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FEIERMAN, Steven. African histories and the emerge da evolução do próprio oficio do
dissolution of world history lHistórias africanas e historiador.
a dissolução da história mundiall. In: BATES, R.
H.; MUDIMBE, V. Y.; O'BARR, J. (editors). Africa Um profundo paradoxo da escrita da história na
and the disciplines: the contributions of research atualidade é o de que nossa fé no conhecimento
in Africa to the SociaÌ Sciences and Humanities. histórico objetivo vem sendo soÌapada,
Chicago: University of Chicago Press, lgg3, precisamente, por causa do avanço do
p,p.l67'2L2. Tradução para o curso de História da "conhecimento" em seu sentido objetivo. A versão
Africa - Cristina Wissenbach. autoritária do conhecimento histórico vem sendo
abalada poïque historiadores, nas décadas
Houve um tempo em que os historiadores recentes, construíram áreas de conhecimento
entendiam que certas civilizações (as ocidentais) sobre as quais seus predecessores não poderiam
eram seus temas naturais, que alguns líderes nem ao menos sonhar. Por sustentar suposições
políticos (Thomas Jefferson, Napoleão, Carlos sobre o conhecimento histórico atravós de suas
Magno) eram os mais importantes, e que conclusões, os historiadores descobriram alquns
determinados períodos e temas (a Renascença, o dos limites de suas suposições.
Iluminismo, o surgimento do Estado-Nação) eram
os únicos merecedores de nossa atenção. Outros A evolução da história da África mostra
Iugares, outros povos, outros temas culturais exatamente o quão dramático vem sendo o
menos centrais no curso da civilização ocidental crescimento de nossa compreensão no interior de
não contavam. Atualmente tudo isto é uma estrutura herdada da história como
questionado. Os historiadores já não concordam conhecimento positivo. Na metade de 1950,
com os assuntos sobre os quais eles devem graduandos em história de Harvard, Princeton,
escrever. Chicago, Berkeley, Columbia e quase todas as
demais universidades brancas da América viviam
Peter Novick, em um livro sobre a evolução do em um mundo em que a história da África não
oficio de historiador nos Estados Unidos, nos existia. Nenhuma destas importantes instituições
relata o estado atual da profissão nos títulos dos oferecia cursos de pós-graduação sobre este
dois últimos capítulos: The Center Does Not Hold, assunto. Em 1958-59 a AssociaçãoAmericana de
e There Was No King in fsrael. Ele descreve "o História questionou os chefes de departamento
colapso dos estudos históricos profissionais como sobre os principais campos de estudo de seus
empreendimento minimamente coeso" (tSAA, alunos de graduação. O número totaÌ de
p.579). Theodore Hamerow escreve que "os graduandos era de 1.735, o número indicado de
historiadores deixam de acreditar que são estudantes dedicados à história africana era 1.1
capazes de por ordem no caos" (Novick, 1g88.
D. C / õr . No final da década de 1970, existiam 600
historiadores nos Estados Unidos que se
O Íim do consenso sobre os temas históricos é dedicavam à África, e este número continuou a
apenas uma parte da mudança que levou os crescer (Curtin 1980). Muitos deles escreveram
historiadores a escrever sobre a fragmentação e o suas dissertações de Ph.D. em história africana, e
caos. O debate sobre os temas históricos surge ao muitos continuaram suas pesquisas depois do
mesmo tempo em que cresce o número de doutorado. O crescimento nos números levou,
historiadores que começam a duvidar de seus desta forma, a uma enorme expansão do
próprios métodos. Muitos agora consideram conhecimento. Entre os africanistas existem
impossível sustentar as alegações de que suas aqueles que lêem os arquivos europeus sob uma
escolhas temáticas e metodológicas estavam nova perspectiva, para apreender o que os
fundamentadas em um conhecimento objetivo. documentos conservados em tais instituições
Estes historiadores se conscientizaram de que revelam sobre a sociedade africanai ou existem
seus próprios escritos, seus modos de construir as aqueles que estudam fontes escritas em árabe,
narrativas ocuÌtavam algum tipo de conhecimento tanto por africanos quanto por visitantes
histórico, mesmo quando revelavam outrosi e que mulçumanos vindos de fora do continentei e
suas escolhas de temas e métodos são produto de existem outros ainda que lêem fontes em línguas
seu próprio tempo e das circunstâncias e não um africanasi há também os coletores e analistas
resultado inevitável do progresso imparcial d.a críticos da tradição oral; Ìingüistas históricosi
ciência histórica. Esta mudança, que tem raízes estudiosos especiaÌizados na religião africana, na
no interior da filosofia contemporânea, também história da agricultura africana, na da doença, na
do gênero, na dos movimentos camponeses e uma da história humana que os historiadores
infinita gama de outros assuntos. ocidentais montaram naquele tempo não poderia
mais se sustentar. Sua destruição contribuiu para
Uma conseqüênciaóbvia da expansão da pesquisa
o sentido de fragmentação e de perda de
histórica a partir de 1960 foi revelar como eram
coerência.
Iimitados nossos entendimentos anteriores.
Muitas das novas pesquisas especializadas Podemos fiaçar o processo pelo qual a história se
focalizaram pessoas ou grupos que anteriormente enfraqueceu a partir de seu interior, pelo qual o
haviam sido excluídos da história geral da conhecimento cresceu e trouxe ele próprio
humanidade. A história da Africa não está dúvidas, por meio do exame de livros sobre a
sozínha neste sentido. Ao seu lado estão as novas história universal, todos eÌes publicados durante
áreas de conhecimento sobre a história dos os anos de desenvolvimento da história africana.
camponeses medievais, dos bárbaros na Europa Alguns deles cobrem todas as eras da história,
antiga, dos escravos nas plantações americanas, e outros cobrem apenas um breve peúodo, mas
das mulheres como a maioria anteriormente todos tentaram integrar a história de todas as
silenciada (siÌêncio, ao menos, nos reÌatos partes do mundo em uma única narrativa.
históricos) em todos os tempos e lugares.
No começo dos anos de 1960, ainda era possível
Os ganhos substanciais no nosso conhecimento descrever a história humana em termos de uma
têm conduzido muito mais a um senso de dúvida história com uma única narrativa linear, dos
do que a um senso de triunfo. Os historiadores primórdios até os tempos modernos. Agora que
compreendem agora os critérios dúbios segundo esta possibilidade se foi, é dificil para nós
os quais mulheres e africanos, camponeses e relembrar o quão profundamente nossa visão de
escravos foram excluídos da história das gerações história mudou, a não ser que voltemos a
precedentes. Portanto, eÌes não podem ajudar, examinar importantes trabalhos daquela época.
mas podem questionar sobre quais populações e Por exemplo, o livro de Wiliian McNeill, The Eise
quais domínios da experiência humana eles oí the West, publícado em 1963 quando a história
próprios estão excluindo hoje. africana tinha acabado de emergir, apresentando
uma narrativa unicêntrica e unidirecional. de um
As histórias excluídas anteriormente não tipo inaceitável hoje.
apresentam somente novas informações para
serem integradas às narrativas mais amplasi eÌas The Rise of the West dívíde o mundo antigo entre
Ievantam questões sobre a validade da própria "civilizações" e a terra dos "bárbaros". O livro
narrativa. Historiadores universitários inserem a focalizou a difusão das técnicas de civilização,
história africana na história do século X\TII, ou originalmente da Mesopotâmia, e então dentro da
na do XIX, sendo que muitas histórias escritas ou área que McNeilI denominou de ecumene, como
recitadas na Africa não medem o tempo histórico oposta à terra dos bárbaros. Oikounené (um dos
em séculos. Historiadores acadêmicos se termos de Arnold Toynbee) também foi utiÌizado
apropriam de partes do passado africano pelo grande antropólogo A. L. Kroeber para
transferindo-as para o interior de uma grande designar "a série de culturas mais desenvolvidas
estrutura do conhecimento histórico que tem dos homens", e desta forma "as ciúIizações inter-
raízes européias - a história do intercâmbio de relacionadas milenarmente conectadas às
mercadorias, por exemplo. Eles raramente principais massas de terras do Oriente" (lg5Z,
pensam em utilizar partes da história européia p.379). Esta era uma zona de intercomunicação
para ampliar as narrativas africanas, sobre a no interior da qual as técnicas básicas de
sucessão dos santuários akans ou a origem e civilização foram criadas, e a partir da qual se
segmentaçãodas linhagens dos tivs. propagaram. As zonas fronteiriças mudaram com
o tempo, mas este centro primitivo estava no
Mesmo antes que estas dificeis questões
antigo Oriente Próximo.
começassem a incomodar os historiadores, o
crescimento do saber sobre as sociedades não- A origem da civiÌização, na narrativa de McNeilI,
européias começou a solapar as antigas histórias, deixou de fora a introdução da agricultura. Sobre
questionando as narrativas da história acadêmica este assunto ele tomou posições contraditórias,
que, até os anos de 19G0, pareciam ser apesar de tentar manter uma única narrativa
irrepreensíveis. O novo conhecimento mostrou Iinear. Ainda que a introdução explique que a
que o que se pensava ser uma história universal agricultura foi introduzida mais que uma vez, a
era, de fato, muito parciaÌ e seletiva. A narrativa narrativa do livro focalíza o papel central da
Mesopotâmia, fazendo uma exceção apenas à inundadas pelo rio. Neste caso, os africanos
introdução da agricultura na China (tg6g, p.ft). ocidentais construíram suas próprias cidades que
Sobre as Américas, McNeitl escreveu, "sementes e se desenvolveram antes do Islã se tornar
mudas devem ter sido trazidas na travessia do importante (Mclntosh e Mclntosh 19SS).
oceano pela agência humana em tempos muito
remotos" (1963, p.240). Então, um pouco depois, Na África central e meridional, também, se
ele explica que "contatos eram tão Ìimitados e desenvolveram reinos fora das bases locais.
esporádicos para permitir aos ameríndios Zimbábue é somente uma entre muitas routras
tomarem emprestadas técnicas de outras culturas ruínas de pedra construídas em estilos similares.
mais avançadas do Velho Mundo. Como Estas foram assentadas para transformar a
resultado, as civilizações andinas e mexicanas se criação e a transumância de gado possíveis, da
desenvolveram tardiamente, nunca conseguiram mesma forma que o comércio de longa distância.
controlar seus meio-ambientes sendo incapazes Como na Africa ocidentaÌ, as evidências apontam
de competir com os níveis de domínio alcançados para o crescimento dos centros localmente
por seus contemporâneos na Eurásia".2 EIe não consolidados que participaram do comércio de
viu possibilidade da domesticaÇão ter se iniciado Ionga distância. A história não pode continuar a
de forma independ.ente na África e escreveu que a ser escrita como uma única naruativa da difusão
agricultura veio ao oriente e ao sul da Africa das artes das civilizações de um ecumenq um
apenas nos úÌtimos cinco séculos. Até então, centro histórico, para a Africa e outras partes do
"caçadores primitivos perambulavam, assim como mundo.a
fazíam seus antepassados há incaÌculáveis
milênios" (McNeill 1963, p.481). As novas tendências desafiam os hístoriadores a
encontrar novos caminhos para definir as
Esta afirmação é ela própria incorreta por fronteiras espaciais de importantes processos na
milênios. Sabemos agora aquilo que os estudiosos história mundial. Nestes desafios, e em muitos
daquela geração não sabiam: que a domesticação outros, o surgimento da Escola dos Annales na
de animais veio, muito antes, da Áfri.u França interagiu de maneira criativa com o
(possivelmente antes que do Sud.este da Ásia), e desenvolvimento da história africana. Os
que existiam centros autônomos de cultivo na criadores dos Annales tinham uma visão histórica
Africa ao sul do Saara.s arejadai eles desafiavam a ortodoxia do estilo
histórico (associado ao legado de Leopold Von
Historiadores da geração de McNeiIl sabiam que Ranke) focado no estudo crítico dos documentos,
os grandes impórios tinham se desenvolvido na especiaÌmente, aqueles que relatavam
Africa subsaariana na primeira metade do minuciosamente os eventos políticos. Os
presente miÌênio - Ghana, Mali, Songhay e primeiros estudiosos associados à Escola dos
outros grandes reinos na Africa orientaÌ, e muitos Annales reagiram contra as limitações da
outros grandes reinos na Africa ocidental, central definição política dos temas da história. Marc
e meridional, dos quais Zimbábue ficou famoso Bloch, em seus primeiros trabalhos, escreveu
devido suas magníficas ruínas de pedra. McNeill sobre um entendimento coletivo do mundo que
viu em tudo isso empréstimos. As mais avançadas nos parece próximo a uma abordagem
sociedades africanas, ele escreveu, "nunca foram antropológica (Bloch 1924, I92Ò. Bloch, Lucien
independentes das principais civilizações da Febvre e outros estavam preocupados com a
Eurásia" (fg6e, p.252). O Islã, no seu ponto de história da sociedade de maneira geral, e não
vista, teve um papel central ao trazet a apenas com um limitado grupo social sobre o quaÌ
civilização da Eurásia para África. Mesmo a os principais documentos políticos se referiam.s
migração para o sul dos agricuÌtores falantes de
bantu "pode ter sido reforçada pela migração das Fernand BraudeÌ, o principal líder da segunda
tribos que fugiam das pressões mulçumanas no geração dos Annale,g estendeu as fronteiras do
nordeste" (tge3, p.560). espaço histórico d.e um modo que tornou mais
fácil entender a Africa no contexto da história
Pesquisas arqueológicas recentes têm mostrad.o mundial. Muitos dos antigos historiadores se
gue o urbanismo baseado no comércio chegou à limitavam à história nacionaÌ, da França, da
Africa ocidental antes do começo do IsIã. Em Itália ou da Espanha. Outros foram das fronteiras
cerca de 500 D.C. Jenne, no rio Níger, surgiu nacionais para as continentais. Braudel em sua
como uma cidade construída pelo comércio locaÌ obra-prima viu o Mediterrâneo, com suas
de excedentes agrícolas tirados d.as terra paÌmeiras e oliveiras, como uma significativa
unidade histórica, mesmo que composta por que, neste sentido, pode ser vista como
partes da Europa, da Africa e da Ásia. Uma braudeliana em sua inspiração.6 Historiadores
unidade que se ligava por suas rotas marítimas, africanos diziam que mesmo se as fontes
mas que se estendia a qualquer parte onde convencionais existentes se silenciam sobre a
houvesse comunicação humana: "Nós precisamos África, isto não pode ser tomad.o como evidência
imaginar milhares de fronteiras, não apenas de que nada tinha acontecido na África. Se os
uma", ele escreveu, "algumas políticas, aÌgumas contornos da história mundial foram
econômicase outras culturais" (tgZA, p.170). determinados pelos silôncios de nossas fontes, e
não pela forma dos objetos históricos, então
Uma abordagem {lexível sobre as fronteiras precisamos encontrar novas fontes.
espaciais nos fornece ferramentas para destruir
as limitadas definições de centro e periferia na No entanto, mesmo Braudel não pôde romper com
história mundial. Nós não precisamos ver os uma história unidirecional do mundo com a
mulçumanos da África ocidental a partir de uma Europa no centro. Civilisation matérieLle,
moÌdura que os coloca unicamente como économie et capitaÌisme, o terceiro volume de sua
responsáveis por conduzir a cultura do centro da história mundial (século XV-XUID em três
civilização para a periferia. Podemos vê-los como volumes, ó conduzido pela tensão entre a
africanos ocidentais, na economia, na língua e em disciplinada tentativa de Braudel de encontrar a
muitos outros elementos da prática discursiva, e correta estrutura espacial para cada fenômeno
ainda, ao mesmo tempo, reconhecê-Ìos como (para explicar o crescimento da população no
mulçumanos. Não precisamos ler a partir de um século XVIII, numa perspectiva mundial, por
único mapa histórico que inevitavelmente separa exemplo), e sua definição da moderna história
os africanos dos habitantes do Oriente Médio. mundial como a ascensão de uma Europa
Podemosler os mapas em paralelo: alguns para a dominante.
língua, alguns para a economia, alguns para a
religião. Similarmente, quando definimos as Civilisation MatérieLle, como uma história
fronteiras das práticas de cura da África, não mundial, fala sobre o lugar da Africa em um
precisamos estancar nossa anáÌise nos limites contexto comparativo. O primeiro volume se
continentais; nossa história pode se estender para refere à história da vida material cotidiana:
as Américas. Ao adotarmos uma compreensão comida, roupa, plantações, habitação, mobíIia e
especificamente flexível e situacional do espaço daí por diante. A dificuÌdade de Braudel em
histórico, o complexo das pÌantations, quase entender a África subsaariana não prejudica sua
sempre associado às Américas como um anáIise mais ampla, exceto quanto isto determina
fenômeno do Caribe, Brasil e sul dos Estados suas reflexões mais gerais sobre toda a
Unidos pode ser entendido em seus experiência humana.T O mesmo ó válido para o
prolongamentos, na costa leste africana e no segundo volume, sobre as técnicas por meio das
norte da Nigéria (ver Cooper 19ZT; Sheriff IggT quais as pessoastrocaram bens em várias partes
Lovejoy 1979). do mundo. No terceiro volume, contudo, a questão
sobre o lugar da Áftica na história (e da América
Braudel, assim como os demais historiadores d.os Latina) fica mais próxima do foco de análise. Este
Annales, insistiu em perguntar o quão volume, escrito a partir do pensamento de
representativo nosso conhecimento histórico é em Immanuel Wallerstein, questiona o processo que
reÌação à totaÌidade do universo que poderia ser fez emergir uma economia capitalista mundial
descrito, se apenas soubéssemos toda a história. dominante, cujo centro é o ocidente. Em 1750, eÌe
Ele viu a economia, como estudada pelos diz, os últimos países a se industrializarem foram
economistas, por exemplo, como apenas uma responsáveis por 22,5 por cento da produção
pequena parte de uma mais ampla e obscura bruta mundial. Em 1976, os mesmos países foram
esfera da atiúdade econômica. EIe observou que responsáveis por 75 por cento daquela produção.
"a economia de mercado continua a controlar a
Quais foram as origens deste movimento de uma
maior parte das transações que aparece nas relativa paridade econômica das partes do mundo
estatísticaÊ', como um modo de argumentar que para o domínio do centro capitalista? (fOa+, p.
os historiadores devem se preocupar também com 534;1982, p. 134).
o que as estatísticas não mostram (fOAt, p.Za
grifo no original). IJma preocupação com o caráter Wallerstein, de quem Braudel adota a estrutura
representativo do conhecimento histórico esteve analítica (daqueÌe período), começou a expÌorar a
no centro do crescimento da histórica da África; história econômica mundial para responder
questões que surgiram de seu trabaÌho como um e sua substância.E esta era a parte extra que
especialista em sociologia da África. A dócada de habilitava os europeus a alcançar a elevada
70 foi um tempo em que muitas nações africanas, condição de super-humanos,incumbidos da
nascidas no otimismo dos anos de 1960, foram tarefa de lutar pelo cursodo progresso.
forçadas a lidar com a intratáve1 natureza de sua
pobreza. Wallerstein refletiu sobre suas causas e Esta é uma afirmação quase estranha,
origens. EIe tomou emprestados estudos sobre a englobando uma significativa parte do mundo
dependência na América Latina e formulou uma simplesmente nas bases de uma mesma categoria
estrutura interpretativa daquilo que não ó Europa, e propondo ignorar a
descrevendo todo o
mundo, no período mais recente, como um não-Europa em seus próprios termos.
sistema capitalista, independente das formas
Braudel descreve o desenvolvimento africano, em
locais de organização do trabalho ou da particular, nos termos da essência racial. Na sua
propriedade. As desigualdades mals visão toda a civilização originou-se do norte e se
significativas, argumenta Wallerstein, pod.em ser
irradiou para o sul. EIe escreve, "eu gostaria
compreendidas em termos de uma metáfora
agora de me concentrar no coração da África
espacial. Os países mais poderosos do centro
Negra, deixando de lado os países do Magrebe -
capitalista fortaleceram-se a partir de suas
a'Africa Branca' contida dentro da órbita do Islã"
relações com os países mais pobres da periferiai a (tg8a, p.a30). Usualmente, a compreensão de
semi-periferia atua com um papel mediador que é
Braudel do espaço histórico é engenhosa e sutil,
importante para a estabilidade do sistema total
(Wallerstein I974a, Wallerstein, Ig74b, o próximo nela cada estrutura espaciaÌ é cuidadosamente
diferenciada. Aqui, entretanto, ele funde várias
livro de Cooper et.aÌ. explora o modo no qual
estruturas de um modo inflexível e inexato.
escrever sobre a Africa e a América Latina Ìevou
Primeiro, ele mistura raça ("Branca" ou "Preta")
à fragmentação da história mundial de com reÌigião (Islâmico ou não-Islâmico), aind.a que
Wallerstein. Ver também Stern 1988, Dupiessis
muitos mulçumanos fossem povos que ele, em
1987 e Jewsiewicki 1987).
outro caso, teria descrito como "pretos".
Braudel adotou esta moldura no que se refere ao
Segundo, ele caracteríza a "Afuíca Negra" como
carâter sistêmico da desigualdade entre os povos,
passiva e inerte. Ele escreve que os navios
aos quais ele chama de "os que têm e os que não
europeus na Costa Ocidental não encontraram
tem" (1979, p.16). EIe estava interessado em
"resistência ou vigilância" e que o mesmo tinha
entender como o domínio do centro capitalista
acontecido nas margens do deserto: "As comitivas
cresceu fora do desenvolvimento interno da
de camelos islâmicas eram tão livres païa
Europa, e fora das relações entre as economias-
escolher seus pontos de entrada quanto eram os
mundo locais. Estas úItimas eram unidad.es
navios europeus" (tsa+, p. 484). Isto ê
espaciais que adquiriram certa integração demonstravelmente incorreto. Um grande
orgânica por causa da densidade das relações de
conjunto de estudos históricos explora as
troca no seu interior. O Mediterrâneo no século
complexas inter-reÌações entre os reis ou
X\lI era uma economia-mundo neste sentido.
comerciantes da Africa ocidental e aqueles que
Braudel tentou fazer uma sória avaliação dos atravessavam o deserto vindos do noïte. A
níveis do quanto a riqueza vinda de fora da expansão do IsÌã e o comórcio trans-saariano
Europa contribuiu para o advento do capitalismo, foram moldados a partir de iniciativas tomadas
mas ele tratou os africanos, e em menor grau os por ambas os lados do deserto.s
povos das Américas, como atores históricos
De acordo com Braudel, todo o movimento teve
apenas na medida em que eles estavam
uma única direção. "Curiosamente, nenhum
relacionados com as necessidades d.os europeus
(rss+,p.886): explorador negro empreendeu qualquer viagem
através do deserto ou do oceano, que estavam ao
Embora pudéssemos ter preferido ver estes seu alcance... Para os africanos, o Atlântico era,
"não-europeus" em seus próprios termos, isto assim como o Saara, um obstáculo impenetrável"
não poder ser entendido corretamente, (tg8a, p.$a). Ele escreveu isto apesar do
mesmo antes do sóculo XVIII, exceto nos conhecimento (com o qual ele certamente teve
termos da poderosa sombra da Europa contato) de que muitos mulçumanos
ocidental que os encobriu... E era de todos os comercializavam pelo deserto, ou que
Iugares do mundo... que a Europa estava peregrinavam até Meca, vindos do Sudão
retirando uma parte significativa de sua forca
ocidental. Eram africanos que seriam descritos
por Braudel como negros, trazendo com eles a civilizações históricas. Na história do mundo
herança cultural da Africa ocidental. Relatos entre os séculos XIV e X\4 escrita por eles, o
mostram que alguns d.irigentes da África negra processo central é a fusão de espaços históricos
frzeram a peregrinação para Meca ainda no início Iocais no interior de um único espaço mundial
do século XI (Al-Naqar 1972, p.27). Mansa Musa interconectado. Bennassar toma o cuidado de ler
do Mali viajou da Africa ocidental ao Cairo, os novos trabalhos dos africanistas, até então
depois para Meca no século XIV com um séqüito apenas parcialmente assimilados. Ele explica, por
composto por 60.000 indivíduos (Hiskett tgg+, exemplo, que muitos dos mercadores muÌçumanos
p.15i ver também pp.29, 34 e 55). Ainda que o da Africa ocidental eram negros africanos
número correto seja provavelmente menor, não ocidentais, e que o Islã atuou no avanço da
há dúvida que milhares de africanos agricultura e da metalurgia na "civilização
atravessaram o deserto para visitar o mundo do Bantu" dos grandes lagos da África oriental
Mediterrâneo e do Mar Vermelho, e outros (da (Bennassar e Chaunu 1977, pp. 7l e 73). Porém,
Costa Oriental), cruzaram o Oceano Índico para no mesmo capítulo Bennassar escreve sobre a
alcançar o Golfo Pérsico e a Índia. região dos grandes lagos "do Lago Rudoff até o
Lago Nyasa, onde Estados negros com economias
Finalmente, a caracteúzação da diferença que diversificadas estavam... aptos a se estabelecerem
Braudel estabelece entre a "África Negra" e a à medida que a penetração árabe estimulava a
"África Branca" é basead.a em sua comf,reensão
função comerciaÌ" (Benessar e Chaunu, 1977,
de raça. Na Grammairc des Ciuilisations ele p.72). Esta visão da penetração ârabe, para a qual
admite que a Etiópia (neste caso, cristã) foi uma não existem evidências, surge apontando e
civiÌização, explicando que ela "indiscutivelmente fixando, claramente, a posição da África dentro d.e
possuía eÌementos étnicos brancos, e foi fundada
uma narrativa mais ampla.
em uma população mestiça, muito diferente,
entretanto, daqueles que eram verdadeiros Esta narrativa mais ampla no livro de Bennassar
melano-africanos" (tssz, p.152). Ás vezes, ele e Chaunu, no trabalho de Braudel e em McNeill,
nega a existência de alguns fatos para preservar fala sobre o impacto das "civilizações" no mundo.
a clara distinção_entre a Africa Negra, que é Apesar da centralidade das "civilizações", o termo
incivilizada, e a Africa Branca que é civilizada. raramente é matéria de discussões cuidadosas.
Em um Ìivro de 1963, Braudel admite que a McNeill, que escreveu que as "sociedades
região próxima ao Golfo da Guiné foi urbanizada civilizadas têm muito para ensinar e
muito cedo (t987, p.164; originalmente publicado relativamente pouco para aprender dos povos
em 1963). Mas, em um livro posterior, no qual ainda não civilizados", define civilização como
argumenta que as cidades eram uma das marcas "um estilo de vida caracterizado por uma
distintivas de civilização, escreveu que não complexidade, riqueza e imprevisibilidade geral
existiam cidades na orla do Golfo da Guinó. (tgSt. que justificam o epíteto de 'civilizada" (McNeill
p p . 2 92- 93) . 1963,pp. 65 e 32).

Uma vez que os historiadores têm chegado a uma "CiviÌização" na língua inglesa, ao longo dos
melhor compreensão da urbanízaçã,o africana e séculos, carregou conotações relacionadas a si
das iniciativas africanas nas trocas própria e ao outro, ou do próprio ou impróprio
intercontinentais, fica mais fácil ver a fragilidade para ordenar uma sociedade. "CívíIizar" no
desta pequena parte do trabaÌho de Braudel. OxÍord English Dictionary (1933) é "educar o que
Entretanto, uma questão central permanece: se a é rude ou grosseiro... domesticar, domar (animais
sua interpretação unidirecional da Áfri.a é seÌvagens)... fazer 'civil"' no sentido de "ter boa
meramente uma infeliz idiossincrasia que se opõe ordem púbÌica ou social'. "Civilização" é uma
ao grande historiador, ou se é um sinal de condição ou estado civilizado nestes sentidos, mas
problemas profundos no modo como muitos é igualmente "um desenvolvido ou avançado
historiadores constroem suas narrativas. estado da sociedade humana".

No trabalho de Pierre Chaunu e Bartolome Braudel faz uma distinção entre "civilizações" e
Bennassar, membros da terceira geração dos "culturas", estando as sociedades da África Negra
Annales, podemos ver a tensão entre a nova entre as cuÌturas. Em The Structures ofEveryday
evidência africana, mostrando processos Life eLeescreve que "a cultura é uma civilização
autônomos, e a velha visão de história mundial que não atingiu ainda sua maturidade" (1981,
na qual o progresso irradia das poucas p.101), mas em Grammaire des Civiüsations ele
toma emprestado de Lévi-Strauss, a divisão das de Braudel ou de Bennassar e Chaunu, ó que tais
sociedades entre relógios e máquinas a vapor, inter-relações não se sustentam. Na maior parte
para argumentar: da Africa subsaariana o arado não é utilizado
porque ele é prejudicial aos solos tropicais.
As sociedadesque correspondema culturas
Algumas áreas ostentavam próspero comércio,
sãoaquelasque têm a tendênciade se manter
considerável inüercomunicação e alta densidade
indefinidamenteem seu estado inicial, o que
explica, além disso, porque elas, para nós, populacional, mas sem hierarquia política.
parecem ser sociedades sem história e
progïesso...Nas breves culturas primitivas As áreas ibo (Ibolândia) na região sudeste da
encontramos a semente das sociedades Nigéria, por exemplo, tinham uma alta densidade
igualitárias, nas quais as relações entre os populacional; em tempos recentes algumas partes
gïupos são reguladas uma vez e para todos, desta região atingiram 800 habitantes por miiha
repetindo elas próprias, enquanto as quadrada. Os povos cultivavam a terra com
civilizaçõessão encontradas nas sociedades enxadas, e tinham uma densa rede de mercados
hierárqúcas, com tensõesque se transforma, periódicos (mercados estes que se revezavam em
conflitos sociais, Iutas poìíticas e uma
um ciclo de quatro a oito dias para facilitar aos
perpétuaevolução.(Braudel1982,p.48)
mercadores a mudança de um lugar para outro), e
As culturas africanas, de acordo com este tinham tambóm uma rede de feiras de longa
argumento, são igualitárias e estáticas enquanto distância. Ao frnal do primeiro milênio d.C. esta
as civiÌizações européias são hierárquicas e região importou quantidades substanciais de bens
dinâmicas. por rotas terrestres até o Mediterrâneo - tudo
rsto sem escrever e, na maior parte da lbolândia,
O sinal externo mais significativo de civilização, não possui formas cÌaras de hierarquia política.
de acordo com Braudel, ó a presença de cidades Conselhos igualitários mantinham o lugar do
(t987, p.48), mas estas, por sua vez, são meïcado e os agentes dos oráculos religiosos se
indicadores da existência de espaço comunicavam por longas distâncias. Diferentes
hierarquizado, dividido entre centros ricos e tipos de funcionários rituais coexistiam na
periferias pobres (Braudel lg7g, p.16). As Ibolândia, cada um preservando uma ou outra
desigualdades espaciais emergem onde a forma de conhecimento, a ser transmitido
intercomunicação e o comércio são bem oralmente para a geração seguinte. Artesãos
desenvolvidos e onde a agricultura é produtiva. A praticavam numerosos oficios. A região era
produtividade da sociedade civilizada é fruto do economicamente dinâmica, tanto internamente,
cultivo com aradoi as culturas costumam contar quanto em relação ao comércio de exportaçãoi
com a enxada (Braudel 1981, pp.56-64, 174-82). quando a demanda de óleo de palma cresceu no
Chaunu é claro sobre a importância da mudança começo do século XIX, a Ibolândia e a ârea ao sul
na agriculturai o aumento na produtividade leva enfrentaram o desafio e, por volta de 1859,
ao crescimento da densidade populacional que é estavam exportando cerca de 30.000 toneladas de
acompanhada, por sua vez, pelo aparecimento de óleo de palma por ano, usando formas nativas de
hierarquias (Bennassar e Chaunu 1g77, pp.47- organização.eEla de nenhum modo pertence ao
51). Um dos elementos centrais na emergência da conjunto de sociedades descritas por Braudel com
civilização é a existência da escrita. Chaunu "tendência de se manter indefinidamente em seu
escreve que concorda com Braudel sobre a estado inicial... para o qual as relações entre os
importância da escrita para a civilização: "As grupos foram reguladas uma vez e se repetem".
artes da memória estão situadas no coração da
acumulação" e a escrita ê "a mais eficaz" das Este é um ponto de extrema importância: a
artes da memória (Bennassar e Chaunu 1972, experiência histórica do sudeste da Nigéria
p .5 6 , n. 49) . seguiu um padrão païa o qual a categoria de
"civilização" estabelecida pelos historiadores foi
Temos aqui um complexo de elementos que juntos irrelevante. A região teve alta densidade
formam uma configuração coerente: hierarquia popuÌacional e a ausência de estados
econômica e política, cidades, comércio e hierarquizados, comércio sem escrita e
intercomunicação, escrita, arado, alta densidade produtividade agrícola sem arados. As
populacional e dinamismo histórico. características da "civilização" - a aÌta densidade
populacional, comércio, hierarquia, e daí por
O problema deste complexo quando aplicado à diante - são significativos apenas na medida em
Africa, no contexto das histórias mundiais como a que, como eÌementos distintos, tiveram um
significado relacional: na medida em que o arado, mercadores que comerciavam locaÌmente e
a hierarquia política e a atividade mercantil estão contribuíram para o comércio de exportação. O
relacionados, por exemplo, os elementos não têm comércio de marfim no século XVII foi aÌimentado
qualquer significado expÌicativo se tratados por uma matança anual de 3.000 a 4.000
simplesmente como um check-lisl. Nesta parte da elefantes. Estimativas, também do século XVII,
Nigéria, fica claro que um grupo diferente de mostraram que esta região era capaz de exportar
inter-reÌações ocorria. Não é de admirar. que os quarenta toneladas de cobre por ano.10Uma outra
historiadores, confrontados com a obrigação de parte crucial da economia regional estava fora dos
Ìevar a sério a história de Ibolândia, queixem-se limites do reino. Era uma área em que uma série
da "fragmentação" e do "caos" no conhecimento de importantes funções governamentais era
histórico. Algumas das categorias da compreensão mantida pela Lemba - uma associação de cura,
histórica Iongamente aceitas são irrelevantes ou nos termos de Janzen (e nos de Victor Turner).
neste caso. "um tambor de aflição".

Isto não significa dizer que Braudel, ou As pessoas eram iniciadas no Lemba como um
Bennassar e Chaunu, não se interessassem pelas modo de tratar suas doenças e ainda como forma
mudanças subjacentes nas sociedades africanas. de estabelecer organízações comerciais. Os
Bennassar, por exemplo, explorou os princípios d.a iniciados tinham um papel essencial na
organizaçãosocial africana, em sua pesquisa para manutenção da livre passagem através de toda a
responder a questão central levantada por rede de mercados de quatro dias. Lemba era uma
Braudel: Por que a Africa não foi o lugar onde as forma de expressão religiosa, uma medicina
mudanças econômicas emergiram? Por que a consagrada, na qual, os mais altos níveis de
Africa não foi o lugar onde ocorreu a grande iniciação eram muito caros. Os comerciantes mais
ruptura que ocasionou o capitalismo? Para ricos estavam comumente no topo da organização
responder esta questão, Bennassar começou pela Lemba, e eles utilizavam as redes rituais para
compreensão dos fatores sociais que levaram à atingir seus interesses econômicos. Este é um
ruptura na Europa. O fator central, em sua visão, exemplo exato do tipo de autonomia mercantiÌ
foi a liberdade parcial dos mercadores em relação que Bennassar estava procurando. Ele não a
ao controle político, e sua capacidade de acumular encontrou (ou outras instituições similares)
riquezas em seu próprio direito. EÌe olhou para os porque o historiador dedicado à história mundiaÌ
mesmos fatores na África, começando com aquele normalmente não procura poï atividades
que para ele parecia ser o mais avançado dos mercantis na 'sagrada medicina de governar';...
reinos africanos. No reino do Congo, ele 'no governo da multiplicação e reprodução'...e'na
argumentou, os mercadores eram rigorosamente sagrada medicina integrando pessoas, vilas e
controlados pelo rei. A terra revertia ao rer mercados"' (Janzen 1982, p.4).
quando da morte do proprietário, assim
impedindo a possibilidade de acumulação. O rei O problema aqui ó que as categorias de análise
era a fonte da miséria e da prosperidade, aos histórica são normalmente trazídas da Europa, e,
mercadores faltava autonomia e o crescimento c.onseqüentemente, os historiadores buscam na
econômico foi restrito (Bennassar and Chaunu Africa uma constelação familiar de reis, nobres,
1 9 7 7,pp. 85- 87) . igreja e mercadores. "A sagrada medicina de
governar" é estranha a essa análise. V.Y.
A anáIise caiu, entretanto, não apenas por causa Mudimbe tem explicado que análises
da larga diversidade das estruturas de Estado na funcionalistas dependem do contraste entre o
Africa, mas também por causa da incorreção do normal e o patológico. Se o europeu é definido
pressuposto básico de que a autonomia dos como normal, então os não-europeusaparecem de
mercadores exigia uma estrutura estatal que forma distorcida, anormal, primitiva (tgSS, pp.27
pudesse sustentar seus negócios. John Janzen e 191-92).
tem escrito sobre a história de um conjunto de
instituições com funções mercantis que abrangem Como, então, podemos construir um relato da
várias regiões ocupadas por Estados e áreas d.e história mundial dentro de uma mesma moldura,
organização poÌítica acéfala. Esta é uma área que se os princípios da organização social dos Lemba,
se estende alóm do limite norte do reino d.o ou na Ibolândia, são diferentes dos princípios
Congo, principalmente ao norte do rio Congo, à europeus? Eric Wolf tenta fazer isto, construir um
medida que este desce ao Oceano Atlântico. Esta relato coerente enquanto dá a devida atenção aos
eïa uma região de intensa atividade entre não-europeus em Europe And The People Without
History (1982). Pelo fato de Wolf ter trabalhado O foco de WoÌf sobre os não-europeus na história
tão arduamente para reverter o balanço da ênfase mundial é especialmente útil para revelar como ó
da Europa para "os povos sem história", podemos dificil construir uma única narrativa mestra, para
ver os limites e as dificuldades deste o que deve necessariamente existir níveis de
empreendimento. experiência que Wolf não descreve - úveis nos
quais as pessoas se esforçam para criar novos
As primeiras partes do livro não tentam deÌinear modos de dar formas culturais para a ação social,
um processo unificado na história mundial. Wolf níveis em que a experiência escapa da
orienta suas primeiras descrições, baseado em regularidade dos processos "universais".12
três "modos de produção". Por outro lado, esta
descrição pode ser utilizada para reduzir a Recentes trabalhos de Arjum Appadurai e Igor
diversa experiência em aÌguns tipos simples Kopytoff mostram, por exemplo, que objetos se
dentro de um esquema feito na Europa. Se esse transformam em mercadorias em modos culturais
fosse o caso, Wolf poderia ter violentado os específicos (Appadurai 1986; Kopytoff 1986i ver
princípios localmente específicos de organização, também Geary 1986i Cassanelli 1986).Os objetos,
os africanos entre outros. Mas este não é o caso. nesta visão, têm uma história de vida na qual em
Os modelos são categorias heurísticas. Estes não algum momento, adquirem a condição de
são tipos de sociedades, ele escreve, mas mercadoria, como no caso da herança em que os
"construções que buscam imaginar certos membros da famíIia não podem vender, até um
relacionamentos estratégicos".tr Ele fez um amplo certo momento do ciclo de vida da família, quando
esboço da geografia sociaÌ mundial e da o produto da herança se torna disponível para a
organização poÌítica em 1400, enfatizando as venda. Este padrão em que os objetos adquirem a
formas políticas autônomas, especialmente condição de mercadoria varia de uma sociedade
aquelas que não eram puramente locais e que para outra.
fazíam integrações regionais possíveis. WoIf então
se volta para o capitalismo, para o momento de Sharon Hutchinson, escrevendo sobre os nuer no
sua origem. sul do Sudão, mostra que o dinheiro e as
mercadorias são cuÌturalmente definidos de
Foi para o peúodo capitaÌista que Wolf objetivou maneiras radicalmente diferentes do esperado. A
construir uma história universaÌ, baseada nas cultura das mercadorias é localmente definida e
regularidades do processo histórico e não somente não a partir de um padrão universal. Tampouco
na moldura histórica da análise. O surgimento de se pode "prever como o dinheiro será
um mercado mundial levou ao aparecimento do conceitualizado e incorporado por outras
dinheiro (e dos preços) como linguagem universal. culturas" (Hutchinson 1988, p. 1?9).
Os bens em todas as partes do mundo se
transformaram em mercadorias, e estas "podiam Os nuers destes dias trabalham por ordenados,
ser compradas e trocadas sem nenhuma sendo ativos como mercadores e engajados como
referência à matriz social na qual elas eram compradores e vendedores no comércio de gado e
produzidas (fSSZ, p.310)". Cada mercadoria tinha outras mercadorias. Podemos dizer, portanto, que
um valor quantitativo em reìação a todas as eles entraram no mundo capitalista da troca de
outras mercadorias devido à existência de mercadoria, eles falam a língua mundial do
instituições de mercado. dinheiro e dos preços. Todavia, o gado é
mercadoria em um contexto relativamente
Para o período em que o mercado mundial existe, circunscrito, ele é diferente da mercadoria
os historiadores podem escrever uma história descrita por WoIf, o da mercadoria encontrada em
universaÌ do modo como as mercadorias foram Marx, para quem a troca capitaÌista rompe
produzidas e trocadas. Este é o projeto de Wolf. fronteiras, dando espaço ao livre comércio. Os
Ele esboça as conseqüências políticas e nuers vendem gado por dinheiro, mas eles não
econômicas do comércio de pele para as pessoas podem trocar o dinheiro assim obtido do mesmo
na América do Norte e do comércio de escravos modo que trocam gado. A diferença crucial entre
para a Áf"ica. Mais à frente no Ìivro ele viaja ao dinheiro e gado é que o "gado tem sangue",
mundo, mostrando os efeitos da produção de sangue este que o povo associa a idéia procriaçãoi
mercadorias - exempÌificando o impacto da "dinheiro não tem sangue". Por esta razão o
produção da borracha, por exemplo, na Bacia dinheiro não pode ser usado em contextos onde o
Amazônica e no sul da Asia. sangue do gado é relevante: para a prosperidade
da linhagem lbtoodwealth], ou sacrifico, ou
(exceto em um grau limitado) para o dote zonas de intercomunicação na história mundial.
lbridewealth]. Mesmo quando o gad.o é utilizado Esta é uma retomada do tema tratado por
em transações sociais, distinções são feitas entre McNeiIl (Curtin escreve sobre "regiões de
os usos do animal comprado com dinheiro ("gado comórcio ecumêmico"), mas sem levar em conta a
de dinheiro") e os animais utilizados como d.ote história unidirecional. "Um dos mitos da história
("gado de menina"). da África", ele escreve, "é a veÌha visão d.e que o
comércio ttu Áf.i.u foi Ìargamente uma iniciativa
O dinheiro não é um meio homogêneo de troca de estrangeiros... De fato, o comércio para aÌém
para as pessoas da NuerÌândia. Dinheiro ganho
do nível da aldeia começou como uma iniciativa
na limpeza de latrinas ou em trabalhos africana" se expandindo a partir deste nível
domósticos é chamado de "dinheiro de porcaria" inicial para o exterior (Curtin 1984, pp. 15-lG).
não podendo ser utilizado na compra de gado. Curtin rejeita a idéia de que as diásporas
"Gado comprado com dinheiro de porcaria não
comerciais estão todas Ìigadas a um mesmo
consegueviver" (Hutchinson 1988, p.152). Outros compasso de um sistema econômico, no estilo de
ordenados são chamados de "dinheiro de suor" e
WaÌÌerstein ou André Gunder Frank. "Elas são
aqueÌe ganho na venda de gado é o "dinheiro de
somente uma influência entre tantas no curso da
gado". Para os nuers, o dinheiro não é um fluido
história". (Curtin 198a, p.9).
universal. Há diferentes tipos dele, com
diferentes usos (Hutchinson 1g88, pp. 108, 110, Uma leitura de McNeiII, Braudel. Bennassar e
1 1 5- 16,I 48, I 49, 1 5 2 -6 2 ,1 7 6e 1 7 9 ). Chaunu, Wolf, Curtin e outros, aponta para um
mais amplo e geral desenvolvimento: que o surgir
Os nuers tiveram que construir uma nova síntese da história africana (e da asiática e da latino-
de mercado e comunidade, um novo conjunto de americana) tem mudado profundamente nossa
categorias de troca, para atender suas próprias
compreensão da história geral, e do lugar da
necessidades. Este é um tipo de processo criativo
Europa no mundo. Não é mais possível defender a
que não é considerado numa narrativa da posição de que os processos históricos entre os
expansão das mercadorias na história mundial. povos não-europeuspossam ser vistos como meras
Dizer isto não significa negar a existência de conseqüências de influências encadeadas que
mercadorias, nem a sua comensurabilidade a
emergem de um centro europeu dominante. Esta
partir de uma base mundial, nem a importância
mudança em nossa compreensão é desconfortável
do surgimento de um mercado mundial. Dizer isto para quem vê a história como a expansão da
significa simplesmente que a história das civilização a partir de um centro europeu, e é
mercadorias não é uma história total, que existem iguaÌmente desconfortável para quem
espaços de experiência para além do alcançado.
esquematiza a história nos termos de um sistema
auto-determinado de exploração escravista.
A história comparativa ainda é possível para
historiadores que estabelecem objetivos modestos.
A mudança das narrativas históricas que se
Cross Cultural Trade in World History, de Philip originavam na Europa vem sendo acompanhada e
Curtin, explora as formas tomadas pelas redes de
autorizada por inovações nos métodos de
comércio pré-industriais que conectam os povos
construção do conhecimento sobre os povos e as
por meio de fronteiras culturais. Esta é uma
pessoas que anteriormente foram deixados de
sociologia histórica comparativa focada nos lado pelos estudos históricos acadêmicos. Estes
estabelecimentos de especiaÌistas comerciais,
métodos renovados, alguns dos quais se
removidos fisicamente de suas comunidades de
desenvolveram inicialmente entre os
origem e vivendo como estrangeiros entre seus historiadores da África, incluem história oral,
hospedeiros, conectados com outros arqueologia histórica, Iingüística histórica, bem
estabelecimentos similares em uma red.e como anáIises históricas de formato antropológico.
comercial, uma "diáspora mercantil". Os Os novos métodos e modos de interpretação
comerciantes chineses criaram uma diáspora permitiram aos historiadores se aproximar da
comercial no suÌ da Asia, assim como fizeram os
história dos povos iletrados, em muitos casos
juulas no oeste da África, e os fenícios e os gregos
destituídos de poder, sem partir dos cânones
no Mediterrâneo As comunidades aceitos pela crítica da pesquisa histórica. Os
interconectadas de mercadores forneciam serviços
historiadores estão aptos a conhecer histórias das
de comórcio e informações umas às outras através quais eles nunca tiveram conhecimento antes. As
de áreas amplamente dispersas. Curtin usa o
conseqüênciassão, uma vez mais, paradoxais. Os
comércio diaspórico para explorar a definição das
avanços significativos na qualidade do

l0
conhecimento histórico ajudam a mexer com a fé social na qual eÌas estão encravadas (ver
dos historiadores na qualidade de seus Feierman 1990 e Tonkin 1992).
conhecimentos. Para vislumbrar todas as regiões
da história anteriormente desconhecidas, para O sentido de que havia um mundo de
ver o lado obscuro da lua, a fé dos estudiosos foi experiências históricas na África para além do
perturbada em sua própria onisciência. que era descrito nos documentos levou os
historiadores a explorar novas técnicas de
Os avanços metodológicos não se limitam à reconstrução histórica, acompanhando o estudo
Africa. Eles tiveram impacto em numerosos da história oral. Arqueologia histórica
campos históricos, mas muitos deles surgiram arqueologia de períodos reÌativamente recentes
com clareza e força particular entre os (os úItimos 3.000 anos) - combinando tradição
historiad.ores da África.l3 O impacto da história oral, etnologia e tócnicas arqueológicas mais
oral resultou em um grande avanço nos estudos comuns, tem ajudado os historiadores na
sobre u Áf"i"a subsaariana, onde muitas ausência de ricos registros documentais (Schmidt
sociedades eram perfeitamente compatíveis com 1978, 1983a, 1983b, 1990; Chittick I974;
esta forma de pesquisa: estes povos transmitiam Posnansky 1969i Mclntosh e Mclntosh 1980a,
um conjunto substanciaÌ de conhecimento de uma 1980b, 1984, 1986; Shinnie e Kense 1989). Os
geração para a seguinte e sustentavam uma historiadores africanos têm feito tambóm um uso
complexa hierarquia política e econômica, tudo criativo da lingüística histórica (Ehret 1968.
sem o uso da escrita. Tradições orais ainda 1971, 1988; Schoenbrun 1990).
estavam vivas (e em muitos casos ainda estão)
quando os historiadores das décadas de 1960 e A ampla gama de métodos empregados pelos
1970 fizeram suas pesquisas. Diferentemente d.a historiadores africanos tem se mostrado útil não
América Latina, onde o período colonial começou somente nas sociedadessem escrita, mas também
há alguns séculos, foi apenas no final do século nos estudos das classes desfavorecidas da
XIX que a maior parte da África subsaariana sociedade, com considerável quantidade de
experimentou a conquista. Antes disso, os iÌetrados. Os historiadores têm usado destes
europeus, em muitos casos, não interferiram métodos ampliados para construir ricos relatos da
diretamente na transmissão do conhecimento. maioria africana na sociedade colonial e
especialmente para nos revelar os esplêndidos
Jan Vansina em De la tradition orale foi o reÌatos da resistência camponesa à dominação
primeiro a argumentar coerentemente entre os colonial.la
africanistas que as tradições orais poderiam ser
utilizadas como fontes históricas e ofereceu Os melhores estudos da resistência à conquista,
elementos básicos para um método (Vansina um dos quais o trabalho de Allen Isaacman, por
1961, revisitado em 1985i ver também Miller exemplo, explora a tensão central da sociedade
1980, CossanelÌ 1982; Cohen 1985). Em muitos africana antes da conquista o curso da
casos os historiadores acadêmicos eram africanos resistência à dominação peÌas autoridades
que tiveram a oportunidade de aprender indígenas - de modo que mesmo a história do
fragmentos de história oralmente transmitidas domínio coÌonial é diüdida entre histórias feitas
em suas infâncias, e que retornaram à África na Europa e outras que encontraram fontes de
anos depois, e trouxeram ferramentas para coerência dentro das histórias africanas,
estudar as mesmas tradições. (Kimambo, 1g6g; enraizadas nas tradições orais (Isaacman 1972,
Ogot 1967i Samatar 1982; Alagoa Ig64, t972, 1976, 1990:R anger 1985a).
1980i Were 1967). Os historiadores, no enranro,
precisavam entender que as próprias narrativas, O sentido de que não podemos contar a história
contadas no interior das sociedades africanas, não como uma única narrativa, a partir de um único
são recitações sociaÌmente neutras que servem a ponto de vista consistente, ou de uma única
todos igualmente. Elas são mais um objeto de perspectiva, provocou golpes profundos no
disputa, localizado na rede de relações de poder, pensamento cultural e social mais recente. Michel
assim como são os relatos das glórias da Foucault escreveu, em Language,
civilização ocidental ou da criatividade Countermemory, Practice, que a idéia do conjunto
afrocêntrica. A interpretação histórica precisa ler da sociedade "surgiu no mundo ocidentaÌ, neste
as tradições (precisa ouvi-Ias e assistir suas desenvolvimento histórico altamente
performances) prestando atenção nas formas de individualizado que culmina no capitalismo. Para
dominação inscritas nelas, e as relaÇões d.a red.e faÌar do "conjunto da sociedade" como a única
forma que ela tem tido, é preciso transformar

ll
nosso passado em sonho" (citado em Janeiro de senão em contraste com a escravidão, ou
1984, p.521). As muitas categorias por meio d.as civilização (ela própria o coração da história
quais compreendemos a experiência universal se mundial, como vimos) senão em contraste com o
origina em uma experiência particuÌar do centro barbarismo? Sem o nativo, sem o escravo, o servo
do mundo capitalista. ou o bárbaro, os vaÌores centrais do ocidente
seriam dificeis de imaginar. O escravo e o bárbaro
Esta é a mesma lição ensinada num exame da não eram incidentais para a civilização, condições
história africana. As categorias que são usadas aberrantes nas margensi eles eram constitutivos
ostensivamente como universais são, de fato, da civtlizaçáo, um modo da civilização se
particulares, e se referem à experiência da
autodefinir. Com o movimento dos direitos civis
Europa moderna. O fato de termos aprendido esta nos Estados Unidos, começou a emergir uma
Iição de dois modos diferentes - através de percepção similar, de que a escravidão e as
escritos com base fiÌosófrca sobre a Europa e últimas formas de opressão racial não eram erros
através das histórias dos não-europeus - nos nas margens da sociedade americanai eÌas
forçou a perguntar sobre o relacionamento entre
tinham, de um modo fundamental, definido a
os dois grupos de desenvolvimento. A questão
sociedade americana. O relacionamento entre
central que ainda não foi completamente raça e os principais valores igualitários
resolvida é o relacionamento entre a crise da americanos foi, nos termos de Gunnar Mydal,
representação histórica que surgiu quando os "um dilema americano".16
historiadores começaram a ouvir as vozes até
então silenciadas, e a crise epistemológica mais O declínio dos impérios coloniais e o fim da
geral que afeta todas as ciências sociais e segregação oficial nos Estados Unidos trouxeram
humanas. um crescente número de não-brancos para o
estudo profrssional da história mundiaÌ e para as
Para responder esta questão seria necessário
audiências nas quais os historiadores a
escrever uma história geral, política e intelectual,
discutiam. Nos anos de 1960, muitas das recentes
dos anos desde a Segunda Guerra Mundial. Esta nações africanas independentes fundaram suas
é a única possibilidade, no espaço de alguns próprias universidades. Os africanos que
p arágrafos, pat a fazer sugestões p reliminares. passaram a integrar os novos departamentos de
história tinham um grande interesse em
Nas décadas após 1945, a política racial tomou
reconstruir a história autônoma dos africanos
uma nova e decisiva direção nos impérios
dentro das fronteiras nacionais. Britânicos,
coloniais europeus e nos Estados Unidos. Os
franceses ou historiadores americanos, que
conflitos que conduziram à descolonização -
estavam olhando agora para as histórias
guerras na Indochina, ArgéÌia e Quênia, e os
nacionais de um modo muito diferente daquele
movimentos de independência menos violentos
pelo qual haviam visto a história das colônias,
em inúmeros outros territórios - levaram os
foram influenciados pela significativa presença de
intelectuais europeus a reconsiderar as colegas e estudantes africanos e afro-
qualidades e os valores que haviam sido definidos
descendentes. O resultado deste desenvolvimento
como europeus. A perda do império aconteceu ao
foi o crescimento de grupos de historiadores que
mesmo tempo em que alguns pensadores
começaram a trabalhar seriamente tta África, na
questionavam se historiadores e outros estudiosos
Europa, e na América do Norte, para reconstruir
das ciências humanas eram capazes de descrever
e registrar o passado africano.
o Outro, ou se fazendo isso eles estavam de fato
engajados naquilo que Emanuel Levinas chamou Existiram outras forças trabalhando nesta ampla
de "imperialismo ontológico", no qual, a transformação intelectual - o aparecimento das
aÌteridade desaparece e se torna parte do mesmo
mulheres na academia e o feminismo, e as
(Young 1990, p.13).
mudanças radicais na história da ciência que
inÍluenciaram o pensamento sobre a história
AÌguns pensadores argumentaram que as
como uma ciência. Contudo, duas das forças mais
descrições dos nativos, o Outro colonial, estavam
centrais nasceram fora da política racial das
impregnadas de um discurso no qual os europeus
décadas do pós-guerra: o senso de definição do
se autodefiniam. Nas palavras de Edward Said,
Iugar de subordinação do Outro nos discursos
"O Oriente foi... não o interÌocutor da Europa.
europeus, e a abertura para as histórias dos não-
mas seu outro silencioso" (Said 1985, p. iZ).m
europeus como objeto legítimo da pesquisa
Como era possível definir a liberdade se não a
partir do contraste com o cativeiro, autonomia histórica.

12
O trabalho do especialista da reconstrução formatar eventos locais ou tomar parte em um
histórica serviu para revelar os povos sobre os processo local. Os casamentos Lemba ajudaram a
quais os antropóIogos sempre escreveram e estabelecer redes de relacionamento que
insistir para que fossem colocados no interior de habilitavam o homem a participar no comércio
uma ampla narrativa histórica. As mudanças no uÌtramarino de escravo, de marfim, de cobre e
contexto requeriam uma mudança na maneira outros bens. Na Ibolândia, o oráculo Aro
pela qual os historiadores entendiam a agência. determinava, em muitos casos, o local para onde o
Os povos anteriormente mudos agora seriam transgressor deveria ser mandado no comércio
vistos como autores e atores. As culturas exóticas atlântico de escravos. Os homens nuers viviam
não eram novidades para a imaginação sob as regras coloniais e eles precisavam ajustar
acadêmica, mas o estilo da descrição era novo. O suas atividades à economia colonial de modo a
novo conhecimento rompeu com a longa tradição acumular riquezas que tornassem possível o
inteÌectuaÌ que tratou as culturas exóticas como sacrifico. Fazendo isto eles mudavam a
se elas existissem em um tempo diferente do resto configuração do controle coÌoniaÌ.
da humanidade - a idade da pedra, ou a era do
bronze, ou os povos da idade do ferro, vestígios do O iniciado Lemba, a mulher ibo e o homem nuer
passado que não existiam no mesmo mundo ond.e ajudaram a modelar os processos históricos de
os historiadores viviam e, portanto, não sujeitos grande alcance. O problema para os historiadores,
às forças políticas e econômicas(Fabian 1g8B). então, é como capturar todos estes diferentes
níveis ao mesmo tempo, como fazer justiça ao
(Jma vez que os historiadores da África afasraram
Iocal, ao regional e ao internacional em uma
as cuÌturas exóticas de seus "jardins culturais,,, única descrição ou em uma única estrutura de
colocando-as em seu próprio mundo, este mundo análise.17
deixou de existir da mesma forma. Tratar os
africanos e mulheres, camponeses e escravos É melhor que se faça uma breve expÌoração da
como atores históricos colocou um desafio história do lugar dos africanos no comércio
fundamental para a compreensão histórica d.eum atlântico de escravos para entender alguns dos
modo geral. Desafiou a noção de que a história problemas da interpretação em múÌtipÌos níveis.
contada de um ponto de vista restrito e de uma O comércio de escravos foi um conjunto de ações
população menos representativa tivesse um articuladas umas às outras em grande escala,
menor valor e universalidade. alcançando diferentes continentes. Os escravos
individuaÌmente podem ter sido arrancados de
A mudança que isso representa para a história da suas casas no interior da Nigéria, ou de Angola,
Africa é fundamental. A experiência histórica dos ou de outra parte do continente africano. Se
africanos em seu próprio continente deve ser imaginarmos um irmão e uma irmã raptados
entendida no sentido cultural especifico e nos juntos, talvez o irmão se encontre caminhando em
termos de suas linguagens e motivações. O que direção à costa para ser embarcado em um navio,
significa, por exemplo, quando um jovem homem enquanto sua irmã parou ao longo do caminho,
dependente consegue uma "esposa" dentro d.a para servir arduamente como trabalhadora
associação de cura Lemba? EIa não eïa a esposa compulsória perto de sua casa. Uma vez tendo
com quem ele esperava construir um lar, cultivar atravessado o oceano, o irmão poderia forjar laços
junto e procriari ela era a "esposa" com quem eÌe com os outros escravos, talvez da Costa do Ouro
estabeleceu uma ligação social somente no ou da Costa da Guiné. Ele provavelmente poderia
contexto de cura. Quais seriam as alternativas de trabalhar em uma pÌantação de açúcar
uma mulher igbo sem fiIhos quando ela busca o pertencente a um capitaÌista do norte da
oráculo de Aro para saber as causas de sua Inglaterra. Definido como um sistema espacial,
infertilidade? Quando os homens nuer recorrem nos termos de Braudel, um sistema escravista se
ao sacrificio de sangue? O que eles buscam ao estendeu para o Caribe,. as Américas, a Europa e
realízar este sacrificio? Estas são questões que só também para o Oceano Indico.
podem ser respondidas por um historiador que
penetrou profundamente nas raízes de formas Dentro de um sistema imaginado, entendido
locais da experiência histórica. deste modo, houve muitas outras fronteiras: as
locais e as fronteiras dos subsistemas. Cada área
Tendo feito isto, o historiador não pode assumir Iocal tinha seus próprios padrões de costumes e
que os africanos, tendo ações culturalmente Iíngua, suas formas características de integração
fundamentadas, tenham apenas o pod.er de sociaÌ. Pessoas falando umas com as outras nas

l3
línguas locais, tornando-se noivas e noivos vinte cinco anos, e este conhecimento se estende
Lemba, ou consultando o oráculo Aro. Não às sociedades africanas.
obstante, eles tambóm participaram de um
metasistema coordenado, de significados e ações Nossa compreensão sobre as conseqüências
atingindo todos os caminhos do interior da Africa demográfrcas do tráfico escravo cresceu ao mesmo
até as Américas e a Europa. tempo. Desde que Philip Curtin abriu o campo de
pesquisa com The Atlantic Slave Trade: A Census
Os historiadores têm trabalhado longamente para (1969), nosso conhecimento sobre os lugares de
situar os diversos e heterogêneos eÌementos do origem e de destino dos escravos tem ser tornado
comércio escravo dentro de uma narrativa clara mais substancial. (Ver Lovejoy 1983 e Inikori
do desdobramento histórico, movendo-se em uma 1932). Ratph Austen (tgZS) seguiu com um
única direção para formar o mundo tal como o importante estudo sobre o comércio trans-
conhecemos. Capitalism And Slavery, publicado saariano. Os historiadores passaram a estudar os
por Eric Willians em 1944, abriu um debate maiores efeitos do comércio escravo sobre as
contínuo sobre as relações entre a escravidão e a tendências demográficas d.elongo prazo na Áfri.u
ascensão do capitalismo. Segundo Willians, a (Manning 1990). Estes foram influenciados pelas
escravidão no Caribe contribuiu para a formação diferenciações de gênero no uso dos escravos -
do capital na Grã-Bretanha. A industrialização da por exemplo, o tráfico atlântico comercializou
Europa, em sua visão, foi construída sobre as mais homens que mulheres, e os proprietários de
costas dos escravos nas Américas. Os debates escravos na Africa empregavam mais mulheres
sobre esses assuntos continuam, mas os que homens (Robertson e Klein 19SB).
historiadores das últimas gerações têm também
estendido suas discussões sobre as inter-relações A história do comércio escravo fez surgir questões
econômicas para além do foco original, na Europa de especifrcidade cultural e processo histórico de
e nas Américasi eles estão se voltando para a forma extrema. Um homem que era vendido por
Áftica atlântica. comerciantes na Áftica central e que, enfim,
atravessasse o Atlântico para trabalhar em uma
Os historiadores se perguntam por que os plantation na Jamaica era claramente um
africanos foram escravizados e não os povos de escravo. Mas é incerto que seu proprietário
outros continentes. Patrick Manning (1SSO) e original na África conhecesse a palavra inglesa
Stefano Fenoaltea tentam responder a esta "sÌave" e é incerto também que o termo local que
questão ao perguntar se o trabaÌho africano era definia a forma de dependência da pessoa que
menos produtivo na Áfti"a do que era na estava sob seu domínio, equivalesse precisamente
América. Poderia o tráfrco ter acontecido como ao termo escravo. As maiores associações da
uma forma de aumentar a produtividade do escravidão na IngÌaterra são com as pÌantations
trabalho? Este foi o motivo para, na maioria das escravas no sul dos Estados Unidos, no Caribe e
vezes, o baixo preço dos escravos em comparação na América Latina. Os historiadores continuam a
com o montante que poderiam produzir nas usar esta palavra para as estruturas dentro da
Américas? CÌaude Meillassoux (tgS0) argumenta Africa que parecem ser muito diferentes das
que os escravos eram baratos não por causa de plantations escravas.
sua improdutividade na Africa, mas porque eles
eram roubados. Os que utilizavam o trabalho Em Shambaai, nas montanhas ao norte da
escravo não precisavam pagar o custo da Tanzànra onde eu fiz pesquisas etnográficas e
alimentação da criança escrava ou cuidar das coletei narrativas orais, homens pobres que não
mães escravasi eles precisavam apenas pagar o podiam aÌimentar seus filhos durante a fome
custo de manutenção dos exórcitos e de outras recorriam, nos tempos pré-coloniais, aos estoques
instituições políticas que tornavam tal roubo de comida do chefe. O homem que não podia
possível. Joseph Miller (1SSS) analisa a lógica alimentar sua filha podia deixá-la na corte do
econômica do tráfico escravo em cada um de seus chefe, onde ela comia e onde ela trabalhava. No
estágios, começando com os usos do capital final do período de fome o pai podia trazey cabras
europeu na transformação interna das sociedades para livrar sua filha do controle do chefe e ele
africanas para que elas pudessem fornecer podia levá-la para casa. A garota, enquanto
escravos, seguindo, a partir daí, os fluxos dos estava na corte, podia ser chamada de mtung'wa,
capitais na travessia do Atlântico. Nossa base de a mesma palavra utilizada para "escravo", e ela
conhecimento sobre a economia do comércio também era chamada de mndee do chefe - a
escravo é quaÌitativamente melhor do que era há "garota do chefe", uma designação ambígua que

t^
l+
em alguns casos pode ser traduzida como A muÌher daquele período entendia que as
"escrava". Um americano, provavelmente, não a chances de sua vida eram definidas por uma
veria como uma escrava, mas caso seu pai não constelação de relacionamentos de dependência.
retornasse para reclamar sua fiIha, ela Se suas negociações não fossem bem sucedidas e
continuaria na servidão (Feierman 1990, pp. ela fosse enviada para o comércio de escravos
5 3 .6 4) . intercontinental, ela experimentaria uma
drástica simplificação de suas possibilidades. E
No final dos anos 1960, eu entrevistei uma então apenas a condição de escrava seria
mulher cuja mãe, nascida em uma parte da África reÌevante. Os historiadores acham dificil
oriental distante de Shambaai, tinha sido uma caractetízar a condição da mulher no processo de
"escrava" (mtung'wa) na corte do chefe. Logo após se tornar escravizada. Se eles a tratam como
a conquista germânica, o chefe a vendeu para um escrava, pode parecer que estão negando a
homem comum [commoner] de quem ela se tornou importância das formas locais básicas de
esposa. Meus informantes descreveram sua mãe dependênciai se eles a tratam a partir de sua
como uma mulher infeliz que tinha sido abusada condição em termos locais, eles estão negando a
por sua co-esposae por seu marido uma vez que importância do processo intercontinental. IJma
ela não tinha uma famíIia para defender seus explicação adequada deve, ao meu ver, apresentar
direitos. A outra mulher da casa, a co-esposa, as duas visões.
tinha um grau maior de proteção porque seu
marido pagou um dote [bridewealthì para os Os historiadores da África têm tentado fazer uma
parentes homens da família dela. Por este motivo clara escoÌha para um lado ou outro, e ao fazerem
a mulher podia recorrer a estes parentes quando isto têm distorcido os Drocessossociais dentro da
necessitasse. Áf"i.u. Este assunto rráio à tona pela primertavez
nos anos de 1960 em um debate entre Walter
No período em que tudo isto ocorreu, os árabes Rodney (1966), o grande estudioso guineense, e
proprietários de pÌantações na costa da Tanzânia John Fage (1969). Fage argumentou que a
e nas llhas de Zanzíbar e Pemba não muito longe escravidão já existia muito antes do comércio
da costa, empregavam o trabalho escïavo na escravo, que meramente mandou os escravos para
plantação de cravos, açúcar e grãos. Alguns anos mais longe de casa do que eles poderiam ter ido,
depois, a muÌher sem famíÌia, mãe de minha mas isto não mudou seu status. Rodney, por sua
informante, poderia ter sido vendida como uma vez, dizia que a instituição escravista passou a
escrava de plantação, se o chefe assim tivesse existir a partir do tráfico. Hoje, muitos
escolhido. Em vez disso, ela se tornou uma esposa historiadores dizem que os africanos praticavam
sem plenos direitos. uma escravidão de parentesco [kinship slaveryì
em períodos anteriores, e mudaram para as
Este caso ilustra que a escravidão era apenas
formas comercializadas de escravidão com a vinda
uma entre outras condições relatadas. A mulher
do tráfrco.
em questão era uma esposa, não uma escrava,
mas uma esposa sem plenos direitos. Ela Suzanne Miers e Igor Kopytoff, em importante
facilmente poderia ter se tornado uma escrava de tentativa de criar uma interpretação cultural
pÌantação, e também poderia ter se tornado uma específica das formas de escravidão no continente
mulher com plenos direitos se ela tivesse se africano O977), compararam a "escravo" (sempre
casado em casa e seus irmãos ou pai tivessem em aspas simples em seu ensaio) a uma pessoa
recebido um dote lbridewealth] como pagamento. que passou da fase liminar num rito de passagem.
Um observador social onisciente estaria apto para Em tal rito o iniciado é separado de uma condição
organizar estas diferentes condições dentro da social no primeiro estágio, então passa ao estágio
gama mais geral de condições que uma mulher de liminaridade [IiminaÌity] ou de transição, e
poderia ter, como um mapa sociaÌ. Mas se tais Íinalmente é reintegrado na sociedade em uma
condições são vistas do ponto de vista da mulher nova condição social. Miers e Kopytoff
daquele período, para quem as ditas condições desenharam um panorama sociaÌ ocupado por
eram possibilidades de escolha de vida, é claro numerosas linhagens. As vezes os indivíduos se
que eles representariam um desafio: como desprendem de todas as linhagens, como
negociar de modo a se tornar uma mulher sem prisioneiros de guerra, ou no caso de uma criança
direitos ao invós de uma escrava, ou mais ainda, para quem não há comida o bastante em sua
se tornar uma mulher com plenos direitos. linhagem, e cujos direitos são transferidos para
outra linhagem. Estes são os "escravos",

I)
"estranhos em um novo grupo" (1977, p.15). Miers ser suplantada no interior da Africa peÌa
e Kopytoff não apresentam a "escravidão" como escravidão da plantation As instituições que
uma condição permanente, mas uma fase entre o apareciam centrais para Miers e Kopytoff eram
estágio finaÌ de sua reincorporação total como um insignificantes para Lovejoy. Apenas um tipo de
ser socialmente pleno em sua nova linhagem. escravidão era historicamente importante em seu
ponto de vista, e esta era a escravidão no centro
De acordo com esta interpretação é um erro ver os do sistema de produção, como no caso das
"escravos" como bens ou propriedade, exceto no plantations. Ele deu grande ênfase no limitado
extremo final de um continnum de formas sociais. número de lugares e tempos na história africana:
Nem tod.os os "escravos" na África podiam ser no Sudão ocidentaÌ que tinha sua produção
vendidos. "Escravidão", segundo Miers e Kopytoff, baseada no trabalho escravo, em uma época
precisa ser compreendida como um exemplo de antiga, no SaheÌ no século XIX, quando a
um sistema mais vasto no quaÌ as linhagens população local estava buscando usos para os
transferem os direitos das pessoas. Um exempÌo escravos que anteriormente eram vendidos no
óbvio disso foi o do dote [bridewealth], o comércio atlântico, e em um Ìimitado número de
pagamento feito pela linhagem do marido para outros lugares.
adquirir direitos sobre o trabalho da mulher e sua
capacidade de gerar frÌhos. Meillassoux, em AnthropoÌogie De L'EscÌavage
(1986), se junta ao ataque à escravidão de
Kopytoff retorna a este assunto em um ensaio parentesco [kinship slaveryJ, mas a partir de
sobre o fim da escravidão (1SAA)para argumentar outros fundamentos. EIe argumenta que a
que quando a escravidão terminou, depois da escravidão não pode ser interpretada como uma
conquista coloniaÌ, os escravos não extensão do parentesco ou um status de
experimentaram a alforria como "liberdade". descendência, como Miers e Kipytoffy gostariam
Desde que a escravidão era uma condição que fosse, porque a escravidão está fora das
dependente em um continuum de condições de relações de parentescoi de fato ela é "anti-
subordinação, cada um dos antigos escravos parentesco". Os maiores estudiosos da escravidão
estava interessado em aÌcançar uma condição enfatizam a condição do escravo como a de um
diferente e melhor de subordinação - não a estranho [outsider], sem direitos públicos como
"Iiberdade". pessoa. O escravo deve ser representado no
mundo público pelo seu senhor. O escravo não
Numerosos historiadores africanos submeteram o
pode negociar uma posição em um amplo sistema
argumento de Miers e Kopytoffo a uma intensa
de parentesco em seu próprio direito. Orlando
crítica. A maior reclamação era a de que se
Patterson (1982) descreveu esta condição como
baseava numa definição espacial que igualava as
"alienação natal"i Moses Finley (1968) a viu como
fronteiras das instituições históricas às das
central para a defrnição da condição do escravo.
fronteiras dos continentesl a "escravidão" africana
existiu na África e a escravid.ão americana nas Esta discussão recorda o importante, porém não
Américas. Isto não era assim. As plantations pubÌicado trabaiho de Franz Steiner, como
escravistas de modelo americano foram relatado por Paul Bohannan. Segundo Bohannan,
transportadas para a África nos últimos dias do
comércio escravo. Frederick Cooper Ígll) Pode'sedizer que um relacionamentoservil
escreveu um excelente livro sobre a pÌantation existe quando uma pessoa tem direitos
escravista na África oriental, em um Iegais sobreuma outra, se estes direitos são
estabelecimento onde os senhores dos escravos mantidos com a exclusãoda outra pessoae
eram árabes que utilizavam as Ìeis islâmicas païa não derivam de qualquer obrigação
contratual ou de parentesco.Os direitos do
regular as reÌações entre escravos e senhores.l8
senhor sobre o escravo são direitos legais,
PauÌ Lovejoy (1979) também mostrou que as não derivadosde parentescoou de contrato,
plantations escravistas passaram afazer parte da que excluem todas as outras pessoas de
cena africana, neste caso no norte da Nigéria, com direitossimilares(1963,p.179).
os africanos sendo os proprietários dos escravos.
Bohannan aceita a idéia de que a escravidão é
Para Lovejoy (1983), a escravidão de linhagem apenas um entre muitos modos através dos quais
lkinship slaveryì descrita por Miers e Koptoff era uma pessoa pode ter seus direitos tomados por
Ìimitada não somente no espaço, mas também no uma outra, mas mostra como este modo é
tempo. EIa era uma forma inicial e diferente dos outros, em três fundamentos.
crescentemente marginal de escravidão que veio a Primeiro apenas um único indiúduo, o senhor,

t6
detém direitos sobre o escravo. Dentro do domínio eram feitas através de um complexo processo de
do parentescoé possível que duas pessoaspossam negociação, no qual, os fatores de parentesco
dividir os direitos sobre um único indivíduo, como tinham um papel.
no caso de uma mulher casada em muitas
sociedades africanas sujeita a ter os direitos Algumas das mais importantes zonas de origem
tomados por seu esposo ou por seu pai e irmãos. dos escravos estão fora do alcance das anáIises de
No caso do escravo, apenas o mestre detém Meillassoux porque elas não utilizavam o
direitos sobre ele. Segundo, a pessoa que detém os trabalho escravo de um modo sistemático. A
direitos não pode fazê-Ìo sob uma base contratual. Ibolândia, por exemplo, era uma grande fonte de
Quando uma equipe esportiva americana detém escravos para as Américas, e ainda sim o trabalho
os direitos sobre um jogador (direitos que escravo era insignificante em muitas partes desta
permitem sua venda), isto só pode ser feito sobre regiãoi formas anteriores de organização
bases contratuais. Finalmente, os direitos sobre permaneceram (Northrup 1981). Regiões
um escravo não derivam de qualquer forma de produtoras de escravos não necessariamente
obrigações de parentesco. precisavam basear suas economias em trabalho
escravo. Estas regiões eram capazes de produzir
Meillassoux vai mais Ìonge e argumenta que é escravos para o mercando internacional através
melhor não definir a escravidão em termos de um processo socialmente negociado, embora a
direitos legais sobre uma pessoa; que o mais maior parte dos dependentes nas sociedades
importante é o contexto institucional da locais sustentem condições sociais definidas em
escravidão em meio ao mercado de escravos e às termo de parentesco e descendência.
guerras de captura. Escravidão, mercado e
violência estavam necessariamente conectados Para ver porque isto foi assim, gostaria de olhar
um ao outro em um único únculo. Isto conduz a brevemente para a vida de uma única "escrava",
um segundo sentido, a compreensão da escravidão contada a nós em suas próprias palavras e
como "anti-parentesco": a escravidão não estava apresentada aos historiadores por Márcia Wright
conectada com reprodução. O trabalho de escravo (1975, 1884). Esta é Narwimba, uma mulher que
era barato nas plantações americanas (ou nas viveu na região entre o Lago Tanganica e o Lago
africanas) porque os proprietários não pagavam Niasa, perto da fronteira do que é hoje a
os custos da criação de crianças. O trabalho Tanzânia e a Zàmbía. O período da história de
escravo era suprido e não reproduzidoi ele era Narwimba, década de 80 e o começo da década de
adquirido, em última instância, por atos de 90 do século XIX, foi um tempo de grande
violência, por furto. O roubo baseado em um agitação na região, um tempo no qual escravos
sistema espacial incluía as sociedades que eram capturados e utilizados localmente, e no
usavam escravos [slave-using societies], a qual alguns eram enviados para plantações da
organização do mercado, e as sociedades das costa leste africana.
quais os escravos eram roubados.
Este foi um período de grande dificuldade para
IJma vez que a produção barata e violenta de Narwimba, começando com a morte de seu esposo
força de trabalho era utilizada para tudo, o em 1880, aproximadamente. Neste momento de
processo de reintegração dos escravos nas sua vida Narwimba foi feita cativa por soldados
relações de parentesco (um processo que está no de um chefe estrangeiro sendo oferecida à venda
centro da anáÌise de Miers e Kopytoff) não era para mercadores de escravos. Ela escapou, mas
relevante. Ao dizer isto, Meillassoux subestima a viveu tempo bastante para ver sua neta ser feita
importância das formas de dependência escrava cativa e depois libertada em duas ocasiões
lsÌavelike forms of dependency]. pte faz rsso diferentes. Narwimba viveu durante a transição
poïque focalíza exclusivamente na violenta para o governo colonial e, nos últimos tempos,
apropriaçãoi ele não expÌora a possibilidade de passou a viver com seu fllho que tinha sido
que uma sutiÌ negociação pode levar à convertido ao Cristianismo pelos missionários.
escravização. Em sua visão, as zonas de origem
dos escravos não os utilizavam na produção, e, Este período foi de intenso perigo e luta para
portanto, não tinham escravos para oferecer païa Narwimba, grande parte dos quais promovidos
venda, exceto os cativos obtidos por saÌteadores pelo violento roubo de pessoas destinadas ao
que atacavam de forma aleatória. Meillassoux comércio escravo. Todas as estratégias de
não considera a possibilidade de que as escolhas Narwimba mostram o quão importante ela
dos escravos dentro de sociedades produtoras pensava ser a sua marginalização dos termos de
parentesco, e buscar uma ligação com um protetor

t7
masculino, preferencialmente em um (mais a frente na história) como a mãe de uma
relacionamento estabelecido por um casamento filha adulta.
com dote [bridewealth]. Podemos ver isso em
diversos momentos importantes. Depois da morte No tempo de Narwimba, a escravização por meio
do esposo de Narwimba, um dos parentes de seu de um roubo violento foi se tornado cada vez mais
marido a visitou e decidiu se casar com ela. freqüente. Neste ponto MeiÌIassoux está correto.
Narwimba, em seu relato disse: "e eu, de minha E se tornava freqüente dentro de um contexto
parte, implorei a ele para me tomar com sua onde havia espaço de manobra para Narwimba.
esposa, então assim nós poderíamos estar Ela pôde se proteger por um longo tempo a partir
protegidas (Wright 1984, p.2). Sem a proteção da negociação de um espaço dentro de um sistema
dele, ela ficaria muito mais vulnerável. A filha de de parentesco de dominação masculina.
Narwimba formou uma residência com um
homem que não pagou o dote [brideweaÌth]. A escravidão pode não ter sido compatível com o
Talvez, ela tenha achado que sua ligação parentesco, mas eÌa existiu dentro de um contexto
irregular fosse necessária devido a debilidade da no qual as alternativas à escravização eram
posição social de sua mãe. De qualquer modo, a alternativas de parentesco, onde o caráter da
fiIha nascida desta união pertencia a casa do captura e comercialízação do escravo era
chefe. Seu pai não tinha direitos sobre ela, uma determinado pelas relações das redes de
vez que, não pagou o dote lbridewealthì para a parentesco. O caráter do reÌacionamento entre
sua mãe. O resultado disso foi que a neta de senhor e escravo, neste caso, foi definido pela
Narwimba, Musamarire, era um membro existência de outras formas de dependência
vulnerável da casa do chefe. Em uma ocasião, concomitantes a escravidão. A existência de
quando a diplomacia requisitou que o chefe desse parentescos e gêneros alternativos à escravidão
uma pessoa para mantet a paz, ele se propôs a moldou a luta entre Narwimba e os potenciais
dar Musamarire. Ao invés disso, Narwimba fugiu senhores de escravo que poderiam tomar o
com ela. Em outra ocasião a neta foi capturada controle dela ou de sua neta.le
novamente, em uma disputa sobre uma dívida.
O caso de Narwimba mostra, aiém disso, que na
Nota-se aqui a mudança no ponto de vista. Miers que na medida em que as tradições locais de
e Kopytoff definem as linhagens como agentes de dependência tiveram efeito sobre a plantation
reintegração das pessoas marginais. No meu escrava africana, a introdução da escravidão teve
entender, as linhagens não agem, são as pessoas um profundo impacto sobre outras formas de
que atuam. Nos anos que se passaram desde o dependência. Narwimba estava claramente
Ìivro de Miers e Kopytoff surgiram críticas determinada a aceitar a possibilidade da extrema
radicais sobre o conceito de linhagem como agente e relativamente brutal subordinação no
(Guyer 198li Kuper 1982). Se os intelectuais casamento porque este, mesmo sob estas
tratavam a linhagem como uma unidade condições, era uma proteção contra a escravidão.
funcionaÌ, eles se esquivavam das diferenças A capacidade de uma mulher de resistir a um
entre direitos e obrigações, privilégios e deveres marido violento era, sem dúvida, superior na
dos diferentes membros da linhagem. Ações que geração da mãe de Narwimba, antes do comércio
servem ao interesse do homem mais velho em escravo representar um extremo perigo. Para
uma linhagem podem prejudicar os interesses de compreender o comércio escravo neste contexto
uma muÌher, ou de um jovem homem. Direitos de particular, precisamos compreender as tradições
propriedade mantidos por uma linhagem como locais de dependência, o lugar destas na
um grupo não, necessariamente, servem homens configuração das dinâmicas internas da
e mulheres, ou velhas e jovens mulheres, escravidão, e então o lugar da escravidão na
igualmente. No presente caso, os interesses, configuração dos padrões locais de parentesco.
particuÌarmente de base masculina, podem,
hipoteticamente, ter servido para deixar a neta de Nos anos de 1950, décadas depois da morte de
Narwimba ir. A avó teve que agir em um Narwimba, debates em Shambaai (não muito
ambiente dificil para concretizar os eventos. Seus longe da costa leste africana) exploraram o
principais objetivos eram encontrar uma proteção significado da escravidão e da liberdade. Julius
masculina e resgatar aqueles a quem amava da Nyerere compareceu a uma reunião local para
requerer que à Tanganica fosse dado Uhuru - a
escravidão. EIa não se guiou pela preocupação da
integridade da linhagem, mas pela necessidade de Liberdade. Esta é uma palavra que sempïe
encontrar uma posição segura como mulher ou aparece nos textos históricos em swahili das
escolas coloniais. Os livros escolares ensinavam

18
que os africanos tinham praticado a escravidão e história de Narwimba. Suas histórias políticas
que o governo colonial trouxe o uhuru. Nyerere foram elaboradas segundo a compreensão de que
lembrava aos povos locais esta associação para a integridade do Kyungu (do chefe) e a saúde
argumentar que o governo colonial era uma nova social moldam as condições básicas de harmonra e
forma de escravidão, e que o uhuru não foi em de prosperidade das terras que lhe pertence.
nenhum momento algo que pudesse ser dado ao Havia uma associação entre a saúde fisica lo
povo pelos seus governantes. Que teria que ser Kyungu e o bem-estar de seus domínios. Se ur
conquistado por eles mesmos. Os camponesesque gota de seu sangue caísse no chão era sinal de que
escutaram isto se Ìembraram da "escravidão" nos toda sua terra poderia sofrer com fome e doenças.
termos da linhagem, como a condição de pessoas a menos que ele fosse morto. Havia também urna
marginais (como Narwimba) sujeitas ao controle associaçãoentre o incontestado domínio sexual do
arbitrário. Os camponeses locais, homens e Kyungu dentro de sua casa e o vigor de seu
mulheres, começaram a argumentar que a domínio político. De acordo com algumas
"escravidão" ainda sobrevivia não somente no tradições, nas primeiras gerações, a maioria dos
controÌe exercido pelos britânicos sobre os filhos do Kyungu foram mortos porque o povo
africanos, como Nyerere tinha dito, mas também ngonde "temia que, se o Kyungu tivesse muitos
no controÌe exercido pelos chefes sobre seus fiÌhos [vivos], eles poderiam seduzir as esposas de
súditos, pelos homens idosos sobre os jovens seu pai trazendo doença para Kyungu e seu país"
homens, e pelos homens sobre as mulheres. Eles (Wilson 1939, p.13). Na comunidade ngonde,
pediam que uhuru, agora entendido como assim como em outras partes daquela região, o
"manumissão", fosse empregado para subverter adultério praticado com a mulher do chefe era um
todas as formas centrais de hierarquia social ato de guerra ou de alta traição.2o Entre os
(Feierman 1990, pp.2l2 -14; e 219-2ü. nobres, também, encontra-se essa expressão na
prática do casamento. Um chefe pagava e recebia
Ao descrever a luta de Narwimba como tendo sido
dotes lbridewealth] mais altos que um indivíduo
impulsionada pelo comércio internacional de
comum lcommoner].
escravos, mas enraizada nas formas sociais locais,
não se rompe inteiramente com a estrutura da Uma pessoa local, tentando dar sentido a vida de
narrativa européia. O problema, claro, é que Narwimba, pode bem ter entendido isto dentro do
neste relato as forças centrais que transformaram contexto do casamento como uma gama de formas
a vida de Narwimba têm origem na cena que expressam os graus do domínio político.
internacional e na história do capitalismo. Isto Narwimba e seus parentes mais próximos, por
não é como os contemporâneos de Narwimba na muito de suas vidas, teriam praticado formas de
Áfri"a central enxergavam as coisas. EIes casamento, as quais eram muito humildes quando
poderiam ter posto os eventos da vida deÌa dentro vistas dentro de uma ampla hierarquia. O
de um contexto de narrativas de grupos tamanho do pagamento do dote [bridewealth]
lingüísticos individuais, ou narrativas de expressava a classe e a Íilha de Narwimba se
distribuição geral entre regiões dos povos falantes casou completamente sem dote [bridewealth].
de bantu. Muito provavelmente estas narrativas
não teriam atribuído um papel importante ao Muitos historiadores universitários poderiam
comércio internacional e a uma economra focar contextos completamente diferentes da vida
centrada na Europa. de Narwimba, como temos visto. EIes poderiam
prestar significativa atenção à história do
Quando criança, Narwimba fugiu com sua família comércio. Deste ponto de vista, o evento mais
dos ataques dos soldados de Ngoni e encontrou significativo seria a abertura do comércio ngonde
refúgio com o Kyungu (o chefe principal) da para o Oceano Índico. Esta mudança importante
comunidade Ngonde. Foi o Kyungu que surgiu como resultado da reorientação do
determinou que um parente de seu esposo morto comércio de marfim de Kyungu para o leste
se casasse com ela. As narrativas ngonde das (atravessando o Lago Malawi). A mudança para o
terras de Kyungu (ou as ngoni de outras regiões) Ìeste estava associada com a mudança
oferecem aos historiadores alternativas para as fundamental na constituição política, em torno do
narrativas eurocêntricas, alternativas próximas crescimento da autoridade secular. As próprias
da vida e da linguagem de Narwimba. narrativas ngonde, contudo, não indicam um
Ìugar central para a história do comércio como
As histórias ngonde permaneceram verdadeiras
fazem os historiadores universitários. Godfrey
em seus próprios princípios na construção da
Wilson, que estudou estas tradições orais nos

l9
anos da década de 1930, queixa-se que rars dentro da política regional de casamentos e
tradições só lhe permitiram vislumbrar as trocas dependôncia que eles utilizavam para a
comerciais importantes (Wilson 1g89, p.18). Em construção de novas formas de Estado.21
vez disso, as tradições relatadas peÌos homens
mais velhos ngonde descreviam mudanças O estudo da história africana nos leva para além
constitucionais com sendo ocasionadas por das formas de representação histórica, nas quais,
casamentospolíticos cruciais (Wilson 198g, pp.l2- a energia que conduz a narrativa tem sua origem
18). De acordo com a própria narrativa do na Europa, enquanto a história africana (ou
Kyungu, como contada a Wilson, a mudança em latino'americana) fornece uma cor locaÌ,
direção ao leste no comércio ocorreu quando um estabelecendo um cenário pitoresco para o drama
dos primeiros Kyungu "encontrou o lago central. Não há outro modo de se entender a
atravessando-o até chegar em Mwela [a terra dos história de Narwimba sem que se penetre
canoeiros Mwela] onde casou-se com uma mulher profundamente nas raízes da longa história do
mapunda" (Wilson 1939, p.18). desenvolvimento das formas sociais na África. De
que modo os povos estabeleciam relações de
Então, os historiadores ngonde, podem facilmente dependência? Como a autoridade era instituída?
ter entendido a história de Narwimba como uma
Quais eram os idiomas de poder nas histórias
parte menor e humiÌde da ampla história na qual regionais da África? Tudo o que sabemos sobre o
a classe e a mudança política são formadas por estudo da história nos diz que não podemos
casamentos. Para estes historiadores o comércio compreender algo tão complexo quanto os idiomas
atlântico de escravos teria surgido païa ser de poder sem estudar suas variações no espaço e
distante, e, de fato, completamente irrelevante. suas histórias no tempo. As narrativas africanas
Os demais historiadores que escolheram se devem carregar seus pesos totais.
debruçar sobre o comércio atlântico de escravo ou
sobre o surgimento do capitalismo precisam A busca por narrativas africanas revela que eÌas
explicar porque este contexto é privilegiado, são múItiplas. E poderia ser um engano dar um
porque a vida de Narwimba deve ser explicada Iugar privilegiado para as narrativas reais ngoni,
deste modo e não em relação à história pessoal ou a narrativa de Kyungu, ou para aqueÌas dos
dos Kyungus e seus casamentos. nobres ngonde. Não existe razão para que elas
tenham grande peso, ou sejam privilegiadas em
Os historiadores europeus ou americanos bem detrimento dos relatos de Narwimbai não há
poderiam argumentar que a história ngonde é motivos para que as palavras rituais de Kyungu
Iocal e a história do capitalismo é giobal - que se tenham mais valor que as palavras rituais de
queremos compreender os eventos segundo uma uma súdita.
larga escala devemos associá-los a narrativa
européia. De fato, os processos históricos Cada uma das diversas narrativas africanas
africanos não são tão minuciosamente locaÌizados. carrega as marcas de sua própria história,
AÌgumas interelações entre gônero, descendência incluindo a história do relacionamento com a
e cÌasse estão amplamente distribuídas, e elas Europa. Em Ruanda, por exemplo, Joseph
podem ser estudadas utilizando ferramentas Rwabukumba e Aléxis Kagame, intelectuais
histórico-lingüísticas e histórico-etnográficas ruandenses, tem escrito histórias do reino a
comparativas. AÌguns dos eventos da história da partir de uma extensa coÌeção de tradições orais
vida de Narwimba estavam encaixados nos locais. Eles pegam variedades do conhecimento
movimentos históricos de enorme extensão. Bem Iocal que eram feitos para ser separados e
no início da história, poï exempÌo, ocorreu o secretos ubwiiru como um código ritual
ataque ngoni que expropriou sua famíÌia. Os dinástico, por exemplo - e fazem um registro
ngoni, naquele tempo, eram a nova presença na escrito deles comparando-os com outras tradições
sociedade centro africana. Cada estado ngoni era para, desse modo, construir uma narrativa geral.
organizado por um grupo dominante, os quais, se Os historiadores orais ruandenses do século XIX
originaram no Sul da Africa, a mais de mil milhas tinham mótodos para fazer comparações críticas
de distância, nas guerras entorno da criação do das tradições, mas elas não eram as mesmas
reino Zulu. Os pequenos bandos de homens técnicas de Kagame. Tampouco as histórias orais
armados ngoni tomaram esposas e crianças como teriam encontrado um espaço fácil, como fez
cativos para construir Estados de rápido Kagame, dentro de um quadro geral do
desenvolvimento lsnowbail states]. Estes conhecimento histórico criado entre os
também, assim como os Kyungu, operavam acadêmicos de fora de Ruanda.22 Kagame e

20
Rwabukumba são historiadores ruandenses,
utilizando materiais ruandenses, escrevendo foram considerados, naquele momento, como estudantes de
dentro de um gênero criado na Europa. história da Africa.
Ì McNeill 1963, pp.242'43. McNeiiI continuou seus estudos

A tarefa de encontrar narrativas puramente seguindo novas direções depois de The Rise of the West.
PÌagues and Peoples (1976) não reduz toda a história mundiaÌ
africanas não é fácil se voltarmos nossa atenção ao destino de algumas civilizações centrais. The Human
dos intelectuais universitários para os Condition (1980) recapitula alguns dos principais temas do
camponeses.Em Ruanda sob o controle dos beÌgas Ìivro de 1963, mas com importantes mudanças de ênfase se
e Tanganica sob o controle inglês, as autoridades afastando do unidirecionamento. Em Polyethnicíty and
National Unity ín World Hìstory (t98S), McNeilI deixa claro
coloniais governaïam através dos chefes africanos que os centros dos grandes impérios atraíram pessoas de uma
somente para construir sobre o que, nas palavras ampla diversidade de origens. "O resultado... foi uma mistura
de um governador britânico, era a "Iealdade e étnica e um pluralismo em grande escala" (McNeill, 1985,
'livre respeito"' dos súditos pelos seus chefes. O D. _tD/.
3 Uma nova pesquisa sobre o primerro pastorialismo é descrita
efeito foi lançar os debates dos camponeses sobre por Wendorf, C Ìose, e S chi Ìd 1987, e B ow er 1991, pp.56-5?.
a política colonial nos termos das antigas formas Sobre as origens da agricultura, ver HarÌan, DeWet, e StemÌer
do discurso político. Quando as histórias orais das 1976,e C l ark e B randt 1984.
a Sobre as origens indígenas nos reinos dos lagos do oriente
dinastias receberam as marcas da dominação
africano, ver Schmidt 1978; Tantala 1g8gi Schoenburn 1gg0i
colonial, historiadores orais dissidentes Berger 1981i Karugire lg71; e Centre de Civilisation
responderam com buscas fora das histórias anti- Burundaise 1981. Reefe (1981) escreveu sobre o Império Luba.
dinásticas em seu próprio passado (no caso d.e Sobre as origens indígenas do Zimbábue, ver GarÌake lg?B e
Tanganica) histórias de regicídios nos livros de 1978. Henrika KukÌick (1991) descreve a interação das
poÌíticas raciais e das pesquisas arqueológicas que levaram às
história Inglesa (Feierman 1990; Newbury 1988). primeiras interpretações do Zimbábue com estranhos à África.
Martin Hall (1987) fornece uma síntese geral do conhecimento
Estamos então deixados com uma questão ampla, arqueoÌógico sobre o relacionamento entre a organização
com narrativas históricas de origem africana que política e a economia para âs regiões meridionais da África.
precisam receber o devido peso ao lado das Graham Connah Q987) faz o mesmo para toda a África. para
uma história geral, ver Curtin, Feierman, Thompson e
narrativas européias. Temos visto, entretanto, V ansi na 1978.
que este não é um processo simpÌes de inclusão de 5 Sobre os Annales, ver Burke 1990i Stoianovich lg76;
mais um conjunto de conhecimentos para nosso Chartier 1988.
6 Eu não estou sugerindo que todos os africanistas ìeram
fundo, do aumento do equilíbrio no relato. Os
Braudel. Esta influência pode ter ocorrido indireramenre,
historiadores precisam escutar as vozes africanas quando os africanistas liam e discutiam o trabalho dos seus
com o mesmo impulso com que buscam ouvir as colegas europeus.
vozes que foram silenciadas dentro da historia ? Braudel não cita muitos trabalhos sobre a África
escritos por
européia. IJma vez que é tão dificil satisfazer-se inteìectuais modernos. Mais de um terço das citações sobre a
África neste volume se referem a um trabalho de 1728,
em ouvir uma única voz africana autoritária editado por Father Labat_ que sequer visitou o continente
deixando outras silenciadas, ou ler rextos africanoi as descrições da Africa são de André Brue que viveu
africanos sem reconhecer marcas de poder, ou no Senegal no final do século XVII e inicio do século XVIII
(Nouvelle Bíographie Générale, vol.28 [Paris: Frimin Didot
sem questionar a autoridade do historiador
(africano, americano, europeu ou asiático) que Frères, 18591, pp.333-3õ; Dictionnaire de Biogaphie
Françaíse, vol. 7 [Paris: Libraire letouzey, 19561,p.a73).
presume para representar a história. Os 8 A literatura sobre esses assuntos inclui centenas
de livros e
historiadores não têm escolha senão dar espaço artigos. Para uma discussão sobre as raízes africanas dos
na história mundial para a história africana, mas notáveis em um centro de saber islâmico, ver Saad 1983. Para
rnteressantes estudos de casos locais ver Roberts 198T e
ao ter feito isto, os historiadores descobriram que Bathily 1989. Um interessante estudo de caso regionaÌ nos é
os seus problemas apenas começaram. dado por Last, 1985. Para um quadro geral da historia
econômica de Africa ocidental, ver Hopkins 1973i para as
últimas literaturas sobre esse assunto, ver Austen 198?. A
I A afirmação sobre a inexistência de história economia Ìocal baseada em formas islâmicas de atuaçào sào
afrrcana em
Berkeley é baseada no Bulletin: General Catalogue... (vet discutidas em Hanson 1990.
Ír Sobre a organização e desenvolvimento do comércio pré-
Califórnia, Universidade da, Ì95b). A afirmaçãã sobre a
Universidade de Chicago é baseada no Announcements: coÌonial, ver Northrup 1978, e Ukwu lg6?. Northrup é
Graduate Programs... (ver Chicago, Universidade de, 1956). A também uma fonte sobre a densidade populacionaÌ (1gT8,
p.13). Para uma interpretação sofisticada da organização
afirmação sobre CoÌumbia é baseada nas memórias de minha
pesquisa sobre os historiadores africanos em 1g60, quando eu sociaÌ e cultural lbo do período pré-coìonial, ver Afigbo lg8l.
estavâ na graduação. A afirmação sobre Princeton é baseada Sobre a exportação do óÌeo de paÌma verificar Dike 1g56.
em comunicação pessoal de Robert Tignor. A observação sobre Sobre o início do comércio de longa distância, ver Shaw l9?0 e
os chefes de departamento é descrita em Perkins e SneÌl 1g62, 1975. A Ìiteratura sobre a lbolândia é enorme, a região é
p.32. E provável que houvesse um número de graduandos praticamente um sub-campo separado da história africana.
trabalhando com a historia do Egito e do Magrebe que não Para aìguns dos importantes eventos do século XX, ver Susan
Marti n 1988.

2l
r0 Janzen 1982, pp.28 e 32i alguns dos
trabaÌhos mais obter a capacidade para a reprodução social. A forma do atual
rmportantes da reconstrução da história do comércio foram sistemâ escravo emerge deste conflito.
feitos por Phyllis Martin 1972. 20 Wilson descreve a classificação dos pagamentos
t t W olf 1 9 8 2 , p . 1 0 0 . P a r a u m a e xce le n te dos dotes
cr ítica d e sta p a r te do lbridewealth] (1939, p.44). Sobre o adultério com a mulher do
trabalho de Wolf, ver Asad 1987. chefe como um ato de guerra entre os bemba, ver Roberts
tz MichaeÌ Taussig diz algo parecido em um
ensaio (1ggg), mas 1973, pp.4l'42, 107n., 122, r40, 143, 167,237,250 e 268.
seu extravagante e difuso estiÌo literário, aìgumas vezes, 2r Sobre os ngoni nesta região ver Barnes lg54i
Fraser lg70j
dificuÌta a compreensão do que ele diz. O próprio Taussig ElmsÌie 1970. Spear 1969 nos oferece um guia de fontes.
parece, por vezes, cair dentro de uma compreensão da cultura 22 K agane 1972, 1975, e 1981; R w abukumba
e Mudanda gi z i
capitalista na qual todas as forma Ìocais são, porém, 1974. Ver também Vansina 1962i Coupez e Kamanzi 1962i e
expressções de caracteríticas universais. EIe escreve sobre o V ansi na 1985, pp. 38 e 86.
"acopÌamento e o desacoplamente da reificaçào como
fetichização" enquanto "a base da cuÌtura capitalista', -
cÌaramente um argumento totalizante (1g8g, p.g).
t3 A história oral, como uma prática entre Referências:
os africanrsras, rcve
significante influência entre os historiadores europeus (ver
Stock 1983; Cìanchy 1979). E importante notar, entretanto, Para as referências consulte versão original do
que o africanista que teve maior influência entre eles foi Jack artigo.
Goody, que não é um historiador, e que não utilizou a tradição
oraÌ para o propósito da reconstrução da critica histórica. Não
africanistas leram Goody porque é possível compreender seu
argumento sem ter que possuir um substantivo conhecimento
sobre história da Africa.
rr Bein a r t e B u n d y 1 9 8 7i Be r r y 1 g 8 5 i
Ch a n o ck lg g b i Co h e n e
Atieno-Odhiambo 1989; Cooper 1987i Coquery-Vidrovitch
1988i Crummey 1986; Elphick 1977; Hay e Wright 1982; Itiffe
1979i K a n o g o 1 9 8 7 ; K a r p 1 9 7 8 i Ke a 1 9 8 6 ; Kim a m b o 1 9 91;
Kitching 1980j Lan 1985i l-emarchand 1970i MandaÌa 1990i
Mbem b e 1 9 9 l i M c C a n n 1 9 8 7 i M o o r e 1 9 8 6 i Ne wb u r y 1 9 gg;
Packard 1989i Prins 1980i Ranger 198bb; Robertson 19g.1j
S c hmid t 1 9 9 2 ; S t r o b e l 19 ? 9 ; Va il 1 9 8 0 i Va n On se le n 1 9g2i
Vinc en t 1 9 8 1 ;W a t t s 1 9 83 ; Wh ite 1 9 9 0 .
15 Sobre o relacionamento entre a crise
intelectual geraÌ e o
fim do império, ver Robert Young, White Mythologies: Writine
History and the [/est (1990), que ârgumenta que a crisá
intelectual francesa foi precipitada pela perda da ArgéÌia e
não pelos eventos de 1968. Sobre o lugar do Outro, ver Fabian
1983; Mudimbe 1988; e Said l9?9. Para aÌguma discussão
sobre etnocentrismo, história e categorias intelectuais, ver
lév i-S t r a u s s 1 9 6 2 , p p .3 2 4 - 6 0 i De r r id a 1 9 7 8 , p p .2 ? 8 .93;
Derrida 1971, pp.244-15. Foucault, com certeza, enconrrou o
outro dentro da sociedade européia, em seu estudo sobre a
Ìoucura.
16Para uma análise elegante deste assunto
nos escritos de um
novelista americano branco, ver Morrison 1gT2.
r; Para dois dos muitos exemplos possíveis
de bons trabalhos
históricos que visam dar igual peso, tanto para o níveÌ local,
quanto para o regional, ver Harms 1981 e EwaÌd 19g0.
r8 Uma década depois, Abdul Sheriff (1g87)
coÌocou esras
plantations mais firmemente na história da economia da
reglão.
re Glassman (1991, 1988) fez uma argumentação
similar sobre
o setor de plantation na costa Ìesta africana - a regiào para a
qual Narwimba teria sido Ìevada se ela tivesse sido vendida.
Ele mostra que não há uma única categoria de ,,escravo,,,mas
múÌtipÌos status dependentes, incìuindo escravos artesãos
urbanos e escravos de caravanas de comércio, com diferentes
níveis de capacidade de se comprometer com a reprodução
sociaÌ. O conflito entre escravos e mestres envolvia
manipuÌação de possibiÌidades alternativas. Diferente da
escravidão caribenha, na quaÌ os escravos não
compartilhavam uma experiência comum com seus senhores,
as formas africanas de escravidão originaram-se fora dos
primeiros sistemas de dependência pessoal. Senhores que
desejavam aumentar a produção econômica utilizando o
trabaÌho escravo tentavam reduzir as oportunidades escravas
para reprodução sociali os escravos por sua vez resistiam
através da manipulação de veÌhas ideoÌogias na tentativa de

22

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