eu ter começado este projeto de
escrita poucos dias depois da
insurreição de oito de janeiro. O outro
problema está na própria estrutura da
carreira de pesquisador de filosofia
no Brasil; há uma primazia, nas
Universidades, de que se reduza o
debate filosófico à meras abstrações
teóricas e muitas vezes tediosas
àqueles que não são da área da
filosofia porque os conceitos não
encontram, nestas pesquisas,
ressonância com o cotidiano do leitor
comum.

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A proposta deste livro é
diametralmente oposta àquelas dos
debates totalmente abstratos comuns em
departamentos de filosofia. Ao fugir
de debates rasos que nada traz de
proveitoso além do emprego de termos
técnicos aleatoriamente, o que se
propõe aqui é demonstrar ao leitor o
quanto a filosofia pode ser proveitosa
para compreender a vida cotidiana de
qualquer indivíduo.

A consequência inevitável de não


reduzir a apresentação de argumentos
filosóficos em conceitos rasos e
utilizar a filosofia como mero
argumento de autoridade para explicar
um problema é a de que o texto exigirá
maior esforço do leitor para a sua
compreensão. Mas, por outro lado, os
ganhos deste rigor caro à academia traz
grandiosos benefícios à compreensão
dos problemas do dia a dia, em
especial, de um movimento político tão
complexo quanto o Bolsonarismo. É
comum, na imprensa brasileira,
explicar o Bolsonarismo como
consequência da operação lava-jato.
Esse argumento responde, mas, não
explica um movimento de massas para
além de conclusões fáceis e silogismos
incompletos (o que não passa de
falácias lógicas). Reduzir o
Bolsonarismo à mero esbirro da Lava-

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Jato é uma resposta simples e errada
para um problema complexo. Assim como
é simplório e errado atribuir a
Ascenção de Jair Bolsonaro à árvore dos
acontecimentos ocasionada pelas redes
sociais. Apesar de ambos os fatos
citados tem relação com o fenômeno
político do bolsonarismo. Também não
seria um argumento fundamentado na
ciência ou na filosofia listar
diversos acontecimentos entre 2010 e
2018 e dizer que estes acontecimentos
acarretaram na eleição de Bolsonaro.
Não passa, na verdade, de uma falácia
lógica na qual se atribui a relação de
causa em consequência entre duas
coisas, apenas, porque uma ocorreu
depois da outra. Também seria uma
falácia argumentativa seguir a
argumentação de Habermas, e boa parte
dos teóricos da Escola de Frankfurt,
que atribui insurreições de extrema
direita contra a ordem democrática
como sendo uma consequência
teleológica inevitável do capitalismo.

Foi tendo este problema de como


concatenar diversos acontecimentos
durante a década de 2010 como sendo
causa para a ascensão da extrema
direita, na figura do bolsonarismo,
que o arcabouço teórico de Kant se
mostrou fortuito para servir de ponto
de partida da nossa reflexão sobre o

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Brasil contemporâneo. Podemos comparar
o filósofo que estuda Kant ao alpinista
que sobe o Everest, devido à extensão
e a complexidade inerente ao
pensamento Kantiano – o que resulta,
por óbvio, em argumentos complicados e
longos para compreender a política
contemporânea brasileira. Também é em
Kant, por outro lado, que está toda a
fundamentação filosófica da ciência
contemporânea.

A proposta de Kant é, num resumo


simples, a determinação de que o
conhecimento humano só pode ser
pautado no empírico, no mundo de fato,
e não em princípios metafísicos. Ou
seja, o conhecimento filosófico e
científico deve ser pautado apenas em
conceitos predicados da experiência
possível determinada pelos próprios
limites da razão humana. Os conceitos
para explicar o mundo devem, portanto,
serem extraídos do próprio mundo e não
de meras hipóteses da razão na forma
de conceitos metafísicos abstratos.

Este preceito da Filosofia


Crítica evita que se cometa saltos
lógicos durante a exposição de um
argumento e é o que define a própria
Ciência Moderna. Neste sentido, a
nossa análise será tanto filosófica
quanto científica. Científica porque
será demonstrável a partir de
9
conceitos extraídos das próprias leis
da natureza em que os homens estão
submetidos enquanto animais racionais
e, portanto, parte da própria
natureza; e filosófica na medida em que
são estas próprias condições de
existência em sociedade, estabelecidas
pelo uso da razão, podem ser explicadas
pela própria razão sem recurso a
hipóteses extraídas da razão
especulativa e, portanto,
indemonstráveis.

Este passo de determinação da


filosofia crítica como método de
análise do problema nomeado no título
deste livro, a saber, “A ascensão e a
insurreição do bolsonarismo”,
prontamente nos traz avanços na nossa
análise. Isso porque já podemos
descartar das explicações possíveis
tanto argumentos de cunho religioso
quanto argumentos de cunho moral. No
primeiro caso devemos nos reportar ao
próprio mote de campanha de Bolsonaro,
qual seja, “conheceis a liberdade e a
liberdade vos libertará”. Neste caso,
não é uma hipótese de explicação
filosófica ou científica o argumento
de que o bolsonarismo é um parte de um
plano divino para livrar o Brasil do
comunismo. É uma questão meramente de
fé este tipo de discurso. Responde a
questão para aqueles que possuem

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alguma fé, isto é, crença em algo sem
fatores empíricos, do mundo real, que
sirvam de evidências para a
explicação. E é um argumento cheio de
contradições internas, pois, se
Bolsonaro fosse a ferramenta de Deus,
e Deus, por definição é infalível,
fazia parte dos planos divinos tanto
que ele não fosse reeleito quanto que
a insurreição fracassasse. Deste tipo
de argumento de apelo à fé surgiram
teses como a do Pastor Silas Malafaia
– um dos maiores líderes evangélicos
do país, vale registrar – a de que Deus
iria travar o sistema eletrônico de
contabilização dos votos caso
Bolsonaro não fosse reeleito.
Voltaremos, posteriormente, à análise
do fenômeno religioso inerente ao
Bolsonarismo. Por hora, contudo, basta
dizer que justificativas religiosas
sobre uma suposta imanência do Vontade
de Deus não acrescenta nada à
explicação do problema. Se aplicarmos
o princípio Bayesiano de
verossimilhança provável da hipótese
mais simples, deve-se entender a
adesão de pastores à campanha de
Bolsonaro devido ao perdão de bilhões
de reais em dívidas e templos
religiosas em impostos. Deus, é por
excelência e por definição, a ideia
mais complexa de todas. Como é possível
explicar a adesão de pastores à
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campanha de Bolsonaro por interesses
econômicos, deve-se preferir esta
explicação, pois, é mais simples do que
a necessidade de apelo não só a
existência de um ser onipotente,
onisciente e onipresente, mas, de ser
o próprio pastor o interprete e
revelador das vontades divinas. Roga
contra à hipótese de interferência
divina mediante a revelação das
vontades de Deus por pastores,
notadamente processados por lavagem de
dinheiro em diversos países, o fato
destes mesmos pastores terem apoiado a
eleição de Lula durante seus dois
primeiros mandatos. Se a hipótese de
que estes pastores são interpretes e
comunicadores da Vontade Divina
estivesse correta, dever-se-ia
concluir que a vontade de deus não é
única e infalível porque já apoiou Lula
para a presidência outrora. Ou,
lembrando a história de que Deus iria
interferir no funcionamento das urnas
eletrônicas durante a contagem dos
votos das eleições em favor de
Bolsonaro; como não houve
interferência alguma, é necessário
concluir, sem pestanejar, de que não é
da Vontade de Deus que Bolsonaro fosse
presidente e, portanto, não há como
justificar a eleição de Bolsonaro como
manifestação da providência divina. O
argumento de intervenção divina é
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contraditório ao dogma mais
fundamental do monoteísmo, isto é, o
dogma do livre arbítrio. Deus não pode
interferir em eleições na medida em que
eleições são a expressão da soma da
maioria das próprias vontades
individuais expressas na forma de
votos. Mesmo que se argumentasse que a
interferência divina nas eleições
ocorreria por uma suposta fraude nas
urnas, ainda sim, lembrando o
provérbio que diz que não cai uma única
folha de uma árvore sem a anuência de
Deus, seria a vontade divina que
Bolsonaro perdesse as eleições porque
a fraude nas urnas fariam parte do
plano divino. Se estaria atribuindo
caos à Vontade de Deus na medida em que
seria da vontade do próprio deus uma
insurreição e que esta insurreição
terminasse de com a prisão de quase mil
e quinhentos golpistas. O argumento de
que Deus interfere em toda e qualquer
ação humana torna impossível o próprio
livre arbítrio humano porque Deus não
passaria de um mestre de fantoches
humanos. Esse tipo de interferência de
Deus nas ações humanas também tornaria
o principal pilar do Cristianismo
impossível porque não haveria
liberdade da vontade para o
arrependimento dos pecados pelos
indivíduos e o próprio Deus seria
motivo da condenação à danação eterna
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das pessoas ao inferno. É a negação do
próprio conceito do Espírito Santo,
este enquanto representação da
caridade divina, pois, se atribuiria
uma espécie de mal ao Deus monoteísta
que é, por definição básica de teologia
a expressão do Bem absoluto. É,
portanto, negar a própria caridade de
Deus, ou seja, é maldizer a providência
do Espírito Santo enquanto expressão
da Santíssima Trindade, na medida em
que se atribui mal, e não a caridade,
às obras de Deus. A sujeição de que
Bolsonaro é a representação da Vontade
Divina contraria, portanto, à própria
infalibilidade das Escrituras
Sagradas, pois, atribui aos pastores
do Dom reservado aos profetas de
interpretação da Vontade de Deus.

Esta digressão sobre a hipótese


implausível de interferência divina
não é uma tentativa de discutir a
natureza divina. A existência de Deus
não é o nosso objetivo de análise aqui.
Mas, por outro lado, não poderíamos
simplesmente descartar uma hipótese de
explicação do fenômeno político do
Bolsonarismo que é acreditada por pelo
menos um terço dos eleitores do Brasil.
Foi por isso que cogitamos a hipótese
a partir de um princípio de caridade,
isto é, verificamos a sua
plausibilidade e coerência interna. Na

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medida em que esta hipótese possui
contradições internas na própria
fundamentação teológica, isto é, é
contraditória aos próprios dogmas
fundantes do cristianismo professados
pelos pastores, devemos descartar tal
hipótese como plausível ou digna de
verossimilhança. O que quero dizer é
que hipóteses de explicação
“fantásticas” requerem provas
fantásticas. Basta lembrar os quatro
princípios para a explicação de um
milagre – no caso, a interferência
divina nas eleições brasileiras –
postulados por David Hume em Diálogos
Sobre a Religião Natural. Mesmo que,
por outro lado, se critique a hipótese
de que o Bolsonarismo é produto da
vontade divina, também a partir de um
princípio de caridade, sem que
recorramos à um filósofo empirista,
esse tipo de argumento recai em
contradições aos próprios dogmas do
monoteísmo cristão, se tomarmos como
base teólogos consagrados do
Cristianismo como Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino. No caso de Aquino,
os pastores, ao se colocarem como
interpretes da Vontade de Deus,
antropomorfizam a própria natureza
divina, na medida em que tentam dizer
sobre os desígnios de Deus, não de
acordo com a revelação das Sagradas
Escrituras ou da Palavra dos Profetas,
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mas, de acordo com a própria razão
humana – que, por natureza, é incapaz
de compreender os desígnios de Deus.
E, ainda, no caso de Agostinho, se nega
a possiblidade do livre arbítrio (tese
esta de Agostinho que nunca foi revista
pelos teólogos protestantes) na medida
em que se atribui a possibilidade do
mal ao próprio Deus, caso se aceite que
Deus é o responsável por todas as ações
humanas, a vontade humana – lembrando
que Agostinho recorre ao argumento dos
Estoicos de que a Vontade é a impressão
criada na alma – o mal do mundo é um
desígnio (vontade) do próprio Deus.

Os preceitos da filosofia da
Ciência estabelecidos por Karl Popper
nos indicam que não se deve, numa
pesquisa científica, procurar por
evidências, apenas, de confirmação.
Mas, deve-se testar às hipóteses que
neguem a própria tese que se tenta
provar. Pode-se explicar a adesão ao
Bolsonarismo por estes pastores
segundo às próprias Escrituras, isso
porque a própria Bíblia alerta para os
falsos profetas, isto é, aqueles que
agem em causa própria ao invés dos
valores de Jesus Cristo (Romanos
16:18) e há evidências disso na medida
em que houve o perdão de, literalmente,
quatro bilhões em dívidas e estes
pastores tiveram suas congregações

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banidas de alguns países, como Angola,
por lavagem de dinheiro. Também deve-
se considerar de que não se trata de
que o bolsonarismo seja prova da
interferência divina no cenário
político brasileiro o fato diversos
destes pastores tele-evangelistas
praticarem o misticismo, por exemplo,
na venda de travesseiros abençoados ou
de feijões mágicos que serviriam para
curar a COVID-19.

Quanto ao argumento religioso é


preciso considerar, ainda, a postura
do próprio Jair Bolsonaro em relação
aos ensinamentos de Jesus Cristo.
Afinal, àquele que se coloca como
instrumento de Cristo para a Liberdade
mediada pelo Conhecimento da Verdade
(lembro, novamente, o jargão da
campanha “conheceis a liberdade e a
liberdade vos libertará”) deve agir
segundo o exemplo de Cristo. Afinal,
esta passagem da Bíblia deve ser
interpretada como a liberdade
proporcionada pelo conhecimento da
Palavra Sagrada revelada por Cristo,
na medida em que Cristo é, segundo a
Exegese Bíblica, a encarnação da
própria Verdade. Ora, nada poderia ser
mais estranho à Bolsonaro do que os
valores cristãos expressos por Cristo.
Afinal, como chamar Bolsonaro de
Cristão se ele defende a morte a

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danação eterna dos bandidos enquanto
Cristo prega a misericórdia divina
mediante à redenção? Como dizer que
Bolsonaro representa os valores de
Cristo na medida em que Jair defende a
tortura, o fuzilamento e faz apologia
ao Estupro? O principal valor de Cristo
é a caridade, a empatia, amar ao
próximo como a si mesmo. Bolsonaro é
aquele que chamou de choramingões
àqueles que enfrentavam o luto causado
pela pandemia de Covid.

O que quis demonstrar, nessa


análise pormenorizada de atribuição ao
bolsonarismo, e, em especial, de um
caráter religioso, foram as
contradições internas a este tipo de
argumento. A interpretação da política
enquanto realização de supostos
desígnios (vontades) de Deus traz mais
problemas do que explicações para
compreender o Bolsonarismo enquanto
fenômeno político.

O problema que deve chamar a


atenção do leitor à existência de
contradições internas ao argumento de
que Bolsonaro é fruto da providência
divina numa luta dos autointitulados
cidadãos de bem e os comunistas que
querem acabar com as liberdades é a
existência de contradições insanáveis
com a própria Teologia e com Dogmas
fundamentais do cristianismo. Essas
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contradições nos mostram que o
Bolsonarismo não deve ser explicado
como um fenômeno da fé, isso porque,
se recorrermos mais uma vez à Tomás de
Aquino, a fé não pode ser contrária a
razão. Não se pode atribuir
irracionalidade à fé pelo fato do
próprio conceito de fé, segundo à
Teologia Cristã Clássica, depender do
conceito de razão. Por outro lado,
também, não se pode preferir a fé se
ela contradizer à razão, ao
conhecimento científico. Também é
falso de que a fé se reduz à um
exercício subjetivo do sujeito para
consigo mesmo. Neste último caso, o
problema é o de que a crença passa a
se confundir com os desígnios do
indivíduo e não da Verdade advinda de
Deus. Não é possível, para a Doutrina
Cristã, que haja contradição entre fé
e ciência (razão) ou uma fé irracional
porque na medida em que há apenas uma
única Verdade, encarnada na figura do
próprio Cristo, ambas devem estar em
harmonia na compreensão do mundo
enquanto criação de Deus.

Termos eleito o método da


Filosofia Crítica como ponto de
partida para explicar “a ascensão e a
insurreição do bolsonarismo” começa a
apresentar seus primeiros frutos. Isso
porque se determinamos como ponto de

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partida a necessidade do Bolsonarismo
enquanto fenômeno social deva decorrer
de conceitos derivados da experiência
possível devido às limitações da razão
determinadas pelas próprias leis da
natureza

O leitor não deve-se preocupar se


o problema da limitação da razão às
possibilidades da própria experiência
parecerem, por hora, confusos, porque
esse tema será melhor detalhado
posteriormente. Basta, contudo, por
hora, compreender que o conhecimento é
determinado pela experiência empírica
possível porque a própria razão é
determinada pelas leis que regem o
mundo empírico, isto é, pelas leis na
natureza; isso acontece porque a
própria condição de existência está
submetida às leis da Natureza em si
mesmas, pois, caso a quebra das leis
da natureza só é possível por aquilo
que é divino. Não estivesse o homem
submetido às leis da natureza, não
seria homem, já que a existência humana
é estabelecida pela existência
predicada do conceito de animal
racional na medida em que sua
existência está atrelada à existência
num espaço-tempo, necessariamente,
está, por conseguinte, submetido às
leis da natureza.

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O que nos importa desta análise
da explicação do bolsonarismo feita
até aqui, a partir de um argumento
meramente religioso é o que se segue.
Iniciamos nossa investigação a partir
da constatação da existência de um fato
social, conforme nomeamos no título:
“a ascensão e a insurreição do
Bolsonarismo”, o problema, portanto,
que nos propusemos à compreender é o
fato determinado pela depredação das
sedes dos três poderes da República no
dia 08 de janeiro de 2023. Elegemos
como palco para essa análise a
filosofia da história, na medida em que
a história é a área do conhecimento que
estuda fatos passados. Para esse
percalço, determinamos a premissa
central do método de análise, isto é,
que a interpretação tenha fundamento
empírico e não metafísico, ou seja, a
premissa base de análise é explicar
este fato social a partir de conceitos
de concatenação de fatos passados que
possam ser predicados do próprio mundo
de tal forma que não seja necessário
recorrer à hipóteses da razão
especulativa de forma ad hoc
(estabelecidas com o único critério de
explicar algo), ou seja, a premissa
básica era a de que os conceitos de
análise fossem predicados dos fatos de
forma demonstrável. Como o objetivo
central da Filosofia Crítica
21
estabelecida por Kant é o de limitar o
conhecimento à experiência possível de
ser intuída pela razão quando
confrontada com o múltiplo do sensível
(dados sensíveis observáveis
empiricamente a partir dos sentidos
humanos) na forma de acontecimentos
históricos. O elemento mais básico
para se analisar um movimento político
é o seu lema, ou, em termos do
marketing, seu slogan, isto é, seu
bordão expresso em frases concisas, de
forma fácil de se lembrar, que expresse
seus valores-chave. O lema de um
movimento político deve ser entendido
como ferramenta de divulgação das
principais pautas que unem um grupo de
pessoas em torno da figura de um
político. O lema do bolsonarismo é
“Deus, Pátria e Família”. A partir
destes mesmos preceitos, também, pode-
se perceber, sem a necessidade de
qualquer esforço analítico que o mote
da campanha eleitoral é a reprodução
do seguinte versículo Bíblico:
“conheceis a Verdade e a Verdade vos
libertará”. A partir desta análise do
que há de mais básico no bolsonarismo,
pode-se perceber a primeira pista para
analisarmos este movimento político
que é a defesa de valores cristãos como
objetivo da ação política. Valor este
que se reflete na mera análise
estatística das pessoas que se
22
identificam com o movimento, já que
quase a totalidade se identifica como
cristão. Apesar do principal valor
pregado por Cristo ser o da caridade,
este movimento político tem como lema
principal a defesa de algo denominado
como “liberdade mediante o
conhecimento da Verdade”. A roupagem
religiosa do bolsonarismo fica clara
quando a própria esposa de Jair
Bolsonaro (figura central do movimento
político), em incontáveis aparições
públicas balbuciava sons incoerentes
que dizia ser a manifestação do próprio
Espírito Santo que a concedia a
habilidade de orar na língua dos anjos.

Não nos importa nesta análise um


exame de consciência de Bolsonaro para
averiguar se a fé professada é genuína
ou mera ferramenta política de
arrendamento de votos. Também não nos
é relevante um debate sobre a
existência ou inexistência de Deus. O
que nos importa é que o próprio
conceito de fé, segundo conceituado
pelos Teólogos clássicos da doutrina
cristã, é do de a fé não pode ser
meramente subjetiva, mas, que deve
encontrar sua justificação no
exercício da razão de acordo com a
harmonia entre ciência e razão de tal
maneira que não se reduza a fé à
irracionalidade ou na justificativa da

23
fé pela própria crença, isto é, no
fideísmo.

Isso equivale a dizer que a


análise do bolsonarismo deve partir de
dados empíricos, segundo o próprio
conceito de fé cristão. Ou seja, a vida
do cristão, neste contexto, do
movimento político que se coloca como
fonte da Verdade que libertará seus
seguidores de algo, é a existência,
vivência e prática política segundo o
exemplo estabelecido pelo próprio
Cristo. A nossa análise do
Bolsonarismo parte de um princípio de
caridade, isto é, ao movimento deve-se
atribuir à melhor interpretação
possível e que as suas intenções
proclamadas são as mesmas do que as
praticadas. E fazemos isso como
recurso metodológico para evitar uma
análise enviesada. E tomamos essa
postura de caridade até encontrar
elementos que contradissessem o
movimento Bolsonarista entre seu
discurso e prática política. E foi aqui
que encontramos um grande problema que
nos fez abandonar o princípio da
caridade, encontramos evidências de
que os valores professados pelos
principais expoentes de que Bolsonaro
era instrumento de intervenção divina
na política brasileira são contrários
à própria doutrina cristã clássica.

24
Esse cuidado metodológico de
distinguir o Bolsonarismo como sendo
um movimento religioso com
representação política ou como um
movimento político com estética
religiosa é fundamental pare
estabelecermos os próximos passos da
nossa investigação, na medida em que
isso determina o próprio tipo de
análise a ser feita, isto é, define se
é melhor recorrer à filosofia da
religião ou à filosofia política. Como
nosso objetivo de análise não é o
caráter de existência de Deus ou da
verossimilhança de seus desígnios,
mas, o de uma análise da história dos
fatos que permeiam o Bolsonarismo a
partir da filosofia da história
segundo preceitos da filosofia da
ciência conforme estabelecidos pelo
projeto crítico; esta distinção da
própria natureza do fenômeno
bolsonarista se fez necessária.

Neste contexto, nossa pesquisa


sobre como se chegou à insurreição do
dia oito de janeiro de 2023 com a
depredação da sede dos três poderes
seguirá uma metodologia completamente
empírica, isto é, se pautará em uma
pesquisa de eventos concretos, a
partir de um arcabouço teórico, tendo
em vista entender o caráter do fenômeno
do movimento político –

25
convencionalmente chamado de
bolsonarismo – em suas principais
facetas, isto é, o caráter militar e
religioso do movimento de massas – de
seu surgimento à sua insurreição. Como
não é uma pesquisa de historiografia,
mas, de filosofia da história,
analisaremos este fenômeno a partir da
filosofia da história, isto é, de como
um movimento pode surgir, numa
democracia, que questione a própria
democracia em vistas à um golpe de
Estado (seja ele factível ou não). Para
isso, analisaremos a gênese econômica
do bolsonarismo a partir do contexto
econômico mesmo da sociedade
brasileira. Se formos bem sucedidos
nessa análise, lançaremos luz ao
movimento seu caráter genitor em
aspectos do mundo empírico – e não
somente a partir de um psicologismo –
no qual se poderá lançar mão de teorias
consolidadas da história da filosofia
para a análise do bolsonarismo
enquanto movimento político que se
insurge contra a própria democracia.
Feito esses dois passos, ou seja, a
contextualização teórica de pano de
fundo da análise do contexto histórico
em si; teremos condições de projetar
os principais desafios para a
manutenção da democracia na próxima
década, pois, embora não tenha sido
reeleito, o ex-presidente Jair
26
Bolsonaro, o movimento bolsonarista,
embora leve seu nome, não deve, e nem
é possível, ser compreendido a partir
somente de um caráter de devoção à
pessoa de Jair Messias. Isto é, como
lidar com um movimento antidemocrático
a partir da própria democracia
Brasileira?

27
II

Corolário

Entende-se por corolário a


definição dada pela filosofia da
lógica, isto é, a “proposição que
deriva de uma asserção precedente,
produzindo um acréscimo de
conhecimento por meio da explicitação
de aspectos que, no enunciado
anterior, se mantinham latentes ou
obscuros”.

Tomemos, neste sentido, como


asserção precedente do preâmbulo da
Constituição Brasileira de 1988. Diz a
ementa da referida Constituição:

Nós, representantes
do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para
instituir um Estado
Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos
direitos sociais e
individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o

28
desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como
valores supremos de uma
sociedade fraterna,
pluralista e sem
preconceitos, fundada na
harmonia social e
comprometida, na ordem
interna e internacional,
com a solução pacífica das
controvérsias,
promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL1.

O que pretende-se, neste livro,


é ponderar este ato de promulgação da
Constituição à luz da Filosofia do
Direito de Immanuel Kant, com intuito
de ponderar se o Estado brasileiro
inaugurado pela Constituição Cidadã
pode ser lida à luz de uma busca pela
Paz Perpétua. O fio condutor desta
pesquisa será, portanto, a pesquisa
sobre a averiguação se as condições de
possibilidade de uma República,
conforme a teoria, é possível de se
traduzir na prática; aproximação esta
da teoria abstrata e da práxis política

1 Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988.
29
enquanto princípio motor da filosofia
do direito kantiana.

Deste modo, o que se pretende


como objetivo primário, é analisar o
preambulo da Constituição brasileira à
luz do idealismo alemão,
especificamente de Kant e Fichte,
pretendendo suprir a carência deste
arcabouço teórico na doutrina
brasileira, a partir, em termos
kantianos da resposta à pergunta, que
melhor detalharemos seu significado ao
longo deste trabalho:

“Qual a natureza
faculdade de julgar
presente no juízo de
promulgação de uma
Constituição Republicana na
vontade egoísta de
autopreservação
determinada pela autoridade
da autonomia da vontade
livre diante da insociável
sociabilidade mediada pela
renúncia ao Estado de
Natureza e ao Estado
Despótico?”.

Como objetivo secundário, o


problema que deve nortear o leitor, são
os limites do direito positivo e a sua
subordinação ao direito natural,
devendo-se entender o jusnaturalismo

30
como método de garantia ao direito de
autopreservação do indivíduo, isto é,
a garantia ao direito à vida, como
elemento fundamental da Teoria do
Direito Contemporâneo, a partir do
estabelecimento de princípios
objetivos da razão prática que tenha
elemento norteador o progresso da
humanidade por meio da autopreservação
e desenvolvimento da pessoa humana,
enquanto indivíduo e enquanto cidadão
da República. Elementos estes, como
analisaremos, conforme estabelecidos
no Título I da Constituição,
denominado por “Dos Princípios
Fundamentais”.

O pano de fundo destes dois


objetivos citados está a compreensão
da máxima de Hugo Grócio:

Jus est regula actuum


moralium obligans ad id
quod rectum est (A lei é uma
regra de ação moral
vinculada ao que é certo).

Ou seja, como é possível compreender o


direito enquanto ciência da
“moralidade coletiva numa República
sem recorrer a princípios teológicos,
mas, tendo como motor, “apenas”, a
análise racional do mundo, ou melhor,
como é possível fundamentar a
Filosofia do Direito, tão somente, no

31
exercício da razão prática sem
recorrer à dogmas teológicos e como é
possível extrair deste exercício da
razão prática uma fundamentação
teleológica (de organização) social
que não seja mero reflexo do exercício
de uma determinação de natureza
divina, isto é, tenha como “princípio,
meio e fim” o próprio indivíduo – quer
seja enquanto indivíduo particular,
quer seja como integrante de uma
universalidade de indivíduos (i. e. de
uma sociedade).

Neste contexto, o problema a ser


desenvolvido está na argumentação de
que a clássica divisão da Teoria do
Direito Contemporânea do
jusnaturalismo (entendendo
jusnaturalismo como conjunto de
diversas teorias sobre o direito
natural) em quatro aspectos, quais
sejam, a) uma lei “natural” em sentido
estrito, fisicamente conatural a todos
os seres animados à luz de instintos;
b) uma lei estabelecida por vontade da
divindade e por esta revelada aos
homens; c) a lei ditada pela razão,
específica, portanto, do homem que a
encontra autonomamente dentro de si;
d) uma lei com escopo de garantir a
dignidade da pessoa humana; é, na
verdade uma falsa questão – se
compreendermos esta divisão a partir

32
do idealismo moderno alemão, ou seja,
uma espécie, tomando emprestado o
termo hegeliano, de suprassunção entre
empirismo e racionalismo.

Em suma, a leitura que


oferecerei, aqui, é a de que existe um
falso antagonismo entre direito
positivista e direito natural; se
interpretarmos os conceitos destas
duas escolas de filosofia do direito,
aqui utilizaremos Hans Kelsen e
Richard Dworkin como representantes,
mas, duas ponderações sobre a Teoria
do Direito complementares entre si se
às intermediarmos pelo princípio da
Filosofia da Ciência na perspectiva da
teoria da falseabilidade de Karl
Popper.

Se obtivermos sucesso neste


caminho argumentativo, por
conseguinte, demonstraremos que a
partir dos ideais iluministas do
idealismo alemão presentes na
Filosofia do Direito, devemos
compreender a Teoria do Direito
Kantiana como movimento dialético de
suprassunção do positivismo e do
naturalismo clássico que resulta numa
Filosofia do Direito que não mais pode
ser chamada de Teoria – no sentido de
abstração racional – do Direito, mas,
que o direito deve ser compreendido
como sendo uma Ciência – nos termos da
33
revolução científica, como
demonstraremos, do século XX – do
Direito a partir de uma compreensão do
direito enquanto exercício mútuo da
razão prática e da razão pura.

O leitor que não está acostumado


com o debate acadêmico não deve se
assustar com um Corolário. O que um
corolário faz é deixar claro os
problemas fundamentais por de trás de
uma premissa. O que importa, aqui, é
que o leitor compreenda que o nosso
objetivo é o de explicar a insurreição
Bolsonarista à luz da Filosofia da
História e da Filosofia do Direito. O
que fizemos, neste Corolário, foi,
apenas, o de elencar, de forma rápida,
os conceitos que estão por de trás de
uma insurreição contra uma Democracia.
Numa redução em silogismos, o que
fizemos foi o seguinte: “Se há uma
insurreição, esta revolta é contra
algo”; “queriam romper com alguma
ordem democraticamente estabelecida”.
Uma insurreição contra as eleições,
portanto, nada mais é do que uma
revolta contra uma Constituição
estabelecida.

34
III

Prefácio

Apresentarei, doravante, o
seguinte argumento: “Teria a
Constituição Brasileira de 1988 como
fim último a autopreservação dos
indivíduos?”; pergunta esta que, nos
termos da Filosofia do Direito,
necessitará resposta à seguinte
pergunta: “Qual a natureza faculdade
de julgar presente no juízo de
promulgação de uma Constituição
Republicana na vontade egoísta de
autopreservação determinada pela
autoridade da autonomia da vontade
livre diante da insociável
sociabilidade mediada pela renúncia ao
Estado de Natureza e ao Estado
Despótico?”.

Se “a república ou o bem comum,


então, [...] é o bem-estar ou o

35
interesse comum do povo”2, sendo a
igualdade de todos essencial aos
cidadãos da República, sem direitos
não podem existir3, o ponto de partida
para toda e qualquer Filosofia do
Direito deve ser a própria fundação do
Estado, ou, em outros termos, “quando
o ordenamento jurídico determinar as
hipóteses sob as quais a coação deve
ser exercida [...] protege os
indivíduos que estão sob ela
submetidos contra o uso da força por
parte de outros indivíduos”4.

Iniciamos o corolário com a


seguinte definição de lei, de Hugo
Grócio,

Jus est regula actuum


moralium obligans ad id
quod rectum est (A lei é uma
regra de ação moral
vinculada ao que é certo).

Se partirmos da própria história do


século XX, teremos um problema urgente
que deve ser dirigido: a lei não torna
uma ação qualquer numa ação moral – se
considerarmos a moral como sendo um
conjunto de princípios norteadores das

2 CÍCERO. Da República XXX


3 CÍCERO. Da República XXXII
4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. P.
26.

36
ações humanas sejam elas individuais
ou coletivas – caso não se parta de que
a moral é preestabelecida por uma lei
divina. Porque nos mostra a história
do julgamento de Nuremberg que este
tipo de argumento pode ser utilizado
como fundamentação de justificativa da
barbárie do Holocausto. Isso porque é
função do Direito, nos termos de
Kelsen, determinar

“quando o ordenamento
jurídico determinar as
hipóteses sob as quais a
coação deve ser exercida [.
.. ] protege os indivíduos
a ela submetidos contra o
uso da força por outros
indivíduos” [e ocorre de
tal forma que viola a
segurança coletiva, pois é
o que ocorre quando] “a
decisão é afastada dos
indivíduos diretamente
envolvidos no conflito,
pelo menos a questão de
saber se, em determinado
caso, houve ofensa à Lei e
quem é responsável por ela”5

Lembre-se, caro leitor, o que se


propõe, aqui, é uma leitura de uma
Filosofia do Direito que supere a

5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.


37
contradição entre positivismo e
naturalismo. Isto é, uma Filosofia do
Direito que não seja mera abstração por
meio do exercício da razão, mas, que
considere a práxis jurídica como
fundamento principal. Isso porque a
mera positivação de abstrações em leis
pode levar à legitimação da barbárie
conforme apontou Hannah Arendt.

Mas, o que é o direito positivo?


Define Kelsen:

somente o direito posto por


seres humanos é direito
positivo.6

Temos aqui, portanto, o princípio


fundamental do direito positivo: é a
lei humana em contraposição à lei
divina. Esta separação, se recorrermos
à História da Filosofia é, justamente,
a separação dada na história da
Antígona. A peça de Sófocles
representa, na Antiguidade Clássica, a
fundação da Sociedade, isto é, a
dicotomia entre leis familiares e leis
da Polis, ou, nos termos que utilizamos
acima, a Antígona é a representação
primeva da fundação do direito
estabelecido pelos seres humanos.

6 KELSEN, Hans. Was ist juristischer


Positivismus? Juristenzeitung, nº 15/16,
p. 465.
38
Vale lembrar o momento em que
Sófocles narra esta oposição entre
“direito divino” e “direito dos
homens”

Sim, desde que não foi Zeus


que me publicou aquele
édito / e desde que não é
nesse tipo de lei que a
justiça habita com os
deuses abaixo estabelecido
pelos homens / Nem eu penso
que os seus decretos fossem
tão fortes / que nenhum
mortal pudesse substituir o
escrito / e desfazer os
decretos dados a nós pelos
deuses / Pois a vida deles
não é de hoje ou de ontem,
mas de todo o tempo, e
nenhum homem sabe quando
eles foram primeiro
7
desenvolvidos .

Antígona, ao proferir tal


discurso, se distancia dos decretos de
Creonte. As leis seguidas por ela “são
dignas de obediência precisamente
porque elas não são escritas, estão
além do reino da vida política de
quaisquer cidades”8. Ou ainda, em

7 SÓFOCLES. Antígona. 450 – 457.


8 SAXONHOUSE. Arlene W. “Foundings vs
Constitutions: Ancient Tragedy and the
39
outros termos, Antígona ignora os
decretos de Creonte, pois, as leis de
Zeus são “superiores”, ou, nos termos
da tragédia, ”estão além do reino da
política de quaisquer cidades”. Ora,
pode-se perceber aqui, o conflito de
dois âmbitos mundo do grego: vida
espiritual e vida comunitária.
Antígona, ao deixar de lado as leis
escritas do governante, ao realizar o
funeral, nos indica a conflito das leis
não escritas do Olimpo contra os do
governante da Pólis. Apesar, portanto,
de haver uma fortíssima figura do rei
(o próprio filho de Creonte, Hemon,
questiona o rei sobre a legitimidade
da proibição do funeral, haja vista a
sua contrariedade às leis não
escritas), os decretos do Olimpo são
superiores: “o rei reina, mas é Zeus
quem governa”.

Se nos voltarmos para a análise


que Hegel faz da tragédia na
Fenomenologia do Espírito, talvez,
seja possível melhor compreender esse
conflito que tentamos indicar.
Certamente, não pretendemos, com isso,

Origins of Political Community” in


SALKEVER. Stephen. The Cambridge Companion
to Ancient Greek Political Thought.
Cambridge: Cambridge University Press. 1.
ed. 2009. P. 48.

40
entrar num debate sobre o espírito
absoluto, o que pretendemos ao fazer
essa digressão é tão somente clarear
esse conflito que acima indicamos, a
saber, entre os decretos do Olimpo e
os decretos do governante da cidade,
entre a lei humana e a lei divina. Na
análise hegeliana, o espírito parte de
uma divisão da substância nela mesma,
como meta e consciência, entre gênero
e indivíduo. Na interpretação de J.
Hyppolite, o que está em questão nesse
momento da Fenomenologia é uma cisão
segundo a lei da consciência. Isto é,
uma oposição entre o singular e o
Universal, contudo tal divisão não
ocorre, apenas, nesse aspecto, mas,
também, se apresenta na oposição entre
família e cidade, entre a lei humana e
a lei divina9. Hegel aponta que essa
divisão ocorre numa operação própria
da consciência em que se pode denominar
tal espírito “como lei humana, porque
ele é na forma da efetividade
10
consciente de si mesma” . Tais leis
humanas correspondem às leis

9 HYPPOLITE. Jean. Gênese e Estrutura da


Fenomenologia do Espírito de Hegel. 1. ed.
São Paulo: Discurso Editorial, 1998. p.
358.
10 HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich.
Fenomenologia do espírito. 5. ed.
Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed.
Universitária São Francisco. 2008. P. 31.
41
explicitas da Cidade, à vida social e
política do povo; a lei divina (não
escrita), por outro lado, corresponde
à família11. Isto é, lei humana e lei
divina são o mesmo e o outro. Lei
humana é pública, conhecida por todos
e é a expressão da vontade comum dos
cidadãos. O que queremos dizer ao
afirmar que lei humana e divina são o
mesmo e o outro é que

A lei humana exprime a


operação efetiva da
consciência de si, a lei
divina tem, portanto, a
forma da substância
imediata ou da substância
posta somente no elemento
do ser: uma é operação, a
outra é fundo sobre a
operação se destaca e no
qual emerge12.

Ou, ainda, de acordo com os termos de


Hegel, há uma oposição, entre essa
manifestabilidade, entre as leis
humanas, e a outra potência, as leis
divinas13.

O que se pretende, ao fazer essa


digressão à Antígona, é demonstrar o

11 HYPPOLITE. Jean. op. cit. p. 358.


12 HYPPOLITE. Jean. op. cit. p. 359.
13 HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich. op. cit.

p. 31.
42
problema que inaugura a Filosofia do
Direito, isto é, a gênese do Direito
enquanto ciência das leis. Este
momento da História das Ideias, por
óbvio, se trata de um tempo lógico, e
não cronológico, do nascimento do
Direito. O que deve se extrair dessa
oposição entre leis divinas e leis da
Polis é que a gênese do direito se
confunde com a própria fundação da
Polis, pois, este problema só toma
forma na medida em que se abandona a
lei estabelecida pelo patriarca da
família, isto é, a lei do mais forte,
em direção à uma lei comum à Cidade.
Este é o ato que foi melhor descrito,
pela História da Filosofia, durante a
modernidade na figura dos chamados
filósofos Contratualistas.

Encontramos, portanto, um ponto


em comum entre os dois fios condutores
deste prefácio: o nascimento do Estado
e o nascimento do direito. Não atoa
existe uma expressão comum a estes dois
termos, qual seja, o “Estado de
Direito”, pois, é impossível separar a
gênese do Estado da gênese do Direito.
Eis a oposição entre Estado de Natureza
e Estado Civil, eis a promulgação
(lembrando que esta promulgação se dá
num tempo lógico e não cronológico) do
Contrato Social. Conclui-se daí, por
conseguinte, duas coisas: não existe

43
Estado sem Direito e não existe
Sociedade sem Leis humanas, pois, a
criação destes dois pares de conceito
se confundem.

Esta dicotomia, por sua vez,


entre Estado de Natureza e Estado
Civil; entre leis familiares e leis da
Polis; nada mais é do que a dicotomia
entre vontade individual (lei do mais
forte) e vontade social: e se apresenta
por meio do estabelecimento de uma
sociedade comum entre indivíduos).
Rosseau apresentou este problema a
partir do conceito de “Vontade Geral”.
Diz o autor:

"De fato, cada


indivíduo pode, como homem,
ter uma vontade particular
contrária ou divergente da
vontade geral que tem como
cidadão. existência
independente pode fazê-lo
considerar o que deve à
causa comum como uma
contribuição gratuita, cuja
perda será menos
prejudicial para os outros
do que o seu pagamento será
oneroso para ele”

Observe que novamente temos o problema


apresentado na Antígona, ou, nos
termos Hegelianos empregados, de

44
“vontade universal” e “vontade
particular”. O que está em jogo, na
gênese do Contrato Social, é a
dicotomia entre vontade universal – ou
da sociedade – e vontade particular –
ou direito familiar ou divino.

Mas, o que é esta vontade geral?


Diz o Rousseau:

"A vontade geral só pode


dirigir as forças do Estado
de acordo com o fim para o
qual foi instituída, que é
o bem comum; pois se a
oposição dos interesses
privados tornou necessária
a constituição de
sociedades, a harmonia
desses mesmos interesses o
tornou possível. O que é
comum a esses diferentes
interesses forma o laço
social; e se não houvesse
algum ponto em que todos os
interesses concordassem,
nenhuma sociedade poderia
existir. Ora, é apenas por
esse interesse comum que a
sociedade deve ser
governada."14

14 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social


Contract. Yeale University Press, 2002. P.
66. 3.1
45
Conclui-se daí, inevitavelmente,
portanto, que o Contrato Social – isto
é, o aceite às Leis da Polis – tem como
objetivo o próprio convívio entre
indivíduos. O que nos leva à segunda
conclusão deste prefácio: não há
sociedade sem direito (Contrato
Social) e não há direito sem a cisão
entre leis divinas e leis humanas. É
este movimento de suprassumir da
Consciência que faz nascer o Estado de
Direito, ou, retomando os termos de
Hegel empregados acima:

A lei humana exprime a


operação efetiva da
consciência de si, a lei
divina tem, portanto, a
forma da substância
imediata ou da substância
posta somente no elemento
do ser: uma é operação, a
outra é fundo sobre a
operação se destaca e no
qual emerge15.

Não há, portanto, se entendermos o


Direito possível, a partir da
definição apresentada acima de Hans
Kelsen, sem que seja, em alguma medida,
um direito positivo, pois direito
enquanto a criação de leis humanas é o

15HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich. op. cit.


p. 31.
46
próprio momento fundante das condições
de possibilidade de existência de uma
sociedade. Direito e Contrato Social,
portanto, são conceitos dependentes
entre si. Neste sentido, à vista disso,
precede e procede ao Direito o
estabelecimento da Vontade Geral.

Se a gênese de direito e
sociedade se confundem, ou seja, se o
Estado de Direito encontra-se num
tempo lógico de fundação,
necessariamente, também deve-se
considerar, ao ponderar a Filosofia do
Direito, o próprio tempo histórico –
dado que a distinção entre tempo lógico
e cronológico são conceitos
complementares.

Em outras palavras, se o direito


é uma representação da Vontade Geral,
será, expresso numa Lei, apesar dos
titulares e dos procedimentos poderem
ser distintos em cada período
histórico, ele será, sempre,
vinculante16. Basta recorrer ao
dicionário para compreender esta
característica enunciada. Diz o
dicionário:

Condição que se
estabelece por meio de um

16 BROEKMAN, Jan. The minimum content of


positivism. Pennsylvania State University,
1985. p. 349.
47
vínculo, conexão, ligação,
união: cláusulas
vinculantes ao contrato.

Conclui-se, desta maneira, que o


direito é estabelecimento de vínculo
entre os indivíduos representado pela
Vontade Geral em renúncia à Vontade
Individual em busca de um bem comum.
Eis, portanto, dedução do conceito de
Contrato Social: o efeito vinculante
estabelecido pela Vontade Geral, ou
seja, a fundação de uma sociedade de
indivíduos a partir de leis humanas.
Se, conclui-se, que se trata do vínculo
entre indivíduos a partir de leis
humanas, necessariamente estas leis
devem ser mutáveis, pois, somente é
imutável o que é eterno, divino. Ou em
termos Aristotélicos, só é eterno “uma
causa não causada”; e como ilustramos
por meio da peça da Antígona, a gênese
do direito é resultante do conflito
entre leis familiares e leis da Polis.
Isso nada mais é do que uma
apresentação da Teoria
Convencionalista17.

Retomemos a definição de Hugo


Grócio de lei:

17 VILLA, Vittorio. Il positivismo


giuridico. Metodi, teorie e giudizi di
valore. Giappichelli, 2004. p. 30.
48
Jus est regula actuum
moralium obligans ad id
quod rectum est (A lei é uma
regra de ação moral
vinculada ao que é certo).

O problema desta definição de lei é uma


leitura supérflua da Teoria
Convencionalista. E digo porquê é
supérflua: porque desconsidera a
definição de Vontade Geral. Como
vimos, Vontade Geral é a representação
de vontades individuais comuns aos
indivíduos. Em suma, a Vontade Geral
nada mais é do que a síntese (o que há
de comum) das vontades individuais –
ou, em termos kantianos, vontade
egoísta. A leitura rasa, e
absolutamente errada da Teoria
Convencionalista consiste em dizer que
a lei é a mera vontade da maioria, isto
é, o consenso (opinião da maioria)
retratado na forma de lei.

E este problema não se trata de


mero inconveniente, esta leitura
errada da Tese Convencionalista, ao
ignorar a Vontade Geral como expressão
da Vontade Geral do Bem Social Comum,
foi, como lembrei acima, utilizada
pelos perpetradores do Holocausto.
Argumentavam no Tribunal de Nuremberg,
os genocidas, que estavam, apenas,
seguindo à uma vinculação estabelecida
por lei. Sobre isso, recorramos à
49
Hannah Arendt em seu relato do
julgamento de Eichmann:

“As coisas eram assim, essa


era a nova lei do país,
baseada na ordem do Führer;
o que quer que ele fizesse,
ele fazia, até onde podia
ver, como um cidadão
cumpridor da lei. Ele
cumpriu seu dever, como
disse repetidamente à
polícia e ao tribunal; ele
não apenas obedecia a
ordens, mas também obedecia
à lei [...] Pois, além de
cumprir o que concebia
serem os deveres de um
cidadão cumpridor da lei,
ele também agia a ordens -
sempre tão cuidadoso para
ser "coberto" - ele ficou
completamente confuso e
acabou enfatizando
alternadamente as virtudes
e os vícios da obediência
cega, ou a "obediência dos
cadáveres",
Kadavergehorsam, como ele
mesmo a chamava”.18

18ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém.


Companhia das Letras, 1999. P. 135.
50
Voltemos à Rousseau. É verdade
que Rousseau determinou em respeito à
Vontade Geral que

" A voz do maior número


sempre obriga todos os
19
outros "

Mas, é o próprio Rousseau que faz a


seguinte ressalva:

"Quando uma Lei é proposta


na Assembleia do Povo, o
que se pede não é
precisamente se aprovam a
proposição ou a rejeitam;
mas se forma ou não a
vontade geral que lhe é
própria: cada um ao dar o
seu voto declara a sua
opinião sobre essa questão,
e da contagem dos votos é
tomada a declaração da
vontade geral"20

Continua Rousseau:

“Isso supõe, é verdade, que


todos os traços da vontade
geral ainda são maioria;

19 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social


Contract. Yeale University Press, 2002.
P. 328 [4.2].
20 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social

Contract. Yeale University Press, 2002.


P. 329 [4.2].
51
quando eles deixam de sê-
lo, qualquer que seja o
lado que tomemos, não há
mais liberdade”21

O autor ressalta, contudo, é


importante frisar:

Destas diferentes reflexões


deduzem-se os princípios
pelos quais devemos regular
o método de contagem dos
votos e de confronto das
opiniões, consoante a
vontade geral seja mais ou
menos fácil de apurar e o
Estado mais ou menos
22
deteriorado. .

Diz, também,

Quando, portanto, prevalece


uma opinião oposta à minha,
isso simplesmente mostra
que eu estava errado e que
o que eu considerava ser a
vontade geral não era
assim. Se minha opinião

21 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social


Contract. Yeale University Press, 2002..
P. 230
22 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social
Contract. Yeale University Press, 2002.
Book IV: Chapter II.

52
particular tivesse
prevalecido, eu teria feito
algo diferente do que
desejava; e nesse caso eu
não teria sido livre23

Eis o ponto nevrálgico que queríamos


chegar neste Prefácio: a Vontade Geral
estabelecida pelo Contrato Social, que
dá origem ao próprio conceito de
Direito, determinado pelo
estabelecimento de uma Lei Humana,
necessita o que é próprio ao conceito
de humanidade como fato gerador
(causa) deste pacto social
(consequência), ou seja, a liberdade.
A Vontade Geral estabelecida por
Rousseau, como fundação do Contrato
Social, nada mais é do que a comunhão
de vontades individuais, sim, mas,
vontades livres.

Voltaremos ao conceito de
liberdade da vontade posteriormente,
mas, antes, precisamos de ponderar a
consequência deste ato da vontade.
Isso porquê só é possível estabelecer
a causa (vontade livre) se soubermos
qual a consequência está vinculada a
uma determinada causa. Adianto um
conceito embutido nesta conclusão: um

23 ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social


Contract. Yeale University Press, 2002. P.
230

53
efeito no mundo (lei) se trata de uma
abstração (juízo à priori) sintética
(que tem origem na experiência). Isto
é, em outros termos, antes de se
ponderar sobre juízos universais deve-
se partir do fenômeno (juízos
particulares) a que se observa. E, como
vimos, o Direito é uma determinação
empírica gestada do conflito entre lei
familiar e lei da Polis. Direito é a
consequência do embate de vontades
particulares de vários indivíduos. É,
como argumentado, o estabelecimento de
uma, em termos silogísticos,
determinação de “termos médios”, ou
melhor, pontos em comum aos indivíduos
que dá gênese à criação da sociedade
(vínculo entre indivíduos). Ao se
tratar de Filosofia do Direito,
portanto, é necessário partir, sempre,
do empírico (fenômeno) e não da
abstração (coisa em si), ou seja, o
ponto de partida dos juízos sobre o
direito, determinado pela sua própria
gênese, encontra-se, como argumentado,
situada num tempo lógico e num tempo
cronológico, i. e., no empírico.

Aqui, precisamos ponderar um erro


comum da Doutrina do Direito
estabelecida. Que é a caracterização
dos conceitos de positivismo

54
exclusivo24 e positivismo flexível25
como sendo conceitos mutuamente
opostos, portanto, excludentes.
Entende-se que há um erro por se
aplicar a autoridade, no conceito de
positivismo exclusivo, à lei em si.
Entendemos – e abordaremos isso
pormenorizadamente num momento
pertinente – que a autoridade
inequívoca é uma conditio sine qua non
do próprio conceito de Direito. Sem
esta autoridade não há o efeito
vinculante do Contrato Social.
Contudo, entendemos que este conceito
não se aplica à lei escrita. O que se
entende, portanto, é que a autoridade
cara ao conceito de positivismo
exclusivo é que a autoridade se aplica
à vontade livre que dá causa à
promulgação da lei e não à lei em si.
Isso porquê, caso houvesse a
autoridade da “Lei em Si” (lei
positivada), não seria possível o
estabelecimento de um Contrato Social.

24 RAZ, Joseph. The authority of law.


Essays on law and morality. Oxford
University Press, USA, 2009.; GIORDANO,
Valeria. Il positivismo e la sfida dei
principi. Edizioni Scientifiche Italiane,
2005.
25 HART, Herbert Lionel Adolphus. The
concept of law. Oxford University Press.p.
250.

55
Isso por dois motivos, o primeiro é que
não seria possível escapar das leis
familiares – ou da lei divina, da lei
particular – em busca de uma Lei
Universal, na figura de Vontade Geral,
que torne possível a celebração do
Pacto Social. A autoridade, ressalta-
se, é um conceito caro à liberdade da
Vontade, refletida na Vontade Geral,
que cria a lei e não na lei em si. A
autoridade da lei, portanto, é
consequência da autoridade da Vontade
Livre – e não o contrário.

Por outro lado, também,


entendemos, neste contexto, que o
conceito de positivismo flexível26 é um
conceito circular. Isso porquê se a
autoridade está na Liberdade da
Vontade e não na Lei em si mesma, o
juízo moral – voltaremos a este
problema num momento pertinente – já
está incluso no próprio ato de
elaboração da lei (e do “juízo jurídico
sobre a aplicação do caso concreto em
relação à lei”) ou do Pacto (Contrato)
Social. É circular porque, deste modo,
a própria ressalva feita pelo
positivismo flexível já está incluso

26 COLEMAN, Jules. Incorporationism,


conventionality, and the practical
difference thesis. The practice of
principle. In defense of a pragmatist
approach to legal theory.
56
no Direito determinado pela autoridade
da vontade livre. Ou, em termos
Kantianos, o juízo moral está contido
no juízo proveniente da Vontade Livre
que dá gênese ao próprio Direito, e se
isso se comprova na forma do juízo
categórico, ou melhor, da Lei
Universal estabelecida na autoridade
de uma vontade autônoma (que se
autodetermina e não está sujeita às
volições dos instintos) na forma de uma
Vontade Geral expressa num pacto
(Contrato social) na forma de Lei
(obrigação moral) estabelecida pelos
próprios homens.

Neste contexto, temos o seguinte


problema: a “vontade livre” é livre
para estabelecer algo. Mas, o que é
este algo que é estabelecido pela
vontade livre? Ora, a resposta à esta
pergunta foi dada nos dois parágrafos
anteriores: a vontade livre é aquela
que se autodetermina e é desta
autodeterminação que surge a sua
própria autoridade. Voltaremos às
condições, de forma pormenorizada,
para que uma vontade seja livre
posteriormente. Mas, o que o leitor
precisa ter em mente, aqui, é que
vontade livre é aquela vontade
determinada pela razão e não pelos
instintos. A vontade (que é um conceito
empírico – sintético à priori) só será

57
livre se for autônoma, isto é,
autodeterminada. E é esta
autodeterminação da vontade que Kant
denominou de “razão prática pura”;
conclui-se, portanto, que só há uma
vontade livre se esta vontade for
determinada pela própria razão de
forma autônoma, ou seja, livre da
subordinação aos instintos.

A partir deste afinamento do


conceito de positivismo, ao demonstrar
que a distinção entre direito positivo
exclusivo e inclusivo não passa de um
raciocínio circular, portanto, uma
contradição em termos, entende-se que
se responde à critica feita aos
positivistas de que o juízo
positivista, se incluir valores
morais, não passaria de um juízo
solipsista. O juízo positivista,
fundamental ao direito, quando
estabelecido a partir de uma Vontade
Geral, é reflexo de uma Vontade
Autônoma e, portanto, Livre, é,
justamente, a recusa ao argumento
solipsista. Ao contrário do que querem
os “positivistas clássicos”, a recusa
que o Direito, no caso dos positivistas
exclusivos, se paute na vontade livre
(conforme aqui definida e nos termos
que retomaremos posteriormente) é o
caso em que se há o solipsismo. Pois,
a interpretação da Lei se dará tão

58
somente por preferências axiológicas
do operador do Direito. Por outro lado,
no caso dos positivistas inclusivos, a
recusa à autoridade da Lei (de acordo
a definição do conceito de autoridade
aqui apresentada, isto é, enquanto
autoridade da vontade livre resultante
do exercício da Razão Prática Pura)
autodeterminada pela Vontade dos
indivíduos na busca de uma Vontade
Geral; também resultará na redução à
meras preferências axiológicas na
medida em que se relativiza a
universalidade da lei. Retomemos ao
conceito de lei de Hugo Grócio

Jus est regula actuum


moralium obligans ad id
quod rectum est (A lei é uma
regra de ação moral
vinculada ao que é certo).

O conceito de “Lei” pode ser definido,


de acordo com o dicionário como sendo
uma “regra categórica”, ou seja, uma
“regra que não permite dúvidas, ou
melhor, uma regra definida”; ou seja,
numa terceira definição, lei é “regra
com seus limites devidamente
estabelecidos”. O problema, portanto,
do positivismo inclusivo é a criação
de lex tertias mediante preferências
axiológicas que não foram devidamente
estabelecidas (retomaremos o problema
das lex tertias. Mas, deve-se
59
entender, de forma breve, como o ato
de criar novas leis durante a aplicação
da lei; quer seja por meio da
combinação de duas ou mais leis, quer
seja por meio de preferências
axiológicas que seriam distintas da
própria lei).

Retomemos Rousseau, feita essas


clarificações conceituais, no que diz
respeito ao conceito de Vontade Geral.
Ainda temos, contudo, um problema para
compreender o conceito de “Vontade
Geral” enquanto “termo médio” das
“vontades individuais”. Determinamos
que o Direito é o Pacto social (Lei
Universal) entre indivíduos (Vontades
Individuais) com intuído de buscar um
“Bem Comum” na forma da “Vontade Geral”
(Vontade Universal) a partir da
síntese do que há de comum entre essas
vontades individuais – que chamamos de
termo médio – que resulta na
convivência de uma multiplicidade de
indivíduos na forma de uma
“Sociedade”. O termo médio, numa
analogia com o conceito aristotélico
de Silogismo, são as próprias
“Vontades Individuais”; ou, em outros
termos, o que determina a existência
de uma “Vontade Geral” é a síntese
mediada pela razão de inúmeras
“Vontades Individuais”.

60
Determinados, ainda, que por se
tratar de uma Filosofia do Direito
devemos partir, sempre, do fato
empírico e, a partir daí, realizar
juízos indutivos (do Particular para o
Universal) e, jamais, partirmos de
raciocínios dedutivos (do Universal
para o Particular). Devemos, neste
sentido, portanto, analisar um ponto
médio existente na multiplicidade de
“Vontades Individuais” para determinar
o que há de comum nesta multiplicidade
para determinar o que é a “Vontade
Geral” primeva (que dá origem ao
Contrato Social). Neste sentido, diz
Kant:

“Seja qual for o


conceito que, ainda com um
desígnio metafísico, se
possa ter da liberdade da
vontade, as suas
manifestações, as ações
humanas, como todos os
outros eventos naturais,
são determinadas de acordo
com as leis gerais da
natureza”27.

27 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.. P.
3.

61
O percurso argumentativo, para
definirmos a “Vontade Geral” devem ser
as próprias ações humanas, ou seja, as
manifestações da “Liberdade da
Vontade”. Ou seja, devemos ponderar a
Vontade Geral por meio das próprias
manifestações da liberdade da vontade.
Mas, demos um passo atrás. O que esta
multiplicidade de manifestações da
“Vontade Livre” tem em comum? Elas são
todas geradas por indivíduos, isto é,
da espécie humana. E qual é a diferença
específica de humano (enquanto
espécie)? Seja nas teorias
criacionistas mais longevas à biologia
contemporânea, a definição (a
essência) de humano é “animal dotado
de razão”. Ora, eis o argumento de
Kant, para compreendermos a “liberdade
da vontade” é preciso compreender os
indivíduos a partir de seu próprio
conceito: “animais dotados de razão”
isso porquê é impossível saber o que é
um objeto se não sabemos a definição
deste objeto.

Se retomarmos à história da
filosofia, em especial, Platão,
compreenderemos a importância de que
este seja o ponto de partida de uma
investigação filosófica. As duas

62
primeiras etapas28 do método dialético29
são justamente a de “nomeação” e a de
“definição”. A primeira etapa, a da
“nomeação” define-se o objeto que se
pretende investigar. A segunda etapa,
a da “definição” é a delimitação, na
sua forma mais simples do objeto
denominado. O que se pretende é

“conhecer em que modos


uma coisa é outra que a
outra”30

A diferença específica, portanto, de


homem (ou humano, algo enquanto
espécie) é o fato de ser “animal” e
“racional”.

Recorramos à Teoria da Predicação


Aristotélica. As substâncias (de modo
genérico, as coisas) podem ser
homônimas, sinônimas ou parônimas.
Vamos a um exemplo para explicar a
Teoria da Predicação. Homem (espécie)
é homônimo de cachorro – pois, ambos
são animais, mas, não são a mesma
coisa, são, portanto, semelhantes.

28 GOLDSCHIMIDT, Victor. Platão estrutura


e método dialético. São Paulo,. Loyola,
2002.
29PLATÃO. Menon.
30 MARQUES, M. P. Platão, pensador da
diferença: Uma leitura do Sofista. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2006.p. 111)

63
Animal, por sua vez, possui relação de
sinonímia com “Homem” e “cachorro”
isso porque

“se alguém quiser dar a


definição de cada um deles,
dizendo o que é para cada
um deles ser animal, dará a
mesma definição”31.

Ainda de acordo com a Teoria da


Predicação, as coisas podem ser: 1)
substâncias segundas; 2) acidentes; 3)
acidentes substanciais; 4) substâncias
primeiras32. No caso aqui em questão,
para compreendermos a definição de
homem, devemos nos voltar às
substâncias segundas e aos acidentes
substanciais, ou seja, algo que, no
primeiro caso,

“dizem-se de um sujeito,
não estando em nenhum
sujeito”33

E, no segundo caso

“dizem-se de um sujeito e
estão num sujeito (...)”34

A espécie humana, ou seja, a essência


de “animal racional” é a predicação do

31 ARISTÓTELES. Órganon. 1, 1a 10
32 ARISTÓTELES. Órganon. 1, 1a 10
33 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1a 20-25
34 ARISTÓTELES. Órganon., 2, 1b 25
64
acidente substancial entre “animal” e
“racional” que se apresenta na forma
de sinonímia entre “Homem” e “Animal”
concomitante à substância segunda de
“racional”. Está num sujeito o fato
dele ser animal (e o animal existe em
si mesmo), mas, também, está no
sujeito, embora não exista em si mesma,
a “razão”

Neste contexto, devemos


considerar, ainda,

“quando algo é predicado de


outra coisa como de um
sujeito, todas as coisas
que são ditas do predicado
serão também ditas do
sujeito”35

Deve-se dizer, ainda de acordo com a


Teoria da Predicação, que “Homem” é do
“Gênero” animal e da “Espécie”
“racional”, porque

“as diferenças específicas


dos gêneros mais elevados
são predicados dos gêneros
que lhe são subordinados, e
assim todas as diferenças
específicas são diferenças
específicas do predicado

35 ARISTÓTELES. Órganon. 2000, 2, 1b 10


65
serão também diferenças do
sujeito”36

É neste sentido que também faz parte


da essência de “Homem” a existência de
uma vontade autodeterminada; isso
porquê (como veremos num momento
oportuno) o conceito de vontade
autônoma é consequência da existência
de uma “razão prática”.

Nestes termos é que Aristóteles


formula a Tábua das Categorias. Pode-
se compreender desta tábua a
composição (juízo assertórico) dos
conceitos (das coisas) de acordo com
as categorias, ou seja,

“Não dizemos que cada uma


das coisas que mencionamos,
em si mesma e por si mesma,
seja uma afirmação, mas é
através da sua combinação
umas com as outras que se
gera a afirmação. Com
efeito, ao que parece, toda
afirmação é verdadeira ou
falsa, mas de entre as
coisas que se dizem sem
qualquer ligação, nenhuma é
verdadeira ou falsa, como

36 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1b 20-25


66
por exemplo, homem, branco,
corre, vence”37

Temos um juízo assertórico, portanto,


a composição dos conceitos de “animal”
e “racional” na forma da definição de
que “O homem é o animal racional”.

Esse recurso à Teoria da


Predicação de Aristóteles é importante
para não darmos um salto lógico na
nossa argumentação. O que pretendemos,
aqui, foi demonstrar o porquê das leis
da natureza se aplicarem ao “Homem”
para além da mera suposição. As Leis
da Natureza se aplicam ao “Homem”
porque o conceito de “Homem” é
predicado do conceito de “animal”, a
aplicação destas leis, contudo, se
dará de modo distinto entre os animais
das espécies “racional” e
“irracional”. Na letra Aristotélica:

“sendo os gêneros distintos


e não subordinados uns aos
outros, as diferenças
específicas serão
especificamente
distintas”38

Continua o grego:

37 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 2a 5-10


38 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1b 15-2

67
“de fato, as diferenças
específicas dos gêneros
mais elevados são
predicados dos gêneros que
lhe são subordinados, e
assim todas as diferenças
específicas são diferenças
específicas do predicado
serão também diferenças do
sujeito”39

É por essa Teoria da Predicação que


devemos compreender que o “Homem”
possui uma “Vontade Livre”, isto é, que
independe das intuições – que é uma
predicação acidental, isto é,

“estando num sujeito, mas


não se dizem de nenhum
sujeito”40

Ou seja, se trata de uma “Vontade


Autodeterminada” porque a “Vontade” é
uma espécie do gênero racional. E não
há razão que não seja autodeterminada,
ou seja, livre (retomaremos o problema
da liberdade da razão posteriormente).

Como argumentamos acima, antes


deste breve desvio para melhor definir
os conceitos, a compreensão da
“Vontade Geral” e da “Vontade

39 ARISTÓTELES. Órganon., 2, 1b 20-25


40 ARISTÓTELES. Órganon. 1a 20-25

68
Específica” com intuito de encontrar o
termo médio entre ambas deve se dar de
forma empírica e, portanto, partir da
observação das manifestações das
Vontades. Foi, então, que se fez
necessário definir o próprio conceito
do sujeito detentor dessas vontades. E
o fizemos de acordo com a Teoria da
Predicação Aristotélica para
compreendermos que as “Leis na
Natureza” se aplicam ao “Homem”.

O campo do conhecimento que


estuda o conjunto das manifestações da
“Vontade” é a História. Termos chegado
no campo da história nos ascende um
chamado de que estamos seguindo uma
linha argumentativa coerente. Deve o
leitor se lembrar que definimos o
Direito a partir da Teoria
Convencionalista, isto é, situamos o
direito a partir da sua manifestações
inseridas na história, ou seja, o
direito é reflexo das manifestações
das vontades inseridas num tempo
cronológico e criado por um Pacto
Social que se situa num tempo lógico
que resulta da própria condição de
existência da espécie humana, qual
seja, a convivência de uma grande
multiplicidade de vontades
particulares. Nos termos da Teoria da
Predicação que utilizamos, não é
possível a existência de indivíduos da

69
espécie humana sem a existência da
própria espécie.

Como argumentamos, devido a


diferença específica do próprio homem;
a existência, enquanto espécie, numa
grande multiplicidade de indivíduos
dotados de vontades livres, apesar das
Leis da Natureza se aplicarem ao
“Homem”, ela ocorrerá de acordo com a
própria diferença específica da
espécie humana. Ao pensarmos a Teoria
da História, portanto, com intuito de
compreender a relação entre “Vontade
Individual” e “Vontade Geral” devemos
nos apoiar no alerta feito por Immanuel
Kant:

“Os homens, nos seus


esforços, não procedem de
modo puramente instintivo,
como os animais, e também
não como racionais cidadãos
do mundo em conformidade
com um plano combinado;
parece-lhes, pois, que
também não é possível
construir uma história
segundo um plano (como, por
exemplo, acontece entre as
abelhas ou os castores).
Não se pode conter uma
certa indignação quando se
contempla a sua azáfama no
grande palco do mundo; e
70
não obstante a esporádica
manifestação da sabedoria
em casos isolados, tudo, no
conjunto, se encontra
finalmente tecido de
loucura, de vaidade
infantil e, com muita
frequência, também de
infantil maldade e ânsia
destruidora”41:

É por isso que não podemos reduzir o


conceito de Autoridade da teoria
positivista, e nem conceito de Vontade
Geral, à mera concordância da maioria.
É justamente este caos da História
(conjunto das manifestações da Vontade
Humana) enquanto “tempo presente” que
impede que se entenda a história humana
como sendo um progresso calmo e linear.

Kant nos indica a impossibilidade


de se compreender a História como um
“plano”. Vejamos três definições de
plano: “sem desníveis”; “simples”; e
“retilíneo”. Fosse a história da
espécie humana algo plano, não
sobraria espaço para a manifestação da
“Vontade Livre”. Se recorrermos ao
conceito de Teleologia de Hegel e de

41 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
3.

71
Aristóteles, melhor entenderemos a
Teleologia da História em Kant.

O leitor mais atento deve ter


ponderado sobre a aparente contradição
entre “História” e “Universal” já que
é o próprio Kant que escreve, no início
do seu argumento, que não se trata de
algo “sem desníveis, simples ou
retilíneo”. História nada mais é do que
a área do conhecimento que estuda as
manifestações da vontade humana. E a
contradição é, apenas, aparente porque
Universal, enquanto predicado de
História, é um trabalho para o filósofo
de compreensão das condições de
existência da espécie humana. Neste
sentido, diz Kant:

Não há aqui outra


saída para o filósofo
porque, nos homens e no seu
jogo à escala global, não
pode pressupor nenhum
propósito racional peculiar
exceto inquirir se ele não
conseguirá descobrir uma
intenção da natureza no
absurdo trajeto das coisas
humanas, a partir da qual
seja possível uma história
de criaturas que procedem
sem um plano próprio e, no
entanto, em consonância com

72
um determinado plano da
natureza42

E esta ponderação se dá por meio da


busca de algo “Universal”, isto é, de
uma “Unidade”, devido às próprias
limitações da razão humana.
Trabalharemos melhor a delimitação da
razão posteriormente, mas, o que o
leitor precisa ter em mente é que o
“Homem” compreende o mundo empírico
(mundo real) de acordo com condições e
limitações impostas pela sua própria
razão.

“a lei da razão para buscar


a unidade é necessária,
pois sem ela não teríamos
razão e, sem ela, nenhum
uso coerente do
entendimento e, sem isso,
nenhuma marca suficiente de
verdade empírica …”43

A compreensão do mundo empírico é,


portanto, uma determinação da própria

42 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
4.
43 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.

Editora Vozes, 2015.

A651/B67
73
razão e condição necessária para
compreender a verdade empírica - do
mundo real na forma que aparece à
própria razão de acordo com, como
veremos, as categorias universais que
delimitam o funcionamento da própria
faculdade da razão pura.

Continuemos a definir as
características de “História
Universal”. Diz a primeira proposição:

“Todas as disposições
naturais de uma criatura
estão determinadas a
desenvolver-se alguma vez
de um modo completo e
apropriado”44

Esta primeira proposição é derivada


diretamente da Teleologia
aristotélica. O que se está dizendo,
em outras palavras, é a existência de
uma “causa eficiente”, na natureza,
voltada a transformação de potência em
ato. Extrai-se, daí, o conceito da
“Causa de Finalidade”. A finalidade de
uma um animal racional é o de
transformar sua própria potência – a
possibilidade de “vir-a-ser” (devir) –
em ato – em algo que existe. A “causa

44 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
5.
74
formal” é dada pela própria diferença
específica de “Homem” presente no
próprio conceito “Homem”, isto é, como
indivíduo da espécie racional. Por
fim, a “causa material” é determinada
pelo “gênero” “animal” – são,
portanto, as condições materiais
determinadas pelo próprias
determinações impostas ao gênero
animal, qual seja, a própria
subordinação às leis da natureza.

As condições de existência
impostas pelas leis da natureza das
quais o “Homem” está subordinado é
expandida na segunda proposição. Diz
Kant:

“No homem (como única


criatura racional sobre a
terra), as disposições
naturais que visam o uso da
sua razão devem
desenvolver-se
integralmente só na
espécie, e não no
indivíduo.”45

E esta limitação do desenvolvimento


integral do ato em potência também pode
ser explicada pela própria Teoria da

45 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
5.
75
Predicação de Aristóteles. O
desenvolvimento integral tornaria o
homem a própria manifestação de um
sujeito perfeito. Devemos entender
perfeito tal qual Tomás de Aquino, no
sentido do próprio vocábulo latino
“Perfectum” que nada mais é do que algo
“acabado” (com um fim em si mesmo em
que a causa se confunde com o efeito
na medida em que é uma causa não
causada). O “homem”, neste sentido,
seria o próprio “Universal”. Seria o
próprio Deus – ou “substância
primeira” em termos aristotélicos; ou,
o “Sumo Bem”, em termos de Aquino (isto
é, a única coisa em que ato e potência
se confundem integralmente). O
problema enunciado, aqui, em termos
kantianos, é o da impossibilidade de
que o “fenômeno empírico” se confunda
com a “Coisa em si”, isto é, com o
próprio conceito da coisa (retomaremos
este problema posteriormente).

Neste contexto, diz Kant:

“ela necessita de uma série


talvez incontável de
gerações, das quais uma
transmite à outra os seus
conhecimentos, para que
finalmente o seu germe,
ínsito na nossa espécie,
alcance o estádio de
desenvolvimento que é de
76
todo adequado à sua
intenção”46

É exatamente o que argumentei acima.


Em outras palavras, o que Kant diz é
que a própria subordinação às leis da
natureza (causa material) às quais o
“Homem” está sujeito é que torna
impossível a transformação integral da
potência para o ato, pois, esta
“completude do ato” é uma
característica apenas das coisas em si
– dos conceitos puros – impossível de
ser alcançada pelas coisas divisíveis
em gênero e espécie, pois, se isso se
trata da “diferença específica” das
coisas unas (em que o ato e a potência
se confundem integralmente).

Diz a terceira proposição:

“A natureza quis que o


homem tire totalmente de si
tudo o que ultrapassa o
arranjo mecânico da sua
existência animal, e que
não compartilhe nenhuma
outra felicidade ou
perfeição exceto a que ele,
liberto do instinto,

46 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
6.
77
conseguiu para si mesmo,
mediante a própria razão.”

Esta proposição, se lida a partir da


Teoria da Predicação, nada mais é do
que foi anunciado ao tratarmos de
“Acidentes Substanciais”, isto é, da
“diferença específica”; e é, a
proposição, derivada direta das duas
primeiras. O leitor deve-se lembrar
que argumentamos, a partir de
Aristóteles, que as Leis da Natureza,
quando aplicadas ao “Homem” se daria
de forma característica de acordo com
a própria diferença específica. Se,
portanto, homem é o “animal racional”
o desenvolvimento de suas disposições
naturais (determinadas pela Causa
Formal) se dará de acordo com as
próprias condições e limitações
estabelecidas por estas próprias
disposições naturais (proposição 01)
na medida em que a sua passagem de
potência para ato (causa final)
ultrapassará à sua existência animal
porque a causa formal de homem não se
limita ao conceito de animal, mas, há,
como vimos, a composição entre os
conceitos de “animal” e “racional”. O
“gênero” animal, portanto, se
desenvolverá de acordo com a
especificidade determinada pela
“espécie” racional. E, como vimos,
esta especificidade se dá na liberdade

78
de não se subordinar aos instintos por
meio da Liberdade da Vontade – ou, em
outros termos, da autodeterminação da
vontade. A diferença específica, desta
maneira, entre as espécies “racional”
e “irracional” está, justamente, na
possibilidade de se agir por meio de
uma “vontade autodeterminada” – pelo
exercício da razão – e, por isso, livre
em contraponto à diferença específica
de “irracional” que é a
impossibilidade de não se agir
conforme os instintos.

A vontade livre é, deve-se


destacar, portanto, a manifestação da
vontade de acordo com a autoridade
imposta pela razão. Aqui, vemos, a
importância da clarificação que
fizemos do conceito de autoridade
quando tratamos do direito positivo,
isso porque, jaz na autoridade da
vontade autodeterminada, sobre os
instintos, pelo exercício da razão
prática. Isso se entendermos a
autoridade como sendo, segundo a
definição do léxico, o “direito ou
poder de ordenar, de decidir, de atuar,
de se fazer obedecer”. Tomemos
emprestada a definição de “Poder” dada
por José Arthur Giannotti47, qual seja,

47GIANOTTI, José Arthur.O que é o poder?


Folha de São Paulo.

79
“poder é a possibilidade de se fazer
algo”. Conclui-se, portanto, que a
própria diferença específica de
“Homem” é a imposição de uma vontade
livre, isto é, - conforme retomaremos
posteriormente - autodeterminada pelo
exercício da razão prática, em
desfavor do mero exercício de uma
vontade determinada por um instinto
irracional que é caro aos animais
irracionais.

O que Kant argumenta, conforme


tentamos demonstrar, é que a diferença
específica da espécie humana se dá por
meio da manifestações da vontade que
haja de acordo com os propósitos
autodeterminados pelo exercício da
razão. Conforme, contudo, o
desenvolvimento pleno da faculdade da
razão se dá tão somente na espécie
(proposição 02), a História, enquanto
manifestação da multiplicidade das
vontades individuais, ocorre de forma
caótica, com desníveis, complexa e não
retilínea.

O percurso argumentativo que


decidimos tomar para compreender a
relação entre Vontade Individual e
Vontade Geral, apesar de tortuoso,
começa a se mostrar frutífero.
Havíamos determinado a necessidade de
encontrar um termo médio entre a
multiplicidade das vontades
80
individuais que nos levasse à Vontade
Geral. Para tanto, buscamos analisar
as manifestações da liberdade da
vontade por meio da Filosofia da
História porque é justamente esta a
área do conhecimento que estuda a
interação da multiplicidade da
Vontade. Iniciamos, para isso, da
própria gênese do Direito, ou seja, na
ciência inevitável que é gestada a
partir da convivência entre uma
multiplicidade de indivíduos dotados
de Vontades, vale frisar, individuais.
E analisamos este problema a partir do
conceito de História Universal porque
a universalização é condição, imposta
pela própria razão, para que seja
possível toda e qualquer compreensão
do mundo empírico. Definimos esta
universalidade da História não como
uma forma de compreensão da interação
da multiplicidade das vontades
individuais de forma plana, mas, como
a procura pela existência de um termo
médio na interação dessa
multiplicidade de indivíduos. Vale
relembrar a letra Kantiana sobre como
devemos entender este termo médio que
procuramos para entender a História
Universal:

“Não pode pressupor nenhum


propósito racional peculiar
exceto inquirir se ele não

81
conseguirá descobrir uma
intenção da natureza no
absurdo trajeto das coisas
humanas, a partir da qual
seja possível uma história
de criaturas que procedem
sem um plano próprio e, no
entanto, em consonância com
um determinado plano da
natureza”.48

Foi, aqui, que percebemos a grande


irreconciliável divórcio entre a
Teleologia proposta por Kant e a
Teleologia medieval clássica. Não se
deve compreender teleologia como sendo
o resultado de uma Vontade Divina, como
a manifestação, no plano temporal, de
desígnios metafísicos que pretende dar
ares de ordenamento nas intenções da
Natureza. Lembremos a Suma Teológica
para melhor compreender o conceito de
Teleologia rejeitado por Kant:

“A quinta via é tirada da


governança do mundo. Vemos
que as coisas que carecem
de conhecimento, como os
corpos naturais, agem para
um fim, e isso é evidente

48 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
6.

82
por agirem sempre, ou quase
sempre, da mesma maneira,
de modo a obter o melhor
resultado. Portanto, é
claro que eles alcançam seu
objetivo, não
fortuitamente, mas
intencionalmente. Ora, tudo
o que carece de
conhecimento não pode
mover-se para um fim, a
menos que seja dirigido por
algum ser dotado de
conhecimento e
inteligência; como a flecha
é direcionada pelo
arqueiro. Portanto, existe
algum ser inteligente por
quem todas as coisas
naturais são direcionadas
para seu fim; e este ser
chamamos de Deus”.49

O que Kant rejeita é a compreensão da


Teleologia presente na Filosofia da
História como sendo a passagem de ato
para potência de desígnios (vontade
suprema) metafísico encarnados na
forma de finalidade imposta pela

49 AQUINO, Thomas de. Summa Theologica.


Christian Classics; English Dominican
Province Translation edition, 1981.
Article 3, Question 2.

83
organização do Universo conforme
imposta por Deus a partir da sua
onisciência, onipotência e
onipresença.

Se nos voltarmos às Confissões50,


perceberemos que a rejeição de Kant ao
entendimento da “Causa Final” enquanto
ordenamento do mundo (por uma entidade
metafísica representada na figura de
Deus) é a própria finalidade imposta
pela existência de um ser eterno que
ordena o mundo. Por óbvio, a
compreensão de história pressupõe a
compreensão de tempo. A escolástica
clássica, na figura de Agostinho,
define o tempo entre a oposição entre
“eternidade e tempo”. Em suma, para
Agostinho, deve-se compreender a
eternidade não como a infinita
sucessão de tempo, mas, como sendo algo
fora do tempo51. Somado à isso, devido
à onisciência de Deus, é impossível que
este ser supremo ignore as coisas que
estão submetidas à temporalidade.

50 AGOSTINHO. Confissões. Penguin-


Companhia, 2017. Livro XI
51NOVAES, Moacyr; AYOUB, Cristiane Abbud.
Agostinho de Hipona. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de Sâo Paulo, 2007. P. 26.

84
O problema que levará Kant a
rejeitar da Teleologia proposta pela
escolástica clássica está na
impossibilidade da autodeterminação da
Vontade. Isso porque a existência
deste Deus, conforme proposto por
Agostinho, enquanto ser onisciente,
onipotente e eterno é a necessidade de
subjugação da vontade do “Homem” à uma
determinação externa, e,
consequentemente, obediência à leis
eternas e imutáveis. A querela está na
necessidade de depuração da Vontade do
homem em face à uma Vontade Divina52 o
que deixa a Vontade Humana à mercê da
Caridade de Deus53. O próprio conceito
de Vontade proposto por Agostinho
revela a distinção com a teoria
kantiana de autodeterminação racional
da vontade. Vontade é, para o filósofo
de Hipona,

A vontade é o locus
apropriado de nossa
responsabilidade moral
porque não está em nosso
poder se um objeto se
apresenta aos nossos

52 AGOSTINHO. Confissões. Penguin-Companhia, 2017.

cf. §§11 -15, §36, §40


53 NOVAES, Moacyr; AYOUB, Cristiane Abbud.

Agostinho de Hipona. Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de Sâo Paulo, 2007. P. 30.
85
sentidos ou intelecto, nem
se deleitamos nele (De
libero arbitrio 3.74; Ad
Simplicianum 1.2.21), e
nossas tentativas agir
externamente pode ter
sucesso ou falhar por
motivos fora do nosso
controle.54

E a razão da impossibilidade de se
controlar a Vontade está justamente na
organização teleológica do mundo de
acordo com os desígnios
(determinações) decorrentes da Vontade
de um ser Eterno, cuja organização do
mundo determina a orientação da
Vontade para a finalidade de

“entrar na cidade de Deus


ou nela persistir”55

E, completa a enciclopédia filosófica


da Universidade de Stanford

e termina com o destino


final (finis, a ser
entendido tanto eticamente
como “objetivo final”
quanto escatologicamente
como “fim dos tempos”) das

54

https://plato.stanford.edu/entries/august
ine/#WillFree . Item 7.4
55 AGOSTINHO.

86
duas cidades em condenação
eterna e bem-aventurança
eterna 56

E o “Homem” estará, sempre, à mercê da


Caridade da divindade porque

A mediação entre a
eternidade e o tempo não é
conseguida pelo mero
esforço humano, mas depende
do socorro divino57

Ou, nas palavras de Agostinho:

“Mas porque tua


misericórdia é melhor do
que as vidas, minha vida é
distensão, e tua direita me
susteve no meu Senhor,
mediador filho do homem,
entre ti, que és único, e
nós que somos múltiplos em
muitas coisas por muitas
coisas, para que por ele eu
apreenda, no qual eu também
sou apreendido”58,

56

https://plato.stanford.edu/entries/august
ine/#WillFree . Item 8
57 NOVAES, Moacyr; AYOUB, Cristiane Abbud.

Agostinho de Hipona. Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de Sâo Paulo, 2007. P. 53.
58 NOVAES, Moacyr; AYOUB, Cristiane Abbud.

Agostinho de Hipona. Faculdade de


87
A “Vontade Humana” será, por
conseguinte, determinada pela Caridade
de Deus a partir de seus desígnios
finalísticos para a sua Criação.

Após esse desvio para


compreendermos o problema que Kant
enfrenta ao fundar uma Filosofia da
História Universal, nos termos já
explicitados, temos que retomar à
Teoria da Predicação Aristotélica para
compreender argumento de Immanuel Kant
– que o leva a rejeitar a Filosofia
Escolástica Clássica da Medievalidade.
Como vimos, para Aristóteles, o que é
(o que existe) pode ser definido de
quatro modos. A partir de quatro
características: Conforme 1) às
substâncias segundas; 2) aos
acidentes; 3) aos acidentes
substanciais; e 4) conforme à
substância primeira. Já analisamos
três desses conceitos ao definir o
conceito de “Homem” como “animal
racional”. Nos voltemos, agora, aos
acidentes. É acidental aquilo que

“estando num sujeito, mas


não se dizem de nenhum
sujeito”59

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da


Universidade de Sâo Paulo, 2007. P. 53.
59 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1a 20-25

88
De acordo com a Teleologia escolástica
de Tomás de Aquino e Agostinho, como
vimos, a determinação da vontade não é
predicada do próprio conceito do
sujeito é, portanto, externa ao
próprio sujeito; a determinação da
vontade nada mais é do que um acidente
determinado por um desígnio da
Caridade – misericórdia, amor - de
Deus. Apesar, portanto, de ser uma
determinação eterna, não é um conceito
universal (retomaremos, depois, à
necessidade de que uma lei seja
Universal. Mas, para que se compreenda
o argumento, aqui apresentado, devemos
entender como lei universal àquela que
se aplica, de forma indubitável, à
todos). O Desígnio divino, mediado
pela Caridade, se recorrermos à letra
Agostiniana, claramente não é
universal porque a misericórdia
depende da mediação de Cristo60. Dado
que a virtude sem essa mediação deve
ser compreendida como vício61, uma vez
que a Fé na Revelação precede ao juízo
racional62, e é condição sine qua non
para o conhecimento da Verdade, e, por
conseguinte, do que é certo;
subordinação esta, da razão à fé,

60 AGOSTINHO. De civitate dei. 10.32


61 AGOSTINHO. De civitate dei 19.25
62 AGOSTINHO. De trinitate 13.2

89
apresentada na célebre citação
agostiniana:

“Entender para crer, Crer


para entender”

Misericórdia que, por sua vez, como


vimos, só pode se dar a partir da
Crença na autoridade das Escrituras63,
ou seja, por meio da Crença na Palavra
Revelada. É independente, como vimos,
consequentemente, da Vontade do
“Homem”.

O nosso caminho argumentativo se


mostra, mais uma vez, muito fortuito.
Porque o problema da recusa de Kant à
Teleologia Escolástica nos fez
retornar, agora com mais elementos
para melhor compreensão dos problemas
que apareceram no início do argumento.
Ilustramos, a partir da Antígona de
Sófocles que a gênese do Direito é o
próprio antagonismo irreconciliável
entre leis divinas (eternas) e leis
humanas (universais) gerado pela, como
vimos, necessidade determinada pela
convivência de uma grande
multiplicidade de indivíduos legada da
condição de existência do ser humano,
enquanto indivíduo, ser subordinada à
sua existência enquanto espécie isso
devido à sua subordinação às leis na

63 AGOSTINHO. De trinitate ib.

90
natureza (subordinação que também
ocorre caso a existência do “Homem”
ocorra por meio de um desígnio
criacionista metafísico de um ser
supremo, i. e., Deus).

Descobrimos essa necessidade de


subordinação do “Homem” na medida em
que confrontamos a predicação do
conceito de homem, “animal racional” à
Filosofia da História, esta entendida
como área do conhecimento que estuda
as manifestações da vontade. Foi nesse
passo argumentativo que se deduziu, a
partir da Teoria da Predicação, que a
esta vontade humana, necessariamente,
é uma vontade livre, isto é, uma
vontade autodeterminada pela razão. O
termo médio que procurávamos para
compreender o par de conceitos
“vontade individual e vontade geral”
está dado: é a manifestação da
autoridade da vontade autodeterminada
pela razão – devendo-se entender essa
autodeterminação como a possibilidade
de que esta vontade se manifeste de
modo outro que não a mera realização
mecânica de instintos (dado que esta
subordinação mecânica e, portanto,
inescapável aos instintos é a
diferença específica da espécie dos
animais irracionais).

Antes de prosseguirmos a
argumentação, é necessário recorrer à
91
Tábua das Categorias para compreender
o conceito de “Vontade Livre” e
“Vontade Determinada”, pois, esta
distinção, determinada pela Teoria da
Predicação, será fundamental à
compreensão do seguinte par de
conceitos: “Vontade individual” e
“Vontade Geral”. A compreensão destes
quatro conceitos é necessária para que
se entenda as três primeiras
proposições da Teoria da História que
abordamos até aqui. Este passo de
delimitação destes conceitos, à luz da
tábua das categorias, é necessário
para que se entenda a oposição entre
“lei divina” e “lei dos homens”,
oposição geradora da própria ciência
do direito. Será o caminho, portanto,
que irá conciliar as concepções
positivistas e naturalistas do Direito
que propusemos fazer como condição
necessária para a compreensão da
Filosofia do Direito de Immanuel Kant.

O ponto de partida deste prefácio


foi a constatação empírica da
existência de uma multiplicidade de
indivíduos que denominamos de “Homem”
e o definimos como “animal racional”.
A partir desta constatação
determinamos a existência de um
conflito resultante da conflito gerado
existência de uma multiplicidade de
indivíduos dotados de vontade. E

92
porquê trilhamos este caminho
argumentativo? Porque a cognição de
algo tem início no múltiplo das
sensações. Diz Kant, neste sentido:

Não há dúvida de que todo o


nosso conhecimento começa
com a experiência; pois de
que outro modo poderia a
nossa faculdade de
conhecimento ser despertada
para o exercício, não fosse
por meio de objetos que
estimulam nossos sentidos
e, em parte, produzem
representações por si
mesmos, em parte colocam em
movimento a atividade de
nosso entendimento,
levando-a a compará-las,
conectá-las ou separá-las
e, assim, transformar a
matéria bruta das
impressões sensíveis em um
conhecimento de objetos
chamado experiência? No que
diz respeito ao tempo,
portanto, nenhum
conhecimento antecede em

93
nós à experiência, e com
esta começam todos64.

Ressalva, o autor, todavia:

Ainda, porém, que todo o


nosso conhecimento comece
com a experiência, nem por
isso surge ele apenas da
experiência65

E mais

Pois se costuma dizer, de


muitos conhecimentos
derivados de fontes da
experiência, que nós somos
capazes ou participantes
deles a priori, na medida
em que não os derivamos
imediatamente da
experiência, mas sim de uma
regra universal que, no
entanto, tomamos emprestada
da própria experiência.66

O que quis destacar com estes recortes


do texto Kantiano é o caráter empírico

64KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.


Editora Vozes, 2015. B1.
65KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.
Editora Vozes, 2015. B1.
66KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.
Editora Vozes, 2015. B2.

94
da cognição do “Homem”. Não se trata,
contudo, de um empirismo radical, ou
seja, em que todo o conhecimento só é
possível a partir de uma intuição do
sensível (embora o conhecimento se
inicia a partir da intuição do
sensível).

Para compreender essa dualidade


da cognição é preciso esclarecer o
seguinte. Apesar da cognição humana
ter início na intuição do empírico,
isso não significa dizer que a cognição
se limita ao empírico. Mas, o que
significa dizer que “se participa de
conceitos derivados da experiência à
priori a partir da derivação de uma
regra universal derivado da própria
experiência?” Pare responder esta
pergunta devemos recorrer ao próprio
conceito de Razão – que é definida por
Kant como

“a faculdade da unidade das


regras do entendimento sob
princípios”67

Se recorrermos à Aristóteles o
problema do “entendimento de acordo
com princípios” começará a ficar mais

67 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.

Editora Vozes, 2015.

A302/B359
95
claro. “Princípios” podem ser
compreendidos como sendo os “elementos
básicos e elementares de algo”. E este
princípio absolutamente à priori em
relação à razão (diferença específica
de “Homem”) é a lógica, isso porque a
lógica não trata das coisas, mas, das
condições de possibilidade do próprio
exercício da razão pura68. A lógica é,
portanto, a diferença específica da
razão. Neste sentido, deve-se
compreender a lógica como a causa
formal da razão porque ela nada mais é
do que o instrumento que dá forma à
própria razão na medida em que é ela
que organiza as condições de
possibilidade para a cognição.

Retomaremos os três princípios


fundamentais da lógica posteriormente.
Também chamados de Leis Fundamentais
do Pensamento69. Agora, basta enumerá-
los. São eles, o princípio da
identidade, o princípio da não
contradição e o princípio do terceiro
excluído. O princípio da identidade
postula que uma coisa é igual a si
mesma, ou seja, “o que é, é”; “aquilo
que existe, existe”; ou, ainda, “a=a”.
O princípio da não contradição, por sua

68 ARISTÓTELES. Órganon. I 2 71b 9


69 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro III.

96
vez, é derivado do princípio da
identidade, pois ele afirma a
impossibilidade de duas afirmações
contraditórias serem verdadeiras, ou
falsas, simultaneamente. Não se pode,
portanto, dizer que algo existe e não
existe simultaneamente. Já o princípio
do terceiro excluído é a necessidade
que no caso de uma proposição
contraditória à outra (uma que negue a
outra) uma seja verdadeira e a outra
falsa.

É, conclui-se, neste sentido dado


pelas leis do pensamento que se deve
compreender a possibilidade de que é
possível participar de princípios
derivados da experiência de forma à
priori.

Neste contexto, se diz, também,


da razão:

“a lei da razão para buscar


a unidade é necessária,
pois sem ela não teríamos
razão, e sem ela, nenhum
uso coerente do
entendimento, e, sem isso,
nenhuma marca suficiente de
verdade empírica...”

Esta lei que governa a razão, isto é,


da necessidade da razão buscar a
unidade nada mais é do que a exigência
lógica – esta enquanto conceito
97
absolutamente a priori da razão – de
subordinação da razão à própria
lógica, na medida em que a lógica é a
causa formal da razão pura. Nestes
termos, a lei que governa a razão é a
da busca pela própria existência. Isso
porque a unidade é a

a substância primeira, que


não é predicado, mas sempre
sujeito, pois “nem está num
sujeito nem se diz do
sujeito (...), em suma, as
coisas indivisíveis
(ἄτομος) e numericamente
unas, não são ditas de
nenhum sujeito”70

A substância primeira é o substrato


(ὑποκείμενον) aquilo de que se fala e
o que única e exclusivamente existe de
fato. O exercício da razão é, portanto,
a busca pela coisa que é igual a si
mesma na medida em que é deste
princípio da identidade, inerente à
substância, que é possível a
determinação da verdade empírica.
Substância, por sua vez, é o que é
sempre sujeito, ou seja, a própria
manifestação individual do conceito
que não é predicado. Vamos ao texto da

70 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1b 5-10

98
primeira crítica para clarear este
argumento de Kant:

nós não possamos ter nenhum


conceito do entendimento,
portanto também nenhum
elemento para o
conhecimento das coisas, a
não ser na medida em que a
esse conceito possa ser
dada a intuição
correspondente; que,
portanto, nós não possamos
ter qualquer conhecimento
das coisas em si mesmas,
mas apenas enquanto sejam
objetos da intuição
sensível, i. e., fenômenos71

A cognição, portanto, só é possível a


partir da mediação do fenômeno pela
intuição porque somente o fenômeno
pode ser intuído. O conceito é,
portanto, aquilo que pode ser dito das
coisas tais quais elas aparecem à
razão.

Devemos recorrer ao princípio da


identidade para entender o porquê da
limitação da razão à cognição dos
fenômenos. Algo, necessariamente, é
igual a si mesmo, diz a lei do

71KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.


Editora Vozes, 2015. B 26

99
pensamento. E esta identidade da coisa
consigo mesma é condição para a
existência desta mesma coisa. Neste
sentido devemos compreender que a
unidade entre a multiplicidade das
partes compõem o todo, ou seja, a coisa
é composta pela unidade de suas partes,
pois, caso contrário, a coisa seria
diferente de si mesma. É o princípio
lógico da identidade que limita a
cognição da razão aos fenômenos; isso
porque, na medida em que a intuição
sensível é predicado da razão, a
diferença dos acidentes substanciais
do predicado também se aplicam ao
sujeito. Na letra aristotélica, temos:

“de fato, as diferenças


específicas dos gêneros
mais elevados são
predicados dos gêneros que
lhe são subordinados, e
assim todas as diferenças
específicas são diferenças
específicas do predicado
serão também diferenças do
sujeito”72

Em outras palavras, Aristóteles define


essa relação entre sujeito e predicado
da seguinte forma:

72 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1b 20-25

100
“quando algo é predicado de
outra coisa como de um
sujeito, todas as coisas
que são ditas do predicado
serão também ditas do
73
sujeito”

O Princípio da Identidade, vale


ressaltar, é o ponto de partida da
Teoria da Predicação, isso porque
aquilo que existe, necessariamente,
pode ser definido; uma vez que é
impossível dizer algo sobre o que não
existe, de acordo com o princípio do
terceiro excluído, pois seria uma
contradição atribuir um predicado a
algo que é inexistente, na medida em
que o predicado deve estar contido numa
substância. A substância é, por
conseguinte, o substrato da
existência.

Lembremos a definição de razão:

“a faculdade da unidade das


regras do entendimento sob
princípios”

Se só se pode dizer algo daquilo que


existe de acordo com uma unidade das
regras do entendimento de acordo com
princípios; e, estando, a existência
atrelada à substância; a cognição está

73 ARISTÓTELES. Órganon. 2, 1b 10

101
subordinada às condições de
possibilidade de apreensão desta
substância; na medida em que a
apreensão da substância se dá a partir
da intuição do múltiplo do sensível e
a intuição é predicada da razão, devido
esta subordinação entre intuição e
razão, a razão é limitada à cognição
do múltiplo do sensível de acordo com
as regras da intuição determinadas
pelas Leis (princípios) do pensamento
– isto é, do que é determinado à razão
de forma absolutamente à priori nos
termos da lógica – que é o instrumento
da razão. A diferença específica,
portanto, da intuição, embora dependa
do empírico, está presente de forma a
priori na razão; porque, na medida em
que é uma predicação do modo de
acidente substancial deve-se
compreender a intuição como sendo a
expressão da causa formal da razão.

Se, por um lado o exercício da


Crítica circunscreve o exercício da
razão especulativa aos limites da
experiência; por outro, é essa
delimitação da razão que possibilita o
uso prático da razão74. Esta conclusão
é consequência direta da Teoria da
Predicação porque ao se delimitar o

74KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.


Editora Vozes, 2015. B XXIV

102
exercício da razão aos próprios
limites da substância que a razão é
predicada; o uso prático da razão se
torna algo absolutamente necessário.
Para compreender essa necessidade
absoluta do uso prático da razão,
devemos recorrer à primeira proposição
da Filosofia da História. Cito:

Todas as disposições
naturais de uma criatura
estão determinadas a
desenvolver-se alguma vez
de um modo completo e
apropriado.75

Se as disposições naturais de uma


criatura estão obrigadas a
desenvolver-se, e a disposição natural
– isto é, o exercício da razão - do
“Homem” está limitada à sensibilidade,
isto é, está atrelada à substância, ou
seja, ao próprio indivíduo humano
enquanto criatura que existe de acordo
com as limitações da experiência
sensível, o desenvolvimento da razão
ocorrerá de acordo com as próprias
condições de existência dos indivíduos
estabelecidas pelas leis da natureza;
e só há um modo possível de exercício

75 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
6.

103
da razão limitada ao mundo empírico –
e que tenha, como vimos, como ponto de
partida para a cognição a própria
experiência – que é a determinação da
vontade para lidar com o conflito
gerado pela existência, inequívoca, de
uma grande multiplicidade de vontades.
E a existência deste conflito de uma
multiplicidade de vontades individuais
ocorre porque o homem enquanto
indivíduo só existe mediante a
existência da sua própria espécie.

Esta limitação da razão aos


limites do empírico tem como
consequência a própria necessidade
absoluta de exercício da razão prática
pura, isto é, da determinação da
vontade pela razão. Vejamos o porquê
disso.

A forma de se entender a relação


entre coisa em si e fenômeno é
controversa. O problema se dá na
interpretação do Idealismo
Transcendental. A primeira forma76 de
se interpretar a relação entre coisa
em si e fenômeno postula a existência
de dois objetos existentes de acordo
com duas classes distintas entre si. O
problema desta interpretação é que ela
nega o próprio projeto da Crítica, qual

76 Christian Garve (1742–1798) and J. G.


Feder (1740–1821)
104
seja, a delimitação da razão nos
limites da experiência. Neste sentido,
ao se defender que o fenômeno existe
tão somente quanto representação
mental, nega-se a o própria empiria ao
fenômeno. Ao se reduzir o Idealismo
Transcendental à uma fenomenologia
nega-se o próprio conceito de intuição
do múltiplo do sensível. É uma chave
de leitura, portanto, contraditória na
medida em que nega o próprio conceito
de razão postulado por Kant, qual seja,
a unidade das regras do entendimento a
partir de princípios.

Me parece mais frutífera, e


coerente, a chave de leitura do
Idealismo Transcendental que propõe
que há dois aspectos de interpretação
de uma mesma coisa, isto é, que a coisa
existe sob dois diferentes aspectos.
Pode-se compreender estes aspectos a
partir da interpretação de que o
Idealismo Transcendental é uma teoria
metafísica77 ou que é uma teoria
epistemológica. O problema da tese
metafísica é que ela atribui ao
fenômeno uma existência espaço
temporal, o que é negado pelo próprio
Kant na medida em que o espaço e o
tempo são formas da intuição. Já a
proposta de compreensão do Idealismo

77 Langton 1998
105
Transcendental enquanto uma
epistemologia me parece ser a forma de
leitura correta da relação entre o par
de conceitos de fenômeno e coisa em si.
Isso porque se por um lado é possível
conhecer o fenômeno, por outro, é
possível, enquanto coisa em si,
apenas, pensa-lo.

Vou além, deve-se recorrer,


novamente, à Teoria da Predicação para
compreender completamente essa relação
epistemológica entre coisa em si e
fenômeno. Do par de conceitos em
questão, diz Kant, deve ser possível
pensar e conhecer. A predicação de um
conceito nada mais é do que a
composição entre substâncias. Temos,
portanto, a condição imposta por Kant
à coisa em si e ao fenômeno que é a
existência dos próprios conceitos
enquanto eles são definíveis. Se
recorrermos ao texto kantiano, teremos
evidências que o recurso à Teoria da
Predicação é a trilha argumentativa
correta porque o próprio autor rejeita
que a relação entre coisa em si e
fenômeno seja uma relação de causa
eficiente78. O que há, na verdade, é
uma predicação por analogia, isto é,
aquela em que não se confunde o ser e

78KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.


Editora Vozes, 2015. B XXVII

106
a intenção. É uma predicação que se diz
do sujeito, mas, que não está no
sujeito, ou seja, é uma predicação da
substância primeira. Trata-se de uma
predicação per se, ou seja, que se dá
segundo a própria razão.

Por fim, é preciso considerar o


princípio da identidade, isto é, uma
coisa só pode ser igual a si mesma e
não ao outro. É necessário que fenômeno
e coisa em si não sejam a mesma coisa
porque a coisa em si e fenômeno tem
causas finais distintas.

A partir da diferenciação de
coisa em si e fenômeno, haverá, sempre,
uma dupla cognição dos conceitos. Uma
subordinada ao fenômeno, ou seja, às
leis da natureza, e outra de acordo com
o seu pertencimento à coisa em si.
Neste sentido, se tomarmos o conceito
de vontade, argumenta Kant, no
fenômeno (a ação visível) pode ser
pensada como necessariamente conforme
às leis naturais, portanto como não
livre, e, de outro lado, enquanto
pertencente a uma coisa em si mesma,
como não subordinada àquelas, portanto
como livre, sem que suceda aí qualquer
contradição79

79KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura.


Editora Vozes, 2015. B XXVIII

107
Feita a distinção de coisa em si
e fenômeno e o duplo grau de cognição
dos conceitos, retomemos o nosso fio
condutor da conceituação da História
Universal. Vejamos a quarta
proposição:

O meio de que a natureza se


serve para obter o
desenvolvimento de todas as
suas disposições é o
antagonismo destas na
sociedade, na medida em que
ele se torna, finalmente,
causa de uma ordem legal
das mesmas disposições.80

A digressão feita para compreender o


duplo grau de cognição dos conceitos
se mostra fortuita para entender a
quarta proposição. Isso porque é a
partir do antagonismo da
multiplicidade dos indivíduos que
surge uma disposição para um
ordenamento legal. Se por um lado
devemos compreender o homem a partir
da sua disposição gregária, já que é
impossível sua existência enquanto
indivíduo a não ser a partir da sua
integração na própria espécie; por

80 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
7.

108
outro lado, os indivíduos possuem um
ímpeto à realização dos próprios
desejos egoístas. Essa aparente
contradição é fundamental para
compreender o ímpeto à celebração do
Contrato Social. Kant chama essa
aparente contradição de insociável
sociabilidade.

É desse antagonismo entre


vontades egoístas e propensão à viver
em sociedade que surge a cultura. É da
insociabilidade egoísta dos homens que
surge a necessidade de formação de uma
sociedade. A partir do conflito entre
esse caráter antagônico da insociável
sociabilidade, diante do conflito
entre a multiplicidade das vontades, e
do ímpeto egoísta de se destacar dentre
os demais indivíduos da sua espécie,
que se torna possível o
desenvolvimento das disposições
naturais do homem; isto é, do
desenvolvimento da sua razão
(lembrando que essa racionalidade é a
diferença específica de homem). Neste
sentido, diz Kant:

desenvolvem-se a pouco e
pouco todos os talentos,
forma-se o gosto e, através
de uma incessante
ilustração, o começo
transforma-se na fundação
de um modo de pensar que,
109
com o tempo, pode mudar a
grosseira disposição
natural em diferenciação
moral relativa a princípios
práticos determinados e,
por fim, transmutar ainda,
deste modo, num todo moral
uma consonância para formar
sociedade, patologicamente
provocada81

O desenvolvimento da moral é,
portanto, consequência do uso prático
da razão exigido pelo conflito gerado
pela multiplicidade de vontades a
formação da sociedade, dado que a moral
é a forma natural de existência e
desenvolvimento da própria razão
prática enquanto potencialidade da
espécie humana que deve se desenvolver
segundo às leis da natureza.

Isso nos remete à quinta


proposição:

O maior problema do género


humano, a cuja solução a
Natureza o força, é a
consecução de uma sociedade

81 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
8.

110
civil que administre o
direito em geral82.

O leitor atento observará que nos


encontramos com o ponto de partida
desde prefácio, qual seja, a criação
de uma sociedade civil enquanto
disposição natural e necessária da
espécie humana. Vamos à letra de
Immanuel Kant:

Como só na sociedade e,
claro está, naquela que tem
a máxima liberdade, por
conseguinte, o antagonismo
universal dos seus membros
e possui, no entanto, a
mais exata determinação e
segurança dos limites de
tal liberdade para que
possa existir com a
liberdade dos outros - como
só nela se pode obter a mais
elevada intenção da
Natureza, posta na
humanidade, a saber, o
desenvolvimento de todas as
suas disposições, a
Natureza quer também que
ela própria realize este

82 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
9.

111
seu fim, bem como todos os
fins do seu destino: por
isso, uma sociedade em que
a liberdade sob leis
exteriores se encontra
unida no maior grau
possível com o poder
irresistível, isto é, uma
constituição civil
perfeitamente justa, que
deve constituir para o
gênero humano a mais
elevada tarefa da Natureza;
porque só mediante a
solução e o cumprimento de
semelhante tarefa pode a
Natureza levar a cabo os
seus restantes intentos
relativos à nossa espécie.83

O que pretendi fazer neste longo


prefácio foi estabelecer as condições
de possibilidade de interpretação do
Direito Transcendental à luz da
Filosofia da História para que seja
possível interpretar, a partir de
fundamentos teóricos sólidos, não só
uma Filosofia do Direito a partir de
seus conceitos de forma abstrata da

83 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.P.
9.

112
celebração do Contrato Social mediante
a promulgação de uma constituição
fundante do direito civil, mas,
também, analisar a própria conjuntura
histórica brasileira diante de
preceitos da História Universal. Isso
porque entendo que os preceitos
estabelecidos em Ideia de uma História
Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita são fundamentais para
entender os limites da razão prática e
da razão pura estabelecidos pelo
projeto do projeto da Crítica kantiana
enquanto alicerce para uma filosofia
da ciência. Se formos bem sucedido
neste longo projeto, o que pretendemos
fazer é analisar o conceito de História
Universal enquanto método científico,
de acordo com uma coerência interna das
Filosofia Kantiana, de análise do
contexto histórico brasileiro à Luz de
uma busca pela Paz Perpétua.

Neste contexto, o que precisa


ficar claro ao leitor deste prefácio é
a dedução de que o estabelecimento de
uma sociedade civil, isto é, de um
Estado de Direito é consequência
necessária da própria condição humana
enquanto animal racional e que a busca
por um Estado Justo é fundamental para
o desenvolvimento das potencialidades
humanas estabelecidas pela natureza.
Ou seja, o desenvolvimento da moral é

113
condição estabelecida pela natureza
racional da espécie humana com intuito
de realização da potência racional
mediante a perpetuação de uma
sociedade justa.

Alertei, ao leitor, que por se


tratar de uma pesquisa de cunho
filosófica e científica, haveriam
momentos de maior dificuldade na
dedução dos conceitos. Mas, esta
densidade de conceitos na construção
de um argumento filosófico é
fundamental da Filosofia enquanto
ciência histórica. O leitor que não
está familiarizado com um argumento de
filosofia não deve se assustar, pois,
estes conceitos apresentados no
prefácio se tornarão claros ao
decorrer das próximas páginas. É
importante, aqui, o leitor perceber
que esta densidade e extensão de
conceitos são fundamentais à uma
pesquisa filosófica e científica.

Iniciamos este livro, na Carta ao


Leitor, analisando o mote de campanha
de Bolsonaro (conheceis a verdade e a
verdade vos libertará); a análise a
partir de um método caro à Filosofia é
complexa. Isso porque o que se pretende
é uma análise científica da
Bolsonarismo. E por não se tratar de
uma ciência da Natureza, como, por
exemplo, a Física ou a Biologia, é
114
impossível colocar o Bolsonarismo num
tubo de ensaio e dali analisar sua
composição química de um fenômeno
político e social. Como, também, não
se trata de uma pesquisa meramente
jornalístico, isto é, a coleta de fatos
e acontecimentos e o seu posterior
relato; este livro não pode se resumir
à uma simples enumeração de fatos.

O desconhecimento de uma
investigação filosófica, por quase a
totalidade das pessoas, mostra a
falência da Academia e dos
departamentos de Filosofia. É um mote
de que a filosofia serve para se pensar
criticamente, mas, caso se pergunte a
qualquer aluno do ensino básico o que
é pensar criticamente, quase todos
darão respostas vagas e incoerentes.

O pensamento crítico nada mais é


do que um exercício de pensamento em
que se concatena as ideias a partir de
conceitos inerentes à um sistema de
pensamento. O dicionário nos define
sistema como: “Conjunto metódico de
princípios interdependentes, sobre os
quais se estabelece uma doutrina, uma
crença ou uma teoria”.

Ora, a nossa metodologia de


análise, isto é, a Filosofia Crítica
estabelecida por Kant se mostra
fortuita. Pois, o pensamento crítico

115
nada mais é do que “uma análise do
mundo a partir de princípios”.

Se iniciamos este livro a partir


da mera constatação de um fenômeno
social, isto é, a da existência de um
movimento político denominado por
“bolsonarismo”, vemos o quão difícil é
fazer uma análise filosófica e
científica de um fato social. Ainda na
Carta ao Leitor, tentamos definir este
movimento político pelo simples slogan
professado, à exaustão, por Bolsonaro;
isto é, a de que o Bolsonarismo seria
um movimento social portador da
Verdade que iria libertar os
Brasileiros do comunismo e do petismo.
Logo na Carta ao Leitor encontramos
contradições e impossibilidades para
compreender a ascensão de Bolsonaro
como evidência da Vontade de Deus.

A vantagem de uma análise de uma


ciência histórica de cunho filosófico
de um movimento político é o de nos
municiar de uma série de princípios
para a compreensão deste fenômeno
social. O problema desse método está
na densidade necessária para a
determinação dos conceitos de análise,
mas, os ganhos são incomensuráveis.

O que nós fizemos, de forma


extensa neste prefácio, foi
consequência da rejeição à explicação

116
religiosa do Bolsonarismo. No título
deste livro, determinamos o nosso
objeto de investigação, qual seja, a
“ascensão e a insurreição de
Bolsonaro”, mas, como disse, não se
trata de um trabalho jornalístico em
que nos bastaria definir os principais
fatos políticos dos últimos anos. O que
nós queremos, aqui, é apresentar ao
leitor uma visão crítica cara ao
exercício da filosofia para a
compreensão do mundo.

Veja que não se deve entender o


trabalho jornalístico de forma
pejorativa como sendo um trabalho
raso. Pelo contrário. É um passo
fundamental para uma análise crítica
do mundo. São os jornalistas que nos
alertam para os fatos do mundo. Neste
sentido, o trabalho do jornalismo é
fundamental ao exercício da filosofia
enquanto método de pensamento crítico
sobre o mundo; pois, sem ele, não há
substrato para o exercício da
Filosofia.

O que tentamos estabelecer neste


Prefácio são os conceitos fundamentais
para a análise do Bolsonarismo; ao
rejeitarmos a explicação religiosa,
isto é, de que a eleição de Bolsonaro
se trata de uma Vontade de Deus; nos
descobrimos diante de um problema
absolutamente complexo. O que fizemos
117
neste prefácio foi estabelecer um
terreno fértil para a análise do
Bolsonarismo.

Neste sentido, vimos no Corolário


que o nosso objeto de análise, a
“insurreição do Bolsonarismo”
significa, e não é preciso grande
exercício argumentativo para
compreender, uma revolta contra uma
ordem social estabelecida; isto é, um
ataque à Constituição de 1988 e do
resultado das eleições. O que fizemos
no prefácio foi estabelecer que esta
revolta, para ser compreendida de
forma crítica, deve ir ao próprio
conceito de sociedade civil. A partir
desta constatação, o que fizemos foi
deduzir o conceito de uma Constituição
como sendo o de Vontade Geral de uma
sociedade. E, então, observamos que
este conceito de Vontade Geral é
predicado do próprio conceito de homem
enquanto animal dotado de razão.

Neste percalço argumentativo,


vale ressaltar, que partiu da mera
rejeição à explicação religiosa para a
ascensão de Bolsonaro, tivemos que nos
voltar ao próprio conceito
estabelecido pelos filósofos
contratualistas para explicar um
fenômeno social. Em outras palavras,
quando rejeitamos a explicação do
Bolsonarismo como sendo fruto da
118
Vontade de Deus, nos restou dois fios
condutores para a nossa investigação:
a filosofia do Direito, entendendo o
Direito como sendo a ciência de
mediação social de conflitos; e a
própria gênese da sociedade, isto é,
do embate entre leis da religião e leis
dos homens.

Neste contexto, a partir do breve


recurso aos Contratualistas, vimos que
o ponto de partida da nossa
investigação seria a própria Filosofia
da História, pois, é por meio dela que
se analisa fatos históricos passados
através de um arcabouço conceitual
estabelecido na História das Ideias.

E foi a própria Filosofia da


História, conforme estabelecida por
Kant, que nos legou a metodologia e de
onde partiríamos a nossa investigação:
da Filosofia do Direito enquanto
mediadora dos conflitos gerados pela
própria existência de uma sociedade
determinada por um Contrato Social. E
determinamos, assim, que nossa
investigação, por se tratar de uma
ponderação científica, deveria
encontrar bases no mundo empírico
enquanto fenômeno das interações
humanas.

Estabelecemos, portanto, um
objeto de investigação, um método e,

119
por fim, estabelecemos os axiomas
fundamentais da nossa investigação.

IV

Introdução

Um leitor desavisado sobre a


magnitude da proposta deste livro,
certamente, deve ter se assustado com
a digressão, no Corolário e no
Prefácio, à conceitos centrais do
problema que pretendemos analisar. Se

120
pretendemos analisar o fato social da
ascensão e insurreição de um movimento
político no Brasil – que se
convencionou chamar de Bolsonarismo
devido à centralidade da figura de Jair
Messias Bolsonaro enquanto maior ator
e beneficiário deste movimento de
massas – os recursos a um Corolário e
um extenso prólogo se mostram não
somente necessário, mas, também,
fortuitos. Isso porque se a história
trata, por óbvio, de eventos passados,
uma reflexão do bolsonarismo, enquanto
fenômeno social complexo, parte de
duas premissas básicas. Uma primeira é
a de que o bolsonarismo chegou ao poder
e uma segunda é de que este movimento
se insurgiu contra algo; como fica
claro e é desnecessário, aqui,
delongar sobre isso. Este algo é a
própria organização social, na medida
em que se atacou e defenestrou a sede
dos três poderes da República
Federativa do Brasil no dia 08 de
janeiro de 2023. Se no Corolário
definimos que o documento fundamental
à organização de um país é a sua
própria Constituição – não atoa uma
Constituição é chamada de Lei Básica,
Lei Maior ou de Carta Magna -; foi no
Prefácio que ao analisarmos os
fundamentos de uma Constituição é que
definimos de que se trata ao próprio
Contrato Social – termo da filosofia
121
política – a que esta lei fundante se
refere.

Poderíamos, apenas, enumerar


acontecimentos históricos, seu local,
data e horário. Mas, teríamos, apenas,
uma lista de fatos sem uma concatenação
entre si. Nada de proveitoso sairia de
um trabalho desses. O efeito prático
desta digressão foi o de colocar em
perspectivas reais o tamanho do
problema que nos propusemos analisar
no título deste livro. O que parecia
uma questão de um simples elencar de
fatos sociais, logo se revelou ser uma
questão absolutamente complexa. Pois,
uma série de eventos históricos que
culminou na ascensão e posterior
insurreição bolsonarista, é um
fenômeno social complexo e, portanto,
uma resposta simples seria, apenas,
uma tentativa preguiçosa, inútil e
errada para compreender um problema
complexo; afinal, como vimos, e, agora
podemos relacionar a proposta do livro
de compreensão do bolsonarismo aos
problemas que demonstramos no
Corolário e no Prefácio; não se trata
de uma simples depredação de prédios
públicos. Mas, de um movimento de
massas que contraria a existência do
próprio Contrato Social da República
Federativa do Brasil.

122
Para compreender a proposta deste
livro é necessário, primeiro,
compreender o trabalho prático do
filósofo no mundo contemporâneo.
Entendo que a técnica, no sentido grego
de tencné, da filosofia deve ser
dividida em três momentos. Momentos
não excludentes, mas, complementares.
O primeiro, e mais próximo ao que se
propõe ensinar nas Universidades, é o
de historiador das ideias. Ou seja, é
o momento em que o “operador da
filosofia” – e não devemos o sentido
do trabalho do filósofo como o de
bacharel em filosofia ou de licenciado
em filosofia. Essa confusão apenas
limita a filosofia enquanto ferramenta
de compreensão do mundo na forma de uma
“ciência humana” à uma reserva de
mercado burocrática. Esta redução é o
que os filósofos da Escola de Frankfurt
chamaram de instrumentalização da
razão. É, num clichê, uma redução da
sabedoria humana à aplicação
burocrática. Penso que esta redução da
filosofia à burocracia das
licenciaturas e dos bacharelados é
contrário a própria razão de existir
da filosofia enquanto ciência das
humanidades, pois, trata a filosofia,
enquanto instrumento da razão, como se
fosse um simplório conjunto de
peripécias do pensamento com intuito
de cumprir um jogo de espelhos
123
preestabelecidos pelas tecnicidades do
mundo acadêmico. Não passa, à meu ver,
de uma forma de retirar da filosofia o
seu papel de reflexão crítica do mundo
e à ela legar, apenas, o cumprimento
de burocracias das universidades. É
uma reserva de mercado dos diplomas. É
negar a própria gênese da filosofia,
pois, transforma a filosofia em
discurso de autoridade dos indivíduos
com diploma. Essa tentativa é a negação
do próprio projeto de filosofia de
Sócrates e Platão: estabelecer
reflexões sobre a Verdade que não sejam
mero recurso ao discurso de
autoridade. O que importa ao filósofo
é a Verdade dos Fatos e não o argumento
de que algo é verdade porque foi
pensado por alguém que tenha um
diploma. É claro que não se nega o
papel fundamental das Universidades
como ferramenta necessária para o
desenvolvimento do conhecimento
humano. O problema que apontamos é
reduzir a importância e a existência
do conhecimento humano às burocracias
universitárias. Como argumentei
anteriormente, a razão humana se
desenvolve plenamente enquanto
atributo da espécie, então, o que
argumento não é a inutilidade das
universidades brasileiras, mas, na
verdade, o que faço é uma constatação
do estado atual da Academia, em
124
especial, a brasileira, de clausura
numa torre de marfim em que o
conhecimento filosófico e científico é
tratado como um dogma, quasi,
religioso em que só se tem acesso por
meio dos rituais reservados aos
diplomados. Qualquer um que já
frequentou uma Universidade brasileira
pode constatar um problema quase
universal: discussões inócuas à vida
dos indivíduos não iniciados. Na
filosofia, minha área de formação, é
possível ter os mais altos méritos
acadêmicos a partir da reflexão da
“conjunção ‘e’ na definição de povo de
Cícero” ou das mais diversas formas de
se traduzir um termo em um parágrafo
específico de uma determinado livro de
um autor qualquer, mas, ser incapaz de
se fazer uma reflexão conceitualmente
fundamentada sobre a conjuntura
histórica do país. Este problema de
clausura dos universitários em Torres
de Marfim do conhecimento diante da
produção de conhecimento que não diga
respeito à vida em sociedade não deve
ser entendido como sendo um sinal da
inutilidade do conhecimento
universitário brasileiro. Mas, como um
déficit na formação dos bacharéis e
licenciados do Brasil. O que quero
dizer é que há um problema gravíssimo
nas Universidades brasileiras quando
há colisores de partícula capazes de
125
explicar a gênese do Universo, mas, ao
mesmo tempo, os cidadãos “não
iniciados” sequer acreditam que a
Terra é um globo. Ou, em outros termos,
de que adianta o desenvolvimentos de
vacinas com alto grau de inovação
tecnológica se, numa pandemia, boa
parte da população tem medo de se
vacinar por acreditar em teorias da
conspiração de que vacinas alteram o
DNA dos indivíduos? Este é o maior
problema do desenvolvimento técnico,
filosófico e científico do mundo
contemporâneo: a universalização do
conhecimento com os devidos rigores da
Academia que não alcance, apenas, os
iniciados da própria academia.
Observe, caro leitor, que os exemplos
utilizados, seja sobre a função de uma
conjunção na definição de povo de
Cícero, ou da tradução do termo Trieb
na obra de Freud, são exemplos reais
que encontrei na minha passagem pela
academia. Ao contrário do que pode
parecer, de que são reflexões inúteis
ou inócuas, foram duas das reflexões
mais interessantes que me deparei.
São, na verdade, exemplos de, numa
tautologia, “minúcia pormenorizada em
seus mais específicos detalhes” que
demonstram a qualidade do rigor do
conhecimento universitário brasileiro.
E este trabalho rigoroso é fundamental
e criador da reflexão científico-
126
filosófica. Este tipo de reflexão é o
obedecimento ao princípio estabelecido
por Descartes, no Discurso do Método,
no que o autor chamou de preceito da
enumeração, ou seja, a redução de um
determinado problema em seus ínfimos
detalhes. Em física moderna, nada mais
é do que o isolamento de todas as
variáveis de um problema. Isto que
outrora descrevi como sendo um
problema da academia brasileira é, na
verdade, uma exigência do conhecimento
científico contemporâneo.

Esta reflexão a partir das


minúcias engendradas por uma reflexão
científico filosófica é fundamental ao
cientista e ao filósofo. Mas, o
trabalho do cientista e do filósofo não
pode se encerrar numa torre de marfim
inalcançável à árvore dos
acontecimentos, lembrando uma analogia
de Marx, alheia à vida do cidadão não
iniciado. Este isolamento, no Brasil,
tem sido combatido, em especial nas
áreas das ciências da natureza, a
partir da universalização do acesso à
internet. O isolamento do conhecimento
acadêmico, em torres de marfim, como
dito, trouxe diversos problemas à
própria saúde das pessoas, na medida
em que, como nos mostrou a pandemia de
COVID-19, o discurso anti ciência e
anti vacina foi propagado pelo próprio

127
presidente da República, Jair
Bolsonaro. O próprio governo, ao
tentar aplicar teses como a da
imunidade de rebanho (tese em que deve-
se deixar uma doença infectocontagiosa
correr seu curso natural e que os
indivíduos devem se infectar com a
doença inevitavelmente) nos levou à
morte premeditada se não de centenas
de milhares de brasileiros, ao menos
levou à morte de centenas manauaras
pela inércia do governo em prover
hospitais com oxigênio durante uma
epidemia de uma doença respiratória
enquanto o presidente clamava à
população que parasse de lamentar seus
mortos e se focassem na normalidade
econômica do país.

Se o primeiro papel do acadêmico


é o de realização de pesquisas com o
mais alto rigor e pormenores exigíveis
ao progresso do conhecimento humano.
Esta é só a primeira parte do trabalho
do filósofo e do cientista. Há a
necessidade de levar este conhecimento
produzido na universidade aos
indivíduos comuns, ou, não iniciados,
ou, não diplomados. Como disse, é o
papel de divulgação do conhecimento. É
o que fazia, com maestria, Carl Sagan.
Divulgar o conhecimento nada mais é do
que o ato de ensinar, ou seja, o de
divulgar o que é pensado pela academia.

128
E, aqui, temos outro problema
gravíssimo, qual seja, o da
banalização do conhecimento filosófico
e científico. De forma menos grave,
este problema aparece por meio da
trivialização do conhecimento
acadêmico. O divulgador, sob a
premissa de tornar o conhecimento
acessível aos não universitários,
acaba por transmitir reflexões tão
rasas quanto um pires de cabeça para
baixo. Entendo isso como um insulto à
inteligência dos seus interlocutores
porque sob o pretexto de divulgar a
ciência, o que se faz, na verdade, é
dar uma roupagem vulgar à ciência ou à
filosofia. Uma forma mais grave deste
problema é fazer o que se fazia Olavo
de Carvalho, guru do governo
Bolsonaro. O que Olavo fazia nada mais
era do que se utilizar de conceitos da
filosofia de forma absolutamente
erradas. O pensamento de Olavo de
Carvalho nada mais era do que uma
“confusão de ideias claras”. É claro
que poderia citar diversos erros
conceituais crassos de Olavo de
Carvalho, mas, o episódio de sua morte
é caricato e inequívoco para entender
o porquê dessa confusão de ideias
claras: Olavo morreu de uma doença que
dizia não existir. Sob a premissa de
lutar contra a dominação comunista e
globalista do mundo, dizia ser, o
129
“vírus chinês uma invenção dos
comunistas e globalistas para acabar
com as liberdades individuais e
instaurar a ditadura do proletariado”.
Raciocínio que não passava de delírios
de perseguição e de um amálgama de
teorias da conspiração. Se dizia,
Olavo, o grande expoente do
conservadorismo no Brasil, mas, só
vendia em seus cursos ideologias
conspiracionistas de pseudo
conhecimento acadêmico. Cito, apenas,
à titulo de comprovar o fato de que
Olavo jamais fez filosofia com o rigor
acadêmico que dizia possuir, um
exemplo. Num de seus cursos, bradava
Olavo de que o projeto filosófico de
Platão não deveria ser entendido como
um projeto político, isto é, de
organização da Polis. É, apenas, um
erro absurdo e risível. Seja porque
contraria quase a totalidade da
história da filosofia e de interpretes
de Platão. Seja porque ignora a própria
obra de Platão que, por exemplo, na
República, se estabelece um projeto de
organização social da Polis contra a
tradição da educação dos aedos
(poetas). Mas, também, porque ignora o
próprio Platão, enquanto sujeito
histórico, que tentou implantar sua
forma de organizar uma Cidade em
Siracusa.

130
O leitor deve observar que não se
trata de uma crítica ad hominen à
figura de Olavo de Carvalho. Não
importa o fato dele não ter passado for
uma formação universitária, em seu
sentido estrito. Se fosse esta a
crítica, eu mesmo estaria
contradizendo o que acabei de escrever
sobre a postura anti filosófica do
argumento de autoridade dos diplomas.
Mas, é uma crítica à própria obra de
Olavo de Carvalho que não era um
projeto de filosofia, mas, de
doutrinação a partir de teorias da
conspiração. Como não citar momentos
icônicos do pensamento público de
Olavo de Carvalho em que dizia serem
os refrigerantes de uma determinada
marca adoçados com fetos humanos? Ou,
até mesmo, dizer ter dúvidas sobre o
próprio formato global do planeta
Terra? Ou até mesmo seus delírios de
perseguição de que o planeta era
dominado por uma elite globalista
malvada? O problema de Olavo de
Carvalho era não obedecer aos próprios
preceitos da filosofia, qual seja, o
de reflexão metódica, a partir da
história da filosofia, sobre o mundo.
Olavo não passava de um filósofo de si
mesmo, isto é, era o revelador de
verdades inquestionáveis e
irrefutáveis. Desabonava a própria
história da filosofia e se colocava
131
como um grande revelador de verdades
ocultas sobre o mundo. Sobre Olavo de
Carvalho devemos, ainda, explicar
porque o denomino de “guru do
bolsonarismo”. E me refiro à uma das
últimas falas antes de seu padecimento
para a doença que dizia não existir.
Numa de suas falas dizia Olavo que “não
se tratava mais de defender o
Conservadorismo, mas, de defender o
presidente Bolsonaro” de seus supostos
inimigos encarnados pelos comunistas
do “Foro de São Paulo”. A própria
história de Olavo de Carvalho era o de
defesa da pseudo ciência, afinal, ele
mesmo era um astrólogo. Guru nada mais
é do que um “mentor que possui a
credibilidade de seus seguidores”. Não
se trata de um termo pejorativo, mas,
de uma definição fidedigna. Basta
lembrar os cartazes escritos, nas
manifestações de rua bolsonaristas,
com o jargão “Olavo tem razão”. Olavo
de Carvalho gozava da credibilidade
inerente a de um guru, porque
inquestionável e pautada, apenas, no
argumento da autoridade, afinal, é
este mesmo Olavo que inventou que as
músicas dos Beatles haviam sido
escritas por Theodoro Adorno, como
parte do plano de dominação globalista
do marxismo cultural.

132
Caso o leitor não queira chamar,
por deferência, Olavo de Carvalho de
“guru do Bolsonarismo”, é indiferente
que o chame de “Teórico do
Bolsonarismo”; ou como ele mesmo se
vangloriava ser “professor da direita
brasileira”. O que importa, aqui, é
entender que Olavo de Carvalho ocupou
um vácuo deixado pela academia
brasileira, qual seja, o de divulgação
da filosofia. Olavo, com muita
maestria, se tornou divulgador do
próprio pensamento e deu a este
pensamento uma roupagem de “verdadeira
filosofia” contrária à filosofia das
universidades brasileiras que nada
mais era, segundo ele mesmo, um
“movimento de dominação marxista
estabelecido por uma luta cultural
gramsciana”.

O rigor científico filosófico da


obra de Olavo de Carvalho pode ser
resumido, também, num de seus
trabalhos. Olavo de Carvalho traduziu
um manuscrito de Schopenhauer chamado
“dialética erística: a arte de ter
razão” (“Eristische Dialektik: Die
Kunst, Recht zu behalten”). Olavo
traduziu o título do livro como “Como
vencer um debate sem precisar ter razão
– em 38 estratagema”. O manuscrito se
refere à uma obra encontrada, sem
título, e publicada por Julius

133
Frauenstädt. É um exemplo caricato,
mas, que diz muito do rigor acadêmico
de Olavo. Qualquer um que ler a obra
entenderá que se trata de uma crítica
às falácias lógicas recorridas por
filósofos com intuito de estar certo a
qualquer preço. “Arte de ter razão” e
“Como vencer um debate sem ter razão”
são títulos contraditórios e
excludentes entre si. A obra de
Schopenhauer é claro que não se
pretende como um manual para que se
vença debates sem ter razão, afinal, o
título escolhido por Olavo é contrário
ao princípio suficiente da razão
proposto por Schopenhauer. É claro que
este é um argumento caricato, mas,
recorro a ele porque esta mesma obra
nos dá pistas sobre a postura falaciosa
de Olavo de Carvalho. Todos que
conheceram Olavo, sabem da sua paixão
por argumentos ad hominem. E é o
próprio livro que ele traduziu que
atribui este tipo de argumento ao dos
pseudo-filósofos. O próprio
estratagema de rotular seus
adversários de comunistas (e afins) é
um estratagema de falácia filosófica,
segundo Schopenhauer, é o caso do
“rótulo odioso”. A constante
manipulação semântica nas obras de
Olavo de Carvalho, fornecendo os
“verdadeiros conceitos”, também,
trata-se de um estratagema de tornar
134
verdadeiro um argumento falso. Se
pensarmos sua tese central de
interpretação política do Brasil a
existência de um “foro de São Paulo”
de dominação comuno-globalista do
mundo, teremos de reconhecer de que
isso se trata de um salto indutivo,
isto é, utiliza-se a existência de um
suposto arcabouço de pensadores de
esquerda (e aqui há um rótulo odioso,
também) para provar, sem que haja nexo
de causalidade irrefutável, ao plano,
por exemplo de criar uma falsa crise
pandêmica para acabar com as
liberdades individuais.

É inegável o papel central da


figura de Olavo de Carvalho no
Bolsonarismo. Quero chamar a atenção
do leitor é essa centralidade mesma.
Não só porque era Olavo que concedia
uma roupagem intelectual ao que se
denominava de “ala ideológica” do
governo, ou por ter tido papel central
na nomeação de Ministros de Estado do
governo Bolsonaro. Se, neste sentido,
Jair era a figura do político que
encarnava a figura do, em seu próprio
jargão “mudar isso tudo que ta aí”, era
Olavo que determinava, enquanto
intelectual eleito pelo movimento de
massas do bolsonarismo como sendo seu
patrono, o que deveria ser mudado.
Basta recorrermos à história para

135
descobrirmos os pilares desta mudança
defendida pelo bolsonarismo: o
conhecimento produzido na universidade
brasileira, afinal, este era somente a
propagação de marxismo cultural;
devendo-se entender, como vimos
durante a emergência sanitária gerada
pela COVID-19, como movimento de
negação da ciência. E a própria negação
das instituições democráticas, isso
porque era o próprio Olavo um dos
maiores vocalizadores da tese de
“intervenção militar pautada no Artigo
142 da Constituição” (voltaremos a
estes problemas posteriormente).

É neste contexto que se deve


entender a figura de Olavo de Carvalho
enquanto “Teórico do Bolsonarismo”. Se
por um lado, Olavo não tinha respeito
da academia (quer seja do Brasil ou de
qualquer outro lugar do mundo),
encontrou um terreno fértil para
propagar suas ideias devido ao vácuo
gerado pelos acadêmicos enclausurados
em torres de marfim. Ele se apresentou
como sendo um “revelador de verdades”
que os intelectuais “queriam esconder
do povo” com vistas de implantar uma
“ditadura comunista” no Brasil. Medo
(voltaremos ao uso do medo como
ferramenta política num momento
oportuno) este que remonta à própria

136
tese utilizada pelos militares como
justificativa para o golpe de 1964.

Quanto à figura de Olavo é


preciso lembrar, ainda, que ele mesmo
se vangloriava de formar centenas de
alunos em seus cursos e de ter colocado
seus alunos na composição do governo
Bolsonaro. Ora, basta recorrer à
História da Filosofia, em especial, de
Platão, para entendermos de forma
clara e inequívoca que Olavo não é um
filósofo, mas, um sofista. As figuras
do Sofista e do Filósofo, segundo
Platão, não nos interessa, aqui. Este
é o fruto de outro trabalho a ser
publicado em breve (Ver: O Discurso e
a Formação Ática: O Paradoxo do Falso
em Platão). O que nos importa é
constatar que, desde sua gênese, na
medida em que Olavo pretendeu ser um
formador de “pensadores conservadores”
para lutar contra o marxismo cultural,
ele se propôs um Sofista e não um
filósofo. É claro que não quero ceder
à Olavo de Carvalho o mesmo diapasão
intelectual de Górgias ou Protágoras,
mas, na verdade indicar de que ele era
uma figura de formação intelectual com
intuito de formar políticos que Olavo
denominava de “Políticos Conservadores
de Direita”, contra, como disse, a
dominação do globalismo por meio do
“marxismo cultural”.

137
Se a primeira parte do trabalho
do filósofo e do cientista é o de
realizar pesquisas minuciosas em suas
respectivas áreas – é isso o que fazia
Kant, Einstein e Newton, por exemplo;
o segundo é o de realizar a
intermediação do conhecimento
produzido nas Universidades e o
público leigo – bem como fazia Carl
Segan. O terceiro é fundamental a estas
figuras e está mais próximo do
cotidiano dos não universitários, isto
é, do “cidadão comum” e é, o trabalho
mais complexo para um cientista ou para
um filósofo. E é o mais complexo porque
é uma síntese das duas primeiras partes
de seu trabalho acima enumeradas; é o
trabalho de interpretação do mundo – é
o que fazia Stephen Hawking e Edmund
Burke.

O que quero dizer é que se


Einstein definiu as equações que
explicam o tempo, Hawking contou a
História do Tempo em O Universo numa
casca de Noz, isto é, Einstein, definiu
as equações que explicam o conceito de
tempo; Sagan, tornou as explicações
populares; Hawking nos mostrou como se
interpreta a Física Moderna a partir
das equações de Einstein. No exemplo
de Burke, ele, por meio de conceitos
bem definidos de Teoria Política sobre
as implicações das Revoluções a partir

138
da análise política do império inglês,
pode prever quais seriam os resultados
práticos da Revolução Francesa em
Reflexões sobre a Revolução na França.

O recurso ao trabalho destes


pensadores – Kant, Burke, Einstein,
Sagan e Hawking – nos deixa claro que
o trabalho do cientista e do filósofo
deve ser entendido como uma tríplice
intente. Isto é, conceitos puros em si
mesmos são inúteis; conceitos isolados
na academia, também. Ao que se conclui
que a interpretação do mundo deve se
dar a partir de conceitos bem
fundamentados na história das ideias,
sob pena de cometer o despautério que
cometeu Olavo de Carvalho e ser
professor de si mesmo. Contudo, como
estes conceitos não podem ter um fim
em si mesmo, mas, devem se aplicar ao
próprio “mundo real”, deve o filósofo
oferecer uma interpretação dos fatos
do mundo, de forma a intermediar o
conhecimento produzido nas
Universidades e os não universitários,
a fim de dar uma arcabouço fundamentado
na história do pensamento, isto é, no
exercício da razão, para que não se
entenda os fatos como meros acidentes
do acaso do cotidiano.

É claro que o que não se pretende


é uma teoria universal preditiva de uma
teleologia de interpretação do mundo
139
que vise responder todas as questões
sobre “deus e sua obra”. Mas, fornecer
arcabouços de interpretação do mundo a
fim de proporcionar uma reflexão
crítica sobre a sociedade. É neste
contexto que o trabalho do filósofo,
que eu me incluo, se aproxima e ao
mesmo tempo se afasta do trabalho dos
jornalistas. Se, por um lado, o
trabalho do filósofo depende do
trabalho do jornalista; isso porque é
assim que os acontecimentos do mundo
se tornam conhecidos; o trabalho do
filósofo é o de interpretação dos fatos
a partir da história das ideias. Neste
sentido, se o trabalho do jornalista,
enquanto jornalista, é tanto o de
tornar público e notório os fatos
cotidianos relevantes à vida em
sociedade, quanto o de concatenar os
fatos entre si; o trabalho do filósofo
é, a partir destes fatos cotidianos e
dessas concatenações, é o de oferecer
interpretações de acordo com a lógica,
científica, epistemológica e ética
sobre o mundo.

É claro que o trabalho do


filósofo e do jornalista se confundem
e se complementam. Afinal, é tanto
impossível concatenar os fatos sem
conceitos, por exemplo, de lógica,
epistemologia ou moral; quanto é
impossível pensar conceitos isolados

140
de seu contexto histórico de
acontecimento dos fatos em si no
próprio mundo do qual se predicam os
conceitos. Prova disso é o trabalho da
filósofa e jornalista Hannah Arendt em
Eichman em Jerusalém, isto é, a
interpretação do Holocausto necessita
do conceito de banalidade do mal,
enquanto o conceito em si necessita da
concatenação dos acontecimentos
históricos que levaram ao próprio
holocausto. Ou seja, a coruja de
Minerva que levanta voo, só levanta voo
ao entardecer porque há a necessidade
de que a filosofia seja sobre o próprio
entardecer, isto é, sobre os
acontecimentos do mundo capazes de
gerar conhecimento, e a própria
cognição do entardecer depende da
própria coruja para que não sejam,
apenas, fatos aleatórios e impossíveis
de compreensão.

Neste sentido, concluo dizendo


que filosofia e jornalismo são
necessários e complementares um ao
outro, pois, são as duas faces da moeda
que explica os acontecimentos do
mundo. São, portanto, duas faces de
uma, a meu ver, ciência histórica, se
entendermos a ciência histórica a
partir de sua definição
epistemológica, isto é, a investigação
de acontecimentos passados.

141
Feita esta conceituação de qual
é o trabalho a filosofia, deve-se
esclarecer que para interpretar o
problema proposto no título desta
obra, isto é, “Ascenção e Insurreição
do Bolsonarismo”, trata-se de uma
pesquisa científico-filosófica que
necessita dos mais diversos ramos das
ciências históricas para explicar este
fenômeno político social brasileiro,
seu contexto e sua gênese. Ao explicar
a complexidade do trabalho do
filósofo, esperamos ter explicado,
também, porque o bolsonarismo deve ser
entendido como um movimento cultural,
isto é, um conjunto de fatos sociais
(no conceito de Durkheim, se refere à
regras e tradições) inerente à
acontecimentos históricos que englobam
informações, conhecimentos e valores e
que, por isso, necessitam de uma
análise completa e complexa de suas
principais características.

É claro que eu poderia ligar o


bolsonarismo à um movimento de massas
com características nazi-fascistas,
apenas dizendo que são movimentos
políticos semelhantes porque “o
ministro da comunicação realizava
aparições na Televisão imitando a
Estética de Goebbels (ministro da
Propaganda de Hitler)” ou porque o lema
Bolsonarista de “Deus, Pátria e

142
família” é uma tradução direta do mote
nazifascista. Seriam argumentos que
responderiam o que é o bolsonarismo,
mas, não explicariam nada. Seria a
negação de uma reflexão que se pretende
crítica, filosófica e científica.
Seria, num clichê, apenas uma resposta
simples e errada para um problema
difícil.

Neste contexto, a proposta deste


livro é bastante ambiciosa, na medida
em que pretendemos um trabalho
filosófico que abrange os três
aspectos fundamentais da reflexão
filosófica e científica; se formos bem
sucedidos neste percalço
argumentativo, teremos inaugurado um
novo tipo de reflexão sobre a história
recente do Brasil, isto é, uma
fundamentada na filosofia da história
– com auxílio das demais ciências
históricas complementares. Não existe,
ou ao menos não tenho conhecimento, de
nenhuma pesquisa que tenha tentado
interpretar os acontecimentos
contemporâneos brasileiros a partir de
uma profunda conceituação acadêmica e
filosófica. As únicas obras que
conheço que tentaram uma reflexão
academicamente fundamentada sobre a
História Contemporânea do Brasil
remontam a década de 1930, na análise

143
sociológica, por exemplo, de Casa
Grande e Senzala.

Nesta introdução, me proponho a


apontar, também alguns problemas que
devem servir como norte para a resposta
às perguntas que nos propus no
prefácio. Apresenta-se, aqui, o
problema por detrás da persecução
penal por crimes contra à humanidade
legados pela própria Constituição.
Ora, se pretendemos ponderar sobre a
Constituição Brasileira, na mais justo
que o façamos a partir do seu princípio
desde o princípio. Para isso, vale ter
em mente o seu preâmbulo:

“Nós, representantes
do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para
instituir um Estado
Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos
direitos sociais e
individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como
valores supremos de uma
sociedade fraterna,
pluralista e sem
preconceitos, fundada na
harmonia social e
comprometida, na ordem
144
interna e internacional,
com a solução pacífica das
controvérsias,
promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.”

Proponho iniciar a reflexão a partir


do objetivo disposto no preâmbulo: a
harmonia social e o compromisso com a
solução pacífica de controvérsias.
Isso nada mais é do que dizer que o
objetivo da Constituição Brasileira,
assim como promulgada pelo
Constituinte, é o estabelecimento da
Paz. Ao que nos vale refletir:

“O que é a paz? É
simplesmente a ausência de
guerra? Kant pensa que não.
Se a paz não for mais do que
uma trégua usada por ambas
as partes para recuperar
forças para o próximo
ataque, se a paz não for
mais do que a continuação
da guerra por meios
políticos, se a paz não for
mais do que a subjugação
bem-sucedida de uma parte
pela outra, ou se a paz é
meramente local e,

145
portanto, ainda ameaçada
pelo mundo além - então não
há paz real. A paz real, de
acordo com Kant, requer a
regra de leis justas dentro
do estado, entre estados e
entre estados e
estrangeiros, e requer que
esta condição seja
84
global.”

A Paz é distinta da ausência de guerra


(no texto chamado de trégua), não mais
pode-se entender a paz – em Kant – como
sendo a guerra por meio da política –
que subjaz a necessidade de
subjugamento de uma parte por outra. A
paz verdadeira necessita de um Estado
de Direito interno ao Estado, entre
Estados, e entre estados e
estrangeiros. A necessidade de um
Estado de Direito permanente e
universal é a condição primeva de uma
paz global.

“Nas últimas décadas, a


atenção também se voltou
cada vez mais para outros
elementos da teoria da paz
de Kant. Primeiro, a
afirmação de Kant de que a

84 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

146
organização interna do
estado tem uma influência
crucial no comportamento
externo de um estado em
relação a outros estados,
mais especificamente,
aquele “republicano”
(democrático).

Estados republicanos estão mais


inclinados à Paz do que Estados
Despóticos.

“Além disso, a teoria do


estado de Kant está cada
vez mais presente nas
discussões da teoria social
e política. Apresenta uma
alternativa às abordagens
dominantes nos debates
sobre a questão do que
devemos ao estado. Enquanto
as abordagens dominantes
respondem a essa questão em
termos de consentimento,
justiça ou considerações
utilitárias, de acordo com
Kant, as pessoas têm o
dever moral de aderir e
apoiar um estado. Jeremy
Waldron expõe
cuidadosamente a posição de
Kant sobre este assunto e

147
discute as consequências
aparentemente duras que
Kant acredita estarem
implícitas em sua posição,
como suas notórias visões
sobre resistência e
revolução..”85

É um dever moral das pessoas


agirem na sustentação do Estado.
Voltarei a esse tema posteriormente.

“Em terceiro lugar, a noção


de “direito cosmopolita” de
Kant como uma categoria de
direito público acabou por
fornecer uma maneira de
capturar teoricamente o
fato de que a paz requer a
regulamentação legal não
apenas das interações entre
os estados, mas também das
interações entre estados e
indivíduos ou grupos
estrangeiros - de
refugiados a terroristas
internacionais. Com esse
insight, Kant está à frente
de seu tempo e notavelmente
próximo dos
desenvolvimentos ocorridos

85 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

148
no direito internacional no
século XX. Além disso, os
recentes ataques
terroristas internacionais
de grupos que não agem como
representantes de seus
próprios Estados, mas que
dirigem seus ataques contra
outros Estados e seus
cidadãos, enfatizam
dolorosamente a verdade da
afirmação de Kant de que a
paz mundial, isto é, a
segurança da liberdade
externa de todas as
pessoas, exige mais do que
a paz entre os Estados.
Muitas questões sobre a
adequada
institucionalização do
direito cosmopolita estão,
entretanto, ainda em
aberto.”

O direito cosmopolita necessita


de regência legal – interna e externa
aos Estados.

“Finalmente, a filosofia da
história de Kant, por muito
tempo vista como um assunto
muito menor e
inconsistente, agora é cada
vez mais vista como parte
integrante de sua teoria da
149
paz. O curso da história
humana é, assume Kant, uma
preocupação inevitável e
apropriada para os humanos
como seres históricos e
morais. Eles se perguntam,
primeiro, quanto podem
saber sobre o curso da
história em geral. Em
segundo lugar, eles se
perguntam o que podem
esperar, o que significa no
contexto atual se e como a
paz, que eles deveriam
promover por razões morais,
pode ser aproximada na
realidade. Allen Wood
discute algumas das
questões levantadas pelas
respostas de Kant, por
exemplo, quais são as
implicações do fato de que
o modelo teleológico
pressuposto por Kant perdeu
sua validade. Mas ele
também argumenta que as
preocupações metodológicas
que motivam a filosofia da
história de Kant não

150
perderam nada de sua
relevância.”86

A filosofia da história é parte


fundamental da compreensão da Teoria
do Direito kantiana.

“Como mencionado, os
detalhes da teoria de Kant
estão sujeitos a debate,
mas aqui está uma
interpretação que pode
servir como um começo. Kant
parte do pressuposto da
liberdade e igualdade de
todos os seres com posição
moral. Como os agentes que
vivem próximos uns dos
outros podem influenciar a
esfera de atividade uns dos
outros e, portanto, podem
infringir a liberdade uns
dos outros, surge a questão
de como regular a sua
atividade de modo a que a
liberdade de cada um seja
compatível com a liberdade
e a igualdade de todos.
Esta questão diz respeito a
esferas de ação, ou o que
Kant chama de liberdade

86 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

151
“externa” (diferente da
liberdade “interior”, a
liberdade de determinar a
própria vontade moralmente,
que ele discute em seus
escritos sobre teoria
moral).Π A resposta de Kant
é que garantir a liberdade
externa requer um sistema
de leis públicas justas e
uma autoridade pública para
fazer cumprir essas leis,
ou seja, requer um Estado
justo. Portanto, com base
no pressuposto da liberdade
e igualdade de todos os
seres humanos, ele defende
a afirmação de que cada um
tem o dever moral de
ingressar em um estado e
obedecer às suas leis (ou
então retirar-se de todas
as interações com outros
seres humanos)..π”87

Em Kant é impossível que haja


liberdade irrestrita. Isso porque a
liberdade depende da relação entre
indivíduos. Por isso deve-se fazer a
distinção entre uso privado e uso

87 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

152
público da razão. A liberdade pública
depende do império e primazia das leis
de um Estado de Direito. Pois, a
liberdade irrestrita findaria numa
guerra de todos contra todos – em
termos Hobbesianos. Ou melhor, sendo a
liberdade e igualdade uma
característica comum à todos os
indivíduos – o uso público da razão se
dá na esfera da moral – e deve obedecer
ao imperativo categórico, tão logo, a
necessidade do Estado de regular a
interação entre indivíduos. Somente o
Estado de direito é que torna toda e
qualquer liberdade possível – no seu
âmbito público. O papel do Estado de
direito é, portanto, tornar possível
uma liberdade pública – na medida em
que versa sobre o uso privado da razão.

“Esse sistema de leis


públicas justas é chamado
de “direito público”. lei
Geral; e o direito público
é a soma das leis externas
que tornam possível tal
harmonia universal’’ (TP
8:289–90; cf. MM,6:230).”88

88 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

153
É importante notar, aqui, a
definição de direito. Direito é,
justamente, a limitação de liberdades
individuais com intuito de torna-la
compatível com uma harmonia universal.
Essa limitação é dada por leis. Neste
contexto, o direito público (a soma das
leis) é o que torna toda e qualquer
harmonia social possível. Aqui
percebemos o contra senso de tentar
defender uma liberdade irrestrita, por
exemplo, no termo “´direito à
liberdade de expressão irrestrita”,
haja vista que a própria definição de
direito garante a existência de uma
restrição à liberdade. Direito à uma
liberdade irrestrita (ilimitada) é uma
contradição em termos (sujeito negado
pelo predicado), haja vista, como
dito, que o direito é justamente uma
restrição a uma liberdade.

“Na ausência de um sistema


de direito público e de sua
aplicação, os indivíduos
existem no chamado estado
de natureza – a condição na
qual não há estado de
direito e nenhuma
autoridade estatal acima
dos indivíduos. Nessa
condição, os indivíduos
resolvem seus conflitos
154
inevitáveis com base em
suas respectivas forças.
Pois mesmo no melhor
cenário possível, isto é,
quando os indivíduos são
''bem-humorados e justos''
(MS 6:312) em vez de
egoístas e violentos, eles
decidem seus conflitos com
base no que cada um
acredita ser certo , e como
eles nem sempre chegam a um
acordo (a tempo) sobre esse
assunto, quaisquer
conflitos nas
interpretações do que é
certo (por exemplo, no que
diz respeito a
reivindicações de
propriedade) não podem ser
resolvidos de outra forma
que não seja pelo poder.
Esta situação deve ser
evitada porque a resolução
de litígios pela força não
é consistente com o
princípio da liberdade e
igualdade de todos. Para
evitar esta situação, é
necessário um estado justo.
Ou seja, a mera
possibilidade de violência
requer o estado justo para

155
garantir a esfera de
liberdade de todos.”89

É justamente a existência de um
direito público (conjunto de leis que
constringem liberdades irrestritas)
que torna possível o convívio em
sociedade que não numa forma de guerra
de todos contra todos (Estado de
Natureza) determinado pela primazia da
força.

“Isso levanta a questão, é


claro, sob quais condições
o estado é justo. Pois,
obviamente, a própria
autoridade do estado
precisa ser compatível com
a liberdade de todos, e a
autoridade assumida por um
estado despótico claramente
não é. A noção de república
de Kant serve para abordar
essa questão. Em uma
verdadeira república, o
povo (como cidadão) co-
legisla por meio de seus
representantes. Isso
significa, Kant escreve com

89 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

156
uma dívida óbvia para com
Rousseau, que em uma
república o povo não abre
mão de sua liberdade, mas
dá a ela uma forma
diferente, porque eles dão
leis a si mesmos em vez de
uma autoridade estrangeira
impor leis a eles. Além
disso, uma república, em
contraste com um estado
despótico, tem uma
separação de poderes. O
povo legisla (através dos
seus representantes), mas
delega o poder ao executivo
(que pode ser um monarca ou
um coletivo, mas que não
deve ser o povo inteiro
como numa democracia
«direta»), e elege os
juízes e júris delegados.”90

O ponto central para compreender


essa restrição à liberdade está no
significado constrição à liberdade. A
constrição não se trata de uma
irrestrição à liberdade, mas, a
própria noção de liberdade em um Estado
de Direito, i. e., no significado de

90 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

157
liberdade sob o jugo de uma república.
A liberdade, num Estado de Direito, a
justa constrição do direito
irrestrito, dado pelo próprio direito
público justo de uma república, ou
seja, um direito público que obedeça à
separação dos três poderes. A
separação dos poderes é o fator central
para a existência de uma república
justa. A restrição não é dada pela
força, mas, pela renúncia racional na
forma do Estado de Direito tripartite
em executivo, legislativo e
judiciário. A constrição de liberdades
é conditio sine qua non para a
existência de um Estado de Direito
Republicano, na medida em que a
liberdade toma forma não mais na
liberdade do Estado de Natureza
(primazia da força), mas, na própria
formação da república a partir da
separação dos poderes. E é este o
significado de liberdade numa
República sob um Estado de direito: a
constrição do poder do mais forte
mediante a leis elaboradas para
restringir liberdades irrestritas –
que tornam possível o convívio social,
em renúncia ao Estado de Natureza –
diante da formação Republicana do
Estado, i. e., de um Estado que seu
valor (ver Cícero) seja expresso por
leis justas (àquelas feitas pelo
legislativo, executadas pelo executivo
158
e julgadas pelo judiciário); leis
estas que estão sujeitas ao próprio
controle da República, ou seja, do
controle das leis diante de uma lei
geral que visa o bem comum (isto é, de
uma constituição republicana do
Estado).

“Se a justificação do
estado procede em termos de
garantir a liberdade
externa para os indivíduos
como tais, entretanto, o
direito é inerentemente
cosmopolita em seu escopo.
Pois então a liberdade
externa de qualquer
indivíduo com posição moral
é importante (e não apenas
a liberdade externa de seus
compatriotas), e assim a
teoria do direito não é
completa se ela se limita à
organização interna do
estado. Além disso, Kant
acredita que, como uma
questão prática de fato, o
direito não pode ser
realizado otimamente dentro
do estado, a menos que as
relações entre este estado
e outros sejam reguladas de
acordo com os princípios do
159
direito também. Assim, a
questão precisa ser
abordada de como a
interação entre Estados, e
entre Estados e indivíduos
estrangeiros, deve ser
regulada para que esteja de
acordo com o direito. Na
teoria do direito de Kant,
essas duas questões são
respondidas em suas teorias
do direito internacional e
cosmopolita,
respectivamente.” 91

Esta constrição de liberdades não


se dá somente na relação entre
indivíduos e Estado, mas, entre os
próprios Estados internacionais entre
si. A interação entre repúblicas deve,
também, obedecer a algum tipo de
constrição, que em teoria moderna do
direito é denominada de “princípios
gerais do direito” e regulada sob
pactos internacionais (que tomam o
aceite de cada Estado em seus
respectivos ordenamentos legislativos
internos). Essa regulação da relação
entre Estados – mediante princípios
gerais do direito e da lei

91 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

160
internacional – é a forma pela qual se
dá mediante as teorias do direito
cosmopolita e da lei internacional. A
constituição da República não se dá
somente “para si” (isto é,
internamente), mas, “em si”
(duplamente regulada pelo meio interno
e meio externo) a partir do
estabelecimento de parâmetros comuns
de direitos. Não há liberdade do
indivíduo sem essa auto regulação
externa dos Estados, ou seja, a partir
das constrições do direito cosmopolita
e das teorias de direito
internacional.

É importante perceber,
entretanto, que Kant
apresenta a crença no
progresso, nos ensaios
morais e políticos, não
como um conhecimento
teórico, mas como uma
crença por parte do agente
moral. A crença de que a
natureza, incluindo, é
claro, a natureza humana,
empurrará os humanos na
direção do que é moralmente
exigido dá esperança ao
agente moral. Assim, na
“Idéia para uma história
universal”, Kant aponta as
161
vantagens de uma visão
teleológica da história
para o sujeito moral e, em
seguida, diz que a
esperança que essa
perspectiva oferece não é
uma motivação
insignificante para a
escolha desse ponto de
vista ( IUH 8:30; ver
também CB, TP, PP). Não
temos conhecimento teórico
do curso da história,
escreve Kant, mas isso
significa que podemos
assumir, para propósitos
morais, que é possível
tornar o mundo um lugar
melhor e que nossa agência
moral contribui para um
processo histórico mais
amplo. em direção ao
melhor. Essa forma de
crença no progresso é
suficiente para o agente
moral, mas, mais
importante, não é
suficiente para “predizer o
futuro dessa paz
(teoricamente)”, como Kant
coloca em Toward Perpetual
Peace (8:368). Ou seja: o
que à primeira vista pode
parecer uma ingênua
162
pretensão de conhecimento
da realidade do progresso
é, na verdade, uma crença
do ponto de vista moral.92

A teoria da paz perpétua kantiana


jaz na ideia de autopreservação
individual. É no jogo entre interesses
privados e públicos – da insociável
sociabilidade – que está a chave para
compreender o que Kant quer dizer como
a Paz Perpétua sendo um desejo moral
dos indivíduos. A paz perpétua nada
mais é do que um meio de
autopreservação individual. Esse
desejo pela autopreservação fica claro
na distinção entre Estados
Republicanos e Estados Despóticos.
Isto é, a própria possibilidade de,
numa república, os indivíduos
recusarem a possibilidade de uma
guerra, mostra a primazia da
autopreservação vigente na relação
entre Estados, pois, o fim último do
indivíduo egoísta é a sua
autopreservação que, por sua vez,
também se dá na relação entre Estados.
A Guerra sempre será a possibilidade
de aniquilação de um Estado e, neste
sentido, a insociável sociabilidade

92 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

163
encontra-se, como reflexo da relação
entre os indivíduos, não só na relação
entre indivíduos, mas, também, na
relação entre os Estados. A paz
perpétua não se resume, portanto, a uma
mera possibilidade teórica, mas, algo
factível pela própria natureza
egoística dos indivíduos e dos Estados
dada pelo princípio da
autopreservação. Neste sentido, a paz
perpétua é, ao contrário de mera
possibilidade teórica, algo factível
diante do desejo de autopreservação
que reflete na constituição dos três
âmbitos do direito – constitucional,
ou seja, interno; internacional (entre
Estados); e cosmopolita (entre estados
internacionais e indivíduos). É, neste
sentido que se dá a ideia de progresso
histórico kantiano. Não se trata de uma
possibilidade teórica, mas, um desejo
moral dos indivíduos em garantir a
própria preservação egoística.

“Na Crítica da Razão Pura


(1781), ou seja, antes de
seus principais escritos
sobre a história, Kant já
fornece uma justificativa
para os juízos teleológicos
em geral. Aqui ele
argumenta que não se pode
saber se existem conexões
teleológicas na natureza,

164
mas que o princípio de
buscar tais conexões é
justificado como um
princípio heurístico. O uso
desse princípio encoraja
novas descobertas de
conexões na natureza e,
afirma Kant, permite
integrar a maior quantidade
de dados em um único todo
sistematicamente
organizado de conhecimento.
Da mesma forma, na “Idéia
para uma história
universal”, Kant recomenda
o modelo teleológico da
história que ele desenvolve
nas primeiras sete
proposições, apontando que
pode ser
historiograficamente
“útil” abordar os fenômenos
históricos ao longo das
linhas ele esboça, e que
permite apresentar a
história como um "sistema",
um todo coerente, em vez de
um agregado de fenômenos
aparentemente caóticos (IUH

165
8:29, cf. CPuR A686-8/B714-
6).”93

É a partir desse pressuposto de


autopreservação que se deve
compreender a teleologia da história
em Kant. A teleologia não se dá por
meio de axiomas, mas, a partir da
descoberta de princípios racionais
(teoréticos) diante da interpretação
de fenômenos aparentemente caóticos
(empíricos). A ideia de teleologia
kantiana está pautada na própria
natureza egoísta dos indivíduos que
buscarão, sempre, a autopreservação.
Ou seja, a ideia de progresso tem como
pressuposto a moral e não as teorias
da razão. Ou seja, a teleologia da
história é um fato da razão prática e
não uma abstração da razão pura. Neste
sentido, encontramos o fio condutor
que pretendemos investigar: o que
determina a paz perpétua são os juízos
sintéticos ou analíticos, em cada
caso, à priori ou à posteriori.

“Em suma, as perspectivas


teórica e moral convergem
na visão teleológica da
história, e o
desenvolvimento de

93 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

166
instituições justas no
nível do estado e além dele
desempenha um papel crucial
no processo histórico.”94

Ou, em outros termos, o que pretendemos


investigar é em que medida os
princípios da razão pura são fundantes
da razão prática enquanto aplicada à
teleologia da história e a
aplicabilidade da filosofia do
direito, a primeira, enquanto fim
último da razão (a ideia de progresso
da moral), e a segunda entendida como
fim primeiro da filosofia do direito:
a possibilidade de factibilidade do
fim primeiro da razão.

Seção II – Dos Conceitos Fundamentais

94 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

167
V

Capítulo I

Princípios estabelecidos no
Preâmbulo da Constituição

“uma vez que o político


prático tende a olhar com
desdém para o teórico
político como um mero
acadêmico, cujas ideias
impraticáveis não
representam perigo para o
estado (uma vez que, aos
olhos do político, o estado
deve ser baseado em
princípios derivados da
experiência), e que pode
mostrar sua mão sem que o
estadista mundano precise
prestar atenção; então, em
caso de conflito com o
teórico, o estadista deve
lidar com ele
consistentemente e abster-
se de qualquer alegação de
ameaça percebida ao estado
em quaisquer pontos de
vista que o teórico possa
ousar apresentar e
expressar publicamente. Com

168
esta clausula salvatoria, o
autor deste ensaio invoca a
forma adequada para se
proteger de qualquer
interpretação maliciosa.”95

O parágrafo inicial resume o


axioma central do projeto kantiano
para uma Paz Perpétua: a empiria. Mais
do que uma mera abstração da
possibilidade teórica, mais do que uma
mera análise da razão pura; os
postulados da Paz Perpétua devem ser
dados à razão prática. Kant faz um
alerta para a teoria política que
consiste de mera abstração: a teoria
política deve, na verdade, ser
verdadeira no mundo da abstração
racional enquanto raciocínio indutivo,
e não dedutivo, isto é, o caminho
argumentativo, portanto, kantiano é o
da busca de universais partindo de
particulares (indução) e não contrário
– aquele da dedução. O contexto da
filosofia kantiana é explicito nesse
postulado de clausula salvatoria, é
uma teoria de filosofia política que
parte da filosofia do direito, ou
melhor, a teoria política parte da
expressão racional dos postulados da

95 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010.

169
moral enquanto sua aplicação no mundo,
isto é, da constrição da liberdade dada
na forma de leis e não da abstração
teórica da moral enquanto mero
imperativo categórico da razão
prática, mas, das leis enquanto
postulado da própria razão prática.

Uma busca na filosofia do direito


nos indica a importância da nominação
desta cláusula salvatória:

"Não basta a
particularidade de a
conduta representar um mal
ou ser ofensiva a um bem
jurídico se não houver
expressa previsão legal de
pena. Admitir o contrário,
daria azo a uma indefinição
quando não a um desmedido
arbítrio das autoridades
policiais e judiciais que,
ao seu talante, poderiam
tratar penal e
processualmente com maior
severidade [...] cujo
significado real depende de
fungíveis critérios
axiológicos ou
ideológicos"96

96 TORON, Alberto Zacharias. Crimes


Hediondos: O mito da Repressão Penal. São
170
O que Kant argumenta é na necessidade
de uma lex certa na determinação dos
parâmetros de uma Paz Perpétua, isto
é, se compreendermos a lei como
expressão concreta da constituição da
República, o debate deve se dar diante
da própria determinação constitutiva
do Estado e não a partir de critérios
fungíveis – e fungíveis pois
dependente de critérios axiológicos ou
ideológicos. A resguarda kantiana
está, justamente, na abjuração do
raciocínio dedutivo para os argumentos
que seguem às suas filosofias política
e do direito. Ao determinar a clausula
salvatória como sendo axioma
fundamental da sua teoria política e
do direito tem-se a própria, portanto,
abjuração do mero idealismo – enquanto
mera abstração. O argumento é,
justamente, o oposto do argumento
idealista – no sentido platônico:
rejeita-se a abstração enquanto
ferramenta de compreensão do mundo e
está, deste modo, na filosofia
prática, na razão prática pura a
determinação da teoria do direito. O
direito, desta maneira, em termos
kantianos, deve ser o raciocínio
indutivo: a tipicidade do fato
circunscrito jamais poderá se dar por

Paulo: Editora Revista dos Tribunais,


1996. P. 96-98.
171
meio de um raciocínio dedutivo (do
universal para o particular) sob pena
de tornar inócuo toda e qualquer
filosofia do direito que tenha como
ponto de partida a mera abstração,
pois, não passa de abstração teórica –
tão logo, impossível de se verificar
na prática a não ser a partir de
critérios axiológicos ou ideológicos,
isto é, de arbítrio do teórico do
direito.

‘‘Nenhum acordo de paz que


reserva secretamente
questões para uma guerra
futura será considerado
válido.’’97

Este postulado é o que em teoria


moderna do direito se chama de Non bis
in idem, ou, em tradução livre, não do
mesmo sobre o mesmo. Isto é, trata-se
a unicidade do ato jurídico, no sentido
de que

“Cada parte pode fazer uma


reserva tácita (reservatio
mentalis) de velhas
pretensões a serem

97 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 68

172
elaboradas apenas em um
momento posterior, e não
fazer nenhuma menção a elas
no momento, uma vez que
ambas as partes estão
cansadas demais para
continuar a guerra, mas
mantêm a má vontade
aproveitar a primeira boa
oportunidade para esse
fim.”

A reservatio mentalis é justamente a


negação da coisa decidida, isto é, é a
declaração da vontade real do agente
sujeito à tipicidade da lei. A reserva
mental nada mais é do que a negação do
próprio direito – isto é, da constrição
de liberdade. É o ato que torna o
direito mero teatro, pois, a
verdadeira aplicação da vontade dos
agentes é contrária àquela
estabelecida de forma plena. Trata-se
do que chamamos acima de azo do
arbítrio, no sentido que a
determinação axiológica ou ideológica
do raciocínio dedutivo pode mudar.
Isto é, a vontade do agente na
determinação dos axiomas do raciocínio
dedutivo trespassa à empiria dos
fatos. É por isso que há a
irretroatividade do direito, pois,
caso não se aceite a irretroatividade,
todo o direito passaria a ser mero
173
teatro, pois, as condutas estariam
todas tipificadas num tempo futuro
mediante vontade do agente
legislativo. É uma salvaguarda do
direito de que haja previsibilidade,
ou, nos termos do código penal
brasileiro: “Não há crime sem lei
anterior que o defina”. O fato típico
só é típico diante de um tempo
cronológico, jamais, lógico e, neste
sentido, é que a reservatio mentalis
serve como condição suficiente para a
nulidade do ato jurídico perfeito,
isto é, a reserva mental (a vontade
oculta do agente) se trata de condição
de nulidade de pleno direito (isto é,
o ato jurídico irreconciliavelmente
nulo). Seguindo a cláusula salvatória,
devemos demonstrar a aplicabilidade da
reserva mental na prática. Eis o fato
nulo de pleno direito: ao ente que
possui a exclusividade da ação penal
recusar a ação penal, devido à sua
vontade oculta de não considerar
típico o fato tipificado – pela lex
certa – pois, o reconhecimento da
tipicidade trataria em assunção de
culpa própria em fato conexo. Neste
sentido, conclui Kant:

“tal reserva tácita


pertence à casuística
jesuítica e está abaixo da
dignidade de um governante,
174
assim como o cumprimento de
tal raciocínio está abaixo
da dignidade do ministro
deste governante.”98

Diz também que

6. ‘‘Nenhum estado deve


permitir-se tais
hostilidades em tempo de
guerra que tornem
impossível a confiança
mútua em um futuro período
de paz. Tais atos
incluiriam o emprego de
assassinos (percussores),
envenenadores (venefici),
quebra de rendição,
incitação à traição
(perduellio) dentro do
estado inimigo, etc.’’99

Aqui percebemos um ponto central da


conduta Estatal, isto é, a incitação à
traição (perduellio) é inconciliável
com a própria existência de um Estado
de Direito, pois, torna a própria
existência do Estado de Direito

98 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 68.
99 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um
projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 70

175
impossível, na medida em que incita a
guerra de todos contra todos.

“Pois deve permanecer,


mesmo no meio da guerra,
algum grau de confiança na
maneira de pensar do
inimigo, pois de outra
forma não seria possível
alcançar a paz e as
hostilidades degenerariam
em uma guerra de extermínio
(bellum internecinum). Pois
a guerra é apenas o
lamentável expediente no
estado de natureza (onde
não existe nenhum tribunal
que possa julgar o assunto
com autoridade legal) para
fazer valer os direitos de
alguém por meio da
violência.”

Se a incitação à traição é inaceitável


até mesmo num estado de guerra, o que
dizer quando a incitação parte do
próprio presidente da república? E,
mais grave, quando o titular da ação
penal está sob o jugo da reserva mental
acima descrita?

“Daí se segue que uma


guerra de extermínio, na
qual ambas as partes e,
além disso, todos os

176
direitos podem ser
erradicados
simultaneamente, só poderia
trazer a paz perpétua sobre
o grande cemitério da
humanidade. Tal guerra,
portanto, e, portanto, o
uso dos meios que levariam
a ela, devem ser totalmente
proibidos.—Mas é claro que
os meios mencionados acima
levariam inevitavelmente a
tal guerra de extermínio,
uma vez que, uma vez
usados, tais artes
diabólicas, maliciosas em
si mesmas, não se manteriam
por muito tempo dentro dos
limites da guerra, como por
exemplo com o uso de
espiões (uti
exploratoribus), onde
apenas a desonra dos outros
(que nunca pode ser
totalmente eliminada) é
usada; em vez disso, essas
práticas maliciosas seriam
transportadas para o tempo
de paz e, assim,

177
destruiriam completamente
seu propósito.100

O incentivo à sedição é,
portanto, o ato mais grave que pode
existir numa república, pois, consiste
na destruição da própria república. O
emprego de meios institucionais para
tanto é um agravante, pois, é a
tentativa de ruir o Estado de Direito
por meio da própria república. Neste
sentido, é que o incentivo à sedição
(perduellio) jamais deve ser tolerada
num Estado de Direito, haja vista que
o seu único resultado possível é uma
guerra de todos contra todos interna
ao Estado, isto é, numa guerra de
extermínio (bellum internecinum) onde
há, tão somente, uma guerra (seja ela
bélica ou política). No caso concreto
temos o fato do senhor ora presidente
da república tentar ruir a própria
condição primeira de uma democracia: o
direito ao voto universal. Vale
lembrar que o senhor Messias, de forma
pública e notória, ameaçou não só a
confiança no resultado do pleito, de
forma continuada, mas, também, ameaçou
– da mesma forma pública e notória a

100 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 71

178
própria realização de sufrágio
eleitoral:

“Embora todas as leis acima


citadas sejam objetivamente
– isto é, na intenção dos
detentores do poder –, leis
puramente proibitivas
(leges proibitivae),
algumas delas são, no
entanto, de tipo
estritamente válido,
aplicáveis
independentemente das
circunstâncias (leges
strictae). , e que exigem
que as suas violações sejam
imediatamente abolidas
(como os n.ºs 1, 5 e 6). Mas
outros (como os n.ºs 2, 3 e
4), embora não excedam a
regra legal, permitem,
contudo, alguma latitude
subjetiva quanto à sua
aplicação, dependendo das
circunstâncias (leges
latae) e permitem o
adiamento da sua execução,
desde que não se perca de

179
vista o fim que permite
esse adiamento.”101

A continuidade da violação ao termo


proibitivo de qualquer tipo de
incentivo à sedição é clara e notória
no cotidiano brasileiro. Haja vista
que se investiga a sedição – vide
inquérito das fake News, das milicias
digitais e dos atos antidemocráticos –
são prova cabal da tipicidade do crime
de prevaricação, pois, o atraso na
persecução penal – seja por reservatio
mentalis – seja por inação consiste na
promessa Augustiniana de cessação de
violação de crimes contra a existência
do próprio Estado de Direito de uma
República Democrática, ou, no termo
latino: ad calendas graecas.

“O estado de natureza
(status naturalis) não é um
estado de paz entre os
seres humanos que vivem
lado a lado, mas um estado
de guerra, isto é, se nem
sempre uma eclosão de
hostilidades, pelo menos a
ameaça constante de tais
hostilidades. Portanto, o
estado de paz deve ser

101 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 71

180
estabelecido. Pois abster-
se de hostilidades não
garante um estado de paz, e
quando um vizinho não
garante a paz do outro (o
que só pode ocorrer em uma
condição jurídica), o outro
vizinho que chamou o
primeiro a fazê-lo pode
tratá-lo como um
102
inimigo. ”

Os atos terroristas de Brasília são a


prova cabal de que o Brasil vive num
Estado de Natureza desde maio de 2019
– quando começaram os atos pedindo
intervenção militar e o fechamento do
congresso: um estado constante de
guerra ou na ameaça permanente de um
golpe de Estado:

“Mas uma pessoa (ou um


povo) em mero estado de
natureza me priva dessa
segurança e me prejudica
por meio desse mesmo estado
ao existir ao meu lado,
embora não ativamente
(fato), mas pela
ilegalidade de seu estado
(statu iniusto). , por meio

102 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 73

181
do qual ele representa uma
ameaça constante para mim.
Posso, portanto, exigir
dele que entre em um estado
de direito civil comum ou
se retire da minha
vizinhança”103

Neste contexto é que se dá a


própria constituição da República
brasileira. No fim da promessa
augustiniana - ad calendas graecas -
dos militares, no golpe de 1964, de que
a intervenção militar sobre a vida
civil teria a duração de apenas um ano.
Foram-se duas décadas de existência
brasileira num Estado de Natureza. E
é, um imperativo do individuo egoísta
que tem sua existência guiada pela
insociável sociabilidade de que se
deve cessar outro golpe de estado em
seu próprio nascedouro. Ou se finda o
Estado de Natureza que o Brasil vive,
consumados pelos crimes de extermínio
durante a lide com a pandemia de COVID-
19; ou não haverá futuro para a própria
existência do Estado brasileiro que
não um estado de guerra de todos contra
todos. Ou se pune o extermínio sob o
qual a sociedade brasileira foi

103 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 73

182
submetida – aplicando o devido rigor
da lei penal – ou o único futuro que
espera o Brasil é uma guerra de
extermínio, diante da inexistência de
um Estado de Direito.

“A validade desses direitos


inatos, que pertencem
necessariamente à humanidade e
são inalienáveis, é confirmada e
elevada pelo princípio das
relações jurídicas que um ser
humano pode ter com seres
superiores (quando os concebe),
imaginando-se, segundo
precisamente os mesmos
princípios, como cidadão de um
mundo supra-sensível. Pois,
quanto à minha liberdade, não
tenho nenhuma obrigação, mesmo em
relação às leis divinas, que me
são conhecidas por meio da mera
razão, exceto as leis com as
quais eu mesmo pude concordar
(pois concebo a vontade divina
apenas por meio da lei da
liberdade de minha própria razão
em primeiro lugar). No que diz
respeito ao princípio da
igualdade, no que diz respeito ao
ser mais sublime do mundo que
posso conceber fora de Deus (um
grande Aeon, por exemplo), não há
183
razão para que, se eu cumpro meu
dever em minha posição, como em
sua posição, eu deveria ter
apenas o dever de obedecer,
enquanto o primeiro tem direito
ao direito de comandar.—A razão
pela qual este princípio de
igualdade não se aplica (como com
o princípio de liberdade) a a
relação com Deus é que este ser
é o único onde termina o conceito
de dever.”104

O pacto social brasileiro, para


uma Paz Perpétua, está expresso na
Constituição que findou o golpe de
1964: pacta sunt servanda. Os pactos
devem ser respeitados. E qual é o pacto
brasileiro expresso pela Constituição
da República?

“Nós, representantes do
povo brasileiro, reunidos
em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir
um Estado Democrático,
destinado a assegurar o
exercício dos direitos
sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o
bem-estar, o

104 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 74

184
desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como
valores supremos de uma
sociedade fraterna,
pluralista e sem
preconceitos, fundada na
harmonia social e
comprometida, na ordem
interna e internacional,
com a solução pacífica das
controvérsias,
promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.”

Observamos que o pacto brasileiro é o


da Paz Perpétua, pois, nada mais é do
que o pacto de que a Constituição
brasileira será de uma república sob o
jugo das três formas de direito
estabelecidas por Kant para uma Paz
Perpétua:

“1. aquele baseado no


direito dos cidadãos de um
estado governando os
indivíduos de um povo (ius
civitatis),

2. aquele baseado no
direito internacional que
rege as relações dos
Estados entre si (ius
gentium),

185
3. um baseado no direito
cosmopolita, na medida em
que indivíduos e Estados,
que estão relacionados
externamente pelo exercício
mútuo de influência uns
sobre os outros, devem ser
considerados cidadãos de um
estado universal da
humanidade (ius
cosmopoliticum)”.105

O direito cosmopolita fica claro


quando no preâmbulo da constituição
determina-se que a sociedade será
fraterna, i. e., será respeitada a
primazia dos direitos dos povos e dos
cidadãos (ius civitatis e ius getium)
como fim último e primeiro da
constituição do Estado brasileiro. O
respeito ao direito internacional é
estabelecido na própria forma de lex
certa como fator constitutivo da
república. E, não obstante, o direito
dos cidadãos é estabelecido na
enumeração do destino da Constituição:
“a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a

105 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 73.

186
justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia
social”.

Os três critérios são o respeito


à determinação kantiana de que deve-se
observar a existência de uma
Constituição Republicana. Veja como as
garantias do preâmbulo da Constituição
Brasileira estão pautadas na teoria do
direito kantiana:

“A constituição republicana
é a única espécie de
constituição que decorre da
ideia de um contrato
original, sobre o qual
devem basear-se todas as
leis legisladas por um
povo, e é, portanto, como
direito, ela própria aquela
sobre a qual todas as
constituições civis são
106
originárias.”

A ideia de contrato originário – isto


é, o contrato que visa acabar com o
Estado de Natureza – fica claro quando
olhamos para o contexto do
estabelecimento da Constituição

106 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 75.

187
Brasileira: o fim do Estado Despótico
estabelecido com o golpe militar de
1964. Um golpe militar, acima de tudo,
é o estabelecimento da lei do mais
forte: Lex armorum. Não há melhor
definição de um Estado Despótico do que
aquele de um governo militar. É pelas
armas, pelos tanques nas ruas que se
estabeleceu a existência do Estado
proveniente do golpe de 1964. E mais,
um estado augutiniano - ad calendas
graecas – pois, estabelecido como um
governo temporário – às graças do
calendário. Mas, que se firmou num
Estado de guerra de todos contra todos.

A liberdade jurídica (e,


portanto, externa) não
pode, como se faz
convencionalmente, ser
definida como a autoridade
para fazer qualquer coisa
que se queira, desde que
não se faça mal a ninguém.
Pois o que se entende por
autoridade? A possibilidade
de uma ação, na medida em
que não se faz mal a ninguém
ao agir assim. A definição
de liberdade seria,
portanto, a seguinte:
liberdade é a capacidade de
agir de maneira a não
188
prejudicar ninguém ao agir
assim. Não se faz mal a
ninguém (pode-se fazer o
que se quer), apenas na
medida em que não se faz mal
a ninguém: esta é,
portanto, uma tautologia
vazia. é a autoridade para
obedecer a nenhuma lei
externa além daquelas às
quais pude dar
consentimento. - Da mesma
forma, a igualdade externa
(jurídica) em um estado é
aquela relação entre os
cidadãos de um estado
segundo a qual ninguém pode
colocar outro sob uma
obrigação legal sem se
sujeitar igualmente a uma
lei segundo a qual possa
ser colocado sob uma
obrigação semelhante pelo
outro.107

Como havíamos argumentado, a


liberdade irrestrita é uma contradição
em termos. Pois, o direito é,
justamente, uma constrição de uma
liberdade. Mas, em que termos se dá

107 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 74

189
essa circunscrição? É na garantia
mútua – estabelecida pelo Contrato
Social, em termos da filosofia
política – que a garantia de direitos
deve ser, também, mútua. É necessário
no Estado de Direito que haja a
circunscrição das liberdades dos
indivíduos – enquanto ente único de
razão – para garantir as liberdades
mútuas, isto é, a liberdade que não se
garante mediante a ação da lei do mais
forte. O que chamamos de circunscrição
da liberdade irrestrita do indivíduo
ente de razão é o que Kant denomina de
liberdade externa, ou melhor,
liberdade jurídica. O que se quer dizer
é que a liberdade jurídica resulta da
renúncia de direitos absolutos – e por
renúncia do direito absoluto entende-
se o direito do mais forte do Estado
de Natureza – em virtude dos direitos
garantidos de forma equânime a todos
os atores detentores das três formas
de garantia de liberdades juridicas
(pelo direito individual, das gentes e
cosmopolita). A liberdade jurídica é,
portanto, o reconhecimento de uma
obrigação mútua entre indivíduos,
estabelecida pela renúncia do Estado
de Natureza, em favor de uma autoridade
individual – e estabelecida pela razão
– de não se prejudicar os direitos
estabelecidos pela lex certa. É
importante ressaltar que essa
190
autoridade é justamente o produto
racional do cálculo de autopreservação
estabelecido pela insociável
sociabilidade. A garantia de
existência do Estado de Direito (do
império da lei) jaz, portanto, no que
há de mais caro ao indivíduo egoísta,
ou seja, sua própria autopreservação.

E é neste sentido que o chamado


idealismo alemão se diferencia do que
se pode chamar de idealismo platônico.
Em Platão, o ideal é estabelecido pelo
mundo das suprassensível das ideias. É
neste contexto, em especial a partir
da República, que há uma diferenciação
entre o idealismo alemão, aqui
representado por Kant, e o idealismo
platônico. Na República, o
estabelecimento de uma república
guiada pelas leis – estas enquanto
produto da razão – se dá por meio de
um raciocínio dedutivo: “obedeço às
leis da República porque conheço da sua
natureza justa”. A definição da
prática jurídica contemporânea do
“conhecimento” de um ato jurídico pelo
magistrado é uma boa analogia para se
compreender os dois âmbitos do que se
quer dizer por conhecimento do ato
jurídico. Este conhecimento não se dá
somente no mundo da abstração, isto é,
como produto da intelecção que leva ao
conhecimento de algo. Mas, também, se

191
dá na aplicabilidade do que se é
conhecido. Neste ato de cognição
clássico, o mero conhecimento de algo
garante a sua aplicabilidade.

Na prática jurídica
contemporânea, o primeiro ato de
análise de um pleito jurídico é o de
conhecimento da “causa de pedir”
(causa petendi), isto é, os
fundamentos ensejados do que se foi
pleiteado (do conhecimento particular)
em relação à decisão que se pretende
obter (garantia universal dado pela
Lex Certa). Neste sentido, o ato de
conhecer algo se dá a partir da sua
congruência e da sua adstrição. Na
teoria do direito criada a partir do
movimento iluminista, o movimento de
cognoscibilidade é o contrário do
idealismo platônico (o mero conhecer
de algo não é condição suficiente para
sua aplicação). É um movimento de
indução (do fato particular à garantia
universal). O fato, então, deve estar
totalmente circunscrito pelo tipo –
impedindo, assim, o conhecimento de
algo por analogia. Este é o resultado
da cláusula salvatória estabelecida
como axioma primevo de interpretação
da teoria do direito pós-iluminismo
aqui representado por Kant. É,
portanto, a partir da renúncia
racional – ensejada pelo princípio de

192
autopreservação da insociável
sociabilidade – da garantia do direito
mutuo – e estabelecido pela Lex Certa
– onde jaz o estabelecimento do
Contrato Social, na forma das
liberdades jurídicas.

Os seguintes
esclarecimentos devem ser
oferecidos, para que não se
confunda (como
frequentemente acontece) a
constituição republicana
com a constituição
democrática. As formas que
um estado (civitas) assume
podem ser classificadas de
acordo com as pessoas que
ocupam o cargo de
autoridade máxima no estado
ou de acordo com a maneira
pela qual o chefe de estado
governa o povo (seja quem
for o chefe de estado). . A
primeira é propriamente
chamada de forma de
soberania ( forma imperii
), e apenas três dessas
formas são possíveis, uma
vez que apenas uma pessoa,
um grupo de pessoas

193
associadas ou todos os que
compõem a sociedade civil
podem possuir poder
soberano (autocracia,
aristocracia , e
democracia; a autoridade do
monarca, da nobreza ou do
povo). A segunda é a forma
de governo (forma
regiminis) e diz respeito à
maneira, baseada na
constituição (o ato de
vontade geral pelo qual uma
multidão se torna um povo),
pela qual o Estado faz uso
de seu poder. O estado é, a
esse respeito, republicano
ou despótico. O
republicanismo é o
princípio pelo qual o poder
executivo (o governo) de um
estado é separado do poder
legislativo. O despotismo é
o princípio pelo qual o
Estado executa, por sua
própria autoridade, as leis
que ele mesmo fez. Sob o
despotismo, a vontade
pública é, portanto,
tratada pelo monarca como
sua vontade individual.
Entre as três formas de
Estado, a democracia é, no
sentido próprio do termo,
194
necessariamente uma forma
de despotismo, porque
estabelece um poder
executivo pelo qual "todos"
decidem sobre e, se
necessário, contra um (que,
portanto, não concorda).
Assim, “todos” que não são
realmente todos tomam
decisões, o que significa
que a vontade geral está em
contradição consigo mesma e
com a liberdade.108

A distinção entre o conceito de


República e Democracia é importante.
São qualidades distintas da
constituição de um Estado. O Estado
Republicano não diz respeito à forma
de governo (forma regiminis), mas, a
forma de estabelecimento do Contrato
Social (forma imperi). A forma
constitutiva (forma imperi) pode ser,
portanto, republicana ou despótica. A
garantia de uma paz perpétua depende
do movimento racional do
estabelecimento do Contrato Social. Na
autoridade individual da renúncia do
Estado de Natureza em favor das
liberdades jurídicas. É impossível se

108 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 76

195
falar em constrição racional, e justa,
de liberdades num governo despótico –
onde as leis são estabelecidas a partir
de um movimento indutivo, pois, não há
a primazia do indivíduo no ato de
conhecer – nos termos de congruência e
adstrição – da Lex Certa. Mas, na
imposição da Lex Armorum da forma de
regime (forma regiminis) das
constrições resultantes nas liberdades
jurídicas.

É isso que, aqui, distinguimos


como duas condições possíveis de
estabelecimento de um Estado, quais
sejam, a indutiva e a dedutiva. No caso
da dedutiva, a primazia é da forma de
regime – e não no conhecimento
individual, enquanto exercício
racional da sociedade, onde a forma do
contrato social será, sempre, um
governo despótico -. Pois, a adstrição
e a congruência das liberdades
jurídicas é estabelecida pela forma de
regime, isto é, da reservatio mentalis
da figura do que Hobbes caracterizou
como o papel do Soberano (e aqui pode
haver o estabelecimento da reservatio
mentalis precípua do Soberano mesmo
que se dê na forma de um governo de
maiorias e não na figura unívoca do
Monarca no papel de Soberano). Por
outro lado, quando há um movimento
indutivo, a primazia do

196
estabelecimento do Contrato Social
(caracterizado na congruência e
adstrição dos direitos dos indivíduos,
das gentes e cosmopolita) na forma
imperi é que há o estabelecimento de
direitos justos. Pois, a constrição
das liberdades inerentes ao Estado de
Natureza se dá por meio de um fato da
razão que busca a própria
autopreservação. Neste sentido, só é
possível falar em Lex Certa numa
Constituição Republicana, pois, é uma
Lei em que há o exercício da autonomia
da vontade (conceito que voltaremos à
diante) da razão dos membros de um
Estado.

O que se fez até aqui foi


determinar as razões de quatro
princípios fundamentais do direito,
quais sejam, a Lex Praevia, ou lei
prévia; Lex Certa, ou lei certa; Lex
Scripta, ou lei escrita; e, lex
stricta, ou lei estrita. São estes os
quatro pilares fundamentais do direito
advindo do iluminismo, representado,
aqui, pela filosofia do direito
kantiano.

O princípio da Lex Stricta, ou da


impossibilidade de interpretação do
tipo penal por analogia é justamente
uma salvaguarda contra a reservatio
mentalis acima definida. É a
nulificação de pleno direito (nulidade
197
incorrigível) no âmbito da
hermenêutica jurídica das axiologias e
valores individuais irrefletidos.
Pois, daí, se resulta, apenas, o
arbítrio. Nos termos acima utilizados,
sem a observância da lei estrita o que
se há é um Estado Despótico, pois, se
impera o poder de se fazer cumprir algo
e não no estabelecimento racional da
constrição de liberdades na forma da
lei. Ou, na letra kantiana:

Isso, portanto,
significa que o favorecido
recebe sua posição (ser
comandante) sem nenhum
mérito prévio. Isso é algo
que a vontade geral do povo
nunca concordaria em um
contrato original (que é,
no entanto, o princípio de
todos os direitos).109

Voltaremos a este assunto a seguir,


mas, adianto que essa “vontade do
Contrato Social”, enquanto renúncia
autônoma de liberdades pela vontade
dos indivíduos é o que Montesquieu
determinou como sendo, genericamente,
o Espírito da Lei. No léxico
contemporâneo se chama de “vontade do

109 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 75

198
legislador” ou “vontade do
constituinte”. E já abordamos aqui
qual é essa vontade. A vontade é da
lei, o impetus legislandi; é a causa
de vir-a-ser de uma lei. Em outras
palavras, é o que se pretende atingir
com a promulgação de uma determinada
lei. E no caso que utilizamos como
parâmetro exemplificativo – a fim de
verificar a cláusula salvatória – a
Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, este ímpeto
(impulso) é estabelecido no preâmbulo
da constituição. Vale retomar:

“Nós, representantes do
povo brasileiro, reunidos
em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir
um Estado Democrático,
destinado a assegurar o
exercício dos direitos
sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o
bem-estar, o
desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como
valores supremos de uma
sociedade fraterna,
pluralista e sem
preconceitos, fundada na
harmonia social e
comprometida, na ordem
interna e internacional,

199
com a solução pacífica das
controvérsias”

O contexto histórico, como


argumentamos, foi o de findar um Estado
Despótico (estabelecido no Golpe de
1964) onde se imperava uma autocracia
indireta despótica. O impetus
legislandi, a vontade do Constituinte
é justamente a Paz Perpétua, ipsis
literis, estabelecida na fundação na
“harmonia social e comprometida com a
solução pacífica de controvérsias”.
Por harmonia social e solução pacífica
de controvérsias deve se entender como
o pacto social para o fim do Estado de
Natureza (refletido no estabelecimento
do Estado Despótico do Golpe Militar).

Como vimos, o Estado de Natureza


não é somente o Estado Irrestrito de
uma Guerra de Todos Contra Todos (o que
no direito interno aos Estados se
chamaria de Guerra Civil), mas, a
ameaça a não garantia de direitos
mútuos. E, portanto, na letra da
Constituição, essa garantia se dá na
solução pacífica de controvérsias. Ou,
nos termos kantianos acima utilizados,
se dá por meio do estabelecimento de
garantias mútuas diante da renúncia da
autonomia da vontade dos indivíduos
visando a autopreservação,
estabelecida como fim último do
indivíduo egoísta – nos termos da
200
insociável sociabilidade – mediante a
solução pacífica de controvérsias,
isto é, o fim da lei arbitrária, da lei
despótica, do que chamei de Lex
Armorum, ou seja, no fim do Estado
Despótico.

Do princípio da Lex Stricta é que


se derivam os outros três mencionados.
A saber, a Lex Praevia, ou lei prévia;
Lex Certa, ou lei certa; Lex Scripta,
ou lei escrita.

A Lei estrita pressupõe o


estabelecimento de um Contrato
Original – ao que denominamos de
Constituição; de Carta Magna; Lei
Primeira ou Primeva. Mas, o que é,
afinal, a lei estrita? É a consequência
prática da tripartição dos Três
Poderes. E por tripartição devemos
entender a finalidade da República,
isto é, o fim do Estado Despótico.
Aquele que julga não pode julgar de
acordo com as próprias leis, pois,
estas leis – se próprias e individuais
– se confundiriam, sem mais, com a
própria vontade. É a existência da lei
escrita – e feita por outro que não
aquele que julga ou que executa a lei
– que garante o exercício autônomo da
vontade tendo como objetivo primeiro e
último o poder do arbítrio do Estado
Despótico. Estado Despótico nada mais
é do que um Estado que não há a
201
existência da autoridade da vontade.
Na existência da garantia de
liberdades mútuas. Ou melhor, em suma,
o Estado Despótico é a situação
jurídica em que não há garantias mútuas
de constrição de liberdades mediante o
consentimento da autoridade da
liberdade da vontade em estabelecer as
próprias condições de autopreservação.
Kant sumariza este conceito como o de
liberdade jurídica.

Deriva, também, do princípio da


lei estrita o princípio da lei certa.
Lex Certa é um conceito que se dá em
oposição ao de Lex Tertia (lei
terceira) e está diretamente ligado à
possibilidade do órgão julgador
legislar. A Lex tertia é a combinação
de duas leis com intuito de formar uma
terceira. A constituição sumariza o
caráter da Lei Certa nos seguintes
termos: “não há crime sem lei anterior
que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal”. Como vimos, a lei
estrita é resultado necessário da
cláusula salvatória. Que por sua vez
resulta na lei estrita (tripartição
dos três poderes). A necessidade da Lei
Certa é uma determinação do próprio
preâmbulo da Constituição, além de
consequência do princípio da lei
estrita, quando determina que a
solução de conflitos será harmoniosa.

202
O primeiro conflito de uma
República está na própria competência
dos três poderes. Isto é, ao definir
que serão três os poderes,
necessariamente se recai sobre a
seguinte questão: “Quais são os
limites de cada poder?” ou “O que
compete a cada poder?”, ou, ainda, numa
terceira tentativa de definir o
primeiro conflito de uma república:
“Qual é a atribuição de cada poder?”.
E a chave para responder essa questão
está no princípio da harmonia. Cabe
recorrer ao dicionário para definir
harmonia: “a combinação de elementos
ligados por uma relação de
pertinência”. Pertinência nada mais é
do que um sinônimo de atribuição. É um
clichê, mas, vale retomar: “O
legislativo cria as leis, o executivo
executa as leis e o judiciário julga
as leis”. O que o princípio da Lei
Certa faz é garantir essas atribuições
à cada um dos poderes. A lei (a
constrição de liberdade) deve ser
estabelecida pelo legislativo. Ao
executivo cabe executar, isto é, fazer
cumprir as leis. Enquanto ao
judiciário cabe julgar.

É muito comum ouvir a crítica de


que o “judiciário está legislando”,
mas, no que consiste o “ato do
judiciário legislar?”. É, justamente,

203
na tentativa de violar o princípio da
Lex Certa, isto é, combinar leis para
criar uma terceira lei. O que é
distinto do estabelecimento
jurisprudencial, isto é, no
entendimento de uma lei. O
estabelecimento do entendimento da
aplicação de uma lei está definido como
competência do judiciário, isto é,
julgar é “opinar sobre” (veremos mais
adiante do que se trata esse juízo). O
que o princípio da Lei Certa veda é
exatamente o que foi determinado pela
cláusula salvatória: a aplicação
cominação legal (de pena restritiva de
direitos ou de liberdades) necessita
de lei anterior. E esta lei deve estar
estabelecida nos moldes da Lei Escrita
obedecendo o princípio da Lei Estrita
– conforme definimos o que Kant chamou
de princípio da dependência
110
jurídica . Dependência deve ser
entendida como sujeição (enquanto
produto da constrição racional de
liberdade na forma da Lei estabelecida
pela autonomia da vontade). O
judiciário pode, portanto, estabelecer
o entendimento (jurisprudência) da
aplicação da lei, mas, não pode se
utilizar da Lex Tertia. Num exemplo

110 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. 74

204
prático, o judiciário não pode definir
como hediondo o crime de pedofilia,
pois, não existe na Lei Escrita a
tipificação de crimes sexuais como
sendo hediondos. Pode, por outro lado,
estabelecer a cominação dos crimes
hediondos à injuria racial, pois,
julga-se a aplicabilidade do
entendimento dado ao crime de racismo
(ambos tipos penais, injúria e racismo
versam sobre o caráter hediondo de
crimes raciais), pois, há o
entendimento que os crimes hediondos
se estendem à tipicidade do crime de
preconceito étnico.

Foi, portanto, num exemplo


prático, este o sentido do
entendimento do Superior Tribunal
Federal ao determinar que a resposta à
emergência sanitária da COVID-19
deveria se dar de forma concorrente
entre os entes federados. Foi a partir
da aplicação da Lei Estrita – no pacto
social de findar com a ameaça à
garantia de constrição mútua de
liberdades, determinada pela autonomia
da vontade diante da autoridade da
liberdade dos indivíduos, o direito à
autopreservação – em respeito à Lex
Scripta, isto é, diante da
determinação constitucional da divisão
administrativa brasileira em entes
federados (união, estados e

205
municípios), julgou-se que a Lex Certa
estabelece à indivisibilidade dos
Entes Federados no exercício de suas
atribuições – também dado pela Carta
Magna - determinou a ação de todos os
Entes – caso contrário se estaria
criando, como queria o senhor Jair
Messias Bolsonaro – uma Lex Tertia do
não conhecimento do direito primevo
dos indivíduos – o de autopreservação
– em razão de uma tentativa de
estabelecimento de um Estado Despótico
onde a reservatio mentalis do soberano
se sobrepuja ao impetus Legibus do
Contrato Social em findar o Estado de
Natureza mediante a constrição de
liberdades irrestritas a partir do
exercício da vontade livre dos
indivíduos – estabelecidas no Contrato
Social (Constituição).

Isso nos leva ao quarto princípio


legislativo da tradição jurídica
inaugurada pelo Iluminismo: a Lex
Praevia – lei prévia. Já estabelecemos
que a Lei é a constrição de liberdades
irrestritas garantidas somente no
Estado de Natureza. Mas, o que
significa a existência de uma lei
prévia? Obviamente, existe uma leitura
rasa do conceito que diz respeito,
somente, ao tempo cronológico: a lei
criminalizou uma conduta na data “A”.
A partir da vigência da lei, os

206
indivíduos passam a sofrer a cominação
(restrição de liberdade e de direitos,
nos termos técnicos do operador do
direito). Mas, esse entendimento é
raso (e já foi estabelecido pelos
princípios da Lei Estrita, da Lei
escrita e da Lei Certa). Fosse só esse
o entendimento possível para lei
prévia, seria uma regra circular e
inócua. Não obstante, violaria a
cláusula salvatória do Non bis in idem
(não do mesmo sobre o mesmo). Então,
deve-se compreender a Lei Prévia de uma
forma mais abrangente. A partir do
“tempo lógico”. O tempo lógico nada
mais é do que a aplicação prática da
“vontade do constituinte”.

Já estabelecemos a vontade do
constituinte a partir do seu contexto
histórico: acabar com a existência de
um Estado Despótico e estabelecer uma
República, ou melhor, estabelecer um
Contrato Social visando a Paz Perpétua
– vide preâmbulo. A Constituição da
República, aponta Kant, tem essa
característica particular, diante do
estabelecimento das leis escrita,
certa e estrita, um momento inaugural
(promulgado na história dos fatos) da
vigência do contrato social. Mas,
novamente, poderíamos cair na
interpretação rasa de que se trata tão
somente de um tempo cronológico (tempo

207
do calendário). Mas, o que o Contrato
Social estabelece, na verdade, é o
tempo lógico das leis. A Constituição,
representando, como vimos, um pacto –
contrato – social (deve-se entender,
como veremos adiante quando abordarmos
Cícero; como os valores de uma
sociedade) é a lei originária; isto é,
de onde todas outras derivam. É a lei
primeira e primeva. A lei das leis. A
lei Maior.

Todo esse percurso argumentativo


que fizemos até aqui foi para
estabelecer que a Constituição é,
portanto, o estabelecimento lógico e
cronológico da renúncia autônoma da
liberdade individual ao Estado de
Natureza – e do Estado Despótico – em
favor dos direitos e garantias
individuais, das gentes e cosmopolita
a partir do estabelecimento da
liberdade jurídica diante da
autoridade racional dos indivíduos –
com intuído de garantir a
autopreservação individual, tendo como
fim último do corpo social a garantia
mediada pelas das três formas de
direito citadas, a paz perpétua; na
forma da celebração de um Contrato
Social (termo da filosofia do
politica) de renúncia mútua de
liberdades irrestritas – que cominam
na “Lei do Mais Forte” – doravante ao

208
aceite (ao juízo como veremos
posteriormente) racional na constrição
de liberdades mediadas na forma das
leis estritas, escritas e certas;
garantindo, assim, uma sociabilidade
ao caráter insociável e egoísta dos
indivíduos. Uma forma jurídico-
filosófica e, talvez,
desnecessariamente complexa de dizer
que a finalidade da Constituição é o
que Darwin denominou como “Preservação
da espécie”.

É neste sentido que se dá o


caráter originário da Constituição. É
um ato da razão visando a preservação
da espécie mediante à renúncia
autônoma da vontade à máxima
Hobbesiana de que o “Homem é o lobo do
Homem”, traduzido na sua forma máxima,
na guerra de “todos contra todos”.
Deve-se entender, portanto, a
Constituição a celebração do pacto de
autopreservação a partir do uso livre
da razão expresso pela autoridade da
liberdade da vontade. Deve-se entender
como finalidade primeira da
convivência em sociedade este pacto
para o estabelecimento da Paz
Perpétua. Mas, como Kant alerta no
argumento de indução que leva ao
imperativo categórico, o outro deve
possuir um fim em si mesmo e não o meio
para algo. Este movimento de

209
autodeterminação da liberdade é
justamente o ato racional (e diria que
quase instintivo nos termos da
Evolução das Espécies de Darwin) que
cada indivíduo faz, em favor de seu
semelhante, tenha a garantia da sua
autopreservação (a finalidade última
da autopreservação individual). A
constrição de liberdades irrestritas
mediada racionalmente pela
Constituição é, deste modo, a garantia
de que o pacto da razão em estabelecer
a constrição mútua de liberdades
irrestritas consistirá na
autopreservação de cada indivíduo. É
neste sentido que Kant assevera que o
princípio egoísta à autopreservação
individual é o que garante a
autopreservação do semelhante. E é por
isso que devemos entender a
Constituição tanto em seu tempo
cronológico quanto lógico. Porque ela
é a finalidade primeira e última da
vontade de autopreservação do
indivíduo egoísta.

E este princípio filosófico de


tempo lógico da Constituição é
refletido no dia a dia da prática
jurídica. É o que se denomina por
hierarquia das leis. Pode-se traduzir
essa hierarquia, como se espera, numa
pirâmide. Onde no primeiro patamar
está a Constituição e Tratados

210
Internacionais; no segundo, as leis
complementares e ordinárias; no
terceiro os decretos; e no quarto as
resoluções, portarias e deliberações.
O tempo lógico da Constituição fica
claro quando nos voltamos a própria
prática jurídica. Se não houvesse uma
anterioridade lógica da Carta Magna
seria impossível que se fizesse o que
se chama de “controle de
constitucionalidade” de uma lei. É a
anterioridade lógica da Lei Primeira
que possibilita a perpetuação do
Contrato Social enquanto peça
inaugural do pacto social em busca do
fim do Estado de Natureza e do Estado
Despótico. Mas, não é a hierarquia das
leis – cara a prática cotidiana
judiciária – que nos interessa agora.

Tem-se, deste modo, a conclusão


de que o Contrato Social nada mais é
do que uma lei prévia – no seu mais
amplo sentido, isto é, no âmbito lógico
e cronológico. Devemos, doravante,
investigar as condições que se dá essa
lei originária. Isto é, qual o sentido
que se deve dar ao que chamamos de
autoridade da autonomia da vontade na
determinação da constrição de
liberdades voluntária de abnegação do
Estado de Natureza e do Estado
Despótico?

211
O fio condutor que seguimos até
aqui foi o seguinte: partimos de uma
cláusula salvatória para pesquisar a
natureza da promulgação de uma
Constituição. Diante dessa salvaguarda
chegamos em três formas de direitos
fundamentais à Constituição de uma
República. Derivamos dos direitos dos
indivíduos, das gentes e cosmopolita –
promulgados no apêndice da
Constituição Brasileira – a
necessidade do estabelecimento de um
Pacto Social para findar o Estado
Despótico instaurado pelo golpe
militar de 1964. Diante disso,
chegamos à determinação de quatro
pontos fundamentais do Estado de
Direito: as leis estrita, certa,
escrita e prévia no estabelecimento de
uma República. Foi então que
distinguimos o Pacto Originário
(constituição) a partir de seu tempo
cronológico e lógico. O que pretende-
se fazer doravante é estabelecer os
conceitos de celebração deste pacto
fundamental: a constrição livre e
racional de liberdades irrestritas
existentes no Estado de Natureza a fim
de resguardar o encerramento do Estado
Despótico vigente durante a ditadura
militar brasileira.

Este problema que encontramos é


fundamental, pois, versa sobre a

212
própria natureza da Filosofia do
Direito. A partir da Paz Perpétua nos
deparamos com três formas de direito
(retomaremos mais a diante o problema
dos direitos dos indivíduos, das
gentes e cosmopolita) que devem estar
pautados em quatro princípios
fundamentais à teoria das Leis numa
República. Pois, estes princípios –
lei prévia, lei certa, lei escrita e
lei estrita - são conditio sine qua non
para a cláusula salvatória que
propusemos seguir e que iniciamos
nossa reflexão sobre a pergunta: o que
é a paz prometida pela Constituição
Brasileira de 1988? E são
fundamentais, como vimos, por serem
consequência do estabelecimento de uma
República e o meio para o
estabelecimento do objetivo definido
no preâmbulo é a constituição de uma
República Federativa e Democrática.
Vale retomar à Constituição para que o
objetivo e o meio citados fiquem
claros:

Nós, representantes
do povo brasileiro,
reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para
instituir um Estado
Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos
direitos sociais e

213
individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como
valores supremos de uma
sociedade fraterna,
pluralista e sem
preconceitos, fundada na
harmonia social e
comprometida, na ordem
interna e internacional,
com a solução pacífica das
controvérsias,
promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.

O pacto originário, então, se dá


mediante a promulgação (entenda-se por
promulgação o ato de tornar público a
referido ato de criação de um Estado
com as seguintes características:
Republicano e Democrático. É o que
chamamos anteriormente de forma
regiminis (democracia) e de forma
imperi (República).

E a chave para entendermos o


porquê de ponderarmos uma questão tão
essencial à filosofia do direito, isto
é, a própria natureza do direito,
resulta do fato que precisamos
compreender o que é a “solução pacífica
de controvérsias”. Isso porque a
214
solução pacífica de controvérsias é o
resultado do que chamamos
anteriormente de renúncia racional das
liberdades irrestritas existentes no
estado de natureza. Esta determinação
Constitucional é justamente a
determinação de que o pacto social
brasileiro, estabelecido em 1988,
constitui na pactuação social com
intuito de abolir o Estado de Guerra
de Todos Contra todos mediante a
resolução pacífica de controvérsias.
Uma controvérsia nada mais é do que o
conflito entre liberdades irrestritas.
Neste sentido, o dicionário nos ajuda
a entender o objetivo da Constituição
como sendo o de abolição do Estado de
Natureza – e do Estado Despótico.
Controvérsia, define o dicionário, é
uma questão sobre a qual há divergência
(isto é, que há entendimentos
distintos). É no próprio texto da Paz
Perpétua que Kant determina a
necessidade de renúncia de liberdades
irrestritas – diante da pactuação da
autoridade da vontade, por meio de leis
– em favor da liberdade jurídica, ou
liberdade externa. Tendo em vista a
necessidade de preservação a fim de
evitar que o Estado de Natureza leve à
Guerra de Extermínio de Todos Contra
Todos.

215
Existe um conceito fundamental
para a compreensão do que foi
promulgado no Preâmbulo da
Constituição. Se é verdade que a
solução pacífica de conflitos resulta
da renúncia da lei do mais forte, se
pressupõe a criação de uma Instituição
mediadora de conflitos. Onde seja
garantida as liberdades externas –
estas entendidas como a renúncia de
liberdades absolutas, existente
somente no Estado de Natureza, e do
arbítrio da Lei do Mais Forte (que
anteriormente chamei, devido o
contexto do golpe militar de 1964 ter
sido estabelecido pela contingência de
todo aparato militar nas ruas, de Lex
Armorum). E se pressupõe o
estabelecimento de uma Instituição
mediadora de conflitos porque sem um
intermediário, com o poder de decidir,
continuará vigente a Lei do Mais Forte.
Este conceito fundamental, que
deduzimos do preâmbulo, toma a forma
da lei escrita já no primeiro artigo
da Constituição. Diz a letra fria da
lei:

“Art. 1º A República
Federativa do Brasil,
formada pela união
indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em

216
Estado Democrático de
Direito e tem como
fundamentos: I - a
soberania; II - a
cidadania; III - a
dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do
trabalho e da livre
iniciativa; V - o
pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o
poder emana do povo, que o
exerce por meio de
representantes eleitos ou
diretamente, nos termos
desta Constituição.”

Observe o tipo de Estado que se


constitui: “Democrático” e “de
direito” de forma regiminis
(democracia) e de forma imperi
(República). A República é,
justamente, o Estado em que há a
renúncia de direito. Já vimos a
definição de direito. Mas, vale
relembrar:

“Esse sistema de leis


públicas justas é chamado
de “direito público”. lei
Geral; e o direito público
é a soma das leis externas
que tornam possível tal

217
harmonia universal” (TP
8:289–90; cf. MM,6:230).”111

Se a promulgação, em seu preâmbulo,


determinou a criação de uma República
Democrática. O artigo primeiro
transformou esta determinação a partir
dos quatro princípios que chamei de
fundamentais em Teoria das Leis. O
Estado Brasileiro é, portanto, um
Estado que se pauta nas leis públicas:
na restrição de liberdades irrestritas
para que sejam possíveis as liberdades
externas (jurídicas) com intuito de
garantir uma harmonia universal. Já
vimos a definição de harmonia, isto é,
“o que é pertinente a cada um”. Vale
chamar a atenção que o próprio
parágrafo único confirma que se trata
de um Estado de Renúncia de liberdades
irrestritas. Veja o que diz a Lei
Certa: “Todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição.” Há, sem mais, um
Estado Democrático – em que o poder
emana do povo. Mas, não é um Estado
Despótico – em que impera a lei do mais
forte na figura das maiorias. É um
Estado de abjuração do direito à

111 KANT, Immanuel. À paz perpétua: Um


projeto filosófico. Editora Vozes, 2020.
P. xviii

218
vontade das maiorias em respeito aos
valores estabelecidos no pacto
fundante promulgado pela Constituição.

E os valores fundamentais da
República estão estabelecidos nos
próprios incisos do artigo primeiro da
Carga Magna: “I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa
humana; IV - os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político”. E isso é a
promulgação da tripartição do direito
feita por Kant: a soberania diz
respeito ao direito das gentes;
enquanto a cidadania e o pluralismo
político dizem respeito ao direito dos
indivíduos; a dignidade da pessoa
humana se refere ao direito
cosmopolita, pois, foi fundada na
Declaração Universal dos Direitos
Humanos da Organização das Nações
Unidas; Já os “valores sociais do
trabalho” dizem respeito à insociável
sociabilidade: o direito à
autopreservação dos interesses
próprios representados na figura do
trabalho (trabalho é definido, pelo
dicionário como sendo o “Conjunto das
atividades realizadas por alguém para
alcançar um determinado fim ou
propósito”);

Por fim, o direito à “livre


iniciativa” diz respeito à autonomia
219
da autoridade da liberdade em
estabelecer um pacto social que visa o
fim do Estado de Natureza e do Estado
Despótico. E isso fica claro pois se
fala de “livre iniciativa” num inciso
que trata dos meios empregados para
atingir um propósito, i. e., os valores
sociais do trabalho. É claro que
poderia se entender a “livre
iniciativa” como sendo a mera
possibilidade do indivíduo trabalhar
onde quiser. Mas, isso não passa de uma
leitura rasa. Pois se trata da
conjunção “e” e não “ou”. Há uma
relação de adição entre os fundamentos
que devem ser observados e não uma
relação de exclusão (uma conta simples
de tabela verdade indica isso); o que
se conclui daí é que a livre iniciativa
deve obedecer aos valores sociais que
são justamente, como fica claro no
parágrafo único, os valores
estabelecidos no pacto Constitucional.

Aqui devemos lembrar das palavras


de Ulysses Guimarães. Disse o
presidente da Assembleia Constituinte,
no ato de promulgação da Carta Magna,
que a Constituição confessa à sua
própria imperfeição quando admite a
possibilidade de reformas – na figura
de emendas (correção de uma falha)
constitucionais. E não poderia ser de
outra forma. Afinal, a Constituição

220
que não permite correções de falhas
estaria ela mesma alheia à tripartição
dos poderes que ela consagra. Porque
ela estaria imune ao poder
legislativo. Seria, portanto, uma
pacto originário despótico, jamais
republicano. Isso porque ela estaria
submetida à exclusividade da
reservatio mentalis dos membros da
Assembleia Constituinte.

O objetivo deste primeiro


capitulo foi justificar o porquê da
Constituição brasileira ser
interpretada a partir da filosofia do
direito Kantiana, isto é, justificar o
porquê do percalço argumentativo que
aqui foi estabelecido. E, como vimos,
a resposta para essa pergunta é dada
pelo próprio preâmbulo da Constituição
de 1988, pois, ela tem como seu
objetivo primeiro a renúncia do Estado
de Natureza, e do Estado Despótico, em
favor de um objetivo último da garantia
dos direitos dos indivíduos, das
gentes e cosmopolita tendo como norte
a busca pela Paz Perpétua.

Iniciamos este capítulo com uma


pergunta que se pretendia responder
nessa reflexão. Retomo: “Qual a
natureza faculdade de julgar presente
no juízo de promulgação de uma
Constituição Republicana na vontade
egoísta de autopreservação determinada
221
pela autoridade da autonomia da
vontade livre diante da insociável
sociabilidade mediada pela renúncia ao
Estado de Natureza e ao Estado
Despótico?”. O que esperamos ter
estabelecido até aqui foi que o ato de
abjuração do Estado de Natureza e do
Estado Despótico se dá através de um
pacto fundante constituído nos tempos
lógico e cronológico da promulgação de
uma Constituição Republicana. E que
esta renúncia de liberdades
irrestritas se dá mediada por um ato
autoridade da liberdade da vontade
autônoma.

222
VI

Capítulo II

A necessidade da lei universal

O fio condutor que estabelecemos


para responder à pergunta: : “Teria a
Constituição Brasileira de 1988 como
fim último a autopreservação dos
indivíduos?” nos levou, a partir de uma
cláusula salvatória – que podemos
chamar, também, de “primeiro princípio
metafísico da doutrina do direito” – a
quatro princípios fundamentais do
direito estabelecidos pela
Constituição. Vale retomar: Lei
estrita, lei escrita, lei certa e lei
prévia. Estabelecemos que estes
princípios são efeito causados pela
promulgação de uma República. Creio
ter argumentado de forma satisfatória,
por hora (mas retornaremos à diante)
sobre o princípio da lei estrita, da
lei escrita e da lei certa.

O Princípio da lei prévia nós


estabelecemos dois modos de
compreensão. A anterioridade enquanto
seu tempo cronológico e em relação ao
seu tempo lógico. O caso do tempo
cronológico fica claro a partir do
conceito de “Vacância Legislativa”
(vacancia legis) que é o hiato temporal
entre a promulgação de uma lei e a
produção de efeitos pela lei. Não é
223
este problema cronológico que nos
interessa aqui. Pois, este problema
diz respeito ao cotidiano da prática
jurídica (o problema será retomado num
momento oportuno). Mas, o problema
derivado do tempo lógico do conceito
de lei prévia.

O conceito de lei prévia é


problemático porque o conceito de
anterioridade deve-se aplicar ao
próprio conceito, pois, não pode um
conceito ser uma exceção de si mesmo.
Sob o risco de cairmos num conceito que
nega à si mesmo. Em outros termos, um
conceito de necessidade de
anterioridade lógica e cronológica da
renúncia das liberdades irrestritas do
Estado de Natureza e do Estado
Despótico não pode negar à si mesmo. O
conceito de anterioridade deve se
aplicar tanto às consequências
particulares (ou seja, aos princípios
de lei certa, lei estrita e lei
escrita) quanto ao Universal. Esta
necessidade é determinada pela própria
cláusula salvatória que impede
preferências axiológicas no
estabelecimento de leis justas. É,
portanto, fundamental que haja uma lei
anterior ao conceito de Lei Prévia,
pois, caso não haja a Constituição que
se tenta fundar na não arbitrariedade
do Pacto Social Originário, se

224
encontrará como sendo a si mesmo um ato
despótico do Constituinte, pois,
estará sujeita a promulgação da Lei
Maior à reservatio mentalis incutida
por princípios axiológicos arbitrários
do próprio constituinte. E arbitrários
porquê o conceito de anterioridade da
lei negaria a si mesmo ao determinar
que o conceito “em si” (enquanto
fenômeno do mundo sensível) é uma
exceção “para si” (enquanto princípio
metafísico da Filosofia do Direito). O
que se deve evitar, portanto, para uma
Filosofia do Direito pós iluminismo e
revolução científica é que o direito
tenha como um de seus primeiros
princípios metafísicos num ato da
vontade não autônoma de um princípio
que se quer racional em oposição ao
voluntarismo solipsista. Isso porque,
sob o risco de ser tautológico, o
princípio solipsista é a encarnação do
problema da reservatio mentalis na
medida em que a definição de liberdade
irrestrita é um conceito tautológico.
Isto é, é um conceito analítico
(retomaremos a distinção entre
analítico e sintético num momento
oportuno) em que o predicado está
contido na própria definição do
sujeito. Vejamos o problema nos termos
apresentados por Kant:

225
A liberdade jurídica
(e, portanto, externa) não
pode, como se faz
convencionalmente, ser
definida como a autoridade
para fazer qualquer coisa
que se queira, desde que
não se faça mal a ninguém.
Pois o que se entende por
autoridade? A possibilidade
de uma ação, na medida em
que não se faz mal a ninguém
ao agir assim. A definição
de liberdade seria,
portanto, a seguinte:
liberdade é a capacidade de
agir de maneira a não
prejudicar ninguém ao agir
assim. Não se faz mal a
ninguém (pode-se fazer o
que se quer), apenas na
medida em que não se faz mal
a ninguém: esta é,
portanto, uma tautologia
vazia..—

A Liberdade externa – isto é, aquela


pertinente à convivência entre
indivíduos – não pode, portanto, ser a
liberdade irrestrita. Porque a
liberdade irrestrita resulta na lei do
mais forte presente no Estado de
Natureza (ou seja, anterior ao
estabelecimento do Contrato Social)

226
porque não há mediação entre o conflito
de liberdades individuais. Mas, não
só, o conceito de liberdade
irrestrita, por ser um conceito
analítico (que o predicado está
contido no sujeito) é, sem mais, um
raciocínio circular (se inicia e se
finda no próprio sujeito). É
impossível, portanto, que haja
liberdade irrestrita na relação entre
sujeitos. A liberdade irrestrita é
válida somente enquanto pertinente ao
próprio sujeito. Podemos fazer o
seguinte raciocínio de analogia para
compreender porque o conceito de
liberdade irrestrita se encerra no
próprio sujeito: “o circulo é
redondo”. O atributo de ser redondo é
a própria definição de círculo - o
predicado se encerra no próprio
sujeito, portanto. É um juízo
analítico, ou seja, o predicado não
acrescenta nada ao próprio conceito do
sujeito. Se acrescenta-se seria um
juízo sintético. O conceito de
liberdade externa (que surge a partir
da relação entre indivíduos) deve ser
não somente algo determinado pela
categoria da qualidade, mas, a
liberdade se dá a partir da categoria
da relação. Isso porque o sujeito, para
não se encerrar o conceito de qualidade
num raciocínio tautológico, deve ser
livre em relação ao outro.
227
Abordaremos as categorias
fundamentais do entendimento outrora,
mas, para concluir o argumento é
necessário fazer as seguintes
considerações sobre as categorias
fundamentais: faz parte da categoria
de qualidade do círculo ser redondo.
Faz parte do conceito de círculo a
realidade de ser redondo, a negação de
ser retangular e limitado a ter seu
ponto final o mesmo que o seu ponto
inicial. O juízo de qualidade é,
portanto, reforço, um juízo analítico.
Neste sentido é que deve-se
compreender um juízo analítico sobre a
“liberdade irrestrita”. A categoria
fundamental de qualidade determina que
o conceito seja irrestrito e se encerre
no próprio sujeito. Por outro lado, o
juízo sintético (aquele em que o
predicado não se encerra no sujeito,
mas, acrescenta algo ao sujeito) sobre
a liberdade do sujeito em relação ao
outro encontra-se sob o jugo da
categoria fundamental da relação. Este
círculo é maior, por exemplo, do que
aquele círculo. Ou, sob este mesmo
sentido, a liberdade do indivíduo se
dá em relação àquele outro indivíduo.

O fim do Estado de Natureza só é


possível, portanto, através da
mediação do conceito de liberdade. Do
mesmo modo que o neurotransmissor é um

228
mediador da comunicação neuronal, a
liberdade externa (entre indivíduos)
se dá a partir da mediação. Voltemos à
definição kantiana de liberdade
externa para melhor compreender como
se dá a mediação. Liberdade é

é a autoridade para não obedecer


a nenhuma lei externa além
daquelas às quais pude dar
consentimento

a mediação necessária ocorre,


portanto, através do ato de consentir
à lei. Lembrando que lei a renúncia
mútua de liberdades irrestritas que
tem por finalidade última a
autopreservação do indivíduo egoísta
(voltaremos ao egoísmo da
insociabilidade sociável
posteriormente).

Voltemos ao ponto em que


estávamos do fio condutor, isto é, o
problema da Lei Prévia. A partir da
análise do conceito de liberdade,
concluímos que a lei deve ser objeto
de consentimento do indivíduo. E é por
isso que o conceito de lei prévia não
pode ser uma exceção à si mesmo. Ou,
em termos Aristotélicos, não pode ser
uma causa não causada do Contrato
Social estabelecido pela lei
originária (Constituição). É

229
necessário, portanto, a existência de
uma lei prévia à Constituição.

Para compreender o que se quer


dizer com lei prévia à lei originária
– que parece uma contradição em termos
– devemos nos voltar ao ato de
consentimento à lei. É claro que o
consentimento pode ser definido como o
ato de concordar, de anuência. Mas, não
parece ser esta a melhor definição.
Deve-se entender o consentimento
nominado como, de acordo com o
dicionário, “consentâneo”, ou melhor,
o estado de harmonia. Isso nada mais é
que a lei originária, utilizando-se de
sinônimos de consentâneo, deve ser
congruente à algo. Ou seja,
“correspondente na constituição, forma
ou estrutura”. Nos é um forte indício
ser este o sentido a ser dado ao
conceito de Lei Prévia se nos
voltarmos, mais uma vez, ao preâmbulo
do Pacto Originário: o pacto é fundado
na “harmonia”. Por fundação deve-se
compreender como as leis primordiais
que regulam algo. Ou, o que Kant
chamou, como vimos, de “primeiros
princípios metafísicos da doutrina do
direito”.

Ora, mas, qual deve ser o próximo


passo da investigação para compreender
em que sentido o direito se dá a partir
da renúncia mútua de liberdades
230
irrestrita? Afinal, se há uma renúncia
de liberdade irrestritas de forma
mediada (voltaremos posteriormente em
que termos acontece essa mediação)
para o estabelecimento da República; a
lei prévia ao pacto originário,
também, deve estar em harmonia com
qualquer que seja o princípio que
determina essa constrição voluntária
da liberdade irrestrita. Voltemos ao
conceito de liberdade externa:

é a autoridade para não obedecer


a nenhuma lei externa além
daquelas às quais pude dar
consentimento

Após essa digressão para definir o que


se entende por consentimento, na volta
à definição do conceito de liberdade
externa percebemos que estamos no
caminho correto a partir do uso da
definição de harmonia, da congruência.
E isso porque devemos ser fieis às
análises já feitas. E já determinamos
que não deve-se utilizar de conceitos
tautológicos na ponderação da
Filosofia do Direito. E se tivéssemos
determinado que o consentimento
pertinente à definição de liberdade
externa fosse o ato de anuência,
teríamos em nossas mãos um conceito
definido de forma tautológica, pois,
obedecer à algo é o mesmo que consentir
a uma determinação (no caso, na
231
determinação dada pela lei). Seria
dizer que liberdade externa é a
anuência à leis externas das quais se
dá a concordância. Uma definição,
portanto, circular. Trata-se, desta
maneira, o termo consentir, na
definição de liberdade jurídica (ou
externa) de uma harmonia, de uma
congruência.

Como vimos, a definição de lei


determina que a constrição à
liberdades irrestrita existente nos
Estados de Natureza e Despóticos deve
ser mútua entre os indivíduos. Só assim
é possível, como argumentado, a
existência de uma liberdade externa.
Sob pena da não mutualidade da
constrição não haver, de fato, um pacto
social com intuito do fim do Estado de
Natureza porque continuará a vigência
da Lei do Mais Forte.

Mas, esta congruência se dá em


relação a que? Afinal, não existe a
harmonia de uma coisa consigo mesma.
Seria uma confusão entre as categorias
fundamentais do entendimento. Afinal,
a harmonia de algo consigo mesmo nada
mais é do que algo que pertence à
categoria da modalidade. Isso porque a
congruência de algo consigo mesmo diz
respeito à possibilidade, ou
necessidade, da sua própria
existência. Voltemos ao exemplo do
232
juízo de que o “círculo é redondo”. O
atributo sobre a circularidade do
círculo, como vimos, é a priori112,
pois, embora dependa da observação do
fenômeno empírico, o atributo de
circularidade do círculo está contido
na própria definição desta figura
geométrica e pode ser concebido a
partir de um ato da razão. E, neste
sentido, é um juízo sintético à priori.
E é a priori, pois, se chega na
circularidade do círculo de forma
imediata (a partir da tautologia do
juízo). De modo similar é o juízo sobre
a necessidade (categoria da
modalidade) de que o comprimento do
círculo seja o “dobro da constante ‘PI’
multiplicada pelo raio”. Neste caso há
um juízo sintético a priori isso porque
este conhecimento sobre o comprimento
do círculo se dá mediante a mediação
da razão – e não das representações que
reúnem o múltiplo da intuição sensível
- a partir da abstração, isto é, juízos
explicativos que nada acrescentam ao
conceito do sujeito - de conceitos
concernentes ao mundo da experiência
(empírico). Isto é, e, outros termos.
para que se chegue ao juízo a priori

112KANT, Immanuel. Prolegômenos a qualquer


metafísica futura que possa apresentar-se
como ciência. Estação Liberdade, 2022. P.
16-17

233
da relação de que o comprimento da
figura geométrica do círculo seja o
“produto do dobro da constante pi e do
raio” é necessária a mediação da razão.
E é um juízo sintético porque o
conhecimento das figuras geométricas
depende da existência do fenômeno
empírico. Apesar de ser um juízo a
priori (em que o predicado está contido
na definição do sujeito – porque é
necessário para o conhecimento (aqui
devemos entender conhecimento como
definido anteriormente, isto é, não só
como condição para se apreender algo,
mas, também, a partir da sua
congruência – categoria fundamental de
relação e modalidade – e adstrição –
categoria da qualidade) de que a
existência do círculo é dependente da
mediação do múltiplo da intuição
sensível. De forma contrária temos no
juízo: “o circulo é azul”, um juízo
sintético a posteriori; ou seja, um
juízo em que o predicado (a cor azul)
não está contido no conceito do sujeito
(círculo).

Neste contexto, conclui-se que o


juízo particular no contexto da
Filosofia do Direito será, sempre,
sintético, pois ele diz respeito ao que
é empírico e não ao Universal – ou
melhor, ele não diz respeito aos
“primeiros princípios metafísicos”.

234
Neste sentido, os juízos relativos à
empiria (ao mundo sensível), ou
melhor, sobre o modo (categoria
fundamental) pelo qual os conceitos
universais tem sua existência no mundo
empírico na forma de fenômeno (de
“aparição”, ou melhor, de
manifestação) no mundo são juízos
particulares, portanto sintéticos a
posteriori.

Por outro lado, na filosofia do


direito, os conceitos serão, sempre,
juízos sintéticos à priori. Isso
porque o juízo se dá a partir da
abstração diante da renúncia de
liberdades absolutas tão somente a
partir da convivência com o outro. Em
outros termos, os conceitos da
filosofia do direito dependem da
existência de conflitos entre
indivíduos. E isso fica claro quando
se define a lei como renúncia mútua de
liberdades irrestritas com intuito de
garantir a liberdade externa
(jurídica).

Esta digressão que fizemos foi


com intuito de distinguir o juízo
universal do particular. Ponto
nevrálgico para compreendermos o que
se quer dizer com Lei Prévia à Lei
Originária. Por Juízo Universal deve-
se entender, portanto, aqueles
analíticos, conforme definidos
235
anteriormente, isto é, aqueles que são
produto da mera atividade da razão pura
e independem da empiria. Este tipo de
juízo, por não depender do fenômeno
empírico, mas, sim, do único e
exclusivo uso da razão pura, são
aqueles determinados tão somente pelo
princípio de não contradição. Os
juízos sintéticos a posteriori
(aqueles advindos do múltiplo das
intuições sensíveis que acrescentam
algo alheio ao próprio conceito do
sujeito) serão particulares na medida
em que verdadeiros ou falsos em relação
a um juízo a priori. No exemplo que
estamos usando: o círculo continuará
sendo um círculo (conceito a priori)
independentemente dos seus atributos
contingentes (possíveis em oposição
aos necessários). Isto é, um círculo
azul é tanto círculo quando um círculo
verde. Contudo, um círculo que o
comprimento seja distinto do produto
entre o dobro da constante Pi e o raio
é uma contradição em termos porque
inexiste tal círculo. O conceito
estabelecido à priori não pode ser
negado pelo fenômeno particular
expresso no juízo a posteriori sem que
haja o estabelecimento de uma
contradição.

E para estabelecermos o porquê da


negação do conceito (juízos à priori),

236
pelo particular (pelo fenômeno –
voltaremos ao conceito de fenômeno
abaixo) ser uma impossibilidade
lógica, basta recorrer aos três
princípios do pensamento conforme
estabelecidas por Aristóteles113: o
princípio da identidade, o princípio
de não contradição e ao princípio do
terceiro excluído. O princípio de
identidade determina que algo sempre
será igual a si mesmo e diferente do
outro: 1) “a=a”; “b=b”; 2) “a#b”. Nos
termos aristotélicos, uma coisa será
sempre distinta de outra que não possua
a mesma “diferença específica”
(essência). Neste sentido, o círculo
será sempre um círculo e jamais um
quadrado porque a distância entre o seu
centro e qualquer ponto em seu
comprimento será, sempre, o mesmo. Ou
ainda, a soma dos ângulos internos de
um triângulo será, sempre, 180 graus.
1) É impossível que haja, portanto, um
círculo cuja soma dos ângulos internos
seja 180 graus porque essa é a
diferença específica (conceito
estabelecido pela abstração da razão,
portanto, um juízo a priori) do
triângulo. 2) Do mesmo modo, jamais
existirá um círculo em que a distância

113 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro III.

237
entre o seu centro e qualquer ponto da
sua circunferência não sejam iguais.

O que nos importa, aqui, é


entender que o conceito será sempre
diferente do fenômeno embora o
conceito seja conditio sine qua non
para a compreensão do fenômeno -
voltaremos de forma pormenorizada a
distinção epistemológica entre a coisa
em si – conceito – e o fenômeno. O que
nos é caro neste momento é que o leitor
entenda que o conceito (a abstração
dada pelo uso da razão) será, sempre,
distinta do fenômeno (a “aparição” da
coisa no mundo sensível) conforme
percebida pelo múltiplo das intuições
sensíveis (categorias fundamentais do
entendimento). O princípio de
identidade trata da categoria
fundamental da qualidade, isto é,
trata-se da realidade, negação e
limitação. No exemplo acima temos o que
chamamos de “diferença específica”
como sendo a limitação; a realidade diz
respeito a algo ser igual a si mesmo a
partir do fenômeno do empírico; já a
negação é a impossibilidade de duas
coisas que possuem a mesma diferença
específica serem distintas entre si,
não obstante que a distinção entre as
diferenças específicas é a negação
necessária de que algo seja distinto
de si mesmo.

238
Deste princípio de identidade
extraímos o Princípio de não-
contradição é definido de forma breve
por Aristóteles.

"A coisa mais certa é


que todos os princípios
básicos é que proposições
contraditórias não são
verdadeiras
simultaneamente."114

E essa impossibilidade é dada pelo


princípio de identidade. Pois, fossem
o mesmo, não haveria distinção
possível entre o que é universal e o
que é particular. Entre conceito e
fenômeno. Entre a posteriori e a
priori. Entre analítico e sintético.
Porque ambos seriam a mesma coisa. O
que se quer dizer é que os juízos:
“Todo S é P” (Universal) e “Algum S é
P” (particular) não tratam do mesmo
juízo, embora eles possuam relação
(categoria do entendimento) entre si.
Em teoria dos conjuntos se diria que o
particular está contido no universal,
mas, o universal não está contido no
particular; embora exista uma
interseccionalidade entre ambos. Isto
equivale a afirmar que a categoria da
Quantidade é composta por Unidade,

114 ARISTÓTELES. Metafísica. 1011b13-14

239
Pluralidade e Totalidade. O mesmo vale
para os demais pares de conceitos
enumerados.

Temos, por fim, o princípio do


terceiro excluído. Este é o princípio
que determina a relação necessária
entre o juízo universal e o juízo
particular. Ele determina que caso os
juízos sejam contraditórios,
necessariamente, um será falso e o
outro verdadeiro. Vale recorrer ao
“quadrado das oposições” para ilustrar
o conceito acima deduzido:

240
O que nos importa é compreender a
relação entre juízos universais e
juízos particulares. Exemplifiquemos:
Temos o seguinte juízo universal
(afirmação universal): “Todo homem é
mortal”. E, também, o juízo particular
(negação existencial): “Algum homem
não é mortal”. Existe, portanto, uma
contradição, pois, o juízo particular
nega a universalidade de um conceito.
A regra para entender a relação dos
juízos contraditórios é simples: uma

241
afirmação universal não pode ser
negada por uma negação existencial. E,
no mesmo sentido, um juízo de negação
universal não pode ser afirmado por uma
proposição particular. Destaca-se,
contudo, a necessidade de
incongruência, para que haja uma
contradição, entre as categorias
fundamentais de qualidade e
quantidade. Ou seja, uma falta, no
termo já empregado anteriormente, de
relação de consentaneidade (coerência)
entre o universal e o particular.

Antes de continuar a apresentação


do argumento sobre a necessidade de uma
lei prévia ao pacto social para findar
com os Estado de Natureza e Despótico,
vale sintetizar nosso fio condutor
investigativo. No capítulo I, por meio
do que chamamos de cláusula
salvatória, estabelecemos que a
filosofia do direito deve ter como
ponto de partida um juízo sintético à
posteriori. Isto é, o ponto de partida
do direito, nos termos do idealismo
kantiano, princípios estes legados
pelos paradigmas do iluminismo e da
revolução científica, é o do ímpeto
egoísta de autopreservação. Sintético
porque a intuição da necessidade de
autopreservação mediada pela razão
(este é um juízo sintético à priori) é
resultado da existência empírica do

242
conceito analítico (e juízos
analíticos são sempre a priori) de
liberdade irrestrita. O conceito
universal de liberdade, portanto, é o
que dá origem ao conceito de liberdade
externa (jurídica). Este é dependente
daquele. A liberdade enquanto conceito
analítico é um conceito universal. O
primeiro, como vimos, encerra-se no
próprio sujeito e não passa de um juízo
explicativo do conceito de humano
(Sartre sumarizou, vale lembrar, a
condição humana à condenação à
liberdade quer deus exista quer não
exista). Contudo, segundo as leis do
pensamento, a existência da coisa em
si (conceito puro e abstrato) enquanto
fenômeno (que se dá na experiência
empírica – valendo-se da redundância
propositalmente) é parte da natureza
humana para que se possa obter todo e
qualquer conhecimento devido às
limitações impostas pela própria razão
expressos pelas categorias
fundamentais do entendimento. Não
basta ao conceito de liberdade externa
a confirmação dada pelo princípio de
não contradição. O nascedouro do
conceito de liberdade jurídica se dá,
portanto, como produto da interação da
liberdade irrestrita dos indivíduos a
partir do confronto das próprias
liberdades. A liberdade externa,
consequentemente, é determinada por um
243
juízo sintético (tem origem na
experiência), mas, ao contrário da
liberdade analítica (irrestrita), não
é um conceito a priori porque não faz
parte do conceito universal
(analítico) de liberdade a renúncia
mútua da própria liberdade. É
impossível determinar, a partir do
mero exercício da razão pura que há um
tipo de liberdade (a externa) que
consiste na renúncia voluntária, e
racional, da própria liberdade. É,
portanto, um conceito a posteriori.
Encontramos, portanto, uma liberdade
que se dá na forma no âmbito
particular.

Os dois modos do conceito de


liberdade não são contraditórios, nem
contrários, nem subcontrários,
contudo. O que há, se voltarmos ao
quadrado das oposições como definido
por Aristóteles, e acima deduzido, é a
existência de juízos subalternos. Isto
é, diferem-se apenas a partir da
categoria da quantidade. Essa dupla
face do conceito de liberdade é,
justamente, a proposta do idealismo
alemão representado por Kant. Se por
um lado o conceito de liberdade se
apresenta a partir da experiência
possível – eis o projeto empirista. Por
outro, o conceito Universal é um
reflexo do aceite kantiano à tese

244
racionalista de que os conceitos puros
devem se apresentar de forma
necessária. Temos, portanto, as
condições estabelecidas para a
existência de algo, determinada na
tábua dos conceitos puros do
entendimento. Isto é, existência
necessária enquanto conceito puro a
priori e a sua contingência de acordo
com as condições de possibilidade de
um fenômeno na forma de juízo sintético
a posteriori. Nos voltemos à letra
kantiana para compreender melhor
porquê há essa duplicidade na cognição
com intuito de melhor apresentar a
necessidade lógica de existência tanto
do particular quanto do universal. Diz
Kant:

"Nossa cognição surge


de duas fontes fundamentais
na mente, a primeira das
quais é a recepção da
representação (a
receptividade das
impressões), a segunda a
faculdade de conhecer um
objeto por meio dessas
representações (a
espontaneidade dos
conceitos); pelo primeiro
um objeto é dado a ser, pelo
segundo ele é pensado em
relação a essa

245
representação (como mera
determinação da mente)"115

E esta característica de duplicidade


das fontes fundamentais de cognição do
entendimento é que foi possível fazer
a distinção entre tempo lógico e
cronológico, no capítulo I, para
compreender o que se queria dizer por
lei prévia. A distinção cronológica é
aquela dada pela representação
enquanto produto da recepção de
impressões. Já o tempo lógico é a mera
determinação da mente pensada a partir
do pensamento sobre o objeto em relação
às suas representações.

115 Kant. Critica da Razão Pura. P. 193.


246
VII

Capítulo III – A Lei Universal como Lex


Praevia

Voltemos ao nosso fio condutor.


Retomemos, portanto, a definição de
lei:

é a autoridade para
não obedecer a nenhuma lei
externa além daquelas às
quais pude dar
consentimento

Já determinamos do que se trata o


consentimento e as leis externas
(liberdade jurídica), e a partir do fio
condutor que determinamos, e induzimos
a partir da cláusula salvatória,
também extraímos princípios do
Direito. Isto é, por meio dos conceitos
de Lei Estrita, Lei Certa e Lei escrita
chegamos ao problema da Lei Prévia.

Com intuito de seguir, sempre, a


partir de princípios que são
verdadeiros não só na abstração
teórica, mas, também, da prática
jurídica é que iniciamos um breve
relato de como aqueles princípios se
aplicavam na prática. Por isso, foi
necessário tratar dos princípios
aduzidos do primeiro capítulo de forma
empírica. Tendo, sempre, como ponto
norteador a primeira pergunta

247
estabelecida na introdução: teria a
Constituição de 1988 como primazia a
garantia da autopreservação?

O que quis demonstrar é que casos


de Reserva Mental incutem em
tipificação nos três âmbitos do
direito – cosmopolita, das gentes e dos
indivíduos – e refletem no que há de
mais básico no âmbito de uma República:
na alocação de despesas e receitas.

Retomaremos o problema da
Economia, enquanto questão fundamental
da República posteriormente, mas, a
introdução destes problemas enumerados
no parágrafo anterior – e justifica o
caminho argumentativo seguido – para
estabelecer um ponto básico ao leitor:
a filosofia do direito não pode se
reduzir à mera análise abstrata de
conceitos, mas, deve se aplicar no –
em termos hegelianos – mundo
fenomênico e não somente da coisa em
si.

Essa distinção legada da cláusula


salvatória – da distinção entre
fenômeno e coisa em si – se refletiu
na diferenciação que se tornou
necessária no capítulo anterior, qual
seja, na distinção entre universal e
particular, ou, em termos kantianos,
na distinção entre juízos analíticos e
sintéticos – a priori e a posteriori.

248
Encontramos, novamente, depois desse
necessário desvio o problema que
estabelecemos como fio condutor
central. Nos termos estabelecidos na
introdução:

“Qual a natureza da
faculdade de julgar
presente no juízo de
promulgação de uma
Constituição Republicana na
vontade egoísta de
autopreservação
determinada pela autoridade
da autonomia da vontade
livre diante da insociável
sociabilidade mediada pela
renúncia ao Estado de
Natureza e ao Estado
Despótico?”.

Já estabelecemos que as leis


promulgadas numa constituição são
juízos, na forma de um pacto social,
decorrentes de um juízo sintético a
priori de necessidade de
autopreservação estabelecido pela
vontade de autopreservação por meio da
renúncia aos Estados de Natureza e
Despótico. Este juízo é justamente o
de autopreservação por meio da
renúncia da liberdade irrestrita (vale
lembrar que este é o conceito de
liberdade universal) por meio de leis
de constrição dessa mesma liberdade –
249
o que nos leva ao conceito de liberdade
enquanto juízo sintético à posteriori,
isto é, da liberdade externa (ou
jurídica). O que precisamos, agora, é
induzir o conceito de autopreservação
por meio da constrição de liberdades
irrestritas inerentes ao Estado de
Natureza. Para tanto, precisamos ter o
conceito de lei em mente:

é a autoridade para não obedecer


a nenhuma lei externa além
daquelas às quais pude dar
consentimento

Da definição de Direito Justo


precisamos determinar o que é a
“autoridade de obedecer”. Ora, este é
justamente o problema central do
problema acima rememorado: a
autoridade da autonomia da vontade
livre. E por que é o problema central?
Porque sem uma vontade livremente
autodeterminada a renúncia do Estado
de Natureza será geradora tão somente
de um Estado Despótico à mercê das
formas de governo, ou melhor, das
degenerações, em termos aristotélicos
das formas de governo: a anarquia, a
oligarquia e a tirania – enquanto
degenerações respectivamente da
democracia, da aristocracia e da
tirania. Isso porquê, em suas formas
degeneradas, o pacto social não é
livre, mas, estabelecido pelo que
250
chamamos de Lex Armorum ou, lei do mais
forte.

Se, como vimos, a partir de


Cicero, as leis são as definições dos
valores de uma república. São valores
que se apresentam por meio de juízos
sintéticos. Ou melhor, de juízos
particulares – enquanto à tipicidade
do fato. Por tipicidade do fato deve-
se entender o enquadramento do fato
empírico de acordo com uma lei. De que
se trata de um fato particular – e não
singular – relativo à um universal.
Conforme definições da Lógica116. O
fato singular, ou aquele que é incluso
no sujeito conforme determinação
meramente predicativa é justamente o
que o conceito de Lei Estrita impede
que haja nos fundamentos da filosofia
do direito.

Este é o problema que


trabalharemos doravante. Como o juízo
de constrição de liberdade,
fundamental à Filosofia do Direito
Kantiana, pode ser particular,
derivado de um valor universal, e não
somente um juízo, ainda que livre,
singular. Isto é, em outros termos, por
que o pacto social de renúncia às

116 KANT, Immanuel. Logic. Dover Publications, 1988.

AA 09: 102
251
liberdades irrestritas do Estado de
Natureza é um juízo particular
subalterno à um valor universal de
autopreservação e não somente uma
vontade individual, ou seja, singular
que se refere à mero extrato axiológico
dos sujeitos.

Se recorrermos à própria letra


kantiana, percebemos que o fio
condutor que estabelecemos à partir da
cláusula salvatória – e que nos levou,
no último capítulo, entre a distinção
do que é empírico (juízos sintéticos)
e do que é abstrato (juízos analíticos)
– se mostra frutífero. Diz Kant:

Mesmo enquanto
conceito puro, porém, o
conceito de direito é
baseado na práxis (a
aplicação aos casos que se
apresentam na experiência)
e, portanto, um sistema
metafísico do mesmo
precisaria levar também em
conta, em sua divisão, a
diversidade empírica
daqueles casos para
completar a divisão (o que
é uma exigência
imprescindível para a

252
construção de um sistema da
razão).117

Voltemos, portanto, à nossa definição


de lei:

é a autoridade para não obedecer


a nenhuma lei externa além
daquelas às quais pude dar
consentimento

Ora, antes de partirmos para o problema


da autonomia da vontade, é necessário
fazer um novo acréscimo à definição de
“lei”. Até aqui, definimos as leis como
sendo uma constrição de liberdades
irrestritas. Mas, essa definição que
estamos utilizando, nos dá um novo
problema: o problema de que a lei seja
cumprida, de que seja obedecida. E por
que esse ponto é nevrálgico? Porque ele
está ligado ao problema do “dever ser”,
isto é, da autoridade imposta por uma
lei. Esse é um ponto fundamental para
que se haja uma lei: ela só existe
enquanto circunscrição de uma
liberdade externa. Se liberdade pode
ser definida como a “possibilidade de
se fazer ou deixar de fazer algo”, uma
lei, enquanto elemento de
circunscrição dessa liberdade deve ter

117 KANT, Immanuel. Fundamentação da


Metafísica dos Costumes. Edições 70, 2009.
Parágrafo. 211

253
um elemento que empila ao seu
cumprimento. Aqui, recorremos à um
vocábulo espanhol para melhor definir
esse motor inerente à lei. “Empilar-
se” é “É um verbo parassintético sobre
o substantivo bateria [pila] 'pequeno
dispositivo no qual a energia química
é convertida em eletricidade'. O verbo
também tem o significado transitivo de
'entusiasmo'”118. Esse termo espanhol
nos é muito fortuito porque tem o
significado tanto de entusiasmo
(veemência) quanto de uma conversão de
energia química em energia sintética.
Ora, é justamente disso que se trata
uma lei: a veemência na conversão de
um valor em uma possibilidade
circunscrita de ação. É daí que
extraímos a noção de dever. Ofereço
três definições complementares de
dever. Enquanto 1) verbo transitivo
direto significa: “Ter obrigação
(moral, social, legal)” – exemplo: “eu
devo obedecer aos dez Mandamentos” ;
já 2) na sua forma transitiva indireta
significa a probabilidade – no
exemplo: “ele deve ir para o inferno
por maldizer o Espírito Santo; e
enquanto 3) verbo transitivo direto e
indireto significa o empenho para

118 Dicionário de Americanismos, ASALE,


2010

254
alguma obrigação – eis um exemplo: “ele
deve obediência à Constituição”.
Vejamos a letra Kantiana:

Todos devem admitir que, se


uma lei deve ter força
moral, isto é, ser a base
de uma obrigação, ela deve
trazer consigo uma
necessidade absoluta 119

Se lembrarmos as categorias
fundamentais, a necessidade está
contida na categoria de modalidade. As
outras partes dessa categoria são as
de possibilidade e existência. Algo
que existe de forma necessária é algo
que deverá sempre ser verdadeiro. Ao
contrário do que existe somente
enquanto possibilidade. Por exemplo, é
necessário que todo número par seja
divisível por dois. Ao contrário, é
possível que um círculo seja azul. Isso
porque inexistem números pares que não
sejam divisíveis por dois (está
contido no conceito sintético à priori
de par a divisibilidade por dois), mas,
existem círculos que não são azuis. O
primeiro trata-se de um juízo
universal. O segundo, contudo, é um
juízo particular. Uma lei, portanto,

119 KANT, Immanuel. Fundamentação da


Metafísica dos Costumes. Edições 70, 2009.
P. 3

255
concluindo este longo argumento, deve
ser uma obrigação universal, na qual é
possível que se haja contrariamente,
mas, que os indivíduos possuem um
empenho para o seu cumprimento.

A distinção entre lei da natureza


e lei ética (ciência que trata da
moral) complementa a definição desta
lei da qual tratamos. Diz Kant:

A lógica não pode ter nenhuma


parte empírica; isto é, uma parte
na qual as leis universais e
necessárias do pensamento devem
repousar sobre fundamentos
tirados da experiência; caso
contrário, não seria lógica, isto
é, um cânone para o entendimento
ou a razão, válido para todo
pensamento e passível de
demonstração. A filosofia
natural e a filosofia moral, ao
contrário, podem ter cada uma sua
parte empírica, já que a primeira
deve determinar as leis da
natureza como objeto de
experiência; as últimas, as leis
da vontade humana, na medida em
que é afetada pela natureza: as
primeiras, porém, sendo leis
segundo as quais tudo acontece;
as últimas, leis segundo as quais
tudo deve acontecer.

256
Neste contexto, continua Kant:

por exemplo, o preceito


"Não mentirás" não é válido
apenas para os homens, como
se outros seres racionais
não precisassem observá-lo;
e assim com todas as outras
leis morais propriamente
ditas; que, portanto, a
base da obrigação não deve
ser buscada na natureza do
homem, ou nas
circunstâncias do mundo em
que ele está inserido, mas
a priori simplesmente na
concepção da razão pura; e
embora qualquer outro
preceito fundado em
princípios de mera
experiência possa ser em
certos aspectos universal,
na medida em que repousa,
mesmo que minimamente, em
uma base empírica, talvez
apenas quanto a um motivo,
tal preceito, enquanto pode
ser uma regra prática,
nunca pode ser chamada de
lei moral.

O ponto, então, para compreendermos o


que é a necessidade de obedecimento de
uma lei está na sua universalidade
enquanto movimento indutivo da razão
257
pura. Isto é, uma determinada lei é
obedecida devido à seu conhecimento
(conforme definimos no primeiro
capítulo) se da a partir do exercício
da razão pura.

O que nós fizemos nesta seção,


vale sintetizar, foi deduzir os
conceitos fundamentais. A definição de
conceitos é necessária à uma
investigação de uma ciência histórica
de cunho filosófico. É ela que
estabelece os parâmetros para que se
entenda os fatos da “vida cotidiana”.
Se partirmos o texto da dedução de que
a “insurreição de Bolsonaro” é uma
insurreição contra uma Constituição
estabelecida, por meio de uma vontade
livre e autodeterminada; tivemos que
definir do que se trata este pacto
social pautado na autodeterminação de
uma vontade livre. Por óbvio, é um
caminho longo e tortuoso, pois, se
trata que embora sejam abstratos,
foram deduzidos da própria empiria.

258
Seção III – Do Contexto Histórico

VIII

Capítulo IV – o contexto dos


conceitos

Antes de continuar a
argumentação, vale, como guia de
leitura ao leitor leigo,
contextualizar, num breve capítulo, os
conceitos de forma sintética.

Embora as duas primeiras seções


deste livro tenham sido de compreensão
mais difícil, como alertamos na Carta
ao Leitor, a partir de agora o texto
ficará mais fluído e o leitor
reconhecerá o ganho argumentativo no
estabelecimento de bases sólidas.

René Descartes, em Meditações


Metafísicas, estabelece que um
conhecimento que se quer científico
deve ter bases sólidas. Numa
investigação de uma ciência histórica
de cunho filosófico, esta solidez do
argumento se dá através da própria
definição dos conceitos fundamentais
da argumentação. É por isso, caro
leitor, que esta primeira parte do
argumento foi árduo, complexo e
tortuoso.

O leitor que não está


familiarizado com uma investigação
filosófica deve ter estranhado o quão
259
pormenorizada é a definição de
conceitos num trabalho científico
filosófico. Mas, daqui em diante, esta
conceituação detalhada passará a ter
sentido para o leitor.

O que nós fizemos, até aqui, foi


conceituar a necessidade de uma
Constituição para a existência de uma
vida em sociedade; e que esta
constituição, para garantir a
liberdade dos indivíduos, deve ser
republicana. Vale notar que é o
obedecimento, que ocorre na forma de
um exercício autônomo da razão, é a
expressão da Vontade Geral de uma
sociedade de Direito. Vale ressaltar
que a sociedade de Direito é aquela que
garante a igualdade entre os
indivíduos mediante a renúncia da lei
do mais forte e evita a degeneração de
um Estado justo em uma guerra de todos
contra todos na forma de um Estado
Despótico, isto é, no Estado em que há
a garantia de que o poder emana do povo
e não no exercício das volições do seu
soberano (de um presidente no caso de
uma democracia presidencialista).

Vale rememorar nossa


argumentação. A primeira tentativa de
explicar o fenômeno bolsonarista foi o
de que se tratava do exercício da
Vontade Divina, como professa o
bolsonarismo através do mote de
260
campanha bradado por Jair Bolsonaro:
“conheceis a verdade e a verdade vos
libertará”. Logo, encontramos
contradições para esta explicação na
própria doutrina Cristã clássica. Este
livro seria desnecessário se a
explicação da ascensão de Bolsonaro se
resumisse em “foi vontade de Deus”.
Esta explicação de que Jair era um
enviado de Deus ganhou força,
principalmente entre os evangélicos,
depois dele ter sobrevivido à uma
facada durante a campanha eleitoral de
2018.

A explicação religiosa, como


vimos, encontra contradições internas
insanáveis. Àquele que vê em Bolsonaro
como sendo um enviado de Deus, não há
argumentos que o convençam de outra
coisa. Nem a contradição com a própria
teologia cristã. Mas, não passa de uma
profissão de fé que confunde Bolsonaro
com o próprio Cristo. Isso porque,
devemos lembrar, é um dogma
fundamental ao cristianismo que o
único enviado de Deus é o próprio
Cristo. Não passa, portanto, de uma
adoração à falsos profetas.

A constatação de que a explicação


religiosa é insuficiente, e
contraditória em si mesma, nos legou,
consequentemente, a tarefa de

261
compreender o Bolsonarismo a partir da
Filosofia Política.

Nós tínhamos como premissa


inicial, apenas, a constatação de que
o Bolsonarismo é um movimento político
que se insurgiu contra a Constituição
e ao governo eleito democraticamente.
A não aceitação das eleições era a
nossa primeira evidência de que
deveríamos tratar este problema a
partir da filosofia política.

À esta altura do livro,


estabelecemos uma metodologia de
análise que fosse não só filosófica,
mas, também, científica. Ou seja,
nossos conceitos deveriam ser
extraídos do próprio mundo.

E como faríamos isso? Foi nesta


parte que diferenciamos o trabalho do
filósofo e o do jornalista. Nosso
trabalho de pesquisa científico e
filosófica consistiria na concatenação
dos fatos a partir de um sistema de
conceitos, isto é, nos propusemos a
apresentar o Bolsonarismo a partir de
um pensamento crítico.

O nosso objeto de análise, como


determinamos no título do livro, é o
da “ascensão e insurreição de
Bolsonaro”. Ora, se pretendemos
analisar uma insurreição, devemos
pensar contra o que se insurge.
262
Por de trás deste problema, nos
deparamos com a seguinte questão, a
partir de uma dedução de causa e
consequência: uma insurreição,
necessariamente, é uma revolta contra
uma ordem estabelecida. No caso, a
análise jornalística, se mostrou
fortuita. Pois, é caro ao jornalismo
de que uma revolta contra o resultado
das Urnas, contra o resultado de uma
eleição é uma revolta contra a ordem
democrática.

Uma análise de um jornalista


concluiria de que se trata de uma
tentativa de Golpe de Estado porque
existe uma lei que define golpe de
estado como sendo a tentativa de
desconstituir um governo legitimamente
eleito. O nosso trabalho, enquanto
pesquisa filosófica, é o de determinar
porque esta tentativa de desconstituir
um governo legitimamente eleito se
trata de um golpe de estado.

Neste contexto, percebemos, ao


analisar a Constituição de que o Brasil
é uma república democrática pautada no
Estado de Direito. Uma revolta,
portanto, contra o resultado das urnas
é uma revolta contra ao próprio, nos
termos da Constituição, poder emanado
do povo a partir da Constituição de um
governo eleito democraticamente como

263
sendo uma revolta contra a Vontade
Geral.

Ora, este foi o primeiro conceito


que nos deparamos e que é extraído do
próprio conceito de democracia, pois,
a vontade das urnas é a expressão da
Vontade Geral.

O conceito de Vontade Geral, por


sua vez, enquanto expressão do poder
emanado do povo, nos levou à ponderar
de que forma este poder se emana. Foi,
assim que chegamos ao conceito de
Contrato Social.

Chegamos ao conceito de contrato


social a partir do estabelecimento do
método extraído do que Kant chamou de
História Universal, isto é, o estudo
das interações humanas a partir dos
fatos passados do mundo.

Neste contexto recorremos ao


próprio conceito de homem, enquanto
espécie, e o definimos como sendo um
animal racional. Através, então, de
uma dedução a partir da Filosofia da
Lógica compreendemos que o homem
existe somente enquanto espécie. E
essa convivência em sociedade se dá a
partir do próprio direito.

Se mostrou necessário, então,


definir o próprio direito. E o fizemos
da forma mais simples possível, isto

264
é, a partir de quatro conceitos
fundamentais das leis. Lembrando que a
recusa à explicação religiosa já tinha
nos dado pistas de que a convivência
em sociedade só é possível em um Estado
de Direito, pois, é neste estado em que
há a passagem das leis familiares para
as leis da Polis.

A filosofia da história nos levou


a compreender essa necessidade do
direito como sendo a necessidade de
estabelecimento de um pacto social,
isto é, de um Contrato Social, que é a
garantia de respeito ao direito de
todos e não só do direito estabelecido
pela “lei do mais forte”.

Foi, então, assim que chegamos à


predicação de contrato social, ou
seja, a partir da necessidade de
convivência de vontades egoístas caras
à uma multiplicidade de indivíduos.
Assim, nos deparamos com as próprias
condições para a existência de um pacto
social e deduzimos que um pacto social
justo necessitaria da autodeterminação
de uma vontade livre em aceitar leis
estabelecidas pela própria razão.

Neste sentido tivemos que definir


o que é universal e o que é particular,
ou, juízos analíticos e sintéticos à
priori e à posteriori. Um argumento
tortuoso, pois, se trata de uma

265
definição estritamente cara à
Filosofia da Lógica. Esta predicação
nos mostrou a necessidade de que o
Contrato Social ocorresse a partir de
um exercício autônomo da Vontade dos
indivíduos, isto é, de uma vontade
determinada pela própria razão.

Foi por isso que tivemos que


conceituar a própria liberdade e,
então, chegamos ao conceito de vontade
exterior, o que Kant chamou de
Liberdade Civil. Isto é, àquela
liberdade da Vontade que é possível num
Estado de Direito, pois, não é o que
torna possível a própria existência de
uma sociedade.

O conceito de liberdade civil


nasce da própria multiplicidade de
vontades contrárias advinda do
espírito gregário dos homens, isto é,
o de existência em sociedade como
determinação das próprias leis da
natureza – que definimos como sendo
parte necessária à existência humana.

Esta constrição de liberdade,


como vimos, para ocorrer segundo os
conceitos de vontade livre é o que
resulta na celebração do próprio
contrato social. Contrato este que
ganha forma, no mundo contemporâneo,
nas Constituições.

266
A Constituição nada mais é do que
uma Lei Magna que, na medida em que
acaba com o Estado de Natureza (de
guerra de Todos Contra Todos), do
império da Lei do Mais Forte; é a
própria reivindicação dos indivíduos
de uma sociedade enquanto forma de se
cumprir ao princípio mais egoísta de
todos que é o de autopreservação. Vale
notar que esta necessidade de
autopreservação é derivada da premissa
básica da lei natural da teoria do
evolucionismo de Darwin, qual seja, o
de sobrevivência do indivíduo e o de
perpetuação da espécie.

A partir disso, recorremos ao


preâmbulo da Constituição Brasileira e
vimos que o objetivo desta
Constituição é o da Paz Perpétua, isto
é, o da resolução pacífica de
conflitos. E vimos, também, que é um
princípio constitucional o de que
haja, no Brasil, a existência de uma
república. Nos voltamos aos conceitos
puros de república para compreender
que a República é a forma de
organização social que melhor garante
a própria existência e perpetuação dos
indivíduos e da prosperidade da
sociedade.

Extraímos, daí, quatro conceitos


fundamentais – a partir da própria
definição de lei – para compreender em
267
que sentido se dá a existência desta
Constituição. Vimos, então, que esta
Carta Magna é o que define os valores
de uma sociedade. E determinamos que
era o da própria preservação da
sociedade enquanto garantidora da
existência pacífica e harmoniosa entre
indivíduos.

Neste sentido, vimos a


necessidade de que a Constituição
tenha valores prévios à ela para que
não se recaia na barbárie social, isto
é, na justificação das maiores
atrocidades como sendo algo
determinado pela lei, como fizeram os
nazistas no tribunal de Nuremberg.

Este foi o contexto dos conceitos


que nos levou a conclusão de que o
maior crime contra uma sociedade que
se pode cometer é o de incentivo à
secessão, isto é, o de abolição do
próprio Estado de Direito. No contexto
brasileiro, isto se deu no movimento
político de insurreição bolsonarista
contra o próprio princípio de Vontade
Geral na constituição legítima de um
governo democraticamente eleito. Isso
porque a insurreição é a tentativa de
reestabelecimento de uma guerra de
todos contra todos, onde se ameaça às
liberdades civis que são caras à
própria existência da sociedade a da
convivência harmônica entre indivíduos
268
a partir da resolução pacífica de
conflitos.

Como prometi, na carta ao leitor,


apesar deste livro apresentar
argumentos de grande densidade e
complexidade, logo ficaria clara a
necessidade de se pensar os fatos
elucidados por jornalistas, no
cotidiano dos jornais, a partir de uma
concatenação rigorosa de conceitos e
de um método científico.

Como estabelecemos que devem


existir valores morais para a própria
interpretação da Constituição, o que
faremos à seguir é pensar quais são
estes valores morais. E isso de dará a
partir da apresentação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.

269
IX

Capítulo V – Declaração Universal dos


Direitos Humanos

Neste ponto da argumentação


poderíamos partir diretamente para uma
análise abstrata da lei universal
enquanto fundamento da moral. Mas,
nosso método científico determina que
façamos uma digressão para pensar este
problema a partir de dados empíricos
determinados pela própria história da
humanidade.

Existe uma lei universal com as


obrigações morais a serem respeitadas
por todas as Constituições do mundo. É
a chamada Declaração Universal dos
Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas.

Nosso fio condutor nos trouxe até


um desvio necessário na argumentação.
Como vimos, o método da História
Universal, à Luz da primeira Crítica,
determina que o ponto de partida da
análise científica sejam dados
empíricos. Ou seja, para que seja
possível continuarmos a análise da Lei
Universal devemos entender a própria
Lei Universal na figura da mencionada
Declaração das Nações Unidas. I. e.,
para que possamos avançar na análise

270
da filosofia da moral e da filosofia
do direito é necessário que haja um
pano de fundo histórico para a
interpretação dos conceitos da
Filosofia da Moral e da Filosofia do
Direito. A História Universal
determina que nos voltemos à
multiplicidade dos conflitos caóticos
próprios à história.

Se o nosso objetivo é compreender


o Contrato Social promulgado pela
Constituição Brasileira de 1988. Por
isso, nos próximos capítulos que
compõem esta segunda seção nos
voltaremos a uma análise do contexto
histórico de promulgação deste Pacto
Social. Num primeiro momento
analisarei a conjuntura da Declaração,
afinal, ela nos trará dois
esclarecimentos: a de uma lei prévia e
a de uma lei universal; num segundo
momento me voltarei à análise do Estado
Despótico que a Constituição de 1988
colocou fim, isto é, à Ditadura
Militar; E, por fim, irei ponderar o
contexto histórico contemporâneo a fim
de pensar os desafios práticos
enfrentados pelo Estado de Direito
promulgado em 1988 no Brasil.

No prefácio, introdução e nos


capítulos da primeira seção o que
tentamos estabelecer duas coisas. O
método de análise para a compreensão
271
dos problemas propostos e a
fundamentação de conceitos puros
necessários para a aplicação do método
para a análise do contexto histórico.
Segui este percurso argumentativo
inspirado na própria divisão da
Crítica da Razão Pura. Isto é,
primeiro, estabelecemos os conceitos
fundamentais, bem como Kant fez na
Analítica Transcendental; Agora, num
segundo momento, pretendo seguir os
passos da Dialética Transcendental, ou
seja, estabelecer o contexto histórico
dos quais extraímos os conceitos
fundamentais de interpretação da
História Universal para que possamos
deduzir estes mesmos conceitos da
razão pura e da razão prática pura.
Percalço argumentativo que acredito
ser necessário e proveitoso para a
compreensão da Metafísica da Moral e
da Paz Perpétua.

O leitor deve-se lembrar que


rejeitamos o método do materialismo
dialético como fundamento de uma
análise histórica. Mas, agora lançamos
mão do que Kant denominou de Dialética
Transcendental. Com intuito de
demonstrar que o problema da dialética
não está na diairesis, mas, na
fundamentação da lógica construtivista
que embasa o materialismo dialético
marxista e hegeliano. A exposição do

272
contexto em que serviu de lei universal
enquanto fenômeno histórico para
pautar a Constituição de 1988,
recorreremos ao próprio método
dialético platônico para expor os
fundamentos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. O que
pretendemos demonstrar a partir do
método dialético é a possibilidade de
cognição por meio do antagonismo entre
múltiplos indivíduos. Como vimos nas
proposições da História Universal de
um Ponto de Vista Cosmopolita, o
antagonismo entre indivíduos é
fundamental no desenvolvimento da
razão e da moral. Com isso quero
demonstrar que veracidade desta
preceito fundamental à filosofia da
história kantiana e, então,
consequentemente afastar a opinião
falsa de que o método científico
estabelecido pela Crítica é um mero
exercício solipsista, mas, que é, na
verdade, um método que necessita da
multiplicidade de indivíduos. Se
obtivermos sucesso neste método de
exposição cumpriremos duas tarefas.
Tanto a de distinguir a Dialética
Transcendental kantiana do
materialismo dialético pautado na
lógica intuicionista; quanto
diferenciar o método de Kant da
dialética platônica que necessita da
intervenção da Teoria da Participação.
273
O problema que está em jogo nessa
apresentação metodológica do contexto
a partir da dialética é a diferenciação
ao que é possível atribuir o valor
verdade. Se, no caso de Platão, a
partir do Sofista, a verdade é um
atributo da conformidade entre Formas
metafísicas e linguagem; e no caso do
Construtivismo da dialética marxista a
necessidade (Verdade) está nas
premissas e não na conclusão; No caso
do método Kantiano, a Verdade (juízo
de necessário de existência) é um
atributo verificável empiricamente
como atributo do fenômeno e não da
abstração da coisa em si, a partir da
teoria da predicação aristotélica.

O que nos interessa, neste


momento da argumentação, não é
contextualizar os fatos históricos em
torno da criação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Não
nos interessa remontar às primeiras
tentativas de estabelecimento de uma
Lei Universal durante da Revolução
Francesa ou divagar sobre os horrores
da Segunda Guerra Mundial na figura do
Holocausto. O que nos interessa é
ponderar a Declaração Universal
enquanto Lei Universal. Isto é,
enquanto obrigação moral a ser
obedecida por todos os Estados

274
signatários. Vamos ao diálogo, com as
devidas homenagens a Platão.

Parecia uma mesa de buteco como


qualquer outra. Um casal, conversando,
bebendo e rindo. Meio a petiscos,
bebidas e cigarros. Com a indumentária
toda preta. Na mesa mais afastada, no
passeio, parecendo que nem no boteco
estavam. Algo distinto, contudo. O
assunto que discutiam.

- Beatriz: Tudo bem. Eu tendo


concordar com o seu argumento, de que
o Brasil é uma ditadura nazifascista,
mas, não basta apresentar a conclusão.
Você tem que apresentar, primeiro, as
premissas a partir de critérios
objetivos. Se não, você está fazendo,
apenas, um exercício divinatório.

- Daniel: este é um bom ponto,


minha querida. O que você sugere?

- Beatriz: precisamos encontrar


fatos, que violem o Estado de Direito.
Não pode ser, apenas, um ou outro. Deve
abranger toda a lei nacional, a
Declaração Universal dos Direitos
Humanos e os tratados de direito
internacional.’

Daniel: Este é um trabalho longo. Mas,


com a sua ajuda, estaremos aptos a
fazer. Contudo, me parece não bastar,
275
apenas, a análise da existência de
violação de uma ou outra cláusula da
Declaração Universal dos Direitos
Humanos. É necessário a comprovação de
violação de todas. Além disso, acho,
ainda, que devemos propor uma reforma
nas leis do país para evitar a
repetição, se conseguirmos comprovar,
de golpes de Estado no Brasil.

Beatriz: Você está certo, afinal, e eu


direi, apenas, para te provocar: você
é responsável por aquilo que cativas.
Só lhe restará, então, ser responsável
por um propositura de reforma
legislativa, afinal, você cativou a
existência de uma ruptura completa do
Estado de Direito vigente. A saída mais
fácil, sem dúvidas, seria propor uma
nova reforma constituinte. Mas, uma
reforma desta natureza não seria outro
golpe de Estado?

Daniel: O que quer dizer com a


afirmação de que seria outro golpe de
Estado?

Beatriz: Ora, Daniel. Um golpe de


Estado é a ruptura irremediável das
leis vigentes. Não só das leis, mas do
próprio espírito. Se você propuser uma
reforma que enseje numa reforma
constituinte, não me restará nada que
não lhe acusar de estar propondo outro
golpe de Estado. Afinal, você estará

276
propondo outra ruptura completa com as
leis. Seria, tão somente, um golpe no
próprio espírito das leis, mesmo que
encontres uma forma legal para uma
propositura desta natureza.

Daniel: Você tem razão. Seria a saída


mais fácil de todas, contudo. Você
acabou de deixar o meu argumento
deveras mais complexo, apesar de
deixa-lo, ainda mais interessante. O
que você me propõe é uma saída
constitucional para uma ruptura
constitucional.

Beatriz: é exatamente isso. Porque


senão seria, me parece, tentar apagar
um incêndio com um lança chamas. A
saída para uma ruptura constitucional
não pode ser a tentativa de uma outra
ruptura constitucional. Mesmo que você
consiga argumentar que a saída seja
melhor. Você estaria propondo uma
revolução para conter um golpe de
Estado.

Daniel: uma revolução?

Beatriz: isso mesmo. Uma revolução não


precisa ser armada, apesar de que todas
as revoluções, historicamente, se
encerrem em banhos de sangue. Você não
pode chamar uma ruptura constitucional
de golpe constitucional e outra de
reforma. Seria, apenas, defender um
peso com duas medidas.
277
Daniel: você tem razão, Beatriz. O que
estaríamos fazendo seria a propositura
de uma revolução constitucional. Me
parece que seria, se compreendi seu
argumento, tão somente uma tentativa
de legalizar um golpe de Estado.
Teríamos duas hipóteses, nesse caso,
para a revolução. Seja a força, seja a
de chicanas jurídicas com intuito de
encerrar a constituição vigente.

Beatriz: é exatamente essa a minha


preocupação. Se a nossa tentativa de
salvaguardar a vigência constitucional
culminasse no encerramento da própria
constituição. O que devemos tentar
encontrar é um ponto imutável e, então,
a partir dali conseguirmos algumas
alterações.

Daniel: proponho, então, que


comecemos pela Declaração Universal,
afinal, este deve ser o ponto de
partida de qualquer argumento de
ruptura constitucional, afinal, a
constituição, pelos tratados
internacionais, visam proteger estes
direitos universais.

Beatriz: nós não poderemos, contudo,


fazer essa propositura a partir de
argumentos de analogia.

Daniel: se acalme, Beatriz. Esta parte


deverá ser alvo de nossa preocupação
quando chegarmos em tratados de
278
direito internacional. O que você está
lembrando é a de que a Corte Criminal
Internacional, onde se processa a
tentativa de golpes de Estado, não
aceita argumentos por analogia.
Eventualmente, se formos bem
sucedidos, chegaremos a esta parte do
argumento.

Beatriz: o que estou dizendo, na


verdade, é a de que este deve ser o
norte desde o princípio. Afinal, não
nos restará senão uma falsa imagem de
um Coup se chegarmos a esta parte a
partir de argumentos de analogia e não
do entendimento literal da lei.

Daniel: Este é um aviso que beira a


clarividência, afinal, se por este
caminho percorrêssemos, teríamos nada
além de desperdiçado nosso tempo.
Devemos, então, começar pela
Declaração Universal dos Direitos
Humanos?

Beatriz: Sim. Mas, não podemos fazer


tal argumentação de forma geral. Isto
é, não devemos pensar num único
argumento que viole todas as
cláusulas. Devemos ponderar cada
artigo por si mesmo. Senão cairíamos
num argumento por analogia, tomaríamos
o todo pela parte.

Daniel: você tem razão.

279
Beatriz: a necessidade de começarmos
pela Declaração, me parece, estar
definida no próprio preâmbulo. Você se
lembra dele?

Daniel: Claro. Mas, por quê você acha


que esta necessidade de salvaguardar o
Estado de direito está no preâmbulo?

Beatriz: “Considerando que é essencial


a proteção dos direitos do Homem
através de um regime de direito, para
que o Homem não seja compelido, em
supremo recurso, à revolta contra a
tirania e a opressão;”

Daniel: Compreendo o que quer dizer. A


defesa da Declaração é, justamente, o
que você nos alertava. De que não
podemos propor outra ruptura
constitucional a fim de salvaguardar o
próprio Estado de Direito. Se fossemos
por este caminho, estaríamos tomando o
caminho de uma possível revolta contra
a tirania e a opressão. Ainda, de
acordo com o preâmbulo, o que nós
teríamos seria uma condução a “atos de
barbárie que revoltam a consciência da
Humanidade”.

Beatriz: O que você quer dizer com


“revoltam a consciência da
humanidade”?

Daniel: A consciência da humanidade me


parece ser o mesmo que você havia

280
chamado de Espírito das Leis. Veja, o
espírito das leis pode ser entendido
como os valores traduzidos de forma
normativa.

Beatriz: Ora, então, essa consciência


determinada pela Declaração é a mesma
coisa que o Valor?

Daniel: se você entender por valor um


dos tripés do Direito, creio que sim.
É o valor que determina as normas que
devem servir como base para a
compreensão dos fatos. Ou, como é
colocado no preâmbulo, é o ideal comum
a ser atingido por todos os povos e
todas as nações.

Beatriz: como assim?

Daniel: Ora, se a Declaração deve ser


universal, ela deve ser aplicada a
todos, isto é, como as normas devem ser
compreendidas. Me parece que este é o
ponto comum que você havia dito ser
necessário que encontrássemos. O valor
comum para a compreensão de tudo aquilo
que argumentemos doravante.

Beatriz: isso me parece ser mais do que


importante. Deve ser a essência da
compreensão daquilo que estamos
tentando argumentar, você não acha?

Daniel: Certamente, Beatriz. Este


valor é a tradução daquilo que norteia
a humanidade. Basta lembrarmos o
281
contexto da proclamação da Declaração:
a indecorosa

barbárie em que com intuito de


estabelecer uma suposta purificação de
valores, tentou-se jogar pessoas em
fornalhas. A Declaração nada mais é que
não o ponto nevrálgico da humanidade
com intuito de que esse tipo de
revolução jamais se repita.

Beatriz: foi, então, o meio que


encontraram para que não se
estabelecessem mais revoluções que
apesar de pregarem a purificação da
humanidade nada mais era do que a
tentativa inescrupulosa de encerrar a
própria possibilidade da humanidade?

Daniel: Acho que é exatamente isso,


minha querida. É o valor comum para que
todo o significado dado às
interpretações das leis não pudesse,
ou melhor, impedisse que aquele tipo
de pensamento encerrasse em quaisquer
barbáries.

Beatriz: Então, me parece que este é,


de fato, o valor essencial de
compreensão. É, me parece, a tentativa
de impedir revoluções, dada a grande
probabilidade de que elas se encerrem

282
seja num banho de sangue, seja em
grelhas.

Daniel: estamos de acordo. São os


valores que devem ser determinantes
para que não se abram as condições de
possibilidade para a barbárie.

Beatriz: Me parece, então, que o


impedimento de uma revolução deve
acontecer, ainda, em seus estágios
iniciais. Afinal, se deixarmos que uma
revolução chegue às grelhas,
certamente, a Declaração falhou em seu
objetivo. O que quero dizer é: mesmo
que se intente a purificação dos
valores, não podemos permitir que eles
aconteçam. Mesmo que aparentem uma
melhora, nada é, esta purificação, a
tentativa de não cumprimento dos
valores nevrálgicos à humanidade.

Daniel: é exatamente isso, Beatriz.


Toda revolução se coloca como a
melhoria dos valores da humanidade.

Beatriz: Ora, então, os valores


defendidos pela Declaração não vão
engessar a humanidade no tempo?

Daniel: Como assim?

Beatriz: ora, se a Declaração indica


como deve ser compreendida quaisquer
tentativas de mudança, me parece que
283
não se podem mudar as constituições
nacionais a partir de um progresso da
humanidade.

Daniel: acho que é, exatamente, o


contrário. Me parece que a Declaração
é, exatamente, a possibilidade de
mudanças. Eu entendo a Declaração como
um pacto entre as gerações passadas e
futuras intermediada pela atual.

Beatriz: o que quer dizer?

Daniel: Toda revolução é a tentativa


de mudar, de purificar, os valores de
uma única vez. A Declaração me parece
ser um lembrete de que este tipo de
mudança não pode ocorrer do dia para a
noite. A Declaração, neste sentido, é
o pacto de que mudanças podem descambar
em algo ruim, numa barbárie. Por isso
ela é tão importante. É o que mantém
os pés da geração atual no chão.
Certamente, toda geração crê que
descobriu o segredo do universo para o
mundo perfeito. A Declaração é, então,
o lembrete de que não se pode mudar
todos os valores. É o lembrete de que
não podemos aceitar quaisquer
tentativas de ruptura completa.

Beatriz: a Declaração, então, é a


expressão de que a razão se constrói
com o tempo e não a partir de cada
indivíduo?

284
Daniel: exatamente isso. É o lembrete
de que a geração atual não pode negar
tudo àquilo que já foi pensado com
intuito de um suposto progresso. Ao se
negarem os valores, na verdade, se está
negando a própria humanidade. É como
se, nesta tentativa, a humanidade se
colocasse como uma espécie de Messias.
Como alguém que veio refundar a
civilização para supostos valores
perfeitos. É como se, na construção de
um barco, se ignorasse tudo o que se
sabe sobre barcos, sendo que, os
princípios já estavam estabelecidos.

Beatriz: o artigo primeiro da


Declaração, então, é uma síntese dos
valores da humanidade indicados no
preâmbulo? Lá está escrito: “Todos os
seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Dotados de
razão e de consciência, devem agir uns
para com os outros em espírito de
fraternidade.”

Daniel: creio que não seja a síntese.


Mas, os próprios objetivos de uma
civilização. É, me parece, a última
coisa que conseguiremos argumentar
sobre. Afinal, se são os objetivos,
nosso argumento da existência de um
golpe de Estado deve, sem mais,
comprovar que não há igualdade de
direito ou de fraternidade entre
indivíduos.
285
Beatriz: E a fraternidade?

Daniel: Me parece que a fraternidade


indicada é a indicação de um bem comum,
não só entre indivíduos ou nações, mas,
entre gerações. Podemos entender a
fraternidade como um laço. É o que
liga, então, os indivíduos, nações e
gerações a um bem comum: a inexistência
de barbárie nas relações humanas.

Beatriz: o que você entende como


barbárie?

Daniel: justamente a ruptura de


igualdade entre nações, indivíduos e
gerações. Isto é, a inexistência de
igualdade de direitos e dignidade.

Beatriz: pois, bem, não conseguiremos


argumentar contra este artigo. Ele
deve ser compreendido, então, como
estes objetivos assegurados pela
própria humanidade com intuito de que
não nos rompamos numa barbárie.

Daniel: isso mesmo. Caso estejamos


certos da existência de uma revolução,
da ruptura constitucional, deveremos
comprovar a inexistência de igualdade
e dignidade entre nações, indivíduos e
gerações.

Beatriz: O segundo artigo, então, é uma


tentativa de detalhar o que significa
esta igualdade de dignidade e
direitos? Diz o artigo: “Todos os seres
286
humanos podem invocar os direitos e as
liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo,
de língua, de religião, de opinião
política ou outra, de origem nacional
ou social, de fortuna, de nascimento
ou de qualquer outra situação. Além
disso, não será feita nenhuma
distinção fundada no estatuto
político, jurídico ou internacional do
país ou do território da naturalidade
da pessoa, seja esse país ou território
independente, sob tutela, autônomo ou
sujeito a alguma limitação de
soberania.”

Daniel: É exatamente isso. Me parece


que toda a declaração é uma tentativa
de assegurar e detalhar o artigo
primeiro. Veja, por exemplo, os
próximos artigos. Eles não são a
garantia da dignidade? “Todo indivíduo
tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal; Ninguém será
mantido em escravatura ou em servidão;
a escravatura e o trato dos escravos,
sob todas as formas, são proibidos;
Ninguém será submetido a tortura nem a
penas ou tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes; Todos os indivíduos
têm direito ao reconhecimento, em
todos os lugares, da sua personalidade
jurídica; Todos são iguais perante a

287
lei e, sem distinção, têm direito a
igual proteção da lei. Todos têm
direito a proteção igual contra
qualquer discriminação que viole a
presente Declaração e contra qualquer
incitamento a tal discriminação; Toda
a pessoa tem direito a recurso efetivo
para as jurisdições nacionais
competentes contra os atos que violem
os direitos fundamentais reconhecidos
pela Constituição ou pela lei; Ninguém
pode ser arbitrariamente preso, detido
ou exilado; Toda a pessoa tem direito,
em plena igualdade, a que a sua causa
seja equitativa e publicamente julgada
por um tribunal independente e
imparcial que decida dos seus direitos
e obrigações ou das razões de qualquer
acusação em matéria penal que contra
ela seja deduzida.

Beatriz: Me parece, então, que a


Declaração Universal é a definição de
igualdade de dignidade e de direitos.
Veja os próximos artigos. Não são eles
a definição de igualdade de direitos?
“Toda a pessoa acusada de um ato
delituoso presume-se inocente até que
a sua culpabilidade fique legalmente
provada no decurso de um processo
público em que todas as garantias
necessárias de defesa lhe sejam
asseguradas; Ninguém será condenado
por ações ou omissões que, no momento

288
da sua prática, não constituíam ato
delituoso à face do direito interno ou
internacional. Do mesmo modo, não será
infligida pena mais grave do que a que
era aplicável no momento em que o ato
delituoso foi cometido; ninguém
sofrerá intromissões arbitrárias na
sua vida privada, na sua família, no
seu domicílio ou na sua
correspondência, nem ataques à sua
honra e reputação. Contra tais
intromissões ou ataques toda a pessoa
tem direito a proteção da lei; Toda a
pessoa tem o direito de livremente
circular e escolher a sua residência
no interior de um Estado; Toda a pessoa
tem o direito de abandonar o país em
que se encontra, incluindo o seu, e o
direito de regressar ao seu país; Todo
o indivíduo tem direito a ter uma
nacionalidade; ninguém pode ser
arbitrariamente privado da sua
nacionalidade nem do direito de mudar
de nacionalidade; a partir da idade
núbil, o homem e a mulher têm o direito
de casar e de constituir família, sem
restrição alguma de raça,
nacionalidade ou religião. Durante o
casamento e na altura da sua
dissolução, ambos têm direitos iguais;
o casamento não pode ser celebrado sem
o livre e pleno consentimento dos
futuros esposos; a família é o elemento
natural e fundamental da sociedade e
289
tem direito à proteção desta e do
Estado; toda a pessoa, individual ou
coletiva, tem direito à propriedade;
ninguém pode ser arbitrariamente
privado da sua propriedade; toda a
pessoa tem direito à liberdade de
pensamento, de consciência e de
religião; este direito implica a
liberdade de mudar de religião ou de
convicção, assim como a liberdade de
manifestar a religião ou convicção,
sozinho ou em comum, tanto em público
como em privado, pelo ensino, pela
prática, pelo culto e pelos ritos; Todo
o indivíduo tem direito à liberdade de
opinião e de expressão, o que implica
o direito de não ser inquietado pelas
suas opiniões e o de procurar, receber
e difundir, sem consideração de
fronteiras, informações e ideias por
qualquer meio de expressão; toda a
pessoa tem direito à liberdade de
reunião e de associação pacíficas;
ninguém pode ser obrigado a fazer parte
de uma associação; Toda a pessoa tem o
direito de tomar parte na direção dos
negócios, públicos do seu país, quer
diretamente, quer por intermédio de
representantes livremente escolhidos;
toda a pessoa tem direito de acesso,
em condições de igualdade, às funções
públicas do seu país. a vontade do povo
é o fundamento da autoridade dos
poderes públicos: e deve exprimir-se
290
através de eleições honestas a
realizar periodicamente por sufrágio
universal e igual, com voto secreto ou
segundo processo equivalente que
salvaguarde a liberdade de voto; toda
a pessoa, como membro da sociedade, tem
direito à segurança social; e pode
legitimamente exigir a satisfação dos
direitos econômicos, sociais e
culturais indispensáveis, graças ao
esforço nacional e à cooperação
internacional, de harmonia com a
organização e os recursos de cada país;
toda a pessoa tem direito ao trabalho,
à livre escolha do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias
de trabalho e à proteção contra o
desemprego; todos têm direito, sem
discriminação alguma, a salário igual
por trabalho igual; quem trabalha tem
direito a uma remuneração equitativa e
satisfatória, que lhe permita e à sua
família uma existência conforme com a
dignidade humana, e completada, se
possível, por todos os outros meios de
proteção social; toda a pessoa tem o
direito de fundar com outras pessoas
sindicatos e de se filiar em sindicatos
para defesa dos seus interesses; toda
a pessoa tem direito ao repouso e aos
lazeres, especialmente, a uma
limitação razoável da duração do
trabalho e as férias periódicas pagas;
toda a pessoa tem direito a um nível
291
de vida suficiente para lhe assegurar
e à sua família a saúde e o bem-estar,
principalmente quanto à alimentação,
ao vestuário, ao alojamento, à
assistência médica e ainda quanto aos
serviços sociais necessários, e tem
direito à segurança no desemprego, na
doença, na invalidez, na viuvez, na
velhice ou noutros casos de perda de
meios de subsistência por
circunstâncias independentes da
sua vontade; a maternidade e a infância
têm direito a ajuda e a assistência
especiais. Todas as crianças, nascidas
dentro ou fora do matrimônio, gozam da
mesma proteção social; Toda a pessoa
tem direito à educação. A educação deve
ser gratuita, pelo menos a
correspondente ao ensino elementar
fundamental. O ensino elementar é
obrigatório. O ensino técnico e
profissional dever ser generalizado; o
acesso aos estudos superiores deve
estar aberto a todos em plena
igualdade, em função do seu mérito; A
educação deve visar à plena expansão
da personalidade humana e ao reforço
dos direitos do Homem e das liberdades
fundamentais e deve favorecer a
compreensão, a tolerância e a amizade
entre todas as nações e todos os grupos
raciais ou religiosos, bem como o
desenvolvimento das atividades das
Nações Unidas para a manutenção da paz.
292
Aos pais pertence a prioridade do
direito de escolher o género de
educação a dar aos filhos; toda a
pessoa tem o direito de tomar parte
livremente na vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de
participar no progresso científico e
nos benefícios que deste resultam;
todos têm direito à proteção dos
interesses morais e materiais ligados
a qualquer produção científica,
literária ou artística da sua autoria;
toda a pessoa tem direito a que reine,
no plano social e no plano
internacional, uma ordem capaz de
tornar plenamente efetivos os direitos
e as liberdades enunciadas na presente
Declaração;

Daniel: É exatamente isso. Não


obstante, temos outros três artigos
que indicam que os governos
estabelecidos por meio de ruptura com
esses valores sejam reconhecidos quer
seja pelos cidadãos, quer seja pelas
outras nações. Veja: “Toda a pessoa
sujeita a perseguição tem o direito de
procurar e de beneficiar de asilo em
outros países; este direito não pode,
porém, ser invocado no caso de processo
realmente existente por crime de
direito comum ou por atividades
contrárias aos fins e aos princípios
das Nações Unidas; o indivíduo tem

293
deveres para com a comunidade, fora da
qual não é possível o livre e pleno
desenvolvimento da sua personalidade;
no exercício deste direito e no gozo
destas liberdades ninguém está
sujeito senão às limitações
estabelecidas pela lei com vista
exclusivamente a promover o
reconhecimento e o respeito dos
direitos e liberdades dos outros e a
fim de satisfazer as justas exigências
da moral, da ordem pública e do bem-
estar numa sociedade democrática. Em
caso algum estes direitos e liberdades
poderão ser exercidos contrariamente e
aos fins e aos princípios das Nações
Unidas; Nenhuma disposição da presente
Declaração pode ser interpretada de
maneira a envolver para qualquer
Estado, agrupamento ou indivíduo o
direito de se entregar a alguma
atividade ou de praticar algum ato
destinado a destruir os direitos e
liberdades aqui enunciados”.

Beatriz: temos, então, definidos o que


é a igualdade de direitos e de
dignidade. Não obstante, temos, ainda,
a indicação de que governos que não
respeitem esses valores não possuem
legitimação e, por conseguinte, não
devem ser reconhecidos como governo.

Daniel: É exatamente isso que penso.

294
Beatriz: tudo bem. Temos as definições
base para que a existência de um Estado
de Direito, do império da lei.

Daniel: exatamente isso. Nós, devemos,


então, partir para a próxima parte do
nosso argumento. A violação desses
direitos estabelecidos pela
Constituição Nacional.

Beatriz: é fundamental que existam


violações a todas as cláusulas da
constituição?

Daniel: Creio que não. Existem algumas


cláusulas na Constituição brasileira
que são podem ser entendidas como
estritamente constitucionais. Isto é,
aquelas determinadas como cláusulas
pétreas e, mais especificamente,
aquelas chamadas de
direitos individuais.

Beatriz: Quais são?

Daniel: ora, as dos direitos


individuais analisaremos depois, mas,
as cláusulas pétreas estão definidas
como a imutabilidade da forma
federativa de Estado; o voto direto,
secreto, universal e periódico; a
separação dos Poderes; os direitos e
garantias individuais.

Beatriz: e temos violações nestes


artigos?

295
Daniel: certamente temos. Veja, o
próprio presidente luta contra estes
valores.

Beatriz: Como assim?

Daniel: Ora, na medida em que ele


participa de atos que pretendem o
fechamento do congresso e da suprema
corte, ele está violando estas
cláusulas pétreas.

Beatriz: mas, não é distinto ele


participar dele organizar?

Daniel: certamente é. E, creio, que ele


se enquadra no segundo caso. Pois,
veja, ele, participou de dois atos. Nos
dois primeiros, haviam cartazes
pedindo abertamente a ruptura com o
Estado de Direito, conforme os termos
das cláusulas pétreas.

Beatriz: tudo bem, então, ele é


partícipe. Mas, por que você diz que,
também, é organizador?

Daniel: Ora, após a repercussão


negativa dos dois primeiros atos, ele,
publicamente, disse que os atos não
mais teriam tais agendas. Então, não
nos resta dúvida que, ao se vangloriar,
ainda publicamente, de que a agenda dos
atos mudou, não resta dúvida que ele
se não o organizador é o mentor de tais
atos.

296
Beatriz: interessante. Mas, isso é
tudo?

Daniel: certamente não. Temos que


considerar, ainda, a existência de
grupos armados na porta do congresso,
bem como a existência daquilo que
chamamos de Gabinete do Ódio, que nada
mais é do que grupos de dentro do
próprio planalto, coordenados pela
presidência da República, de ataques a
adversários, bem como o incentivo à
manifestação popular com a intenção de
fechar o legislativo e o judiciário,
bem como a tentativa de se utilizar das
forças armadas para cumprirem essa
agenda golpista.

Beatriz: e os direitos individuais?

Daniel: veja os seguintes artigos:


“Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição; ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei;
ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante; é

297
livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato; é inviolável
a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias; ninguém será
privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as
invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada
em lei; é livre a expressão da
atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação,
independentemente de censura ou
licença; é livre a locomoção no
território nacional em tempo de paz,
podendo qualquer pessoa, nos termos da
lei, nele entrar, permanecer ou dele
sair com seus bens; todos podem reunir-
se pacificamente, sem armas, em locais
abertos ao público, independentemente
de autorização, desde que não frustrem
outra reunião anteriormente convocada
para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade
competente; é plena a liberdade de
associação para fins lícitos, vedada a
de caráter paramilitar; todos têm
direito a receber dos órgãos públicos
informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo
298
ou geral, que serão prestadas no prazo
da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado; a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais; a
prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito
à pena de reclusão, nos termos da lei;
é assegurado aos presos o respeito à
integridade física e moral; aos
litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos
a ela inerentes; são inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios
ilícitos; a lei só poderá restringir a
publicidade dos atos processuais
quando a defesa da intimidade ou o
interesse social o exigirem; conceder-
se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade
de locomoção, por ilegalidade ou abuso
de poder; conceder-se-á mandado de
injunção sempre que a falta de norma
regulamentadora torne inviável o
exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania
e à cidadania; conceder-se-á habeas
data: a) para assegurar o conhecimento
299
de informações relativas à pessoa do
impetrante, constantes de registros ou
bancos de dados de entidades
governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando
não se prefira fazê-lo por processo
sigiloso, judicial ou administrativo;
qualquer cidadão é parte legítima para
propor ação popular que vise a anular
ato lesivo ao patrimônio público ou de
entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural, ficando o autor, salvo
comprovada má-fé, isento de custas
judiciais e do ônus da sucumbência; a
todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua
tramitação.

Beatriz: E temos violações destes


direitos citados?

Daniel: Certamente sim. Todas as


provas estão reunidas naqueles livros
que pedi que lesse antes de termos essa
discussão!1

Beatriz: você está certo. Todas as


violações lá estão.

Daniel: precisamos, ainda, considerar


um outro fator.

300
Beatriz: Qual?

Daniel: a nova lei determinada pela


presidência da república: a de não
punibilidade de agentes públicos mesmo
que comprovado o dolo do agente.

Beatriz: Essa lei é um escárnio. Não


há como considerar um Estado de
Direito, somente, pela existência
desta lei.

Daniel: é o que eu acho.

Beatriz: ora, não temos um Estado de


Direito, então. Mas, qual é a
propositura doravante?

Daniel: precisamos observar se os


fatos narrados se enquadram no Tratado
de Roma.

Beatriz: e você está pensando em qual


tipificação?

Daniel: veja o que diz o Tratado: A


competência do Tribunal restringir-se-
á aos crimes mais graves, que afetam a
comunidade internacional no seu
conjunto. Nos termos do presente
Estatuto, o Tribunal terá competência
para julgar os seguintes crimes: Por
"perseguição'' entende-se a privação
intencional e grave de direitos
fundamentais em violação do direito
internacional, por motivos
relacionados com a identidade do grupo
301
ou da coletividade em causa; ultrajar
a dignidade da pessoa, em particular
por meio de tratamentos humilhantes e
degradantes; Prisão ou outra forma de
privação da liberdade física grave, em
violação das normas fundamentais de
direito internacional; Perseguição de
um grupo ou coletividade que possa ser
identificado, por motivos políticos,
raciais, nacionais, étnicos,
culturais, religiosos ou de gênero,
tal como definido no parágrafo 3o, ou
em função de outros critérios
universalmente reconhecidos como
inaceitáveis no direito internacional,
relacionados com qualquer ato referido
neste parágrafo ou com qualquer crime
da competência do Tribunal; Outros
atos desumanos de caráter semelhante,
que causem intencionalmente grande
sofrimento, ou afetem gravemente a
integridade física ou a saúde física
ou mental.

Beatriz: Acho que o ponto central está


na "perseguição'' entende-se a
privação intencional e grave de
direitos fundamentais em violação do
direito internacional, por motivos
relacionados com a identidade do grupo
ou da coletividade em causa; Pois, seus
processos indicam a Tentativa do
Estado Esconder suas Denúncias. Prova
maior e inegável foi o fato de você ter

302
sido impedido, por determinação do
Procurador Geral da República, de
denunciar crimes cometidos por agentes
de Estado.

Daniel: Exatamente, minha amada. Não


há prova maior do que esta, além, é
claro, das inúmeras tentativas por
parte do Estado de esconder documentos
comprobatórios de crimes.

Daniel: Qual é mesmo a última fala do


filme Eyes Wide Shut?

Beatriz: Temos só que passar no caixa?

Daniel: (Gargalhadas)

O que tentamos fazer, de forma


lúdica, é ilustrar do que se trata a
Declaração Universal dos Direitos
Humanos. O que nos importa que o leitor
extraia deste breve diálogo é de que
um Golpe de Estado é a negação da
própria declaração dos Direitos
Humanos na medida em que tenta
reestabelecer, nos termos que
utilizamos acima, a guerra de todos
contra todos.

Nos importa que o leitor


compreenda que esta declaração serve
como fundamento moral para as
Constituições. É a lei prévia da lei
originária. São a expressão do que a
humanidade definiu como valores

303
fundamentas à própria existência
humana.

304
X

Capítulo VI

Do Estado Despótico da Ditadura


Militar

O maior desafio de uma


contextualização é o recorte a ser
feito. Duas décadas de ditadura
militar, por óbvio, traz uma
dificuldade na definição dos fatos a
serem analisados tendo em vista o
objetivo central da análise proposta.
Tendo em vista que não se trata de uma
análise do período da ditadura, me
parece que uma análise da sucessão de
fatos de forma cronológica não é um bom
caminho argumentativo a ser trilhado,
pois, resultaria num trabalho longo
demais e acabaríamos perdendo o nosso
fio condutor de vista.

Devemos seguir à lógica interna


do nosso próprio texto. Se acabamos de
definir o escopo da lei universal, nos
parece fortuito buscar elementos
constitutivos do próprio Estado que
sejam contraditórios à lei universal.
Além disso, uma análise de eventos
históricos que circunscreveram a
ditadura, como, por exemplo, a tortura
praticada por agentes públicos em nome
do Estado; apesar se ser hediondo, nos
legaria o problema da indução. Seria

305
necessário um salto lógico de
universalização.

Para determinarmos a extensão do


Estado Despótico vigente, nos
debruçaremos sobre os atos
institucionais, porque, como vimos a
partir de Cícero, as leis refletem os
valores inerentes ao Estado.

Ao analisarmos a própria natureza


dos Atos Institucionais, concluímos,
necessariamente, que eles foram a
instauração de um Estado Despótico
porque findaram com a primazia da
Constituição. Os AIs eram diplomas
legais que estabeleciam poderes para
além do que havia sido pactuado na
Constituição. Por óbvio, estes atos do
poder executivo instauraram um Estado
Despótico, pois, a sua própria
existência significa o fim da
tripartição dos poderes, elemento
fundamental às repúblicas modernas.

O primeiro ato institucional deu


poderes aos déspotas que findaram a
separação, de acordo com pesos e
contrapesos, entre os poderes. Além de
acabar com o próprio conceito de
democracia liberal a partir da
extinção das eleições diretas. O
segundo ato acabou com a possibilidade
de oposição política ao governo, além
de intervir no funcionamento do

306
Supremo Tribunal Federal. Se o
primeiro ato acabou com a
independência do legislativo, o
segundo, por sua vez, acabou com a
independência do judiciário. E, mais
gravosamente, transformou todo poder
político num mero teatro a partir do
estabelecimento de um bipartidarismo
controlado pela própria ditadura. O
terceiro ato acabou com a própria noção
de entes federados a partir do
estabelecimento de interventores dos
Estados e Municípios. O quinto ato da
Ditadura militar acabou com o direito
ao Habeas Corpus, além de estabelecer
órgãos de censura em toda a imprensa.
O nono ato acabou com o direito à
propriedade. O ato 12 acabou com a
possibilidade do próprio vice-
presidente assumir o governo. O ato 13
estabeleceu o exílio e o 14 a pena de
morte para aqueles considerados
subversivos pelo regime. O ato 15, não
bastasse a censura estabelecida pelo
AI-5 previa a prisão de jornalistas.

Não há como restar dúvidas de que


a Constituição de 1988 foi promulgada
como forma de por fim a um Estado
Despótico.

307
XI

Capítulo VII: Ascensão de Bolsonaro

Se num primeiro momento definimos


a Lei Universal enquanto fenômeno
histórico para, posteriormente,
contextualizar o governo despótico
findado pela promulgação da
Constituição de 1988; por que o objeto
central de análise histórica deste
trabalho é a ascensão de Bolsonaro e
do Bolsonarismo? Porque é o movimento
político social que tentou acabar com
o Contrato Social promulgado pela
Constituição de 1988. Neste sentido, o
movimento político social que teve seu
ápice no ataque à sede dos três poderes
da República numa intentona que, de
forma contraditória, utiliza-se das
liberdades da democracia liberal para
tentar acabar com as próprias
liberdades propiciadas pela
democracia, deve ser o objeto central
de uma análise histórica que pretende
compreender as condições de existência
de um Contrato Social. Como vimos nas
proposições da História Universal,
este antagonismo entre vontades
egoístas inerente aos homens enquanto
indivíduos podem não se suportar, mas,
que enquanto espécie são
imprescindíveis uns aos outros, é uma
contradição intransponível do pacto
social na forma de um Estado de Direito
308
constituinte de uma República. O
entendimento, portanto, do movimento
político social que tenta acabar com a
própria sociedade civil, em detrimento
do reestabelecimento da Lei do Mais
Forte inerente ao Estado de Natureza e
aos Estados Despóticos é condição
necessária e suficiente para que se
entenda os fundamentos do Direito
Transcendental. É este antagonismo à
sociedade civil que torna o
bolsonarismo um movimento político de
massas perfeito para a compreensão da
própria natureza humana enquanto
composta por sujeitos dotados de razão
e capazes de uma moralidade.

Escrevo este capítulo no exato


centésimo dia do governo Lula 3; esta
é uma marca historicamente utilizada
como termômetro de um novo governo. Na
teoria significa muito. Mas, como
foram os primeiros cem dias do terceiro
governo de Lula? Vamos ponderar alguns
pontos!

O que mais importa desta marca,


penso, é a possibilidade de analisar
os primeiros passos do governo eleito
a partir daquilo que recebeu do governo
anterior. Dizia Sartre que a liberdade
é aquilo que fazemos com o que foi
feito de nós. Então, estes primeiros
cem dias é um momento chave para
analisar as perspectivas do novo
309
governo em relação ao país deixado pelo
último governo. Isto é, este período é
a salvaguarda do governo vindouro em
relação aos seus próprios caminhos. É
um momento de análise do país deixado
pelo governo anterior ao governo
futuro. É quando o governo eleito tem
para mostrar seu arcabouço imune aos
seus próprios erros, mas, tendo como
base de ação o país legado pelo governo
anterior. É, portanto, a hora de Lula
mostrar a que veio diante do balanço
do que Bolsonaro legou ao país.

A primeira coisa que me chama a


atenção é a falta de transparência do
governo. E isto é um pecado capital
numa Democracia. É a melhor, talvez a
única, forma de accountability de
governantes. Afinal, é a partir da
prestação de contas que o povo pode
saber das práticas dos políticos para
além dos discursos e da propaganda. E
por que digo que falta transparência
no governo? Ora, é simples! O portal
da transparência não é atualizado
desde os primeiros dias de janeiro –
foi atualizado, apenas, até a sexta-
feira prévia dos atos de insurreição
de oito de janeiro.

Isso é muito grave, pois, o


último governo foi marcado pelo sigilo
(lembram da onda de curiosidade sobre
os sigilos de 100 anos?) e pelo
310
aparelhamento das instituições de
Estado que devem combater a corrupção.
Num levantamento feito, salvo engano,
pela Folha de São Paulo, temos
escancarado o alinhamento do
Ministério Público com as pautas do
governo. É de estranhar qualquer
defensor do Estado de Direito o
alinhamento em 94% das ações
protocoladas na PGR com o interesse do
governo central.

Não é demais lembrar a captura da


Polícia Federal pelo governo Bolsonaro
– ou já esquecemos da confissão de que
ele trocaria superintendentes e
ministros se a PF, nas palavras de
Bolsonaro, “tentasse foder sua família
e seus amigos”? Bolsonaro não se
reelegeu, mas, algo mudou na Polícia
Federal? Tenho acompanhado, nesses
quase quatro meses e meio de governo
Lula, as operações da PF. Nada de
relevante. Mais do mesmo! Ações
inócuas num país afundado por quatro
anos sem transparência pública. Em
quatro meses as ações da Polícia
Federal se resumiram em apreensões de
pequenos traficantes (desde quando é
função da PF combater o pequeno tráfico
– devemos ponderar!), contrabando de
cigarros e de passageiros de aeroporto
com pequenas quantidades de drogas
(nenhuma apreensão até agora foi maior

311
do que os 39 quilos de cocaína feita
pela polícia espanhola no avião
presidencial de Jair Bolsonaro).

Num ditado popular, questiono:


“será que trocamos seis por meia dúzia”
e completo dizendo que o combate à
corrupção parece nada promissor porque
em quatro meses após quatro anos de
supostas ações da Polícia Federal
represadas por um controle do governo
federal (não nos esqueçamos das mais
de trinta trocas entre delegados e
superintendentes que ousaram
investigar o governo central), não
somam uma dúzia as operações contra
crimes do colarinho branco (entenda-se
corrupção de políticos).

Recentemente descobri uma fraude


fiscal de mais de 3 trilhões (com T)
nas contas do governo federal. Esse é
o montante da discrepância entre os
dados do Portal da Transparência e do
Balanço Geral da União. O Tribunal de
Contas da União foi incumbido de
explicar o porquê da disparidade de
valores. Talvez, nas próximas semanas
se confirme que os governos de Michel
Temer e Jair Bolsonaro foram os mais
corruptos da história brasileira;
afinal, existe um rombo no Balanço.
Pode parecer mera tecnicalidade, mas,
o balanço financeiro é o demonstrativo
mais importante das despesas e
312
receitas de um governo. E se temos um
“pequeno erro” de 30% do PIB, em seis
anos, no Balanço Geral da União; como
será possível o “mercado” confiar nos
números dos governos brasileiro?
Provavelmente, se o TCU não se
acovardar, uma crise monumental se
aproxima, afinal, é um erro contábil
de três trilhões do gestor dos
dinheiros do povo brasileiro – isto é,
do Tesouro Nacional... Veja os número:

Por falar no “senhor mercado”,


temos que ponderar os ruídos dessa
patota (com as devidas escusas – sic –
aos investidores sérios). Jesse
Livermore (e todos os teóricos do
mercado especulativo) já nos ensinou

313
que as notícias plantadas nos jornais
por gestores de fundos e especuladores
nada mais são do que ecos de patifes
que tentam mover o mercado à favor das
suas próprias posições. Quisesse um
“mercado” com qualquer nível de
seriedade, teriam pedido a cabeça, no
ato, do presidente do Banco Central
quando ele revelou um “erro contábil”
na balança comercial – justamente no
ano eleitoral (tema que foi usado como
propaganda política durante as
eleições) de um superávit para um
déficit bilionário.

É neste contexto de
condescendência com o banqueiro
central que devemos colocar em
perspectiva as notas plantadas em
todos os jornais do país sobre a
qualidade do Banco Central brasileiro.
Primeiro, colocou o país à juros reais
negativos de 8% (Selic em 2% e inflação
em 10%) em 2021. E uma guinada
fantástica para um juros real de 8%.
Uma guinada de 16% na curva de juros,
em apenas um ano. O Brasil que em 2021
tinha o menor juros do mundo passou a
ter o maior juros mundial.

O amadorismo de Roberto Campos


Neto, banqueiro central, deixou seus
rastros. Se lembrarmos da curva de
Philips (equação matemática que
relaciona inflação e emprego – quanto
314
maior a inflação, menor o desemprego
tende a ser) – [façamos um exercício
de memória para contextualizar a
figura de Campos Neto] além do fato do
Banqueiro Central (que se quer
independente) ter ido votar com a
camisa de Bolsonaro e fazer parte de
um grupo de mensagens de Ministros de
Bolsonaro; também devemos lembrar da
participação ativa do Banco Central da
gestão da pandemia, afinal, os estudos
que defendiam a imunidade de rebanho
(mote de Bolsonaro) que legaram 700 mil
mortos partiram, conforme noticiaram
os jornais, do próprio Roberto Campos
Neto.

Voltemos à curva de Philips. A


benevolência do “boneco de
ventríloquo” do mercado, o banqueiro
central, com o governo Bolsonaro levou
ao descontrole da inflação (atingimos
mais do que o dobro do teto da meta).
Numa política de longo prazo isso é
desastroso. Em curto prazo, há uma
diminuição evidente do desemprego
(prova disso é que a Argentina, com
inflação de cem por cento ao ano está
próxima do “pleno emprego”). Ganhos
eleitorais evidentes. Afinal, a
criação de empregos foi um dos motes
da campanha de Bolsonaro para
justificar a sua superioridade em
termos de governança.

315
Devemos considerar que este
amadorismo do Banco Central, em baixar
os juros na base do ativismo político
eleitoreiro, se deu em meio a
subsequentes estouros da regra fiscal
(além de terem jogado a Lei de
Responsabilidade Fiscal no lixo) por
meio de Emendas à Constituição que
legalizaram o rombo fiscal. Os
representantes do “senhor mercado” da
Faria Lima mantiveram-se calados. Vale
notar que a famigerada Reforma da
Previdência economizará o mesmo, em
dez anos, o que Paulo Guedes e
Bolsonaro criaram de rombo fiscal
(oitocentos bilhões).

Se o Banco Central causou uma das


maiores inflações do mundo dentre as
economias estáveis com sua política de
menor juros do mundo; também erra ao
criar uma política de maiores juros do
planeta. Segundo a própria ata do BC,
a economia brasileira começa a
enfrentar retração de crédito (para
pessoas físicas e jurídicas) somada a
uma estagnação, quiçá aumento, do
desemprego devido a paralisia que
juros altos levam a economia de
qualquer país. Não bastassem os sinais
de que enfrentaremos uma recessão,
Roberto Campos Neto ameaçou aumentar
ainda mais os juros (os juros ideais

316
para ele são o dobro dos atuais que já
são os maiores do mundo).

Não podemos deixar de levar em


conta, ao analisar os cem primeiros
dias do governo Lula, os frangalhos em
que Bolsonaro deixou a economia. O vale
tudo das eleições (que são
considerados crimes pela justiça
eleitoral) deu início a um rombo nas
contas públicas gigantesco. A PEC dos
combustíveis e dos benefícios gerou um
rombo de cerca de 300 bilhões de reais.
O dano financeiro ao país que Bolsonaro
causou foi tamanho que seu próprio
governo (enquanto Jair se escondia,
derrotado, no planalto) precisou pedir
ajuda às negociações de Lula com o
Congresso na PEC de remodelação do
orçamento (Bolsonaro e Guedes criaram
um orçamento fictício para 2023) para
fechar as contas de seu último ano de
governo.

O problema desse populismo


eleitoral é que, embora, tenha gerado
desinflação nos meses que antecederam
às eleições (como Bolsonaro fez
questão, em suas bravatas eleitorais,
de frisar) se encomendou uma pressão
inflacionária, com a reoneração dos
combustíveis, para os primeiros meses
do governo Lula. Bolsonaro deixou
armada uma bomba relógio; uma herança
maldita; um rombo fiscal de 300 bilhões
317
(fora os 300 gerados em 2022) para
2023.

Um pouco mais de contexto é


necessário para compreender o início
do governo Lula. O mercado da Faria
Lima – aquele que é bem sucedido em
plantar notas em jornais e direcionar
a opinião pública – ainda fez vistas
grossas para algo gravíssimo (que
cobrará seu preço nos próximos anos).
Como disse, a política de juros do
Banco Central de Roberto Campos Neto é
absolutamente sórdida. Não se altera a
taxa base de juros reais em 16% sem que
isso cobre um preço amargo. Afinal,
juros altos geram o que se chama de
“risco de crédito”. Para cumprir as
obrigações de Títulos da Dívida, o
Banco Central gerou um prejuízo,
somente em 2022, de 400 bilhões de
reais. Deve-se somar, ainda, outros 60
bilhões de dólares (300 bilhões de
reais) de reservas cambiais que Guedes
e Campos Neto tiveram que queimar nos
últimos quatro anos para controlar o
câmbio – acabando com o tripé
macroeconômico, portanto, que gerou o
sucesso do plano Real (não há superávit
primário à uma década; houve deveras
interferências no câmbio a partir da
celebração desenfreadas de contratos
de SWAP cambial – prova disso é o
prejuízo que o Banco Central gerou;

318
além da inabilidade do banqueiro
central, Campos Neto, de lidar com as
metas de inflação).

Este cenário de Terra arrasada se


reflete no “mercado”. Seja ele o
mercado de capitais ou no mercado de
trabalho. Em relação ao segundo,
devemos considerar a reforma
trabalhista de Michel Temer que,
apenas, criou a ficção da geração de
empregos. O que temos, na verdade, é a
precarização da qualidade dos
empregos. Criaram-se batalhões de
microempreendedores individuais em
empregos indeterminados e incertos. É
um problema para o futuro. Um grande
problema. Porque é um exército de
trabalhadores desassistidos pela
seguridade social (leia: sem auxílio
desemprego, auxílio doença e
aposentadoria). As reformas da
previdência e trabalhista, de
Bolsonaro e Temer, respectivamente,
somente economizará dinheiro porque
deixou grande parte dos trabalhadores
brasileiros desassistidos.

Quanto ao Mercado de Capitais,


também se reflete o cenário de Terra
arrasada. Ao contrário das notas
plantadas nos jornais da grande mídia
corporativa pelo líderes de torcida do
“posto Ipiranga”, o governo Bolsonaro
foi um desastre para o mercado de
319
capitais. Primeiro devemos considerar
o passivo, da União, aumentado em
quatro trilhões em quatro anos (se é
que se pode confiar nos dados do
Balanço Geral da União).

Esse descontrole das contas


públicas, ignorado pelos líderes de
torcida de Bolsonaro encampados na
Faria Lima, refletiu de forma gravosa
no mercado – e, tão logo, na vida do
povo brasileiro. O primeiro ponto a se
considerar é a cotação do dólar. Que
foi de R$3,65 em janeiro de 2019 para
R$5,57 em dezembro de 2022. Isso
reflete diretamente na vida do povo.
Basta olhar o PIB per capita - que caiu
de 12 mil dólares em 2014 para 7 mil
em 2022 (de 9 mil para 7 mil entre 2019
e 2022). Nestes últimos quase 10 anos,
a inflação (IPCA) foi de 60% (27% entre
2019 e 2022). Se considerarmos o índice
de inflação que melhor calcula a
inflação dos mais pobres (IGPM) porque
tem maior peso o aluguel e a
alimentação: a inflação entre 2014 e
2022 foi de 115%; entre 2019 e 2022 foi
de 65%.

Neste contexto, se considerarmos


que o aumento do salário mínimo entre
2014 e 2022 foi de 67% (de R$724,00
para R$1212,00) e entre 2019 e 2022 a
variação foi de 21% (de R$998,00 para
R$1212,00). Houve uma perda, em reais,
320
do poder de compra do salário mínimo.
Mas, essa é uma “conta burra” porque
não leva em conta o poder de compra do
real. Essa conta é meramente
“nominalista”, pois, o que importa não
é quantas unidades de real se ganha,
mas, o poder de compra dessa quantidade
de reais. Na verdade, o brasileiro
perdeu poder de compra de forma
acentuada nos últimos anos. Basta
olhar o PIB per capita em dólares.
Caiu, entre 2014 e 2022, 42%. Entre
2019 e 2022, no governo Bolsonaro, a
queda foi de 23%.

É importante ressaltar que Lula


recebeu o governo, em 2003, com um PIB
per capita de 3 mil dólares e entregou
o governo, no fim de seu mandato em
2010, um PIB per capita de 11 mil
dólares. Um aumento de 267% no poder
de compra. O salário mínimo foi de 240
para 510 reais. Um aumento de 212%. A
inflação para o período foi de 67%. Um
ganho real, portanto, no salário
mínimo de 145%.

Ora, uma queda do poder de


compra, em média, quase pela metade só
poderia ter um efeito. A devastação das
classes baixa e média do país. Não é
atoa que pesquisas mostram que 120 de
210 milhões de pessoas encontram-se em
algum nível de insegurança alimentar

321
(quase 25 milhões em insegurança
grave).

Nos voltemos, agora, para uma


análise do cenário macroeconômico.
Vejamos, então, a trajetória da dívida
mobiliária do Brasil. A partir de
dezembro de 2006.

Caso prefira, aqui está uma


tabela com o valor referente ao mês de
dezembro de cada ano a partir de 2006.

322
2006 $1,073,652
2007 $1,167,028
2008 $1,174,839
2009 $1,271,937
2010 $1,402,679
2011 $1,560,835
2012 $1,641,581
2013 $1,681,566
2014 $1,749,348
2015 $2,138,752
2016 $2,540,436
2017 $2,996,533
2018 $3,281,873
2019 $3,644,099
2020 $4,325,455
2021 $4,774,760
2022 $5,000,272

Divida Mobiliária Brasileira em


bilhões em dezembro de cada ano
2006 - 2022
$6,000,000
$4,000,000
$2,000,000
$0
2015
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014

2016
2017
2018
2019
2020
2021
2022

Aqui está outra tabela, gerada pelo


próprio banco central, que mostra o
crescimento da dívida mobiliária, por
meio de títulos do tesouro nacional.

323
Se utilizarmos uma média móvel fica
ainda mais claro que houve um
crescimento exponencial, praticamente
em linha reta.

Se analisarmos os ativos e
os passivos, isto é, o que a união
gasta e deve e os ativos (a receita),
percebemos uma grande queda na
324
receita. Os ativos da união estão nos
patamares de 2017. Veja a tabela:

Saldo Patrimonial
0

-1,000,000,000,000

-2,000,000,000,000

-3,000,000,000,000

-4,000,000,000,000

-5,000,000,000,000

-6,000,000,000,000

-7,000,000,000,000

325
Esta é a diferença percentual entre
passivos e ativos da união
Déficit percentual entre Passivos e Ativos da União
2014 1.27%
2015 25.49%
2016 30.84%
2017 33.81%
2018 30.69%
2019 33.52%
2020 42.07%
2021 43.67%
2022 53.64%

Déficit percentual entre Passivos e


Ativos da União
60.00%

40.00%

20.00%

0.00%
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

A experiência neoliberal dos


líderes de torcida de Paulo Guedes,
iniciada com Joaquim Levy, durante o
governo Dilma, e perpetrada por Michel
Temer, teve efeitos nefastos na
economia brasileira. Vamos aos
números:

De 2003 a 2019 vemos um


crescimento de 398 bilhões para 2,453
trilhões no PIB nominal. Entre 2017 e
2022 de 1,585 trilhões para 2,543
trilhões. Nos últimos anos, quando se
326
implantou uma agenda neoliberal no
Brasil. Uma alta nominal de 55%, em
seis anos completos. Um crescimento
nominal de 9% ao ano – seria o maior
crescimento do PIB mundial. Digno de
louvores à agenda neoliberal
implantada por Michel Temer e Jair
Bolsonaro. Mas, esses números são
verdadeiros ou, na expressão
idiomática inglesa, estão cozinhando
os livros contábeis? Houve um sucesso
ou fracasso na implementação do que
sagrou de chamar neoliberalismo
brasileiro (pauta das eleições de
2018)?

Vejamos o PIB anual nominal:

PIB nominal anual (Milhões R$)


R$ 12,000,000.00

R$ 10,000,000.00

R$ 8,000,000.00

R$ 6,000,000.00

R$ 4,000,000.00

R$ 2,000,000.00

R$ -
dez/2012
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010

dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022

Para comparar as coisas de acordo


com um único critério, por isso é
327
necessária a atualização dos números.
Senão, estaremos cometendo o que em
história das ideias se chama de
anacronismo: julgar fatos anteriores
por valores posteriores. Isso quer
dizer que devemos atualizar os valores
nominais pela inflação acumulada do
período. E para ponderar o poder de
compra, converter o valor corrigido
pela cotação do dólar da época.

Estes são os valores


consolidados:
PIB Nominal IPCA Acumulado Pib corrigido Cotação do Dólar PIB Atualizado
dez/1996 R$ 854,763.00 4.74 R$ 4,051,576.62 $ 1.05 $ 3,858,644.40
dez/1997 R$ 952,089.00 4.5 R$ 4,284,400.50 $ 1.10 $ 3,894,909.55
dez/1998 R$ 1,002,351.00 4.42 R$ 4,430,391.42 $ 1.19 $ 3,723,018.00
dez/1999 R$ 1,087,710.00 4.07 R$ 4,426,979.70 $ 1.81 $ 2,445,845.14
dez/2000 R$ 1,199,092.00 4.84 R$ 5,803,605.28 $ 1.95 $ 2,976,207.84
dez/2001 R$ 1,315,755.00 4.57 R$ 6,013,000.35 $ 2.31 $ 2,603,030.45
dez/2002 R$ 1,488,787.00 3.22 R$ 4,793,894.14 $ 3.52 $ 1,361,901.74
dez/2003 R$ 1,717,950.00 2.9 R$ 4,982,055.00 $ 2.87 $ 1,735,907.67
dez/2004 R$ 1,957,751.00 2.7 R$ 5,285,927.70 $ 2.64 $ 2,002,245.34
dez/2005 R$ 2,170,584.00 2.54 R$ 5,513,283.36 $ 2.31 $ 2,386,702.75
dez/2006 R$ 2,409,449.00 2.47 R$ 5,951,339.03 $ 2.13 $ 2,794,055.88
dez/2007 R$ 2,720,262.00 2.37 R$ 6,447,020.94 $ 1.79 $ 3,601,687.68
dez/2008 R$ 3,109,803.00 2.23 R$ 6,934,860.69 $ 2.30 $ 3,015,156.82
dez/2009 R$ 3,333,039.00 2.14 R$ 7,132,703.46 $ 1.73 $ 4,122,949.98
dez/2010 R$ 3,885,847.00 2.02 R$ 7,849,410.94 $ 1.66 $ 4,728,560.81
dez/2011 R$ 4,376,382.00 1.89 R$ 8,271,361.98 $ 1.86 $ 4,446,968.81
dez/2012 R$ 4,814,760.00 1.8 R$ 8,666,568.00 $ 2.05 $ 4,227,594.15
dez/2013 R$ 5,331,619.00 1.7 R$ 9,063,752.30 $ 2.37 $ 3,824,368.06
dez/2014 R$ 5,778,953.00 1.59 R$ 9,188,535.27 $ 2.67 $ 3,441,398.98
dez/2015 R$ 5,995,787.00 1.44 R$ 8,633,933.28 $ 3.95 $ 2,185,805.89
dez/2016 R$ 6,269,328.00 1.35 R$ 8,463,592.80 $ 3.24 $ 2,612,220.00
dez/2017 R$ 6,585,479.00 1.31 R$ 8,626,977.49 $ 3.30 $ 2,614,235.60
dez/2018 R$ 7,004,141.00 1.26 R$ 8,825,217.66 $ 3.89 $ 2,268,693.49
dez/2019 R$ 7,389,131.00 1.22 R$ 9,014,739.82 $ 4.03 $ 2,236,908.14
dez/2020 R$ 7,609,597.00 1.17 R$ 8,903,228.49 $ 5.19 $ 1,715,458.28
dez/2021 R$ 8,898,727.00 1.05 R$ 9,343,663.35 $ 5.18 $ 1,803,796.01
dez/2022 R$ 9,915,316.00 1 R$ 9,915,316.00 $ 5.16 $ 1,921,572.87

Temos um dado surpreendente sobre


a economia brasileira, nos últimos 26
anos (desde a implementação do Plano
Real). Ela só cresceu, de fato, entre
2003 e 2010. Vejamos de forma mais
detalhada:

328
Pib corrigido (inflação) em
milhões
R$ 12,000,000.00
R$ 10,000,000.00
R$ 8,000,000.00
R$ 6,000,000.00
R$ 4,000,000.00
R$ 2,000,000.00
R$ -
dez/1998
dez/1996

dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
PIB Atualizado (inflação e dólar)
em milhões
$5,000,000.00
$4,000,000.00
$3,000,000.00
$2,000,000.00
$1,000,000.00
$-
dez/2022
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020

329
PIB Nominal x PIB Corrigido
(inflação e dólar) em milhões
R$ 15,000,000.00
R$ 10,000,000.00
R$ 5,000,000.00
R$ -

dez/2012
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010

dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
PIB Nominal PIB Atualizado

Aqui começamos a perceber a


macroeconomia, de fato, refletida pelo
microeconomia. Na última década, o PIB
brasileiro está no menor patamar da
história do Real. Houve um decréscimo
de quase 62%.

A situação fica ainda mais grave


se contabilizarmos o PIB per capta. Em
2010, a população brasileira era de
195,7 milhões. Em 2022 é de 217,5
milhões. Eis a série histórica:

330
PIB Atualizado População (milhões) Pib Per Capita
dez/1996 $ 3,858,644.40 164.6 $ 23,442.55
dez/1997 $ 3,894,909.55 167.2 $ 23,294.91
dez/1998 $ 3,723,018.00 169.8 $ 21,925.90
dez/1999 $ 2,445,845.14 172.3 $ 14,195.27
dez/2000 $ 2,976,207.84 174.8 $ 17,026.36
dez/2001 $ 2,603,030.45 177.2 $ 14,689.79
dez/2002 $ 1,361,901.74 179.5 $ 7,587.20
dez/2003 $ 1,735,907.67 181.8 $ 9,548.45
dez/2004 $ 2,002,245.34 184 $ 10,881.77
dez/2005 $ 2,386,702.75 186.1 $ 12,824.84
dez/2006 $ 2,794,055.88 188.2 $ 14,846.21
dez/2007 $ 3,601,687.68 190.1 $ 18,946.28
dez/2008 $ 3,015,156.82 192 $ 15,703.94
dez/2009 $ 4,122,949.98 193.9 $ 21,263.28
dez/2010 $ 4,728,560.81 195.7 $ 24,162.29
dez/2011 $ 4,446,968.81 197.5 $ 22,516.30
dez/2012 $ 4,227,594.15 199.3 $ 21,212.21
dez/2013 $ 3,824,368.06 201 $ 19,026.71
dez/2014 $ 3,441,398.98 202.8 $ 16,969.42
dez/2015 $ 2,185,805.89 204.5 $ 10,688.54
dez/2016 $ 2,612,220.00 206.2 $ 12,668.38
dez/2017 $ 2,614,235.60 207.8 $ 12,580.54
dez/2018 $ 2,268,693.49 209.5 $ 10,829.09
dez/2019 $ 2,236,908.14 211 $ 10,601.46
dez/2020 $ 1,715,458.28 212.6 $ 8,068.95
dez/2021 $ 1,803,796.01 214 $ 8,428.95
dez/2022 $ 1,921,572.87 217.5 $ 8,834.82

Este é o gráfico de linha


da evolução do PIB per capta:

331
Pib Per Capita (atualizado pela
inflação) em dólares
$30,000.00
$25,000.00
$20,000.00
$15,000.00
$10,000.00
$5,000.00
$-

dez/2018
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016

dez/2020
dez/2022
A partir daí podemos extrair um
primeiro parâmetro do desempenho dos
presidentes: a população ficou mais
rica ou mais pobre durante a gestão?

Preside PIB PIB


nte Percapta Percapta
Inicial Final
FHC $ $
(1996 - 2002) 23,442.55 7,587.20
Lula $ $
(2003 - 2010) 9,548.45 24,162.29
Dilma $ $
(2011 - 2016) 22,516.30 12,668.38
Temer $ $
(2016 - 2018) 12,668.38 10,829.09
Bolsona $ $
ro (2019 - 10,601.46 8,834.82
2022)

332
Como vimos, a população
brasileira, nos últimos 26 anos, teve
um crescimento real de renda apenas
durante sete. Mas, como isso refletiu
nas contas das famílias e das empresas?
Vejamos as séries históricas
disponibilizada pelo Banco Central.
Vale ressaltar que só há valores a
partir de 2005.

São duas séries, uma delas exclui


os valores com habitação.

333
É absolutamente
preocupante, para o futuro, que mais
da metade da renda das famílias esteja
comprometida com dívidas. Se
compararmos os gráficos, podemos
extrair o seguinte fato: desde 2018 a
renda per capta caiu e o percentual do
endividamento aumentou. Conclui-se
disso que, apesar de não ser óbvio que
a renda bruta caiu, mas, e, portanto,
o endividamento aumentou. O que não
ocorreu entre 2006 e 2012 – quando a
renda bruta e o endividamento
aumentaram concomitantemente.

Fator que fica claro se


compararmos ambas as séries
históricas, suavizada por uma média
móvel de 12 meses:

334
Aqui fica claro que o
endividamento cresce de forma
constante na razão de 5% da renda
bruta, até 2012. Mas, quando há uma
queda gigantesca na renda das
famílias, a partir da crise de 2012 e
2016, como o crédito habitacional é de
longuíssimo prazo, a diferença salta
de 5% (o que é em endividamento
habitacional sustentável), para 25%.

Vejamos, doravante, o
comportamento do endividamento das
empresas.

335
A série histórica está
disponível, apenas, a partir de 2012.
Mas, nos aponta algo grave, mas,
esperado, devido à queda brusca na
renda das famílias. A série histórica
reflete o saldo das operações de
crédito entre pessoas físicas
(famílias) e pessoas jurídicas
(empresas): um aumento exponencial, na
ordem de 3:1 do endividamento das
empresas. Saltando de um trilhão, em
2012, para mais de 3 trilhões em 2022.
As empresas estão se endividando, de
forma exponencial, apenas para não
fecharem as portas com a queda da
renda, e aumento do endividamento, das
famílias.

Resta saber, agora, o


comportamento das finanças do setor
público se comparado ao setor privado:

336
O endividamento do setor privado,
como podemos perceber, em relação ao
setor público, passa da razão de 10:1
para 20:1. O saldo da dívida do setor
privado dobrou em, apenas, uma década.

Façamos, agora, uma análise


orçamentária mais detalhada do período
entre 2015 e 2021. Levando em conta os
ditames da nossa Constituição, há
valores mínimos de receita que devem
ser aplicados em despesas
obrigatórias. São as chamadas despesas
e receitas vinculadas. Por exemplo, o
mínimo a ser investido em educação é
de 15% das receitas realizadas.
Vejamos, primeiro, a consolidação dos
dados.

337
Balanço financeiros: receitas e despesas vinculadas
Receitas Despesas Saldo Diferença percentual
2015 $2,357,766,695,000 $2,094,571,439,000 $263,195,256,000 -12.57%
2016 $2,506,164,401,000 $2,254,464,393,000 $251,700,008,000 -11.16%
2017 $2,208,937,056,000 $2,231,050,821,000 -$22,113,765,000 0.99%
2018 $2,506,151,000,000 $2,294,560,000,000 $211,591,000,000 -9.22%
2019 $2,538,316,000,000 $2,364,973,000,000 $173,343,000,000 -7.33%
2020 $3,326,711,000,000 $3,279,091,000,000 $47,620,000,000 -1.45%
2021 $3,789,608,000,000 $3,513,669,000,000 $275,939,000,000 -7.85%
Total $19,233,654,152,000 $18,032,379,653,000 $1,201,274,499,000 -6.66%

Percebe-se a não aplicação, para todo


o período, de 6,66% das receitas
vinculadas totais da forma que rege a
lei – o equivalente a 1,2 trilhão de
reais. Um claro desvio de finalidade.
Uma fraude orçamentária clara e danosa
à sociedade.

Vejamos, agora, a consolidação das


receitas e despesas vinculadas à
educação. Valores negativos
representam uma despesa menor do que a
338
receita. Isto é, receitas vinculadas
que não foram aplicadas. Chama a
atenção a redução das despesas com
educação em 77% entre 2015 e 2021.

Balando Financeiro: Educação


Receitas Despesas Saldo Diferença percentual
2015 $57,361,131,000 $52,908,023,000 $4,453,108,000 -8.42%
2016 $61,540,001,000 $55,272,411,000 $6,267,590,000 -11.34%
2017 $61,913,546,000 $57,888,890,000 $4,024,656,000 -6.95%
2018 $9,952,000,000 $11,264,000,000 -$1,312,000,000 11.65%
2019 $11,318,000,000 $10,631,000,000 $687,000,000 -6.46%
2020 $10,819,000,000 $15,706,000,000 -$4,887,000,000 31.12%
2021 $13,470,000,000 $12,121,000,000 $1,349,000,000 -11.13%
Total $226,373,678,000 $215,791,324,000 $10,582,354,000 -4.90%

Redução dos gastos entre 2015 e 2021 $40,787,023,000 77.09%

É espantosa a constatação de que se


tivesse sido mantido o nível de
despesas de 2015, teria sido aplicado,
na educação, 370 bilhões. Deixou-se de
investir 154 bilhões no período.

Observe como o descalabro com as


contas públicas é gravíssimo! O Fundo
Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) repassa, em média,
R$1100,00 por metro quadrado
construído de uma escola a partir de
projetos modelo. Uma escola para 800
alunos, com 24 salas, custaria, aos
cofres públicos, cerca de 27 milhões
de reais.

Com o dinheiro que deixou de ser


investido poderia ter sido construído
cerca de 5700 escolas. O suficiente
para 4.560.00 alunos. Isso equivale a
diminuir, em média, 10 alunos por sala;
339
de 40 para 30 alunos. Reivindicação dos
professores desde a universalização do
ensino básico a partir da Constituição
de 1988 como condição necessária para
a melhoria do ensino.

Num outro exemplo, números do


SINDUSCON-DF indicam que com toda a
infraestrutura necessária, uma creche
para 198 crianças custa cerca de 3
milhões de reais. Poderia ter sido
construído, deste modo, cerca de 51 mil
creches. Ou seja, o suficiente para 10
milhões de crianças. Somadas as
creches já existentes, seria possível
atender TODAS as crianças de 0 a 3 anos
do país, apesar de, apenas, segundo
dados do FNDE, apenas, cerca de 6
milhões necessitarem de vagas.

Ora, se o cenário é de Terra


arrasada, certamente, esses valores
devem se refletir na Bolsa de Valores
Brasileira. Retomemos dois gráficos,
para tê-los frescos na memória ao
analisar o índice das principais
empresas brasileiras.

340
Pib Per Capita (atualizado pela
inflação) em dólares
$30,000.00
$25,000.00
$20,000.00
$15,000.00
$10,000.00
$5,000.00
$-
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
PIB Atualizado (inflação e dólar)
em milhões
$5,000,000.00
$4,000,000.00
$3,000,000.00
$2,000,000.00
$1,000,000.00
$-
dez/1998
dez/1996

dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022

Como argumentamos, é preciso


atualizar os valores a partir da
paridade com o dólar. Afinal, o que
vale é o poder de compra da moeda e
não, apenas, uma comparação nominal às
cegas. Isto é, é preciso comparar o
Brasil com o mundo e não consigo mesmo

341
para que possamos compreender o real
significado dos números.

Vejamos, primeiro, a Bolsa


brasileira em sua forma nua e crua. Em
reais.

À primeira vista, o índice brasileiro


parece ter sido exemplar, no mundo.
Afinal, parece que as empresas
valorizaram 180% entre 2016 e 2022.
Seria essa a prova cabal de que o
neoliberalismo é a salvação do Brasil?
Será que os números se sustentam?

Teria sido a política nacional


desenvolvimentista dos governos Lula
entre 2003 a 2010 tão boas quanto as
políticas neoliberais de menos Estado?
Vejamos:

342
Chamo a atenção para dois fatores,
nesta análise do Bovespa consigo
mesmo. Durante os governos Lula 1 e 2,
a Bolsa se valorizou 550%. Durante o
governo Bolsonaro, 17%. Mesmo numa
análise primária e simplista, o
frenesi dos plantadores de nota da
Faria Lima na imprensa parecem estar
pensando com outra coisa que não o
cérebro. O crescimento da bolsa de
valores, com Lula, foi 32 vezes maior
do que com Bolsonaro. 17 vezes maior
se considerarmos, apenas, o primeiro
mandato.

O segundo passo, para


compreendermos o índice Bovespa e o
valor das empresas principais empresas
brasileiras é analisarmos a trajetória
de valorização do real ante ao dólar.
Vamos à uma análise do dólar ante ao
real, como fizemos com a bolsa, consigo
mesmo.

343
É de chamar a atenção a valorização de
52% do real ante ao dólar entre 2003 e
2010. O dólar caiu, quando Lula assumiu
em 2003, de R$3,65 para R$1,75. Já no
governo Bolsonaro, houve uma
desvalorização do real. Subiu de
R$3,87 para 5,32. Uma desvalorização
de quase 38%. Vale notar que da saída
de Lula em 2011 até sua volta, em 2023,
o real se desvalorizou quase 190%.

Continuemos a análise. Vamos


comparar, agora, a valoração do real
ante ao dólar e entre o dólar e as
moedas desenvolvidas (índice DXY):

344
Vale notar que durante os dois
primeiros mandatos de Lula, o dólar
diante do real se valorizou 52%.
Enquanto ante as moedas desenvolvidas
se desvalorizou cerca de 22%. Destes,
20% entre 2003 e 2006. Isso significa
dizer, em termos comparativos, que o
real se valorizou 30% a mais do que as
moedas desenvolvidas (euro, iene,
franco suíço e libra esterlina). Por
outro lado, durante o governo
Bolsonaro, entre 2019 e 2022, o dólar
ante as moedas de países desenvolvidos
se valorizou 7%. Diante da
desvalorização de 38% do real. Um
saldo, obviamente, 31% de
desvalorização do real se comparado ao
dólar e as moedas dos países
desenvolvidos.

A desgraça da década perdida da


economia brasileira, entre 2011 e
2022, fica clara quando percebemos que
o Dólar se valorizou 31% no período em
345
relação às moedas desenvolvidas.
Enquanto o real, ante ao dólar, se
desvalorizou cerca de 200%. Um saldo
negativo de 169%.

Vamos voltar, feita a análise da


valoração da moeda brasileira, à Bolsa
de Valores Brasileira. Mas, agora,
vejamos seu comportamento quando a
analisamos em dólares:

Temos um gráfico muito diferente


daquele que vimos quando analisamos o
índice Bovespa de forma isolada.
Quando dolarizamos nossa bolsa,
começamos a enxergar a verdadeira
situação das empresas brasileiras.
Para ficar mais clara a análise devemos
ter quatro fatores em mente, quais
sejam, a bolsa em seus valores nominais
em real; a bolsa com seus valores em
dólar; a cotação do dólar; e a evolução
do PIB, em dólares, atualizado pela
inflação – retomo este último gráfico
à seguir:
346
PIB Atualizado (inflação e dólar)
em milhões
$5,000,000.00
$4,000,000.00
$3,000,000.00
$2,000,000.00
$1,000,000.00
$-

dez/2014
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012

dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
Com estes fatores em mente que é
possível responder à pergunta: “Faz
sentido que com o Produto Interno Bruto
de um país em queda, as empresas deste
país se valorize?”. A resposta é óbvia.
E é não faz sentido.

À primeira vista, parecia que as


empresas brasileiras estavam se
valorizando, quando analisamos o
gráfico do Bovespa isoladamente. Mas,
quando o colocamos em perspectiva, os
dados começaram a fazer mais sentido;
à luz desses fatos, vamos analisar a
evolução do PIB per capita:

347
Pib Per Capita (atualizado pela
inflação) em dólares
$30,000.00
$25,000.00
$20,000.00
$15,000.00
$10,000.00
$5,000.00
$-

dez/2014
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012

dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
Se o PIB per capita, em valores
atualizados, está no mesmo patamar do
início dos anos 2000, como poderiam as
empresas brasileiras terem se
valorizado quase 1100% entre 2003 e
2022?

É à luz destas ponderações que o


gráfico a seguir passa a fazer sentido:

348
PIB Nominal x PIB Corrigido
(inflação e dólar) em milhões
R$ 12,000,000.00
R$ 10,000,000.00
R$ 8,000,000.00
R$ 6,000,000.00
R$ 4,000,000.00
R$ 2,000,000.00
R$ -
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
PIB Nominal PIB Atualizado

É uma máxima conhecida na análise de


mercado que não se deve analisar os
dados de forma isolada, mas, a partir
de seu contexto. Numa análise de
mercado deve-se “olhar a floresta e não
só as árvores” porque somente se
entende a microeconomia a partir de uma
análise macroeconômica, devendo-se
considerar, também, que só se entende
a microeconomia a partir da
macroeconomia. Deve-se compreender o
“todo” a partir das suas “partes” e
vice-versa.

Voltemos ao índice Bovespa:

349
A partir do contexto de análise de
mercado, isto é, uma análise do todo
(mercado global) pelas suas partes
(índice Bovespa) fica mais fácil
compreender porque uma análise de
valores nominais só é útil para quem
tem fetiche por números grandes. Se
considerarmos a evolução do PIB per
capita e da valoração das empresas
brasileiras - que obviamente
necessitam de um mercado consumidor
pujante para crescer – restará claro
do porquê da Bolsa brasileira, em
dólares, é muito diferente dos seus
valores nominais em real. Isto é,
quando analisamos o mercado brasileiro
a partir de seu contexto, ou seja, de
uma economia mundial globalizada e
dolarizada, os dados da macroeconomia
e da microeconomia passam a coadunar.

Os operadores de mercado não


cansaram de plantar notas na imprensa
de que o governo Lula foi péssimo para

350
a economia e que, no auge de uma
torcida contrária aos números, a
gestão de Bolsonaro e Guedes foi o auge
da economia nacional desde a criação
do plano real. Essa análise de “sócio
torcedor fanático pelo posto Ipiranga”
só esqueceu de considerar os números
reais dos últimos vinte anos da
economia brasileira. Como poderia a
economia estar “pujante e acachapante”
com mais da metade da população do país
em insegurança alimentar?

A torcida organizada de Bolsonaro


em seu rompante frenesi de medo do
comunismo desconsiderou os números e
propagaram análises enviesadas,
absolutamente errôneas e desconexas da
realidade. Vamos, então, aos números.
Entre 2003 e 2010, a bolsa brasileira
se valorizou 647%, em números reais e
atualizados. Com um pico de
valorização de 869%. Se considerarmos,
apenas, o primeiro governo Lula, entre
2003 e 2006, o ganho foi de 294%. Por
outro lado, apesar das inúmeras notas
plantadas na imprensa – nunca é demais
frisar – o valor das principais
empresas brasileiras, no governo
Bolsonaro, entre 2019 e 2022, caiu 19%.
Se as empresas nos governos Lula 1 e 2
multiplicaram, seu valor, em quase
oito vezes. Sob Bolsonaro e Guedes,
elas perderam um quinto do valor.

351
Um parêntesis é necessário.
Jornalistas de economia repetem aos
quatro ventos que o sucesso do governo
Lula em seus primeiros dois mandados
só se deu por causa da supervalorização
das commodities e não devido ao sucesso
das políticas econômicas implantadas.
Mas, será que isso é verdade? Vamos aos
gráficos!

Percebe-se, claramente, segundo


dados do Banco central que não. O
índice de comodities se manteve
estável entre 2003 e 2014. O verdadeiro
boom das commodities ocorreu,
justamente, quando as contas públicas
e a renda das famílias começaram à
degringolar: em 2015. E, em números de
hoje, estão num patamar quatro vezes e
meia maiores do que estiveram em todo
o governo Lula. Por que, então, o
governo Bolsonaro não teve quatro
352
vezes mais êxito econômico do que o
governo Lula na década de 2000 se a
razão do sucesso foi o “boom das
commodities”? É óbvio que esta teoria
não se sustenta.

Feitas essas ressalvas sobre como


interpretar o mercado, façamos uma
análise das principais empresas
brasileiras e bolsas mundiais entre
2019 e 2022 para refletirmos sobre a
seguinte questão: “Em relação ao mundo
qual foi o desempenho brasileiro?”

Para isso vejamos a variação dos


preços e o pico de valorização das
principais empresas brasileiras e
americanas:

MERCADO BRASILEIRO (em real):

ABEV3: -7% (pico +35%)

B3SA3: +61% (pico +177%)

BBSA3: +14% (pico +24%)

BBDC4: -35% (pico +30%)

ELET3: +30% (pico +128%)

ITSA4: +4% (pico +34%)

MGLU3: -30% (pico +390%)

PETR4: +177% (pico + 254%)

VALE3: +145% (pico +180%)

WEGE3: +341% (pico +437%)


353
Média: +67% (pico 169%)

MERCADO BRASILEIRO (em dólar):

ABEV3: -35% (pico -21%)

B3SA3: -22% (pico +12%)

BBSA3: -28% (pico -28%)

BBDC4: -57% (pico -33%)

ELET3: -17% (pico +25%)

ITSA4: -3% (pico +22%)

MGLU3: -42% (pico +243%)

PETR4: +59% (pico +80%)

VALE3: +108% (pico +110%)

WEGE3: +197% (pico +232%)

Media: +17% (pico +66%)

MERCADO AMERICANO:

AAPL: +313 (Pico +402%)

AMZN: +22% (Pico +135%)

GOOGL: +80% (pico +190%)

META: +23% (pico +172%)

354
MSFT: +161% (pico +245%)

NFLX: +14% (pico 132%)

NVDA: +520% (pico +902%)

PYPL: -9% (pico +260%)

TSLA: +876% (pico +1962%)

Média: +222% (pico +488%)

O desempenho do mercado
brasileiro claramente deixou a desejar
no período do governo Bolsonaro quando
analisamos as empresas. Basta ver as
médias. No mercado brasileiro a média
de valorização foi de 67% e um pico de
169%; enquanto no mercado americano,
as médias foram de 222% e 488%,
respectivamente.

Quando analisamos os índices,


chegamos à mesma conclusão de que o
mercado brasileiro (em valores
nominais) deixou a desejar. Vejamos:

Índices:

DJI: +45% (pico +58%)

ES1: +61% (pico +87%)

NQ1: +89% (pico +158%)

CAC40: +53% (pico +58%)

DAX: +47% (pico +57%)


355
IBC: +6 (pico +15%)

UK100: +16% (pico +15%)

HSI: -18% (pico +20%)

KOSPI: +22% (pico +65%)

NI225: +41% (pico +58%)

NIFTY: +71% (pico +76%)

SHHKSI: -3% (pico +17%)

IBOV: +21% (pico +47%)

Média: +34% (pico +61%)

A média e o pico de valorização


foi 30% menor. Quando atualizamos os
valores das bolsas para dólares eis os
números:

DJI: +45% (pico +58%)

ES1: +61% (pico +87%)

NQ1: +89% (pico +158%)

CAC40: +32% (pico +42%)

DAX: +17% (pico +37%)

IBC: +7% (pico +6%)

UK100: +6% (pico +14%)

HSI: -21% (pico +5%)

356
KOSPI: -3% (pico +50%)

NI225: +8% (pico +44%)

NIFTY: +46% (pico +55%)

SHHKSI: -13% (pico +4%)

IBOV: -15% (pico -3%)

IBOV (small cap): -23% (pico


+19%)

Média: +19% (pico +43%)

Desses números extraímos as


seguintes conclusões: 1) a bolsa
brasileira foi a segunda pior entre as
piores bolsas mundiais; 2) O índice das
small caps brasileiras caiu mais do que
o das big caps com uma volatilidade
maior; 3) enquanto, na média, as bolsas
mundiais cresceram 19%, a bolsa
brasileira retraiu 15%; 4) A média de
crescimento, em dólar, as principais
empresas brasileiras, apesar de ser de
17% entre 2019 e 2022, sequer atingiu
a inflação do dólar – que foi de 18%.

O custo de Jair Bolsonaro,


portanto, para a Bolsa Brasileira foi
quase uma Petrobrás. Ou quase três
Bancos do Brasil. Se considerarmos o
valor global do índice a perda foi de
160 bilhões de dólares. Ou, 800 bilhões
de reais de perda de valor de mercado.
357
O valor somado de Petrobrás, Vale e
Ambev (as três maiores empresas do
mercado brasileiro) é de 900 bilhões
de reais.

Para que seja possível


compreender o verdadeiro custo de Jair
Bolsonaro à economia brasileira, tão
logo, ao povo brasileiro, é preciso
regredir no tempo e entender como se
formou a mitologia de Bolsonaro.
Proponho três passos, para analisarmos
os três principais eventos entre a
saída de Lula do governo em 2011 até a
eleição de Bolsonaro em 2018. Conjunto
de acontecimentos fundamentais para
explicar a ascensão de Jair, afinal,
só é possível compreender os cem
primeiros dias do governo Lula se
entendermos o contexto que levou
Bolsonaro à presidência. Isso porque,
como argumentei acima, é preciso
entender o contexto antes de se
analisar os cem primeiros dias do
governo Lula. Os eventos são: a greve
dos caminhoneiros de 2018, o
impeachment da presidente Dilma
Roussef e a Operação Lava-Jato.

O leitor mais atento, certamente,


já percebeu a metodologia que estou
utilizando para compreender os
primeiros cem dias do governo Lula,
qual seja, uma análise econômica do
legado de Bolsonaro. E explico porque
358
esse é o método escolhido. Economia é
a gestão de recursos escassos. E a
política nada mais é do que o embate
sobre a gestão de recursos. Isso é
simples de entender a partir de um
clichê sobre o embate entre esquerda e
direita: “mais ou menos Estado”. A
questão de fundo deste problema é o
modo de gestão de recursos. Ou uma
maior intervenção estatal – no
contexto de uma democracia liberal
isso significa o alcance do Estado de
Bem Estar Social – ou uma pretensa auto
regulação da economia pelos indivíduos
enquanto agentes do mercado.

Entendo que a atual polarização


entre democracia e extrema direita
anti democracia liberal só é passível
de ser compreendida se a analisarmos
de um ponto de vista pragmático e, por
conseguinte, a partir da economia.
Esse é o ponto de partida e o tributo
que se deve prestar a três alicerces
do pensamento contemporâneo. Se Kant
nos ensinou que a análise histórica
deve partir do empírico na História
Universal do Ponto de Vista
Cosmopolita, Marx nos legou a
necessidade de que a análise histórica
parta de um ponto material e, no caso
do Capitalismo em que vivemos, esta
materialidade está nas relações
econômicas. A alternativa à análise da

359
história a partir de uma perspectiva
empírica, isto é, dos fatos concretos,
que não a partir de um ponto de vista
material, ou seja, das relações
sociais conforme ditadas pelas
relações econômicas é uma análise
puramente moral. Penso que não haja
controvérsia sobre este ponto. É de
comum acordo pela esquerda – seja ela
revolucionária ou reformista – e pela
direita – afinal, são os próprios
austríacos que significam a liberdade
tal qual aquela proporcionada pelas
relações econômicas. O problema da
análise histórica de um ponto de vista
moral nos foi alertado por Nietzsche
em Verdade e Mentira no Sentido Extra
Moral. Ou seja, o problema é a redução
da axiologia analítica a um embate
entre o Bem e o Mal e, portanto,
reduzir a história a uma análise
puramente metafísica de valores.

O que buscamos ao pagar este


tributo a Kant, Marx e Nietzsche é
evitar uma redução do debate à
adjetivações – costumeiramente
apresentadas na forma de fascistas x
comunistas, no contexto brasileiro.
Cito um exemplo deste método. Ao
analisarmos o impeachment da
presidente Dilma Rousseff, o ponto
nevrálgico não é extrair um juízo do
tipo “foi ou não foi golpe”, mas,

360
ponderar o efeito prático do processo
de impeachment, isto é, seus efeitos
econômicos. Isso porque para que
compreendamos a microeconomia (aquela
parte da economia afeita aos
indivíduos) não importa um debate de
filosofia do direito sobre a ontologia
do impeachment, mas, seu efeito
prático na vida do cidadão comum, ou
seja, o efeito nas suas relações de
consumo e, portanto, as consequências
para o exercício da sua cidadania –
isso entendendo cidadania como a
garantia de direitos relativos à
dignidade da vida humana; como o
direito ao trabalho, à alimentação, à
moradia, ao lazer, à saúde, à educação,
Etc.

A metodologia aqui empregada nos


parece muito proveitosa ao fundar
bases sólidas para o fio condutor da
argumentação aqui proposta para
analisar o contexto em que se insere o
terceiro governo Lula. Refaçamos a
trilha argumentativa para verificar a
solidez do fio condutor desta análise
com intuito de ponderar se seguimos à
metodologia proposta, isto é, a
análise de um fato da história, ou
seja, advindo da multiplicidade das
interações humanas a partir de uma
perspectiva material, ou melhor, das
relações econômicas que são causa

361
desse embate da multiplicidade de
interações entre indivíduos.

Iniciamos a argumentação
propondo analisar os cem primeiros
dias do terceiro mandato de Lula.
Encontramos, de saída, um problema no
governo, qual seja, a falta de
transparência – apesar das incontáveis
promessas de campanha eleitoral. A
partir de um problema gravíssimo demos
um passo na argumentação. Se por um
lado identificamos uma falta de
transparência, logo percebemos que
este problema não é exclusivo do novo
governo Lula. Mas, um problema
histórico brasileiro. E o problema
identificado é nevrálgico às relações
políticas e econômicas, pois, envolve
uma discrepância de trilhões entre o
Balanço Geral da União e o Portal da
transparência. Inevitavelmente fomos
compelidos a olhar as duas
instituições responsáveis pelos dados:
o executivo federal nas figuras do
Banco Central e do Tesouro Nacional. O
próximo passo da argumentação foi mera
consequência, a análise do
aparelhamento do Estado pelo Banco
Central com intuito de implantar uma
agenda político partidária por meio da
política de juros – principal
instrumento de ação do banqueiro
central. Identificamos, então, nas

362
próprias atas do banco central uma
desaceleração econômica devido à
política de juros adotada pelo governo
Bolsonaro. Ora, foi inevitável,
portanto, a análise do Produto Interno
Bruto e do PIB per capita à luz da
política cambial (diretamente afeita à
taxa de juros). Neste contexto, nosso
fio condutor nos levou à uma análise
do Balanço Geral da União; foi quando
descobrimos evidências de uma queda
brutal no investimento derivado do
endividamento público e da queda de
receitas consequente da queda do PIB
per capita – que por sua vez influi
diretamente na queda do PIB, afinal,
uma economia sem investimentos está
fadada à estagnação, conforme vimos a
partir da comparação entre PIB nominal
e PIB corrigido pela inflação e pela
taxa de câmbio. Observamos, deste
modo, diante da queda monumental da
renda (PIB per capita) uma colossal
queda no investimento em educação.
Encontramos, então, causas para a
queda do rendimento per capita, isto
é, através da precarização das
relações de trabalho e da falta de
qualificação de mão de obra. Essa
estagnação do Produto Interno Bruto
que identificamos veio contradizer a
narrativa político partidária do
governo Bolsonaro de uma economia
pujante. Para tirar a prova real, isto
363
é, verificar a existência de uma Terra
arrasada no Brasil pós Bolsonaro,
estabelecemos critérios de análise do
Mercado de Capitais. Diante destes
critérios objetivos confrontamos a
propaganda de adeptos ao Bolsonarismo
ligados ao Mercado Financeiro de que o
neoliberalismo da gestão de Jair
Bolsonaro foi proveitosa à economia
brasileira, mas, o que encontramos foi
um gigantesco prejuízo às empresas
brasileiras.

O método de análise eleito me


parece ser deveras consolidado e
justificado como pode-se perceber por
esta síntese. Afinal, em poucas
páginas, partindo de dados empíricos
de aparelhamento do Estado Brasileiro,
fomos capazes de traduzir este
aparelhamento em dados materiais, ou
melhor, econômicos e identificamos não
só uma fraude fiscal de 3.129 trilhões
de reais, mas, também, encontramos
causas empíricas para a estagnação da
economia que não se resume em meros
bordões de que a estagnação econômica
é culpa dos juros altos. Na verdade,
encontramos rombos orçamentários
capazes de justificar a estagnação
devido às políticas econômicas do
governo Bolsonaro. Enumero a seguir:
300 bilhões da PEC eleitoral; 500
bilhões de prejuízo advindo do Banco

364
Central; 200 bilhões de rombo fiscal
deixado para 2023; 800 bilhões de
prejuízo no Mercado de Capitais; 600
bilhões de furo do Teto de Gastos entre
2019 e 2022. Somando 2,4 trilhões de
reais

Se do lado da macroeconomia temos


números estarrecedores, afinal, são
26% do PIB, em valores de 2022, de
prejuízo em apenas quatro anos;
devemos ponderar esses números na
microeconomia. Como um prejuízo deste
tamanho afeta o cidadão comum?

Vejamos um cenário hipotético.


Uma família com 2 genitores – que detém
renda – e dois filhos. A renda dessa
família hipotética seria de 4530
dólares. Extrai-se daí 55% da renda –
que está comprometida com o
endividamento. Restam 2038 dólares.
Subtraindo o valor das cestas básicas
anuais, restam 233 dólares. Restam 100
reais e dois centavos mensais. E qual
é o dinheiro que a família terá para
comprar gás de cozinha (seriam
necessários outros 268 dólares por
ano)?

O governo soluciona isso com


programas de transferência de renda
(em valores programados para 2023),
pretende-se distribuir, por família,
1398 dólares. Temos, então, se

365
subtrairmos o valor do gás de cozinha,
1130 dólares.

Mas, nem só da cesta básica vive


uma pessoa. Devemos subtrair daí os
custos de internet e telefonia.
Digamos, 150 reais mensais. Teremos,
então, restantes 781 dólares. Temos,
ainda, alguns outros gastos essenciais
de higiene pessoal, como desodorante,
sabonete, pasta de dente e xampu. Numa
consulta rápida, teríamos os seguintes
valores anuais: 720, 624, 360, 96. Ou,
em dólares, na somatória, 350 dólares.
Do orçamento doméstico anual, de 80%
das famílias brasileiras, restam 431
dólares. 35 dólares mensais (184
reais).

Uma pesquisa de 2013 do IPEA


(instituto de pesquisa econômica
aplicada) determinou que o gasto médio
com medicamentos per capta era de 18
reais. Em valores anuais, para a nossa
família hipotética, isso representa 72
reais mensais. Mas, temos que corrigir
o valor pela inflação. O que soma 155
reais mensais. Ou, em dólares, na
cotação que estamos utilizando como
base em 2022, teremos 390 dólares.
Sobram 41 dólares por ano.

O leitor mais atento deve ter


percebido a falta de dois gastos
essenciais: energia elétrica e água.

366
Restarão três dólares e cinquenta
centavos mensais para as duas contas.

Essa é a situação real de uma


família brasileira (80% do total) em
2022: ou se alimenta ou tem água e
energia elétrica. E sequer chegamos a
outros valores essências para a vida
humana como o de roupas, lazer, cultura
e educação.

Os números não mentem. A


Organização das Nações Unidas para o
Brasil, diz que a linha da pobreza,
para um país de renda média – que é o
caso do Brasil – é de 6,85 dólares por
dia. Nossa família hipotética – que é
a realidade de 80% das famílias
brasileiras - vive com 5560 dólares
(somadas as rendas próprias e o
programa de transferência de renda).
Uma renda diária, per capta, de 3,87
dólares.

São 174 milhões de pessoas


vivendo abaixo da linha da pobreza.
Mesmo se refizermos as contas –
desconsiderando o endividamento das
famílias (o que seria um truque
contábil para melhorar a situação do
país e não aferir a real situação das
famílias – teríamos uma renda média per
capta de 7,75 dólares).

Para colocar em proporção, numa


pesquisa rápida, uma lasanha congelada
367
nos Estados Unidos da América, para
quatro pessoas, custam 16,48 dólares.
Em preços brasileiros, a mesma
quantidade de comida (500 gramas por
pessoa), na forma de lasanha
congelada, custam 7.76 dólares.

Maquiando, ou não, ou números a


situação é calamitosa. A real situação
de 80% das famílias brasileiras é essa:
“não dá para viver nem que o único
gasto da família fossem lasanhas
congeladas”.

Apesar do discurso mentiroso do


senhor Presidente Jair Messias
Bolsonaro na conferência de abertura
do encontro anual das nações unidas,
em setembro de 2022, a verdade é que o
PIB per capita, em equivalência, para
um país de renda média, coloca 80% dos
brasileiros na linha da pobreza.

Se não torturarmos os números,


como costumam fazer os governantes –
para vangloriarem a si mesmos – como
fez o senhor Messias Bolsonaro. O dado
do governo de transição, baseados em
pesquisas de que 135 milhões de
brasileiros – 62% da população -
encontram-se em algum grau de
insuficiência alimentar (sendo 35
milhões em estado grave – 16% da
população) tornam-se cristalinos.

368
Este breve exemplo de
microeconomia serve para ilustrar os
dados macroeconômicos. Como seguimos
os fundamentos da filosofia da ciência
e estabelecemos um método de análise
sólido e concreto, isto é, uma reflexão
da história a partir de dados empíricos
e materiais fomos capazes de ilustrar
o fenômeno gerado pelo governo
Bolsonaro para além de juízos
meramente morais e, portanto,
metafísicos e não passíveis de um juízo
de falseabilidade (critério da
filosofia da ciência moderna), afinal,
encontramos razões macroeconômicas
para o descalabro da fome de 130
milhões de brasileiros. Ou, numa
analogia, ao observarmos a floresta
(macroeconomia), guiados pelo sinal de
fumaça da estagnação econômica,
pudemos observar, com alguma clareza,
o fogo que atinge às árvores
(microeconomia). Ou, em outras
palavras, a partir de dados da economia
política nos habilitamos a enxergar os
reflexos nas relações econômicas ao
nível dos indivíduos.

Se parássemos a análise aqui, nos


legaríamos o fracasso de uma análise
histórico-científica; isso porque a
investigação estaria incompleta. Se,
primeiramente, fomos capazes de lançar
luz sobre os efeitos econômicos do

369
governo Jair Bolsonaro, ainda é
necessário determinar as causas
político econômicas do bolsonarismo –
caso entendamos bolsonarismo como
sendo o movimento político ideológico
de ampla adesão popular – para além do
juízo meramente moral e metafísico de
que metade da população brasileira é
nazifascista.

Para continuar, deste modo, a


investigação a partir de bases
empíricas e materiais – fundamentos,
como preconizou Descartes nas
Meditações Metafísicas - que se
comprovaram absolutamente sólidas
devido à uma rigorosa metodologia
científica de análise da história -
devemos regredir aos principais
eventos da política e da economia
brasileira da década que antecedeu à
eleição de Bolsonaro.

O leitor deve lembrar que


elegemos três séries de acontecimentos
como as principais da década de 10 do
século XXI: a greve dos caminhoneiros,
o impeachment da presidente Dilma
Rousseff e a Operação Lava-Jato. A
correlação entre estes três eventos e
a eleição de Jair Messias Bolsonaro é
clara; afinal, sem a operação Lava-
Jato não haveria condições políticas
para o impeachment; sem o impeachment,
não haveria a crise econômica que
370
engendrou a greve dos caminhoneiros de
2018; que, por sua vez, daria
notoriedade a Bolsonaro – que vale
lembrar foi o principal líder e
agitador – para a disputa de uma
eleição presidencial.

Ao contrário do que queria Hegel,


a história não se resume numa linha de
progresso à ser observada pelo anjo da
história de forma regressiva num
constante movimento dialético entre
tese, antítese e suprassumir. A
história, na verdade, é caótica e o
progresso ocorre somente numa
observação abstrata da razão à nível
da espécie e não numa consciência – ser
– absoluta imanente aos indivíduos.
Prova disso é o regresso caótico na
celebração do Contrato Social
promulgado pela Constituição de 1988
que pôs fim ao Estado Despótico da
Ditadura Militar. Fosse o progresso
uma característica imanente aos
indivíduos, não haveria um movimento
contrário à democracia liberal em
favor da volta da ditadura no Brasil.
Não é possível extrair de uma análise
empírica da história um ato de
suprassumir de superação do Estado
Despótico pelo povo brasileiro. Ao
contrário do que argumentou Fukuyama,
no Fim da História, a finalidade – no
sentido de determinação do progresso

371
na perspectiva de um ser absoluto – não
encontra-se na história, mas, é mera
abstração metafísica; jamais uma
predicação do próprio conceito de
história.

Se a filosofia da história é a
análise da sucessão de eventos, a
partir de uma relação de causa e
consequência inerente às leis da
natureza de Espaço e Tempo, cujo estão
sujeitos a multiplicidade de
indivíduos da espécie humana,
decorrentes das interações entre este
múltiplo de sujeitos entre si e entre
os demais elementos constituintes da
natureza; a única forma possível de se
ponderar eventos inseridos na história
são as próprias causas e consequências
deste múltiplo de interações caóticas.
Ou seja, nossa análise da causa do
governo Bolsonaro, enquanto produto do
movimento de massas, só pode se dar a
partir dos próprios efeitos do
bolsonarismo e de suas relações
causais das interações entre os
indivíduos e, portanto, do
materialismo das relações entre os
indivíduos.

Aqui devemos esclarecer o que


entendo por materialismo econômico da
relação entre a multiplicidade dos
indivíduos como sendo elemento
fundamental para a compreensão da
372
História. Entendemos que economia,
neste contexto, adquire um duplo
significado. Ambos extraídos do
dicionário. Quais sejam; um primeiro
que é o de “ordenação das partes com o
todo”; e um segundo significado de que
a economia se trata da “gestão de
recursos visando o bem comum”. No
primeiro sentido temos a subordinação
do indivíduo à espécie e da espécie às
leis naturais. Lembrando das
distinções entre coisa e si e fenômeno,
este primeiro sentido é predicado da
existência do indivíduo enquanto coisa
em si, já que é impossível a existência
de um indivíduo humano sem sua
subordinação às leis da natureza. O
segundo sentido é predicado do
fenômeno do indivíduo; isso porque uma
vez que os indivíduos só existem como
fenômeno (consequência) de uma espécie
e jamais de forma unívoca; só é
possível a existência do indivíduo
enquanto parte do todo, ou seja, numa
sociedade (múltiplo gregário) de
indivíduos.

Se, num primeiro momento, nos


aproximamos de Marx para compreender a
história a partir das relações
econômicas – conforme as definições
acima. Não se deve confundir a História
Universal kantiana com o materialismo
dialético ou com o materialismo

373
histórico. Pois, nos parece, tomando o
argumento de Karl Popper, que o
materialismo no sentido marxista não
condiz com uma metodologia científica
de análise da história. Isso porque o
materialismo histórico necessita de um
conceito metafísico de finalidade da
história. Conceito de causa final que
não pode ser extraído do fenômeno
caótico da interação da multiplicidade
de indivíduos. Um conceito para ser
formulado não necessita de uma
interação entre tese e antítese com
vista a uma superação da tese. O
conceito é produto tão somente da
experimentação empírica.

Neste sentido é impossível


sustentar a cientificidade do
materialismo histórico marxista porque
ele não sobrevive às leis fundamentais
do pensamento, isto é, aos princípios
a priori da lógica. O problema, do
ponto de vista da filosofia da lógica,
está na atribuição de uma propriedade
existencial ao objeto do pensamento ao
identificar pensamento e fenômeno
empírico. Condição necessária para o
funcionamento da lógica hegeliana –
assumida como verdadeira por Marx.
Isto é, o método científico contrapõe
ideias com experimentação empírica. A
dialética contrapõe uma ideia à outra.
A ciência tem como objetivo a análise

374
do objeto sem espaço para especulação.
A ciência não admite teses ad hoc, isto
é, ideias abstratas conjecturadas pela
razão, pelo discurso dialético. Isso
quer dizer que um postulado científico
não é validado a partir de sua
antítese, mas, da sua verificação
empírica.

Neste contexto não é possível


atribuir um caráter científico ao
materialismo histórico marxista porque
ele se pauta no que contemporaneamente
é chamado de lógica intuicionista (ou
construtivista). A verdade não reside
na verificação empírica, mas, no
processo que leva de hipóteses à
proposições. O materialismo histórico,
portanto, não pode ser uma ciência
porque não está sujeito a um princípio
fundamental da Filosofia da Ciência
contemporânea. O materialismo marxista
é alheio ao princípio da
falseabilidade. O princípio central do
materialismo histórico é o de uma causa
final à própria história. Ele é
contraditório à tese fundamental do
empirismo, tão logo, do raciocínio
científico. Isso porque ao pressupor a
existência de uma causa final, se está
pressupondo a existência de uma ordem
teleológica. Como vimos no prefácio, o
argumento teleológico é puramente
metafísico, de tal maneira que é

375
impossível de ser uma teoria
científica, pois, suas condições de
verdade são alheios à prova empírica,
mas, está na sua própria justificação
retórica (dialética). O materialismo
histórico depende, portanto, de um
salto lógico indutivista.

Tendo isso em vista, temos


elementos para compreender porque o
materialismo dialético é uma
pseudociência. Ao tomar como critério
de verdade a dialética, isto é, que uma
tese é justificada pela sua ideia
contrária e não à observação empírica,
os juízos decorrentes deste tipo de
raciocínio são apenas contingentes. O
que nos leva a mencionada contradição
com as leis fundamentais do
pensamento. Há uma negação do
princípio do terceiro excluído na
medida em que tese e antítese podem ser
verdadeiras ou falsas ao mesmo tempo.

Em suma, o problema de se
compreender o materialismo histórico
como ciência está no fato de que ele
assume uma razão teleológica para a
história a partir de reduções
indutivistas que não se submetem ao
princípio da falseabilidade porque seu
valor verdade é determinado por uma
lógica construtivista, isto é,
determinado pelo próprio exercício
retórico da dialética. A verdade,
376
portanto, está nas premissas e não na
verificabilidade da conclusão de forma
empírica. O que a lógica
construtivista tenta fazer, em termos
do silogismo aristotélico, é extrair
conclusões necessárias de premissas
contingentes.

O problema da filosofia da
História marxista é, em outros termos,
que ele faz generalizações a partir de
premissas contingentes. O que é
impossível se considerarmos o
princípio da razão suficiente. Por
exemplo, na condicional "se P, logo Q",
diz-se que Q é necessário para P porque
P não pode ser verdade se Q não for.
Semelhantemente, dizemos que "P é
suficiente para Q", porque P ser
verdade sempre implica que Q também é,
mas P não ser verdade não significa que
Q não é. Neste caso, Q representa a
Tese e P a antítese do argumento
dialético. O processo lógico exige uma
razão suficiente. Essa razão
suficiente é a relação necessária de
um objeto ou acontecimento com os
outros. Em virtude desse princípio,
consideramos que nenhum fato pode ser
verdadeiro ou existente, e nenhuma
enunciação verdadeira, sem uma razão
suficiente (bastante) para que seja
assim e não de outra forma. Isso quer
dizer que premissas contingentes não

377
podem gerar conclusões necessárias. A
razão, como atua sobre esquemas da
comparação do semelhante, tende, em
seu desenvolver, a elaborar o conceito
de idêntico. A razão suficiente liga,
coordena um fato a outro, procura entre
eles um homogêneo, um parecido, uma
“razão suficiente”. Se não o
encontrar, ela não pode compreender.
Dessa forma, a razão necessita das
categorias, isto é, de elementos
homogêneos que liguem um fato a outro.
Basta lembrar da tábua das categorias
para entender que necessidade e
contingência são categorias mutuamente
exclusivas e, portanto, estabelecer um
princípio teleológico (necessário) a
partir de premissas contingentes é uma
violação ao princípio de não
contradição, pois, algo não pode ter
como causa formal algo contingente –
que pode ser ou não ser – e existir de
forma necessária.

Esta é a explicação, a partir da


filosofia da lógica, do porquê
marxistas contemporâneos não
abandonarem as teses comunistas apesar
de toda experiência comunista ter
resultado em experiências
totalitárias, isto é, em Estado
Despóticos. A verdade, para o
construtivismo lógico, está nas
premissas e não na falseabilidade

378
empírica da conclusão. Uma vez que a
verdade das premissas do Comunismo
encontra-se nas suas próprias
premissas, isto é, no seu movimento
retórico-dialético, o marxista entende
como sendo irrelevante o fato de que a
utopia de igualdade universal sob o
jugo do comunismo resulta tão somente,
segundo dados empíricos, numa distopia
totalitária. Deste modo,
consequentemente, a tentativa de uma
teoria científica a partir do
materialismo histórico é absolutamente
impossível.

Feitas estas conceituações


lógicas, vejamos como essas
contradições se aplicam ao conceito de
teleologia inerente ao materialismo
histórico marxista. Esta teleologia se
pauta num progresso necessário do
capitalismo, isto é, numa sociedade em
que impera a luta de classes no
comunismo, isto é, numa sociedade sem
classes. Outra forma de conceituar
está na extinção da propriedade
privada. Ocorre que não há dados
empíricos que verifiquem a existência
dessa superação da sociedade de
classes, isto é, do capitalismo pelo
comunismo. Esse é o salto lógico que
mencionei acima. A partir de uma
observação da superação do feudalismo
pelo capitalismo, Marx faz um

379
movimento de generalização de que a
superação da sociedade de classes é
necessária devido à uma abstração
metafísica de que a sociedade se
constitui numa luta de classes. A
partir, então, do construtivismo
lógico inerente ao materialismo
dialético, comprova-se a veracidade da
premissa de superação da sociedade de
classes a partir da sua antítese, isto
é, da sua negação. Pois, a superação
da tese pela antítese é uma negação do
Princípio do Terceiro Excluído, isto
é, a impossibilidade de existência de
uma terceira opção diante de dois
contrários. Em resumo, é um salto
lógico concluir que se existe uma
sociedade de classes, esta tese deve
ser superada, de forma necessária,
apenas a partir da especulação, isto
é, da postulação da sua negação, a
partir de um princípio teleológico de
progresso estabelecido de forma ad
hoc.

Este é o sentido da argumentação


de Popper ao atribuir ao materialismo
histórico o status de pseudociência
especulativa, pois, não há como
estabelecer a partir de fundamentos
empíricos a necessidade da superação
do capitalismo pelo comunismo de forma
empírica, apenas, como hipótese ad hoc
justificada pelas suas próprias

380
premissas de que a mera elocubração de
uma tese e de uma antítese resultam na
superação da tese.

Ao realizar esta digressão


teórica para distinguir os princípios
da História Universal do Materialismo
Histórico Marxista, espera-se que, por
conseguinte, se tenha justificado a
metodologia da História Universal à
luz da Crítica kantiana do porquê da
História Universal ser uma análise
científica. Ao se partir da análise
puramente empírica sem lançar mão de
abstrações metafísicas, entende-se que
o principal critério da Filosofia da
Ciência contemporânea está atendido,
qual seja, o do princípio da
falseabilidade.

Voltemo-nos ao nosso fio


condutor. Estabelecemos três pontos
centrais para a compreensão da
ascensão de Bolsonaro e do
bolsonarismo. A greve dos
caminhoneiros, o impeachment de Dilma
Roussef e a Lava-Jato.

Iniciemos a análise a partir do


impeachment. Como já argumentei, para
a nossa análise é irrelevante a
hermenêutica jurídica em torno da
questão se o impeachment foi legítimo
ou um golpe parlamentar. O que nos
interessa são os efeitos econômicos da

381
crise do impeachment. Devendo entender
a economia a partir da duplicidade do
conceito. Isto é, a economia enquanto
a “ordenação das partes com o todo”; e
um segundo significado de que a
economia se trata da “gestão de
recursos visando o bem comum”.

Tomemos o primeiro significado


como ponto de partida da análise. O
processo de impeachment só aconteceu
porque a presidente Dilma Rousseff
decidiu não se mobilizar para evitar a
cassação do presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha. Como
represália, Cunha deu seguimento no
processo de impeachment. Se este foi o
estopim da crise, não foi o início do
embate político entre ambos. O
movimento de impeachment teve como
pivô o candidato derrotado nas
eleições de 2014, Aécio Neves, que
resolveu se insurgir contra o
resultado das urnas. Não satisfeito em
questionar a vontade soberana do povo,
numa democracia liberal, Aécio Neves,
à época líder da oposição, resolveu se
lançar numa intentona por um processo
de impeachment de Dilma. A intentona
de Aécio Neves ganhou ecos nas ruas
devido à deflagração da Operação Lava-
Jato. É importante lembrar que se
tratava de apenas de uma insurgência
contra a democracia porque Aécio foi

382
gravado dizendo que iria pedir a
recontagem dos votos “apenas para
encher o saco do Partido dos
Trabalhadores”.

Para compreender o contexto


completo da crise do impeachment e a
lava-jato é preciso olhar três outros
fatos históricos precedentes. O
primeiro é o julgamento de caciques do
Partido dos Trabalhadores, pelo
Supremo Tribunal Federal, em 2012 por
suborno à parlamentares para votarem à
favor das pautas do governo no
Congresso. Um evento televisionado e
acompanhado pela maioria da população
brasileira. Apesar de Lula ter
terminado seu segundo mandato com mais
de 80% de aprovação, um julgamento
criminal televisionado dos Manda-Chuva
do PT, a partir de uma
espetacularização do processo penal
(afinal, quem não se lembra dos debates
sem nenhum decoro entre os Ministros
do STF), somado a um sentimento de
frustração com o PT que apesar de ter
passado vinte anos acusando outrem de
corrupção, se via enlameado em
escândalos televisionados. Apesar
disso, o escândalo do mensalão não
gerou uma onda anti petista, mas, um
movimento popular antipolítica. Prova
disso é o segundo fator que, aqui,
enumero como essencial para

383
compreender o contexto do impeachment
da presidente Dilma Rousseff, qual
seja, os movimentos populares de
protesto iniciados em junho de 2013. A
pauta dos movimentos, à esta altura,
era de luta contra a corrupção. Apesar
de ser um movimento de pautas
genéricas, já se ensaiava a gênese de
um movimento anti política. Por fim,
em 2014, após as eleições, o preço do
combustível que vinha sendo represado
desde 2009 diante de uma alta de 170%
do petróleo no mercado internacional,
explode.

A espetacularização da Operação
Lava-Jato é evidente, afinal, durante
a operação foram realizadas quase cem
fases. Mas, este não foi o maior pecado
da operação. Mas, a sua gestão crise
gerada nas empresas envolvidas em
corrupção. Ao contrário das boas
práticas internacionais de leniência,
a Operação Lava-Jato legou um rastro
de desemprego.

É neste cenário que ocorre o


embate mencionado entre Dilma Rousseff
e Eduardo Cunha. Pressionado pelos
movimentos de rua pedindo o
impeachment da presidente da
República, mas, também, tentando
salvar a própria pele num processo de
cassação no conselho de ética da Câmara
dos deputados. Cunha, a partir de um
384
controle absoluto de um congresso
fisiológico, inicia uma sabotagem do
governo Dilma a partir da aprovação de
desonerações à diversos setores da
economia.

Deve-se considerar, ainda, a


crise na China, maior parceiro
comercial do Brasil, entre 2015 e 2016,
a principal Bolsa de Valores chinesa
cai 40%. O reflexo no mercado
brasileiro é inevitável. Mas, isso não
é tudo. Entre 2014 e 2016 o minério de
ferro perde mais de 60% de seu valor.
O preço do boi gordo dispara 40% (o que
aumenta o custo da carne no mercado
interno brasileiro). O preço da saca
de café cai quase pela metade. O da
soja também. O dólar ganha força e
dispara, entre 2014 e 2016, diante das
moedas desenvolvidas quase 30%. O que
faz com que o real se desvalorize mais
de 60%. O dólar salta de R$2,40 para 4
reais.

A crise do capitalismo de 2008


levou ao desemprego de 14% da população
brasileira. Dilma, a presidente em
2013, resolveu financiar a retomada de
empregos industriais por meio da
renúncia fiscal aos grandes
empresários. Em troca de renúncia
fiscal por meio da desoneração da folha
de pagamento, os empresários
prometeram criar empregos. A
385
desoneração aos empresários veio. Mas,
eles não criaram nem mantiveram os
empregos já existentes. A taxa de
desemprego vai a 18%.

O programa de incentivo econômico


de Dilma dependia das empreiteiras e
da Petrobrás. O investimento dessas
empresas vai a quase zero. É a morte
do Programa de investimento chamado
Programa de Aceleração do Crescimento,
ou, PAC.

Esta é a tempestade perfeita


enfrentada por Dilma Rousseff. O
resultado não poderia ser outro. Os
ativos da união caem 400 bilhões em
dois anos, entre 2014 e 2016. O passivo
aumenta em 1.8 trilhões de reais. O
resultado não poderia ser outro, vale
repetir. A maior crise do Plano Real.
O PIB nominal em dois anos retrai quase
7%. O problema, contudo, se colocarmos
os números em perspectiva é uma crise
muito maior.

386
PIB Atualizado (inflação e dólar)
em milhões
$5,000,000.00
$4,000,000.00
$3,000,000.00
$2,000,000.00
$1,000,000.00
$-

dez/2008
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006

dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022
Apenas em 2015 houve uma retração de
1,2 trilhão de dólares no PIB
brasileiro, em valores atualizados.
Uma retração de quase 37% do PIB de
acordo com valores atualizados e
corrigidos.

O cenário econômico é de terra


arrasada. Soma-se a isso a ojeriza à
política gestado pelas incursões
semanais da operação Lava-Jato. A
população é bombardeada por propaganda
de aversão à política durante quatro
anos de uma operação policial que
atinge a classe política de forma
generalizada. O cadáver putrefato da
política patrimonialista e corrupta
sempre foi de amplo conhecimento da
população brasileira, mas, um processo
criminal espetacularizado reforça o
sentimento avesso às instituições
políticas.

387
Para compreendermos porque esse
sentimento de aversão às instituições
de Estado encontrou um terreno fértil
devemos analisar a renda média da
população brasileira. Vejamos a
evolução do PIB per capita:

Pib Per Capita (atualizado pela


inflação) em dólares
$30,000.00
$25,000.00
$20,000.00
$15,000.00
$10,000.00
$5,000.00
$-
dez/1996
dez/1998
dez/2000
dez/2002
dez/2004
dez/2006
dez/2008
dez/2010
dez/2012
dez/2014
dez/2016
dez/2018
dez/2020
dez/2022

Se, por um lado, a população brasileira


experimentou um salto considerável nas
políticas de inclusão social entre
2003 e 2014, aliada a um aumento
exponencial nos gastos com saúde e
educação durante uma década. Também
viu sua renda mais do que triplicar
durante os dois primeiros mandatos de
Lula; por outro, dado o cenário de
tempestade perfeita que permeou o
impeachment de Dilma Rousseff,
conforme descrevemos acima, também viu
sua renda cair mais do que pela metade
388
durante o governo Dilma. Soma-se a isso
o fato de uma guinada, após a
reeleição, na política econômica rumo
à austeridade fiscal experimentada
pelo povo somente no período de
hiperinflação duas décadas antes.
Sentimento este jamais experenciado
anteriormente por toda a geração que
nasceu durante o Plano Real. Cinquenta
milhões de pessoas.

À luz da operação jornalística


batizada de Vaza-Jato que expôs
conversas entre os membros da operação
Lava-Jato descobriu-se o
direcionamento político da operação. A
espetacularização do processo criminal
foi direcionado aos integrantes do
Partido dos Trabalhadores e aliados.
Lembrando que os próprios integrantes
da Lava-Jato conversaram sobre poupar
participantes do Mercado de Capitais e
concordaram em não, no termo
utilizado, melindrar seus aliados.
Orquestraram para retirar Lula do
pleito eleitoral de 2018.

Não bastasse a crise econômica e


o sentimento de aversão à esquerda, em
especial ao principal partido de
esquerda, o partido de Lula, o Partido
dos Trabalhadores, gestado pelos
melindres midiáticos da Lava-Jato,
temos que considerar que o povo
brasileiro entra no ano eleitoral de
389
2018 enfrentando uma crise hídrica com
racionamento de água na maior parte do
país – o que reflete no custo da conta
de energia elétrica - , no meio do ano,
caminhoneiros autônomos e
transportadoras organizam uma greve
que leva ao desabastecimento de
alimentos, remédios e combustíveis em
todo o país. É neste episódio que
Bolsonaro ganha projeção nacional se
tornando um dos principais agitadores
e divulgadores da greve.

Conforme foi revelado pela


jornalista Patrícia Campos Mello, não
se tratou de um protagonismo gerado
espontaneamente, mas, de disparo em
massa de propaganda através das redes
sociais. Esta foi a primeira eleição,
no Brasil, em que as redes sociais
ganharam grande relevância. Para
compreender este fenômeno das mídias
sociais é preciso considerar a
existência de bolhas de interação. As
interações dos indivíduos são
limitadas a um pequeno grupo de
usuários. Os disparos em massa
alimentam os algoritmos que regem as
redes sociais. A consequência disso é
a circunscrição dos indivíduos em
bolhas de informação.

Se recorrermos à análise da mídia


de massas feita por Cristoph Türcke em
Sociedade Excitada compreendemos
390
porque os disparos em massa funcionam.
Em mídia de massas a importância não
se dá pelo fato em si, mas, na própria
divulgação de algum fato. Diz Türcke
que com o advento da mídia de massas,
algo não mais é noticiado porque é
importante, mas, é importante porque é
noticiado.

Estas bolhas de interação nada


mais são do que pequenas comunidades
de indivíduos. Como vimos nas
proposições da História Universal, faz
parte da natureza humana a formação de
sociedades, pois, é de forma gregária
que o indivíduo realiza suas
potências. A interação das redes
sociais funciona como um reforço
positivo conforme ponderado pela
psicologia behaviorista. Como cães de
Pavlov, o compartilhamento de notícias
cuja urgência se dá não pelo seu
conteúdo, mas, na sua própria
divulgação nessas pequenas bolhas de
interação criada pelos algoritmos das
redes sociais.

“O fato mais singular, numa


massa psicológica, é o
seguinte: quaisquer que
sejam os indivíduos que a
compõem, sejam semelhantes
ou dessemelhantes o seu
tipo de vida, suas
ocupações, seu caráter ou
391
sua inteligência, o simples
fato de se terem
transformado em massa os
torna possuidores de uma
espécie de alma coletiva.
Esta alma os faz sentir,
pensar e agir de uma forma
bem diferente da que cada
um sentiria, pensaria e
agiria isoladamente.”120

É a composição dos indivíduos


numa massa psicológica gerada pelas
redes sociais que explica porque as
mais estapafúrdias notícias são
tomadas como verdadeiras. Os sujeitos
estão agindo e pensando de forma
homogênea e não a partir da sua própria
consciência individual.

” [p. 14]. Ele então se


detém especialmente na
diminuição da capacidade
intelectual, experimentada
pelo indivíduo que se
dissolve na massa.121

Neste sentido, Freud é preciso ao


pontuar que

120FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e


Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 13.
121FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e
Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 18.

392
“Inclinada a todos os
extremos, a massa também é
excitada apenas por
estímulos desmedidos. Quem
quiser influir sobre ela,
não necessita medir
logicamente os argumentos;
deve pintar com as imagens
mais fortes, exagerar e
sempre repetir a mesma
coisa”122

Qualquer um que já tenha se debruçado


sobre os disparos em massa percebe
claramente a veracidade deste ponto do
argumento freudiano. As redes sociais
são inundadas de mensagens repetidas
com intuito de reforçar o que se
convencionou chamar de narrativa
política. O engajamento que essas
redes de comunicação geram no seu
próprio entorno é corroborada pela
própria estrutura algorítmica das
redes sociais que ensejam o
engajamento como ponto central de seu
funcionamento.

O resultado desse circuito


fechado de informação é o sentimento
de universalidade da informação gerada
pela mídia de massas. Àqueles que estão

122FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e


Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 19.

393
fechados nessas bolhas de interação se
tem a certeza necessária ao
comportamento das massas de que o
assunto engajado é o que há de mais
urgente na comunicação pública. As
bolhas geram um sentimento artificial
de universalidade da narrativa
política.

Como a massa não tem


dúvidas quanto ao que é
verdadeiro ou falso, e tem
consciência da sua enorme
força, ela é, ao mesmo
tempo, intolerante e crente
na autoridade. Ela respeita
a força, e deixa-se
influenciar apenas
moderadamente pela bondade,
que para ela é uma espécie
de fraqueza. O que ela
exige de seus heróis é
fortaleza, até mesmo
violência. Quer ser
dominada e oprimida, quer
temer os seus senhores.123

Quanto a isso, acrescentamos a


ponderação kantiana:

o homem é um animal que,


quando vive entre os seus

123FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e


Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 19.

394
congéneres, precisa de um
senhor. De fato, abusa da
sua liberdade em relação
aos outros semelhantes; e
embora, como criatura
racional, deseje uma lei
que ponha limites à
liberdade de todos, a sua
animal tendência egoísta
desencaminha-o, contudo,
onde ele tem de renunciar a
si mesmo. Necessita, pois,
de um senhor que lhe
quebrante a vontade própria
e o force a obedecer a uma
vontade universalmente
válida, e possa todavia ser
livre124

Essa necessidade de submissão à uma


vontade universalmente válida é gerada
como produto da própria estrutura das
bolhas de interação criada pelas
mídias sociais. Nietzsche, em Verdade
e Mentira no Sentido Extra Moral, já
nos alertou que a verdade nada mais é
do que os valores dominantes de uma
cultura.

124 KANT, Immanuel. Ideia de uma história


universal de um ponto de vista
cosmopolita. WMF Martins Fontes, 2010. P.
10.

395
É um clichê da análise da
propaganda nazista recorrer à célebre
frase de Goebbels de que “uma mentira
repetida mil vezes se torna uma
verdade”. Ao analisarmos essa fala à
luz da pontuação Nietzscheana, isto é,
ao pensarmos esse sentimento de
verdade não de um ponto de vista da
moral, mas, como sendo uma expressão
de uma vontade universalmente válida é
que compreendemos o real sentido da
comunicação da mídia de massas.

A própria efemeridade das


comunicações geradas pelas mídias
sociais é um fatos que reforça o
comportamento das massas. Vamos à
letra de Freud:

Os impulsos a que obedece


podem ser, conforme as
circunstâncias, nobres ou
cruéis, heroicos ou
covardes, mas, de todo
modo, são tão imperiosos
que nenhum interesse
pessoal, nem mesmo o da
autopreservação, se faz
valer (p. 20). Nada nela é
premeditado. Embora deseje
as coisas apaixonadamente,
nunca o faz por muito
tempo, é incapaz de uma
vontade persistente. Não
tolera qualquer demora
396
entre o seu desejo e a
realização dele. Tem o
sentimento da onipotência;
a noção do impossível
desaparece para o indivíduo
na massa.125

O disparo em massa de mensagens de


forma constante e incessante é
fundamental para o comportamento das
massas. O sentimento de urgência
gerado pela própria comunicação, e não
pela relevância fática do que é
comunicado, resultante das estruturas
algorítmicas das mídias sociais é
satisfeito por essa necessidade de
constante e imediata realização do
desejo. É preciso ressaltar que os
algoritmos das mídias sociais tem uma
única função: gerar engajamento. Ou
seja, a função do algoritmo é entregar
conteúdos aos usuários que sejam do
interesse do usuário. É uma
retroalimentação: quanto mais se vê um
tipo de conteúdo, mais os algoritmos
entregarão aos usuários conteúdos
semelhantes.

Ora, encontramos, portanto, o fio


condutor que tecemos no início da nossa
investigação. E a metodologia

125FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e


Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 18.

397
científica estabelecida pela Crítica
da Razão Pura, apesar de árdua, parece
nos ter conduzido de forma muito
frutífera nesta reflexão da conjuntura
histórica brasileira. Eis a
importância de termos predicado nossa
análise do Brasil da segunda década do
século XXI a partir de conceitos
metodológicos bem definidos. Se, antes
de nos debruçarmos sobre os fatos
político econômicos, tivemos que fazer
uma longa fundamentação conceitual da
análise histórica a partir de uma
Filosofia da História que respeite
preceitos da metodologia científica,
este percalço argumentativo a partir
de fundamentos sólidos nos começa a dar
frutos positivos. Estabelecemos como
condição fundamental da nossa análise
a necessidade de que não houvessem
conceitos que não pudessem ser
verificados de forma empírica ou que
fossem conceitos puramente metafísicos
e, portanto, inverificáveis na análise
dos fatos da história; preceitos estes
como condição para uma análise
científica da história.

Ao contrário das ciências da


natureza que possibilitam a
verificação dos conceitos a partir de
experimentos, isso não é possível numa
análise da História. E é um própria
necessidade da análise científica que

398
ela não esteja limitada às ciências da
natureza conforme conceituação da
Ciência, enquanto método, na Filosofia
da Ciência preceituada por Karl
Popper. Esta impossibilidade de
experimentação das Ciências Sociais, a
qual se enquadra a Filosofia da
História, lega ao filósofo da história
duas armadilhas. Ou que a sua reflexão
seja puramente abstrata, ou que sua
análise seja fundamentada em reduções
conceituais metafísicas de
generalização de fenômenos do mundo.
No primeiro caso, não há uma análise
científica devido a impossibilidade de
verificação dos conceitos no mundo e,
portanto, não passa de raciocínios
especulativos; no segundo caso, os
conceitos não passam de hipóteses ad
hoc criados a partir de induções e,
portanto, impossíveis de serem
deduzidos, isto é, predicado dos
fenômenos, de tal sorte que não passam
no teste da necessidade da
possibilidade de falseamento dos
conceitos. Em ambos os casos o
resultado será, invariavelmente, uma
análise pseudocientífica.

Neste contexto, ao definir nossa


metodologia de análise da história a
partir dos preceitos da Crítica da
Razão Pura, método científico que
chamamos de História Universal,

399
estabelecemos como ponto de partida as
próprias leis da natureza. Nosso
conceito de partida de análise da
história foi o de autopreservação. A
História da Ciência mostra que Kant
estava certo ao estabelecer este
conceito como fundamento principal das
leis da natureza. Toda a Biologia
moderna e contemporânea parte deste
conceito. O conceito de
autopreservação nada mais é do que o
ponto de partida da Teoria da Evolução
inaugurada por Charles Darwin. É o que
Darwin conceituou, na Origem das
Espécies, como sendo a lei fundamental
aos animais a adaptação ao meio
natural. Vimos que esse instinto
natural à autopreservação é o que leva
os indivíduos estabelecerem um Pacto
Social, de um Contrato Social, isto é,
a formação de uma sociedade civil. Na
Primeira Parte deste livro, chegamos a
uma duplicidade do conceito de
liberdade. O homem é não-livre
enquanto sujeito às Leis da Natureza,
mas, dotado de liberdade a partir da
celebração do Contrato Social. Disso
derivamos que, necessariamente, o
pacto social deveria ser celebrado a
partir de uma vontade livre. Do ponto
de vista do indivíduo enquanto sujeito
de uma vontade livre, esta liberdade
aparece, como preceituou Alberto
Camus, no Mito de Sísifo, como sendo a
400
única questão filosófica
verdadeiramente séria, na questão do
suicídio. Isso porque o suicídio é a
própria negação à lei fundamental da
natureza da autopreservação no seu
sentido mais particular e egoísta, ou
melhor, individual possível. Neste
sentido, o Contrato Social só pode ser
fruto de uma vontade livre se os
sujeitos puderem negar este pacto. É
claro que à nível do indivíduo pode-se
negar o pacto social “morando
isoladamente numa caverna”. Mas, não é
esse tipo de negação que nos interessa,
mas, sim, o da renúncia coletiva ao
Contrato Social. Se, como vimos, a
República é a melhor forma de
autopreservação da multiplicidade dos
indivíduos; a liberdade da vontade
preceitua que deve-se poder renunciar
à República em favor do Estado
Despótico. A possibilidade de renúncia
voluntária, enquanto movimento de
massas, portanto, ao regime que
garante as liberdades civis, isto é, à
República, é o que assevera a liberdade
civil inerente à República.

Esta é, exatamente, a imagem que


estabelecemos para o nosso fio
condutor na primeira parte deste
livro. Vimos a existência, inerente
aos seres humanos, um antagonismo na
celebração do Contrato Social entre

401
vontades egoístas e bem estar comum.
Ao recorrermos à Psicologia das Massas
de Freud percebemos este antagonismo
ao nos depararmos com um movimento de
massas que é contrário a própria
autopreservação dos indivíduos.

Nossa argumento, precisa,


contudo, ainda, de que melhor
detalhamos a análise econômica com o
interim da psicologia das massas. Esta
análise econômica teve, como ponto
nevrálgico, detalhas a crise de renda
gestada entre os anos de 2010 e 2018.
O ponto central que precisamos
elucidar são os efeitos dessa crise
econômica.

A sociologia contemporânea126 nos


traz luz para iluminar este problema.
Não entraremos na dedução do termo,
mas, basta nos dizer que o ponto
central é o medo como ferramenta
política127. Este conceito não é novo à
História da Filosofia, pois, foi muito
bem pormenorizado por Maquiavel em O
Príncipe como sendo a principal

126 FUREDI, Frank. The Culture of Fear:


Risk-taking and the Morality of Low
Expectation. Unkown, 1997.
127KLAEHN, Jeffery. Filtering the news:
essays on Herman and Chomsky's propaganda
model. Black Rose Books, 2005. P. 23–24.

402
ferramenta de controle social do
governante

pode-se dizer isto em


geral dos homens: eles são
ingratos, desleais,
insinceros e enganadores,
tímidos do perigo e ávidos
do lucro…. O amor é um
vínculo de obrigação que
essas miseráveis criaturas
rompem sempre que lhes
convém; mas o medo os
mantém presos por um medo
de punição que nunca passa.

O medo, em política, deve ser


compreendido, portanto, como
sentimento aglutinador dos indivíduos
numa massa hegemônica. Massa, esta,
por sua vez, fundamental para
compreendermos a ascensão de um
movimento político de massas conforme
os termos acima definidos.

Se, por um lado, temos a


ferramenta aglutinadora do
bolsonarismo as verdades universais
artificiais geradas pelas redes
sociais na medida em que os indivíduos
se fecham em bolhas de informação; por
outro lado, temos o modus operandi
desta ferramenta: o despertar de
paixões, do sentimento de medo.

403
O idioma inglês tem uma palavra
para este medo artificial gerado nas
pessoas: fearmonger.

Aqui amarramos o argumento. Se o


contexto econômico brasileiro gerou a
realidade aos indivíduos de escassez
de bens de consumo, a greve dos
caminhoneiros pulverizou este
sentimento de escassez de forma
generalizada. na escassez artificial
enquanto ferramenta político
eleitoral.

Que o medo tenha sido o


sentimento social principal para a
ascensão de Bolsonaro e do
bolsonarismo fica evidente ao nos
lembrarmos do conteúdo do disparo em
massa: o medo do comunismo
representado pelos partidos de
esquerda. Este medo nada mais é do que
o medo da escassez de bens de consumo.
O terreno da crise econômica que o
Brasil enfrentou durante a década de
2010 serviu, portanto, como substrato
fértil para um movimento de massas de
negação do Contrato Social.

As pautas eleitorais não eram


nada além de um discurso repetitivo e
de salvação. O Bolsonarismo seria a
libertação do Comunismo, isto é, da
crise econômica. A figura do medo ao
comunismo deve ser interpretada como

404
um espantalho de problemas reais do
país. Essa redução a um espantalho é
fundamental, como vimos na
argumentação de Freud, para um
movimento de massas. O medo da
escassez, portanto, da fome é o fato
central para compreendermos o
movimento de ascensão do Bolsonarismo.

Se recorremos ao próprio Mein


Kampf, de Hitler, esse sentimento de
medo da fome, nos torna claro enquanto
ferramenta de motivação política para
um movimento de massas:

“Somente quando as
fronteiras do Estado
tiverem abarcado todos os
alemães sem que lhes possa
oferecer a segurança da
alimentação, só então
surgirá, da necessidade do
próprio povo, o direito
justificado pela moral, da
conquista de terra
estrangeira. O arado, nesse
momento, será a espada e,
regado com lágrimas da
guerra, o pão de cada dia
será assegurado à
posteridade”

É claro que não há no bolsonarismo o


elemento de expansão territorial. O
que nos importa, para compreender o

405
bolsonarismo, é que a insegurança
alimentar é o primeiro motor dos
movimentos autoritários de extrema
direita.

406
Seção IV – Da insurreição

XII

Capítulo VIII - A Negação da


Pandemia

Como este livro não é sobre a


pandemia não pretendemos esgotar este
tema, mas, como é um trabalho, também
de filosofia do direito, o que nos
importa neste capítulo é compreender
como o governo Bolsonaro se portou
diante da pandemia à luz do direito
internacional.

Um fator precisa estar claro na


mente do leitor para compreender este
capítulo. Fatos estes que foram
revelados pela Comissão Parlamentar de
Inquérito do Senado brasileiro durante
a pandemia que é a própria recusa em
se comprar vacinas contra a pandemia.

Neste contexto, abarcaremos,


como esta recusa pode ser entendida
diante do direito internacional.

A esse respeito, cito o artigo


17, onde se lê as principais
preocupações de Haia ao processar um
caso:

17) Tendo em conta o parágrafo 10


do Preâmbulo e o artigo 1, o Tribunal
determinará que um caso é inadmissível
quando:
407
(a) O caso está sendo investigado
ou processado por um Estado que tem
jurisdição sobre ele, a menos que o
Estado não queira ou não possa
genuinamente realizar a investigação
ou o processo;

(b) O caso foi investigado por um


Estado que tem jurisdição sobre ele e
o Estado decidiu não processar a pessoa
em questão, a menos que a decisão
resulte da falta de vontade ou
incapacidade do Estado de processar
genuinamente;

Sobre este assunto, devemos


prestar atenção à incapacidade do
Estado de perseguir um julgamento
imparcial. Dois motivos são citados
pelo Estatuto de Roma, portanto, para
a admissibilidade desta questão, devo
provar que o Estado não pode ou não
quer responsabilizar Jair Bolsonaro
por seus crimes contra a humanidade e
os de agressão.

Por acaso, posso fornecer


informações que atendam a esses dois
requisitos. Sobre a questão da falta
de vontade, procurei os tribunais
nacionais tentando processá-lo por
seus crimes. No entanto, o procurador-
geral do Brasil, Augusto Aras,
rejeitou os casos. Acontece que, por
isso, ele está sendo investigado pela

408
Corregedoria, pois apresentei
evidências de que ele rejeitou os casos
ilegalmente1. A Corregedoria da
Procuradoria-Geral da República
encontrou provas suficientes para
iniciar uma audiência preliminar para
apurar a extensão de seus crimes –
previstos no Código Penal Brasileiro
nos artigos 319 e 321.

O problema, é que para processar


o Presidente da República, temos –
conforme dita a lei 9.608 de 19 de
agosto de 1946, no artigo 7º inciso IV
– a exclusividade do procurador-geral
da República para processá-lo. É
verdade que no artigo 9º há a
possibilidade, se o procurador-geral
estiver sob suspeita, de que o
presidente tenha indicado outro para
exercer sua função em um julgamento.
Porém, defendo, não seria um
julgamento justo se o investigado
pudesse nomear alguém para,
exclusivamente, processá-lo:

Um conflito de interesses na
prática contenciosa costuma ter maior
visibilidade do que na prática
transacional, pois o próprio processo
litigioso torna a relação adversa das
partes diretamente aparente. em
litígio, porque tal conflito ameaça a
integridade das próprias funções dos
couts
409
A esse respeito, veremos o que a
legislação brasileira determina como
conflito de interesses: é vedado
“prestar, direta ou indiretamente,
qualquer tipo de serviço a pessoas
físicas ou jurídicas com as quais tenha
estabelecido relação relevante em
razão do exercício do cargo ou
emprego”; “exercer atividade que
implique a prestação de serviços ou a
manutenção de relação comercial com
pessoa física ou jurídica que tenha
interesse na decisão de agente público
ou órgão colegiado do qual
participe”4.

A mesma lei define conflito de


interesses como “A situação gerada
pelo confronto entre interesses
públicos e privados, que possa
comprometer o interesse coletivo ou
influenciar indevidamente o desempenho
do serviço público”. Então, é prudente
dizer que deixar o presidente decidir
quem vai processá-lo gera um confronto
entre interesses públicos e privados.

Sobre este assunto, vamos


recorrer aos Princípios de Bangalore:
“Um juiz deve desqualificar-se de
participar em qualquer processo em que
o juiz seja incapaz de decidir a
questão de forma imparcial ou em que
possa parecer a um observador razoável
que o juiz é incapaz de decidir o
410
assunto imparcialmente.” Desnecessário
dizer que um julgamento conduzido pelo
promotor nomeado pelo réu apenas para
processá-lo neste caso, pareceria a um
observador razoável que ele é incapaz
de decidir o assunto imparcialmente.

Veremos, também, dois princípios


referidos como potencial conflito de
interesses conforme a definição deste
próprio tribunal: 1) o representante
deve abster-se de qualquer contato com
as partes; 2) há conflito de interesses
se houver nomeação comum. Também é
desnecessário dizer que o direito de
nomear alguém para processá-lo
exclusivamente gera um claro conflito
de interesses.

Nesta primeira parte do meu


argumento, argumentei as razões
subjetivas sobre por que o Estado
brasileiro é incapaz e não quer
processar Jair Bolsonaro. Agora, vou
discutir a parte objetiva. Acontece
que o procurador-geral da República
também está sendo investigado pela
corregedoria por me proibir de
apresentar qualquer petição ao
Ministério Público. Portanto, mesmo
que se quisesse, poderia apresentar
quaisquer casos aos tribunais
brasileiros. No entanto, isso gera um
obstáculo objetivo a qualquer ação
penal; há um impedimento legal ao
411
procurador-geral da República para
resolver esse conflito. Pela lei
brasileira, ele é obrigado a abster-se
de analisar a denúncia.

Quanto à admissibilidade peço que


considere os seguintes fatos:

1) Bolsonaro está interferindo


ativamente na Polícia Federal para
evitar a responsabilização;

2) Bolsonaro está interferindo


ativamente na investigação do
Congresso para evitar a prestação de
contas;

1) Bolsonaro cancelou a compra de


medicamentos essenciais para o
tratamento de pacientes internados em
terapia intensiva devido ao COVID-19,
causando o extermínio de doentes;

2) Bolsonaro cancelou a compra de


vacinas, mais de uma vez, causando o
extermínio de centenas de milhares de
pessoas pela falta de medicamentos;

3) Conforme demonstrado
recentemente pela maior universidade
brasileira, que Jair Bolsonaro tomou
medidas imediatas que resultaram na
propagação do corona vírus no país com
mais de três mil legislações;

412
4) Bolsonaro, apesar do alerta da
organização mundial de saúde, rejeitou
medidas, adotadas em todo o mundo, que
controlariam a pandemia;

5) as ações de Bolsonaro
relacionadas à pandemia transformaram
o país em uma ameaça à saúde de todo o
mundo21;

6) Bolsonaro está distribuindo


remédios que ameaçam a saúde dos que
sofrem com a COVID-19;

7) Bolsonaro está defendendo


Mengele como experimento, na mídia
nacional, na população para tratamento
nunca antes testado;

Estes sete fatos,


indubitavelmente, configuram crime de
extermínio, pois compreende a
“imposição dolosa de condições de
vida, designadamente a privação do
acesso a alimentos e medicamentos,
calculada para provocar a destruição
de parte de uma população”, como
recentemente demonstrou por um estudo
de uma universidade brasileira matou
pelo menos 90 mil pessoas.

Bolsonaro havia prometido matar


pelo menos trinta mil pessoas.
Desnecessário dizer que ele permaneceu
fiel à sua própria promessa.

413
Este fato é a privação de direito
humano fundamental. O direito de se
opor, pacificamente, a qualquer
governo. Quando ele age para
investigar aqueles que se opõem a ele
como terroristas, ele viola o direito
internacional, pois é proibido
processar pessoas por suas opiniões
políticas; como é uma ofensa
arbitrária à privacidade de uma
pessoa, portanto, desnecessário dizer
que é uma violação do direito de ter
opinião de que Bolsonaro é um
genocídio, já que seu enfraquecimento
da pandemia de COVID-19 matou quase 400
mil pessoas, mas aqueles que se referem
a ele como um genocídio estão sendo
processados como terroristas.

Argumento também que no Brasil,


como violação do artigo 27, estão
sofrendo retaliação as universidades
que invocam a responsabilidade de
Bolsonaro sobre a lamentável resposta
à Pandemia do Corona Vírus.

Eu mesmo fui investigado, como um


agrado à segurança nacional, pela
Agência Brasileira de Inteligência,
por minha atuação como ativista de
direitos humanos e denunciante de
crimes cometidos pelo governo federal.
Assim, desde já, reproduzo o documento
ICC OTP-CR-450/20.

414
“Nesses documentos você deve
observar duas coisas: 1) a inferência
de acusações de terrorismo de que a
ABIN (agência equivalente à CIA no
Brasil) monitora a sociedade civil sob
o pretexto de proteger a Segurança
Nacional, e 2) que esse monitoramento
está sendo feito contra mim mesmo por
denunciar vários crimes de sua
ditadura (anexo 03).

De acordo com a legislação


brasileira, qualquer investigação
precisa, se considerarmos fumus bonis
juris, ser feita sob o escrutínio das
ferramentas regulares do judiciário –
por meio da Polícia Federal
(equivalente ao FBI) ou da
Procuradoria Geral da República.
Determinações que não observamos neste
caso. Como consequência, tenho estado
sob investigação sem uma ordem
judicial nem tive a oportunidade
legítima de sistema de freios e
contrapesos judiciário.

Veremos o que a Estátua de Roma


diz sobre este fato se lermos no artigo
7, inciso H, que é “Perseguição contra
qualquer grupo ou coletividade
identificável em […] pelo artigo 8º
como “Para efeitos do presente
Estatuto, “crime de agressão”
significa o planeamento, preparação,
iniciação ou execução, por uma pessoa
415
em posição efetiva de exercer controlo
ou dirigir a ação política ou militar
de um Estado, de um ato de agressão
que, por seu caráter, gravidade e
escala, constitui uma violação
manifesta da Carta das Nações Unidas”.
Uma clara violação do artigo 12 da
Declaração Universal dos Direitos
Humanos, i. e., “Ninguém sofrerá
interferências arbitrárias na sua vida
privada, na sua família, no seu
domicílio ou na sua correspondência,
nem ataques à sua honra e reputação.
Toda pessoa tem direito à proteção da
lei contra tais interferências ou
ataques”, mas também do artigo 10 da
DUDH, ou seja, “Toda pessoa tem direito
em plena igualdade a uma audiência
justa e pública por um tribunal
independente e imparcial, na
determinação de seus direitos e
obrigações e de qualquer acusação
criminal contra ele”.

Uma vez que estabelecemos crime


sob jurisdição do Tribunal Penal
Internacional, estabeleceremos
violação ao artigo a impossibilidade
de o caso ser julgado sob decisão do
próprio tribunal do país representado,
ou seja, violação dos artigos 11,
“todos os acusados de ato penal delito
tem o direito de ser presumido inocente
até que sua culpabilidade tenha sido

416
legalmente provada em julgamento
público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa”, e do artigo
8º, “Toda pessoa tem direito a um
recurso efetivo da autoridade nacional
competente tribunais por atos que
violem os direitos fundamentais que
lhe sejam reconhecidos pela
constituição ou pela lei”.
Impossibilidades feitas pelo governo
brasileiro como você verá nos anexos
04 e 05: o Ministério Público havia me
bloqueado para denunciar crimes
cometidos no Brasil, ou seja, foi
imposto um impedimento ao direito de
petição contra mim.

Não há impessoalidade,
moralidade e legalidade, conforme
determina a Carta Magna brasileira
como preceitos norteadores da
administração pública na vedação ao
direito de petição, pois impede o autor
de levar ao conhecimento do
procurador-geral da República fatos
criminais praticados pela
administração federal da República
Federativa do Brasil. Ou seja, o
impedimento ao direito de petição
impede o cidadão de buscar a
responsabilização do Estado por
violações ao Estado Democrático de

417
Direito e ao direito de abuso de
autoridade.

O autor, excelência ilustre,


denuncia vários arrebatamentos
autoritários e corruptos da quadrilha
miliciano que se instalou no Planalto
que deu origem à instauração de uma
ditadura, de estética nazista
fascista. Essa ditadura fica
comprovada, sem mais delongas, quando
o Planalto determina que a Agência
Brasileira de Inteligência (ABIN)
produza relatórios de inteligência
sobre oposicionistas da sociedade
civil.

O Planalto, ao determinar a
produção de tais relatórios, visa
apenas intimidar seus adversários nos
mesmos moldes que as ditaduras do
passado fizeram no país. Nunca é demais
lembrar que o próprio edital de criação
do Serviço Nacional de Inteligência
destinava-se a auxiliar a Presidência
da República em questões relativas à
segurança nacional (artigos 1º e 2º da
Lei 4.341, de 13 de junho de 1964). O
governo acusa, ao determinar a
produção de tal relatório, que o autor
é uma ameaça à segurança nacional sem
a devida prova factual, a menos que as
alegações do autor de corrupção
confrontem a Lei de Segurança
Nacional. Em suma, o que o governo do
418
capitão expulso do Exército Brasileiro
por terrorismo, e ligado às
organizações paramilitares do Rio de
Janeiro, faz é acusar o autor de
terrorismo. E não só, também determina
inquérito administrativo sem o devido
processo legal, nem apresenta provas
de autoria por adversários políticos
da Sociedade Civil. Viola, portanto, o
direito constitucional do
contraditório, a presunção de
inocência, além, é claro, do direito
ao devido processo legal a partir do
sistema de pesos e contrapesos caro ao
judiciário.

Não obstante, o órgão diretamente


ligado ao gabinete do general Heleno
(nunca é demais lembrar o precedente
de que o referido general foi expulso
da missão de paz no Haiti por cometer
arrebatamentos autoritários da mesma
natureza contra a população civil
haitiana), por usurpar as competências
da Polícia Federal e do Ministério
Público e fazer de um órgão de
inteligência um instrumento para
implementar a agenda autoritária do
governo Bolsonaro, não só comete abuso
de autoridade na produção e dificulta
o acesso a tal relatório (arts. , 27,
30, 31, 32, 33 e 38 da lei 13.869, de
5 de setembro de 2019), mas também
419
comete obstrução ao uso da justiça
(parágrafo 1º do artigo 2º da Lei
12.850, de 2 de agosto de 2013) ao
indagar na vida dos que denunciam
crimes da administração pública e,
também, “arapongagem” (inciso I do
art. 13 da Lei 7.170, de 14 de dezembro
de 1983). Também viola o estado de
direito (inciso II do art. 1º da lei
7.170, de 14 de dezembro de 1983, além
dos art. Constituição de 1988, bem como
o disposto no inciso II do art. 4º,
além do disposto no art. 5º em seus
incisos I, III, VI, IX, X, LIII, LV,
LVI; bem como no inciso I dos artigos
23 e 37.

A prorrogação do governo
Bolsonaro também viola os seguintes
tratados internacionais dos quais o
Brasil é signatário: Carta da
Organização dos Estados Americanos
(artigos 11 e 17); Carta Democrática
Interamericana (artigos 1, 2, 3 e 4);
Carta Social das Américas (artigos 1 e
5); Declaração Universal dos Direitos
Humanos (artigos 1, 3, 7, 10, 11, 12,
19, 28).

Desnecessário dizer mais alguma


coisa, pois o que foi dito indica
várias violações do direito
internacional por parte da ditadura
brasileira travestida como democracia.
Assim, rogo a vossas excelências que
420
iniciem uma investigação sobre o
autoritarismo do governo brasileiro
contra a sociedade civil.

Relembro suas excelências de que


genocídio é a exposição de um grupo a
uma condição que pode render sua
destruição. Sobre este assunto, peço
que você considere os seguintes fatos:

1. Bolsonaro tentou alterar a


bula de uma droga que distribui em todo
o país, mesmo sendo produção do
exército, que aumenta
significativamente a possibilidade
daquele que toma essa droga morrer.

Ao fazer isso, ele está fazendo


com que a população brasileira, pode-
se dizer que é uma etnia mestiça única
no mundo devido à história brasileira
de colonização, enfrente sua
destruição iminente. O que é
exatamente o que consiste o crime de
genocídio.

Pode-se argumentar que algumas


dessas ações, especialmente no
contexto da resposta à pandemia, foram
tomadas por subordinados de Bolsonaro.
A esse respeito, traduzindo o que
Hannah Arendt descreveu como a
Banalidade do Mal, peço que o
responsabilize levando em consideração
esses dois fatores de

421
responsabilidade: in vigilando e in
eligendo.

Os crimes contra a humanidade,


genocídio e crimes de agressão,
importa sublinhar, são de tal
gravidade que constituem um atentado à
própria existência do Estado de
Direito, uma vez que “constituem uma
ameaça à paz, segurança e bem-estar da
humanidade [. ..] afetam a comunidade
internacional como um todo, não devem
ficar impunes e que sua repressão deve
ser efetivamente assegurada”.

Também neste sentido, o


extermínio e genocídio da população
brasileira é tipificado na lei de
segurança nacional, dada a privação de
medicamentos e alimentos, mas também o
seu genocídio pelo uso ilícito de
drogas constituindo assim uma ameaça
real e potencial ao Estado de direito
e a própria existência da população
brasileira.

DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL

1) Decisão pública redigida sobre a


admissibilidade do caso contra Saif
Al-Islam Gaddafi. Câmara de Instrução
I | Procurador v. Gaddafi | 31 de maio
de 2013 | ICC-01/11-01/11- 344-
Vermelho

422
uma. - A Câmara está bem ciente
de que o conceito de complementaridade
e sua forma de atuação estão no cerne
dos direitos soberanos dos Estados.
Também está consciente do fato de que
os Estados não apenas têm o direito de
exercer sua jurisdição penal sobre os
supostos responsáveis pela prática de
crimes que recaiam na jurisdição da
Corte, mas também têm o dever existente
de fazê-lo, como expressamente
previsto no preambular n.º 6 do
Estatuto. No entanto, deve-se ter em
mente que uma lógica central
subjacente ao conceito de
complementaridade visa "encontrar um
equilíbrio entre salvaguardar a
primazia do processo interno face ao
[.. .] Tribunal, por um lado, e o
objetivo do Estatuto de Roma de 'pôr
fim à impunidade', por outro lado.Se
os Estados não [...] investigarem
[...], o [...] Tribunal deve ser capaz
de intervir". Portanto, no contexto do
Estatuto, marco jurídico da Corte, o
exercício da jurisdição penal nacional
pelos Estados não é isento de
limitações. Estes limites estão
encapsulados nas disposições que
regulam a inadmissibilidade de um
caso, nomeadamente nos artigos 17.º a
20.º do Estatuto. (par. 44).

423
2) Decisão pública redigida sobre
a admissibilidade do processo contra
Saif Al-Islam Gaddafi. Câmara de
Instrução I | Procurador v. Gaddafi |
31 de maio de 2013 | ICC-01/11-01/11-
344-Vermelho

uma. - A Câmara lembra que uma


conclusão sobre a admissibilidade é
baseada nos fatos existentes no
momento do processo referente à
contestação de admissibilidade, pois
as atividades domésticas ou a falta
delas podem mudar com o tempo. Conclui-
se que a presente decisão não prejudica
eventual impugnação posterior que
venha a ser interposta perante a
Câmara, desde que atendidos os
requisitos do artigo 19.º, n.º 4,
terceiro parágrafo, do Estatuto. (par.
220).

b. - A Câmara observa que a


Câmara de Apelações declarou que o
artigo 17(1)(a) do Estatuto contempla
um teste em duas etapas, segundo o qual
a Câmara, ao considerar uma
contestação de admissibilidade,
abordará sucessivamente duas questões:
(i ) se, no momento do procedimento
referente a uma contestação de
admissibilidade, está em andamento uma
investigação ou julgamento do caso em
nível nacional; e, caso a resposta à
primeira questão seja afirmativa, (ii)
424
se o Estado não deseja ou não pode
genuinamente realizar tal investigação
ou ação penal. (par. 58).

3) Decisão sobre a
admissibilidade do processo contra
Abdullah Al-Senussi. Câmara de
Instrução I | Procurador v. Gaddafi |
11 de outubro de 2013 | ICC-01/11-
01/11-466-Vermelho

uma. - A Câmara observa que a


demora injustificada no processo
nacional é um fator que pode
fundamentar, de acordo com o artigo
17(2)(b) do Estatuto, uma constatação
de má vontade, desde que tal demora
injustificada seja, nas circunstâncias
do caso, "incompatível com a intenção
de levar a pessoa à justiça". Isso está
de acordo com o restante do artigo
17(2) do Estatuto, que obriga a Câmara
a examinar as circunstâncias de fato
com o objetivo de discernir a intenção
do Estado no que diz respeito ao
processo interno em andamento contra o
indivíduo específico. A Câmara irá,
portanto, considerar se as alegações
factuais da Defesa indicam a
existência de atraso injustificado no
processo contra o Sr. Al-Senussi que é
inconsistente com a intenção de trazê-
lo à justiça e, ao fazê-lo, levará em

425
consideração todas as informações
relevantes emergente da prova em seu
poder, inter alia, relativa à
cronologia do processo interno e à
complexidade do caso interno. De fato,
a Câmara é de opinião que a
determinação de se houve tal atraso
injustificado deve ser feita não
contra um ideal abstrato de "justiça",
mas contra as circunstâncias
específicas que cercam a investigação
em questão. (par. 223).

4) Decisão sobre a
admissibilidade do processo nos termos
do n.º 1 do artigo 19.º do Estatuto.
Câmara de Instrução II | Procurador v.
Kony et al. | 10 de março de 2009 |
ICC-02/04-01/05-377

uma. - [...] Tomando emprestada


a linguagem utilizada pela Câmara de
Recurso na sua decisão de 13 de Julho
de 2006, ainda que a respeito de um
contexto processual diferente do dos
Processos, a Câmara entende que a falta
de clareza quanto à autoridade
judicial acaba por investidos do poder
de decidir o foro onde o caso deve
prosseguir equivalem a "causa
ostensiva que impele o exercício da
revisão proprio motu". (par. 44).

426
5) Decisão pública redigida sobre
a admissibilidade do caso contra Saif
Al-Islam Gaddafi. Câmara de Instrução
I | Procurador v. Gaddafi | 31 de maio
de 2013 | ICC-01/11-01/11- 344-
Vermelho

uma. - A Câmara considera que a


capacidade de um Estado genuinamente
realizar uma investigação ou ação
penal deve ser avaliada no contexto do
sistema e procedimentos nacionais
relevantes. Em outras palavras, a
Câmara deve avaliar se as autoridades
líbias são capazes de investigar ou
processar Gaddafi de acordo com a lei
substantiva e processual aplicável na
Líbia. (par. 200).

6) Versão pública editada da


Decisão sobre a contestação da Côte
d'Ivoire à admissibilidade do caso
contra Simone Gbagbo. Câmara de
Instrução I | Promotor v. Simone Gbagbo
| 11 de dezembro de 2014 | ICC-02/11-
01/12-47-Vermelho

uma. - A Câmara de Apelações


considerou que, ao considerar uma
contestação de admissibilidade
apresentada nos termos do artigo
17(1)(a) do Estatuto, duas questões
devem ser abordadas: (i) se, no momento
do processo em relação a uma
contestação de admissibilidade, houve

427
é uma investigação em curso ou processo
do caso a nível nacional; e, caso a
resposta à primeira questão seja
afirmativa, (ii) se o Estado “não quer”
ou “não pode” genuinamente proceder a
tal investigação ou ação penal nos
termos aprofundados nos artigos 17.º,
n.º 2, e 17.º (3) do Estatuto. Assim,
a primeira determinação a ser feita
pela Câmara é com relação à existência
de uma investigação ou processo em
andamento. A esse respeito, a Câmara
de Apelações declarou que “a inação por
parte de um Estado competente (isto é,
o fato de um Estado não estar
investigando ou processando, ou não o
ter feito) torna um caso admissível
perante a Corte”. (par. 27).

7) Decisão sobre a
admissibilidade do processo nos termos
do n.º 1 do artigo 19.º do Estatuto.
Câmara de Instrução II | Procurador v.
Kony et al. | 10 de março de 2009 |
ICC-02/04-01/05-377

uma. - É sabido que a pedra


angular do Estatuto e do funcionamento
do Tribunal é o princípio da
complementaridade, segundo o qual o
Tribunal "terá o poder de exercer a sua
jurisdição sobre pessoas pelos crimes
mais graves de interesse
internacional. . e será complementar
às jurisdições penais nacionais". A
428
complementaridade é o princípio que
concilia a persistência dos Estados ao
dever de exercer jurisdição sobre
crimes internacionais com o
estabelecimento de um tribunal penal
internacional permanente com
competência para os mesmos crimes; a
admissibilidade é o critério que
permite determinar, a respeito de um
determinado caso, se cabe a uma
jurisdição nacional ou a um Tribunal
de Justiça. Assim, a admissibilidade
pode ser considerada como a ferramenta
que permite a aplicação do princípio
da complementaridade em relação a um
cenário específico. (parágrafo 34).

8) Decisão sobre o "Requête


relativo à recevabilité de l'affaire
en vertu des Articles 19 et 17 du
Statut". Câmara de Instrução I |
Procurador v. Laurent Gbagbo | 11 de
junho de 2013 | ICC-02/11-01/11-436-
Vermelho.

uma. - Na opinião da Câmara, a


admissibilidade de um caso deve ser
determinada com base na situação
fática existente no momento do
processo de admissibilidade. De acordo
com o artigo 17(1)(a) do Estatuto, o
Tribunal é obrigado a determinar que
um caso é inadmissível quando "o caso

429
está sendo investigado ou processado".
Assim, a investigação ou ação penal
deve estar em andamento no momento do
processo de admissibilidade. Com
efeito, esta tem sido a interpretação
da Câmara de Apelações, que orientou a
questão, conforme segue:

b. "De modo geral, a


admissibilidade de um caso deve ser
determinada com base nos fatos
existentes no momento do processo
relativo à contestação de
admissibilidade. Isso porque a
admissibilidade de um caso nos termos
do artigo 17(1)(a), (banda

(c) do Estatuto depende


principalmente das atividades de
investigação e acusação dos Estados
com jurisdição. Essas atividades podem
mudar com o tempo." (parágrafo 23).

c. - Portanto, ao considerar se
o caso é admissível nos termos do
artigo 17(1)(a) do Estatuto, a questão
crucial para a Câmara é se medidas
ativas estão sendo tomadas em relação
à suposta acusação [...] do processo
de admissibilidade. Para esse fim,
devem ser apresentadas provas
tangíveis que sustentem a afirmação de
que uma investigação ou ação penal
nacional está em andamento. (par. 24).

430
Espero ter demonstrado, nas
últimas páginas, que ao se tratar do
governo Bolsonaro, devemos levar em
conta o próprio extermínio do
população brasileira, segundo o
próprio Tribunal Penal Internacional,
em ações similares.

Vale notar que o documento acima


transcrito está sendo analisado, à
época de produção deste livro, pelo
Tribunal Penal Internacional
conjuntamente com outras denúncias,
conforme noticiado pelo jornalista
Jamil Chade.

431
XIII

Capítulo IX - Os atos antidemocráticos

Como temos o compromisso com o


leitor de utilizar um método
científico, não faremos como se
limitaram os ministros do Supremo
Tribunal Federal e do Tribunal
Superior Eleitoral em limitar os atos
antidemocráticos como, nas palavras de
Gilmar Mendes, em dizer de que se
tratava de “domingueiras golpistas”
(em referência aos atos que pediam a
intervenção federal a partir de uma
leitura infantil e errada do artigo 142
da Constituição brasileira).

O que faremos é uma análise do


movimento do governo às vésperas da
eleição de 2022. Isso porque temos um
compromisso com a análise de fatos
concretos e de não criar argumentos
psicologizantes ou elucubrações
moralistas, isto é, de dizer de que se
trata de uma ascensão do fascismo
porque este é um efeito do
neoliberalismo.

O que faremos a seguir é analisar


o movimento de tentativa de comprar
votos, de coagir eleitoras a votar em
Bolsonaro, a partir de medidas

432
concretas, ou seja, de atos de ofício
do governo.

Como vimos, essa negação do


resultado das eleições é o crime mais
grave que pode se cometer contra uma
democracia republicana.

Chamo a atenção para a Emenda


Constitucional número 123, de 14 de
julho de 2022. Diz o dispositivo: "Art.
120. Fica reconhecido, no ano de 2022,
o estado de emergência decorrente da
elevação extraordinária e imprevisível
dos preços do petróleo, combustíveis e
seus derivados e dos impactos sociais
dela decorrentes.” Reconhece,
portanto, o Estado de Emergência. Mas,
o que é o estado de emergência? Não há
dispositivo constitucional que o
defina. Estado de Emergência não
aparece na Constituição. Veja, agora,
o que diz a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 829 sobre as
normas constitucionais transitórias:
Contendo as normas constitucionais
transitórias exceções à parte
permanente da Constituição, não tem
sentido pretender-se que o ato que as
contém seja independente desta, até
porque é da natureza mesma das coisas
que, para haver exceção, é necessário
que haja regra, de cuja existência
aquela, como exceção, depende. A
enumeração autônoma, obviamente, não
433
tem o condão de dar independência
àquilo que, por sua natureza mesma, é
dependente. Não há, portanto, como uma
disposição transitória reconhecer algo
que não está na parte permanente da
constituição, pois, “é necessário que
haja regra, de cuja existência aquela,
como exceção, depende”. Não é
possível, deste modo, uma disposição
transitória reconhecer algo que não
existe de forma permanente. Para que
isso fique claro, basta definir o que
é um Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias: “é um
ato normativo presente em todas as
constituições brasileiras que define
as regras para adequações
constitucionais”. São regras para
adequação. Não obstante, o dispositivo
legal tende a abolir o pacto
federativo. Pois, o “estado de
emergência” é uma forma de Estado de
Exceção, isto é, um ato jurídico em que
se autoriza a suspensão da
aplicabilidade de normas
constitucionais.

A constituição prevê três formas


do Estado de Exceção: Sítio, defesa e
intervenção federal. Não há previsão
legal do quarto tipo de Estado de
Exceção da Emenda Constitucional.
Observa-se, ainda, que há um Estado de
Exceção irrevogável. Pois, não há

434
previsão legal para que se decrete o
fim de tal medida de exceção. Nos
demais casos, compete ao legislativo a
execução do contrapeso. Temos,
portanto, até aqui, vícios insanáveis.
Quanto ao sujeito por excesso de poder
– propor e promulgar uma emenda
constitucional tendente a abolir o
Pacto Federativo e à tripartição de
poderes configura, sem mais, em
excesso de poder, ao motivo em relação
ao motivo no pressuposto do direito.
Temos, ainda, o vício pelo abuso de
direito quanto ao desvio de finalidade
configurado quando o senhor Messias
utiliza dos efeitos produzidos pela
reforma constitucional em propaganda
eleitoral, de forma pública e notória,
além de repetitiva, para fazer
propaganda de seu governo e propaganda
negativa de seus adversários no pleito
eleitoral. Resta claro o desvio de
finalidade devido ao claro e óbvio
vício de motivo no pressuposto de fato.
Suscita-se, ainda, vício em relação ao
motivo em relação ao fato, pois, a
flutuação do petróleo do preço do
petróleo e de seus derivados não são
fatos extraordinários e imprevisíveis.
Tanto que o preço do barril foi cerca
de 25% maior em 2008. Não obstante,
permaneceu na mesma faixa de preço da
atual cotação entre os anos de 2010 e
2015.Além disso, a flutuação de preços
435
dos derivados de petróleo no mercado
nacional tornou-se previsível quando o
governo adotou a Política de Paridade
Internacional de Preços do Petróleo e
derivados. Há de se considerar, ainda,
a desvalorização do Real ante ao Dólar
em cerca de 60% durante o governo
Bolsonaro devido a política econômica
adotada pelo candidato à reeleição.
Há, ainda, a política de
desinvestimento adotada pela Petrobrás
que, de forma inconteste, tornam a
cadeia produtiva do petróleo mais
onerosa. Não obstante à inflação
oficial acumulada, durante o governo
do denunciado, ser de mais de 20%.
Considerado isso, há de se examinar a
justificativa para a reforma
constitucional – conforme repetido em
campanha eleitoral inúmeras vezes –
qual seja, a guerra na Ucrânia. Ora, a
multiplicidade dos fatos elencados
indicam a inaplicabilidade da Teoria
da Imprevisão, pois, não há nexo de
causalidade exclusiva da guerra e a
flutuação dos preços; há fatores que
influenciam na flutuação dos preços
que tiveram a contribuição do senhor
Messias. Sobre o Estado de calamidade
pública e o Estado de emergência na
legislação infraconstitucional há de
que se considerar que a lei determina
as seguintes competências: Art. 3º O
Poder Executivo federal apoiará, de
436
forma complementar, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios em
situação de emergência ou estado de
calamidade pública, por meio dos
mecanismos previstos nesta Lei. § 1º O
apoio previsto no caput será prestado
aos entes que tiverem a situação de
emergência ou estado de calamidade
pública reconhecidos pelo Poder
Executivo federal. § 2o O
reconhecimento previsto no § 1o dar-
se-á mediante requerimento do Poder
Executivo do Estado, do Distrito
Federal ou do Município afetado pelo
desastre.( LEI Nº 12.340, DE 1º DE
DEZEMBRO DE 2010 Art. 29.) Os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios
poderão declarar situação de
emergência ou estado de calamidade
pública por ato do respectivo Chefe do
Poder Executivo quando for necessária
a adoção de medidas imediatas ou
excepcionais para mitigar os efeitos
do desastre.” (DECRETO Nº 10.593, DE
24 DE DEZEMBRO DE 2020) Percebe-se que
não compete à união a declaração de
situação de emergência ou estado de
calamidade.

Mas, qual é a definição


infraconstitucional de situação de
emergência? “situação anormal
provocada por desastre que causa danos
e prejuízos que impliquem o

437
comprometimento parcial da capacidade
de resposta do Poder Público do ente
federativo atingido ou que demande a
adoção de medidas administrativas
excepcionais para resposta e
recuperação.” E o que é um desastre?
“resultado de evento adverso
decorrente de ação natural ou
antrópica sobre cenário vulnerável que
cause danos humanos, materiais ou
ambientais e prejuízos econômicos e
sociais;” “ “§ 1º A decretação se dará
quando caracterizado o desastre e for
necessário estabelecer uma situação
jurídica especial, que permita o
atendimento às necessidades
temporárias de excepcional interesse
público, voltadas à resposta aos
desastres, à reabilitação do cenário e
à reconstrução das áreas atingidas;”
(INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 01, DE 24 DE
AGOSTO DE 2012) Aqui, observamos
alguns problemas: não há de se falar
em danos ou prejuízos ao cenário ou a
necessidade de reconstrução de áreas
atingidas pela simples flutuação de
preços do petróleo. Também não há
configuração de prejuízo a capacidade
de resposta devido à flutuação do preço
da gasolina, pois, ações de resposta
são “medidas de caráter emergencial,
executadas durante ou após a
ocorrência do desastre, destinadas a
socorrer e assistir a população
438
atingida e restabelecer os serviços
essenciais;”. Também não é possível
que se configure, a flutuação do preço
dos combustíveis, um desastre. O
significado das palavras importam. O
dicionário diz que desastre é um
“Acontecimento funesto (Que vaticina
morte ou desgraças; agourento,
infausto, mofento, sinistro),
geralmente inesperado, que provoca
danos graves de qualquer ordem”. A
menos que se aceite uma hermenêutica
semântica jurídica Humpty Dumpty – dar
às palavras conceitos solipsistas. Não
é possível sustentar a tese de que haja
estado de emergência a partir da mera
flutuação dos preços do petróleo no
mercado internacional. Fosse possível,
estado de emergência poderia ser
instaurado diante da variação de
preços de qualquer bem consumível.
Ora, a preocupação primeira da
constituição é a erradicação da
miséria. Tendo mais de trinta milhões
de brasileiros em estado de fome, não
seria o caso de decretar estado de
emergência devido à inflação de
alimentos, durante o governo
Bolsonaro, ser de quase 50%? Os atos
administrativos sustentados na
premissa, no caso concreto em questão,
de que a flutuação do preço do petróleo
dá causa ao estado de emergência,
incorrem na tese de ilegalidade do
439
objeto, pois, seus efeitos motivam
violação de lei.

Afastada a tese, portanto, de


existência de estado de emergência,
deve-se aplicar aos atos
administrativos que ensejaram na
transferência de voluntária de
recursos a vedação disposta na lei
eleitoral: “a) realizar transferência
voluntária de recursos da União aos
Estados e Municípios, e dos Estados aos
Municípios, sob pena de nulidade de
pleno direito, ressalvados os recursos
destinados a cumprir obrigação formal
preexistente para execução de obra ou
serviço em andamento e com cronograma
prefixado, e os destinados a atender
situações de emergência e de
calamidade pública; (LEI Nº 9.504, DE
30 DE SETEMBRO DE 1997)” Sem contar a
aplicação do 1. O art. 73, § 10: da Lei
das Eleições proscreve a distribuição
gratuita de bens, valores e benefícios
no ano das eleições, excepcionando-se
apenas os casos de calamidade pública,
de estado de emergência ou de programas
sociais autorizados em lei e já em
execução orçamentária no exercício
anterior. Isso se considerarmos a
transferência de benefícios descritas
no Ato Transitório: VI - concederá,
entre 1º de julho e 31 de dezembro de
2022, aos motoristas de táxi

440
devidamente registrados até 31 de maio
de 2022, auxílio até o limite de R$
2.000.000.000,00 (dois bilhões de
reais); III - concederá, entre 1º de
julho e 31 de dezembro de 2022, aos
Transportadores Autônomos de Cargas
devidamente cadastrados no Registro
Nacional de Transportadores
Rodoviários de Cargas (RNTRC) até a
data de 31 de maio de 2022, auxílio de
R$ 1.000,00 (mil reais) mensais, até o
limite de R$ 5.400.000.000,00 (cinco
bilhões e quatrocentos milhões de
reais); V - entregará na forma de
auxílio financeiro o valor de até R$
3.800.000.000,00 (três bilhões e
oitocentos milhões de reais), em 5
(cinco) parcelas mensais no valor de
até R$ 760.000.000,00 (setecentos e
sessenta milhões de reais) cada uma,
de agosto a dezembro de 2022,
exclusivamente para os Estados e o
Distrito Federal que outorgarem
créditos tributários do Imposto sobre
Operações relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre Prestações de
Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)
aos produtores ou distribuidores de
etanol hidratado em seu território, em
montante equivalente ao valor
recebido; Desta feita, os atos
administrativos de execução
orçamentária decorrentes do Ato
441
Transitório em questão “caracterizam,
ainda, atos de improbidade
administrativa, a que se refere o art.
11, inciso I, da Lei nº 8.429, de 2 de
junho de 1992, e sujeitando-se às
disposições daquele diploma legal, em
especial às coligações do art. 12,
inciso III.” Tem-se, ainda, o abuso de
autoridade, nos termos descritos:
“Art. 74. Configura abuso de
autoridade, para os fins do disposto
no art. 22 da Lei Complementar nº 64,
de 18 de maio de 1990, a infringência
do disposto no § 1º do art. 37 da
Constituição Federal, ficando o
responsável, se candidato, sujeito ao
cancelamento do registro ou do
diploma. (Artigo com redação dada pela
Lei nº 12.034, de 29/9/2009)”. Devido
a determinação imposta aos entes
federados pela União por decreto
presidencial: Art. 39. Os entes
federativos divulgarão amplamente,
inclusive em seus sítios eletrônicos,
as ações de prevenção e de resposta e
recuperação custeadas com os recursos
financeiros da União transferidos na
forma prevista neste Decreto (DECRETO
Nº 11.219, DE 5 DE OUTUBRO DE 2022).
Ora, o ato transitório obriga a
transferência de recursos a todas
Unidades Federativas, pois, decreta
estado de calamidade em todo o
território nacional. Mediante a
442
transferência obrigatória de perda de
arrecadação pelos Estados e
Municípios. IV: “aportará a União aos
Estados, ao Distrito Federal e aos
municípios [...] assistência
financeira em caráter emergencial”.
“Art. 2º As transferências
obrigatórias de recursos financeiros
da União de que trata o art. 1º
observarão os requisitos e os
procedimentos previstos na Lei nº
12.340, de 2010, e neste Decreto.
(DECRETO Nº 11.219, DE 5 DE OUTUBRO DE
2022).

Determinamos, até aqui, a


antijuridicidade e a tipicidade dos
atos administrativos de execução
orçamentária provenientes do Ato
Transitório aqui denunciado como causa
de crime. Devemos, agora, ponderar a
culpabilidade. Determina, a
Constituição, que o agente público só
pode fazer aquilo que é permitido por
lei. Não sendo, portanto, possível a
interpretação de ato culposo nos
crimes concernentes à administração
pública. Isso porque a Lei de
Introdução às normas do direito
brasileiro determina a impossibilidade
de alegar o desconhecimento da lei. A
vontade, portanto, do agente público
terá sempre como pressuposto que há o
conhecimento da antijuridicidade e a

443
tipicidade dos atos por ele praticado.
Tendo, portanto, repito, a vontade do
agente público pressupostos
constitucionais de conhecimento da
antijuridicidade e da tipicidade; a
manifestação da vontade do agente
será, sempre, expressa. Isso porque a
operação de ato de execução
orçamentária é complexo (dotação,
empenho e execução) exigindo
concordância escrita (assinatura) e
exprimirá, sempre, a vontade da
administração pública. Ocorre,
contudo, que a constituição determina
que a execução orçamentária deixará de
ser obrigatória quando incorrer em
antijuridicidade. A vontade da
administração pública se expressa por
meio de ato do agente. Estando este
obrigado a agir de acordo com os
princípios regentes da administração
pública da moralidade e da legalidade
agirá dolosamente sempre que o efeito
do seu ato tiver vícios de motivo
insanáveis. Vícios estes, expostos
acima, pois, os fundamentos de fato e
de direito apresentados pelo senhor
Messias Bolsonaro não possuem
correlação lógica entre a situação
ocorrida e as providências adotadas.
Assim, o dolo praticado não é o
eventual, mas, o dolo direto. Isso
porque estão presentes os elementos
objetivos e subjetivos do tipo. Deve-
444
se considerar, também, a punibilidade
dos atos lesivos aos cofres públicos.
É verdade que o Ato Transitório
suspendeu a punibilidade. Mas, não há
efeito suspensivo para o pleito
eleitoral em curso devido a norma
constitucional: “artigo 16 da
Constituição de 1988, para o qual “A
lei que alterar o processo eleitoral
entrará em vigor na data de sua
publicação, não se aplicando à eleição
que ocorra até um ano da data de sua
vigência.” Conforme a ADI 829, já
transcrita, as normas transitórias são
dependentes das permanentes. E é obvia
a alteração do processo eleitoral,
pois, extingue punibilidades previstas
na lei geral das eleições. E altera de
forma direta. Conforme é possível
perceber: Art. 73. São proibidas aos
agentes públicos, servidores ou não,
as seguintes condutas tendentes a
afetar a igualdade de oportunidades
entre candidatos nos pleitos
eleitorais § 10. No ano em que se
realizar eleição, fica proibida a
distribuição gratuita de bens, valores
ou benefícios por parte da
Administração Pública, exceto nos
casos de calamidade pública, de estado
de emergência ou de programas sociais
autorizados em lei e já em execução
orçamentária no exercício anterior,
casos em que o Ministério Público
445
poderá promover o acompanhamento de
sua execução financeira e
administrativa. a) realizar
transferência voluntária de recursos
da União aos Estados e Municípios, e
dos Estados aos Municípios, sob pena
de nulidade de pleno direito,
ressalvados os recursos destinados a
cumprir obrigação formal preexistente
para execução de obra ou serviço em
andamento e com cronograma prefixado,
e os destinados a atender situações de
emergência e de calamidade pública;
Percebe-se que o Ato Transitório
altera a igualdade entre os
candidatos. Porque permite ao chefe do
executivo federal, ora candidato, o
desequilíbrio de oportunidades para
com os demais candidatos. Permite a
execução de crédito extraordinário.
Mas, não só, permite de forma
temerária. Veja: III - a realização de
operações de créditos que excedam o
montante das despesas de capital,
ressalvadas as autorizadas mediante
créditos suplementares ou especiais
com finalidade precisa, aprovados pelo
Poder Legislativo por maioria
absoluta; Aqui há a permissão de se
gastar (operações de crédito) mais do
que se arrecada (despesas de capital).
Há, aqui, a permissão de descontrole
dos gastos do governo. É a permissão
do aumento da dívida pública. Art. 2º
446
A elaboração e a aprovação do Projeto
de Lei Orçamentária de 2022 e a
execução da respectiva Lei deverão ser
compatíveis com a obtenção da meta de
déficit primário de R$
170.473.716.000,00 (cento e setenta
bilhões quatrocentos e setenta e três
milhões setecentos e dezesseis mil
reais) para os Orçamentos Fiscal e da
Seguridade Social, conforme
demonstrado no Anexo de Metas fiscais
constante do Anexo IV a esta Lei. Meta
fiscal é “a referência para os
objetivos desejados pelo ente da
Federação quanto ao equilíbrio fiscal,
à estabilidade econômica e ao controle
da dívida pública”. Ora, a meta já era
de déficit. O que se está permitindo,
neste dispositivo, é o aumento do rombo
fiscal do governo. Não obstante, é um
óbice à lei de transparência, pois,
impede averiguação da execução
orçamentária por meio do Identificador
de Resultado Primário. III - a dispensa
das limitações legais, inclusive
quanto à necessidade de compensação:
a) à criação, à expansão ou ao
aperfeiçoamento de ação governamental
que acarrete aumento de despesa; e b)
à renúncia de receita que possa
ocorrer. Veja o que diz nota técnica
do Senado: 1. Nos termos do art. 107,
§ 6º, II, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT),
447
os créditos extraordinários não se
sujeitam ao Novo Regime Fiscal, que
instituiu os chamados “tetos de
gasto”; É, portanto, a autorização de
gastos fora do Teto de Gastos. E de
forma muito grave. Porque permite
operações de crédito sem a respectiva
compensação. Não obstante, gera ônus
aos entes federados sem a devida
compensação (viola o pacto
federativo).

O que eu espero ter conseguido


demonstrar é que o governo Bolsonaro
tomou medidas concretas contra as
eleições de 2022. Tentou, sem qualquer
pudicícia (vergonha na cara) comprar
as eleições. Partirmos da presunção de
que este movimento antidemocrática tem
raízes econômicas reais e
problemáticas para a vida dos
brasileiros. Neste sentido, a coação
se dá a partir de uma melhora econômica
fictícia. O movimento econômico, de
tentativa de comprar as eleições,
deve, portanto, ser entendido como
sendo um fator fundamental de adesão
ao bolsonarismo.

Caso não consigamos encontrar


raízes econômicas fundamentais nos
restará a conclusão de que há, no
Brasil, um mal moral originário que
leva as pessoas ao extermínio do
próprio povo. Neste sentido, devemos
448
recorrer à Freud para compreender um
movimento político de massas:

Basta-nos dizer que na


massa o indivíduo está sujeito a
condições que lhe permitem se
livrar das repressões dos seus
impulsos instintivos
inconscientes. As
características aparentemente
novas, que ele então apresenta,
são justamente as manifestações
desse inconsciente, no qual se
acha contido, em predisposição,
tudo de mau da alma humana.128

Devemos, portanto, entender o


movimento de massas não como um mal
moral originário, como um pecado. Mas,
a partir do contexto de sua formação.
Neste sentido, o nosso argumento
desenhado neste livro ganha forças,
isso porque passamos a entender o
bolsonarismo a partir do contexto
socioeconômico brasileiro da década de
2010. E não a partir de um reducionismo
de que se trata de uma espécie de
pecado. O que nós tentamos fazer, a
partir de uma metodologia filosófico
científica, é analisar o contexto

128FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e


Análise do Eu. L&PM, 2013. P. 15.

449
econômico que leva a adesão ao
bolsonarismo.

Devemos, portanto, compreender a


força do movimento bolsonarista não a
partir de um argumento moral. Isso
seria uma resposta simples e errada
para um problema complexo.

Para, de fato, compreender este


movimento político, devemos
compreender seu contexto histórico,
social, e econômico a partir de um
método criterioso de análise de uma
conjuntura histórica.

Neste contexto é que devemos


compreender a depredação das sedes dos
três poderes.

O leitor, neste contexto, deve


estar se perguntando: “é meio bizarro
os manifestantes terem achado que
iriam conseguir alguma coisa quebrando
os três poderes, quanto mais uma
intervenção militar”. Esta pergunta é
respondida pelo próprio Freud. Diz,
com toda sua genialidade, o autor:

(P. 15) “O primeiro é


que o indivíduo na massa
adquire, pelo simples fato
do número, um sentimento de
poder invencível que lhe
permite ceder a instintos*
que, estando só, ele

450
manteria sob controle. E
cederá com tanto mais
facilidade a eles, porque,
sendo a massa anônima, e
por conseguinte
irresponsável, desaparece
por completo o sentimento
de responsabilidade que
sempre retém os
indivíduos.”

Ora, fica fácil, portanto, concluir o


porquê do vandalismo na capital
brasileira era inevitável. Um
movimento político de massas, que
tenta acabar com uma democracia,
sentiu-se invencível e a partir de um
frenesi coletivo resolveu quebrar toda
a praça dos três poderes.

O que, como demonstramos, é que


este movimento não é um levante
moralista. Mas, um movimento complexo
que constitui em uma década de crise
econômica profunda. Com traços que
demoraram uma década para se formar no
que diz respeito à aversão às
instituições democráticas. E tem como
motor uma espécie de flauta dos ratos
– em referência ao conto infantil – de
alienação da população brasileira
sobre quem era a causa de suas
adversidades econômicas.

451
O que devemos entender, e este
foi o nosso objetivo até aqui, é que o
movimento antidemocrático do
Bolsonarismo se formou a partir da
própria fome da população brasileira.
Movimento este agravado durante a
pandemia de COVID-19.

E é importante entender que o


extermínio da população brasileira
perpetrado pelo governo Bolsonaro,
tendo como base o negacionismo da
própria pandemia, acabou por agravar a
pandemia, afinal, não se lida com uma
pandemia sem vacinas.

Ponderamos o extermínio durante


a pandemia, e logo após, a tentativa
de Jair Messias Bolsonaro de comprar
as eleições a partir de medidas
econômicas ensandecidas para que o
eleitor possa concluir o seguinte: a
tentativa de golpe eleitoral ocorreu
tão somente devido à queda de
popularidade de Jair num contexto pós
pandêmico em que a negação da pandemia
agravou os efeitos econômicos que o
país enfrentava desde o início da
década de 2010.

452
XIV
Capitulo X - Nota Sobre o Título do
Livro

Este é o contexto do porquê


escolhemos chamar este livro de
“Fábrica de Cretinos”.

Fábrica é, conforme define o


dicionário, estabelecimento industrial
em que se transforma uma matéria prima
em produto. Cretino, por sua vez,
apesar de poder ser entendido como o
indivíduo que sofre de deficiência
mental ou imbecil; entendemos a partir
do significado de insolência; ou seja,
aquele que não demonstra respeito em
suas ações ou palavras; e, ainda,
aquele que tem orgulho (sentimento de
respeito por si mesmo) desmedido.

A Fábrica de Cretinos é,
portanto, a transformação de uma crise
econômica gravíssima, a partir de um
caráter de revolta contra o sistema
político vigente; através de um
movimento cultural, na figura do
“Olavismo Cultural” que se confunde
com um movimento de massas; por meio
de um respeito desmedido por um
falastrão que nega a ciência, a
educação e a cultura; com o objetivo
de suplantação da democracia por uma
ditadura militar”.

453
Em resumo, a Fábrica de Cretinos
é a consequência de uma crise político,
social e econômica que produz uma
tentativa de abolição da Democracia e
do Estado de Direito.

Neste sentido, devemos


compreender a Fábrica de Cretinos como
um movimento político revolucionário
de caráter reacionário. Reacionário
nada mais é do que o sujeito que é
contra a evolução político social.

Neste sentido de que o


bolsonarismo é um movimento político e
social de negação da evolução político
e social de revolta contra a
Constituição.

É, portanto, a reação daqueles


contrários ao Estado de Direito
promulgado pela Constituição de 1988.

O Bolsonarismo nada mais é do


que, lembrando a expressão icônica de
Ulysses Guimarães, um filhote da
Ditadura estabelecida no golpe de
1964.

Neste sentido, este


reacionarismo deve ser entendido como
sendo o oposto ao conservadorismo
político. Embora os bolsonaristas se
definam como conservadores, o
bolsonarismo é a própria negação do
conservadorismo. Isso porque se o

454
conservadorismo político é, na
conceituação de Edmund Burke, a teoria
política da prudência, um movimento
revolucionário que nega a própria
instituição e primazia da Constituição
é, sem mais, a negação do
conservadorismo político.

Isso fica claro quando olhamos


para a própria lide da pandemia de
COVID pelo governo Bolsonaro. Um saldo
de 700 mil mortos. Isso equivale a
dizer que um país que tem 3% da
população mundial foi responsável pela
morte de 11% daqueles acometidos pela
doença.

Este caráter negacionista está na


própria gênese do aspecto cultural do
bolsonarismo, isto é, no “Olavismo
Cultural”. Não há conservadorismo
político possível que negue a ciência,
a educação e a cultura.

Neste contexto, a Fábrica de


Cretinos do Bolsonarismo deve ser
entendida como a consequência de um
movimento de massas, isto é, a
transformação de indivíduos em
imbecis, isso porque se imbecil é
aquele indivíduo que se porta com pouca
inteligência; o caráter negacionista
do Bolsonarismo, enquanto negação do
próprio contrato social, é a negação
da própria autopreservação da espécie

455
humana; pois, na medida em que se nega
Constituição Republicana, está se
negando a própria autodeterminação
racional da vontade livre. Isso, em
suma, é dizer que é um movimento
político de imbecis porque se trata da
negação das próprias condições de
preservação e perpetuação da espécie
humana estabelecidas na forma de um
Contrato Social.

A Fábrica de Cretinos é o nome


que deve-se dar ao movimento político
que tenta abolir a democracia e os
valores morais estabelecidos pela raça
humana. É, portanto, o movimento
político de massas que nega a própria
biologia evolutiva de autopreservação
da espécie na forma estabelecida pela
celebração do Contrato Social.

Concluo, definindo a Fábrica de


Cretinos como sendo o movimento
político de tentativa de volta à
sociedade das cavernas onde impera a
lei de todos contra todos.

456
XV

Capítulo XI - A Condescendência da
Procuradoria Geral da República

Como já argumentei, mas, vale


rememorar, a procuradoria geral da
república tem como exclusividade a
possibilidade de investigar o
presidente da república, mas,
acompanhou os interesses de Jair
Messias Bolsonaro em 95% dos casos à
ela apresentados.

Esse tipo de condescendência era


esperado quando a vice procuradora –
que é responsável pela grande maioria
dos arquivamentos – é amiga próxima da
família Bolsonaro. A falta de
republicanismo na nomeação do chefe do
Ministério Público, durante o governo
Bolsonaro, foi tamanha que a vice PGR
é chamada, pelo presidente, segundo
informações de bastidores apuradas por
jornalistas como a “tia dos meninos”.

Mas, como este é um trabalho


científico, não me limitei a uma mera
apuração jornalística de bastidores,
mas, fiz uma experimentação
científica.

Criei duas denúncias idênticas,


uma contra um deputado do “baixo clero”
e outra contra o filho do presidente,
457
e senador, Flávio Bolsonaro. E tão
idênticas que copiei e colei trechos
da denúncia.

O resultado foi o esperado: a


denúncia contra o deputado teve
andamento e a denúncia contra a família
Bolsonaro sequer foi autuada no
sistema do Ministério Público. Ela
simplesmente desapareceu do sistema...

Esse tipo de permissibilidade foi


vista não só nos atos golpistas que
contaram com a participação do
presidente da república, o senhor Jair
Messias, ao longo dos seus quatro anos
de governo. Sequer seriam alvo de
investigação não fosse a altivez do
ministro do Supremo Tribunal Federal
Alexandre de Moraes.

A condescendência criminosa do
Ministério Público também foi vista
durante a pandemia. Como apurou a
Comissão Parlamentar de Inquérito,
mesmo o presidente tendo sido
mencionado num esquema de propina na
compra de vacinas, ele sequer foi
investigado. A CPI se tornou inútil,
em seus resultados práticos, porque
houve inércia do Ministério Público na
figura de Augusto Aras.

A certeza de impunidade é o maior


motor para o cometimento de crimes. E
a permissibilidade do ministério
458
público deve entrar para os livros de
história como sendo um dos principais
motores da tentativa de golpe de Estado
e do extermínio da população
brasileira durante o “reinado” de Jair
Messias Bolsonaro.

459
XVI

Capítulo XII - A Invasão dos Três


Poderes e a Minuta do Golpe

A tentativa de golpe de estado


não deve ser resumida à mera depredação
da sede dos três poderes. Mas, a
própria invasão foi o que possibilitou
que a tentativa de golpe gestada ao
longo de quatro anos de governo –
lembre-se que o presidente, Jair
Bolsonaro, passou a pedir o fechamento
do Congresso e do Supremo Tribunal
Federal logo no quarto mês de seu
mandato.

Há materialidade de que a
tentativa de golpe era real. Foi
descoberto, fica aqui registrado, uma
minuta de golpe na casa do Ministro da
Justiça – que foi cotado para uma vaga
no Supremo Tribunal Federal – que
consistia numa “intervenção federal no
Tribunal Superior Eleitoral” e
terminaria com a tripartição dos
poderes no Brasil.

A minuta do golpe previa a


nomeação de agentes do governo federal
para, numa comissão indicada pelo
próprio Jair Bolsonaro, reverter o
resultado das urnas que não deram à
Bolsonaro a reeleição.

460
Esta tentativa de golpe tem
materialidade fática. O leitor deve se
lembrar que enumeramos os atos
institucionais da Ditadura Militar
instaurada em 1964. Essa minuta do
golpe tem o mesmo espírito de um ato
institucional: o poder executivo
acabaria com a autonomia do
judiciário, legislaria em favor de uma
autocracia de Jair Messias Bolsonaro e
executaria a lei. Seria, sem mais, a
instauração de um Estado de Exceção no
Brasil.

É uma tentativa tão estapafúrdia


que – conforme gravações de áudio
obtidas pela polícia federal do
ajudante de ordens da presidência da
república, o senhor coronel Mauro Cid
– planejaram, até mesmo, o sequestro e
prisão do ministro do Supremo Tribunal
Federal, e presidente, à época das
eleições de 2022, Alexandre de Moraes.

Toda a nossa conceituação teórica


nos leva a concluir, de forma
inequívoca, o fim da tripartição dos
poderes em favor de um golpe contra o
resultado nas urnas seria a própria
instauração de uma ditadura no Brasil.

461
Seção V – Considerações Finais

XVII

Filosofia, jornalismo e ativismo

Decidi finalizar este livro


escrevendo uma crônica em que dou conta
dos meus anos como ativista político,
ao passo que tento responder a questão:
“para que serve a filosofia?”

Explorando os mais diversos tipos


de narrativa, decidi finalizar este
livro com uma crônica. Na forma de
carta ao meu orientador de graduação,
João Geraldo Martins da Cunha,
principal figura na minha formação
intelectual.

Eis a crônica:

Oi João,

Escrevo, abaixo, uma crônica para


responder às famigeradas perguntas
"Para que serve à Filosofia?". E
“Filosofia ou História da Filosofia?”
Todos os fatos narrados são reais.

Também é uma crônica que conta porque,


e como, eu virei um ativista pelos
Direitos Humanos

462
Eu ter perdido o seu e-mail e o seu
whatsapp parece que será fortuito para
que eu possa fazer essa nota de
"desrepúdio" (no melhor sentido que
possa se dar aos neologismos do Hampty
Dumpty de Alice no País das Maravilhas)
seja pública se se torne um exercício
de humildade seja um exercício quase
que Confessional, já que a Confissão
nada mais é, segundo Agostinho, do
exercício de reconhecimento de
respeito por alguém de forma pública e
notória.

Lembro de uma conversa que tivemos,


logo quando entrei na Universidade,
sobre o porquê eu ter escolhido a UFLA
para estudar - se tinha sido aprovado
em Universidades tradicionais como USP
e Unicamp - e a minha resposta foi que
por ser um curso em formação e sem
programas de pós, só restaria aos
professores se empenharem na minha
formação com excelência que não
encontraria nas universidades
tradicionais.

Escrevo essa nota de "desrepúdio" que


nada mais é do que uma nota de
reconhecimento, agradecimento e
admiração pelo seu trabalho e o papel
que você desempenhou na minha formação
pessoal e intelectual. Veja, a minha
maior ambição, desejo e o grande sonho
da minha vida era o de ser escritor.
463
Ingressei no curso de filosofia, tendo
como objetivo principal o de me tornar
escritor e não o de seguir carreira
acadêmica. Neste sentido, digo com
absoluta certeza, que só consegui
realizar o que estabeleci como
principal meta da minha vida devido ao
papel que você exerceu na minha
formação intelectual como professor e
orientador. Explico porquê.

Eu ter escrito um livro sobre economia


só me foi possível porque, com todo o
seu trabalho cuidadoso de orientação,
você me proporcionou a oportunidade de
aprender como se deve fazer uma
pesquisa acadêmica de viés filosófico
e científico. Ter sido orientado por
você por quase uma década foi
fundamental para que eu tivesse
adquirido as condições de
possibilidade de começar uma pesquisa
do zero e desenvolver um trabalho de
pesquisa científica - em uma área
totalmente da minha área de formação -
que tenha sido reconhecida como
trabalho de excelência pela mais
tradicional editora de trabalhos
acadêmicos e científicos de Portugal
(qualidade de excelência reconhecida
na medida em que me ofereceram até
mesmo divulgar o livro num spot de TV
em Portugal).

464
Mas, o seu papel na minha formação
pessoal e intelectual não se limita ao
mero ensino das burocracias e
metodologias de uma pesquisa
filosófica e científica. Veja, se o meu
exílio da vida acadêmica ocorreu como
consequência de brigas com a alta
cúpula da Universidade por denunciar
roubo de verba pública; tomei isso como
uma oportunidade para um desafio
prático e de exercer a filosofia
segundo qual o motivo pelo qual ela foi
criada: a reflexão sobre a vida pública
na Polis.

Se apesar do meu exílio forçado da vida


acadêmica ter me jogado numa espiral
de desgraças pessoais, foi este mesmo
exílio que me possibilitou viver a
filosofia prática, pois, se
conhecimento e prática política se
confundem (sofista) e se as meras
abstrações metafísicas que a
burocracia universitária legou aos
filósofos brasileiros é algo inócuo e
inútil (Crítica da Razão Pura), a
teoria aprendida através dos conceitos
de filosofia só tem validade na medida
em que é extraída e se aplica à vida
prática (Fundamentações da Metafísica
dos Costumes) este infortúnio em que a
roda da fortuna me propiciou, também,
foi causa da minha maior realização
pessoal e intelectual.

465
Decidi que exerceria o papel reservado
aos filósofos e intelectuais
(lembrando do Texto do Ficthe sobre o
papel do intelectual que traduzimos
juntos): o de exercício da guarda da
vida numa sociedade republicana e
democrática como sendo condição
fundamental para a existência da
liberdade civil (Paz Perpétua)
enquanto única possibilidade de
exercício da moralidade reservada à
raça humana fruto da razão prática
(Crítica da Razão Prática).

Este é o contexto do porque eu resolvi


me meter no ativismo político, vale
notar que o meu exílio forçado da
Universidade ocorre na mesma época que
a ascensão da extrema direita no
Brasil, na figura do Bolsonaro e do
Bolsonarismo no Brasil. Me vi obrigado
a exercer um ativismo político e
jurídico como sendo um dever moral com
a sociedade brasileira (que financiou
todos os meus estudos numa
universidade federal de excelência) de
agir na real politique, na política de
bastidores, na política prática.

Logo nos primeiros meses do governo


Bolsonaro, tive a confirmação da
certeza de que o empenho no ativismo
político era necessário, afinal, foi
quando começaram os movimentos de rua
liderados pela cadela fascista do
466
Bolsonaro pedindo intervenção militar
a partir de uma leitura porca do artigo
142 da Constituição de 1988. E você me
ensinou, João, refletindo sobre A Paz
Perpétua que a única forma de governo
que garante a existência dos Direitos
Humanos é o da República Democrática.
E creio, com a mais profunda convicção
que o maior avanço que a humanidade já
teve foi legada pela revolução
Francesa, como auge do iluminismo e da
modernidade, a instauração de direitos
humanos universais à todos cidadãos.

À essa altura, eu já tinha ingressado


no ativismo político e vi, de perto e
em primeira mão, a tentativa de acabar
com o Estado de Direito brasileiro em
primeira mão a partir de barbaridades
como a tentativa de cooptação de
movimentos sociais, jornalistas e
influenciadores digitais para a
reinstalação de um Estado Despótico no
Brasil até movimentos de disparo em
massa de mensagens pedindo que o Brasil
intervisse militarmente na Venezuela.
Vi, em seus primeiros estágios de vida,
a ascensão do movimento que tentaria
acabar com a Democracia e com o Estado
de Direito tendo como auge não só o
vandalismo contra a sede dos três
poderes, mas, também, a quase execução
da minuta do golpe, achada na casa do
ministro da justiça, que previa além

467
da subversão do resultado das urnas,
mas, também, o sequestro e a prisão de
Ministros do Supremo Tribunal Federal
e o fechamento do parlamento.

Se com Kant aprendi que a maior


dificuldade é o estabelecimento de uma
república (Ideia de uma História
universal do ponto de vista
cosmopolita), Hegel também me ensinou
que a única coisa que se aprende com a
história é que não se aprende com a
história (Filosofia da História) e com
Tucídides que a história tende a se
repetir uma vez postas as mesmas
condições (Guerra do Peloponeso), o
movimento de massas da extrema direita
liderado pelo Bolsonaro de forma
inevitável traria à tona as
contradições e violência presentes na
sociedade brasileira (Freud) através
da manipulação dos medos como maior
ferramenta de controle social do
governante (Maquiavel) acabaria por
ter o mesmo desfecho que este tipo de
ascensão da extrema direita teve no
Brasil no passado: a ditadura de
Getúlio e a Ditadura militar de 1964.

Neste contexto de interpretação dos


fatos contemporâneos do Brasil, me
empenhei não só em militar
politicamente, mas, de desempenhar um
papel - por menor que fosse - no
combate à ascensão da extrema direita
468
- que se comprovou fascista - na
Brasil. E fiz isso a partir da formação
acadêmica que você me deu. Estudando
de forma sistemática e aprofundada o
direito Brasileiro. Percebi que,
apesar de não ter formação acadêmica
em direito, o conhecimento do direito
me seria fundamental no ativismo
político nos bastidores da real
politique brasileira. Inspirado na
Luta de uma figura importante, mas
esquecida da História Brasileira,
percebi que meu ativismo político
dependia não de um diploma, mas, do
estudo teórico do direito e na minha
formação como rábula seria necessário
para que eu tivesse algum sucesso no
papel que eu mesmo me propus de ser um
intelectual público (não confundir com
intelectual aclamado pelas massas).

O meio de ação política que elegi como


forma de atuação política foi o de
investigar indícios de corrupção no
governo Bolsonaro. Mas, não para fazer
um alarde na imprensa porque isso só
teria como efeito o fortalecimento
anti política e de subversão às
instituições democráticas fundamentas
à uma república. Sempre tendo em mente
uma máxima otimista, a de que a
ascensão da extrema direita brasileira
seria uma rápida e profunda descida à
Barbárie, mas, sem a capilaridade de

469
movimentos da sociedade civil
organizada e sem a formação de
intelectuais orgânicos; seria
impossível a sua perpetuação no poder
(Gramsci). Mas, não por isso um
movimento político menos perigoso, e
vimos o perigo da negação dos valores
estabelecidos como fundamentais da
república pela Constituição de 1988 na
forma de um Contrato Social expressão
de valores fundamentais de uma
sociedade (Cícero e Rousseau) levou ao
extermínio de 700 mil brasileiros face
a negação do progresso científico como
valor fundamental das sociedades
contemporâneas herdado pelo próprio
iluminismo durante a modernidade.

Foram anos árduos de ativismo político


e jurídico que encontrei pouquíssimos
efeitos práticos. Afina, basta lembrar
que a procuradoria geral da república
é comandada, nas ações penais de
investigação de crimes do colarinho
Branco por Lindora Araújo, conhecida e
chamada pelo Clã Bolsonaro como sendo
a "Tia dos Meninos" (filhos do
Bolsonaro); e que é só lembrar da
reunião ministerial do governo
Bolsonaro que Jair não mediria
esforços em interferir na Polícia
Federal para que não "fodessem com ele,
com a família dele e com os amigos
dele" (nas palavras do próprio

470
Bolsonaro). Inevitável portanto que eu
sofresse represálias de um governo
despótico em ascensão. Tive que
responder a um inquérito na polícia
federal e fui denunciado e a
procuradoria geral da república pediu
a minha prisão pautada na, agora,
extinta Lei de Segurança Nacional
promulgada na ditadura militar que
previa pena para quem caluniasse o
presidente da república.

Jamais hesitei em continuar na minha


luta em defesa da democracia e da
república. Munido, sempre, e
incentivado pela convicção (Crítica à
Faculdade do Juízo) que só é gerada por
uma ação pautada na máxima do
imperativo categórico (fundamentação
da metafisica dos costumes). Sempre
certo de que estava correto ao jamais
retroceder um passo, mesmo diante da
represália oferecida por um Estado
Despótico, pois, não há consciência
mais tranquila do que aquela que age
de acordo com um dever moral
estabelecido pelo exercício de uma
vontade livre determinado pelo
exercício da racional de uma vontade
autônoma; devido à uma inabalável
convicção de que se tratava de uma luta
pelo valor que há de mais fundamental
ao ser humano que é a luta pela
liberdade. Quer seja essa liberdade

471
uma recusa da sujeição à uma servidão
voluntária (LaBoetie) de submissão de
uma consciência servil à um senhor
tirano (fenomenologia do Espírito);
quer seja por uma obediência dor corpos
aos valores torpes de um movimento
político, representado pelo
Bolsonarismo, que dá cabo à obediência
cega dos corpos (como chamou Hannah
Arendt em Eichman em Jerusalém àquela
obediência aos escalabros determinados
por um regime totalitário.

Em 2022, durante as eleições, o


espírito do tempo começou a mudar.
Mudança esta que se refletiu numa
frente ampla supra partidária contra a
ascensão da extrema direita liderada
por Bolsonaro numa escalada rumo à
implementação de um Estado Despótico
no Brasil. Como cantou Chico Buarque:
"amanhã há de ser outro dia" e eu
completo "apesar do candidato à
tiranete de plantão.. E outro dia
raiou. As instituições democráticas
começaram a, enfim, reagir à tentativa
de solapar a democracia. O espírito do
tempo mostrou aos principais atores da
vida pública brasileira que a
democracia, que a sociedade aberta
deve reagir aos seus inimigos que
tentam se utilizar de valores e
liberdades democráticas para tentar
por fim à própria democracia (Karl

472
Popper). Meu ativismo político e
jurídico começou a dar resultado. Nas
eleições de 2022, fui o único
brasileiro, num universo de 2020
milhões que arguiu a inelegibilidade
de Bolsonaro diante do Tribunal
Superior Eleitoral. A ação não
prosperou durante às eleições. Mas,
gerou um efeito pragmático. O Ministro
Alexandre de Moraes, presidente do
TSE, ao passo que reconheceu a
pertinência da Ação - e me logrou
elogios pelo rigor jurídico empregado
nela - determinou a investigação de
Bolsonaro por tentativa de fraudar as
eleições de 2022. Já em 2023, o
ministro decano do Supremo Tribunal
Federal, Gilmar Mendes, reconhecer, em
entrevista ao roda viva que a
inelegibilidade só não foi declarada
porque o Superior Tribunal Eleitoral
estava refém de uma insurreição
popular gestada no cerco aos quarteis
por golpistas que pediam a intervenção
militar.

Antes de concluir, abro um parêntesis


para fazer um esclarecimento
necessário e reconhecer crédito onde o
crédito é devido. Até aqui, no texto,
parece que eu me embiú da missão de ser
um herói salvador da pátria numa luta
do bem contra o mal. Mas, lembro de
Raul Seixas: "eu não sou besta pra

473
tirar onda de herói, sou vacinado
(risos)". Esta história tem muitos
outros personagens. Os jornalistas
profissionais, especialmente, da Rádio
BandNewsFM = menciono à Jornalista
Carla Bigatto e ao Jornalista Reinaldo
Azevedo; em nome de quem estendo esta
nota de "desrepúdio" a todos os
jornalistas profissionais da Rádio
BandNewsFM. Veja, João, não existe -
ou ao menos eu não conheço - alguém que
tenha se empenhado a participar dos
bastidores da Real Politique igual eu
me propus. Meu objetivo jamais foi o
de plantar notas diárias na imprensa.
Mas, o de ser um ator influente na
política onde o jogo é jogado, naquelas
conversas de pé de ouvido entre os
detentores do real poder político.

Um dos valores fundamentais de


qualquer democracia: a liberdade de
imprensa. E entendendo a liberdade tal
qual Kant, a característica
fundamental da liberdade de imprensa é
a própria autonomia entre fontes e
jornalistas. E por isso fiz, logo no
início da minha relação de fonte com
jornalistas, que evitassem à todo
custo me mandar ou responder
mensagens. Se a liberdade é a
autodeterminação da razão, penso que
enquanto fonte e ativista jurídico e
político; meu papel era o de manter os

474
jornalistas informados e não dar a
minha interpretação dos descalabros do
ascensão de um governo totalitário no
Brasil. Uma troca de interpretações e
conclusões seria inevitável se a nossa
relação se desse através de um amplo
diálogo. Restrição esta que vocês, de
forma digna de nota sempre
respeitaram.

Por isso, em todas as minhas quase


setecentas denúncias de corrupção ao
longo do governo Bolsonaro, meu
objetivo principal sempre foi: "Como
posso manter a Carla e o Reinaldo bem
informados sobre a real situação do
Brasil de Bolsonaro?". E explico
porque fiz isso. Penso que jornalistas
são tão bons quanto as informações que
suas fontes lhes fornecem. Não existe
exercício do jornalismo possível sem
essa relação entre fonte e jornalista.

Como ativista político com atuação


jurídica pude cruzar algumas linhas
que os jornalistas que mantém a sua
independência jamais devem cruzar. E
não falo de ilegalidades, mas o de se
envolver com o deslinde do fato
reportado. Se nossa relação não
tivesse se dado desta forma, eu os
estaria induzindo ao mal trabalho
jornalístico.

475
E tenho certeza que esta independência
se deu à duras penas, pois, Carla
Bigatto e Reinaldo Azevedo - e toda a
redação da Radio BandNewsFM jamais
cederam à tentação de fazer matérias
sensacionalistas com incontáveis furos
de reportagem. Jamais cederam à
tentação de pautar todo o debate
nacional por notas sobre indícios de
corrupção de um governante repudiado
no mundo inteiro. Ato de esforço
hercúleo numa época de crise
financeira nas redações em que tudo o
que se busca é a caça por cliques e
manchetes sensacionalistas. Se
tivessem cedido a esta tentação, tudo
o que teríamos alcançado seria a
espetacularização e sensacionalização
e, portanto, a banalização do combate
à de corrupção. E eu estaria, nesse
caso, sendo um mau filósofo e deixaria
de agir por um dever moral de defesa
da democracia contra a barbárie da
ditadura que quase se instaurou no
Brasil. Tudo o que eu teria conseguido
seria o oposto do meu objetivo de
preservar as instituições democráticas
brasileiras. Prova disso é a própria
espetacularização do combate à
corrupção legado pela operação lava-
jato que em seu auge plantava notas em
todos os jornais do país todos os dias
ser um dos fatos políticos que lançaram

476
o Brasil à uma escalada da extrema
direita.

A manutenção da minha autonomia e a dos


jornalistas é o que trouxe resultados
práticos e com o potencial de mudar os
rumos do país na luta contra a ascensão
do totalitarismo de extrema-direita
que resultou numa tentativa de um golpe
de Estado que previa desde a negação
do resultado das urnas até o sequestro
de ministros do Supremo Tribunal
Federal.

Hoje tenho certeza (e que eu não tinha


clareza outrora e já fui, para dizer o
mínimo, bem desrespeitoso com eles) de
que o meu trabalho de luta pela
manutenção das instituições
democráticas no Brasil poderia ter
tido um efeito oposto do que eu sempre
almejei. Se tivessem cedido à
espetacularização e ao
sensacionalismo, tudo o que teríamos
conseguido seria o agravamento da
demonização da política e de uma
tentativa de golpe de Estado de que
suspeito não teríamos sobrevivido.

Lembro da definição de poder que foi


proposta pelo José Arthur Gianotti.
Poder é a possibilidade de se fazer
algo. Se o trabalho político que eu me
propus exercer enquanto intelectual
público (e repito, não se deve

477
confundir público com midiático ou
famoso) é aquele que é feito de forma
meticulosa nas engrenagens dos
poderes. E não de plantar notas na
imprensa na forma de notícias
chocantes num caça cliques frenéticos
(que, vale dizer, se transformou a
maior parte do jornalismo brasileiro).
O trabalho do jornalista não é o de
meramente ler manchetes diante de um
microfone. O trabalho do jornalismo,
em sua principal e mais importante
forma, é o de conversar, no pé do
ouvido, com fontes sobre fatos que
embora sejam, em alguma medida
públicos, não precisam ser notórios,
isto é, alvo de alarde inerente à mídia
de massas.

A relação entre fonte e jornalista é


uma relação simbiótica de confiança
mútua que faça com que a boa informação
chegue àqueles que possuem o
verdadeiro poder político. Se,
portanto, meu trabalho enquanto
filósofo foi o de trazer à tona
verdades inconfortáveis sobre aqueles
detentores do poder político ao
conhecimento de figuras da república
que podem exercer o poder de servir de
contrapeso às medidas autoritária; o
trabalho do jornalismo, de fato,
profissional não poderia ser o de
alardear, de forma sensacionalista e

478
histérica fatos isolados aos quatro
ventos. Lembre-se, João, você
participou dos meus estudos sobre
conservadorismo político. E tenho até
hoje como principal valor para a
atuação política a prudência e entendo
prudência como a calma, a sensatez, a
ponderação necessárias para tratar de
assuntos complexos. E não há nada mais
complexo, na medida em que o maior
crime que pode se cometer contra uma
república é o do incentivo à secessão.
O maior crime numa democracia é de
tentativa de Golpe de Estado, pois, é
uma tentativa de abolição da própria
ordem vigente. É a tentativa de
reestabelecimento da Guerra de Todos
Contra Todos, da lei do mais forte,
pois, se lembrarmos a definição dada
por Cícero, é o próprio
desmantelamento do povo, uma vez que
"povo não é um agrupamento de homens
congregados de qualquer modo, mas, a
congregação de uma multidão associada
por um consenso jurídico e uma
utilidade comum". Numa democracia, não
se comete crimes sob o pretexto de
defender a democracia. A lava-jato,
sob o pretexto de combater à corrupção,
delinquiu e conspirou contra a
Constituição e, apesar de ter um
objetivo nobre, o seu único legado foi
a gestação de um movimento de extrema-
direita chamado Bolsonarismo. Neste
479
mesmo sentido, minha atuação política
em defesa da sobrevivência de uma
República Democrática contra uma
escalada autoritária liderada por
Bolsonaro, jamais poderia ter como
produto o sensacionalismo midiático
que ensejaria na ojeriza às
instituições democráticas - devido ao
deslinde de notícias de corrupção - sob
o pretexto de salvaguardar estas
mesmas instituições democráticas da
destruição.

E lembro, também, que foi o próprio


Kant que ponderou que a independência
dos poderes da república (e aqui eu
reconheço a imprensa como detentora do
quarto poder) é fundamental para a
manutenção e existência de uma
República Democrática;

E, neste contexto de explicação do


porquê e como me meti com a real
politique brasileira, enumero alguns
efeitos práticos que tem o potencial
de mudar os rumos da própria história
da república brasileira: 1)
investigação, pela Polícia Federal,
desde 2019, dos incitadores da
tentativa de golpe no Brasil
disfarçados de jornalistas e
influenciadores digitais; 2) dois
inquéritos - criminal e eleitoral - ,
no Superior Tribunal Eleitoral e na no
Ministério Público de Brasília, contra
480
a tentativa de subverter às eleições
por parte de Jair Bolsonaro na sua
escalada autoritária; 3) um inquérito
no Ministério Público Federal sobre a
manipulação do mercado financeiro na
vida econômica do Brasil que beira o
estelionato e com influências diretas
na política fiscal e monetária do país;
4) um inquérito, no ministério
público, com provas robustas, sobre o
aparelhamento e amarras que a própria
Polícia Federal sofreu durante o
governo Bolsonaro para que não se
investigasse os malfeitos de políticos
bolsonaristas; 5) Um pedido de
impeachment, entregue ao presidente do
Senado da República, contra o
procurador geral da república por
realizar chicanas jurídicas para
proteger Bolsonaro e seus familiares;
6) um inquérito na Polícia Federal
sobre os principais influenciadores
digitais e ativistas do golpismo
Bolsonaristas que se travestem de
jornalistas; 7) uma ação judicial no
Tribunal de Contas da União que dá
conta de centenas de bilhões de reais
de sonegação de imposto mediante a não
emissão por empresas vencedoras de
licitações.

Você deve se lembrar, João, que a minha


chave de leitura da filosofia é aquele
que ficou conhecido como Historicismo

481
de Cambridge, ou seja, a de que os
conceitos de leitura devem ser
interpretados não a partir de meras
abstrações, mas, a partir da
ponderação do contexto em que foram
pensados. Me parece que isso nada mais
é do que uma exigência da Filosofia
Crítica conforme proposta na Crítica
da Razão Pura em que os conceitos da
filosofia devem ser passíveis de serem
extraídos dos próprios fatos do mundo.
Lembro, ainda, da ressalva feita por
Kant na Fundamentação da Metafísica
dos Costumes de que mais valor tem uma
teoria, ou um conceito, quanto mais e
melhor ele puder ser identificado e
aplicado no mundo real (empírico).
Recorro a estes três conceitos para
retomar do porquê entendo que a
filosofia, enquanto Ciência do
Filósofo, só é possível de ser exercida
mediante a sua aplicação prática no
mundo. E digo isso porquê se a
filosofia é a ciência que surge para a
mediação de ponderação dos problemas
existentes na Polis, seu conceito deve
ser interpretado a partir desta
premissa, qual seja, o de se pensar os
problemas da sociedade. É claro que se
considerarmos o advento da modernidade
devemos considerar a especificação,
conforme argumentado por Gilles-Gaston
Granger, sofrida pela Ciência (A
Ciência e as Ciências), em suas mais
482
diversas áreas. Mas, aqui, recorremos
à definição mais geral possível da
filosofia, a etimológica, isto é, a de
amor à sabedoria. O conceito de amor,
representado pela figura do Deus Eros
tem um papel de mediação entre amante
a amado. É, neste sentido, uma ação de
algo sobre outro algo. O que quero
dizer é que o exercício da filosofia,
enquanto forma de conhecimento
(episteme) do filosofo pressupõe uma
ação do filosofo sobre o mundo. Na
medida em que se trata de uma Ciência
(episteme) sua finalidade é o
conhecimento da Verdade e, ainda,
sendo a verdade a identidade entre
conceito (Forma, Eidos) e realidade.
Devemos entender, portanto, a
filosofia – segundo o contexto em que
o termo foi cunhado por Platão - como
sendo uma forma de ação sobre os
problemas da Sociedade (Polis). Esta
dedução do conceito de filosofia nos
parece proveitosa na medida em que
recorremos à definição do conceito de
sabedoria. Define, o dicionário, a
sabedoria como sendo o “conjunto
prático de valores e regras que orienta
a vida cotidiana”.

Lembro da necessidade lógica


(Prolegômenos à toda Metafísica
Futura) de que um conceito seja
interpretado sob dois aspectos, isto

483
é, enquanto coisa em si e enquanto
fenômeno. O conceito de filosofia,
entendo, portanto, deve ser
compreendido tanto a partir de um
conjunto prático de valores e regras
de orientação da vida cotidiana;
quanto a partir de seu contexto, isto
é, a partir do seu lugar na História
das Ideias. Neste sentido, a filosofia
deve ser entendida como sendo uma forma
de ação no mundo segundo os valores e
regras estabelecidos pela História da
Filosofia. Os conceitos são, portanto,
subalternos, dependentes e
indissociáveis. Não é possível, deste
modo, que haja filosofia, enquanto
prática que orienta a ação na vida
cotidiana, sem que haja um recurso à
História da Filosofia, enquanto
conjunto prático de valores e regras.

Nos voltemos ao jornalismo, novamente,


que como vimos, é fundamental para um
exercício filosófico de ação na real
politique de acordo com o preceito da
prudência. Os fatos do cotidiano da
vida pública se tornam públicos
através do exercício do jornalismo. Na
medida em que o jornalista torna os
fatos do Estado conhecidos, cabe ao
filósofo concatenar esses fatos
segundo regras e valores e, a partir
daí, agir na vida pública. Lembremos
da analogia proposta por Hegel: “A

484
coruja de Minerva levanta voo ao cair
do Crepúsculo”. O jornalismo é o cair
do crepúsculo que permite ao filosofo
pensar e, portanto, agir no mundo. Por
isso entendo o jornalismo e a filosofia
como sendo simbióticos. É o trabalho
do jornalista que permite que a
História da Filosofia não se reduza a
uma mera abstração metafísica, mas,
que ela seja aplicada no mundo na forma
de exercício da filosofia em si mesma.

Não se deve, contudo, confundir a ação


do filosofo com a do político. Se ao
político é reservado a ação sobre o
estamento do Estado. O papel da ação
do filósofo é do de refletir sobre os
valores que pautam a ação dos políticos
a partir de conceitos estabelecidos
pela própria história da filosofia.

Também não se deve confundir a história


da filosofia com a filosofia em si
mesma. A história de algo não é o mesmo
que este algo. Isso porque a história
da filosofia só é possível a partir sob
a ótica da transformação, em termos
Aristotélicos, de transformação da
razão de potencia em ato. E a
filosofia, em si mesma, é a ação do
filósofo no caos da vida política
inerente à vida em sociedade (Ideia de
Uma História Universal do Ponto de
Vista Cosmopolita).

485
Essa duplicidade do conceito de
filosofia, isto é, a divisão entre
filosofia e história da filosofia,
como disse, é complementar,
subalternos e, portanto,
complementares. A prática do filósofo
deve ser justificada pelos conceitos
pensados na história da filosofia.
Isso acontece porque a filosofia em si
mesma é um conceito caro à razão
prática, enquanto a história da
filosofia é um conceito predicado da
universalização decorrente do
exercício da razão pura. É por isso que
ao descrever o meu ativismo político e
jurídico, sempre indiquei, entre
parêntesis, a fundamentação conceitual
que motivou a necessidade de tal ato
jurídico. E, numa república, o
exercício da filosofia em si mesma,
necessariamente, se dá por meio das
próprias instituições da república, ou
seja, através da provocação das
instituições mesmas da república como
forma de questionar a legitimidade dos
atos perpetrados pelos atores
políticos da sociedade.

Se, como mencionei acima, as


repúblicas democráticas devem ter
sistemas de defesa contra seus
inimigos. O papel do filosofo é o de
fornecer aos atores políticos e
magistrados, portanto, as condições de

486
possibilidade de defesa da democracia
na medida em que ela se encontrar
ameaçada por movimentos políticos que
tenham um caráter totalitário que vise
acabar com a própria democracia.

Na medida em que o esclarecimento –


iluminismo – é a coragem em utilizar o
próprio entendimento sem tutela
externa, ou seja, segundo uma vontade
livre autodeterminada pela razão. E,
como argumentei, a liberdade civil só
é possível numa república democrática.
Entendo que é dever moral do filósofo
ser um dissidente e um detrator de um
movimento político que tenta acabar
com a própria existência da República
através da incitação e à tentativa de
perpetração de um Golpe de Estado.

O que fiz nas últimas páginas foi


esclarecer o que entendo ser a resposta
à pergunta “Para que serve a Filosofia”
e numa crônica filosófica expliquei
porque virei um ativista político.
Atuação política que resultou num
livro de reflexão sobre a Ascensão e a
Insurreição do Bolsonaro. Uma
ponderação a partir da História da
Filosofia, da Filosofia da História,
da Filosofia do Direito e da
psicanálise. E foi este livro que
resultou que eu fosse aceito pela
curadoria editorial da maior rede de
livrarias do mundo.
487
Essa nota de “desrepúdio” é um
reconhecimento que você, João, foi a
pessoa mais importante na minha
formação intelectual. Foi através da
formação que você me proporcionou que
eu pude realizar as maiores
inspirações intelectuais que sempre
almejei. Mas, mais do que essa
realização, você me proporcionou uma
formação que me garantiu a autonomia
para utilizar meu entendimento de
forma autônoma e sem tutela. E o rigor
desta formação é o que me propiciou a
possibilidade se não ter medo em
utilizar meu intelecto. E, portanto,
essa nota de “desrepúdio” é um
reconhecimento de que você me
propiciou o acesso ao que é de mais
valioso para alguém que pretende ser
um indivíduo não só racional, mas,
esclarecido. A formação que você me
deu, enquanto professor e orientador,
foi não só acesso à textos de
filosofia, mas o próprio
esclarecimento. Ao contrário de Fausto
você me foi o portador das luzes da
razão do iluminismo sem que exigisse,
por isso, minha alma – embora caso
tivesse, o preço teria sido justo.

488
Conclusão

Em primeiro lugar, para começar


a considerar as decisões de Alexandre
de Moraes, temos que ver o que dizem
as leis brasileiras. E o fio condutor
de suas decisões está nas “Normas de
introdução das leis brasileiras”. Lá
se diz que um juiz não pode decidir
apenas com base em sua consciência e
interpretação da lei escrita.

Nele se lê: “Art. 4º Quando a lei


for omissa, o juiz decidirá a causa
segundo a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito”. Trata-
se de uma inovação do Judiciário
brasileiro, principalmente positivista
- ou seja, uma supremacia da lei
escrita -, que estabelece que qualquer
decisão, se a lei for obsoleta, ele é
obrigado a decidir (este também é um
princípio dessas normas) com base em
“Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se
destina e às exigências do bem comum”.
Como eu disse, esta é uma inovação do
positivismo brasileiro que tenta
incorporar princípios consuetudinários
ao próprio sistema.

489
Então, precisamos ter em mente
essas três coisas para entender as
decisões de Moraes: 1) ele é obrigado
a decidir; 2) a lei é obsoleta; 3) ele
precisa atender fins sociais de bem
comum considerando analogia, costumes
e princípios gerais.

O contexto de suas decisões são


atos de preparação terrorista
(conforme definido pela lei nacional)
de ataques ao sistema democrático
(isso também está previsto na lei
escrita). Nossa Constituição afirma
que seu principal objetivo é inaugurar
uma Sociedade Democrática sob o Estado
de Direito. Ele está, portanto, em um
dilema: é obrigado a decidir pela
defesa de uma Sociedade Democrática e
sua única opção é o Estado de Direito.
É o primeiro princípio do sistema
judiciário brasileiro, pois é o
prólogo de nossa Constituição, a
existência de um Estado Democrático.

Ele enfrenta, desde 2019,


escrutínio por ser um censor de
supostamente censurar pessoas por
vontade própria. Nada poderia estar
mais errado! Ele está decidindo a favor
do prólogo da nossa Constituição, com
base em valores consagrados pela mesma
Constituição, guiados pelos padrões de
interpretação estabelecidos pelo
sistema judiciário brasileiro.
490
Então, com base nessas duas
coisas – as normas e a Constituição –
Moraes (mas também o STF) é obrigado a
decidir em favor do bem comum – ou seja
– de uma república democrática. Nesse
sentido, se lermos Cicero Legibus e
Republica, veremos que as leis – daí
as decisões judiciais – devem ser
feitas em prol do bem comum constituído
na perpetração dos valores da
República – estes estabelecidos pelas
próprias leis.

Com isso em mente, podemos dizer


que o primeiro e o último (em tempos
lógicos e cronológicos) que no Brasil,
se a Constituição for válida (acredite
que não, o Supremo Tribunal Federal já
decidiu pela constitucionalidade da
Constituição em si), a perpetração da
democracia deve ser seu objetivo
final.

Apesar das críticas que Moraes


vem enfrentando, ele está apenas, e no
máximo, em um dilema: ou ele – como foi
escolhido pela Roda da Fortuna –
colocou uma linha, onde terroristas
(ou golpistas) “não passarão” ou ele
estará sob aquela famosa citação da
Força Aérea Real da Segunda Guerra
Mundial e da Luftwaffe, que eu adapto
aqui, “Nunca poucos (a Suprema Corte)
deveram tanto (a sobrevivência do

491
Brasil como um Estado Democrático de
Direito”).

492
XVIII

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