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17Esta revista não tem um

nome. Suas páginas não


possuem imagens. Ainda
assim, carregam textos de
pessoas que trabalham
com artes visuais. E eu a
distribuo nas ruas. Eis sua
décima sétima edição.
Micr
no
fluxo
do
dispo
grup
rointerferências

ositivo
pal Quais as ferramentas disponíveis para sacudir certezas
estéticas e instaurar um plano mais coletivo de
criação no contexto de um curso de arte? De modo
a endereçar também contradições e ver brotar o
inesperado – e digo com isso, também dxs / para xs
professores? Aprendendo de ferramentas do teatro
e dos movimentos sociais nos últimos anos percebo
como é imprescindível por pra valer x corpx. Colocar x
corpx “em jogo” ensina a deixar x corpx mais despertx,
insubmissx e compositivx. Esse parece um passo
fundamental, a que se complementam mais outros.

Abordo a seguir uma experiência artística que


também é fruto do meu interesse crescente pelas
práticas pedagógicas nos últimos anos. Esta proposta
se deu em paralelo a uma pesquisa sobre os jogos
do método do Teatro do oprimido (lendo livros e
participando de oficinas no Centro do Teatro do
Oprimido da Lapa, no Rio de Janeiro¹). Foi realizada
com um grupo de professores e alunxs do curso
Desilha – aula que frequentei como aluno de mestrado
– no Programa de Pós-Graduação em Arte Visuais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ),
durante o segundo semestre de 2017.

Os jogos que trago aqui são adaptações de jogos como


descritos por Augusto Boal (criador do método do Teatro
do Oprimido) e/ou em oficinas de Teatro do Oprimido que
participei. É comum encontrar diversas versões e variações
para os mesmos jogos por Boal e por continuadores de
seu trabalho ao longo dos anos. Como explicito a seguir,
eu estava seguindo apenas as etapas iniciais do Teatro do
Oprimido, pois não entramos na parte mais detalhada da
análise das opressões com o grupo e/ou o trabalho coletivo
de construção de uma peça para um público.

Desilha é um grupo de pesquisa e curso de extensão,


que remete ao local onde acontecem a maioria das
aulas do PPGAV e o curso, a Ilha do Fundão. Foi
criado pela artista Livia Flores, e conduzido naquele
semestre em específico com o artista Ronald Duarte
e a crítica de arte Michelle Sommer. O objetivo do
curso era “sustentar um ritmo intensivo de produção
(artística), individual e coletiva, acompanhado de
exercícios de análise crítica”. As aulas de apresentação
e acompanhamento de projetos artísticos dxs alunxs
foram estruturadas em revezamento com uma agenda
construída coletivamente de visitas para, como
dizia a ementa do curso, “explorar a ideia de ilhas
urbanas”. Os encontros aconteceram no galpão da
Pós e em diferentes locais da cidade do Rio de Janeiro.
As saídas foram visitas a locais que possibilitassem
relacionar questões da cidade à prática artística, e
foram propostas como experiências de imersão na
cidade, com potencial de trazer contribuições para as
atividades dxs inscritxs no curso.

Foi nesse contexto, durante a terceira aula,


que propus realizar jogos do TO. Os jogos
aconteceram como pequenas interrupções ou
interferência na dinâmica mais contínua da aula,
utilizando o tempo disponível (cerca de 20/25
minutos) para a minha apresentação no ciclo de
apresentações de projetos. Foram propostos para
acontecer principalmente no espaço da sala de
aula no Fundão, em diálogo com as saídas para
cidade. Os jogos foram jogados e discutidos em
grupo no decorrer dos encontros.

A primeira aula foi no Fundão. Nos


sentamos em círculo. Ao começar
a conversa, após uma breve
apresentação do curso, houve
uma rodada de apresentações. Xs
professores trouxeram uma dinâmica
de aulas aberta, com bastante
a definir conjuntamente. Notei a
tentativa de uma aula participativa,
a busca por um aprendizado mais
horizontal e coletivo. Algumas das
questões principais debatidas nesse
momento giraram em torno da
realização das saídas para a cidade,
sobre como isso se combinaria
com os encontros em sala de aula.
Também foi proposto decidirmos
juntxs o formato de apresentação
dos trabalhos artísticos dos alunxs.
Iniciou-se, com certa pressa, uma
conversa sobre as dinâmicas dos
encontros seguintes. Xs alunxs
estavam bastante quietos enquanto
xs professores iam definindo a
agenda do semestre. Isso se repetiria
em encontros seguintes quando se
tratava de formalizar a dinâmica
deixada mais em aberto pela própria
estrutura do curso.

Percebi essa dificuldade: nós enquanto


alunxs muito acostumados à passividade,
eles enquanto professores com
dificuldades de colocar em prática
uma maior partilha desejada nos
direcionamentos do curso. Me perguntei:
como trabalhar as relações professores /
alunxs, mas também entre alunxs, e entre
professores, de modo a quebrar com
alguns automatismos nesse contexto?
Como realizar uma contribuição para a
construção desse plano de invenção e
aprendizagem coletiva que se começava
a modelar ali? Seria possível trazer para
conversa elementos da compreensão
mais subjetiva dxs participantes da
construção em andamento desse plano?

Teatro dx Oprimidx

O Teatro do Oprimido, como via de


ação, que se estende desde seu início
para além do marco disciplinar do
teatro, é descrito como “um método
de trabalho, uma filosofia de vida, um
conjunto de técnicas...” (Boal, 2013,
p. 209). Com o Teatro do Oprimido,
através da ativação de um conjunto de
técnicas (os jogos, o “Teatro imagem”,
o “Arco-íris do desejo”, o “Teatro
invisível”, o “Teatro legislativo”, entre
outras) Augusto Boal quis tomar parte
em processos de transformação social.
Boal foi um pensador de seu tempo
histórico, refletiu sobre a economia,
a política, o teatro e mais (chegando
a ocupar um cargo público). Sérgio
de Carvalho nos conta que “para
Boal o teatro era um lugar de estudo
concreto da relação contraditória
entre indivíduos e classes”, atento “à
impureza e às inúmeras mediações
entre esses campos” (Carvalho, 2015,
p.405). No Teatro do oprimido,
Oprimidos e opressores não podem
ser candidamente confundidos
com anjos e demônios. Quase não
existem em estado puro, nem uns
nem outros. Desde o início do meu
trabalho com o TO, fui levado, em
muitas ocasiões, a trabalhar com
opressores no meio de oprimidos, e
também com alguns oprimidos que
oprimiam. (Boal, 2013, p.21).

Quando Boal fala dos objetivos das técnicas do TO coloca a


inseparabilidade da transformação individual e coletiva de
momentos de reflexão e aprendizado¹:

Tal como acontece com o resto do Teatro do


Oprimido, estas técnicas têm dois objetivos
principais: melhorar nossa capacidade de conhecer
ou reconhecer uma determinada situação e nos
ajudar a ensaiar ações que possam levar à quebra
da opressão que ela nos revela. (...) o ato de
conhecer, em si mesmo, já é uma transformação.
Uma transformação preliminar que nos dá os meios
de realizar a outra. (Boal, 2015, p.250).
No curso no Fundão, trabalhei mais
especificamente com a parte inicial das
técnicas do Teatro do Oprimido – os jogos
para desmecanização dx corpx. Esse trabalho
foi compilado no livro “Jogos para atores e
não atores” (Boal, 2015). É uma etapa que
ainda não entra diretamente no trabalho das
opressões, mas que dá base para o restante das
técnicas ao concentrar nx corpx em movimento
em relação com outrxs corpxs. Xs corpxs são
centrais nesses jogos teatrais: “o uso de corpos
em dramatizações nos pode ajudar a que
outras pessoas vejam em nós e nós mesmos os
estereótipos que manejamos e nos manejam”.
Pois, “com os corpos sabemos dissimular menos,
e se podem ver melhor como mostramos o que
queremos” (Villasante, 2014). Xs corpxs em
movimento e além disso improvisando trazem
a possibilidade de novos espaços e formas de
convivência, que dão acesso à pensamentos
menos binários. Sendo assim, um dos objetivos
iniciais numa prática de TO é criar o ambiente
propício para os participantes “analisarem a
estrutura muscular” dx corpx em seu cotidiano
(Boal, 2013), de maneira a quebrar com
automatismos. Nesse sentido, dentre as diversas
atividades no programa do Teatro do Oprimido,
os jogos têm o papel de instaurar um espaço
provisório de “desmecanização”, “expressão” e
“conhecimento” dx corpx.
Policial e palhaçx

Estávamos nos conhecendo. Alternamos nos dois


primeiros encontros conversas sobre a cidade e realidade
política, questões práticas para a primeira saída/visita,
e apresentações curtas das pesquisas de alguns de
nós. Eu trouxe no terceiro dia a proposta da dinâmica
de jogos. Na mesma hora Ronald, professor do curso,
sugeriu ao grupo que realizássemos um dos jogos. Antes
de começarmos pedi permissão ao grupo para gravar o
áudio e imagens das ações. Isso ajudaria a refletir sobre
as dinâmicas e conversas. Ique Gazzola, meu colega de
mestrado, foi um parceiro nesse trabalho.

Nesse jogo se formam dois grandes círculos,


um dentro do outro. O círculo de dentro se
volta para fora; o círculo de fora se volta para
dentro. As pessoas alinham-se em pares. Quem
está dentro performa x palhaçx, e quem está
fora performa x policial. Assim que a atividade
começa x palhaçx deve fazer o maior número de
palhaçadas para x policial rir. E x policial deve
ficar sérix. As pessoas devem performar sem
falar ou tocar umas nas outras. Após 5 minutos
o círculo de dentro gira e as duplas mudam.
Mais uma vez. E depois invertem as posições:
quem era palhaçx atua como policial, quem
era policial atua como palhaçx. A tentativa é
a de aproximar xs participantes do ponto “no
exato limite entre a pessoa e o personagem”
(Boal, 2015, p. 370), trabalhando a vinculação
e desvinculação ator-personagem. Nesse caso,
as pessoas buscam dentro de seus repertórios
expressivos modos de lidar com o jogo, e
enquanto se conhecem entram em contato com
modos de exprimir controle / policiamento ou de
desarmar a posição de controle.

A atividade durou entre 10 e 15 minutos. Voltamos a


nos sentar em cadeiras. D. foi o primeiro a quebrar
o silêncio: disse ter sentido autocensura, medo do
ridículo, medo da incompetência. Relatou um esforço
para ser simpático e a dificuldade de assumir a
postura de não se submeter ao estado de ânimo
alheio. Conversamos mais em outros momentos
sobre esse desconforto, ele lembrava exatamente da
sensação que sentiu. L. comentou a importância de
assumir um estado de jogo. B. falou de invisibilidade,
que no jogo se nota a violência do não olhar x outrx.
Para A. havia mesmo uma estratégia de não olhar
por parte dxs policiais. M., professora, disse que havia
sido difícil se sentir confortável. I. contou da sua
experiência em um grupo de teatro com pacientes
psicoterapêuticos: se trata de “assumir a maluquice,
pois todos se encontram na loucura”. C. quebrou
a regra, começou a fazer cosquinha no policial. R.,
professor, disse ter sido palhaço nas duas posições.
Contou que conheceu Boal. Para ele os jogos “trazem
a possibilidade de desatar nós”.
A felicidade

Com a boa receptividade e estimulo dxs professores


combinamos que eu traria mais jogos. Três semanas
depois eu trouxe um jogo preparatório para o “teatro
imagem”. O “teatro imagem” é uma técnica para
expressar o pensamento através de construções
cênicas como imagens, que surge do trabalho de Boal
com indígenas na América Latina. Associa-se nele
a introspecção à “ilustração” com x próprix corpx
ou com x corpx de umx parceirx, para comunicar-se,
testar modos de agir, e pesquisar questões e temas. Eu
trouxe uma adaptação do jogo “Múltipla imagem da
felicidade” (Boal, 2015, p. 231).

Nesse jogo, as pessoas


formam duplas, uma como
“escultora”, e outra como nx próprix corpx. Depois
“escultura”. A primeira move as duas pessoas trocam
os braços, pernas, cabeça de posição, e a “escultura”
e outras partes dx corpx propõe um gesto que
da segunda, criando “uma modifica a proposta inicial
imagem da felicidade”. da “escultora”. Ao fim se
A escultora trabalha os conversa em grupo sobre as
detalhes da “imagem diversas imagens surgidas.
escultórica”: posição das Boal nos indica que este
mãos, dedos, expressão jogo pode ser estratégico
facial, etc. Tudo isso em para trazer direta ou
silêncio, movendo as partes indiretamente questões
dx corpx dx outrx com do contexto. Isso porque
cuidado, ou demonstrando “quando alguém é convidado
a mostrar sua imagem,
mostra a imagem que sente
mais fortemente no momento, naquele
lugar e naquelas condições” (Boal,
2015, p. 233). A técnica também
tem outra intenção mais explicita
que, no nosso caso – com o pouco
tempo de trabalho –, acredito que foi
secundária ou inexistente. Segundo
Boal, essa técnica pode “revelar”
(pela contradição entre a liberdade
que a palavra felicidade suscita e a
modelagem temporária dx corpx dx
outrx), “o lado oprimido / opressor dos
participantes” (Boal, 2015, p.231).

Antes de começarmos cerca de duas ou três pessoas – dxs


vinte alunxs – escolheram não participar e saíram da sala.
Um tom de brincadeira e euforia tomou o grupo assim
que começamos o jogo de toque e modelagem da posição
dx corpx da pessoa em frente. Eu conduzi a dinâmica
acelerado. Em meio à pressa – e também com as muitas
apresentações de alunxs nesse dia – não houve tempo para
uma conversa final. Senti falta dessa conversa, para que
pudéssemos abordar o que havia acontecido. Decidi trazer
para o encontro seguinte uma continuação desse jogo que
ajudasse a fixar mais as imagens e em seguida coletivizá-
las mais. Talvez assim fosse possível uma conversa se
debruçando mais sobre a experiência de cada um/a e
buscando possíveis questões e problematizações no grupo.
Foi assim que no terceiro dia de jogos
retomamos as poses da aula anterior, para
em seguida dramatiza-las mais. Lentamente
as imagens-esculturas deveriam buscar as
outras imagens da felicidade e começar a se
aproximar daquelas que sentiam afinidade.
Experimentamos uma transição mais
consistente entre a experiência individual
e coletiva. Quatro grupos se formaram:
(1) um grupo que se deitou no chão, em
poses de relaxamento e preguiça; (2) um
trio que interagia dançando e esticando
pernas e braços, que foi chamado por um
dos participantes de as “três graças”; (3) um
grupo no qual uma participante terminou
abraçada pelas demais pessoas; (4) um casal
que sambou junto e depois se abraçou. Após
isso convidei as pessoas para desfazerem
momentaneamente a configuração final
do seu grupo e circularem e observarem os
outros grupos.

A provocação inicial para


abrir a conversa – como Boal
propõe – era decidir qual
grupo havia representado
melhor a felicidade. Não no
sentido que um candidato
defenderia seu partido, mas
no sentido de chegar a um
consenso, podendo escolher
um grupo que não era o seu.
I. foi o primeiro a falar
defendendo a felicidade
profunda, “macunaímica”,
do seu grupo (1). O tom era
humorado, assim como dos
comentários que se seguiram.
R. disse que “certamente
havia sido o mais feliz”. B.
rebateu dizendo que a mais
feliz tinha sido ela. Percebi
uma resistência para falar
sobre a experiência, como
se fosse algo desnecessário.
A conversa se encaminhava
para um esvaziamento
do sentido de se chegar a
um consenso como parte
importante do jogo. Insisti
na proposta e em seguida H.
disse que para ele o trio “que
se expressou corporalmente”
(2) – talvez o que ele gostou
mais – foi uma pose estética,
um modo de organizar
uma composição, e o grupo
que ficou “se abraçando”
(3) demonstrou amizade e
proteção. Perguntei como
havia sido a passagem da
felicidade individual para
a coletiva. H. emendou:
“a felicidade que ganha
de todas é a felicidade
coletiva”. Em seguida F.
narrou a dificuldade que
sentiu de passar da felicidade
individual para a coletiva.
Sentiu que em sua pose havia
coisas que não encontravam
lugar no grupo. Mas se
adaptou: “é uma coisa de se
esforçar para se aproximar
das outras felicidades”. A
“felicidade é se encontrar”
alguém completou. O
próximo passo, que não
chegamos a dar, seria o de
conversar sobre aquilo que
bloqueava ou impedia a
felicidade, aquilo que podia
estar se manifestando talvez
como opressão naquelas
imagens.

Em um dos dias de aula, fizemos uma longa


jornada de trem para Campo Grande. De modo
a refletir sobre os dois primeiros jogos, durante
a viagem, propus três perguntas: “o que está
acontecendo durante os jogos?” “Quais os
efeitos?” “E o que não está acontecendo
durante os jogos?”
A ideia era que cada um pudesse contar como
havia sido a sua experiência dos três primeiros
dias. As pessoas falaram sobre a possibilidade de
nos encontrarmos em terreno lúdico. Se conectar
com o lado criança. O toque entre corpos. O
contato alegre. Abertura para x outrx. Experimentar
papéis. R., professor, disse que para próximas
turmas do Desilha gostaria de trazer jogos como
esses. Comentou sobre imagens do “exercício da
felicidade” que não vai esquecer.

Sonho de criança

As conversas me levaram a querer trazer a


experimentação de um personagem carregado
de memória por cada pessoa, assim como uma
maior análise pelo grupo dos movimentos dos
personagens e interações que iriam surgir.

No início do jogo “Sonho de criança” (Boal, 2015)


metade dxs participantes do grupo escreve
sobre um pedaço de papel o seu nome, e o nome
de uma personagem que queria ser quando
crescesse (se é que queria). Em seguida entram
em cena e mostram como seria o caminhar dessa
personagem, enquanto a outra metade do grupo
assiste como plateia. Os participantes em cena
aos poucos devem buscar estabelecer relações
com outrxs participantes em cena, entrando em
um diálogo que se dá sem o uso da linguagem.
É frequente em jogos teatrais o uso do gromelô,
uma técnica para a criação de uma “língua
imaginária”, que busca atingir a expressividade
e intenções comunicacionais presentes na
linguagem. Para este jogo propus o uso da
expressão “blá blá blá...”, em diferentes tons,
ritmos e volumes para ajudar na comunicação
(o que depois percebi que não foi tão eficaz
pois tirou a atenção de uma expressão
corporal mais autentica). Ao fim inicia-se uma
conversa onde a “plateia” procura a partir do
que observou descrever as características de
cada personagem. Não se trata de adivinhar
a identidade da personagem, que deve ser
mantida oculta, mas de mostrar o que cada um
expressou em cena. Nesse jogo a plateia busca
pelos elementos que revelam o que a pessoa
via quando era criança naquela personagem,
ou “que capacidades queria desenvolver em
si mesma, usando o nome ou a imagem de
alguém real ou fantástico como veículo para
essa aspiração” (Boal, 2015, p.207). Trata-se da
continuidade da pesquisa do “limite entre pessoa
e personagem”, acessando “máscaras sociais de
comportamento referido”, que mostram como os
rituais de uma sociedade interferem e participam
da constituição da máscara social de cada
pessoa (Boal, 2015, p.332).
A atividade durou cerca de 30 minutos. No pouco
tempo que tivemos de conversa falamos sobre a
necessidade de trazer a credulidade da infância
para encarar os personagens, e sobre como
acessar a comunicação sem linguagem, dois
aspectos importantes do jogo.

Máquina de ritmos

Convidei a artista e pesquisadora do Teatro do


Oprimido Cristina Ribas para pensar e conduzir a
dinâmica do último dia de jogos comigo, a partir das
conversas que mantivemos durante o processo³.
Era um dia especial, uma oportunidade de dar um
fechamento para a série de jogos. Além disso, pela
primeira vez faríamos os jogos em um dos locais que
visitamos, na Aldeia Maracanã, aldeamento indígena
no bairro do Maracanã. Os jogos começaram assim
que terminou uma visita guiada conduzida por pessoas
da Aldeia. Algumas delas participaram da série de
jogos em seguida. Foi uma dinâmica de cerca de 30
minutos baseada na série de “jogos de ritmo” (Boal,
2015, p.129).
Iniciamos realizando o “Hipnotismo colombiano” (Boal,
2015, p.101). Nesse jogo uma pessoa coloca a mão a
poucos centímetros do rosto de outra, que como se
hipnotizada, segue os movimentos da mão, sempre com
o rosto a mesma distância da mão dx “hipnotizadorx”.
Boal recomenda que x hipnotizadorx, com toda atenção,
leve x parceirx a “assumir todas as posições ridículas,
grotescas, não usuais: são precisamente essas que
ajudam o ator a ativar estruturas musculares pouco
usadas e melhor sentir as mais usuais”.

Depois disso, realizamos a “Roda de


ritmo e movimento”. Nesse jogo xs
participantes “formam um círculo;
um deles vai ao centro e executa um
movimento qualquer, por mais insólito
que seja, acompanhado de um som
(tanto o som como o movimento
dentro de um ritmo inventado por ele
próprio).” Em seguida todos os demais
o seguem, “tentando reproduzir os
seus movimentos e sons dentro do
ritmo, o mais sincronicamente possível”
(Boal, 2015, p.129). Se o hipnotismo
colombiano leva a um estado de
entrega, concentração e improviso,
a roda de ritmo e movimento produz
atenção e experimentação junto com
xs outrxs corpxs.
Em seguida realizamos um exercício mais
complexo, a “Máquina de ritmos” (Boal, 2015,
p.130). Nela “umx participante vai ao centro e
imagina que é uma engrenagem de uma máquina
complexa. Faz um movimento com seu corpo,
rítmico, e, ao mesmo tempo, o som que essa peça
maquínica deve produzir”. Alguns momentos
depois, umx segundx participante se levanta e
“acrescenta uma segunda peça à engrenagem”,
em um movimento que seja complementar e
não idêntico. Aos poucos todxs do grupo vão se
acoplando à máquina na direção de formar “uma
só máquina, múltipla, complexa, harmônica”.
Também é possível realizar máquinas temáticas,
com nomes. Como conta Boal, “qualquer tema
que o grupo queira trabalhar pode ser abrangido
pela máquina, seja burocracia, autoritarismo,
sexismo, racismo...”, as máquinas se tornam
particularmente úteis quando se quer criar
“imagens de um tema para que não permaneça
abstrato” (Boal, 2015, p.131). O desafio quando se
direciona assim o jogo é chegar em engrenagens
da máquina para além de estereótipos, focando
nos ritmos e sons mais internos dxs participantes.

Inicialmente testamos uma máquina sem nome, com


diferentes velocidades e experimentando o funcionamento
isolado de partes dela. Depois disso fizemos três máquinas
com nomes: a “máquina da felicidade” – que gerou
movimentos amplos, sons de relaxamento e sorrisos –,
a “máquina da opressão” – que foi bastante intensa,
com posturas cabisbaixas, movimentos de violência, mas
também de luta, solidariedade e recusa –, e a “máquina
Desilha”. Infelizmente não foi possível filmar as atividades
deste dia e o relato foi escrito muito tempo depois.

O que a minha memória falha escolheu


guardar foram alguns gestos e momentos.
Entre eles o gesto de descontração de
uma das participantes na roda de ritmo
e movimento ou o gesto de luta de D.
dentro da máquina de opressão. Também
lembro bem do final da “máquina
Desilha”, quando após momentos de
hesitação e silêncio I. irrompeu realizando
um gesto sem som que quebrou as regras
do jogo. Ele fez o desenho invisível de uma
área no solo e convidou com as mãos o
restante das pessoas a entrar na área.
Boa parte dxs presentes entrou na área
designada ficando bem junto por alguns
momentos. Xs corpxs amalgamadxs,
que conformaram uma espécie de ilha,
pareciam sugerir uma relação entre
território, pertencimento e comunidade.
Microinterferências

Percebo que a experiência


dos jogos talvez tenha
se configurado como
um dispositivo dentro do
dispositivo-aula. Segundo
Gregorio Baremblitt, um
dispositivo é o “contrário de
um equipamento”:

Trata-se de uma montagem (termo que


frequentemente se utiliza em cinematografia,
teatro ou nas artes plásticas) de elementos
extraordinariamente heterogêneos que podem
incluir ‘pedaços’ sociais, naturais, tecnológicos e
até subjetivos. Um dispositivo caracteriza-se pelo
seu funcionamento, sempre simultâneo a sua
formação e sempre a serviço da produção, do
desejo, da vida, do novo. (Baremblitt, 2002).

Como dispositivo de experimentação com jogos


do Teatro do oprimido, o projeto talvez tenha
atuado no sentido do aumento da comunicação
e investigação de si entre produtores de arte.
Acredito que os jogos também trouxeram
elementos para a reflexão da dinâmica de aula
pelos professores e por nós
alunxs. Acho que houveram
ali “experiências, mesmo
que momentâneas, de
dissolução de classificações,
hierarquizações e dicotomias
presentes” naquela
“realidade institucional
cotidiana” (Escóssia e
Tedesco, 2009, p. 105), já que
importava menos “fazer arte”
do que experimentar com
o grupo. O arriscar-se em
cena desses jogos permite
além disso o enfrentamento
de posições autoritárias,
sexistas, racistas, etc.

O que pode ter se “liberado” durante as atividades


uma vez que uma dinâmica mais tradicional de aula
foi “jogada para o alto” foi um aqui-agora com mais
potência de invenção e transformação coletivos... Se
isso for verdade, considero que os jogos baseados no
Teatro do oprimido se mostraram uma ferramenta apta
para pequenas interferências mais processuais em uma
dinâmica de aulas como a do curso Desilha. Ferramenta
de aprendizagem coletiva e para movimentar xs corpxs
de um modo que abre caminho para um trabalho mais
transformativo das dinâmicas de grupos.
Lucas S. Icó, 2017-2020
Referências bibliográficas

BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise


institucional e outras correntes: teoria e prática.
Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002.

BOAL, A. Jogos para atores e não atores.


São Paulo: Cosac-Naify, 2015.

BOAL, A. Teatro do oprimido e outras poéticas


políticas. São Paulo: Cosac-Naify, 2013.

BOAL, J. em BOAL, A. Jogos para atores e não


atores. São Paulo: Cosac-Naify, 2015.

CARVALHO, S. em BOAL, A. Jogos para atores e


não atores. São Paulo: Cosac-Naify, 2015.

ESCÓSSIA, L. e TEDESCO, S. “O coletivo de


forças como plano da experiência cartográfica”
em: KASTRUP, V.; PASSOS, E. e ESCOSSIA, L.
Pistas do método da cartografia vol. 1.
Porto Alegre: Sulina, 2009.

RIBAS, C. “Cartografias esquizoanalíticas e


Teatro do Oprimido: algumas passagens“ em
Anais do V JITOU, 2017. Disponível em <https://
www.academia.edu/39268558/Cartografias_
esquizoanal%C3%ADticas_e_Teatro_do_
Oprimido_algumas_passagens>

VILLASANTE, T. Redes de vida desbordantes.


Madrid: Los libros de la Catarata, 2014.
¹ Participei de oficinas conduzidas por Bárbara Santos,
Maiara Carvalho e Marcela Farfán Recchia.

² O nome Teatro do Oprimido faz referência à Pedagogia


do Oprimido de Paulo Freire. “A pedagogia de Freire
parte de uma hipótese de confiança: é impossível ser
totalmente ignorante; devemos trabalhar para expandir
constantemente o saber a partir dos conhecimentos que
cada um já possui” (Boal, 2013, p.211).

³ Algumas das oficinas que Cristina vem organizando


podem ser conhecidas no site:
https://vocabpol.cristinaribas.org/oficinas/
Jandir Jr. & Cás M.
2019

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